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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BISPO PRETO / S. S. Van Dine
O BISPO PRETO / S. S. Van Dine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O caso do Bispo Preto empolgou toda uma nação. Era um mistério criminal de excepcional interesse em vista das circunstâncias sinistras e estranhas que o cercavam.
Parecia, porém, quase impossível desvendar a cadeia de fatos misteriosos e recônditos que precederam o crime. Em dado momento, as pistas se multiplicavam com tal exuberância que os homens mais treinados nas técnicas da investigação criminal se perdiam nelas, sem saber por onde prosseguir.
Felizmente, o espírito insaciável e os métodos analíticos notáveis de Philo Vance fizeram-no absorver-se em todas as complicações do caso para resolvê-lo numa série de raciocínios e análises que constituem uma verdadeira jóia da literatura policial.
Sem a sua intervenção, sem a sua aplicação ao caso dos seus poderes magistrais de dedução e de análise, sem a sua agudeza intelectual desenvolvida e comprovada no conhecimento profundo de quase todos os setores do conhecimento humano, seria muito provável que o mistério do Bispo Preto nunca fosse decifrado.

 

 

 

 

 

 

I

"QUEM MATOU COCK ROBIN?"

(Sábado, 2 de abril — meio-dia)

De todos os casos criminais em que Philo Vance interveio como investigador particular, o mais sinistro, grotesco e aparentemente ò mais incompreensível, e sem dúvida o mais terrível, foi o que se seguiu aos famosos assassinatos dos Greenes (1). A orgia de horror na velha mansão havia chegado a um fim surpreendente no mês de dezembro, tendo Vance ido à Suíça, depois das festas de Natal, para dedicar-se aos desportos de inverno. Voltando a Nova York, em fins de fevereiro, aplicou-se a um trabalho literário que, há muito tempo, planejara: à tradução dos principais fragmentos de Menandro, encontrados nos papiros egípcios em princípios do atual século.

Durante mais de um mês, esteve ele trabalhando diligentemente nessa tarefa ingrata. Se a teria completado ou não, eu não posso dizer. Vance era um homem culto, cujo espírito de investigação e aventura intelectual estava constantemente em contraste com o trabalho necessário para a criação escolástica. Recordo-me de que, no ano anterior, começara a escrever a vida de Xenofonte, resultado do entusiasmo do seu tempo de universitário, quando pela primeira vez leu a Anabasis e a Memorabilia, perdendo o interesse pelo aludido trabalho, quando chegou ao episódio histórico em que Xenofonte conduz os Dez Mil de volta para o mar. Entretanto, poderei assegurar que a tradução de Menandro foi bruscamente interrompida em princípios de abril, e, durante algumas semanas, ele se deixou absorver pelo misterioso crime que levou o país inteiro a um estado de horrível excitação.

(1) Relato em A Série Sangrenta, do mesmo autor. Dist. Record.


Essa nova investigação criminal em que ele atuou como uma espécie de amicus curiae de John F. X. Markham, procurador do distrito judicial de Nova York, imediatamente se tornou conhecida pela designação de "os misteriosos crimes do Bispo". A designação, resultado do nosso instinto jornalístico de pôr rótulo em qualquer cause célebre, era de certo modo inadequada. Não existia nada de eclesiástico acerca dessa campiresca saturnal de crimes que fez com que uma inteira comunidade lesse as Melodias de Mama Goose, com temerosa apreensão (2).

(2) Durante um período de várias semanas venderam-se mais exemplares das Melodias de Mama Goose que de qualquer novela. Uma das casas editoras menores tornou a imprimir e vendeu por completo a edição dessas velhas e famosas rimas infantis.

E ninguém, de nome Bispo, estava, pelo que eu sei, nem sequer remotamente relacionado com os sucessos monstruosos que deram lugar a essa denominação. Contudo, a palavra Bispo era apropriada por ser o nome suposto empregado pelo assassino para seus tenebrosos propósitos. Aliás, foi este nome que por fim conduziu Vance à mais incrível das verdades, terminando assim um dos mais espantosos crimes em série da história policial.

A série de acontecimentos sobrenaturais e aparentemente não relacionados que constituíam o "caso Bispo" e que fizeram com que Vance se esquecesse de Menandro e dos monásticos gregos teve seu início na manhã de 2 de abril, perto de cinco meses depois do duplo assassinato de Julia e Ada Greene. Era um desses dias primaveris temperados e formosos que, às vezes, em princípios de abril, favorecem Nova York. Vance estava fazendo o seu desjejum no pequeno jardim do terraço da sua casa da Rua 38, Leste. Era quase meio-dia, pois ele trabalhava ou lia até altas horas da noite, levantando-se por conseguinte muito tarde. O sol, que caía de um céu azul sem nuvens, estendia um manto de letargia sobre a cidade. Vance, esparramado em uma poltrona, com seu desjejum ao lado numa mesinha baixa, olhava com céptico e saudoso olhar as copas das árvores do pátio.

Eu sabia que seu espírito maquinava. Era seu costume ir todas as primaveras à França; e, há muito tempo, havia pensado como pensara George Moore, que Paris e maio eram cousas correlatas. Porém, a grande corrente de nouveaux riches americanos de após-guerra, em Paris, tirou-lhe o prazer dessa peregrinação anual; e, no dia anterior, informara-me que este verão passaríamos em Nova York.

Há muitos anos que sou amigo de Vance, além de conselheiro legal, uma espécie de administrador financeiro e agente. Abandonei a firma de advocacia de meu pai, Van Dine, Davis Van Dine, para dedicar-me inteiramente aos seus interesses, posição que era muito mais de meu gosto que a de advogado em um escritório mal ventilado; e, embora meus aposentos de solteiro fossem num hotel do West Side, eu passava a maior parte do tempo nos aposentos de Vance.

Aquela manhã, eu havia chegado cedo, muito antes de Vance se levantar, para revisar as contas de fim de mês. Agora, enquanto ele almoçava, eu fumava preguiçosamente meu cachimbo.

— Como suporá você, Van — disseme ele com sua enunciação lenta e insensível — a perspectiva da primavera e do verão em Nova York nem é excitante nem romântica. Vai ser enfadonho. Entretanto, será menos incômodo que viajar pela Europa com aquele bando de turistas vulgares, acotovelando-se com eles em cada esquina... É muito penoso.

Nada suspeitava ele do que se lhe havia reservado para as semanas próximas. Se ele o soubesse de antemão, nem a mais brilhante primavera em Paris o faria deixar o país; pois não havia nada que mais agradasse a seu insaciável espírito do que um problema complicado. E enquanto me falava aquela manhã, os deuses que presidiam ao seu destino lhe estavam preparando um estranho e fascinante enigma, que iria eletrizar profundamente toda a nação e acrescentar aos anais do crime um novo e terrível capítulo.

Mal Vance acabara de encher sua segunda xícara de café, Currie, seu velho mordomo inglês e jactatum geral, apareceu à porta francesa com um telefone portátil.

— É o senhor Markham, — disse o velho em tom de desculpa. — Como parecia ter urgência, tomei a liberdade de comunicar-lhe que o senhor estava em casa.

Ligou o telefone ao comutador e colocou o aparelho sobre a mesa onde estava a refeição.

— Está bem, Currie, — murmurou Vance segurando o receptor. — Qualquer coisa é boa para romper esta monotonia.

A seguir falou a Markham.

— Diga-me, companheiro, você nunca dorme? Estou terminando uma omelette aux fines herbes. É servido? Ou prefere ouvir a música de minha voz?

Deteve-se bruscamente, e o aspecto trocista desapareceu de seu rosto magro. Vance era o tipo característico do homem nórdico, de face larga e agudamente cinzelada; olhos cinzentos muito separados; nariz delgado e aquilino e um queixo ovalado; boca enérgica e bem cortada, porém com um ar de crueldade e cepticismo que era antes do Mediterrâneo. Seu rosto forte e atraente não era exatamente belo; era antes um rosto de pensador e de monge; e sua própria austeridade, ao mesmo tempo, de um estudioso e introspectivo, constituía como que uma barreira entre ele e seus companheiros. Embora fosse por natureza impassível e cuidadosamente disciplinado na repressão das suas emoções, notei que, enquanto ele escutava Markham no telefone aquela manhã, não podia inteiramente ocultar seu interesse veemente no que lhe diziam. Suas sobrancelhas estavam ligeiramente franzidas e seus olhos refletiam seu assombro interno. De vez em quando, deixava escapar um "Surpreendente!", um "Diabo!" ou um "Extraordinário!" — suas exclamações prediletas. E, quando depois de alguns minutos falou a Markham, uma excitação curiosa assinalava suas maneiras.

— Oh, de nenhum modo! — disse ele. — Não o deixaria nem por todas as comédias perdidas de Menandro... parece loucura. Imediatamente, vou-me vestir já... Au revoir.

Largando o receptor, tocou a campainha para chamar Currie.

— Minha roupa cinzenta — ordenou ele. — Uma gravata escura e meu chapéu.

E voltou à sua omelette, mas já com ar preocupado.

Ao fim de alguns minutos, mirou-me zombeteiramente.

— Que sabe você de arco e flecha, Vance? — perguntou ele.

Tudo o que eu sabia era que consistia em atirar flechas em alvos, e foi o que lhe confessei.

— Não se pode dizer que é muito o que você sabe. — Acendeu indolentemente um cigarro Régie. — Contudo, parece que estamos metidos em um caso de toxofilia. Eu tampouco sou uma autoridade no assunto, porém em Oxford pratiquei um pouco esse esporte. Não é um passatempo apaixonadamente excitante, é muito mais insípido que o golfe e tão complicado como este.

Durante momentos fumou como em sonhos.

— Van, quer ir buscar na biblioteca o volume do Dr. Elmer sobre Balística? Faça-me esta fineza.

Trouxe-lhe o livro, e durante quase meia hora ele mergulhou na sua leitura detendo-se nos capítulos sobre associações de arqueiros, torneios e encontros, e examinando as longas tabelas dos melhores pontos americanos.

Finalmente recostou-se na sua cadeira. Era evidente que havia encontrado algo que o abalara e que pôs em atividade seu sensível espírito.

— É uma loucura, Van — observou com os olhos fixos no espaço. — Uma tragédia medieval na moderna Nova York! Não usamos mais botas nem gibões de couro, e não obstante... Puxa! — Subitamente se empertigou em sua cadeira: — Não..., não! É absurdo. Não devo deixar que as tolas notícias de Markham se apoderem de mim... — Bebeu mais uns goles de café, porém sua expressão me revelou que não podia desprender-se da obsessão que se havia infiltrado em seu cérebro.

— Outro favor mais, Van — disse ao fim de uns minutos. — Traga-me o dicionário alemão e o livro de Versos Domésticos de Burton E. Stevenson.

Quando eu os trouxe, procurou uma palavra no dicionário e o colocou de lado.

— É infelizmente isto mesmo... embora eu já estivesse bem certo a respeito.

Em seguida, examinou a seção da gigantesca antologia de Stevenson dedicada às rimas infantis. Não tardou muito a fechar também este livro, e, estirando-se na sua cadeira, lançou uma larga baforada de fumo até o toldo que cobria o terraço. — Não pode ser — protestou, como para si mesmo. — É demasiado fantástico, demasiado diabólico, demasiado absurdo. Um conto de fadas sangrento... um mundo em anamorfose... uma perversão de toda a racionalidade. É inimaginável, insensato, semelhante à magia negra, à feitiçaria, à taumaturgia. É decididamente uma loucura.

Olhou seu relógio e levantando-se entrou em casa, deixando-me a especular vagamente sobre a causa da sua inusitada agitação.

Um tratado sobre balística, um dicionário alemão, uma coleção de versos infantis e as incompreensíveis expressões de Vance acerca da loucura e da fantasia... que relações podiam existir em tudo isso?

Tentei encontrar um denominador comum, porém sem o menor sucesso. Não é de estranhar que eu tenha fracassado. Mesmo a verdade, quando apareceu semanas depois apoiada em um conjunto de provas incontestáveis, parecia demasiado incrível e demasiado perversa para ser aceita pelo espírito humano em estado normal.

Pouco depois, ele interrompeu minhas inúteis especulações. Vestia traje de passeio e parecia impaciente pela demora de Markham.

— É verdade que eu necessitava de algo que me interessasse... um crime requintado e fascinante, por exemplo — observou ele — mas, por Deus, não desejava um pesadelo. Se eu não conhecesse Markham tão bem, diria que ele exagerava.

Quando, minutos depois, Markham entrava no terraço, podia observar-se a sua sinceridade. A expressão da sua fisionomia era sombria e revelava preocupação. Sua saudação habitualmente cordial ele a reduziu à mais simples cortesia formal. Markham e Vance eram amigos íntimos há quinze anos. Embora de naturezas opostas: um severamente agressivo, brusco, sincero e quase rudemente grave e o outro caprichoso, céptico, afável, alheio às inquietações passageiras da vida — encontraram, porém, entre si a atração complementar que, muita vez, forma a base de uma amizade inseparável e duradoura.

Durante o tempo em que Markham desempenhou as funções de procurador do distrito de Nova York, chamava sempre Vance para conferenciar sobre assuntos de grave importância, e, em todos os casos, Vance justificava a confiança por ele depositada em suas opiniões. É indubitável que a Vance compete quase que exclusivamente o mérito de ter resolvido grande número dos maiores crimes ocorridos durante os quatro anos em que Markham esteve no exercício das suas funções.

Seu conhecimento da natureza humana, seus amplos estudos e realizações culturais, o sutil senso lógico e o amor pela verdade oculta sob aparências enganadoras, tudo o capacitava para a tarefa que realizava não oficialmente, nos casos que caíam sob a jurisdição de Markham.

O primeiro caso de Vance, como devem estar lembrados, prendia-se ao assassinato de Alvin Benson (1). E, se não fosse a sua participação nesse caso, duvido de que a verdade sobre o mesmo tivesse vindo à luz. Logo se seguiu o atroz estrangulamento de Margarida Odell (2), assassinato misterioso, em que os métodos ordinários de investigação policial teriam fracassado inevitavelmente. E, no ano passado, o surpreendente assassinato dos Greenes (ao qual anteriormente já me referi) que ficaria impune, se Vance não frustrasse a tentativa final do assassino. Não era de estranhar, portanto, que Markham procurasse Vance desde o início dos misteriosos crimes do Bispo. Eu havia notado que cada vez ele dependia mais de Philo para suas investigações criminais. E, no caso presente, teve sorte em recorrer a Vance, pois só através de um conhecimento profundo das manifestações psicológicas anormais do espírito humano, tal como possuía Vance, podia ter sido destrinçada aquela tétrica e louca conspiração e descoberto o seu autor.

(1) O Caso Benson.

(2) O Crime da Canária.

 

— Pode acontecer que tudo isto não seja como eu penso — disse Markham sem convicção. — Mas pensei que poderia interessá-lo...

— Oh, inteiramente! — exclamou Vance e dirigiu a Markham um sorriso sardônico... — Sente-se e conte-me o caso tranqüilamente. O cadáver não fugirá. E é necessário que ponhamos tudo em ordens antes de vermos o corpo. Assim, por exemplo — quem são os interessados da primeira parte? E por que a intervenção da procuradoria do distrito, em um caso de assassinato, uma hora depois da morte do indivíduo? Tudo o que você me disse até agora se reduz à maior das tolices.

Markham sentou-se sombriamente à borda de uma cadeira e olhou a extremidade do seu charuto.

— Caramba, Vance! Não comece com atitudes misteriosas de Ugolfo. O crime, se é que o há, está bastante claro. Admitirei que é um assassinato nada vulgar; porém, certamente, não é insensato. Ultimamente o arco-e-flecha tem tido grande incremento. Não há cidade, nem colégio onde não se pratique esse esporte.

— Concordo. Todavia, desde muito tempo não se costuma matar indivíduos que se chamem Robin.

Os olhos de Markham semicerraram-se e puseram-se a observar Vance interrogativamente.

— Ocorreu a você também esta idéia?

— Se ocorreu a mim? Saltou-me no espírito, assim que você pronunciou o nome da vítima. — Vance tirou umas baforadas de seu cigarro. — "Quem matou Cock Robin?" E com um arco e uma flecha!... É interessante como esses versinhos aprendidos na infância gravam-se na memória. E, a propósito, como se chama o infortunado Sr. Robin?

— Creio que Joseph.

— Nem edificante, nem sugestivo.

— Algum outro nome mais?

— Vamos, Vance, — disse Markham, ao mesmo tempo que se levantava nervosamente. — Que tem que ver com o caso o outro nome da vítima?

— Não sei. Entretanto, como estamos ficando loucos, é melhor que o fiquemos de todo. De nada nos servirá um pouquinho de sensatez.

Apertou a campainha para chamar Currie. Logo que este atendeu, pediu-lhe Vance a lista telefônica. Markham protestou, porém Vance fingiu que não ouviu. De posse do guia, começou a folheá-lo durante minutos.

— A vítima morava em Riverside Drive? — perguntou por fim, assinalando com o dedo um nome.

— Creio que sim.

— Está bem! — Vance fechou o livro e fixou no procurador do distrito um olhar burlesco e triunfante.

— Markham — disse lentamente — há um único Joseph Robin na lista telefônica. Vive em Riverside Drive e seu nome é Cochrane!

— Que tolice é esta? — O tom de voz de Markham era quase feroz. — Suponhamos que se chamasse Cochrane: quer você seriamente insinuar que esse fato influirá em seu assassinato?

— Dou-lhe a minha palavra que não insinuo nada — disse Vance, encolhendo ligeiramente os ombros. — Estou apenas anotando uns quantos fatos relacionados com o assunto. Até agora isto se apresenta assim: — O Sr. Joseph Cochrane Robin, isto é, Cock Robin... foi morto por um flechaço. Não lhe diz seu espírito legal que isto é algo verdadeiramente raro?

— Não! — retrucou Markham. — O nome da vítima é certamente muito vulgar. E o que mais me surpreende é que não tenham morto mais pessoas com este ressurgimento do esporte do arco-e-flecha em todo o país. Além disto, é de todo possível que a morte de Robin tenha sido causada por um acidente.

— Oh! Caramba! — e Vance meneou a cabeça em sinal de desaprovação. — Embora fosse assim, isto não melhoraria em nada a situação. Só a tornaria mais singular. Entre todos os milhares de entusiastas do arco que habitam nosso belo país, havia de ser precisamente o chamado Cock Robin quem caísse morto por um flechaço! Semelhante suposição nos conduziria ao espiritismo e à demoniologia, ou a qualquer outra cousa. Por acaso, crê você nos Eblises, Azazels e Jinas que vão pelo mundo adiante pregando peças satânicas à humanidade?

— Devo ser um mitólogo maometano para admitir coincidências? — replicou Markham asperamente.

— Meu prezado amigo! O braço proverbialmente comprido da Providência não se estende ao infinito. Há, além disto, leis de probabilidades baseadas em fórmulas matemáticas bem definidas. Entristecer-me-ia pensar que homens como Laplace (1), Czuber e Von Kries tivessem vivido em vão.

(1) Embora Laplace seja mais conhecido por sua Mecânica Celeste, Vance referia-se aqui à sua magistral obra Teoria Analítica das Probabilidades.


A situação presente, entretanto, é mais complicada do que você suspeita. Por exemplo, você mencionou pelo telefone que a última pessoa, que se sabe esteve com Robin antes de sua morte, é um Sperling.

— E que significação esotérica encerra esse pormenor?

— Talvez você saiba o que quer dizer Sperling em alemão — sugeriu Vance delicadamente.

— Freqüentei o ginásio — retrucou Markham. Seus olhos abriram-se um pouco e ele empertigou o corpo.

Vance empurrou o dicionário alemão para junto dele.

— Em todo caso, procure a palavra. O saber não ocupa lugar. Eu já a procurei. Temia que minha memória me enganasse e nasceu em mim o desejo de ver a palavra em letra de forma.

Markham abriu o livro em silêncio e percorreu a página com a vista. Ao cabo de uns instantes, ergueu-se resolutamente, como se lutasse para resistir a uma tentação. Quando falou, a sua voz era um desafio.

— Sperling quer dizer pardal. Qualquer escolar o sabe. E o que tem isto?

— Oh, nada! — Vance languidamente acendeu outro cigarro. — Qualquer escolar também conhece as velhas rimas da infância intituladas "A morte e o enterro de Cock Robin". Que me diz você a isto? — Olhou para Markham atormentadoramente, enquanto este se conservava imóvel, dirigindo o olhar para o sol primaveril. — Já que você aparentou não estar familiarizado com esse clássico da infância, permita-me que lhe recite a primeira estrofe.

Um arrepio, como de alguma aparição espectral, passou por mim no momento em que Vance repetia aqueles velhos versos familiares:


"Quem matou Cock Robin?

"Eu" — disse o pardal.

"Com meu arco e flecha

"Eu matei Cock Robin."


II

 

NA MIRA DA FLECHA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 12h30)

 


Vagarosamente Markham voltou os olhos para Vance.

— Ê loucura — observou ele, como um homem que enfrenta algo inexplicável e horrendo.

— Ora! Ora! — manifestou Vance sacudindo vivamente a mão. — Isto é um plágio. Eu o disse primeiro. (Estava-se esforçando por dominar seu próprio sentimento de perplexidade, tomando uma atitude frívola.) — Não seria estranho que houvesse uma inamorata que chorasse a morte do Sr. Robin. Recorda-se talvez da estrofe:


"Quem será a principal carpideira?

"Eu" — disse a pomba;

"Lamento o meu amor perdido;

"Eu serei a principal carpideira."


Markham sacudiu a cabeça ligeiramente, enquanto nervosamente tamborilava sobre a mesa.

— Por Deus, Vance! Neste assunto intervém uma moça, existindo, portanto, uma possibilidade de que o ciúme tenha sido a causa do crime.

— Imagine isto, agora! Receio que o caso se transforme em uma espécie de tableau vivant para adultos que freqüentem o jardim de infância — que me diz? Mas isto fará com que nossa tarefa seja mais fácil. Tudo o que teremos de fazer é encontrar a mosca.

— A mosca?

— A Musca domestica, para falar pedantemente... Meu caro Markham, você se esqueceu?


"Quem o viu morrer?

"Eu" — disse a mosca.

"Com meus olhinhos

"Eu o vi morrer."


— Desça do seu reino de fantasia — disse Markham acerbamente. — Isto não é um brinquedo de crianças! É um assunto terrivelmente sério.

Vance meneou a cabeça distraidamente.

— Os brinquedos de criança são, às vezes, os assuntos mais sérios da vida. — Suas palavras tinham um tom distante e curioso. — Não me agrada isto... não me agrada absolutamente. Há muito de infantil nisto... de criança que nasceu velha e com um cérebro enfermo. É como uma perversão odiosa. — Aspirou profundamente o fumo de seu cigarro e fez uma ligeira careta de repugnância. — Dê-me os pormenores, vejamos onde nos encontramos nesta terra transtornada.

Markham sentou-se novamente.

— Tenho poucos pormenores. Praticamente, pelo telefone lhe disse tudo quanto sei. O velho professor Dillard chamou-me pouco tempo antes de eu ter falado com você.

— Dillard? Porventura o professor Bertrand Dillard?

— Sim, a tragédia passou-se em sua casa. Conhece-o?

— Pessoalmente, não. Conheço-o como o conhece o mundo científico... Como um dos maiores matemáticos do mundo. Tenho quase todos os seus livros. Mas, como aconteceu que ele o chamasse?

— Conheço-o há quase vinte anos. Na Universidade de Columbia foi meu professor de matemática e, mais tarde, fiz alguns trabalhos forenses para ele. Quando se encontrou o corpo de Robin, telefonou-me imediatamente... cerca de onze e meia. Chamei o sargento Heath, da Seção de Homicídios, e entreguei-lhe o caso... embora dissesse que, mais tarde, iria pessoalmente. Em seguida, telefonei a você. O sargento e seus homens esperam-nos na casa de Dillard.

— Qual é a situação doméstica do professor?

— Como você deve saber, ele renunciou à sua cátedra há uns dez anos. Desde essa época mora na Rua 75, Oeste, perto do Drive. Levou consigo para a sua casa a filha de um irmão, menina de quinze anos. Agora provavelmente terá vinte e cinco anos. Com eles vive o seu protegido Sigurd Arnesson, que foi meu condiscípulo na faculdade. O professor adotou-o, quando ele estava completando os seus estudos. Arnesson tem agora uns quarenta anos. É monitor de matemática em Colúmbia. Veio da Noruega com três anos de idade, ficando órfão cinco anos depois. É um matemático genial, e provavelmente Dillard viu nele um futuro grande físico e adotou-o.

— Já ouvi falar de Arnesson — observou Vance. — Recentemente publicou algumas modificações sobre a teoria de Mie a respeito da eletrodinâmica dos corpos em movimento... E estes três... Dillard, Arnesson e a moça vivem sós?

— Com dois criados. Ao que parece, Dillard tem uma renda bem apreciável. Entretanto, não estão muito sós. A casa é uma espécie de templo de matemáticos; tornou-se mesmo um cenáculo. Além disto, a moça, que sempre se dedicou aos desportos ao ar livre, tem o seu próprio círculo social. Estive lá várias vezes, e sempre encontrei visitas: um ou dois estudantes de ciências abstratas distraídos na biblioteca, ou alguns jovens barulhentos embaixo na sala.

— E Robin?

— Era amigo de Belle Dillard... jovem excêntrico, pertencente à alta sociedade e que possuía vários recordes de tiro de flecha...

— Sim, já sei. Vi o nome dele neste tratado. Um tal J. C. Robin parece ter feito os mais altos pontos em vários campeonatos recentes. Notei também que um Sr. Sperling foi o que mais se aproximou dele em vários grandes torneios. A Srta. Dillard é amante do esporte?

— Sim. É muito entusiasta. Na realidade, foi ela que organizou o Clube de Arco e Flecha do Riverside. Suas linhas de tiro permanentes estão localizadas na casa de Sperling, em Scarsdale; mas a Srta. Dillard preparou um lugar de exercício no pátio lateral da casa do professor, na Rua 75. Foi nesse lugar que mataram Robin.

— Ah! E, segundo você, a última pessoa que se sabe ter estado com ele foi Sperling. Onde está agora o nosso pardal?

— Não sei. Ele esteve com Robin, pouco tempo antes da tragédia; porém, quando o cadáver foi encontrado, já havia desaparecido. Espero que Heath tenha novidades sobre este ponto.

— E onde se acha o possível motivo de ciúmes, a que você se referiu? — As pálpebras de Vance caíram indolentemente e ele fumava com deliberada lentidão. Isto era sinal de que o assunto lhe interessava muitíssimo.

— O professor Dillard mencionou que havia simpatia entre sua sobrinha e Robin; e, quando lhe perguntei quem era Sperling e qual a sua posição na casa, o professor insinuou que ele pretendia a mão da moça. Não quis entrar em pormenores pelo telefone, porém a impressão que tive é que Sperling e Robin eram rivais, e que este último levava vantagem na luta.

— E assim o pardal matou Cock Robin. — Vance meneou a cabeça em sinal de dúvida. — Não basta. É demasiado simples e não corresponde à reconstrução diabolicamente perfeita dos versos de Cock Robin. Há algo mais profundo... algo mais sombrio e mais terrível nesse assunto grotesco. E, a propósito, quem encontrou Robin?

— O próprio Dillard. Este havia assomado ao pequeno balcão que há atrás da casa e foi então que o viu no chão, no lugar onde praticavam o jogo de flecha. Imediatamente desceu... com considerável dificuldade, pois o velho sofre horrivelmente da gota... e viu que o homem tinha o coração atravessado por uma flecha. Foi então que me telefonou. Isto é tudo que lhe posso adiantar até agora.

— Não poderíamos dizer que isto traz muita luz, porém é um tanto sugestivo. — Vance levantou-se. — Markham, meu velho amigo, prepare-se para algo bem bizarro... e odioso. Podemos já eliminar hipóteses de acidentes e coincidências. Conquanto seja verdade que as flechas comuns para atirar ao alvo sejam feitas de madeira flexível e providas de pequenas pontas chanfradas, podem facilmente penetrar a roupa de uma pessoa e o tórax mesmo, ainda quando impulsionadas por um arco de peso mediano, todavia o fato de ter um homem chamado "Pardal" matado outro de nome Cochrane Robin, com um arco e uma flecha, exclui qualquer idéia de concatenação fortuita de circunstâncias. Certamente, esta incrível série de acontecimentos prova concludentemente que houve um desígnio sutil e diabólico neste caso. — Encaminhou-se até a porta. — Venha, procuremos achar alguma coisa mais no lugar que a polícia austríaca eruditamente chama de situs criminis.

Saímos em seguida, dirigindo-nos ao centro da cidade no carro de Markham. Cruzando o Parque Central, saímos pelo portão da Rua 72, dobrando minutos mais tarde pela West End Avenue para entrar na Rua 75. A casa de Dillard, nº 391, estava à nossa direita, bem distante, na direção do rio. Entre este e o Drive, ocupando toda a esquina, se erguia um prédio de apartamentos de quinze andares. A casa do professor parecia abrigar-se como em busca de proteção, à sombra desse enorme edifício.

A casa de Dillard era de pedra cinzenta, enegrecida pela ação do tempo. Pertencia aos dias em que as casas eram construídas para que durassem e fossem cômodas. O terreno sobre que ela se erguia tinha 10 metros de frente, dos quais oito eram ocupados pela casa. O resto formava uma superfície que separava a casa de Dillard do edifício de apartamentos e estava isolada da rua por um muro de pedra, em cuja parte central havia um portão de ferro.

A casa era de arquitetura colonial modificada. Uma pequena escada conduzia da rua a um pórtico estreito revestido de ladrilhos e guarnecido com quatro colunas brancas corintianas. No segundo andar, havia uma série de janelas de batente com vidros retangulares, que ocupavam toda a frente da casa. (Estas, segundo soube mais tarde, eram as janelas da biblioteca.) O lugar dava a sensação de repouso e tranqüilidade; parecia tudo, menos o teatro de um horrendo crime.

Perto da porta de entrada, quando nós chegamos, já estavam dois carros da polícia e, ao redor deles, uma dúzia de curiosos. Um dos agentes de polícia estava encostado a uma das colunas estriadas do pórtico, olhando com desdém aborrecido os curiosos que se mantinham na sua frente. Um velho mordomo nos fez passar, conduzindo-nos à sala situada à esquerda do vestíbulo de entrada. Ali encontramos o sargento Ernest Heath com outros dois indivíduos da Seção dos Homicídios. O sargento, que estava de pé junto à mesa do centro fumando, com os dedos metidos na cava do colete, adiantou-se, estendendo amistosamente a mão a Markham.

— Alegro-me por ter vindo, senhor — disse ele; e a expressão atribulada dos seus olhos azuis parecia relaxar-se um pouco. — Estava à espera do senhor. Há alguma cousa que cheira a mistério neste caso.

Ao avistar Vance, que se havia conservado atrás, suas feições amplas e belicosas se enrugaram em um sorriso bem-humorado.

— Como vai, Sr. Vance? Tinha uma ligeira idéia de que isto ia-lhe interessar. Por onde tem andado todo esse tempo?

Não pude deixar de comparar esta cordialidade espontânea do sargento com a hostilidade de seu primeiro encontro com Vance, no caso Benson. Mas muita água havia passado sob a ponte desde o dia em que se viram na deslumbrante sala em que se deu o assassinato de Alvin; e entre Heath e Vance se havia desenvolvido uma boa amizade, baseada em um respeito mútuo e em uma franca admiração pelas capacidades um do outro.

Vance estendeu a mão e um sorriso pairou na comissura dos seus lábios.

— A verdade é, sargento, que tenho estado procurando as glórias perdidas de um ateniense chamado Menandro, rival dramático de Filêmon. Tolice, não é?

Heath grunhiu desdenhosamente.

— Bem, de qualquer forma, se o senhor é tão bom nisso como o é em descobrir assassinos, não duvido de que obterá êxito.

Este foi o primeiro elogio que ouvi de seus lábios e que confirmava não só a sua admiração profundamente arraigada por Vance, como também a preocupação e incerteza de seu estado mental.

Markham, percebendo essa insegurança mental do sargento, perguntou-lhe abruptamente:

— Qual parece ser a dificuldade no caso presente?

— Eu não disse que havia dificuldade, senhor — replicou Heath. — Parece-me que o pássaro que cometeu o crime está engaiolado. Entretanto, não estou satisfeito e... oh, diabo! Sr. Markham... não é natural, é contra o bom senso.

— Penso entender o que você quer dizer. — Markham observou o sargento atentamente. — Você está inclinado a crer na culpabilidade de Sperling?

— Seguramente, ele é o culpado — declarou Heath sem vacilar. — Porém, não é isto o que me preocupa. Ser-lhe-ei franco, não me agrada o nome da vítima... especialmente como foi assassinada... com arco e flecha... — Hesitou um pouco envergonhado. — Não lhe parece estranho?

Markham meneou a cabeça com perplexidade.

— Vejo que vocês dois se recordam dos versos da infância — disse ele, dando-lhes as costas.

Vance fixou um olhar zombeteiro em Heath.

— Você acaba de referir-se a "Sperling" como se fosse um "pássaro", sargento. A designação não pode ser melhor. Sperling quer dizer, em alemão, "pardal". E você se recorda de que foi um pardal quem matou Cock Robin com uma flecha... Uma situação fascinante, não é verdade?

Os olhos do sargento se abriram ligeiramente e seus lábios se separaram. Olhou para Vance com quase ridículo aturdimento.

— Eu disse que este negócio cheirava a mistério!

— Eu diria, antes, a ave.

— O senhor o chamaria alguma coisa que ninguém compreendesse — replicou Heath truculentamente. Era seu costume tornar-se belicoso, quando se achava diante de algo inexplicável.

Markham interveio diplomaticamente.

— Dê-nos os pormenores do caso, sargento. Suponho que tenha interrogado os moradores da casa.

— Só de um modo geral, senhor. — Heath descansou a perna em um ângulo da mesa e reacendeu seu charuto. — Estava esperando que o senhor chegasse para descerrar o véu. Sabia que o senhor era amigo do velho que está lá em cima. Assim não fiz mais do que o rotineiro. Destaquei um agente para fora, no corredor, para que ninguém toque no cadáver até chegar o doutor Doremus (1) — ele estará aqui depois do almoço. Telefonei para a Seção de Datiloscopia para que mandem peritos, que não tardarão a pôr-se em atividade, embora eu não veja o que de útil poderão fazer...

(1) Heath referia-se ao Dr. Emanuel Doremus, médico inspetor da polícia de Nova York.


— Que me diz do arco que desferiu a flecha? — perguntou Vance.

— Esse seria o nosso melhor indício, se o velho Sr. Dillard não o recolhesse e guardasse em casa. Provavelmente, destruiu todos os sinais que pudesse ter.

— Que é que você fez sobre Sperling? — perguntou Markham.

— Consegui seu endereço. Vive em uma casa de campo no caminho de Westchester. Enviei dois homens para que o detenham. Também falei com os dois criados; o velho que lhes abriu a porta e sua filha, uma mulher de meia-idade, que é cozinheira. Porém, nenhum deles sabia nada, ou aparentavam não saber. Em seguida, tratei de interrogar a jovem dona da casa. — O sargento levantou a mão num gesto de desespero. — Mas ela estava tão abatida e chorosa que pensei em deixar ao senhor o prazer de interrogá-la. Snitkin e Burke — apontou com o indicador os dois detetives destacados na janela da frente — foram ao porão, ao corredor e ao pátio dos fundos para ver se recolhiam algo. Obtiveram um resultado negativo. É isso tudo o que até agora pude averiguar. Assim que Doremus e os peritos da Seção de Datiloscopia cheguem e uma vez que eu tenha falado com Sperling, então farei girar a bola e esclarecerei o assunto.

Vance lançou um suspiro perceptível.

— Você é muito otimista, sargento! Não se desaponte se a bola se transformar num paralelepípedo e não rolar. Há alguma coisa diabòlicamente rara nesta extravagância infantil. E, a não ser que todos os prognósticos me enganem, você estará envolvido por muito tempo ainda, num jogo de cabra-cega.

— O quê? — Heath lançou a Vance um olhar entre rude e desanimado. Era evidente que tinha mais ou menos a mesma opinião.

— Não se deixe desencorajar por Vance, sargento — disse Markham, dando-lhe ânimo. — Não vê que ele está dando livre curso à imaginação? — Então com um gesto de impaciência voltou-se para a porta. — Examinemos o terreno antes que cheguem os outros. Falarei mais tarde com o professor Dillard e com os demais da casa. E, a propósito, sargento, você não nos falou a respeito de Arnesson. Ele não está em casa?

— Está na universidade, mas não tardará a chegar.

Markham meneou a cabeça e seguiu o sargento até o saguão principal. No momento em que passavam pelo corredor atapetado, produziu-se um ruído na escada, seguido da voz clara e trêmula de uma mulher que se achava em cima, na obscuridade.

— É o Sr. Markham? Meu tio pensou ter reconhecido sua voz. Ele o espera na biblioteca.

— Dentro de poucos minutos irei ter com seu tio, Srta. Dillard. — O modo de Markham era paternal e cheio de simpatia. — E faça o favor de esperar-me com ele, pois desejo também falar-lhe.

Com um murmúrio de aquiescência, desapareceu a moça no cimo da escada.

Encaminhamo-nos para a porta dos fundos do saguão inferior. Adiante havia uma passagem estreita que terminava nuns degraus de madeira que conduziam ao porão. Ao pé desses degraus, havia um grande compartimento de teto baixo com uma porta que dava diretamente para o terreno do lado ocidental da casa. A porta estava apenas encostada, deixando uma fresta pela qual se podia ver o homem que Heath havia destacado para cuidar do cadáver.

Indubitavelmente esse compartimento tinha sido uma adega; porém, fora bem alterado e convenientemente preparado e servia agora como sede do clube. O piso de cimento se achava coberto de esteiras e uma das paredes tinha uma pintura em que se viam os arqueiros através das idades. Em um painel oblongo, à esquerda, havia uma imensa reprodução ilustrada de um campo de tiro de flecha com a legenda "Ayme para arqueiros de Finsburie. Londres, 1594", vendo-se em um canto a colina Bloody House; no centro, o Westminster Hall e, em primeiro plano, o Welsh Hall. No quarto, havia um piano e uma vitrola, numerosas cadeiras de vime, um diva de cores variadas, uma mesa central de vime cheia de revistas desportivas de todas as classes e uma pequena biblioteca abarrotada de livros sobre arco-e-flecha. Vários alvos jaziam em um canto; seus discos dourados e seus anéis cromáticos concêntricos lançavam brilhantes reflexos, devido à luz do sol que inundava o compartimento pelas duras janelas de trás. Em um espaço da parede, perto da porta, pendiam largos arcos de tamanhos e pesos distintos, e, quase ao lado, podia ver-se uma grande arca antiga para ferramentas. Em cima se achava suspenso um pequeno armário cheio de fragmentos de braçais, luvas para atirar, estacas, alvos e cordas para arcos. Um mostruário de carvalho situado entre a porta e a janela exibia uma das coleções de flechas mais interessantes e variadas que eu tinha visto. Este mostruário atraiu particularmente Vance, que, ajustando cuidadosamente seu monóculo, se encaminhou para ele.

— Flechas de caça e de guerra — observou ele. — A maioria coberta com um véu... Ah! Um dos troféus parece haver desaparecido. E, além disso, arrancado com uma pressa considerável. O pequeno prego de bronze que o sustinha em seu lugar está dobrado.

No chão havia várias aljavas cheias de flechas. Inclinou-se e, pegando uma, entregou-a a Markham.

— Esta seta de junco não parece que pudesse penetrar no peito humano e, não obstante, atravessa um veado a uns oitenta metros de distância. Por que então a flecha de caça falta no mostruário? É um pormenor interessante.

Markham franziu as sobrancelhas e apertou os lábios; e eu me lembrei de que ele tinha estado aferrado à idéia de um acidente... Arrojou a flecha desconsoladamente em uma cadeira e caminhou até a porta que dava para fora do aposento.

— Examinemos o cadáver e o terreno — disse ele asperamente.

Quando saímos à fraca luz solar da primavera, sobreveio-me uma sensação de isolamento. A estreita área calçada, em que nos encontrávamos, parecia um canyon entre empinados muros de pedra. Estava cerca de metro e meio abaixo do nível da rua, a que se chegava por uma escada que subia até ao portão no muro. A parede posterior lisa e sem janelas do prédio de apartamentos se elevava até quarenta e cinco metros de altura; e o prédio de Dillard, embora só tivesse quatro andares, equivalia a seis, medidos pelos padrões arquiteturais de hoje em dia. Embora estivéssemos ao ar livre, em plena Nova York, ninguém podia ver-nos, exceto das poucas janelas laterais do prédio de Dillard e de um alpendre da casa da Rua 76, cujo pátio posterior limitava com o do terreno do professor.

Esta outra casa, não tardaríamos muito em saber que era de uma certa Sra. Drukker, e que estava destinada a desempenhar uma parte vital e trágica na solução do assassinato de Robin. Vários salgueiros altos ocultavam suas janelas dos fundos; e só do alpendre poderia observar-se aquela parte do terreno em que nos achávamos.

Eu notei que Vance não tirava a vista daquele alpendre e enquanto ele o estudava, vi passar pelo seu rosto um sinal de interesse. Não foi senão muito mais tarde que eu pude adivinhar o que havia chamado tanto a sua atenção.

O campo de exercícios de tiro de flecha se estendia desde a parede do lote de Dillard na Rua 75 até uma parede similar do lote dos Drukkers na Rua 76, onde uma pilha de fardos de feno tinha sido levantada sobre uma baixo leito de areia. A distância entre as duas paredes era de 30 metros, que, como soube depois, era suficiente para se poder praticar exercício de arco e assim preparar-se para qualquer concurso, com exceção do York Round para homens.

O lote de Dillard era de 40 metros de fundos, sendo por conseguinte o dos Drukkers de 20 metros. Uma seção da alta cerca de ferro que havia sido removida do lugar onde antes separava os dois lotes, permitiu que o terreno pudesse ser usado para o desporto da moda. Na extremidade mais afastada do terreno, situada contra a linha ocidental da linha da propriedade dos Drukkers, havia outro prédio de apartamentos, que ocupava a esquina da Rua 76 com Riverside Drive. Entre esses dois edifícios gigantescos, havia uma passagem estreita cuja extremidade posterior estava fechada por um alto muro com uma portinha com fechadura.

A fim de ser claro, incorporo a estas memórias um diagrama do escritório completo; pois a disposição dos vários detalhes topográficos e arquiteturais teve um sentido muito importante na solução do caso. Eu chamaria a atenção particularmente para os dois seguintes pontos: 1? — o balcãozinho do segundo andar na parte posterior da casa de Dillard que sobressai um pouco sobre o campo de exercício de tiro de flecha; 2? — o alpendre, no segundo andar da casa dos Drukkers, cujo ângulo meridional tem uma vista de todo o terreno até à Rua 75; e 3? — a passagem entre os dois prédios de apartamentos que vai desde o Riverside Drive até o pátio posterior do prédio de Dillard. O corpo de Robin jazia quase diretamente fora da porta do compartimento que servia de sede do clube. Estava de costas, com os braços estendidos, as pernas ligeiramente encolhidas, a cabeça virada para a extremidade do terreno que dá para a Rua 76. Robin era um homem talvez de 35 anos, de altura regular e corpulento. Havia uma inchação esférica em seu rosto todo barbeado, com exceção de um bigodinho fino e louro. Vestia traje esportivo de flanela cinzenta, camisa de seda azul-pálido e sapatos Oxford, amarelos, com sola de borracha. Perto dos pés estava o seu chapéu de feltro cor de pérola.

Junto do cadáver havia uma poça de sangue coagulado que tomara a forma de um grande ponteiro de relógio. Mas o que nos infundiu horror foi a seta delgada que se estendia verticalmente pelo lado esquerdo do peito da vítima. A flecha sobressaía uns cinqüenta centímetros, e pelo lugar de entrada se via a mancha grande e escura da hemorragia. E o que fez com que este estranho assassino parecesse ainda mais incongruente foram as belas plumas colocadas na flecha. Elas tinham sido coloridas de roxo claro; e perto da seta duas franjas azul-turquesa davam à flecha um aspecto de gala. Eu tinha uma sensação de irrealidade acerca da tragédia, como se estivesse presenciando uma cena em uma comédia pastoral para crianças. Vance permaneceu olhando o cadáver com os olhos semicerrados e as mãos nos bolsos do casaco. Apesar de sua aparente atitude de indolência, eu podia dizer que ele estava sutilmente alerta e que seu cérebro tratava de coordenar os fatores da cena que agora presenciava.

— Que coisa estranha essa flecha — comentou ele. — Foi feita para caça grande... indubitavelmente pertence àquela exposição etnológica que acabamos de ver. Em um golpe limpo... diretamente no ponto vital, entre as costelas, e sem o menor desvio. Extraordinário!... Diga, Markham, semelhante pontaria não é humana. Um tiro causai podia tê-la feito; porém, o assassino desse homem não deixou nada ao acaso. Essa poderosa flecha de caça que evidentemente foi arrancada da caixa indica premeditação e propósito... — Subitamente se inclinou sobre o cadáver. — Ah! Muito interessante. O punho da flecha está quebrado. Eu duvido que ele sustentasse a corda do arco estirada. — Virando-se para Heath. — Diga-me, sargento: Onde o professor Dillard encontrou o arco? Não longe da janela desse quarto, não é? Heath teve um sobressalto.

— Fora da janela, de fato, senhor Vance. Está agora sobre o piano esperando que cheguem os peritos da Seção de Datiloscopia.

— Receio que a única impressão digital que vão achar seja do professor Dillard. — Vance abriu sua cigarreira e tirou outro cigarro. — E estou quase inclinado a crer que a flecha propriamente está livre de impressões.

Heath perscrutava Vance inquisitivamente.

— Que lhe fez pensar que o arco fora encontrado perto da janela, Sr. Vance? — perguntou ele.

— Parecia o lugar lógico, em vista da posição do corpo do Sr. Robin, sabe?

— O senhor acha que ela foi disparada de curta distância?

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, sargento. Referia-me ao fato de que os pés da vítima se acham na direção da porta do porão, e que embora os braços estejam estendidos, as pernas estão encolhidas. Acredita você que um homem com o coração atravessado possa cair nessa posição?

Heath considerou a questão.

— Não — admitiu ele. — O mais provável é que estivesse encolhido, ou se caísse de costas, suas pernas estariam estiradas e os braços encolhidos.

— Exatamente! E olhe o chapéu. Se o homem tivesse caído de costas, o chapéu estaria atrás do morto e não a seus pés.

— Escute aqui, Vance, — interveio Markham rudemente. — Que pensa você?

— Oh! Muitíssimas coisas. Todas, porém, chegam à conclusão irracional de que esse cavalheiro não foi morto com arco e flecha.

— Então por que, em nome de Deus...

— Exatamente! Por que a insana manifestação desse elaborado jogo de cena?

— Palavra, Markham! Este negócio é espantoso.

Enquanto Vance falava, a porta do porão se abriu e o Dr. Doremus, guiado pelo detetive Burke, penetrou airoso na área. Saudou-os garbosamente, apertando-lhes as mãos. Logo olhou para Heath com displicência.

— Essa não, sargento. — Queixou-se ele, baixando seu chapéu até tomar um ângulo mais fechado que o usual. — Só dedico 3 horas das 24 para comer; e você escolhe invariavelmente essas 3 horas para molestar-me com seus malditos cadáveres. Você está arruinando a minha digestão. — Olhou a seu redor com petulância e, ao ver Robin, assoviou baixinho. — Por amor de Deus! Esta vez, sim, você escolheu um lindo assassinato.

Ajoelhou-se e começou a apalpar com os seus dedos práticos o corpo do morto. Markham se conservou olhando por um momento, mas voltando-se para Heath lhe disse:

— Enquanto o doutor estiver ocupado com o seu exame, sargento, subirei para falar com o professor Dillard. — Então dirigindo-se a Doremus: — Gostaria de vê-lo antes de ir, doutor.

— Oh, decerto, — respondeu Doremus sem olhar para cima. Ele havia virado o cadáver de lado e apalpava-lhe a base do crânio.


III

 

UMA PROFECIA RELEMBRADA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 13h30)

 


Quando entramos no salão principal, chegavam o capitão Dubois e o detetive Bellamy, peritos em impressões digitais. O detetive Snitkin, que, evidentemente, estava aguardando a chegada deles, conduziu-os logo para a escada do porão, e Markham, Vance e eu subimos ao segundo andar.

A biblioteca era um salão grande e luxuoso com seis metros de fundo pelo menos e ocupava toda a largura do edifício. Duas paredes laterais achavam-se tomadas até o teto de armários embutidos, e ao centro da parede do lado do ocidente elevava-se uma lareira de bronze maciço, estilo imperial. Ao lado da porta, encontrava-se um aparador bem trabalhado, estilo jacobino, e, fronteiro a este, perto da janela que dava para a Rua 75, havia uma enorme escrivaninha artisticamente trabalhada e coberta de papéis, jornais e folhetos. Havia muitos objetos de arte na sala; dois quadros de Dürer olhavam-nos dos painéis da tapeçaria do lado da prateleira da lareira. Todas as cadeiras eram amplas e cobertas de couro escuro.

O professor Dillard estava sentado defronte da escrivaninha, com um pé descansado em uma pequena otomana aveludada; e, em um canto perto da janela, estendida numa grande poltrona, estava sua sobrinha, moça vigorosa, trajando costume muito bem talhado, com feições fortes, esculturadas em molde clássico. O velho professor não se ergueu para saudar-nos e nem se desculpou por essa omissão. Parecia supor que todos já sabiam de sua fraqueza. As apresentações foram ligeiras, embora tivesse Markham dado uma breve explicação da presença de Vance e de mim ali.

— Eu lamento, Markham, — disse o professor, quando nós nos acomodamos — que uma tragédia seja o motivo desta reunião; todavia, sempre é agradável vê-lo. Suponho que queira interrogar a mim e a Belle. Bem, faça as perguntas que quiser.

O professor Bertrand Dillard era um homem que aparentava ter sessenta anos, ligeiramente curvado devido à vida sedentária e estudiosa que levava: braquicéfalo, rosto liso e com uma basta cabeleira branca penteada à Pompadour. Seus olhos, embora pequenos, eram notavelmente vivos e penetrantes; e as rugas ao redor da boca davam-lhe a expressão séria e grave resultante, muita vez, dos longos anos de concentração em problema difíceis. Suas feições eram as de um sonhador e cientista; e, como todo o mundo sabe, os sonhos extravagantes tidos por este homem sobre o espaço, o tempo e o movimento atualizaram-se dentro de nova base de fatos científicos. Mesmo agora, sua fisionomia espelhava uma abstração introspectiva, como se a morte de Robin fosse apenas uma intromissão no drama íntimo dos seus próprios pensamentos.

Markham hesitou por momentos, antes de se decidir. Então, falou com a maior deferência:

— Talvez queira o senhor contar exatamente o que sabe a respeito da tragédia. Depois farei as perguntas que julgar necessárias.

O professor Dillard estendeu a mão para segurar um velho cachimbo de espuma do mar que estava sobre uma estante a seu lado. Quando terminou de enchê-lo e o acendeu, acomodou-se melhor na cadeira.

— Já lhe disse pelo telefone tudo o que sei. Robin e Sperling vieram visitar Belle, hoje de manhã, pelas dez horas. Ela não estava, pois havia ido jogar tênis; assim os dois esperaram-na embaixo, na sala. Ouvi-os conversarem por espaço de meia hora, até que desceram para a sala do clube no porão. Eu me conservei aqui lendo durante uma hora talvez, ao cabo da qual, achando o sol tão agradável decidi-me a ir até a sacada que há nos fundos da casa. Acho que não haviam decorrido cinco minutos, quando por acaso olhei para baixo e vi, com grande espanto, Robin caído de costas na linha de tiro com uma flecha atravessada no coração. Desci o mais rapidamente que me permitia a minha gota, porém logo vi que o homem estava morto. Imediatamente fui ao telefone e comuniquei-me com você. Na ocasião, não havia ninguém em casa, a não ser o velho Pyne — o mordomo — e eu. A cozinheira tinha ido ao mercado. Arnesson tinha partido para a Universidade às 9 horas; e Belle ainda estava jogando tênis. Mandei Pyne procurar Sperling, mas este não foi encontrado em parte alguma, e eu voltei para a biblioteca a fim de esperá-lo. Belle voltou pouco antes da chegada do seu pessoal, e a cozinheira um pouco mais tarde. Arnesson não estará de volta antes das duas.

— Não havia ninguém mais esta manhã... nenhum estranho ou visitante?

O professor sacudiu a cabeça.

— Somente Drukker... Creio que você o viu uma vez aqui. Ele mora na casa que dá fundos para a nossa. Ele nos visita seguidamente... para ver quase sempre o Arnesson; têm muito de comum. Escreveu um livro sobre Ajustes Mundiais na Contínua Multidimensional. O homem é um sábio a seu modo. Tem o verdadeiro espírito científico. Quando soube que Arnesson não estava em casa, sentou-se um pouco comigo falando sobre a expedição ao Brasil da Real Sociedade de Astronomia. Logo se retirou para a casa.

— A que horas?

— Isto pelas nove e meia. Drukker já se havia ido embora, quando chegaram Robin e Sperling.

— É raro, professor Dillard, que o Sr. Arnesson saia aos sábados pela manhã? — perguntou Vance.

O velho professor olhou para cima penetrantemente, e houve uma pequena pausa ou hesitação, antes de responder.

— Não é exatamente raro; apesar de ficar em casa geralmente aos sábados, é verdade que sai algumas vezes. Hoje mesmo foi à biblioteca da faculdade colher certos dados para um livro que, em breve, publicaremos em colaboração (1).

(1) O livro a que se referia o prof. Dillard era a grande obra que apareceu dois anos mais tarde A Estrutura Atômica da Energia Radiante, emenda da teoria do quantum, de Planck, refutando o axioma clássico da continuidade de todos os processos físicos, contido na obra de Maximus Tyrius.


Houve um pequeno silêncio, logo rompido por Markham.

— O senhor disse que tanto Robin como Sperling eram

pretendentes à mão da Srta. Dillard...

— Tio! — A moça ergueu-se em sua cadeira e, voltando-se para o velho professor, lhe lançou um olhar cheio de ressentimento. — Não fica bem dizer isto.

— Não obstante, é verdade, querida. — A sua voz era extremamente carinhosa.

— É verdade... em parte — admitiu ela. — Porém, não havia necessidade de mencionar isto. O senhor sabe tão bem como eles o meu modo de pensar. Éramos muito bons amigos... e só isto. Sem ir mais longe, ontem à noite, quando estávamos reunidos aqui, eu lhe disse... com franqueza... que não queria ouvir mais tolices acerca de casamento nem de um, nem de outro. Eram muito jovens... e agora um deles morreu... Pobre Cock Robin!

A moça esforçou-se bravamente para sufocar a sua emoção.

Vance levantou as sobrancelhas e inclinou-se para diante:

— Cock Robin?

— Oh, nós o chamávamos assim para mexer com ele, pois ele não gostava do apelido.

— O aditamento era inevitável — ajuntou Vance com simpatia. — E era um apelido bastante lindo, não acha? O Cock Robin original era amado "por todas as aves do ar", e todas choraram a sua morte. — Enquanto falava, ele olhava atentamente a moça.

— Já sei — disse ela, meneando a cabeça. — Isto mesmo eu lhe disse uma vez. Todos o estimavam muito. Não podia ser de outro modo. Tinha tão... bom coração, era tão bondoso...

Vance encostou-se de novo na cadeira e Markham continuou o seu interrogatório.

— O senhor disse, professor, que ouvira Robin e Sperling conversarem na sala. Pôde compreender o que diziam? O ancião olhou de soslaio para a sobrinha.

— Esta pergunta tem importância real, Markham? — perguntou ele, após hesitar por momentos.

— É possível que seja de grande utilidade para deslindar posições.

— Talvez. — O professor sugou, pensativamente, o seu cachimbo. — Por outro lado, se eu responder, é possível que dê uma interpretação errônea e faça uma grande injustiça ao que vive.

— Não pode confiar em mim para julgar este ponto? — A voz de Markham se havia tornado grave e imperativa. Houve outro breve silêncio, esta vez rompido pela moça.

— Por que não conta ao Sr. Markham o que ouviu, tio? Que mal há nisto?

— Porque pensava em você, Belle — contestou suavemente o professor. — Porém, talvez você tenha razão. — Dito isto, olhou para cima com relutância. — A verdade é, Markham, que Robin e Sperling se insultaram por causa de Belle. Ouvi só um pouco, porém o suficiente para deduzir que se acusavam reciprocamente de falta de lealdade... de estarem atrapalhando o caminho...

— Oh! Não falavam a sério — interrompeu a Srta. Dillard com veemência. — Eles sempre discutiam por ciúmes; porém eu não era a verdadeira causa. Eram rivais no arco-e-flecha. Como o senhor sabe, Raymond — o Sr. Sperling — era o melhor atirador; porém, este último ano, Joseph derrotou-o em vários concursos e, no último torneio anual, ganhou o campeonato de nosso clube.

— E Sperling pensou talvez — ajuntou Markham — que, devido a isso, havia perdido a sua estima.

— Que absurdo! — replicou a moça com azedume.

— Eu creio, querida, que podemos deixar este assunto, sem receio, nas mãos do Sr. Markham — disse o professor Dillard, apaziguadoramente. Então, dirigindo-se a Markham. — Deseja fazer-me outra pergunta?

— Quisera saber tudo o que o senhor sabe a respeito de Sperling e Robin... Quem são eles, quais as suas associações. Quanto tempo faz que o senhor os conhece...

— Creio que Belle pode esclarecer-lhe melhor do que eu. Eram antes amizade dela. Eu os via apenas ocasionalmente.

— Faz anos que os conheço — disse ela imediatamente. — Joseph tinha uns oito ou dez anos mais que Raymond, e até há uns cinco anos vivia na Inglaterra, quando morreram seus pais. Veio então para a América e adquiriu um apartamento no Drive. Tinha bastante dinheiro e se dedicava à pesca, à caça e aos desportos ao ar livre. Freqüentava muito pouco a sociedade e era um desses amigos cômodos que sempre estão à mão, na falta de outro. Nele não havia muito... do ponto de vista intelectual.

Fez uma pausa, como se suas observações fossem de uma forma ou outra desleais para com o morto. Markham, interpretando-lhe os sentimentos, perguntou com simplicidade:

— E Sperling?

— É filho de um rico industrial... agora aposentado. Vivia em Scardale, em uma formosa herdade... onde nosso clube de balística tem agora seu campo de exercícios... Raymond é engenheiro consultor de uma firma da cidade, embora eu creia que ele trabalha só para tranqüilizar seu pai, pois só vai ao escritório duas ou três vezes por semana. Formou-se em Boston e eu o conheci nas férias, quando estava em seu segundo ano de estudos. Não era dos que se sobressaíam muito, porém é o protótipo do jovem norte-americano... sincero, alegre, algo retraído e absolutamente correto.

Pela breve descrição da moça foi fácil ter-se uma idéia de como eram Robin e Sperling, sendo conseqüentemente difícil relacionar qualquer um dos dois com a sinistra tragédia que nos trouxera a essa casa.

Markham permaneceu com as sobrancelhas franzidas durante uns instantes, levantando por fim a cabeça e fixando o olhar na moça:

— Diga-me, Srta. Dillard, tem alguma teoria ou hipótese que pudesse de uma forma ou outra explicar o porquê da morte do Sr. Robin?

— Não! — A resposta foi antes uma explosão. — Quem podia desejar a morte de Cock Robin? Ele não tinha inimigos. É algo incrível o que aconteceu. Antes de ver com os meus próprios olhos, não podia crer. E ainda assim não parecia real.

— Não obstante, minha querida menina, — interrompeu o professor Dillard, — o homem foi assassinado, assim é que deve haver algo na sua vida que você desconhecia ou de que não suspeitava. Constantemente encontramos estrelas novas que os antigos astrônomos não criam que pudessem existir.

— Eu não posso imaginar que Joseph tivesse inimigos — replicou ela. — Não o crerei. É completamente absurdo.

— Então, pensa você — perguntou Markham — que é improvável que Sperling fosse de certo modo responsável pela morte de Robin?

— Improvável? — Os olhos da moça relampejaram. — É impossível!

— E, não obstante, a senhorita sabe — agora era Vance quem falava como quem não quer nada — que "Sperling" significa "pardal".

A moça permaneceu imóvel. Seu rosto empalideceu e as mãos apertaram fortemente os braços da cadeira. Então, lentamente e com grande dificuldade, meneou a cabeça, enquanto que seu peito arfava fortemente ao respirar. Subitamente estremeceu e apertou o lenço contra o seu rosto.

— Tenho medo! — murmurou ela.

Vance levantou-se e, encaminhando-se até ela, lhe tocou , o ombro consoladoramente.

— Por que tem medo?

Ela levantou a vista e encontrou o olhar de Vance que parece tê-la tranqüilizado, pois forçou um sorriso lastimoso.

— Ainda outro dia — disse ela com voz tensa — estávamos todos embaixo, no pátio de exercícios. Raymond preparava-se para arremessar um Single American Round, quando Joseph abriu a porta do porão e saiu. Não existia, em verdade, perigo algum. Sigurd — o Sr. Arnesson — estava sentado na sacada olhando-nos. E, quando gracejando gritei apontando para Joseph, "a ele! a ele!", Sigurd virou-se e disse: "Você não sabe ao que se expõe, jovem amigo. Você é Cock Robin e aquele arqueiro é um pardal. E você bem sabe o que aconteceu a seu homônimo, quando um senhor Pardal empunhou o arco e a flecha... ou qualquer coisa assim". Naquele momento ninguém prestou atenção. Mas agora!... — Sua voz se converteu em um murmúrio de temor.

— Vamos, Belle, não seja mórbida, — disse o professor consolando-a, porém não sem impaciência. — Era simplesmente um dos gracejos de mau gosto de Sigurd. Você bem sabe que ele moteja e ri continuamente das realidades. É a única evasão que tem da sua constante aplicação às ciências abstratas.

— Acho que sim — respondeu ela. — Por hipótese, foi uma troça. Porém, agora, parece uma profecia terrível. Somente — apressou-se a dizer — Raymond não podia ser o autor.

Enquanto falava, abriu-se a porta da biblioteca e uma figura alta e magra apareceu no umbral.

— Sigurd! — A exclamação de assombro proferida por Belle Dillard revelava uma inegável sensação de alívio.

Sigurd Arnesson, protegido e filho adotivo do professor Dillard, era um homem de aspecto surpreendente — 1,80 m de altura, vigoroso, com uma cabeça que à primeira vista parecia demasiado grande para seu corpo, o cabelo quase amarelo desgrenhado como o de um escolar, nariz aquilino e faces magras e musculosas. Embora não tivesse mais de quarenta, as rugas formavam no seu rosto uma rede que dava uma impressão sardonicamente fantástica; porém, a paixão intensamente intelectual que lhe iluminava os olhos cinzento-azulados contradizia qualquer superficialidade da natureza. Minha reação inicial relativamente à sua personalidade era de respeito e agrado. Havia nele profundidades... potencialidades poderosas e altas capacidades.

No momento que entrava, seus olhos perscrutadores nos abrangeram a todos com um olhar veloz e inquiridor. Saudou com a cabeça levantada a Srta. Dillard e logo mirou o velho professor com um olhar de fria distração.

— Por favor, digam-me o que aconteceu nesta casa tridimensional. Lá fora, o carro da polícia, muita gente, uma sentinela na porta... e dois homens em traje civil que me enviaram aqui quase aos empurrões, sem cerimônia nem explicação alguma... Muito divertido, porém desconcertante... Ah! Ao que parece, está aqui o procurador do distrito. Bom dia... ou dito melhor, boa tarde... Sr. Markham.

Antes que este pudesse responder ao cumprimento, Belle Dillard falou:

— Sigurd, rogo a você que não caçoe. Mataram o Sr. Robin.

— Você quer dizer Cock Robin. Vá! Vá! Com este nome, que outra coisa podia esperar? — Parecia não se emocionar com a notícia. — Quem o fez volver aos elementos?

— Quanto a isso, não sabemos — contestou Markham em tom de censura pela jovialidade intempestiva do outro. — O que sabemos é que o senhor Robin foi assassinado com uma flecha que lhe cravaram no coração.

— Não podia ser de outro modo — disse Arnesson, sentando-se no braço de uma cadeira e estirando suas longas pernas. — Que poderia haver de mais apropriado para esse Cock Robin do que morrer de um flechaço arremessado pelo arco de...

— Sigurd! — Belle Dillard lhe cortou a frase. — Você já não caçoou o suficiente? Você sabe que não foi Raymond.

— Indubitavelmente, irmã. — O homem mirou-a um tanto reflexivamente. — Eu estava pensando no progenitor ornitológico do Sr. Robin. — Voltando-se lentamente para Markham perguntou-lhe: — Assim é que se trata de um crime misterioso, com um cadáver, pistas e acessórios, não? Posso saber o que é que se passou?

Markham expôs brevemente um resumo da situação, o que ele escutou com grande interesse. Uma vez terminada a exposição, perguntou:

— Não se encontrou arco algum no pátio?

— Ah! — Vance, pela primeira vez, desde que chegou Arnesson, despertou de uma aparente letargia e respondeu em lugar de Markham. — Esta é uma pergunta que vem muito a propósito, Sr. Arnesson. Sim, um arco foi encontrado fora da janela do porão a uns três metros do cadáver.

— Isso, naturalmente, simplifica o assunto — disse Arnesson desiludidamente. — Agora é só tomar as impressões digitais.

— Infelizmente o arco foi tocado — explicou Markham. — O professor Dillard recolheu-o e guardou-o no porão.

Arnesson voltou-se com curiosidade para o ancião.

— Que impulso, senhor, o levou a fazer tal coisa?

— Impulso? Meu caro Sigurd, eu não analisei minhas emoções. Todavia, imaginei que o arco fosse uma parte principal do corpo de delito, guardando-o como medida de precaução até que chegasse a polícia.

Arnesson fez uma careta e levantou humoristicamente um olho.

— Isso se assemelha ao que nossos amigos psicanalistas chamariam uma explicação da suspensão crítica. Gostaria de saber que idéia se achava submersa em seu espírito...

A cabeça de Burke assomou à porta ao mesmo tempo que anunciava:

— O Dr. Doremus espera-os embaixo. Já terminou o exame médico.

Markham levantou-se desculpando-se:

— Por ora não os molestarei mais. Há muito trabalho rotineiro que fazer ainda. Mas devo pedir-lhe que façam o favor de não sair daqui. Vê-los-ei antes de ir-me embora.

Doremus estava-se balançando impacientemente sobre a ponta dos pés quando nos reunimos a ele na sala.

— Não há nada completo — começou a dizer antes que Markham tivesse ocasião de falar. — Nosso amigo desportista foi morto por uma flecha cuja ponta fortemente afilada penetrou no coração pelo quarto espaço intercostal. Foi disparada com grande força. Muita hemorragia interna e externa. Faz duas horas que morreu, e acredito que seriam onze e meia quando caiu. Entretanto, tudo isto é pura teoria. Nenhum sinal de luta... nenhuma marca em sua roupa, nem arranhões em suas mãos. A morte sobreveio sem que ele percebesse o que acontecia a seu redor. Recebeu um forte golpe na parte posterior da cabeça, ao cair no piso de cimento...

— Isso é muito interessante — interrompeu Vance, com sua voz lenta e penosa, o médico da polícia, em seu monótono relato. — É muito sério o "golpe", doutor?

Doremus pestanejou e mirou Vance um tanto assombrado.

— O suficiente para causar a fratura do crânio. Não pude apalpá-lo, certamente, porém havia um enorme hematoma sobre a região ocipital, sangue seco nas narinas e nos ouvidos e as pupilas desiguais que indicavam uma fratura de crânio. Depois da autópsia, poderei dizer alguma coisa mais.

— Voltando-se para o procurador do distrito: — Alguma coisa mais?

— Nada mais, doutor. A única coisa que lhe peço é que nos forneça quanto antes seu laudo post mortem.

— Esta noite o senhor o terá. O sargento já telefonou chamando o carro.

Apertando nossas mãos, retirou-se apressadamente. Heath, um pouco retirado de nós, franzia a testa.

— Bem, isto não nos leva a lado algum — disse, queixoso, enquanto mascava viciosamente seu cigarro.

— Não desanime, sargento — censurou Vance. — Este golpe na parte posterior do crânio é digno da mais profunda consideração. Minha opinião é que não recebeu ao cair, sabe?

O sargento não se impressionou ante esta observação.

— E ainda mais, Sr. Markham — continuou falando. — Não havia impressões digitais nem na flecha, nem no arco. Dubois disse parecer que foram apagadas. Havia umas manchas na extremidade do arco em que o professor tocou, mas nenhum outro sinal ou impressão.

Markham, silenciosamente sombrio, fumou durante um momento.

— Que me diz da maçaneta da porta da rua? E do ferrolho da porta de passagem entre os dois prédios de apartamentos?

— Nada — bufou Heath com desgosto. — Ambos são de ferro oxidado e rugoso, incapazes de reter qualquer impressão.

— Olhe aqui, Markham — disse Vance. — Você está considerando o assunto de forma errônea. É lógico que não haja impressões digitais. É fora de dúvida que você sabe que não se produz cuidadosamente uma obra para logo deixar todos os truques à vista dos espectadores. O que é preciso saber é por que esse empresário particular decidiu entregar-se a teatralidades estúpidas.

— Não é fácil como pensa, Sr. Vance — manifestou Heath com amargura.

— Eu disse que era fácil? Não, sargento, é terrivelmente difícil. E mais difícil: sutil, obscuro e... diabólico.


IV

 

UMA CARTA MISTERIOSA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 14h)

 


Markham sentou-se resolutamente diante da mesa de centro.

— Que lhe parece, sargento, se interrogarmos agora os dois criados?

Heath saiu do vestíbulo e expediu uma ordem a um dos agentes. Ao cabo de instantes apareceu um homem alto, sombrio, desmazelado, que permaneceu de pé, em atitude respeitosa e atenta.

— Este é o mordomo, senhor — explicou o agente. — Chama-se Pyne.

Markham estudou o indivíduo detidamente. Teria uns sessenta anos. Suas feições eram acentuadamente acromegálicas, distorção que se estendia por todo o corpo. Mãos grandes e pés chatos e disformes. O traje, embora cuidadosamente passado, lhe sentava mal, o colarinho alto era demasiado grande. Os olhos pálidos e aquosos se ocultavam sob espessas sobrancelhas grisalhas, e a boca era um talho em um rosto doentio e balofo.

Fora de sua manifesta ausência de simpatia física, dava não obstante a impressão de astúcia e competência.

— Então é você o mordomo dos Dillard, não? — murmurou Markham. — Há quanto tempo está com a família, Pyne?

— Vai para dez anos, senhor.

— Você deve ter entrado para o serviço do professor, quando ele renunciou à sua cátedra da universidade, não?

— Creio que sim, senhor. — A voz de Pyne era profunda e estrondosa.

— Que sabe da tragédia desta manhã?

Apesar de ter feito Markham a pergunta repentinamente na esperança, segundo creio, de surpreender algum assentimento, Pyne recebeu-a com a maior impassibilidade.

— Absolutamente nada, senhor. Eu ignorava o que havia sucedido até que o professor Dillard, que estava em sua biblioteca, me mandou chamar para que fosse procurar o Sr. Sperling.

— Então ele lhe contou a tragédia?

— O senhor disseme: "Robin foi assassinado e queria que você fosse à procura do Sr. Sperling e lhe comunicasse que eu desejava vê-lo". Isto é tudo, senhor.

— Está você seguro de que ele disse "assassinado", Pyne? — interrompeu Vance.

Pela primeira vez o mordomo hesitou e em seus olhos apareceu um brilho de astúcia, mas...

— Sim, senhor. Estou seguro de que sim. "Assassinado", esta é a palavra.

— E você viu o corpo do Sr. Robin quando saiu para cumprir a ordem? — prosseguiu Vance, enquanto sua vista traçava indolentemente um desenho na parede.

Nova hesitação.

— Sim, senhor. Eu abri a porta do porão e vi o corpo do pobre homem...

— Uma grande impressão deve ter-lhe causado, Pyne

— observou friamente Vance. — Por acaso, você tocou no corpo do pobre homem... ou na flecha... talvez no arco?

Os olhos aquosos de Pyne brilharam um momento.

— Não... certamente que não... Para quê?

— É verdade — suspirou Vance contristado. — Mas você viu o arco?

O homem olhou de soslaio, como se procurasse ver mentalmente.

— Não poderia dizê-lo, senhor. Pode ser que sim, pode ser que não. Não me recordo.

Vance pareceu perder todo interesse por ele e Markham continuou o interrogatório.

— Disseram-me, Pyne, que o Sr. Drukker veio aqui esta manhã, às nove e meia. Você viu-o?

— Sim, senhor. Sempre entra pela porta do porão. Ao passar, deu-me bom dia. Eu estava na despensa, em cima da escada.

— Retirou-se pelo mesmo lugar?

— Parece-me que sim, senhor. Embora, quando ele se foi eu estivesse em cima. Vive na casa dos fundos.

— Eu sei. — Markham inclinou-se para diante. — Presumo que foi você quem recebeu esta manhã o Sr. Sperling e o Sr. Robin?

— Sim, senhor, cerca das dez horas.

— Viu-os depois, ou ouviu alguns dos seus comentários, enquanto esperavam aqui na sala?

— Não, senhor, eu estive ocupado a maior parte da manhã arrumando os aposentos do Sr. Arnesson.

— Ah! — Vance dirigiu o olhar até o homem. — Ficam na parte dos fundos, no segundo pavimento, não? É o quarto com balcão, não é exato?

— Sim, senhor.

— Muito interessante... E foi desse balcão que o professor Dillard viu pela primeira vez o cadáver do Sr. Robin. Como pôde ter entrado no quarto, sem que você o soubesse? Segundo creio, você disse que o primeiro conhecimento que teve da tragédia foi quando o professor Dillard o chamou à biblioteca para que fosse em busca do Sr. Sperling.

O rosto do mordomo voltou-se branco e pastoso e notei que seus dedos se crispavam nervosamente.

— Talvez eu tenha saído por um instante dos aposentos do Sr. Arnesson — explicou ele com grande esforço. — Sim... é muito provável. Na realidade, senhor, agora me recordo de haver ido ao armário...

— Oh, sem dúvida! — Vance parecia ter caído num estado de letargia.

Markham fumou um pouco. Concentrou seu olhar na mesa.

— Veio alguém mais a esta casa hoje de manhã, Pyne? — perguntou.

— Ninguém, senhor.

— Então, pode você sugerir alguma explicação do que se passou?

O homem sacudiu fortemente a cabeça e olhou para o ar com seus olhos aquosos.

— Não, senhor. O Sr. Robin parecia um jovem agradável e benquisto. Não era desses que induzem ao assassinato... se o senhor compreende o que quero dizer.

Vance levantou o olhar.

— Não posso dizer que eu, pessoalmente, compreenda com exatidão o que você quer dizer, Pyne. Como sabe você que não foi um acidente?

— Eu não sei, senhor — foi a resposta serena. — Mas conheço algo da arte de atirar flechas, se me permite que o diga, e vi imediatamente que o senhor Robin tinha sido morto por uma flecha de caça.

— Você é muito observador, Pyne, — disse Vance, movendo a cabeça — e bastante correto nas suas observações.

Era claro que não se podia colher do mordomo nenhuma informação direta. Por isso, Markham o despediu abruptamente, ordenando ao mesmo tempo a Heath que fizesse entrar a cozinheira. Quando esta entrou, notei de imediato uma semelhança entre o pai e a filha. Era ela uma mulher desalinhada, de uns 40 anos, também alta, rosto angular, delgado e comprido. Mãos e pés grandes. Evidentemente na família Pyne o hiperpituitarismo era hereditário.

Depois de algumas perguntas preliminares, ficamos sabendo que era viúva, que se chamava Beedle e que com a morte de seu marido, há cinco anos, e por recomendação de Pyne havia entrado para o serviço do professor Dillard.

— A que horas saiu você de casa esta manhã? — perguntou-lhe Markham.

— Pouco depois das dez e meia. — Beedle parecia intranqüila e alerta. Sua voz era defensivamente agressiva.

— E a que horas voltou?

— Perto das doze e meia. Aquele homem deixou-me entrar — ela olhou rancorosamente para Heath — e tratou-me como se eu tivesse cometido um crime.

Heath sorriu.

— A hora é exata, Sr. Markham. A senhora se incomodou porque não a deixei descer.

Markham meneou a cabeça.

— Sabe algo do que sucedeu aqui esta manhã? — continuou ele estudando-a muito de perto.

— Como quer que saiba se estive toda a manhã no mercado de Jefferson?

— Viu o Sr. Robin, ou Sr. Sperling?

Ao descerem para a sala do clube, passaram em frente à cozinha, pouco antes de eu sair.

— Ouviu você algo do que disseram?

— Não costumo escutar.

Markham irritou-se e ia falar qualquer coisa, quando Vance, dirigindo-se suavemente a ela, disselhe:

— O procurador do distrito pensou que talvez a porta estivesse aberta, podendo assim escutar, ainda que não o quisesse.

— É possível que a porta estivesse aberta, porém eu não ouvi nada — contestou, enfadada.

— Então você não podia dizer-nos se no quarto havia alguma outra pessoa.

Beedle semicerrou os olhos e dirigiu a Vance um olhar calculador.

— É possível que houvesse algum outro — disse ela lentamente. — Na realidade, creio ter ouvido a voz do Sr. Drukker. A mulher destilava veneno e a sombra de um sorriso malévolo percorreu seus lábios delgados. — Pela manhã, cedo, esteve com o Sr. Arnesson.

— Oh, sim! — Vance se surpreendeu ante semelhante notícia. — E você viu-o?

— Eu o vi entrar, porém não o vi sair... Ou, pelo menos, eu não notei. É um homem que entra e sai às furtadelas a toda hora.

— Às furtadelas? Hum!... A propósito, por que porta você saiu quando foi ao mercado?

— Pela da frente. Desde que a Srta. Belle fez do porão um clube, saio sempre pela porta principal.

— Então você não entrou esta manhã neste aposento? — Não.

Vance ergueu-se na cadeira.

— Obrigado por tudo, Beedle. Pode ir.

Assim que a mulher se retirou, Vance levantou-se e foi à janela.

— Estamos gastando demasiadas energias em coisas que não interessam, Markham — disse ele. — Não chegaremos a nada molestando a criadagem e interrogando os da casa. Há um muro psicológico que é preciso derrubar, antes de poder penetrar nas trincheiras inimigas. Todos, neste assunto, reservam algo que lhe convém e temem que se lhes escape. Até agora nos têm dito o que sabem mais ou menos. Desesperante, por certo. Nada do que ouvimos tem ligação. E quando os sucessos cronológicos não se ajustam, pode ter a segurança de que os pontos endentados do contato foram deliberadamente retorcidos. Não encontrei uma articulação clara em todos esses relatos que nos fizeram ouvir.

— O mais provável é que faltem as conexões — redargüiu Markham — e nunca as encontraremos se abandonarmos os interrogatórios.

— Você é demasiado confiante. — Vamos para a mesa. — Quanto mais perguntarmos, mais longe iremos do assunto. Nem o próprio professor Dillard nos disse toda a verdade. Há algo que oculta... alguma suspeita que não deixa escapar. Por que recolheu ele o arco? Arnesson pôs o dedo na chaga quando lhe fez a mesma pergunta. Astuto, este Arnesson. Depois temos a nossa jovenzinha atleta, de pernas musculosas. Está enredada em vários assuntos amorosos e trata de salvar-se e aos seus, sem culpar a ninguém. Um desígnio de louvor, porém não conducente a uma verdade livre de alterações. Pyne tem também idéias. Aquela sua máscara facial deixa ocultos muitos pensamentos arrebatadores. Porém, nunca exploraremos sua rusticidade sobrecarregando-o com perguntas. Algo singular também a respeito dos seus trabalhos matinais. Disse que estivera no quarto de Arnesson toda a manhã; e, não reparou que o professor havia ido para o balcão do referido quarto, a fim de tomar sol. Aquela sua saída, para ir até o armário... é muito capciosa. Além disso, Markham, deixe que seu espírito voe ao redor do conto da viúva Beedle. A ela não agrada o supersocial Drukker. E, quando viu uma ocasião de envolvê-lo no assunto, aproveitou-a. Ela "julgou" ter ouvido sua voz no quarto do clube. Porém, será certo? Quem sabe? É verdade que ele podia ter-se demorado entre as fundas e dardos, em seu caminho de retirada, reunindo-se com ele, mais tarde, Robin e Sperling... Sim, é um ponto que tem de ser investigado. Em uma palavra, impõe-se um pouco de conversação cortês com o Sr. Drukker.

Neste momento, ouviram-se passos que indicavam que alguém descia as escadas da frente. Era Arnesson, que entrou na sala.

— E quem matou Cock Robin? — perguntou ele com um sorriso de sátiro.

Markham levantou-se, aborrecido, e estava a ponto de protestar por semelhante impertinência, porém Arnesson levantou a mão e disse:

— Um momento, por favor. Estou aqui para oferecer meus exaltados serviços à causa nobre da justiça... da justiça mundana, compreendem. Filosòficamente, é certo, não existe tal coisa. Se verdadeiramente houvesse justiça, estaríamos todos numa temporada dentro da estância cósmica. — Sentou-se defronte a Markham e cèpticamente riu entre dentes. — O fato é que a triste e precipitada viagem do Sr. Robin clama por minha natureza científica. É um ótimo problema de método. Tem decididamente um sabor matemático... sem termos indivisíveis, compreende, com números inteiros bem claros, com certas quantidades desconhecidas, por determinar. Pois bem, eu sou o gênio que o resolverá.

— Qual seria a sua solução, Arnesson? — Markham conhecia e respeitava a inteligência do homem e pareceu de pronto sentir um propósito sério debaixo de sua atitude frívola e burlesca.

— Ah! Ainda não desenvolvi a equação. — Arnesson tirou do bolso um velho cachimbo, apertando-o, afetuosamente. — Sempre tive desejos de atuar como detetive em um plano terreal... é a curiosidade insaciável e a natural investigação do físico, sabe? E há tempos que tenho uma teoria segundo a qual a ciência matemática pode ser vantajosamente aplicada às trivialidades da nossa vida neste insignificante planeta. No universo não há nada mais que leis... a menos que Eddington tenha razão e que não exista lei nenhuma... e eu não vejo razão bastante para que a identidade e posição de um criminoso não possa ser determinada da mesma maneira como Leverrier calculou a massa e o calendário de Netuno a partir dos desvios observados na órbita de Urano. Você se recorda de como, depois de seus cálculos, ele disse a Galle, o astrônomo berlinês, que procurasse o planeta em uma longitude especificada da eclíptica. — Arnesson fez uma pausa e encheu o cachimbo.

— Agora, Sr. Markham — continuou enquanto eu procurava descobrir se ele falava sério ou não — gostaria de aproveitar a oportunidade para aplicar a este absurdo enredo os meios puramente racionais usados por Leverrier no descobrimento de Netuno. Porém, devo ter os dados sobre as perturbações da órbita de Urano, como se disséssemos... isto é, devo conhecer todos os fatores variáveis da equação. O favor que vim pedir aqui é que vocês confiem em mim e não me ocultem absolutamente nada do que saibam do assunto. Uma espécie de sociedade intelectual. Eu resolverei o problema para vocês, do ponto de vista científico. Será um esporte magnífico, além de que incidentalmente me agradaria provar por minha teoria que a matemática forma a base da verdade, não importando quão afastada possa estar das abstrações escolásticas. — Por fim acendeu seu cachimbo e se recostou na cadeira. — Negócio feito?

— Para mim é um prazer não lhe ocultar nada, Arnesson — observou Markham depois de uma breve pausa. — Mas não posso prometer-lhe revelar tudo o que haja de agora em diante. Poderia ir contra os fins da justiça e dificultar nossa investigação.

Vance, que se havia sentado com os olhos semicerrados, aparentemente enfastiado pelo surpreendente pedido de Arnesson, voltou-se para Markham com um sinal positivo de animação.

— Em verdade, não vejo por que não deveríamos dar ao Sr. Arnesson uma ocasião de transportar esse crime aos domínios da matemática aplicada. Estou seguro de que ele será discreto e que usará nossa informação só para propósitos científicos. E... nunca se sabe, verdade?... poderemos necessitar de seu auxílio altamente disciplinado antes de termos terminado este caso tão fascinante.

Markham conhecia Vance muito bem para compreender que a sua sugestão não havia sido feita impensadamente, e eu que não tive a mínima surpresa quando, enfrentando Arnesson, ele disse:

— Muito bem. Facilitar-lhe-emos toda informação de que o senhor necessite para poder desenvolver a sua fórmula matemática. Há algo que lhe interessa saber agora?

— Oh, não! Até este momento conheço os pormenores que vocês possam saber. Eu tratarei de espremer Pyne e Beedle quando vocês saírem. Se eu resolver este problema e determinar a posição exata do criminoso, não encerrarei meus descobrimentos como fez Sir George Airy com os do pobre Adams quando submeteu seus cálculos netunianos anteriores aos de Leverrier...

Neste instante abriu-se a porta e o agente uniformizado que estava estacionado no pórtico entrou seguido de um estranho.

— Este cavalheiro diz que deseja ver o professor — anunciou com radiante suspeita, e virando-se em seguida para Markham com um movimento de cabeça indicou: — Aí está o procurador do distrito. Conte-lhe os seus problemas.

O recém-chegado parecia um tanto desconcertado. Era esbelto, bem vestido, com um ar inequívoco de refinamento. Aparentava uns cinqüenta anos. Seu rosto mantinha um aspecto de juventude perene. O cabelo era ralo e grisalho, o nariz um tanto afilado e o queixo pequeno, porém de nenhum modo débil. A característica mais notável residia naqueles olhos situados sob uma testa ampla e alta. Eram os olhos de um sonhador contrariado e desiludido... meio tristes, meio ressentidos, como se a vida o houvesse ludibriado deixando-o infeliz e amargurado. Estava a ponto de dirigir-se a Markham, quando avistou Arnesson.

— Oh, bom dia, Arnesson — disse ele com voz tranqüila e bem modulada. — Espero que não haja nada de mau ou errado.

— Só uma morte. Pardee — replicou o outro, sem lhe dar maior importância. — A proverbial tormenta num copo d'água.

Markham sentou-se molestado pela interrupção.

— Em que posso ser-lhe útil, senhor? — perguntou ele.

— Espero não haver sido um intruso — disse o homem, desculpando-se. — Sou amigo da casa. Moro no outro lado da rua e notei que algo de desusado havia acontecido aqui. Ocorreu-me então que podia ser útil de uma forma ou de outra.

Arnesson riu entredentes.

— Meu estimado Pardee! Por que encobre sua curiosidade natural com o manto da retórica?

Pardee corou.

— Asseguro-lhe, Arnesson, que...

Ao começar a falar, foi interrompido por Vance.

— O senhor diz que vive do outro lado da rua. Esteve por acaso olhando esta casa, durante a manhã?

— Nem tanto, senhor. Meu gabinete dá, entretanto, para a Rua 75 e é certo que estive sentado perto da janela quase toda a manhã. Mas estive escrevendo. Quando, depois de almoçar, voltei para meu trabalho, notei muita gente, o carro da polícia, assim como o agente uniformizado, que estava na porta.

Vance esteve examinando-o com o canto do olho.

— Viu entrar ou sair desta casa alguém esta manhã, Sr. Pardee?

O homem meneou a cabeça lentamente.

— Ninguém em particular. Notei a presença dos dois jovens amigos da Srta. Dillard, que vieram perto das dez horas, e vi Beedle que saía com sua cesta para o mercado. Isto é tudo de que me recordo.

— Viu retirar-se algum dos dois?

— Não me lembro. — Pardee franziu o cenho. — Não obstante, creio que um deles saiu pela porta do pátio. Mas é só uma impressão.

— A que horas seria?

— Verdadeiramente não poderia dizer-lhe. Talvez uma hora mais ou menos depois da sua chegada. Eu não poderia ser mais específico.

— Não se recorda de nenhuma outra pessoa que tenha entrado ou saído daqui?

— Vi a Srta. Dillard, quando voltou da quadra de tênis, pelas doze e meia, no momento em que me chamavam para almoçar. Para dizer a verdade, saudou-me com a raqueta.

— E ninguém mais?

— Receio que não. — Havia em sua resposta um sentimento inequívoco.

— Um dos jovens que o senhor viu entrar aqui foi morto — disse Vance.

— O Sr. Robin, cognominado Cock Robin — ajuntou Arnesson com uma careta cômica que me chocou.

— Meu Deus! Que desgraça! — Pardee parecia verdadeiramente assombrado. — Robin? Não era o campeão de arco-e-flecha no clube de Belle?

— Sua única pretensão para a imortalidade. Este é o homem.

— Pobre Belle! — Algo nos modos do indivíduo fez com que Vance o observasse agudamente. — Espero que esta tragédia não a tenha transtornado.

— Ela está naturalmente dramatizando tudo — replicou Arnesson. — Aliás, a polícia também o faz. Muita teatralidade para nada em particular. A terra está coberta de "pequenas massas serpenteantes de hidratos de carbono", como Robin, e às quais nos referimos globalmente como humanidade.

Pardee sorriu com tolerante tristeza. Evidentemente estava familiarizado com o cepticismo de Arnesson. Então apelou para Markham.

— Permite-me que veja a Srta. Dillard e o professor?

— Oh! À vontade! — Foi Vance quem respondeu antes que Markham opinasse. — O senhor os encontrará na biblioteca.

O homem abandonou o aposento com um cortês murmúrio de agradecimento.

— É um tipo curioso — comentou Arnesson, quando Pardee já não podia ouvi-lo. — Cheio de dinheiro, leva uma vida ociosa. Sua única paixão é resolver problemas de Xadrez...

— De Xadrez? — Vance levantou o olhar com interesse. — E porventura John Pardee, o inventor do famoso gambito de seu nome?

— Ele mesmo. — O rosto de Arnesson contraiu-se humoristicamente. — Passou vinte anos desenvolvendo uma ofensiva que servia para juntar novos pontos decimais ao jogo. Escreveu um livro sobre o mesmo. Então continuou fazendo prosélitos como um cruzado diante das portas de Damasco. Sempre foi um apaixonado do xadrez, tomando parte nos torneios e correndo todo o mundo para assistir às várias partidas desse jogo. Mais tarde, conseguiu que seu sistema fosse experimentado. Causou grande perturbação entre os infracampeões do Clube de Xadrez Manhattan. Então, o pobre Pardee organizou uma série de torneios magistrais, pagando todas as despesas. Isto lhe custou uma fortuna. Certamente ele estipulava que se jogasse exclusivamente o sistema Pardee. Foi algo muito triste. Quando homens como o Dr. Lasker, Capablanca, Rubinstein e Finn se puseram a combatê-lo, tudo fracassou. Quase todos os que jogavam por esse sistema perdiam. Foi desqualificado de forma ainda pior que o malfadado sistema de Rice. Pardee sofreu um golpe muito rude, que lhe embranqueceu os cabelos e lhe tirou toda a elasticidade dos músculos. Em uma palavra, ficou envelhecido. É um homem destroçado.

— Conheço a história desse sistema — murmurou Van-ce com seu olhar preso no teto. — Eu mesmo o empreguei. Eduard Lasker me ensinou a jogá-lo...

O agente uniformizado apareceu de novo no portal e fez sinal a Heath para que se acercasse. O sargento levantou-se com presteza; evidentemente lhe aborrecia a conversação sobre xadrez. Foi ao vestíbulo. Pouco depois voltava com uma folhinha de papel.

— Isto sim que tem graça, senhor — disse ele entregando-a a Markham. — O agente de fora viu que saía da caixa do correio e decidiu examiná-la. Que lhe parece, senhor?

Markham olhou-a com assombro e confusão, passando-a a Vance sem nada dizer. Eu me levantei e olhei por cima do seu ombro. O papel era do tamanho convencional para máquina de escrever, tendo sido dobrado para que entrasse na abertura da caixa do correio. Continha várias linhas escritas à máquina com tipo "elite" e com uma fita de um azul esmaecido.

A primeira linha dizia:

"Joseph Cochrane Robin está morto."

A segunda linha perguntava:

"Quem matou Cock Robin?"

Embaixo estava escrito:

"Sperling quer dizer pardal."

No canto inferior direito, no lugar da assinatura, estavam estas duas palavras, em letras maiúsculas:

"O BISPO."


V

 

UM GRITO DE MULHER

 

(Sábado, 2 de abril — 14h30)


Depois que Vance olhou a estranha mensagem com a sua firma ainda mais estranha, procurou o monóculo com aquela lenta deliberação que, segundo eu sabia, denotava um agudo interesse. Tendo colocado a lente, estudou o papel com suma atenção. Em seguida, passou-o a Arnesson, dizendo-lhe:

— Aqui tem você um fator valioso para a sua equação. — Seus olhos estavam zombeteiramente fixados no indivíduo.

Arnesson examinou a nota com ar desdenhoso, e com uma careta colocou-a na mesa.

— Espero que o clero não esteja envolvido neste problema. São notoriamente anticientíficos. Não se pode atacá-los com matemática. "O Bispo" — murmurou. — Não conheço nenhum cavalheiro que vista vestes talares. Creio que destrinçarei este enigma quando fizer meus cálculos.

— Se o destrinçar, Sr. Arnesson — replicou Vance seriamente — receio que sua equação venha abaixo. Esta carta secreta parece-me muito significativa, não sei por quê. Por certo, se me permite uma nova opinião, dir-lhe-ei que é a coisa mais matemática que apareceu neste caso até agora. Elimina da situação todo o caso ou acidente. É por assim dizer o g, a constante gravitacional que dirigirá todas as nossas equações.

Heath havia olhado o papel com solene desgosto.

— Algum desequilibrado foi quem escreveu isto, Sr. Vance — declarou o sargento.

— Indubitavelmente foi um louco, sargento — concordou Vance. — Mas não podemos desprezar o fato de que esse louco particular deve ter sabido muitos pormenores íntimos e interessantes... isto é, que o sobrenome do Sr. Robin é Cochrane, que o referido cavalheiro foi morto por um flechaço, e que o Sr. Sperling estava nas vizinhanças no momento da morte de Robin. Mais ainda, esse bem-informado maníaco deve ter meditado muito o assassinato, pois a nota foi evidentemente escrita e posta na caixa do correio antes que os agentes chegassem ao lugar.

— A menos que — replicou tenazmente Heath — seja um desses ociosos que, inteirado do que sucedera, meteu o papel na caixa, quando o agente estava de costas.

— Tendo corrido antes à casa e escrito à máquina a mensagem, não? — Vance meneou a cabeça sorrindo tristemente. — Não, sargento, receio que a sua teoria não tenha base alguma.

— Então, que diabo significa isto? — perguntou Heath truculentamente.

— Não tenho a menor idéia. — Vance bocejou e levantou-se da cadeira.

— Que lhe parece, Markham, se dedicarmos uns breves instantes a este Sr. Drukker, a quem Beedle tanto odeia?

— Drukker! — exclamou Arnesson com considerável surpresa. — Que tem que ver o assunto com ele?

— O Sr. Drukker — explicou Markham — veio esta manhã visitar o senhor e pode ter visto Robin e Sperling antes que tivesse ido embora para a sua casa. — Hesitou um instante. — Quer vir conosco?

— Não, obrigado. — Arnesson limpou seu cachimbo e levantou-se. — Tenho muitos trabalhos para corrigir. Não obstante, não seria demais se Belle os acompanhasse. Lady Mae é um tanto peculiar...

— Lady Mae?

— Oh, enganei-me! Havia esquecido que vocês não a conheciam. Todos a chamamos de Lady Mae. É um título de cortesia que agrada muito à pobrezinha. Refiro-me à mãe de Drukker. É um tipo curioso. — Pôs o dedo na fronte significativamente. — Um pouco pancada, porém perfeitamente inócua. É uma monomaníaca. Crê que o sol sai e se oculta em Drukker. Cuida dele como se fosse um menino. Triste situação... Sim, é melhor que levem Belle com vocês. Lady Mae gosta muitíssimo dela.

— Boa idéia, Sr. Arnesson — disse Vance. — Faça o favor de perguntar à Srta. Dillard se quer ter a bondade de acompanhar-nos.

— Com muito prazer.

Arnesson despediu-se com um sorriso ao mesmo tempo protetor e satírico. Um instante depois a Srta. Dillard estava conosco.

— Sigurd disseme que os senhores desejam ver Adolph. Ele terá muito gosto em recebê-los, porém a pobre Lady Mae altera-se tanto por qualquer coisa...

— Esperamos não molestá-la absolutamente — disse Vance tranqüilizadoramente. — Mas o caso é que esta manhã esteve aqui o Sr. Drukker e a cozinheira disse que crê ter ouvido ele falar com os Srs. Sperling e Robin, no quarto do clube. Talvez possa ajudar-nos em algo.

— Estou certa de que assim o fará, se puder — respondeu a moça, com ênfase. — Mas tenham muito cuidado com Lady Mae, sim?

Havia em sua voz um tom implorante e protetor. Vance observou-a cuidadosamente.

— Fale-nos da Sra. Drukker, ou Lady Mae, antes que a visitemos. Por que devemos ter tanto cuidado?

— Sua vida foi uma tragédia — explicou Belle. — Foi outrora uma grande cantora... não uma artista de segunda categoria, mas uma prima-dona de brilhante futuro (1). Ela se casou com um crítico famoso de Viena, Otto Drukker (2), e quatro anos mais tarde nasceu Adolph. Um dia, no Wiener Prater, quando o bebê tinha dois anos, caiu-lhe dos braços. Desde aquele momento sua vida mudou por completo. A coluna vertebral de Adolph se danificou, ficando o menino aleijado. Lady Mae desesperou-se. Ela mesma se considerava culpada e abandonou a carreira para dedicar-se por completo ao filho. Quando o esposo morreu um ano depois, trouxe Adolph para a América, onde havia passado parte da sua juventude, e comprou a casa onde agora vive. Toda a sua vida foi dedicada a Adolph, que cresceu corcunda. Tudo sacrificou por ele e cuida-o como se fosse um bebê...

(1) Mae Brenner ainda deve ser lembrada pelos amantes europeus da boa música. Estreou com a idade, sem precedentes, de 23 anos no papel de Sulamita na Rainha de Sabá, na Casa Imperial de ópera, em Viena; embora seu êxito mais grandioso fosse antes na Desdêmona em Otelo, o último papel que cantou antes de se retirar.

(2) O nome certamente era escrito originariamente Drucker. A troca, possivelmente alguma tentativa de americanização, foi feita pela senhora Drukker, quando fixou residência nos E.E.U.U.


Uma sombra cruzou pelo seu rosto e continuou:

— Às vezes penso... pensamos que ela ainda o imagina um menino. Tem-se tornado mórbida a respeito dele. Mas é a doce e terrível morbidez de um tremendo amor materno... uma espécie de loucura, de ternura, segundo diz o tio. Durante os últimos meses tornou-se muito estranha... esquisita. Encontrei-a muitas vezes cantarolando velhas canções de berço alemãs, com os braços cruzados sobre o peito como se — Oh, isso parece tão sagrado e tão terrível! — como se estivesse embalando uma criança. E tornou-se terrivelmente ciumenta por Adolph. Está ressentida com os outros homens. Sem ir mais longe, a semana passada levei o Sr. Sperling para visitá-la... constantemente vamos vê-la, parece tão só e desditosa... pois bem, levei o Sr. Sperling e ela o olhou quase furiosamente e disselhe: "Por que você não é também um aleijado?"

A jovem fez uma pausa e observou nossas fisionomias.

— Compreendem agora por que lhes rogo que tenham cuidado?... Lady Mae pode pensar que tenhamos ido causar algum mal a Adolph.

— Evitaremos tudo que a possa molestar — assegurou Vance com simpatia.

Então, ao tempo que caminhávamos para o vestíbulo, fez-lhe uma pergunta que me recordou o breve exame mental da casa de Drukker aquela tarde.

— Onde se acha o quarto da Sra. Drukker?

A moça dirigiu-lhe um olhar de assombro, mas respondeu em seguida:

— No lado oeste da casa... Sua janela projetada para fora dá para o campo de prática de tiro de flecha.

— Ah! — Vance tirou sua cigarreira e cuidadosamente escolheu um Régie. — Freqüenta muito este mirador?

— Muitíssimo. Lady Mae sempre observa quando estamos atirando ao alvo; não sei por quê. Estou certa de que sofre ao ver-nos, pois Adolph não é bastante forte para lançar uma flecha. Várias vezes fez tentativas; porém, teve que abandonar, porque se fatigava.

— Olha como praticam vocês, porque isto a tortura... é uma espécie de auto-imolação, sabe? Estas situações são muito penosas.

Vance falava com ternura tal que para quem não conhecesse sua verdadeira natureza pareceria estranho.

— Talvez — ajuntou no momento em que saíamos da casa pela porta do porão — fosse melhor que por agora só víssemos a Sra. Drukker. Isto suavizaria qualquer suspeita que nossa visita pudesse causar-lhe. Poderíamos chegar até o seu quarto, sem que o filho soubesse?

— Oh, sim. — A moça estava satisfeita com a idéia. — Podemos entrar pelos fundos. O gabinete de Adolph, onde ele costuma trabalhar, fica na frente.

Quando chegamos, encontramos a Sra. Drukker sentada na varanda fechada em um canapé antigo, entre almofadões. A Srta. Dillard saudou-a como se fosse sua filha, inclinando-se sobre ela e beijando-a carinhosamente na testa.

— Algo horrível passou-se esta manhã em minha casa, Lady Mae — disse — e estes cavalheiros desejam falar com a senhora a respeito. Prometi-lhes que os traria aqui. Tem a senhora algum inconveniente em recebê-los?

O rosto pálido e trágico da Sra. Drukker se havia desviado da porta quando entramos, porém ela agora nos mirava horrorizada.

Lady Mae era uma mulher alta, delgada até à magreza. Suas mãos, que se apoiavam ligeiramente encurvadas nos braços do canapé, eram cheias de tendões e enrugadas como as garras das fabulosas harpias. Seu rosto, também delgado e profundamente enrugado, era um tanto atraente. Os olhos eram claros e vivos e o nariz estreito e dominante. Embora já devesse ter passado dos sessenta, seu cabelo era abundante e castanho.

Durante uns minutos permaneceu imóvel e silenciosa. Depois, suas mãos cerraram-se lentamente e seus lábios se abriram.

— De que necessitam os senhores? — perguntou com voz baixa e ressoante.

Sra. Drukker, — foi Vance quem respondeu — como a Srta. Dillard acaba de dizer-lhe, uma tragédia ocorreu na casa ao lado esta manhã e desde que a sua janela é a única que dá exatamente para o campo de exercícios, pensamos que possivelmente haja visto algo que pudesse ajudar-nos em nossa investigação.

A vigilância da mulher se relaxou perceptivelmente, porém demorou um pouco antes de responder.

— E que aconteceu?

— Um Sr. Robin foi morto. Talvez a senhora o tenha conhecido.

— O atirador de flechas — o campeão de Belle?... Se o conheço. Era um rapagão forte que podia sustentar um arco pesado sem se fatigar. Quem o matou?

— Não o sabemos. — Vance, apesar de seu ar negligente, a observava com astúcia. — Porém, como foi morto diante de sua sacada, esperávamos que a senhora soubesse de alguma coisa.

As pálpebras da senhora Drukker caíram astutamente e seus dedos se entrelaçaram com uma espécie de satisfação deliberada.

— Está o senhor seguro de que foi morto lá fora?

— Pelo menos, foi lá que o encontramos — replicou Vance com reserva.

— Enfim... Mas, que posso fazer para ajudar os senhores? — Dito isto recostou-se languidamente.

— Notou a senhora a presença de alguém no campo de exercícios esta manhã? — perguntou Vance.

— Não! — A negativa foi rápida e enfática. — Não vi ninguém. Durante todo o dia não vim à janela.

Vance cruzou seu olhar com o da mulher e suspirou.

— É uma lástima — murmurou. — Se a senhora tivesse olhado esta manhã pela janela, possivelmente teria presenciado a tragédia... O Sr. Robin foi morto por um flechaço e, ao que parece, não há motivo razoável que justifique isto.

— Sabe o senhor que o mataram com um flechaço? — perguntou ela, e suas faces pálidas se cobriram de um leve rubor.

— Essa foi a informação do médico da polícia. Quando encontramos o corpo tinha uma flecha cravada no coração.

— Certamente. Isto parece perfeitamente natural, não?... Uma flecha cravada no coração de Robin!...

Ela falava como em sonho. Em seus olhos havia uma imagem longínqua e fascinante.

Produziu-se um silêncio forçado, durante o qual Vance se encaminhou para a janela.

— Incomoda-lhe que olhe por aqui?

Com dificuldade a mulher volveu de seu recolhimento.

— Absolutamente. O panorama não é muito formoso. Podem ver-se as árvores da Rua 76 até o norte e uma parte do pátio de Dillard até o sul. Porém, essa parede de ladrilhos é desconsoladora. Antes de edificarem o prédio de apartamentos, via-se daqui o bonito panorama do rio.

Vance examinou durante um momento o campo de exercícios.

— Sim, — observou, — se tivesse assomado à janela esta manhã, poderia a senhora ter visto o que aconteceu. Daqui vê-se claramente o terreno e a porta do porão de Dillard... Que lástima! — Olhou o relógio. — O seu filho está em casa, Sra. Drukker?

— Meu filho! Meu bebê! Que querem dele? — Sua voz se elevou, lastimosamente e seus olhos se fixaram em Vance envenenados de ódio.

— Nada de importante — disse este pacificamente. — Talvez tenha visto alguém...

— Não viu ninguém! Não podia ter visto ninguém, pois não esteve aqui. Saiu muito cedo e ainda não voltou.

Vance olhou com pesar a mulher.

— Esteve fora toda a manhã? — perguntou. — Sabe a senhora onde ele se encontra?

— Eu sempre sei onde ele está — respondeu ela orgulhosamente. — Não me oculta nada.

— Ele lhe disse aonde ia esta manhã? — insistiu Vance em tom suave.

— Creio que sim, porém neste momento me esqueci. Deixe-me pensar... — Seus longos dedos tamborilavam no braço do canapé e seus olhos se revolviam intranqüilos. — Não me posso recordar; mas lhe perguntarei assim que voltar.

A Srta. Dillard tinha estado observando a mulher com perplexidade crescente.

— Mas, Lady Mae, Adolph esteve em nossa casa. Foi ver Sigurd...

A Sra. Drukker ergueu-se.

— Não é exata! — disse cortante, olhando a jovem quase com rancor. — Adolph tinha que ir à cidade por qualquer coisa. Não esteve em sua casa para nada... Eu sei que não esteve. — Seus olhos chisparam e ela olhou Vance desafiadoramente.

Era um momento desconcertante, porém o que se seguiu foi ainda mais doloroso.

A porta se abriu lentamente e de súbito os braços da Sra. Drukker se estenderam.

— Meu filhinho... meu bebê! — exclamou ela. — Vem aqui, querido.

O homem, porém, não avançou, permaneceu pestanejando seus olhinhos para nós, como uma pessoa que desperta em lugar desconhecido. Adolph Drukker tinha apenas metro e meio de altura. Seu aspecto era o típico congestionado dos corcundas. Suas pernas eram longas e delgadas e o tamanho do seu tronco arqueado e torcido parecia exagerado pela sua imensa cabeça semelhante a uma cúpula. Seu rosto, porém, indicava intelectualidade... um poder passional terrífico que chamava a atenção. O professor Dillard lhe havia chamado gênio matemático, e não se podia duvidar da sua erudição (1).

(1) Causou-me a mesma impressão que o general Homero Lee, quando o visitei em Santa Mônica, pouco antes de sua morte.


— Que significa isto? — perguntou com voz alta e trêmula olhando a Srta. Dillard. — São amigos seus, Belle?

A moça ia responder, porém Vance deteve-a com um gesto.

— A verdade é, Sr. Drukker, — explicou ele em tom grave — que na casa ao lado houve uma tragédia. Este cavalheiro é o Sr. Markham, procurador do distrito, e este outro o sargento Heath, do Departamento de Polícia. A pedido nosso, a Srta. Dillard acompanhou-nos até aqui para perguntar à senhora sua mãe se ela tinha notado algo de anormal no campo de exercícios esta manhã. A tragédia ocorreu mesmo fora da porta do porão da casa de Dillard.

Drukker projetou seu queixo para diante e olhou de soslaio.

— Uma tragédia, hem? Que classe de tragédia?

— Um Sr. Robin foi morto por um flechaço.

O rosto do homem começou a retorcer-se espasmodicamente.

— Robin morto? Morto?... A que horas?

— Provavelmente entre as onze e meio-dia.

— Entre onze e meio-dia? — Rapidamente o olhar de Drukker se desviou para a sua mãe. Parecia cada vez mais nervoso, e seus imensos dedos retorciam a bainha do casaco.

— Que foi que a senhora viu? — Seus olhos faiscavam ao encarar a mulher.

— Que queres dizer, filho? — A réplica era um murmúrio que encerrava imenso pânico. O rosto de Drukker se endureceu e a sugestão de um sorriso cômico torceu seus lábios.

— Quero dizer que foi a essa hora que ouvi um grito neste quarto.

— Não ouviste! Não... Não! — Ela conteve a respiração e meneou fortemente a cabeça. — Estás equivocado, filho. Eu não gritei esta manhã.

— Bem, alguém foi. — Havia na voz do homem uma implacabilidade iria. Logo depois de uma pausa ajuntou:

— O fato é que subi depois de ter ouvido o grito e escutei aqui na porta. Mas a senhora passeava de um lado para outro cantando Eia Popéia, portanto voltei ao meu trabalho.

A Sra. Drukker apertou o lenço contra o seu rosto, cerrando os olhos momentaneamente.

— Trabalhavas entre as onze e o meio-dia? — Sua voz ressoou agora com ansiedade reprimida. — Pois eu te chamei várias vezes...

— Eu a ouvi, porém não respondi. Estava muito ocupado.

— Sim, verdade? — Ela se voltou lentamente para a janela. — Pensei que não estavas em casa. Não me disseste que?...

— Eu lhe disse que ia à casa de Dillard. Mas, como Sigurd não estava, voltei pouco antes das onze.

— Não te vi entrar. — A energia da mulher se havia esgotado, recostando-se negligentemente com a vista posta no muro de tijolos do lado oposto. — E quando te chamei, ao ver que não respondias, acreditei que estavas fora.

— Saí da casa de Dillard pelo portão que dá para a rua e fui dar um passeio pelo parque. — A voz de Drukker mostrava irritação. — Depois entrei pela porta principal.

— E dizes que me ouviste gritar... Por que ia gritar, meu filho? Hoje não me doeram as costas.

Drukker franziu o cenho e seus olhinhos se moveram rapidamente de Vance para Markham.

— Ouvi alguém gritar... uma mulher... neste quarto — insistiu ele tenazmente — isto às onze e meia. — Então afundou-se em uma cadeira e olhou pensativamente para o chão.

Este diálogo intrincado entre mãe e filho enfeitiçou-nos a todos. Embora Vance permanecesse defronte de uma antiga estampa do século dezoito, perto da porta, mirando-a com absorção aparente, eu sabia que nenhuma palavra ou inflexão lhe tinha escapado. Agora girou em redor e, fazendo um sinal a Markham para que não interviesse, aproximou-se da Sra. Drukker.

— Sentimos muitíssimo, senhora, que a tenhamos molestado. Rogo-lhe que nos perdoe. — Fez uma inclinação de cabeça e se voltou para a Srta. Dillard.

— Acompanha-nos, ou prefere que vamos sós?

— Irei com os senhores — disse a moça. Foi até a Sra. Drukker, dizendo a esta, enquanto a abraçava:

— Sinto muitíssimo, Lady Mae.

Enquanto passávamos ao vestíbulo, Vance, como que refletindo, deteve-se. E, dando volta, disse a Drukker com um tom de voz casual embora urgente:

— Precisamos que o senhor venha conosco. O senhor conhecia Robin e pode sugerir-nos alguma coisa...

— Não vás com ele, filho! — exclamou a Sra. Drukker. Agora estava erguida em sua cadeira com o rosto contorcido de angústia e terror. — Não vás! São inimigos. Querem fazer-te mal...

Drukker se havia posto em pé.

— Por que não devo ir com eles? — replicou com petulância. — Quero averiguar este assunto. Pode ser, como dizem eles, que eu lhes seja de alguma utilidade. — E com um gesto de impaciência veio ter conosco.


VI

 

"EU", DISSE O PARDAL

 

(Sábado, 2 de abril — 15h)

 

Quando estávamos de novo na sala de Dillard, e uma vez que a Srta. Belle nos deixara para ir em busca de seu tio que se achava na biblioteca, Vance, sem preâmbulo algum, retomou o assunto que o preocupava.

— Não o quis interrogar, Sr. Drukker, diante da senhora sua mãe para não incomodá-la, porém, considerando que o senhor esteve aqui esta manhã pouco antes da morte do Sr. Robin, é necessário, como simples procedimento de rotina, que procuremos toda a informação que o senhor possa nos dar.

Drukker, que estava sentado perto da lareira, estendeu a cabeça cautelosamente, porém não respondeu.

— O senhor chegou aqui — continuou Vance — perto das nove e meia, segundo creio, para visitar Arnesson.

— Sim.

— Pelo campo de exercício e pela porta do porão?

— Como sempre. Para que dar uma volta ao quarteirão?

— Mas o Sr. Arnesson não estava em casa. Drukker meneou a cabeça e disse:

— Estava na Universidade.

— E ao ver que o Sr. Arnesson não estava em casa, o senhor se sentou um pouco na biblioteca com o professor Dillard, segundo parece, conversando sobre uma expedição de astrônomos à América do Sul.

— A expedição da Real Sociedade de Astronomia a Sobral para comprovar a deflexão einsteiniana — completou Drukker.

— Quanto tempo permaneceu o senhor na biblioteca?

— Menos de meia hora.

— E depois?

— Desci à sala do clube e li uma das revistas onde havia um problema de xadrez... um final da partida que se desenvolveu recentemente entre Shapiro e Marshall... como me interessou muito, tentei resolvê-la...

— Um momento, Sr. Drukker. — Na voz de Vance havia um tom de interesse. — Interessa-lhe o xadrez?

— Até certo ponto. Entretanto, não lhe dedico muito tempo. O jogo não é puramente matemático. Além disso, é insuficientemente especulativo para que interesse a um espírito completamente científico.

— Achou complicada a situação Shapiro-Marshall?

— Era mais uma questão de habilidade. — Drukker observava Vance astutamente. — Assim que descobri que um movimento de peão aparentemente inútil era a chave do impasse, a solução foi fácil.

— Quanto tempo lhe custou?

— Uma meia hora.

— Diremos até perto das dez e meia.

— Essa hora seria a mais aproximada. — Drukker afundou-se mais na poltrona, porém a sua disfarçada vigilância não diminuiu.

— Então você deve ter estado na sala do clube quando o Sr. Robin e o Sr. Sperling chegaram lá.

O homem não contestou de imediato e Vance, aparentando não perceber a sua hesitação, acrescentou:

— O professor Dillard disse que eles chegaram a casa perto das dez e que, depois de esperarem um pouco na sala, desceram ao porão.

— A propósito, onde está agora Sperling? — Os olhos de Drukker percorreram velozmente cada um de nós.

— Esperamo-lo aqui de um momento para outro — replicou Vance. — O sargento Heath mandou dois agentes buscá-lo.

As sobrancelhas do corcunda se ergueram.

— Ah! Então Sperling será trazido à força. — Ele pôs em pirâmide seus espatulados dedos e os olhou pensativamente. Em seguida, levantou lentamente os olhos para Vance. — O senhor perguntou-me se havia visto Robin e Sperling na sala do clube. Sim. Desciam, quando eu saía.

Vance recostou-se, estirando as pernas.

— Teve o senhor a impressão de que haviam tido, como dizemos por eufemismo, uma troca de palavras?

O homem considerou esta pergunta durante um certo tempo.

— Agora que o senhor menciona isto — disse ele por fim —, recordo-me de que as relações de ambos se haviam esfriado. Entretanto, não queria ser demasiado categórico neste ponto, pois eu saí da sala quase logo depois que eles entraram.

— Creio que o senhor disse que saiu pela porta do porão e depois pelo portão do muro que dá para a Rua 75. É exato?

Durante um momento, Drukker pareceu não querer responder, porém replicou, forçando indiferença:

— Exato. Pensei em dar um passeio pela margem do rio, antes de começar a trabalhar. Fui ao Riverside Drive, depois segui o caminho circular e voltei ao parque pela Rua 79.

Heath, com a sua suspeita habitual diante de todas as declarações feitas à polícia, fez a seguinte pergunta:

— Encontrou algum conhecido seu?

Drukker voltou-se irritado, porém Vance aproveitou a brecha.

— Isto não interessa, sargento. Se for necessário considerar este ponto, fá-lo-emos mais tarde. — Então, dirigindo-se a Drukker: — O senhor voltou do seu passeio um pouco antes das onze, conforme ouvi, e entrou em sua casa pela porta principal.

— Exato.

— Notou o senhor algo de extraordinário, esta manhã, por casualidade?

— Não vi nada mais do que lhe disse.

— E o senhor está seguro de ter ouvido a sua mãe gritar perto das onze e meia?

Vance permaneceu imóvel ao fazer-lhe esta pergunta, porém em sua voz se produziu uma nota ligeiramente distinta, fazendo com que Drukker se sobressaltasse um pouco.

Inclinou para frente seu corpo rechonchudo e olhou Vance com ameaçadora fúria. Seus olhinhos redondos faiscavam e seus lábios se moveram convulsivamente. Suas mãos trêmulas se dobraram e espalmaram como as de um homem em paroxismo.

— Que pretende o senhor? — perguntou com voz estridente de falsete. — Sim, ouvi-a gritar. A mim não interessa se ela o confirme ou negue. Mais ainda, eu a ouvi caminhar em seu quarto. Ela estava em seu quarto, compreenda-o bem, e eu estava no meu, entre as onze e as doze. E o senhor não pode provar outra coisa. Além do mais, não vou permitir que o senhor ou seja lá quem for me interrogue a respeito do que eu fazia ou onde estava... Não podem meter-se no que não lhes importa... estão ouvindo, senhores?

Sua ira era tão insana que eu pensei que ele fosse arrojar-se contra Vance. Heath se havia posto em pé, avançando, percebendo o perigo potencial do homem. Entretanto, Vance não se moveu. Continuou fumando languidamente e, quando a fúria do outro desapareceu, disse tranqüilamente e sem a mínima emoção:

— Não são necessárias mais perguntas, Sr. Drukker. E, verdadeiramente, não tem por que se incomodar. O fato é que me ocorreu que o grito da senhora sua mãe podia ajudar a estabelecer a hora exata do crime.

— Que tem que ver o grito dela com a hora da morte do Sr. Robin? Não lhes disse ela que não viu nada? — Drukker parecia exausto e se apoiou fortemente contra a mesa.

— Neste instante apareceu no umbral o professor Dillard. Atrás dele, Arnesson.

— Que sucede? — perguntou o professor. — Ouvi barulho aqui e desci. — Olhou friamente Drukker. — Não sofreu Belle bastante já para que você venha agora assustá-la?

Vance se havia levantado, porém, antes que pudesse falar, Arnesson avançou e moveu o seu dedo como que repreendendo Drukker.

— Adolph, é necessário que saiba conter-se. Você toma a vida com tão abominável seriedade... Você trabalhou tanto tempo com as magnitudes dos espaços interestelares que devia ter algum senso de proporção. Por que dar tanta importância a esta futilidade da vida sobre a terra? Drukker respirava ofegantemente.

— Esses porcos... — começou dizendo.

— Oh, meu caro Adolph! — Arnesson cortou-lhe a palavra. — Toda a raça humana está constituída de porcos. Por que particularizar?... Vamos, acompanhá-lo-ei à sua casa. — E segurando Drukker firmemente pelo braço, conduziu-o para baixo.

— Sentimos muito tê-lo incomodado, senhor — disse Markham ao professor Dillard. — O homem alterou-se por alguma razão desconhecida. Estas investigações são das mais desagradáveis, mas esperamos terminar muito breve.

— Assim o espero, Markham. E a respeito de Belle, tratem de evitar-lhe todo incômodo. Desejo falar com os senhores antes de irem.

Quando o professor Dillard se retirou para cima, Markham passeou, de um lado para outro da sala, com o cenho franzido e com as mãos nas costas.

— Que idéia tem de Drukker? — perguntou, detendo-se diante de Vance.

— Decididamente um tipo pouco agradável. Um enfermo física e mentalmente. Embusteiro congênito. Todavia astuto... oh, malditamente astuto. Um cérebro anormal... como amiúde se encontra nos aleijados do seu tipo. Às vezes, inclinam-se para um gênio construtivo, como no caso de Steinmetz, porém, muito freqüentemente tendem para uma especulação abstrusa, sobre linhas impraticáveis, como acontece com Drukker. Entretanto, nosso interrogatório deu seus frutos. Ele está ocultando algo que lhe agradaria dizer, porém não se atreve.

— Naturalmente, é possível — replicou Markham em tom de dúvida. — É muito suscetível no que se refere àquela hora, entre as onze e doze. E durante todo o tempo, olhava para você como um gato selvagem.

— Como uma doninha — corrigiu Vance. — Sim, eu estava percebendo seus olhares lisonjeiros.

— Apesar de tudo, não creio que tenha esclarecido nenhum ponto.

— Não — concordou Vance. — Não é muito o que sabemos, porém, pelo menos, temos alguma bagagem a bordo. Nosso excitável mago das matemáticas abriu algumas linhas de especulação muito interessantes. E a Sra. Drukker é bastante prolifera em possibilidades. Se soubéssemos o que eles juntos sabem, poderíamos encontrar a chave deste caso estúpido.

Heath estivera durante a hora passada observando com triste e fatigante desdém os procedimentos empregados. Agora, porém, mostrava-se combativo.

— Devo dizer-lhe, Sr. Markham, que estamos perdendo tempo. Para que servem todas essas conversas? É de Sperling que precisamos, e quando meus agentes o trouxerem e fizerem-no suar um pouco, teremos material de sobra para uma acusação. Estava enamorado da Srta. Dillard e tinha ciúmes de Robin... não só pela moça, como porque Cochrane sabia lançar essas flechas com maior destreza do que ele. Aqui mesmo brigaram. O professor ouviu-os. Sperling estava embaixo com Robin, segundo a evidência, uns minutos antes do assassinato...

— E — ajuntou Vance ironicamente — o nome dele significa "pardal". Quod erat demonstrandum. Não, sargento, isso é demasiado fácil. Desenvolve-se como um jogo de Canfield com as cartas empilhadas, visto que isto foi planejado com demasiado cuidado para que a suspeita recaísse diretamente sobre o culpado.

— Eu não vejo nenhum plano cuidadoso nisto — persistiu Heath. — Esse Sperling se irrita, levanta um arco, tira uma flecha da parede, segue Robin, e lá fora então atravessa-lhe o coração, fugindo em seguida.

Vance suspirou.

— Você é demasiado ingênuo para este mundo malvado, sargento. Se as coisas sucedessem com semelhante prontidão e candura, a vida seria muito simples... e penosa. Porém, não foi esse o modus operandi do assassinato de Robin. Em primeiro lugar, ninguém poderá disparar uma flecha contra um alvo humano móvel e dar exatamente entre as costelas sobre o ponto vital do coração. Segundo, existe essa fratura do crânio de Robin. Podia ter sido feita ao cair, porém não é provável. Terceiro, o chapéu dele estava a seus pés, o que não teria acontecido se a queda fosse natural. Quarto, o punho da flecha está tão amassado que duvido de que sustentaria um cordel. Quinto, Robin dava o rosto para a flecha, e enquanto Sperling fazia a pontaria com o arco, teria tido tempo de gritar e pôr-se a salvo. Sexto... — Vance fez uma pausa, enquanto acendia um cigarro. — Por Deus, sargento! Havia omitido algo. Quando a um homem lhe atravessam o coração, é certo que corre sangue de imediato, especialmente quando a extremidade da arma é maior do que o cabo e não há um tampão adequado para a abertura. Olhe! É possível que você encontre algumas manchas de sangue no piso da sala do clube... provavelmente perto da porta.

Heath duvidou, porém só momentaneamente. A experiência lhe havia ensinado há muito tempo que as sugestões de Vance não eram para ser tratadas com desprezo e, com um grunhido bem-humorado, se levantou e desapareceu na direção dos fundos da casa.

— Creio, Vance, que começo a entender o que você quer dizer — observou Markham com um olhar ofendido. — Mas, Santo Deus! Se a morte de Robin aparentemente de um flechaço fosse uma montagem teatral ex post fact, então estamos diante de alguma coisa demasiadamente diabólica.

— Foi obra de um maníaco — declarou Vance com sobriedade não habitual. — Não, porém, o maníaco convencional que se imagina ser Napoleão, mas um louco com um cérebro tão colossal que levou o juízo a um, falando humanamente, reductio ad absurdum... a um ponto em que o próprio humor se converte em uma fórmula de quatro dimensões.

Markham fumava vigorosamente, perdido em meditações.

— Espero que Heath não encontre nada — disse ele por fim.

— Por quê... em nome do céu? — replicou Vance. — Se não houver evidência material de que Robin encontrou seu fim na sala do clube, isso só fará com que o problema seja mais difícil do ponto de vista legal.

A evidência material, porém, lá estava. O sargento voltou minutos depois, cabisbaixo e nervoso.

— Raios, Sr. Vance! — explodiu ele. — O senhor tinha razão. — Não procurou ocultar a sua admiração. — Não há sangue no chão, mas sim uma mancha escura no cimento e sinais de que alguém a esteve esfregando com um pano molhado hoje. A mancha ainda não está seca. E fica bem perto da porta, onde o senhor havia dito. E o que é mais suspeitoso é que puseram um tapete em cima. Mas isto não quer dizer que Sperling não tenha nada com o assunto — disse ele belicosamente. — Ele podia ter disparado a flecha, dentro de casa, contra Robin...

— E depois limpou o sangue, secou o arco e a flecha fora, antes de ir... O tiro de flecha, para começar, sargento, não é um esporte interno. E Sperling sabe-o demasiado bem para procurar matar alguém com um flechaço. Um golpe tal como o que terminou com a memorável carreira de Robin teria sido uma casualidade pura. Nem o próprio Teucer o teria conseguido com toda a segurança... e, segundo Homero, Teucer era o campeão de arco-e-flecha entre os gregos.

No momento em que falava, Pardee cruzou pelo vestíbulo, em seu caminho para fora. Apenas chegara à porta da rua, Vance levantou-se de súbito e encaminhou-se para o umbral.

— Sr. Pardee, um momento por favor.

O interpelado virou-se com ar de graciosa complacência.

— Há uma pergunta mais que gostaríamos de fazer-lhe — disse Vance. — O senhor mencionou que viu Sperling e Beedle saírem daqui esta manhã pelo portão do muro. Está certo de que não viu nenhuma outra pessoa?

— Seguríssimo. Isto é, não me recordo de ter visto outra pessoa?

— Eu pensava particularmente no Sr. Drukker.

— Oh, Drukker? — Pardee sacudiu a cabeça com suave ênfase. — Não, pois de outro modo, eu me lembraria. Mas compreenda que poderia ter entrado uma dúzia de pessoas sem que eu as tivesse visto.

— É muito certo, muito certo — murmurou Vance com indiferença. — A propósito, a que classe de enxadristas pertence o Sr. Drukker?

Pardee mostrou certa surpresa.

— Praticamente, não é um jogador no verdadeiro sentido da palavra — explicou ele com cuidadosa precisão. — É um analista excelente, não obstante, e entende a teoria do jogo como ninguém. Mas não tem muita prática no tabuleiro.

Assim que Pardee se foi embora, Heath dirigiu um olhar triunfante a Vance.

— Noto, senhor, que não sou eu o único a quem interessa verificar o álibi do corcunda.

— Ah, porém há uma diferença entre comprovar um álibi e exigir que a pessoa mesma o comprove.

Nesse instante, abriu-se a porta da frente. Ouviram-se no vestíbulo fortes passos e no umbral apareceram três homens. Dois eram evidentemente detetives e ladeavam um jovem alto, de bom porte, de uns trinta anos de idade.

— Detivemo-lo, sargento — anunciou um dos detetives com um sorriso de satisfação. — Daqui foi diretamente para casa e estava fazendo as malas quando o apanhamos.

Os olhos de Sperling percorreram o quarto com apreensão cheia de ira.

Heath havia-se colocado diante do homem mirando-o triunfantemente, de cima a baixo.

— Bem, jovem. Você pensou que podia escapar, não?

— O cigarro do sargento subia e abaixava entre seus lábios enquanto falava.

As faces de Sperling ruborizaram-se e ele apertou a boca tenazmente.

— Então você não tem nada a dizer? — continuou falando Heath, segurando o queixo e com uma expressão feroz.

— Por ventura é mudo? Bem, já o faremos falar. — Voltou-se para Markham. — Que lhe parece, senhor? Levo-o para a Polícia Central?

— Talvez o Sr. Sperling não objete a responder aqui a umas quantas perguntas — disse tranqüilamente Markham. Sperling estudou durante um pouco o procurador do distrito. Depois dirigiu seu olhar para Vance, que meneou a cabeça animando-o.

— Que é que querem que eu diga? — perguntou ele com um evidente esforço para dominar-se. — Estava-me preparando para excursionar durante meu fim-de-semana, quando estes rufiões entraram violentamente em minha casa. E sem nenhuma palavra esclarecedora, nem sequer dando-me a oportunidade de falar com alguém de minha família, trouxeram-me para cá. Agora falam de levar-me à Central de Polícia. — Lançou a Heath um olhar de desafio. — Perfeitamente, leve-me lá... porém você pagará por isso.

— A que horas saiu daqui esta manhã, Sr. Sperling? — A voz de Vance era suave e insinuante e suas maneiras tranqüilizadoras.

— Cerca de onze e quinze — respondeu o indivíduo. — A tempo de tomar o trem de Scardale das onze e quarenta na estação Grande Central.

— E o Sr. Robin?

— Não sei a que hora saiu Robin. Disse que ia esperar Belle... a Srta. Dillard. Eu o deixei na sala do clube.

— Viu o Sr. Drukker?

— Sim, porém um minuto. Estava ali quando Robin e eu descemos; mas ele saiu imediatamente.

— Pelo portão do muro? Ou pelo campo de exercícios?

— Não me recordo... para dizer a verdade não prestei atenção... Mas, diga-me: a que vem tudo isto?

— O Sr. Robin foi assassinado esta manhã — disse Vance — perto das onze horas.

Os olhos de Sperling pareciam saltar das órbitas.

— Robin morto? Meu Deus!... Quem... quem o matou?

Os lábios do homem estavam secos, e ele os umedecia com a língua.

— Ainda não sabemos — respondeu Vance. — Atravessaram-lhe o coração com uma flecha.

Essa notícia deixou Sperling aturdido. Seus olhos moveram-se vagamente de um lado a outro e ele levou a mão ao bolso em busca de cigarro.

Heath se acercou mais dele e estendeu seu queixo para a frente.

— Pode ser que você saiba quem matou... com arco e flecha!

— Por que... por que pensa você que eu saiba? — tartamudeou Sperling.

— Bem — replicou o sargento implacavelmente —, não estava você com ciúmes de Robin? Você discutiu com ele acaloradamente nesta mesma sala, sendo a Srta. Dillard a causa não? E você esteve a sós com ele pouco antes de o matarem, não? E você é um bom atirador de flecha, não é? Por isto creio que você há de saber algo. Vamos! Não oculte nada. Ninguém mais senão você podia fazê-lo. Você brigou com ele por causa da moça e foi você a última pessoa vista com ele... só uns poucos minutos antes de ele ser morto. E que outro homem que não fosse um campeão como você podia matá-lo com arco e flecha? Apanhamos você.

Uma luz estranha iluminou os olhos de Sperling e seu corpo tornou-se rígido.

— Diga-me — falou com voz forçada e artificial — você encontrou o arco?

— Creio que sim. — Heath riu desagradavelmente. — No lugar onde você o deixou... no corredor.

— Como era o arco? — Sperling olhava como em sonho.

— Como era o arco? — repetiu Heath. — Um arco de tamanho regular...

Vance que havia estado observando fixamente, interrompeu:

— Creio compreender a pergunta, sargento. Era um arco de mulher, Sr. Sperling. De cerca de metro e meio. Mas bem leve... menos de quinze quilos de peso, diria eu.

Sperling respirou lenta e profundamente como um homem que se encoraja com alguma amarga resolução. Então seus lábios se separaram em um débil e triste sorriso.

— De que adianta? — perguntou ele com indiferença. — Pensei que tinha tempo de fugir... Pois sim, eu o matei.

Heath grunhiu com satisfação e sua maneira beligerante desapareceu imediatamente.

— Você tem mais senso do que eu pensava — disse ele com um tom quase paternal, fazendo sinais convencionais aos dois detetives. — Levem-no, rapazes. Usem o meu carro... está na rua. E metam-no na cadeia sem anotar o nome. Prefiro acusá-lo quando chegar ao gabinete.

— Vamos, rapaz — ordenou um dos detetives voltando-se para o vestíbulo.

Sperling, porém, não obedeceu imediatamente. Olhando para Vance, suplicou:

— Poderia... será que me permitiriam?... — começou a dizer.

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, Sr. Sperling. É melhor que o senhor não veja a Srta. Dillard. Não vale a pena afligi-la agora... Boa sorte.

Sperling voltou-se e, sem dizer nenhuma palavra mais, saiu entre os agentes.


VII

 

VANCE CHEGA A UMA CONCLUSÃO

 

(Sábado, 2 de abril — 15h30)

 

Assim que ficamos sós, Vance levantou-se, e espreguiçando-se, dirigiu-se à janela. A cena que acabava de se verificar, com seu alarmante clímax, nos havia deixado um tanto aturdidos. Nossos espíritos estavam ocupados, eu penso, com a mesma idéia. E quando Vance falou era como se expressasse nossos pensamentos.

— Ao que parece, voltamos à infância...

 

"Eu", disse o Pardal,

"Com meu arco-e-flecha,

Matei Cock Robin..."

 

Voltou lentamente para a mesa do centro e apagou no cinzeiro o seu cigarro. Com o canto do olho mirou Heath.

— Por que está tão pensativo, sargento? Deveria estar cantando melodias e dançando uma alegre tarantela. Não confessou ele seu vil e horrível feito? Não o enche de alegria saber que o culpado logo se consumirá de desgosto em uma cela?

— Para dizer a verdade, Sr. Vance — admitiu Heath com tristeza — não estou muito satisfeito. Esta confissão saiu demasiado fácil e... bem, vi muitos indivíduos desfilarem diante de mim, porém este, não sei por que, não me parece culpado. Realmente não sei o que dizer.

— De qualquer forma — manifestou Markham esperançosamente — sua confissão absurda esfriará a curiosidade dos jornais, dando-nos liberdade para prosseguir nossa investigação. Este caso vai levantar uma celeuma infernal; mas, enquanto a imprensa acreditar que o culpado está preso, não nos incomodará, perguntando-nos como vão as investigações.

— Eu não digo que ele seja inocente — falou Heath belicosamente, argumentando obviamente contra as suas mais íntimas convicções. — Temo-lo sobrecarregado de perguntas e penso que, confessando seu crime, no dia do julgamento os jurados considerariam essa confissão uma atenuante. Talvez ele não seja tão tolo, afinal.

— Eu não penso assim, sargento — replicou Vance. — O trabalho mental do moço foi espantosamente fácil. Sabia que Robin esperava a Srta. Dillard. Também sabia que ela lhe dera, por assim dizer, um despacho de improcedência à noite passada. Sperling evidentemente não tinha uma boa opinião de Robin, e quando se inteirou de sua morte por mãos de alguém que empunhava um arco pequeno e leve, chegou à conclusão de que Robin se havia excedido com a moça e ela lhe cravara uma flecha no coração. Ao nosso nobre pardal vitoriano não lhe restou senão fazer golpear seu peito juvenil e exclamar: "Ecce homom!"... É desolador.

— Bem, seja como for — grunhiu Heath —, eu não vou pô-lo em liberdade. Se o Sr. Markham não quer processá-lo, deve ter suas razões.

Markham olhou o sargento com certa tolerância. Percebia o nervosismo que o dominava e, graças à sua grande bondade, não se deu por ofendido.

— Embora, sargento — manifestou bondosamente — eu espere que você não se oponha continuar comigo a investigação, ainda que eu não me decida por enquanto a processar Sperling.

— Heath sentiu-se muito pesaroso e, levantando-se bruscamente, encaminhou-se para Markham, estendendo-lhe a mão, ao mesmo tempo que dizia:

— Bem sabe o senhor que estou às suas ordens!

Markham tomou a mão que o sargento lhe estendia e pôs-se em pé com um sorriso indulgente.

— Deixarei o caso em suas mãos. Tenho que fazer em meu escritório, pois Swacker está-me esperando. (1) — Encaminhou-se algo deprimido até o vestíbulo. — Antes de ir-me, explicarei a situação à Srta. Dillard e ao professor. Alguma outra idéia, sargento?

(1) Aos sábados, trabalhava-se meio expediente no escritório do procurador do distrito. Swacker era secretário de Markham.

 

— Sim, pretendo examinar bem este capacho que foi usado para limpar o piso embaixo. E irei à sala do clube com um pente fino. Também apertarei de novo os parafusos à cozinheira e ao mordomo; especialmente, à primeira, pois devia ter estado muito perto, quando se fez este sujo trabalho... Depois, toda a rotina... investigações pela vizinhança e coisas assim.

— Comunique-nos os resultados. Estarei no Club Stuyvesant, logo mais e amanhã à tarde.

Vance fora ter com Markham na arcada.

— Ouça, camarada — disse ele enquanto nos dirigíamos às escadas — não passe por alto esta nota secreta que deixaram no buraco da caixa de correspondência. Tenho uma forte suspeita psíquica de que possa ser a chave de tudo. Não seria demais se perguntássemos ao professor Dillard e a sua sobrinha se a palavra "Bispo" tem para eles algum sentido especial. Essa assinatura diocesana quer dizer algo, sem dúvida alguma.

— Pois eu não tenho tanta certeza — replicou Markham com ar incrédulo. — Para mim não tem significado algum. Mas seguirei as suas indicações.

Nem o professor, nem a Srta. Dillard puderam, entretanto, lembrar-se de alguma associação pessoal com a palavra "Bispo". O professor estava inclinado a pensar com Markham que a nota não teria significado nenhum em relação ao caso em foco.

— Na minha opinião — disse ele — é uma peça de melodrama juvenil. Não é provável que a pessoa que matou Robin adotasse um pseudônimo e escrevesse notas acerca de seu crime. Eu não conheço os costumes dos criminosos, mas tal conduta parece-me ilógica.

— O crime, sim, foi ilógico — aventurou Vance agradavelmente.

— Não se pode dizer que uma coisa seja ilógica, senhor

— replicou asperamente o professor — quando se ignoram as premissas de um silogismo.

— Exatamente. — O tom de voz de Vance era calculadoramente cortês. — Por conseguinte, a nota mesma pode não ser desprovida de lógica.

Markham diplomaticamente mudou o rumo da conversação.

— Vim particularmente para dizer-lhe, professor, que o Sr. Sperling esteve aqui há momentos; e, quando lhe disseram da morte do Sr. Robin, confessou ter sido ele o autor...

— Raymond confessou! — murmurou a Srta. Dillard. Markham olhou para a moça com simpatia.

— Para lhes ser franco, eu não acreditei no Sr. Sperling. Alguma idéia errônea de cavalheirismo conduziu-o indubitavelmente a admitir a culpabilidade do crime.

— Cavalheirismo? — repetiu ela, inclinando-se tensamente para a frente. — Que quer exatamente dizer com isto, Sr. Markham?

Foi Vance quem respondeu.

— O arco que se encontrou no local era de mulher.

— Oh! — A moça cobriu o rosto com as mãos e seu corpo se sacudia com os soluços.

O professor Dillard olhou-a desconsolado; e sua impotência tomou a forma de irritação.

— Que disparate é este, Markham? — perguntou ele.

— Qualquer atirador pode lançar flechas com arco de mulher... Este grande idiota! Por que tornar Belle infeliz com sua absurda confissão?... Markham, meu amigo, faça o que puder pelo rapaz.

Markham prometeu-lhe que o faria e nos levantamos para sair.

— A propósito, professor Dillard — disse Vance, detendo-se à porta. — Não vá interpretar-me mal, porém acho muito provável que a pessoa que se permitiu a zombaria de escrever à máquina essa nota, seja alguém que freqüenta esta casa. Há, por acaso, alguma máquina de escrever no prédio?

Era claro que o professor se ressentira com a pergunta de Vance, mas respondeu bastante cortesmente.

— Não, nem é do meu conhecimento que tenha tido alguma. Faz uns dez anos que me desfiz da minha, quando deixei a universidade. Quando preciso, mando tirar cópias numa agência.

— E o Sr. Arnesson?

— Nunca usou máquina de escrever.

Quando descíamos, encontramos Arnesson, que voltava da casa de Drukker.

— Acalmei o nosso Leibnitz local — anunciou com um suspiro exagerado. — Pobre Adolph! O mundo é demasiado para ele. Só está sereno quando se revolve nas fórmulas relativistas de Lorentz e Einstein. Mas, quando é arrastado à realidade, se desintegra.

— Talvez lhe interesse saber — disse Vance, com naturalidade — que Sperling acaba de confessar o crime.

— Já! — Arnesson deu gargalhadas. — Isso faz sentido. "Eu, disse o pardal..." Muito nítido. Entretanto, não sei como será do ponto de vista matemático.

— E desde que concordamos em pô-lo a par de tudo — continuou Vance — talvez seja útil para seus cálculos saber que temos motivos para crer que Robin foi assassinado na sala do clube, sendo levado para fora depois.

— Alegra-me sabê-lo. — Arnesson tornou-se momentaneamente sério. — Sim, isto pode afetar meu problema. — Acompanhou-nos até a porta principal. — Se houver alguma coisa em que eu possa servir-lhes, procurem-me.

Vance se havia detido para acender um cigarro, porém eu sabia, pelo aspecto lânguido do seu olhar, que estava formando alguma decisão. Lentamente se voltou para Arnesson.

— Sabe se o Sr. Drukker ou o Sr. Pardee têm máquina de escrever?

Arnesson sobressaltou-se um pouco e seus olhos piscaram astutamente.

— Ah! A nota do Bispo... Compreendo. Meramente um assunto de pormenores. Inteiramente certo. — Meneou a cabeça com satisfação. — Sim, ambos têm máquina de escrever. Drukker escreve incessantemente; e a correspondência de Pardee é tão volumosa como a de um astro de cinema. Também escreve tudo à máquina.

— Não seria muito incômodo — perguntou Vance — se o senhor pudesse conseguir um modelo do tipo de escrita de cada máquina e também uma amostra do papel que usam esses cavalheiros?

— Incômodo nenhum. — Arnesson parecia encantado com a incumbência. — Esta tarde o senhor terá tudo. Onde posso encontrá-lo?

— O Sr. Markham estará no Club Stuyvesant. O senhor poderá telefonar para lá, e ele pode providenciar...

— Por que se molestar em providenciar algo? Levarei tudo pessoalmente ao Sr. Markham. Ficarei encantado de fazê-lo. É uma carreira fascinante a de detetive.

Vance e eu voltamos para a casa no carro de Markham e este prosseguiu para a repartição. Às sete horas daquela noite, encontramo-nos os três no Club Stuyvesant para jantar; e às oito e meia estávamos sentados no canto favorito de Markham na ante-sala, fumando e tomando café.

Durante a refeição, não se falou nada sobre o caso. As últimas edições dos vespertinos traziam breves informações sobre a morte de Robin. Evidentemente Heath tinha conseguido desviar a curiosidade dos repórteres cortando-lhes as asas da imaginação. Estando fechado o gabinete do procurador do distrito, os repórteres não puderam bombardear Markham com perguntas, de modo que os últimos jornais do dia não puderam conseguir informações adequadas. O sargento tinha guardado bem a casa de Dillard, pois os repórteres não conseguiram aproximar-se de qualquer membro da criadagem.

Markham havia apanhado um exemplar da última edição do Sun quando vinha da sala de jantar para a ante-sala, lendo-o cuidadosamente enquanto sorvia seu café.

— Este é o primeiro eco débil — comentou tristemente. — Tremo ao pensar o que dirão os jornais de amanhã.

— Não há outra coisa a fazer senão suportá-los — sorriu Vance. — Assim que algum repórter sagaz perceber a combinação Robin — Pardal — Flecha, os editores de jornais da cidade ficarão loucos de alegria e em cada primeira página aparecerão os versos infantis.

Markham estava desalentado. Finalmente, indignado, deu um murro no braço da poltrona.

— Que diabo, Vance! Não permitirei que você esgote a minha paciência com essa idiotice de rimas infantis. — Logo acrescentou com a ferocidade da incerteza: — É uma mera coincidência, digo-lhe eu. Simplesmente, não pode ser outra coisa.

Vance suspirou.

— Convença-se contra sua vontade; você é da mesma opinião ainda, para parafrasear Butler. — Meteu a mão no bolso e tirou uma folha de papel. — Deixando de parte pro tempore tudo o que pertence à infância, apresento-lhe aqui uma cronologia edificante que fiz antes do jantar... Edificante? Bem, poderia sê-lo, se soubéssemos como interpretá-la.

Markham estudou o papel durante vários minutos. Vance havia escrito o seguinte:

9:00h — Arnesson saiu de casa para ir à biblioteca da Universidade.

9:15 h — Belle Dillard saiu de casa para ir jogar tênis.

9:30h — Drukker foi ver Arnesson.

9:50 h — Drukker desceu à sala do Clube.

10:00 h — Robin e Sperling permaneceram meia hora na sala da casa de Dillard.

10:30 h — Robin e Sperling desceram à sala do clube.

10:32 h — Drukker disse que saiu pelo portão do muro para passear no parque.

10:35 h — Beedle foi ao mercado.

10:55 h — Drukker disse que se retirou para sua casa.

11:15 h — Sperling saiu pelo portão do muro.

11:30h — Drukker disse que ouviu um grito de mulher no quarto de sua mãe.

11:35 h — O professor Dillard assomou ao balcão do quarto de Arnesson.

11:40h — O professor Dillard viu o corpo de Robin no campo de exercícios de tiro de flecha.

11:45 h — O professor Dillard telefonou para o gabinete do procurador do distrito.

12:25 h — Belle Dillard voltou do tênis.

12:30 h — A polícia chegou à casa de Dillard.

12:35 h — Beedle voltou do mercado.

14:00 h — Arnesson voltou da Universidade.

 

Portanto, Robin foi assassinado entre 11:15 (quando se retirou Sperling) e 11:40 (quando o professor Dillard descobriu o cadáver).

As outras pessoas que se sabe terem estado na casa durante esse tempo são Pyne e o professor Dillard.

A posição de todas as outras pessoas relacionadas de um modo ou outro com o assassinato era como se segue (conforme declarações e provas ora em mão):

 

1. — Arnesson esteve na biblioteca da Universidade entre 9:40 e 14:00 horas.

2. — Belle Dillard esteve na cancha de tênis entre 9:15 e 12:25.

3. — Drukker esteve no parque entre 10:32 e 10:55 e em seu estúdio das 10:55 em diante.

4. — Pardee esteve em sua casa toda a manhã.

5. — A Sra. Drukker esteve em seu quarto toda a manhã.

6. — Beedle esteve no mercado entre 10:35 e 12:35.

7. — Sperling estava a caminho da Grande Estação Central entre 11:15 e 11:40, quando então tomou um trem para Scarsdale.

Conclusão: — A menos que algum destes sete álibis seja desfeito, todo o peso da suspeita e por certo a culpabilidade real deve recair sobre um dos dois: Pyne ou o professor Dillard.

 

Quando Markham terminou de ler o papel, fez um gesto de exasperação.

— Toda a sua dedução é absurda — disse irritadamente — e sua conclusão é um non sequitor. A cronologia indica-nos a hora da morte de Robin, porém sua suposição de que uma das pessoas que vimos hoje seja necessariamente culpada é uma notória insensatez. Você ignora completamente a possibilidade de que alguém de fora tenha cometido o crime. São três os caminhos para chegar ao campo de exercícios e à sala do clube sem pôr os pés na casa: o portão do muro que dá para a Rua 75; o portão do outro muro que dá para a Rua 76, e a passagem entre os dois prédios de apartamentos que dá para a Riverside Drive.

— Oh, é altamente provável que uma dessas três entradas fosse usada — replicou Vance. — Porém, não omita o fato de que o mais retirado e, por conseguinte, o mais provável desses três meios de penetração, isto é, a passagem, é guardado por uma porta fechada, cuja chave ninguém, exceto algum membro da família Dillard, tem. Não posso conceber que um assassino entre por qualquer dos portões do muro com o risco de ser descoberto.

Vance inclinou-se para diante com um semblante sério.

— E Markham, há outras razões para que eliminemos estranhos ou gatunos casuais. A pessoa que enviou Robin de volta para seu Criador devia estar informada do que se passava na casa de Dillard esta manhã entre as onze e um quarto e as doze menos vinte. Sabia que Pyne e o velho professor estavam sós. Sabia que Belle Dillard não estava em casa. Também sabia que Beedle se achava ausente e que assim não poderia ouvi-lo, nem surpreendê-lo. Sabia que Robin — sua vítima — estava lá e que Sperling tinha-se retirado. Mais ainda, conhecia o plano do terreno, a situação da sala do clube, por exemplo; é demasiado claro que Robin foi assassinado naquela sala. Ninguém que não estivesse familiarizado com esses pormenores não se teria atrevido a entrar e preparar um assassinato espetacular. Digo a você, Markham, que foi alguém muito íntimo dos Dillards; alguém que pôde encontrar, exatamente esta manhã, todas essas condições.

— Que me diz do grito da Sra. Drukker?

— Ah, por certo, que quer que lhe diga? A janela da Sra. Drukker podia ter sido um fator que ao assassino tenha escapado. Ou talvez soubesse e decidisse correr esse único risco de ser visto. Além do mais, não sabemos se a senhora gritou ou não. Ela disse que não. Drukker disse que sim. Ambos têm um motivo ulterior para o que disseram a nossos confiantes ouvidos. Drukker pode ter-se referido ao grito como meio de provar que estava em casa entre as onze e as doze. E a Sra. Drukker pode ter negado como temor de que ele não estivesse. É uma verdadeira olla podrida. Mas não importa. O ponto principal a que eu desejo chegar é que foi um íntimo dos Dillards quem executou esse diabólico trabalho.

— Temos muito poucos dados que garantam esta conclusão — manifestou Markham. — O acaso pode ter desempenhado uma parte...

— Vamos, homem! O acaso pode responder a umas quantas permutações, mas não a vinte. E há ainda aquela nota deixada na caixa do correio. O assassino sabia até o segundo nome de Robin.

— Supondo, por hipótese, que o assassino tenha escrito a nota.

— Prefere você crer que algum engraçadinho soubesse do crime por telepatia ou por meio de um binóculo, se dirigisse rapidamente a uma máquina de escrever, compusesse um ditirambo, voltasse correndo à casa e sem nenhuma razão plausível assumisse o terrível risco de que alguém o visse deixar o papel na caixa?

Antes que Markham pudesse responder, Heath irrompeu na sala e dirigiu-se para onde estávamos. Sua preocupação e nervosismo eram patentes. Mal nos cumprimentou, foi logo entregando a Markham um envelope escrito à máquina.

— Foi recebido pelo World no correio vespertino. Quinan, o repórter policial do World, trouxe-me ainda há pouco e disse que o Times e o Herald também receberam cópias. As cartas foram seladas hoje à uma hora, o que quer dizer que provavelmente foram postadas entre as onze e as doze horas. E o que é pior, Sr. Markham, na vizinhança da casa de Dillard, isto é, na agência postal da Rua 69, Oeste.

Markham abriu o envelope. De repente seus olhos abriram-se desmedidamente e os músculos de seu rosto se contraíram. Sem levantar os olhos, passou a carta a Vance. Era uma simples folha de papel de máquina onde estavam escritas palavras idênticas às da nota encontrada na caixa do correio da casa de Dillard. Verdadeiramente, a comunicação era uma duplicata exata da outra: "Joseph Cochrane Robin está morto. Quem matou Cock Robin? Sperling significa pardal. — O BISPO".

Vance mirou apenas o papel.

— Isto é próprio do assassino, sabe? — disse ele indiferentemente. — O Bispo temia que o público não entendesse o seu gracejo, e por isso o explicou à imprensa.

— Gracejo, Sr. Vance? — perguntou Heath amargamente- — Não é a classe de gracejos a que estou acostumado. Este caso é coisa de louco...

— Exatamente, sargento, um gracejo estúpido.

Um rapaz uniformizado acercou-se do procurador distrital, inclinou-se sobre o seu ombro e discretamente lhe disse algo ao ouvido.

— Traga-o aqui imediatamente — ordenou Markham. E dirigindo-se a nós:

— É Arnesson. Provavelmente trará as amostras dos tipos de máquina. — Seu rosto obscureceu-se e ele olhou uma vez mais a nota que Heath tinha trazido. — Vance, — disse ele em voz baixa, — estou começando a crer que esse caso pode-se tornar tão terrível como você pensa. Quem sabe se o tipo é o mesmo...

Mas, quando a nota foi comparada com as amostras trazidas por Arnesson, nenhuma semelhança pôde ser encontrada. Não somente eram distintos os caracteres e as tintas como até o papel não era como o das amostras que Arnesson tinha tirado das máquinas de Pardee e Drukker.


VIII

 

SEGUNDO ATO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Não é necessário lembrar aqui a grande sensação que causou em todo o país o assassinato de Robin. Todos se recordam da importância que os jornais deram a tão estonteante tragédia. Designavam-na por diversos nomes. Alguns se referiam ao "assassinato de Cock Robin". Outros mais alusivos, porém menos exatos, chamavam-na "o assassinato de Mother Goose". Mas a assinatura do bilhete à máquina atraía fortemente a atenção jornalística para o mistério; e com o tempo a morte de Robin passou a ser conhecida como o "misterioso assassinato do Bispo". Sua combinação estranha e terrível de horror e linguagem infantil inflamou a imaginação do público, e as implicações sinistras e insanas de seus pormenores afetaram todo o país, como se fosse um grotesco pesadelo cuja atmosfera não se pudesse fazer desaparecer.

Durante a semana seguinte à descoberta do corpo de Robin, os detetives da Seção de Homicídios, da mesma forma que os destacados junto ao gabinete do procurador do distrito, estiveram ocupados dia e noite, em ativas investigações. O recebimento da duplicata das notas do Bispo pelos principais matutinos de Nova York havia dissipado todas as idéias que Heath pudesse ter sobre a culpabilidade de Sperling; e, embora se recusasse a concordar oficialmente com a inocência do jovem, lançou-se com igual gosto e obstinação na tarefa de encontrar um culpado mais plausível. A investigação que organizou e dirigiu foi tão completa como a do caso Greene. Nenhum caminho que encerrasse a esperança mais insignificante foi omitido; e o relatório que redigiu teria causado alegria mesmo aos criminalistas meticulosos da Universidade de Lausanne. Na tarde do dia do crime, ele e seus homens estiveram procurando o pano usado para limpar o sangue derramado na sala do clube. Não o encontraram. Também foi feito um exame minucioso da referida sala na esperança de encontrarem-se outras pistas. Entretanto, embora Heath tenha posto a tarefa nas mãos de peritos, foi nulo o resultado. A única coisa que puderam averiguar é que o capacho que ficava perto da porta tinha sido removido para tapar o lugar onde estivera o sangue no piso de cimento. Este fato, todavia, comprovou simplesmente a primeira observação do sargento.

A informação post-mortem do Dr. Doremus deu força à teoria agora reconhecida e aceita de que Robin tinha sido assassinado na sala do clube e em seguida colocado fora. A autópsia demonstrou que o golpe na base do crânio fora particularmente violento e desferido com um instrumento pesado e redondo, resultando uma fratura com depressão muito distinta da fratura fissurada, causada quando o golpe é dado com uma superfície plana. Procurou-se infrutiferamente o instrumento com que golpearam a vítima.

Beedle e Pyne foram interrogados várias vezes por Heath. Nada de novo se apurou. Pyne insistiu nas suas declarações de que passara toda a manhã no quarto de Arnesson, com exceção de umas breves ausências para ir ao roupeiro e à porta da frente, mantendo-se tenazmente na sua negativa de que houvesse tocado o corpo ou o arco quando o professor Dillard o mandou à procura de Sperling. Entretanto, o sargento não estava de todo satisfeito com o depoimento do homem.

— Este velho glutão e manhoso esconde alguma coisa na manga — disse a Markham com desgosto. — Para fazê-lo falar é preciso uma boa mangueira e a cura de água.

Uma investigação em todas as casas da Rua Setenta e Cinco entre West End Avenue e Riverside Drive foi procedida na esperança de ser encontrado um inquilino que tivesse visto alguém entrar ou sair da casa de Dillard pelo portão do muro, durante aquela manhã. Mas nada se conseguiu com essa diligência incômoda. Ao que parece, Pardee foi o único morador dentro do raio de visão da casa de Dillard que observava alguém na vizinhança.

Enfim, depois de vários dias de árduas investigações, o sargento concluiu que devia prosseguir sem nenhuma ajuda exterior ou fortuita.

Os vários álibis das sete pessoas que Vance havia relacionado numa anotação para Markham foram examinados tão exatamente como as circunstâncias o permitiam.

Foi obviamente impossível verificá-los em todos os detalhes, pois a maioria estava baseada unicamente nas declarações das pessoas envolvidas. Além disso, a investigação teve de ser feita com o maior cuidado para evitar que se levantassem suspeitas. Os resultados dessas inquirições foram os seguintes:

1. Arnesson havia sido visto na biblioteca da Universidade por várias pessoas, inclusive por um bibliotecário-auxiliar e por dois estudantes. Porém, o tempo indicado nesses depoimentos não era nem consecutivos, nem específico em relação à hora.

2. Belle Dillard havia jogado várias partidas de tênis nas quadras públicas da Rua 119 esquina com o Riverside Drive, mas como estavam mais de quatro pessoas com ela, teve de ceder duas vezes o seu lugar a uma amiga, não podendo nenhum dos jogadores afirmar positivamente se havia permanecido nas quadras durante estes dois períodos.

3. A hora em que Drukker deixou a sala do clube foi determinada definitivamente por Sperling; porém não foi encontrado ninguém que o tivesse visto depois. Ele admitiu não haver encontrado nenhum conhecido no parque, mas insistiu em que se deteve alguns minutos antes para brincar com algumas crianças que ele não conhecia.

4. Pardee tinha estado só em seu estúdio. Sua velha cozinheira e o criado japonês mantiveram-se na parte traseira da casa, não vendo seu patrão senão à hora do almoço. O álibi dele, portanto, foi puramente negativo.

5. A palavra da Sra. Drukker teve de ser aceita em relação aos lugares onde ela esteve naquela manhã, pois ninguém a havia visto entre 9:30, hora em que Drukker foi ver Arnesson, e 13 horas, quando a cozinheira serviu o almoço.

6. O depoimento de Beedle foi verificado a fundo e achado satisfatório. Pardee a tinha visto sair da casa às 10:35, e vários mascates do Mercado de Jefferson lembraram-se de tê-la visto entre onze e doze horas.

7. O fato de ter Sperling tomado o trem das 11:40 para Scarsdale foi comprovado; por conseguinte, saiu da casa de Dillard à hora que ele disse, isto é, 11:15. A determinação deste ponto, contudo, era um assunto meramente de rotina, pois ele tinha sido praticamente eliminado do caso. Todavia, se — como Heath explicara — não tivesse ele tomado o trem das 11:40, chegaria a ser de novo uma possibilidade importante.

Prosseguindo nas suas investigações por linhas mais gerais, o sargento entrou nas histórias e associações das várias pessoas envolvida. A tarefa não era difícil. Todos eram bem conhecidos, de modo que as informações concernentes aos mesmos eram de pronto obtidas; porém, nenhum item foi desenterrado que trouxesse, mesmo que remotamente, alguma luz sobre o assassinato de Robin. Nada se soube que desse a mais leve idéia da causa do crime. E depois de uma semana de investigar e especular intensivamente, o assunto estava ainda rodeado de um mistério impenetrável.

Sperling não tinha sido posto em liberdade. A evidência prima facie contra ele, combinada com a sua absurda confissão, tornou impossível tal ato por parte das autoridades. Markham, contudo, havia entretido uma conferência extra-oficial com os advogados que o pai de Sperling contratara para defesa do filho, havendo chegado, segundo creio, a uma espécie de "acordo de honra", pois, embora o Estado nada tivesse feito para processá-lo (apesar de se achar o Grande Júri funcionando nesse tempo), os advogados da defesa não impetraram qualquer habeas corpus a favor do acusado. Todas as indicações assinalavam a suposição de que Markham e os advogados de Sperling esperavam que o verdadeiro culpado fosse detido.

Markham havia entrevistado várias vezes os membros da criadagem da casa de Dillard, num esforço persistente por obter luz sobre um ponto qualquer que pudesse levar a um caminho de investigação frutífera. Pardee havia sido intimado a comparecer ao gabinete do procurador do distrito para prestar seu testemunho a respeito do que havia observado da sua janela, na manhã da tragédia. A Sra. Drukker foi outra vez interrogada, porém não só negou enfaticamente haver olhado pela janela, como zombou da idéia de que tivesse gritado.

Quando interrogaram novamente Drukker, este modificou um pouco o seu depoimento anterior. Disse que talvez se tivesse equivocado a respeito da origem do grito e sugeriu que podia ter sido na rua ou em algum dos apartamentos vizinhos. Em verdade, disse ele, era pouco provável que sua mãe desse um grito, pois quando ele se afastou da porta do quarto, pouco depois, ela cantava uma velha canção Hänsel und Gretel, de Humperdinck.

Markham, convencido de que nada mais se podia extrair de Drukker e sua mãe, terminou concentrando toda a sua atenção na casa dos Dillards.

Arnesson assistiu às conferências preliminares levadas a efeito no gabinete de Markham. E, apesar de suas observações loquazes e cépticas, parecia encontrar-se no mesmo estado de perplexidade que nós. Vance motejou com bom humor sobre a fórmula matemática que ia esclarecer o caso, porém Arnesson insistiu em que a fórmula não podia ser desenvolvida enquanto todos os termos da equação não tivessem sido encontrados. Parecia considerar este assunto como uma espécie de diversão infantil. Markham, em várias ocasiões, expandira a sua exasperação. Censurou Vance por ter feito de Arnesson um auxiliar extra-oficial na investigação, porém Vance se defendeu alegando que Arnesson, mais cedo ou mais tarde, poderia fornecer alguma informação aparentemente estranha que viesse a servir como vantajoso ponto de partida.

— Sua teoria matemático-criminal é sem dúvida uma tolice — disse Vance. — A psicologia, não a ciência abstrata, descomporá, no final das contas, esta mixórdia em seus elementos. Mas precisamos de alguns materiais para continuar, e Arnesson conhece o interior da casa de Dillard melhor do que qualquer um de nós. Conhece os Drukkers e Pardee também. Sem precisar acrescentar que é um homem que mereceu as honras acadêmicas e possui uma inteligência sutil. Enquanto seu cérebro e sua atenção estiverem postos neste caso, há probabilidades de encontrar-se alguma coisa de vital importância para nós.

— Pode ser que você tenha razão — grunhiu Markham. — Mas a atitude zombeteira deste homem me ataca os nervos.

— Seja mais católico — retrucou Vance. — Considere suas ironias em relação a suas especulações científicas. Que poderia ser mais natural para um homem que projeta seu espírito constantemente nas vastas regiões interplanetárias, e lida com infinitas e hiperfísicas dimensões, do que considerar irrisòriamente as pequenezas desta vida? Grande rapaz este Arnesson! Talvez não seja muito familiar e agradável, mas sem dúvida muito interessante.

Vance havia tomado o caso com desusada seriedade. As traduções de seu Menandro tinham sido definitivamente postas de lado. Ele tornou-se pensativo e mal-humorado — seguro sinal de que seu espírito estava ocupado com um problema absorvente. Depois de jantar, todas as noites, ia à sua biblioteca e demorava-se a ler durante várias horas, não os volumes clássicos e preciosos sobre arte com os quais geralmente passava o seu tempo, e sim livros como A Psicologia da Loucura, de Bernard Hart; A Inteligência e sua Relação com o Desconhecido, de Freud; Psicologia Anormal e Emoções Recalcadas, de Coriat; Comicidade e Humor, de Lippo; O Assassinato Complexo, de Daniel A. Huebcch; As Obsessões e a Psicas-tenia, de Janet; Aritmomania, de Donath; O Desejo Alcançado e os Contos de Fadas, de Riklin; A Importância Forense da Representação de Força, de Leppman; Sobre a Inteligência, de Kuno Fischer; Psicologia Criminal, de Erich Wulffen; A Loucura do Gênio, de Hollenden, e Os Jogos dos Seres Humanos, de Groos.

Ele passava horas a fio revisando relatórios policiais. Foi duas vezes à casa de Dillard, e, em uma ocasião, visitou a Sra. Drukker, acompanhado de Belle Dillard. Uma noite teve uma longa conversa com Drukker e Arnesson sobre a concepção do espaço físico como uma pseudo-esfera lobatchewskiana, de Sitter, sendo seu objetivo, penso eu, familiarizar-se com a mentalidade de Drukker. Leu também o livro deste último, Linhas Mundiais no Contínuo Multidimensional, e passou quase um dia todo estudando a Análise do Gambito Pardee, de Janowski e Tarrasch.

No domingo — oito dias depois do assassinato — disseme:

— Van, este problema é de uma sutileza inacreditável. Nenhuma investigação comum poderá resolvê-lo. Acha-se em uma região estranha do cérebro; e a sua infantilidade superficial é o ponto mais terrível e desconcertante. Tampouco o seu autor vai-se contentar com um estratagema singelo. A morte de Cock Robin não serve a nenhum fim definitivo. A imaginação perversa que concebeu esse crime bestial é insaciável. E, a menos que pudéssemos expor o mecanismo psicológico anormal por trás disso tudo, haverá mais dessas piadas amargas...

Na manhã seguinte, seu prognóstico se realizou. Fomos ao gabinete de Markham às onze horas, para ouvir o relatório de Heath e estudar novos meios de ação. Embora tivessem decorrido nove dias desde a morte de Robin, nenhum progresso se havia feito, e os jornais faziam cada vez mais acerbas críticas à polícia e ao gabinete do procurador criminal. Foi, pois, com uma considerável depressão que Markham nos recebeu naquela manhã de segunda-feira. Heath não havia chegado ainda; mas, minutos depois, quando apareceu, era evidente que ele estava também desanimado.

— Cada vez que nos movemos, esbarramos contra um muro — queixou-se ele, quando resumiu os resultados das atividades de seus subordinados. — Não há nenhum indício novo: e só podemos pensar em Sperling, fora dele não há outro. Estou quase crendo que tenha sido algum vagabundo que procurava roubar a sede do clube e, ao ver-se descoberto, complicou-nos a vida.

— Esses vagabundos, sargento, — replicou Vance, — não têm imaginação e são desprovidos de senso de humor, o que não sucede com a pessoa que mandou Robin fazer a viagem eterna. Não só o matou como converteu o ato em uma insana pilhéria, escrevendo depois cartas explicativas à imprensa, para que o público não perdesse nenhum pormenor. Acha que seja esse o procedimento de um assassino comum?

Heath fumou em silêncio durante alguns minutos, com um ar grave. Por fim, dirigiu a Markham um olhar de exasperado terror.

— Parece incrível o que tem sucedido nesta cidade ultimamente — queixou-se ele. — Sem ir mais longe, ainda esta manhã, foi encontrado morto por um balaço em Riverside Park perto da Rua 84, um indivíduo chamado Sprigg. Em seu bolso, havia dinheiro... não lhe tiraram nada. Tinham acabado de o matar. Era um rapazinho... estudante da Universidade de Colúmbia. Morava com os pais. Não tinha inimigos. Saíra para dar seu passeio costumeiro, antes de ir à aula. Um pedreiro encontrou-o morto meia hora depois. — O sargento mastigava, com raiva, seu charuto. — Agora temos que esclarecer este homicídio e, provavelmente, os jornais farão de nossa vida um inferno, se não descobrirmos o autor. E não há nada, absolutamente, em que nos basearmos.

— Não obstante, sargento, — disse Vance, consoladoramente — matar um homem com um tiro é um acontecimento comum. Para esta classe de crime existe uma infinidade de motivos vulgares que os justificam. São os incidentes cênicos e dramáticos do assassinato de Robin que destroem todos os nossos processos de dedução. Se o assunto não fosse tão infantil... — Subitamente, cessou de falar e suas pálpebras caíram levemente. Inclinando-se para diante com deliberação, apertou a cinza do seu cigarro contra o cinzeiro.

— Você disse, sargento, que esse rapaz se chamava Sprigg?

Heath acenou com a cabeça tristemente.

— E — apesar do esforço de Vance, havia na sua voz um tom de ansiedade — qual é o primeiro nome dele?

Heath olhou para Vance surpreendido, porém, ao fim de uma breve pausa, puxou seu amarrotado caderno e, folheando-o, respondeu:

— John Sprigg... John Sprigg.

Vance tirou outro cigarro e acendeu-o com todo o cuidado.

— E, diga-me, não foi morto com um 32?

— Hem? — Os olhos de Heath dilataram-se e ele estendeu para a frente o queixo. — É verdade, com um 32.

— E a bala penetrou por cima da cabeça em direção vertical?

O sargento pôs-se de pé num salto e olhou fixamente para Vance, visivelmente aturdido. A sua cabeça moveu-se lentamente de cima para baixo.

— Também é verdade. Mas, como diabos o senhor...

Vance levantou uma mão para ordenar silêncio. Foi, entretanto, a sua fisionomia mais que o gesto o que fez Heath interromper a pergunta.

— Oh, meu Deus! — E Vance levantou-se como quem se encontra debaixo de uma alucinação. Se eu não o conhecesse tão bem, juraria que ele estava aterrorizado. Então, indo até a alta janela atrás do escritório de Markham, lançou o olhar para os cinzentos muros de pedra do cemitério. — Não posso crer nisso — murmurou ele. — É demasiado espantoso... Mas, de fato, é a realidade...

A voz impaciente de Markham ressoou.

— A propósito de que esta agitação, Vance? Não seja tão misterioso! Como chegou você a saber que Sprigg foi morto com um balaço vertical em cima da cabeça e com um 32? Que é que você pensa?

Vance voltou-se e seus olhos fixaram-se nos de Markham.

— Não está compreendendo? — perguntou calmamente. — É o segundo ato desta diabólica paródia!... Esqueceu você a sua "Mother Goose"? — E, com uma voz muito surda, que trouxe uma sensação de indizível horror àquela sala obscura e velha, recitou:

 

"Havia um homenzinho,

Com um pequeno revólver,

E as suas balas eram de chumbo, chumbo, chumbo,

Disparou contra Johnny Sprigg."


IX

 

A FÓRMULA DO TENSOR

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Markham olhava para Vance como se estivesse hipnotizado. Heath havia permanecido rígido, a boca parcialmente aberta e o charuto suspenso a algumas polegadas de seus lábios. Na atitude do sargento havia algo verdadeiramente cômico, e eu tinha ímpetos de soltar uma risada. Mas, naquele momento, meu sangue parecia gelado e todo movimento muscular era-me impossível.

O primeiro a falar foi Markham. Atirando a cabeça para trás, pôs violentamente a mão sobre a mesa.

— Que nova loucura é essa? — Ele lutava violentamente contra a horrenda sugestão de Vance. — Estou começando a pensar que o assassinato de Robin afetou seu espírito. Não pode ser morto por um balaço um homem com um nome tão vulgar como Sprigg, sem que você trate de converter isso em um grotesco ato de prestidigitação?

— Entretanto, você deve admitir, meu caro Markham, — replicou Vance suavemente — que este Johnny Sprigg foi morto com um pequeno revólver, bem no meio da cabeça.

— Que tem isso? — Um leve rubor cobriu o rosto de Markham. — Será por acaso motivo suficiente para que você vá por aí cantarolando os versos de Mother Goose?

— Oh, vamos! Eu não costumo cantarolar, você sabe. — Vance deixou-se cair numa cadeira em frente à mesa de Markham. — É possível que eu não seja um grande declamador, porém, realmente, eu não cantarolo... — Dirigiu a Heath um olhar insinuante. — Que me diz você, sargento?

Mas este não tinha opinião a manifestar. Estava ainda com o seu ar atônito.

— Você está sugerindo seriamente...? — começou Markham, mas Vance o interrompeu.

— Sim! Estou sugerindo seriamente que a pessoa que matou Cock Robin com uma flecha descarregou seu mau humor sobre o desventurado Sprigg. A coincidência não entra em questão. Semelhantes paralelos que se repetem destruiriam inteiramente a base de todo raciocínio e razão. Para mim, o mundo já está bastante louco; porém, tal loucura dissiparia todo o pensamento científico e racional. A morte de Sprigg é bem espantosa, mas temos de enfrentá-la. E por mais que nos esforcemos em protestar contra estas deduções incríveis, teremos que aceitá-las afinal.

Markham tinha-se levantado, e passeava nervosamente de um lado para outro da sala.

— Admito a presença de elementos inexplicáveis neste novo crime. — Sua combatividade se havia desvanecido, e seu tom de voz era moderado. — Mas, se aceitamos, por hipótese, que um monomaníaco esteja reconstruindo os versos de seus dias de infância, não posso ver em que isto nos possa ajudar. Praticamente, eliminaria todos os meios habituais de investigação.

— Eu não diria isso. — Vance fumava, pensativamente. — Estou inclinado a pensar que semelhante suposição nos proporciona uma base definida de investigação.

— Seguramente! — exclamou Heath num misto de sarcasmo e gravidade. — Tudo o que temos que fazer é sair e encontrar um cançonetista entre seis milhões de indivíduos. Nem fale!

— Não se deixe abater pelo desânimo, sargento. Nosso evasivo tapeador é um espécime entomológico bastante notável. Além disso, temos indícios certos quanto ao seu ambiente verdadeiro...

Markham voltou-se para Vance.

— Que quer dizer com isso?

— Simplesmente que este segundo crime tem relação com o primeiro não só psicológica mas também geograficamente. Os dois assassinatos foram cometidos a pouca distância um do outro. Pelo menos, nosso demônio destruidor tem um fraco pelas vizinhanças da casa de Dillard. Mais ainda, os mesmos fatores dos dois assassinatos excluem a possibilidade de que ele haja vindo de longe para dar expansão ao seu versátil humor, em lugares pouco conhecidos. Como já assinalei para você, Robin foi mandado para o outro mundo por alguém que conhecia todos os costumes e detalhes da casa, e a par das condições existentes na mesma à hora exata em que se desenrolou o sombrio drama. E não há dúvida de que este segundo crime não poderia ter sido posto em cena com tanta perfeição se o seu empresário não tivesse conhecido as intenções ambulatórias de Sprigg esta manhã. Na verdade, todo o mecanismo destas obras misteriosas prova que o operador conhecia intimamente tudo o que se referia a suas vítimas.

O pesado silêncio que se seguiu foi rompido por Heath.

— Se o senhor estiver certo, então já podemos eliminar Sperling do caso. — O sargento admitiu isto de má vontade, porém mostrava que o argumento de Vance havia surtido efeito nele.

De súbito, vira-se para o procurador do distrito e pergunta-lhe desesperadamente:

— Que acha que devemos fazer, Sr. Markham?

Markham estava ainda lutando contra a aceitação da teoria de Vance, e não respondeu. Entretanto, tornou a sentar-se em frente da escrivaninha, e tamborilou com os dedos sobre o mata-borrão. Em seguida, perguntou, sem levantar a vista:

— Quem está encarregado do caso Sprigg, sargento?

— O capitão Pitts. Os agentes do posto da Rua 68 encarregaram-se do caso, primeiro; mas, quando a notícia chegou à Polícia Central, Pitts e dois dos nossos rapazes foram tratar do assunto. Pitts chegou pouco antes de eu ter vindo para cá. Diz que o caso é um fracasso. Mas, o inspetor Moran disse-lhe para ficar com ele.

Markham apertou o botão da campainha situado sob a borda da sua mesa e, quase ao mesmo tempo, apareceu, pela porta giratória, Swacker, seu jovem secretário.

— Chame o inspetor Moran ao telefone — ordenou. Uma vez conseguida a comunicação, Markham tomou o fone, mantendo uma conversação de alguns minutos. Quando largou o fone, dirigiu a Heath um sorriso amargo.

— Você ficou oficialmente, agora, encarregado do caso Sprigg, sargento. O capitão Pitts estará aqui de um momento para outro e então saberemos onde estamos. — Começou a revolver uma pilha de papéis que tinha diante de si... — Tenho de convencer-me — acrescentou meio animado — de que Sprigg e Robin estão na mesma bolsa.

Dez minutos mais tarde, apareceu um homem baixo e forte, de rosto magro e severo, e bigode negro. Era o capitão Pitts. Segundo soube mais tarde, ele era um dos homens mais competentes da Divisão dos Detetives. A sua especialidade eram os gangsters. Depois de apertar a mão de Markham, dirigiu a Heath uma olhadela amistosa. Quando foi apresentado a Vance e a mim, fez uma inclinação de má vontade e olhou-nos com ar suspeito. Já se ia voltar para o outro lado, quando a sua expressão mudou subitamente.

— É o senhor Philo Vance? — perguntou.

— Assim parece, capitão, — suspirou Vance. Pitts sorriu e, avançando, estendeu-lhe a mão.

— Prazer em conhecê-lo, senhor. Tenho ouvido o sargento Heath falar muitas vezes a seu respeito.

— O Sr. Vance está-nos ajudando, não-oficialmente, no caso Robin, capitão, — explicou Markham — e, como o tal Sprigg foi morto nas mesmas redondezas, cremos que seria de grande utilidade para nós ouvir sua informação preliminar sobre o caso. — Tomou da mesa uma caixa de Corona Perfectos e a empurrou até o capitão.

— Não precisa fazer o pedido desta forma, senhor — sorriu o capitão e, escolhendo um charuto, olhou-o com uma espécie de satisfação voluptuosa. — O inspetor disseme que o senhor tinha algumas idéias sobre este novo caso e que queria por isto encarregar-se dele. Para lhe confessar a verdade, alegro-me em não ter nada que ver com o assunto. — Sentando-se comodamente, acendeu o charuto. — Que deseja o senhor saber?

— Conte-nos todo o caso — disse Markham. Pitts acomodou-se em sua cadeira.

— Pois bem, aconteceu que eu estava de serviço, quando se deu o crime, pouco depois das oito da manhã; não tardei em dirigir-me com dois homens ao local. Os agentes da seção já estavam trabalhando. Ao mesmo tempo que eu, chegou o rnédico-perito...

— O senhor ouviu o relatório dele, capitão? — perguntou Vance.

— Certamente. Sprigg foi morto por um balaço. A bala entrou por cima da cabeça em direção vertical. A arma usada foi um 32. Não havia sinal de luta — nenhuma pisadura. Nada extraordinário. Apenas um balaço vertical.

— Estava de costas quando o encontraram?

— Justamente. Estendido no meio do caminho.

— E a parte do crânio que havia tocado o solo não estava fraturada? — A pergunta foi feita negligentemente.

Pitts tirou o cigarro da boca e lançou a Vance um olhar sutil.

— Creio que vocês já sabem alguma coisa do caso — disse, meneando a cabeça sagazmente. — Sim, a parte posterior do crânio estava fraturada. Por certo a queda foi forte. Mas, creio que ele não a sentiu — claro que não, com uma bala no crânio...

— Falando do balaço, capitão, não achou nada estranho?

— Bem... sim, — concordou Pitts fazendo virar seu charuto entre o polegar e o indicador. — A parte superior da cabeça de um indivíduo não é um lugar por onde penetre ordinariamente uma bala. Além do mais, seu chapéu está intacto, o que indica que caiu antes que a pessoa fosse atingida. Estas circunstâncias poderiam ser chamadas estranhas, Sr. Vance.

— Sim, capitão, são extremamente estranhas... E eu diria que o tiro foi à queima-roupa.

— De uma distância não maior que cinco centímetros. O cabelo estava chamuscado ao redor do orifício de entrada. Além disso, o rapaz devia ter visto o outro puxar o revólver e, ao abaixar-se, caiu-lhe o chapéu. Isto explicaria a causa do tiro à queima-roupa em cima da cabeça.

— Sim, sim. Só que, nesse caso, ele não teria caído de costas, mas de bruços... Mas, prossiga com sua exposição, capitão.

Pitts dirigiu a Vance um olhar de assentimento e continuou.

— A primeira coisa que fiz foi revistar-lhe os bolsos. Tinha um bom relógio de ouro e uns quinze dólares em papel e em moeda de prata. De modo que temos de afastar o móvel do roubo, a menos que o criminoso, assustado por sua obra, fugisse sem chegar a realizar seu propósito. Mas, isto não é provável, pois naquela parte do parque nunca há ninguém de manhã cedo. O caminho ali desaparece sob uma enorme pedra, que oculta à vista. O patife que fez o serviço soube escolher o lugar... Enfim, deixei dois homens guardando o cadáver até que viesse o carro para levá-lo e, em seguida, fui à casa de Sprigg, na Rua 93. Soube o nome e o endereço por duas cartas que ele levava no bolso. Averigüei que se tratava de um estudante da Universidade de Colúmbia, que morava com seus pais, e que era seu hábito dar um passeio pelo parque, depois do café da manhã. Hoje, ele saiu de casa cerca das sete e meia...

— Ah! Era seu hábito passear todas as manhãs pelo parque — murmurou Vance. — Muito interessante!

— Entretanto, isso não nos conduz a nenhuma parte — replicou Pitts. — Quantos há que fazem o mesmo! Esta manhã não havia nada de extraordinário em Sprigg. Seus pais disseram-me que não notaram nada fora do comum; e que quando se despediu deles, o fez alegremente. Depois, dirigi-me à Universidade e lá fiz investigações. Falei com dois estudantes que o conheciam e também com um dos instrutores. Sprigg era um rapaz sossegado, com poucos amigos e reservado. Rapaz sério — sempre ocupado com os estudos. Era dos primeiros da classe e nunca foi visto com mulheres. Ao que parece, detestava o sexo feminino. Não era o que se chama sociável. E aí está por que não vejo nada de especial nesse assassinato. Deve ter sido um acidente. O tiro podia ter sido dado contra outro.

— E a que horas acharam o cadáver?

— Cerca das oito e um quarto. Viu-o um pedreiro quando cruzava o dique da Rua 79, junto aos trilhos da estrada de ferro. Notificou o fato a um agente que estava de serviço no Riverside Drive, que, por sua vez, o comunicou ao posto local de polícia.

— E Sprigg saiu de sua casa, na Rua 93, às sete e meia. — Vance olhou para o teto meditativamente. — Por conseguinte teve tempo de sobra para chegar a esse ponto do parque, antes que o matassem. Parece que alguém, conhecedor dos seus costumes, o estava esperando. Limpeza e rapidez, hem?... Segundo creio, não foi fortuito, não lhe parece Markham?

Este, aparentando não ter ouvido, dirigiu-se a Pitts.

— Não foi encontrado nada que pudesse ser utilizado como ponto de partida?...

— Não, senhor. Meus homens pesquisaram o local escrupulosamente com resultado negativo.

— E nos bolsos de Sprigg... entre seus papéis... ?

— Nada. Tenho tudo na repartição... duas cartas comuns, uns quantos objetos que se guardam no bolso... — Aqui se deteve, como se subitamente se recordasse de alguma coisa, e puxou um caderno de notas. — Havia isto — disse sem entusiasmo, entregando a Markham um pedaço de papel cortado em forma triangular. — Encontrei-o debaixo do cadáver. Não tem significado algum, porém guardei-o — força do hábito.

O papel não tinha mais do que dez centímetros de comprimento e parecia arrancado do canto de uma folha de papel sem pauta. Continha parte de uma fórmula matemática escrita à máquina, com o lambda, os sinais de igualdade e do infinito feitos a lápis. Reproduzo o papel aqui, pois, apesar de sua aparente falta de importância, estava destinado a desempenhar mais tarde uma parte sinistra e assombrosa na investigação sobre a morte de Sprigg.

Vance olhou com naturalidade para o papel, porém Markham deteve-lhe a mão durante um momento com o cenho franzido. Ele ia fazer um comentário, quando seu olhar cruzou com o de Vance.

Em vez disso, atirou o papel descuidadamente sobre a mesa, com ligeiro encolhimento de ombros.

— É isso tudo o que encontrou?

— É tudo, senhor. Markham levantou-se.

— Fico-lhe muito agradecido, capitão. Não sei o que se possa fazer neste assunto de Sprigg, mas vamos estudá-lo. — Apontando para a caixa dos Perfectos, disse: — Ponha dois no bolso, antes de sair.

— Muito obrigado, senhor. — Pitts escolheu os charutos e, pondo-os cuidadosamente no bolso do colete, apertou a mão de todos.

Quando se foi embora, Vance levantou-se com presteza, inclinando-se sobre o pedaço de papel que estava na mesa de Markham.

— Meu Deus! — Puxou o seu monóculo e, durante um momento, estudou os símbolos. — É estupendo. Ora, onde foi que vi esta fórmula recentemente?... Ah! O tensor de Riemann-Christoffel... agora me recordo; Drukker usa-a em seu livro para determinar a curvatura gaussiana do espaço esférico e homaloidal... Mas o que Sprigg estaria fazendo com ela? A fórmula está consideravelmente muito além de um curso de faculdade... — Suspendeu o papel contra a luz. — É do mesmo material que o utilizado pelo Bispo em suas notas escritas. E, provavelmente, já observou você que o tipo, isto é, a letra da máquina, é também similar.

Heath havia avançado, e observava agora o papel.

— Sim, é o mesmo. — O fato parecia confundi-lo. — De toda maneira, é um traço de união entre os dois crimes.

Os olhos de Vance tomaram um ar de surpresa.

— Um traço de união... é verdade. Mas, a presença da fórmula debaixo do corpo de Sprigg parece tão irracional como o assassinato em si mesmo...

Markham caminhava nervoso pela sala.

— Disse você que é uma fórmula usada por Drukker em seu livro?

— Sim. Mas o fato não o compromete necessariamente. O tensor é conhecido por todos os matemáticos. É uma das expressões técnicas na geometria não-euclidiana; e, embora fosse descoberta por Riemann em relação com um problema concreto de física (1), chegou a ser de grande importância na matemática da relatividade. É altamente científica no sentido abstrato, e não pode ter valor direto no assassinato de Sprigg. — Ele se sentou novamente. — Arnesson ficará encantado com o achado. Poderá tirar alguma conclusão surpreendente disto.

(1) Esta expressão foi, na realidade, desenvolvida por Christoffel para um problema sobre a condutividade do calor e publicado por ele, em 1869, no Crelle Journal für reine und angewandte Mathematik.

 

— Não vejo motivo — protestou Markham — para informar Arnesson acerca deste novo crime. Sou de opinião que se deveria ocultar-lhe tudo o que fosse possível.

— Receio que o Bispo não o permitirá — replicou Vance.

Markham, baixando a cabeça, exclamou:

— Santo Deus! Que coisa maldita temos entre as mãos? Espero despertar de um momento para outro e constatar que tenho estado sob a ação de um pesadelo.

— Não teremos esta sorte, senhor — resmungou Heath, tomando uma atitude resoluta como um homem que se prepara para combater. — Que devemos fazer? Para onde nos dirigiremos? Preciso de ação.

Markham apelou para Vance.

— Você parece ter alguma idéia acerca deste negócio. Que sugere? Eu, francamente, confesso achar-me perdido em um escuro caos.

Vance aspirou profundamente a fumaça do seu cigarro. Então, inclinou-se para diante como para dar mais força às suas palavras.

— Markham, meu amigo, há somente uma conclusão possível. Estes dois assassinatos foram concebidos pelo mesmo cérebro: ambos são oriundos do mesmo impulso grotesco. E, desde que o primeiro foi cometido por alguém familiarizado perfeitamente com as condições interiores da casa de Dillard, conclui-se daí que devemos procurar alguém que, além desse conhecimento, soubesse também que um homem chamado John Sprigg costumava passear todas as manhãs por certa parte do Riverside Drive. Uma vez que essa pessoa esteja em nosso poder, devemos confrontar as situações de tempo, lugar, oportunidade e causa possível. Existe uma inter-relação entre Sprigg e os Dillards. Qual é, eu não sei. Mas, nosso primeiro passo é encontrá-la. Que melhor ponto de partida que a casa de Dillard?

— Primeiro, almoçaremos — disse Markham displicentemente. — Depois iremos até lá.


X

 

UMA RECUSA DE AUXÍLIO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 14h)

 

Passava pouco das duas horas, quando chegamos à casa de Dillard. Pyne abriu-nos a porta. Se nossa visita lhe causou surpresa, conseguiu ele ocultá-la admiravelmente. Entretanto, notei no olhar que dirigiu a Heath uma certa intranqüilidade; mas, quando falou, sua voz tinha a claridade untuosa e insípida do criado bem-educado:

— O Sr. Arnesson não voltou ainda da Universidade — informou-nos ele.

— Pelo que vejo, Pyne, seu forte não é a leitura do pensamento — disse Vance. — Nós vimos ver você e o professor Dillard.

O homem pareceu perturbar-se, porém, antes que pudesse responder, a Srta. Dillard apareceu na porta de entrada da sala.

— Acreditei reconhecer sua voz, Sr. Vance. — E nos envolveu a todos num sorriso de acolhimento cordial. — Tenham a bondade de entrar... A Sra. Mae veio por alguns minutos... Vamos passear juntas esta tarde — explicou ela, no instante em que entrávamos na sala.

Junto à mesa estava a Sra. Drukker, com a mão ossuda apoiada no espaldar da cadeira. Evidentemente, acabava de levantar-se. Em seus olhos refletia-se o temor enquanto nos mirava sem pestanejar, e os músculos de sua face pareciam tremer; suas delgadas feições pareciam um tanto contorcidas. Ela não fez esforço para falar, mas permaneceu impassível, como se estivesse esperando uma terrível condenação, como um criminoso diante do tribunal, no momento de receber a sentença.

A voz agradável de Belle Dillard aliviou o embaraço da situação.

— Vou correndo até lá em cima para avisar meu tio que os senhores estão aqui.

Mal tinha saído da sala, quando a Sra. Drukker inclinou-se, apoiando-se sobre a mesa, e disse a Markham com voz sepulcral e cheia de espanto:

— Já sei por que vieram. É por causa daquele jovem que foi morto com um balaço esta manhã no parque.

Suas palavras foram tão surpreendentes e inesperadas que Markham não pôde responder logo, e foi Vance quem o fez por ele.

— Então a senhora está inteirada da tragédia, Sra. Drukker? Como pôde saber tão depressa?

Um ar astucioso surgiu no rosto da mulher, dando-lhe o aspecto de uma malvada feiticeira.

— Todo o mundo não fala de outra coisa, na vizinhança — respondeu com evasiva.

— Deveras? Que pena! Mas por que a senhora imagina que vimos aqui por este assunto?

— O jovem não se chamava John Sprigg? — Um sorriso leve e terrível sublinhou a pergunta.

— Na verdade, John Sprigg. Entretanto, isso não explica a relação que possa existir entre ele e os Dillards.

— Ah, mas existe! — Sua cabeça movia-se para cima e para baixo, com uma espécie de horrível satisfação. — É um brinquedo — um brinquedo de criança. Primeiro, Cock Robin... depois John Sprigg. As crianças devem brincar... todas as crianças saudáveis devem brincar. — Subitamente, mudou de tom. Seu rosto cobriu-se de uma expressiva doçura, e seus olhos adquiriram um ar triste.

— É um jogo diabólico, não lhe parece, Sra. Drukker?

— E por que não? Acaso a vida mesma não é diabólica?

— Para alguns de nós, sim. — Uma curiosa simpatia vibrava nas palavras de Vance, enquanto olhava aquele ser estranho e trágico que tínhamos diante de nós. — Diga-me, — continuou ele com voz alterada, — sabe quem é o Bispo?

— O Bispo? — repetiu ela com perplexidade, franzindo as sobrancelhas. — Não, não conheço. É outro jogo infantil?

— Algo dessa espécie, imagino eu. De qualquer modo, o Bispo se interessa por Cock Robin e John Sprigg. De fato, pode ser que alguém esteja fazendo esses jogos fantásticos. E nós estamos assistindo a eles, Sra. Drukker. Esperamos ouvir dos lábios desse alguém toda a verdade.

A mulher meneou a cabeça vagamente.

— Eu não o conheço. — Em seguida, olhou vingativamente para Markham. — Mas de nada serve descobrir quem matou Cock Robin e disparou um balaço em John Sprigg, bem no meio da cabeça. Nunca descobrirá... nunca... nunca... — Sua voz tinha-se elevado com excitação, e um tremor apoderou-se dela.

Nesse momento entrou Belle Dillard, que correu até a Sra. Drukker, passando-lhe o braço pela cintura.

— Vamos — disse ela, consolando-a. — Iremos passear pelo campo, Sra. Mae. — Voltando-se para Markham, em tom de censura, disselhe friamente: — Meu tio espera-os na biblioteca. — Dito isso, saiu da sala, levando consigo a Sra. Drukker.

— Agora é que está bom, senhor — comentou Heath, que assistira a tudo, presa de enorme assombro. — Só lhe ocorria o nome de John Sprigg, a todo o momento.

Vance meneou a cabeça.

— E nossa chegada aqui assustou-a. Todavia, o espírito dela é mórbido e impressionável, sargento. E, vivendo constantemente a contemplar a deformidade do filho e lembrando-se dos dias em que ele era como os outros, é quase possível que acidentalmente ela nos elucide o significado da morte de Sprigg e Robin... — e olhou para Markham. — Há correntes estranhas neste caso, deduções terríveis e incríveis. É como estar perdido nas cavernas de Dovre-Troll, do Peer Gynt, de Ibsen, onde só existem anomalias e monstruosidades. — Encolheu os olhos, embora eu soubesse que não lhe haviam passado despercebidos completamente a tristeza e o horror lançados sobre nós pelas palavras da Sra. Drukker. — Talvez possamos encontrar algo mais sólido com o professor Dillard.

O professor nos recebeu sem entusiasmo e com um mínimo de cordialidade. Sua mesa estava literalmente coberta de papéis e era evidente que nós o perturbávamos em meio às suas ocupações.

— A que se deve esta visita inesperada, Markham? — perguntou ele, depois de nos havermos sentado. — Tem algo a nos informar sobre a morte de Robin? — Colocou um sinal numa página do livro Espaço, Tempo e Matéria, de Weyl, e, recostando-se indeciso, nos olhou com impaciência. — Estou muito ocupado na solução de um problema de mecânica de Mach...

— Sinto muito — disse Markham. — Nada tenho a informar com relação ao caso de Robin. Mas houve outro assassinato na vizinhança e temos motivos para acreditar que ele se relaciona com a morte de Robin. O que eu queria perguntar, particularmente, ao senhor é se o nome de John Sprigg lhe é ou não familiar.

A expressão de enfado do professor Dillard mudou rapidamente.

— É esse o nome do indivíduo que foi assassinado? — Sua atitude já não denotava mais falta de interesse.

— Sim. Um rapaz de nome John Sprigg foi assassinado por um balaço em Riverside Park, perto da Rua 84, esta manhã, pouco depois das sete e meia.

Os olhos do professor pousaram no tapete, e ele permaneceu silencioso por um pequeno lapso de tempo. Parecia lutar interiormente com algo que o preocupava.

— Sim — disse ele, por fim. — Eu... nós conhecemos um moço com esse nome... embora me pareça improvável que seja o mesmo.

— Quem é ele? — A voz de Markham era ansiosamente insistente.

Outra vez o professor hesitou.

— O rapaz a quem me refiro é o melhor aluno de matemática de Arnesson — o que em Cambridge chamam um aluno sobreexcelente nas ciências matemáticas.

— Como o conhece o senhor?

— Arnesson trouxe-o aqui várias vezes. Queria que eu o conhecesse e conversasse com ele. Arnesson orgulhava-se muito dele, e devo reconhecer que possuía um talento pouco comum.

— Então ele era conhecido por todas as pessoas da casa?

— Sim. Creio que o apresentaram a Belle. E se nesse "todas as pessoas da casa" você quer incluir Pyne e Beedle, dir-lhe-ia que o nome lhes era também familiar.

Foi Vance quem fez a pergunta seguinte.

— Diga-me, professor Dillard, os Drukkers conheciam Sprigg?

— É muito possível. Arnesson e Drukker se vêm muito amiúde... Se bem me recordo, creio que Drukker esteve aqui uma noite em que Sprigg nos visitava.

— E Pardee conhecia-o também?

— A respeito deste, eu não poderia dizê-lo. — O professor bateu impacientemente no braço da cadeira e, voltando-se para Markham, disselhe:

— Ouça-me — sua voz tinha uma petulância angustiada — a que vêm todas essas perguntas? Que tem de ver a nossa amizade com um estudante chamado Sprigg com o caso desta manhã? Seguramente, vocês não quererão dizer-me que o morto é o aluno de Arnesson.

— Receio que assim seja — disse Markham.

Havia um tom de ansiedade, quase de temor na voz do professor — segundo me pareceu — quando ele falou em seguida.

— Mesmo assim, que relação pode ter esse fato conosco? E como pode você relacionar sua morte com a de Robin?

— Concordo em que não há nada de positivo para tirarmos deduções — disselhe Markham. — Mas a falta de finalidade de ambos os crimes e a falta total de motivos parecem dar-lhes uma curiosa unidade de aspecto.

— Você quer dizer, certamente, que não encontrou o motivo. Mas, se todos os crimes sem motivo aparente fossem relacionados entre si...

— Também existem as circunstâncias de tempo e proximidade nesses dois casos — acrescentou Markham.

— É essa a base de sua presunção? — A maneira do professor era de benevolência desdenhosa. — Você nunca foi um bom matemático, Markham, mas deveria saber, pelo menos, que nenhuma hipótese pode ser construída sobre uma premissa tão fraca.

— Ambos os nomes, — interpôs Vance — Cock Robin e Johnny Sprigg, são de personagens de versos infantis muito conhecidos.

O ancião mirou-o, fixamente, com grande assombro; e, pouco a pouco, seu rosto ficou rubro de cólera.

— Seu humorismo, senhor, está fora de lugar.

— Não é o meu humorismo, ai de mim! — replicou Vance tristemente. — A troça é do Bispo.

— O Bispo? — O professor Dillard esforçou-se por conter a sua indignação. — Veja, Markham: não posso permitir que brinquem comigo. É a segunda vez que mencionam um Bispo misterioso nesta sala; e eu quero saber o que isso significa. Supondo que um malvado tenha escrito uma carta louca aos jornais, relacionada com a morte de Robin, que tem este Bispo a ver com Sprigg?

— Debaixo de seu cadáver foi encontrado um papel que tinha uma fórmula matemática escrita a máquina, e parecia provir da mesma máquina com que o Bispo escreveu seus bilhetes.

— O quê! — O professor inclinou-se para diante. — Disse você a mesma máquina? E uma fórmula matemática?... Qual era a fórmula?

Markham abriu sua carteira e tomou o pedaço de papel triangular que Pitts lhe havia dado.

— O tensor de Riemann-Christoffel... — O professor Dillard examinou demoradamente o papel, devolvendo-o depois a Markham. Parecia que envelhecera de repente. Seus olhos denotavam fadiga, quando os levantou para olhar-nos. — Não vejo neste caso luz alguma. — Seu tom de voz denotava resignação impotente. — Mas talvez vocês tenham razão em seguir o caminho que se propuseram. Que desejam de mim?

Markham estava sensivelmente surpreendido ante a atitude nervosa de Dillard.

— Vim procurá-lo, principalmente, para assegurar-me se havia ou não alguma ligação entre Sprigg e esta casa. Mas dir-lhe-ei, com toda a franqueza, que não vejo, agora que fiquei sabendo que havia tal ligação, como adaptá-la à cadeia dos acontecimentos. Entretanto, gostaria de, com a sua permissão, interrogar Pyne e Beedle, como eu achasse conveniente.

— Pergunte-lhes o que quiser, Markham. Você jamais poderá acusar-me de lhe ter interceptado o caminho. — Ergueu o olhar suplicante. — O que espero é que me avisem antes de tomarem qualquer medida drástica.

— Isso eu posso prometer-lhe, senhor — Markham levantou-se. — Mas receio que, por enquanto, estejamos muito longe de tomar medidas drásticas. — Estendeu-lhe a mão e notou que havia uma ansiedade oculta no ancião, ao qual desejava expressar sua simpatia sem falar nos seus sentimentos.

O professor acompanhou-nos até a porta.

— Não posso compreender esse tensor escrito a máquina — murmurou ele, sacudindo a cabeça. — Mas, se há alguma coisa que eu possa fazer...

— Há alguma coisa que o senhor pode fazer por nós, professor Dillard — disse Vance, detendo-se na porta. — No dia da morte de Robin, entrevistamos a Sra. Drukker...

— Ah!

— E, embora ela negasse ter estado sentada em sua sacada, naquela manhã, existe uma possibilidade de ela ter visto algo do que sucedeu no campo de exercícios, entre onze horas e meio-dia.

— Ela lhe deu essa impressão? — Na pergunta do professor notava-se um subtom de interesse reprimido.

— Remotamente. Foi o depoimento de Drukker, que disse haver ouvido sua mãe gritar, o que me fez crer que ela podia ter visto algo que preferisse ocultar-nos. E ocorreu-me que o senhor, provavelmente, teria mais influência junto a ela que qualquer outra pessoa, e que, se realmente ela testemunhou o fato, o senhor poderia conseguir que ela lho dissesse.

— Não! — O professor Dillard falou quase asperamente; mas prontamente pôs a mão no braço de Markham e seu tom de voz mudou. — Há coisas que vocês não me devem pedir que faça. Se essa pobre e desgraçada mulher viu alguma coisa da sua sacada naquela manhã, vocês mesmos devem averiguar. Eu não quero torturá-la, e sinceramente tampouco desejo que vocês a incomodem. Existem outros meios para encontrar o que vocês querem saber. — Olhou fixamente para os olhos de Markham. — Ela não deve ser quem diga isso a vocês. Vocês mesmos seriam os primeiros a senti-lo.

— Devemos averiguar o que pudermos — disse Markham resolutamente, porém com bondade. — Há nesta cidade um demônio solto e não posso deter minha mão para evitar o sofrimento de alguém... por muito trágico que pudesse ser esse sofrimento. Todavia, asseguro-lhe que não torturarei a ninguém desnecessariamente.

— Pensaram vocês — perguntou tranqüilamente o professor Dillard — que a verdade que procuram pode ser mais horrível que os próprios crimes?

— Eu o arriscarei. Mas, assim mesmo, se eu soubesse que era exato, não me deteria por nada.

— Decerto que não. Mas, Markham, eu sou muito mais velho que você. Eu já tinha cabelos brancos quando você era apenas um menino que lutava com logaritmos e antilogarítmos; e quando alguém envelhece, aprende as verdadeiras proporções no universo. As proporções todas mudam. Os valores que damos às coisas uma vez perdem seu significado. Eis por que os velhos perdoam mais: eles sabem que os valores feitos pelo homem não têm importância.

— Mas, enquanto tivermos de viver com os valores humanos — argüiu Markham —, é meu dever apoiá-los. E eu não posso, através de nenhum sentido pessoal de simpatia, recusar tomar qualquer caminho que possa conduzir à verdade.

— Talvez você tenha razão — suspirou o professor. — Contudo, você não me deve pedir que o ajude neste caso. Se você souber a verdade, seja caritativo. Esteja seguro de que o culpado é responsável antes que você peça que o mandem à cadeira elétrica. Existem espíritos enfermos como há corpos enfermos. E, amiúde, ambos o estão.

Quando voltamos à sala, Vance acendeu um cigarro com maior cuidado do que de costume.

— O professor — disse ele — não está absolutamente feliz com a morte de Sprigg. E, embora não o tenha admitido, essa fórmula do tensor convenceu-o de que Sprigg e Robin pertencem à mesma equação. Mas ficou convencido de modo demasiadamente rápido. Por quê? Mais ainda, não lhe importou admitir que Sprigg era pessoa conhecida da casa. Eu não digo que ele suspeite, porém tem temores... É engraçada a sua atitude. Aparentemente não quer obstruir a justiça legal que você mantém com tanto zelo, Markham; mas ele decididamente tem pouco interesse em secundar sua cruzada no que concerne aos Drukkers. Quisera saber o que se esconde atrás de sua consideração pela Sra. Drukker. Eu não diria assim, sem mais nem menos, que o professor é de natureza sentimental. E o que significa essa vulgaridade sobre o espírito e o corpo doentes? Parecia um programa para uma classe de cultura física, não?... Que dia azarado! Vamos fazer algumas perguntas a Pyne e a sua filha.

Markham sentou-se, fumando pensativamente. Raras vezes o vi tão desanimado.

— Não vejo o que podemos esperar deles — comentou. — Mesmo assim, sargento, faça vir Pyne aqui.

Quando Heath saiu, Vance dirigiu a Markham um olhar burlesco:

— Verdadeiramente você não deveria queixar-se. Deixe que Terêncio o console: Nil tam difficile est, quin quaerendo investigari possit. E como é difícil este problema!... — Subitamente tornou-se grave. — Estamos manipulando quantidades desconhecidas. Estamos incitados a lutar contra alguma força estranha e anormal que não opera segundo as leis aceitas da conduta. É ao mesmo tempo sutil... oh, infinitamente sutil... e nada familiar. Mas, pelo menos sabemos que emana de alguma parte dos arredores desta casa. E devemos dar busca em todos os recantos e gretas psicológicos. Em alguma parte, perto de nós, jaz o dragão invisível, portanto não se assuste com as perguntas que eu fizer a Pyne. Devemos procurar nos lugares improváveis...

Ouviram-se passos que se aproximavam da porta da sala e um momento depois entrou Heath com o velho mordomo a reboque.


XI

 

O REVÓLVER ROUBADO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 15h)


— Sente-se, Pyne — disse Vance, em tom amável. — Temos permissão do professor Dillard para interrogar você e esperamos que nos responda a todas as perguntas.

— Pois não, senhor, — respondeu o homem. — Estou certo de que não há nada que o professor Dillard tenha motivo para ocultar.

— Excelente — retrucou Vance enquanto se recostava com indolência. — Para começar, a que horas foi servido esta manhã o desjejum?

— Às oito e meia, senhor, como sempre.

— Estiveram presentes todos os membros da família?

— Sim, senhor.

— Quem acorda a família e a que horas?

— Eu, às sete e meia. Chamo à porta.

— E espera a resposta?

— Sim, senhor, sempre.

— Agora, pense, Pyne: deixou alguém de responder-lhe esta manhã?

O homem inclinou a cabeça enfaticamente:

— Não, senhor.

— E ninguém chegou tarde para o café da manhã?

— Todos compareceram a tempo, como sempre, senhor.

Vance inclinou-se para diante e depositou a cinza do cigarro no cinzeiro.

— Viu, por acaso, sair ou entrar alguém esta manhã antes do café?

A pergunta foi lançada como por descuido, porém notei um ligeiro estremecimento de surpresa nas pálpebras delgadas e caídas do mordomo.

— Não, senhor.

— Supondo que assim fosse, — prosseguiu Vance, — não teria sido possível que alguém da casa pudesse sair e entrar, sem que você visse?

Pela primeira vez durante a entrevista, Pyne pareceu relutar em responder.

— Bem, senhor, o fato é — disse ele com dificuldade — que alguém poderia ter usado a porta principal esta manhã sem que eu percebesse, pois estava na sala de refeições pondo a mesa. E ainda mais, poderiam ter usado a porta da sala do clube, pois minha filha conserva geralmente fechada a porta da cozinha enquanto prepara o café.

Vance fumou pensativamente durante um instante. Então, em tom positivo, perguntou:

— Alguém da casa usa revólver?

Os olhos do mordomo abriram-se desmensuradamente.

— Não que eu... saiba, senhor — respondeu ele com certa vacilação.

— Ouviu você alguma vez falar do Bispo, Pyne?

— Oh, não, senhor! — O rosto do mordomo empalideceu. — Refere-se ao homem que escreveu aquelas cartas aos jornais?

— Refiro-me simplesmente ao Bispo — disse Vance com displicência. — Mas, diga-me, ouviu você algo acerca de um homem que assassinaram esta manhã em Riverside Park?

— Sim, senhor, o porteiro da casa ao lado falou-me dele.

— Conhecia você o jovem Sprigg?

— Eu o vi aqui uma ou duas vezes.

— Ele esteve recentemente aqui?

— Na semana passada, senhor. Creio que foi quinta-feira.

— Quem mais esteve aqui com ele?

Pyne franziu o sobrolho procurando recordar-se.

— O Sr. Drukker — disse ele, depois de um momento. —E agora me recordo que também estava o Sr. Pardee. Achavam-se juntos no quarto do Sr. Arnesson. Estiveram conversando até tarde.

— No quarto do Sr. Arnesson, hem? Costuma o Sr. Arnesson receber visitas no quarto?

— Não, senhor, — explicou Pyne — porém o professor estava trabalhando na biblioteca e a Srta. Dillard estava com a Sra. Drukker aqui na sala.

Vance permaneceu em silêncio durante algum tempo.

— Isso é tudo, Pyne — disse ele por fim. — Tenha a bondade de dizer a Beedle que venha imediatamente.

Beedle não tardou a chegar até nós, apresentando-se com sórdida agressividade. Vance fez-lhe as mesmas perguntas que havia feito a Pyne. As respostas, monossilábicas em sua maior parte, não apresentaram nada de novo. Mas, no final da breve entrevista, Vance perguntou-lhe se por acaso havia olhado pela janela da cozinha antes do café.

— Olhei uma ou duas vezes — respondeu ela com ar de desafio. — Por que não havia de olhar?

— Você viu alguém lá fora?

— Ninguém mais do que o professor e a Sra. Drukker.

— Nenhum desconhecido? — Vance procurou dar a impressão de que não tinha importância a presença do professor Dillard e da Sra. Drukker no pátio, aquela manhã, porém pela forma lenta e deliberada com que procurou a sua cigarreira no bolso verifiquei que a informação lhe havia interessado muitíssimo.

— Não — replicou brevemente a mulher.

— A que horas você viu o professor com a Sra. Drukker?

— Cerca das oito.

— Estavam conversando?

— Sim. Pelo menos — corrigiu ela — passeavam de um lado para outro, perto do caramanchão.

— Costumam eles passear pelo pátio antes do café?

— A Sra. Drukker sai muitas vezes cedo e passeia pelo jardim. E creio que o professor tem o direito de passear pela sua propriedade o tempo que deseje.

— Não estou pondo em dúvida os direitos dele, Beedle — disse Vance suavemente. — Eu apenas estava admirado de exercer ele esses direitos tão cedo.

— Pois bem, ele os estava exercendo nessa manhã... Vance despediu a mulher e, levantando-se, foi à janela da frente. Ele estava visivelmente confundido e permaneceu vários minutos olhando a rua na direção do rio.

— Bem, bem — murmurou ele. — É um lindo dia para a gente comungar com a natureza. Esta manhã, às oito, a calhandra voava sem dúvida alguma... quem sabe?... Talvez tenha havido um caracol entre os abrolhos. Mas... diabo!... nada estava certo com o mundo.

Markham reconheceu os sinais de perplexidade de Vance.

— Que deduz você disto? — perguntou ele. — Estou inclinado a não tomar conhecimento da informação de Beedle.

— O que perturba, Markham, é que não nos podemos dar ao luxo de ignorar nada neste assunto — disse Vance suavemente, sem se virar. — Não obstante, admitirei que, neste momento, a revelação de Beedle não faz sentido algum. Soubemos simplesmente que dois dos atores do nosso melodrama estavam levantados passeando esta manhã, pouco depois que Sprigg foi mandado para o outro mundo. O rendez-vous ai fresco pode talvez ser uma de suas tão queridas coincidências. De outra parte, pode ter algo que ver com a atitude sentimental do ancião para com a senhora... Creio que teremos de fazer a ele algumas perguntas discretas sobre o seu encontro em jejum... Que acha?

Inclinou-se subitamente contra a janela.

— Ah! Aí vem Arnesson. Parece muito nervoso. Poucos momentos depois, ouviu-se o ruído de uma chave na porta principal, e Arnesson deu entrada no vestíbulo. Quando nos viu, dirigiu-se depressa até a sala e, sem nos cumprimentar, explodiu:

— Que é isso que estão dizendo sobre a morte de Sprigg? — Seu olhar ansioso ia de um a outro de nós. — Suponho que estão aqui para me fazer perguntas sobre ele. Às suas ordens. — Atirou sobre a mesa uma volumosa pasta, sentando-se bruscamente na borda de uma cadeira. — Esta manhã, esteve um detetive na faculdade fazendo perguntas estúpidas e agindo como esses policiais de opereta. Muito misterioso... Assassinato... horrível assassinato! Que sabíamos acerca de um tal John E. Sprigg? E assim por diante... Assustou um par de alunos do curso superior e fez com que um inofensivo jovem, instrutor de inglês, tivesse um princípio de colapso nervoso. Eu não vi o camarada naquele momento, estava na aula. Ele teve a desfaçatez de perguntar com que mulheres andava Sprigg. Sprigg com mulheres! Aquele rapaz só pensava no estudo. Era o aluno mais brilhante da turma. Jamais faltou a uma aula. Quando não respondeu à chamada esta manhã, não hesitei em pensar que algo de sério havia ocorrido. À hora do almoço, todos falavam do assassinato... Qual é a resposta?

— Não a temos, Sr. Arnesson. — Vance tinha estado a observá-lo bem de perto. — Contudo, temos outra determinante para a sua fórmula. John Sprigg foi assassinado por um tiro esta manhã com um revólver pequeno. A bala penetrou pelo alto da cabeça.

Arnesson olhou fixamente para Vance durante alguns instantes, sem se mover. Então, deitou para trás a cabeça e soltou uma gargalhada sarcástica.

— Algum outro enigma, eh?... como o da morte de Cock Robin... Explique-me o mistério.

Vance explicou brevemente os pormenores do crime.

— Isto é tudo o que sabemos até agora — concluiu ele.

— Poderia você, Arnesson, ajuntar outros pormenores sugestivos?

— Céus, não! — O homem parecia realmente surpreso.

— Nada, absolutamente. Sprigg... era um dos estudantes mais inteligentes que tenho tido. Era um gênio, juro! É uma lástima que seus pais lhe tenham posto o nome de John... havendo tantos outros nomes. Ao que parece, isso selou a sua condenação. Algum maníaco lhe atravessou o crânio com um balaço. Provavelmente o mesmo truão que meteu em Robin um flechaço. — Esfregou as mãos e o filósofo abstrato que há nele chegou a predominar. — Um belo problema. Contou-me tudo? Necessitarei de cada um dos números inteiros conhecidos. Talvez que, como Kepler, eu encontre algum método matemático em processo... — Riu-se da presunção. — Recorda-se o senhor da Doliometria de Kepler? Foi a base do Cálculo Infinitesimal. Chegou a ele procurando construir uma pipa para seu vinho... com uma quantidade mínima de madeira e um conteúdo cúbico máximo. Pode ser que as fórmulas que eu desenvolvo para encontrar os criminosos abram novos campos de investigações científica. Ah! Robin e Sprigg se converterão, então, em mártires.

O humorismo do indivíduo, embora tomando em consideração sua paixão eterna por tudo que é abstrato, chocou-me, como algo particularmente desagradável. Todavia, Vance parecia que não se importava com seu frio cepticismo.

— Há um item que me esqueci de mencionar — disse ele. Voltando-se para Markham, pediu-lhe o pedaço de papel que continha a fórmula e passou-o em seguida a Arnesson. — Foi encontrado isto debaixo do corpo de Sprigg.

Arnesson examinou-o com ar de pouco caso.

— Pelo que vejo, aqui também está envolvido o Bispo. O mesmo papel e o mesmo tipo de letra de máquina dos bilhetes... Mas, onde conseguiu este tensor Riemann-Christoffel? Ora, se houvesse sido outro tensor... como o G-sigma-tau, por exemplo... qualquer pessoa interessada em física prática teria dado com ele. Mas este não é comum e sua exposição aqui é arbitrária e desusada. Certos termos omitidos... Raios! Estive falando precisamente acerca disto a Sprigg na noite passada. Ele escreveu isto, também.

— Pyne disse-nos que Sprigg esteve aqui quinta-feira à noite — observou Vance.

— Oh, sim, é certo... Na quinta-feira... exato. Também estiveram Pardee e Drukker. Tivemos uma discussão sobre as coordenadas de Gaussian. Este tensor surgiu... creio que foi Drukker quem o mencionou primeiro. E Pardee tinha alguma noção de aplicar a matemática superior no xadrez...

— A propósito, você joga xadrez? — perguntou Vance.

— Jogava, porém não jogo mais. Não obstante, seria um jogo formidável... se não fossem os jogadores. São uns tolos, esses xadrezistas.

— Você fez alguma vez estudos sobre o gambito Pardee?

Naquele momento, eu não podia compreender o aparente desatino das perguntas de Vance. Também notei que Markham começava a dar sinais de impaciência.

— Pobre Pardee! — Arnesson sorria sem sentimento algum. — Não é mau matemático elementar. Seria um bom professor de curso secundário. Mas tem muito dinheiro. Dedicou-se ao xadrez. Eu disselhe que seu gambito não era científico. Ainda mais, demonstrei-lhe como podiam vencê-lo. Mas ele não queria ver isso. Então vieram Capablanca, Vadmar e Tartakower e derrotaram-no sem dó nem piedade. Exatamente como eu havia prognosticado. Isso arruinou a sua vida. Durante muitos anos, tratou de conhecer outro gambito, porém não pôde fazê-lo adotar. Lê Weyl, Silberstein, Eddington e Mach na esperança de inspirar-se.

— Isso é muito interessante. — Vance estendeu a sua caixa de fósforos a Arnesson que tinha estado enchendo o seu cachimbo, enquanto falava. — Pardee era muito relacionado com Sprigg?

— Oh, não. Encontraram-se aqui duas vezes — e isso foi tudo. Entretanto, Pardee conhece muito bem Drukker. Sempre lhe pergunta sobre potenciais e setores. Espera encontrar alguma coisa que revolucione o xadrez.

— Interessava-lhe o tensor de Riemann-Christoffel quando você falou a respeito na outra noite?

— Não posso dizer que sim, pois não é de sua esfera. Não se pode enquadrar a curvatura do espaço-tempo num tabuleiro de xadrez.

— Que deduz você do encontro desta fórmula com Sprigg?

— Nada. Se tivesse sido escrita por Sprigg, diria que caíra do bolso. Mas, quem se daria ao trabalho de escrever a máquina uma fórmula matemática?

— Aparentemente, o Bispo.

Arnesson tirou o cachimbo da boca e sorriu.

— O Bispo X. Temos que encontrá-lo. Está cheio de extravagâncias. Confundiu o senso dos valores.

— Evidentemente. — Vance falou com displicência. — A propósito, quase me esquecia de perguntar: há revólveres em casa de Dillard?

— Oh! — Arnesson riu com espontâneo prazer. — É este o assunto? Sinto muito desiludi-lo. Não temos revólveres. Nem portas deslizadoras. Nem passagens secretas. Tudo aberto à luz do dia.

Vance suspirou teatralmente.

— É uma lástima... uma lástima! Eu que tinha uma teoria tão consoladora...

Belle Dillard havia descido silenciosamente ao hall e agora estava na porta da sala. Sem dúvida, ela havia ouvido a pergunta de Vance e a resposta de Arnesson.

— Como que não há revólveres em casa? Há dois, Sigurd, — disse ela. — Não se lembra dos revólveres velhos que eu usava no campo quando me exercitava na pontaria?

— Pensei que você não mais os tivesse. — Arnesson levantou-se e ofereceu uma cadeira a Belle. — Eu lhe disse, quando voltávamos de Hopatcong naquele verão, que só aos ladrões e bandidos é permitido usar revólveres neste tolerante Estado...

— Mas eu não acreditei — protestou a moça. — Nunca sei quando você graceja ou quando fala sério.

— E a Srta. os guardou? — perguntou Vance num tom tranqüilo.

— Claro que sim. — Ela lançou a Heath um olhar apreensivo. — Não devia guardá-los?

— Eu penso que tecnicamente foi ilegal. No entanto — sorriu Vance tranqüilizadoramente — não creio que o sargento vá invocar a lei contra a senhorita. Onde estão agora?

— Embaixo, na sala do clube. Em uma gaveta do porta-ferramentas.

Vance levantou-se.

— Teria a bondade, Srta. Dillard, de mostrar-nos o lugar onde os guardou? Tenho uma grande curiosidade de vê-los.

A moça hesitou e mirou Arnesson, como à procura de conselho. Quando ele fez que sim com a cabeça, ela voltou-se e conduziu-os à sala do clube.

— Estão naquela arca junto à janela — disse ela encaminhando-se até o lugar. Uma vez aí, tirou de um ponta do móvel uma caixa comprida: atrás, debaixo de um monte de outras coisas, estava um Colt automático, 38.

— Como! — exclamou ela. — E o outro? Alguém o levou?

— Era menor, não é verdade? — perguntou Vance.

— Sim...

— Um 32?

A moça confirmou com a cabeça, volvendo os olhos espantados para Arnesson.

— Sim, levaram-no, Belle, — disse ele, encolhendo os ombros.

— Não há nada a fazer. Provavelmente, algum de seus jovens arqueiros se apropriou dele para fazer saltar os miolos depois de haver-se cansado de lançar flechas.

— Não graceje, Sigurd, — rogou-lhe um tanto assustada. — Aonde poderiam levá-lo?

— Ah! Outro tétrico mistério — disse Arnesson, gracejando. — Estranho desaparecimento de um 32.

Percebendo a inquietude da moça, Vance mudou de tema.

— Talvez, Srta. Dillard, possa ter a bondade de levar-nos ao aposento da Sra. Drukker. Precisamos falar com ela, já que, ao que parece, o passeio ao campo foi adiado. — Uma sombra de dor cobriu o rosto da moça.

— Oh, Sr. Vance, não deve incomodá-la hoje. — Seu tom de voz era tragicamente implorante. — A Sra. Mae está muito doente. Não posso compreender. Quando eu falava com ela, lá em cima, parecia estar perfeitamente bem, porém depois que viu os senhores mudou bruscamente: tornou-se fraca e... oh, alguma coisa horrível pareceu perturbar-lhe o espírito. Depois eu a levei para a cama e ela continuou repetindo num murmúrio terrível: "John Sprigg, John Sprigg..." Telefonei ao seu médico, que veio em seguida. Disse que ela precisava de repouso e tranqüilidade.

— O assunto que me levava lá não é de nenhuma importância — afirmou Vance. — Esperemos que ela melhore. Qual é o médico, Srta. Dillard?

— Whitney Barstead. Há muitos anos que a atende.

— Excelente homem — observou Vance. — Em todo país não há melhor neurologista. Não faremos nada sem a sua permissão.

A Srta. Dillard dirigiu-lhe um olhar de agradecimento, e em seguida pediu licença e saiu.

Quando voltamos à sala, Arnesson parou diante da lareira e olhou para Vance sarcàsticamente.

— "John Sprigg, John Sprigg." A Sra. Mae percebeu logo. Pode ser que esteja louca, porém certos lóbulos de seu cérebro estão superativos. O cérebro humano é uma implacável peça de maquinaria. Alguns dos maiores calculadores mentais da Europa são imbecis. E eu conheço dois mestres de xadrez que precisam de amas para vesti-los e alimentá-los.

Vance aparentava não ouvi-lo. Havia parado junto a um pequeno armário perto da porta e parecia absorvido por uma coleção de objetos de arte antiga chinesa.

— Este elefante não está bem aqui — comentou casualmente, apontando para uma diminuta figura da coleção. — É um bunjinga decadente, sabe? Bem feito, porém não autêntico. Talvez seja uma cópia de algum original manchu. — Abafou um bocejo e voltou-se para Markham. — Creio, meu amigo, que não temos mais nada a fazer aqui. Acho que devemos ir. Mas, antes', poderíamos falar com o professor... Desagrada-lhe esperar aqui, Sr. Arnesson?

Arnesson levantou as sobrancelhas um tanto surpreso, porém imediatamente franziu o rosto num sorriso desdenhoso.

— Oh, não! Podem ir. — E começou a encher o cachimbo.

O professor Dillard sentiu-se importunado com nossa segunda intrusão.

— Acabamos de saber — disse Markham — que o senhor esteve falando com a Sra. Drukker esta manhã, antes do café.

Os músculos do rosto do professor Dillard contraíram-se de raiva.

— Importa ao procurador criminal do distrito que eu fale com um vizinho no jardim de minha casa?

— Por certo que não, senhor. Mas estou no meio de uma investigação que concerne seriamente à sua casa, e eu julguei que podia obter esclarecimentos de sua parte.

O ancião começou a balbuciar.

— Muito bem — aquiesceu ele, contrariado. — Não vi ninguém mais que a Sra. Drukker, se é o que o senhor deseja saber.

Vance interveio na conversa.

— Não viemos por isso, professor Dillard. Queríamos perguntar-lhe simplesmente se a Sra. Drukker lhe deu a impressão esta manhã de haver suspeitado do acontecido em Riverside Park.

O professor esteve a ponto de responder asperamente, porém se conteve. Após um momento, ele disse simplesmente:

— Não, ela não me deu tal impressão.

— Aparentava ela estar um tanto incomodada ou, melhor dizendo, excitada?

— Não! — O professor Dillard enfrentou Markham. — Compreendo perfeitamente até onde os senhores querem chegar e eu não o permitirei. Já disse ao senhor, Markham, que não tomarei parte em espionagens e enredos, sempre que se trate dessa infeliz mulher. Isso é tudo que eu tenho a dizer ao senhor. — Voltou à sua mesa. — Sinto muito, porém estou muito ocupado hoje.

Descemos ao pavimento térreo e nos despedimos de Arnesson. Este nos saudou cordialmente com a mão ao sairmos, mas seu sorriso tinha qualquer coisa de proteção desdenhosa, como se tivesse estado presenciando e se deleitasse com o nosso insucesso.

Quando chegamos à rua, Vance acendeu um novo cigarro.

— Agora, tenhamos uma breve conversa com o triste e cavalheiresco Sr. Pardee. Não sei o que nos poderá dizer, porém tenho muita vontade de conversar com ele.

Entretanto, Pardee não estava em casa. Seu criado japonês nos informou que ele provavelmente estava no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Amanhã teremos tempo de sobra — disse Vance a Markham ao retirarem-se. — Conversarei como o Dr. Barstead, pela manhã, e tratarei de arranjar uma entrevista com a Sra. Drukker. Incluiremos Pardee nessa peregrinação.

— Espero com segurança — grunhiu Heath — que saberemos amanhã mais do que sabemos hoje.

— Você omite um ou dois detalhes consoladores, sargento — respondeu Vance. — Verificamos que as pessoas das relações de Dillard conheciam Sprigg e que não é de estranhar que soubessem de seus passeios matinais muito cedo, às margens do Hudson. Soubemos também que o professor Dillard e a Sra. Drukker passearam juntos pelo jardim às oito desta manhã. E descobrimos que um revólver 32 desapareceu da sala do clube. Não é grande coisa... porém já é algo.

Enquanto nos dirigíamos para o centro da cidade, Markham despertou da sombria abstração em que se achava mergulhado e olhou para Vance com apreensão.

— Tenho quase medo de continuar com este caso. A coisa se torna cada vez mais sinistra; se os jornais se inteiram dessa poesia infantil de John Sprigg e relacionam os dois assassinados, não quero pensar na sensação e no espalhafato que se seguirão a tudo isso.

— Receio que dessa você não escape — suspirou Vance. — Eu não sou nem um pouco psíquico, nunca tive sonhos que se realizassem e não sei o que sejam poderes telepáticos... todavia algo me diz que o Bispo vai dar a conhecer à imprensa esse versinho do folclore infantil. O fim dessa nova farsa é ainda mais obscuro que o da comédia de Cock Robin. Tratará de que todos se inteirem. Até o humorista mais sombrio que se utiliza de cadáveres deve ter seu auditório. Eis aí a única fraqueza de seus crimes abomináveis e quase nossa única esperança, Markham.

— Telefonarei a Quinan — disse Heath — e averiguarei se recebeu alguma coisa.

O incômodo foi poupado ao sargento. O repórter do World estava à nossa espera no gabinete do procurador do distrito, e Swacker fê-lo entrar imediatamente.

— Como tem passado, Sr. Markham? — Nas maneiras de Quinan havia um leve ar de impudência, mas, por outro lado, mostrava sinais de excitação nervosa. — Tenho aqui algo para o sargento Heath. Na Polícia Central, disseram-me que estava a seu cargo o caso Sprigg e que, neste momento, o sargento se achava em entendimentos com o senhor. — Mexeu em seu bolso e, tirando uma folha de papel, entregou-a a Heath. — Com você eu estou bem servido, sargento, de modo que espero que me comunique algumas novidades em reciprocidade... Olhe para este documento. Acaba de recebê-lo o mais importante jornal familiar da América.

Era um pedaço de papel de máquina que continha a melodia de John Sprigg, de "Mother Goose", datilografada em tipo "elite" numa fita azul-pálida. No ângulo inferior direito, estava assinado com letras maiúsculas: O BISPO.

— E aqui está o envelope, sargento. — Quinan meteu outra vez a mão no bolso.

O carimbo indicava as 9 horas da manhã e, tal como a primeira nota, esta havia sido postada na Agência "N" do correio.


XII

 

UMA VISITA À MEIA-NOITE

 

(Terça-feira, 12 de abril — 10h)

 

Na manhã seguinte, a primeira página dos diários da cidade trazia reportagens sensacionais que ultrapassavam os maiores temores de Markham.

Além do World, outros dois grandes matutinos receberam notas iguais à que Quinan nos mostrou. A excitação a que deu motivo sua publicação foi tremenda. Toda a cidade se achava num estado de apreensão e temor. E ainda que tentativas diferentes fossem feitas aqui e ali para afastar o aspecto insano dos crimes no terreno da consciência, e para explicar as notas do Bispo como sendo obra de um espírito brincalhão, todos os jornais e a maioria do público estavam completamente convencidos de que um novo e terrível tipo de assassino ameaçava a comunidade (1).

(1) Um estado semelhante de pânico acorreu em Londres em 1888, quando Jack, o Estripador, estava ocupado em sua anormal e macabra tarefa. Outra vez em Hanover, em 1923, quando Haarmann, o Lobo, cometia carnificinas próprias de antropófagos. Mas, não me recordo de nenhum outro paralelo moderno pela atmosfera de horrível terror que reinou em Nova York durante os assassinatos do Bispo.

 

Markham e Heath foram acossados pelos repórteres de todos os jornais, porém um véu de mistério foi mantido resolutamente. Não se deu nenhuma insinuação de que existiam motivos para crer que a solução se encontrava junto à casa de Dillard. Tampouco se fez menção do desaparecimento do revólver 32. A situação de Sperling era tratada pela imprensa com simpatia. A opinião geral era de que o jovem havia sido vítima das circunstâncias, e toda crítica da demora de Markham em acusá-lo havia sido abandonada.

No dia em que mataram Sprigg, Markham teve uma conferência no Club Stuyvesant. Tomaram parte o inspetor Moran, do Gabinete de Investigações, e o inspetor-chefe O'Brien (1) Os dois assassinatos foram discutidos com detalhes e Vance expôs as razões de sua crença de que a resposta ao problema seria encontrada finalmente ou em casa de Dillard ou em algum lugar relacionado diretamente com a referida casa.

(1) O inspetor-chefe O'Brien estava então encarregado de todo o Departamento de Polícia.

 

— Estamos agora em contacto — terminou de falar Vance — com todas as pessoas que puderam evidentemente ter tido suficiente conhecimento das condições que cercavam as duas vítimas para perpetrar os crimes com êxito, e nosso único caminho é concentrar a atenção nessas pessoas.

O inspetor Moran estava inclinado a aceitar essa teoria, exceto — disse ele — que "nenhuma das personagens dramáticas que você mencionou é, na minha opinião, um maníaco sangrento".

— O assassino não é um maníaco no sentido convencional — respondeu Vance. — Provavelmente normal em tudo o mais. Em realidade, seu cérebro pode ser brilhante, exceto quanto a essa lesão... e, direi mais, brilhantíssimo. Ele perdeu todo o senso de proporção através de puras especulações exaltadas.

— Mas um super-homem pervertido se contenta com esses gracejos revoltantes, sem motivo algum? — perguntou o inspetor.

— Ah, mas o caso é que há um motivo. Algum impulso tremendo se oculta atrás da concepção monstruosa destes assassinatos... um impulso que em seus resultados eficazes toma a forma de humorismo satânico.

O'Brien não tomou parte nesta discussão. Ainda que impressionado pelas vagas implicações do caso, ele se exasperava pelo caráter impraticável do mesmo.

— Essa espécie de conversa — disse gravemente — esta bem para os editoriais dos jornais, porém não é viável. — Sacudiu seu grande charuto na direção de Markham. — O que temos de fazer é procurar todos os indícios e conseguir alguma outra evidência legal.

Foi decidido finalmente que as notas do Bispo deviam ser levadas a um perito analista e que se fizesse esforço no sentido de se descobrir a máquina de escrever e a papelaria onde compravam o papel. Uma busca sistemática devia ser feita para se conseguirem testemunhas que pudessem ter visto alguém em Riverside Park, entre as sete e as oito daquela manhã. Os costumes e as relações de Sprigg deviam ser objetos de investigações minuciosas. E um homem devia ser destacado para interrogar o carteiro da seção, com a esperança de que, ao tomar as cartas das diversas caixas, ele tivesse notado os envelopes dirigidos aos jornais e pudesse dizer em que caixa os havia colhido.

Várias outras atividades puramente formais foram traçadas, e Moran sugeriu que por algum tempo três homens fossem estacionados dia e noite na vizinhança dos assassinatos para surpreender algum imprevisto acontecimento ou alguma ação suspeita dos elementos envolvidos. O Departamento de Polícia e o gabinete do inspetor do distrito deviam trabalhar de comum acordo. Markham, implicitamente de acordo com Heath, assumiu a direção.

— Já entrevistei os membros das famílias Dillard e Drukker em relação ao assassinato de Robin — explicou Markham a Moran e a O'Brien — e falei com o professor Dillard e com Arnesson relativamente ao caso Sprigg. Amanhã verei Pardee e os demais Drukkers.

Na manhã seguinte, Markham, acompanhado de Heath, foi à casa de Vance, um pouco antes das dez horas.

— Isso não pode continuar assim — declarou aquele depois dos cumprimentos. — Temos de inquirir alguém que saiba alguma coisa. Vou apertar o torniquete... e ao diabo as conseqüências!

— Persiga-os por todos os meios possíveis. — O próprio Vance parecia desesperado. — Apesar de eu duvidar que isso dê algum resultado. Nenhum processo comum poderá resolver este enigma. Entretanto, telefonei a Barstead. Disseme ele que poderemos falar com a Sra. Drukker esta manhã.

Mas, arranjei para falar com ele primeiro. Tenho de conhecer mais alguma coisa sobre a patologia de Drukker. As corcovas, você sabe, não são geralmente produzidas por quedas.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do médico, sendo recebidos no instante. O Dr. Barstead era um homem corpulento, agradável, e cujas maneiras cordiais eram, a meu ver, resultado de uma disciplina forçada.

Vance foi direto ao assunto.

— Temos motivos para crer, Dr. Barstead, que a Sra. Drukker e talvez seu filho estejam indiretamente comprometidos no caso da morte recente de Robin na casa de Dillard. E, antes de interrogá-los, desejávamos que o senhor dissesse, até onde permite a ética profissional, alguma coisa sobre a situação neuropática que estamos enfrentando.

— Rogo-lhe que seja mais explícito, senhor — disse o Dr. Barstead, com defensiva naturalidade.

— Disseram-me — continuou Vance — que a Sra. Drukker se considera responsável pela cifose de seu filho, porém a meu ver tais deformações não resultam ordinariamente de simples males físicos.

O Dr. Barstead meneou a cabeça lentamente.

— Isso é verdade. A paraplexia compressiva da espinha dorsal pode seguir-se a uma deslocação ou golpe, mas a lesão assim produzida é de tipo focai transversal. A osteíte ou cárie das vértebras, o que comumente chamamos mal de Pott, é geralmente de origem tuberculosa. E esta tuberculose da espinha ocorre mais freqüentemente na infância. Amiúde existe no momento de nascer. É certo que um acidente pode preceder o surto, determinando o lugar da infecção ou excitando um foco latente. E este fato, indubitavelmente, dá origem à crença de que o golpe em si produz a enfermidade. Mas, Schmaus e Harsley expuseram a verdadeira anatomia patológica da cárie espinhal. A deformidade de Drukker é inquestionávelmente de origem tuberculosa. Sua mesma curvatura é de tipo marcadamente redondo, denotando um extenso envolvimento das vértebras. E não há esco-liose de nenhuma classe. Mais ainda, tem todos os sinais locais da osteíte.

— O senhor, naturalmente, explicou a situação à Sra. Drukker, não?

— Em muitas ocasiões. Mas, não tive êxito. O fato é que um instinto terrível de martírio pervertido leva-a a aferrar-se à idéia de que ela é responsável pela situação de seu filho. Esta noção errônea converteu-se nela numa idéia fixa. Constitui todo o seu programa mental e dá uma significação à vida de serviço e sacrifício que ela vem vivendo há quarenta anos.

— Até que ponto — perguntou Vance — diria o senhor que essa psiconeurose afetou o cérebro dela?

— Isto seria difícil afirmar. E não é uma questão que eu gostaria de discutir. Entretanto, posso dizer o seguinte: ela é uma mulher indubitavelmente mórbida. E seus valores têm variado. Às vezes tem havido, isto lhes digo com o maior sigilo, sinais de marcada alucinação quando se trata de seu filho. O bem-estar dele é para ela uma obsessão. Não há nada que ela não faça por ele.

— Apreciamos sua confidencia, doutor... e não seria lógico supor que o ânimo alterado que ela apresentava ontem resultou de algum temor ou susto relacionado com o bem-estar do filho?

— Sem dúvida. Ela não tem vida afetiva ou mental a não ser em função dele. Mas, se seu desfalecimento momentâneo foi devido a um temor real ou imaginário, não se pode dizer. Ela vive há muito tempo na fronteira entre a realidade e a fantasia.

Houve um breve silêncio e em seguida Vance perguntou:

— Em relação a Drukker, o senhor o considera responsável por seus atos?

— Desde que é meu paciente — replicou o Dr. Bartead em tom glacial — e desde que não tomei providência alguma para interditá-lo, considero sua pergunta uma impertinência.

Markham inclinou-se para a frente e falou peremptoriamente.

— Não temos tempo para rodeios, doutor. Estamos investigando uma série de crimes atrozes. O Sr. Drukker está envolvido neles... até que ponto não o sabemos. Mas é nosso dever averiguá-lo.

O primeiro impulso do médico era combater Markham. Mas, evidentemente, pensou melhor, pois quando respondeu, o fez em tom tranqüilo e indulgente.

— Não tenho motivos para negar informação aos senhores. Mas perguntar sobre a responsabilidade do Sr. Drukker é imputar-me negligência em assunto da segurança pública. Talvez, entretanto, eu haja compreendido mal a pergunta deste cavalheiro. — Ele examinou Vance um breve instante. — Há naturalmente graus de responsabilidade — continuou com seus modos profissionais. — A mente do Sr. Drukker está hiperdesenvolvida como sucede amiúde com as vítimas da cifose. Todos os processos mentais estão voltados para dentro, por assim dizer. E a ausência de reações físicas normais tende geralmente a produzir inibições e aberrações. Não notei, porém, sintomas desta espécie no Sr. Drukker. Ele é excitável e propenso à histeria; mas a psicoqueniesia é um acompanhamento comum de sua enfermidade.

— Que forma tomam as reações dele? — perguntou Vance num tom cortês e casual.

O Dr. Barstead pensou um momento.

— A dos jogos infantis, diria eu. Tais divertimentos não são raros nos aleijados. No caso do Sr. Drukker, é o que poderíamos chamar um desejo irrealizado que desperta. Não tendo tido infância normal, apodera-se de tudo que lhe dê um sentido de reabilitação juvenil. Suas atividades infantis tendem a equilibrar sua vida puramente mental.

— Qual é a atitude da Sra. Drukker em relação ao instinto dele para o jogo?

— Ela o estimula muito corretamente. Muitas vezes eu a vi apoiando-se contra o muro sobre o campo de jogos, em Riverside Park, a contemplá-lo. Também preside às festas e banquetes infantis que ele dá em sua casa.

Ao fim de alguns minutos, retiramo-nos. No instante em que dobrávamos a esquina para entrar na Rua 76, Heath, como se despertasse de um pesadelo, suspirou profundamente e ergueu-se no carro.

— O senhor prestou atenção ao ponto dos jogos infantis? — perguntou ele com voz cheia de terror. — Santo Deus, Sr. Vance! Em que vai acabar isso?

Uma tristeza curiosa se mostrava nos olhos de Vance enquanto olhava para os barrancos nevoentos de Jersey, no outro lado do rio.

Ao chegarmos à casa de Drukker, fomos atendidos por uma roliça mulher alemã, que se plantou insòlitamente diante de nós, informando-nos suspeitosamente que o Sr. Drukker estava muito ocupado e não podia receber ninguém.

— É melhor que lhe diga — disse Vance — que o procurador do distrito lhe deseja falar imediatamente.

Suas palavras produziram um efeito estranho na mulher. Levou as mãos ao rosto e seu enorme peito subia e descia convulsivamente. Em seguida, como que cheia de terror, saiu e subiu as escadas. Ouvimos que batia numa porta. Houve sons de vozes. Ao fim de um instante, voltou para informar-nos que o Sr. Drukker nos esperava em seu escritório. Ao passar junto à mulher, Vance voltou-se de súbito e, fixando o olhar sobre ela firmemente, perguntou:

— A que hora se levantou ontem o Sr. Drukker?

— Eu... não sei — tartamudeou ela completamente assustada. — Sim, sim, já sei. Às nove... como sempre.

Vance sacudiu a cabeça e seguiu seu caminho.

Drukker nos recebeu de pé, junto a uma mesa grande coberta de livros e folhas de manuscritos. Fez uma saudação com a cabeça, melancòlicamente, mas não nos convidou a sentar.

Vance estudou-o um momento como se tentasse descobrir o segredo que se ocultava atrás daqueles intranqüilos olhos fundos.

— Sr. Drukker — começou a dizer, — não é nosso desejo causar-lhe um incômodo desnecessário, mas soubemos que o senhor conhecia John Sprigg, que, como deve saber, foi morto por um balaço perto daqui, ontem pela manhã. Poderia o senhor sugerir-nos que motivos pudesse ter alguém para matá-lo?

Drukker empertigou-se todo. Apesar de seu esforço para dominar-se, havia em sua voz, ao responder, um ligeiro tremor.

— Conhecia o Sr. Sprigg, mas muito pouco. Não posso sugerir absolutamente nada a respeito de sua morte.

— Em seu corpo foi encontrado um pedaço de papel com o tensor Riemann-Christoffel que o senhor apresenta em seu livro, no capítulo sobre a limitação do espaço físico. — Enquanto falava, Vance pegara numa folha de papel escrita à máquina e olhava-a como por acaso.

Drukker pareceu não notar a ação. A informação contida nas palavras de Vance havia absorvido sua atenção.

— Não posso compreender — disse ele vagamente. — Posso ver a anotação?

Markham acedeu em seguida ao pedido. Depois de examinar por um momento o papel, Drukker o devolveu, semi-cerrando os olhos maliciosamente.

— O senhor consultou Arnesson sobre isso? Na semana passada ele discutiu essa fórmula com Sprigg.

— Sim — disse Vance como que distraído. — O Sr. Arnesson recordou esse fato, mas não pôde projetar nenhuma luz. Acreditamos que talvez o senhor pudesse ter êxito onde ele havia fracassado.

— Sinto muito não poder satisfazer seus desejos. — Na resposta de Drukker havia algo de escárnio. — O tensor pode ser usado por qualquer pessoa. Weyl e Einstein o empregaram em suas obras muitas vezes. Seu uso não está proibido... — Inclinou-se sobre uma estante giratória, e retirou um pequeno volume. — Aqui está no Princípio da Relatividade de Minkowski, só que com símbolos diferentes... por exemplo, em vez de B, usa T e como índices emprega letras gregas. — Tomou outro volume. — Poincaré também o usou em suas Hipóteses Cosmogônicas, com ainda outros equivalente simbólicos. — Jogou displicentemente os livros sobre a mesa. — Por que me vêm a mim com isso?

— Não foi só a fórmula do tensor que nos fez vir à sua casa — respondeu Vance despreocupadamente. — Temos motivos para crer que a morte de Sprigg está relacionada com o assassinato de Robin...

As mãos largas de Drukker apertaram as bordas da mesa e ele se inclinou para a frente. Seus olhos brilhavam nervosamente.

— Relacionados Sprigg e Robin? Os senhores não acreditam no que os jornais dizem, não é verdade?... É uma mentira infame! — Seu rosto começou a contorcer-se e a voz tornou-se-lhe estridente. — É uma loucura... Eu digo aos senhores que não existe prova nenhuma... em absoluto!

— Cock Robin e John Sprigg, — disse Vance com voz suave e insistente.

— É uma estupidez! Uma verdadeira estupidez! Oh, Deus! O mundo tornou-se louco... — Enquanto golpeava a mesa com a mão, fazendo voar os papéis em todas as direções, balançava-se para trás e para diante.

Vance olhou para ele com surpresa moderada.

— Não conhece o Bispo, Sr. Drukker?

O homem parou de balançar-se e, aprumando-se, olhou Vance com terrível intensidade. Sua boca estava contraída nos cantos, apresentando o riso transversal da distrofia muscular progressiva.

— Também os senhores Tornaram-se loucos! — Passeou o olhar por todos nós. — Os senhores, loucos varridos! Não existe tal Bispo! Nem tampouco existiram Cock Robin ou John Sprigg. E aqui estão os senhores... homens grandes... tratando de assustar-me... A mim, um matemático... com contos infantis! — E começou a rir-se histèricamente.

Vance encaminhou-se para ele rapidamente e, tomando-o pelo braço, levou-o até uma cadeira. Lentamente seu riso foi desaparecendo, e ele fez um movimento com as mãos, denotando cansaço.

— É uma pena que Robin e Sprigg tenham sido mortos. — Sua voz era forte e incolor. — Mas, a única coisa que interessa são as crianças... Os senhores encontrarão provavelmente o assassino. Caso contrário, eu os ajudarei. Mas, não deixem voar a imaginação. Atenham-se aos fatos... aos fatos...

O homem estava esgotado, e o deixamos.

— Está assustado, Markham... Muito assustado — observou Vance, quando atingimos o hall outra vez. — Agradar-me-ia saber o que se oculta naquela mente astuta e distorcida.

Encaminhou-se, então, para a porta do quarto da Sra. Drukker. Nós o seguimos.

— Este método de visitar uma dama não está de acordo com a etiqueta social. Para falar a verdade, Markham, eu não nasci para a polícia. Detesto-a.

Uma voz débil respondeu à nossa chamada. A Sra. Drukker, mais pálida que de ordinário, estava recostada em seu canapé junto à janela. Suas brancas e plácidas mãos descansavam sobre os braços do assento, ligeiramente flexionadas. E mais que uma vez me vieram ao espírito os desenhos que havia visto das vorazes harpias, na lenda dos argonautas.

Antes que pudéssemos falar, ela nos disse com voz tensa e terrível:

— Já sabia que os senhores viriam, que não se haviam cansado de atormentar-me...

— Torturá-la, Sra. Drukker, — respondeu Vance suavemente — é coisa que está longe de nossos pensamentos. Só queremos seu auxílio.

A maneira de Vance pareceu aplacar um pouco seu temor e ela o estudou calculadamente.

— Se pudesse ajudá-los! — murmurou. — Mas não há nada a fazer... nada...

— A senhora nos poderia dizer o que foi que viu de sua janela no dia da morte de Robin — sugeriu Vance, bondosamente.

— Não!... Não!... — Seu olhar era de terror. — Não vi nada... Não estive à janela naquela manhã. Matem-me, porém minhas últimas palavras serão Não... não... não!

Vance não insistiu mais nesse ponto. — Beedle nos disse — continuou ele — que a senhora se levanta em geral muito cedo para passear no jardim.

— Sim — a palavra saiu com um suspiro de alívio. — Eu não durmo bem de manhã. Constantemente desperto com dores na coluna vertebral e com os músculos das costas rígidos e doloridos. Por isso, levanto-me e passeio pelo jardim quando o tempo está bom e agradável.

— Beedle viu a senhora no jardim, ontem de manhã. A mulher anuiu com a cabeça, abstratamente.

— E também viu com a senhora o professor Dillard. Outra vez sacudiu a cabeça, mas logo lançou a Vance um olhar inquisitivo de desafio.

— Às vezes, ele passeia comigo — apressou-se a explicar. — Tem pena de mim e admira Adolph, a quem julga um gênio. E o é! Seria um grande homem... tão grande como o professor Dillard... se não fosse a sua enfermidade... E eu tive a culpa. Deixei-o cair ao chão quando era criança...

Um soluço seco sacudiu-lhe o corpo extenuado e seus dedos se moveram espasmòdicamente.

Após um momento, Vance perguntou:

— Sobre que falaram a senhora e o professor Dillard, ontem de manhã?

A mulher mostrou uma repentina perspicácia.

— De Adolph quase todo o tempo — disse ela numa tentativa evidente de mostrar naturalidade.

— Viu a senhora mais alguém no pátio ou no campo de exercícios?

Os olhos indolentes de Vance pousaram na mulher.

— Não — Outra vez foi a Sra. Drukker dominada por uma espécie de terror. — Contudo, alguém mais estava ali, não é verdade?... Alguém que desejava não ser visto. Sim! Alguém mais estava lá... E acreditaram que eu o havia visto... Porém, não vi! Oh, Deus misericordioso, eu não vi!...

— Ocultou o rosto nas mãos e seu corpo tremeu convulsivamente. — Se eu os tivesse visto! Se eu soubesse! Mas não era Adolph... Não era meu filho. Ele estava dormindo... graças a Deus, estava dormindo!

Vance aproximou-se mais da mulher.

— Por que dá graças a Deus de não ter sido seu filho?

— perguntou gentilmente.

Ela levantou os olhos, assombrada.

— Então, o senhor não se lembra? Um homenzinho disparou um tiro em John Sprigg com um pequeno revólver, ontem pela manhã... O mesmo homenzinho que matou Cock Robin, com um arco e uma flecha. Tudo isso é um jogo horrível... e eu tenho medo... Mas, não devo dizer... não posso dizer. O homenzinho se vingaria horrivelmente. Pode ser... — Sua voz exprimia horror. — Pode ser que ele tenha a idéia louca de que eu seja a velha que morava num sapato.

— Vamos, vamos, Sra. Drukker. — Vance forçou um sorriso consolador. — Não está bem que a senhora fale assim. A senhora deixou que isso tomasse conta de seu cérebro. Há uma explicação perfeitamente racional para todas as coisas. E eu penso que a senhora pode ajudar-nos a encontrar essa explicação.

— Não... não! Não posso... não devo! Eu mesma não compreendo. — Inspirou profunda e fortemente e apertou os lábios.

— Por que não pode dizer-nos? — insistiu Vance.

— Porque não sei — gritou ela. — Bem gostaria de saber! Só sei que algo horrível está-se passando aqui... que alguma terrível maldição paira sobre esta casa...

— Como sabe a senhora?

A mulher começou a tremer violentamente e seus olhos vagavam perdidos pelo teto.

— Porque — sua voz era apenas perceptível — porque o homenzinho veio aqui esta noite!

Um calafrio percorreu-me a medula ante tal revelação, e cheguei até a ouvir a respiração do imperturbável sargento. Em seguida soou a voz tranqüila de Vance:

— Como sabe que ele esteve aqui, Sra. Drukker? A senhora o viu?

— Não, não o vi. Mas ele tentou entrar neste quarto por aquela porta. — Apontou vagamente para a porta de entrada do hall, por onde acabávamos de entrar.

— A senhora deve contar-nos tudo — disse Vance — senão acabaremos crendo que a senhora forjou a história.

— Oh, não inventei nada... que Deus seja testemunha!

— Não podia haver dúvida alguma sobre a sinceridade da mulher. Algo havia ocorrido que a encheu de terror mortal.

— Eu estava desperta, deitada na cama. O pequeno relógio sobre a lareira deu onze horas. E eu ouvi um ruído surdo, fora, no hall. Voltei a cabeça para a porta... nesta mesa aqui havia uma lâmpada... em seguida percebi que a maçaneta se movia lentamente... silenciosamente... como se alguém procurasse penetrar aqui sem me despertar...

— Um momento, Sra. Drukker — interrompeu Vance.

— A senhora fecha sempre à chave a porta de seu quarto, quando se recolhe à noite?

— Até há pouco tempo não a fechava... até à morte do Sr. Robin. Desde então me senti de algum modo insegura... não posso explicar por quê...

— Compreendo. Peço que continue o relato. A senhora disse que viu a maçaneta mexer-se. E depois?

— Sim, sim. Movia-se suavemente, para um lado e para outro. Eu estava deitada ali, em minha cama, gelada de terror. Mas, ao fim de algum tempo pude gritar... não sei se muito alto; mas, subitamente a maçaneta parou de mover-se e ouvi passos que se afastavam rapidamente... pelo vestíbulo. Então pude levantar-me. Fui até à porta e escutei. Tinha medo... medo por causa do Adolph. E eu ouvi aqueles passos descendo pela escada...

— Que escada?

— A dos fundos... a que conduz à cozinha... Em seguida, a porta de tela de arame do pórtico fechou-se e tudo voltou ao silêncio outra vez... Ajoelhei-me, encostando o ouvido na fechadura, durante muito tempo, escutando, esperando. Porém, nada sucedeu. Por fim, me levantei... Algo parecia dizer-me que devia abrir a porta. Eu estava mortalmente amedrontada... e, não obstante, sabia que tinha de abrir a porta... — Um estremecimento percorreu-lhe o corpo. — Levemente, dei a volta à chave e peguei na maçaneta. Enquanto puxava a porta para dentro, lentamente, caiu ao chão, com ruído, um objeto pequeno que estava sobre a maçaneta, do lado de fora. No vestíbulo, estava acesa uma lâmpada... sempre conservo uma luz acesa toda a noite... e tentei não olhar para o chão... tentei... tentei... mas não podia. E ali, a meus pés... oh, Deus dos céus!... havia algo!...

Não pôde continuar. O terror parecia paralisar-lhe a língua. Entretanto, a voz de Vance, fria e insensível, chamou-a à realidade.

— Que é que havia no chão, Sra. Drukker?

Com dificuldade, a mulher levantou-se e, concentrando as forças um momento ao pé da cama, encaminhou-se para o toucador. Apanhando uma caixinha, abriu-a e procurou alguma coisa no seu interior. Em seguida, estendendo a mão em nossa direção, vimos na palma da mesma uma peça de xadrez... preta, de ébano, que contrastava com a brancura de sua pele. Era o bispo!


XIII

 

À SOMBRA DO BISPO

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h)


Vance tomou o bispo da mão da Sra. Drukker e pô-lo no bolso de seu casaco.

— Seria perigoso, senhora, — disse com propositada solenidade — que fosse divulgado o que aconteceu aqui, esta noite. Se a pessoa que amedrontou a senhora soubesse que a polícia já foi informada, poderia fazer novas tentativas para assustá-la. Por conseguinte, nenhuma palavra do que acaba de nos contar deve sair de seus lábios.

— Não posso contar a Adolph? — perguntou a mulher, agitada.

— A ninguém! A senhora deve guardar silêncio absoluto, mesmo em presença de seu próprio filho.

Eu não podia compreender a ênfase de Vance sobre este ponto. Antes, porém, que transcorressem muitos dias, tudo me foi esclarecido. O motivo de tal conselho revelou-se com força trágica. E eu verifiquei que, no mesmo momento da exposição da Sra. Drukker, o espírito penetrante de Vance havia realizado um raciocínio impressionantemente exato e também previsto certas possibilidades insuspeitadas por todos nós.

Ao cabo de um momento, retiramo-nos descendo pela escada de serviço. Esta dobrava para a direita, ao chegar a um patamar, oito ou dez degraus abaixo do segundo andar. Conduzia a um corredor escuro com duas portas: uma à esquerda, que dava para a cozinha e a outra, diagonalmente oposta, que dava para o pórtico, onde se encontra a porta de grades. Saímos imediatamente pelo pórtico, banhado agora pela luz solar, paramos sem dizer palavra, procurando afastar de nós a atmosfera criada pela terrível experiência por que passara a Sra. Drukker.

Markham foi o primeiro a falar.

— Acredita você, Vance, que a pessoa que trouxe esta pedra de xadrez na noite passada seja o assassino de Robin e Sprigg?

— Sem dúvida alguma. O propósito da sua visita da meia-noite é espantosamente claro. Está de acordo com o que já foi esclarecido.

— A mim parece uma pilhéria de mau gosto — respon-i deu Markham. — Obra de um bêbedo diabólico...

Vance sacudiu a cabeça.

— Em todo este pesadelo, é a única coisa que não pode qualificar-se como obra de insano humorismo. Foi uma incursão tremendamente séria. O próprio diabo nunca é tão solene como quando disfarça suas pegadas. A mão do nosso diabo em questão havia sido forçada, e ele fez uma jogada audaciosa. Juro que prefiro seu temperamento jovial ao que o impulsionou a penetrar aqui a noite passada. Entretanto, temos agora alguma coisa positiva em que nos apoiarmos.

Heath, impaciente com tanta teoria, recolheu rapidamente estas últimas palavras.

— E que poderá ser essa coisa, senhor?

— Em primeiro lugar, podemos afirmar que nosso jogador de xadrez está muito familiarizado com a planta desta casa. A luz noturna do vestíbulo superior podia espalhar sua claridade pela escada até ao patamar, mas o resto do percurso deve ter ficado às escuras. Mais ainda, a distribuição da parte posterior da casa é um tanto complicada. Por conseguinte, a menos que conhecesse esta distribuição, não podia encontrar seu caminho nas trevas, sem fazer barulho. Indubitavelmente, o visitante noturno também sabia qual era o quarto da Sra. Drukker e o fato de o filho dela não ter ainda voltado para casa, nesta noite, pois não se teria arriscado a fazer sua visita se não estivesse certo de que o terreno estava livre.

— Até agora, isto não nos ajuda muito — grunhiu Heath.

— Estamos desde o princípio convencidos de que o assassino conhecia tudo que se relaciona com estas duas casas, e não nos podemos afastar dessa convicção.

— É verdade. Mas, pode-se ser íntimo de uma família e, não obstante, ignorar a hora em que se recolhe cada uma das pessoas que a formam, em determinada noite, e como efetuar uma entrada sub-reptícia na casa. Mais ainda, sargento, nosso visitante noturno sabia que a Sra. Drukker costumava deixar sem chave, todas as noites, a porta do seu quarto. A intenção do indivíduo era penetrar no quarto e não deixar, simplesmente, sua pequena lembrança no lado de fora e logo partir. Prova isto a maneira furtiva de mexer na maçaneta.

— É possível que tenha querido simplesmente despertar a Sra. Drukker, para que ela encontrasse imediatamente o objeto — sugeriu Markham.

— Então, por que moveu tão cuidadosamente a maçaneta, como se procurasse não despertar ninguém? Um ruído na maçaneta, uma batida suave na porta, ou simplesmente atirar contra esta a peça de xadrez teria correspondido melhor ao seu propósito... Não, Markham, ele tinha um objetivo mais sinistro, mas, quando encontrou a porta fechada à chave e ouviu o grito de medo da Sra. Drukker, colocou o bispo em lugar que ela o pudesse achar e fugiu.

— Apesar disto, senhor, — redargüiu Heath, — qualquer pessoa podia saber que ela não fechava a porta de seu quarto à chave, à noite, e conhecer a disposição interna da casa para encontrar saída no meio da escuridão.

— Mas, sargento, quem poderia ter uma chave para abrir a porta dos fundos? E quem poderia tê-la usado à meia-noite?

— A porta poderia ter ficado aberta — replicou Heath

— e, quando confrontarmos os álibis de todos, poderemos ter uma pista.

Vance suspirou.

— Provavelmente encontraremos duas ou três pessoas, sem qualquer álibi. E, se a visita da noite passada foi planejada, um convincente álibi pode ter sido preparado. Não estamos lidando com um simplório, sargento. Estamos jogando uma partida de morte com um assassino sutil e de muitos recursos, que pode pensar tão rapidamente como nós e que é amplamente versado nas sutilezas da lógica...

Como movido por um súbito impulso, virou-se, passando para dentro e fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. Dirigiu-se para a cozinha, onde a alemã que nos havia recebido antes estava fleumàticamente sentada a uma mesa, preparando o almoço. Ela levantou-se no momento em que entrávamos e afastou-se de nós. Vance, intrigado por aquele procedimento, estudou-a por alguns momentos em silêncio. Então, seus olhos dirigiram-se para a mesa onde uma berinjela grande tinha sido cortada longitudinalmente em duas metades.

— Ah! — exclamou ele, olhando o conteúdo dos vários pratos que ali havia. — Aubergines à la Turque, hem? Excelente prato. Entretanto, em seu caso, eu teria picado a carne de carneiro em pedaços menores. E não lhe teria posto tanto queijo, pois não combina com o molho espanhol que você está preparando. — Levantando a vista, com sorriso agradável, perguntou: — A propósito, como se chama você?

Seus modos aturdiram grandemente a. mulher, mas também tiveram o efeito de aliviar os temores dela.

— Menzel — respondeu ela com voz sumida. — Greta Menzel.

— Há quanto tempo está com os Drukkers?

— Vai para vinte e cinco anos.

— Muito tempo — comentou Vance pensativamente. — Diga-me: Por que você se assustou quando chegamos?

A mulher irritou-se e cerrou os punhos.

— Eu não estava assustada. Mas o Sr. Drukker estava ocupado.

— Você pensou talvez que viéssemos prendê-lo — disse Vance.

Seus olhos dilataram-se, porém ela não respondeu.

— A que horas o Sr. Drukker se levantou ontem de manhã? — continuou Vance.

— Já lhe disse... às nove horas... como sempre.

— A que horas se levantou o Sr. Drukker? — O tom insistente e preciso de sua voz era muito mais nefasto do que qualquer gesticulação dramática.

— Eu lhe disse...

— Die Wahrheit, Frau Menzel! Um wie viel Uhr ist er aufgestanden?

O efeito psicológico dessa repetição da pergunta em alemão foi instantâneo. A mulher cobriu o rosto com as mãos e deixou escapar um grito abafado como de um animal que caiu numa armadilha.

— Eu não sei... — gemeu ela. — Eu o chamei às oito e meia, porém não me respondeu; tratei de abrir a porta... não estava com chave... e... Du lieber Gott!... Ele tinha saído.

— Quando foi que você o viu depois disso? — perguntou Vance tranqüilamente.

— Às nove. Subi outra vez para dizer-lhe que o desjejum estava pronto. Encontrei-o no escritório... em sua escrivaninha... trabalhando como um louco e num estado de excitação muito grande. Mandou-me embora.

— Desceu para comer?

— Sim... Sim... Desceu... meia hora depois.

A mulher apoiou-se pesadamente na pia e Vance puxou uma cadeira para junto dela.

— Sente-se, Sra. Menzel — disse bondosamente. Assim que ela obedeceu, perguntou-lhe: — Por que me disse esta manhã que o Sr. Drukker se levantou às nove?

— Tive de dizê-lo... obrigaram-me a isto. — Sua resistência havia desaparecido e ela respirava pesadamente como uma pessoa cujas forças se houvessem esgotado. — Quando a Sra. Drukker voltou ontem da casa da Srta. Dillard, disseme que, se alguém perguntasse isso acerca do Sr. Drukker, eu dissesse "Às nove horas". Obrigou-me a jurar que eu o diria... — Sua voz desvaneceu-se e seus olhos tornaram-se vidrados. — Eu tinha medo de dizer coisa diferente.

Vance parecia ainda desconcertado. Depois de tirar algumas baforadas do seu cigarro, observou:

— Não há nada no que você nos disse que possa afetá-la deste modo. Não é raro que uma mulher mórbida como a Sra. Drukker tenha tomado semelhante medida fantástica para proteger seu filho contra uma possível suspeita, quando um assassinato foi cometido na vizinhança. Decerto você está há bastante tempo com ela para perceber como poderia exagerar qualquer possibilidade remota relativamente a seu filho. Na verdade, eu estou surpreendido de ver como você leva isso tão a sério. Terá você algum outro motivo que relacione o Sr. Drukker com esse crime?

— Não!... não!... — A mulher sacudiu a cabeça, fora de si.

Vance caminhou até a janela dos fundos, franzindo o cenho. Subitamente voltou-se. Tornara-se severo e implacável.

— Onde estava você, Menzel, na manhã em que o Sr. Robin foi morto?

Uma mudança surpreendente operou-se na mulher. O rosto tornou-se lívido; os lábios tremeram e as mãos crisparam-se em um gesto espasmódico. Ela procurou desviar seu olhar de Vance, porém algo nos olhos deste a retinha.

— Onde estava você, Menzel? — A pergunta foi repetida duramente.

— Eu estava... aqui... — começou a dizer; então deteve-se bruscamente e lançou um olhar agitado a Heath, que a olhava fixamente.

— Estava na cozinha?

Ela fez que sim com a cabeça. Parecia que a mulher havia perdido a voz.

— E viu o Sr. Drukker voltar da casa de Dillard? Outra vez ela respondeu afirmativamente com a cabeça.

— Exatamente — disse Vance. — E ele entrou pelos fundos, pela porta de grades do vestíbulo, e subiu... E ele não sabia que você o viu pela porta da cozinha... E, mais tarde, perguntou onde teria você estado àquela hora... E quando você lhe disse que tinha estado na cozinha, ordenou-lhe que guardasse silêncio sobre isso... E depois você soube da morte do Sr. Robin uns minutos antes do momento em que você o vira entrar aqui... E, ontem, quando a Sra. Drukker ordenou a você que dissesse que ele não se tinha levantado antes das nove, e quando você soube que alguém também tinha sido morto perto daqui, você suspeitou e assustou-se... Não é assim, Menzel?

A mulher, soluçando em voz alta, cobriu o rosto com o avental. Não havia necessidade de que ela confessasse, pois era evidente que Vance tinha adivinhado a verdade.

Heath tirou o cigarro da boca e olhou-a ferozmente.

— E então! Tudo isto você estava ocultando de mim, hem? — vociferou projetando o queixo. — Você me mentiu, quando eu a interroguei outro dia. Criando obstáculo à ação da justiça, não é?

Ela lançou a Vance um olhar aterrorizado, em busca de proteção.

— A Sra. Menzel, sargento, — disse ele — não teve a intenção de obstruir a ação da polícia; desde que ela nos disse a verdade, creio que poderemos relevar seu erro, que é perfeitamente natural no caso. — Então, antes que Heath tivesse tempo de responder, virou-se para a mulher e perguntou-lhe em tom indiferente:

— Você fecha todas as noites com chave a porta que dá para o vestíbulo?

— Sim... todas as noites. — Ela falava negligentemente. A reação do medo a havia deixado apática.

— Tem certeza de que a fechou a noite passada?

— Às nove e meia... quando eu fui para a cama. Vance atravessou o pequeno corredor e inspecionou a fechadura.

— É uma fechadura de mola — observou ele, voltando. — Quem tem chave desta porta?

— Eu tenho uma e a Sra. Drukker... tem também outra.

— Está certa de que ninguém mais tem chave?

— Ninguém mais, exceto a Srta. Dillard...

— A Srta. Dillard? — A voz de Vance ressoou, subitamente com interesse. — Por que ela deve ter chave?

— Há muito tempo que ela tem uma. Ela é como da família... Vem aqui duas ou três vezes por dia. Quando eu saio, fecho a porta com a chave. Assim, tendo ela uma, evita o incômodo à Sra. Drukker de descer para abrir-lhe a porta.

— Muito natural — murmurou Vance, acrescentando em seguida: — Não a incomodaremos mais, Menzel.

Dito isto, saímos pelo pequeno pórtico posterior. Uma vez fechada a porta atrás de nós, Vance apontou para a porta de grade, que dava para o pátio.

— Note como foi forçada essa tela de arame até separá-la da moldura, permitindo que pudessem meter a mão para puxar o ferrolho, ou pôr a chave da Sra. Drukker ou da Srta. Dillard na fechadura... Provavelmente, foi a chave desta última que usaram para abrir a porta da casa.

Heath meneou a cabeça. Este aspecto tangível do caso lhe agradava. Mas Markham não prestava atenção. Permanecia à margem, fumando com um ar de desprezo. Daí a pouco, voltou-se com resolução para tornar a entrar na casa, quando Vance lhe segurou no braço.

— Não... não, Markham! Esta seria uma técnica abominável. Domine sua raiva. Você é muito impulsivo, sabe?

— Mas, que diabo, Vance! — Markham sacudiu o braço até libertar-se. — Drukker mentiu-nos dizendo que saíra pelo portão de Dillard antes do assassinato de Robin...

— Já sei que ele mentiu. Eu suspeitei sempre de que o relato de seus movimentos era um tanto fantástico. Porém, é inútil subir agora e ameaçá-lo por causa disto. Dirá simplesmente que a cozinheira se enganou.

Markham não se convencia.

— Mas, e sobre ontem de manhã? Quero saber onde ele estava, quando a cozinheira o chamou às oito e meia. Por que a Sra. Drukker estava tão ansiosa em nos fazer acreditar que seu filho dormia?

— Provavelmente, ela foi também ao quarto dele e viu que não estava. E, quando soube da morte de Sprigg, sua imaginação febril sobressaltou-se e começou a construir um álibi. E você apenas aumentará sua perturbação, se lhe mostrar as discrepâncias do seu depoimento.

— Não tenho tanta certeza assim. — Markham falava com gravidade significativa. — Posso estar encaminhando uma solução para este odioso assunto.

Vance demorou em responder. Permaneceu olhando lá embaixo as sombras trêmulas que os salgueiros projetavam no chão. Afinal disse em voz baixa:

— Não podemos arriscar. Se o que você pensa fosse verdadeiro e você revelasse a informação acabada de receber, o homenzinho, que na noite passada esteve aqui, voltaria outra vez. E, desta vez, não se contentaria em deixar a pedra de xadrez fora da porta!

Uma expressão de terror apareceu no olhar de Markham.

— Você crê que eu poderia comprometer a segurança da cozinheira, se usasse de suas informações contra ele neste momento?

— O terrível deste assunto é que, enquanto não soubermos a verdade, encontraremos o perigo diante de nós a cada passo que dermos. — A voz de Vance denotava desânimo. — Não podemos pôr em risco a vida de ninguém.

A porta que dava para o vestíbulo abriu-se e Drukker apareceu no umbral com seus olhos miúdos pestanejando, à luz do sol. Seu olhar pousara em Markham e um sorriso artificial e repulsivo desenhava-se-lhe nos lábios.

— Espero não incomodar os senhores — disse em tom de desculpas e com um olhar furtivo e ameaçador. — Mas a cozinheira acaba de informar-me que lhes disse que me havia visto entrar aqui pela porta dos fundos, na manhã da infortunada morte do Sr. Robin.

— Oh, sim? — murmurou Vance, virando-se, ao mesmo tempo em que escolhia um outro cigarro.

Drukker lançou-lhe um olhar inquiridor e ergueu-se com uma espécie de cínica altivez.

— E que importância tem isso, Sr. Drukker? — perguntou Markham.

— Simplesmente, desejava assegurar aos senhores — replicou Drukker — que a cozinheira estava enganada. Evidentemente, confundiu a data... Como sabem os senhores, entro e saio por esta porta muitíssimas vezes. Na manhã da morte de Robin, como já lhes expliquei, saí para o campo de exercício pelo portão que dá para a Rua 75 e, depois de um ligeiro passeio pelo parque, voltei para casa, entrando pela porta da frente. Já convenci a Greta de que ela se enganou.

Vance escutava atentamente. Voltou-se então e encontrou o sorriso do outro.

— Por acaso, não a terá convencido com uma peça de xadrez?

Drukker sacudiu a cabeça e sorveu profundamente o ar. Seu peito recurvado tornou-se teso; os músculos ao redor dos olhos e da boca começaram a contorcer-se e as veias e liga-mentos do seu pescoço estufaram e ficaram firmes como cordas distendidas. Por um momento, acreditei que ele fosse perder o domínio de si mesmo; porém conteve-se, com grande esforço.

— Não compreendo, senhor. — Havia nas suas palavras a vibração de uma raiva intensa. — Que significa isso de pedras de xadrez?

— As peças de xadrez têm vários nomes — respondeu Vance suavemente.

— Está o senhor falando de xadrez? — Um desprezo venenoso marcou as maneiras de Drukker, mas ele procurava sorrir. — É muito certo, as peças de xadrez têm vários nomes; o rei, a rainha, o cavalo, a torre... — Aqui se deteve. — O bispo!... — Apoiou a cabeça no umbral da porta e começou a rir melancòlicamente. — Então! Refere-se o senhor a isto? O bispo!... Os senhores são umas crianças imbecis que jogam uma partida estúpida e insensata.

— Temos um motivo excelente para crer — disse Vance com calma impressionante — que o jogo está sendo jogado por outro... com o bispo do xadrez como símbolo principal.

Drukker ficou calado.

— Não leve a sério demasiadamente as extravagâncias de minha mãe — aconselhou ele. — Sua imaginação prega-lhe peças algumas vezes.

— Ah! E por que menciona agora a sua mãe?

— Porque os senhores acabam de falar com ela, não é? E os comentários dos senhores, devo dizer, se parecem muitíssimo com uma de suas alucinações inofensivas.

— Por outro lado, — retornou Vance suavemente, — sua mãe pode ter bases suficientes para as suas crenças.

Os olhos de Drukker semicerraram-se e voltaram-se rapidamente para Markham.

— Tolices!

— Ah, muito bem — suspirou Vance. — Não discutiremos este ponto. — Em seguida, com um tom de voz alterado, acrescentou: — Poderia ser-nos útil, se soubéssemos, Sr. Drukker, onde esteve entre as oito e nove horas da manhã de ontem.

O homem abriu ligeiramente a boca como para falar, mas fechou-a rapidamente de novo, olhando perscrutadoramente para Vance. Afinal, respondeu em voz alta e insistente:

— Estive trabalhando... em meu escritório... desde as seis até às nove e meia. — Fez uma pausa, mas sentiu que era necessário ampliar sua explicação. — Durante vários meses tenho estado trabalhando na modificação de uma teoria para explicar a interferência da luz, o que a teoria do "quantum" é incapaz de fazer. Dillard disseme que era impossível. — Uma luz de fanático brilhou em seus olhos. — Mas, acordei cedo, ontem de manhã, com certos fatores do problema já esclarecidos. Levantei-me e fui para o escritório...

— Então foi ali que esteve o senhor — disse Vance displicentemente. — Não tem grande importância. Sinto tê-lo incomodado hoje. — Fez sinal a Markham com a cabeça e encaminhou-se para a porta de grade.

No momento em que nos dirigíamos para o campo de exercícios, voltou-se e disse:

— A Sra. Menzel está sob a nossa proteção. Afetar-nos-ia muitíssimo, se lhe acontecesse algum mal...

Drukker viu-nos afastar com uma espécie de fascínio no olhar.

Quando não podíamos mais ser ouvidos, Vance aproximou-se de Heath e lhe disse com voz cheia de preocupação:

— Sargento, aquela honesta alemã pode ter posto a sua cabeça inconscientemente no laço. E eu tenho medo. Não seria demais que destacássemos debaixo deste salgueiro um bom homem com a missão de vigiar a parte posterior da casa de Drukker esta noite. E diga-lhe que entre, ao primeiro grito ou chamado... Eu descansarei melhor, se souber que há um anjo guardião, em trajes civis, velando o sono de Frau Menzel.

— Compreendo, senhor. — O rosto de Heath estava sombrio. — Esta noite nenhum jogador de xadrez a incomodará.


XIV

 

UMA PARTIDA DE XADREZ

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h30)

 


Enquanto nos dirigíamos lentamente para a casa de Dillard, ficou decidido que se fizessem investigações imediatas acerca dos lugares por onde andaram as pessoas que, de qualquer forma, se achavam envolvidas no horrendo drama.

— Devemos ter muito cuidado em não deixar escapar algo do que aconteceu à Sra. Drukker — aconselhou Vance. — Nosso portador noturno de bispos não tinha a intenção de que viéssemos a saber de sua visita de meia-noite. Julgou que a pobre senhora estaria demasiado assustada para nô-la revelar.

— Estou inclinado a crer — objetou Markham — que você está emprestando demasiada importância a esse episódio.

— Oh, meu caro companheiro! — Vance deteve-se brevemente e pôs as duas mãos nos ombros de Markham. — Você é por demais inocente... este é seu grande defeito. Você não sente... Você não é filho da natureza. A poesia de sua alma converteu-se em prosa. Ora, eu, ao contrário a você, deixo voar minha imaginação e digo-lhe que a colocação daquele bispo na porta do quarto da Sra. Drukker não foi uma inocente travessura, mas o ato desesperado de um homem. Era um sinal de aviso.

— Crê que ela saiba algo?

— Eu penso que ela viu o corpo de Robin no campo de exercícios. E creio que viu também alguma coisa que daria sua vida para não ter visto.

Caminhávamos em silêncio. Era nossa intenção passar pelo portão da Rua 75 e nos apresentar pela porta principal da casa de Dillard; porém, ao passarmos pela sede do clube, a porta abriu-se e Belle Dillard encarou-nos ansiosamente.

— Vi os senhores se dirigirem para o campo de exercícios — disse ela com certa perturbação, dirigindo suas palavras para Markham. — Há uma hora que venho procurando falar-lhe... telefonei para o seu gabinete... — Suas maneiras tornaram-se mais agitadas. — Alguma coisa estranha sucedeu. Oh, pode não ser nada... mas, quando entrei na sede do clube esta manhã, com a idéia de visitar a Lady Mae, um impulso qualquer fez-me ir ao armário das ferramentas outra vez e olhar a gaveta... parecia tão... tão estranho que o pequeno revólver fosse roubado... Pois ali estava... bem à vista... ao lado do outro! — Ela respirou ansiosa. — Sr. Markham, alguém, na última noite, o pôs de novo na gaveta.

Esta informação foi para Heath como um choque elétrico.

— Você tocou nele? — perguntou nervosamente.

— Por quê?... Não...

O sargento passou junto a ela, quase roçando-a, sem cerimônia alguma, encaminhando-se para o armário das ferramentas e abriu-o violentamente. Junto à automática maior que havíamos visto no dia anterior, estava o pequeno 32, de cabo de nácar. Os olhos do sargento brilharam ao correr seu lápis pela guarda do gatilho, levantando-a cuidadosamente. Suspendeu-o e cheirou a extremidade do cano.

— Uma cápsula vazia — anunciou com satisfação. — Foi descarregada recentemente... Isto nos pode esclarecer alguma coisa. — Enrolou cuidadosamente o revólver em um lenço e guardou-o no bolso do casaco.

— Encarregarei Dubois de examinar as impressões digitais e farei com que o capitão Hagedorn (1) examine as balas.

(1) O capitão Hagedorn era perito em armas de fogo, no Departamento de Polícia de Nova York. Foi ele quem, no caso do assassinato de Benson, deu a Vance os dados, com os quais ele estabeleceu a altura do assassino; e quem fez o exame das três balas disparadas com o revólver Smith Wesson, no assassinato dos Greenes.


— Esta é muito boa, sargento — disse Vance zombeteiramente. — Então você acredita que o cavalheiro que procuramos e que limpou o arco e a flecha ia deixar o seu monograma digital em um revólver?

— Não tenho sua imaginação, senhor Vance — replicou Heath grosseiramente. — Portanto, continuarei fazendo aquilo que deve ser feito.

— Você tem razão. — Vance sorriu com admiração e bom humor pela tenacidade esplêndida do sargento. — Perdoe-me por procurar arrefecer seu zelo. — E, voltando-se para Belle Dillard, acrescentou:

— Nós viemos aqui principalmente para ver o professor e o Sr. Arnesson. Mas há também alguma coisa sobre que nós desejaríamos conversar com você. Nós sabemos que você tem uma chave da porta dos fundos da casa de Drukker.

Ela fez um movimento confuso de cabeça.

— Sim. Faz anos que a tenho. Vou e volto tantas vezes durante o dia, e evito desse modo molestar a Lady Mae...

— Nosso único interesse pela chave é que pode ter sido usada por alguém que não tinha direito a tal.

— Mas isso é impossível. Nunca a emprestei a ninguém. E eu sempre guardo em minha bolsa.

— E todo mundo sabe que você tem essa chave?

— Por quê?... Creio que sim. — Estava evidentemente perplexa. — Nunca fiz segredo disso. Certamente toda a família sabe disso.

— E teria você talvez mencionado ou revelado o fato na presença de estranhos?

— Sim... Embora não possa recordar-me de um exemplo específico.

— Está certa de possuir a chave agora?

Ela lançou a Vance um olhar de assombro e, sem dizer palavra, tomou da mesa uma carteirinha de couro de lagarto. Abrindo-a, meteu a mão rapidamente em um dos compartimentos interiores.

— Sim! — anunciou ela com alívio. — Está onde sempre a guardo... Por que pergunta isso?

— É importante que nós saibamos quem teve acesso à casa de Drukker — disselhe Vance. Então, antes que ela tivesse tempo de responder-lhe, perguntou: — Podia a chave ter saído de sua posse a noite passada? Isto é, podia ter sido retirada de sua carteira sem que você soubesse?

A fisionomia de Belle cobriu-se de um ar de terror.

— Oh! Que sucedeu?... — começou a dizer, mas Van-ce a interrompeu.

— Por favor, Belle! Não há nada que possa preocupá-la. Estamos simplesmente lutando para eliminar as possibilidades mais remotas relacionadas com nossa investigação. Diga-me: podia alguém ter-se apoderado dessa chave na noite passada?

— Ninguém — respondeu ela, embaraçada. — Fui ao teatro às oito horas e não me separei um instante de minha carteira.

— Quando usou a chave pela última vez?

— A noite passada, depois de cear. Dei um pulo lá, para ver como estava Lady Mae e desejar-lhe uma boa noite.

Vance franziu ligeiramente o cenho. Pude ver que aquela informação não se enquadrava com alguma teoria que havia formado.

— Você fez uso da chave depois da ceia — insistiu — e conservou-a em sua carteira o resto da noite, sem deixá-la um momento fora do alcance de sua vista. Não é assim, Belle?

A jovem afirmou com um movimento de cabeça.

— Mais ainda, durante o espetáculo, conservei a carteira no colo — acrescentou a jovem.

Vance olhou a carteira pensativamente.

— Bem, — disse displicentemente. — Assim termina o romance da chave. E agora vamos incomodar seu tio novamente. Crê você conveniente servimo-nos de um avant-courir, ou lhe parece melhor que assaltemos a cidadela, sem nos anunciar?

— O tio saiu — disse a moça. — Foi passear no Drive.

— E o Sr. Arnesson ainda não voltou da Universidade, não é?

— Não; mas estará para o almoço. Às terças, à tarde, ele não tem aula.

— Então, nesse intervalo, conferenciaremos com Beedle e com o admirável Pyne. Eu poderia sugerir-lhe que uma visita sua à Sra. Drukker seria muito útil para ela neste momento.

Com um sorriso de preocupação e uma ligeira inclinação de cabeça, a jovem saiu pela porta do porão.

Heath, imediatamente, foi em busca de Beedle e de Pyne, trazendo-os à sala, onde Vance os interrogou sobre a noite precedente. Entretanto, não obteve deles nenhuma informação. Os dois haviam-se deitado às dez. Seus quartos ficavam no quarto andar, num lado da casa. E nem sequer ouviram a Srta. Dillard entrar, quando voltou do teatro. Vance perguntou-lhes se haviam ouvido algum ruído no campo de exercícios e informou-lhes que a porta de grades do vestíbulo da casa de Drukker poderia ter sido fechada com estrondo, cerca da meia-noite. Porém, aparentemente, os dois estavam dormindo àquela hora. Finalmente foram liberados com a advertência de não transmitirem a ninguém o que lhes fora perguntado. Cinco minutos depois, entrou o professor Dillard. Ainda que se surpreendesse, ao nos ver, cumprimentou-nos amavelmente.

— Pela primeira vez, Markham, escolheu você uma hora para a sua visita em que eu não estou ocupado. Imagino que isto significa mais interrogações. Bem, passem para a biblioteca e perguntem o que quiserem. Lá estaremos mais à vontade. — Ele foi à nossa frente, escada acima.

Uma vez sentados na biblioteca, insistiu em oferecer-nos um copo de vinho do Porto que ele mesmo serviu.

— Drukker deveria estar aqui — disse o professor. — Tem muito carinho pelo meu "Noventa e seis", embora ele beba somente em raras ocasiões. Eu disselhe que deveria tomar mais vinho do Porto; mas ele pensa que lhe faz mal e lembra a minha gota. Todavia, não existe relação alguma entre a minha gota e o vinho do Porto... A opinião é mera superstição. Um bom vinho do Porto é o mais são de todos os vinhos. A gota não é conhecida na cidade do Porto. Drukker precisa de um pouco de estimulante físico de boa qualidade... Pobre homem! Seu espírito é como um forno que lhe queima o corpo. É um homem brilhante, Markham. Se tivesse suficiente energia física, que se harmonizasse com o seu espírito, seria um dos maiores físicos do mundo.

— Ele me disse — comentou Vance — que o senhor o censurou por sua inabilidade em elaborar uma modificação da teoria dos quanta em relação à interferência da luz.

O ancião sorriu tristemente.

— Sim. Eu sabia que essa crítica o estimularia a fazer um esforço máximo. O fato é que Drukker está na pista de algo revolucionário. Já resolveu vários teoremas interessantes... Entretanto, estou certo de que não é isso que os senhores vieram discutir aqui. Em que posso servir-lhe, Markham? Ou, acaso, vieram trazer-me notícias?

— Infelizmente, não temos notícias para dar-lhe. Vimos solicitar seu auxílio outra vez... — Markham hesitou, como se não soubesse como proceder; e Vance assumiu o papel de inquiridor.

— A situação mudou um pouco desde que estivemos aqui, ontem. Um ou dois fatos novos surgiram e há uma possibilidade de que nossa investigação seja facilitada, se soubermos das atividades exatas dos membros da sua casa, durante a noite passada. Essas atividades, de fato, podem ter influenciado certos fatores neste caso.

O professor ergueu a cabeça com alguma surpresa, porém não fez comentário nenhum. Limitou-se a dizer:

— Esta informação é fácil de dar. A quem se refere o senhor?

— A ninguém em particular. — Vance apressou-se a afirmar.

— Bem, deixe-me pensar. — Tirou seu velho cachimbo de espuma do mar e começou a enchê-lo. — Belle, Sigurd e eu jantamos às seis; às sete e meia, Drukker chegou e, minutos depois, Pardee. Às oito, Sigurd e Belle foram ao teatro, c às dez e meia Drukker e Pardee se retiraram. Pouco depois das onze, recolhime ao quarto, tendo fechado à cha+ve as portas da casa. Disse a Pyne e a Beedie que podiam deitar-se cedo. Eis aí tudo que posso dizer-lhes.

— Devo entender que a Srta. Dillard e o Sr. Arnesson foram juntos ao teatro?

— Sim, Sigurd raramente vai ao teatro, mas, quando vai, sempre leva Belle. Na maior parte das vezes, assiste às representações das obras de Ibsen. Sua educação norte-americana não lhe diminuiu em nada o entusiasmo por tudo o que é norueguês. É devotado de todo o coração à sua terra natal. Também conhece a literatura norueguesa como qualquer professor da Universidade de Oslo; e a única música que admira realmente é a de Grieg. Quando vai aos concertos ou aos teatros, com toda a certeza, os programas são quase sempre noruegueses.

— Então ontem à noite assistiu a um drama de Ibsen?

— Creio que levaram a cena o Rosmersholm. Atualmente estão revivendo em Nova York o repertório ibseniano.

Vance meneou a cabeça.

— Walter Hampden é o protagonista. O senhor viu Arnesson ou a Srta. Dillard depois que voltaram do teatro?

— Não. Parece-me que voltaram tarde. Belle me disse esta manhã que, terminado o espetáculo, foram cear no Hotel Palace. Todavia, Sigurd estará aqui dentro de pouco tempo e lhe fornecerá mais pormenores.

Embora o professor falasse com paciência, era visível que se sentia incomodado pela natureza aparentemente irrelevante das perguntas.

— Terá o senhor a bondade — prosseguiu Vance — de dizer-nos as circunstâncias relacionadas com as visitas dos Srs. Drukker e Pardee, depois do jantar?

— Não havia nada de extraordinário sobre essas visitas. Eles vêm, muitas vezes, aqui, à noite. O objeto da visita de Drukker era discutir comigo o trabalho que havia feito na sua modificação da teoria dos quanta. Mas, quando Pardee apareceu, a discussão cessou. Este homem é um bom matemático, porém a física superior está muito além dele.

— O Sr. Drukker ou o Sr. Pardee viram a Srta. Dillard antes de ela ir para o teatro?

O professor Dillard tirou lentamente o cachimbo da boca e sua expressão denunciava enfado.

— Devo dizer — replicou irritado — que não vejo nenhuma utilidade em responder tais perguntas. Todavia, — acrescentou, com um tom de voz mais indulgente, — se as trivialidades da minha casa lhes podem ser úteis, terei prazer em lhes dar todos os pormenores. — Olhou para Vance por um momento. — Sim, tanto Drukker como Pardee viram Belle, ontem à noite. Todos, inclusive Sigurd, estivemos juntos nesta mesma sala, meia hora antes de eles saírem para o teatro. Houve também uma discussão acidental sobre o gênio de Ibsen, na qual Drukker aborreceu bastante Sigurd, sustentando a superioridade de Hauptmann.

— Então, segundo vejo, o Sr. Arnesson e a Srta. Dillard saíram às oito, ficando aqui o senhor, Pardee e Drukker.

— Exatamente.

— E às dez e meia, creio que o senhor disse, Drukker e Pardee se retiraram. Retiraram-se juntos?

— Desceram juntos — respondeu o professor com mais uma demonstração de acrimônia. — Creio que Drukker foi para sua casa, mas Pardee tinha um encontro no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Parece muito cedo para que Drukker se recolhesse — murmurou Vance — especialmente, tendo ele um assunto importante a discutir com o senhor e não tivesse tido a oportunidade de fazê-lo até o momento de retirar-se.

— Drukker não está bom. — A voz do professor era outra vez estudadamente paciente. — Como já lhes disse, ele se cansa logo. A noite passada, achava-se extraordinariamente esgotado. De fato, queixou-se para mim da sua fadiga e disseme que ia imediatamente para a cama.

— Sim... é certo — murmurou Vance. — Ele nos disse há momentos que esteve trabalhando ontem, desde as seis da manhã.

— Não me surpreende. Uma vez que um problema se assenta em seu espírito, ele trabalha incessantemente nele. Infelizmente, não tem reações normais para contrabalançar sua paixão absorvente pelas matemáticas. Há ocasiões em que eu me tenho preocupado com sua estabilidade mental.

Vance, por algum motivo, fez a conversação mudar de rumo.

— O senhor falou do compromisso de Pardee, a noite passada no Clube de Xadrez, — disse após acender cuidadosamente um novo cigarro. — Disse-lhe a natureza do mesmo?

O professor Dillard sorriu com afável tolerância.

— Falou a respeito durante uma hora. Parece que um cavalheiro chamado Rubinstein, um gênio do mundo enxadrista, segundo tenho ouvido, que está agora visitando este país, o tinha convidado para jogar três partidas de exibições. A última foi ontem. Começou às duas noras e, às seis, adiaram-na. Deveriam ter jogado às oito, porém Rubinstein era convidado de honra num banquete; assim, marcaram para continuá-la às onze. Pardee estava em um estado de agonia, porque perdeu a primeira partida e empatou a segunda. E se, na noite passada, ganhasse, conseguiria um empate com Rubinstein. Parecia pensar que tinha uma excelente probabilidade, pelo modo como tinha deixado o jogo às seis, embora Drukker discordasse dele. Ele deve ter ido diretamente daqui para o clube, porque já eram dez e meia quando ele e Drukker se retiraram.

— Rubinstein é um forte jogador — observou Vance. Uma nova nota de interesse, que procurou ocultar, transpareceu em sua voz. — É um dos grandes mestres do xadrez.

— Derrotou Capablanca em San Sebastian em 1911, e entre 1907 e 1912 foi considerado o contendor lógico para o título de campeão mundial em poder do Dr. Lasker... Sim, seria um grande galardão para Pardee, se o derrotasse. Por certo, apesar da fama de seu gambito, Pardee nunca foi considerado um mestre. A propósito, o senhor sabe o resultado da partida da noite passada?

Outra vez, observei um sorriso débil de tolerância nos cantos dos lábios do professor Dillard. Dava a impressão de olhar, de uma grande altura intelectual, benevolentemente, para travessuras de crianças.

— Não — respondeu ele. — Não perguntei. Mas sou de parecer que Pardee tenha perdido, pois que, quando Drukker assinalou o ponto fraco de sua posição, ao ser suspensa a partida, foi mais positivo do que de costume. Drukker é por natureza cauteloso, e raramente expressa uma opinião definida sobre um problema, sem ter uma base sólida para assim fazê-lo.

Vance levantou as sobrancelhas com certo assombro.

— Quer o senhor dizer que Pardee analisou seu jogo, sem tê-lo terminado, com Drukker, e discutiu as possibilidades de sua terminação? Isto não é só falta de ética, mas qualquer jogador seria desqualificado por fazer semelhante coisa.

— Não estou familiarizado com as sutilezas do xadrez

— replicou o professor Dillard com acrimônia. — Mas estou seguro de que Pardee não é culpado de falta de ética a este respeito. E, além de tudo, recordo-me de que, quando estava ocupado com as peças no tabuleiro, e Drukker encaminhou-se para vê-las, Pardee lhe pediu que não emitisse conselho algum. A discussão sobreveio depois e referiu-se, inteiramente, a generalidades. Não creio que se haja mencionado nenhuma linha particular do jogo.

Vance inclinou-se, lentamente, para a frente e quebrou a cinza do cigarro no cinzeiro, num gesto nervoso que há muito tempo aprendi a identificar como um sinal de excitação recalcada. Em seguida, levantou-se despreocupadamente e dirigiu-se para a mesa de xadrez que estava num ângulo da sala. Permaneceu ali com uma mão apoiada no esquisito tabuleiro de quadrados alternados.

— O senhor disse que Pardee esteve analisando sua posição neste tabuleiro, quando Drukker se aproximou dele, não é assim?

— Sim. — O professor Dillard falava com forçada cortesia. — Drukker estava defronte dele estudando o movimento das pedras. Começou a fazer comentários e Pardee pediu-lhe que se calasse. Cerca de um quarto de hora depois, Pardee colocou as pedras de lado. E foi quando Drukker lhe disse que sua partida estava perdida... que, apesar de aparentemente favorável, sua situação era fraca.

Vance alisava com os dedos as bordas do tabuleiro sem fazer ruído. E tirou da caixa duas ou três peças e colocou-as de novo no tabuleiro, como se jogasse com elas.

— O senhor se lembra do que Drukker disse então?

— Não prestei muita atenção. O assunto não era muito interessante para mim. — Na resposta havia uma nota inevitável de ironia. — Mas o que posso recordar é que Drukker disse que Pardee poderia ganhar, sempre que se tratasse de um jogo de trânsito rápido, porém que Rubinstein era um jogador notoriamente lento e que, forçosamente, encontraria o ponto fraco da posição de Pardee.

— Pardee ressentiu-se com essa crítica?

Vance voltou de novo até a sua cadeira e tirou outro cigarro da cigarreira; mas não se sentou.

— Muitíssimo. Drukker tem uma maneira rude e agressiva de criticar; e Pardee é hipersensível em tudo que se relaciona com xadrez. O fato é que empalideceu de raiva, diante da censura de Drukker. Então, eu tratei de mudar de assunto e, quando se retiraram, o incidente havia sido aparentemente esquecido.

Permanecemos alguns minutos mais. Markham foi profuso em desculpar-se com o professor e procurou dar explicações que justificassem o evidente incômodo que nossa visita lhe havia causado.

Ele não estava satisfeito com Vance, por causa da sua insistência aparentemente excessiva nos pormenores da partida de xadrez. Temos outras coisas que fazer em vez de conversa fiada.

— Uma aversão pela conversa fiada caracterizou também Isabel de Tennyson durante toda a sua plácida vida — replicou Vance. — Porém... que diabo, Markham!... nossa vida não é como a de Isabel. Falando sério, havia nexo em minha conversa fiada. Eu tagarelei... e aprendi.

— O que foi que aprendeu? — perguntou Markham com rispidez.

Com um olhar cauteloso para o vestíbulo, Vance inclinou-se para diante e, em voz baixa, disse:

— Aprendi, meu querido Licurgo, que falta um bispo negro no jogo da biblioteca e que a peça deixada à porta do quarto da Sra. Drukker combina com as outras peças que estão lá em cima!


XV

 

UMA ENTREVISTA COM PARDEE

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 12h30)

 


Aquela notícia produziu um efeito profundo no espírito de Markham. Como era seu costume, quando estava agitado, levantou-se e começou a passear de um lado para outro, com as mãos nas costas. Heath também, apesar de mais demorado em compreender o significado da revelação de Vance, chupava vigorosamente o charuto, o que indicava que a sua inteligência estava ocupada com um difícil ajustamento de fatos.

Antes que qualquer dos dois formulasse comentários, a porta dos fundos do vestíbulo se abriu, ouvindo-se passos ligeiros que se aproximavam da sala. Belle Dillard, voltando da casa de Drukker, apareceu na porta. Sua fisionomia estava perturbada. E, olhando para Markham, perguntou:

— O que disse o senhor a Adolph esta manhã? Ele está terrivelmente apavorado. Anda por todos os lados, experimentando fechaduras e trincos como se temesse ladrões. Atemorizou a pobre Greta, dizendo-lhe que não se esquecesse de fechar bem o quarto dela, de noite.

— Ah! Avisou a Sra. Menzel, não é? — murmurou Vance. — Muito interessante!

Os olhos da moça voltaram-se rapidamente para ele.

— Sim, mas ele não explica por quê. Está nervoso e cheio de mistérios. E o que é mais de estranhar é que não quer encontrar-se com sua mãe... Que significa isso, Sr. Vance? Sinto que está iminente alguma coisa terrível.

— Na verdade, eu não sei — replicou Vance em voz baixa e angustiada. — Tenho medo de procurar interpretá-lo. Poderia equivocar-me... — Durante um momento, guardou silêncio. — Devemos esperar e ver. Talvez esta noite o saibamos. Mas, não há motivo de alarme de sua parte, Belle. — Vance sorriu confortadoramente. — Como achou a Sra. Drukker?

— Parecia muito melhor. Mas há ainda alguma coisa que a preocupa; e penso que se relaciona com Adolph, pois todo o tempo não fez mais que falar dele, perguntando-me com insistência se havia notado, ultimamente, alguma mudança nele.

— Isto é muito natural nas circunstâncias atuais — observou Vance. — Porém, você não deve deixar que a atitude mórbida dela afete você. E agora, mudando de tema: eu soube que você esteve na biblioteca, na noite passada, durante meia hora, antes de ir ao teatro. Diga-me: onde estava sua carteira de mão, durante esse tempo?

A pergunta sobressaltou-a; porém, depois de uma momentânea hesitação, respondeu:

— Quando eu fui à biblioteca, deixei-a com meu manto na mesinha junto à porta.

— Era a carteira de couro de lagarto, contendo a chave?

— Sim. Sigurd não gosta dos trajes de cerimônia, e quando saímos juntos sempre levo meus vestidos de uso diário.

— Então você deixou a carteira na mesa durante essa meia hora, e depois conservou-a em seu poder durante o resto da noite. E esta manhã?

— Saí para um passeio, antes do café, e levei-a comigo. Mais tarde, eu a coloquei no porta-chapéus do vestíbulo, durante uma hora mais ou menos; mas, quando fui ver Lady Mae, perto das dez, levei-a comigo. Foi quando notei a reposição do pequeno revólver, atrasando assim a visita. Deixei a carteira na sala do clube até que os senhores chegaram. Desde esse momento conservo-a comigo.

Vance agradeceu-lhe.

— E agora que foi traçada completamente a peregrinação da carteira, rogo-lhe tenha a bondade de esquecer tudo.

Belle esteve a ponto de fazer uma pergunta, mas ele se antecipou à sua curiosidade e lhe disse rapidamente:

— Seu tio nos disse que você tinha ido cear no Palace a noite passada, e só voltara muito tarde.

— Eu nunca fico até tarde, quando vou a alguma parte com Sigurd — respondeu ela com uma expressão maternal de queixa. — Ele tem uma aversão profunda pela vida noturna. Pedi-lhe que ficasse mais um tempo, porém parecia tão cansado que não tive coragem de ficar. Chegamos a casa meia hora depois da meia-noite.

Vance levantou-se com um gracioso sorriso.

— Você tem sido muito amável em responder tão pacientemente nossas perguntas tolas... Agora vamos até a casa do Sr. Pardee, para ver se ele tem algumas idéias que nos iluminem o caminho. Creio que, a esta hora, ele está geralmente em casa.

— Estou certa de que ele está em casa agora — disse a jovem, acompanhando-nos até o vestíbulo. — Ele esteve aqui um momento antes de os senhores chegarem e disse que voltaria para casa a fim de responder alguma correspondência.

Estávamos para sair, quando Vance se deteve.

— Oh, diga-me, Belle: há um ponto sobre o qual eu esqueci de perguntar. Quando você veio para casa, a noite passada, com o Sr. Arnesson, como soube exatamente a hora? Notei que você não usa relógio.

— Sigurd disseme — explicou ela. — Eu estava zangada com ele por ter-me trazido tão cedo para casa; e, quando entramos no hall, perguntei-lhe que horas eram. Ele olhou para seu relógio e disseme a hora...

Nesse momento, abriu-se a porta da frente e Arnesson entrou. Olhou-nos com um assombro jocoso. Então, ao ver Belle Dillard, disselhe prazenteiramente:

— Alô, irmãzinha! Segundo vejo, estás nas mãos da polícia. — Dito isto, lançou-nos um olhar zombeteiro. — Por que o conclave? Esta casa está-se tornando um verdadeiro departamento da polícia. Procurando uma pista do assassino de Sprigg? Ah! Um jovem brilhante, a quem um professor invejoso fez desaparecer, hem?... Espero que vocês não tenham estado pondo em apuros Diana, a caçadora.

— Nada disso — replicou a jovem. — Eles têm sido muito atenciosos. Eu disselhes como você foi retrógrado por me trazer para casa à meia-noite e trinta.

— Creio que fui muito indulgente — sorriu Arnesson.

— É demasiado tarde para uma menina como você.

— A velhice deve ser uma coisa horrível... como também dedicar-se às matemáticas — retorquiu ela com algum calor, subindo a escada apressadamente.

Arnesson encolheu os ombros e seguiu-a até perdê-la de vista. Em seguida, olhou cinicamente para Markham:

— Que boas notícias traz você? Alguma coisa sobre a última vítima? — Encaminhou-se outra vez para a sala. — Sinto saudade daquele moço. Iria muito longe. É uma vergonha chamar-se John Sprigg. "Peter Piper" teria sido mais certo. Nada sucedeu a Peter Piper a não ser o episódio da pimenta; e isso não poderia transformar-se num assassinato...

— Não temos nada a informar, Arnesson — respondeu bruscamente Markham, irritado com a petulância do indivíduo.

— A situação é a mesma de antes.

— Então, vieram em visita de cortesia; ficam para almoçar?

— Nós nos reservamos o direito — disse friamente Markham — de investigar o caso da forma que nos parecer melhor. Nem tampouco devemos dar conta a você de nossas ações.

— Oh! Algo se passou que o incomoda — falou Arnesson com sarcasmo. — Eu pensei que me haviam aceito como auxiliar, porém, pelo que vejo, vão-me mandar às favas. — Suspirou profundamente, tirou o seu cachimbo. — Abandonam o piloto! Bismarck e eu. Ai de mim!

Vance estava fumando como em sonho perto da porta, aparentemente distraído, sem dar atenção às queixas de Arnesson. Então entrou na sala.

— Realmente, Markham, o Sr. Arnesson tem razão. Convencionamos que ele nos serviria de auxiliar e temos que dar-lhe a conhecer todos os pormenores.

— Foi precisamente você mesmo — protestou Markham

— quem lembrou o perigo possível de contar o sucedido na noite passada...

— E certo. Mas, nesse momento, havia esquecido a promessa feita ao Sr. Arnesson. E eu estou certo de que poderemos confiar em sua discrição. — Dito isto, Vance relatou detalhadamente a experiência da Sra. Drukker na noite passada. Arnesson escutou com imensa atenção. Notei que sua expressão sardônica desaparecia gradualmente e era substituída por um olhar de seriedade reflexiva. Durante vários minutos ele ouviu num silêncio contemplativo, com o cachimbo na mão.

— Esse é, verdadeiramente, um fator vital no problema

— comentou finalmente. — Muda nossa constante. Vejo que o caso pode ser observado através de um novo ângulo. Ao que parece, o Bispo está entre nós. Porém, por que vai perseguir a Lady Mae?

— Diz-se que ela gritou no preciso momento da morte de Robin.

— Ah! — Arnesson levantou-se da cadeira. — Compreendo sua dedução. Ela viu o Bispo da sua sacada, na manhã do assassinato de Cock Robin, e mais tarde ele voltou e mexeu no trinco da porta como para avisá-la que se calasse.

— Talvez, alguma coisa como isso... Tem você elementos suficientes para desenvolver sua fórmula?

— Gostaria de ver esse bispo negro. Onde está ele? — Vance procurou no bolso e, tirando a peça de xadrez, entregou a Arnesson, que a segurou ansiosamente. Seus olhos brilharam por um momento. Volveu-a várias vezes na mão, devolvendo-a depois a Vance.

— Parece que você conhece este bispo particularmente

— disse Vance sutilmente. — E tem razão. Foi levado do jogo que está na biblioteca do professor.

Arnesson confirmou com a cabeça.

— Assim penso eu. — De súbito, voltou-se para Markham e lançou sobre suas finas feições um olhar de grande ironia.

— Era esse o motivo pelo qual devia eu permanecer afastado? Estou sob suspeita? Ora, bolas! Que castigo se recebe pelo nefando crime de distribuir peças de xadrez entre os vizinhos?

Markham levantou-se e encaminhou-se para o vestíbulo.

— Você não está sob suspeita, Arnesson — respondeu ele, não procurando ocultar seu mau humor. — O bispo foi deixado na casa da Sra. Drukker à meia-noite em ponto.

— E eu cheguei meia hora mais tarde, para poder preencher os requisitos necessários. Sinto muito tê-lo desapontado.

— Se sua fórmula se realizar, avise-nos — disse Vance, ao sair pela porta principal. — Temos de fazer agora uma pequena visita ao Sr. Pardee.

— Pardee! Olá! Visitando um enxadrista perito em bispos, hem? Percebi já o seu raciocínio... Pelo menos, tem a virtude de ser simples e direto...

Permaneceu no pequeno vestíbulo a nos observar enquanto atravessávamos a rua.

Pardee nos recebeu com a sua habitual e serena cortesia. O tom trágico e frustrado de sua fisionomia estava mais acentuado que nunca. E, quando nos ofereceu cadeiras, em seu gabinete, suas maneiras eram a de um homem cujo interesse pela vida havia desaparecido e que apenas executava os movimentos mecânicos da existência.

— Vimos aqui, Sr. Pardee — começou a dizer Vance

— para saber alguma coisa sobre a morte de Sprigg no Riverside Park, ontem pela manhã. Temos excelentes motivos para fazer-lhe perguntas sobre esse caso.

Pardee meneou resignadamente a cabeça.

— Não me ofenderão as perguntas que o senhor possa fazer. Depois de ler os jornais, tive conhecimento do problema incomum que os senhores estão procurando decifrar.

— Então, rogamos-lhe que, antes de tudo, nos informe onde se achava, ontem de manhã, entre sete e oito horas.

Um leve rubor coloriu o rosto de Pardee, mas ele respondeu em voz baixa e monótona.

— Na cama. Só me levantei pelas nove horas.

— Não costuma passear pelo parque antes do café?

Eu percebi que isso era simplesmente um trabalho de adivinhação de Vance, pois, até agora, os hábitos de Pardee não tinham sido objeto de investigação.

— Sim, costumo — replicou o homem, sem hesitação.

— Mas, ontem, não saí, porque trabalhei até tarde da noite.

— Quando teve conhecimento da morte de Sprigg?

— À hora do café. Minha cozinheira me pôs a par do que se dizia na vizinhança. Eu li a notícia oficial da tragédia na primeira edição do vespertino Sun.

— E indubitavelmente terá visto a reprodução da nota do Bispo nos jornais desta manhã. Qual é a sua opinião sobre esse negócio, Sr. Pardee?

— Eu pouco sei. — Pela primeira vez, seus olhos sem brilho mostraram sinais de animação. — É uma situação incrível. As probabilidades matemáticas são totalmente opostas a que semelhantes séries de sucessos mutuamente relacionados sejam coincidentes.

— Sim — concordou Vance. — E por falar de matemática: O senhor está familiarizado com o tensor de Riemann-Christoffel?

— Conheço-o — admitiu o homem. — Drukker usa-o em seu livro, sobre as linhas do mundo. Minhas matemáticas não são, contudo, do tipo das dos físicos. Se eu não me tivesse enamorado do xadrez — sorriu tristemente — teria sido um astrônomo. Depois de manobrar com os fatores em uma complicada combinação de xadrez, a maior satisfação mental que se pode obter, penso eu, é traçar o plano dos astros. Eu mesmo tenho um telescópio equatorial de cinco polegadas para observações de amador.

Vance escutou Pardee atentamente e, por alguns minutos, discutiu com ele a determinação recente da "O" transnetuniana do professor Pickering (1) com grande assombro de Markham e enfado de Heath. Por fim a conversação recaiu sobre a fórmula do tensor.

— Segundo soube, o senhor esteve na casa de Dillard, quinta-feira passada, quando Arnesson falava sobre esse tensor com Drukker e Sprigg.

— Sim, recordo-me de que este assunto veio à tona nessa ocasião.

— Como conheceu Sprigg?

— Casualmente, apenas. Vi-o com Arnesson, uma ou duas vezes.

— Parece que Sprigg também tinha o hábito de passear pelo Riverside Park, antes do café — observou Vance, negligentemente. — Não se encontrou alguma vez ali com ele, Sr. Pardee?

(1) Depois dessa discussão, o professor Pickering tem afirmado, com base nas perturbações de Urano, a presença de dois outros planetas exteriores mais, além de Netuno: P e S.


As pálpebras do homem tremeram ligeiramente e ele titubeou, antes de responder.

— Nunca — disse finalmente.

Vance parecia indiferente à negativa. Levantou-se e, indo à janela, olhou para fora.

— Pensei que daqui se poderia ver a sede do clube. Mas observo que o ângulo o oculta por completo.

— Sim, o campo de exercícios não é visível. Do outro lado do muro há um terreno baldio, de modo que ninguém pode ver por cima... O senhor pensa em uma possível testemunha da morte de Robin?

— Nisso e em muitas outras coisas. — Vance voltou para a sua cadeira. — Desagrada-lhe o jogo de arco-e-flecha, não é verdade?

— É muito fatigante para mim. Belle procurou uma vez interessar-me nesse esporte, porém eu não fui um aluno muito promissor. Não obstante, fui com ela a vários torneios.

Uma nota inusitadamente suave se produziu na voz de Pardee, e, por alguma razão, que não podia exatamente explicar, percebi que ele estava enamorado de Belle Dillard. Vance também deve ter recebido a mesma impressão, porque, depois de uma breve pausa, disse:

— O senhor decerto compreende que não é nossa intenção imiscuir-nos desnecessariamente nos negócios particulares de ninguém; mas a questão do motivo dos dois assassinatos, que estamos investigando, ainda permanece obscura, e como a morte de Robin foi, a princípio, superficialmente atribuída a uma rivalidade em torno do afeto da Srta. Dillard, ser-nos-ia útil saber, de um modo geral, qual é a verdadeira situação concernente à preferência da moça... O senhor, como amigo da família, provavelmente sabe; e nós apreciaríamos sua confidencia a esse respeito.

O olhar de Pardee se perdia através da janela, e um suspiro escapou-se de seus lábios.

— Senhor, julguei que ela e Arnesson se casariam algum dia. Mas isto é somente uma conjetura. Ela disseme uma vez que, positivamente, não pensava em contrair matrimônio, enquanto não tivesse trinta anos. (Facilmente se podia adivinhar a que propósito fora feito esse pronunciamento por parte de Belle Dillard. A vida emotiva e intelectual de Pardee haviam fracassado.)

— Então não crê — prosseguiu Vance — que o coração dela esteja seriamente comprometido com o jovem Sperling?

Pardee sacudiu a cabeça.

— Contudo — manifestou ele — o martírio que ele está sofrendo agora é de um efeito tremendamente sentimental para as mulheres.

— Belle disseme que o senhor conversou com ela esta manhã.

— Eu, geralmente, vou lá durante o dia. — Sem dúvida alguma, ele se achava intranqüilo e, segundo creio, um tanto desconcertado.

— Conhece bem a Sra. Drukker?

Pardee dirigiu a Vance um rápido olhar inquiridor.

— Não particularmente — disse ele. — Eu a vi várias vezes, como é natural.

— Esteve alguma vez na casa dela?

— Muitas vezes, porém para ver Drukker. Estive interessado, durante muitos anos, nas relações da matemática com o xadrez.

Vance meneou a cabeça.

— E, a propósito, qual foi o resultado da sua partida de xadrez com Rubinstein, à noite passada? Não vi os jornais esta manhã.

— Desisti na jogada quarenta e cinco. — O homem falou desiludido. — Rubinstein encontrou um ponto fraco no meu ataque e que eu havia passado por alto inteiramente, quando fiz meu movimento, depois do adiamento da partida.

— Drukker, disse-nos o professor Dillard, previu o resultado, quando o senhor e ele discutiram, ontem à noite, a situação.

Eu não podia compreender por que Vance se referia tão marcadamente a esse episódio, sabendo, como sabia, quanto era delicado este ponto para Pardee. Markham também franziu o sobrecenho, diante do que lhe parecia ser uma imperdoável falta de tato da parte de Vance.

Pardee ruborizou-se e se mexeu na cadeira.

— Drukker falou demais. — A manifestação não estava desprovida de veneno. — Apesar de não ser jogador de torneio, devia saber que tais discussões são proibidas durante as partidas não terminadas. Francamente, dei pouca atenção à sua profecia. Acreditei que meu movimento selado tinha salvo a situação, porém Drukker viu mais longe que eu. Sua análise foi fantàsticamente profunda. — Havia, em seu modo de dizer, um tom de autopiedade e me parecia que odiava Drukker tão amargamente quanto sua natureza aparentemente suave podia permitir.

— Quanto tempo durou a partida? — perguntou Vance distraidamente.

— Até pouco depois da uma. Na seção de ontem à noite, só restavam 14 lances.

— Havia muitos espectadores?

— Considerando a hora avançada, sim.

Vance apagou o cigarro e se levantou. Quando estávamos no vestíbulo do andar inferior, caminhando em direção à porta principal, deteve-se subitamente e, lançando a Pardee um olhar sardônico, disse:

— O bispo preto esteve fazendo das suas pela meia-noite.

Suas palavras produziram um efeito surpreendente. Pardee se ergueu, como se tivesse sido esbofeteado. Suas faces empalideceram. Durante meio minuto, olhou fixamente para Vance. Seus olhos pareciam carvões acesos. Os lábios se moveram com ligeiro tremor, mas nenhuma palavra saiu deles. Em seguida, com um esforço sobre-humano, ele se voltou, encaminhando-se para a porta que abriu bruscamente, fechando-a assim que transpusemos o umbral.

Enquanto caminhávamos pelo Riverside Park, em direção ao carro do procurador, que tinha sido deixado em frente à casa de Drukker, na Rua 76, Markham falou abruptamente a Vance discordando do comentário final que ele havia feito a Pardee.

Tinha esperança — explicou Vance — de surpreender nele algum sinal de reconhecimento ou compreensão. Porém, com os demônios, Markham, eu não esperava um efeito como o que foi produzido. A reação dele foi surpreendente. Não compreendo... absolutamente, não compreendo...

Vance calou-se, ficando absorto em seus pensamentos. No momento, porém, em que o carro entrava na Broadway pela Rua 72, despertou e disse ao motorista que o levasse ao Sherman Square Hotel.

— Tenho grande desejo de conhecer mais detalhes sobre a tal partida entre Pardee e Rubinstein. Não é que haja um motivo muito especial... É uma extravagância da minha parte... Mas a idéia vem trabalhando em meu espírito, desde o momento em que o professor falou a respeito. Desde as onze até à uma e meia... É um tempo excessivo para jogar uma partida de 44 lances apenas, e que ficou sem terminar.

Havíamos chegado à esquina da Avenida Amsterdam com a Rua 71. Vance desapareceu no Clube de Xadrez de Manhattan. Voltou daí a cinco minutos. Trazia na mão uma folha de papel cheia de anotações. Entretanto, no seu rosto não se via nenhum sinal de satisfação.

— Minha encantadora e largamente incubada teoria — disse com uma careta — ruiu ante o prosaico dos fatos. Acabo de falar com o secretário do Clube e ele me disse que a sessão de ontem à noite durou duas horas e dezenove minutos. Parece que foi uma batalha fulgurante, cheia de esotéricas argúcias e de estratégicas penetrações de almas. Pelas onze e meia, os gênios que presenciavam o combate tinham dado Pardee como vencedor; porém, então, Rubinstein desenvolveu uma obra-prima de análise, e conseguiu destruir a tática do adversário até reduzi-la a cacos... Exatamente como havia prognosticado Drukker. Inteligência assombrosa a de Drukker...

Era evidente que ele não estava ainda satisfeito por completo quanto ao que havia averiguado; e as palavras que proferiu a seguir exprimiram seu descontentamento:

— Enquanto estava nisso, pensei em tirar, como diríamos, uma página do livro do sargento e permitir-me a um pouco de trabalho rotineiro. Assim pedi emprestada a folha das jogadas da partida de ontem a noite, copiando cada um dos lances. Pode ser que, algum dia, examine essa partida.

E, como uma precaução fora de hábito, dobrou o papel e guardou-o em sua carteira.


XVI

 

ATO TERCEIRO

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — sábado, 16 de abril)

 


Depois de almoçar no Eliseu, Markham e Heath continuaram no centro da cidade. Tinham pela frente uma tarde dura. O trabalho ordinário de Markham se achava acumulado. E o sargento, havendo tomado a si o caso Sprigg, além das investigações de Robin, tinha de manter trabalhando duas máquinas separadas, coordenar todos os seus informes, responder às inúmeras perguntas de seus superiores e tratar de satisfazer a voracidade de um exército de repórteres. Vance e eu fomos a uma exposição de arte moderna francesa no salão Knoedler, tomamos chá no St. Regis e fomos ao encontro de Markham, no Stuyvesant, para jantar. Heath e o inspetor Moran chegaram às oito e meia. Tivemos uma conferência que durou até cerca de meia-noite, sem nenhum resultado prático.

O dia seguinte não nos trouxe também senão desilusões. O laudo do capitão Dubois dizia que o revólver entregue por Heath não apresentava nenhuma impressão digital. O capitão Hagedorn identificou a arma como a usada contra Sprigg; mas isto reforçava simplesmente a nossa crença.

O homem destacado para vigiar a parte posterior da casa de Drukker não viu nada digno de nota. Ninguém havia entrado ou saído. E, às onze, todas as luzes estavam apagadas. Nenhum ruído se ouviu na casa até a manhã seguinte, quando a cozinheira começou as suas tarefas domésticas do dia. Mas, depois das oito horas, apareceu no jardim a Sra. Drukker e, às nove e meia, saiu seu filho, pela porta principal, sentando-se no parque, onde esteve lendo durante duas horas.

Transcorreram dois dias. Na casa de Dillard, foram colocadas sentinelas. Pardee foi posto sob severa vigilância. E, debaixo dos salgueiros, atrás da casa de Drukker, ficou estacionado um homem todas as noites. Porém, nada de anormal ocorreu. E, não obstante a atividade infatigável do sargento, todas as linhas prometedoras das investigações pareceram fechar-se automaticamente. Tanto Heath como Markham estavam profundamente aborrecidos. Os jornais se desfaziam em grandes retóricas. A incapacidade do Departamento da Polícia e do procurador do distrito, no sentido de esclarecer o mistério de dois assassinatos espetaculares, estava-se convertendo rapidamente num escândalo político.

Vance visitou o professor Dillard e discutiu o caso em linhas gerais. Também, na tarde de quinta-feira, passou mais de uma hora com Arnesson, na esperança de que o desenvolvimento da fórmula proposta houvesse trazido à luz algum detalhe que pudesse ser usado como ponto de partida para especulação. Porém, não ficou satisfeito com a entrevista e queixou-se para mim de que Arnesson não tinha sido franco com ele. Duas vezes havia ido ao Clube de Xadrez de Manhattan e tentado fazer Pardee falar; porém, todas as vezes encontrou a reticência de uma fria cortesia. Notei que não fez esforços para comunicar-se com Drukker ou com a Sra. Drukker. E quando lhe perguntei o motivo dessa despreocupação, respondeu:

— A verdade não se pode saber deles agora. Cada um está jogando uma partida, e os dois estão completamente assustados. Enquanto não tivermos alguma prova definitiva, resultará maior mal que bem qualquer tentativa de acareação entre eles.

Essa prova definitiva devia chegar no dia seguinte, e do lugar menos esperado. Foi o começo da última fase de nossa investigação... fase trágica e sinistra, de crueldade tão desenfreada e humor tão monstruoso, que ainda agora, depois de muitos anos, no momento em que escrevo, encontro dificuldades em crer que os sucessos mencionados não foram um sonho grotesco de uma perversidade fabulosa.

Na quarta-feira à tarde, Markham, em estado de desânimo, chamou-nos para uma nova conferência.

Arnesson pediu permissão para assistir. Às quatro, nos encontramos todos, inclusive o inspetor Moran, no gabinete particular do procurador do distrito, no velho edifício dos tribunais criminais. Arnesson permaneceu, durante a discussão, inusitadamente silencioso e nem uma vez emitiu suas despropositadas opiniões. Escutou com suma atenção tudo o que foi dito e parecia evitar, propositadamente, manifestar qualquer opinião ainda quando diretamente convidado a isso por Vance.

Havia transcorrido meia hora, talvez, quando Swacker entrou em silêncio e colocou um memorando sobre a mesa do procurador do distrito. Markham olhou-o e franziu o cenho, Passado um momento, rubricou dois formulários impressos e entregou-os a Swacker.

— Preencha-os imediatamente e entregue-os a Ben (1) — ordenou ele.

(1) O coronel Benjamin Hanlon, chefe da Divisão de Investigações, destacado junto ao gabinete do procurador do distrito.


Assim que o homem saiu, explicou o motivo da interrupção.

— Sperling acaba de mandar-me um pedido para falar comigo. Disse que tem uma informação que pode ser de importância. Pensei que, nas circunstâncias, talvez fosse bom ouvi-lo agora.

Dez minutos mais tarde, um funcionário trouxe Sperling, que saudou Markham com um sorriso amigável e Vance com uma gentil inclinação de cabeça. Fez outro tanto, porém com certa seriedade, a Arnesson, cuja presença pareceu surpreendê-lo e desconcertá-lo. Markham convidou-o com um gesto a sentar-se e Vance ofereceu-lhe um cigarro.

— Queria falar-lhe, Sr. Markham — começou a dizer timidamente — acerca de um assunto que talvez possa interessar-lhe... O senhor recorda-se de que, quando me interrogaram sobre se eu estava com Robin na sede do clube, o senhor desejava saber que caminho tomou o Sr. Drukker, quando nos deixou. Eu lhe disse que não havia reparado, mas que ele saíra pela porta do porão... Pois bem, ultimamente, tive muito tempo para pensar e, como é natural, desfilou pelo meu cérebro tudo o que se havia passado naquela manhã. Não sei justamente como explicá-lo, porém as coisas se tornaram claras agora. Certas impressões, poderíamos dizer, voltaram a mim...

Fez uma pausa e olhou para o tapete. Então, levantando a cabeça prosseguiu:

— Uma dessas impressões se refere ao Sr. Drukker... e eis por que eu quis lhe falar. Esta tarde eu estava... bem, imaginava estar na sede do clube falando com Robin. E, de súbito, o quadro da janela posterior cruzou por meu espírito. E recordei-me de que, quando havia olhado pela janela naquela manhã, a fim de observar como estava o tempo para minha viagem, vi o Sr. Drukker, em vez de sair da casa, foi para o caramanchão, permanecendo ali até que você saísse.

— Assim parece, senhor. — Sperling estava relutante em concordar.

— Está seguro de que o viu?

— Sim, senhor. Agora, recordo-me, perfeitamente, até da maneira peculiar como tinha as pernas cruzadas.

— Você o juraria — perguntou Markham com gravidade — sabendo que a vida de um homem podia depender de seu testemunho?

— Juraria, senhor — respondeu Sperling simplesmente. Quando o guarda escoltou Sperling para fora do quarto,

Markham olhou para Vance.

— Creio que isso nos dá um ponto de apoio.

— Sim; o testemunho da cozinheira tinha pouco valor, desde que Drukker negou simplesmente, e ela é o tipo da alemã leal e cabeçuda que sustentaria sua negativa, se algum perigo real ameaçasse seu amo. Agora, temos uma arma efetiva.

— Parece-me — disse Markham, depois de uns momentos de silêncio especulativo — que temos boa prova circunstancial contra Drukker. Estava no quintal da casa de Dillard segundos antes de terem matado Robin. Facilmente pôde ver quando Sperling saiu. E, como havia vindo recentemente da casa do professor Dillard, sabia que os outros membros da família não estavam. A Sra. Drukker negou que tivesse visto alguém de sua janela naquela manhã, embora tenha gritado na hora da morte de Robin, caindo em pânico quando fomos interrogar Drukker. Ela mesma preveniu-o contra nós e nos chamou "o inimigo". Minha opinião é que ela viu o filho voltando para casa, logo após ter sido colocado o corpo de Robin no campo de exercícios. Drukker não estava em seu quarto, no momento em que Sprigg foi morto; e ambos, ele e a mãe, fizeram o possível para ocultar esse pormenor. Tornou-se excitado, quando mencionamos pela primeira vez o caso dos assassinatos, e ridicularizou a idéia de que estavam relacionados. Em verdade, muitos dos seus atos têm sido suspeitos. Também sabemos que é anormal e desequilibrado e que é dado a jogos infantis. É muito possível, em vista do que nos disse o Dr. Barstead, que tenha confundido a fantasia com a realidade e perpetrasse esses crimes em um momento de loucura súbita. Não só lhe é familiar a fórmula do tensor, como podia tê-la associado, de alguma forma estúpida, com Sprigg, como resultado da discussão de Arnesson com Sprigg sobre a mesma. Quanto às notas do Bispo, podem ter sido parte da irrealidade dos seus jogos insanos, pois as crianças necessitam de um auditório que aprove uma nova forma de diversão que tenham inventado. Sua escolha da palavra Bispo foi provavelmente o resultado de seu interesse pelo xadrez — uma assinatura pitoresca destinada a confundir. E esta suposição é sustentada pela aparição de um bispo de xadrez, na porta do quarto de sua mãe. Talvez tenha receado que ela o visse aquela manhã e assim procurou silenciá-la, sem admitir, abertamente, a sua culpabilidade. Podia facilmente ter cortado a tela de arame do portão de dentro, sem ter chave alguma, e dar, por conseguinte, a impressão de que o portador do bispo entrara e saíra pela porta dos fundos. Mais ainda, teria sido um negócio muito simples para ele carregar o bispo da biblioteca na noite em que Pardee esteve analisando o seu jogo...

Markham continuou ainda durante algum tempo construindo sua prova contra Drukker. Era completo e pormenorizado e seu sumário respondia praticamente a toda a evidência que tinha sido aduzida. A forma lógica e implacável em que ele reunia seus vários fatores era impressionantemente convincente, e um largo silêncio seguiu-se a esse resumo.

Vance, por fim, levantou-se como para quebrar a tensão de seus pensamentos e encaminhou-se para a janela.

— Pode ser que você tenha razão, Markham — admitiu ele. — Porém, minha objeção principal à sua conclusão é que as alegações contra Drukker são demasiado boas. Desde o princípio, considerei assim; porém, quanto mais suspeitosa-mente atuava e quanto mais numerosos eram os indícios contra ele, tanto mais eu me inclinava a afastá-lo de toda consideração. O cérebro que planejou esses crimes abomináveis é muito superior, muito diabòlicamente sutil para ser enredado numa rede semelhante de evidência circunstancial como a que você traçou em torno de Drukker. Este tem um espírito surpreendente... sua inteligência é supernormal, na verdade, e é difícil conceber que, culpado, houvesse deixado tantas falhas.

— Não se pode esperar — replicou Markham com azedume — que a lei despreze possibilidades porque sejam demasiado convincentes.

— De outro lado, — prosseguiu Vance, desprezando o comentário de Markham, — é evidente que Drukker, ainda mesmo não sendo culpado, sabe algo que tem relação direta e essencial com o assunto. E minha humilde opinião é que tratemos de obter esta informação do próprio interessado. O depoimento de Sperling nos deu a base para esse fim... E você que pensa, Arnesson?

— Nada — contestou ele. — Eu não sou mais que um observador desinteressado. Sem embargo, não me agradaria ver Adolph na prisão. — Ainda que não manifestasse sua opinião, era claro que estava de acordo com Vance.

Heath achava, como era de seu feitio, aconselhável uma ação imediata, e exprimiu-se desta maneira:

— Se ele tem algo a dizer, di-lo-á imediatamente, se estiver atrás das grades.

— É uma situação difícil — objetou o inspetor Moran em tom judicioso e suave. — Não nos é permitido cometer um erro. Se a evidência de Drukker acusasse mais alguém, seríamos censurados e ridicularizados por deter um inocente.

Vance olhou para Markham e sacudiu a cabeça em sinal de assentimento.

— Por que não mantê-lo em consideração primeiro, e ver se podemos persuadi-lo a descarregar sua alma. Você poderia suspender sobre a sua cabeça uma ordem de prisão, como uma espécie de coação moral. Então, se ele permanecesse esquivo e reticente, você o mandaria escoltar até à cadeia.

Markham sentou-se, batendo indeciso sobre a mesa, e com a cabeça envolta na fumaça do seu charuto, que chupava nervosamente. Por fim, voltou-se para Heath.

— Traga Drukker aqui amanhã, às nove horas. Leve um carro e uma ordem de prisão em branco para o caso de ele oferecer resistência. — A expressão severa do seu rosto traduzia uma firme determinação. — Depois, averiguarei o que ele sabe... e agirei de acordo.

A conferência terminou imediatamente. Já eram cinco horas, e Markham, Vance e eu fomos juntos ao Club Stuyvesant. Deixamos Arnesson no metrô e ele partiu logo, quase sem se despedir de nós. Seu cinismo loquaz parecia ter desertado dele. Depois de cear, Markham se desculpou, por achar-se fatigado, e Vance e eu fomos ao Metropolitan ouvir Geraldine Farrar em Louise (1)

(1) Louise era a ópera moderna favorita de Vance


A manhã seguinte se apresentou escura e nebulosa. Currie despertou-nos às sete e meia, pois Vance desejava estar presente à entrevista com Drukker. Às oito, fizemos a refeição matinal na biblioteca diante de um pequeno fogo que ardia na lareira. O trânsito nos deteve em nosso caminho no centro da cidade, e embora fossem nove e um quarto quando chegamos ao gabinete do procurador do distrito, Drukker e Heath não haviam ainda chegado. Vance sentou-se comodamente em uma poltrona de couro e acendeu um cigarro.

— Esta manhã me sinto muito bem — disse ele. — Se Drukker relatar a sua história e se esta é como eu suponho, teremos o segredo do cofre.

Mal foram emitidas estas palavras, Heath penetrou no gabinete e, olhando firmemente para Markham, sem saudar ninguém, levantou os braços, deixando-os cair num gesto de desespero resignado.

— Não interrogaremos hoje... nem nunca mais o Sr. Drukker — disse abruptamente. — Caiu ontem à noite, do muro alto do Riverside Park, quase ao lado da casa. Não foi encontrado senão às sete desta manhã. Seu corpo está agora no necrotério... Lindos princípios temos! — Dito isto, afundou-se numa poltrona, numa atitude de desânimo.

Markham mirou-o, sem crer no que ele dizia.

— Está certo disso? — perguntou.

— Estive lá, antes de levarem o corpo. Um dos empregados da seção me telefonou sobre o caso, no momento em que eu saía do gabinete. Fui até lá e consegui colher todas as informações possíveis.

— Que soube então? — Markham estava lutando contra um desapontamento dominante.

— Não muita coisa. Alguns meninos encontraram o cadáver no parque mais ou menos às sete desta manhã... Muitos garotos rodeavam o corpo, pois era sábado; o posto policial providenciou com presteza a vinda do médico da polícia. Este disse que Drukker devia ter caído mais ou menos às dez da noite. Sua morte deve ter sido instantânea. O muro naquele lugar, exatamente oposto à Rua 76, tem uns dez metros de altura.

— A Sra. Drukker foi avisada?

— Não. Eu lhes disse que me encarregaria disso, mas achei conveniente vir antes aqui saber o que pensam os senhores que se deva fazer.

Markham recostou-se em sua cadeira, desanimado.

— Não vejo muita coisa a fazer.

— Seria bom avisar Arnesson — sugeriu Vance. — Provavelmente, é ele que tem de se ocupar disso. Que diabo, Markham! Estou começando a pensar que é tudo um pesadelo. Drukker era a nossa maior esperança, e, no momento em que íamos conseguir fazê-lo falar, ele cai do muro... — Aqui se deteve bruscamente. — De um muro!...

Enquanto repetia essas palavras pôs-se de pé num salto.

— Um corcunda cai do muro Um corcunda!

Todos ficamos a olhá-lo como se ele tivesse ficado louco. E eu admito que seus olhos me fizeram estremecer. Estavam fixos como os de um homem que encara um fantasma. Lentamente, voltou-se para Markham e disse com voz que eu mal podia reconhecer:

— É outro melodrama vesânico... outra cantiga de "Mama Goose". Desta vez é Humpty Dumpty! (1).

(1) Humpty Dumpty, personagem de versos infantis, representada por um ovo, e que uma vez caído ao chão não se pode refazer na sua integridade original (N. do T.).


O silêncio de assombro, que se seguiu, foi quebrado pelo riso forçado do sargento.

— Isto sim é que é pôr as coisas em seu devido lugar, hem, Sr. Vance?

— É absurdo! — declarou Markham, estudando Vance com particular inquietação. — Meu querido amigo, você deixou que este caso tomasse conta do seu cérebro de um modo absorvente. Nada aconteceu, a não ser que um homem corcunda caiu de cima do muro no parque. É uma desgraça, eu confesso. E o é duplamente neste instante. — Foi até Vance c pôs-lhe a mão sobre o ombro. — Deixe que eu e o sargento continuemos com isto... estamos acostumados com estas coisas. Faça uma viagem e descanse. Por que não vai à Europa, como costuma fazer na primavera?

— Oh, sim, sim — suspirou Vance e sorriu com ar cansado. O ar do mar me faria muito bem na verdade. Far-me-ia voltar à normalidade, hem?... Reconstituiria este cérebro outrora perfeito... Desisto! O terceiro ato desta terrível tragédia está-se desenvolvendo quase diante de seus olhos e você serenamente o ignora.

— Sua fantasia apoderou-se do melhor que há em você — replicou Markham, com a benevolência oriunda de um profundo afeto. — Não se preocupe mais com o caso. Venha jantar comigo esta noite. Então conversaremos.

Nesse momento, Swacker entrou e falou ao sargento.

— Quinan, do World está aí e deseja falar com você. Markham voltou-se.

— Oh, Deus meu, faça-o entrar!

Quinan entrou, saudou-nos alegremente e entregou uma carta ao sargento.

— Outra cartinha de amor... Recebia esta manhã. Que privilégios obtenho por ser tão magnânimo?

Heath abriu a carta diante de nosso silêncio. Imediatamente reconheci o papel e o tipo elite da máquina de escrever, impresso em tom azul-claro. A nota dizia:

"Humpty Dumpty estava sentado no muro.

Humpty Dumpty deu uma grande queda;

Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei

Não podem juntar e unir os restos de Humpty Dumpty outra vez."

E em seguida, esta assinatura nefasta, em letras maiúsculas: "O BISPO."


XVII

 

UMA LUZ DURANTE A NOITE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 9h30)

 


Quando Heath pôde desfazer-se de Quinan com promessas tais que teriam alegrado o coração de qualquer repórter. (1), houve alguns minutos de silêncio profundo no gabinete. "O Bispo" tinha estado outra vez desenvolvendo a sua obra macabra. E o caso agora se tornara triplicemente terrível, com a solução aparentemente mais remota que nunca. Não era, contudo, a insolubilidade desses crimes incríveis o que, principalmente, nos afetava; era, antes, o horror intrínseco que emanava como um miasma dos atos em si.

(1) As informações do Caso do Bispo no World causaram inveja aos outros jornais nova-iorquinos. O sargento Heath, apesar de imparcial em suas declarações à imprensa, conseguiu, entretanto, salvar vários pitorescos bons-bocados para Quinan, e se permitiu certas especulações que, embora sem valor noticioso, deram às reportagens do World muito interesse e colorido.


Vance, que passeava pensativo de um lado para outro, deu vazão a suas emoções conturbadas.

— É uma maldição, Markham... é a essência da maldade inexprimível... Essas crianças no parque... levantadas tão cedo em seu dia de folga, em busca de sonhos... ocupadas com seus jogos e brincadeiras... e então a realidade inquietante... a horrível e dominante desilusão... Você não vê a maldade de tudo isso? Essas crianças encontraram o Humpty Dumpty... o seu Humpty Dumpty... morto ao pé do muro famoso... um Humpty Dumpty que elas podiam tocar e ver, quebrado, retorcido, para nunca mais se poder unir de novo...

Deteve-se, ao chegar à janela e olhou para fora. A névoa se dissipara e uma débil difusão do sol primaveril cobria as pedras cinzentas da cidade. A distância brilhava a águia dourada do New York Life.

— Bem, simplesmente, deve-se deixar de lado o sentimentalismo — observou ele com um sorriso forçado, retornando à sala. — Deforma a inteligência e imbeciliza os processos dialéticos. Agora que sabemos que Drukker não foi a vítima caprichosa da lei da gravidade, mas que foi auxiliado em sua viagem para o outro mundo, quando mais rapidamente usarmos de energia tanto melhor, não?

Embora sua mudança de modo de pensar fosse um tour de force, despertou-nos de nossa apatia sombria. Markham acercou-se do telefone e entendeu-se com o inspetor Moran para que Heath se incumbisse desse outro caso. Em seguida, telefonou para o médico da polícia e pediu-lhe um imediato laudo post mortem.

Heath levantou-se vigorosamente e, depois de tomar três copos de água gelada, ficou à espera de que o procurador do distrito indicasse uma linha de ação.

Markham movia-se nervosamente.

— Vários homens de seu Departamento, sargento, parecem ter estado vigiando as casas de Drukker e de Dillard. Você falou com alguns deles?

— Não tive tempo, senhor. E, além do mais, pensei que fosse um acidente. Mas, disselhes que seguissem para os seus postos até que eu voltasse.

— Que disse o médico?

— Somente que parecia um acidente e que Drukker estava morto há dez horas mais ou menos...

Vance intercalou uma pergunta.

— Não mencionou fratura do crânio, além do pescoço quebrado?

— Bem, senhores, ele não disse exatamente que o crânio estivesse fraturado, mas observou que Drukker havia caído de costas. — Heath meneou a cabeça compreensivamente. — Suponho que poderá provar-se que é uma fratura... como as de Robin e Sprigg.

— Indubitavelmente. A técnica de nosso assassino parece ser simples e eficaz. Fere as suas vítimas na cabeça, quer aturdindo-as ou matando-as diretamente, e então arroja-se nos lugares que escolheu para que desempenhem o papel de fantoches de sua nefasta obra. Sem dúvida alguma, Drukker estava debruçado no muro, perfeitamente exposto a esse tipo de ataque. Havia nevoeiro, o lugar estava escuro. De chofre, recebeu o golpe na cabeça, um leve empurrão e caiu sem ruído, por cima do parapeito... O terceiro sacrifício oferecido no altar da velha "Mama Goose".

— O que eu não compreendo — declarou Heath, irritado — é porque Guilfoyle (1), o rapaz que eu pus vigiando a parte dos fundos da casa de Drukker, não me comunicou que este tinha pernoitado fora. Voltou à seção às oito e não pude vê-lo. Não lhe parece, senhor, que seria melhor averiguar o que ele sabe, antes de irmos ao lugar da tragédia?

(1) Como se devem recordar, Guilfoyle era um dos detetives que seguiram a pista de Tony Skeel, no Crime da Canária.


Markham concordou e Heath transmitiu uma ordem pelo telefone.

Em menos de dez minutos, Guilfoyle apresentou-se vindo do Departamento Central da Polícia.

O sargento quase se atirou de encontro ao detetive, quando este entrou na sala.

— A que horas saiu Drukker, ontem à noite? — vociferou Heath.

— Pelas oito horas, depois de ter ceado. — Guilfoyle não se sentia à vontade, e sua atitude tinha a doçura constrangida de quem fora colhido no abandono do dever.

— Para onde foi ele?

— Saiu pela porta dos fundos, andou pelo campo de exercícios e entrou em casa de Dillard, passando pela sala do clube.

— Em visita?

— Assim parecia, sargento. Permaneceu muito tempo em casa de Dillard.

— Ah! E a que horas voltou para casa? Guilfoyle moveu-se intranqüilo.

— Parece que não voltou, sargento.

— Oh! Não voltou? — A réplica de Heath estava cheia de sarcasmo. — Pensei que depois de quebrai o pescoço, podia ter voltado para passar o dia com você.

— O que eu quero dizer, sargento, é que...

— Você quis dizer que Drukker... o pássaro de que você devia cuidar... foi à casa de Dillard às oito horas, voltando você, em seguida, a deitar-se debaixo da árvore para tirar uma soneca... A que horas acordou você?

— Olhe, escute — disse Guilfoyle, irritando-se. — Eu não dormi. Estive cumprindo o meu dever toda a noite. Por que não vi esse moço voltar à casa, não quer dizer que minha vigilância foi abandonada.

— Bem, mas se você não o viu voltar, por que não telefonou dizendo que ele estava passando o fim-de-semana fora da cidade ou outra coisa semelhante?

— Pensei que pudesse ter entrado pela porta principal.

— Pensando outra vez, hem? Seu cérebro não está cansado esta manhã?

— Tenha coração, sargento. Minha obrigação não era seguir Drukker. O senhor recomendou-me que vigiasse a casa e tomasse nota das pessoas que entravam e saíam, e, caso sucedesse qualquer coisa de anormal, nela penetrasse sem mais preâmbulos. Ora, o que se passou foi isto: Drukker encaminhou-se para a casa de Dillard às oito horas. Então, dirigiu o olhar para a casa de Drukker. Pelas nove horas, a cozinheira subiu para seu quarto e acendeu a luz, apagando-a meia hora depois. Então disse a mim mesmo. — "Deitou-se." Pelas dez horas, acenderam-se as luzes do quarto de Drukker...

— O quê?

— Isso mesmo: as luzes se acenderam no quarto de Drukker. E pude ver a sombra de alguém que se movia de um lado para outro. Agora, eu lhe pergunto, sargento: não afirmaria o senhor mesmo que o corcunda havia entrado pela porta da frente?

Heath grunhiu.

— Pode ser que sim — admitiu ele. — Você está certo de que eram dez horas?

— Não consultei o relógio; mas estou aqui para dizer ao senhor que não eram muito mais de dez horas.

— A que horas se apagaram as luzes do quarto de Drukker?

— Não se apagaram. Permaneceram acesas toda a noite. Era um pássaro estranho. Não tinha método, nem obedecia a horas regulares e, duas vezes antes, as luzes estiveram acesas até quase de manhã.

— Isto é compreensível — ouviu-se a voz indolente de Vance. — Ultimamente, tem estado trabalhando até altas horas da noite, no desenvolvimento de um tema difícil. Mas, Guilfoyle, que nos diz da luz no quarto da Sra. Drukker?

— Nada de particular. A velha sempre conserva a luz acesa em seu quarto.

— Havia alguém a noite passada, montando guarda defronte à casa de Drukker? — perguntou Markham a Heath.

— Não depois das seis, senhor. Destacamos um homem para seguir Drukker durante o dia, porém ele termina o seu plantão às seis horas, quando Guilfoyle assume o seu posto na parte dos fundos.

Houve um momento de silêncio. Em seguida, Vance voltou-se para Guilfoyle:

— A que distância estava você da porta de passagem entre as duas casas vizinhas?

O homem fez uma pausa como que para visualizar a cena.

— Digamos doze ou quinze metros.

— E entre você e a passagem estavam a cerca de ferro e alguns galhos de árvore.

— Sim, senhor. A vista estava um tanto cortada, se é isto o que o senhor quer dizer.

— Seria possível que alguém que viesse da casa de Dillard saísse e voltasse pela tal porta, sem ser notado?

— Seguramente — admitiu o detetive — sempre que, por hipótese, o indivíduo fizesse o possível para não ser visto. A noite estava muito escura, devido à cerração, e o ruído proveniente do tráfego no Riverside Drive teria abafado o som de seus passos, bastando um pouco de cautela.

Quando o sargento mandou Guilfoyle voltar para a seção e aguardar ordens, Vance manifestou a sua perplexidade.

— É uma situação para lá de complicada. Drukker foi visitar Dillard às oito e, às dez horas, foi arrojado por cima do muro do parque. Como você observou, a nota que Quinan acaba de mostrar-nos foi postada no correio às onze da noite, o que quer dizer que foi escrita provavelmente "antes do crime". Por conseguinte, o Bispo planejara a sua comédia antecipadamente e preparara a nota para a imprensa. A audácia de tudo isto é surpreendente. Porém, há uma suposição que devemos acentuar: o assassino conhecia os lugares exatos freqüentados por Drukker, entre as oito e dez horas.

— Entendi — disse Markham. — Seu ponto de vista é que o assassino foi e voltou pela passagem entre as duas casas: a de Dillard e a de Drukker.

— Oh! Compreenda! Eu não tenho ponto de vista algum. Indaguei a Guilfoyle sobre a passagem com a intenção de saber somente se Drukker foi o único indivíduo que pôde ser visto sair em direção ao parque. Sendo assim, podíamos admitir como uma hipótese que o assassino havia conseguido evitar de ser visto, indo pela passagem e atravessando o parque.

— Com essa possível rota aberta ao assassino — observou Markham tristemente — não importaria muita coisa constatar quem fora visto sair com Drukker.

— Precisamente. A pessoa que preparou essa farsa pode ter caminhado audaciosamente até ao parque, sob as vistas de um "tira" alerta, ou pode ter corrido furtivamente pela passagem.

Markham meneou a cabeça num assentimento a contragosto.

— O que mais me preocupa, todavia — continuou Van-ce, — é a luz no quarto de Drukker durante toda a noite. Foi acesa à hora em que o pobre homem era atirado para a eternidade. E Guilfoyle disse que pôde divisar alguém andar pelo quarto depois que a luz foi acesa...

Cessou de falar e permaneceu alguns segundos numa atitude de concentração.

— Diga-me, sargento, sabe você se a chave da porta principal da casa de Drukker estava no bolso do seu casaco, quando o encontraram morto?

— Não, senhor, mas posso averiguá-lo imediatamente, Os objetos encontrados em seus bolsos estão guardados até que se faça autópsia.

Heath encaminhou-se para o telefone e um momento depois falava com o sargento de guarda no posto da Rua 63. Seguiram-se vários minutos de espera. Em seguida, resmungou qualquer coisa e largou o fone.

— Ele não levava consigo chave alguma.

— Ah! — Vance deu uma grande tragada em seu cigarro e, lentamente, soltou a fumaça no ar. — Estou começando pensar que o Bispo roubou a chave de Drukker e fez uma visita à sua casa, depois do assassinato. Parece incrível, bem sei, mas, se nos fixamos nas outras circunstâncias, tudo tem mesmo esse aspecto incrível neste caso fantástico.

— Mas, santo Deus, qual pode ter sido o propósito? — protestou Markham, incrèdulamente.

— Não o sabemos ainda. Mas tenho idéia de que, quando entendermos os motivos desses crimes monstruosos, compreenderemos o porquê dessa visita.

Markham, com a fisionomia austera, tomou o seu chapéu.

— É melhor irmos até lá.

Mas Vance não se moveu, permanecendo junto da mesa, parado com ar distraído.

— Markham, — disse ele, parece-me que, antes, devemos visitar a Sra. Drukker. Ontem à noite, houve em sua casa uma tragédia: algo estranho aconteceu lá que necessita de uma explicação. E agora talvez nos revele o segredo guardado em seu espírito. Mais ainda, não teve conhecimento da morte do filho e, com todo o rumor e comentários da vizinhança, chegará alguma palavra aos seus ouvidos dentro de pouco tempo. Receio o resultado do golpe, quando ela se inteirar de tudo. Em verdade, eu me sentiria melhor se levássemos conosco o Dr. Bartead. Que lhe parece se lhe telefonarmos?

Markham concordou e Vance rapidamente explicou ao doutor a situação.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do Dr. Barstead e, em seguida, partimos para a casa de Drukker. Fomos recebidos pela Sra. Menzel, cuja fisionomia indicava que ela sabia da morte de Drukker. Vance, depois de dirigir-lhe um rápido olhar, levou-a à sala, longe da escada, e perguntou-lhe em voz baixa:

— A Sra. Drukker já sabe?

— Ainda não — respondeu ela com voz trêmula e assustada. — A Srta. Dillard veio faz uma hora, porém eu lhe disse que a senhora tinha saído. Tive medo de deixá-la subir. Há algo errado... — Ela começou a tremer violentamente.

— Que há de errado, Sra. Menzel? — Vance colocou uma mão tranqüilizadora em seu braço.

— Não sei. Mas, toda a manhã não a vi. Ela não veio para a refeição matinal... E eu tenho medo de ir chamá-la.

— Quando soube você do acidente?

— Cedo. Depois das oito. O jornaleiro me disse. E eu vi aglomeração de povo no Drive.

— Não se assuste — Vance consolou-a. — O médico está conosco aqui e atenderemos a tudo.

Ele voltou ao vestíbulo e subimos. Quando chegamos ao quarto da Sra. Drukker, bateu levemente e, não recebendo resposta, abriu a porta. Não havia ninguém no quarto. A luz noturna estava acesa ainda sobre a mesa. E notei que a cama não tinha sido desfeita.

Sem dizer palavra, Vance retornou ao vestíbulo. Só existiam duas outras portas principais. Sabíamos que uma delas dava para o gabinete de Drukker. Sem titubear, Vance se dirigiu à outra, abrindo-a sem bater. As persianas estavam descidas, porém, como eram brancas e semitransparentes, a luz cinzenta do dia se mesclava com a espectral irradiação amarela do candelabro de velho estilo. A luz que Guilfoyle vira acesa toda a noite ainda não se tinha apagado.

Vance deteve-se no umbral.

— Mãe de Deus! — exclamou o sargento e persignou-se. Aos pés da antiga cama jazia a Sra. Drukker, a fisionomia pálida, os olhos fora das órbitas e as mãos sobre o peito.

Barstead adiantou-se de um salto e inclinou-se sobre ela. Depois de auscultá-la, ergueu-se sacudindo a cabeça lentamente.

— Está morta. Provavelmente, desde ontem à noite. — Outra vez se inclinou sobre o corpo e começou a fazer um exame. — Há anos que ela sofre de nefrite crônica, arteriosclerose e hipertrofia do coração... Algum choque provocou uma dilatação aguda... Sim, diria que morreu quase ao mesmo tempo que Drukker... Cerca das dez horas.

— Morte natural? — perguntou Vance.

— Oh, indubitavelmente. Uma injeção de adrenalina no coração podia tê-la salvo, se fosse aplicada a tempo...

— Nenhum sinal de violência?

— Nenhum. Como lhe disse antes, ela morreu de dilatação do coração ocasionada por um choque. Um caso evidente... típico em todo o sentido.


XVIII

 

O MURO DO PARQUE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 11h)

 


Quando o médico estendeu na cama o cadáver da Sra. Drukker e o cobriu com um lençol, descemos para o andar térreo. Barstead retirou-se imediatamente, prometendo enviar ao sargento, antes de uma hora, o atestado de óbito.

— Do ponto de vista científico, é correto falar em morte natural devido ao choque — disse Vance, quando ficamos a sós. — Mas, nosso problema imediato é averiguar a causa desse choque súbito. Evidentemente, está relacionado com a morte de Drukker. Ora, eu penso...

Voltando-se bruscamente, entrou na sala. A Sra. Menzel estava sentada no lugar onde a havíamos deixado, numa atitude de expectativa. Vance dirigiu-se para ela e lhe disse com bondade:

— Sua patroa morreu, ontem à noite, de um ataque de coração. É muito melhor que não tenha sobrevivido a seu filho.

— Gott geb' ihr die ewige Ruh! — murmurou a mulher piedosamente. — Sim, é melhor...

— Morreu às dez horas, mais ou menos. Estava você acordada a essa hora, Greta?

— Estive acordada toda a noite — respondeu ela em voz baixa e cheia de terror.

Vance contemplou-a com os olhos semicerrados.

— Diga-nos o que ouviu.

— Alguém veio aqui ontem à noite!

— Sim, alguém veio perto das dez horas... Entrou pela porta principal.

— Você ouviu-o entrar?

— Não, mas depois que me deitei, ouvi vozes no quarto do Sr. Drukker.

— Era raro ouvir vozes no quarto dele, às dez da noite?

— Mas, não era ele! A voz dele era alta, e a que eu ouvi era baixa e áspera. — A mulher ergueu a vista assustadíssima. — E a outra voz era a da Sra. Drukker... E ela não ia nunca de noite ao quarto do filho!

— Como pôde ouvir tão claro com a porta fechada?

— Meu quarto está precisamente acima do quarto do Sr. Drukker — replicou ela. — E eu estava preocupada com o que se passava. Então me levantei e ouvi tudo de cima da escada.

— Não posso culpar você — disse Vance. — Que foi que ouviu?

— A princípio, parecia que a patroa soluçava, mas logo começou a rir. O homem falava, como se estivesse zangado. Em seguida, eu o ouvi rir também. Depois me pareceu que a senhora rezava... pude ouvir dizer: "Oh, Deus! Oh, Deus!" Aí, o homem disse alguma coisa mais, muito tranqüilo e em voz baixa... Em um instante, pareceu que a senhora estava recitando... um poema...

— Você reconheceria o poema, se o ouvisse outra vez?... Era "Humpty Dumpty estava sentado em um muro; Humpty Dumpty deu uma grande queda...?"

— Bei Gott, das ist's! Era isso mesmo. — O pavor estampou-se-lhe novamente no rosto. — E o Sr. Drukker caiu do muro ontem à noite!

— Ouviu alguma coisa mais, Greta? — A voz despreocupada de Vance interrompeu sua correlação confusa da morte com o verso que tinha ouvido.

Lentamente, ela sacudiu a cabeça.

— Não. Depois tudo ficou quieto.

— Ouviu alguém sair do quarto do Sr. Drukker? Ela moveu assustada a cabeça.

— Uns minutos depois, alguém abriu e fechou a porta, sem fazer ruído, e ouvi passos pelo vestíbulo escuro. Em seguida, as escadas rangeram e a porta principal foi fechada.

— Que fez você depois?

— Escutei durante um momento e voltei para a cama. Mas, não pude dormir...

— Está tudo acabado agora — disse Vance, consolando-a. — Não tem nada a recear. É melhor que vá para o seu quarto e espere lá até que a chamemos.

Com um pouco de relutância, a mulher subiu as escadas.

— Creio que agora — disse Vance — podemos fazer um resumo bastante aproximado do que sucedeu aqui ontem à noite. O assassino tirou a chave do bolso de Drukker e entrou pela porta principal. Sabia que os aposentos da Sra. Drukker ficavam na parte posterior da casa, e, sem dúvida, ele confiava em levar a cabo seu propósito no quarto de Drukker e partir como tinha vindo. Mas, a Sra. Drukker o pressentiu. Pode ser que ela o tivesse associado ao homenzinho que deixara o bispo preto em sua porta, e receasse que seu filho estivesse em perigo. De qualquer modo, encaminhou-se sem demora para o quarto de Drukker. A porta talvez estivesse ligeiramente aberta, e creio que ela viu o intruso, reconhecendo-o. Sobressaltada e cheia de apreensão, entrou no quarto e perguntou-lhe por que estava ali. Ele, com certeza, lhe respondeu que tinha vindo para informá-la da morte de Drukker, o que deu causa aos gemidos e ao riso histérico. Mas, isso era somente uma preliminar da parte dele... um jogo para passar tempo. Estava imaginando como a mataria. Oh, não pode haver dúvida sobre isto. Ele não podia deixar que ela saísse viva daquele quarto. Pode ser que ele lhe dissesse isto em outras palavras... falava como se estivesse aborrecido... E, em seguida, riu-se. Depois, atormentou-a... Talvez lhe tivesse dito toda a verdade, numa explosão de egoísmo desvairado. E ela só sabia dizer: "Oh, Deus!... Oh, Deus!" Ele explicou de que forma empurrou Drukker de cima do muro. E repetiu o "Humpty Dumpty". Creio que sim, pois que melhor auditório poderia apreciar sua obra monstruosa que a própria mãe da vítima? Esta última revelação foi excessiva para o seu espírito hipersensível. Ela repetiu a rima infantil com um acento de horror. E, em seguida, o terror acumulado dilatou seu coração. Ela caiu sobre a cama e o assassino não precisou, assim, selar-lhe os lábios com as suas próprias mãos. Viu o que havia sucedido e saiu tranqüilamente.

Markham inspecionou o quarto todo.

— A parte menos compreensível da tragédia da noite de ontem — disse ele — é o motivo da vinda desse homem até aqui, depois da morte de Drukker.

Vance fumava pensativamente.

— É melhor pedirmos a Arnesson que nos ajude a esclarecer este ponto. É possível que ele nos forneça alguma luz sobre a morte de Drukker.

— Sim, talvez — concordou Heath. Em seguida, depois de revolver o charuto entre os lábios durante uns instantes, acrescentou com mau humor: — Há muitas pessoas em torno de nós, segundo me parece, que nos poderiam dar excelentes explicações.

Markham deteve-se diante do sargento.

— O que devíamos fazer, antes, era averiguar o que sabem seus homens sobre os movimentos das pessoas da vizinhança ontem à noite. Que lhe parece se mandarmos chamá-los e os interrogarmos aqui? A propósito, quantos eram e em que pontos estavam destacados?

— Eram três, senhor, além de Guilfoyle. Emery foi destacado para seguir Pardee; Snitkin estava destacado no Drive esquina da Rua 75 para vigiar a casa de Dillard. E Hennessey na Rua 75 perto da West End Avenue. Todos estão esperando no lugar onde foi encontrado Drukker. Eu os terei aqui num instante.

Ele desapareceu pela porta principal e em menos de cinco minutos reapareceu com os três detetives. Eu os reconheci a todos, pois haviam trabalhado em dois ou mais casos em que Vance havia figurado (1).

(1) Hennessey tinha vigiado o Dr. Drumm na mansão dos Greenes, nos Apartamentos Narcoss, no caso dos assassinatos dos Greenes. Snitkin também tinha tomado parte na investigação do caso dos Greenes e desempenhou um papel menor nos casos Benson e da Canária. E Emery foi o detetive que encontrou os tocos de cigarros debaixo da lenha da lareira, no living de Alvin Benson.


Markham interrogou primeiro Snitkin por ser ele o que provavelmente pudesse fornecer informações que se relacionassem diretamente com o caso da noite anterior. Os seguintes detalhes foram conhecidos em virtude de seus informes:

 

Pardee tinha saído de sua casa às 6:30, dirigindo-se diretamente para a casa de Dillard. Às 8:30, Belle Dillard, em traje de soirée, tomou um táxi que subiu a West End Avenue. (Arnesson saiu com ela e a ajudou a tomar o carro, porém logo depois voltou para a casa.)


Às 9:15, o professor Dillard e Drukker saíram da casa do primeiro, caminhando lentamente para o Riverside Drive. Atravessaram o Drive pela Rua 74 e voltaram pelo caminho em forma de ferradura.


Às 9:30, Pardee saiu da casa de Dillard, encaminhando-se para o Drive e tomando a direção do centro da cidade.


Pouco depois das dez, o professor Dillard voltou sozinho para a casa, cruzando de novo o Drive pela Rua 74.


Às 10:20, Pardee retornou à casa vindo da mesma direção que havia tomado antes.


Belle Dillard regressou à casa numa limusine cheia de jovens, aos trinta minutos depois da meia-noite.


Hennessey foi interrogado em seguida, mas suas informações apenas reforçaram as de Snitkin. Ninguém se havia aproximado da casa de Dillard pela West End Avenue. E nada de caráter suspeito se havia passado ali.

Markham voltou em seguida a sua atenção para Emery o qual informou que, segundo Santos, a quem tinha substituído às seis horas, Pardee passara as primeiras horas da tarde no Clube de Xadrez de Manhattan, voltando à casa cerca das quatro horas.

— Depois, como disseram Snitkin e Hennessey — continuou Emery — foi à casa de Dillard às seis horas e trinta, permanecendo lá até às 9:30. Quando saiu, seguiu-o a uns cinqüenta metros de distância. Caminhou pelo Drive até à Rua 79, atravessou a parte superior do parque e passeou ao redor do grande tufo de arbustos, passando pelas rochas e encaminhando-se para o Iate Clube...

— Tomou o caminho onde Sprigg foi alvejado? — perguntou Vance.

— Teve de tomá-lo, pois não existe outro caminho por ali, a não ser que se vá pelo Drive.

— Até onde foi?

— Ele se deteve no lugar preciso onde Sprigg foi assassinado. Sem demora, voltou pelo mesmo caminho de antes e penetrou no pequeno parque do playground, no lado que dá para a Rua 79. Caminhou lentamente pelo passeio, debaixo das árvores, ao longo do caminho em forma de ferradura, e ao passar por cima do muro sob a fonte de água para beber, encontrou o professor Dillard e o corcunda apoiado no parapeito e conversando...

— Você disse que ele encontrou o professor Dillard e Drukker no mesmo lugar em que este último caiu do muro? — Markham inclinou-se para diante, esperançado.

— Sim, senhor. Pardee se deteve com eles e eu naturalmente prossegui o meu caminho. Ao passar diante deles, ouvi que o corcunda dizia: "Por que não joga xadrez esta noite?" E me pareceu que ele estava aborrecido com Pardee por este ter-se detido, dando-lhe a entender que a sua presença ali era demais. Mas, de qualquer modo, segui pelo muro até chegar à Rua 74, onde havia um grupo de árvores para ocultar-me...

— Pôde desse lugar ver bem Pardee e Drukker? — interrompeu-o Markham.

— Bem, para dizer a verdade, não podia vê-los. Àquela hora, a névoa era muito espessa e, além do mais, naquela parte do passeio onde estavam confabulando, não havia luz alguma. Mas, imaginando que Pardee se separasse logo, esperei por ele.

— Isso devia ter sido perto das dez horas.

— Cerca das dez e um quarto, diria eu.

— Havia alguém no passeio àquela hora?

— Não vi ninguém. A cerração deveria ter afugentado os passeantes. E a noite estava muito fria. E porque ali não houvesse ninguém, arrisquei-me a ir até onde fui. Pardee não é tolo e eu observei que ele me olhava algumas vezes como se suspeitasse de que eu o seguia.

— Quanto tempo transcorreu até que você voltasse a pôr-se em contacto com ele?

Emery mudou de posição.

— Minha atuação não foi tão boa na noite passada — confessou ele com um débil sorriso. — Pardee devia ter voltado por onde veio, atravessando de novo o Drive pela Rua 79. Ao cabo de meia hora, mais ou menos, eu o vi dirigindo-se para o prédio de apartamentos, na esquina da Rua 75.

— Mas, — objetou Vance, — se você esteve na entrada do parque, na Rua 74, até às 10:15, devia ter visto o professor Dillard passar perto de você. Ele voltou para casa, cerca das dez horas, por esse caminho.

— Creio que o vi. Fazia vinte minutos que esperava por Pardee, quando o professor, caminhando só atravessou o Drive, entrando em sua casa. Eu, naturalmente, acreditei que o corcunda e Pardee tinham ficado conversando... por isso, me preocupei em ver onde estavam.

— Então, segundo penso, quinze minutos depois de ter o professor Dillard passado a seu lado, você viu Pardee que voltava pelo Drive em direção oposta.

— Isto mesmo, senhor. E, em seguida, voltei a ocupar o meu posto na Rua 75.

— Você dá a entender, Emery, — disse gravemente Markham — que foi durante o tempo que esteve esperando na Rua 74 que Drukker caiu do muro.

— Sim, mas o senhor não me culpa, não é verdade? Vigiar um homem numa noite de cerração, num lugar descampado, quando não há ninguém ao redor para despistar, não é tarefa fácil. É preciso dissimular e ser um tanto audaz se não quiser ser descoberto.

— Compreendo a sua dificuldade — disse Markham — e não o estou criticando.

O sargento despediu os três detetives mal-humoradamente. Via-se que não estava satisfeito com as suas informações.

— Quanto mais longe vamos — queixou-se — tanto mais confuso se torna o caso.

— Sursum corda, sargento — exclamou Vance. — Que nenhum negro desânimo tome conta de você. Quando tivermos o depoimento de Pardee e do professor sobre o caso, sobre o que se deu no espaço de tempo em que Emery esteve esperando debaixo das árvores da Rua 74, poderemos reunir algumas circunstâncias interessantes.

Enquanto Vance falava, entrou Belle Dillard no vestíbulo vinda da parte posterior da casa. Divisou-nos na sala e veio até nós imediatamente.

— Onde está Lady Mae? — perguntou ela com voz emocionada. — Estive aqui faz uma hora e Greta me disse que ela havia saído. E agora ela não está no seu quarto.

Vance levantou-se e deu-lhe uma cadeira.

— A Sra. Drukker morreu a noite passada de um ataque de coração. Quando você esteve anteriormente aqui, a Sra. Menzel teve medo de deixá-la subir.

A moça sentou-se silenciosa por algum tempo. Em seguida, as lágrimas lhe afluíram aos olhos.

— Talvez tenha sabido do terrível acidente ocorrido com Drukker.

— É possível. Mas não está muito claro o que sucedeu aqui a noite passada. O Dr. Barstead pensa que a Sra. Drukker morreu cerca das dez horas.

— Quase ao mesmo tempo em que morreu Adolph — murmurou ela. — Parece demasiado terrível... Pyne informou-me do acidente quando eu desci para o café esta manhã. Não se falava de outra coisa na vizinhança; e eu vim imediatamente para ficar com Lady Mae. Mas Greta disseme que ela tinha saído, e eu não sabia o que pensar. Há alguma coisa muito estranha nesta morte de Adolph...

— Que quer dizer com isso, Srta. Dillard? — Vance permanecia de pé junto à janela, observando-a discretamente.

— Eu... não sei... o que quero dizer — contestou ela titubeando. — Mas, ontem mesmo à tarde, Lady Mae falou-me de Adolph e do... muro.

— Oh, deveras? — O tom de voz de Vance era mais indolente que de costume, mas todos os nervos de seu corpo, eu o sabia, estavam vigilantes.

— Em meu caminho para a quadra de tênis — continuou a jovem em voz baixa e tranqüila — caminhava com Lady Mae através do caminho de cavaleiros acima do playground. Ela, amiúde, ia ali para ver Adolph brincar com as crianças. Durante um largo tempo, permanecemos ali apoiadas no muro. Um grupo de crianças rodeava Adolph. Este tinha um aeroplano de brinquedo e mostrava-lhes como podia voar. E os garotos olhavam-no como se fosse um deles. Não o consideravam como um homem. Lady Mae estava muito feliz e se orgulhava dele. Olhava-o com olhos brilhantes e, então, disse-me: "Ele é corcunda, Belle, e eles não têm medo dele. Chamam-no Humpty Dumpty... É o seu velho amigo do livro de contos. Meu pobre Humpty Dumpty! A culpa foi minha por tê-lo deixado cair, quando era pequeno..." — A voz da jovem ficou embargada e ela levou o lenço aos olhos.

— Então, ela disse a você que os meninos chamavam Drukker de Humpty Dumpty. — Vance lentamente procurou em seu bolso a cigarreira.

Ela confirmou com um movimento da cabeça e, um momento depois, levantou-a como forçando-a a encarar algo que temia.

— Sim! E isto é que foi estranho, porque logo depois ela foi possuída de um tremor e se retirou do muro. Perguntei-lhe o que tinha, e ela disseme numa voz horrorizada: "Suponha, Belle, suponha que Adolph caísse deste muro... como caiu o verdadeiro Humpty Dumpty!" Eu mesma tive medo; mas forcei um sorriso e disselhe que era tolice pensar em semelhante coisa. Isto não adiantou nada. Sacudiu a cabeça e me encarou de um modo apavorante. "Não é loucura", disseme. "Não mataram Cock Robin com um arco e uma flecha? E não mataram John Sprigg com uma bala de um pequeno revólver... aqui em Nova York?" — A jovem dirigiu-nos um olhar cheio de terror. — E assim aconteceu, não?... Como ela havia previsto.

— E verdade, aconteceu assim — disse Vance, meneando a cabeça. — Mas, não devemos ser muito crédulos a respeito disso. A imaginação da Sra. Drukker era anormal. Todas as formas de conjeturas disparatadas atravessavam o seu espírito torturado. E com estas outras duas mortes de personagens infantis tão vivas em sua memória não é estranho que ela tivesse transformado a alcunha que os meninos puseram em seu filho, numa especulação trágica dessa espécie. O fato de ele ter morrido da forma que ela temia não passa de coincidência.

Neste ponto, fez uma pausa e deu uma longa tragada em seu cigarro.

— Diga-me, Srta. Dillard — perguntou, em seguida, displicentemente — repetiu sua conversa com a Sra. Drukker, por acaso, diante de outra pessoa, ontem?

A jovem mirou-o com certa surpresa antes de responder.

— Mencionei-a ontem à noite, quando ceávamos. Toda a tarde estive preocupada e... não sei... mas não quis guardá-la comigo.

— Fizeram comentários a respeito?

— Titio me disse que eu não devia passar muito tempo na companhia de Lady Mae, pois era uma mulher enferma e anormal. Disse que a situação era muito trágica, porém que não havia necessidade de eu compartilhar os seus sofrimentos. O Sr. Pardee concordou com o que meu tio disse. Mostrou-se compassivo e perguntou se não havia um modo de modificar a condição mental de Lady Mae.

— E o Sr. Arnesson?

— Oh, Sigurd nunca leva nada a sério. Riu-se como se se tratasse de uma pilhéria. E tudo o que disse foi simplesmente isto: "Seria uma decepção se Adolph se despenhasse antes de ter conseguido desenvolver seu novo problema dos quanta."

— E, a propósito, o Sr. Arnesson está em casa? — perguntou Vance. — Queremos interrogá-lo sobre as combinações necessárias relativas aos Drukkers.

— Foi à Universidade de manhã cedo, porém voltará antes do almoço. Estou certa de que atenderá a tudo. Éramos os únicos amigos que Lady Mae e Adolph possuíam. Eu me encarregarei de tudo e providenciarei para que Greta ponha a casa em ordem.

Alguns minutos mais tarde, deixamo-la e fomos entrevistar o professor Dillard.


XIX

 

O CADERNO VERMELHO

 

 

(Sábado, 16 de abril — meio-dia)

 


Quando entramos, ao meio-dia, na biblioteca, o professor encontrava-se visivelmente perturbado. Estava sentado em uma poltrona, de costas para a janela. Sobre a mesa, junto a ele, havia uma garrafa de seu precioso vinho do Porto.

— Estava à sua espera Markham — disse ele antes que tivéssemos tempo de falar. — Não há necessidade de dissimular. A morte de Drukker não foi um acidente. Admitirei que me senti inclinado a deixar de lado as insanas complicações oriundas das mortes de Robin e de Sprigg; porém, no momento em que Pyne relatou as circunstâncias da queda de Drukker, verifiquei que havia um desígnio oculto atrás dessas mortes: as probabilidades de que fossem acidentais seriam incalculáveis. Você pensa como eu, do contrário não estaria aqui.

— Exatamente — respondeu Markham, sentado em frente ao professor. — Estamos diante de um problema terrível. Mais ainda, a Sra. Drukker morreu de um ataque do coração, a noite passada, quase ao mesmo tempo em que seu filho era morto.

— Pelo menos — replicou o professor depois de uma pausa — isso pode-se considerar uma graça. Foi melhor não ter sobrevivido... Inquestionavelmente sua mente entraria em colapso. — Levantou a vista e disse: — Em que posso ajudar?

— Provavelmente o senhor terá sido a última pessoa, com exceção do assassino, que viu Drukker ainda vivo e gostaríamos de saber tudo o que o senhor pudesse dizer-nos acerca do que sucedeu à noite passada.

O professor Dillard acenou com a cabeça, concordando.

— Drukker veio aqui depois do jantar... mais ou menos às oito horas, diria eu. Pardee tinha jantado conosco. Ao encontrar-se com ele, Drukker sentiu-se aborrecido... na realidade, mostrou-se abertamente hostil. Arnesson repreendeu-o, gentilmente, pela sua irascibilidade, coisa que o irritou ainda mais. E, sabendo que Drukker estava ansioso por tratar comigo de um problema, sugeri, por fim, que ele e eu passeássemos pelo parque...

— Os senhores não estiveram lá muito tempo — sugeriu Markham.

— Não. Um episódio desagradável aconteceu. Íamos pelo caminho de cavaleiros, até próximo ao lugar, onde segundo me consta, foi morto o pobre Adolph. Não havia transcorrido meia hora ainda quando Pardee se aproximou de nós. Ele se deteve a falar conosco, porém a hostilidade de Drukker era tal que Pardee resolveu retirar-se pelo mesmo caminho por que havia vindo. Drukker estava muito nervoso e propus-lhe que abandonássemos a discussão por uns momentos. Além disso, havia uma cerração úmida e eu comecei a sentir dores nas pernas. Drukker, repentinamente, ficou de mau humor e disse que não tinha desejo de retirar-se ainda. Assim, deixei-o só, junto ao muro, e voltei para casa.

— Relatou o episódio a Arnesson?

— Quando voltei, não o vi. Imagino que já se tinha deitado.

Mais tarde, quando nos levantamos para partir, Vance perguntou, displicentemente:

— O senhor pode-nos dizer onde está guardada a chave da porta da passagem?

— Não sei, senhor — replicou o professor, irritado, mas acrescentou num tom de voz mais conciliador: — Todavia, agora me lembro, antes estava pendurada num prego na porta da sala do clube.

Da casa do professor Dillard fomos diretamente à casa de Pardee, sendo recebidos em seguida em seu gabinete de estudo. Suas maneiras eram frias e distintas. Mesmo depois que nos sentamos, ele permaneceu de pé junto à janela, olhando-nos com uma expressão nada cordial.

— Sabe, Pardee — perguntou Markham, — que Drukker caiu do muro do parque, ontem à noite, às dez horas... logo depois que você parou para falar-lhe?

— Esta manhã tive conhecimento do acidente.

A palidez do homem tornou-se mais acentuada e ele começou a brincar nervosamente com a corrente do relógio.

— E muito triste — acrescentou. Seus olhos pousaram apàticamente durante uns minutos sobre Markham. — Interrogou o professor Dillard? Ele estava com Drukker...

— Sim, sim. Estamos vindo da casa do professor — interrompeu Vance. — E lá soubemos que houve ontem à noite uma atmosfera de hostilidade entre você e Drukker.

Pardee caminhou lentamente em direção à mesa, sentando-se bruscamente.

— Drukker estava aborrecido não sei com que, ao encontrar-me em casa de Dillard, depois do jantar. Não teve a prudência de ocultar seu mal-estar e criou assim uma situação um tanto incômoda. Porém, conhecendo-o como eu o conhecia, tratei de não dar grande importância ao incidente. Em seguida, o professor Dillard levou-o a passear.

— Você não permaneceu muito tempo na casa depois disso — observou Vance displicentemente.

— Não; uns quinze minutos, mais ou menos, Arnesson estava cansado e desejava deitar-se, então eu também resolvi sair, para passear. Ao regressar, passei pelo caminho de cavaleiros, em vez de vir pelo Drive e dei com o professor Dillard e Drukker, que conversavam junto ao muro. Não desejando passar por grosseiro, detive-me com eles um momento; porém, Drukker estava com um mau humor insuportável e fez vários comentários escarninhos. Retirei-me e me dirigi à Rua 79, atravessei o Drive e cheguei a casa.

— E não se deteve nem um momento no caminho?

— Sentei-me a fumar um cigarro, perto da entrada Rua 79 — foi a resposta de Pardee.

Durante quase meia hora, Markham e Vance interrogaram Pardee, porém, com resultado negativo. Ao sairmos para a rua, Arnesson nos chamou do vestíbulo da casa de Dillard e veio ao nosso encontro.

— Acabo de ouvir tristes novas. Faz um momento que cheguei da Universidade e o professor me disse que os senhores tinham ido interrogar Pardee. Há alguma novidade? — Sem esperar resposta, prosseguiu: — É terrível. Conforme tenho ouvido, toda a família Drukker foi eliminada. Bem, bem. E o pior é que continuam pondo em prática os episódios dos livros infantis... Alguma pista?

— Ariadna não nos favoreceu ainda — respondeu Vance. — É o senhor um embaixador de Creta?

— Quem sabe?... Interrogue.

Vance encaminhou-se para a porta e nos detivemos no campo de exercícios.

— Primeiro vamos à casa de Drukker — disse. — Há muitas coisas a resolver. Suponho que os senhores cuidarão dos assuntos dos Drukkers e se ocuparão do enterro.

Arnesson fez uma careta.

— Aceito! Entretanto, recuso-me desde já a assistir ao enterro. Os enterros são espetáculos obscenos. Mas, Belle e eu cuidaremos de tudo. Lady Mae provavelmente deixou testamento. É necessário averiguar. Mas, onde as mulheres guardam seus testamentos?...

Vance se deteve junto à porta da sala do clube, entrando imediatamente. Depois de observar as molduras da porta, foi reunir-se lá fora conosco.

— A chave da passagem não está ali. A propósito, que sabe você dela, Arnesson?

— Refere-se você à chave daquela porta de madeira?... Não tenho a menor idéia. Eu não uso a passagem... é muito mais simples sair pela porta principal. Creio que ninguém a usa. Faz anos que Belle trancou essa porta; pensou que alguém podia vir do Drive e por curiosidade abrir a porta e teve medo de um acidente enquanto praticava o tiro de flecha. Eu lhe disse que isso não tinha importância... e que bem o mereceria quem tivesse interesse por esse esporte.

Entramos em casa de Drukker pelos fundos. Belle Dillard e a Sra. Menzel se achavam ocupadas na cozinha.

— Olá, irmã! — exclamou Arnesson, dirigindo-se a Belle Dillard. Seu cinismo havia desaparecido. — Os tempos são maus para uma jovem como você. É melhor que você vá para casa. Eu cuidarei de tudo — Dito isto, levou-a por um braço de um modo ao mesmo tempo jocoso e paternal até à porta.

A jovem hesitou e dirigiu um olhar inquiridor a Vance.

— Arnesson tem razão — disse ele, confirmando com um sinal de cabeça. — Por enquanto, ficaremos só nós. Mas, antes de você ir, permita-me uma pergunta: Você guardava sempre a chave da porta de passagem que dá para a sala do clube?

— Sim... sempre. Por quê? Ela não está lá agora? Foi Arnesson quem respondeu com uma ironia chistosa:

— Não está! Desapareceu! Que tragédia! Parece-me que algum excêntrico colecionador de chaves anda por aí. — Quando a jovem se retirou, olhou para Vance. — Mas, em nome de tudo que é sagrado, que relação pode ter com este caso uma chave enferrujada?

— Talvez nenhuma — disse Vance displicentemente. — Vamos até a sala. Estaremos mais à vontade. — Atravessaram o vestíbulo.— Queremos que você nos diga o que sabe acerca dos acontecimentos de ontem à noite.

Arnesson sentou-se numa poltrona junto à janela da frente e tirou do bolso o seu cachimbo.

— De ontem à noite, hem?... Bem, Pardee veio jantar conosco, como costuma fazer todas as quintas-feiras. Depois Drukker mergulhou na especulação da teoria dos quanta para auscultar o professor. A presença de Pardee tirou-lhe a calma. Que gênio, por Deus Não tinha domínio sobre si mesmo. O professor pôs termo ao incidente, levando Drukker para tomar ar. Pardee permaneceu ainda uns quinze minutos, enquanto eu me esforçava para me manter desperto. Em seguida, ele teve a bondade de retirar-se. Examinei uma chusma de provas escritas... e me deitei. — Tomou o cachimbo e perguntou: — Em que pode servir este breve relato para explicar a morte de Drukker?

— Não o explica — disse Vance. — Mas, não é destituído de interesse. Você ouviu quando o professor Dillard chegou?

— Se eu ouvi? — Arnesson soltou uma gargalhada. — Quando ele caminha com o pé atacado de gota, batendo com a bengala no chão e sacudindo o corrimão, não há surdo que não o ouça. E o fato é que, ontem à noite, estava mais barulhento que nunca.

— E que pensa você de tudo isto? — perguntou Vance, depois de uma breve pausa.

— Em relação aos detalhes, estou um tanto no escuro. O professor Dillard não estava exatamente fosforescente. De fato, Drukker caiu no muro como Humpty Dumpty, cerca das dez horas, sendo apenas encontrado na manhã de hoje... Até aqui, tudo muito claro. Porém, por que motivo Lady Mae sucumbiu de uma síncope? Quem, ou qual foi a causa? E como?

— O assassino tomou a chave de Drukker e veio imediatamente aqui, depois do crime. A Sra. Drukker surpreendeu-o no quarto do filho. Segundo a cozinheira, que escutou de cima da escada, produziu-se uma cena. E, durante ela, a Sra. Drukker faleceu de uma síncope cardíaca.

— Evitando ao cavalheiro o incômodo de assassiná-la.

— Isto parece muito claro — concordou Vance. — Mas o motivo da visita do criminoso a esta casa não o é. Pode você sugerir alguma explicação?

Arnesson lançou umas baforadas de fumo, pensativamente.

— É incompreensível — murmurou por fim. — Drukker não possuía objeto de valor, nem documentos comprometedores... Era um tipo direito... Incapaz de tomar parte em negócios sujos... Não vejo motivo algum para que alguém tivesse interesse em devassar o seu quarto.

Vance recostou-se na cadeira e pareceu não dar importância.

— Que teoria é essa dos quanta que tanto preocupava Drukker?

— Ah! Algo soberbo! — Arnesson se animou. — Estava em caminho de conciliar a teoria de Einstein-Bohr sobre a irradiação com os fatores da interferência e de vencer as inconsistências inerentes à hipótese de Einstein. Sua investigação o havia levado ao abandono da coordenação causai tempo-espaço, do fenômeno atômico, e à sua substituição por uma descrição estatística. Teria revolucionado a Física... teria ficado famoso. É uma pena que ele tenha desaparecido, antes de haver coordenado todos os seus dados.

— Você sabe, por acaso, em que lugar Drukker guardava os registros dos seus cálculos?

— Em um caderno de folhas soltas, todas tabuladas e organizadas em índice. Era um homem metódico e correto em tudo. Sua própria caligrafia era como uma lâmina gravada.

Então, você sabe como era o caderno?

— Tinha que sabê-lo. Ele o mostrou muitas vezes a mim. Capa de couro flexível vermelha... páginas finas e amarelas... dois ou três clips em todas as folhas, prendendo anotações... seu nome estampado em ouro, em letras grandes, no frontispício... Pobre diabo! Sic transit...

— Onde poderia estar agora esse caderno?

— Em um dos lugares seguintes: na gaveta de sua mesa no gabinete de estudo, ou na escrivaninha de seu quarto. Durante o dia, trabalhava no gabinete de estudo, mas aí permanecia noite e dia, quando estava interessado em algum problema. Conservava em seu quarto uma escrivaninha, onde guardava seus registros correntes, antes de se retirar, a fim de poder manuseá-los durante a noite, quando lhe surgisse alguma inspiração. De manhã, voltava para o gabinete de estudo. Era uma máquina regular.

Vance, enquanto Arnesson falava indolentemente olhava pela janela. A impressão era de que ele apenas escutava a descrição dos hábitos de Drukker; porém, em seguida, voltando-se, fixou em Arnesson um olhar demorado.

— Diga-me — disse ele. — Ser-lhe-ia incômodo subir e trazer o caderno de Drukker? Tenha a bondade de procurar em ambos os lugares no gabinete de estudo e no quarto.

Julguei observar em Arnesson uma dúvida quase imperceptível, porém ele se ergueu imediatamente.

— Boa idéia. É um documento demasiado valioso para permanecer aqui. — E saiu da sala.

Markham começou a passear e Heath revelou seu nervosismo, chupando o charuto com mais energia. Na saleta, enquanto esperávamos Arnesson, a tensão era grande. Cada um de nós estava em um estado de expectativa intensa, embora o que esperávamos ou temíamos fosse algo difícil de definir. Em menos de dez minutos, Arnesson reapareceu. Encolheu os ombros e mostrou as mãos vazias.

— Desapareceu! — anunciou. Procurei em todos os lugares mais prováveis... Não pude encontrá-lo. — Deixou-se cair em uma poltrona e tornou a acender o cachimbo. — Não posso compreender... talvez ele o tenha escondido.

— Talvez — murmurou Vance.


XX

 

NÊMESIS

 

(Sábado, 16 de abril — 13h)

 

Passava das treze horas quando Markham, Vance e eu nos dirigimos ao Club Stuyvesant. Heath permaneceu na casa de Drukker, para fazer as investigações habituais, preparar o seu relatório e tratar com os repórteres que não tardariam a ir para lá.

Markham tinha uma conferência com o comissário de polícia às três horas; e depois do jantar Vance e eu caminhamos pela galeria interna de Stlegliez e passamos uma hora na exposição de motivos florais de Geórgia O'Keeffe. Mais tarde, fomos ao Aeolian Hall e ouvimos o Quarteto de Debussy em sol menor. Havia algumas aquarelas de Cézanne nas galerias de Monstros; porém, quando rompíamos caminho através do tráfego do anoitecer na Quinta Avenida, a luz começava a declinar e Vance ordenou ao motorista que nos deixasse no Stuyvesant, onde nos reunimos com Markham para o chá.

— Sinto-me tão jovem, tão simples, tão inocente — disse Vance, queixando-se lugubremente. — Tantas coisas têm acontecido e são tão engenhosamente manipuladas que eu não me posso aperceber delas. É muito desconcertante, muito confuso. Não me agrada isso... Não me agrada em absoluto. É por demais exaustivo.

Suspirou tristemente e sorveu seu chá.

— Suas atribulações me deixam frio — replicou Markham. — Provavelmente passou a tarde inspecionando arcabuzes e pistolas no Museu Metropolitano. Se você tivesse de passar pelo que eu passei...

— Ora, não se aborreça — respondeu Vance. — No mundo há muita emoção. A paixão não vai resolver este caso. O cérebro é a nossa única esperança. Tenhamos calma e pensemos. — Tornou-se sério. — Markham, isto se aproxima de um crime perfeito. Como uma das grandes combinações de xadrez de Morphy, foi calculado com muita antecipação. Não existem pistas e, mesmo que existissem, nos conduziriam ao erro. E, não obstante... e, não obstante, há algo que procura revelar-se. Sinto isto; mera intuição... Quero dizer nervos. Há uma voz inarticulada que precisa falar e não pode. Por várias vezes, senti a presença de uma força que luta como um fantasma invisível que procura pôr-se em contato, sem revelar sua identidade.

Markham deixou escapar um suspiro exasperado.

— Muito útil. Aconselha você que chamemos um médium?

— Há alguma coisa que temos omitido — continuou Vance, sem dar atenção ao sarcasmo de Markham. — O caso é um enigma e a chave está em alguma parte perto de nós, mas não a reconhecemos. Palavra de honra, é bastante incômodo... Tenhamos ordem. Lucidez... eis o nosso desideratum. Primeiro, Robin e assassinado. Depois, cai Sprigg com um balaço. Em seguida, a Sra. Drukker é atemorizada por um bispo negro. Depois disto, Drukker é atirado de cima de um muro. Quatro episódios distintos na obra fanática do assassino. Três foram planejados cuidadosamente. Um — a colocação do bispo preto na porta do quarto da Sra. Drukker — foi forçado pelas circunstâncias e, por conseguinte, havia sido decidido sem preparação...

— Esclareça seu raciocínio neste ponto.

— Oh, meu querido amigo! O portador do bispo preto estava evidentemente atuando em defesa própria. Um perigo inesperado surgiu ao longo de sua linha de ação e escolheu esse meio para conjurá-lo. Justamente antes da morte de Robin, Drukker saiu da sala do clube e instalou-se no caramanchão, donde podia ver a referida sala pela janela dos fundos. Um pouco mais tarde, viu alguém falando com Robin na sala. Voltou para sua casa e, nesse momento, o corpo de Robin era arrojado para fora. A Sra. Drukker viu e talvez seu filho também tenha visto. Ela gritou... muito natural, não? Drukker ouviu o grito e nos falou dele, num esforço para estabelecer um álibi para si, quando o informamos de que Robin tinha sido assassinado. Assim o assassino se inteirou de que a Sra. Drukker tinha visto algo... Quanto, não o sabia; porém, não se queria expor a perigos, foi ao seu quarto, à meia-noite, para fazê-la calar-se e levou o bispo para deixá-lo como sinal junto ao cadáver. Mas encontrou a porta fechada à chave e deixou o bispo do lado de fora, como para adverti-la de que nada dissesse, sob pena de morte. Não sabia que a pobre mulher suspeitava de seu próprio filho.

— Mas, por que Drukker não nos disse quem tinha visto na sala do clube com Robin?

— Só podemos supor que a pessoa fosse alguém que ele não podia conceber como culpável. E estou quase certo de que ele referiu o fato a essa pessoa, cavando assim a sua própria sepultura.

— Suponho que a sua teoria esteja certa, aonde nos leva?

— Ao episódio que não foi cuidadosamente preparado por antecipação. E, quando não houve preparação para um ato secreto, há seguramente um ponto fraco em um ou outro detalhe. Agora, peço-lhe que observe que, no momento de cada um dos assassinatos, qualquer das diversas pessoas no drama podia estar presente. Nenhum álibi havia. Isto, provavelmente, estava calculado inteligentemente: o assassino escolheu uma hora em que todos os atores estavam, por assim dizer, esperando nos bastidores. Mas aquela visita da meia-noite! Ah! Isso é um assunto diferente. Não houve tempo para elaborar uma série perfeita de circunstâncias... a ameaça era demasiado iminente. E qual foi o resultado? Drukker e o professor Dillard eram aparentemente as únicas pessoas à mão, à meia-noite. Arnesson e Belle Dillard estavam ceando no Plaza e não voltaram para casa senão aos trinta minutos depois da meia-noite. Pardee estava engalfinhado com Rubinstein sobre um tabuleiro de xadrez desde as onze até à uma. Drukker está agora naturalmente eliminado... Qual é a resposta?

— Eu podia lembrar-lhe — replicou Markham acremente — que os depoimentos dos outros não foram completamente contraditados.

— Bem, bem, você podia, não? — manifestou Vance, recostando-se indolentemente e lançando para o ar uma larga e regular série de anéis de fumaça. De súbito, seu corpo se estirou e com meticuloso cuidado inclinou-se para diante e tirou o cigarro. Então mirou o relógio e pôs-se de pé. Fitou Markham com um olhar burlesco.

— Vamos, meu velho. Não são ainda seis. Eis aqui o ponto em que Arnesson nos pode ser útil.

— Que há agora? — perguntou Markham.

— Sua própria sugestão — replicou Vance, tomando-o pelo braço e conduzindo-o para a porta. — Vamos pôr à prova o depoimento de Pardee.

Meia hora depois, estávamos sentados com o professor e Arnesson na biblioteca de Dillard.

— Vimos em uma missão um tanto inusitada — explicou Vance. — Mas, pode ser de importância vital para a nossa investigação. — Puxou a carteira e tirou dela uma folha de papel. — Eis aqui um documento, Arnesson, que eu desejava que você examinasse. É uma cópia da folha oficial de escores da partida de xadrez entre Pardee e Rubinstein. Muito interessante. Manuseei-a um pouco, porém gostaria de ter sua análise de perito. A primeira parte do jogo é bastante comum mas depois da suspensão me agrada muito.

Arnesson segurou o papel e estudou-o com céptica satisfação.

— Ah! O inglório recorde do Waterloo de Pardee, hem?

— Que significa isso, Markham? — perguntou o professor Dillard com desdém. — Espera você descobrir um assassino malbaratando o tempo em uma partida de xadrez?

— O Sr. Vance esperava poder saber algo com isto.

— Tolices! — O professor encheu outro copo de vinho do Porto e, abrindo um livro, não se preocupou mais conosco.

Arnesson estava absorto com as anotações do escore do xadrez.

— Alguma coisa um tanto estranha há aqui — murmurou. — O desvio do tempo. Vejamos... A folha de escore mostra que até o momento da suspensão, as brancas, isto é, Pardee, haviam jogado uma hora e quarenta e cinco minutos, e as negras, ou Rubinstein, uma hora e cinqüenta e oito minutos. Até aqui, tudo vai bem. Trinta movimentos. Tudo em ordem. Porém o tempo, no final da partida, quando Pardee desistiu, deu duas horas e trinta minutos para as brancas e três horas e trinta minutos para as negras, o que quer dizer que, durante a segunda sessão da partida, as brancas consumiram só quarenta e cinco minutos, enquanto as negras tomaram uma hora e trinta e quatro minutos. Vance meneou a cabeça.

— Exatamente. Houve duas horas e dezenove minutos de jogo começando às onze, que levou a partida até à uma e dezenove da madrugada. E as jogadas de Rubinstein durante este tempo levaram quarenta e nove minutos mais que as de Pardee. Você pode saber o que sucedeu?

Arnesson cerrou os lábios e olhou de soslaio para as anotações.

— Não está claro. Necessitaria de tempo.

— Suponha-se — sugeriu Vance — que puséssemos o jogo na posição em que ficou ao suspender-se a partida, e o jogássemos. Gostaria de conhecer sua opinião sobre as táticas.

Arnesson levantou-se de um salto e foi à mesinha do xadrez que estava no canto.

— Boa idéia — disse, esvaziando a caixa das peças. — Vejamos agora... Oh! falta um bispo negro. A propósito, quando o conseguirei de volta? — Dirigiu a Vance um olhar queixoso. — Não importa. Não é necessário. Um bispo negro foi roubado. — Então procedeu ao arranjo das peças de acordo com a posição do jogo no momento da suspensão. Em seguida sentou-se e estudou a defesa.

— A mim não parece que a posição fosse tão desfavorável para Pardee — aventurou Vance.

— Tampouco a mim; não posso compreender como perdeu a partida.

Depois de um momento, Arnesson referiu-se à folha de escores. — Desenvolvamos a jogada e vejamos onde está a falha. — Fez meia dúzia de jogadas; então, depois de alguns minutos de estudo resmungou: — Ah! Isto sim é que é profundo da parte de Rubinstein. Combinação surpreendente. Foi aqui que ele começou a trabalhar. Sutil, por Deus! Pelo que vejo, Rubinstein levou muito tempo para planejá-la. É lento, porém perseverante.

— É possível — sugeriu Vance — que a elaboração dessa combinação explique a discrepância quanto ao tempo entre as pretas e as brancas?

— Oh, indubitavelmente. Rubinstein devia estar em boa forma para não ter tornado ainda maior a discrepância. Planejando a combinação, levou quarenta e cinco minutos... ou então eu não entendo nada.

— A que horas diria você — perguntou Vance como por descuido — que Rubinstein usou esses quarenta e cinco minutos?

— Bem, vejamos. A partida começou às onze: seis jogadas antes que a combinação começasse... Oh, diga, entre ·as onze e meia e doze e meia... Sim, justamente por aí. Trinta jogadas antes que fosse suspenso; seis jogadas começando às onze... Isto faz trinta e seis: então na jogada quarenta e quatro Rubinstein moveu seu peão para o bispo-7-xeque, e Pardee abandonou... Sim, o desenvolvimento da combinação ocorreu entre onze e meia e doze e meia.

Vance olhou as peças no tabuleiro e que agora estavam na posição que haviam ocupado no momento da desistência de Pardee (1).

(1) Para benefício do jogador de xadrez que possa estar academicamente interessado, acrescento a posição exata do jogo, quando Pardee abandonou: Brancas — R em DCtsg; Torre em RO8; Peão em DR2 e O2; Negras: R em D5; C em Dct5; Bispo em D6; Peão em Dct7 e DO7.

 

— Por curiosidade — disse tranqüilamente — joguei a partida até o xeque-mate, à noite passada. Diga, Arnesson, você se incomodaria de fazer o mesmo? Gostaria de ouvir seu comentário.

Arnesson estudou a posição cuidadosamente durante uns minutos. Então volveu a cabeça lentamente e levantou a vista para Vance. Um sardônico sorriso espalhou-se em seu rosto.

— Compreendo, por Deus! Que situação! Cinco jogadas para que as negras ganhassem e um final quase inédito em xadrez. Não posso recordar-me de caso semelhante. A última jogada seria Bispo ao Cavalo-7, xeque-mate. Em outras palavras: Pardee foi derrotado pelo bispo negro! Incrível!(2)

(2) As cinco últimas jogadas não verificadas para que as negras fizessem mate, como eu mais tarde as obtive de Vance, eram: — 45. RxP; CtxR. 46 Cxct; P-ct8 (rainha). 47. Cxd; C-D6. 48. C-Rsq; c-07 .49. p-d3. O-Cd7 mate.

 

O professor Dillard largou o livro.

— Que é isto? — exclamou, reunindo-se conosco na mesa de xadrez. — Pardee foi derrotado pelo bispo? — Dirigiu a Vance um olhar sagaz cheio de admiração. — Evidentemente você tinha um bom motivo para investigar essa partida de xadrez. Rogo-lhe que desculpe o temperamento de um velho. — Permaneceu mirando o tabuleiro com uma expressão de tristeza e ao mesmo tempo espanto.

Markham franziu o cenho, denotando profunda perplexidade.

— Você disse que é inusitado um bispo só dar mate? — perguntou ele a Arnesson.

— Nunca sucede... É uma situação quase singular. E que isto sucedesse, entre todos, a Pardee! Incompreensível! — Soltou um riso breve e irônico. — Como você sabe, o bispo vem sendo a bête noire de Pardee há vinte anos... Arruinou a vida do pobre homem. O bispo negro é o símbolo de seus pesares. O Destino, por Deus! É a peça de xadrez que derrotou o gambito Pardee. Bispo a Cavalo-5 sempre arruinou seus cálculos, desqualificou sua teoria favorita... e fez uma burla e um escárnio do trabalho de sua vida. E agora, com uma probabilidade para empatar com o grande Rubinstein, o bispo aparece outra vez e o leva para as trevas.

Uns minutos mais tarde, despedimo-nos e caminhamos até a West End Avenue, onde tomamos um táxi.

— Não é de estranhar, Vance — Comentou Markham enquanto íamos em direção ao centro da cidade — que Pardee se tornasse pálido há poucos dias, quando você disse que o bispo negro estava fazendo das suas à meia-noite. Provavelmente pensou que você o insultava propositadamente, atirando-lhe na face o fracasso de sua vida.

— Talvez... — Vance olhou como em sonho as sombras que se estendiam pela cidade. — É estranho que o bispo venha sendo seu incubo durante todos esses anos. Semelhantes descoroçoamentos periódicos, às vezes afetam os cérebros mais fortes; criam um desejo de vingança contra o mundo.

— É difícil enquadrar Pardee em um papel vingativo — objetou Markham. — Qual era seu ponto de vista acerca da discrepância do tempo entre as jogadas de Pardee e de Rubinstein? Suponha-se que Rubinstein levasse quarenta e cinco minutos mais ou menos para desenvolver sua combinação. A partida não estava terminada depois da uma. Não vejo em que a visita a Arnesson nos tenha proporcionado progresso.

— Isto é porque você não está relacionado com os costumes dos enxadristas. Em uma partida com relógio, nenhum jogador fica sentado à mesa todo o tempo que o adversário pensa em sua jogada. Passeia. Distende seus músculos, sai a tomar ar, fala com as senhoras, alimenta-se e toma água gelada. No Torneio de Mestres do Manhattan Square, no ano passado, havia quatro mesas, não sendo raro ver vazias, às vezes, até três cadeiras. Pardee é um sujeito nervoso. Ele não poderia ficar sentado durante as prolongadas especulações mentais de Rubinstein.

Vance acendeu um cigarro lentamente.

— Markham, a análise desta partida por parte de Arnesson revela o fato de que Pardee dispôs naquela noite de três quartos de hora em torno da meia-noite.


XXI


A MATEMÁTICA E O ASSASSINATO

 

 

(Sábado, 16 de abril — 20h30)

 


Durante o jantar, falou-se muito pouco no caso, porém quando nos instalamos num canto solitário da ante-sala do clube, Markham puxou de novo o assunto.

— Não vejo como uma brecha no álibi de Pardee nos possa ser útil. Complica simplesmente uma situação já de si intolerável.

— Sim — suspirou Vance. — Este mundo é triste e desalentador. Cada passo que damos parece enredar-nos um pouco mais. E o mais surpreendente é que a verdade nos olha de face e nós não podemos vê-la.

— Não existem provas contra ninguém. Nem sequer uma pessoa suspeita, contra cuja culpabilidade a razão não se rebele.

— Eu não diria isso, sabe? É o crime de um matemático num ambiente de matemáticos.

Durante toda a investigação ninguém havia sido indicado como o possível assassino. Todavia, cada um de nós, consigo mesmo, suspeitava de que uma das pessoas com quem tínhamos falado fosse o culpado, e tão espantosa era essas suspeita que instintivamente recusávamos aceitá-la. Desde o princípio, cobrimos os nossos pensamentos e temores com um manto de generalidades.

— Um crime de matemático? — repetiu Markham. — O caso, segundo o meu parecer, é uma série de atos sem sentido cometidos por um louco.

Vance sacudiu a cabeça.

— Nossos criminoso é supersadio, Markham. E seus atos não são sem sentido: são odiosamente lógicos e precisos. É certo que eles foram concebidos com um sombrio e terrível humorismo, com uma atitude tremendamente cínica, porém, em si mesmos, em essência, são exatos e racionais.

Markham olhou para Vance pensativamente.

— Como pode você conciliar estes crimes do folclore infantil com um espírito matemático? — perguntou ele. — De que forma podem ser considerados lógicos? Para mim não são mais que pesadelos sem relação alguma com um cérebro são.

Vance se afundou mais em sua poltrona, fumando durante vários minutos. Em seguida, começou a fazer uma análise do caso, que não só esclareceu a aparente loucura dos crimes, como também colocou todos os sucessos e pessoas que neles intervieram sob um foco uniforme.

A exatidão desta análise foi verificada, de forma trágica e estonteante, antes de decorridos muitos dias. (1)

(1) Evidentemente não posso reproduzir as palavras exatas de Vance, apesar de serem completos os meus apontamentos; porém, enviei-lhe uma prova dos parágrafos seguintes, com um pedido de que os revisasse e os deixasse prontos para serem publicados; assim como estão agora, representam uma paráfrase exata da análise dos fatores psicológicos dos assassinatos do Bispo.


— Para compreender estes crimes — começou dizendo — devemos considerar os valores do matemático, pois todas as suas especulações e cálculos tendem a fazer ressaltar a insignificância relativa deste planeta e a nenhuma importância da vida humana. Considere em primeiro lugar a imensa extensão do campo de ação do matemático. Por um lado, ele procura medir o espaço infinito em termos de parsecs e anos-luz; e por outro o elétron, que é tão infinitamente pequeno que foi preciso inventar a unidade Rutherford equivalente à milionésima parte de um milimícron. Sua visão abrange perspectivas transcendentais, nas quais esta terra e seus habitantes se fundem até quase um ponto imperceptível. Algumas estrelas, tais como Canopus, Arcturus e Betelgeuse, que ele considera simplesmente como unidades pequenas e insignificantes, são muitas vezes maiores que todo o nosso sistema solar. O cálculo de Shapleigh do diâmetro da Via Láctea é de trezentos mil anos-luz; ainda temos de colocar dez mil Vias Lácteas juntas para conseguir o diâmetro do Universo, o que nos dá um conteúdo cúbico cem milhares de vezes maior do que a extensão da observação astronômica. Ou, então, colocando relativamente em termos de massa: o peso do Sol é 324.000 vezes maior que o da Terra; e o peso do Universo é calculado em um trilhão (um milhar de milhares) de sóis... (1) É estranho, então, que pessoas que trabalham com semelhantes grandezas estupendas percam toda noção das proporções terrestres?

(1) Vance usa aqui o sentido inglês de "trilhão" que é a terceira potência de um milhão, oposto ao sistema de numeração americano e francês, que considera um trilhão como um milhão de milhões.

 

Após curta pausa, Vance prosseguiu:

— Mas, essas são cifras elementares... fatos quotidianos. O matemático superior vai muito adiante. Trata de especulações obscuras e aparentemente contraditórias, que a inteligência mediana não pode compreender. Vive num reino onde o tempo, tal como nós o concebemos, não tem significado senão como uma ficção do cérebro e se transforma em uma quarta coordenada do espaço tridimensional, onde a distância tampouco tem significação, a não ser para os pontos vizinhos, desde que há um número infinito de caminhos mais curtos entre dois pontos dados; onde a linguagem de causa e efeito se transforma singelamente numa taquigrafia conveniente para fins explicativos; onde as linhas retas não existem e não são suscetíveis de definição; onde a massa cresce infinitamente quando atinge a velocidade da luz; onde o espaço em si está caracterizado por curvas; onde há infinitos de ordem superior e inferior; onde a lei da gravidade é abolida como força ativa e substituída por uma característica do espaço — concepção que diz que a maçã cai não porque é atraída pela terra, mas porque segue uma linha-mundo, ou geodésica...

"Nesse reino do moderno matemático — continuou Vance — existem as curvas sem tangentes. Nem Newton, nem Leibnitz, nem Bernoulli, sequer sonharam com a possibilidade de uma curva sem tangente, quer dizer, uma função contínua sem um coeficiente diferencial. Por certo, ninguém é capaz de figurar tal contradição: está muito além do poder de imaginação. E todavia, é um lugar-comum da matemática moderna trabalhar com curvas que não têm tangentes. Mais ainda, Pi, aquele velho conhecido de nossos dias escolares que considerávamos imutável, e a proporção entre o diâmetro e a circunferência varia agora conforme o que se mede seja um círculo em descanso ou um círculo em rotação... Aborreço-o com isto?

— Inquestionavelmente — replicou Markham. — Peço, porém, que continue, uma vez que as suas observações estão tomando uma direção terrestres.

— Os conceitos da matemática moderna projetam o indivíduo fora da realidade concreta em uma pura ficção do pensamento e conduzem ao que Einstein chama de "a mais degenerada forma de imaginação" — o individualismo patológico. Silberstein, por exemplo, concebe cinco e até seis dimensões espaciais e especula com habilidade para divisar um acontecimento antes que ele se produza. As conclusões contingentes sobre a concepção do Lúmen de Flammarion — pessoa imaginária que viaja mais rapidamente do que a velocidade da luz e é por conseguinte capaz de experimentar o tempo estendendo-se em uma direção inversa — são em si mesmas suficientes para abalar qualquer ponto de vista natural e são. (1) Porém existe outro homúnculo conceptual ainda mais fantástico do que Lúmen, sob o ponto de vista do pensamento racional. Este ser hipotético pode atravessar todos os mundos ao mesmo tempo com velocidade infinita, de maneira que é capaz de contemplar toda a história da humanidade, num golpe de vista. Desde Alfa Centauro pode ver a Terra como era quatro anos antes; desde a Via Láctea pode vê-la como era há quatro mil anos! E pode também escolher um ponto no espaço de onde possa presenciar a idade glacial e o tempo atual, simultaneamente!...

(1) Lúmen foi inventado pelo astrônomo francês para provar a possibilidade da reversão do tempo; com uma velocidade de 250.000 milhas por segundo, foi concebido remontando no espaço ao final da batalha de Waterloo, recolhendo todos os raios de luz deixados no campo de batalha. Conseguiu uma dianteira gradualmente maior, até que ao cabo de dois dias estava presenciando, não o final, mas o princípio da batalha; e durante esse tempo esteve observando acontecimentos de ordens diversas. Viu projéteis abandonando objetos em que haviam penetrado, e voltarem ao canhão; mortos ressuscitarem e retornarem ao combate. Outra aventura hipotética de Lúmen era saltar à Lua, voltando-se imediatamente e vendo-se a si mesmo saltando de volta da Lua à Terra.

 

Vance afundou-se mais na poltrona:

— Jogar com a simples idéia de infinito é o suficiente para perturbar o espírito do homem mediano. Porém, que é a proposição bem conhecida da Física que diz que não podemos seguir um caminho reto, sempre adiante, no espaço, sem voltar ao nosso ponto de partida? E essa proposição sustenta, numa palavra, que podemos ir diretamente a Sirius e um milhão de vezes mais adiante sem mudar de direção, porém nunca podemos abandonar o universo, voltando afinal ao nosso ponto de partida, pelo lado oposto! Diria você, Markham, que essa idéia conduz ao que nós costumamos chamar um pensamento normal? Porém, por paradoxal e incompreensível que pareça, é quase rudimentar quando a comparamos com outros teoremas avançados da física matemática. Considere, por exemplo, o chamado problema dos gêmeos: um dos gêmeos começa ao nascer uma viagem a Arcturus — com um movimento acelerado num campo de gravidade — e ao voltar descobre que é muito mais moço que o seu irmão. Se, pelo contrário, supusermos que o movimento dos gêmeos é galileano e que por conseguinte viajam com movimento uniforme, um em relação ao outro, então cada gêmeo descobrirá que o seu outro irmão é mais moço do que ele próprio...

"Na verdade — continuou Vance — não são paradoxos da lógica, Markham; paradoxos do sentimento. As matemáticas respondem por eles, lógica e matematicamente. (1) O ponto que desejo apresentar é que as coisas que parecem inconsistentes e ainda absurdas para a inteligência comum são vulgaridades para a inteligência matemática. Um físico-matemático como Einstein anuncia que o diâmetro do espaço — do espaço, compreende? — é de cem milhões de anos-luz, ou seja, setecentos trilhões de milhas, e considera este cálculo como o mais simples. Quando perguntamos o que há além desse diâmetro, a resposta é esta: "Não há mais além: estes limites incluem tudo." Quer dizer: o infinito é finito. Ou como diria o homem de ciência: o espaço não é limitado, porém finito. Medite nisso durante meia hora, Markham, e você terá a sensação de que vai enlouquecer.

(1) Vance me pediu que mencionasse aqui o trabalho escolástico de A. d'Abro, A Evolução do Pensamento Científico, em que há uma excelente discussão dos paradoxos relativos à idéia do espaço-tempo.


Parou de falar para acender um cigarro, após o que prosseguiu:

— O espaço e a matéria... eis aí o terreno especulativo dos matemáticos. Eddington concebe a matéria como uma característica do espaço, um tropeção no nada; enquanto que Weil concebe o espaço como uma característica da matéria; para ele o espaço vazio não tem significação. Assim, o número e o fenômeno de Kant têm relações entre si, trocando-se elementos; e mesmo a filosofia perde todo o significado. Porém, quando chegamos às concepções matemáticas do espaço finito, todas as leis racionais são revogadas. A concepção de De Sitter sobre a forma de espaço é que este tem uma conformação de globo ou de esfera. O espaço de Einstein é cilíndrico e a matéria se aproxima do zero na periferia ou "condição de fronteira". O espaço de Weil, baseado na mecânica de Mach, tem a forma de uma sela de montar... Ora, a que se reduz a natureza, o mundo em que vivemos, a existência humana, quando meditamos sobre tais concepções? Eddington sugere a conclusão de que não há leis naturais, quer dizer, a natureza não está sujeita à lei da razão suficiente. Pobre Schopenhauer!(1) E Bertrand Russell resume os resultados inevitáveis da física moderna, sugerindo que a matéria deve ser interpretada simplesmente como um grupo de ocorrências e que a matéria em si não precisa existir!... Veja você aonde nos conduz tudo isso. Se o mundo é não-causal e não-existente, que é uma simples vida humana ou a vida de uma nação? Ou, no caso em questão, a própria existência?...

(1) A tese de Vance para obter o título de Mestre em Artes, segundo me lembro, versava sobre Veber die Vierfache Wurzel des Satzes von zureichenden Gründen de Schopenhauer.


Vance ergueu a vista e Markham meneou a cabeça, de modo um tanto incrédulo.

— Até agora compreendo, por suposição — disse ele — porém, seu ponto de vista parece vago, para não dizer esotérico.

— É surpreendente — perguntou Vance — que um homem que lida com esses conceitos colossais e incomensuráveis, segundo os quais os indivíduos da sociedade humana são infinitesimais, possa com o tempo perder todo o senso dos valores relativos da terra e chegue a sentir um desprezo enormes pela vida humana? Os assuntos deste mundo, comparativamente insignificantes, chegariam então a ser minúsculas intrusões no macrocosmo de sua consciência. A atitude de semelhante homem chegaria a ser inevitavelmente céptica. No seu íntimo, zombaria de todos os valores humanos e da pequenez das coisas visíveis em torno de si. Talvez houvesse em sua atitude um elemento sadista, pois o cepticismo é uma forma de sadismo...

— Mas o assassinato deliberado, projetado de antemão! — objetou Markham.

— Considere os aspectos psicológicos do caso. Com a pessoa normal, que goza de recreações diariamente, mantém-se um equilíbrio entre as atividades conscientes e as inconscientes; as emoções, por serem constantemente dispersadas, não se podem acumular. Porém, com a pessoa anormal, que passa todo o seu tempo em uma intensa concentração mental e que suprime rigorosamente todas as suas emoções, o relaxamento do subconsciente prepara manifestações violentas, sempre prontas a se desencadearem. Esta larga inibição e aplicação mental prolongada, sem recreio ou repouso de qualquer espécie, causam uma explosão, que não raro, assume a forma de fatos de um horror inexplicável. Nenhum ser humano, por intelectual que seja, pode escapar a esses resultados. O matemático que repudia as leis da natureza é, não obstante, obediente a essas leis.

"Certamente, sua absorção estática nos problemas hiper-físicos só faz aumentar a pressão de suas emoções recalcadas. Uma natureza violentada, a fim de manter seu equilíbrio, produz as fulminações mais grotescas, reações que em seu humor terrível e alegria perversa são o reverso exato da seriedade sombria das impenetráveis teorias matemáticas. O fato de que Sir William Crookes e Sir Ouve Lodge, ambos grandes físicos matemáticos, se apresentem como espíritas confirmados, constitui um fenômeno psicológico análogo.

Vance deu várias baforadas em seu cigarro, e continuou:

— Markham, não é possível fugir aos fatos: estes assassinatos fantásticos e na aparência incríveis foram projetados por um matemático, como desafogos forçados de uma vida de intensa especulação abstrata e de repressão emocional. Preenchem todos os requisitos assinalados: são nítidos e precisos, admiravelmente elaborados com os menores fatores encaixados perfeitamente em seus lugares. Nenhum ponto frouxo, nenhum rastro, e aparentemente nenhum motivo. E, ao lado de uma precisão altamente imaginativa, todas as suas inclinações assinalam, sem erro, uma inteligência sempre mergulhada em concepções obscuras... um devoto da ciência pura, em liberdade de ação...

— Mas, por que aquele humor espantoso? — perguntou Markham. — Como concilia você o período do folclore infantil deles com a sua teoria?

— A existência de impulsos reprimidos — explicou Vance — sempre produz um estado favorável ao humor. Dugas apresenta o humor como uma detente, um relaxamento da tensão. E Bain, seguindo Spencer, chama o humor um alívio da restrição. O campo mais fértil para uma manifestação do humor encontra-se na energia potencial acumulada, o que Freud chama Besetzungsenergie, que a seu tempo exige uma descarga livre. Nestes crimes calcados em motivos infantis temos o matemático reagindo até aos atos frívolos mais fantásticos, a fim de equilibrar suas especulações lógicas supersérias. É como se fosse dizendo cèpticamente: "Olha! Este é o mundo que tu levas tão a sério porque nada sabes do mundo abstrato infinitamente maior. A vida na terra é um jogo de crianças, apenas e suficientemente importante para se fazer um chiste"... E semelhante atitude seria plenamente explicável pela psicologia; pois após qualquer excesso mental por demais prolongado, as reações tomam a forma de reversões, quer dizer, os mais sérios e dignos procurariam uma válvula de escape nos folguedos infantis. Aqui, incidentemente tem você a explicação para o camarada jocoso e prático com seus instintos sádicos...

Mais ainda, todos os sádicos têm um complexo infantil. E a criança é totalmente amoral. Um homem, por conseguinte, que experimente estas regressões psicológicas infantis, está além do bem e do mal. Muitos matemáticos modernos sustentam, todavia, que toda convenção, o dever, a moralidade, o bem, etc, não poderia existir a não ser pela ficção do livre arbítrio. Para eles, a ciência da ética é um campo freqüentado pelos fantasmas conceptuais. E ainda chegam à dúvida desintegrante sobre se a verdade mesma não é simplesmente uma ficção da imaginação... Acrescente a estas considerações o sentido da distorção terrestre e o desprezo pela vida humana, que poderiam facilmente resultar das especulações matemáticas superiores, e eis aí uma perfeita série de condições para o tipo de crimes como os que agora nos ocupam.

Quando Vance terminou de falar, Markham permaneceu em silêncio durante um largo tempo. Finalmente, moveu-se com impaciência.

— Posso compreender — disse ele — como estes crimes podiam adaptar-se a qualquer das pessoas envolvidas neste caso. Porém, com base em seu argumento, como explica você as notas aos jornais?

— O humor deve ser transmitido — respondeu Vance. — "O êxito de um chiste se acha no ouvido daquele que o escuta." Além disso, o impulso para o exibicionismo entra no presente caso.

— Mas o pseudônimo "O Bispo"?

— Ah! Este é um ponto importantíssimo. A razão de ser desta terrível orgia de humor se encontra na assinatura críptica.

Markham se voltou lentamente.

— O enxadrista e o astrônomo preenchem as condições de sua teoria, da mesma forma como o físico-matemático?

— Sim — respondeu Vance. — Desde os tempos de Philidor, Staunton e Kieseritzki, quando o xadrez era como uma bela arte, o jogo transformou-se até quase chegar a ser uma ciência exata. E durante o regime da Capablanca chegou a ser amplamente um assunto de especulações matemática abstrata. Por certo Maroczy, o Dr. Lasker e Vidimar são todos matemáticos bem conhecidos... E o astrônomo, que realmente observa o universo, pode conseguir uma impressão ainda mais intensa da nenhuma importância do mundo de que o físico especulativo. A imaginação corre velozmente através de um telescópio. A simples teoria da existência de vida nos planetas distantes tende a reduzir a vida terrestre a uma consideração secundária. Durante horas, depois que contemplamos Marte, por exemplo, e nos deixamos entreter pela idéia de que seus habitantes ultrapassam em número e em inteligência a nossa população, sentimos dificuldade em nos reajustarmos aos insignificantes assuntos da vida aqui na Terra. Mesmo a simples leitura do livro romântico de Percival Lowell afasta momentaneamente da pessoa imaginativa a consciência da importância de qualquer existência planetária singela...

Aqui houve um prolongado silêncio, após o qual Markham perguntou:

— Por que Pardee levou o bispo preto da casa de Arnesson naquela noite e não do clube, onde não se teria notado a falta?

— Não sabemos o bastante sobre o motivo que o impulsionou, para dar respostas a essa pergunta. Ele pode tê-lo levado com algum propósito deliberado. Mas, que indícios tem você da culpabilidade dele? Todas as suspeitas do mundo não lhe permitiriam tomar qualquer medida contra ele. Ainda que soubéssemos, sem nenhuma dúvida, quem fosse o assassino, não poderíamos... Digo a você, Markham, que estamos enfrentando uma inteligência audaciosa e sagaz... uma inteligência que elabora cada jogada e calcula todas as probabilidades. Nossa única esperança é criar nossa própria evidência, encontrando um ponto fraco na combinação do assassino.

— A primeira coisa que farei amanhã de manhã — declarou Markham sombriamente — é pôr Heath em ação para averiguar o que Pardee fez, naquela noite. Destacarei vinte homens para apurarem o álibi e farei com que interroguem todos os espectadores daquela partida de xadrez e façam averiguações de porta em porta, desde o Clube de Xadrez de Manhattan até à casa de Drukker. Se pudermos encontrar alguém que haja visto Pardee nas vizinhanças da casa de Drukker, cerca da meia-noite, então teremos um elemento de suspeita, de prova circunstancial contra ele.

— Sim — concordou Vance. — Isso nos daria um ponto de partida definido. Pardee teria muita dificuldade em explicar por que motivo estava a seis quadras do Clube durante sua partida de xadrez com Rubinstein, à hora exata em que era deixado, na porta do quarto da Sra. Drukker, um bispo preto... Sim, sim. Faça tudo para que Heath e sua gente se ponham em ação. Pode ser que consigamos algo.

O sargento, porém, não chegou a ser chamado para fazer as averiguações lembradas. Antes das nove do dia seguinte, Markham se apresentou em casa de Vance, para informar-lhe que Pardee se havia suicidado.


XXII

 

O CASTELO DE CARTAS

 

(Domingo, 17 de abril — 9h)

 

A notícia surpreendente da morte de Pardee teve sobre Vance um efeito curiosamente perturbador. Olhou incredulamente para Markham. Em seguida, tocou a campainha com toda a pressa. Apresentou-se Currie, a quem ordenou que preparasse sua roupa e trouxesse uma xícara de café. Enquanto se vestia, seus movimentos revelavam impaciência e ansiedade.

— Demônios, Markham! — exclamou. — Isso é extraordinário... Como soube?

— O professor Dillard me telefonou para a minha casa há menos de meia hora. Pardee se suicidou na sala do clube de Dillard durante a noite. Pyne descobriu o corpo esta manhã e informou o professor. Eu transmiti a notícia a Heath e em seguida vim para aqui. Nas circunstâncias atuais, pensei que fosse oportuno que estivéssemos juntos. — Markham fez uma pausa para acender um charuto. — Parece que se acabou o caso do Bispo... Não é um fim inteiramente satisfatório, mas o melhor para todas as pessoas envolvidas.

Vance não emitiu comentário imediato. Sorveu o seu café abstraidamente, levantando-se por fim, e apanhando o seu chapéu e a bengala...

— Suicídio... — murmurou ele enquanto descíamos a escada. — Sim, isso seria bastante coerente mas, como você disse, insatisfatório... infelizmente insatisfatório...

Chegamos à casa de Dillard e Pyne nos fez entrar. Mal o professor se juntou a nós, soou a campainha da porta da rua. Heath, belicoso e dinâmico, irrompeu na sala onde nos achávamos.

— Isto esclarece as coisas, senhor — disse jubiloso a Markham, depois do ritual aperto de mão. — Estes pássaros calados... nunca se podem julgar. Todavia, quem poderia pensar...?

— Escute, sargento, — interrompeu lentamente Vance — não pensemos. Isso cansa muito. Um espírito aberto... árido como o deserto... é que é o indicado.

O professor Dillard encaminhou-se para a sala do clube seguido por nós. As persianas estavam corridas e as lâmpadas elétricas acesas ainda. Também notei que as janelas estavam fechadas.

— Deixei tudo exatamente como estava — exclamou o professor.

Markham encaminhou-se para a mesa grande do centro. O corpo de Pardee estava sentado numa cadeira, defronte à porta que dava para o campo de exercícios. A cabeça e os ombros apoiavam-se sobre a mesa. O braço direito abraçava o espaldar da cadeira e a mão segurava a pistola automática. No lado direito do peito, apresentava um ferimento de bala. E na mesa, debaixo de sua cabeça, uma poça de sangue coagulado.

Nossos olhos permaneceram muito pouco tempo sobre o cadáver, pois uma coisa surpreendente, insólita, desviava nossa atenção. As revistas haviam sido postas a um lado da mesa, deixando um espaço aberto diante do cadáver. E nessa zona livre, erguia-se um alto e bem feito castelo de cartas. Quatro flechas marcavam os limites do pátio. Os passeios do jardim estavam representados por paus de fósforo, colocados um junto ao outro. Era uma reprodução que faria a alegria de uma criança. E eu recordei o que Vance havia dito na noite anterior, sobre os espíritos sérios que buscavam recreação nos divertimentos infantis. Havia algo de inefavelmente horrível na justaposição daquela estrutura de cartas e a morte violenta.

Vance, de pé, olhava a cena com um ar triste e preocupado.

— Hic jacet John Pardee — murmurou numa espécie de reverência. — E este é o castelo que John construiu... um castelo de cartas... — Deu uns passos para diante como para inspecioná-lo mais de perto. Mas seu corpo bateu na mesa, houve uma ligeira trepidação e o frágil edifício de cartas veio abaixo.

Markham ergueu-se e, voltando-se para Heath, perguntou-lhe:

— Você notificou o médico legista?

— Sim. — O sargento parecia ter dificuldade em desviar a vista da mesa. — E caso seja preciso, virá também Burke. — Dirigindo-se às janelas, levantou as persianas, deixando penetrar a luz do dia. Em seguida, voltou para junto do corpo de Pardee e ficou a olhá-lo demoradamente. De súbito, ajoelhou-se e se inclinou para diante.

— Este me parece o 38 que estava no armário das ferramentas — comentou o sargento.

— Sem dúvida — afirmou Vance, tirando a cigarreira do bolso.

Heath levantou-se e se encaminhou para o armário, inspecionando-lhe o conteúdo.

— Não me enganei, é ele mesmo. Chamaremos a Srta. Dillard para que o identifique, depois de que o médico tenha examinado o cadáver.

— Nesse momento, Arnesson, num robe roxo e amarelo, irrompeu na sala, nervoso e excitado.

Por todas as bruxas! — exclamou ele. — Pyne acaba de dar-me a notícia. — Aproximando-se da mesa, examinou o corpo de Pardee. — Suicídio, hem?... Mas por que não escolheu a sua própria casa para isto? Não teve consideração em fazê-lo em casa alheia. É coisa mesmo de enxadristas.

Ergueu a vista para Markham.

— Espero que isto não nos envolverá em mais complicações desagradáveis. Já temos tido muita notoriedade. Isso perturba o espírito da gente. Quando poderão levar daqui este cadáver? Não quero que Belle o veja.

— Será removido logo que o médico legista o tiver examinado — respondeu Markham em um tom de gelada censura. Além disso, não há necessidade de trazer aqui a Srta. Dillard.

— Excelente. — Arnesson mirava, entretanto, o cadáver. Lentamente seu rosto se cobriu de uma expressão de cínica piedade. — Pobre diabo! A vida era demais para ele. Hipersensível... nenhuma força psíquica. Levava as coisas a sério em demasia. Construía o seu próprio destino, e o seu sonho se desfez em fumaça. Não podia encontrar outra diversão. O bispo preto o enfeitiçava. Provavelmente, desviava seu cérebro do eixo. Por Deus! Não me surpreende que a sua obsessão o tenha levado à autodestruição.

— Inteligente idéia — replicou Vance. — A propósito, sobre a mesa, quando entramos aqui, havia um castelo de cartas.

— Ah! Que fariam aí estas cartas? Pensou ele que poderia encontrar consolo no solitário durante seus últimos momentos... Um castelo de cartas... Parece tolice. Sabe você a resposta?

— Em absoluto. "A casa que João construiu" poderia explicar algo.

— Compreendo. — Arnesson parecia uma abelha. — Divertindo-se com jogos infantis até o fim... mesmo contra si próprio. Estranha idéia. — Aqui bocejou cavernosamente. — Vou-me vestir. — E se foi para cima.

O professor Dillard havia permanecido contemplando Arnesson com um olhar ao mesmo tempo angustiado e paternal. Agora, voltou-se para Markham num gesto de fastio.

— Sigurd sempre procura conter suas emoções. Tem vergonha de seus sentimentos. Não levem a sério sua atitude despreocupada.

Antes de que Markham pudesse responder, Pyne fez entrar o detetive Burke. E Vance aproveitou a oportunidade para interrogar o mordomo a respeito de sua descoberta.

— Como foi que você entrou aqui esta manhã? — perguntou ele.

— Havia uma atmosfera pesada na despensa, senhor, — respondeu Pyne, — e abri a porta ao pé da escada para entrar ar. Logo percebi que as persianas estavam corridas...

— Então, não costumava baixar as persianas de noite?

— Não, senhor... nesta sala não.

— Que me diz das janelas?

— Sempre as deixo de noite um pouco abertas em cima.

— Foram deixadas abertas ontem de noite?

— Sim, senhor.

— Perfeitamente. E depois que você abriu a porta esta manhã?

— Comecei a apagar as luzes, pensando que a Srta. Dillard houvesse esquecido de desligar a chave. Foi nesse momento que enxerguei o pobre cavalheiro ali, sobre a mesa. Então, fui avisar o professor Dillard.

— Sabe Beedle alguma coisa sobre a tragédia?

— Eu lhe contei, depois que os senhores chegaram a esta casa.

— A que hora você e Beedle foram deitar-se?

— Às dez.

—Logo que Pyne saiu, Markham dirigiu-se ao professor Dillard.

— Ficaríamos agradecidos se o senhor nos desse todos os detalhes possíveis, enquanto esperamos o Dr. Doremus. Podemos ir lá em cima?

Burke ficou na sala e todos subimos à biblioteca.

— Receio que tenha pouca coisa a dizer-lhes — começou a falar o professor, sentando-se ao tempo em que apanhava o cachimbo. Em suas maneiras, havia uma reserva notável, uma espécie de acentuada relutância. — Pardee veio aqui ontem à noite, depois do jantar, com a intenção de falar com Arnesson, porém agora acredito que foi para ver Belle. Esta, todavia, escusou-se, retirando-se logo, pois estava com enxaqueca. Pardee permaneceu até às onze e meia. Em seguida, saiu. E esta foi a última vez que o vi, até o momento em que Pyne me trouxe esta manhã a terrível notícia...

— Mas se o Sr. Pardee — interveio Vance — veio ver sua sobrinha, como explica o senhor que tenha permanecido tanto tempo depois que ela se retirou?

— Não sei explicar. — O ancião parecia perplexo. — Ele dava a impressão, todavia, de que em seu espírito alguma coisa se agitava e de que desejava a companhia de alguém. O fato é que tive de insinuar-lhe sem rodeios que me sentia cansado antes de que ele finalmente se erguesse para sair.

— Onde esteve Arnesson, ontem à noite?

— Sigurd se demorou conversando conosco durante uma hora mais ou menos, depois que Belle se retirou, deitando-se em seguida. Toda a tarde tinha estado ocupado com os assuntos de Drukker e se achava fatigado.

— Que hora seria?

— Dez e meia.

— E o senhor disse — continuou Vance — que Pardee lhe deu a impressão de se encontrar sob os efeitos de uma angústia mental?

— Não angústia, exatamente. — O professor franziu o cenho, soltou ao ar uma baforada de fumaça. Parecia deprimido, quase melancólico.

— Pareceu ao senhor que ele se achava com temor de alguma coisa?

— Não. Absolutamente. Seu aspecto era o de um homem que houvesse experimentado um grande pesar e não pudesse desprender-se dos efeitos causados pela dor.

— Quando se retirou, acompanhou-o o senhor até o vestíbulo? Quer dizer, notou que direção tomou ele?

— Não. Sempre tratamos Pardee como pessoa da família. Ele deu boa noite e saiu do quarto. Acho que ele saiu pela porta principal.

— Retirou-se o senhor imediatamente para o seu quarto?

— Dentro de dez minutos. Demorei o tempo suficiente para pôr em ordem uns papéis em que estivera trabalhando.

Vance permaneceu em silêncio. Sem dúvida alguma estava confundido em face do último episódio. Markham retomou o interrogatório.

— Suponho que será inútil perguntar-lhe se ouviu algum disparo ontem à noite.

— Tudo em casa estava tranqüilo — respondeu o professor Dillard. — E, de qualquer modo, um tiro disparado na sala do clube não poderia ser ouvido aqui. Há dois lanços de escadas, todo o comprimento do vestíbulo inferior e um corredor, e entre eles três grossas portas, sem aludir à espessura e solidez das paredes desta velha casa.

— E ninguém — completou Vance — pode ter ouvido da rua, pois as janelas da sala estavam fechadas cuidadosamente.

O professor fez que sim a cabeça e dirigiu-lhe um olhar perscrutador.

— É verdade. Vejo que você também notou esta circunstância particular. Não compreendo bem por que Pardee fechou as janelas.

— As idiossincrasias dos suicidas nunca foram explicadas satisfatoriamente — replicou Vance, como por acaso. E depois de uma breve pausa, perguntou:

— De que falavam o senhor e Pardee, antes de este se retirar?

— Falamos muito pouco. Eu estava ocupado com um novo artigo da Revista de Física e procurei interessá-lo sobre o assunto, mas o seu espírito, como já lhe disse, mostrava certa preocupação, entretendo-se com o tabuleiro de xadrez a maior parte do tempo.

— Ah! Deveras? É muito interessante.

Vance lançou um olhar ao tabuleiro. Um certo número de peças permanecia nos quadros. Levantou-se rapidamente e, atravessando a sala, foi até à mesinha. Depois de um instante, voltou, sentando-se de novo.

— É curioso — murmurou ele e muito deliberadamente acendeu um cigarro. — Sem dúvida alguma, ele testava refletindo no final de sua partida de xadrez com Rubinstein, antes de sair ontem à noite. As peças estão postas exatamente como estavam quando abandonou a luta... com o inevitável mate do bispo preto, em cinco lances.

O olhar do professor Dillard pousou pensativamente sobre a mesinha de xadrez.

— O bispo preto — repetiu em voz baixa. — Pode ser isto que ocupava seu espírito ontem à noite? Parece incrível que uma coisa tão banal pudesse impressioná-lo assim, tão desastradamente.

— Não esqueça — lembrou Vance — que o bispo preto era o símbolo de seu fracasso. Representava o naufrágio de suas esperanças. Fatores menos patentes levaram muitos homens a abandonar a vida.

Uns minutos depois, Burke nos informou que o médico havia chegado. Deixando o professor, descemos outra vez até à sala do clube, onde o Dr. Doremus estava ocupado em examinar o cadáver de Pardee.

O médico levantou a cabeça quando entramos, e ondeou a mão superficialmente. Seu costumeiro modo jovial havia desaparecido.

— Quando irá terminar tudo isto? — grunhiu ele. — Não me agrada o ambiente deste lugar. Assassinatos... morte por síncope... suicídios... O bastante para eriçar o cabelo. Vou procurar um emprego bom e tranqüilo num matadouro.

— Cremos — disse Markham — que este é o último de todos.

Doremus escarneceu.

— Ora, vá! Você acha? O bispo se suicida depois de percorrer, andrajoso, a cidade. Parece razoável. Espero que você tenha razão. — Inclinou-se de novo sobre o cadáver e, separando-lhe os dedos da mão, tirou-lhe o revólver, jogando-o sobre a mesa. — Para o seu arsenal, sargento.

Heath guardou a arma no bolso.

— Quanto tempo faz que está morto, doutor?

— Oh, desde meia-noite, mais ou menos. Pode ser que antes, pode ser que depois. Mais algumas perguntas tolas?

Heath sorriu.

— Há alguma dúvida de que se tenha suicidado?

— Que lhe parece que seja? Uma bomba da mão negra? — Em seguida, falou em tom profissional. — A arma estava em sua mão. No peito, sinais de fogo. Orifício de entrada produzido pela bala do mesmo revólver que empunhava. Posição do corpo, natural. Não vejo nada de suspeito. Por quê? Tem dúvidas?

Foi Markham quem respondeu:

— Ao contrário, doutor. Nós acreditamos que foi um suicídio.

— Pois foi mesmo. Examinarei um pouco mais. Sargento, ajude-me.

Quando Heath ajudou a levantar o corpo de Pardee e a colocá-lo num diva para um exame mais detido, fomos até a sala de visitas, onde Arnesson se juntou a nós.

— Qual é o veredicto? — perguntou ele, deixando-se cair numa cadeira próxima. — Suponho que não haverá dúvidas de que foi ele mesmo que se matou, não?

— Por que torna ao assunto, Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Não tenho motivo algum. Um comentário ocioso. Muitas coisas raras estão acontecendo por aqui.

— Oh, evidentemente — disse Vance, ao mesmo tempo que soltava para o teto uma espiral de fumaça.

— Não, segundo o médico, não há dúvida de que foi um suicídio. A propósito, Pardee deu a você a impressão de achar-se inclinado ao suicídio?

Arnesson pensou um pouco.

— Difícil de dizer — concluiu. — Nunca foi alegre. Mas suicidar-se?... Não sei. Entretanto, você disse que não havia lugar para dúvidas. Assim, já se vê...

— Sim, sim. E como entra em sua fórmula esta situação?

— Dissipa toda a equação, não há dúvida. Não há mais necessidade de especular. — Apesar de suas palavras, parecia incerto. — O que não posso compreender — acrescentou — é por que escolheu a sala do clube. Na casa dele, havia bastante lugar para suicidar-se.

— É que aqui havia um revólver conveniente — sugeriu Vance. — E agora me lembro de que o sargento Heath queria que a Srta. Dillard identificasse a arma, pro forma.

— Isso é fácil. Onde está?

Heath entregou-lhe o revólver e Arnesson retirou-se com ele.

— Também podia perguntar-lhe se ela guardava um baralho na sala do clube.

Arnesson voltou após alguns minutos, informando-nos que o revólver era o que estava no armário das ferramentas, e que não só havia um baralho na gaveta da mesa da sala, como também Pardee sabia onde ele estava.

Em seguida, apareceu o Dr. Doremus e reiterou sua conclusão de que Pardee havia-se suicidado.

— Esta será minha informação — disse ele. — Não vejo outra coisa. Para ser exato, muitos suicídios são forjados, porém isso é de seu domínio. Neste caso, não há nada absolutamente de suspeito.

Markham sacudiu a cabeça, sem ocultar sua satisfação.

— Não temos motivo para discutir suas conclusões, doutor. Em realidade, este suicídio se harmoniza perfeitamente com o que já sabemos. Conduz toda essa orgia do Bispo a um fim lógico. — Levantou-se como um homem de cujos ombros tivessem tirado uma enorme carga. — Sargento, deixarei a você o cuidado de ordenar as diligências necessárias para que o cadáver seja levado para a autópsia. Mais tarde, passe pelo Stuyvesant. Graças a Deus que hoje é domingo! Temos tempo para dar umas voltas por aí.

Aquela noite, no Clube, Vance, Markham e eu estávamos sentados no salão. Heath fez ato de presença, retirando-se em seguida. Uma nota cuidadosa sobre o suicídio de Pardee foi redigida para a imprensa indicando ao mesmo tempo que o caso do Bispo estava, com tal fato, encerrado. Vance havia falado pouco durante todo o dia. Recusara-se a oferecer qualquer sugestão sobre a redação da declaração oficial, parecendo nada disposto a discutir a nova fase do caso. Agora, porém, dava voz às dúvidas que tinham estado trabalhando o seu espírito.

— É muito fácil, Markham, fácil demais. Há apenas um cheiro de plausibilidade em tudo isto. É perfeitamente lógico, sabe, mas não é satisfatório. Não posso imaginar o nosso Bispo terminando toda a sua carnificina humorística de uma forma tão brutal. Não há nada de engenhoso em fazer saltar a tampa do cérebro... é demasiado vulgar, sabe? Mostra uma horrível falta de originalidade. Não é digno de artífice dos assassinatos do Bispo.

Markham estava aborrecido.

— Você mesmo explicou como os crimes estavam de acordo com as possibilidades psicológicas da mentalidade de Pardee. E para mim parece altamente razoável que, havendo levado a cabo seus trágicos intentos, e chegado ao final da aventura, tenha-se eliminado.

— Pode ser que você tenha razão — suspirou Vance. — Eu não tenho nenhum argumento decisivo para contrariar o seu ponto de vista. Mas estou desapontado. Não me agradam os anticlímaxes, especialmente quando não correspondem à minha idéia do talento do dramaturgo. A morte de Pardee neste momento é demasiado clara... esclarece as coisas de forma por demais nítida. Há nela demasiada utilidade e muito pouca imaginação.

Markham sentiu que podia dar-se ao luxo de ser tolerante.

— Talvez a imaginação dele estivesse esgotada com tantos crimes. Seu suicídio poderia ser considerado simplesmente como o descer do pano, uma vez terminado o espetáculo. De todo modo, foi sem dúvida alguma um ato incrível. A derrota, a desilusão e o desânimo... o fracasso de todas as ambições... têm constituído causa suficiente para o suicídio, desde tempos imemoriais.

— Exatamente. Temos um motivo razoável, ou uma explicação para o suicídio, mas nenhum motivo para os crimes.

— Pardee estava enamorado de Belle Dillard — replicou Markham. — E provavelmente sabia que Robin a cortejava. Também tinha um ciúme intenso de Drukker.

— E o assassinato de Sprigg?

— Não temos dados sobre esse ponto. Vance sacudiu a cabeça.

— Não podemos separar os crimes quanto ao motivo. Todos tiveram origem num mesmo impulso fundamental: foram cometidos por uma única paixão fremente.

Markham suspirou com impaciência.

— Mesmo supondo que o suicídio de Pardee não tenha relação com os assassinatos anteriores, estamos num ponto morto, figurativa e literalmente.

— Sim, sim. Um ponto morto. Muito triste. Ainda que, para a polícia, consolador: deixa-a livre por algum tempo, seja como for. Porém, não interprete mal minhas fantasias. A morte de Pardee está indubitavelmente relacionada com os assassinatos. Eu diria que existe uma relação muito íntima.

Markham tirou da boca, lentamente, seu charuto e contemplou Vance durante alguns momentos.

— Há alguma dúvida em seu espírito — perguntou ele — de que Pardee se tenha suicidado?

Vance hesitou, antes de responder.

— Eu queria saber — disse ele lentamente — por que aquele castelo de cartas caiu tão rapidamente, logo que eu deliberadamente me encostei na mesa...

— Sim?

— ... E por que não caiu, quando a cabeça e os ombros de Pardee desabaram sobre a mesa, depois de haver disparado o tiro contra si.

— Isso não quer dizer nada — disse Markham. — A primeira sacudidela pode ter afrouxado as cartas... — Subitamente seus olhos se entrecerraram. — Quer você dizer que o castelo de cartas foi armado depois da morte de Pardee?

— Oh, meu caro amigo! Eu não me estou entregando a deduções. Estou dando rédea solta à minha curiosidade juvenil, sabe?


XXIII

 

UMA DESCOBERTA SURPREENDENTE

 

(Segunda-feira, 25 de abril — 8h30)

 

Oito dias tinham transcorrido depois da morte de Pardee. O enterro de Drukker saiu da casa da Rua 76. Assistiram-no unicamente os Dillards e Arnesson e alguns homens da Universidade, que vieram render um último tributo de respeito ao homem de ciência, por cuja obra tinham sincera admiração.

Vance e eu estivemos na casa, na manhã do enterro, quando uma menina trouxe um ramalhete de flores primaveris que ela mesma colhera, e pediu a Arnesson que as colocasse no ataúde de Drukker. Quase esperei uma resposta cínica de Arnesson, surpreendendo-me, porém, quando tomou as flores gravemente e disse, num tom de voz quase de ternura:

— Serão postas em seguida, Madalena. E Humpty Dumpty lhe agradece a lembrança.

Quando a governanta levou a criança, Arnesson voltou-se para nós e disse:

— Era a favorita de Drukker... Camarada engraçado... Nunca ia ao teatro. Detestava viagens. Sua única diversão era entreter as crianças.

Menciono este episódio, porque, apesar de parecer sem importância, punha em destaque um dos elos mais vitais da cadeia de evidência que acabou por esclarecer, sem dúvida alguma, o problema dos assassinatos do Bispo.

A morte de Pardee havia criado uma situação única nos anais do crime. A declaração fornecida pelo procurador do distrito havia apenas indicado a possibilidade de ser Pardee o autor dos assassinatos. Não importa o que Markham pudesse ter pensado intimamente; estava longe de ser nobre e justo lançar uma dúvida direta sobre o caráter de outrem sem provas decisivas. Porém, a onda de terror levantada por esses estranhos assassinatos havia atingido tais proporções que ele não podia, diante do dever para com a comunidade, limitar-se a dizer que o caso estava terminado. Assim, embora nenhuma acusação aberta pesasse sobre Pardee, os assassinatos do Bispo não eram mais olhados como uma fonte de ameaça contra a cidade, e um suspiro de alívio partiu de todos os pontos.

No Clube de Xadrez de Manhattan, havia provavelmente menos discussão do caso do que em qualquer outro lugar de Nova York. Os sócios sentiram, talvez, que a honra do Clube estava, de qualquer forma, envolvida. Ou talvez houvesse um sentimento de lealdade para com um homem que tanto havia feito pelo xadrez como Pardee. Porém, qualquer que fosse a causa, o fato é que os membros do Clube assistiram em sua unanimidade aos funerais do companheiro. Não pude admirar menos essa homenagem ao colega de xadrez, pois, deixando de lado seus atos particulares, havia sido um dos grandes animadores do antigo e real jogo, a que se dedicavam. (1)

(1) Pardee deixou em seu testamento uma grande soma para o incremento do xadrez. É de lembrar que, no outono do mesmo ano, teve lugar em Cambridge Springs um torneio em memória de Pardee.

 

O primeiro ato oficial de Markham, no primeiro dia seguinte à morte de Pardee, foi relaxar a prisão de Sperling. Nessa mesma tarde, o Departamento de Polícia arquivou todas as investigações em torno dos assassinatos do Bispo e cessou a vigilância da casa de Dillard. Vance protestou francamente contra esta última deliberação; em virtude, porém, de haver o médico legista em seu laudo post mortem confirmado, totalmente, a teoria do suicídio, restava a Markham pouca coisa a fazer no caso. Além disso, estava convencido de que com Pardee tudo havia terminado, e mofava das dúvidas que ocorriam a Vance.

Durante a semana seguinte ao encontro do corpo de Pardee, Vance estava inquieto e mais preocupado que nunca. Procurou interessar-se por vários assuntos, porém sem êxito visível. Mostrava sinais de irritabilidade. E sua quase milagrosa equanimidade parecia haver-lhe desertado do espírito. Tive a impressão de que estava esperando que algo sucedesse. Sua atitude não era exatamente de expectativa, porém havia nele um ar de vigilância que, às vezes, chegava à apreensão. No dia seguinte ao enterro de Drukker, Vance visitou Arnesson. E, quinta-feira, à noite, acompanhou-o ao teatro para assistir à peça Os Espectros, de Ibsen, obra que, segundo vim a saber, não lhe agradava. Soube que Belle Dillard havia ido passar um mês em casa de um parente em Albany. Como explicou Arnesson, ela começara a sentir os efeitos de tantos dissabores, sendo-lhe necessário uma mudança de ambiente. O homem encontrava-se visivelmente triste pela ausência da jovem. Confiou a Vance que eles haviam combinado casarem-se no mês de julho. E Vance também soube por ele que a Sra. Drukker deixara em testamento todos os seus bens para Belle e para o professor Dillard, em caso de morte do seu filho, fato que interessou, particularmente, a Vance.

Se tivesse sabido, ou embora suspeitado que coisas surpreendentes e terríveis se acumulavam sobre nós naquela semana, duvido que eu pudesse suportar o esforço. Pois o caso dos assassinatos do Bispo não tinha ainda terminado. O clímax do horror estava ainda por chegar; porém este, tão terrível e horripilante, foi apenas uma sombra do que podia ter sido, se Vance não tivesse examinado o caso, chegando a duas conclusões distintas, uma das quais havia sido abandonada em vista da morte de Pardee. Era a outra possibilidade, como vim a saber mais tarde, que o fez permanecer em Nova York, vigilante e mentalmente alerta.

Segunda-feira, 25 de abril, foi o começo do fim. Fomos jantar com Markham no Clube dos Banqueiros, para em seguida irmos assistir aos Mestres Cantores(1). Porém, aquela noite não presenciamos os triunfos de Walter. Observei que quando nos encontramos com Markham, este parecia preocupado. E nem bem nos havíamos sentado no salão de refeições do Clube quando ele nos contou um telefonema que havia recebido do professor Dillard aquela tarde.

(1) Das óperas de Wagner era esta a predileta de Vance. Sempre afirmou que era esta a única ópera que tinha a forma estrutural de uma sinfonia. E mais de uma vez lamentou que não tivesse sido escrita como uma peça orquestral, ao invés de veículo para um drama absurdo.

 

— Pediu-me particularmente que fosse vê-lo esta noite

— explicou Markham. — E, quando procurei desculpar-me, demonstrou grande impaciência. Acentuou o fato de que Arnesson estaria fora toda a noite e disse que uma oportunidade semelhante não poderia apresentar-se senão quando fosse tarde demais. Negou-se a dar explicações e insistiu em que eu fosse à sua casa depois do jantar. Disselhe que lhe comunicaria se me fosse possível atender ao seu pedido.

Vance escutara com um interesse mais intenso.

— Devemos ir, Markham. Esperava um chamado assim. É possível que por fim encontremos a chave da verdade.

— A verdade acerca de quê?

— Da culpabilidade de Pardee.

Markham não disse mais nada e jantamos em silêncio.

Às oito e meia tocávamos a campainha da casa de Dillard. Pyne nos conduziu imediatamente à biblioteca. O velho professor saudou-nos com reserva nervosa.

— Você foi muito amável em vir, Markham — disse ele sem se levantar. — Sente-se e fume um charuto. Quero falar com você... E desejo fazê-lo com calma. É muito difícil...

— Sua voz se arrastava enquanto ele enchia seu cachimbo.

Nós nos acomodamos e esperamos. Um sentimento de inquietação invadiu-me sem motivo aparente, a não ser, talvez, que eu tenha captado as vibrações emanadas do estado de profunda preocupação do professor.

— Não sei como expor o assunto — começou ele — porque tem relação não com fatores físicos, mas com a consciência humana invisível. Lutei toda a semana com certas idéias vagas que penetraram meu espírito; e não vejo outra forma de desfazer-me delas senão falando com você...

Levantou a vista, hesitante. — Preferi discutir com você essas idéias, quando Sigurd não estivesse presente, e como ele saiu esta noite para ver Os Simuladores, de Ibsen, seu drama favorito, aproveitei a oportunidade para pedir-lhe que viesse aqui.

— A que se referem essas idéias? — perguntou Markham.

— A nada, especificamente. Como disse, elas são muito vagas; porem, apesar disso, se têm tornado insistentes... Tão insistentes, na realidade — ajuntou ele — que acreditei oportuno mandar Belle para fora por algum tempo. É verdade que seu espírito estava torturado com o resultado de todas essas tragédias; mas meu verdadeiro motivo ao enviá-la para o Norte é que eu estava acossado por dúvidas intangíveis.

— Dúvidas? — Markham inclinou-se para diante. — Que espécie de dúvidas?

O professor Dillard não respondeu logo.

— Permita-me responder a esta pergunta fazendo-lhe uma outra — replicou enfim. — Está seu espírito completamente satisfeito com a situação criada pela morte de Pardee?

— Refere-se o senhor à autenticidade de seu suicídio?

— A isso e à sua presumida culpabilidade. Markham reclinou-se contemplativamente.

— E o senhor não está inteiramente satisfeito? — perguntou ele.

— Não posso responder a essa pergunta. — O professor Dillard falou quase rispidamente. — Você não tem direito de perguntar-me. Eu apenas desejava estar seguro de que as autoridades, tendo todos os dados nas mãos, estivessem convencidas de que esse assunto terrível era um livro fechado. — Uma expressão de ansiedade profunda dominou sua fisionomia. — Se eu soubesse que isso era um fato, teria forças para repelir os pressentimentos vagos que me perseguem dia e noite, há uma semana.

— E se lhe dissesse que não estou satisfeito?

O olhar do velho professor tornou-se distante e angustiado. Sua cabeça caiu levemente para frente, como se uma carga de pesares a fizesse inclinar-se subitamente. Ao cabo de uns instantes, levantou os ombros e respirou profundamente.

— A coisa mais difícil neste mundo — disse ele — é saber onde está o dever de alguém; pois o dever é um mecanismo do espírito, e o coração procura sempre destruir as suas resoluções. Eu talvez tenha feito mal em chamá-lo aqui; pois afinal, não tenho senão suspeitas nebulosas e idéias obscuras para prosseguir. Mas, existia a possibilidade de que minha intranqüilidade mental estivesse apoiada sobre uma base oculta e profunda cuja existência eu ignorava. Você me compreende? — Apesar das suas palavras evasivas, não havia dúvida relativamente ao aspecto perturbador da imagem sombria que se emboscava atrás de seu espírito.

Markham meneou a cabeça em sinal de aquiescência.

— Não há motivo nenhum para pôr em dúvida o laudo do médico legista — disse ele de um modo meio forçado. — Posso compreender como a proximidade dessas tragédias poderia ter criado uma atmosfera propícia a dúvidas. Mas acredito que o senhor não precisa ter mais apreensões.

— Sinceramente, espero que você esteja certo — murmurou o professor, porém era claro que ele não estava satisfeito. — Suponho, Markham... — começou a dizer, interrompendo-se em seguida. — Sim, espero que você esteja certo — repetiu ele.

Vance tinha-se sentado, fumando plàcidamente, durante essa discussão pouco satisfatória; mas estivera escutando com uma concentração especial, e depois falou:

— Diga-me, professor Dillard, se aconteceu algo, embora vago, que possa ter dado origem às suas dúvidas.

— Não... Nada. — A resposta não se fez esperar. — Estive simplesmente pensando... experimentando todas as possibilidades... Não ousei ser demasiado confiante, sem ter alguma certeza. A lógica pura é aceita em assuntos que não nos tocam pessoalmente. Mas, quando concerne à nossa própria segurança, a inteligência humana imperfeita exige evidência visual.

— Ah, sim! — Vance ergueu a vista, e acreditei ver uma chama de compreensão brilhar entre esses dois homens antagônicos.

Markham se levantou para despedir-se, porém o professor rogou-lhe que esperasse um momento mais.

— Sigurd estará de volta sem demora. Ele gostará de vê-lo aqui. Como lhe disse, foi ver Os Simuladores, mas estou certo de que voltará diretamente para casa... A propósito, Sr. Vance — continuou, voltando-se para este — Sigurd me disse que o senhor o acompanhou ao teatro, na semana passada, para ver Os Espectros; compartilha do entusiasmo dele por Ibsen?

Uma ligeira elevação de cenho de Vance me indicou que ele estava surpreendido com semelhante pergunta; porém, quando respondeu, não se notava o mais leve sinal de perplexidade em sua voz.

— Li muito Ibsen. E não posso negar o seu grande gênio criador, ainda que não se possa ver em sua obra a forma estética e a profundidade filosófica que caracterizam o Fausto de Goethe, por exemplo.

— Pelo que vejo, o senhor e Sigurd teriam uma base permanente de desacordo.

Markham declinou do convite para permanecer mais tempo e, minutos depois, caminhávamos pela West End Avenue, respirando o ar fresco de abril.

— Rogo-lhe que tome nota, meu caro Markham, — observou Vance com uma pancadinha de gracejo nas costas do companheiro, ao dobrar a Rua 72 em direção ao parque, — que há outros, além de seu humilde colaborador, que estão acossados por dúvidas acerca da realidade do suicídio de Pardee. E eu poderia acrescentar que o professor não está de acordo, de modo algum, com a sua certeza.

— Seu estado mental de suspeita é compreensível — opinou Markham. — Esses assassinatos afetaram-no muito de perto.

— Isso não é explicação. O velho tem medo. E ele sabe alguma coisa que não nos quer dizer.

— Eu não diria que me causou esta impressão.

— Oh, Markham... meu caro Markham! Não escutou atentamente a sua vacilante e relutante história? Parece que ele tentava transmitir-nos uma sugestão, sem necessidade de empregar palavras. Supunha que deveríamos adivinhar. Sim! Por isso, insistiu para que você o visitasse, enquanto Arnesson estava ausente, assistindo a um drama de Ibsen...

Vance parou de falar abruptamente. Em seus olhos se notou um ar sobressaltado.

— Ora, bolas! Foi por isso que ele perguntou se eu gostava de Ibsen!... Ora, bolas! Que imbecil eu fui! — Mirou fixamente Markham. Os músculos do rosto tornaram-se-lhe rígidos. — Por fim a verdade! — disse ele com serenidade impressionante. — E não foi você, nem eu, nem a polícia quem resolveu este caso. Foi um dramaturgo norueguês falecido há muitos anos. Em Ibsen está a chave do mistério.

Markham olhou-o como se ele tivesse enlouquecido de repente. Mas, antes que pudesse falar, Vance chamou um táxi.

— Vou-lhe mostrar o que quero dizer quando chegarmos a casa — disse ele, quando atravessávamos velozmente o Parque Central na direção leste. — É incrível, mas é verdade. E eu poderia ter adivinhado, há mais tempo; porém, a significação sugerida pela assinatura naquelas notas estava demasiado obscurecida devido a outras significações possíveis...

— Se em vez da primavera, estivéssemos em meados do verão, — comentou Markham, colèricamente, — diria que o calor havia afetado seu cérebro.

— Desde o princípio, percebi que havia três culpados possíveis — continuou Vance. — Cada um deles era psicologicamente capaz de cometer esses assassinatos, sempre que o excesso de suas emoções alterasse seu equilíbrio mental. Assim, não havia nada mais a fazer que esperar uma indicação que focalizasse a suspeita. Drukker era um dos três suspeitos, mas foi assassinado. Ficaram, então, dois. Em seguida Pardee, aparentemente, suicidou-se; e admitirei que sua morte tornou razoável a presunção de que era ele o culpado. Mas, uma grande dúvida corroia-me o espírito. A morte dele não foi conclusiva. Aquele castelo de cartas me preocupou. Estávamos num beco sem saída. Deste modo, esperei vigilante pela minha terceira possibilidade. Agora eu sei que Pardee é inocente e que não se suicidou. Foi assassinado, como o foram Robin, Sprigg e Drukker. Sua morte foi um brinquedo terrível, uma vítima atirada à face da polícia, com espírito diabólico. E, desde então, o assassino vem-se rindo da nossa ingenuidade.

— Por que raciocínio chega você a esta fantástica conclusão?

— Já não é questão de raciocínio. Afinal tenho a explicação dos crimes. E conheço a significação da assinatura "O Bispo" colocada ao pé das notas. Mostrar-lhe-ei, muito breve, uma prova incontroversa e espantosa.

Alguns minutos depois, chegamos ao seu apartamento e ele nos conduziu diretamente à biblioteca.

— A evidência esteve aqui, todo o tempo, ao alcance da minha mão.

Foi até à estante onde guardava seus dramas e retirou o volume segundo das obras de Henrique Ibsen. O livro continha Os Vikings em Helgeland e Os Simuladores. A primeira dessas obras não interessava a Vance. Procurando em Os Simuladores, encontrou a página onde estavam impressos os nomes dos personagens do drama e colocou o livro sobre a mesa diante de Markham.

— Leia os nomes dos personagens da obra de Ibsen, favorito de Arnesson — disse ele, assinalando os nomes.

Markham, silencioso e confundido, aproximou de si o volume e eu, por cima de seu ombro, li:

 

Hakon Hakonson, o rei eleito pelos birchlegs.

Inga de Varteig, sua mãe.

Conde Skule.

Lady Ragnild, sua mulher.

Sigrid, sua irmã.

Margrete, sua filha.

Guthorm Ingesson.

Sigurd Ribbung.

Nicholau Arnesson, bispo de Oslo.

Dagfinn o Camponês, marechal de Hakon.

Ivar Bodde, seu capelão.

Vegard Veradal, um dos seus guardas.

Gregorius Jonsson, um nobre.

Paul Flida, um nobre.

Ingeborg, esposa de Andres Skialdarband.

Peter, seu filho, um jovem sacerdote.

Sira Viliam, capelão do Bispo Nicolau.

Mestre Sigard de Brabant, médico.

Jatgeir Skald, um islandês.

Bard Bratte, chefe do distrito de Trondheim.

 

— Porém, duvido que qualquer um de nós fosse além da linha:

Nicolau Arnesson, bispo de Oslo.

Meus olhos se fixaram neste nome. Havia nele qualquer coisa de horrível e fascinante. Logo me lembrei de que o bispo Arnesson foi um dos vilãos mais diabólicos em toda a literatura. Um monstro cínico e burlão, que transformava todos os valores sãos da vida em bufonarias hediondas.


XXIV

 

O ÚLTIMO ATO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 9h)

 

Com esta revelação surpreendente, os misteriosos crimes do Bispo entraram em sua fase final e mais terrível. Heath tinha sido informado da descoberta de Vance; e ficou combinado que nos encontraríamos no gabinete do procurador do distrito, na manhã seguinte, muito cedo, para formarmos um conselho de guerra.

Quando, naquela noite, Markham se despediu de nós, estava mais preocupado e desapontado do que nunca.

— Não sei o que se poderá fazer — disse ele, desesperançado. — Não existe nenhuma prova legal contra o homem. Mas podemos traçar uma linha de ação que poderá ser vantajosa... Nunca fui adepto da tortura, mas quase desejaria que hoje tivéssemos em execução o torniquete e o ecúleo—.

Vance e eu chegamos ao gabinete pouco depois das nove do dia seguinte. Swacker nos interceptou à entrada e pediu-nos que aguardássemos na sala de espera um momento.

— Markham — explicou ele — estava ocupado naquele momento.

Nem bem tomáramos assento, quando apareceu Heath belicoso, sombrio e de cenho cerrado.

— Tenho que entregar o caso ao senhor — disse ele a Vance. — O senhor tem o fio da situação. Mas o que eu não posso compreender é que vantagem nos trará isto. Não podemos prender um sujeito, só porque o seu nome está num livro.

— Mas talvez possamos forçar o resultado, de uma forma ou outra — replicou Vance. — De qualquer modo, sabemos onde estamos.

Dez minutos depois, Swacker nos fez sinal indicando que Markham estava livre.

— Sinto tê-los feito esperar — desculpou-se o procurador do distrito. — Tive uma visita inesperada. — Sua voz tinha um timbre de desespero. — Mais preocupações; e, para maior coincidência, se relaciona com a própria zona do Riverside Park, onde Drukker foi morto. Entretanto, nada posso fazei...

Apanhou alguns papéis que estavam diante de si e disse:

— Agora, ao nosso assunto.

— Qual é o novo problema com o Riverside Park? — perguntou Vance como por acaso.

Markham franziu o sobrecenho.

— Nada que nos possa incomodar. Provavelmente, trata-se de um seqüestro. Os matutinos relatam-no ligeiramente. Se você tem interesse...

— Não gosto de ler jornais — disse Vance brandamente; porém, com uma insistência que me intrigou. — Que sucedeu?

Markham respirou fortemente com impaciência e respondeu:

— Uma menina desapareceu do playground, ontem, depois de haver falado com um desconhecido. Seu pai esteve aqui e solicitou a minha intervenção. Mas eu lhe respondi que esse assunto não me pertence, enviando-o ao Departamento de Pessoas Procuradas. Agora, se sua curiosidade está satisfeita...

— Oh, mas é que ela não está — persistiu Vance. — Narre-me os pormenores do caso. Aquela zona do parque me fascina particularmente.

Markham lançou-lhe um olhar inquiridor, através de seus olhos semicerrados.

— Muito bem — aquiesceu ele. — Uma menina de cinco anos de idade, chamada Madalena Mofatt, estava brincando com um grupo de meninas, mais ou menos às cinco e meia da tarde. Em certo momento, ela subiu a um monte de terra, junto ao muro de contenção e, pouco depois, quando a governanta foi à sua procura, pensando que ela havia descido para o outro lado, a criança não foi encontrada em parte alguma. O único indício existente é ter sido ela vista por duas ou três meninas falando com um homem, pouco antes de seu desaparecimento; mas, naturalmente, elas não puderam dar uma descrição desse homem. A polícia foi notificada e está procedendo às investigações necessárias. Isto é tudo o que existe até agora.

— Madalena — Vance repetiu o nome pensativamente.

— Diga-me, Markham, sabe você se esta menina conhecia Drukker?

— Sim! — respondeu Markham, erguendo-se em seu assento. — O pai da menina disseme que ela ia, freqüentemente, às festas que o corcunda dava em sua casa...

— Eu vi essa menina — respondeu Vance, levantando-se, ao mesmo tempo em que metia as mãos nos bolsos e baixava os olhos para o chão. — Uma criaturinha encantadora... de cachinhos dourados. Trouxe um ramalhete de flores para Drukker na manhã do enterro dele... E, agora, ela desaparece depois de ter sido vista com um estranho...

— Que tem você em mente? — perguntou Markham firmemente.

Vance pareceu não ter ouvido a pergunta.

— Por que o pai dela apelou para você?

— Conheço Mofatt, há alguns anos. Ele colaborou, uma vez, na administração da cidade. Está como louco... procura sua filhinha por toda a parte. O caso dos assassinatos do Bispo o deixou mòrbidamente apreensivo... Mas, olhe aqui,

Vance, não estamos aqui para discutir o desaparecimento da filha de Mofatt...

Vance levantou a cabeça. Havia em seu rosto uma expressão de sobressalto e horror.

— Não fale... Oh, não fale!... — Começou a passear na sala de um lado para outro, enquanto Markham e Heath observavam-no com assombro mudo. — Sim... é isto mesmo — murmurou para si mesmo. — A hora é exata... tudo se enquadra...

Deu meia-volta e, tomando Markham pelo braço, lhe disse:

— Vamos, depressa! É a nossa única oportunidade... Não podemos esperar um minuto mais. — Com um puxão, pôs Markham de pé, levando-o para a porta. — Receei isto durante toda a semana.

— Eu não me moverei daqui, Vance, se você não me explicar.

— É outro ato mais!... O último ato! Oh, acredite-me! — Nos olhos de Vance brilhava uma expressão como antes ainda não tinha visto. — Agora ela é a "Little Miss Muffet" (1). O nome não é o mesmo, mas não importa, é quase idêntico para a brincadeira do Bispo; ele explicará tudo aos jornais. Provavelmente, chamou a menina por meio de sinais, para que se sentasse na relva, sentando-se também ele junto dela. E então a criaturinha se foi...

(1) Nome de outra personagem do folclore infantil anglo-americano (N. do T.).

 

Markham deu uns passos para diante um tanto perturbado, e Heath, com os olhos salientes, deu um pulo em direção à porta. Muitas vezes tenho pensado no que poderia ter atravessado seus cérebros, naquele momento em que Vance apresentava seus argumentos. Teriam crido na interpretação do episódio ou simplesmente tiveram medo de não investigar, diante da remota possibilidade de outra hedionda brincadeira do Bispo? Fossem quais fossem suas convicções ou dúvidas, aceitaram a situação tal como Vance a delineou. Um momento mais tarde, estávamos atravessando o vestíbulo apressadamente para tomarmos o elevador. Por sugestão de Vance, levamos o detetive Tracy, da seção de detetives, sediada no Edifício das Cortes Criminais.

— Este assunto é sério — explicou. — Pode suceder alguma coisa.

Saímos pela porta que dá para a Rua Franklin, e alguns ·' minutos depois atravessamos o centro da cidade no carro do procurador do distrito, violando a lei da velocidade e não atendendo aos sinais do tráfego.

Pouco se falou durante aquela viagem transcendental; porém, quando tomamos a estrada tortuosa do Parque Central, Vance disse:

— Pode ser que nos enganemos, mas é preciso arriscar.

Se esperarmos que os jornais recebam alguma nota, pode ser demasiado tarde. Não se suspeita de que nós sabemos, e esta é nossa única vantagem.

— Que espera você encontrar? — O tom de voz de Markham era um tanto incerto.

Vance sacudiu a cabeça, desalentadamente.

— Oh, não sei, porém será algo diabólico.

Quando o carro parou em frente à casa de Dillard, Vance apeou e subiu correndo as escadas, tomando a nossa dianteira. Pyne atendeu ao seu insistente toque de campainha.

— Onde está o Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Na Universidade, senhor — respondeu o velho mordomo. Em seus olhos pareceu-me notar uma expressão de medo. — Mas voltará para casa cedo para almoçar.

— Então, leve-nos já à presença do professor Dillard.

— Sinto muito, senhor — disse Pyne. — O professor também não está, foi à Biblioteca Pública...

— Você está só?

— Sim, senhor; Beedle foi ao mercado.

— Tanto melhor. — Vance ordenou ao mordomo que subisse as escadas e lhe disse: — Vamos dar uma busca na casa, Pyne. E você será nosso guia.

Markham adiantou-se.

— Mas, não podemos fazer isto, Vance! Vance voltou-se.

— Não me interessa o que se pode ou o que não se pode fazer. Vou vasculhar esta casa... Sargento, você está comigo? — Em seu rosto brilhava uma estranha expressão.

— Como sempre! (nunca estimei tanto Heath como naquele instante).

A devassa começou na sala do clube. Todos os vestíbulos, armários e outros móveis, todos os recantos, enfim, foram inspecionados.

Pyne, completamente intimidado pela belicosidade que dominava Heath, funcionou como guia. Trouxe chaves e abriu portas para nós e ainda lembrou lugares que, de outro modo, teriam passado despercebidos. O sargento agiu com extrema energia, embora eu soubesse que ele apenas tinha uma vaga idéia do objeto dessa devassa.

Markham nos acompanhou, se bem que desaprovasse aquela iniciativa; porém, ele também havia sido arrastado pela atitude dinâmica de Vance, devendo, certamente, ter pensado que este possuía uma justificativa realmente séria para a sua conduta temerária.

Gradualmente, fomos atingindo o pavimento superior. A biblioteca e o quarto de Arnesson foram examinados minuciosamente, bem como o quarto de Belle. Cuidadosamente, devassamos os quartos sem esquecer as peças desocupadas do terceiro andar e as dependências dos criados. Nada de suspeito foi descoberto, entretanto.

Ainda que Vance reprimisse sua ansiedade, eu podia dizer que ele agia debaixo de uma tensão nervosa extrema, pela pressa com que levou a cabo sua investigação.

Por fim, chegamos a uma porta fechada a chave, situada na parte posterior do vestíbulo de cima.

— Para onde dá essa porta? — perguntou Vance.

— Para um pequeno quarto no sótão que nunca usam, senhor...

— Abra-a.

O homem procurou a chave no molho que levava consigo.

— Não encontro a chave, senhor; devia estar aqui...

— Quando a teve pela última vez?

— Não poderia dizer, senhor. Que eu saiba, faz muito anos que ninguém entra nesse quarto.

Vance recuou um passo e abaixou-se.

Fique aí ao lado, Pyne.

Vance lançou-se de encontro à porta com uma força terrível. Ouviu-se um estrondo e um arrebentar de madeira, porém a fechadura se manteve incólume.

Markham avançou para ele e segurou-o pelos ombros.

— Você está louco! — exclamou. — Está violando a lei!

— A lei! — A resposta de Vance encerrava severa ironia. — Estamos tratando com um monstro que burla a lei. Você pode defendê-lo, se quiser; mas eu vou examinar este sótão ainda que tenha de passar o resto de minha vida num cárcere. Sargento, abra esta porta!

Outra vez, experimentei um sentimento de simpatia por Heath. Sem hesitar um momento, pôs-se na ponta dos pés e lançou seus ombros contra a porta, exatamente acima da fechadura, quebrando a madeira e fazendo saltar o ferrolho através da moldura. A porta girou para o lado de dentro.

Vance desfez-se do braço de Markham, e correu escadas acima, seguido por nós. Não havia luz no sótão e nos detivemos um momento em cima da escada, para nos habituarmos à escuridão. Vance acendeu um fósforo e, caminhando às apalpadelas para diante, ergueu uma cortina com ruído. A luz do sol penetrou no aposento, deixando-nos ver um pequeno quarto, de apenas três metros quadrados, cheio de trastes.

O ar era pesado e sufocante. As paredes, o assoalho e todos os objetos estavam cobertos de uma grossa camada de pó.

Vance esquadrinhou rapidamente o quarto e uma espécie de desânimo se lhe estampou no rosto.

— Este é o último lugar que nos resta — sublinhou com a lentidão do desalento.

Depois de um minucioso exame do quarto, dirigiu-se ao canto perto de uma pequena janela e encontrou uma maleta estragada junto a ela. Notei que não tinha fechadura e que suas correias estavam livres. Inclinando-se para diante, abriu-lhe a tampa.

— Oh, enfim há aqui alguma coisa para você, Markham! Rodeamos Vance e vimos na maleta uma velha máquina de escrever, marca Corona. No cilindro, havia uma folha de papel em que estava escrito num tom azul-pálido, o seguinte:

 

"A pequena Misse Muffet

Estava sentada na relva."

 

Neste ponto, o datilografo havia sido interrompido ou talvez qualquer outro motivo o impedira de continuar a rima infantil.

— É a nova nota do Bispo para os jornais — observou Vance. Em seguida, procurando na maleta, achou uma pilha de papel em branco e de envelopes. No fundo, havia um caderno de couro roxo com folhas delgadas e amarelas. Entregou-o a Markham, com a observação concisa:

— Os cálculos de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas, apesar de tudo, havia ainda em seus olhos um ar de derrota, e outra vez começou ele a inspecionar o quarto. Daí a pouco, dirigiu-se a um toucador que se achava encostado à parede oposta à janelinha. Ao inclinar-se para ver atrás do toucador, retrocedeu subitamente e, levantando a cabeça, fungou várias vezes. Ao mesmo tempo, viu algo no chão, a seus pés, e com um pontapé atirou o objeto para o centro do quarto. Olhamos com assombro. Era uma máscara contra gases, como as que usam os químicos.

— Para trás! — ordenou ele e, levando uma mão ao nariz e à boca, afastou da parede, com a outra, o toucador. Exatamente atrás havia a porta de um cubículo, de quase um metro de altura, incrustada na parede. Abriu-a com um puxão violento e olhou para dentro, fechando-a bruscamente em seguida. E não obstante o curto espaço de tempo em que esteve aberta a porta, pude ver o que havia dentro: duas estantes, a inferior com livros abertos e a superior com um frasco de Erlenmeyer preso a um suporte de ferro, uma lâmpada de álcool, um tubo condensador, um copo grande de vidro para análises e duas garrafinhas.

Vance voltou-se e nos dirigiu um olhar de desespero.

— Podemos ir. Aqui não há nada mais. Regressamos à sala, deixando Tracy montando guarda à porta do sótão.

— Talvez, apesar de tudo, você encontre justificativa para a sua devassa na casa — disse Markham, dirigindo a Vance um olhar sério. — Mas, sou contrário a esses métodos. Se não tivéssemos encontrado a máquina de escrever...

— Oh, bah! — Vance, preocupado e agitado, foi até a janela que dá para o campo de exercícios. — Eu não procurava a máquina de escrever, nem o caderno. Para quê? — A cabeça caiu-lhe sobre o peito e seus olhos se fecharam numa espécie de torpor da derrota. — Tudo saiu mal... fracassou minha lógica. Chegamos demasiado tarde.

— Não estou querendo saber o que tanto o contraria — disse Markham. — Mas, você me forneceu uma prova de importância. Agora, poderei prender Arnesson quando ele voltar da Universidade.

— Sim, sim, por certo. Mas eu não estava pensando em Arnesson, nem na prisão do culpado, ou no triunfo do gabinete do procurador do distrito. Eu esperava...

Aqui Vance parou e se empertigou.

— Não chegamos tarde! Não havia pensado... — Correu veloz em direção à porta. — O que devemos devassar é a casa de Drukker... Depressa!

Já estava na metade do caminho para o vestíbulo, Heath atrás dele, e Markham e eu fechando o cortejo.

Descemos pela escada dos fundos, atravessamos a sala do clube e saímos. Não sabíamos, e duvido que algum de nós pudesse adivinhar o que havia no espírito de Vance; porém, algo de sua excitação interior nos tinha influenciado e pensamos que só uma grande urgência o teria posto completamente fora de sua atitude habitual de alheamento e calma.

Quando chegamos à porta de arame trançado da casa de Drukker, ele passou a mão pela trama rota e abriu o trinco. Para assombro meu, a porta da cozinha estava sem chave. Vance parecia contar com isto, pois sem hesitação fez girar a maçaneta e abriu a porta. i

— Esperem! — disse ele, detendo-se no pequeno pórtico dos fundos. — Não há necessidade de examinar toda a casa. O lugar mais provável é... Sim! Vamos... Acima... em algum lugar no centro da casa... no armário provavelmente... onde ninguém pudesse ouvir...

Ao mesmo tempo em que falava, subia a escada e indicava-nos o caminho, passou pela porta do quarto da Sra. Drukker e pelo gabinete do filho, indo até o terceiro pavimento. Aqui não havia mais do que duas portas, uma na extremidade final e outra, menor, na metade do caminho, ao lado direito. Vance dirigiu-se imediatamente para esta última. A chave estava na fechadura, e ele, fazendo-a girar, abriu a porta.

Uma obscuridade completa reinava ali. Em um segundo, Vance se achava ajoelhado, tateando nas coisas.

— Rápido, sargento, sua lanterna.

Quase antes de pronunciar estas palavras, um círculo luminoso irrompeu no chão do quartinho. O que vi me fez estremecer de horror. Uma exclamação abafada partiu da boca de Markham. Um leve sibilo me disse que também Heath estava aterrado pelo que vira. Diante de nós, no chão, jazia a criaturinha que levara flores ao seu malogrado Humpty Dumpty, na manhã do enterro deste. Seus cabelos dourados estavam desgrenhados, o rosto pálido como a morte, e em suas pálpebras havia sinais enxutos de lágrimas inúteis. Vance inclinou-se e auscultou o coração da menininha. Em seguida, ergueu-a nos braços, com ternura.

— Pobre pequena Muffet — murmurou e, levantando-se, foi até à escada da frente. Heath o precedeu, alumiando o caminho para que ele não tropeçasse. No vestíbulo principal inferior se deteve.

— Abra a porta, sargento.

Heath obedeceu com presteza e Vance saiu pelo jardim.

— Va para a casa de Dillard e espere-me lá — disse por cima do ombro.

E, com a criança apertada contra o peito, atravessou diagonalmente a Rua 76, em direção a uma casa em que pôde distinguir uma chapa de bronze com o nome de um médico.


XXV

 

CAI O PANO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 11h)

 

Vinte minutos depois, Vance juntou-se a nós na sala de visitas da casa de Dillard.

— Está fora de perigo — anunciou, mergulhando numa poltrona e acendendo um cigarro. — Estava apenas desacordada. Havia desmaiado de susto. Achava-se meio asfixiada. Seus bracinhos apresentam equimoses, como se tivesse lutado para libertar-se do monstro, ao ver que na casa não se encontrava Humpty Dumpty. Em seguida, a besta humana encerrou-a à chave no quartinho. Não teve tempo de matá-la, sabe? Ademais, no livro não constava que devia matá-la. "A pequena Miss Muffet" não foi assassinada... mas simplesmente aterrorizada. Entretanto, ela teria morrido por falta de ar. E ele ficaria a salvo, pois ninguém poderia ouvir os gritos dela...

Os olhos de Markham pousaram afetuosamente em Vance.

— Sinto muitíssimo ter procurado retê-lo — disse singelamente. (Pois, apesar de seus instintos convencionalmente legais, havia em sua natureza uma grandeza fundamental.) — Você teve razão em violar os regulamentos, Vance... E você também, sargento, pois devemos muitíssimo à sua determinação e à sua fé.

Heath estava embaraçado.

— Não é nada, senhor. Como vê, o Sr. Vance me encheu a cabeça a respeito da menina. E como eu gosto muito de crianças...

Markham dirigiu a Vance um olhar inquiridor.

— Esperava você encontrar com vida a menina?

— Sim; porém narcotizada ou aturdida por um golpe qualquer. Nunca a acreditei morta, pois isto teria contrariado o humor do Bispo.

Heath devia estar parafusando algum ponto incômodo.

— O que não pode entrar em minha cabeça — disse — é por que o Bispo, sempre tão cuidadoso, deixou aberta a porta da casa de Drukker, e não a fechou à chave.

— Esperava que encontrássemos a criaturinha — respondeu Vance. — Tudo foi preparado para nós. O Bispo foi muito delicado, não? Porém não acreditava que a encontrássemos, antes de amanhã... depois que os jornais recebessem as notas sobre a "Pequena Miss Muffet", e que constituiriam nossa pista. Os acontecimentos quiseram que nós nos adiantássemos a esse cavalheiro.

— E por que não foram enviadas as notas, ontem?

— Evidentemente, esta foi a primeira intenção do Bispo; mas, imagino que achou melhor que o desaparecimento da menina atraísse antes a atenção pública. De outro modo, a relação entre Madalena Moffat e a "Pequena Miss Muffet" poderia ser obscura.

— Sim! — grunhiu Heath entredentes. — E, amanhã, a menina estaria morta. Então, não teria receio de que ela o identificasse.

Markham consultou o relógio e levantou-se com decisão.

— Não vale a pena esperar Arnesson. Quanto mais cedo o prendermos, tanto melhor.

Estava para dar uma ordem a Heath, quando Vance o interrompeu.

— Não nos apressemos, Markham. Não temos nenhuma prova positiva contra o homem. É uma situação muito delicada, esta. Devemos ir cuidadosamente, senão fracassaremos.

— No meu entender, o achado da máquina e do caderno não é concludente — manifestou Markham a Vance. — Mas a identificação pela menina...

— Oh, meu caro amigo! Que fé poderia dar um júri a uma identificação feita por uma menina de cinco anos, amedrontada, sem uma poderosa evidência esclarecedora? Um advogado inteligente anularia tal prova em cinco minutos. E ainda concordando que você pudesse fazer valer a identificação, de que lhe serviria? Não relacionaria de nenhum modo -Arnesson com os assassinatos do Bispo. Você só poderia processá-lo por crime de tentativa de seqüestro... Lembre-se de que a menina não está ferida. E se você, por um milagre legal, obtivesse uma prova de culpabilidade duvidosa, tudo o que Arnesson receberia não passaria de alguns anos de prisão. E isto não acabaria com o terror... Não nos devemos precipitar.

Markham voltou a sentar-se de mau humor. Compreendeu a força da argumentação de Vance.

— Mas, não podemos deixar que isto continue — declarou ferozmente. — Devemos parar este maníaco, de uma forma ou de outra.

— Sim, é verdade... — Vance começou a passear nervosamente pela sala. — Nós podemos fazê-lo contar a verdade, por meio de subterfúgios. Ele ainda não sabe que já encontramos a menina... É possível que o professor Dillard nos queira ajudar... — Interrompeu seu passeio e ficou olhando o chão. — Sim! É nossa única oportunidade. Devemos enfrentar Arnesson com o que sabemos, na presença do professor. A situação forçará com segurança um resultado de qualquer espécie. O professor fará tudo, agora, para ajudar a condenar Arnesson.

— Acredita você que ele saiba mais do que já nos disse?

— Sem dúvida. Eu disse isso a você desde o princípio. E, quando ouvir o episódio da "Pequena Miss Muffet" é bem provável que nos forneça a prova de que necessitamos.

— É uma probabilidade muito remota. — Markham era pessimista. — Mas, não há prejuízo em experimentar. De todo modo, prenderei Arnesson antes de eu sair daqui, e espero que suceda o melhor.

Minutos depois, abriu-se a porta principal, aparecendo no vestíbulo oposto o professor Dillard. Este apenas retribuiu o cumprimento de Markham. Examinou nossas expressões como para descobrir o sentido da nossa visita inesperada.

— Vocês pensaram talvez no que eu lhes disse, ontem à noite, não é verdade?

— Não só pensamos — disse Markham — como também o Sr. Vance encontrou o que tanto preocupa o senhor. Depois que saímos daqui, ele nos mostrou um exemplar de Os Simuladores.

— Ah! — A exclamação era como que um suspiro de alívio.' — Durante muitos dias, este drama esteve envenenando meus pensamentos... — Ergueu com temor a vista. — Que significa isto?

Vance respondeu à pergunta.

— Significa que o senhor nos conduziu à verdade. Agora, estamos esperando o Sr. Arnesson. E penso que, enquanto esperamos, seria bom que falássemos com o senhor, pois é possível que possa ajudar-nos...

O professor hesitou.

— Eu havia esperado que não me fizessem de instrumento de acusação contra o rapaz. — Sua voz tinha um tom trágico e paternal. Porém, logo em seguida seus traços enrijeceram-se. Uma chama de vingança brilhou em seus olhos. Sua mão apertou o castão da bengala. — Entretanto, não posso, agora, considerar meus sentimentos. Vamos. Farei o que puder.

Ao chegar à biblioteca deteve-se junto ao bar e serviu-se de um cálice de vinho do Porto. Depois de beber, voltou-se para Markham com um olhar de desculpa.

— Desculpe-me. Eu não estou em mim. — Aproximou-se da mesa de xadrez e dispôs cálices para nós. — Peço que esqueçam minha descortesia. — Encheu os cálices e sentou-se.

Creio que todos nós sentíamos necessidade de beber, depois dos horripilantes sucessos que acabávamos de presenciar.

Quando estávamos acomodados, o professor ergueu a vista penosamente para Vance, que se sentara diante dele.

— Diga-me tudo — disse. — Não me oculte nada. Vance tirou a cigarreira.

— Primeiro permita-me que lhe faça uma pergunta: onde esteve Arnesson, ontem à tarde, entre cinco e seis horas?

— Eu... não sei. — Havia em suas palavras certa relutância. — Tomou chá aqui, na biblioteca; mas saiu mais ou menos às quatro e meia e só voltou para jantar.

Vance encarou-o com simpatia, durante um momento, dizendo em seguida:

— Encontramos a máquina em que o Bispo escreveu suas notas. Estava dentro de uma velha maleta escondida no sótão desta casa.

O professor não deu sinal de sobressalto.

— Pôde o senhor identificá-la?

— Sem dúvida alguma. Ontem desapareceu do parque uma menininha chamada Madalena Moffat. No cilindro da máquina de escrever, havia uma folha de papel onde estava escrito:

"A pequena Miss Muffet Estava sentada na relva." A cabeça do professor Dillard caiu pesadamente para a frente.

— Outra atrocidade louca! Se eu não tivesse esperado até ontem à noite para avisá-los!

— Não houve grande prejuízo nisso — apressou-se a informar-lhe Vance. — Encontramos a menina a tempo. Agora, já está fora de perigo.

— Ah!

— Foi encontrada encerrada no quartinho do hall do andar superior da casa de Drukker. Nós pensávamos que ela devia estar aqui em alguma parte... e, por isso, devassamos o sótão de sua casa.

Após um breve silêncio, o professor perguntou:

— Que tem mais o senhor a dizer?

— O caderno de Drukker com anotações recentes sobre a teoria dos quanta, que havia sido roubado do quarto dele na noite de sua morte, apareceu também na maleta junto com a máquina de escrever.

— Ele desceu também a isso! — Não era uma pergunta; era mais uma exclamação de incredulidade. — Está você seguro de suas conclusões? Talvez se eu não tivesse fornecido nenhuma indicação ontem à noite... não teria semeado a semente da suspeita...

— Não pode haver dúvida — declarou Vance tranqüilamente. — O senhor Markham pensa deter Arnesson, quando ele voltar da Universidade. Mas para ser-lhe franco, senhor, não temos prova legal alguma. E o próprio Markham pergunta se a lei pode detê-lo ou não. O mais que podemos conseguir é uma prova de culpabilidade por tentativa de seqüestro, por meio da identificação que a menina realize.

— Ah, sim... A menina pode reconhecê-lo. — Nos olhos do ancião surgiu uma expressão de amargura. — Entretanto, deveria haver outros meios de obter justiça para os outros crimes.

Vance sentou-se, fumando pensativamente, com os olhos postos na parede oposta. Ao cabo de um instante, falou com tranqüila gravidade:

— Se Arnesson estivesse convencido de que as provas contra ele eram fortes, seria capaz de escolher o suicídio como meio de eliminação. Era, talvez, a solução mais humana para todos.

Markham ia protestar indignado, porém Vance adiantou-se a ele:

— O suicídio não é um ato indefensável por si. A Bíblia contém muitos relatos de suicídios heróicos. Que exemplo mais belo de valor que o de Rhazis, quando se arrojou da torre para fugir ao jugo de Demétrio? (1) Também existiu valentia na morte do porta-espadas de Saul e, com toda a certeza, nos suicídios de Sansão e de Judas Iscariotes também se pode encontrar alguma virtude.

(1) Admito que o nome de Rhazis não me era familiar. E quando examinei mais tarde o assunto, verifiquei que o episódio a que Vance se referia se encontra no livro segundo (apócrifo) dos Macabeus.

 

A História está cheia de suicídios notáveis... os de Bruto e Catão de Útica, de Aníbal, Lucrécia, Cleópatra, Sêneca... Nero se matou antes de cair nas mãos de Oto e dos guardas pretorianos. Na Grécia, temos a famosa auto-eliminação de Demóstenes; Empédocles arrojou-se na cratera do Etna. Aristóteles foi o primeiro grande pensador a emitir a opinião de que o suicídio é um ato anti-social, mas segundo a tradição ele se envenenou depois da morte de Alexandre. E nos tempos modernos, não esqueçamos o gesto sublime do Barão de Nogi...

— Tudo isso não justifica o ato — replicou Markham. — A lei...

— Ah, sim... a lei. Na China, todos os criminosos condenados à morte podem optar pelo suicídio. O código adotado pela Assembléia Nacional Francesa, no fim do século XVIII, aboliu todo castigo pelo suicídio; e no Sachsenspiegel, a base principal da lei alemã, está claramente esclarecido que o suicídio não é um ato punível. Além disso, entre os donatistas, circunceliões e patrícios, o suicídio era considerado um ato agradável aos deuses. Além disso, na Utopia de More havia um sínodo que decidia do direito do cidadão de abandonar a vida... A lei, Markham, é para proteger a sociedade. E que dizer de um suicídio que torne possível essa proteção? Devemos invocar um tecnicismo legal quando, fazendo assim, deixamos a sociedade desprotegida para que o perigo continue? Não há lei mais alta que as leis escritas nos livros?

Markham sentia-se profundamente perturbado. Levantando-se, começou a passear de um lado para outro, na sala, e seu semblante mostrava ansiedade. Quando voltou a sentar-se, fixou Vance durante largo tempo, enquanto tamborilava com os dedos sobre a mesa, com indecisão nervosa.

— O inocente, naturalmente deve ser considerado — disse com voz cheia de desalento. — Apesar do erro do suicídio, sob o ponto de vista moral, concordo com sua idéia de que, às vezes, ele pode ser justificado teoricamente.

(Conhecendo Markham como eu conhecia, avaliei como lhe devia ter custado essa concessão e calculei, por outro lado, quão totalmente desesperançado se sentiu diante do flagelo que era de seu dever exterminar.)

O velho professor meneou a cabeça, compreensivamente.

— Sim; há alguns segredos tão hediondos que é melhor que o mundo não os conheça. Uma justiça mais alta pode, às vezes, ser lograda, sem que a lei intervenha.

No momento em que falava, abriu-se a porta e Arnesson entrou na biblioteca.

— Bem, bem, outra conferência, hem? — Dirigiu-nos um olhar de troça e deixou-se cair numa cadeira ao lado do professor. — Acreditei que o assunto já tinha sido adjudicado, por assim dizer. Não pôs fim a tudo o suicídio de Pardee?

Vance olhou fixamente nos seus olhos.

— Encontramos a "Pequena Miss Muffet", Sr. Arnesson. Este ergueu as sobrancelhas com uma expressão ao mesmo

tempo jocosa e sardônica.

— Parece uma charada.

— Encontramo-la na casa de Drukker, encerrada num quartinho — disse, ampliando sua explicação com voz baixa e monótona. Arnesson ficou sério e franziu as sobrancelhas involuntariamente. Mas, este enfraquecimento de sua pose foi apenas passageiro. Lentamente sua boca esboçou um sorriso afetado.

— Os senhores, os policiais, são tão eficientes! Imaginam encontrar Miss Muffet tão cedo. É notabilíssimo. — Ele meneou ligeiramente a cabeça num gesto de admiração zombeteira. — Entretanto, tarde ou cedo, era de esperar. E qual, se me é permitida a pergunta, será o próximo passo?

— Também encontramos a máquina de escrever — prosseguiu Vance, não dando atenção à pergunta. — E o caderno de Drukker que havia sido roubado.

Arnesson se pôs imediatamente em guarda.

— Deveras? — dirigiu a Vance um olhar prudente. — Onde estavam esses objetos?

— Em cima, no sótão.

— Olá! Violação de domicílio?

— Mais ou menos isso.

— Por outro lado, — disse Arnesson com mofa, — não posso acreditar que o senhor tenha prova suficiente contra alguém. Uma máquina de escrever não é um terno que assenta bem apenas numa determinada pessoa. E quem pode dizer como pôde chegar ao nosso sótão o caderno de Drukker? Tem de proceder melhor, senhor Vance.

— Por certo, existe o fator da oportunidade. O Bispo é uma pessoa que pôde ter estado disponível no momento de cada assassinato.

— Esta é a prova concorrente mais inconsistente que pode haver — replicou o homem. — Não seria de grande valor como prova de culpabilidade.

— Poderíamos mostrar por que o assassino preferiu o nome de Bispo.

— Ah! Isto, sim, poderia ser útil. — Uma nuvem cobriu o rosto de Arnesson e seus olhos tornaram-se evocativos. — Eu também havia pensado nisso.

— Oh, deveras? — Vance observava-o de perto. — E há outra prova que não mencionei. A Pequena Miss Muffet poderia identificar o homem que a conduziu à casa de Drukker, encerrando-a num quartinho.

— Deveras? Melhorou a enferma?

— Sim. Na verdade, está quase boa. Encontramo-la vinte e quatro horas antes da hora que o Bispo desejava que a encontrássemos.

Arnesson ficou silencioso. Olhava suas próprias mãos que, embora fechadas, se moviam nervosamente. Por fim, falou:

— E se, apesar de tudo, o senhor estivesse equivocado...

— Asseguro-lhe, Sr. Arnesson — disse Vance tranqüilamente — que eu sei quem é o culpado.

— Positivamente o senhor me alarma! — Arnesson tinha recuperado o domínio sobre si mesmo e replicou com mordaz ironia. — Se, por acaso, fosse eu o Bispo, estaria inclinado a admitir a derrota... Entretanto, é evidente que foi o Bispo que levou a peça de xadrez à casa da Sra. Drukker e eu não voltei para casa com Belle, senão às doze e meia.

— Assim disse você a ela. Se bem me recordo, você mesmo foi que consultou seu relógio para dizer-lhe a hora. Bem, que horas eram?

— Doze e meia.

Vance suspirou e deitou a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Diga-me Sr. Arnesson, é o senhor um bom químico?

— Sou um dos melhores — sorriu ele. — Diplomei-me em Química. Que tem isso?

— Quando, esta manhã, estive examinando o sótão, descobri um cubículo em que alguém estivera extraindo ácido cianídrico do ferrocianureto de potássio. Havia uma máscara contra gases, como as que usam os químicos em seus laboratórios e todos os atavios pertinentes. Um cheiro de amêndoas amargas dominava o ambiente.

— Nosso sótão é um tesouro descoberto. Uma espécie de retiro de Loki, diria eu.

— Era isso mesmo — replicou Vance gravemente — o antro de um espírito mau.

— Ou o laboratório de um moderno Dr. Fausto... Mas, para que o cianureto?

— Eu diria que por precaução. Em caso de apuro, o Bispo poderia partir desta vida, sem sofrimento algum. Tudo preparado, sabe?

Arnesson meneou a cabeça.

— Atitude corretíssima da parte dele. Na realidade, é muita decência dele, creia-me. Sim, é uma atitude muito correta.

Durante este diálogo sinistro, o professor Dillard havia permanecido sentado, apertando os olhos com a mão como se sentisse uma grande dor. Voltou-se então para o homem que havia protegido durante tantos anos, como um filho:

— Muitos grandes homens, Sigurd, justificaram o suicídio... — começou a dizer, porém Arnesson interrompeu-o logo com uma risota cínica.

— Bah! O suicídio não precisa de justificação. Nietzsche pôs nestes termos o espantalho da morte voluntária: "Um homem deve morrer orgulhosamente quando não lhe é mais possível viver com orgulho. A morte que sobrevém em circunstâncias desprezíveis, a morte que não é livre, a morte que ocorre quando não deve ocorrer, é a morte de um covarde. Não temos o poder de evitar nosso nascimento; porém, este erro — pois às vezes é um erro — pode ser retificado se o desejarmos. O homem que se elimina realiza o mais respeitável dos atos. Quase merece viver por tê-lo praticado". Em minha juventude decorei esta passagem no Gotzen-Dämmerung. Nunca a esqueci. Uma doutrina sã, por certo.

— Nietzsche teve muitos predecessores famosos que também defenderam o suicídio — acrescentou Vance. — Zenon, o estóico, nos legou um ditirambo apaixonado elogiando a morte voluntária. E Tácito, Epicteto, Marco Aurélio, Catão, Kant, Fichte, Diderot, Voltaire e Rousseau, todos eles fizeram a apologia do suicídio. Schopenhauer protestou amargamente por ser o suicídio considerado crime na Inglaterra... E, no entanto, penso se é um assunto que deva ser formulado. De qualquer modo, sinto que é uma questão muito pessoal para uma discussão acadêmica.

O professor concordou tristemente.

— Ninguém pode saber o que sucede no coração do homem, em sua última hora negra.

Durante esta discussão, Markham se impacientava cada vez mais e seus nervos estavam por estalar. Heath, embora a princípio firme e vigilante, agora começava a derrear. Eu não podia constatar se Vance tinha feito algum progresso. E cheguei à conclusão de que havia fracassado redondamente no seu propósito de armar um laço a Arnesson. Entretanto, ele não parecia de modo algum perturbado. Mais ainda, minha impressão era de que estava satisfeito com o rumo tomado pelas coisas. Mas, isto eu não notei, a despeito de toda a sua calma, estava intensamente alerta. Seus pés mantinham-se encolhidos e suspensos. E todos os músculos de seu corpo retesados.

Comecei a pensar onde pararia aquela terrível conferência.

O final chegou rapidamente. Um breve silêncio seguiu-se ao comentário do professor. Em seguida, Arnesson dirigiu-se a Vance:

— O senhor disse que sabe quem é o Bispo. Se é assim, a que vem todo esse palavrório?

— Não havia muita pressa. — Vance disse isto quase displicentemente. — E tinha esperança de obter todos os dados. Os jurados são muito exigentes, sabe?... Além disso, este vinho do Porto está excelente...

— O vinho do Porto?... Ah, sim. — Arnesson olhou os nossos cálices, e em seguida dirigiu um olhar aborrecido para o professor. — Desde quando sou abstêmio, senhor?

O professor Dillard sobressaltou-se, titubeou e levantou-se.

— Desculpe-me, Sigurd. Não me lembrava... como você nunca bebe pela manhã.

Foi até ao licoreiro e, enchendo outro cálice, colocou-o com a mão insegura diante de Arnesson. Depois tornou a encher os outros cálices.

Mal se tinha sentado, Vance soltou uma exclamação de surpresa. Tinha-se levantado e estava inclinado para diante, com as mãos apoiadas no bordo da mesa, e os olhos, cheios de assombro, fixos no painel do outro extremo da sala.

— Demônio! Nunca o tinha notado... Extraordinário! Tão inesperado e surpreendente havia sido esse gesto e tão tensa estava a atmosfera, que, involuntariamente, nos voltamos e dirigimos a vista na direção do seu olhar fascinado.

— Um quadro de Cellini! — exclamou ele. — A Ninfa de Fontainebleau! Berenson disseme que foi destruído no século XXVII. Vi uma reprodução no Louvre...

A indignação de Markham congestionou-lhe as faces. Em relação a mim, direi que, apesar de estar familiarizado com as idiossincrasias de Vance e com a sua paixão intelectual pelas coisas antigas, nunca o tinha visto exibir tão indefensável mau gosto. Parecia incrível que se distraísse com um objeto de arte, em um momento tão trágico.

O professor Dillard olhou para ele com o cenho cerrado e cheio de consternação.

— Escolheu um momento estranho, senhor, para demonstrar o seu entusiasmo pela arte — foi o comentário que fez o professor.

Vance parecia abatido e mortificado. Mergulhou em sua poltrona, evitando os nossos olhares, e começou a mover o cálice entre os dedos.

— O senhor tem razão — murmurou ele. — Devo pedir-lhe desculpas.

— A tela, incidentemente — acrescentou o professor, como para mitigar a severidade da sua censura — é simplesmente uma cópia da que existe no Louvre.

Vance, como se desejasse ocultar a sua confusão, levou o cálice aos lábios. Foi um momento altamente desagradável. Nossos nervos estavam quase estalando e, automaticamente, imitando o seu gesto, erguemos também os nossos cálices.

Vance lançou um rápido olhar através da mesa e, levantando-se, caminhou até à janela, onde permaneceu encostado. Tão inesperada foi sua marcha apressada que eu me voltei e observei-o pensativamente. Quase ao mesmo tempo, a mesa foi empurrada para o meu lado e, simultaneamente, ouviu-se um barulho de copos que se quebravam.

Pus-me de pé e olhei com horror o corpo inerte e estirado para diante na cadeira oposta com um braço e um ombro apoiados sobre a mesa. A isto seguiu-se um breve silêncio de espanto e aturdimento. Cada um de nós parecia momentaneamente paralisado. Markham permanecia como uma imagem esculpida, os olhos fixos na mesa. Heath, olhando, sem poder falar, se comprimia contra o espaldar de sua cadeira.

— Santo Deus!

Foi a exclamação de assombro de Arnesson que quebrou a atenção.

Markham deu volta à mesa, inclinando-se sobre o corpo do professor Dillard.

— Chame um médico, Arnesson — ordenou.

Vance voltou, sucumbido, da janela e deixou-se cair na poltrona.

— Nada se pode fazer — disse ele com profundo suspiro de fadiga. — Preparou-se para morrer rapidamente e sem dor, quando destilou o cianureto. O caso do Bispo está encerrado.

Markham olhava-o, sem compreender.

— Oh, eu suspeitava mais ou menos da verdade, desde a morte de Pardee — continuou Vance, respondendo à pergunta muda de Markham. — Mas não tive certeza, senão ontem à noite, quando começou a culpar o Sr. Arnesson.

— Hem? Que é isto? — Arnesson voltava do telefone.

— É o que eu digo — concluiu Vance, meneando a cabeça. — Você é que ia pagar pela culpa de outro. Desde o princípio foi escolhido como vítima. Mais ainda, ele nos sugeriu a culpabilidade de você.

Arnesson não parecia tão surpreso como se esperava.

— Eu sabia que o professor me odiava — disse ele. — Tinha um ciúme intenso de meu interesse por Belle. E, além disto, sua capacidade intelectual estava em decadência... isto notei há meses. O trabalho de seu último livro foi meu, e ele se ressentia, quando me concediam honras acadêmicas. Eu desconfiava de que ele estivesse atrás de toda essa diabrura; mas não tinha certeza. Não obstante, nunca acreditei que ele tentasse enviar-me para a cadeira elétrica.

Vance levantou-se e, estendendo a mão a Arnesson, lhe disse:

— Não havia perigo disto. Agora devo pedir-lhe desculpas pela forma por que eu o tratei, nesta última meia hora. Foi uma questão de tática. Como você sabe, não tínhamos nenhuma prova real e eu esperava forçar a mão dele.

Arnesson sorriu tristemente.

— Não é necessária nenhuma desculpa. Eu sabia que você não tinha o olho posto em mim. Quando você começou a incomodar-me, sabia que era só uma questão de técnica. Não sabia o que você procurava, mas segui as suas sugestões o melhor que pude. Espero que não lhe tenha entorpecido a ação.

— Não, não, você portou-se bem.

— Deveras? — Arnesson franziu o sobrolho com profunda perplexidade. — Mas o que não compreendo é por que ele tomou cianureto, sabendo que o suspeitado era eu.

— Este ponto particular não o saberemos nunca — disse Vance. — Talvez ele temesse a identificação da menina, ou pode ter percebido o meu ardil. Ou quem sabe tenha-se revoltado de súbito ante a idéia de ter posto sobre você todo o peso da culpa... Como ele mesmo disse, ninguém sabe o que se passa no coração do homem durante a sua última hora negra.

Arnesson não se moveu. Fixava os olhos em Vance com penetrante sagacidade.

— Oh, bem — disse ele por fim. — Deixaremos a coisa assim... De qualquer modo, obrigado!


XXVI

 

HEATH FAZ UMA PERGUNTA

 

(Terça-feira, 26 de abril — 16h)

 

Quando Markham, Vance e eu saímos da casa de Dillard uma hora depois, pensei que o assunto do Bispo estivesse encerrado. E assim era com efeito, em relação ao público, porém iria surgir outra revelação, que foi, de certo modo, o fato mais surpreendente de todos os que ocorreram naquele dia.

Heath reuniu-se a nós, no gabinete do procurador do distrito, depois do almoço, pois havia diversos assuntos oficiais delicados a tratar. E, mais tarde, naquele mesmo dia, Vance reviu todo o processo, explicando muitos dos seus pontos obscuros.

— Arnesson já sugeriu o motivo desses crimes insanos — principiou ele. — O professor percebeu que sua posição, no mundo da ciência, estava sendo usurpada pelo homem mais moço. Seu espírito tinha começado a perder a força de penetração; e ele verificou que seu novo livro sobre a estrutura atômica não teria sido escrito sem a colaboração de Arnesson. Um ódio enorme cresceu dentro dele contra o seu protegido. A seus olhos, Arnesson tornou-se um monstro que ele mesmo, como Frankenstein, havia criado, e que agora se levantava para destruí-lo. E esta inimizade intelectual era agravada por uma primitiva emoção de ciúme. Durante dez anos, ele havia concentrado em Belle Dillard toda a afeição da sua vida de solteirão; ela representava um apoio na sua existência quotidiana; e, quando viu que Arnesson provavelmente conquistaria o coração dela, seu ódio e ressentimento redobraram de intensidade.

— O motivo é compreensível — disse Markham. — Mas não explica os crimes.

O motivo atuou como faísca na pólvora seca de suas emoções recalcadas. Procurando um meio para destruir Arnesson, ele imaginou os diabólicos assassinatos do Bispo. Esses crimes constituíram uma válvula para as suas repressões e satisfizeram sua necessidade psíquica de uma expressão violenta. E, ao mesmo tempo, responderam à pergunta, formulada em seu espírito, de como poderia ver-se livre de Arnesson e conservar Belle Dillard para si.

— Mas por que — perguntou Markham — não assassinou simplesmente Arnesson e terminou com tudo de uma vez?

— Você passa por alto sobre os aspectos psicológicos da situação. O espírito do professor havia-se desintegrado, através de uma intensa e longa repressão. A natureza pedia um desafogo. E foi seu ódio contra Arnesson que levou a pressão ao ponto de explosão. Os dois impulsos ficaram assim combinados. Ao cometer os assassinatos, não só aliviava suas inibições, como também descarregava o seu ódio contra Arnesson, pois este, como se sabe, era quem ia pagar a culpa. Semelhante vingança era mais poderosa, e daí também mais satisfatória, do que o simples assassinato do homem... Era a grande farsa tétrica, no fundo das farsas menores dos assassinatos em si mesmos.

"Sem embargo, esse diabólico plano tinha uma grande desvantagem que o professor não notou. Deixava o assunto aberto a uma análise psicológica; e, no princípio, pude postular que o agente do crime era um matemático. A dificuldade de mencionar o nome do assassino residia no fato de que quase todos os suspeitos eram matemáticos. O único de cuja inocência eu estava certo era Arnesson, pois era o único que mantinha o equilíbrio psíquico, quer dizer, que constantemente descarregava as emoções que se formavam, durante suas prolongadas especulações abstrusas. Uma atitude geral sádica e céptica voluvelmente expressa e uma explosão homicida violenta são psicologicamente equivalentes. Dar rédea solta ao ceticismo de alguém à medida que se vai desenvolvendo produz um desafogo normal e mantém o equilíbrio emocional. Os homens cépticos e zombeteiros são sempre equilibrados, pois estão muito longe de explosões físicas esporádicas; enquanto que o homem que reprime o sadismo e acumula o cepticismo sob uma aparência estóica e grave é sempre capaz de explosões perigosas. É por isso que eu sabia que Arnesson seria incapaz de cometer os assassinatos do Bispo, e aí está por que eu sugeri a você, Markham, que permitisse que ele nos auxiliasse na investigação. Como nos disse, ele suspeitava do professor. E seu pedido para que lhe permitíssemos auxiliar-nos na investigação dos fatos era, creio eu, movido pelo desejo de estar ao corrente de tudo de modo a poder proteger melhor Belle Dillard e proteger-se a si mesmo, caso suas suspeitas se verificassem.

— Isso parece razoável — concordou Markham. — Mas onde se inspiraram as idéias fantásticas do professor Dillard sobre o modo de executar esses crimes?

— O tema folclórico infantil, provavelmente, lhe foi sugerido, quando ouviu Arnesson dizer, por gracejo, a Robin que tivesse cuidado com as flechas que partiam do arco de Sperling. Ele viu, nessa observação pilhérica, um meio de desafogar seu ódio contra um homem que o havia sobrepujado; e esperou o momento. A oportunidade de cometer seu crime apresentou-se, pouco tempo depois. Quando viu Sperling subir a rua, aquela manhã, soube que Robin estava só na sala do clube. Assim que desceu, falou com Robin, deu-lhe um golpe na cabeça, cravou-lhe uma flecha no coração e arrastou-o para fora. Depois lavou as manchas de sangue, destruiu o pano de que se servira, deixou sua nota na caixa do correio da esquina e outra na da correspondência da casa, voltou à biblioteca e telefonou para a Procuradoria do Distrito. Um fator imprevisto produziu-se, no entanto; Pyne estava no quarto de Arnesson, quando o professor disse que saíra para a sacada, porém nenhum prejuízo sobreveio, pois, embora Pyne desconfiasse de que algo anormal estava acontecendo, quando ouviu o professor mentir, certamente não suspeitou de que seu velho patrão fosse um assassino. O crime foi um sucesso.

— E, no entanto — interrompeu Heath, — o senhor adivinhou que Robin não tinha sido morto por um flechaço.

— É certo. Eu descobri isto pela condição do punho da flecha introduzida no corpo de Robin. E deduzi, por conseguinte, que este tinha sido morto no interior da casa, depois de receber o golpe na cabeça. Por isso, concluí que o arco havia sido atirado pela janela para o campo de exercícios. Então eu não sabia que o professor era culpado. Indubitavelmente, o arco nunca esteve fora. Mas a evidência, em que eu baseava as minhas deduções, não pode ser considerada como um erro ou descuido da parte do professor. Contanto que o episódio do folclore infantil fosse realizado, o resto não tinha importância para ele.

— Que instrumento pensa que ele usou? — perguntou Markham.

— Provavelmente sua bengala. Você deve ter notado que ela tem um enorme castão de ouro perfeitamente construído como arma letal.(1) A propósito, estou inclinado a crer que ele exagerava sua gota para atrair simpatia e afastar de si qualquer suspeita possível.

(1) Mais tarde foi descoberto que o pesado castão de ouro, de quase vinte centímetros, estava solto e podia ser facilmente destacado da bengala. O castão pesava cerca de 900 gramas e, como Vance havia observado, constituía um cacete altamente eficiente. Se tinha sido ou não afrouxado para o propósito a que foi destinado é por certo uma conjetura.

 

— E a sugestão para o assassinato de Sprigg?

— Depois da morte de Robin, deve ter procurado, deliberadamente, material para outro crime no livro infantil de Mother Goose. Seja como for, Sprigg visitou a casa na quinta-feira, à noite, véspera de seu assassinato; e foi nesse momento, segundo creio, que a idéia surgiu. No dia escolhido para a sua monstruosa obra, ele se levantou cedo e vestiu-se, esperou que Pyne o chamasse às sete e meia, respondeu-lhe e, então, foi ao parque — provavelmente pela sala do clube e pela passagem. O costume de Sprigg de passear todas as manhãs pode ter sido casualmente mencionado por Arnesson ou pelo próprio moço.

— Mas como explica você a fórmula do tensor?

— O professor tinha ouvido Arnesson falar ao moço sobre ela, algumas noites antes. E eu penso que a colocou debaixo do corpo para despertar a atenção, por associação de idéias, sobre Arnesson. Mais ainda, aquela fórmula particular sutilmente expressava o impulso psicológico que animava os crimes. O tensor de Riemann-Christoffel é uma exposição do infinito espacial, a negação da vida humana infinitesimal desta terra; e, subconscientemente satisfez, sem dúvida, o senso de humor pervertido do professor, dando maior homogeneidade à sua concepção monstruosa. No momento em que a vi, percebi seu significado sinistro e consolidei minha teoria de que os crimes do Bispo eram obra de um matemático, cujos valores se haviam tornado abstratos e incomensuráveis.

Vance fez uma pausa para acender outro cigarro, continuando depois de um silêncio meditativo:

— Chegamos agora à visita de meia-noite à casa de Drukker. Isso foi um triste entreato forçado do assassino, motivado pela informação do grito da Sra. Drukker. Receava que a mulher houvesse visto o corpo de Robin ser arrojado para fora. E, quando, na manhã do assassinato de Sprigg, ela o encontrou no pátio de volta do crime, ele se sentiu mais preocupado do que nunca que ela pusesse as coisas no seu lugar. Não me admira que ele procurasse evitar que a interrogássemos. E na oportunidade mais próxima quis fazê-la silenciar para sempre. Tirou a chave da carteira de Belle Dillard, antes que ela saísse para o teatro aquela noite, pondo-a em seu lugar na manhã seguinte. Mandou Pyne e Beedle deitarem-se cedo; e às dez e meia Drukker se queixava de cansaço e retirava-se para a sua casa. À meia-noite, julgou que o cenário estava pronto para sua fatídica visita. O uso do bispo negro como assinatura simbólica do assassinato premeditado foi provavelmente inspirado pela discussão de xadrez entre Pardee e Drukker. Suspeito que ele nos falou sobre a partida de xadrez para chamar a atenção sobre o jogo de propriedade de Arnesson, no caso de o bispo vir a cair em nossas mãos.

— Crê você que ele tinha idéia de envolver Pardee naquela ocasião?

— Oh, não. Surpreendeu-se genuinamente quando a análise de Arnesson sobre a partida Pardee-Rubinstein revelou o fato de que o bispo tinha sido por largo tempo a Nêmesis de Pardee... E você estava indubitavelmente certo acerca da reação de Pardee, quando eu mencionei no dia seguinte o bispo negro. O pobre homem pensou que eu o ridicularizava deliberadamente por motivo da sua derrota nas mãos de Rubinstein...

Vance inclinou-se e deixou cair a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Lastimo — murmurou com pesar. — Devo-lhe uma desculpa sabe? — Encolheu os ombros ligeiramente e, recostando-se em sua cadeira, prosseguiu a narração. — A idéia do assassinato de Drukker o professor a obteve da própria mãe deste. Ela comunicou seus temores imaginários a Belle Dillard, que os repetiu naquela noite, durante o jantar; e o projeto tomou corpo. Não havia complicações em sua execução. Depois do jantar, subiu ao sótão e datilografou as notas. Mais tarde, sugeriu um passeio a Drukker, sabendo que Pardee não se demoraria muito tempo com Arnesson. E, quando viu Pardee no caminho para cavaleiros do parque, soube que Arnesson estava só. Assim que Pardee se afastou, deu o golpe em Drukker, atirando-o em seguida do muro abaixo. Imediatamente, dirigiu-se pelo pequeno atalho até o Drive, cruzou a Rua Setenta e Seis e foi ao quarto de Drukker, voltando pelo mesmo caminho. Toda a cena não podia ocupar-lhe mais de dez minutos. Então, tranqüilamente, passou por Emery e dirigiu-se para casa com o caderno de Drukker por baixo do casaco...

— Mas, por que, — interrompeu Markham, — se você estava seguro de que Arnesson era inocente, fez cavalo-de-batalha da chave da porta da passagem? Somente Arnesson poderia ter usado a passagem na noite da morte de Drukker. Dillard e Pardee saíram pela porta da frente.

— Do ponto de vista da culpabilidade de Arnesson, eu não tinha interesse na chave. Mas, se esta não estava, isso significava que alguém a havia levado a fim de lançar suspeita sobre Arnesson. Quão simples teria sido para Arnesson deslizar pela passagem, depois que Pardee se retirou, cruzar o Drive até o pequeno atalho e atacar Drukker depois que o professor o tivesse deixado... E, Markham, isto é o que nós éramos forçados a pensar. Foi, de fato, a óbvia explicação do assassinato de Drukker.

— O que eu não posso compreender — queixou-se Heath — é por que o velho matou Pardee. Isto não lançava suspeita sobre Arnesson e fez com que crêssemos que Pardee era o culpado e que se havia, por isso, suicidado.

— Esse suicídio espúrio, sargento, foi a piada mais fantástica do professor. Foi ao mesmo tempo irônica e desdenhosa. Pois durante todo esse interlúdio cômico ele ruminou projetos para a destruição de Arnesson. E decerto a circunstância de possuirmos um culpado plausível tinha a grande vantagem de relaxar a vigilância e fazer com que os agentes fossem retirados da casa. O assassinato, creio eu, foi concebido espontaneamente. O professor inventou algum pretexto para acompanhar Pardee à sala do clube onde já tinha fechado as janelas e descido as persianas. Então, talvez apontando para algum artigo de revista, desfechou um tiro contra seu confiante hóspede, atingindo-o no peito, pôs-lhe o revólver na mão e, como humorista sardônico, construiu o castelo de cartas. Ao voltar à biblioteca, colocou as peças de xadrez como para fazer crer que Pardee tivesse estado refletindo sobre o bispo negro... Mas, como eu digo, este fragmento de grotesca maldade foi apenas um acontecimento secundário. O episódio da "Pequena Miss Muffet" devia ser o desfecho. E foi cuidadosamente projetado para que a tempestade caísse sobre Arnesson. O professor estava na casa de Drukker na manhã dos funerais, quando Madalena Moffat trouxe as flores para Humpty Dumpty; indubitavelmente ele conhecia o nome da criança. Era a favorita de Drukker e havia estado na casa deste em numerosas ocasiões. Com a idéia dos personagens do folclore infantil firmemente implantada em seu espírito, como uma obsessão homicida, associou naturalmente o nome de Moffat com Muffet. Por certo, é provável que Drukker ou a Sra. Drukker chamassem a menina "A pequena Miss Muffet", em sua presença. Foi fácil para ele atrair a atenção da menina e chamá-la para o montículo perto do muro, ontem à tarde. Provavelmente, disselhe que Humpty Dumpty desejava vê-la. E ela foi-se com ele ansiosamente, seguindo-o sob as árvores pelo caminho de cavaleiros, depois através do Drive e pela passagem entre os prédios de apartamentos. Ninguém os teria notado, pois o Drive a essa hora está cheio de crianças. Depois, à noite passada, ele lançou em nós a semente da suspeita contra Arnesson, crendo que, quando as notas da "Pequena Miss Muffet" chegassem à imprensa, procuraríamos a menina para encontrá-la morta por asfixia na casa de Drukker... Um plano diabólico e inteligente!

— Mas por que ele esperou que devassássemos o sótão de sua casa?

— Oh, sim, mas não antes de amanhã. Então, ele teria limpado o quarto e colocado a máquina num lugar mais seguro. E teria guardado o caderno, pois há muito pouca dúvida de que pretendia apropriar-se das investigações de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas nós chegamos um dia antes e todos os seus cálculos fracassaram.

Markham fumou pensativamente, durante um certo tempo.

— Você disse que estava convencido da culpabilidade de Dillard, ontem à noite, quando você recordou o personagem do Bispo Arnesson...

— Sim... oh, sim... Isso me deu o rumo. Naquele momento, concluí que a intenção do professor era lançar sobre Arnesson a culpabilidade e que a assinatura das notas havia sido escolhida com esse propósito.

— Ele esperou muito tempo antes de chamar-nos a atenção sobre Os Simuladores — comentou Markham.

— O fato é que não esperava ter de fazê-lo. Pensava que nós descobriríamos o nome por nós mesmos. Porém, éramos mais imbecis do que ele julgava. E, afinal, desesperado, chamou você e foi, inteligentemente, direto ao assunto, acentuando Os Simuladores.

Durante um momento, Markham permaneceu silencioso. Sentou-se, franzindo o cenho e tamborilando com os dedos no mata-borrão da mesa.

— Por que — perguntou afinal — você não nos disse, ontem à noite, que o professor e não Arnesson era o Bispo? Você nos fez pensar...

— Meu caro Markham! Que mais podia eu fazer? Em primeiro lugar, você não me acreditaria e provavelmente me teria sugerido outra viagem transoceânica. Mas era essencial fazer crer ao professor que suspeitávamos de Arnesson. De outro modo, não teríamos a probabilidade de forçarmos a decisão como conseguimos. O subterfúgio era a nossa única esperança; e eu sabia que, se você e o sargento suspeitassem dele, iriam logo descobrir o jogo. Deste modo, não tiveram de fingir e tudo saiu que foi uma beleza!

Notei que o sargento havia estado, durante a última meia hora, observando Vance, de vez em quando, com um olhar de incerteza perplexa; porém, por algum motivo, dava a impressão de achar-se embaraçado para exprimir os pensamentos que o preocupavam. Entretanto, nesse momento, mudou de posição, contrafeito, e, tirando com lentidão o cigarro da boca, fez a Vance uma pergunta alarmante:

— Eu não me queixo de o senhor não nos ter revelado sua idéia, ontem à noite, mas o que me agradaria saber é por que, quando o senhor se levantou de um salto e apontou para o painel existente no outro lado da sala, trocou o cálice do professor pelo de Arnesson?

Vance suspirou profundamente e meneou, desesperado, a cabeça.

— Eu devia ter sabido que nada podia escapar a seus olhos de águia, sargento.

Markham inclinou-se sobre a mesa e mirou Vance, com aturdimento e raiva.

— Que é isso! — exclamou Markham, esquecendo seu habitual comedimento. — Você trocou os cálices? Você deliberadamente...

— Oh! — rogou Vance. — Que sua ira não desabe sobre mim. — Voltou-se para Heath num tom burlesco de censura. — Veja em que aperto me colocou, sargento.

— Este não é o momento para fugir pela tangente. — A voz de Markham era fria e inexorável. — Eu quero uma explicação.

Vance fez um gesto de resignação.

— Pois bem. Escutem. Minha idéia, como já expliquei a vocês, foi acompanhar o plano do professor e fingir que alimentava suspeitas contra Arnesson. Esta manhã fiz-lhe ver, a propósito, que não tínhamos provas e que, mesmo que prendêssemos Arnesson era duvidoso que pudéssemos retê-lo. Eu sabia que, nessas circunstâncias, ele tomaria alguma decisão para fazer face à situação de uma forma heróica, pois o único objetivo dos assassinatos era aniquilar completamente Arnesson. Eu tinha certeza de que ele cometera um ato imprudente e descobrira-se a si mesmo. De que forma, não sei. Mas nós o vínhamos observando muito de perto... Então, o vinho me deu uma inspiração. Sabendo que ele tinha cianureto, trouxe para a palestra o assunto do suicídio e assim lancei a idéia em seu espírito. Caiu na armadilha e procurou envenenar Arnesson e fazer crer que era um suicídio. Eu o vi sub—repticiamente esvaziar um frasquinho de líquido incolor no cálice de Arnesson, quando este fora buscar o vinho no licoreiro. Minha primeira intenção era deter o assassino e mandar analisar o vinho. Podíamos pesquisá-lo e encontrar o veneno e eu podia testemunhar o fato de tê-lo visto envenenar o vinho. Esta evidência, além da identificação da menina, poderia corresponder ao nosso propósito. Porém, no último momento, depois que ele encheu de novo os nossos cálices, decidi empregar o método mais singelo...

— E assim você distraiu nossa atenção e trocou os cálices!

— Sim, sim. Naturalmente. Acreditei que um homem desejaria beber o vinho que serviu para outro.

— Você fez justiça pelas suas próprias mãos!

— Tomei-a em meus braços... Era inevitável... Mas não sejam tão severos. Levam vocês à presença da Justiça uma cascavel? Apresentam diante de um tribunal um cachorro furioso? Não senti mais remorsos em concorrer para que um monstro como Dillard se projetasse no além do que os que teria sentido, ao esmagar um réptil venenoso, no momento de este atacar.

— Mas isso é assassinato! — exclamou Markham com horror e indignação.

— Oh, sem dúvida — disse Vance com alegria. — Sim... Naturalmente, muito repreensível... Diga-me: estou por acaso preso?

O "suicídio" do professor Dillard pôs fim ao famoso caso dos assassinatos do Bispo, absolvendo Pardee de qualquer suspeita. No ano seguinte, Arnesson e Belle Dillard contraíram núpcias, na maior intimidade, e partiram para a Noruega, onde instalaram o seu lar. Arnesson aceitou a cadeira de Matemáticas Aplicadas da Universidade de Oslo; e dois anos depois obteve o prêmio Nobel por seu trabalho de Física.

A velha casa de Dillard, na Rua 75, foi demolida e, em seu lugar, eleva-se hoje um moderno prédio de apartamentos em cuja fachada há dois imensos medalhões de terracota, que sugerem fortemente alvos para tiros de flecha. Tenho pensado muitas vezes, se o arquiteto não escolheu deliberadamente semelhante motivo ornamental.

O caso do Bispo Preto empolgou toda uma nação. Era um mistério criminal de excepcional interesse em vista das circunstâncias sinistras e estranhas que o cercavam.
Parecia, porém, quase impossível desvendar a cadeia de fatos misteriosos e recônditos que precederam o crime. Em dado momento, as pistas se multiplicavam com tal exuberância que os homens mais treinados nas técnicas da investigação criminal se perdiam nelas, sem saber por onde prosseguir.
Felizmente, o espírito insaciável e os métodos analíticos notáveis de Philo Vance fizeram-no absorver-se em todas as complicações do caso para resolvê-lo numa série de raciocínios e análises que constituem uma verdadeira jóia da literatura policial.
Sem a sua intervenção, sem a sua aplicação ao caso dos seus poderes magistrais de dedução e de análise, sem a sua agudeza intelectual desenvolvida e comprovada no conhecimento profundo de quase todos os setores do conhecimento humano, seria muito provável que o mistério do Bispo Preto nunca fosse decifrado.

 

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I

"QUEM MATOU COCK ROBIN?"

(Sábado, 2 de abril — meio-dia)

De todos os casos criminais em que Philo Vance interveio como investigador particular, o mais sinistro, grotesco e aparentemente ò mais incompreensível, e sem dúvida o mais terrível, foi o que se seguiu aos famosos assassinatos dos Greenes (1). A orgia de horror na velha mansão havia chegado a um fim surpreendente no mês de dezembro, tendo Vance ido à Suíça, depois das festas de Natal, para dedicar-se aos desportos de inverno. Voltando a Nova York, em fins de fevereiro, aplicou-se a um trabalho literário que, há muito tempo, planejara: à tradução dos principais fragmentos de Menandro, encontrados nos papiros egípcios em princípios do atual século.

Durante mais de um mês, esteve ele trabalhando diligentemente nessa tarefa ingrata. Se a teria completado ou não, eu não posso dizer. Vance era um homem culto, cujo espírito de investigação e aventura intelectual estava constantemente em contraste com o trabalho necessário para a criação escolástica. Recordo-me de que, no ano anterior, começara a escrever a vida de Xenofonte, resultado do entusiasmo do seu tempo de universitário, quando pela primeira vez leu a Anabasis e a Memorabilia, perdendo o interesse pelo aludido trabalho, quando chegou ao episódio histórico em que Xenofonte conduz os Dez Mil de volta para o mar. Entretanto, poderei assegurar que a tradução de Menandro foi bruscamente interrompida em princípios de abril, e, durante algumas semanas, ele se deixou absorver pelo misterioso crime que levou o país inteiro a um estado de horrível excitação.

(1) Relato em A Série Sangrenta, do mesmo autor. Dist. Record.


Essa nova investigação criminal em que ele atuou como uma espécie de amicus curiae de John F. X. Markham, procurador do distrito judicial de Nova York, imediatamente se tornou conhecida pela designação de "os misteriosos crimes do Bispo". A designação, resultado do nosso instinto jornalístico de pôr rótulo em qualquer cause célebre, era de certo modo inadequada. Não existia nada de eclesiástico acerca dessa campiresca saturnal de crimes que fez com que uma inteira comunidade lesse as Melodias de Mama Goose, com temerosa apreensão (2).

(2) Durante um período de várias semanas venderam-se mais exemplares das Melodias de Mama Goose que de qualquer novela. Uma das casas editoras menores tornou a imprimir e vendeu por completo a edição dessas velhas e famosas rimas infantis.

E ninguém, de nome Bispo, estava, pelo que eu sei, nem sequer remotamente relacionado com os sucessos monstruosos que deram lugar a essa denominação. Contudo, a palavra Bispo era apropriada por ser o nome suposto empregado pelo assassino para seus tenebrosos propósitos. Aliás, foi este nome que por fim conduziu Vance à mais incrível das verdades, terminando assim um dos mais espantosos crimes em série da história policial.

A série de acontecimentos sobrenaturais e aparentemente não relacionados que constituíam o "caso Bispo" e que fizeram com que Vance se esquecesse de Menandro e dos monásticos gregos teve seu início na manhã de 2 de abril, perto de cinco meses depois do duplo assassinato de Julia e Ada Greene. Era um desses dias primaveris temperados e formosos que, às vezes, em princípios de abril, favorecem Nova York. Vance estava fazendo o seu desjejum no pequeno jardim do terraço da sua casa da Rua 38, Leste. Era quase meio-dia, pois ele trabalhava ou lia até altas horas da noite, levantando-se por conseguinte muito tarde. O sol, que caía de um céu azul sem nuvens, estendia um manto de letargia sobre a cidade. Vance, esparramado em uma poltrona, com seu desjejum ao lado numa mesinha baixa, olhava com céptico e saudoso olhar as copas das árvores do pátio.

Eu sabia que seu espírito maquinava. Era seu costume ir todas as primaveras à França; e, há muito tempo, havia pensado como pensara George Moore, que Paris e maio eram cousas correlatas. Porém, a grande corrente de nouveaux riches americanos de após-guerra, em Paris, tirou-lhe o prazer dessa peregrinação anual; e, no dia anterior, informara-me que este verão passaríamos em Nova York.

Há muitos anos que sou amigo de Vance, além de conselheiro legal, uma espécie de administrador financeiro e agente. Abandonei a firma de advocacia de meu pai, Van Dine, Davis Van Dine, para dedicar-me inteiramente aos seus interesses, posição que era muito mais de meu gosto que a de advogado em um escritório mal ventilado; e, embora meus aposentos de solteiro fossem num hotel do West Side, eu passava a maior parte do tempo nos aposentos de Vance.

Aquela manhã, eu havia chegado cedo, muito antes de Vance se levantar, para revisar as contas de fim de mês. Agora, enquanto ele almoçava, eu fumava preguiçosamente meu cachimbo.

— Como suporá você, Van — disseme ele com sua enunciação lenta e insensível — a perspectiva da primavera e do verão em Nova York nem é excitante nem romântica. Vai ser enfadonho. Entretanto, será menos incômodo que viajar pela Europa com aquele bando de turistas vulgares, acotovelando-se com eles em cada esquina... É muito penoso.

Nada suspeitava ele do que se lhe havia reservado para as semanas próximas. Se ele o soubesse de antemão, nem a mais brilhante primavera em Paris o faria deixar o país; pois não havia nada que mais agradasse a seu insaciável espírito do que um problema complicado. E enquanto me falava aquela manhã, os deuses que presidiam ao seu destino lhe estavam preparando um estranho e fascinante enigma, que iria eletrizar profundamente toda a nação e acrescentar aos anais do crime um novo e terrível capítulo.

Mal Vance acabara de encher sua segunda xícara de café, Currie, seu velho mordomo inglês e jactatum geral, apareceu à porta francesa com um telefone portátil.

— É o senhor Markham, — disse o velho em tom de desculpa. — Como parecia ter urgência, tomei a liberdade de comunicar-lhe que o senhor estava em casa.

Ligou o telefone ao comutador e colocou o aparelho sobre a mesa onde estava a refeição.

— Está bem, Currie, — murmurou Vance segurando o receptor. — Qualquer coisa é boa para romper esta monotonia.

A seguir falou a Markham.

— Diga-me, companheiro, você nunca dorme? Estou terminando uma omelette aux fines herbes. É servido? Ou prefere ouvir a música de minha voz?

Deteve-se bruscamente, e o aspecto trocista desapareceu de seu rosto magro. Vance era o tipo característico do homem nórdico, de face larga e agudamente cinzelada; olhos cinzentos muito separados; nariz delgado e aquilino e um queixo ovalado; boca enérgica e bem cortada, porém com um ar de crueldade e cepticismo que era antes do Mediterrâneo. Seu rosto forte e atraente não era exatamente belo; era antes um rosto de pensador e de monge; e sua própria austeridade, ao mesmo tempo, de um estudioso e introspectivo, constituía como que uma barreira entre ele e seus companheiros. Embora fosse por natureza impassível e cuidadosamente disciplinado na repressão das suas emoções, notei que, enquanto ele escutava Markham no telefone aquela manhã, não podia inteiramente ocultar seu interesse veemente no que lhe diziam. Suas sobrancelhas estavam ligeiramente franzidas e seus olhos refletiam seu assombro interno. De vez em quando, deixava escapar um "Surpreendente!", um "Diabo!" ou um "Extraordinário!" — suas exclamações prediletas. E, quando depois de alguns minutos falou a Markham, uma excitação curiosa assinalava suas maneiras.

— Oh, de nenhum modo! — disse ele. — Não o deixaria nem por todas as comédias perdidas de Menandro... parece loucura. Imediatamente, vou-me vestir já... Au revoir.

Largando o receptor, tocou a campainha para chamar Currie.

— Minha roupa cinzenta — ordenou ele. — Uma gravata escura e meu chapéu.

E voltou à sua omelette, mas já com ar preocupado.

Ao fim de alguns minutos, mirou-me zombeteiramente.

— Que sabe você de arco e flecha, Vance? — perguntou ele.

Tudo o que eu sabia era que consistia em atirar flechas em alvos, e foi o que lhe confessei.

— Não se pode dizer que é muito o que você sabe. — Acendeu indolentemente um cigarro Régie. — Contudo, parece que estamos metidos em um caso de toxofilia. Eu tampouco sou uma autoridade no assunto, porém em Oxford pratiquei um pouco esse esporte. Não é um passatempo apaixonadamente excitante, é muito mais insípido que o golfe e tão complicado como este.

Durante momentos fumou como em sonhos.

— Van, quer ir buscar na biblioteca o volume do Dr. Elmer sobre Balística? Faça-me esta fineza.

Trouxe-lhe o livro, e durante quase meia hora ele mergulhou na sua leitura detendo-se nos capítulos sobre associações de arqueiros, torneios e encontros, e examinando as longas tabelas dos melhores pontos americanos.

Finalmente recostou-se na sua cadeira. Era evidente que havia encontrado algo que o abalara e que pôs em atividade seu sensível espírito.

— É uma loucura, Van — observou com os olhos fixos no espaço. — Uma tragédia medieval na moderna Nova York! Não usamos mais botas nem gibões de couro, e não obstante... Puxa! — Subitamente se empertigou em sua cadeira: — Não..., não! É absurdo. Não devo deixar que as tolas notícias de Markham se apoderem de mim... — Bebeu mais uns goles de café, porém sua expressão me revelou que não podia desprender-se da obsessão que se havia infiltrado em seu cérebro.

— Outro favor mais, Van — disse ao fim de uns minutos. — Traga-me o dicionário alemão e o livro de Versos Domésticos de Burton E. Stevenson.

Quando eu os trouxe, procurou uma palavra no dicionário e o colocou de lado.

— É infelizmente isto mesmo... embora eu já estivesse bem certo a respeito.

Em seguida, examinou a seção da gigantesca antologia de Stevenson dedicada às rimas infantis. Não tardou muito a fechar também este livro, e, estirando-se na sua cadeira, lançou uma larga baforada de fumo até o toldo que cobria o terraço. — Não pode ser — protestou, como para si mesmo. — É demasiado fantástico, demasiado diabólico, demasiado absurdo. Um conto de fadas sangrento... um mundo em anamorfose... uma perversão de toda a racionalidade. É inimaginável, insensato, semelhante à magia negra, à feitiçaria, à taumaturgia. É decididamente uma loucura.

Olhou seu relógio e levantando-se entrou em casa, deixando-me a especular vagamente sobre a causa da sua inusitada agitação.

Um tratado sobre balística, um dicionário alemão, uma coleção de versos infantis e as incompreensíveis expressões de Vance acerca da loucura e da fantasia... que relações podiam existir em tudo isso?

Tentei encontrar um denominador comum, porém sem o menor sucesso. Não é de estranhar que eu tenha fracassado. Mesmo a verdade, quando apareceu semanas depois apoiada em um conjunto de provas incontestáveis, parecia demasiado incrível e demasiado perversa para ser aceita pelo espírito humano em estado normal.

Pouco depois, ele interrompeu minhas inúteis especulações. Vestia traje de passeio e parecia impaciente pela demora de Markham.

— É verdade que eu necessitava de algo que me interessasse... um crime requintado e fascinante, por exemplo — observou ele — mas, por Deus, não desejava um pesadelo. Se eu não conhecesse Markham tão bem, diria que ele exagerava.

Quando, minutos depois, Markham entrava no terraço, podia observar-se a sua sinceridade. A expressão da sua fisionomia era sombria e revelava preocupação. Sua saudação habitualmente cordial ele a reduziu à mais simples cortesia formal. Markham e Vance eram amigos íntimos há quinze anos. Embora de naturezas opostas: um severamente agressivo, brusco, sincero e quase rudemente grave e o outro caprichoso, céptico, afável, alheio às inquietações passageiras da vida — encontraram, porém, entre si a atração complementar que, muita vez, forma a base de uma amizade inseparável e duradoura.

Durante o tempo em que Markham desempenhou as funções de procurador do distrito de Nova York, chamava sempre Vance para conferenciar sobre assuntos de grave importância, e, em todos os casos, Vance justificava a confiança por ele depositada em suas opiniões. É indubitável que a Vance compete quase que exclusivamente o mérito de ter resolvido grande número dos maiores crimes ocorridos durante os quatro anos em que Markham esteve no exercício das suas funções.

Seu conhecimento da natureza humana, seus amplos estudos e realizações culturais, o sutil senso lógico e o amor pela verdade oculta sob aparências enganadoras, tudo o capacitava para a tarefa que realizava não oficialmente, nos casos que caíam sob a jurisdição de Markham.

O primeiro caso de Vance, como devem estar lembrados, prendia-se ao assassinato de Alvin Benson (1). E, se não fosse a sua participação nesse caso, duvido de que a verdade sobre o mesmo tivesse vindo à luz. Logo se seguiu o atroz estrangulamento de Margarida Odell (2), assassinato misterioso, em que os métodos ordinários de investigação policial teriam fracassado inevitavelmente. E, no ano passado, o surpreendente assassinato dos Greenes (ao qual anteriormente já me referi) que ficaria impune, se Vance não frustrasse a tentativa final do assassino. Não era de estranhar, portanto, que Markham procurasse Vance desde o início dos misteriosos crimes do Bispo. Eu havia notado que cada vez ele dependia mais de Philo para suas investigações criminais. E, no caso presente, teve sorte em recorrer a Vance, pois só através de um conhecimento profundo das manifestações psicológicas anormais do espírito humano, tal como possuía Vance, podia ter sido destrinçada aquela tétrica e louca conspiração e descoberto o seu autor.

(1) O Caso Benson.

(2) O Crime da Canária.

 

— Pode acontecer que tudo isto não seja como eu penso — disse Markham sem convicção. — Mas pensei que poderia interessá-lo...

— Oh, inteiramente! — exclamou Vance e dirigiu a Markham um sorriso sardônico... — Sente-se e conte-me o caso tranqüilamente. O cadáver não fugirá. E é necessário que ponhamos tudo em ordens antes de vermos o corpo. Assim, por exemplo — quem são os interessados da primeira parte? E por que a intervenção da procuradoria do distrito, em um caso de assassinato, uma hora depois da morte do indivíduo? Tudo o que você me disse até agora se reduz à maior das tolices.

Markham sentou-se sombriamente à borda de uma cadeira e olhou a extremidade do seu charuto.

— Caramba, Vance! Não comece com atitudes misteriosas de Ugolfo. O crime, se é que o há, está bastante claro. Admitirei que é um assassinato nada vulgar; porém, certamente, não é insensato. Ultimamente o arco-e-flecha tem tido grande incremento. Não há cidade, nem colégio onde não se pratique esse esporte.

— Concordo. Todavia, desde muito tempo não se costuma matar indivíduos que se chamem Robin.

Os olhos de Markham semicerraram-se e puseram-se a observar Vance interrogativamente.

— Ocorreu a você também esta idéia?

— Se ocorreu a mim? Saltou-me no espírito, assim que você pronunciou o nome da vítima. — Vance tirou umas baforadas de seu cigarro. — "Quem matou Cock Robin?" E com um arco e uma flecha!... É interessante como esses versinhos aprendidos na infância gravam-se na memória. E, a propósito, como se chama o infortunado Sr. Robin?

— Creio que Joseph.

— Nem edificante, nem sugestivo.

— Algum outro nome mais?

— Vamos, Vance, — disse Markham, ao mesmo tempo que se levantava nervosamente. — Que tem que ver com o caso o outro nome da vítima?

— Não sei. Entretanto, como estamos ficando loucos, é melhor que o fiquemos de todo. De nada nos servirá um pouquinho de sensatez.

Apertou a campainha para chamar Currie. Logo que este atendeu, pediu-lhe Vance a lista telefônica. Markham protestou, porém Vance fingiu que não ouviu. De posse do guia, começou a folheá-lo durante minutos.

— A vítima morava em Riverside Drive? — perguntou por fim, assinalando com o dedo um nome.

— Creio que sim.

— Está bem! — Vance fechou o livro e fixou no procurador do distrito um olhar burlesco e triunfante.

— Markham — disse lentamente — há um único Joseph Robin na lista telefônica. Vive em Riverside Drive e seu nome é Cochrane!

— Que tolice é esta? — O tom de voz de Markham era quase feroz. — Suponhamos que se chamasse Cochrane: quer você seriamente insinuar que esse fato influirá em seu assassinato?

— Dou-lhe a minha palavra que não insinuo nada — disse Vance, encolhendo ligeiramente os ombros. — Estou apenas anotando uns quantos fatos relacionados com o assunto. Até agora isto se apresenta assim: — O Sr. Joseph Cochrane Robin, isto é, Cock Robin... foi morto por um flechaço. Não lhe diz seu espírito legal que isto é algo verdadeiramente raro?

— Não! — retrucou Markham. — O nome da vítima é certamente muito vulgar. E o que mais me surpreende é que não tenham morto mais pessoas com este ressurgimento do esporte do arco-e-flecha em todo o país. Além disto, é de todo possível que a morte de Robin tenha sido causada por um acidente.

— Oh! Caramba! — e Vance meneou a cabeça em sinal de desaprovação. — Embora fosse assim, isto não melhoraria em nada a situação. Só a tornaria mais singular. Entre todos os milhares de entusiastas do arco que habitam nosso belo país, havia de ser precisamente o chamado Cock Robin quem caísse morto por um flechaço! Semelhante suposição nos conduziria ao espiritismo e à demoniologia, ou a qualquer outra cousa. Por acaso, crê você nos Eblises, Azazels e Jinas que vão pelo mundo adiante pregando peças satânicas à humanidade?

— Devo ser um mitólogo maometano para admitir coincidências? — replicou Markham asperamente.

— Meu prezado amigo! O braço proverbialmente comprido da Providência não se estende ao infinito. Há, além disto, leis de probabilidades baseadas em fórmulas matemáticas bem definidas. Entristecer-me-ia pensar que homens como Laplace (1), Czuber e Von Kries tivessem vivido em vão.

(1) Embora Laplace seja mais conhecido por sua Mecânica Celeste, Vance referia-se aqui à sua magistral obra Teoria Analítica das Probabilidades.


A situação presente, entretanto, é mais complicada do que você suspeita. Por exemplo, você mencionou pelo telefone que a última pessoa, que se sabe esteve com Robin antes de sua morte, é um Sperling.

— E que significação esotérica encerra esse pormenor?

— Talvez você saiba o que quer dizer Sperling em alemão — sugeriu Vance delicadamente.

— Freqüentei o ginásio — retrucou Markham. Seus olhos abriram-se um pouco e ele empertigou o corpo.

Vance empurrou o dicionário alemão para junto dele.

— Em todo caso, procure a palavra. O saber não ocupa lugar. Eu já a procurei. Temia que minha memória me enganasse e nasceu em mim o desejo de ver a palavra em letra de forma.

Markham abriu o livro em silêncio e percorreu a página com a vista. Ao cabo de uns instantes, ergueu-se resolutamente, como se lutasse para resistir a uma tentação. Quando falou, a sua voz era um desafio.

— Sperling quer dizer pardal. Qualquer escolar o sabe. E o que tem isto?

— Oh, nada! — Vance languidamente acendeu outro cigarro. — Qualquer escolar também conhece as velhas rimas da infância intituladas "A morte e o enterro de Cock Robin". Que me diz você a isto? — Olhou para Markham atormentadoramente, enquanto este se conservava imóvel, dirigindo o olhar para o sol primaveril. — Já que você aparentou não estar familiarizado com esse clássico da infância, permita-me que lhe recite a primeira estrofe.

Um arrepio, como de alguma aparição espectral, passou por mim no momento em que Vance repetia aqueles velhos versos familiares:


"Quem matou Cock Robin?

"Eu" — disse o pardal.

"Com meu arco e flecha

"Eu matei Cock Robin."


II

 

NA MIRA DA FLECHA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 12h30)

 


Vagarosamente Markham voltou os olhos para Vance.

— Ê loucura — observou ele, como um homem que enfrenta algo inexplicável e horrendo.

— Ora! Ora! — manifestou Vance sacudindo vivamente a mão. — Isto é um plágio. Eu o disse primeiro. (Estava-se esforçando por dominar seu próprio sentimento de perplexidade, tomando uma atitude frívola.) — Não seria estranho que houvesse uma inamorata que chorasse a morte do Sr. Robin. Recorda-se talvez da estrofe:


"Quem será a principal carpideira?

"Eu" — disse a pomba;

"Lamento o meu amor perdido;

"Eu serei a principal carpideira."


Markham sacudiu a cabeça ligeiramente, enquanto nervosamente tamborilava sobre a mesa.

— Por Deus, Vance! Neste assunto intervém uma moça, existindo, portanto, uma possibilidade de que o ciúme tenha sido a causa do crime.

— Imagine isto, agora! Receio que o caso se transforme em uma espécie de tableau vivant para adultos que freqüentem o jardim de infância — que me diz? Mas isto fará com que nossa tarefa seja mais fácil. Tudo o que teremos de fazer é encontrar a mosca.

— A mosca?

— A Musca domestica, para falar pedantemente... Meu caro Markham, você se esqueceu?


"Quem o viu morrer?

"Eu" — disse a mosca.

"Com meus olhinhos

"Eu o vi morrer."


— Desça do seu reino de fantasia — disse Markham acerbamente. — Isto não é um brinquedo de crianças! É um assunto terrivelmente sério.

Vance meneou a cabeça distraidamente.

— Os brinquedos de criança são, às vezes, os assuntos mais sérios da vida. — Suas palavras tinham um tom distante e curioso. — Não me agrada isto... não me agrada absolutamente. Há muito de infantil nisto... de criança que nasceu velha e com um cérebro enfermo. É como uma perversão odiosa. — Aspirou profundamente o fumo de seu cigarro e fez uma ligeira careta de repugnância. — Dê-me os pormenores, vejamos onde nos encontramos nesta terra transtornada.

Markham sentou-se novamente.

— Tenho poucos pormenores. Praticamente, pelo telefone lhe disse tudo quanto sei. O velho professor Dillard chamou-me pouco tempo antes de eu ter falado com você.

— Dillard? Porventura o professor Bertrand Dillard?

— Sim, a tragédia passou-se em sua casa. Conhece-o?

— Pessoalmente, não. Conheço-o como o conhece o mundo científico... Como um dos maiores matemáticos do mundo. Tenho quase todos os seus livros. Mas, como aconteceu que ele o chamasse?

— Conheço-o há quase vinte anos. Na Universidade de Columbia foi meu professor de matemática e, mais tarde, fiz alguns trabalhos forenses para ele. Quando se encontrou o corpo de Robin, telefonou-me imediatamente... cerca de onze e meia. Chamei o sargento Heath, da Seção de Homicídios, e entreguei-lhe o caso... embora dissesse que, mais tarde, iria pessoalmente. Em seguida, telefonei a você. O sargento e seus homens esperam-nos na casa de Dillard.

— Qual é a situação doméstica do professor?

— Como você deve saber, ele renunciou à sua cátedra há uns dez anos. Desde essa época mora na Rua 75, Oeste, perto do Drive. Levou consigo para a sua casa a filha de um irmão, menina de quinze anos. Agora provavelmente terá vinte e cinco anos. Com eles vive o seu protegido Sigurd Arnesson, que foi meu condiscípulo na faculdade. O professor adotou-o, quando ele estava completando os seus estudos. Arnesson tem agora uns quarenta anos. É monitor de matemática em Colúmbia. Veio da Noruega com três anos de idade, ficando órfão cinco anos depois. É um matemático genial, e provavelmente Dillard viu nele um futuro grande físico e adotou-o.

— Já ouvi falar de Arnesson — observou Vance. — Recentemente publicou algumas modificações sobre a teoria de Mie a respeito da eletrodinâmica dos corpos em movimento... E estes três... Dillard, Arnesson e a moça vivem sós?

— Com dois criados. Ao que parece, Dillard tem uma renda bem apreciável. Entretanto, não estão muito sós. A casa é uma espécie de templo de matemáticos; tornou-se mesmo um cenáculo. Além disto, a moça, que sempre se dedicou aos desportos ao ar livre, tem o seu próprio círculo social. Estive lá várias vezes, e sempre encontrei visitas: um ou dois estudantes de ciências abstratas distraídos na biblioteca, ou alguns jovens barulhentos embaixo na sala.

— E Robin?

— Era amigo de Belle Dillard... jovem excêntrico, pertencente à alta sociedade e que possuía vários recordes de tiro de flecha...

— Sim, já sei. Vi o nome dele neste tratado. Um tal J. C. Robin parece ter feito os mais altos pontos em vários campeonatos recentes. Notei também que um Sr. Sperling foi o que mais se aproximou dele em vários grandes torneios. A Srta. Dillard é amante do esporte?

— Sim. É muito entusiasta. Na realidade, foi ela que organizou o Clube de Arco e Flecha do Riverside. Suas linhas de tiro permanentes estão localizadas na casa de Sperling, em Scarsdale; mas a Srta. Dillard preparou um lugar de exercício no pátio lateral da casa do professor, na Rua 75. Foi nesse lugar que mataram Robin.

— Ah! E, segundo você, a última pessoa que se sabe ter estado com ele foi Sperling. Onde está agora o nosso pardal?

— Não sei. Ele esteve com Robin, pouco tempo antes da tragédia; porém, quando o cadáver foi encontrado, já havia desaparecido. Espero que Heath tenha novidades sobre este ponto.

— E onde se acha o possível motivo de ciúmes, a que você se referiu? — As pálpebras de Vance caíram indolentemente e ele fumava com deliberada lentidão. Isto era sinal de que o assunto lhe interessava muitíssimo.

— O professor Dillard mencionou que havia simpatia entre sua sobrinha e Robin; e, quando lhe perguntei quem era Sperling e qual a sua posição na casa, o professor insinuou que ele pretendia a mão da moça. Não quis entrar em pormenores pelo telefone, porém a impressão que tive é que Sperling e Robin eram rivais, e que este último levava vantagem na luta.

— E assim o pardal matou Cock Robin. — Vance meneou a cabeça em sinal de dúvida. — Não basta. É demasiado simples e não corresponde à reconstrução diabolicamente perfeita dos versos de Cock Robin. Há algo mais profundo... algo mais sombrio e mais terrível nesse assunto grotesco. E, a propósito, quem encontrou Robin?

— O próprio Dillard. Este havia assomado ao pequeno balcão que há atrás da casa e foi então que o viu no chão, no lugar onde praticavam o jogo de flecha. Imediatamente desceu... com considerável dificuldade, pois o velho sofre horrivelmente da gota... e viu que o homem tinha o coração atravessado por uma flecha. Foi então que me telefonou. Isto é tudo que lhe posso adiantar até agora.

— Não poderíamos dizer que isto traz muita luz, porém é um tanto sugestivo. — Vance levantou-se. — Markham, meu velho amigo, prepare-se para algo bem bizarro... e odioso. Podemos já eliminar hipóteses de acidentes e coincidências. Conquanto seja verdade que as flechas comuns para atirar ao alvo sejam feitas de madeira flexível e providas de pequenas pontas chanfradas, podem facilmente penetrar a roupa de uma pessoa e o tórax mesmo, ainda quando impulsionadas por um arco de peso mediano, todavia o fato de ter um homem chamado "Pardal" matado outro de nome Cochrane Robin, com um arco e uma flecha, exclui qualquer idéia de concatenação fortuita de circunstâncias. Certamente, esta incrível série de acontecimentos prova concludentemente que houve um desígnio sutil e diabólico neste caso. — Encaminhou-se até a porta. — Venha, procuremos achar alguma coisa mais no lugar que a polícia austríaca eruditamente chama de situs criminis.

Saímos em seguida, dirigindo-nos ao centro da cidade no carro de Markham. Cruzando o Parque Central, saímos pelo portão da Rua 72, dobrando minutos mais tarde pela West End Avenue para entrar na Rua 75. A casa de Dillard, nº 391, estava à nossa direita, bem distante, na direção do rio. Entre este e o Drive, ocupando toda a esquina, se erguia um prédio de apartamentos de quinze andares. A casa do professor parecia abrigar-se como em busca de proteção, à sombra desse enorme edifício.

A casa de Dillard era de pedra cinzenta, enegrecida pela ação do tempo. Pertencia aos dias em que as casas eram construídas para que durassem e fossem cômodas. O terreno sobre que ela se erguia tinha 10 metros de frente, dos quais oito eram ocupados pela casa. O resto formava uma superfície que separava a casa de Dillard do edifício de apartamentos e estava isolada da rua por um muro de pedra, em cuja parte central havia um portão de ferro.

A casa era de arquitetura colonial modificada. Uma pequena escada conduzia da rua a um pórtico estreito revestido de ladrilhos e guarnecido com quatro colunas brancas corintianas. No segundo andar, havia uma série de janelas de batente com vidros retangulares, que ocupavam toda a frente da casa. (Estas, segundo soube mais tarde, eram as janelas da biblioteca.) O lugar dava a sensação de repouso e tranqüilidade; parecia tudo, menos o teatro de um horrendo crime.

Perto da porta de entrada, quando nós chegamos, já estavam dois carros da polícia e, ao redor deles, uma dúzia de curiosos. Um dos agentes de polícia estava encostado a uma das colunas estriadas do pórtico, olhando com desdém aborrecido os curiosos que se mantinham na sua frente. Um velho mordomo nos fez passar, conduzindo-nos à sala situada à esquerda do vestíbulo de entrada. Ali encontramos o sargento Ernest Heath com outros dois indivíduos da Seção dos Homicídios. O sargento, que estava de pé junto à mesa do centro fumando, com os dedos metidos na cava do colete, adiantou-se, estendendo amistosamente a mão a Markham.

— Alegro-me por ter vindo, senhor — disse ele; e a expressão atribulada dos seus olhos azuis parecia relaxar-se um pouco. — Estava à espera do senhor. Há alguma cousa que cheira a mistério neste caso.

Ao avistar Vance, que se havia conservado atrás, suas feições amplas e belicosas se enrugaram em um sorriso bem-humorado.

— Como vai, Sr. Vance? Tinha uma ligeira idéia de que isto ia-lhe interessar. Por onde tem andado todo esse tempo?

Não pude deixar de comparar esta cordialidade espontânea do sargento com a hostilidade de seu primeiro encontro com Vance, no caso Benson. Mas muita água havia passado sob a ponte desde o dia em que se viram na deslumbrante sala em que se deu o assassinato de Alvin; e entre Heath e Vance se havia desenvolvido uma boa amizade, baseada em um respeito mútuo e em uma franca admiração pelas capacidades um do outro.

Vance estendeu a mão e um sorriso pairou na comissura dos seus lábios.

— A verdade é, sargento, que tenho estado procurando as glórias perdidas de um ateniense chamado Menandro, rival dramático de Filêmon. Tolice, não é?

Heath grunhiu desdenhosamente.

— Bem, de qualquer forma, se o senhor é tão bom nisso como o é em descobrir assassinos, não duvido de que obterá êxito.

Este foi o primeiro elogio que ouvi de seus lábios e que confirmava não só a sua admiração profundamente arraigada por Vance, como também a preocupação e incerteza de seu estado mental.

Markham, percebendo essa insegurança mental do sargento, perguntou-lhe abruptamente:

— Qual parece ser a dificuldade no caso presente?

— Eu não disse que havia dificuldade, senhor — replicou Heath. — Parece-me que o pássaro que cometeu o crime está engaiolado. Entretanto, não estou satisfeito e... oh, diabo! Sr. Markham... não é natural, é contra o bom senso.

— Penso entender o que você quer dizer. — Markham observou o sargento atentamente. — Você está inclinado a crer na culpabilidade de Sperling?

— Seguramente, ele é o culpado — declarou Heath sem vacilar. — Porém, não é isto o que me preocupa. Ser-lhe-ei franco, não me agrada o nome da vítima... especialmente como foi assassinada... com arco e flecha... — Hesitou um pouco envergonhado. — Não lhe parece estranho?

Markham meneou a cabeça com perplexidade.

— Vejo que vocês dois se recordam dos versos da infância — disse ele, dando-lhes as costas.

Vance fixou um olhar zombeteiro em Heath.

— Você acaba de referir-se a "Sperling" como se fosse um "pássaro", sargento. A designação não pode ser melhor. Sperling quer dizer, em alemão, "pardal". E você se recorda de que foi um pardal quem matou Cock Robin com uma flecha... Uma situação fascinante, não é verdade?

Os olhos do sargento se abriram ligeiramente e seus lábios se separaram. Olhou para Vance com quase ridículo aturdimento.

— Eu disse que este negócio cheirava a mistério!

— Eu diria, antes, a ave.

— O senhor o chamaria alguma coisa que ninguém compreendesse — replicou Heath truculentamente. Era seu costume tornar-se belicoso, quando se achava diante de algo inexplicável.

Markham interveio diplomaticamente.

— Dê-nos os pormenores do caso, sargento. Suponho que tenha interrogado os moradores da casa.

— Só de um modo geral, senhor. — Heath descansou a perna em um ângulo da mesa e reacendeu seu charuto. — Estava esperando que o senhor chegasse para descerrar o véu. Sabia que o senhor era amigo do velho que está lá em cima. Assim não fiz mais do que o rotineiro. Destaquei um agente para fora, no corredor, para que ninguém toque no cadáver até chegar o doutor Doremus (1) — ele estará aqui depois do almoço. Telefonei para a Seção de Datiloscopia para que mandem peritos, que não tardarão a pôr-se em atividade, embora eu não veja o que de útil poderão fazer...

(1) Heath referia-se ao Dr. Emanuel Doremus, médico inspetor da polícia de Nova York.


— Que me diz do arco que desferiu a flecha? — perguntou Vance.

— Esse seria o nosso melhor indício, se o velho Sr. Dillard não o recolhesse e guardasse em casa. Provavelmente, destruiu todos os sinais que pudesse ter.

— Que é que você fez sobre Sperling? — perguntou Markham.

— Consegui seu endereço. Vive em uma casa de campo no caminho de Westchester. Enviei dois homens para que o detenham. Também falei com os dois criados; o velho que lhes abriu a porta e sua filha, uma mulher de meia-idade, que é cozinheira. Porém, nenhum deles sabia nada, ou aparentavam não saber. Em seguida, tratei de interrogar a jovem dona da casa. — O sargento levantou a mão num gesto de desespero. — Mas ela estava tão abatida e chorosa que pensei em deixar ao senhor o prazer de interrogá-la. Snitkin e Burke — apontou com o indicador os dois detetives destacados na janela da frente — foram ao porão, ao corredor e ao pátio dos fundos para ver se recolhiam algo. Obtiveram um resultado negativo. É isso tudo o que até agora pude averiguar. Assim que Doremus e os peritos da Seção de Datiloscopia cheguem e uma vez que eu tenha falado com Sperling, então farei girar a bola e esclarecerei o assunto.

Vance lançou um suspiro perceptível.

— Você é muito otimista, sargento! Não se desaponte se a bola se transformar num paralelepípedo e não rolar. Há alguma coisa diabòlicamente rara nesta extravagância infantil. E, a não ser que todos os prognósticos me enganem, você estará envolvido por muito tempo ainda, num jogo de cabra-cega.

— O quê? — Heath lançou a Vance um olhar entre rude e desanimado. Era evidente que tinha mais ou menos a mesma opinião.

— Não se deixe desencorajar por Vance, sargento — disse Markham, dando-lhe ânimo. — Não vê que ele está dando livre curso à imaginação? — Então com um gesto de impaciência voltou-se para a porta. — Examinemos o terreno antes que cheguem os outros. Falarei mais tarde com o professor Dillard e com os demais da casa. E, a propósito, sargento, você não nos falou a respeito de Arnesson. Ele não está em casa?

— Está na universidade, mas não tardará a chegar.

Markham meneou a cabeça e seguiu o sargento até o saguão principal. No momento em que passavam pelo corredor atapetado, produziu-se um ruído na escada, seguido da voz clara e trêmula de uma mulher que se achava em cima, na obscuridade.

— É o Sr. Markham? Meu tio pensou ter reconhecido sua voz. Ele o espera na biblioteca.

— Dentro de poucos minutos irei ter com seu tio, Srta. Dillard. — O modo de Markham era paternal e cheio de simpatia. — E faça o favor de esperar-me com ele, pois desejo também falar-lhe.

Com um murmúrio de aquiescência, desapareceu a moça no cimo da escada.

Encaminhamo-nos para a porta dos fundos do saguão inferior. Adiante havia uma passagem estreita que terminava nuns degraus de madeira que conduziam ao porão. Ao pé desses degraus, havia um grande compartimento de teto baixo com uma porta que dava diretamente para o terreno do lado ocidental da casa. A porta estava apenas encostada, deixando uma fresta pela qual se podia ver o homem que Heath havia destacado para cuidar do cadáver.

Indubitavelmente esse compartimento tinha sido uma adega; porém, fora bem alterado e convenientemente preparado e servia agora como sede do clube. O piso de cimento se achava coberto de esteiras e uma das paredes tinha uma pintura em que se viam os arqueiros através das idades. Em um painel oblongo, à esquerda, havia uma imensa reprodução ilustrada de um campo de tiro de flecha com a legenda "Ayme para arqueiros de Finsburie. Londres, 1594", vendo-se em um canto a colina Bloody House; no centro, o Westminster Hall e, em primeiro plano, o Welsh Hall. No quarto, havia um piano e uma vitrola, numerosas cadeiras de vime, um diva de cores variadas, uma mesa central de vime cheia de revistas desportivas de todas as classes e uma pequena biblioteca abarrotada de livros sobre arco-e-flecha. Vários alvos jaziam em um canto; seus discos dourados e seus anéis cromáticos concêntricos lançavam brilhantes reflexos, devido à luz do sol que inundava o compartimento pelas duras janelas de trás. Em um espaço da parede, perto da porta, pendiam largos arcos de tamanhos e pesos distintos, e, quase ao lado, podia ver-se uma grande arca antiga para ferramentas. Em cima se achava suspenso um pequeno armário cheio de fragmentos de braçais, luvas para atirar, estacas, alvos e cordas para arcos. Um mostruário de carvalho situado entre a porta e a janela exibia uma das coleções de flechas mais interessantes e variadas que eu tinha visto. Este mostruário atraiu particularmente Vance, que, ajustando cuidadosamente seu monóculo, se encaminhou para ele.

— Flechas de caça e de guerra — observou ele. — A maioria coberta com um véu... Ah! Um dos troféus parece haver desaparecido. E, além disso, arrancado com uma pressa considerável. O pequeno prego de bronze que o sustinha em seu lugar está dobrado.

No chão havia várias aljavas cheias de flechas. Inclinou-se e, pegando uma, entregou-a a Markham.

— Esta seta de junco não parece que pudesse penetrar no peito humano e, não obstante, atravessa um veado a uns oitenta metros de distância. Por que então a flecha de caça falta no mostruário? É um pormenor interessante.

Markham franziu as sobrancelhas e apertou os lábios; e eu me lembrei de que ele tinha estado aferrado à idéia de um acidente... Arrojou a flecha desconsoladamente em uma cadeira e caminhou até a porta que dava para fora do aposento.

— Examinemos o cadáver e o terreno — disse ele asperamente.

Quando saímos à fraca luz solar da primavera, sobreveio-me uma sensação de isolamento. A estreita área calçada, em que nos encontrávamos, parecia um canyon entre empinados muros de pedra. Estava cerca de metro e meio abaixo do nível da rua, a que se chegava por uma escada que subia até ao portão no muro. A parede posterior lisa e sem janelas do prédio de apartamentos se elevava até quarenta e cinco metros de altura; e o prédio de Dillard, embora só tivesse quatro andares, equivalia a seis, medidos pelos padrões arquiteturais de hoje em dia. Embora estivéssemos ao ar livre, em plena Nova York, ninguém podia ver-nos, exceto das poucas janelas laterais do prédio de Dillard e de um alpendre da casa da Rua 76, cujo pátio posterior limitava com o do terreno do professor.

Esta outra casa, não tardaríamos muito em saber que era de uma certa Sra. Drukker, e que estava destinada a desempenhar uma parte vital e trágica na solução do assassinato de Robin. Vários salgueiros altos ocultavam suas janelas dos fundos; e só do alpendre poderia observar-se aquela parte do terreno em que nos achávamos.

Eu notei que Vance não tirava a vista daquele alpendre e enquanto ele o estudava, vi passar pelo seu rosto um sinal de interesse. Não foi senão muito mais tarde que eu pude adivinhar o que havia chamado tanto a sua atenção.

O campo de exercícios de tiro de flecha se estendia desde a parede do lote de Dillard na Rua 75 até uma parede similar do lote dos Drukkers na Rua 76, onde uma pilha de fardos de feno tinha sido levantada sobre uma baixo leito de areia. A distância entre as duas paredes era de 30 metros, que, como soube depois, era suficiente para se poder praticar exercício de arco e assim preparar-se para qualquer concurso, com exceção do York Round para homens.

O lote de Dillard era de 40 metros de fundos, sendo por conseguinte o dos Drukkers de 20 metros. Uma seção da alta cerca de ferro que havia sido removida do lugar onde antes separava os dois lotes, permitiu que o terreno pudesse ser usado para o desporto da moda. Na extremidade mais afastada do terreno, situada contra a linha ocidental da linha da propriedade dos Drukkers, havia outro prédio de apartamentos, que ocupava a esquina da Rua 76 com Riverside Drive. Entre esses dois edifícios gigantescos, havia uma passagem estreita cuja extremidade posterior estava fechada por um alto muro com uma portinha com fechadura.

A fim de ser claro, incorporo a estas memórias um diagrama do escritório completo; pois a disposição dos vários detalhes topográficos e arquiteturais teve um sentido muito importante na solução do caso. Eu chamaria a atenção particularmente para os dois seguintes pontos: 1? — o balcãozinho do segundo andar na parte posterior da casa de Dillard que sobressai um pouco sobre o campo de exercício de tiro de flecha; 2? — o alpendre, no segundo andar da casa dos Drukkers, cujo ângulo meridional tem uma vista de todo o terreno até à Rua 75; e 3? — a passagem entre os dois prédios de apartamentos que vai desde o Riverside Drive até o pátio posterior do prédio de Dillard. O corpo de Robin jazia quase diretamente fora da porta do compartimento que servia de sede do clube. Estava de costas, com os braços estendidos, as pernas ligeiramente encolhidas, a cabeça virada para a extremidade do terreno que dá para a Rua 76. Robin era um homem talvez de 35 anos, de altura regular e corpulento. Havia uma inchação esférica em seu rosto todo barbeado, com exceção de um bigodinho fino e louro. Vestia traje esportivo de flanela cinzenta, camisa de seda azul-pálido e sapatos Oxford, amarelos, com sola de borracha. Perto dos pés estava o seu chapéu de feltro cor de pérola.

Junto do cadáver havia uma poça de sangue coagulado que tomara a forma de um grande ponteiro de relógio. Mas o que nos infundiu horror foi a seta delgada que se estendia verticalmente pelo lado esquerdo do peito da vítima. A flecha sobressaía uns cinqüenta centímetros, e pelo lugar de entrada se via a mancha grande e escura da hemorragia. E o que fez com que este estranho assassino parecesse ainda mais incongruente foram as belas plumas colocadas na flecha. Elas tinham sido coloridas de roxo claro; e perto da seta duas franjas azul-turquesa davam à flecha um aspecto de gala. Eu tinha uma sensação de irrealidade acerca da tragédia, como se estivesse presenciando uma cena em uma comédia pastoral para crianças. Vance permaneceu olhando o cadáver com os olhos semicerrados e as mãos nos bolsos do casaco. Apesar de sua aparente atitude de indolência, eu podia dizer que ele estava sutilmente alerta e que seu cérebro tratava de coordenar os fatores da cena que agora presenciava.

— Que coisa estranha essa flecha — comentou ele. — Foi feita para caça grande... indubitavelmente pertence àquela exposição etnológica que acabamos de ver. Em um golpe limpo... diretamente no ponto vital, entre as costelas, e sem o menor desvio. Extraordinário!... Diga, Markham, semelhante pontaria não é humana. Um tiro causai podia tê-la feito; porém, o assassino desse homem não deixou nada ao acaso. Essa poderosa flecha de caça que evidentemente foi arrancada da caixa indica premeditação e propósito... — Subitamente se inclinou sobre o cadáver. — Ah! Muito interessante. O punho da flecha está quebrado. Eu duvido que ele sustentasse a corda do arco estirada. — Virando-se para Heath. — Diga-me, sargento: Onde o professor Dillard encontrou o arco? Não longe da janela desse quarto, não é? Heath teve um sobressalto.

— Fora da janela, de fato, senhor Vance. Está agora sobre o piano esperando que cheguem os peritos da Seção de Datiloscopia.

— Receio que a única impressão digital que vão achar seja do professor Dillard. — Vance abriu sua cigarreira e tirou outro cigarro. — E estou quase inclinado a crer que a flecha propriamente está livre de impressões.

Heath perscrutava Vance inquisitivamente.

— Que lhe fez pensar que o arco fora encontrado perto da janela, Sr. Vance? — perguntou ele.

— Parecia o lugar lógico, em vista da posição do corpo do Sr. Robin, sabe?

— O senhor acha que ela foi disparada de curta distância?

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, sargento. Referia-me ao fato de que os pés da vítima se acham na direção da porta do porão, e que embora os braços estejam estendidos, as pernas estão encolhidas. Acredita você que um homem com o coração atravessado possa cair nessa posição?

Heath considerou a questão.

— Não — admitiu ele. — O mais provável é que estivesse encolhido, ou se caísse de costas, suas pernas estariam estiradas e os braços encolhidos.

— Exatamente! E olhe o chapéu. Se o homem tivesse caído de costas, o chapéu estaria atrás do morto e não a seus pés.

— Escute aqui, Vance, — interveio Markham rudemente. — Que pensa você?

— Oh! Muitíssimas coisas. Todas, porém, chegam à conclusão irracional de que esse cavalheiro não foi morto com arco e flecha.

— Então por que, em nome de Deus...

— Exatamente! Por que a insana manifestação desse elaborado jogo de cena?

— Palavra, Markham! Este negócio é espantoso.

Enquanto Vance falava, a porta do porão se abriu e o Dr. Doremus, guiado pelo detetive Burke, penetrou airoso na área. Saudou-os garbosamente, apertando-lhes as mãos. Logo olhou para Heath com displicência.

— Essa não, sargento. — Queixou-se ele, baixando seu chapéu até tomar um ângulo mais fechado que o usual. — Só dedico 3 horas das 24 para comer; e você escolhe invariavelmente essas 3 horas para molestar-me com seus malditos cadáveres. Você está arruinando a minha digestão. — Olhou a seu redor com petulância e, ao ver Robin, assoviou baixinho. — Por amor de Deus! Esta vez, sim, você escolheu um lindo assassinato.

Ajoelhou-se e começou a apalpar com os seus dedos práticos o corpo do morto. Markham se conservou olhando por um momento, mas voltando-se para Heath lhe disse:

— Enquanto o doutor estiver ocupado com o seu exame, sargento, subirei para falar com o professor Dillard. — Então dirigindo-se a Doremus: — Gostaria de vê-lo antes de ir, doutor.

— Oh, decerto, — respondeu Doremus sem olhar para cima. Ele havia virado o cadáver de lado e apalpava-lhe a base do crânio.


III

 

UMA PROFECIA RELEMBRADA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 13h30)

 


Quando entramos no salão principal, chegavam o capitão Dubois e o detetive Bellamy, peritos em impressões digitais. O detetive Snitkin, que, evidentemente, estava aguardando a chegada deles, conduziu-os logo para a escada do porão, e Markham, Vance e eu subimos ao segundo andar.

A biblioteca era um salão grande e luxuoso com seis metros de fundo pelo menos e ocupava toda a largura do edifício. Duas paredes laterais achavam-se tomadas até o teto de armários embutidos, e ao centro da parede do lado do ocidente elevava-se uma lareira de bronze maciço, estilo imperial. Ao lado da porta, encontrava-se um aparador bem trabalhado, estilo jacobino, e, fronteiro a este, perto da janela que dava para a Rua 75, havia uma enorme escrivaninha artisticamente trabalhada e coberta de papéis, jornais e folhetos. Havia muitos objetos de arte na sala; dois quadros de Dürer olhavam-nos dos painéis da tapeçaria do lado da prateleira da lareira. Todas as cadeiras eram amplas e cobertas de couro escuro.

O professor Dillard estava sentado defronte da escrivaninha, com um pé descansado em uma pequena otomana aveludada; e, em um canto perto da janela, estendida numa grande poltrona, estava sua sobrinha, moça vigorosa, trajando costume muito bem talhado, com feições fortes, esculturadas em molde clássico. O velho professor não se ergueu para saudar-nos e nem se desculpou por essa omissão. Parecia supor que todos já sabiam de sua fraqueza. As apresentações foram ligeiras, embora tivesse Markham dado uma breve explicação da presença de Vance e de mim ali.

— Eu lamento, Markham, — disse o professor, quando nós nos acomodamos — que uma tragédia seja o motivo desta reunião; todavia, sempre é agradável vê-lo. Suponho que queira interrogar a mim e a Belle. Bem, faça as perguntas que quiser.

O professor Bertrand Dillard era um homem que aparentava ter sessenta anos, ligeiramente curvado devido à vida sedentária e estudiosa que levava: braquicéfalo, rosto liso e com uma basta cabeleira branca penteada à Pompadour. Seus olhos, embora pequenos, eram notavelmente vivos e penetrantes; e as rugas ao redor da boca davam-lhe a expressão séria e grave resultante, muita vez, dos longos anos de concentração em problema difíceis. Suas feições eram as de um sonhador e cientista; e, como todo o mundo sabe, os sonhos extravagantes tidos por este homem sobre o espaço, o tempo e o movimento atualizaram-se dentro de nova base de fatos científicos. Mesmo agora, sua fisionomia espelhava uma abstração introspectiva, como se a morte de Robin fosse apenas uma intromissão no drama íntimo dos seus próprios pensamentos.

Markham hesitou por momentos, antes de se decidir. Então, falou com a maior deferência:

— Talvez queira o senhor contar exatamente o que sabe a respeito da tragédia. Depois farei as perguntas que julgar necessárias.

O professor Dillard estendeu a mão para segurar um velho cachimbo de espuma do mar que estava sobre uma estante a seu lado. Quando terminou de enchê-lo e o acendeu, acomodou-se melhor na cadeira.

— Já lhe disse pelo telefone tudo o que sei. Robin e Sperling vieram visitar Belle, hoje de manhã, pelas dez horas. Ela não estava, pois havia ido jogar tênis; assim os dois esperaram-na embaixo, na sala. Ouvi-os conversarem por espaço de meia hora, até que desceram para a sala do clube no porão. Eu me conservei aqui lendo durante uma hora talvez, ao cabo da qual, achando o sol tão agradável decidi-me a ir até a sacada que há nos fundos da casa. Acho que não haviam decorrido cinco minutos, quando por acaso olhei para baixo e vi, com grande espanto, Robin caído de costas na linha de tiro com uma flecha atravessada no coração. Desci o mais rapidamente que me permitia a minha gota, porém logo vi que o homem estava morto. Imediatamente fui ao telefone e comuniquei-me com você. Na ocasião, não havia ninguém em casa, a não ser o velho Pyne — o mordomo — e eu. A cozinheira tinha ido ao mercado. Arnesson tinha partido para a Universidade às 9 horas; e Belle ainda estava jogando tênis. Mandei Pyne procurar Sperling, mas este não foi encontrado em parte alguma, e eu voltei para a biblioteca a fim de esperá-lo. Belle voltou pouco antes da chegada do seu pessoal, e a cozinheira um pouco mais tarde. Arnesson não estará de volta antes das duas.

— Não havia ninguém mais esta manhã... nenhum estranho ou visitante?

O professor sacudiu a cabeça.

— Somente Drukker... Creio que você o viu uma vez aqui. Ele mora na casa que dá fundos para a nossa. Ele nos visita seguidamente... para ver quase sempre o Arnesson; têm muito de comum. Escreveu um livro sobre Ajustes Mundiais na Contínua Multidimensional. O homem é um sábio a seu modo. Tem o verdadeiro espírito científico. Quando soube que Arnesson não estava em casa, sentou-se um pouco comigo falando sobre a expedição ao Brasil da Real Sociedade de Astronomia. Logo se retirou para a casa.

— A que horas?

— Isto pelas nove e meia. Drukker já se havia ido embora, quando chegaram Robin e Sperling.

— É raro, professor Dillard, que o Sr. Arnesson saia aos sábados pela manhã? — perguntou Vance.

O velho professor olhou para cima penetrantemente, e houve uma pequena pausa ou hesitação, antes de responder.

— Não é exatamente raro; apesar de ficar em casa geralmente aos sábados, é verdade que sai algumas vezes. Hoje mesmo foi à biblioteca da faculdade colher certos dados para um livro que, em breve, publicaremos em colaboração (1).

(1) O livro a que se referia o prof. Dillard era a grande obra que apareceu dois anos mais tarde A Estrutura Atômica da Energia Radiante, emenda da teoria do quantum, de Planck, refutando o axioma clássico da continuidade de todos os processos físicos, contido na obra de Maximus Tyrius.


Houve um pequeno silêncio, logo rompido por Markham.

— O senhor disse que tanto Robin como Sperling eram

pretendentes à mão da Srta. Dillard...

— Tio! — A moça ergueu-se em sua cadeira e, voltando-se para o velho professor, lhe lançou um olhar cheio de ressentimento. — Não fica bem dizer isto.

— Não obstante, é verdade, querida. — A sua voz era extremamente carinhosa.

— É verdade... em parte — admitiu ela. — Porém, não havia necessidade de mencionar isto. O senhor sabe tão bem como eles o meu modo de pensar. Éramos muito bons amigos... e só isto. Sem ir mais longe, ontem à noite, quando estávamos reunidos aqui, eu lhe disse... com franqueza... que não queria ouvir mais tolices acerca de casamento nem de um, nem de outro. Eram muito jovens... e agora um deles morreu... Pobre Cock Robin!

A moça esforçou-se bravamente para sufocar a sua emoção.

Vance levantou as sobrancelhas e inclinou-se para diante:

— Cock Robin?

— Oh, nós o chamávamos assim para mexer com ele, pois ele não gostava do apelido.

— O aditamento era inevitável — ajuntou Vance com simpatia. — E era um apelido bastante lindo, não acha? O Cock Robin original era amado "por todas as aves do ar", e todas choraram a sua morte. — Enquanto falava, ele olhava atentamente a moça.

— Já sei — disse ela, meneando a cabeça. — Isto mesmo eu lhe disse uma vez. Todos o estimavam muito. Não podia ser de outro modo. Tinha tão... bom coração, era tão bondoso...

Vance encostou-se de novo na cadeira e Markham continuou o seu interrogatório.

— O senhor disse, professor, que ouvira Robin e Sperling conversarem na sala. Pôde compreender o que diziam? O ancião olhou de soslaio para a sobrinha.

— Esta pergunta tem importância real, Markham? — perguntou ele, após hesitar por momentos.

— É possível que seja de grande utilidade para deslindar posições.

— Talvez. — O professor sugou, pensativamente, o seu cachimbo. — Por outro lado, se eu responder, é possível que dê uma interpretação errônea e faça uma grande injustiça ao que vive.

— Não pode confiar em mim para julgar este ponto? — A voz de Markham se havia tornado grave e imperativa. Houve outro breve silêncio, esta vez rompido pela moça.

— Por que não conta ao Sr. Markham o que ouviu, tio? Que mal há nisto?

— Porque pensava em você, Belle — contestou suavemente o professor. — Porém, talvez você tenha razão. — Dito isto, olhou para cima com relutância. — A verdade é, Markham, que Robin e Sperling se insultaram por causa de Belle. Ouvi só um pouco, porém o suficiente para deduzir que se acusavam reciprocamente de falta de lealdade... de estarem atrapalhando o caminho...

— Oh! Não falavam a sério — interrompeu a Srta. Dillard com veemência. — Eles sempre discutiam por ciúmes; porém eu não era a verdadeira causa. Eram rivais no arco-e-flecha. Como o senhor sabe, Raymond — o Sr. Sperling — era o melhor atirador; porém, este último ano, Joseph derrotou-o em vários concursos e, no último torneio anual, ganhou o campeonato de nosso clube.

— E Sperling pensou talvez — ajuntou Markham — que, devido a isso, havia perdido a sua estima.

— Que absurdo! — replicou a moça com azedume.

— Eu creio, querida, que podemos deixar este assunto, sem receio, nas mãos do Sr. Markham — disse o professor Dillard, apaziguadoramente. Então, dirigindo-se a Markham. — Deseja fazer-me outra pergunta?

— Quisera saber tudo o que o senhor sabe a respeito de Sperling e Robin... Quem são eles, quais as suas associações. Quanto tempo faz que o senhor os conhece...

— Creio que Belle pode esclarecer-lhe melhor do que eu. Eram antes amizade dela. Eu os via apenas ocasionalmente.

— Faz anos que os conheço — disse ela imediatamente. — Joseph tinha uns oito ou dez anos mais que Raymond, e até há uns cinco anos vivia na Inglaterra, quando morreram seus pais. Veio então para a América e adquiriu um apartamento no Drive. Tinha bastante dinheiro e se dedicava à pesca, à caça e aos desportos ao ar livre. Freqüentava muito pouco a sociedade e era um desses amigos cômodos que sempre estão à mão, na falta de outro. Nele não havia muito... do ponto de vista intelectual.

Fez uma pausa, como se suas observações fossem de uma forma ou outra desleais para com o morto. Markham, interpretando-lhe os sentimentos, perguntou com simplicidade:

— E Sperling?

— É filho de um rico industrial... agora aposentado. Vivia em Scardale, em uma formosa herdade... onde nosso clube de balística tem agora seu campo de exercícios... Raymond é engenheiro consultor de uma firma da cidade, embora eu creia que ele trabalha só para tranqüilizar seu pai, pois só vai ao escritório duas ou três vezes por semana. Formou-se em Boston e eu o conheci nas férias, quando estava em seu segundo ano de estudos. Não era dos que se sobressaíam muito, porém é o protótipo do jovem norte-americano... sincero, alegre, algo retraído e absolutamente correto.

Pela breve descrição da moça foi fácil ter-se uma idéia de como eram Robin e Sperling, sendo conseqüentemente difícil relacionar qualquer um dos dois com a sinistra tragédia que nos trouxera a essa casa.

Markham permaneceu com as sobrancelhas franzidas durante uns instantes, levantando por fim a cabeça e fixando o olhar na moça:

— Diga-me, Srta. Dillard, tem alguma teoria ou hipótese que pudesse de uma forma ou outra explicar o porquê da morte do Sr. Robin?

— Não! — A resposta foi antes uma explosão. — Quem podia desejar a morte de Cock Robin? Ele não tinha inimigos. É algo incrível o que aconteceu. Antes de ver com os meus próprios olhos, não podia crer. E ainda assim não parecia real.

— Não obstante, minha querida menina, — interrompeu o professor Dillard, — o homem foi assassinado, assim é que deve haver algo na sua vida que você desconhecia ou de que não suspeitava. Constantemente encontramos estrelas novas que os antigos astrônomos não criam que pudessem existir.

— Eu não posso imaginar que Joseph tivesse inimigos — replicou ela. — Não o crerei. É completamente absurdo.

— Então, pensa você — perguntou Markham — que é improvável que Sperling fosse de certo modo responsável pela morte de Robin?

— Improvável? — Os olhos da moça relampejaram. — É impossível!

— E, não obstante, a senhorita sabe — agora era Vance quem falava como quem não quer nada — que "Sperling" significa "pardal".

A moça permaneceu imóvel. Seu rosto empalideceu e as mãos apertaram fortemente os braços da cadeira. Então, lentamente e com grande dificuldade, meneou a cabeça, enquanto que seu peito arfava fortemente ao respirar. Subitamente estremeceu e apertou o lenço contra o seu rosto.

— Tenho medo! — murmurou ela.

Vance levantou-se e, encaminhando-se até ela, lhe tocou , o ombro consoladoramente.

— Por que tem medo?

Ela levantou a vista e encontrou o olhar de Vance que parece tê-la tranqüilizado, pois forçou um sorriso lastimoso.

— Ainda outro dia — disse ela com voz tensa — estávamos todos embaixo, no pátio de exercícios. Raymond preparava-se para arremessar um Single American Round, quando Joseph abriu a porta do porão e saiu. Não existia, em verdade, perigo algum. Sigurd — o Sr. Arnesson — estava sentado na sacada olhando-nos. E, quando gracejando gritei apontando para Joseph, "a ele! a ele!", Sigurd virou-se e disse: "Você não sabe ao que se expõe, jovem amigo. Você é Cock Robin e aquele arqueiro é um pardal. E você bem sabe o que aconteceu a seu homônimo, quando um senhor Pardal empunhou o arco e a flecha... ou qualquer coisa assim". Naquele momento ninguém prestou atenção. Mas agora!... — Sua voz se converteu em um murmúrio de temor.

— Vamos, Belle, não seja mórbida, — disse o professor consolando-a, porém não sem impaciência. — Era simplesmente um dos gracejos de mau gosto de Sigurd. Você bem sabe que ele moteja e ri continuamente das realidades. É a única evasão que tem da sua constante aplicação às ciências abstratas.

— Acho que sim — respondeu ela. — Por hipótese, foi uma troça. Porém, agora, parece uma profecia terrível. Somente — apressou-se a dizer — Raymond não podia ser o autor.

Enquanto falava, abriu-se a porta da biblioteca e uma figura alta e magra apareceu no umbral.

— Sigurd! — A exclamação de assombro proferida por Belle Dillard revelava uma inegável sensação de alívio.

Sigurd Arnesson, protegido e filho adotivo do professor Dillard, era um homem de aspecto surpreendente — 1,80 m de altura, vigoroso, com uma cabeça que à primeira vista parecia demasiado grande para seu corpo, o cabelo quase amarelo desgrenhado como o de um escolar, nariz aquilino e faces magras e musculosas. Embora não tivesse mais de quarenta, as rugas formavam no seu rosto uma rede que dava uma impressão sardonicamente fantástica; porém, a paixão intensamente intelectual que lhe iluminava os olhos cinzento-azulados contradizia qualquer superficialidade da natureza. Minha reação inicial relativamente à sua personalidade era de respeito e agrado. Havia nele profundidades... potencialidades poderosas e altas capacidades.

No momento que entrava, seus olhos perscrutadores nos abrangeram a todos com um olhar veloz e inquiridor. Saudou com a cabeça levantada a Srta. Dillard e logo mirou o velho professor com um olhar de fria distração.

— Por favor, digam-me o que aconteceu nesta casa tridimensional. Lá fora, o carro da polícia, muita gente, uma sentinela na porta... e dois homens em traje civil que me enviaram aqui quase aos empurrões, sem cerimônia nem explicação alguma... Muito divertido, porém desconcertante... Ah! Ao que parece, está aqui o procurador do distrito. Bom dia... ou dito melhor, boa tarde... Sr. Markham.

Antes que este pudesse responder ao cumprimento, Belle Dillard falou:

— Sigurd, rogo a você que não caçoe. Mataram o Sr. Robin.

— Você quer dizer Cock Robin. Vá! Vá! Com este nome, que outra coisa podia esperar? — Parecia não se emocionar com a notícia. — Quem o fez volver aos elementos?

— Quanto a isso, não sabemos — contestou Markham em tom de censura pela jovialidade intempestiva do outro. — O que sabemos é que o senhor Robin foi assassinado com uma flecha que lhe cravaram no coração.

— Não podia ser de outro modo — disse Arnesson, sentando-se no braço de uma cadeira e estirando suas longas pernas. — Que poderia haver de mais apropriado para esse Cock Robin do que morrer de um flechaço arremessado pelo arco de...

— Sigurd! — Belle Dillard lhe cortou a frase. — Você já não caçoou o suficiente? Você sabe que não foi Raymond.

— Indubitavelmente, irmã. — O homem mirou-a um tanto reflexivamente. — Eu estava pensando no progenitor ornitológico do Sr. Robin. — Voltando-se lentamente para Markham perguntou-lhe: — Assim é que se trata de um crime misterioso, com um cadáver, pistas e acessórios, não? Posso saber o que é que se passou?

Markham expôs brevemente um resumo da situação, o que ele escutou com grande interesse. Uma vez terminada a exposição, perguntou:

— Não se encontrou arco algum no pátio?

— Ah! — Vance, pela primeira vez, desde que chegou Arnesson, despertou de uma aparente letargia e respondeu em lugar de Markham. — Esta é uma pergunta que vem muito a propósito, Sr. Arnesson. Sim, um arco foi encontrado fora da janela do porão a uns três metros do cadáver.

— Isso, naturalmente, simplifica o assunto — disse Arnesson desiludidamente. — Agora é só tomar as impressões digitais.

— Infelizmente o arco foi tocado — explicou Markham. — O professor Dillard recolheu-o e guardou-o no porão.

Arnesson voltou-se com curiosidade para o ancião.

— Que impulso, senhor, o levou a fazer tal coisa?

— Impulso? Meu caro Sigurd, eu não analisei minhas emoções. Todavia, imaginei que o arco fosse uma parte principal do corpo de delito, guardando-o como medida de precaução até que chegasse a polícia.

Arnesson fez uma careta e levantou humoristicamente um olho.

— Isso se assemelha ao que nossos amigos psicanalistas chamariam uma explicação da suspensão crítica. Gostaria de saber que idéia se achava submersa em seu espírito...

A cabeça de Burke assomou à porta ao mesmo tempo que anunciava:

— O Dr. Doremus espera-os embaixo. Já terminou o exame médico.

Markham levantou-se desculpando-se:

— Por ora não os molestarei mais. Há muito trabalho rotineiro que fazer ainda. Mas devo pedir-lhe que façam o favor de não sair daqui. Vê-los-ei antes de ir-me embora.

Doremus estava-se balançando impacientemente sobre a ponta dos pés quando nos reunimos a ele na sala.

— Não há nada completo — começou a dizer antes que Markham tivesse ocasião de falar. — Nosso amigo desportista foi morto por uma flecha cuja ponta fortemente afilada penetrou no coração pelo quarto espaço intercostal. Foi disparada com grande força. Muita hemorragia interna e externa. Faz duas horas que morreu, e acredito que seriam onze e meia quando caiu. Entretanto, tudo isto é pura teoria. Nenhum sinal de luta... nenhuma marca em sua roupa, nem arranhões em suas mãos. A morte sobreveio sem que ele percebesse o que acontecia a seu redor. Recebeu um forte golpe na parte posterior da cabeça, ao cair no piso de cimento...

— Isso é muito interessante — interrompeu Vance, com sua voz lenta e penosa, o médico da polícia, em seu monótono relato. — É muito sério o "golpe", doutor?

Doremus pestanejou e mirou Vance um tanto assombrado.

— O suficiente para causar a fratura do crânio. Não pude apalpá-lo, certamente, porém havia um enorme hematoma sobre a região ocipital, sangue seco nas narinas e nos ouvidos e as pupilas desiguais que indicavam uma fratura de crânio. Depois da autópsia, poderei dizer alguma coisa mais.

— Voltando-se para o procurador do distrito: — Alguma coisa mais?

— Nada mais, doutor. A única coisa que lhe peço é que nos forneça quanto antes seu laudo post mortem.

— Esta noite o senhor o terá. O sargento já telefonou chamando o carro.

Apertando nossas mãos, retirou-se apressadamente. Heath, um pouco retirado de nós, franzia a testa.

— Bem, isto não nos leva a lado algum — disse, queixoso, enquanto mascava viciosamente seu cigarro.

— Não desanime, sargento — censurou Vance. — Este golpe na parte posterior do crânio é digno da mais profunda consideração. Minha opinião é que não recebeu ao cair, sabe?

O sargento não se impressionou ante esta observação.

— E ainda mais, Sr. Markham — continuou falando. — Não havia impressões digitais nem na flecha, nem no arco. Dubois disse parecer que foram apagadas. Havia umas manchas na extremidade do arco em que o professor tocou, mas nenhum outro sinal ou impressão.

Markham, silenciosamente sombrio, fumou durante um momento.

— Que me diz da maçaneta da porta da rua? E do ferrolho da porta de passagem entre os dois prédios de apartamentos?

— Nada — bufou Heath com desgosto. — Ambos são de ferro oxidado e rugoso, incapazes de reter qualquer impressão.

— Olhe aqui, Markham — disse Vance. — Você está considerando o assunto de forma errônea. É lógico que não haja impressões digitais. É fora de dúvida que você sabe que não se produz cuidadosamente uma obra para logo deixar todos os truques à vista dos espectadores. O que é preciso saber é por que esse empresário particular decidiu entregar-se a teatralidades estúpidas.

— Não é fácil como pensa, Sr. Vance — manifestou Heath com amargura.

— Eu disse que era fácil? Não, sargento, é terrivelmente difícil. E mais difícil: sutil, obscuro e... diabólico.


IV

 

UMA CARTA MISTERIOSA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 14h)

 


Markham sentou-se resolutamente diante da mesa de centro.

— Que lhe parece, sargento, se interrogarmos agora os dois criados?

Heath saiu do vestíbulo e expediu uma ordem a um dos agentes. Ao cabo de instantes apareceu um homem alto, sombrio, desmazelado, que permaneceu de pé, em atitude respeitosa e atenta.

— Este é o mordomo, senhor — explicou o agente. — Chama-se Pyne.

Markham estudou o indivíduo detidamente. Teria uns sessenta anos. Suas feições eram acentuadamente acromegálicas, distorção que se estendia por todo o corpo. Mãos grandes e pés chatos e disformes. O traje, embora cuidadosamente passado, lhe sentava mal, o colarinho alto era demasiado grande. Os olhos pálidos e aquosos se ocultavam sob espessas sobrancelhas grisalhas, e a boca era um talho em um rosto doentio e balofo.

Fora de sua manifesta ausência de simpatia física, dava não obstante a impressão de astúcia e competência.

— Então é você o mordomo dos Dillard, não? — murmurou Markham. — Há quanto tempo está com a família, Pyne?

— Vai para dez anos, senhor.

— Você deve ter entrado para o serviço do professor, quando ele renunciou à sua cátedra da universidade, não?

— Creio que sim, senhor. — A voz de Pyne era profunda e estrondosa.

— Que sabe da tragédia desta manhã?

Apesar de ter feito Markham a pergunta repentinamente na esperança, segundo creio, de surpreender algum assentimento, Pyne recebeu-a com a maior impassibilidade.

— Absolutamente nada, senhor. Eu ignorava o que havia sucedido até que o professor Dillard, que estava em sua biblioteca, me mandou chamar para que fosse procurar o Sr. Sperling.

— Então ele lhe contou a tragédia?

— O senhor disseme: "Robin foi assassinado e queria que você fosse à procura do Sr. Sperling e lhe comunicasse que eu desejava vê-lo". Isto é tudo, senhor.

— Está você seguro de que ele disse "assassinado", Pyne? — interrompeu Vance.

Pela primeira vez o mordomo hesitou e em seus olhos apareceu um brilho de astúcia, mas...

— Sim, senhor. Estou seguro de que sim. "Assassinado", esta é a palavra.

— E você viu o corpo do Sr. Robin quando saiu para cumprir a ordem? — prosseguiu Vance, enquanto sua vista traçava indolentemente um desenho na parede.

Nova hesitação.

— Sim, senhor. Eu abri a porta do porão e vi o corpo do pobre homem...

— Uma grande impressão deve ter-lhe causado, Pyne

— observou friamente Vance. — Por acaso, você tocou no corpo do pobre homem... ou na flecha... talvez no arco?

Os olhos aquosos de Pyne brilharam um momento.

— Não... certamente que não... Para quê?

— É verdade — suspirou Vance contristado. — Mas você viu o arco?

O homem olhou de soslaio, como se procurasse ver mentalmente.

— Não poderia dizê-lo, senhor. Pode ser que sim, pode ser que não. Não me recordo.

Vance pareceu perder todo interesse por ele e Markham continuou o interrogatório.

— Disseram-me, Pyne, que o Sr. Drukker veio aqui esta manhã, às nove e meia. Você viu-o?

— Sim, senhor. Sempre entra pela porta do porão. Ao passar, deu-me bom dia. Eu estava na despensa, em cima da escada.

— Retirou-se pelo mesmo lugar?

— Parece-me que sim, senhor. Embora, quando ele se foi eu estivesse em cima. Vive na casa dos fundos.

— Eu sei. — Markham inclinou-se para diante. — Presumo que foi você quem recebeu esta manhã o Sr. Sperling e o Sr. Robin?

— Sim, senhor, cerca das dez horas.

— Viu-os depois, ou ouviu alguns dos seus comentários, enquanto esperavam aqui na sala?

— Não, senhor, eu estive ocupado a maior parte da manhã arrumando os aposentos do Sr. Arnesson.

— Ah! — Vance dirigiu o olhar até o homem. — Ficam na parte dos fundos, no segundo pavimento, não? É o quarto com balcão, não é exato?

— Sim, senhor.

— Muito interessante... E foi desse balcão que o professor Dillard viu pela primeira vez o cadáver do Sr. Robin. Como pôde ter entrado no quarto, sem que você o soubesse? Segundo creio, você disse que o primeiro conhecimento que teve da tragédia foi quando o professor Dillard o chamou à biblioteca para que fosse em busca do Sr. Sperling.

O rosto do mordomo voltou-se branco e pastoso e notei que seus dedos se crispavam nervosamente.

— Talvez eu tenha saído por um instante dos aposentos do Sr. Arnesson — explicou ele com grande esforço. — Sim... é muito provável. Na realidade, senhor, agora me recordo de haver ido ao armário...

— Oh, sem dúvida! — Vance parecia ter caído num estado de letargia.

Markham fumou um pouco. Concentrou seu olhar na mesa.

— Veio alguém mais a esta casa hoje de manhã, Pyne? — perguntou.

— Ninguém, senhor.

— Então, pode você sugerir alguma explicação do que se passou?

O homem sacudiu fortemente a cabeça e olhou para o ar com seus olhos aquosos.

— Não, senhor. O Sr. Robin parecia um jovem agradável e benquisto. Não era desses que induzem ao assassinato... se o senhor compreende o que quero dizer.

Vance levantou o olhar.

— Não posso dizer que eu, pessoalmente, compreenda com exatidão o que você quer dizer, Pyne. Como sabe você que não foi um acidente?

— Eu não sei, senhor — foi a resposta serena. — Mas conheço algo da arte de atirar flechas, se me permite que o diga, e vi imediatamente que o senhor Robin tinha sido morto por uma flecha de caça.

— Você é muito observador, Pyne, — disse Vance, movendo a cabeça — e bastante correto nas suas observações.

Era claro que não se podia colher do mordomo nenhuma informação direta. Por isso, Markham o despediu abruptamente, ordenando ao mesmo tempo a Heath que fizesse entrar a cozinheira. Quando esta entrou, notei de imediato uma semelhança entre o pai e a filha. Era ela uma mulher desalinhada, de uns 40 anos, também alta, rosto angular, delgado e comprido. Mãos e pés grandes. Evidentemente na família Pyne o hiperpituitarismo era hereditário.

Depois de algumas perguntas preliminares, ficamos sabendo que era viúva, que se chamava Beedle e que com a morte de seu marido, há cinco anos, e por recomendação de Pyne havia entrado para o serviço do professor Dillard.

— A que horas saiu você de casa esta manhã? — perguntou-lhe Markham.

— Pouco depois das dez e meia. — Beedle parecia intranqüila e alerta. Sua voz era defensivamente agressiva.

— E a que horas voltou?

— Perto das doze e meia. Aquele homem deixou-me entrar — ela olhou rancorosamente para Heath — e tratou-me como se eu tivesse cometido um crime.

Heath sorriu.

— A hora é exata, Sr. Markham. A senhora se incomodou porque não a deixei descer.

Markham meneou a cabeça.

— Sabe algo do que sucedeu aqui esta manhã? — continuou ele estudando-a muito de perto.

— Como quer que saiba se estive toda a manhã no mercado de Jefferson?

— Viu o Sr. Robin, ou Sr. Sperling?

Ao descerem para a sala do clube, passaram em frente à cozinha, pouco antes de eu sair.

— Ouviu você algo do que disseram?

— Não costumo escutar.

Markham irritou-se e ia falar qualquer coisa, quando Vance, dirigindo-se suavemente a ela, disselhe:

— O procurador do distrito pensou que talvez a porta estivesse aberta, podendo assim escutar, ainda que não o quisesse.

— É possível que a porta estivesse aberta, porém eu não ouvi nada — contestou, enfadada.

— Então você não podia dizer-nos se no quarto havia alguma outra pessoa.

Beedle semicerrou os olhos e dirigiu a Vance um olhar calculador.

— É possível que houvesse algum outro — disse ela lentamente. — Na realidade, creio ter ouvido a voz do Sr. Drukker. A mulher destilava veneno e a sombra de um sorriso malévolo percorreu seus lábios delgados. — Pela manhã, cedo, esteve com o Sr. Arnesson.

— Oh, sim! — Vance se surpreendeu ante semelhante notícia. — E você viu-o?

— Eu o vi entrar, porém não o vi sair... Ou, pelo menos, eu não notei. É um homem que entra e sai às furtadelas a toda hora.

— Às furtadelas? Hum!... A propósito, por que porta você saiu quando foi ao mercado?

— Pela da frente. Desde que a Srta. Belle fez do porão um clube, saio sempre pela porta principal.

— Então você não entrou esta manhã neste aposento? — Não.

Vance ergueu-se na cadeira.

— Obrigado por tudo, Beedle. Pode ir.

Assim que a mulher se retirou, Vance levantou-se e foi à janela.

— Estamos gastando demasiadas energias em coisas que não interessam, Markham — disse ele. — Não chegaremos a nada molestando a criadagem e interrogando os da casa. Há um muro psicológico que é preciso derrubar, antes de poder penetrar nas trincheiras inimigas. Todos, neste assunto, reservam algo que lhe convém e temem que se lhes escape. Até agora nos têm dito o que sabem mais ou menos. Desesperante, por certo. Nada do que ouvimos tem ligação. E quando os sucessos cronológicos não se ajustam, pode ter a segurança de que os pontos endentados do contato foram deliberadamente retorcidos. Não encontrei uma articulação clara em todos esses relatos que nos fizeram ouvir.

— O mais provável é que faltem as conexões — redargüiu Markham — e nunca as encontraremos se abandonarmos os interrogatórios.

— Você é demasiado confiante. — Vamos para a mesa. — Quanto mais perguntarmos, mais longe iremos do assunto. Nem o próprio professor Dillard nos disse toda a verdade. Há algo que oculta... alguma suspeita que não deixa escapar. Por que recolheu ele o arco? Arnesson pôs o dedo na chaga quando lhe fez a mesma pergunta. Astuto, este Arnesson. Depois temos a nossa jovenzinha atleta, de pernas musculosas. Está enredada em vários assuntos amorosos e trata de salvar-se e aos seus, sem culpar a ninguém. Um desígnio de louvor, porém não conducente a uma verdade livre de alterações. Pyne tem também idéias. Aquela sua máscara facial deixa ocultos muitos pensamentos arrebatadores. Porém, nunca exploraremos sua rusticidade sobrecarregando-o com perguntas. Algo singular também a respeito dos seus trabalhos matinais. Disse que estivera no quarto de Arnesson toda a manhã; e, não reparou que o professor havia ido para o balcão do referido quarto, a fim de tomar sol. Aquela sua saída, para ir até o armário... é muito capciosa. Além disso, Markham, deixe que seu espírito voe ao redor do conto da viúva Beedle. A ela não agrada o supersocial Drukker. E, quando viu uma ocasião de envolvê-lo no assunto, aproveitou-a. Ela "julgou" ter ouvido sua voz no quarto do clube. Porém, será certo? Quem sabe? É verdade que ele podia ter-se demorado entre as fundas e dardos, em seu caminho de retirada, reunindo-se com ele, mais tarde, Robin e Sperling... Sim, é um ponto que tem de ser investigado. Em uma palavra, impõe-se um pouco de conversação cortês com o Sr. Drukker.

Neste momento, ouviram-se passos que indicavam que alguém descia as escadas da frente. Era Arnesson, que entrou na sala.

— E quem matou Cock Robin? — perguntou ele com um sorriso de sátiro.

Markham levantou-se, aborrecido, e estava a ponto de protestar por semelhante impertinência, porém Arnesson levantou a mão e disse:

— Um momento, por favor. Estou aqui para oferecer meus exaltados serviços à causa nobre da justiça... da justiça mundana, compreendem. Filosòficamente, é certo, não existe tal coisa. Se verdadeiramente houvesse justiça, estaríamos todos numa temporada dentro da estância cósmica. — Sentou-se defronte a Markham e cèpticamente riu entre dentes. — O fato é que a triste e precipitada viagem do Sr. Robin clama por minha natureza científica. É um ótimo problema de método. Tem decididamente um sabor matemático... sem termos indivisíveis, compreende, com números inteiros bem claros, com certas quantidades desconhecidas, por determinar. Pois bem, eu sou o gênio que o resolverá.

— Qual seria a sua solução, Arnesson? — Markham conhecia e respeitava a inteligência do homem e pareceu de pronto sentir um propósito sério debaixo de sua atitude frívola e burlesca.

— Ah! Ainda não desenvolvi a equação. — Arnesson tirou do bolso um velho cachimbo, apertando-o, afetuosamente. — Sempre tive desejos de atuar como detetive em um plano terreal... é a curiosidade insaciável e a natural investigação do físico, sabe? E há tempos que tenho uma teoria segundo a qual a ciência matemática pode ser vantajosamente aplicada às trivialidades da nossa vida neste insignificante planeta. No universo não há nada mais que leis... a menos que Eddington tenha razão e que não exista lei nenhuma... e eu não vejo razão bastante para que a identidade e posição de um criminoso não possa ser determinada da mesma maneira como Leverrier calculou a massa e o calendário de Netuno a partir dos desvios observados na órbita de Urano. Você se recorda de como, depois de seus cálculos, ele disse a Galle, o astrônomo berlinês, que procurasse o planeta em uma longitude especificada da eclíptica. — Arnesson fez uma pausa e encheu o cachimbo.

— Agora, Sr. Markham — continuou enquanto eu procurava descobrir se ele falava sério ou não — gostaria de aproveitar a oportunidade para aplicar a este absurdo enredo os meios puramente racionais usados por Leverrier no descobrimento de Netuno. Porém, devo ter os dados sobre as perturbações da órbita de Urano, como se disséssemos... isto é, devo conhecer todos os fatores variáveis da equação. O favor que vim pedir aqui é que vocês confiem em mim e não me ocultem absolutamente nada do que saibam do assunto. Uma espécie de sociedade intelectual. Eu resolverei o problema para vocês, do ponto de vista científico. Será um esporte magnífico, além de que incidentalmente me agradaria provar por minha teoria que a matemática forma a base da verdade, não importando quão afastada possa estar das abstrações escolásticas. — Por fim acendeu seu cachimbo e se recostou na cadeira. — Negócio feito?

— Para mim é um prazer não lhe ocultar nada, Arnesson — observou Markham depois de uma breve pausa. — Mas não posso prometer-lhe revelar tudo o que haja de agora em diante. Poderia ir contra os fins da justiça e dificultar nossa investigação.

Vance, que se havia sentado com os olhos semicerrados, aparentemente enfastiado pelo surpreendente pedido de Arnesson, voltou-se para Markham com um sinal positivo de animação.

— Em verdade, não vejo por que não deveríamos dar ao Sr. Arnesson uma ocasião de transportar esse crime aos domínios da matemática aplicada. Estou seguro de que ele será discreto e que usará nossa informação só para propósitos científicos. E... nunca se sabe, verdade?... poderemos necessitar de seu auxílio altamente disciplinado antes de termos terminado este caso tão fascinante.

Markham conhecia Vance muito bem para compreender que a sua sugestão não havia sido feita impensadamente, e eu que não tive a mínima surpresa quando, enfrentando Arnesson, ele disse:

— Muito bem. Facilitar-lhe-emos toda informação de que o senhor necessite para poder desenvolver a sua fórmula matemática. Há algo que lhe interessa saber agora?

— Oh, não! Até este momento conheço os pormenores que vocês possam saber. Eu tratarei de espremer Pyne e Beedle quando vocês saírem. Se eu resolver este problema e determinar a posição exata do criminoso, não encerrarei meus descobrimentos como fez Sir George Airy com os do pobre Adams quando submeteu seus cálculos netunianos anteriores aos de Leverrier...

Neste instante abriu-se a porta e o agente uniformizado que estava estacionado no pórtico entrou seguido de um estranho.

— Este cavalheiro diz que deseja ver o professor — anunciou com radiante suspeita, e virando-se em seguida para Markham com um movimento de cabeça indicou: — Aí está o procurador do distrito. Conte-lhe os seus problemas.

O recém-chegado parecia um tanto desconcertado. Era esbelto, bem vestido, com um ar inequívoco de refinamento. Aparentava uns cinqüenta anos. Seu rosto mantinha um aspecto de juventude perene. O cabelo era ralo e grisalho, o nariz um tanto afilado e o queixo pequeno, porém de nenhum modo débil. A característica mais notável residia naqueles olhos situados sob uma testa ampla e alta. Eram os olhos de um sonhador contrariado e desiludido... meio tristes, meio ressentidos, como se a vida o houvesse ludibriado deixando-o infeliz e amargurado. Estava a ponto de dirigir-se a Markham, quando avistou Arnesson.

— Oh, bom dia, Arnesson — disse ele com voz tranqüila e bem modulada. — Espero que não haja nada de mau ou errado.

— Só uma morte. Pardee — replicou o outro, sem lhe dar maior importância. — A proverbial tormenta num copo d'água.

Markham sentou-se molestado pela interrupção.

— Em que posso ser-lhe útil, senhor? — perguntou ele.

— Espero não haver sido um intruso — disse o homem, desculpando-se. — Sou amigo da casa. Moro no outro lado da rua e notei que algo de desusado havia acontecido aqui. Ocorreu-me então que podia ser útil de uma forma ou de outra.

Arnesson riu entredentes.

— Meu estimado Pardee! Por que encobre sua curiosidade natural com o manto da retórica?

Pardee corou.

— Asseguro-lhe, Arnesson, que...

Ao começar a falar, foi interrompido por Vance.

— O senhor diz que vive do outro lado da rua. Esteve por acaso olhando esta casa, durante a manhã?

— Nem tanto, senhor. Meu gabinete dá, entretanto, para a Rua 75 e é certo que estive sentado perto da janela quase toda a manhã. Mas estive escrevendo. Quando, depois de almoçar, voltei para meu trabalho, notei muita gente, o carro da polícia, assim como o agente uniformizado, que estava na porta.

Vance esteve examinando-o com o canto do olho.

— Viu entrar ou sair desta casa alguém esta manhã, Sr. Pardee?

O homem meneou a cabeça lentamente.

— Ninguém em particular. Notei a presença dos dois jovens amigos da Srta. Dillard, que vieram perto das dez horas, e vi Beedle que saía com sua cesta para o mercado. Isto é tudo de que me recordo.

— Viu retirar-se algum dos dois?

— Não me lembro. — Pardee franziu o cenho. — Não obstante, creio que um deles saiu pela porta do pátio. Mas é só uma impressão.

— A que horas seria?

— Verdadeiramente não poderia dizer-lhe. Talvez uma hora mais ou menos depois da sua chegada. Eu não poderia ser mais específico.

— Não se recorda de nenhuma outra pessoa que tenha entrado ou saído daqui?

— Vi a Srta. Dillard, quando voltou da quadra de tênis, pelas doze e meia, no momento em que me chamavam para almoçar. Para dizer a verdade, saudou-me com a raqueta.

— E ninguém mais?

— Receio que não. — Havia em sua resposta um sentimento inequívoco.

— Um dos jovens que o senhor viu entrar aqui foi morto — disse Vance.

— O Sr. Robin, cognominado Cock Robin — ajuntou Arnesson com uma careta cômica que me chocou.

— Meu Deus! Que desgraça! — Pardee parecia verdadeiramente assombrado. — Robin? Não era o campeão de arco-e-flecha no clube de Belle?

— Sua única pretensão para a imortalidade. Este é o homem.

— Pobre Belle! — Algo nos modos do indivíduo fez com que Vance o observasse agudamente. — Espero que esta tragédia não a tenha transtornado.

— Ela está naturalmente dramatizando tudo — replicou Arnesson. — Aliás, a polícia também o faz. Muita teatralidade para nada em particular. A terra está coberta de "pequenas massas serpenteantes de hidratos de carbono", como Robin, e às quais nos referimos globalmente como humanidade.

Pardee sorriu com tolerante tristeza. Evidentemente estava familiarizado com o cepticismo de Arnesson. Então apelou para Markham.

— Permite-me que veja a Srta. Dillard e o professor?

— Oh! À vontade! — Foi Vance quem respondeu antes que Markham opinasse. — O senhor os encontrará na biblioteca.

O homem abandonou o aposento com um cortês murmúrio de agradecimento.

— É um tipo curioso — comentou Arnesson, quando Pardee já não podia ouvi-lo. — Cheio de dinheiro, leva uma vida ociosa. Sua única paixão é resolver problemas de Xadrez...

— De Xadrez? — Vance levantou o olhar com interesse. — E porventura John Pardee, o inventor do famoso gambito de seu nome?

— Ele mesmo. — O rosto de Arnesson contraiu-se humoristicamente. — Passou vinte anos desenvolvendo uma ofensiva que servia para juntar novos pontos decimais ao jogo. Escreveu um livro sobre o mesmo. Então continuou fazendo prosélitos como um cruzado diante das portas de Damasco. Sempre foi um apaixonado do xadrez, tomando parte nos torneios e correndo todo o mundo para assistir às várias partidas desse jogo. Mais tarde, conseguiu que seu sistema fosse experimentado. Causou grande perturbação entre os infracampeões do Clube de Xadrez Manhattan. Então, o pobre Pardee organizou uma série de torneios magistrais, pagando todas as despesas. Isto lhe custou uma fortuna. Certamente ele estipulava que se jogasse exclusivamente o sistema Pardee. Foi algo muito triste. Quando homens como o Dr. Lasker, Capablanca, Rubinstein e Finn se puseram a combatê-lo, tudo fracassou. Quase todos os que jogavam por esse sistema perdiam. Foi desqualificado de forma ainda pior que o malfadado sistema de Rice. Pardee sofreu um golpe muito rude, que lhe embranqueceu os cabelos e lhe tirou toda a elasticidade dos músculos. Em uma palavra, ficou envelhecido. É um homem destroçado.

— Conheço a história desse sistema — murmurou Van-ce com seu olhar preso no teto. — Eu mesmo o empreguei. Eduard Lasker me ensinou a jogá-lo...

O agente uniformizado apareceu de novo no portal e fez sinal a Heath para que se acercasse. O sargento levantou-se com presteza; evidentemente lhe aborrecia a conversação sobre xadrez. Foi ao vestíbulo. Pouco depois voltava com uma folhinha de papel.

— Isto sim que tem graça, senhor — disse ele entregando-a a Markham. — O agente de fora viu que saía da caixa do correio e decidiu examiná-la. Que lhe parece, senhor?

Markham olhou-a com assombro e confusão, passando-a a Vance sem nada dizer. Eu me levantei e olhei por cima do seu ombro. O papel era do tamanho convencional para máquina de escrever, tendo sido dobrado para que entrasse na abertura da caixa do correio. Continha várias linhas escritas à máquina com tipo "elite" e com uma fita de um azul esmaecido.

A primeira linha dizia:

"Joseph Cochrane Robin está morto."

A segunda linha perguntava:

"Quem matou Cock Robin?"

Embaixo estava escrito:

"Sperling quer dizer pardal."

No canto inferior direito, no lugar da assinatura, estavam estas duas palavras, em letras maiúsculas:

"O BISPO."


V

 

UM GRITO DE MULHER

 

(Sábado, 2 de abril — 14h30)


Depois que Vance olhou a estranha mensagem com a sua firma ainda mais estranha, procurou o monóculo com aquela lenta deliberação que, segundo eu sabia, denotava um agudo interesse. Tendo colocado a lente, estudou o papel com suma atenção. Em seguida, passou-o a Arnesson, dizendo-lhe:

— Aqui tem você um fator valioso para a sua equação. — Seus olhos estavam zombeteiramente fixados no indivíduo.

Arnesson examinou a nota com ar desdenhoso, e com uma careta colocou-a na mesa.

— Espero que o clero não esteja envolvido neste problema. São notoriamente anticientíficos. Não se pode atacá-los com matemática. "O Bispo" — murmurou. — Não conheço nenhum cavalheiro que vista vestes talares. Creio que destrinçarei este enigma quando fizer meus cálculos.

— Se o destrinçar, Sr. Arnesson — replicou Vance seriamente — receio que sua equação venha abaixo. Esta carta secreta parece-me muito significativa, não sei por quê. Por certo, se me permite uma nova opinião, dir-lhe-ei que é a coisa mais matemática que apareceu neste caso até agora. Elimina da situação todo o caso ou acidente. É por assim dizer o g, a constante gravitacional que dirigirá todas as nossas equações.

Heath havia olhado o papel com solene desgosto.

— Algum desequilibrado foi quem escreveu isto, Sr. Vance — declarou o sargento.

— Indubitavelmente foi um louco, sargento — concordou Vance. — Mas não podemos desprezar o fato de que esse louco particular deve ter sabido muitos pormenores íntimos e interessantes... isto é, que o sobrenome do Sr. Robin é Cochrane, que o referido cavalheiro foi morto por um flechaço, e que o Sr. Sperling estava nas vizinhanças no momento da morte de Robin. Mais ainda, esse bem-informado maníaco deve ter meditado muito o assassinato, pois a nota foi evidentemente escrita e posta na caixa do correio antes que os agentes chegassem ao lugar.

— A menos que — replicou tenazmente Heath — seja um desses ociosos que, inteirado do que sucedera, meteu o papel na caixa, quando o agente estava de costas.

— Tendo corrido antes à casa e escrito à máquina a mensagem, não? — Vance meneou a cabeça sorrindo tristemente. — Não, sargento, receio que a sua teoria não tenha base alguma.

— Então, que diabo significa isto? — perguntou Heath truculentamente.

— Não tenho a menor idéia. — Vance bocejou e levantou-se da cadeira.

— Que lhe parece, Markham, se dedicarmos uns breves instantes a este Sr. Drukker, a quem Beedle tanto odeia?

— Drukker! — exclamou Arnesson com considerável surpresa. — Que tem que ver o assunto com ele?

— O Sr. Drukker — explicou Markham — veio esta manhã visitar o senhor e pode ter visto Robin e Sperling antes que tivesse ido embora para a sua casa. — Hesitou um instante. — Quer vir conosco?

— Não, obrigado. — Arnesson limpou seu cachimbo e levantou-se. — Tenho muitos trabalhos para corrigir. Não obstante, não seria demais se Belle os acompanhasse. Lady Mae é um tanto peculiar...

— Lady Mae?

— Oh, enganei-me! Havia esquecido que vocês não a conheciam. Todos a chamamos de Lady Mae. É um título de cortesia que agrada muito à pobrezinha. Refiro-me à mãe de Drukker. É um tipo curioso. — Pôs o dedo na fronte significativamente. — Um pouco pancada, porém perfeitamente inócua. É uma monomaníaca. Crê que o sol sai e se oculta em Drukker. Cuida dele como se fosse um menino. Triste situação... Sim, é melhor que levem Belle com vocês. Lady Mae gosta muitíssimo dela.

— Boa idéia, Sr. Arnesson — disse Vance. — Faça o favor de perguntar à Srta. Dillard se quer ter a bondade de acompanhar-nos.

— Com muito prazer.

Arnesson despediu-se com um sorriso ao mesmo tempo protetor e satírico. Um instante depois a Srta. Dillard estava conosco.

— Sigurd disseme que os senhores desejam ver Adolph. Ele terá muito gosto em recebê-los, porém a pobre Lady Mae altera-se tanto por qualquer coisa...

— Esperamos não molestá-la absolutamente — disse Vance tranqüilizadoramente. — Mas o caso é que esta manhã esteve aqui o Sr. Drukker e a cozinheira disse que crê ter ouvido ele falar com os Srs. Sperling e Robin, no quarto do clube. Talvez possa ajudar-nos em algo.

— Estou certa de que assim o fará, se puder — respondeu a moça, com ênfase. — Mas tenham muito cuidado com Lady Mae, sim?

Havia em sua voz um tom implorante e protetor. Vance observou-a cuidadosamente.

— Fale-nos da Sra. Drukker, ou Lady Mae, antes que a visitemos. Por que devemos ter tanto cuidado?

— Sua vida foi uma tragédia — explicou Belle. — Foi outrora uma grande cantora... não uma artista de segunda categoria, mas uma prima-dona de brilhante futuro (1). Ela se casou com um crítico famoso de Viena, Otto Drukker (2), e quatro anos mais tarde nasceu Adolph. Um dia, no Wiener Prater, quando o bebê tinha dois anos, caiu-lhe dos braços. Desde aquele momento sua vida mudou por completo. A coluna vertebral de Adolph se danificou, ficando o menino aleijado. Lady Mae desesperou-se. Ela mesma se considerava culpada e abandonou a carreira para dedicar-se por completo ao filho. Quando o esposo morreu um ano depois, trouxe Adolph para a América, onde havia passado parte da sua juventude, e comprou a casa onde agora vive. Toda a sua vida foi dedicada a Adolph, que cresceu corcunda. Tudo sacrificou por ele e cuida-o como se fosse um bebê...

(1) Mae Brenner ainda deve ser lembrada pelos amantes europeus da boa música. Estreou com a idade, sem precedentes, de 23 anos no papel de Sulamita na Rainha de Sabá, na Casa Imperial de ópera, em Viena; embora seu êxito mais grandioso fosse antes na Desdêmona em Otelo, o último papel que cantou antes de se retirar.

(2) O nome certamente era escrito originariamente Drucker. A troca, possivelmente alguma tentativa de americanização, foi feita pela senhora Drukker, quando fixou residência nos E.E.U.U.


Uma sombra cruzou pelo seu rosto e continuou:

— Às vezes penso... pensamos que ela ainda o imagina um menino. Tem-se tornado mórbida a respeito dele. Mas é a doce e terrível morbidez de um tremendo amor materno... uma espécie de loucura, de ternura, segundo diz o tio. Durante os últimos meses tornou-se muito estranha... esquisita. Encontrei-a muitas vezes cantarolando velhas canções de berço alemãs, com os braços cruzados sobre o peito como se — Oh, isso parece tão sagrado e tão terrível! — como se estivesse embalando uma criança. E tornou-se terrivelmente ciumenta por Adolph. Está ressentida com os outros homens. Sem ir mais longe, a semana passada levei o Sr. Sperling para visitá-la... constantemente vamos vê-la, parece tão só e desditosa... pois bem, levei o Sr. Sperling e ela o olhou quase furiosamente e disselhe: "Por que você não é também um aleijado?"

A jovem fez uma pausa e observou nossas fisionomias.

— Compreendem agora por que lhes rogo que tenham cuidado?... Lady Mae pode pensar que tenhamos ido causar algum mal a Adolph.

— Evitaremos tudo que a possa molestar — assegurou Vance com simpatia.

Então, ao tempo que caminhávamos para o vestíbulo, fez-lhe uma pergunta que me recordou o breve exame mental da casa de Drukker aquela tarde.

— Onde se acha o quarto da Sra. Drukker?

A moça dirigiu-lhe um olhar de assombro, mas respondeu em seguida:

— No lado oeste da casa... Sua janela projetada para fora dá para o campo de prática de tiro de flecha.

— Ah! — Vance tirou sua cigarreira e cuidadosamente escolheu um Régie. — Freqüenta muito este mirador?

— Muitíssimo. Lady Mae sempre observa quando estamos atirando ao alvo; não sei por quê. Estou certa de que sofre ao ver-nos, pois Adolph não é bastante forte para lançar uma flecha. Várias vezes fez tentativas; porém, teve que abandonar, porque se fatigava.

— Olha como praticam vocês, porque isto a tortura... é uma espécie de auto-imolação, sabe? Estas situações são muito penosas.

Vance falava com ternura tal que para quem não conhecesse sua verdadeira natureza pareceria estranho.

— Talvez — ajuntou no momento em que saíamos da casa pela porta do porão — fosse melhor que por agora só víssemos a Sra. Drukker. Isto suavizaria qualquer suspeita que nossa visita pudesse causar-lhe. Poderíamos chegar até o seu quarto, sem que o filho soubesse?

— Oh, sim. — A moça estava satisfeita com a idéia. — Podemos entrar pelos fundos. O gabinete de Adolph, onde ele costuma trabalhar, fica na frente.

Quando chegamos, encontramos a Sra. Drukker sentada na varanda fechada em um canapé antigo, entre almofadões. A Srta. Dillard saudou-a como se fosse sua filha, inclinando-se sobre ela e beijando-a carinhosamente na testa.

— Algo horrível passou-se esta manhã em minha casa, Lady Mae — disse — e estes cavalheiros desejam falar com a senhora a respeito. Prometi-lhes que os traria aqui. Tem a senhora algum inconveniente em recebê-los?

O rosto pálido e trágico da Sra. Drukker se havia desviado da porta quando entramos, porém ela agora nos mirava horrorizada.

Lady Mae era uma mulher alta, delgada até à magreza. Suas mãos, que se apoiavam ligeiramente encurvadas nos braços do canapé, eram cheias de tendões e enrugadas como as garras das fabulosas harpias. Seu rosto, também delgado e profundamente enrugado, era um tanto atraente. Os olhos eram claros e vivos e o nariz estreito e dominante. Embora já devesse ter passado dos sessenta, seu cabelo era abundante e castanho.

Durante uns minutos permaneceu imóvel e silenciosa. Depois, suas mãos cerraram-se lentamente e seus lábios se abriram.

— De que necessitam os senhores? — perguntou com voz baixa e ressoante.

Sra. Drukker, — foi Vance quem respondeu — como a Srta. Dillard acaba de dizer-lhe, uma tragédia ocorreu na casa ao lado esta manhã e desde que a sua janela é a única que dá exatamente para o campo de exercícios, pensamos que possivelmente haja visto algo que pudesse ajudar-nos em nossa investigação.

A vigilância da mulher se relaxou perceptivelmente, porém demorou um pouco antes de responder.

— E que aconteceu?

— Um Sr. Robin foi morto. Talvez a senhora o tenha conhecido.

— O atirador de flechas — o campeão de Belle?... Se o conheço. Era um rapagão forte que podia sustentar um arco pesado sem se fatigar. Quem o matou?

— Não o sabemos. — Vance, apesar de seu ar negligente, a observava com astúcia. — Porém, como foi morto diante de sua sacada, esperávamos que a senhora soubesse de alguma coisa.

As pálpebras da senhora Drukker caíram astutamente e seus dedos se entrelaçaram com uma espécie de satisfação deliberada.

— Está o senhor seguro de que foi morto lá fora?

— Pelo menos, foi lá que o encontramos — replicou Vance com reserva.

— Enfim... Mas, que posso fazer para ajudar os senhores? — Dito isto recostou-se languidamente.

— Notou a senhora a presença de alguém no campo de exercícios esta manhã? — perguntou Vance.

— Não! — A negativa foi rápida e enfática. — Não vi ninguém. Durante todo o dia não vim à janela.

Vance cruzou seu olhar com o da mulher e suspirou.

— É uma lástima — murmurou. — Se a senhora tivesse olhado esta manhã pela janela, possivelmente teria presenciado a tragédia... O Sr. Robin foi morto por um flechaço e, ao que parece, não há motivo razoável que justifique isto.

— Sabe o senhor que o mataram com um flechaço? — perguntou ela, e suas faces pálidas se cobriram de um leve rubor.

— Essa foi a informação do médico da polícia. Quando encontramos o corpo tinha uma flecha cravada no coração.

— Certamente. Isto parece perfeitamente natural, não?... Uma flecha cravada no coração de Robin!...

Ela falava como em sonho. Em seus olhos havia uma imagem longínqua e fascinante.

Produziu-se um silêncio forçado, durante o qual Vance se encaminhou para a janela.

— Incomoda-lhe que olhe por aqui?

Com dificuldade a mulher volveu de seu recolhimento.

— Absolutamente. O panorama não é muito formoso. Podem ver-se as árvores da Rua 76 até o norte e uma parte do pátio de Dillard até o sul. Porém, essa parede de ladrilhos é desconsoladora. Antes de edificarem o prédio de apartamentos, via-se daqui o bonito panorama do rio.

Vance examinou durante um momento o campo de exercícios.

— Sim, — observou, — se tivesse assomado à janela esta manhã, poderia a senhora ter visto o que aconteceu. Daqui vê-se claramente o terreno e a porta do porão de Dillard... Que lástima! — Olhou o relógio. — O seu filho está em casa, Sra. Drukker?

— Meu filho! Meu bebê! Que querem dele? — Sua voz se elevou, lastimosamente e seus olhos se fixaram em Vance envenenados de ódio.

— Nada de importante — disse este pacificamente. — Talvez tenha visto alguém...

— Não viu ninguém! Não podia ter visto ninguém, pois não esteve aqui. Saiu muito cedo e ainda não voltou.

Vance olhou com pesar a mulher.

— Esteve fora toda a manhã? — perguntou. — Sabe a senhora onde ele se encontra?

— Eu sempre sei onde ele está — respondeu ela orgulhosamente. — Não me oculta nada.

— Ele lhe disse aonde ia esta manhã? — insistiu Vance em tom suave.

— Creio que sim, porém neste momento me esqueci. Deixe-me pensar... — Seus longos dedos tamborilavam no braço do canapé e seus olhos se revolviam intranqüilos. — Não me posso recordar; mas lhe perguntarei assim que voltar.

A Srta. Dillard tinha estado observando a mulher com perplexidade crescente.

— Mas, Lady Mae, Adolph esteve em nossa casa. Foi ver Sigurd...

A Sra. Drukker ergueu-se.

— Não é exata! — disse cortante, olhando a jovem quase com rancor. — Adolph tinha que ir à cidade por qualquer coisa. Não esteve em sua casa para nada... Eu sei que não esteve. — Seus olhos chisparam e ela olhou Vance desafiadoramente.

Era um momento desconcertante, porém o que se seguiu foi ainda mais doloroso.

A porta se abriu lentamente e de súbito os braços da Sra. Drukker se estenderam.

— Meu filhinho... meu bebê! — exclamou ela. — Vem aqui, querido.

O homem, porém, não avançou, permaneceu pestanejando seus olhinhos para nós, como uma pessoa que desperta em lugar desconhecido. Adolph Drukker tinha apenas metro e meio de altura. Seu aspecto era o típico congestionado dos corcundas. Suas pernas eram longas e delgadas e o tamanho do seu tronco arqueado e torcido parecia exagerado pela sua imensa cabeça semelhante a uma cúpula. Seu rosto, porém, indicava intelectualidade... um poder passional terrífico que chamava a atenção. O professor Dillard lhe havia chamado gênio matemático, e não se podia duvidar da sua erudição (1).

(1) Causou-me a mesma impressão que o general Homero Lee, quando o visitei em Santa Mônica, pouco antes de sua morte.


— Que significa isto? — perguntou com voz alta e trêmula olhando a Srta. Dillard. — São amigos seus, Belle?

A moça ia responder, porém Vance deteve-a com um gesto.

— A verdade é, Sr. Drukker, — explicou ele em tom grave — que na casa ao lado houve uma tragédia. Este cavalheiro é o Sr. Markham, procurador do distrito, e este outro o sargento Heath, do Departamento de Polícia. A pedido nosso, a Srta. Dillard acompanhou-nos até aqui para perguntar à senhora sua mãe se ela tinha notado algo de anormal no campo de exercícios esta manhã. A tragédia ocorreu mesmo fora da porta do porão da casa de Dillard.

Drukker projetou seu queixo para diante e olhou de soslaio.

— Uma tragédia, hem? Que classe de tragédia?

— Um Sr. Robin foi morto por um flechaço.

O rosto do homem começou a retorcer-se espasmodicamente.

— Robin morto? Morto?... A que horas?

— Provavelmente entre as onze e meio-dia.

— Entre onze e meio-dia? — Rapidamente o olhar de Drukker se desviou para a sua mãe. Parecia cada vez mais nervoso, e seus imensos dedos retorciam a bainha do casaco.

— Que foi que a senhora viu? — Seus olhos faiscavam ao encarar a mulher.

— Que queres dizer, filho? — A réplica era um murmúrio que encerrava imenso pânico. O rosto de Drukker se endureceu e a sugestão de um sorriso cômico torceu seus lábios.

— Quero dizer que foi a essa hora que ouvi um grito neste quarto.

— Não ouviste! Não... Não! — Ela conteve a respiração e meneou fortemente a cabeça. — Estás equivocado, filho. Eu não gritei esta manhã.

— Bem, alguém foi. — Havia na voz do homem uma implacabilidade iria. Logo depois de uma pausa ajuntou:

— O fato é que subi depois de ter ouvido o grito e escutei aqui na porta. Mas a senhora passeava de um lado para outro cantando Eia Popéia, portanto voltei ao meu trabalho.

A Sra. Drukker apertou o lenço contra o seu rosto, cerrando os olhos momentaneamente.

— Trabalhavas entre as onze e o meio-dia? — Sua voz ressoou agora com ansiedade reprimida. — Pois eu te chamei várias vezes...

— Eu a ouvi, porém não respondi. Estava muito ocupado.

— Sim, verdade? — Ela se voltou lentamente para a janela. — Pensei que não estavas em casa. Não me disseste que?...

— Eu lhe disse que ia à casa de Dillard. Mas, como Sigurd não estava, voltei pouco antes das onze.

— Não te vi entrar. — A energia da mulher se havia esgotado, recostando-se negligentemente com a vista posta no muro de tijolos do lado oposto. — E quando te chamei, ao ver que não respondias, acreditei que estavas fora.

— Saí da casa de Dillard pelo portão que dá para a rua e fui dar um passeio pelo parque. — A voz de Drukker mostrava irritação. — Depois entrei pela porta principal.

— E dizes que me ouviste gritar... Por que ia gritar, meu filho? Hoje não me doeram as costas.

Drukker franziu o cenho e seus olhinhos se moveram rapidamente de Vance para Markham.

— Ouvi alguém gritar... uma mulher... neste quarto — insistiu ele tenazmente — isto às onze e meia. — Então afundou-se em uma cadeira e olhou pensativamente para o chão.

Este diálogo intrincado entre mãe e filho enfeitiçou-nos a todos. Embora Vance permanecesse defronte de uma antiga estampa do século dezoito, perto da porta, mirando-a com absorção aparente, eu sabia que nenhuma palavra ou inflexão lhe tinha escapado. Agora girou em redor e, fazendo um sinal a Markham para que não interviesse, aproximou-se da Sra. Drukker.

— Sentimos muitíssimo, senhora, que a tenhamos molestado. Rogo-lhe que nos perdoe. — Fez uma inclinação de cabeça e se voltou para a Srta. Dillard.

— Acompanha-nos, ou prefere que vamos sós?

— Irei com os senhores — disse a moça. Foi até a Sra. Drukker, dizendo a esta, enquanto a abraçava:

— Sinto muitíssimo, Lady Mae.

Enquanto passávamos ao vestíbulo, Vance, como que refletindo, deteve-se. E, dando volta, disse a Drukker com um tom de voz casual embora urgente:

— Precisamos que o senhor venha conosco. O senhor conhecia Robin e pode sugerir-nos alguma coisa...

— Não vás com ele, filho! — exclamou a Sra. Drukker. Agora estava erguida em sua cadeira com o rosto contorcido de angústia e terror. — Não vás! São inimigos. Querem fazer-te mal...

Drukker se havia posto em pé.

— Por que não devo ir com eles? — replicou com petulância. — Quero averiguar este assunto. Pode ser, como dizem eles, que eu lhes seja de alguma utilidade. — E com um gesto de impaciência veio ter conosco.


VI

 

"EU", DISSE O PARDAL

 

(Sábado, 2 de abril — 15h)

 

Quando estávamos de novo na sala de Dillard, e uma vez que a Srta. Belle nos deixara para ir em busca de seu tio que se achava na biblioteca, Vance, sem preâmbulo algum, retomou o assunto que o preocupava.

— Não o quis interrogar, Sr. Drukker, diante da senhora sua mãe para não incomodá-la, porém, considerando que o senhor esteve aqui esta manhã pouco antes da morte do Sr. Robin, é necessário, como simples procedimento de rotina, que procuremos toda a informação que o senhor possa nos dar.

Drukker, que estava sentado perto da lareira, estendeu a cabeça cautelosamente, porém não respondeu.

— O senhor chegou aqui — continuou Vance — perto das nove e meia, segundo creio, para visitar Arnesson.

— Sim.

— Pelo campo de exercício e pela porta do porão?

— Como sempre. Para que dar uma volta ao quarteirão?

— Mas o Sr. Arnesson não estava em casa. Drukker meneou a cabeça e disse:

— Estava na Universidade.

— E ao ver que o Sr. Arnesson não estava em casa, o senhor se sentou um pouco na biblioteca com o professor Dillard, segundo parece, conversando sobre uma expedição de astrônomos à América do Sul.

— A expedição da Real Sociedade de Astronomia a Sobral para comprovar a deflexão einsteiniana — completou Drukker.

— Quanto tempo permaneceu o senhor na biblioteca?

— Menos de meia hora.

— E depois?

— Desci à sala do clube e li uma das revistas onde havia um problema de xadrez... um final da partida que se desenvolveu recentemente entre Shapiro e Marshall... como me interessou muito, tentei resolvê-la...

— Um momento, Sr. Drukker. — Na voz de Vance havia um tom de interesse. — Interessa-lhe o xadrez?

— Até certo ponto. Entretanto, não lhe dedico muito tempo. O jogo não é puramente matemático. Além disso, é insuficientemente especulativo para que interesse a um espírito completamente científico.

— Achou complicada a situação Shapiro-Marshall?

— Era mais uma questão de habilidade. — Drukker observava Vance astutamente. — Assim que descobri que um movimento de peão aparentemente inútil era a chave do impasse, a solução foi fácil.

— Quanto tempo lhe custou?

— Uma meia hora.

— Diremos até perto das dez e meia.

— Essa hora seria a mais aproximada. — Drukker afundou-se mais na poltrona, porém a sua disfarçada vigilância não diminuiu.

— Então você deve ter estado na sala do clube quando o Sr. Robin e o Sr. Sperling chegaram lá.

O homem não contestou de imediato e Vance, aparentando não perceber a sua hesitação, acrescentou:

— O professor Dillard disse que eles chegaram a casa perto das dez e que, depois de esperarem um pouco na sala, desceram ao porão.

— A propósito, onde está agora Sperling? — Os olhos de Drukker percorreram velozmente cada um de nós.

— Esperamo-lo aqui de um momento para outro — replicou Vance. — O sargento Heath mandou dois agentes buscá-lo.

As sobrancelhas do corcunda se ergueram.

— Ah! Então Sperling será trazido à força. — Ele pôs em pirâmide seus espatulados dedos e os olhou pensativamente. Em seguida, levantou lentamente os olhos para Vance. — O senhor perguntou-me se havia visto Robin e Sperling na sala do clube. Sim. Desciam, quando eu saía.

Vance recostou-se, estirando as pernas.

— Teve o senhor a impressão de que haviam tido, como dizemos por eufemismo, uma troca de palavras?

O homem considerou esta pergunta durante um certo tempo.

— Agora que o senhor menciona isto — disse ele por fim —, recordo-me de que as relações de ambos se haviam esfriado. Entretanto, não queria ser demasiado categórico neste ponto, pois eu saí da sala quase logo depois que eles entraram.

— Creio que o senhor disse que saiu pela porta do porão e depois pelo portão do muro que dá para a Rua 75. É exato?

Durante um momento, Drukker pareceu não querer responder, porém replicou, forçando indiferença:

— Exato. Pensei em dar um passeio pela margem do rio, antes de começar a trabalhar. Fui ao Riverside Drive, depois segui o caminho circular e voltei ao parque pela Rua 79.

Heath, com a sua suspeita habitual diante de todas as declarações feitas à polícia, fez a seguinte pergunta:

— Encontrou algum conhecido seu?

Drukker voltou-se irritado, porém Vance aproveitou a brecha.

— Isto não interessa, sargento. Se for necessário considerar este ponto, fá-lo-emos mais tarde. — Então, dirigindo-se a Drukker: — O senhor voltou do seu passeio um pouco antes das onze, conforme ouvi, e entrou em sua casa pela porta principal.

— Exato.

— Notou o senhor algo de extraordinário, esta manhã, por casualidade?

— Não vi nada mais do que lhe disse.

— E o senhor está seguro de ter ouvido a sua mãe gritar perto das onze e meia?

Vance permaneceu imóvel ao fazer-lhe esta pergunta, porém em sua voz se produziu uma nota ligeiramente distinta, fazendo com que Drukker se sobressaltasse um pouco.

Inclinou para frente seu corpo rechonchudo e olhou Vance com ameaçadora fúria. Seus olhinhos redondos faiscavam e seus lábios se moveram convulsivamente. Suas mãos trêmulas se dobraram e espalmaram como as de um homem em paroxismo.

— Que pretende o senhor? — perguntou com voz estridente de falsete. — Sim, ouvi-a gritar. A mim não interessa se ela o confirme ou negue. Mais ainda, eu a ouvi caminhar em seu quarto. Ela estava em seu quarto, compreenda-o bem, e eu estava no meu, entre as onze e as doze. E o senhor não pode provar outra coisa. Além do mais, não vou permitir que o senhor ou seja lá quem for me interrogue a respeito do que eu fazia ou onde estava... Não podem meter-se no que não lhes importa... estão ouvindo, senhores?

Sua ira era tão insana que eu pensei que ele fosse arrojar-se contra Vance. Heath se havia posto em pé, avançando, percebendo o perigo potencial do homem. Entretanto, Vance não se moveu. Continuou fumando languidamente e, quando a fúria do outro desapareceu, disse tranqüilamente e sem a mínima emoção:

— Não são necessárias mais perguntas, Sr. Drukker. E, verdadeiramente, não tem por que se incomodar. O fato é que me ocorreu que o grito da senhora sua mãe podia ajudar a estabelecer a hora exata do crime.

— Que tem que ver o grito dela com a hora da morte do Sr. Robin? Não lhes disse ela que não viu nada? — Drukker parecia exausto e se apoiou fortemente contra a mesa.

— Neste instante apareceu no umbral o professor Dillard. Atrás dele, Arnesson.

— Que sucede? — perguntou o professor. — Ouvi barulho aqui e desci. — Olhou friamente Drukker. — Não sofreu Belle bastante já para que você venha agora assustá-la?

Vance se havia levantado, porém, antes que pudesse falar, Arnesson avançou e moveu o seu dedo como que repreendendo Drukker.

— Adolph, é necessário que saiba conter-se. Você toma a vida com tão abominável seriedade... Você trabalhou tanto tempo com as magnitudes dos espaços interestelares que devia ter algum senso de proporção. Por que dar tanta importância a esta futilidade da vida sobre a terra? Drukker respirava ofegantemente.

— Esses porcos... — começou dizendo.

— Oh, meu caro Adolph! — Arnesson cortou-lhe a palavra. — Toda a raça humana está constituída de porcos. Por que particularizar?... Vamos, acompanhá-lo-ei à sua casa. — E segurando Drukker firmemente pelo braço, conduziu-o para baixo.

— Sentimos muito tê-lo incomodado, senhor — disse Markham ao professor Dillard. — O homem alterou-se por alguma razão desconhecida. Estas investigações são das mais desagradáveis, mas esperamos terminar muito breve.

— Assim o espero, Markham. E a respeito de Belle, tratem de evitar-lhe todo incômodo. Desejo falar com os senhores antes de irem.

Quando o professor Dillard se retirou para cima, Markham passeou, de um lado para outro da sala, com o cenho franzido e com as mãos nas costas.

— Que idéia tem de Drukker? — perguntou, detendo-se diante de Vance.

— Decididamente um tipo pouco agradável. Um enfermo física e mentalmente. Embusteiro congênito. Todavia astuto... oh, malditamente astuto. Um cérebro anormal... como amiúde se encontra nos aleijados do seu tipo. Às vezes, inclinam-se para um gênio construtivo, como no caso de Steinmetz, porém, muito freqüentemente tendem para uma especulação abstrusa, sobre linhas impraticáveis, como acontece com Drukker. Entretanto, nosso interrogatório deu seus frutos. Ele está ocultando algo que lhe agradaria dizer, porém não se atreve.

— Naturalmente, é possível — replicou Markham em tom de dúvida. — É muito suscetível no que se refere àquela hora, entre as onze e doze. E durante todo o tempo, olhava para você como um gato selvagem.

— Como uma doninha — corrigiu Vance. — Sim, eu estava percebendo seus olhares lisonjeiros.

— Apesar de tudo, não creio que tenha esclarecido nenhum ponto.

— Não — concordou Vance. — Não é muito o que sabemos, porém, pelo menos, temos alguma bagagem a bordo. Nosso excitável mago das matemáticas abriu algumas linhas de especulação muito interessantes. E a Sra. Drukker é bastante prolifera em possibilidades. Se soubéssemos o que eles juntos sabem, poderíamos encontrar a chave deste caso estúpido.

Heath estivera durante a hora passada observando com triste e fatigante desdém os procedimentos empregados. Agora, porém, mostrava-se combativo.

— Devo dizer-lhe, Sr. Markham, que estamos perdendo tempo. Para que servem todas essas conversas? É de Sperling que precisamos, e quando meus agentes o trouxerem e fizerem-no suar um pouco, teremos material de sobra para uma acusação. Estava enamorado da Srta. Dillard e tinha ciúmes de Robin... não só pela moça, como porque Cochrane sabia lançar essas flechas com maior destreza do que ele. Aqui mesmo brigaram. O professor ouviu-os. Sperling estava embaixo com Robin, segundo a evidência, uns minutos antes do assassinato...

— E — ajuntou Vance ironicamente — o nome dele significa "pardal". Quod erat demonstrandum. Não, sargento, isso é demasiado fácil. Desenvolve-se como um jogo de Canfield com as cartas empilhadas, visto que isto foi planejado com demasiado cuidado para que a suspeita recaísse diretamente sobre o culpado.

— Eu não vejo nenhum plano cuidadoso nisto — persistiu Heath. — Esse Sperling se irrita, levanta um arco, tira uma flecha da parede, segue Robin, e lá fora então atravessa-lhe o coração, fugindo em seguida.

Vance suspirou.

— Você é demasiado ingênuo para este mundo malvado, sargento. Se as coisas sucedessem com semelhante prontidão e candura, a vida seria muito simples... e penosa. Porém, não foi esse o modus operandi do assassinato de Robin. Em primeiro lugar, ninguém poderá disparar uma flecha contra um alvo humano móvel e dar exatamente entre as costelas sobre o ponto vital do coração. Segundo, existe essa fratura do crânio de Robin. Podia ter sido feita ao cair, porém não é provável. Terceiro, o chapéu dele estava a seus pés, o que não teria acontecido se a queda fosse natural. Quarto, o punho da flecha está tão amassado que duvido de que sustentaria um cordel. Quinto, Robin dava o rosto para a flecha, e enquanto Sperling fazia a pontaria com o arco, teria tido tempo de gritar e pôr-se a salvo. Sexto... — Vance fez uma pausa, enquanto acendia um cigarro. — Por Deus, sargento! Havia omitido algo. Quando a um homem lhe atravessam o coração, é certo que corre sangue de imediato, especialmente quando a extremidade da arma é maior do que o cabo e não há um tampão adequado para a abertura. Olhe! É possível que você encontre algumas manchas de sangue no piso da sala do clube... provavelmente perto da porta.

Heath duvidou, porém só momentaneamente. A experiência lhe havia ensinado há muito tempo que as sugestões de Vance não eram para ser tratadas com desprezo e, com um grunhido bem-humorado, se levantou e desapareceu na direção dos fundos da casa.

— Creio, Vance, que começo a entender o que você quer dizer — observou Markham com um olhar ofendido. — Mas, Santo Deus! Se a morte de Robin aparentemente de um flechaço fosse uma montagem teatral ex post fact, então estamos diante de alguma coisa demasiadamente diabólica.

— Foi obra de um maníaco — declarou Vance com sobriedade não habitual. — Não, porém, o maníaco convencional que se imagina ser Napoleão, mas um louco com um cérebro tão colossal que levou o juízo a um, falando humanamente, reductio ad absurdum... a um ponto em que o próprio humor se converte em uma fórmula de quatro dimensões.

Markham fumava vigorosamente, perdido em meditações.

— Espero que Heath não encontre nada — disse ele por fim.

— Por quê... em nome do céu? — replicou Vance. — Se não houver evidência material de que Robin encontrou seu fim na sala do clube, isso só fará com que o problema seja mais difícil do ponto de vista legal.

A evidência material, porém, lá estava. O sargento voltou minutos depois, cabisbaixo e nervoso.

— Raios, Sr. Vance! — explodiu ele. — O senhor tinha razão. — Não procurou ocultar a sua admiração. — Não há sangue no chão, mas sim uma mancha escura no cimento e sinais de que alguém a esteve esfregando com um pano molhado hoje. A mancha ainda não está seca. E fica bem perto da porta, onde o senhor havia dito. E o que é mais suspeitoso é que puseram um tapete em cima. Mas isto não quer dizer que Sperling não tenha nada com o assunto — disse ele belicosamente. — Ele podia ter disparado a flecha, dentro de casa, contra Robin...

— E depois limpou o sangue, secou o arco e a flecha fora, antes de ir... O tiro de flecha, para começar, sargento, não é um esporte interno. E Sperling sabe-o demasiado bem para procurar matar alguém com um flechaço. Um golpe tal como o que terminou com a memorável carreira de Robin teria sido uma casualidade pura. Nem o próprio Teucer o teria conseguido com toda a segurança... e, segundo Homero, Teucer era o campeão de arco-e-flecha entre os gregos.

No momento em que falava, Pardee cruzou pelo vestíbulo, em seu caminho para fora. Apenas chegara à porta da rua, Vance levantou-se de súbito e encaminhou-se para o umbral.

— Sr. Pardee, um momento por favor.

O interpelado virou-se com ar de graciosa complacência.

— Há uma pergunta mais que gostaríamos de fazer-lhe — disse Vance. — O senhor mencionou que viu Sperling e Beedle saírem daqui esta manhã pelo portão do muro. Está certo de que não viu nenhuma outra pessoa?

— Seguríssimo. Isto é, não me recordo de ter visto outra pessoa?

— Eu pensava particularmente no Sr. Drukker.

— Oh, Drukker? — Pardee sacudiu a cabeça com suave ênfase. — Não, pois de outro modo, eu me lembraria. Mas compreenda que poderia ter entrado uma dúzia de pessoas sem que eu as tivesse visto.

— É muito certo, muito certo — murmurou Vance com indiferença. — A propósito, a que classe de enxadristas pertence o Sr. Drukker?

Pardee mostrou certa surpresa.

— Praticamente, não é um jogador no verdadeiro sentido da palavra — explicou ele com cuidadosa precisão. — É um analista excelente, não obstante, e entende a teoria do jogo como ninguém. Mas não tem muita prática no tabuleiro.

Assim que Pardee se foi embora, Heath dirigiu um olhar triunfante a Vance.

— Noto, senhor, que não sou eu o único a quem interessa verificar o álibi do corcunda.

— Ah, porém há uma diferença entre comprovar um álibi e exigir que a pessoa mesma o comprove.

Nesse instante, abriu-se a porta da frente. Ouviram-se no vestíbulo fortes passos e no umbral apareceram três homens. Dois eram evidentemente detetives e ladeavam um jovem alto, de bom porte, de uns trinta anos de idade.

— Detivemo-lo, sargento — anunciou um dos detetives com um sorriso de satisfação. — Daqui foi diretamente para casa e estava fazendo as malas quando o apanhamos.

Os olhos de Sperling percorreram o quarto com apreensão cheia de ira.

Heath havia-se colocado diante do homem mirando-o triunfantemente, de cima a baixo.

— Bem, jovem. Você pensou que podia escapar, não?

— O cigarro do sargento subia e abaixava entre seus lábios enquanto falava.

As faces de Sperling ruborizaram-se e ele apertou a boca tenazmente.

— Então você não tem nada a dizer? — continuou falando Heath, segurando o queixo e com uma expressão feroz.

— Por ventura é mudo? Bem, já o faremos falar. — Voltou-se para Markham. — Que lhe parece, senhor? Levo-o para a Polícia Central?

— Talvez o Sr. Sperling não objete a responder aqui a umas quantas perguntas — disse tranqüilamente Markham. Sperling estudou durante um pouco o procurador do distrito. Depois dirigiu seu olhar para Vance, que meneou a cabeça animando-o.

— Que é que querem que eu diga? — perguntou ele com um evidente esforço para dominar-se. — Estava-me preparando para excursionar durante meu fim-de-semana, quando estes rufiões entraram violentamente em minha casa. E sem nenhuma palavra esclarecedora, nem sequer dando-me a oportunidade de falar com alguém de minha família, trouxeram-me para cá. Agora falam de levar-me à Central de Polícia. — Lançou a Heath um olhar de desafio. — Perfeitamente, leve-me lá... porém você pagará por isso.

— A que horas saiu daqui esta manhã, Sr. Sperling? — A voz de Vance era suave e insinuante e suas maneiras tranqüilizadoras.

— Cerca de onze e quinze — respondeu o indivíduo. — A tempo de tomar o trem de Scardale das onze e quarenta na estação Grande Central.

— E o Sr. Robin?

— Não sei a que hora saiu Robin. Disse que ia esperar Belle... a Srta. Dillard. Eu o deixei na sala do clube.

— Viu o Sr. Drukker?

— Sim, porém um minuto. Estava ali quando Robin e eu descemos; mas ele saiu imediatamente.

— Pelo portão do muro? Ou pelo campo de exercícios?

— Não me recordo... para dizer a verdade não prestei atenção... Mas, diga-me: a que vem tudo isto?

— O Sr. Robin foi assassinado esta manhã — disse Vance — perto das onze horas.

Os olhos de Sperling pareciam saltar das órbitas.

— Robin morto? Meu Deus!... Quem... quem o matou?

Os lábios do homem estavam secos, e ele os umedecia com a língua.

— Ainda não sabemos — respondeu Vance. — Atravessaram-lhe o coração com uma flecha.

Essa notícia deixou Sperling aturdido. Seus olhos moveram-se vagamente de um lado a outro e ele levou a mão ao bolso em busca de cigarro.

Heath se acercou mais dele e estendeu seu queixo para a frente.

— Pode ser que você saiba quem matou... com arco e flecha!

— Por que... por que pensa você que eu saiba? — tartamudeou Sperling.

— Bem — replicou o sargento implacavelmente —, não estava você com ciúmes de Robin? Você discutiu com ele acaloradamente nesta mesma sala, sendo a Srta. Dillard a causa não? E você esteve a sós com ele pouco antes de o matarem, não? E você é um bom atirador de flecha, não é? Por isto creio que você há de saber algo. Vamos! Não oculte nada. Ninguém mais senão você podia fazê-lo. Você brigou com ele por causa da moça e foi você a última pessoa vista com ele... só uns poucos minutos antes de ele ser morto. E que outro homem que não fosse um campeão como você podia matá-lo com arco e flecha? Apanhamos você.

Uma luz estranha iluminou os olhos de Sperling e seu corpo tornou-se rígido.

— Diga-me — falou com voz forçada e artificial — você encontrou o arco?

— Creio que sim. — Heath riu desagradavelmente. — No lugar onde você o deixou... no corredor.

— Como era o arco? — Sperling olhava como em sonho.

— Como era o arco? — repetiu Heath. — Um arco de tamanho regular...

Vance que havia estado observando fixamente, interrompeu:

— Creio compreender a pergunta, sargento. Era um arco de mulher, Sr. Sperling. De cerca de metro e meio. Mas bem leve... menos de quinze quilos de peso, diria eu.

Sperling respirou lenta e profundamente como um homem que se encoraja com alguma amarga resolução. Então seus lábios se separaram em um débil e triste sorriso.

— De que adianta? — perguntou ele com indiferença. — Pensei que tinha tempo de fugir... Pois sim, eu o matei.

Heath grunhiu com satisfação e sua maneira beligerante desapareceu imediatamente.

— Você tem mais senso do que eu pensava — disse ele com um tom quase paternal, fazendo sinais convencionais aos dois detetives. — Levem-no, rapazes. Usem o meu carro... está na rua. E metam-no na cadeia sem anotar o nome. Prefiro acusá-lo quando chegar ao gabinete.

— Vamos, rapaz — ordenou um dos detetives voltando-se para o vestíbulo.

Sperling, porém, não obedeceu imediatamente. Olhando para Vance, suplicou:

— Poderia... será que me permitiriam?... — começou a dizer.

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, Sr. Sperling. É melhor que o senhor não veja a Srta. Dillard. Não vale a pena afligi-la agora... Boa sorte.

Sperling voltou-se e, sem dizer nenhuma palavra mais, saiu entre os agentes.


VII

 

VANCE CHEGA A UMA CONCLUSÃO

 

(Sábado, 2 de abril — 15h30)

 

Assim que ficamos sós, Vance levantou-se, e espreguiçando-se, dirigiu-se à janela. A cena que acabava de se verificar, com seu alarmante clímax, nos havia deixado um tanto aturdidos. Nossos espíritos estavam ocupados, eu penso, com a mesma idéia. E quando Vance falou era como se expressasse nossos pensamentos.

— Ao que parece, voltamos à infância...

 

"Eu", disse o Pardal,

"Com meu arco-e-flecha,

Matei Cock Robin..."

 

Voltou lentamente para a mesa do centro e apagou no cinzeiro o seu cigarro. Com o canto do olho mirou Heath.

— Por que está tão pensativo, sargento? Deveria estar cantando melodias e dançando uma alegre tarantela. Não confessou ele seu vil e horrível feito? Não o enche de alegria saber que o culpado logo se consumirá de desgosto em uma cela?

— Para dizer a verdade, Sr. Vance — admitiu Heath com tristeza — não estou muito satisfeito. Esta confissão saiu demasiado fácil e... bem, vi muitos indivíduos desfilarem diante de mim, porém este, não sei por que, não me parece culpado. Realmente não sei o que dizer.

— De qualquer forma — manifestou Markham esperançosamente — sua confissão absurda esfriará a curiosidade dos jornais, dando-nos liberdade para prosseguir nossa investigação. Este caso vai levantar uma celeuma infernal; mas, enquanto a imprensa acreditar que o culpado está preso, não nos incomodará, perguntando-nos como vão as investigações.

— Eu não digo que ele seja inocente — falou Heath belicosamente, argumentando obviamente contra as suas mais íntimas convicções. — Temo-lo sobrecarregado de perguntas e penso que, confessando seu crime, no dia do julgamento os jurados considerariam essa confissão uma atenuante. Talvez ele não seja tão tolo, afinal.

— Eu não penso assim, sargento — replicou Vance. — O trabalho mental do moço foi espantosamente fácil. Sabia que Robin esperava a Srta. Dillard. Também sabia que ela lhe dera, por assim dizer, um despacho de improcedência à noite passada. Sperling evidentemente não tinha uma boa opinião de Robin, e quando se inteirou de sua morte por mãos de alguém que empunhava um arco pequeno e leve, chegou à conclusão de que Robin se havia excedido com a moça e ela lhe cravara uma flecha no coração. Ao nosso nobre pardal vitoriano não lhe restou senão fazer golpear seu peito juvenil e exclamar: "Ecce homom!"... É desolador.

— Bem, seja como for — grunhiu Heath —, eu não vou pô-lo em liberdade. Se o Sr. Markham não quer processá-lo, deve ter suas razões.

Markham olhou o sargento com certa tolerância. Percebia o nervosismo que o dominava e, graças à sua grande bondade, não se deu por ofendido.

— Embora, sargento — manifestou bondosamente — eu espere que você não se oponha continuar comigo a investigação, ainda que eu não me decida por enquanto a processar Sperling.

— Heath sentiu-se muito pesaroso e, levantando-se bruscamente, encaminhou-se para Markham, estendendo-lhe a mão, ao mesmo tempo que dizia:

— Bem sabe o senhor que estou às suas ordens!

Markham tomou a mão que o sargento lhe estendia e pôs-se em pé com um sorriso indulgente.

— Deixarei o caso em suas mãos. Tenho que fazer em meu escritório, pois Swacker está-me esperando. (1) — Encaminhou-se algo deprimido até o vestíbulo. — Antes de ir-me, explicarei a situação à Srta. Dillard e ao professor. Alguma outra idéia, sargento?

(1) Aos sábados, trabalhava-se meio expediente no escritório do procurador do distrito. Swacker era secretário de Markham.

 

— Sim, pretendo examinar bem este capacho que foi usado para limpar o piso embaixo. E irei à sala do clube com um pente fino. Também apertarei de novo os parafusos à cozinheira e ao mordomo; especialmente, à primeira, pois devia ter estado muito perto, quando se fez este sujo trabalho... Depois, toda a rotina... investigações pela vizinhança e coisas assim.

— Comunique-nos os resultados. Estarei no Club Stuyvesant, logo mais e amanhã à tarde.

Vance fora ter com Markham na arcada.

— Ouça, camarada — disse ele enquanto nos dirigíamos às escadas — não passe por alto esta nota secreta que deixaram no buraco da caixa de correspondência. Tenho uma forte suspeita psíquica de que possa ser a chave de tudo. Não seria demais se perguntássemos ao professor Dillard e a sua sobrinha se a palavra "Bispo" tem para eles algum sentido especial. Essa assinatura diocesana quer dizer algo, sem dúvida alguma.

— Pois eu não tenho tanta certeza — replicou Markham com ar incrédulo. — Para mim não tem significado algum. Mas seguirei as suas indicações.

Nem o professor, nem a Srta. Dillard puderam, entretanto, lembrar-se de alguma associação pessoal com a palavra "Bispo". O professor estava inclinado a pensar com Markham que a nota não teria significado nenhum em relação ao caso em foco.

— Na minha opinião — disse ele — é uma peça de melodrama juvenil. Não é provável que a pessoa que matou Robin adotasse um pseudônimo e escrevesse notas acerca de seu crime. Eu não conheço os costumes dos criminosos, mas tal conduta parece-me ilógica.

— O crime, sim, foi ilógico — aventurou Vance agradavelmente.

— Não se pode dizer que uma coisa seja ilógica, senhor

— replicou asperamente o professor — quando se ignoram as premissas de um silogismo.

— Exatamente. — O tom de voz de Vance era calculadoramente cortês. — Por conseguinte, a nota mesma pode não ser desprovida de lógica.

Markham diplomaticamente mudou o rumo da conversação.

— Vim particularmente para dizer-lhe, professor, que o Sr. Sperling esteve aqui há momentos; e, quando lhe disseram da morte do Sr. Robin, confessou ter sido ele o autor...

— Raymond confessou! — murmurou a Srta. Dillard. Markham olhou para a moça com simpatia.

— Para lhes ser franco, eu não acreditei no Sr. Sperling. Alguma idéia errônea de cavalheirismo conduziu-o indubitavelmente a admitir a culpabilidade do crime.

— Cavalheirismo? — repetiu ela, inclinando-se tensamente para a frente. — Que quer exatamente dizer com isto, Sr. Markham?

Foi Vance quem respondeu.

— O arco que se encontrou no local era de mulher.

— Oh! — A moça cobriu o rosto com as mãos e seu corpo se sacudia com os soluços.

O professor Dillard olhou-a desconsolado; e sua impotência tomou a forma de irritação.

— Que disparate é este, Markham? — perguntou ele.

— Qualquer atirador pode lançar flechas com arco de mulher... Este grande idiota! Por que tornar Belle infeliz com sua absurda confissão?... Markham, meu amigo, faça o que puder pelo rapaz.

Markham prometeu-lhe que o faria e nos levantamos para sair.

— A propósito, professor Dillard — disse Vance, detendo-se à porta. — Não vá interpretar-me mal, porém acho muito provável que a pessoa que se permitiu a zombaria de escrever à máquina essa nota, seja alguém que freqüenta esta casa. Há, por acaso, alguma máquina de escrever no prédio?

Era claro que o professor se ressentira com a pergunta de Vance, mas respondeu bastante cortesmente.

— Não, nem é do meu conhecimento que tenha tido alguma. Faz uns dez anos que me desfiz da minha, quando deixei a universidade. Quando preciso, mando tirar cópias numa agência.

— E o Sr. Arnesson?

— Nunca usou máquina de escrever.

Quando descíamos, encontramos Arnesson, que voltava da casa de Drukker.

— Acalmei o nosso Leibnitz local — anunciou com um suspiro exagerado. — Pobre Adolph! O mundo é demasiado para ele. Só está sereno quando se revolve nas fórmulas relativistas de Lorentz e Einstein. Mas, quando é arrastado à realidade, se desintegra.

— Talvez lhe interesse saber — disse Vance, com naturalidade — que Sperling acaba de confessar o crime.

— Já! — Arnesson deu gargalhadas. — Isso faz sentido. "Eu, disse o pardal..." Muito nítido. Entretanto, não sei como será do ponto de vista matemático.

— E desde que concordamos em pô-lo a par de tudo — continuou Vance — talvez seja útil para seus cálculos saber que temos motivos para crer que Robin foi assassinado na sala do clube, sendo levado para fora depois.

— Alegra-me sabê-lo. — Arnesson tornou-se momentaneamente sério. — Sim, isto pode afetar meu problema. — Acompanhou-nos até a porta principal. — Se houver alguma coisa em que eu possa servir-lhes, procurem-me.

Vance se havia detido para acender um cigarro, porém eu sabia, pelo aspecto lânguido do seu olhar, que estava formando alguma decisão. Lentamente se voltou para Arnesson.

— Sabe se o Sr. Drukker ou o Sr. Pardee têm máquina de escrever?

Arnesson sobressaltou-se um pouco e seus olhos piscaram astutamente.

— Ah! A nota do Bispo... Compreendo. Meramente um assunto de pormenores. Inteiramente certo. — Meneou a cabeça com satisfação. — Sim, ambos têm máquina de escrever. Drukker escreve incessantemente; e a correspondência de Pardee é tão volumosa como a de um astro de cinema. Também escreve tudo à máquina.

— Não seria muito incômodo — perguntou Vance — se o senhor pudesse conseguir um modelo do tipo de escrita de cada máquina e também uma amostra do papel que usam esses cavalheiros?

— Incômodo nenhum. — Arnesson parecia encantado com a incumbência. — Esta tarde o senhor terá tudo. Onde posso encontrá-lo?

— O Sr. Markham estará no Club Stuyvesant. O senhor poderá telefonar para lá, e ele pode providenciar...

— Por que se molestar em providenciar algo? Levarei tudo pessoalmente ao Sr. Markham. Ficarei encantado de fazê-lo. É uma carreira fascinante a de detetive.

Vance e eu voltamos para a casa no carro de Markham e este prosseguiu para a repartição. Às sete horas daquela noite, encontramo-nos os três no Club Stuyvesant para jantar; e às oito e meia estávamos sentados no canto favorito de Markham na ante-sala, fumando e tomando café.

Durante a refeição, não se falou nada sobre o caso. As últimas edições dos vespertinos traziam breves informações sobre a morte de Robin. Evidentemente Heath tinha conseguido desviar a curiosidade dos repórteres cortando-lhes as asas da imaginação. Estando fechado o gabinete do procurador do distrito, os repórteres não puderam bombardear Markham com perguntas, de modo que os últimos jornais do dia não puderam conseguir informações adequadas. O sargento tinha guardado bem a casa de Dillard, pois os repórteres não conseguiram aproximar-se de qualquer membro da criadagem.

Markham havia apanhado um exemplar da última edição do Sun quando vinha da sala de jantar para a ante-sala, lendo-o cuidadosamente enquanto sorvia seu café.

— Este é o primeiro eco débil — comentou tristemente. — Tremo ao pensar o que dirão os jornais de amanhã.

— Não há outra coisa a fazer senão suportá-los — sorriu Vance. — Assim que algum repórter sagaz perceber a combinação Robin — Pardal — Flecha, os editores de jornais da cidade ficarão loucos de alegria e em cada primeira página aparecerão os versos infantis.

Markham estava desalentado. Finalmente, indignado, deu um murro no braço da poltrona.

— Que diabo, Vance! Não permitirei que você esgote a minha paciência com essa idiotice de rimas infantis. — Logo acrescentou com a ferocidade da incerteza: — É uma mera coincidência, digo-lhe eu. Simplesmente, não pode ser outra coisa.

Vance suspirou.

— Convença-se contra sua vontade; você é da mesma opinião ainda, para parafrasear Butler. — Meteu a mão no bolso e tirou uma folha de papel. — Deixando de parte pro tempore tudo o que pertence à infância, apresento-lhe aqui uma cronologia edificante que fiz antes do jantar... Edificante? Bem, poderia sê-lo, se soubéssemos como interpretá-la.

Markham estudou o papel durante vários minutos. Vance havia escrito o seguinte:

9:00h — Arnesson saiu de casa para ir à biblioteca da Universidade.

9:15 h — Belle Dillard saiu de casa para ir jogar tênis.

9:30h — Drukker foi ver Arnesson.

9:50 h — Drukker desceu à sala do Clube.

10:00 h — Robin e Sperling permaneceram meia hora na sala da casa de Dillard.

10:30 h — Robin e Sperling desceram à sala do clube.

10:32 h — Drukker disse que saiu pelo portão do muro para passear no parque.

10:35 h — Beedle foi ao mercado.

10:55 h — Drukker disse que se retirou para sua casa.

11:15 h — Sperling saiu pelo portão do muro.

11:30h — Drukker disse que ouviu um grito de mulher no quarto de sua mãe.

11:35 h — O professor Dillard assomou ao balcão do quarto de Arnesson.

11:40h — O professor Dillard viu o corpo de Robin no campo de exercícios de tiro de flecha.

11:45 h — O professor Dillard telefonou para o gabinete do procurador do distrito.

12:25 h — Belle Dillard voltou do tênis.

12:30 h — A polícia chegou à casa de Dillard.

12:35 h — Beedle voltou do mercado.

14:00 h — Arnesson voltou da Universidade.

 

Portanto, Robin foi assassinado entre 11:15 (quando se retirou Sperling) e 11:40 (quando o professor Dillard descobriu o cadáver).

As outras pessoas que se sabe terem estado na casa durante esse tempo são Pyne e o professor Dillard.

A posição de todas as outras pessoas relacionadas de um modo ou outro com o assassinato era como se segue (conforme declarações e provas ora em mão):

 

1. — Arnesson esteve na biblioteca da Universidade entre 9:40 e 14:00 horas.

2. — Belle Dillard esteve na cancha de tênis entre 9:15 e 12:25.

3. — Drukker esteve no parque entre 10:32 e 10:55 e em seu estúdio das 10:55 em diante.

4. — Pardee esteve em sua casa toda a manhã.

5. — A Sra. Drukker esteve em seu quarto toda a manhã.

6. — Beedle esteve no mercado entre 10:35 e 12:35.

7. — Sperling estava a caminho da Grande Estação Central entre 11:15 e 11:40, quando então tomou um trem para Scarsdale.

Conclusão: — A menos que algum destes sete álibis seja desfeito, todo o peso da suspeita e por certo a culpabilidade real deve recair sobre um dos dois: Pyne ou o professor Dillard.

 

Quando Markham terminou de ler o papel, fez um gesto de exasperação.

— Toda a sua dedução é absurda — disse irritadamente — e sua conclusão é um non sequitor. A cronologia indica-nos a hora da morte de Robin, porém sua suposição de que uma das pessoas que vimos hoje seja necessariamente culpada é uma notória insensatez. Você ignora completamente a possibilidade de que alguém de fora tenha cometido o crime. São três os caminhos para chegar ao campo de exercícios e à sala do clube sem pôr os pés na casa: o portão do muro que dá para a Rua 75; o portão do outro muro que dá para a Rua 76, e a passagem entre os dois prédios de apartamentos que dá para a Riverside Drive.

— Oh, é altamente provável que uma dessas três entradas fosse usada — replicou Vance. — Porém, não omita o fato de que o mais retirado e, por conseguinte, o mais provável desses três meios de penetração, isto é, a passagem, é guardado por uma porta fechada, cuja chave ninguém, exceto algum membro da família Dillard, tem. Não posso conceber que um assassino entre por qualquer dos portões do muro com o risco de ser descoberto.

Vance inclinou-se para diante com um semblante sério.

— E Markham, há outras razões para que eliminemos estranhos ou gatunos casuais. A pessoa que enviou Robin de volta para seu Criador devia estar informada do que se passava na casa de Dillard esta manhã entre as onze e um quarto e as doze menos vinte. Sabia que Pyne e o velho professor estavam sós. Sabia que Belle Dillard não estava em casa. Também sabia que Beedle se achava ausente e que assim não poderia ouvi-lo, nem surpreendê-lo. Sabia que Robin — sua vítima — estava lá e que Sperling tinha-se retirado. Mais ainda, conhecia o plano do terreno, a situação da sala do clube, por exemplo; é demasiado claro que Robin foi assassinado naquela sala. Ninguém que não estivesse familiarizado com esses pormenores não se teria atrevido a entrar e preparar um assassinato espetacular. Digo a você, Markham, que foi alguém muito íntimo dos Dillards; alguém que pôde encontrar, exatamente esta manhã, todas essas condições.

— Que me diz do grito da Sra. Drukker?

— Ah, por certo, que quer que lhe diga? A janela da Sra. Drukker podia ter sido um fator que ao assassino tenha escapado. Ou talvez soubesse e decidisse correr esse único risco de ser visto. Além do mais, não sabemos se a senhora gritou ou não. Ela disse que não. Drukker disse que sim. Ambos têm um motivo ulterior para o que disseram a nossos confiantes ouvidos. Drukker pode ter-se referido ao grito como meio de provar que estava em casa entre as onze e as doze. E a Sra. Drukker pode ter negado como temor de que ele não estivesse. É uma verdadeira olla podrida. Mas não importa. O ponto principal a que eu desejo chegar é que foi um íntimo dos Dillards quem executou esse diabólico trabalho.

— Temos muito poucos dados que garantam esta conclusão — manifestou Markham. — O acaso pode ter desempenhado uma parte...

— Vamos, homem! O acaso pode responder a umas quantas permutações, mas não a vinte. E há ainda aquela nota deixada na caixa do correio. O assassino sabia até o segundo nome de Robin.

— Supondo, por hipótese, que o assassino tenha escrito a nota.

— Prefere você crer que algum engraçadinho soubesse do crime por telepatia ou por meio de um binóculo, se dirigisse rapidamente a uma máquina de escrever, compusesse um ditirambo, voltasse correndo à casa e sem nenhuma razão plausível assumisse o terrível risco de que alguém o visse deixar o papel na caixa?

Antes que Markham pudesse responder, Heath irrompeu na sala e dirigiu-se para onde estávamos. Sua preocupação e nervosismo eram patentes. Mal nos cumprimentou, foi logo entregando a Markham um envelope escrito à máquina.

— Foi recebido pelo World no correio vespertino. Quinan, o repórter policial do World, trouxe-me ainda há pouco e disse que o Times e o Herald também receberam cópias. As cartas foram seladas hoje à uma hora, o que quer dizer que provavelmente foram postadas entre as onze e as doze horas. E o que é pior, Sr. Markham, na vizinhança da casa de Dillard, isto é, na agência postal da Rua 69, Oeste.

Markham abriu o envelope. De repente seus olhos abriram-se desmedidamente e os músculos de seu rosto se contraíram. Sem levantar os olhos, passou a carta a Vance. Era uma simples folha de papel de máquina onde estavam escritas palavras idênticas às da nota encontrada na caixa do correio da casa de Dillard. Verdadeiramente, a comunicação era uma duplicata exata da outra: "Joseph Cochrane Robin está morto. Quem matou Cock Robin? Sperling significa pardal. — O BISPO".

Vance mirou apenas o papel.

— Isto é próprio do assassino, sabe? — disse ele indiferentemente. — O Bispo temia que o público não entendesse o seu gracejo, e por isso o explicou à imprensa.

— Gracejo, Sr. Vance? — perguntou Heath amargamente- — Não é a classe de gracejos a que estou acostumado. Este caso é coisa de louco...

— Exatamente, sargento, um gracejo estúpido.

Um rapaz uniformizado acercou-se do procurador distrital, inclinou-se sobre o seu ombro e discretamente lhe disse algo ao ouvido.

— Traga-o aqui imediatamente — ordenou Markham. E dirigindo-se a nós:

— É Arnesson. Provavelmente trará as amostras dos tipos de máquina. — Seu rosto obscureceu-se e ele olhou uma vez mais a nota que Heath tinha trazido. — Vance, — disse ele em voz baixa, — estou começando a crer que esse caso pode-se tornar tão terrível como você pensa. Quem sabe se o tipo é o mesmo...

Mas, quando a nota foi comparada com as amostras trazidas por Arnesson, nenhuma semelhança pôde ser encontrada. Não somente eram distintos os caracteres e as tintas como até o papel não era como o das amostras que Arnesson tinha tirado das máquinas de Pardee e Drukker.


VIII

 

SEGUNDO ATO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Não é necessário lembrar aqui a grande sensação que causou em todo o país o assassinato de Robin. Todos se recordam da importância que os jornais deram a tão estonteante tragédia. Designavam-na por diversos nomes. Alguns se referiam ao "assassinato de Cock Robin". Outros mais alusivos, porém menos exatos, chamavam-na "o assassinato de Mother Goose". Mas a assinatura do bilhete à máquina atraía fortemente a atenção jornalística para o mistério; e com o tempo a morte de Robin passou a ser conhecida como o "misterioso assassinato do Bispo". Sua combinação estranha e terrível de horror e linguagem infantil inflamou a imaginação do público, e as implicações sinistras e insanas de seus pormenores afetaram todo o país, como se fosse um grotesco pesadelo cuja atmosfera não se pudesse fazer desaparecer.

Durante a semana seguinte à descoberta do corpo de Robin, os detetives da Seção de Homicídios, da mesma forma que os destacados junto ao gabinete do procurador do distrito, estiveram ocupados dia e noite, em ativas investigações. O recebimento da duplicata das notas do Bispo pelos principais matutinos de Nova York havia dissipado todas as idéias que Heath pudesse ter sobre a culpabilidade de Sperling; e, embora se recusasse a concordar oficialmente com a inocência do jovem, lançou-se com igual gosto e obstinação na tarefa de encontrar um culpado mais plausível. A investigação que organizou e dirigiu foi tão completa como a do caso Greene. Nenhum caminho que encerrasse a esperança mais insignificante foi omitido; e o relatório que redigiu teria causado alegria mesmo aos criminalistas meticulosos da Universidade de Lausanne. Na tarde do dia do crime, ele e seus homens estiveram procurando o pano usado para limpar o sangue derramado na sala do clube. Não o encontraram. Também foi feito um exame minucioso da referida sala na esperança de encontrarem-se outras pistas. Entretanto, embora Heath tenha posto a tarefa nas mãos de peritos, foi nulo o resultado. A única coisa que puderam averiguar é que o capacho que ficava perto da porta tinha sido removido para tapar o lugar onde estivera o sangue no piso de cimento. Este fato, todavia, comprovou simplesmente a primeira observação do sargento.

A informação post-mortem do Dr. Doremus deu força à teoria agora reconhecida e aceita de que Robin tinha sido assassinado na sala do clube e em seguida colocado fora. A autópsia demonstrou que o golpe na base do crânio fora particularmente violento e desferido com um instrumento pesado e redondo, resultando uma fratura com depressão muito distinta da fratura fissurada, causada quando o golpe é dado com uma superfície plana. Procurou-se infrutiferamente o instrumento com que golpearam a vítima.

Beedle e Pyne foram interrogados várias vezes por Heath. Nada de novo se apurou. Pyne insistiu nas suas declarações de que passara toda a manhã no quarto de Arnesson, com exceção de umas breves ausências para ir ao roupeiro e à porta da frente, mantendo-se tenazmente na sua negativa de que houvesse tocado o corpo ou o arco quando o professor Dillard o mandou à procura de Sperling. Entretanto, o sargento não estava de todo satisfeito com o depoimento do homem.

— Este velho glutão e manhoso esconde alguma coisa na manga — disse a Markham com desgosto. — Para fazê-lo falar é preciso uma boa mangueira e a cura de água.

Uma investigação em todas as casas da Rua Setenta e Cinco entre West End Avenue e Riverside Drive foi procedida na esperança de ser encontrado um inquilino que tivesse visto alguém entrar ou sair da casa de Dillard pelo portão do muro, durante aquela manhã. Mas nada se conseguiu com essa diligência incômoda. Ao que parece, Pardee foi o único morador dentro do raio de visão da casa de Dillard que observava alguém na vizinhança.

Enfim, depois de vários dias de árduas investigações, o sargento concluiu que devia prosseguir sem nenhuma ajuda exterior ou fortuita.

Os vários álibis das sete pessoas que Vance havia relacionado numa anotação para Markham foram examinados tão exatamente como as circunstâncias o permitiam.

Foi obviamente impossível verificá-los em todos os detalhes, pois a maioria estava baseada unicamente nas declarações das pessoas envolvidas. Além disso, a investigação teve de ser feita com o maior cuidado para evitar que se levantassem suspeitas. Os resultados dessas inquirições foram os seguintes:

1. Arnesson havia sido visto na biblioteca da Universidade por várias pessoas, inclusive por um bibliotecário-auxiliar e por dois estudantes. Porém, o tempo indicado nesses depoimentos não era nem consecutivos, nem específico em relação à hora.

2. Belle Dillard havia jogado várias partidas de tênis nas quadras públicas da Rua 119 esquina com o Riverside Drive, mas como estavam mais de quatro pessoas com ela, teve de ceder duas vezes o seu lugar a uma amiga, não podendo nenhum dos jogadores afirmar positivamente se havia permanecido nas quadras durante estes dois períodos.

3. A hora em que Drukker deixou a sala do clube foi determinada definitivamente por Sperling; porém não foi encontrado ninguém que o tivesse visto depois. Ele admitiu não haver encontrado nenhum conhecido no parque, mas insistiu em que se deteve alguns minutos antes para brincar com algumas crianças que ele não conhecia.

4. Pardee tinha estado só em seu estúdio. Sua velha cozinheira e o criado japonês mantiveram-se na parte traseira da casa, não vendo seu patrão senão à hora do almoço. O álibi dele, portanto, foi puramente negativo.

5. A palavra da Sra. Drukker teve de ser aceita em relação aos lugares onde ela esteve naquela manhã, pois ninguém a havia visto entre 9:30, hora em que Drukker foi ver Arnesson, e 13 horas, quando a cozinheira serviu o almoço.

6. O depoimento de Beedle foi verificado a fundo e achado satisfatório. Pardee a tinha visto sair da casa às 10:35, e vários mascates do Mercado de Jefferson lembraram-se de tê-la visto entre onze e doze horas.

7. O fato de ter Sperling tomado o trem das 11:40 para Scarsdale foi comprovado; por conseguinte, saiu da casa de Dillard à hora que ele disse, isto é, 11:15. A determinação deste ponto, contudo, era um assunto meramente de rotina, pois ele tinha sido praticamente eliminado do caso. Todavia, se — como Heath explicara — não tivesse ele tomado o trem das 11:40, chegaria a ser de novo uma possibilidade importante.

Prosseguindo nas suas investigações por linhas mais gerais, o sargento entrou nas histórias e associações das várias pessoas envolvida. A tarefa não era difícil. Todos eram bem conhecidos, de modo que as informações concernentes aos mesmos eram de pronto obtidas; porém, nenhum item foi desenterrado que trouxesse, mesmo que remotamente, alguma luz sobre o assassinato de Robin. Nada se soube que desse a mais leve idéia da causa do crime. E depois de uma semana de investigar e especular intensivamente, o assunto estava ainda rodeado de um mistério impenetrável.

Sperling não tinha sido posto em liberdade. A evidência prima facie contra ele, combinada com a sua absurda confissão, tornou impossível tal ato por parte das autoridades. Markham, contudo, havia entretido uma conferência extra-oficial com os advogados que o pai de Sperling contratara para defesa do filho, havendo chegado, segundo creio, a uma espécie de "acordo de honra", pois, embora o Estado nada tivesse feito para processá-lo (apesar de se achar o Grande Júri funcionando nesse tempo), os advogados da defesa não impetraram qualquer habeas corpus a favor do acusado. Todas as indicações assinalavam a suposição de que Markham e os advogados de Sperling esperavam que o verdadeiro culpado fosse detido.

Markham havia entrevistado várias vezes os membros da criadagem da casa de Dillard, num esforço persistente por obter luz sobre um ponto qualquer que pudesse levar a um caminho de investigação frutífera. Pardee havia sido intimado a comparecer ao gabinete do procurador do distrito para prestar seu testemunho a respeito do que havia observado da sua janela, na manhã da tragédia. A Sra. Drukker foi outra vez interrogada, porém não só negou enfaticamente haver olhado pela janela, como zombou da idéia de que tivesse gritado.

Quando interrogaram novamente Drukker, este modificou um pouco o seu depoimento anterior. Disse que talvez se tivesse equivocado a respeito da origem do grito e sugeriu que podia ter sido na rua ou em algum dos apartamentos vizinhos. Em verdade, disse ele, era pouco provável que sua mãe desse um grito, pois quando ele se afastou da porta do quarto, pouco depois, ela cantava uma velha canção Hänsel und Gretel, de Humperdinck.

Markham, convencido de que nada mais se podia extrair de Drukker e sua mãe, terminou concentrando toda a sua atenção na casa dos Dillards.

Arnesson assistiu às conferências preliminares levadas a efeito no gabinete de Markham. E, apesar de suas observações loquazes e cépticas, parecia encontrar-se no mesmo estado de perplexidade que nós. Vance motejou com bom humor sobre a fórmula matemática que ia esclarecer o caso, porém Arnesson insistiu em que a fórmula não podia ser desenvolvida enquanto todos os termos da equação não tivessem sido encontrados. Parecia considerar este assunto como uma espécie de diversão infantil. Markham, em várias ocasiões, expandira a sua exasperação. Censurou Vance por ter feito de Arnesson um auxiliar extra-oficial na investigação, porém Vance se defendeu alegando que Arnesson, mais cedo ou mais tarde, poderia fornecer alguma informação aparentemente estranha que viesse a servir como vantajoso ponto de partida.

— Sua teoria matemático-criminal é sem dúvida uma tolice — disse Vance. — A psicologia, não a ciência abstrata, descomporá, no final das contas, esta mixórdia em seus elementos. Mas precisamos de alguns materiais para continuar, e Arnesson conhece o interior da casa de Dillard melhor do que qualquer um de nós. Conhece os Drukkers e Pardee também. Sem precisar acrescentar que é um homem que mereceu as honras acadêmicas e possui uma inteligência sutil. Enquanto seu cérebro e sua atenção estiverem postos neste caso, há probabilidades de encontrar-se alguma coisa de vital importância para nós.

— Pode ser que você tenha razão — grunhiu Markham. — Mas a atitude zombeteira deste homem me ataca os nervos.

— Seja mais católico — retrucou Vance. — Considere suas ironias em relação a suas especulações científicas. Que poderia ser mais natural para um homem que projeta seu espírito constantemente nas vastas regiões interplanetárias, e lida com infinitas e hiperfísicas dimensões, do que considerar irrisòriamente as pequenezas desta vida? Grande rapaz este Arnesson! Talvez não seja muito familiar e agradável, mas sem dúvida muito interessante.

Vance havia tomado o caso com desusada seriedade. As traduções de seu Menandro tinham sido definitivamente postas de lado. Ele tornou-se pensativo e mal-humorado — seguro sinal de que seu espírito estava ocupado com um problema absorvente. Depois de jantar, todas as noites, ia à sua biblioteca e demorava-se a ler durante várias horas, não os volumes clássicos e preciosos sobre arte com os quais geralmente passava o seu tempo, e sim livros como A Psicologia da Loucura, de Bernard Hart; A Inteligência e sua Relação com o Desconhecido, de Freud; Psicologia Anormal e Emoções Recalcadas, de Coriat; Comicidade e Humor, de Lippo; O Assassinato Complexo, de Daniel A. Huebcch; As Obsessões e a Psicas-tenia, de Janet; Aritmomania, de Donath; O Desejo Alcançado e os Contos de Fadas, de Riklin; A Importância Forense da Representação de Força, de Leppman; Sobre a Inteligência, de Kuno Fischer; Psicologia Criminal, de Erich Wulffen; A Loucura do Gênio, de Hollenden, e Os Jogos dos Seres Humanos, de Groos.

Ele passava horas a fio revisando relatórios policiais. Foi duas vezes à casa de Dillard, e, em uma ocasião, visitou a Sra. Drukker, acompanhado de Belle Dillard. Uma noite teve uma longa conversa com Drukker e Arnesson sobre a concepção do espaço físico como uma pseudo-esfera lobatchewskiana, de Sitter, sendo seu objetivo, penso eu, familiarizar-se com a mentalidade de Drukker. Leu também o livro deste último, Linhas Mundiais no Contínuo Multidimensional, e passou quase um dia todo estudando a Análise do Gambito Pardee, de Janowski e Tarrasch.

No domingo — oito dias depois do assassinato — disseme:

— Van, este problema é de uma sutileza inacreditável. Nenhuma investigação comum poderá resolvê-lo. Acha-se em uma região estranha do cérebro; e a sua infantilidade superficial é o ponto mais terrível e desconcertante. Tampouco o seu autor vai-se contentar com um estratagema singelo. A morte de Cock Robin não serve a nenhum fim definitivo. A imaginação perversa que concebeu esse crime bestial é insaciável. E, a menos que pudéssemos expor o mecanismo psicológico anormal por trás disso tudo, haverá mais dessas piadas amargas...

Na manhã seguinte, seu prognóstico se realizou. Fomos ao gabinete de Markham às onze horas, para ouvir o relatório de Heath e estudar novos meios de ação. Embora tivessem decorrido nove dias desde a morte de Robin, nenhum progresso se havia feito, e os jornais faziam cada vez mais acerbas críticas à polícia e ao gabinete do procurador criminal. Foi, pois, com uma considerável depressão que Markham nos recebeu naquela manhã de segunda-feira. Heath não havia chegado ainda; mas, minutos depois, quando apareceu, era evidente que ele estava também desanimado.

— Cada vez que nos movemos, esbarramos contra um muro — queixou-se ele, quando resumiu os resultados das atividades de seus subordinados. — Não há nenhum indício novo: e só podemos pensar em Sperling, fora dele não há outro. Estou quase crendo que tenha sido algum vagabundo que procurava roubar a sede do clube e, ao ver-se descoberto, complicou-nos a vida.

— Esses vagabundos, sargento, — replicou Vance, — não têm imaginação e são desprovidos de senso de humor, o que não sucede com a pessoa que mandou Robin fazer a viagem eterna. Não só o matou como converteu o ato em uma insana pilhéria, escrevendo depois cartas explicativas à imprensa, para que o público não perdesse nenhum pormenor. Acha que seja esse o procedimento de um assassino comum?

Heath fumou em silêncio durante alguns minutos, com um ar grave. Por fim, dirigiu a Markham um olhar de exasperado terror.

— Parece incrível o que tem sucedido nesta cidade ultimamente — queixou-se ele. — Sem ir mais longe, ainda esta manhã, foi encontrado morto por um balaço em Riverside Park perto da Rua 84, um indivíduo chamado Sprigg. Em seu bolso, havia dinheiro... não lhe tiraram nada. Tinham acabado de o matar. Era um rapazinho... estudante da Universidade de Colúmbia. Morava com os pais. Não tinha inimigos. Saíra para dar seu passeio costumeiro, antes de ir à aula. Um pedreiro encontrou-o morto meia hora depois. — O sargento mastigava, com raiva, seu charuto. — Agora temos que esclarecer este homicídio e, provavelmente, os jornais farão de nossa vida um inferno, se não descobrirmos o autor. E não há nada, absolutamente, em que nos basearmos.

— Não obstante, sargento, — disse Vance, consoladoramente — matar um homem com um tiro é um acontecimento comum. Para esta classe de crime existe uma infinidade de motivos vulgares que os justificam. São os incidentes cênicos e dramáticos do assassinato de Robin que destroem todos os nossos processos de dedução. Se o assunto não fosse tão infantil... — Subitamente, cessou de falar e suas pálpebras caíram levemente. Inclinando-se para diante com deliberação, apertou a cinza do seu cigarro contra o cinzeiro.

— Você disse, sargento, que esse rapaz se chamava Sprigg?

Heath acenou com a cabeça tristemente.

— E — apesar do esforço de Vance, havia na sua voz um tom de ansiedade — qual é o primeiro nome dele?

Heath olhou para Vance surpreendido, porém, ao fim de uma breve pausa, puxou seu amarrotado caderno e, folheando-o, respondeu:

— John Sprigg... John Sprigg.

Vance tirou outro cigarro e acendeu-o com todo o cuidado.

— E, diga-me, não foi morto com um 32?

— Hem? — Os olhos de Heath dilataram-se e ele estendeu para a frente o queixo. — É verdade, com um 32.

— E a bala penetrou por cima da cabeça em direção vertical?

O sargento pôs-se de pé num salto e olhou fixamente para Vance, visivelmente aturdido. A sua cabeça moveu-se lentamente de cima para baixo.

— Também é verdade. Mas, como diabos o senhor...

Vance levantou uma mão para ordenar silêncio. Foi, entretanto, a sua fisionomia mais que o gesto o que fez Heath interromper a pergunta.

— Oh, meu Deus! — E Vance levantou-se como quem se encontra debaixo de uma alucinação. Se eu não o conhecesse tão bem, juraria que ele estava aterrorizado. Então, indo até a alta janela atrás do escritório de Markham, lançou o olhar para os cinzentos muros de pedra do cemitério. — Não posso crer nisso — murmurou ele. — É demasiado espantoso... Mas, de fato, é a realidade...

A voz impaciente de Markham ressoou.

— A propósito de que esta agitação, Vance? Não seja tão misterioso! Como chegou você a saber que Sprigg foi morto com um balaço vertical em cima da cabeça e com um 32? Que é que você pensa?

Vance voltou-se e seus olhos fixaram-se nos de Markham.

— Não está compreendendo? — perguntou calmamente. — É o segundo ato desta diabólica paródia!... Esqueceu você a sua "Mother Goose"? — E, com uma voz muito surda, que trouxe uma sensação de indizível horror àquela sala obscura e velha, recitou:

 

"Havia um homenzinho,

Com um pequeno revólver,

E as suas balas eram de chumbo, chumbo, chumbo,

Disparou contra Johnny Sprigg."


IX

 

A FÓRMULA DO TENSOR

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Markham olhava para Vance como se estivesse hipnotizado. Heath havia permanecido rígido, a boca parcialmente aberta e o charuto suspenso a algumas polegadas de seus lábios. Na atitude do sargento havia algo verdadeiramente cômico, e eu tinha ímpetos de soltar uma risada. Mas, naquele momento, meu sangue parecia gelado e todo movimento muscular era-me impossível.

O primeiro a falar foi Markham. Atirando a cabeça para trás, pôs violentamente a mão sobre a mesa.

— Que nova loucura é essa? — Ele lutava violentamente contra a horrenda sugestão de Vance. — Estou começando a pensar que o assassinato de Robin afetou seu espírito. Não pode ser morto por um balaço um homem com um nome tão vulgar como Sprigg, sem que você trate de converter isso em um grotesco ato de prestidigitação?

— Entretanto, você deve admitir, meu caro Markham, — replicou Vance suavemente — que este Johnny Sprigg foi morto com um pequeno revólver, bem no meio da cabeça.

— Que tem isso? — Um leve rubor cobriu o rosto de Markham. — Será por acaso motivo suficiente para que você vá por aí cantarolando os versos de Mother Goose?

— Oh, vamos! Eu não costumo cantarolar, você sabe. — Vance deixou-se cair numa cadeira em frente à mesa de Markham. — É possível que eu não seja um grande declamador, porém, realmente, eu não cantarolo... — Dirigiu a Heath um olhar insinuante. — Que me diz você, sargento?

Mas este não tinha opinião a manifestar. Estava ainda com o seu ar atônito.

— Você está sugerindo seriamente...? — começou Markham, mas Vance o interrompeu.

— Sim! Estou sugerindo seriamente que a pessoa que matou Cock Robin com uma flecha descarregou seu mau humor sobre o desventurado Sprigg. A coincidência não entra em questão. Semelhantes paralelos que se repetem destruiriam inteiramente a base de todo raciocínio e razão. Para mim, o mundo já está bastante louco; porém, tal loucura dissiparia todo o pensamento científico e racional. A morte de Sprigg é bem espantosa, mas temos de enfrentá-la. E por mais que nos esforcemos em protestar contra estas deduções incríveis, teremos que aceitá-las afinal.

Markham tinha-se levantado, e passeava nervosamente de um lado para outro da sala.

— Admito a presença de elementos inexplicáveis neste novo crime. — Sua combatividade se havia desvanecido, e seu tom de voz era moderado. — Mas, se aceitamos, por hipótese, que um monomaníaco esteja reconstruindo os versos de seus dias de infância, não posso ver em que isto nos possa ajudar. Praticamente, eliminaria todos os meios habituais de investigação.

— Eu não diria isso. — Vance fumava, pensativamente. — Estou inclinado a pensar que semelhante suposição nos proporciona uma base definida de investigação.

— Seguramente! — exclamou Heath num misto de sarcasmo e gravidade. — Tudo o que temos que fazer é sair e encontrar um cançonetista entre seis milhões de indivíduos. Nem fale!

— Não se deixe abater pelo desânimo, sargento. Nosso evasivo tapeador é um espécime entomológico bastante notável. Além disso, temos indícios certos quanto ao seu ambiente verdadeiro...

Markham voltou-se para Vance.

— Que quer dizer com isso?

— Simplesmente que este segundo crime tem relação com o primeiro não só psicológica mas também geograficamente. Os dois assassinatos foram cometidos a pouca distância um do outro. Pelo menos, nosso demônio destruidor tem um fraco pelas vizinhanças da casa de Dillard. Mais ainda, os mesmos fatores dos dois assassinatos excluem a possibilidade de que ele haja vindo de longe para dar expansão ao seu versátil humor, em lugares pouco conhecidos. Como já assinalei para você, Robin foi mandado para o outro mundo por alguém que conhecia todos os costumes e detalhes da casa, e a par das condições existentes na mesma à hora exata em que se desenrolou o sombrio drama. E não há dúvida de que este segundo crime não poderia ter sido posto em cena com tanta perfeição se o seu empresário não tivesse conhecido as intenções ambulatórias de Sprigg esta manhã. Na verdade, todo o mecanismo destas obras misteriosas prova que o operador conhecia intimamente tudo o que se referia a suas vítimas.

O pesado silêncio que se seguiu foi rompido por Heath.

— Se o senhor estiver certo, então já podemos eliminar Sperling do caso. — O sargento admitiu isto de má vontade, porém mostrava que o argumento de Vance havia surtido efeito nele.

De súbito, vira-se para o procurador do distrito e pergunta-lhe desesperadamente:

— Que acha que devemos fazer, Sr. Markham?

Markham estava ainda lutando contra a aceitação da teoria de Vance, e não respondeu. Entretanto, tornou a sentar-se em frente da escrivaninha, e tamborilou com os dedos sobre o mata-borrão. Em seguida, perguntou, sem levantar a vista:

— Quem está encarregado do caso Sprigg, sargento?

— O capitão Pitts. Os agentes do posto da Rua 68 encarregaram-se do caso, primeiro; mas, quando a notícia chegou à Polícia Central, Pitts e dois dos nossos rapazes foram tratar do assunto. Pitts chegou pouco antes de eu ter vindo para cá. Diz que o caso é um fracasso. Mas, o inspetor Moran disse-lhe para ficar com ele.

Markham apertou o botão da campainha situado sob a borda da sua mesa e, quase ao mesmo tempo, apareceu, pela porta giratória, Swacker, seu jovem secretário.

— Chame o inspetor Moran ao telefone — ordenou. Uma vez conseguida a comunicação, Markham tomou o fone, mantendo uma conversação de alguns minutos. Quando largou o fone, dirigiu a Heath um sorriso amargo.

— Você ficou oficialmente, agora, encarregado do caso Sprigg, sargento. O capitão Pitts estará aqui de um momento para outro e então saberemos onde estamos. — Começou a revolver uma pilha de papéis que tinha diante de si... — Tenho de convencer-me — acrescentou meio animado — de que Sprigg e Robin estão na mesma bolsa.

Dez minutos mais tarde, apareceu um homem baixo e forte, de rosto magro e severo, e bigode negro. Era o capitão Pitts. Segundo soube mais tarde, ele era um dos homens mais competentes da Divisão dos Detetives. A sua especialidade eram os gangsters. Depois de apertar a mão de Markham, dirigiu a Heath uma olhadela amistosa. Quando foi apresentado a Vance e a mim, fez uma inclinação de má vontade e olhou-nos com ar suspeito. Já se ia voltar para o outro lado, quando a sua expressão mudou subitamente.

— É o senhor Philo Vance? — perguntou.

— Assim parece, capitão, — suspirou Vance. Pitts sorriu e, avançando, estendeu-lhe a mão.

— Prazer em conhecê-lo, senhor. Tenho ouvido o sargento Heath falar muitas vezes a seu respeito.

— O Sr. Vance está-nos ajudando, não-oficialmente, no caso Robin, capitão, — explicou Markham — e, como o tal Sprigg foi morto nas mesmas redondezas, cremos que seria de grande utilidade para nós ouvir sua informação preliminar sobre o caso. — Tomou da mesa uma caixa de Corona Perfectos e a empurrou até o capitão.

— Não precisa fazer o pedido desta forma, senhor — sorriu o capitão e, escolhendo um charuto, olhou-o com uma espécie de satisfação voluptuosa. — O inspetor disseme que o senhor tinha algumas idéias sobre este novo caso e que queria por isto encarregar-se dele. Para lhe confessar a verdade, alegro-me em não ter nada que ver com o assunto. — Sentando-se comodamente, acendeu o charuto. — Que deseja o senhor saber?

— Conte-nos todo o caso — disse Markham. Pitts acomodou-se em sua cadeira.

— Pois bem, aconteceu que eu estava de serviço, quando se deu o crime, pouco depois das oito da manhã; não tardei em dirigir-me com dois homens ao local. Os agentes da seção já estavam trabalhando. Ao mesmo tempo que eu, chegou o rnédico-perito...

— O senhor ouviu o relatório dele, capitão? — perguntou Vance.

— Certamente. Sprigg foi morto por um balaço. A bala entrou por cima da cabeça em direção vertical. A arma usada foi um 32. Não havia sinal de luta — nenhuma pisadura. Nada extraordinário. Apenas um balaço vertical.

— Estava de costas quando o encontraram?

— Justamente. Estendido no meio do caminho.

— E a parte do crânio que havia tocado o solo não estava fraturada? — A pergunta foi feita negligentemente.

Pitts tirou o cigarro da boca e lançou a Vance um olhar sutil.

— Creio que vocês já sabem alguma coisa do caso — disse, meneando a cabeça sagazmente. — Sim, a parte posterior do crânio estava fraturada. Por certo a queda foi forte. Mas, creio que ele não a sentiu — claro que não, com uma bala no crânio...

— Falando do balaço, capitão, não achou nada estranho?

— Bem... sim, — concordou Pitts fazendo virar seu charuto entre o polegar e o indicador. — A parte superior da cabeça de um indivíduo não é um lugar por onde penetre ordinariamente uma bala. Além do mais, seu chapéu está intacto, o que indica que caiu antes que a pessoa fosse atingida. Estas circunstâncias poderiam ser chamadas estranhas, Sr. Vance.

— Sim, capitão, são extremamente estranhas... E eu diria que o tiro foi à queima-roupa.

— De uma distância não maior que cinco centímetros. O cabelo estava chamuscado ao redor do orifício de entrada. Além disso, o rapaz devia ter visto o outro puxar o revólver e, ao abaixar-se, caiu-lhe o chapéu. Isto explicaria a causa do tiro à queima-roupa em cima da cabeça.

— Sim, sim. Só que, nesse caso, ele não teria caído de costas, mas de bruços... Mas, prossiga com sua exposição, capitão.

Pitts dirigiu a Vance um olhar de assentimento e continuou.

— A primeira coisa que fiz foi revistar-lhe os bolsos. Tinha um bom relógio de ouro e uns quinze dólares em papel e em moeda de prata. De modo que temos de afastar o móvel do roubo, a menos que o criminoso, assustado por sua obra, fugisse sem chegar a realizar seu propósito. Mas, isto não é provável, pois naquela parte do parque nunca há ninguém de manhã cedo. O caminho ali desaparece sob uma enorme pedra, que oculta à vista. O patife que fez o serviço soube escolher o lugar... Enfim, deixei dois homens guardando o cadáver até que viesse o carro para levá-lo e, em seguida, fui à casa de Sprigg, na Rua 93. Soube o nome e o endereço por duas cartas que ele levava no bolso. Averigüei que se tratava de um estudante da Universidade de Colúmbia, que morava com seus pais, e que era seu hábito dar um passeio pelo parque, depois do café da manhã. Hoje, ele saiu de casa cerca das sete e meia...

— Ah! Era seu hábito passear todas as manhãs pelo parque — murmurou Vance. — Muito interessante!

— Entretanto, isso não nos conduz a nenhuma parte — replicou Pitts. — Quantos há que fazem o mesmo! Esta manhã não havia nada de extraordinário em Sprigg. Seus pais disseram-me que não notaram nada fora do comum; e que quando se despediu deles, o fez alegremente. Depois, dirigi-me à Universidade e lá fiz investigações. Falei com dois estudantes que o conheciam e também com um dos instrutores. Sprigg era um rapaz sossegado, com poucos amigos e reservado. Rapaz sério — sempre ocupado com os estudos. Era dos primeiros da classe e nunca foi visto com mulheres. Ao que parece, detestava o sexo feminino. Não era o que se chama sociável. E aí está por que não vejo nada de especial nesse assassinato. Deve ter sido um acidente. O tiro podia ter sido dado contra outro.

— E a que horas acharam o cadáver?

— Cerca das oito e um quarto. Viu-o um pedreiro quando cruzava o dique da Rua 79, junto aos trilhos da estrada de ferro. Notificou o fato a um agente que estava de serviço no Riverside Drive, que, por sua vez, o comunicou ao posto local de polícia.

— E Sprigg saiu de sua casa, na Rua 93, às sete e meia. — Vance olhou para o teto meditativamente. — Por conseguinte teve tempo de sobra para chegar a esse ponto do parque, antes que o matassem. Parece que alguém, conhecedor dos seus costumes, o estava esperando. Limpeza e rapidez, hem?... Segundo creio, não foi fortuito, não lhe parece Markham?

Este, aparentando não ter ouvido, dirigiu-se a Pitts.

— Não foi encontrado nada que pudesse ser utilizado como ponto de partida?...

— Não, senhor. Meus homens pesquisaram o local escrupulosamente com resultado negativo.

— E nos bolsos de Sprigg... entre seus papéis... ?

— Nada. Tenho tudo na repartição... duas cartas comuns, uns quantos objetos que se guardam no bolso... — Aqui se deteve, como se subitamente se recordasse de alguma coisa, e puxou um caderno de notas. — Havia isto — disse sem entusiasmo, entregando a Markham um pedaço de papel cortado em forma triangular. — Encontrei-o debaixo do cadáver. Não tem significado algum, porém guardei-o — força do hábito.

O papel não tinha mais do que dez centímetros de comprimento e parecia arrancado do canto de uma folha de papel sem pauta. Continha parte de uma fórmula matemática escrita à máquina, com o lambda, os sinais de igualdade e do infinito feitos a lápis. Reproduzo o papel aqui, pois, apesar de sua aparente falta de importância, estava destinado a desempenhar mais tarde uma parte sinistra e assombrosa na investigação sobre a morte de Sprigg.

Vance olhou com naturalidade para o papel, porém Markham deteve-lhe a mão durante um momento com o cenho franzido. Ele ia fazer um comentário, quando seu olhar cruzou com o de Vance.

Em vez disso, atirou o papel descuidadamente sobre a mesa, com ligeiro encolhimento de ombros.

— É isso tudo o que encontrou?

— É tudo, senhor. Markham levantou-se.

— Fico-lhe muito agradecido, capitão. Não sei o que se possa fazer neste assunto de Sprigg, mas vamos estudá-lo. — Apontando para a caixa dos Perfectos, disse: — Ponha dois no bolso, antes de sair.

— Muito obrigado, senhor. — Pitts escolheu os charutos e, pondo-os cuidadosamente no bolso do colete, apertou a mão de todos.

Quando se foi embora, Vance levantou-se com presteza, inclinando-se sobre o pedaço de papel que estava na mesa de Markham.

— Meu Deus! — Puxou o seu monóculo e, durante um momento, estudou os símbolos. — É estupendo. Ora, onde foi que vi esta fórmula recentemente?... Ah! O tensor de Riemann-Christoffel... agora me recordo; Drukker usa-a em seu livro para determinar a curvatura gaussiana do espaço esférico e homaloidal... Mas o que Sprigg estaria fazendo com ela? A fórmula está consideravelmente muito além de um curso de faculdade... — Suspendeu o papel contra a luz. — É do mesmo material que o utilizado pelo Bispo em suas notas escritas. E, provavelmente, já observou você que o tipo, isto é, a letra da máquina, é também similar.

Heath havia avançado, e observava agora o papel.

— Sim, é o mesmo. — O fato parecia confundi-lo. — De toda maneira, é um traço de união entre os dois crimes.

Os olhos de Vance tomaram um ar de surpresa.

— Um traço de união... é verdade. Mas, a presença da fórmula debaixo do corpo de Sprigg parece tão irracional como o assassinato em si mesmo...

Markham caminhava nervoso pela sala.

— Disse você que é uma fórmula usada por Drukker em seu livro?

— Sim. Mas o fato não o compromete necessariamente. O tensor é conhecido por todos os matemáticos. É uma das expressões técnicas na geometria não-euclidiana; e, embora fosse descoberta por Riemann em relação com um problema concreto de física (1), chegou a ser de grande importância na matemática da relatividade. É altamente científica no sentido abstrato, e não pode ter valor direto no assassinato de Sprigg. — Ele se sentou novamente. — Arnesson ficará encantado com o achado. Poderá tirar alguma conclusão surpreendente disto.

(1) Esta expressão foi, na realidade, desenvolvida por Christoffel para um problema sobre a condutividade do calor e publicado por ele, em 1869, no Crelle Journal für reine und angewandte Mathematik.

 

— Não vejo motivo — protestou Markham — para informar Arnesson acerca deste novo crime. Sou de opinião que se deveria ocultar-lhe tudo o que fosse possível.

— Receio que o Bispo não o permitirá — replicou Vance.

Markham, baixando a cabeça, exclamou:

— Santo Deus! Que coisa maldita temos entre as mãos? Espero despertar de um momento para outro e constatar que tenho estado sob a ação de um pesadelo.

— Não teremos esta sorte, senhor — resmungou Heath, tomando uma atitude resoluta como um homem que se prepara para combater. — Que devemos fazer? Para onde nos dirigiremos? Preciso de ação.

Markham apelou para Vance.

— Você parece ter alguma idéia acerca deste negócio. Que sugere? Eu, francamente, confesso achar-me perdido em um escuro caos.

Vance aspirou profundamente a fumaça do seu cigarro. Então, inclinou-se para diante como para dar mais força às suas palavras.

— Markham, meu amigo, há somente uma conclusão possível. Estes dois assassinatos foram concebidos pelo mesmo cérebro: ambos são oriundos do mesmo impulso grotesco. E, desde que o primeiro foi cometido por alguém familiarizado perfeitamente com as condições interiores da casa de Dillard, conclui-se daí que devemos procurar alguém que, além desse conhecimento, soubesse também que um homem chamado John Sprigg costumava passear todas as manhãs por certa parte do Riverside Drive. Uma vez que essa pessoa esteja em nosso poder, devemos confrontar as situações de tempo, lugar, oportunidade e causa possível. Existe uma inter-relação entre Sprigg e os Dillards. Qual é, eu não sei. Mas, nosso primeiro passo é encontrá-la. Que melhor ponto de partida que a casa de Dillard?

— Primeiro, almoçaremos — disse Markham displicentemente. — Depois iremos até lá.


X

 

UMA RECUSA DE AUXÍLIO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 14h)

 

Passava pouco das duas horas, quando chegamos à casa de Dillard. Pyne abriu-nos a porta. Se nossa visita lhe causou surpresa, conseguiu ele ocultá-la admiravelmente. Entretanto, notei no olhar que dirigiu a Heath uma certa intranqüilidade; mas, quando falou, sua voz tinha a claridade untuosa e insípida do criado bem-educado:

— O Sr. Arnesson não voltou ainda da Universidade — informou-nos ele.

— Pelo que vejo, Pyne, seu forte não é a leitura do pensamento — disse Vance. — Nós vimos ver você e o professor Dillard.

O homem pareceu perturbar-se, porém, antes que pudesse responder, a Srta. Dillard apareceu na porta de entrada da sala.

— Acreditei reconhecer sua voz, Sr. Vance. — E nos envolveu a todos num sorriso de acolhimento cordial. — Tenham a bondade de entrar... A Sra. Mae veio por alguns minutos... Vamos passear juntas esta tarde — explicou ela, no instante em que entrávamos na sala.

Junto à mesa estava a Sra. Drukker, com a mão ossuda apoiada no espaldar da cadeira. Evidentemente, acabava de levantar-se. Em seus olhos refletia-se o temor enquanto nos mirava sem pestanejar, e os músculos de sua face pareciam tremer; suas delgadas feições pareciam um tanto contorcidas. Ela não fez esforço para falar, mas permaneceu impassível, como se estivesse esperando uma terrível condenação, como um criminoso diante do tribunal, no momento de receber a sentença.

A voz agradável de Belle Dillard aliviou o embaraço da situação.

— Vou correndo até lá em cima para avisar meu tio que os senhores estão aqui.

Mal tinha saído da sala, quando a Sra. Drukker inclinou-se, apoiando-se sobre a mesa, e disse a Markham com voz sepulcral e cheia de espanto:

— Já sei por que vieram. É por causa daquele jovem que foi morto com um balaço esta manhã no parque.

Suas palavras foram tão surpreendentes e inesperadas que Markham não pôde responder logo, e foi Vance quem o fez por ele.

— Então a senhora está inteirada da tragédia, Sra. Drukker? Como pôde saber tão depressa?

Um ar astucioso surgiu no rosto da mulher, dando-lhe o aspecto de uma malvada feiticeira.

— Todo o mundo não fala de outra coisa, na vizinhança — respondeu com evasiva.

— Deveras? Que pena! Mas por que a senhora imagina que vimos aqui por este assunto?

— O jovem não se chamava John Sprigg? — Um sorriso leve e terrível sublinhou a pergunta.

— Na verdade, John Sprigg. Entretanto, isso não explica a relação que possa existir entre ele e os Dillards.

— Ah, mas existe! — Sua cabeça movia-se para cima e para baixo, com uma espécie de horrível satisfação. — É um brinquedo — um brinquedo de criança. Primeiro, Cock Robin... depois John Sprigg. As crianças devem brincar... todas as crianças saudáveis devem brincar. — Subitamente, mudou de tom. Seu rosto cobriu-se de uma expressiva doçura, e seus olhos adquiriram um ar triste.

— É um jogo diabólico, não lhe parece, Sra. Drukker?

— E por que não? Acaso a vida mesma não é diabólica?

— Para alguns de nós, sim. — Uma curiosa simpatia vibrava nas palavras de Vance, enquanto olhava aquele ser estranho e trágico que tínhamos diante de nós. — Diga-me, — continuou ele com voz alterada, — sabe quem é o Bispo?

— O Bispo? — repetiu ela com perplexidade, franzindo as sobrancelhas. — Não, não conheço. É outro jogo infantil?

— Algo dessa espécie, imagino eu. De qualquer modo, o Bispo se interessa por Cock Robin e John Sprigg. De fato, pode ser que alguém esteja fazendo esses jogos fantásticos. E nós estamos assistindo a eles, Sra. Drukker. Esperamos ouvir dos lábios desse alguém toda a verdade.

A mulher meneou a cabeça vagamente.

— Eu não o conheço. — Em seguida, olhou vingativamente para Markham. — Mas de nada serve descobrir quem matou Cock Robin e disparou um balaço em John Sprigg, bem no meio da cabeça. Nunca descobrirá... nunca... nunca... — Sua voz tinha-se elevado com excitação, e um tremor apoderou-se dela.

Nesse momento entrou Belle Dillard, que correu até a Sra. Drukker, passando-lhe o braço pela cintura.

— Vamos — disse ela, consolando-a. — Iremos passear pelo campo, Sra. Mae. — Voltando-se para Markham, em tom de censura, disselhe friamente: — Meu tio espera-os na biblioteca. — Dito isso, saiu da sala, levando consigo a Sra. Drukker.

— Agora é que está bom, senhor — comentou Heath, que assistira a tudo, presa de enorme assombro. — Só lhe ocorria o nome de John Sprigg, a todo o momento.

Vance meneou a cabeça.

— E nossa chegada aqui assustou-a. Todavia, o espírito dela é mórbido e impressionável, sargento. E, vivendo constantemente a contemplar a deformidade do filho e lembrando-se dos dias em que ele era como os outros, é quase possível que acidentalmente ela nos elucide o significado da morte de Sprigg e Robin... — e olhou para Markham. — Há correntes estranhas neste caso, deduções terríveis e incríveis. É como estar perdido nas cavernas de Dovre-Troll, do Peer Gynt, de Ibsen, onde só existem anomalias e monstruosidades. — Encolheu os olhos, embora eu soubesse que não lhe haviam passado despercebidos completamente a tristeza e o horror lançados sobre nós pelas palavras da Sra. Drukker. — Talvez possamos encontrar algo mais sólido com o professor Dillard.

O professor nos recebeu sem entusiasmo e com um mínimo de cordialidade. Sua mesa estava literalmente coberta de papéis e era evidente que nós o perturbávamos em meio às suas ocupações.

— A que se deve esta visita inesperada, Markham? — perguntou ele, depois de nos havermos sentado. — Tem algo a nos informar sobre a morte de Robin? — Colocou um sinal numa página do livro Espaço, Tempo e Matéria, de Weyl, e, recostando-se indeciso, nos olhou com impaciência. — Estou muito ocupado na solução de um problema de mecânica de Mach...

— Sinto muito — disse Markham. — Nada tenho a informar com relação ao caso de Robin. Mas houve outro assassinato na vizinhança e temos motivos para acreditar que ele se relaciona com a morte de Robin. O que eu queria perguntar, particularmente, ao senhor é se o nome de John Sprigg lhe é ou não familiar.

A expressão de enfado do professor Dillard mudou rapidamente.

— É esse o nome do indivíduo que foi assassinado? — Sua atitude já não denotava mais falta de interesse.

— Sim. Um rapaz de nome John Sprigg foi assassinado por um balaço em Riverside Park, perto da Rua 84, esta manhã, pouco depois das sete e meia.

Os olhos do professor pousaram no tapete, e ele permaneceu silencioso por um pequeno lapso de tempo. Parecia lutar interiormente com algo que o preocupava.

— Sim — disse ele, por fim. — Eu... nós conhecemos um moço com esse nome... embora me pareça improvável que seja o mesmo.

— Quem é ele? — A voz de Markham era ansiosamente insistente.

Outra vez o professor hesitou.

— O rapaz a quem me refiro é o melhor aluno de matemática de Arnesson — o que em Cambridge chamam um aluno sobreexcelente nas ciências matemáticas.

— Como o conhece o senhor?

— Arnesson trouxe-o aqui várias vezes. Queria que eu o conhecesse e conversasse com ele. Arnesson orgulhava-se muito dele, e devo reconhecer que possuía um talento pouco comum.

— Então ele era conhecido por todas as pessoas da casa?

— Sim. Creio que o apresentaram a Belle. E se nesse "todas as pessoas da casa" você quer incluir Pyne e Beedle, dir-lhe-ia que o nome lhes era também familiar.

Foi Vance quem fez a pergunta seguinte.

— Diga-me, professor Dillard, os Drukkers conheciam Sprigg?

— É muito possível. Arnesson e Drukker se vêm muito amiúde... Se bem me recordo, creio que Drukker esteve aqui uma noite em que Sprigg nos visitava.

— E Pardee conhecia-o também?

— A respeito deste, eu não poderia dizê-lo. — O professor bateu impacientemente no braço da cadeira e, voltando-se para Markham, disselhe:

— Ouça-me — sua voz tinha uma petulância angustiada — a que vêm todas essas perguntas? Que tem de ver a nossa amizade com um estudante chamado Sprigg com o caso desta manhã? Seguramente, vocês não quererão dizer-me que o morto é o aluno de Arnesson.

— Receio que assim seja — disse Markham.

Havia um tom de ansiedade, quase de temor na voz do professor — segundo me pareceu — quando ele falou em seguida.

— Mesmo assim, que relação pode ter esse fato conosco? E como pode você relacionar sua morte com a de Robin?

— Concordo em que não há nada de positivo para tirarmos deduções — disselhe Markham. — Mas a falta de finalidade de ambos os crimes e a falta total de motivos parecem dar-lhes uma curiosa unidade de aspecto.

— Você quer dizer, certamente, que não encontrou o motivo. Mas, se todos os crimes sem motivo aparente fossem relacionados entre si...

— Também existem as circunstâncias de tempo e proximidade nesses dois casos — acrescentou Markham.

— É essa a base de sua presunção? — A maneira do professor era de benevolência desdenhosa. — Você nunca foi um bom matemático, Markham, mas deveria saber, pelo menos, que nenhuma hipótese pode ser construída sobre uma premissa tão fraca.

— Ambos os nomes, — interpôs Vance — Cock Robin e Johnny Sprigg, são de personagens de versos infantis muito conhecidos.

O ancião mirou-o, fixamente, com grande assombro; e, pouco a pouco, seu rosto ficou rubro de cólera.

— Seu humorismo, senhor, está fora de lugar.

— Não é o meu humorismo, ai de mim! — replicou Vance tristemente. — A troça é do Bispo.

— O Bispo? — O professor Dillard esforçou-se por conter a sua indignação. — Veja, Markham: não posso permitir que brinquem comigo. É a segunda vez que mencionam um Bispo misterioso nesta sala; e eu quero saber o que isso significa. Supondo que um malvado tenha escrito uma carta louca aos jornais, relacionada com a morte de Robin, que tem este Bispo a ver com Sprigg?

— Debaixo de seu cadáver foi encontrado um papel que tinha uma fórmula matemática escrita a máquina, e parecia provir da mesma máquina com que o Bispo escreveu seus bilhetes.

— O quê! — O professor inclinou-se para diante. — Disse você a mesma máquina? E uma fórmula matemática?... Qual era a fórmula?

Markham abriu sua carteira e tomou o pedaço de papel triangular que Pitts lhe havia dado.

— O tensor de Riemann-Christoffel... — O professor Dillard examinou demoradamente o papel, devolvendo-o depois a Markham. Parecia que envelhecera de repente. Seus olhos denotavam fadiga, quando os levantou para olhar-nos. — Não vejo neste caso luz alguma. — Seu tom de voz denotava resignação impotente. — Mas talvez vocês tenham razão em seguir o caminho que se propuseram. Que desejam de mim?

Markham estava sensivelmente surpreendido ante a atitude nervosa de Dillard.

— Vim procurá-lo, principalmente, para assegurar-me se havia ou não alguma ligação entre Sprigg e esta casa. Mas dir-lhe-ei, com toda a franqueza, que não vejo, agora que fiquei sabendo que havia tal ligação, como adaptá-la à cadeia dos acontecimentos. Entretanto, gostaria de, com a sua permissão, interrogar Pyne e Beedle, como eu achasse conveniente.

— Pergunte-lhes o que quiser, Markham. Você jamais poderá acusar-me de lhe ter interceptado o caminho. — Ergueu o olhar suplicante. — O que espero é que me avisem antes de tomarem qualquer medida drástica.

— Isso eu posso prometer-lhe, senhor — Markham levantou-se. — Mas receio que, por enquanto, estejamos muito longe de tomar medidas drásticas. — Estendeu-lhe a mão e notou que havia uma ansiedade oculta no ancião, ao qual desejava expressar sua simpatia sem falar nos seus sentimentos.

O professor acompanhou-nos até a porta.

— Não posso compreender esse tensor escrito a máquina — murmurou ele, sacudindo a cabeça. — Mas, se há alguma coisa que eu possa fazer...

— Há alguma coisa que o senhor pode fazer por nós, professor Dillard — disse Vance, detendo-se na porta. — No dia da morte de Robin, entrevistamos a Sra. Drukker...

— Ah!

— E, embora ela negasse ter estado sentada em sua sacada, naquela manhã, existe uma possibilidade de ela ter visto algo do que sucedeu no campo de exercícios, entre onze horas e meio-dia.

— Ela lhe deu essa impressão? — Na pergunta do professor notava-se um subtom de interesse reprimido.

— Remotamente. Foi o depoimento de Drukker, que disse haver ouvido sua mãe gritar, o que me fez crer que ela podia ter visto algo que preferisse ocultar-nos. E ocorreu-me que o senhor, provavelmente, teria mais influência junto a ela que qualquer outra pessoa, e que, se realmente ela testemunhou o fato, o senhor poderia conseguir que ela lho dissesse.

— Não! — O professor Dillard falou quase asperamente; mas prontamente pôs a mão no braço de Markham e seu tom de voz mudou. — Há coisas que vocês não me devem pedir que faça. Se essa pobre e desgraçada mulher viu alguma coisa da sua sacada naquela manhã, vocês mesmos devem averiguar. Eu não quero torturá-la, e sinceramente tampouco desejo que vocês a incomodem. Existem outros meios para encontrar o que vocês querem saber. — Olhou fixamente para os olhos de Markham. — Ela não deve ser quem diga isso a vocês. Vocês mesmos seriam os primeiros a senti-lo.

— Devemos averiguar o que pudermos — disse Markham resolutamente, porém com bondade. — Há nesta cidade um demônio solto e não posso deter minha mão para evitar o sofrimento de alguém... por muito trágico que pudesse ser esse sofrimento. Todavia, asseguro-lhe que não torturarei a ninguém desnecessariamente.

— Pensaram vocês — perguntou tranqüilamente o professor Dillard — que a verdade que procuram pode ser mais horrível que os próprios crimes?

— Eu o arriscarei. Mas, assim mesmo, se eu soubesse que era exato, não me deteria por nada.

— Decerto que não. Mas, Markham, eu sou muito mais velho que você. Eu já tinha cabelos brancos quando você era apenas um menino que lutava com logaritmos e antilogarítmos; e quando alguém envelhece, aprende as verdadeiras proporções no universo. As proporções todas mudam. Os valores que damos às coisas uma vez perdem seu significado. Eis por que os velhos perdoam mais: eles sabem que os valores feitos pelo homem não têm importância.

— Mas, enquanto tivermos de viver com os valores humanos — argüiu Markham —, é meu dever apoiá-los. E eu não posso, através de nenhum sentido pessoal de simpatia, recusar tomar qualquer caminho que possa conduzir à verdade.

— Talvez você tenha razão — suspirou o professor. — Contudo, você não me deve pedir que o ajude neste caso. Se você souber a verdade, seja caritativo. Esteja seguro de que o culpado é responsável antes que você peça que o mandem à cadeira elétrica. Existem espíritos enfermos como há corpos enfermos. E, amiúde, ambos o estão.

Quando voltamos à sala, Vance acendeu um cigarro com maior cuidado do que de costume.

— O professor — disse ele — não está absolutamente feliz com a morte de Sprigg. E, embora não o tenha admitido, essa fórmula do tensor convenceu-o de que Sprigg e Robin pertencem à mesma equação. Mas ficou convencido de modo demasiadamente rápido. Por quê? Mais ainda, não lhe importou admitir que Sprigg era pessoa conhecida da casa. Eu não digo que ele suspeite, porém tem temores... É engraçada a sua atitude. Aparentemente não quer obstruir a justiça legal que você mantém com tanto zelo, Markham; mas ele decididamente tem pouco interesse em secundar sua cruzada no que concerne aos Drukkers. Quisera saber o que se esconde atrás de sua consideração pela Sra. Drukker. Eu não diria assim, sem mais nem menos, que o professor é de natureza sentimental. E o que significa essa vulgaridade sobre o espírito e o corpo doentes? Parecia um programa para uma classe de cultura física, não?... Que dia azarado! Vamos fazer algumas perguntas a Pyne e a sua filha.

Markham sentou-se, fumando pensativamente. Raras vezes o vi tão desanimado.

— Não vejo o que podemos esperar deles — comentou. — Mesmo assim, sargento, faça vir Pyne aqui.

Quando Heath saiu, Vance dirigiu a Markham um olhar burlesco:

— Verdadeiramente você não deveria queixar-se. Deixe que Terêncio o console: Nil tam difficile est, quin quaerendo investigari possit. E como é difícil este problema!... — Subitamente tornou-se grave. — Estamos manipulando quantidades desconhecidas. Estamos incitados a lutar contra alguma força estranha e anormal que não opera segundo as leis aceitas da conduta. É ao mesmo tempo sutil... oh, infinitamente sutil... e nada familiar. Mas, pelo menos sabemos que emana de alguma parte dos arredores desta casa. E devemos dar busca em todos os recantos e gretas psicológicos. Em alguma parte, perto de nós, jaz o dragão invisível, portanto não se assuste com as perguntas que eu fizer a Pyne. Devemos procurar nos lugares improváveis...

Ouviram-se passos que se aproximavam da porta da sala e um momento depois entrou Heath com o velho mordomo a reboque.


XI

 

O REVÓLVER ROUBADO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 15h)


— Sente-se, Pyne — disse Vance, em tom amável. — Temos permissão do professor Dillard para interrogar você e esperamos que nos responda a todas as perguntas.

— Pois não, senhor, — respondeu o homem. — Estou certo de que não há nada que o professor Dillard tenha motivo para ocultar.

— Excelente — retrucou Vance enquanto se recostava com indolência. — Para começar, a que horas foi servido esta manhã o desjejum?

— Às oito e meia, senhor, como sempre.

— Estiveram presentes todos os membros da família?

— Sim, senhor.

— Quem acorda a família e a que horas?

— Eu, às sete e meia. Chamo à porta.

— E espera a resposta?

— Sim, senhor, sempre.

— Agora, pense, Pyne: deixou alguém de responder-lhe esta manhã?

O homem inclinou a cabeça enfaticamente:

— Não, senhor.

— E ninguém chegou tarde para o café da manhã?

— Todos compareceram a tempo, como sempre, senhor.

Vance inclinou-se para diante e depositou a cinza do cigarro no cinzeiro.

— Viu, por acaso, sair ou entrar alguém esta manhã antes do café?

A pergunta foi lançada como por descuido, porém notei um ligeiro estremecimento de surpresa nas pálpebras delgadas e caídas do mordomo.

— Não, senhor.

— Supondo que assim fosse, — prosseguiu Vance, — não teria sido possível que alguém da casa pudesse sair e entrar, sem que você visse?

Pela primeira vez durante a entrevista, Pyne pareceu relutar em responder.

— Bem, senhor, o fato é — disse ele com dificuldade — que alguém poderia ter usado a porta principal esta manhã sem que eu percebesse, pois estava na sala de refeições pondo a mesa. E ainda mais, poderiam ter usado a porta da sala do clube, pois minha filha conserva geralmente fechada a porta da cozinha enquanto prepara o café.

Vance fumou pensativamente durante um instante. Então, em tom positivo, perguntou:

— Alguém da casa usa revólver?

Os olhos do mordomo abriram-se desmensuradamente.

— Não que eu... saiba, senhor — respondeu ele com certa vacilação.

— Ouviu você alguma vez falar do Bispo, Pyne?

— Oh, não, senhor! — O rosto do mordomo empalideceu. — Refere-se ao homem que escreveu aquelas cartas aos jornais?

— Refiro-me simplesmente ao Bispo — disse Vance com displicência. — Mas, diga-me, ouviu você algo acerca de um homem que assassinaram esta manhã em Riverside Park?

— Sim, senhor, o porteiro da casa ao lado falou-me dele.

— Conhecia você o jovem Sprigg?

— Eu o vi aqui uma ou duas vezes.

— Ele esteve recentemente aqui?

— Na semana passada, senhor. Creio que foi quinta-feira.

— Quem mais esteve aqui com ele?

Pyne franziu o sobrolho procurando recordar-se.

— O Sr. Drukker — disse ele, depois de um momento. —E agora me recordo que também estava o Sr. Pardee. Achavam-se juntos no quarto do Sr. Arnesson. Estiveram conversando até tarde.

— No quarto do Sr. Arnesson, hem? Costuma o Sr. Arnesson receber visitas no quarto?

— Não, senhor, — explicou Pyne — porém o professor estava trabalhando na biblioteca e a Srta. Dillard estava com a Sra. Drukker aqui na sala.

Vance permaneceu em silêncio durante algum tempo.

— Isso é tudo, Pyne — disse ele por fim. — Tenha a bondade de dizer a Beedle que venha imediatamente.

Beedle não tardou a chegar até nós, apresentando-se com sórdida agressividade. Vance fez-lhe as mesmas perguntas que havia feito a Pyne. As respostas, monossilábicas em sua maior parte, não apresentaram nada de novo. Mas, no final da breve entrevista, Vance perguntou-lhe se por acaso havia olhado pela janela da cozinha antes do café.

— Olhei uma ou duas vezes — respondeu ela com ar de desafio. — Por que não havia de olhar?

— Você viu alguém lá fora?

— Ninguém mais do que o professor e a Sra. Drukker.

— Nenhum desconhecido? — Vance procurou dar a impressão de que não tinha importância a presença do professor Dillard e da Sra. Drukker no pátio, aquela manhã, porém pela forma lenta e deliberada com que procurou a sua cigarreira no bolso verifiquei que a informação lhe havia interessado muitíssimo.

— Não — replicou brevemente a mulher.

— A que horas você viu o professor com a Sra. Drukker?

— Cerca das oito.

— Estavam conversando?

— Sim. Pelo menos — corrigiu ela — passeavam de um lado para outro, perto do caramanchão.

— Costumam eles passear pelo pátio antes do café?

— A Sra. Drukker sai muitas vezes cedo e passeia pelo jardim. E creio que o professor tem o direito de passear pela sua propriedade o tempo que deseje.

— Não estou pondo em dúvida os direitos dele, Beedle — disse Vance suavemente. — Eu apenas estava admirado de exercer ele esses direitos tão cedo.

— Pois bem, ele os estava exercendo nessa manhã... Vance despediu a mulher e, levantando-se, foi à janela da frente. Ele estava visivelmente confundido e permaneceu vários minutos olhando a rua na direção do rio.

— Bem, bem — murmurou ele. — É um lindo dia para a gente comungar com a natureza. Esta manhã, às oito, a calhandra voava sem dúvida alguma... quem sabe?... Talvez tenha havido um caracol entre os abrolhos. Mas... diabo!... nada estava certo com o mundo.

Markham reconheceu os sinais de perplexidade de Vance.

— Que deduz você disto? — perguntou ele. — Estou inclinado a não tomar conhecimento da informação de Beedle.

— O que perturba, Markham, é que não nos podemos dar ao luxo de ignorar nada neste assunto — disse Vance suavemente, sem se virar. — Não obstante, admitirei que, neste momento, a revelação de Beedle não faz sentido algum. Soubemos simplesmente que dois dos atores do nosso melodrama estavam levantados passeando esta manhã, pouco depois que Sprigg foi mandado para o outro mundo. O rendez-vous ai fresco pode talvez ser uma de suas tão queridas coincidências. De outra parte, pode ter algo que ver com a atitude sentimental do ancião para com a senhora... Creio que teremos de fazer a ele algumas perguntas discretas sobre o seu encontro em jejum... Que acha?

Inclinou-se subitamente contra a janela.

— Ah! Aí vem Arnesson. Parece muito nervoso. Poucos momentos depois, ouviu-se o ruído de uma chave na porta principal, e Arnesson deu entrada no vestíbulo. Quando nos viu, dirigiu-se depressa até a sala e, sem nos cumprimentar, explodiu:

— Que é isso que estão dizendo sobre a morte de Sprigg? — Seu olhar ansioso ia de um a outro de nós. — Suponho que estão aqui para me fazer perguntas sobre ele. Às suas ordens. — Atirou sobre a mesa uma volumosa pasta, sentando-se bruscamente na borda de uma cadeira. — Esta manhã, esteve um detetive na faculdade fazendo perguntas estúpidas e agindo como esses policiais de opereta. Muito misterioso... Assassinato... horrível assassinato! Que sabíamos acerca de um tal John E. Sprigg? E assim por diante... Assustou um par de alunos do curso superior e fez com que um inofensivo jovem, instrutor de inglês, tivesse um princípio de colapso nervoso. Eu não vi o camarada naquele momento, estava na aula. Ele teve a desfaçatez de perguntar com que mulheres andava Sprigg. Sprigg com mulheres! Aquele rapaz só pensava no estudo. Era o aluno mais brilhante da turma. Jamais faltou a uma aula. Quando não respondeu à chamada esta manhã, não hesitei em pensar que algo de sério havia ocorrido. À hora do almoço, todos falavam do assassinato... Qual é a resposta?

— Não a temos, Sr. Arnesson. — Vance tinha estado a observá-lo bem de perto. — Contudo, temos outra determinante para a sua fórmula. John Sprigg foi assassinado por um tiro esta manhã com um revólver pequeno. A bala penetrou pelo alto da cabeça.

Arnesson olhou fixamente para Vance durante alguns instantes, sem se mover. Então, deitou para trás a cabeça e soltou uma gargalhada sarcástica.

— Algum outro enigma, eh?... como o da morte de Cock Robin... Explique-me o mistério.

Vance explicou brevemente os pormenores do crime.

— Isto é tudo o que sabemos até agora — concluiu ele.

— Poderia você, Arnesson, ajuntar outros pormenores sugestivos?

— Céus, não! — O homem parecia realmente surpreso.

— Nada, absolutamente. Sprigg... era um dos estudantes mais inteligentes que tenho tido. Era um gênio, juro! É uma lástima que seus pais lhe tenham posto o nome de John... havendo tantos outros nomes. Ao que parece, isso selou a sua condenação. Algum maníaco lhe atravessou o crânio com um balaço. Provavelmente o mesmo truão que meteu em Robin um flechaço. — Esfregou as mãos e o filósofo abstrato que há nele chegou a predominar. — Um belo problema. Contou-me tudo? Necessitarei de cada um dos números inteiros conhecidos. Talvez que, como Kepler, eu encontre algum método matemático em processo... — Riu-se da presunção. — Recorda-se o senhor da Doliometria de Kepler? Foi a base do Cálculo Infinitesimal. Chegou a ele procurando construir uma pipa para seu vinho... com uma quantidade mínima de madeira e um conteúdo cúbico máximo. Pode ser que as fórmulas que eu desenvolvo para encontrar os criminosos abram novos campos de investigações científica. Ah! Robin e Sprigg se converterão, então, em mártires.

O humorismo do indivíduo, embora tomando em consideração sua paixão eterna por tudo que é abstrato, chocou-me, como algo particularmente desagradável. Todavia, Vance parecia que não se importava com seu frio cepticismo.

— Há um item que me esqueci de mencionar — disse ele. Voltando-se para Markham, pediu-lhe o pedaço de papel que continha a fórmula e passou-o em seguida a Arnesson. — Foi encontrado isto debaixo do corpo de Sprigg.

Arnesson examinou-o com ar de pouco caso.

— Pelo que vejo, aqui também está envolvido o Bispo. O mesmo papel e o mesmo tipo de letra de máquina dos bilhetes... Mas, onde conseguiu este tensor Riemann-Christoffel? Ora, se houvesse sido outro tensor... como o G-sigma-tau, por exemplo... qualquer pessoa interessada em física prática teria dado com ele. Mas este não é comum e sua exposição aqui é arbitrária e desusada. Certos termos omitidos... Raios! Estive falando precisamente acerca disto a Sprigg na noite passada. Ele escreveu isto, também.

— Pyne disse-nos que Sprigg esteve aqui quinta-feira à noite — observou Vance.

— Oh, sim, é certo... Na quinta-feira... exato. Também estiveram Pardee e Drukker. Tivemos uma discussão sobre as coordenadas de Gaussian. Este tensor surgiu... creio que foi Drukker quem o mencionou primeiro. E Pardee tinha alguma noção de aplicar a matemática superior no xadrez...

— A propósito, você joga xadrez? — perguntou Vance.

— Jogava, porém não jogo mais. Não obstante, seria um jogo formidável... se não fossem os jogadores. São uns tolos, esses xadrezistas.

— Você fez alguma vez estudos sobre o gambito Pardee?

Naquele momento, eu não podia compreender o aparente desatino das perguntas de Vance. Também notei que Markham começava a dar sinais de impaciência.

— Pobre Pardee! — Arnesson sorria sem sentimento algum. — Não é mau matemático elementar. Seria um bom professor de curso secundário. Mas tem muito dinheiro. Dedicou-se ao xadrez. Eu disselhe que seu gambito não era científico. Ainda mais, demonstrei-lhe como podiam vencê-lo. Mas ele não queria ver isso. Então vieram Capablanca, Vadmar e Tartakower e derrotaram-no sem dó nem piedade. Exatamente como eu havia prognosticado. Isso arruinou a sua vida. Durante muitos anos, tratou de conhecer outro gambito, porém não pôde fazê-lo adotar. Lê Weyl, Silberstein, Eddington e Mach na esperança de inspirar-se.

— Isso é muito interessante. — Vance estendeu a sua caixa de fósforos a Arnesson que tinha estado enchendo o seu cachimbo, enquanto falava. — Pardee era muito relacionado com Sprigg?

— Oh, não. Encontraram-se aqui duas vezes — e isso foi tudo. Entretanto, Pardee conhece muito bem Drukker. Sempre lhe pergunta sobre potenciais e setores. Espera encontrar alguma coisa que revolucione o xadrez.

— Interessava-lhe o tensor de Riemann-Christoffel quando você falou a respeito na outra noite?

— Não posso dizer que sim, pois não é de sua esfera. Não se pode enquadrar a curvatura do espaço-tempo num tabuleiro de xadrez.

— Que deduz você do encontro desta fórmula com Sprigg?

— Nada. Se tivesse sido escrita por Sprigg, diria que caíra do bolso. Mas, quem se daria ao trabalho de escrever a máquina uma fórmula matemática?

— Aparentemente, o Bispo.

Arnesson tirou o cachimbo da boca e sorriu.

— O Bispo X. Temos que encontrá-lo. Está cheio de extravagâncias. Confundiu o senso dos valores.

— Evidentemente. — Vance falou com displicência. — A propósito, quase me esquecia de perguntar: há revólveres em casa de Dillard?

— Oh! — Arnesson riu com espontâneo prazer. — É este o assunto? Sinto muito desiludi-lo. Não temos revólveres. Nem portas deslizadoras. Nem passagens secretas. Tudo aberto à luz do dia.

Vance suspirou teatralmente.

— É uma lástima... uma lástima! Eu que tinha uma teoria tão consoladora...

Belle Dillard havia descido silenciosamente ao hall e agora estava na porta da sala. Sem dúvida, ela havia ouvido a pergunta de Vance e a resposta de Arnesson.

— Como que não há revólveres em casa? Há dois, Sigurd, — disse ela. — Não se lembra dos revólveres velhos que eu usava no campo quando me exercitava na pontaria?

— Pensei que você não mais os tivesse. — Arnesson levantou-se e ofereceu uma cadeira a Belle. — Eu lhe disse, quando voltávamos de Hopatcong naquele verão, que só aos ladrões e bandidos é permitido usar revólveres neste tolerante Estado...

— Mas eu não acreditei — protestou a moça. — Nunca sei quando você graceja ou quando fala sério.

— E a Srta. os guardou? — perguntou Vance num tom tranqüilo.

— Claro que sim. — Ela lançou a Heath um olhar apreensivo. — Não devia guardá-los?

— Eu penso que tecnicamente foi ilegal. No entanto — sorriu Vance tranqüilizadoramente — não creio que o sargento vá invocar a lei contra a senhorita. Onde estão agora?

— Embaixo, na sala do clube. Em uma gaveta do porta-ferramentas.

Vance levantou-se.

— Teria a bondade, Srta. Dillard, de mostrar-nos o lugar onde os guardou? Tenho uma grande curiosidade de vê-los.

A moça hesitou e mirou Arnesson, como à procura de conselho. Quando ele fez que sim com a cabeça, ela voltou-se e conduziu-os à sala do clube.

— Estão naquela arca junto à janela — disse ela encaminhando-se até o lugar. Uma vez aí, tirou de um ponta do móvel uma caixa comprida: atrás, debaixo de um monte de outras coisas, estava um Colt automático, 38.

— Como! — exclamou ela. — E o outro? Alguém o levou?

— Era menor, não é verdade? — perguntou Vance.

— Sim...

— Um 32?

A moça confirmou com a cabeça, volvendo os olhos espantados para Arnesson.

— Sim, levaram-no, Belle, — disse ele, encolhendo os ombros.

— Não há nada a fazer. Provavelmente, algum de seus jovens arqueiros se apropriou dele para fazer saltar os miolos depois de haver-se cansado de lançar flechas.

— Não graceje, Sigurd, — rogou-lhe um tanto assustada. — Aonde poderiam levá-lo?

— Ah! Outro tétrico mistério — disse Arnesson, gracejando. — Estranho desaparecimento de um 32.

Percebendo a inquietude da moça, Vance mudou de tema.

— Talvez, Srta. Dillard, possa ter a bondade de levar-nos ao aposento da Sra. Drukker. Precisamos falar com ela, já que, ao que parece, o passeio ao campo foi adiado. — Uma sombra de dor cobriu o rosto da moça.

— Oh, Sr. Vance, não deve incomodá-la hoje. — Seu tom de voz era tragicamente implorante. — A Sra. Mae está muito doente. Não posso compreender. Quando eu falava com ela, lá em cima, parecia estar perfeitamente bem, porém depois que viu os senhores mudou bruscamente: tornou-se fraca e... oh, alguma coisa horrível pareceu perturbar-lhe o espírito. Depois eu a levei para a cama e ela continuou repetindo num murmúrio terrível: "John Sprigg, John Sprigg..." Telefonei ao seu médico, que veio em seguida. Disse que ela precisava de repouso e tranqüilidade.

— O assunto que me levava lá não é de nenhuma importância — afirmou Vance. — Esperemos que ela melhore. Qual é o médico, Srta. Dillard?

— Whitney Barstead. Há muitos anos que a atende.

— Excelente homem — observou Vance. — Em todo país não há melhor neurologista. Não faremos nada sem a sua permissão.

A Srta. Dillard dirigiu-lhe um olhar de agradecimento, e em seguida pediu licença e saiu.

Quando voltamos à sala, Arnesson parou diante da lareira e olhou para Vance sarcàsticamente.

— "John Sprigg, John Sprigg." A Sra. Mae percebeu logo. Pode ser que esteja louca, porém certos lóbulos de seu cérebro estão superativos. O cérebro humano é uma implacável peça de maquinaria. Alguns dos maiores calculadores mentais da Europa são imbecis. E eu conheço dois mestres de xadrez que precisam de amas para vesti-los e alimentá-los.

Vance aparentava não ouvi-lo. Havia parado junto a um pequeno armário perto da porta e parecia absorvido por uma coleção de objetos de arte antiga chinesa.

— Este elefante não está bem aqui — comentou casualmente, apontando para uma diminuta figura da coleção. — É um bunjinga decadente, sabe? Bem feito, porém não autêntico. Talvez seja uma cópia de algum original manchu. — Abafou um bocejo e voltou-se para Markham. — Creio, meu amigo, que não temos mais nada a fazer aqui. Acho que devemos ir. Mas, antes', poderíamos falar com o professor... Desagrada-lhe esperar aqui, Sr. Arnesson?

Arnesson levantou as sobrancelhas um tanto surpreso, porém imediatamente franziu o rosto num sorriso desdenhoso.

— Oh, não! Podem ir. — E começou a encher o cachimbo.

O professor Dillard sentiu-se importunado com nossa segunda intrusão.

— Acabamos de saber — disse Markham — que o senhor esteve falando com a Sra. Drukker esta manhã, antes do café.

Os músculos do rosto do professor Dillard contraíram-se de raiva.

— Importa ao procurador criminal do distrito que eu fale com um vizinho no jardim de minha casa?

— Por certo que não, senhor. Mas estou no meio de uma investigação que concerne seriamente à sua casa, e eu julguei que podia obter esclarecimentos de sua parte.

O ancião começou a balbuciar.

— Muito bem — aquiesceu ele, contrariado. — Não vi ninguém mais que a Sra. Drukker, se é o que o senhor deseja saber.

Vance interveio na conversa.

— Não viemos por isso, professor Dillard. Queríamos perguntar-lhe simplesmente se a Sra. Drukker lhe deu a impressão esta manhã de haver suspeitado do acontecido em Riverside Park.

O professor esteve a ponto de responder asperamente, porém se conteve. Após um momento, ele disse simplesmente:

— Não, ela não me deu tal impressão.

— Aparentava ela estar um tanto incomodada ou, melhor dizendo, excitada?

— Não! — O professor Dillard enfrentou Markham. — Compreendo perfeitamente até onde os senhores querem chegar e eu não o permitirei. Já disse ao senhor, Markham, que não tomarei parte em espionagens e enredos, sempre que se trate dessa infeliz mulher. Isso é tudo que eu tenho a dizer ao senhor. — Voltou à sua mesa. — Sinto muito, porém estou muito ocupado hoje.

Descemos ao pavimento térreo e nos despedimos de Arnesson. Este nos saudou cordialmente com a mão ao sairmos, mas seu sorriso tinha qualquer coisa de proteção desdenhosa, como se tivesse estado presenciando e se deleitasse com o nosso insucesso.

Quando chegamos à rua, Vance acendeu um novo cigarro.

— Agora, tenhamos uma breve conversa com o triste e cavalheiresco Sr. Pardee. Não sei o que nos poderá dizer, porém tenho muita vontade de conversar com ele.

Entretanto, Pardee não estava em casa. Seu criado japonês nos informou que ele provavelmente estava no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Amanhã teremos tempo de sobra — disse Vance a Markham ao retirarem-se. — Conversarei como o Dr. Barstead, pela manhã, e tratarei de arranjar uma entrevista com a Sra. Drukker. Incluiremos Pardee nessa peregrinação.

— Espero com segurança — grunhiu Heath — que saberemos amanhã mais do que sabemos hoje.

— Você omite um ou dois detalhes consoladores, sargento — respondeu Vance. — Verificamos que as pessoas das relações de Dillard conheciam Sprigg e que não é de estranhar que soubessem de seus passeios matinais muito cedo, às margens do Hudson. Soubemos também que o professor Dillard e a Sra. Drukker passearam juntos pelo jardim às oito desta manhã. E descobrimos que um revólver 32 desapareceu da sala do clube. Não é grande coisa... porém já é algo.

Enquanto nos dirigíamos para o centro da cidade, Markham despertou da sombria abstração em que se achava mergulhado e olhou para Vance com apreensão.

— Tenho quase medo de continuar com este caso. A coisa se torna cada vez mais sinistra; se os jornais se inteiram dessa poesia infantil de John Sprigg e relacionam os dois assassinados, não quero pensar na sensação e no espalhafato que se seguirão a tudo isso.

— Receio que dessa você não escape — suspirou Vance. — Eu não sou nem um pouco psíquico, nunca tive sonhos que se realizassem e não sei o que sejam poderes telepáticos... todavia algo me diz que o Bispo vai dar a conhecer à imprensa esse versinho do folclore infantil. O fim dessa nova farsa é ainda mais obscuro que o da comédia de Cock Robin. Tratará de que todos se inteirem. Até o humorista mais sombrio que se utiliza de cadáveres deve ter seu auditório. Eis aí a única fraqueza de seus crimes abomináveis e quase nossa única esperança, Markham.

— Telefonarei a Quinan — disse Heath — e averiguarei se recebeu alguma coisa.

O incômodo foi poupado ao sargento. O repórter do World estava à nossa espera no gabinete do procurador do distrito, e Swacker fê-lo entrar imediatamente.

— Como tem passado, Sr. Markham? — Nas maneiras de Quinan havia um leve ar de impudência, mas, por outro lado, mostrava sinais de excitação nervosa. — Tenho aqui algo para o sargento Heath. Na Polícia Central, disseram-me que estava a seu cargo o caso Sprigg e que, neste momento, o sargento se achava em entendimentos com o senhor. — Mexeu em seu bolso e, tirando uma folha de papel, entregou-a a Heath. — Com você eu estou bem servido, sargento, de modo que espero que me comunique algumas novidades em reciprocidade... Olhe para este documento. Acaba de recebê-lo o mais importante jornal familiar da América.

Era um pedaço de papel de máquina que continha a melodia de John Sprigg, de "Mother Goose", datilografada em tipo "elite" numa fita azul-pálida. No ângulo inferior direito, estava assinado com letras maiúsculas: O BISPO.

— E aqui está o envelope, sargento. — Quinan meteu outra vez a mão no bolso.

O carimbo indicava as 9 horas da manhã e, tal como a primeira nota, esta havia sido postada na Agência "N" do correio.


XII

 

UMA VISITA À MEIA-NOITE

 

(Terça-feira, 12 de abril — 10h)

 

Na manhã seguinte, a primeira página dos diários da cidade trazia reportagens sensacionais que ultrapassavam os maiores temores de Markham.

Além do World, outros dois grandes matutinos receberam notas iguais à que Quinan nos mostrou. A excitação a que deu motivo sua publicação foi tremenda. Toda a cidade se achava num estado de apreensão e temor. E ainda que tentativas diferentes fossem feitas aqui e ali para afastar o aspecto insano dos crimes no terreno da consciência, e para explicar as notas do Bispo como sendo obra de um espírito brincalhão, todos os jornais e a maioria do público estavam completamente convencidos de que um novo e terrível tipo de assassino ameaçava a comunidade (1).

(1) Um estado semelhante de pânico acorreu em Londres em 1888, quando Jack, o Estripador, estava ocupado em sua anormal e macabra tarefa. Outra vez em Hanover, em 1923, quando Haarmann, o Lobo, cometia carnificinas próprias de antropófagos. Mas, não me recordo de nenhum outro paralelo moderno pela atmosfera de horrível terror que reinou em Nova York durante os assassinatos do Bispo.

 

Markham e Heath foram acossados pelos repórteres de todos os jornais, porém um véu de mistério foi mantido resolutamente. Não se deu nenhuma insinuação de que existiam motivos para crer que a solução se encontrava junto à casa de Dillard. Tampouco se fez menção do desaparecimento do revólver 32. A situação de Sperling era tratada pela imprensa com simpatia. A opinião geral era de que o jovem havia sido vítima das circunstâncias, e toda crítica da demora de Markham em acusá-lo havia sido abandonada.

No dia em que mataram Sprigg, Markham teve uma conferência no Club Stuyvesant. Tomaram parte o inspetor Moran, do Gabinete de Investigações, e o inspetor-chefe O'Brien (1) Os dois assassinatos foram discutidos com detalhes e Vance expôs as razões de sua crença de que a resposta ao problema seria encontrada finalmente ou em casa de Dillard ou em algum lugar relacionado diretamente com a referida casa.

(1) O inspetor-chefe O'Brien estava então encarregado de todo o Departamento de Polícia.

 

— Estamos agora em contacto — terminou de falar Vance — com todas as pessoas que puderam evidentemente ter tido suficiente conhecimento das condições que cercavam as duas vítimas para perpetrar os crimes com êxito, e nosso único caminho é concentrar a atenção nessas pessoas.

O inspetor Moran estava inclinado a aceitar essa teoria, exceto — disse ele — que "nenhuma das personagens dramáticas que você mencionou é, na minha opinião, um maníaco sangrento".

— O assassino não é um maníaco no sentido convencional — respondeu Vance. — Provavelmente normal em tudo o mais. Em realidade, seu cérebro pode ser brilhante, exceto quanto a essa lesão... e, direi mais, brilhantíssimo. Ele perdeu todo o senso de proporção através de puras especulações exaltadas.

— Mas um super-homem pervertido se contenta com esses gracejos revoltantes, sem motivo algum? — perguntou o inspetor.

— Ah, mas o caso é que há um motivo. Algum impulso tremendo se oculta atrás da concepção monstruosa destes assassinatos... um impulso que em seus resultados eficazes toma a forma de humorismo satânico.

O'Brien não tomou parte nesta discussão. Ainda que impressionado pelas vagas implicações do caso, ele se exasperava pelo caráter impraticável do mesmo.

— Essa espécie de conversa — disse gravemente — esta bem para os editoriais dos jornais, porém não é viável. — Sacudiu seu grande charuto na direção de Markham. — O que temos de fazer é procurar todos os indícios e conseguir alguma outra evidência legal.

Foi decidido finalmente que as notas do Bispo deviam ser levadas a um perito analista e que se fizesse esforço no sentido de se descobrir a máquina de escrever e a papelaria onde compravam o papel. Uma busca sistemática devia ser feita para se conseguirem testemunhas que pudessem ter visto alguém em Riverside Park, entre as sete e as oito daquela manhã. Os costumes e as relações de Sprigg deviam ser objetos de investigações minuciosas. E um homem devia ser destacado para interrogar o carteiro da seção, com a esperança de que, ao tomar as cartas das diversas caixas, ele tivesse notado os envelopes dirigidos aos jornais e pudesse dizer em que caixa os havia colhido.

Várias outras atividades puramente formais foram traçadas, e Moran sugeriu que por algum tempo três homens fossem estacionados dia e noite na vizinhança dos assassinatos para surpreender algum imprevisto acontecimento ou alguma ação suspeita dos elementos envolvidos. O Departamento de Polícia e o gabinete do inspetor do distrito deviam trabalhar de comum acordo. Markham, implicitamente de acordo com Heath, assumiu a direção.

— Já entrevistei os membros das famílias Dillard e Drukker em relação ao assassinato de Robin — explicou Markham a Moran e a O'Brien — e falei com o professor Dillard e com Arnesson relativamente ao caso Sprigg. Amanhã verei Pardee e os demais Drukkers.

Na manhã seguinte, Markham, acompanhado de Heath, foi à casa de Vance, um pouco antes das dez horas.

— Isso não pode continuar assim — declarou aquele depois dos cumprimentos. — Temos de inquirir alguém que saiba alguma coisa. Vou apertar o torniquete... e ao diabo as conseqüências!

— Persiga-os por todos os meios possíveis. — O próprio Vance parecia desesperado. — Apesar de eu duvidar que isso dê algum resultado. Nenhum processo comum poderá resolver este enigma. Entretanto, telefonei a Barstead. Disseme ele que poderemos falar com a Sra. Drukker esta manhã.

Mas, arranjei para falar com ele primeiro. Tenho de conhecer mais alguma coisa sobre a patologia de Drukker. As corcovas, você sabe, não são geralmente produzidas por quedas.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do médico, sendo recebidos no instante. O Dr. Barstead era um homem corpulento, agradável, e cujas maneiras cordiais eram, a meu ver, resultado de uma disciplina forçada.

Vance foi direto ao assunto.

— Temos motivos para crer, Dr. Barstead, que a Sra. Drukker e talvez seu filho estejam indiretamente comprometidos no caso da morte recente de Robin na casa de Dillard. E, antes de interrogá-los, desejávamos que o senhor dissesse, até onde permite a ética profissional, alguma coisa sobre a situação neuropática que estamos enfrentando.

— Rogo-lhe que seja mais explícito, senhor — disse o Dr. Barstead, com defensiva naturalidade.

— Disseram-me — continuou Vance — que a Sra. Drukker se considera responsável pela cifose de seu filho, porém a meu ver tais deformações não resultam ordinariamente de simples males físicos.

O Dr. Barstead meneou a cabeça lentamente.

— Isso é verdade. A paraplexia compressiva da espinha dorsal pode seguir-se a uma deslocação ou golpe, mas a lesão assim produzida é de tipo focai transversal. A osteíte ou cárie das vértebras, o que comumente chamamos mal de Pott, é geralmente de origem tuberculosa. E esta tuberculose da espinha ocorre mais freqüentemente na infância. Amiúde existe no momento de nascer. É certo que um acidente pode preceder o surto, determinando o lugar da infecção ou excitando um foco latente. E este fato, indubitavelmente, dá origem à crença de que o golpe em si produz a enfermidade. Mas, Schmaus e Harsley expuseram a verdadeira anatomia patológica da cárie espinhal. A deformidade de Drukker é inquestionávelmente de origem tuberculosa. Sua mesma curvatura é de tipo marcadamente redondo, denotando um extenso envolvimento das vértebras. E não há esco-liose de nenhuma classe. Mais ainda, tem todos os sinais locais da osteíte.

— O senhor, naturalmente, explicou a situação à Sra. Drukker, não?

— Em muitas ocasiões. Mas, não tive êxito. O fato é que um instinto terrível de martírio pervertido leva-a a aferrar-se à idéia de que ela é responsável pela situação de seu filho. Esta noção errônea converteu-se nela numa idéia fixa. Constitui todo o seu programa mental e dá uma significação à vida de serviço e sacrifício que ela vem vivendo há quarenta anos.

— Até que ponto — perguntou Vance — diria o senhor que essa psiconeurose afetou o cérebro dela?

— Isto seria difícil afirmar. E não é uma questão que eu gostaria de discutir. Entretanto, posso dizer o seguinte: ela é uma mulher indubitavelmente mórbida. E seus valores têm variado. Às vezes tem havido, isto lhes digo com o maior sigilo, sinais de marcada alucinação quando se trata de seu filho. O bem-estar dele é para ela uma obsessão. Não há nada que ela não faça por ele.

— Apreciamos sua confidencia, doutor... e não seria lógico supor que o ânimo alterado que ela apresentava ontem resultou de algum temor ou susto relacionado com o bem-estar do filho?

— Sem dúvida. Ela não tem vida afetiva ou mental a não ser em função dele. Mas, se seu desfalecimento momentâneo foi devido a um temor real ou imaginário, não se pode dizer. Ela vive há muito tempo na fronteira entre a realidade e a fantasia.

Houve um breve silêncio e em seguida Vance perguntou:

— Em relação a Drukker, o senhor o considera responsável por seus atos?

— Desde que é meu paciente — replicou o Dr. Bartead em tom glacial — e desde que não tomei providência alguma para interditá-lo, considero sua pergunta uma impertinência.

Markham inclinou-se para a frente e falou peremptoriamente.

— Não temos tempo para rodeios, doutor. Estamos investigando uma série de crimes atrozes. O Sr. Drukker está envolvido neles... até que ponto não o sabemos. Mas é nosso dever averiguá-lo.

O primeiro impulso do médico era combater Markham. Mas, evidentemente, pensou melhor, pois quando respondeu, o fez em tom tranqüilo e indulgente.

— Não tenho motivos para negar informação aos senhores. Mas perguntar sobre a responsabilidade do Sr. Drukker é imputar-me negligência em assunto da segurança pública. Talvez, entretanto, eu haja compreendido mal a pergunta deste cavalheiro. — Ele examinou Vance um breve instante. — Há naturalmente graus de responsabilidade — continuou com seus modos profissionais. — A mente do Sr. Drukker está hiperdesenvolvida como sucede amiúde com as vítimas da cifose. Todos os processos mentais estão voltados para dentro, por assim dizer. E a ausência de reações físicas normais tende geralmente a produzir inibições e aberrações. Não notei, porém, sintomas desta espécie no Sr. Drukker. Ele é excitável e propenso à histeria; mas a psicoqueniesia é um acompanhamento comum de sua enfermidade.

— Que forma tomam as reações dele? — perguntou Vance num tom cortês e casual.

O Dr. Barstead pensou um momento.

— A dos jogos infantis, diria eu. Tais divertimentos não são raros nos aleijados. No caso do Sr. Drukker, é o que poderíamos chamar um desejo irrealizado que desperta. Não tendo tido infância normal, apodera-se de tudo que lhe dê um sentido de reabilitação juvenil. Suas atividades infantis tendem a equilibrar sua vida puramente mental.

— Qual é a atitude da Sra. Drukker em relação ao instinto dele para o jogo?

— Ela o estimula muito corretamente. Muitas vezes eu a vi apoiando-se contra o muro sobre o campo de jogos, em Riverside Park, a contemplá-lo. Também preside às festas e banquetes infantis que ele dá em sua casa.

Ao fim de alguns minutos, retiramo-nos. No instante em que dobrávamos a esquina para entrar na Rua 76, Heath, como se despertasse de um pesadelo, suspirou profundamente e ergueu-se no carro.

— O senhor prestou atenção ao ponto dos jogos infantis? — perguntou ele com voz cheia de terror. — Santo Deus, Sr. Vance! Em que vai acabar isso?

Uma tristeza curiosa se mostrava nos olhos de Vance enquanto olhava para os barrancos nevoentos de Jersey, no outro lado do rio.

Ao chegarmos à casa de Drukker, fomos atendidos por uma roliça mulher alemã, que se plantou insòlitamente diante de nós, informando-nos suspeitosamente que o Sr. Drukker estava muito ocupado e não podia receber ninguém.

— É melhor que lhe diga — disse Vance — que o procurador do distrito lhe deseja falar imediatamente.

Suas palavras produziram um efeito estranho na mulher. Levou as mãos ao rosto e seu enorme peito subia e descia convulsivamente. Em seguida, como que cheia de terror, saiu e subiu as escadas. Ouvimos que batia numa porta. Houve sons de vozes. Ao fim de um instante, voltou para informar-nos que o Sr. Drukker nos esperava em seu escritório. Ao passar junto à mulher, Vance voltou-se de súbito e, fixando o olhar sobre ela firmemente, perguntou:

— A que hora se levantou ontem o Sr. Drukker?

— Eu... não sei — tartamudeou ela completamente assustada. — Sim, sim, já sei. Às nove... como sempre.

Vance sacudiu a cabeça e seguiu seu caminho.

Drukker nos recebeu de pé, junto a uma mesa grande coberta de livros e folhas de manuscritos. Fez uma saudação com a cabeça, melancòlicamente, mas não nos convidou a sentar.

Vance estudou-o um momento como se tentasse descobrir o segredo que se ocultava atrás daqueles intranqüilos olhos fundos.

— Sr. Drukker — começou a dizer, — não é nosso desejo causar-lhe um incômodo desnecessário, mas soubemos que o senhor conhecia John Sprigg, que, como deve saber, foi morto por um balaço perto daqui, ontem pela manhã. Poderia o senhor sugerir-nos que motivos pudesse ter alguém para matá-lo?

Drukker empertigou-se todo. Apesar de seu esforço para dominar-se, havia em sua voz, ao responder, um ligeiro tremor.

— Conhecia o Sr. Sprigg, mas muito pouco. Não posso sugerir absolutamente nada a respeito de sua morte.

— Em seu corpo foi encontrado um pedaço de papel com o tensor Riemann-Christoffel que o senhor apresenta em seu livro, no capítulo sobre a limitação do espaço físico. — Enquanto falava, Vance pegara numa folha de papel escrita à máquina e olhava-a como por acaso.

Drukker pareceu não notar a ação. A informação contida nas palavras de Vance havia absorvido sua atenção.

— Não posso compreender — disse ele vagamente. — Posso ver a anotação?

Markham acedeu em seguida ao pedido. Depois de examinar por um momento o papel, Drukker o devolveu, semi-cerrando os olhos maliciosamente.

— O senhor consultou Arnesson sobre isso? Na semana passada ele discutiu essa fórmula com Sprigg.

— Sim — disse Vance como que distraído. — O Sr. Arnesson recordou esse fato, mas não pôde projetar nenhuma luz. Acreditamos que talvez o senhor pudesse ter êxito onde ele havia fracassado.

— Sinto muito não poder satisfazer seus desejos. — Na resposta de Drukker havia algo de escárnio. — O tensor pode ser usado por qualquer pessoa. Weyl e Einstein o empregaram em suas obras muitas vezes. Seu uso não está proibido... — Inclinou-se sobre uma estante giratória, e retirou um pequeno volume. — Aqui está no Princípio da Relatividade de Minkowski, só que com símbolos diferentes... por exemplo, em vez de B, usa T e como índices emprega letras gregas. — Tomou outro volume. — Poincaré também o usou em suas Hipóteses Cosmogônicas, com ainda outros equivalente simbólicos. — Jogou displicentemente os livros sobre a mesa. — Por que me vêm a mim com isso?

— Não foi só a fórmula do tensor que nos fez vir à sua casa — respondeu Vance despreocupadamente. — Temos motivos para crer que a morte de Sprigg está relacionada com o assassinato de Robin...

As mãos largas de Drukker apertaram as bordas da mesa e ele se inclinou para a frente. Seus olhos brilhavam nervosamente.

— Relacionados Sprigg e Robin? Os senhores não acreditam no que os jornais dizem, não é verdade?... É uma mentira infame! — Seu rosto começou a contorcer-se e a voz tornou-se-lhe estridente. — É uma loucura... Eu digo aos senhores que não existe prova nenhuma... em absoluto!

— Cock Robin e John Sprigg, — disse Vance com voz suave e insistente.

— É uma estupidez! Uma verdadeira estupidez! Oh, Deus! O mundo tornou-se louco... — Enquanto golpeava a mesa com a mão, fazendo voar os papéis em todas as direções, balançava-se para trás e para diante.

Vance olhou para ele com surpresa moderada.

— Não conhece o Bispo, Sr. Drukker?

O homem parou de balançar-se e, aprumando-se, olhou Vance com terrível intensidade. Sua boca estava contraída nos cantos, apresentando o riso transversal da distrofia muscular progressiva.

— Também os senhores Tornaram-se loucos! — Passeou o olhar por todos nós. — Os senhores, loucos varridos! Não existe tal Bispo! Nem tampouco existiram Cock Robin ou John Sprigg. E aqui estão os senhores... homens grandes... tratando de assustar-me... A mim, um matemático... com contos infantis! — E começou a rir-se histèricamente.

Vance encaminhou-se para ele rapidamente e, tomando-o pelo braço, levou-o até uma cadeira. Lentamente seu riso foi desaparecendo, e ele fez um movimento com as mãos, denotando cansaço.

— É uma pena que Robin e Sprigg tenham sido mortos. — Sua voz era forte e incolor. — Mas, a única coisa que interessa são as crianças... Os senhores encontrarão provavelmente o assassino. Caso contrário, eu os ajudarei. Mas, não deixem voar a imaginação. Atenham-se aos fatos... aos fatos...

O homem estava esgotado, e o deixamos.

— Está assustado, Markham... Muito assustado — observou Vance, quando atingimos o hall outra vez. — Agradar-me-ia saber o que se oculta naquela mente astuta e distorcida.

Encaminhou-se, então, para a porta do quarto da Sra. Drukker. Nós o seguimos.

— Este método de visitar uma dama não está de acordo com a etiqueta social. Para falar a verdade, Markham, eu não nasci para a polícia. Detesto-a.

Uma voz débil respondeu à nossa chamada. A Sra. Drukker, mais pálida que de ordinário, estava recostada em seu canapé junto à janela. Suas brancas e plácidas mãos descansavam sobre os braços do assento, ligeiramente flexionadas. E mais que uma vez me vieram ao espírito os desenhos que havia visto das vorazes harpias, na lenda dos argonautas.

Antes que pudéssemos falar, ela nos disse com voz tensa e terrível:

— Já sabia que os senhores viriam, que não se haviam cansado de atormentar-me...

— Torturá-la, Sra. Drukker, — respondeu Vance suavemente — é coisa que está longe de nossos pensamentos. Só queremos seu auxílio.

A maneira de Vance pareceu aplacar um pouco seu temor e ela o estudou calculadamente.

— Se pudesse ajudá-los! — murmurou. — Mas não há nada a fazer... nada...

— A senhora nos poderia dizer o que foi que viu de sua janela no dia da morte de Robin — sugeriu Vance, bondosamente.

— Não!... Não!... — Seu olhar era de terror. — Não vi nada... Não estive à janela naquela manhã. Matem-me, porém minhas últimas palavras serão Não... não... não!

Vance não insistiu mais nesse ponto. — Beedle nos disse — continuou ele — que a senhora se levanta em geral muito cedo para passear no jardim.

— Sim — a palavra saiu com um suspiro de alívio. — Eu não durmo bem de manhã. Constantemente desperto com dores na coluna vertebral e com os músculos das costas rígidos e doloridos. Por isso, levanto-me e passeio pelo jardim quando o tempo está bom e agradável.

— Beedle viu a senhora no jardim, ontem de manhã. A mulher anuiu com a cabeça, abstratamente.

— E também viu com a senhora o professor Dillard. Outra vez sacudiu a cabeça, mas logo lançou a Vance um olhar inquisitivo de desafio.

— Às vezes, ele passeia comigo — apressou-se a explicar. — Tem pena de mim e admira Adolph, a quem julga um gênio. E o é! Seria um grande homem... tão grande como o professor Dillard... se não fosse a sua enfermidade... E eu tive a culpa. Deixei-o cair ao chão quando era criança...

Um soluço seco sacudiu-lhe o corpo extenuado e seus dedos se moveram espasmòdicamente.

Após um momento, Vance perguntou:

— Sobre que falaram a senhora e o professor Dillard, ontem de manhã?

A mulher mostrou uma repentina perspicácia.

— De Adolph quase todo o tempo — disse ela numa tentativa evidente de mostrar naturalidade.

— Viu a senhora mais alguém no pátio ou no campo de exercícios?

Os olhos indolentes de Vance pousaram na mulher.

— Não — Outra vez foi a Sra. Drukker dominada por uma espécie de terror. — Contudo, alguém mais estava ali, não é verdade?... Alguém que desejava não ser visto. Sim! Alguém mais estava lá... E acreditaram que eu o havia visto... Porém, não vi! Oh, Deus misericordioso, eu não vi!...

— Ocultou o rosto nas mãos e seu corpo tremeu convulsivamente. — Se eu os tivesse visto! Se eu soubesse! Mas não era Adolph... Não era meu filho. Ele estava dormindo... graças a Deus, estava dormindo!

Vance aproximou-se mais da mulher.

— Por que dá graças a Deus de não ter sido seu filho?

— perguntou gentilmente.

Ela levantou os olhos, assombrada.

— Então, o senhor não se lembra? Um homenzinho disparou um tiro em John Sprigg com um pequeno revólver, ontem pela manhã... O mesmo homenzinho que matou Cock Robin, com um arco e uma flecha. Tudo isso é um jogo horrível... e eu tenho medo... Mas, não devo dizer... não posso dizer. O homenzinho se vingaria horrivelmente. Pode ser... — Sua voz exprimia horror. — Pode ser que ele tenha a idéia louca de que eu seja a velha que morava num sapato.

— Vamos, vamos, Sra. Drukker. — Vance forçou um sorriso consolador. — Não está bem que a senhora fale assim. A senhora deixou que isso tomasse conta de seu cérebro. Há uma explicação perfeitamente racional para todas as coisas. E eu penso que a senhora pode ajudar-nos a encontrar essa explicação.

— Não... não! Não posso... não devo! Eu mesma não compreendo. — Inspirou profunda e fortemente e apertou os lábios.

— Por que não pode dizer-nos? — insistiu Vance.

— Porque não sei — gritou ela. — Bem gostaria de saber! Só sei que algo horrível está-se passando aqui... que alguma terrível maldição paira sobre esta casa...

— Como sabe a senhora?

A mulher começou a tremer violentamente e seus olhos vagavam perdidos pelo teto.

— Porque — sua voz era apenas perceptível — porque o homenzinho veio aqui esta noite!

Um calafrio percorreu-me a medula ante tal revelação, e cheguei até a ouvir a respiração do imperturbável sargento. Em seguida soou a voz tranqüila de Vance:

— Como sabe que ele esteve aqui, Sra. Drukker? A senhora o viu?

— Não, não o vi. Mas ele tentou entrar neste quarto por aquela porta. — Apontou vagamente para a porta de entrada do hall, por onde acabávamos de entrar.

— A senhora deve contar-nos tudo — disse Vance — senão acabaremos crendo que a senhora forjou a história.

— Oh, não inventei nada... que Deus seja testemunha!

— Não podia haver dúvida alguma sobre a sinceridade da mulher. Algo havia ocorrido que a encheu de terror mortal.

— Eu estava desperta, deitada na cama. O pequeno relógio sobre a lareira deu onze horas. E eu ouvi um ruído surdo, fora, no hall. Voltei a cabeça para a porta... nesta mesa aqui havia uma lâmpada... em seguida percebi que a maçaneta se movia lentamente... silenciosamente... como se alguém procurasse penetrar aqui sem me despertar...

— Um momento, Sra. Drukker — interrompeu Vance.

— A senhora fecha sempre à chave a porta de seu quarto, quando se recolhe à noite?

— Até há pouco tempo não a fechava... até à morte do Sr. Robin. Desde então me senti de algum modo insegura... não posso explicar por quê...

— Compreendo. Peço que continue o relato. A senhora disse que viu a maçaneta mexer-se. E depois?

— Sim, sim. Movia-se suavemente, para um lado e para outro. Eu estava deitada ali, em minha cama, gelada de terror. Mas, ao fim de algum tempo pude gritar... não sei se muito alto; mas, subitamente a maçaneta parou de mover-se e ouvi passos que se afastavam rapidamente... pelo vestíbulo. Então pude levantar-me. Fui até à porta e escutei. Tinha medo... medo por causa do Adolph. E eu ouvi aqueles passos descendo pela escada...

— Que escada?

— A dos fundos... a que conduz à cozinha... Em seguida, a porta de tela de arame do pórtico fechou-se e tudo voltou ao silêncio outra vez... Ajoelhei-me, encostando o ouvido na fechadura, durante muito tempo, escutando, esperando. Porém, nada sucedeu. Por fim, me levantei... Algo parecia dizer-me que devia abrir a porta. Eu estava mortalmente amedrontada... e, não obstante, sabia que tinha de abrir a porta... — Um estremecimento percorreu-lhe o corpo. — Levemente, dei a volta à chave e peguei na maçaneta. Enquanto puxava a porta para dentro, lentamente, caiu ao chão, com ruído, um objeto pequeno que estava sobre a maçaneta, do lado de fora. No vestíbulo, estava acesa uma lâmpada... sempre conservo uma luz acesa toda a noite... e tentei não olhar para o chão... tentei... tentei... mas não podia. E ali, a meus pés... oh, Deus dos céus!... havia algo!...

Não pôde continuar. O terror parecia paralisar-lhe a língua. Entretanto, a voz de Vance, fria e insensível, chamou-a à realidade.

— Que é que havia no chão, Sra. Drukker?

Com dificuldade, a mulher levantou-se e, concentrando as forças um momento ao pé da cama, encaminhou-se para o toucador. Apanhando uma caixinha, abriu-a e procurou alguma coisa no seu interior. Em seguida, estendendo a mão em nossa direção, vimos na palma da mesma uma peça de xadrez... preta, de ébano, que contrastava com a brancura de sua pele. Era o bispo!


XIII

 

À SOMBRA DO BISPO

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h)


Vance tomou o bispo da mão da Sra. Drukker e pô-lo no bolso de seu casaco.

— Seria perigoso, senhora, — disse com propositada solenidade — que fosse divulgado o que aconteceu aqui, esta noite. Se a pessoa que amedrontou a senhora soubesse que a polícia já foi informada, poderia fazer novas tentativas para assustá-la. Por conseguinte, nenhuma palavra do que acaba de nos contar deve sair de seus lábios.

— Não posso contar a Adolph? — perguntou a mulher, agitada.

— A ninguém! A senhora deve guardar silêncio absoluto, mesmo em presença de seu próprio filho.

Eu não podia compreender a ênfase de Vance sobre este ponto. Antes, porém, que transcorressem muitos dias, tudo me foi esclarecido. O motivo de tal conselho revelou-se com força trágica. E eu verifiquei que, no mesmo momento da exposição da Sra. Drukker, o espírito penetrante de Vance havia realizado um raciocínio impressionantemente exato e também previsto certas possibilidades insuspeitadas por todos nós.

Ao cabo de um momento, retiramo-nos descendo pela escada de serviço. Esta dobrava para a direita, ao chegar a um patamar, oito ou dez degraus abaixo do segundo andar. Conduzia a um corredor escuro com duas portas: uma à esquerda, que dava para a cozinha e a outra, diagonalmente oposta, que dava para o pórtico, onde se encontra a porta de grades. Saímos imediatamente pelo pórtico, banhado agora pela luz solar, paramos sem dizer palavra, procurando afastar de nós a atmosfera criada pela terrível experiência por que passara a Sra. Drukker.

Markham foi o primeiro a falar.

— Acredita você, Vance, que a pessoa que trouxe esta pedra de xadrez na noite passada seja o assassino de Robin e Sprigg?

— Sem dúvida alguma. O propósito da sua visita da meia-noite é espantosamente claro. Está de acordo com o que já foi esclarecido.

— A mim parece uma pilhéria de mau gosto — respon-i deu Markham. — Obra de um bêbedo diabólico...

Vance sacudiu a cabeça.

— Em todo este pesadelo, é a única coisa que não pode qualificar-se como obra de insano humorismo. Foi uma incursão tremendamente séria. O próprio diabo nunca é tão solene como quando disfarça suas pegadas. A mão do nosso diabo em questão havia sido forçada, e ele fez uma jogada audaciosa. Juro que prefiro seu temperamento jovial ao que o impulsionou a penetrar aqui a noite passada. Entretanto, temos agora alguma coisa positiva em que nos apoiarmos.

Heath, impaciente com tanta teoria, recolheu rapidamente estas últimas palavras.

— E que poderá ser essa coisa, senhor?

— Em primeiro lugar, podemos afirmar que nosso jogador de xadrez está muito familiarizado com a planta desta casa. A luz noturna do vestíbulo superior podia espalhar sua claridade pela escada até ao patamar, mas o resto do percurso deve ter ficado às escuras. Mais ainda, a distribuição da parte posterior da casa é um tanto complicada. Por conseguinte, a menos que conhecesse esta distribuição, não podia encontrar seu caminho nas trevas, sem fazer barulho. Indubitavelmente, o visitante noturno também sabia qual era o quarto da Sra. Drukker e o fato de o filho dela não ter ainda voltado para casa, nesta noite, pois não se teria arriscado a fazer sua visita se não estivesse certo de que o terreno estava livre.

— Até agora, isto não nos ajuda muito — grunhiu Heath.

— Estamos desde o princípio convencidos de que o assassino conhecia tudo que se relaciona com estas duas casas, e não nos podemos afastar dessa convicção.

— É verdade. Mas, pode-se ser íntimo de uma família e, não obstante, ignorar a hora em que se recolhe cada uma das pessoas que a formam, em determinada noite, e como efetuar uma entrada sub-reptícia na casa. Mais ainda, sargento, nosso visitante noturno sabia que a Sra. Drukker costumava deixar sem chave, todas as noites, a porta do seu quarto. A intenção do indivíduo era penetrar no quarto e não deixar, simplesmente, sua pequena lembrança no lado de fora e logo partir. Prova isto a maneira furtiva de mexer na maçaneta.

— É possível que tenha querido simplesmente despertar a Sra. Drukker, para que ela encontrasse imediatamente o objeto — sugeriu Markham.

— Então, por que moveu tão cuidadosamente a maçaneta, como se procurasse não despertar ninguém? Um ruído na maçaneta, uma batida suave na porta, ou simplesmente atirar contra esta a peça de xadrez teria correspondido melhor ao seu propósito... Não, Markham, ele tinha um objetivo mais sinistro, mas, quando encontrou a porta fechada à chave e ouviu o grito de medo da Sra. Drukker, colocou o bispo em lugar que ela o pudesse achar e fugiu.

— Apesar disto, senhor, — redargüiu Heath, — qualquer pessoa podia saber que ela não fechava a porta de seu quarto à chave, à noite, e conhecer a disposição interna da casa para encontrar saída no meio da escuridão.

— Mas, sargento, quem poderia ter uma chave para abrir a porta dos fundos? E quem poderia tê-la usado à meia-noite?

— A porta poderia ter ficado aberta — replicou Heath

— e, quando confrontarmos os álibis de todos, poderemos ter uma pista.

Vance suspirou.

— Provavelmente encontraremos duas ou três pessoas, sem qualquer álibi. E, se a visita da noite passada foi planejada, um convincente álibi pode ter sido preparado. Não estamos lidando com um simplório, sargento. Estamos jogando uma partida de morte com um assassino sutil e de muitos recursos, que pode pensar tão rapidamente como nós e que é amplamente versado nas sutilezas da lógica...

Como movido por um súbito impulso, virou-se, passando para dentro e fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. Dirigiu-se para a cozinha, onde a alemã que nos havia recebido antes estava fleumàticamente sentada a uma mesa, preparando o almoço. Ela levantou-se no momento em que entrávamos e afastou-se de nós. Vance, intrigado por aquele procedimento, estudou-a por alguns momentos em silêncio. Então, seus olhos dirigiram-se para a mesa onde uma berinjela grande tinha sido cortada longitudinalmente em duas metades.

— Ah! — exclamou ele, olhando o conteúdo dos vários pratos que ali havia. — Aubergines à la Turque, hem? Excelente prato. Entretanto, em seu caso, eu teria picado a carne de carneiro em pedaços menores. E não lhe teria posto tanto queijo, pois não combina com o molho espanhol que você está preparando. — Levantando a vista, com sorriso agradável, perguntou: — A propósito, como se chama você?

Seus modos aturdiram grandemente a. mulher, mas também tiveram o efeito de aliviar os temores dela.

— Menzel — respondeu ela com voz sumida. — Greta Menzel.

— Há quanto tempo está com os Drukkers?

— Vai para vinte e cinco anos.

— Muito tempo — comentou Vance pensativamente. — Diga-me: Por que você se assustou quando chegamos?

A mulher irritou-se e cerrou os punhos.

— Eu não estava assustada. Mas o Sr. Drukker estava ocupado.

— Você pensou talvez que viéssemos prendê-lo — disse Vance.

Seus olhos dilataram-se, porém ela não respondeu.

— A que horas o Sr. Drukker se levantou ontem de manhã? — continuou Vance.

— Já lhe disse... às nove horas... como sempre.

— A que horas se levantou o Sr. Drukker? — O tom insistente e preciso de sua voz era muito mais nefasto do que qualquer gesticulação dramática.

— Eu lhe disse...

— Die Wahrheit, Frau Menzel! Um wie viel Uhr ist er aufgestanden?

O efeito psicológico dessa repetição da pergunta em alemão foi instantâneo. A mulher cobriu o rosto com as mãos e deixou escapar um grito abafado como de um animal que caiu numa armadilha.

— Eu não sei... — gemeu ela. — Eu o chamei às oito e meia, porém não me respondeu; tratei de abrir a porta... não estava com chave... e... Du lieber Gott!... Ele tinha saído.

— Quando foi que você o viu depois disso? — perguntou Vance tranqüilamente.

— Às nove. Subi outra vez para dizer-lhe que o desjejum estava pronto. Encontrei-o no escritório... em sua escrivaninha... trabalhando como um louco e num estado de excitação muito grande. Mandou-me embora.

— Desceu para comer?

— Sim... Sim... Desceu... meia hora depois.

A mulher apoiou-se pesadamente na pia e Vance puxou uma cadeira para junto dela.

— Sente-se, Sra. Menzel — disse bondosamente. Assim que ela obedeceu, perguntou-lhe: — Por que me disse esta manhã que o Sr. Drukker se levantou às nove?

— Tive de dizê-lo... obrigaram-me a isto. — Sua resistência havia desaparecido e ela respirava pesadamente como uma pessoa cujas forças se houvessem esgotado. — Quando a Sra. Drukker voltou ontem da casa da Srta. Dillard, disseme que, se alguém perguntasse isso acerca do Sr. Drukker, eu dissesse "Às nove horas". Obrigou-me a jurar que eu o diria... — Sua voz desvaneceu-se e seus olhos tornaram-se vidrados. — Eu tinha medo de dizer coisa diferente.

Vance parecia ainda desconcertado. Depois de tirar algumas baforadas do seu cigarro, observou:

— Não há nada no que você nos disse que possa afetá-la deste modo. Não é raro que uma mulher mórbida como a Sra. Drukker tenha tomado semelhante medida fantástica para proteger seu filho contra uma possível suspeita, quando um assassinato foi cometido na vizinhança. Decerto você está há bastante tempo com ela para perceber como poderia exagerar qualquer possibilidade remota relativamente a seu filho. Na verdade, eu estou surpreendido de ver como você leva isso tão a sério. Terá você algum outro motivo que relacione o Sr. Drukker com esse crime?

— Não!... não!... — A mulher sacudiu a cabeça, fora de si.

Vance caminhou até a janela dos fundos, franzindo o cenho. Subitamente voltou-se. Tornara-se severo e implacável.

— Onde estava você, Menzel, na manhã em que o Sr. Robin foi morto?

Uma mudança surpreendente operou-se na mulher. O rosto tornou-se lívido; os lábios tremeram e as mãos crisparam-se em um gesto espasmódico. Ela procurou desviar seu olhar de Vance, porém algo nos olhos deste a retinha.

— Onde estava você, Menzel? — A pergunta foi repetida duramente.

— Eu estava... aqui... — começou a dizer; então deteve-se bruscamente e lançou um olhar agitado a Heath, que a olhava fixamente.

— Estava na cozinha?

Ela fez que sim com a cabeça. Parecia que a mulher havia perdido a voz.

— E viu o Sr. Drukker voltar da casa de Dillard? Outra vez ela respondeu afirmativamente com a cabeça.

— Exatamente — disse Vance. — E ele entrou pelos fundos, pela porta de grades do vestíbulo, e subiu... E ele não sabia que você o viu pela porta da cozinha... E, mais tarde, perguntou onde teria você estado àquela hora... E quando você lhe disse que tinha estado na cozinha, ordenou-lhe que guardasse silêncio sobre isso... E depois você soube da morte do Sr. Robin uns minutos antes do momento em que você o vira entrar aqui... E, ontem, quando a Sra. Drukker ordenou a você que dissesse que ele não se tinha levantado antes das nove, e quando você soube que alguém também tinha sido morto perto daqui, você suspeitou e assustou-se... Não é assim, Menzel?

A mulher, soluçando em voz alta, cobriu o rosto com o avental. Não havia necessidade de que ela confessasse, pois era evidente que Vance tinha adivinhado a verdade.

Heath tirou o cigarro da boca e olhou-a ferozmente.

— E então! Tudo isto você estava ocultando de mim, hem? — vociferou projetando o queixo. — Você me mentiu, quando eu a interroguei outro dia. Criando obstáculo à ação da justiça, não é?

Ela lançou a Vance um olhar aterrorizado, em busca de proteção.

— A Sra. Menzel, sargento, — disse ele — não teve a intenção de obstruir a ação da polícia; desde que ela nos disse a verdade, creio que poderemos relevar seu erro, que é perfeitamente natural no caso. — Então, antes que Heath tivesse tempo de responder, virou-se para a mulher e perguntou-lhe em tom indiferente:

— Você fecha todas as noites com chave a porta que dá para o vestíbulo?

— Sim... todas as noites. — Ela falava negligentemente. A reação do medo a havia deixado apática.

— Tem certeza de que a fechou a noite passada?

— Às nove e meia... quando eu fui para a cama. Vance atravessou o pequeno corredor e inspecionou a fechadura.

— É uma fechadura de mola — observou ele, voltando. — Quem tem chave desta porta?

— Eu tenho uma e a Sra. Drukker... tem também outra.

— Está certa de que ninguém mais tem chave?

— Ninguém mais, exceto a Srta. Dillard...

— A Srta. Dillard? — A voz de Vance ressoou, subitamente com interesse. — Por que ela deve ter chave?

— Há muito tempo que ela tem uma. Ela é como da família... Vem aqui duas ou três vezes por dia. Quando eu saio, fecho a porta com a chave. Assim, tendo ela uma, evita o incômodo à Sra. Drukker de descer para abrir-lhe a porta.

— Muito natural — murmurou Vance, acrescentando em seguida: — Não a incomodaremos mais, Menzel.

Dito isto, saímos pelo pequeno pórtico posterior. Uma vez fechada a porta atrás de nós, Vance apontou para a porta de grade, que dava para o pátio.

— Note como foi forçada essa tela de arame até separá-la da moldura, permitindo que pudessem meter a mão para puxar o ferrolho, ou pôr a chave da Sra. Drukker ou da Srta. Dillard na fechadura... Provavelmente, foi a chave desta última que usaram para abrir a porta da casa.

Heath meneou a cabeça. Este aspecto tangível do caso lhe agradava. Mas Markham não prestava atenção. Permanecia à margem, fumando com um ar de desprezo. Daí a pouco, voltou-se com resolução para tornar a entrar na casa, quando Vance lhe segurou no braço.

— Não... não, Markham! Esta seria uma técnica abominável. Domine sua raiva. Você é muito impulsivo, sabe?

— Mas, que diabo, Vance! — Markham sacudiu o braço até libertar-se. — Drukker mentiu-nos dizendo que saíra pelo portão de Dillard antes do assassinato de Robin...

— Já sei que ele mentiu. Eu suspeitei sempre de que o relato de seus movimentos era um tanto fantástico. Porém, é inútil subir agora e ameaçá-lo por causa disto. Dirá simplesmente que a cozinheira se enganou.

Markham não se convencia.

— Mas, e sobre ontem de manhã? Quero saber onde ele estava, quando a cozinheira o chamou às oito e meia. Por que a Sra. Drukker estava tão ansiosa em nos fazer acreditar que seu filho dormia?

— Provavelmente, ela foi também ao quarto dele e viu que não estava. E, quando soube da morte de Sprigg, sua imaginação febril sobressaltou-se e começou a construir um álibi. E você apenas aumentará sua perturbação, se lhe mostrar as discrepâncias do seu depoimento.

— Não tenho tanta certeza assim. — Markham falava com gravidade significativa. — Posso estar encaminhando uma solução para este odioso assunto.

Vance demorou em responder. Permaneceu olhando lá embaixo as sombras trêmulas que os salgueiros projetavam no chão. Afinal disse em voz baixa:

— Não podemos arriscar. Se o que você pensa fosse verdadeiro e você revelasse a informação acabada de receber, o homenzinho, que na noite passada esteve aqui, voltaria outra vez. E, desta vez, não se contentaria em deixar a pedra de xadrez fora da porta!

Uma expressão de terror apareceu no olhar de Markham.

— Você crê que eu poderia comprometer a segurança da cozinheira, se usasse de suas informações contra ele neste momento?

— O terrível deste assunto é que, enquanto não soubermos a verdade, encontraremos o perigo diante de nós a cada passo que dermos. — A voz de Vance denotava desânimo. — Não podemos pôr em risco a vida de ninguém.

A porta que dava para o vestíbulo abriu-se e Drukker apareceu no umbral com seus olhos miúdos pestanejando, à luz do sol. Seu olhar pousara em Markham e um sorriso artificial e repulsivo desenhava-se-lhe nos lábios.

— Espero não incomodar os senhores — disse em tom de desculpas e com um olhar furtivo e ameaçador. — Mas a cozinheira acaba de informar-me que lhes disse que me havia visto entrar aqui pela porta dos fundos, na manhã da infortunada morte do Sr. Robin.

— Oh, sim? — murmurou Vance, virando-se, ao mesmo tempo em que escolhia um outro cigarro.

Drukker lançou-lhe um olhar inquiridor e ergueu-se com uma espécie de cínica altivez.

— E que importância tem isso, Sr. Drukker? — perguntou Markham.

— Simplesmente, desejava assegurar aos senhores — replicou Drukker — que a cozinheira estava enganada. Evidentemente, confundiu a data... Como sabem os senhores, entro e saio por esta porta muitíssimas vezes. Na manhã da morte de Robin, como já lhes expliquei, saí para o campo de exercício pelo portão que dá para a Rua 75 e, depois de um ligeiro passeio pelo parque, voltei para casa, entrando pela porta da frente. Já convenci a Greta de que ela se enganou.

Vance escutava atentamente. Voltou-se então e encontrou o sorriso do outro.

— Por acaso, não a terá convencido com uma peça de xadrez?

Drukker sacudiu a cabeça e sorveu profundamente o ar. Seu peito recurvado tornou-se teso; os músculos ao redor dos olhos e da boca começaram a contorcer-se e as veias e liga-mentos do seu pescoço estufaram e ficaram firmes como cordas distendidas. Por um momento, acreditei que ele fosse perder o domínio de si mesmo; porém conteve-se, com grande esforço.

— Não compreendo, senhor. — Havia nas suas palavras a vibração de uma raiva intensa. — Que significa isso de pedras de xadrez?

— As peças de xadrez têm vários nomes — respondeu Vance suavemente.

— Está o senhor falando de xadrez? — Um desprezo venenoso marcou as maneiras de Drukker, mas ele procurava sorrir. — É muito certo, as peças de xadrez têm vários nomes; o rei, a rainha, o cavalo, a torre... — Aqui se deteve. — O bispo!... — Apoiou a cabeça no umbral da porta e começou a rir melancòlicamente. — Então! Refere-se o senhor a isto? O bispo!... Os senhores são umas crianças imbecis que jogam uma partida estúpida e insensata.

— Temos um motivo excelente para crer — disse Vance com calma impressionante — que o jogo está sendo jogado por outro... com o bispo do xadrez como símbolo principal.

Drukker ficou calado.

— Não leve a sério demasiadamente as extravagâncias de minha mãe — aconselhou ele. — Sua imaginação prega-lhe peças algumas vezes.

— Ah! E por que menciona agora a sua mãe?

— Porque os senhores acabam de falar com ela, não é? E os comentários dos senhores, devo dizer, se parecem muitíssimo com uma de suas alucinações inofensivas.

— Por outro lado, — retornou Vance suavemente, — sua mãe pode ter bases suficientes para as suas crenças.

Os olhos de Drukker semicerraram-se e voltaram-se rapidamente para Markham.

— Tolices!

— Ah, muito bem — suspirou Vance. — Não discutiremos este ponto. — Em seguida, com um tom de voz alterado, acrescentou: — Poderia ser-nos útil, se soubéssemos, Sr. Drukker, onde esteve entre as oito e nove horas da manhã de ontem.

O homem abriu ligeiramente a boca como para falar, mas fechou-a rapidamente de novo, olhando perscrutadoramente para Vance. Afinal, respondeu em voz alta e insistente:

— Estive trabalhando... em meu escritório... desde as seis até às nove e meia. — Fez uma pausa, mas sentiu que era necessário ampliar sua explicação. — Durante vários meses tenho estado trabalhando na modificação de uma teoria para explicar a interferência da luz, o que a teoria do "quantum" é incapaz de fazer. Dillard disseme que era impossível. — Uma luz de fanático brilhou em seus olhos. — Mas, acordei cedo, ontem de manhã, com certos fatores do problema já esclarecidos. Levantei-me e fui para o escritório...

— Então foi ali que esteve o senhor — disse Vance displicentemente. — Não tem grande importância. Sinto tê-lo incomodado hoje. — Fez sinal a Markham com a cabeça e encaminhou-se para a porta de grade.

No momento em que nos dirigíamos para o campo de exercícios, voltou-se e disse:

— A Sra. Menzel está sob a nossa proteção. Afetar-nos-ia muitíssimo, se lhe acontecesse algum mal...

Drukker viu-nos afastar com uma espécie de fascínio no olhar.

Quando não podíamos mais ser ouvidos, Vance aproximou-se de Heath e lhe disse com voz cheia de preocupação:

— Sargento, aquela honesta alemã pode ter posto a sua cabeça inconscientemente no laço. E eu tenho medo. Não seria demais que destacássemos debaixo deste salgueiro um bom homem com a missão de vigiar a parte posterior da casa de Drukker esta noite. E diga-lhe que entre, ao primeiro grito ou chamado... Eu descansarei melhor, se souber que há um anjo guardião, em trajes civis, velando o sono de Frau Menzel.

— Compreendo, senhor. — O rosto de Heath estava sombrio. — Esta noite nenhum jogador de xadrez a incomodará.


XIV

 

UMA PARTIDA DE XADREZ

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h30)

 


Enquanto nos dirigíamos lentamente para a casa de Dillard, ficou decidido que se fizessem investigações imediatas acerca dos lugares por onde andaram as pessoas que, de qualquer forma, se achavam envolvidas no horrendo drama.

— Devemos ter muito cuidado em não deixar escapar algo do que aconteceu à Sra. Drukker — aconselhou Vance. — Nosso portador noturno de bispos não tinha a intenção de que viéssemos a saber de sua visita de meia-noite. Julgou que a pobre senhora estaria demasiado assustada para nô-la revelar.

— Estou inclinado a crer — objetou Markham — que você está emprestando demasiada importância a esse episódio.

— Oh, meu caro companheiro! — Vance deteve-se brevemente e pôs as duas mãos nos ombros de Markham. — Você é por demais inocente... este é seu grande defeito. Você não sente... Você não é filho da natureza. A poesia de sua alma converteu-se em prosa. Ora, eu, ao contrário a você, deixo voar minha imaginação e digo-lhe que a colocação daquele bispo na porta do quarto da Sra. Drukker não foi uma inocente travessura, mas o ato desesperado de um homem. Era um sinal de aviso.

— Crê que ela saiba algo?

— Eu penso que ela viu o corpo de Robin no campo de exercícios. E creio que viu também alguma coisa que daria sua vida para não ter visto.

Caminhávamos em silêncio. Era nossa intenção passar pelo portão da Rua 75 e nos apresentar pela porta principal da casa de Dillard; porém, ao passarmos pela sede do clube, a porta abriu-se e Belle Dillard encarou-nos ansiosamente.

— Vi os senhores se dirigirem para o campo de exercícios — disse ela com certa perturbação, dirigindo suas palavras para Markham. — Há uma hora que venho procurando falar-lhe... telefonei para o seu gabinete... — Suas maneiras tornaram-se mais agitadas. — Alguma coisa estranha sucedeu. Oh, pode não ser nada... mas, quando entrei na sede do clube esta manhã, com a idéia de visitar a Lady Mae, um impulso qualquer fez-me ir ao armário das ferramentas outra vez e olhar a gaveta... parecia tão... tão estranho que o pequeno revólver fosse roubado... Pois ali estava... bem à vista... ao lado do outro! — Ela respirou ansiosa. — Sr. Markham, alguém, na última noite, o pôs de novo na gaveta.

Esta informação foi para Heath como um choque elétrico.

— Você tocou nele? — perguntou nervosamente.

— Por quê?... Não...

O sargento passou junto a ela, quase roçando-a, sem cerimônia alguma, encaminhando-se para o armário das ferramentas e abriu-o violentamente. Junto à automática maior que havíamos visto no dia anterior, estava o pequeno 32, de cabo de nácar. Os olhos do sargento brilharam ao correr seu lápis pela guarda do gatilho, levantando-a cuidadosamente. Suspendeu-o e cheirou a extremidade do cano.

— Uma cápsula vazia — anunciou com satisfação. — Foi descarregada recentemente... Isto nos pode esclarecer alguma coisa. — Enrolou cuidadosamente o revólver em um lenço e guardou-o no bolso do casaco.

— Encarregarei Dubois de examinar as impressões digitais e farei com que o capitão Hagedorn (1) examine as balas.

(1) O capitão Hagedorn era perito em armas de fogo, no Departamento de Polícia de Nova York. Foi ele quem, no caso do assassinato de Benson, deu a Vance os dados, com os quais ele estabeleceu a altura do assassino; e quem fez o exame das três balas disparadas com o revólver Smith Wesson, no assassinato dos Greenes.


— Esta é muito boa, sargento — disse Vance zombeteiramente. — Então você acredita que o cavalheiro que procuramos e que limpou o arco e a flecha ia deixar o seu monograma digital em um revólver?

— Não tenho sua imaginação, senhor Vance — replicou Heath grosseiramente. — Portanto, continuarei fazendo aquilo que deve ser feito.

— Você tem razão. — Vance sorriu com admiração e bom humor pela tenacidade esplêndida do sargento. — Perdoe-me por procurar arrefecer seu zelo. — E, voltando-se para Belle Dillard, acrescentou:

— Nós viemos aqui principalmente para ver o professor e o Sr. Arnesson. Mas há também alguma coisa sobre que nós desejaríamos conversar com você. Nós sabemos que você tem uma chave da porta dos fundos da casa de Drukker.

Ela fez um movimento confuso de cabeça.

— Sim. Faz anos que a tenho. Vou e volto tantas vezes durante o dia, e evito desse modo molestar a Lady Mae...

— Nosso único interesse pela chave é que pode ter sido usada por alguém que não tinha direito a tal.

— Mas isso é impossível. Nunca a emprestei a ninguém. E eu sempre guardo em minha bolsa.

— E todo mundo sabe que você tem essa chave?

— Por quê?... Creio que sim. — Estava evidentemente perplexa. — Nunca fiz segredo disso. Certamente toda a família sabe disso.

— E teria você talvez mencionado ou revelado o fato na presença de estranhos?

— Sim... Embora não possa recordar-me de um exemplo específico.

— Está certa de possuir a chave agora?

Ela lançou a Vance um olhar de assombro e, sem dizer palavra, tomou da mesa uma carteirinha de couro de lagarto. Abrindo-a, meteu a mão rapidamente em um dos compartimentos interiores.

— Sim! — anunciou ela com alívio. — Está onde sempre a guardo... Por que pergunta isso?

— É importante que nós saibamos quem teve acesso à casa de Drukker — disselhe Vance. Então, antes que ela tivesse tempo de responder-lhe, perguntou: — Podia a chave ter saído de sua posse a noite passada? Isto é, podia ter sido retirada de sua carteira sem que você soubesse?

A fisionomia de Belle cobriu-se de um ar de terror.

— Oh! Que sucedeu?... — começou a dizer, mas Van-ce a interrompeu.

— Por favor, Belle! Não há nada que possa preocupá-la. Estamos simplesmente lutando para eliminar as possibilidades mais remotas relacionadas com nossa investigação. Diga-me: podia alguém ter-se apoderado dessa chave na noite passada?

— Ninguém — respondeu ela, embaraçada. — Fui ao teatro às oito horas e não me separei um instante de minha carteira.

— Quando usou a chave pela última vez?

— A noite passada, depois de cear. Dei um pulo lá, para ver como estava Lady Mae e desejar-lhe uma boa noite.

Vance franziu ligeiramente o cenho. Pude ver que aquela informação não se enquadrava com alguma teoria que havia formado.

— Você fez uso da chave depois da ceia — insistiu — e conservou-a em sua carteira o resto da noite, sem deixá-la um momento fora do alcance de sua vista. Não é assim, Belle?

A jovem afirmou com um movimento de cabeça.

— Mais ainda, durante o espetáculo, conservei a carteira no colo — acrescentou a jovem.

Vance olhou a carteira pensativamente.

— Bem, — disse displicentemente. — Assim termina o romance da chave. E agora vamos incomodar seu tio novamente. Crê você conveniente servimo-nos de um avant-courir, ou lhe parece melhor que assaltemos a cidadela, sem nos anunciar?

— O tio saiu — disse a moça. — Foi passear no Drive.

— E o Sr. Arnesson ainda não voltou da Universidade, não é?

— Não; mas estará para o almoço. Às terças, à tarde, ele não tem aula.

— Então, nesse intervalo, conferenciaremos com Beedle e com o admirável Pyne. Eu poderia sugerir-lhe que uma visita sua à Sra. Drukker seria muito útil para ela neste momento.

Com um sorriso de preocupação e uma ligeira inclinação de cabeça, a jovem saiu pela porta do porão.

Heath, imediatamente, foi em busca de Beedle e de Pyne, trazendo-os à sala, onde Vance os interrogou sobre a noite precedente. Entretanto, não obteve deles nenhuma informação. Os dois haviam-se deitado às dez. Seus quartos ficavam no quarto andar, num lado da casa. E nem sequer ouviram a Srta. Dillard entrar, quando voltou do teatro. Vance perguntou-lhes se haviam ouvido algum ruído no campo de exercícios e informou-lhes que a porta de grades do vestíbulo da casa de Drukker poderia ter sido fechada com estrondo, cerca da meia-noite. Porém, aparentemente, os dois estavam dormindo àquela hora. Finalmente foram liberados com a advertência de não transmitirem a ninguém o que lhes fora perguntado. Cinco minutos depois, entrou o professor Dillard. Ainda que se surpreendesse, ao nos ver, cumprimentou-nos amavelmente.

— Pela primeira vez, Markham, escolheu você uma hora para a sua visita em que eu não estou ocupado. Imagino que isto significa mais interrogações. Bem, passem para a biblioteca e perguntem o que quiserem. Lá estaremos mais à vontade. — Ele foi à nossa frente, escada acima.

Uma vez sentados na biblioteca, insistiu em oferecer-nos um copo de vinho do Porto que ele mesmo serviu.

— Drukker deveria estar aqui — disse o professor. — Tem muito carinho pelo meu "Noventa e seis", embora ele beba somente em raras ocasiões. Eu disselhe que deveria tomar mais vinho do Porto; mas ele pensa que lhe faz mal e lembra a minha gota. Todavia, não existe relação alguma entre a minha gota e o vinho do Porto... A opinião é mera superstição. Um bom vinho do Porto é o mais são de todos os vinhos. A gota não é conhecida na cidade do Porto. Drukker precisa de um pouco de estimulante físico de boa qualidade... Pobre homem! Seu espírito é como um forno que lhe queima o corpo. É um homem brilhante, Markham. Se tivesse suficiente energia física, que se harmonizasse com o seu espírito, seria um dos maiores físicos do mundo.

— Ele me disse — comentou Vance — que o senhor o censurou por sua inabilidade em elaborar uma modificação da teoria dos quanta em relação à interferência da luz.

O ancião sorriu tristemente.

— Sim. Eu sabia que essa crítica o estimularia a fazer um esforço máximo. O fato é que Drukker está na pista de algo revolucionário. Já resolveu vários teoremas interessantes... Entretanto, estou certo de que não é isso que os senhores vieram discutir aqui. Em que posso servir-lhe, Markham? Ou, acaso, vieram trazer-me notícias?

— Infelizmente, não temos notícias para dar-lhe. Vimos solicitar seu auxílio outra vez... — Markham hesitou, como se não soubesse como proceder; e Vance assumiu o papel de inquiridor.

— A situação mudou um pouco desde que estivemos aqui, ontem. Um ou dois fatos novos surgiram e há uma possibilidade de que nossa investigação seja facilitada, se soubermos das atividades exatas dos membros da sua casa, durante a noite passada. Essas atividades, de fato, podem ter influenciado certos fatores neste caso.

O professor ergueu a cabeça com alguma surpresa, porém não fez comentário nenhum. Limitou-se a dizer:

— Esta informação é fácil de dar. A quem se refere o senhor?

— A ninguém em particular. — Vance apressou-se a afirmar.

— Bem, deixe-me pensar. — Tirou seu velho cachimbo de espuma do mar e começou a enchê-lo. — Belle, Sigurd e eu jantamos às seis; às sete e meia, Drukker chegou e, minutos depois, Pardee. Às oito, Sigurd e Belle foram ao teatro, c às dez e meia Drukker e Pardee se retiraram. Pouco depois das onze, recolhime ao quarto, tendo fechado à cha+ve as portas da casa. Disse a Pyne e a Beedie que podiam deitar-se cedo. Eis aí tudo que posso dizer-lhes.

— Devo entender que a Srta. Dillard e o Sr. Arnesson foram juntos ao teatro?

— Sim, Sigurd raramente vai ao teatro, mas, quando vai, sempre leva Belle. Na maior parte das vezes, assiste às representações das obras de Ibsen. Sua educação norte-americana não lhe diminuiu em nada o entusiasmo por tudo o que é norueguês. É devotado de todo o coração à sua terra natal. Também conhece a literatura norueguesa como qualquer professor da Universidade de Oslo; e a única música que admira realmente é a de Grieg. Quando vai aos concertos ou aos teatros, com toda a certeza, os programas são quase sempre noruegueses.

— Então ontem à noite assistiu a um drama de Ibsen?

— Creio que levaram a cena o Rosmersholm. Atualmente estão revivendo em Nova York o repertório ibseniano.

Vance meneou a cabeça.

— Walter Hampden é o protagonista. O senhor viu Arnesson ou a Srta. Dillard depois que voltaram do teatro?

— Não. Parece-me que voltaram tarde. Belle me disse esta manhã que, terminado o espetáculo, foram cear no Hotel Palace. Todavia, Sigurd estará aqui dentro de pouco tempo e lhe fornecerá mais pormenores.

Embora o professor falasse com paciência, era visível que se sentia incomodado pela natureza aparentemente irrelevante das perguntas.

— Terá o senhor a bondade — prosseguiu Vance — de dizer-nos as circunstâncias relacionadas com as visitas dos Srs. Drukker e Pardee, depois do jantar?

— Não havia nada de extraordinário sobre essas visitas. Eles vêm, muitas vezes, aqui, à noite. O objeto da visita de Drukker era discutir comigo o trabalho que havia feito na sua modificação da teoria dos quanta. Mas, quando Pardee apareceu, a discussão cessou. Este homem é um bom matemático, porém a física superior está muito além dele.

— O Sr. Drukker ou o Sr. Pardee viram a Srta. Dillard antes de ela ir para o teatro?

O professor Dillard tirou lentamente o cachimbo da boca e sua expressão denunciava enfado.

— Devo dizer — replicou irritado — que não vejo nenhuma utilidade em responder tais perguntas. Todavia, — acrescentou, com um tom de voz mais indulgente, — se as trivialidades da minha casa lhes podem ser úteis, terei prazer em lhes dar todos os pormenores. — Olhou para Vance por um momento. — Sim, tanto Drukker como Pardee viram Belle, ontem à noite. Todos, inclusive Sigurd, estivemos juntos nesta mesma sala, meia hora antes de eles saírem para o teatro. Houve também uma discussão acidental sobre o gênio de Ibsen, na qual Drukker aborreceu bastante Sigurd, sustentando a superioridade de Hauptmann.

— Então, segundo vejo, o Sr. Arnesson e a Srta. Dillard saíram às oito, ficando aqui o senhor, Pardee e Drukker.

— Exatamente.

— E às dez e meia, creio que o senhor disse, Drukker e Pardee se retiraram. Retiraram-se juntos?

— Desceram juntos — respondeu o professor com mais uma demonstração de acrimônia. — Creio que Drukker foi para sua casa, mas Pardee tinha um encontro no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Parece muito cedo para que Drukker se recolhesse — murmurou Vance — especialmente, tendo ele um assunto importante a discutir com o senhor e não tivesse tido a oportunidade de fazê-lo até o momento de retirar-se.

— Drukker não está bom. — A voz do professor era outra vez estudadamente paciente. — Como já lhes disse, ele se cansa logo. A noite passada, achava-se extraordinariamente esgotado. De fato, queixou-se para mim da sua fadiga e disseme que ia imediatamente para a cama.

— Sim... é certo — murmurou Vance. — Ele nos disse há momentos que esteve trabalhando ontem, desde as seis da manhã.

— Não me surpreende. Uma vez que um problema se assenta em seu espírito, ele trabalha incessantemente nele. Infelizmente, não tem reações normais para contrabalançar sua paixão absorvente pelas matemáticas. Há ocasiões em que eu me tenho preocupado com sua estabilidade mental.

Vance, por algum motivo, fez a conversação mudar de rumo.

— O senhor falou do compromisso de Pardee, a noite passada no Clube de Xadrez, — disse após acender cuidadosamente um novo cigarro. — Disse-lhe a natureza do mesmo?

O professor Dillard sorriu com afável tolerância.

— Falou a respeito durante uma hora. Parece que um cavalheiro chamado Rubinstein, um gênio do mundo enxadrista, segundo tenho ouvido, que está agora visitando este país, o tinha convidado para jogar três partidas de exibições. A última foi ontem. Começou às duas noras e, às seis, adiaram-na. Deveriam ter jogado às oito, porém Rubinstein era convidado de honra num banquete; assim, marcaram para continuá-la às onze. Pardee estava em um estado de agonia, porque perdeu a primeira partida e empatou a segunda. E se, na noite passada, ganhasse, conseguiria um empate com Rubinstein. Parecia pensar que tinha uma excelente probabilidade, pelo modo como tinha deixado o jogo às seis, embora Drukker discordasse dele. Ele deve ter ido diretamente daqui para o clube, porque já eram dez e meia quando ele e Drukker se retiraram.

— Rubinstein é um forte jogador — observou Vance. Uma nova nota de interesse, que procurou ocultar, transpareceu em sua voz. — É um dos grandes mestres do xadrez.

— Derrotou Capablanca em San Sebastian em 1911, e entre 1907 e 1912 foi considerado o contendor lógico para o título de campeão mundial em poder do Dr. Lasker... Sim, seria um grande galardão para Pardee, se o derrotasse. Por certo, apesar da fama de seu gambito, Pardee nunca foi considerado um mestre. A propósito, o senhor sabe o resultado da partida da noite passada?

Outra vez, observei um sorriso débil de tolerância nos cantos dos lábios do professor Dillard. Dava a impressão de olhar, de uma grande altura intelectual, benevolentemente, para travessuras de crianças.

— Não — respondeu ele. — Não perguntei. Mas sou de parecer que Pardee tenha perdido, pois que, quando Drukker assinalou o ponto fraco de sua posição, ao ser suspensa a partida, foi mais positivo do que de costume. Drukker é por natureza cauteloso, e raramente expressa uma opinião definida sobre um problema, sem ter uma base sólida para assim fazê-lo.

Vance levantou as sobrancelhas com certo assombro.

— Quer o senhor dizer que Pardee analisou seu jogo, sem tê-lo terminado, com Drukker, e discutiu as possibilidades de sua terminação? Isto não é só falta de ética, mas qualquer jogador seria desqualificado por fazer semelhante coisa.

— Não estou familiarizado com as sutilezas do xadrez

— replicou o professor Dillard com acrimônia. — Mas estou seguro de que Pardee não é culpado de falta de ética a este respeito. E, além de tudo, recordo-me de que, quando estava ocupado com as peças no tabuleiro, e Drukker encaminhou-se para vê-las, Pardee lhe pediu que não emitisse conselho algum. A discussão sobreveio depois e referiu-se, inteiramente, a generalidades. Não creio que se haja mencionado nenhuma linha particular do jogo.

Vance inclinou-se, lentamente, para a frente e quebrou a cinza do cigarro no cinzeiro, num gesto nervoso que há muito tempo aprendi a identificar como um sinal de excitação recalcada. Em seguida, levantou-se despreocupadamente e dirigiu-se para a mesa de xadrez que estava num ângulo da sala. Permaneceu ali com uma mão apoiada no esquisito tabuleiro de quadrados alternados.

— O senhor disse que Pardee esteve analisando sua posição neste tabuleiro, quando Drukker se aproximou dele, não é assim?

— Sim. — O professor Dillard falava com forçada cortesia. — Drukker estava defronte dele estudando o movimento das pedras. Começou a fazer comentários e Pardee pediu-lhe que se calasse. Cerca de um quarto de hora depois, Pardee colocou as pedras de lado. E foi quando Drukker lhe disse que sua partida estava perdida... que, apesar de aparentemente favorável, sua situação era fraca.

Vance alisava com os dedos as bordas do tabuleiro sem fazer ruído. E tirou da caixa duas ou três peças e colocou-as de novo no tabuleiro, como se jogasse com elas.

— O senhor se lembra do que Drukker disse então?

— Não prestei muita atenção. O assunto não era muito interessante para mim. — Na resposta havia uma nota inevitável de ironia. — Mas o que posso recordar é que Drukker disse que Pardee poderia ganhar, sempre que se tratasse de um jogo de trânsito rápido, porém que Rubinstein era um jogador notoriamente lento e que, forçosamente, encontraria o ponto fraco da posição de Pardee.

— Pardee ressentiu-se com essa crítica?

Vance voltou de novo até a sua cadeira e tirou outro cigarro da cigarreira; mas não se sentou.

— Muitíssimo. Drukker tem uma maneira rude e agressiva de criticar; e Pardee é hipersensível em tudo que se relaciona com xadrez. O fato é que empalideceu de raiva, diante da censura de Drukker. Então, eu tratei de mudar de assunto e, quando se retiraram, o incidente havia sido aparentemente esquecido.

Permanecemos alguns minutos mais. Markham foi profuso em desculpar-se com o professor e procurou dar explicações que justificassem o evidente incômodo que nossa visita lhe havia causado.

Ele não estava satisfeito com Vance, por causa da sua insistência aparentemente excessiva nos pormenores da partida de xadrez. Temos outras coisas que fazer em vez de conversa fiada.

— Uma aversão pela conversa fiada caracterizou também Isabel de Tennyson durante toda a sua plácida vida — replicou Vance. — Porém... que diabo, Markham!... nossa vida não é como a de Isabel. Falando sério, havia nexo em minha conversa fiada. Eu tagarelei... e aprendi.

— O que foi que aprendeu? — perguntou Markham com rispidez.

Com um olhar cauteloso para o vestíbulo, Vance inclinou-se para diante e, em voz baixa, disse:

— Aprendi, meu querido Licurgo, que falta um bispo negro no jogo da biblioteca e que a peça deixada à porta do quarto da Sra. Drukker combina com as outras peças que estão lá em cima!


XV

 

UMA ENTREVISTA COM PARDEE

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 12h30)

 


Aquela notícia produziu um efeito profundo no espírito de Markham. Como era seu costume, quando estava agitado, levantou-se e começou a passear de um lado para outro, com as mãos nas costas. Heath também, apesar de mais demorado em compreender o significado da revelação de Vance, chupava vigorosamente o charuto, o que indicava que a sua inteligência estava ocupada com um difícil ajustamento de fatos.

Antes que qualquer dos dois formulasse comentários, a porta dos fundos do vestíbulo se abriu, ouvindo-se passos ligeiros que se aproximavam da sala. Belle Dillard, voltando da casa de Drukker, apareceu na porta. Sua fisionomia estava perturbada. E, olhando para Markham, perguntou:

— O que disse o senhor a Adolph esta manhã? Ele está terrivelmente apavorado. Anda por todos os lados, experimentando fechaduras e trincos como se temesse ladrões. Atemorizou a pobre Greta, dizendo-lhe que não se esquecesse de fechar bem o quarto dela, de noite.

— Ah! Avisou a Sra. Menzel, não é? — murmurou Vance. — Muito interessante!

Os olhos da moça voltaram-se rapidamente para ele.

— Sim, mas ele não explica por quê. Está nervoso e cheio de mistérios. E o que é mais de estranhar é que não quer encontrar-se com sua mãe... Que significa isso, Sr. Vance? Sinto que está iminente alguma coisa terrível.

— Na verdade, eu não sei — replicou Vance em voz baixa e angustiada. — Tenho medo de procurar interpretá-lo. Poderia equivocar-me... — Durante um momento, guardou silêncio. — Devemos esperar e ver. Talvez esta noite o saibamos. Mas, não há motivo de alarme de sua parte, Belle. — Vance sorriu confortadoramente. — Como achou a Sra. Drukker?

— Parecia muito melhor. Mas há ainda alguma coisa que a preocupa; e penso que se relaciona com Adolph, pois todo o tempo não fez mais que falar dele, perguntando-me com insistência se havia notado, ultimamente, alguma mudança nele.

— Isto é muito natural nas circunstâncias atuais — observou Vance. — Porém, você não deve deixar que a atitude mórbida dela afete você. E agora, mudando de tema: eu soube que você esteve na biblioteca, na noite passada, durante meia hora, antes de ir ao teatro. Diga-me: onde estava sua carteira de mão, durante esse tempo?

A pergunta sobressaltou-a; porém, depois de uma momentânea hesitação, respondeu:

— Quando eu fui à biblioteca, deixei-a com meu manto na mesinha junto à porta.

— Era a carteira de couro de lagarto, contendo a chave?

— Sim. Sigurd não gosta dos trajes de cerimônia, e quando saímos juntos sempre levo meus vestidos de uso diário.

— Então você deixou a carteira na mesa durante essa meia hora, e depois conservou-a em seu poder durante o resto da noite. E esta manhã?

— Saí para um passeio, antes do café, e levei-a comigo. Mais tarde, eu a coloquei no porta-chapéus do vestíbulo, durante uma hora mais ou menos; mas, quando fui ver Lady Mae, perto das dez, levei-a comigo. Foi quando notei a reposição do pequeno revólver, atrasando assim a visita. Deixei a carteira na sala do clube até que os senhores chegaram. Desde esse momento conservo-a comigo.

Vance agradeceu-lhe.

— E agora que foi traçada completamente a peregrinação da carteira, rogo-lhe tenha a bondade de esquecer tudo.

Belle esteve a ponto de fazer uma pergunta, mas ele se antecipou à sua curiosidade e lhe disse rapidamente:

— Seu tio nos disse que você tinha ido cear no Palace a noite passada, e só voltara muito tarde.

— Eu nunca fico até tarde, quando vou a alguma parte com Sigurd — respondeu ela com uma expressão maternal de queixa. — Ele tem uma aversão profunda pela vida noturna. Pedi-lhe que ficasse mais um tempo, porém parecia tão cansado que não tive coragem de ficar. Chegamos a casa meia hora depois da meia-noite.

Vance levantou-se com um gracioso sorriso.

— Você tem sido muito amável em responder tão pacientemente nossas perguntas tolas... Agora vamos até a casa do Sr. Pardee, para ver se ele tem algumas idéias que nos iluminem o caminho. Creio que, a esta hora, ele está geralmente em casa.

— Estou certa de que ele está em casa agora — disse a jovem, acompanhando-nos até o vestíbulo. — Ele esteve aqui um momento antes de os senhores chegarem e disse que voltaria para casa a fim de responder alguma correspondência.

Estávamos para sair, quando Vance se deteve.

— Oh, diga-me, Belle: há um ponto sobre o qual eu esqueci de perguntar. Quando você veio para casa, a noite passada, com o Sr. Arnesson, como soube exatamente a hora? Notei que você não usa relógio.

— Sigurd disseme — explicou ela. — Eu estava zangada com ele por ter-me trazido tão cedo para casa; e, quando entramos no hall, perguntei-lhe que horas eram. Ele olhou para seu relógio e disseme a hora...

Nesse momento, abriu-se a porta da frente e Arnesson entrou. Olhou-nos com um assombro jocoso. Então, ao ver Belle Dillard, disselhe prazenteiramente:

— Alô, irmãzinha! Segundo vejo, estás nas mãos da polícia. — Dito isto, lançou-nos um olhar zombeteiro. — Por que o conclave? Esta casa está-se tornando um verdadeiro departamento da polícia. Procurando uma pista do assassino de Sprigg? Ah! Um jovem brilhante, a quem um professor invejoso fez desaparecer, hem?... Espero que vocês não tenham estado pondo em apuros Diana, a caçadora.

— Nada disso — replicou a jovem. — Eles têm sido muito atenciosos. Eu disselhes como você foi retrógrado por me trazer para casa à meia-noite e trinta.

— Creio que fui muito indulgente — sorriu Arnesson.

— É demasiado tarde para uma menina como você.

— A velhice deve ser uma coisa horrível... como também dedicar-se às matemáticas — retorquiu ela com algum calor, subindo a escada apressadamente.

Arnesson encolheu os ombros e seguiu-a até perdê-la de vista. Em seguida, olhou cinicamente para Markham:

— Que boas notícias traz você? Alguma coisa sobre a última vítima? — Encaminhou-se outra vez para a sala. — Sinto saudade daquele moço. Iria muito longe. É uma vergonha chamar-se John Sprigg. "Peter Piper" teria sido mais certo. Nada sucedeu a Peter Piper a não ser o episódio da pimenta; e isso não poderia transformar-se num assassinato...

— Não temos nada a informar, Arnesson — respondeu bruscamente Markham, irritado com a petulância do indivíduo.

— A situação é a mesma de antes.

— Então, vieram em visita de cortesia; ficam para almoçar?

— Nós nos reservamos o direito — disse friamente Markham — de investigar o caso da forma que nos parecer melhor. Nem tampouco devemos dar conta a você de nossas ações.

— Oh! Algo se passou que o incomoda — falou Arnesson com sarcasmo. — Eu pensei que me haviam aceito como auxiliar, porém, pelo que vejo, vão-me mandar às favas. — Suspirou profundamente, tirou o seu cachimbo. — Abandonam o piloto! Bismarck e eu. Ai de mim!

Vance estava fumando como em sonho perto da porta, aparentemente distraído, sem dar atenção às queixas de Arnesson. Então entrou na sala.

— Realmente, Markham, o Sr. Arnesson tem razão. Convencionamos que ele nos serviria de auxiliar e temos que dar-lhe a conhecer todos os pormenores.

— Foi precisamente você mesmo — protestou Markham

— quem lembrou o perigo possível de contar o sucedido na noite passada...

— E certo. Mas, nesse momento, havia esquecido a promessa feita ao Sr. Arnesson. E eu estou certo de que poderemos confiar em sua discrição. — Dito isto, Vance relatou detalhadamente a experiência da Sra. Drukker na noite passada. Arnesson escutou com imensa atenção. Notei que sua expressão sardônica desaparecia gradualmente e era substituída por um olhar de seriedade reflexiva. Durante vários minutos ele ouviu num silêncio contemplativo, com o cachimbo na mão.

— Esse é, verdadeiramente, um fator vital no problema

— comentou finalmente. — Muda nossa constante. Vejo que o caso pode ser observado através de um novo ângulo. Ao que parece, o Bispo está entre nós. Porém, por que vai perseguir a Lady Mae?

— Diz-se que ela gritou no preciso momento da morte de Robin.

— Ah! — Arnesson levantou-se da cadeira. — Compreendo sua dedução. Ela viu o Bispo da sua sacada, na manhã do assassinato de Cock Robin, e mais tarde ele voltou e mexeu no trinco da porta como para avisá-la que se calasse.

— Talvez, alguma coisa como isso... Tem você elementos suficientes para desenvolver sua fórmula?

— Gostaria de ver esse bispo negro. Onde está ele? — Vance procurou no bolso e, tirando a peça de xadrez, entregou a Arnesson, que a segurou ansiosamente. Seus olhos brilharam por um momento. Volveu-a várias vezes na mão, devolvendo-a depois a Vance.

— Parece que você conhece este bispo particularmente

— disse Vance sutilmente. — E tem razão. Foi levado do jogo que está na biblioteca do professor.

Arnesson confirmou com a cabeça.

— Assim penso eu. — De súbito, voltou-se para Markham e lançou sobre suas finas feições um olhar de grande ironia.

— Era esse o motivo pelo qual devia eu permanecer afastado? Estou sob suspeita? Ora, bolas! Que castigo se recebe pelo nefando crime de distribuir peças de xadrez entre os vizinhos?

Markham levantou-se e encaminhou-se para o vestíbulo.

— Você não está sob suspeita, Arnesson — respondeu ele, não procurando ocultar seu mau humor. — O bispo foi deixado na casa da Sra. Drukker à meia-noite em ponto.

— E eu cheguei meia hora mais tarde, para poder preencher os requisitos necessários. Sinto muito tê-lo desapontado.

— Se sua fórmula se realizar, avise-nos — disse Vance, ao sair pela porta principal. — Temos de fazer agora uma pequena visita ao Sr. Pardee.

— Pardee! Olá! Visitando um enxadrista perito em bispos, hem? Percebi já o seu raciocínio... Pelo menos, tem a virtude de ser simples e direto...

Permaneceu no pequeno vestíbulo a nos observar enquanto atravessávamos a rua.

Pardee nos recebeu com a sua habitual e serena cortesia. O tom trágico e frustrado de sua fisionomia estava mais acentuado que nunca. E, quando nos ofereceu cadeiras, em seu gabinete, suas maneiras eram a de um homem cujo interesse pela vida havia desaparecido e que apenas executava os movimentos mecânicos da existência.

— Vimos aqui, Sr. Pardee — começou a dizer Vance

— para saber alguma coisa sobre a morte de Sprigg no Riverside Park, ontem pela manhã. Temos excelentes motivos para fazer-lhe perguntas sobre esse caso.

Pardee meneou resignadamente a cabeça.

— Não me ofenderão as perguntas que o senhor possa fazer. Depois de ler os jornais, tive conhecimento do problema incomum que os senhores estão procurando decifrar.

— Então, rogamos-lhe que, antes de tudo, nos informe onde se achava, ontem de manhã, entre sete e oito horas.

Um leve rubor coloriu o rosto de Pardee, mas ele respondeu em voz baixa e monótona.

— Na cama. Só me levantei pelas nove horas.

— Não costuma passear pelo parque antes do café?

Eu percebi que isso era simplesmente um trabalho de adivinhação de Vance, pois, até agora, os hábitos de Pardee não tinham sido objeto de investigação.

— Sim, costumo — replicou o homem, sem hesitação.

— Mas, ontem, não saí, porque trabalhei até tarde da noite.

— Quando teve conhecimento da morte de Sprigg?

— À hora do café. Minha cozinheira me pôs a par do que se dizia na vizinhança. Eu li a notícia oficial da tragédia na primeira edição do vespertino Sun.

— E indubitavelmente terá visto a reprodução da nota do Bispo nos jornais desta manhã. Qual é a sua opinião sobre esse negócio, Sr. Pardee?

— Eu pouco sei. — Pela primeira vez, seus olhos sem brilho mostraram sinais de animação. — É uma situação incrível. As probabilidades matemáticas são totalmente opostas a que semelhantes séries de sucessos mutuamente relacionados sejam coincidentes.

— Sim — concordou Vance. — E por falar de matemática: O senhor está familiarizado com o tensor de Riemann-Christoffel?

— Conheço-o — admitiu o homem. — Drukker usa-o em seu livro, sobre as linhas do mundo. Minhas matemáticas não são, contudo, do tipo das dos físicos. Se eu não me tivesse enamorado do xadrez — sorriu tristemente — teria sido um astrônomo. Depois de manobrar com os fatores em uma complicada combinação de xadrez, a maior satisfação mental que se pode obter, penso eu, é traçar o plano dos astros. Eu mesmo tenho um telescópio equatorial de cinco polegadas para observações de amador.

Vance escutou Pardee atentamente e, por alguns minutos, discutiu com ele a determinação recente da "O" transnetuniana do professor Pickering (1) com grande assombro de Markham e enfado de Heath. Por fim a conversação recaiu sobre a fórmula do tensor.

— Segundo soube, o senhor esteve na casa de Dillard, quinta-feira passada, quando Arnesson falava sobre esse tensor com Drukker e Sprigg.

— Sim, recordo-me de que este assunto veio à tona nessa ocasião.

— Como conheceu Sprigg?

— Casualmente, apenas. Vi-o com Arnesson, uma ou duas vezes.

— Parece que Sprigg também tinha o hábito de passear pelo Riverside Park, antes do café — observou Vance, negligentemente. — Não se encontrou alguma vez ali com ele, Sr. Pardee?

(1) Depois dessa discussão, o professor Pickering tem afirmado, com base nas perturbações de Urano, a presença de dois outros planetas exteriores mais, além de Netuno: P e S.


As pálpebras do homem tremeram ligeiramente e ele titubeou, antes de responder.

— Nunca — disse finalmente.

Vance parecia indiferente à negativa. Levantou-se e, indo à janela, olhou para fora.

— Pensei que daqui se poderia ver a sede do clube. Mas observo que o ângulo o oculta por completo.

— Sim, o campo de exercícios não é visível. Do outro lado do muro há um terreno baldio, de modo que ninguém pode ver por cima... O senhor pensa em uma possível testemunha da morte de Robin?

— Nisso e em muitas outras coisas. — Vance voltou para a sua cadeira. — Desagrada-lhe o jogo de arco-e-flecha, não é verdade?

— É muito fatigante para mim. Belle procurou uma vez interessar-me nesse esporte, porém eu não fui um aluno muito promissor. Não obstante, fui com ela a vários torneios.

Uma nota inusitadamente suave se produziu na voz de Pardee, e, por alguma razão, que não podia exatamente explicar, percebi que ele estava enamorado de Belle Dillard. Vance também deve ter recebido a mesma impressão, porque, depois de uma breve pausa, disse:

— O senhor decerto compreende que não é nossa intenção imiscuir-nos desnecessariamente nos negócios particulares de ninguém; mas a questão do motivo dos dois assassinatos, que estamos investigando, ainda permanece obscura, e como a morte de Robin foi, a princípio, superficialmente atribuída a uma rivalidade em torno do afeto da Srta. Dillard, ser-nos-ia útil saber, de um modo geral, qual é a verdadeira situação concernente à preferência da moça... O senhor, como amigo da família, provavelmente sabe; e nós apreciaríamos sua confidencia a esse respeito.

O olhar de Pardee se perdia através da janela, e um suspiro escapou-se de seus lábios.

— Senhor, julguei que ela e Arnesson se casariam algum dia. Mas isto é somente uma conjetura. Ela disseme uma vez que, positivamente, não pensava em contrair matrimônio, enquanto não tivesse trinta anos. (Facilmente se podia adivinhar a que propósito fora feito esse pronunciamento por parte de Belle Dillard. A vida emotiva e intelectual de Pardee haviam fracassado.)

— Então não crê — prosseguiu Vance — que o coração dela esteja seriamente comprometido com o jovem Sperling?

Pardee sacudiu a cabeça.

— Contudo — manifestou ele — o martírio que ele está sofrendo agora é de um efeito tremendamente sentimental para as mulheres.

— Belle disseme que o senhor conversou com ela esta manhã.

— Eu, geralmente, vou lá durante o dia. — Sem dúvida alguma, ele se achava intranqüilo e, segundo creio, um tanto desconcertado.

— Conhece bem a Sra. Drukker?

Pardee dirigiu a Vance um rápido olhar inquiridor.

— Não particularmente — disse ele. — Eu a vi várias vezes, como é natural.

— Esteve alguma vez na casa dela?

— Muitas vezes, porém para ver Drukker. Estive interessado, durante muitos anos, nas relações da matemática com o xadrez.

Vance meneou a cabeça.

— E, a propósito, qual foi o resultado da sua partida de xadrez com Rubinstein, à noite passada? Não vi os jornais esta manhã.

— Desisti na jogada quarenta e cinco. — O homem falou desiludido. — Rubinstein encontrou um ponto fraco no meu ataque e que eu havia passado por alto inteiramente, quando fiz meu movimento, depois do adiamento da partida.

— Drukker, disse-nos o professor Dillard, previu o resultado, quando o senhor e ele discutiram, ontem à noite, a situação.

Eu não podia compreender por que Vance se referia tão marcadamente a esse episódio, sabendo, como sabia, quanto era delicado este ponto para Pardee. Markham também franziu o sobrecenho, diante do que lhe parecia ser uma imperdoável falta de tato da parte de Vance.

Pardee ruborizou-se e se mexeu na cadeira.

— Drukker falou demais. — A manifestação não estava desprovida de veneno. — Apesar de não ser jogador de torneio, devia saber que tais discussões são proibidas durante as partidas não terminadas. Francamente, dei pouca atenção à sua profecia. Acreditei que meu movimento selado tinha salvo a situação, porém Drukker viu mais longe que eu. Sua análise foi fantàsticamente profunda. — Havia, em seu modo de dizer, um tom de autopiedade e me parecia que odiava Drukker tão amargamente quanto sua natureza aparentemente suave podia permitir.

— Quanto tempo durou a partida? — perguntou Vance distraidamente.

— Até pouco depois da uma. Na seção de ontem à noite, só restavam 14 lances.

— Havia muitos espectadores?

— Considerando a hora avançada, sim.

Vance apagou o cigarro e se levantou. Quando estávamos no vestíbulo do andar inferior, caminhando em direção à porta principal, deteve-se subitamente e, lançando a Pardee um olhar sardônico, disse:

— O bispo preto esteve fazendo das suas pela meia-noite.

Suas palavras produziram um efeito surpreendente. Pardee se ergueu, como se tivesse sido esbofeteado. Suas faces empalideceram. Durante meio minuto, olhou fixamente para Vance. Seus olhos pareciam carvões acesos. Os lábios se moveram com ligeiro tremor, mas nenhuma palavra saiu deles. Em seguida, com um esforço sobre-humano, ele se voltou, encaminhando-se para a porta que abriu bruscamente, fechando-a assim que transpusemos o umbral.

Enquanto caminhávamos pelo Riverside Park, em direção ao carro do procurador, que tinha sido deixado em frente à casa de Drukker, na Rua 76, Markham falou abruptamente a Vance discordando do comentário final que ele havia feito a Pardee.

Tinha esperança — explicou Vance — de surpreender nele algum sinal de reconhecimento ou compreensão. Porém, com os demônios, Markham, eu não esperava um efeito como o que foi produzido. A reação dele foi surpreendente. Não compreendo... absolutamente, não compreendo...

Vance calou-se, ficando absorto em seus pensamentos. No momento, porém, em que o carro entrava na Broadway pela Rua 72, despertou e disse ao motorista que o levasse ao Sherman Square Hotel.

— Tenho grande desejo de conhecer mais detalhes sobre a tal partida entre Pardee e Rubinstein. Não é que haja um motivo muito especial... É uma extravagância da minha parte... Mas a idéia vem trabalhando em meu espírito, desde o momento em que o professor falou a respeito. Desde as onze até à uma e meia... É um tempo excessivo para jogar uma partida de 44 lances apenas, e que ficou sem terminar.

Havíamos chegado à esquina da Avenida Amsterdam com a Rua 71. Vance desapareceu no Clube de Xadrez de Manhattan. Voltou daí a cinco minutos. Trazia na mão uma folha de papel cheia de anotações. Entretanto, no seu rosto não se via nenhum sinal de satisfação.

— Minha encantadora e largamente incubada teoria — disse com uma careta — ruiu ante o prosaico dos fatos. Acabo de falar com o secretário do Clube e ele me disse que a sessão de ontem à noite durou duas horas e dezenove minutos. Parece que foi uma batalha fulgurante, cheia de esotéricas argúcias e de estratégicas penetrações de almas. Pelas onze e meia, os gênios que presenciavam o combate tinham dado Pardee como vencedor; porém, então, Rubinstein desenvolveu uma obra-prima de análise, e conseguiu destruir a tática do adversário até reduzi-la a cacos... Exatamente como havia prognosticado Drukker. Inteligência assombrosa a de Drukker...

Era evidente que ele não estava ainda satisfeito por completo quanto ao que havia averiguado; e as palavras que proferiu a seguir exprimiram seu descontentamento:

— Enquanto estava nisso, pensei em tirar, como diríamos, uma página do livro do sargento e permitir-me a um pouco de trabalho rotineiro. Assim pedi emprestada a folha das jogadas da partida de ontem a noite, copiando cada um dos lances. Pode ser que, algum dia, examine essa partida.

E, como uma precaução fora de hábito, dobrou o papel e guardou-o em sua carteira.


XVI

 

ATO TERCEIRO

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — sábado, 16 de abril)

 


Depois de almoçar no Eliseu, Markham e Heath continuaram no centro da cidade. Tinham pela frente uma tarde dura. O trabalho ordinário de Markham se achava acumulado. E o sargento, havendo tomado a si o caso Sprigg, além das investigações de Robin, tinha de manter trabalhando duas máquinas separadas, coordenar todos os seus informes, responder às inúmeras perguntas de seus superiores e tratar de satisfazer a voracidade de um exército de repórteres. Vance e eu fomos a uma exposição de arte moderna francesa no salão Knoedler, tomamos chá no St. Regis e fomos ao encontro de Markham, no Stuyvesant, para jantar. Heath e o inspetor Moran chegaram às oito e meia. Tivemos uma conferência que durou até cerca de meia-noite, sem nenhum resultado prático.

O dia seguinte não nos trouxe também senão desilusões. O laudo do capitão Dubois dizia que o revólver entregue por Heath não apresentava nenhuma impressão digital. O capitão Hagedorn identificou a arma como a usada contra Sprigg; mas isto reforçava simplesmente a nossa crença.

O homem destacado para vigiar a parte posterior da casa de Drukker não viu nada digno de nota. Ninguém havia entrado ou saído. E, às onze, todas as luzes estavam apagadas. Nenhum ruído se ouviu na casa até a manhã seguinte, quando a cozinheira começou as suas tarefas domésticas do dia. Mas, depois das oito horas, apareceu no jardim a Sra. Drukker e, às nove e meia, saiu seu filho, pela porta principal, sentando-se no parque, onde esteve lendo durante duas horas.

Transcorreram dois dias. Na casa de Dillard, foram colocadas sentinelas. Pardee foi posto sob severa vigilância. E, debaixo dos salgueiros, atrás da casa de Drukker, ficou estacionado um homem todas as noites. Porém, nada de anormal ocorreu. E, não obstante a atividade infatigável do sargento, todas as linhas prometedoras das investigações pareceram fechar-se automaticamente. Tanto Heath como Markham estavam profundamente aborrecidos. Os jornais se desfaziam em grandes retóricas. A incapacidade do Departamento da Polícia e do procurador do distrito, no sentido de esclarecer o mistério de dois assassinatos espetaculares, estava-se convertendo rapidamente num escândalo político.

Vance visitou o professor Dillard e discutiu o caso em linhas gerais. Também, na tarde de quinta-feira, passou mais de uma hora com Arnesson, na esperança de que o desenvolvimento da fórmula proposta houvesse trazido à luz algum detalhe que pudesse ser usado como ponto de partida para especulação. Porém, não ficou satisfeito com a entrevista e queixou-se para mim de que Arnesson não tinha sido franco com ele. Duas vezes havia ido ao Clube de Xadrez de Manhattan e tentado fazer Pardee falar; porém, todas as vezes encontrou a reticência de uma fria cortesia. Notei que não fez esforços para comunicar-se com Drukker ou com a Sra. Drukker. E quando lhe perguntei o motivo dessa despreocupação, respondeu:

— A verdade não se pode saber deles agora. Cada um está jogando uma partida, e os dois estão completamente assustados. Enquanto não tivermos alguma prova definitiva, resultará maior mal que bem qualquer tentativa de acareação entre eles.

Essa prova definitiva devia chegar no dia seguinte, e do lugar menos esperado. Foi o começo da última fase de nossa investigação... fase trágica e sinistra, de crueldade tão desenfreada e humor tão monstruoso, que ainda agora, depois de muitos anos, no momento em que escrevo, encontro dificuldades em crer que os sucessos mencionados não foram um sonho grotesco de uma perversidade fabulosa.

Na quarta-feira à tarde, Markham, em estado de desânimo, chamou-nos para uma nova conferência.

Arnesson pediu permissão para assistir. Às quatro, nos encontramos todos, inclusive o inspetor Moran, no gabinete particular do procurador do distrito, no velho edifício dos tribunais criminais. Arnesson permaneceu, durante a discussão, inusitadamente silencioso e nem uma vez emitiu suas despropositadas opiniões. Escutou com suma atenção tudo o que foi dito e parecia evitar, propositadamente, manifestar qualquer opinião ainda quando diretamente convidado a isso por Vance.

Havia transcorrido meia hora, talvez, quando Swacker entrou em silêncio e colocou um memorando sobre a mesa do procurador do distrito. Markham olhou-o e franziu o cenho, Passado um momento, rubricou dois formulários impressos e entregou-os a Swacker.

— Preencha-os imediatamente e entregue-os a Ben (1) — ordenou ele.

(1) O coronel Benjamin Hanlon, chefe da Divisão de Investigações, destacado junto ao gabinete do procurador do distrito.


Assim que o homem saiu, explicou o motivo da interrupção.

— Sperling acaba de mandar-me um pedido para falar comigo. Disse que tem uma informação que pode ser de importância. Pensei que, nas circunstâncias, talvez fosse bom ouvi-lo agora.

Dez minutos mais tarde, um funcionário trouxe Sperling, que saudou Markham com um sorriso amigável e Vance com uma gentil inclinação de cabeça. Fez outro tanto, porém com certa seriedade, a Arnesson, cuja presença pareceu surpreendê-lo e desconcertá-lo. Markham convidou-o com um gesto a sentar-se e Vance ofereceu-lhe um cigarro.

— Queria falar-lhe, Sr. Markham — começou a dizer timidamente — acerca de um assunto que talvez possa interessar-lhe... O senhor recorda-se de que, quando me interrogaram sobre se eu estava com Robin na sede do clube, o senhor desejava saber que caminho tomou o Sr. Drukker, quando nos deixou. Eu lhe disse que não havia reparado, mas que ele saíra pela porta do porão... Pois bem, ultimamente, tive muito tempo para pensar e, como é natural, desfilou pelo meu cérebro tudo o que se havia passado naquela manhã. Não sei justamente como explicá-lo, porém as coisas se tornaram claras agora. Certas impressões, poderíamos dizer, voltaram a mim...

Fez uma pausa e olhou para o tapete. Então, levantando a cabeça prosseguiu:

— Uma dessas impressões se refere ao Sr. Drukker... e eis por que eu quis lhe falar. Esta tarde eu estava... bem, imaginava estar na sede do clube falando com Robin. E, de súbito, o quadro da janela posterior cruzou por meu espírito. E recordei-me de que, quando havia olhado pela janela naquela manhã, a fim de observar como estava o tempo para minha viagem, vi o Sr. Drukker, em vez de sair da casa, foi para o caramanchão, permanecendo ali até que você saísse.

— Assim parece, senhor. — Sperling estava relutante em concordar.

— Está seguro de que o viu?

— Sim, senhor. Agora, recordo-me, perfeitamente, até da maneira peculiar como tinha as pernas cruzadas.

— Você o juraria — perguntou Markham com gravidade — sabendo que a vida de um homem podia depender de seu testemunho?

— Juraria, senhor — respondeu Sperling simplesmente. Quando o guarda escoltou Sperling para fora do quarto,

Markham olhou para Vance.

— Creio que isso nos dá um ponto de apoio.

— Sim; o testemunho da cozinheira tinha pouco valor, desde que Drukker negou simplesmente, e ela é o tipo da alemã leal e cabeçuda que sustentaria sua negativa, se algum perigo real ameaçasse seu amo. Agora, temos uma arma efetiva.

— Parece-me — disse Markham, depois de uns momentos de silêncio especulativo — que temos boa prova circunstancial contra Drukker. Estava no quintal da casa de Dillard segundos antes de terem matado Robin. Facilmente pôde ver quando Sperling saiu. E, como havia vindo recentemente da casa do professor Dillard, sabia que os outros membros da família não estavam. A Sra. Drukker negou que tivesse visto alguém de sua janela naquela manhã, embora tenha gritado na hora da morte de Robin, caindo em pânico quando fomos interrogar Drukker. Ela mesma preveniu-o contra nós e nos chamou "o inimigo". Minha opinião é que ela viu o filho voltando para casa, logo após ter sido colocado o corpo de Robin no campo de exercícios. Drukker não estava em seu quarto, no momento em que Sprigg foi morto; e ambos, ele e a mãe, fizeram o possível para ocultar esse pormenor. Tornou-se excitado, quando mencionamos pela primeira vez o caso dos assassinatos, e ridicularizou a idéia de que estavam relacionados. Em verdade, muitos dos seus atos têm sido suspeitos. Também sabemos que é anormal e desequilibrado e que é dado a jogos infantis. É muito possível, em vista do que nos disse o Dr. Barstead, que tenha confundido a fantasia com a realidade e perpetrasse esses crimes em um momento de loucura súbita. Não só lhe é familiar a fórmula do tensor, como podia tê-la associado, de alguma forma estúpida, com Sprigg, como resultado da discussão de Arnesson com Sprigg sobre a mesma. Quanto às notas do Bispo, podem ter sido parte da irrealidade dos seus jogos insanos, pois as crianças necessitam de um auditório que aprove uma nova forma de diversão que tenham inventado. Sua escolha da palavra Bispo foi provavelmente o resultado de seu interesse pelo xadrez — uma assinatura pitoresca destinada a confundir. E esta suposição é sustentada pela aparição de um bispo de xadrez, na porta do quarto de sua mãe. Talvez tenha receado que ela o visse aquela manhã e assim procurou silenciá-la, sem admitir, abertamente, a sua culpabilidade. Podia facilmente ter cortado a tela de arame do portão de dentro, sem ter chave alguma, e dar, por conseguinte, a impressão de que o portador do bispo entrara e saíra pela porta dos fundos. Mais ainda, teria sido um negócio muito simples para ele carregar o bispo da biblioteca na noite em que Pardee esteve analisando o seu jogo...

Markham continuou ainda durante algum tempo construindo sua prova contra Drukker. Era completo e pormenorizado e seu sumário respondia praticamente a toda a evidência que tinha sido aduzida. A forma lógica e implacável em que ele reunia seus vários fatores era impressionantemente convincente, e um largo silêncio seguiu-se a esse resumo.

Vance, por fim, levantou-se como para quebrar a tensão de seus pensamentos e encaminhou-se para a janela.

— Pode ser que você tenha razão, Markham — admitiu ele. — Porém, minha objeção principal à sua conclusão é que as alegações contra Drukker são demasiado boas. Desde o princípio, considerei assim; porém, quanto mais suspeitosa-mente atuava e quanto mais numerosos eram os indícios contra ele, tanto mais eu me inclinava a afastá-lo de toda consideração. O cérebro que planejou esses crimes abomináveis é muito superior, muito diabòlicamente sutil para ser enredado numa rede semelhante de evidência circunstancial como a que você traçou em torno de Drukker. Este tem um espírito surpreendente... sua inteligência é supernormal, na verdade, e é difícil conceber que, culpado, houvesse deixado tantas falhas.

— Não se pode esperar — replicou Markham com azedume — que a lei despreze possibilidades porque sejam demasiado convincentes.

— De outro lado, — prosseguiu Vance, desprezando o comentário de Markham, — é evidente que Drukker, ainda mesmo não sendo culpado, sabe algo que tem relação direta e essencial com o assunto. E minha humilde opinião é que tratemos de obter esta informação do próprio interessado. O depoimento de Sperling nos deu a base para esse fim... E você que pensa, Arnesson?

— Nada — contestou ele. — Eu não sou mais que um observador desinteressado. Sem embargo, não me agradaria ver Adolph na prisão. — Ainda que não manifestasse sua opinião, era claro que estava de acordo com Vance.

Heath achava, como era de seu feitio, aconselhável uma ação imediata, e exprimiu-se desta maneira:

— Se ele tem algo a dizer, di-lo-á imediatamente, se estiver atrás das grades.

— É uma situação difícil — objetou o inspetor Moran em tom judicioso e suave. — Não nos é permitido cometer um erro. Se a evidência de Drukker acusasse mais alguém, seríamos censurados e ridicularizados por deter um inocente.

Vance olhou para Markham e sacudiu a cabeça em sinal de assentimento.

— Por que não mantê-lo em consideração primeiro, e ver se podemos persuadi-lo a descarregar sua alma. Você poderia suspender sobre a sua cabeça uma ordem de prisão, como uma espécie de coação moral. Então, se ele permanecesse esquivo e reticente, você o mandaria escoltar até à cadeia.

Markham sentou-se, batendo indeciso sobre a mesa, e com a cabeça envolta na fumaça do seu charuto, que chupava nervosamente. Por fim, voltou-se para Heath.

— Traga Drukker aqui amanhã, às nove horas. Leve um carro e uma ordem de prisão em branco para o caso de ele oferecer resistência. — A expressão severa do seu rosto traduzia uma firme determinação. — Depois, averiguarei o que ele sabe... e agirei de acordo.

A conferência terminou imediatamente. Já eram cinco horas, e Markham, Vance e eu fomos juntos ao Club Stuyvesant. Deixamos Arnesson no metrô e ele partiu logo, quase sem se despedir de nós. Seu cinismo loquaz parecia ter desertado dele. Depois de cear, Markham se desculpou, por achar-se fatigado, e Vance e eu fomos ao Metropolitan ouvir Geraldine Farrar em Louise (1)

(1) Louise era a ópera moderna favorita de Vance


A manhã seguinte se apresentou escura e nebulosa. Currie despertou-nos às sete e meia, pois Vance desejava estar presente à entrevista com Drukker. Às oito, fizemos a refeição matinal na biblioteca diante de um pequeno fogo que ardia na lareira. O trânsito nos deteve em nosso caminho no centro da cidade, e embora fossem nove e um quarto quando chegamos ao gabinete do procurador do distrito, Drukker e Heath não haviam ainda chegado. Vance sentou-se comodamente em uma poltrona de couro e acendeu um cigarro.

— Esta manhã me sinto muito bem — disse ele. — Se Drukker relatar a sua história e se esta é como eu suponho, teremos o segredo do cofre.

Mal foram emitidas estas palavras, Heath penetrou no gabinete e, olhando firmemente para Markham, sem saudar ninguém, levantou os braços, deixando-os cair num gesto de desespero resignado.

— Não interrogaremos hoje... nem nunca mais o Sr. Drukker — disse abruptamente. — Caiu ontem à noite, do muro alto do Riverside Park, quase ao lado da casa. Não foi encontrado senão às sete desta manhã. Seu corpo está agora no necrotério... Lindos princípios temos! — Dito isto, afundou-se numa poltrona, numa atitude de desânimo.

Markham mirou-o, sem crer no que ele dizia.

— Está certo disso? — perguntou.

— Estive lá, antes de levarem o corpo. Um dos empregados da seção me telefonou sobre o caso, no momento em que eu saía do gabinete. Fui até lá e consegui colher todas as informações possíveis.

— Que soube então? — Markham estava lutando contra um desapontamento dominante.

— Não muita coisa. Alguns meninos encontraram o cadáver no parque mais ou menos às sete desta manhã... Muitos garotos rodeavam o corpo, pois era sábado; o posto policial providenciou com presteza a vinda do médico da polícia. Este disse que Drukker devia ter caído mais ou menos às dez da noite. Sua morte deve ter sido instantânea. O muro naquele lugar, exatamente oposto à Rua 76, tem uns dez metros de altura.

— A Sra. Drukker foi avisada?

— Não. Eu lhes disse que me encarregaria disso, mas achei conveniente vir antes aqui saber o que pensam os senhores que se deva fazer.

Markham recostou-se em sua cadeira, desanimado.

— Não vejo muita coisa a fazer.

— Seria bom avisar Arnesson — sugeriu Vance. — Provavelmente, é ele que tem de se ocupar disso. Que diabo, Markham! Estou começando a pensar que é tudo um pesadelo. Drukker era a nossa maior esperança, e, no momento em que íamos conseguir fazê-lo falar, ele cai do muro... — Aqui se deteve bruscamente. — De um muro!...

Enquanto repetia essas palavras pôs-se de pé num salto.

— Um corcunda cai do muro Um corcunda!

Todos ficamos a olhá-lo como se ele tivesse ficado louco. E eu admito que seus olhos me fizeram estremecer. Estavam fixos como os de um homem que encara um fantasma. Lentamente, voltou-se para Markham e disse com voz que eu mal podia reconhecer:

— É outro melodrama vesânico... outra cantiga de "Mama Goose". Desta vez é Humpty Dumpty! (1).

(1) Humpty Dumpty, personagem de versos infantis, representada por um ovo, e que uma vez caído ao chão não se pode refazer na sua integridade original (N. do T.).


O silêncio de assombro, que se seguiu, foi quebrado pelo riso forçado do sargento.

— Isto sim é que é pôr as coisas em seu devido lugar, hem, Sr. Vance?

— É absurdo! — declarou Markham, estudando Vance com particular inquietação. — Meu querido amigo, você deixou que este caso tomasse conta do seu cérebro de um modo absorvente. Nada aconteceu, a não ser que um homem corcunda caiu de cima do muro no parque. É uma desgraça, eu confesso. E o é duplamente neste instante. — Foi até Vance c pôs-lhe a mão sobre o ombro. — Deixe que eu e o sargento continuemos com isto... estamos acostumados com estas coisas. Faça uma viagem e descanse. Por que não vai à Europa, como costuma fazer na primavera?

— Oh, sim, sim — suspirou Vance e sorriu com ar cansado. O ar do mar me faria muito bem na verdade. Far-me-ia voltar à normalidade, hem?... Reconstituiria este cérebro outrora perfeito... Desisto! O terceiro ato desta terrível tragédia está-se desenvolvendo quase diante de seus olhos e você serenamente o ignora.

— Sua fantasia apoderou-se do melhor que há em você — replicou Markham, com a benevolência oriunda de um profundo afeto. — Não se preocupe mais com o caso. Venha jantar comigo esta noite. Então conversaremos.

Nesse momento, Swacker entrou e falou ao sargento.

— Quinan, do World está aí e deseja falar com você. Markham voltou-se.

— Oh, Deus meu, faça-o entrar!

Quinan entrou, saudou-nos alegremente e entregou uma carta ao sargento.

— Outra cartinha de amor... Recebia esta manhã. Que privilégios obtenho por ser tão magnânimo?

Heath abriu a carta diante de nosso silêncio. Imediatamente reconheci o papel e o tipo elite da máquina de escrever, impresso em tom azul-claro. A nota dizia:

"Humpty Dumpty estava sentado no muro.

Humpty Dumpty deu uma grande queda;

Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei

Não podem juntar e unir os restos de Humpty Dumpty outra vez."

E em seguida, esta assinatura nefasta, em letras maiúsculas: "O BISPO."


XVII

 

UMA LUZ DURANTE A NOITE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 9h30)

 


Quando Heath pôde desfazer-se de Quinan com promessas tais que teriam alegrado o coração de qualquer repórter. (1), houve alguns minutos de silêncio profundo no gabinete. "O Bispo" tinha estado outra vez desenvolvendo a sua obra macabra. E o caso agora se tornara triplicemente terrível, com a solução aparentemente mais remota que nunca. Não era, contudo, a insolubilidade desses crimes incríveis o que, principalmente, nos afetava; era, antes, o horror intrínseco que emanava como um miasma dos atos em si.

(1) As informações do Caso do Bispo no World causaram inveja aos outros jornais nova-iorquinos. O sargento Heath, apesar de imparcial em suas declarações à imprensa, conseguiu, entretanto, salvar vários pitorescos bons-bocados para Quinan, e se permitiu certas especulações que, embora sem valor noticioso, deram às reportagens do World muito interesse e colorido.


Vance, que passeava pensativo de um lado para outro, deu vazão a suas emoções conturbadas.

— É uma maldição, Markham... é a essência da maldade inexprimível... Essas crianças no parque... levantadas tão cedo em seu dia de folga, em busca de sonhos... ocupadas com seus jogos e brincadeiras... e então a realidade inquietante... a horrível e dominante desilusão... Você não vê a maldade de tudo isso? Essas crianças encontraram o Humpty Dumpty... o seu Humpty Dumpty... morto ao pé do muro famoso... um Humpty Dumpty que elas podiam tocar e ver, quebrado, retorcido, para nunca mais se poder unir de novo...

Deteve-se, ao chegar à janela e olhou para fora. A névoa se dissipara e uma débil difusão do sol primaveril cobria as pedras cinzentas da cidade. A distância brilhava a águia dourada do New York Life.

— Bem, simplesmente, deve-se deixar de lado o sentimentalismo — observou ele com um sorriso forçado, retornando à sala. — Deforma a inteligência e imbeciliza os processos dialéticos. Agora que sabemos que Drukker não foi a vítima caprichosa da lei da gravidade, mas que foi auxiliado em sua viagem para o outro mundo, quando mais rapidamente usarmos de energia tanto melhor, não?

Embora sua mudança de modo de pensar fosse um tour de force, despertou-nos de nossa apatia sombria. Markham acercou-se do telefone e entendeu-se com o inspetor Moran para que Heath se incumbisse desse outro caso. Em seguida, telefonou para o médico da polícia e pediu-lhe um imediato laudo post mortem.

Heath levantou-se vigorosamente e, depois de tomar três copos de água gelada, ficou à espera de que o procurador do distrito indicasse uma linha de ação.

Markham movia-se nervosamente.

— Vários homens de seu Departamento, sargento, parecem ter estado vigiando as casas de Drukker e de Dillard. Você falou com alguns deles?

— Não tive tempo, senhor. E, além do mais, pensei que fosse um acidente. Mas, disselhes que seguissem para os seus postos até que eu voltasse.

— Que disse o médico?

— Somente que parecia um acidente e que Drukker estava morto há dez horas mais ou menos...

Vance intercalou uma pergunta.

— Não mencionou fratura do crânio, além do pescoço quebrado?

— Bem, senhores, ele não disse exatamente que o crânio estivesse fraturado, mas observou que Drukker havia caído de costas. — Heath meneou a cabeça compreensivamente. — Suponho que poderá provar-se que é uma fratura... como as de Robin e Sprigg.

— Indubitavelmente. A técnica de nosso assassino parece ser simples e eficaz. Fere as suas vítimas na cabeça, quer aturdindo-as ou matando-as diretamente, e então arroja-se nos lugares que escolheu para que desempenhem o papel de fantoches de sua nefasta obra. Sem dúvida alguma, Drukker estava debruçado no muro, perfeitamente exposto a esse tipo de ataque. Havia nevoeiro, o lugar estava escuro. De chofre, recebeu o golpe na cabeça, um leve empurrão e caiu sem ruído, por cima do parapeito... O terceiro sacrifício oferecido no altar da velha "Mama Goose".

— O que eu não compreendo — declarou Heath, irritado — é porque Guilfoyle (1), o rapaz que eu pus vigiando a parte dos fundos da casa de Drukker, não me comunicou que este tinha pernoitado fora. Voltou à seção às oito e não pude vê-lo. Não lhe parece, senhor, que seria melhor averiguar o que ele sabe, antes de irmos ao lugar da tragédia?

(1) Como se devem recordar, Guilfoyle era um dos detetives que seguiram a pista de Tony Skeel, no Crime da Canária.


Markham concordou e Heath transmitiu uma ordem pelo telefone.

Em menos de dez minutos, Guilfoyle apresentou-se vindo do Departamento Central da Polícia.

O sargento quase se atirou de encontro ao detetive, quando este entrou na sala.

— A que horas saiu Drukker, ontem à noite? — vociferou Heath.

— Pelas oito horas, depois de ter ceado. — Guilfoyle não se sentia à vontade, e sua atitude tinha a doçura constrangida de quem fora colhido no abandono do dever.

— Para onde foi ele?

— Saiu pela porta dos fundos, andou pelo campo de exercícios e entrou em casa de Dillard, passando pela sala do clube.

— Em visita?

— Assim parecia, sargento. Permaneceu muito tempo em casa de Dillard.

— Ah! E a que horas voltou para casa? Guilfoyle moveu-se intranqüilo.

— Parece que não voltou, sargento.

— Oh! Não voltou? — A réplica de Heath estava cheia de sarcasmo. — Pensei que depois de quebrai o pescoço, podia ter voltado para passar o dia com você.

— O que eu quero dizer, sargento, é que...

— Você quis dizer que Drukker... o pássaro de que você devia cuidar... foi à casa de Dillard às oito horas, voltando você, em seguida, a deitar-se debaixo da árvore para tirar uma soneca... A que horas acordou você?

— Olhe, escute — disse Guilfoyle, irritando-se. — Eu não dormi. Estive cumprindo o meu dever toda a noite. Por que não vi esse moço voltar à casa, não quer dizer que minha vigilância foi abandonada.

— Bem, mas se você não o viu voltar, por que não telefonou dizendo que ele estava passando o fim-de-semana fora da cidade ou outra coisa semelhante?

— Pensei que pudesse ter entrado pela porta principal.

— Pensando outra vez, hem? Seu cérebro não está cansado esta manhã?

— Tenha coração, sargento. Minha obrigação não era seguir Drukker. O senhor recomendou-me que vigiasse a casa e tomasse nota das pessoas que entravam e saíam, e, caso sucedesse qualquer coisa de anormal, nela penetrasse sem mais preâmbulos. Ora, o que se passou foi isto: Drukker encaminhou-se para a casa de Dillard às oito horas. Então, dirigiu o olhar para a casa de Drukker. Pelas nove horas, a cozinheira subiu para seu quarto e acendeu a luz, apagando-a meia hora depois. Então disse a mim mesmo. — "Deitou-se." Pelas dez horas, acenderam-se as luzes do quarto de Drukker...

— O quê?

— Isso mesmo: as luzes se acenderam no quarto de Drukker. E pude ver a sombra de alguém que se movia de um lado para outro. Agora, eu lhe pergunto, sargento: não afirmaria o senhor mesmo que o corcunda havia entrado pela porta da frente?

Heath grunhiu.

— Pode ser que sim — admitiu ele. — Você está certo de que eram dez horas?

— Não consultei o relógio; mas estou aqui para dizer ao senhor que não eram muito mais de dez horas.

— A que horas se apagaram as luzes do quarto de Drukker?

— Não se apagaram. Permaneceram acesas toda a noite. Era um pássaro estranho. Não tinha método, nem obedecia a horas regulares e, duas vezes antes, as luzes estiveram acesas até quase de manhã.

— Isto é compreensível — ouviu-se a voz indolente de Vance. — Ultimamente, tem estado trabalhando até altas horas da noite, no desenvolvimento de um tema difícil. Mas, Guilfoyle, que nos diz da luz no quarto da Sra. Drukker?

— Nada de particular. A velha sempre conserva a luz acesa em seu quarto.

— Havia alguém a noite passada, montando guarda defronte à casa de Drukker? — perguntou Markham a Heath.

— Não depois das seis, senhor. Destacamos um homem para seguir Drukker durante o dia, porém ele termina o seu plantão às seis horas, quando Guilfoyle assume o seu posto na parte dos fundos.

Houve um momento de silêncio. Em seguida, Vance voltou-se para Guilfoyle:

— A que distância estava você da porta de passagem entre as duas casas vizinhas?

O homem fez uma pausa como que para visualizar a cena.

— Digamos doze ou quinze metros.

— E entre você e a passagem estavam a cerca de ferro e alguns galhos de árvore.

— Sim, senhor. A vista estava um tanto cortada, se é isto o que o senhor quer dizer.

— Seria possível que alguém que viesse da casa de Dillard saísse e voltasse pela tal porta, sem ser notado?

— Seguramente — admitiu o detetive — sempre que, por hipótese, o indivíduo fizesse o possível para não ser visto. A noite estava muito escura, devido à cerração, e o ruído proveniente do tráfego no Riverside Drive teria abafado o som de seus passos, bastando um pouco de cautela.

Quando o sargento mandou Guilfoyle voltar para a seção e aguardar ordens, Vance manifestou a sua perplexidade.

— É uma situação para lá de complicada. Drukker foi visitar Dillard às oito e, às dez horas, foi arrojado por cima do muro do parque. Como você observou, a nota que Quinan acaba de mostrar-nos foi postada no correio às onze da noite, o que quer dizer que foi escrita provavelmente "antes do crime". Por conseguinte, o Bispo planejara a sua comédia antecipadamente e preparara a nota para a imprensa. A audácia de tudo isto é surpreendente. Porém, há uma suposição que devemos acentuar: o assassino conhecia os lugares exatos freqüentados por Drukker, entre as oito e dez horas.

— Entendi — disse Markham. — Seu ponto de vista é que o assassino foi e voltou pela passagem entre as duas casas: a de Dillard e a de Drukker.

— Oh! Compreenda! Eu não tenho ponto de vista algum. Indaguei a Guilfoyle sobre a passagem com a intenção de saber somente se Drukker foi o único indivíduo que pôde ser visto sair em direção ao parque. Sendo assim, podíamos admitir como uma hipótese que o assassino havia conseguido evitar de ser visto, indo pela passagem e atravessando o parque.

— Com essa possível rota aberta ao assassino — observou Markham tristemente — não importaria muita coisa constatar quem fora visto sair com Drukker.

— Precisamente. A pessoa que preparou essa farsa pode ter caminhado audaciosamente até ao parque, sob as vistas de um "tira" alerta, ou pode ter corrido furtivamente pela passagem.

Markham meneou a cabeça num assentimento a contragosto.

— O que mais me preocupa, todavia — continuou Van-ce, — é a luz no quarto de Drukker durante toda a noite. Foi acesa à hora em que o pobre homem era atirado para a eternidade. E Guilfoyle disse que pôde divisar alguém andar pelo quarto depois que a luz foi acesa...

Cessou de falar e permaneceu alguns segundos numa atitude de concentração.

— Diga-me, sargento, sabe você se a chave da porta principal da casa de Drukker estava no bolso do seu casaco, quando o encontraram morto?

— Não, senhor, mas posso averiguá-lo imediatamente, Os objetos encontrados em seus bolsos estão guardados até que se faça autópsia.

Heath encaminhou-se para o telefone e um momento depois falava com o sargento de guarda no posto da Rua 63. Seguiram-se vários minutos de espera. Em seguida, resmungou qualquer coisa e largou o fone.

— Ele não levava consigo chave alguma.

— Ah! — Vance deu uma grande tragada em seu cigarro e, lentamente, soltou a fumaça no ar. — Estou começando pensar que o Bispo roubou a chave de Drukker e fez uma visita à sua casa, depois do assassinato. Parece incrível, bem sei, mas, se nos fixamos nas outras circunstâncias, tudo tem mesmo esse aspecto incrível neste caso fantástico.

— Mas, santo Deus, qual pode ter sido o propósito? — protestou Markham, incrèdulamente.

— Não o sabemos ainda. Mas tenho idéia de que, quando entendermos os motivos desses crimes monstruosos, compreenderemos o porquê dessa visita.

Markham, com a fisionomia austera, tomou o seu chapéu.

— É melhor irmos até lá.

Mas Vance não se moveu, permanecendo junto da mesa, parado com ar distraído.

— Markham, — disse ele, parece-me que, antes, devemos visitar a Sra. Drukker. Ontem à noite, houve em sua casa uma tragédia: algo estranho aconteceu lá que necessita de uma explicação. E agora talvez nos revele o segredo guardado em seu espírito. Mais ainda, não teve conhecimento da morte do filho e, com todo o rumor e comentários da vizinhança, chegará alguma palavra aos seus ouvidos dentro de pouco tempo. Receio o resultado do golpe, quando ela se inteirar de tudo. Em verdade, eu me sentiria melhor se levássemos conosco o Dr. Bartead. Que lhe parece se lhe telefonarmos?

Markham concordou e Vance rapidamente explicou ao doutor a situação.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do Dr. Barstead e, em seguida, partimos para a casa de Drukker. Fomos recebidos pela Sra. Menzel, cuja fisionomia indicava que ela sabia da morte de Drukker. Vance, depois de dirigir-lhe um rápido olhar, levou-a à sala, longe da escada, e perguntou-lhe em voz baixa:

— A Sra. Drukker já sabe?

— Ainda não — respondeu ela com voz trêmula e assustada. — A Srta. Dillard veio faz uma hora, porém eu lhe disse que a senhora tinha saído. Tive medo de deixá-la subir. Há algo errado... — Ela começou a tremer violentamente.

— Que há de errado, Sra. Menzel? — Vance colocou uma mão tranqüilizadora em seu braço.

— Não sei. Mas, toda a manhã não a vi. Ela não veio para a refeição matinal... E eu tenho medo de ir chamá-la.

— Quando soube você do acidente?

— Cedo. Depois das oito. O jornaleiro me disse. E eu vi aglomeração de povo no Drive.

— Não se assuste — Vance consolou-a. — O médico está conosco aqui e atenderemos a tudo.

Ele voltou ao vestíbulo e subimos. Quando chegamos ao quarto da Sra. Drukker, bateu levemente e, não recebendo resposta, abriu a porta. Não havia ninguém no quarto. A luz noturna estava acesa ainda sobre a mesa. E notei que a cama não tinha sido desfeita.

Sem dizer palavra, Vance retornou ao vestíbulo. Só existiam duas outras portas principais. Sabíamos que uma delas dava para o gabinete de Drukker. Sem titubear, Vance se dirigiu à outra, abrindo-a sem bater. As persianas estavam descidas, porém, como eram brancas e semitransparentes, a luz cinzenta do dia se mesclava com a espectral irradiação amarela do candelabro de velho estilo. A luz que Guilfoyle vira acesa toda a noite ainda não se tinha apagado.

Vance deteve-se no umbral.

— Mãe de Deus! — exclamou o sargento e persignou-se. Aos pés da antiga cama jazia a Sra. Drukker, a fisionomia pálida, os olhos fora das órbitas e as mãos sobre o peito.

Barstead adiantou-se de um salto e inclinou-se sobre ela. Depois de auscultá-la, ergueu-se sacudindo a cabeça lentamente.

— Está morta. Provavelmente, desde ontem à noite. — Outra vez se inclinou sobre o corpo e começou a fazer um exame. — Há anos que ela sofre de nefrite crônica, arteriosclerose e hipertrofia do coração... Algum choque provocou uma dilatação aguda... Sim, diria que morreu quase ao mesmo tempo que Drukker... Cerca das dez horas.

— Morte natural? — perguntou Vance.

— Oh, indubitavelmente. Uma injeção de adrenalina no coração podia tê-la salvo, se fosse aplicada a tempo...

— Nenhum sinal de violência?

— Nenhum. Como lhe disse antes, ela morreu de dilatação do coração ocasionada por um choque. Um caso evidente... típico em todo o sentido.


XVIII

 

O MURO DO PARQUE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 11h)

 


Quando o médico estendeu na cama o cadáver da Sra. Drukker e o cobriu com um lençol, descemos para o andar térreo. Barstead retirou-se imediatamente, prometendo enviar ao sargento, antes de uma hora, o atestado de óbito.

— Do ponto de vista científico, é correto falar em morte natural devido ao choque — disse Vance, quando ficamos a sós. — Mas, nosso problema imediato é averiguar a causa desse choque súbito. Evidentemente, está relacionado com a morte de Drukker. Ora, eu penso...

Voltando-se bruscamente, entrou na sala. A Sra. Menzel estava sentada no lugar onde a havíamos deixado, numa atitude de expectativa. Vance dirigiu-se para ela e lhe disse com bondade:

— Sua patroa morreu, ontem à noite, de um ataque de coração. É muito melhor que não tenha sobrevivido a seu filho.

— Gott geb' ihr die ewige Ruh! — murmurou a mulher piedosamente. — Sim, é melhor...

— Morreu às dez horas, mais ou menos. Estava você acordada a essa hora, Greta?

— Estive acordada toda a noite — respondeu ela em voz baixa e cheia de terror.

Vance contemplou-a com os olhos semicerrados.

— Diga-nos o que ouviu.

— Alguém veio aqui ontem à noite!

— Sim, alguém veio perto das dez horas... Entrou pela porta principal.

— Você ouviu-o entrar?

— Não, mas depois que me deitei, ouvi vozes no quarto do Sr. Drukker.

— Era raro ouvir vozes no quarto dele, às dez da noite?

— Mas, não era ele! A voz dele era alta, e a que eu ouvi era baixa e áspera. — A mulher ergueu a vista assustadíssima. — E a outra voz era a da Sra. Drukker... E ela não ia nunca de noite ao quarto do filho!

— Como pôde ouvir tão claro com a porta fechada?

— Meu quarto está precisamente acima do quarto do Sr. Drukker — replicou ela. — E eu estava preocupada com o que se passava. Então me levantei e ouvi tudo de cima da escada.

— Não posso culpar você — disse Vance. — Que foi que ouviu?

— A princípio, parecia que a patroa soluçava, mas logo começou a rir. O homem falava, como se estivesse zangado. Em seguida, eu o ouvi rir também. Depois me pareceu que a senhora rezava... pude ouvir dizer: "Oh, Deus! Oh, Deus!" Aí, o homem disse alguma coisa mais, muito tranqüilo e em voz baixa... Em um instante, pareceu que a senhora estava recitando... um poema...

— Você reconheceria o poema, se o ouvisse outra vez?... Era "Humpty Dumpty estava sentado em um muro; Humpty Dumpty deu uma grande queda...?"

— Bei Gott, das ist's! Era isso mesmo. — O pavor estampou-se-lhe novamente no rosto. — E o Sr. Drukker caiu do muro ontem à noite!

— Ouviu alguma coisa mais, Greta? — A voz despreocupada de Vance interrompeu sua correlação confusa da morte com o verso que tinha ouvido.

Lentamente, ela sacudiu a cabeça.

— Não. Depois tudo ficou quieto.

— Ouviu alguém sair do quarto do Sr. Drukker? Ela moveu assustada a cabeça.

— Uns minutos depois, alguém abriu e fechou a porta, sem fazer ruído, e ouvi passos pelo vestíbulo escuro. Em seguida, as escadas rangeram e a porta principal foi fechada.

— Que fez você depois?

— Escutei durante um momento e voltei para a cama. Mas, não pude dormir...

— Está tudo acabado agora — disse Vance, consolando-a. — Não tem nada a recear. É melhor que vá para o seu quarto e espere lá até que a chamemos.

Com um pouco de relutância, a mulher subiu as escadas.

— Creio que agora — disse Vance — podemos fazer um resumo bastante aproximado do que sucedeu aqui ontem à noite. O assassino tirou a chave do bolso de Drukker e entrou pela porta principal. Sabia que os aposentos da Sra. Drukker ficavam na parte posterior da casa, e, sem dúvida, ele confiava em levar a cabo seu propósito no quarto de Drukker e partir como tinha vindo. Mas, a Sra. Drukker o pressentiu. Pode ser que ela o tivesse associado ao homenzinho que deixara o bispo preto em sua porta, e receasse que seu filho estivesse em perigo. De qualquer modo, encaminhou-se sem demora para o quarto de Drukker. A porta talvez estivesse ligeiramente aberta, e creio que ela viu o intruso, reconhecendo-o. Sobressaltada e cheia de apreensão, entrou no quarto e perguntou-lhe por que estava ali. Ele, com certeza, lhe respondeu que tinha vindo para informá-la da morte de Drukker, o que deu causa aos gemidos e ao riso histérico. Mas, isso era somente uma preliminar da parte dele... um jogo para passar tempo. Estava imaginando como a mataria. Oh, não pode haver dúvida sobre isto. Ele não podia deixar que ela saísse viva daquele quarto. Pode ser que ele lhe dissesse isto em outras palavras... falava como se estivesse aborrecido... E, em seguida, riu-se. Depois, atormentou-a... Talvez lhe tivesse dito toda a verdade, numa explosão de egoísmo desvairado. E ela só sabia dizer: "Oh, Deus!... Oh, Deus!" Ele explicou de que forma empurrou Drukker de cima do muro. E repetiu o "Humpty Dumpty". Creio que sim, pois que melhor auditório poderia apreciar sua obra monstruosa que a própria mãe da vítima? Esta última revelação foi excessiva para o seu espírito hipersensível. Ela repetiu a rima infantil com um acento de horror. E, em seguida, o terror acumulado dilatou seu coração. Ela caiu sobre a cama e o assassino não precisou, assim, selar-lhe os lábios com as suas próprias mãos. Viu o que havia sucedido e saiu tranqüilamente.

Markham inspecionou o quarto todo.

— A parte menos compreensível da tragédia da noite de ontem — disse ele — é o motivo da vinda desse homem até aqui, depois da morte de Drukker.

Vance fumava pensativamente.

— É melhor pedirmos a Arnesson que nos ajude a esclarecer este ponto. É possível que ele nos forneça alguma luz sobre a morte de Drukker.

— Sim, talvez — concordou Heath. Em seguida, depois de revolver o charuto entre os lábios durante uns instantes, acrescentou com mau humor: — Há muitas pessoas em torno de nós, segundo me parece, que nos poderiam dar excelentes explicações.

Markham deteve-se diante do sargento.

— O que devíamos fazer, antes, era averiguar o que sabem seus homens sobre os movimentos das pessoas da vizinhança ontem à noite. Que lhe parece se mandarmos chamá-los e os interrogarmos aqui? A propósito, quantos eram e em que pontos estavam destacados?

— Eram três, senhor, além de Guilfoyle. Emery foi destacado para seguir Pardee; Snitkin estava destacado no Drive esquina da Rua 75 para vigiar a casa de Dillard. E Hennessey na Rua 75 perto da West End Avenue. Todos estão esperando no lugar onde foi encontrado Drukker. Eu os terei aqui num instante.

Ele desapareceu pela porta principal e em menos de cinco minutos reapareceu com os três detetives. Eu os reconheci a todos, pois haviam trabalhado em dois ou mais casos em que Vance havia figurado (1).

(1) Hennessey tinha vigiado o Dr. Drumm na mansão dos Greenes, nos Apartamentos Narcoss, no caso dos assassinatos dos Greenes. Snitkin também tinha tomado parte na investigação do caso dos Greenes e desempenhou um papel menor nos casos Benson e da Canária. E Emery foi o detetive que encontrou os tocos de cigarros debaixo da lenha da lareira, no living de Alvin Benson.


Markham interrogou primeiro Snitkin por ser ele o que provavelmente pudesse fornecer informações que se relacionassem diretamente com o caso da noite anterior. Os seguintes detalhes foram conhecidos em virtude de seus informes:

 

Pardee tinha saído de sua casa às 6:30, dirigindo-se diretamente para a casa de Dillard. Às 8:30, Belle Dillard, em traje de soirée, tomou um táxi que subiu a West End Avenue. (Arnesson saiu com ela e a ajudou a tomar o carro, porém logo depois voltou para a casa.)


Às 9:15, o professor Dillard e Drukker saíram da casa do primeiro, caminhando lentamente para o Riverside Drive. Atravessaram o Drive pela Rua 74 e voltaram pelo caminho em forma de ferradura.


Às 9:30, Pardee saiu da casa de Dillard, encaminhando-se para o Drive e tomando a direção do centro da cidade.


Pouco depois das dez, o professor Dillard voltou sozinho para a casa, cruzando de novo o Drive pela Rua 74.


Às 10:20, Pardee retornou à casa vindo da mesma direção que havia tomado antes.


Belle Dillard regressou à casa numa limusine cheia de jovens, aos trinta minutos depois da meia-noite.


Hennessey foi interrogado em seguida, mas suas informações apenas reforçaram as de Snitkin. Ninguém se havia aproximado da casa de Dillard pela West End Avenue. E nada de caráter suspeito se havia passado ali.

Markham voltou em seguida a sua atenção para Emery o qual informou que, segundo Santos, a quem tinha substituído às seis horas, Pardee passara as primeiras horas da tarde no Clube de Xadrez de Manhattan, voltando à casa cerca das quatro horas.

— Depois, como disseram Snitkin e Hennessey — continuou Emery — foi à casa de Dillard às seis horas e trinta, permanecendo lá até às 9:30. Quando saiu, seguiu-o a uns cinqüenta metros de distância. Caminhou pelo Drive até à Rua 79, atravessou a parte superior do parque e passeou ao redor do grande tufo de arbustos, passando pelas rochas e encaminhando-se para o Iate Clube...

— Tomou o caminho onde Sprigg foi alvejado? — perguntou Vance.

— Teve de tomá-lo, pois não existe outro caminho por ali, a não ser que se vá pelo Drive.

— Até onde foi?

— Ele se deteve no lugar preciso onde Sprigg foi assassinado. Sem demora, voltou pelo mesmo caminho de antes e penetrou no pequeno parque do playground, no lado que dá para a Rua 79. Caminhou lentamente pelo passeio, debaixo das árvores, ao longo do caminho em forma de ferradura, e ao passar por cima do muro sob a fonte de água para beber, encontrou o professor Dillard e o corcunda apoiado no parapeito e conversando...

— Você disse que ele encontrou o professor Dillard e Drukker no mesmo lugar em que este último caiu do muro? — Markham inclinou-se para diante, esperançado.

— Sim, senhor. Pardee se deteve com eles e eu naturalmente prossegui o meu caminho. Ao passar diante deles, ouvi que o corcunda dizia: "Por que não joga xadrez esta noite?" E me pareceu que ele estava aborrecido com Pardee por este ter-se detido, dando-lhe a entender que a sua presença ali era demais. Mas, de qualquer modo, segui pelo muro até chegar à Rua 74, onde havia um grupo de árvores para ocultar-me...

— Pôde desse lugar ver bem Pardee e Drukker? — interrompeu-o Markham.

— Bem, para dizer a verdade, não podia vê-los. Àquela hora, a névoa era muito espessa e, além do mais, naquela parte do passeio onde estavam confabulando, não havia luz alguma. Mas, imaginando que Pardee se separasse logo, esperei por ele.

— Isso devia ter sido perto das dez horas.

— Cerca das dez e um quarto, diria eu.

— Havia alguém no passeio àquela hora?

— Não vi ninguém. A cerração deveria ter afugentado os passeantes. E a noite estava muito fria. E porque ali não houvesse ninguém, arrisquei-me a ir até onde fui. Pardee não é tolo e eu observei que ele me olhava algumas vezes como se suspeitasse de que eu o seguia.

— Quanto tempo transcorreu até que você voltasse a pôr-se em contacto com ele?

Emery mudou de posição.

— Minha atuação não foi tão boa na noite passada — confessou ele com um débil sorriso. — Pardee devia ter voltado por onde veio, atravessando de novo o Drive pela Rua 79. Ao cabo de meia hora, mais ou menos, eu o vi dirigindo-se para o prédio de apartamentos, na esquina da Rua 75.

— Mas, — objetou Vance, — se você esteve na entrada do parque, na Rua 74, até às 10:15, devia ter visto o professor Dillard passar perto de você. Ele voltou para casa, cerca das dez horas, por esse caminho.

— Creio que o vi. Fazia vinte minutos que esperava por Pardee, quando o professor, caminhando só atravessou o Drive, entrando em sua casa. Eu, naturalmente, acreditei que o corcunda e Pardee tinham ficado conversando... por isso, me preocupei em ver onde estavam.

— Então, segundo penso, quinze minutos depois de ter o professor Dillard passado a seu lado, você viu Pardee que voltava pelo Drive em direção oposta.

— Isto mesmo, senhor. E, em seguida, voltei a ocupar o meu posto na Rua 75.

— Você dá a entender, Emery, — disse gravemente Markham — que foi durante o tempo que esteve esperando na Rua 74 que Drukker caiu do muro.

— Sim, mas o senhor não me culpa, não é verdade? Vigiar um homem numa noite de cerração, num lugar descampado, quando não há ninguém ao redor para despistar, não é tarefa fácil. É preciso dissimular e ser um tanto audaz se não quiser ser descoberto.

— Compreendo a sua dificuldade — disse Markham — e não o estou criticando.

O sargento despediu os três detetives mal-humoradamente. Via-se que não estava satisfeito com as suas informações.

— Quanto mais longe vamos — queixou-se — tanto mais confuso se torna o caso.

— Sursum corda, sargento — exclamou Vance. — Que nenhum negro desânimo tome conta de você. Quando tivermos o depoimento de Pardee e do professor sobre o caso, sobre o que se deu no espaço de tempo em que Emery esteve esperando debaixo das árvores da Rua 74, poderemos reunir algumas circunstâncias interessantes.

Enquanto Vance falava, entrou Belle Dillard no vestíbulo vinda da parte posterior da casa. Divisou-nos na sala e veio até nós imediatamente.

— Onde está Lady Mae? — perguntou ela com voz emocionada. — Estive aqui faz uma hora e Greta me disse que ela havia saído. E agora ela não está no seu quarto.

Vance levantou-se e deu-lhe uma cadeira.

— A Sra. Drukker morreu a noite passada de um ataque de coração. Quando você esteve anteriormente aqui, a Sra. Menzel teve medo de deixá-la subir.

A moça sentou-se silenciosa por algum tempo. Em seguida, as lágrimas lhe afluíram aos olhos.

— Talvez tenha sabido do terrível acidente ocorrido com Drukker.

— É possível. Mas não está muito claro o que sucedeu aqui a noite passada. O Dr. Barstead pensa que a Sra. Drukker morreu cerca das dez horas.

— Quase ao mesmo tempo em que morreu Adolph — murmurou ela. — Parece demasiado terrível... Pyne informou-me do acidente quando eu desci para o café esta manhã. Não se falava de outra coisa na vizinhança; e eu vim imediatamente para ficar com Lady Mae. Mas Greta disseme que ela tinha saído, e eu não sabia o que pensar. Há alguma coisa muito estranha nesta morte de Adolph...

— Que quer dizer com isso, Srta. Dillard? — Vance permanecia de pé junto à janela, observando-a discretamente.

— Eu... não sei... o que quero dizer — contestou ela titubeando. — Mas, ontem mesmo à tarde, Lady Mae falou-me de Adolph e do... muro.

— Oh, deveras? — O tom de voz de Vance era mais indolente que de costume, mas todos os nervos de seu corpo, eu o sabia, estavam vigilantes.

— Em meu caminho para a quadra de tênis — continuou a jovem em voz baixa e tranqüila — caminhava com Lady Mae através do caminho de cavaleiros acima do playground. Ela, amiúde, ia ali para ver Adolph brincar com as crianças. Durante um largo tempo, permanecemos ali apoiadas no muro. Um grupo de crianças rodeava Adolph. Este tinha um aeroplano de brinquedo e mostrava-lhes como podia voar. E os garotos olhavam-no como se fosse um deles. Não o consideravam como um homem. Lady Mae estava muito feliz e se orgulhava dele. Olhava-o com olhos brilhantes e, então, disse-me: "Ele é corcunda, Belle, e eles não têm medo dele. Chamam-no Humpty Dumpty... É o seu velho amigo do livro de contos. Meu pobre Humpty Dumpty! A culpa foi minha por tê-lo deixado cair, quando era pequeno..." — A voz da jovem ficou embargada e ela levou o lenço aos olhos.

— Então, ela disse a você que os meninos chamavam Drukker de Humpty Dumpty. — Vance lentamente procurou em seu bolso a cigarreira.

Ela confirmou com um movimento da cabeça e, um momento depois, levantou-a como forçando-a a encarar algo que temia.

— Sim! E isto é que foi estranho, porque logo depois ela foi possuída de um tremor e se retirou do muro. Perguntei-lhe o que tinha, e ela disseme numa voz horrorizada: "Suponha, Belle, suponha que Adolph caísse deste muro... como caiu o verdadeiro Humpty Dumpty!" Eu mesma tive medo; mas forcei um sorriso e disselhe que era tolice pensar em semelhante coisa. Isto não adiantou nada. Sacudiu a cabeça e me encarou de um modo apavorante. "Não é loucura", disseme. "Não mataram Cock Robin com um arco e uma flecha? E não mataram John Sprigg com uma bala de um pequeno revólver... aqui em Nova York?" — A jovem dirigiu-nos um olhar cheio de terror. — E assim aconteceu, não?... Como ela havia previsto.

— E verdade, aconteceu assim — disse Vance, meneando a cabeça. — Mas, não devemos ser muito crédulos a respeito disso. A imaginação da Sra. Drukker era anormal. Todas as formas de conjeturas disparatadas atravessavam o seu espírito torturado. E com estas outras duas mortes de personagens infantis tão vivas em sua memória não é estranho que ela tivesse transformado a alcunha que os meninos puseram em seu filho, numa especulação trágica dessa espécie. O fato de ele ter morrido da forma que ela temia não passa de coincidência.

Neste ponto, fez uma pausa e deu uma longa tragada em seu cigarro.

— Diga-me, Srta. Dillard — perguntou, em seguida, displicentemente — repetiu sua conversa com a Sra. Drukker, por acaso, diante de outra pessoa, ontem?

A jovem mirou-o com certa surpresa antes de responder.

— Mencionei-a ontem à noite, quando ceávamos. Toda a tarde estive preocupada e... não sei... mas não quis guardá-la comigo.

— Fizeram comentários a respeito?

— Titio me disse que eu não devia passar muito tempo na companhia de Lady Mae, pois era uma mulher enferma e anormal. Disse que a situação era muito trágica, porém que não havia necessidade de eu compartilhar os seus sofrimentos. O Sr. Pardee concordou com o que meu tio disse. Mostrou-se compassivo e perguntou se não havia um modo de modificar a condição mental de Lady Mae.

— E o Sr. Arnesson?

— Oh, Sigurd nunca leva nada a sério. Riu-se como se se tratasse de uma pilhéria. E tudo o que disse foi simplesmente isto: "Seria uma decepção se Adolph se despenhasse antes de ter conseguido desenvolver seu novo problema dos quanta."

— E, a propósito, o Sr. Arnesson está em casa? — perguntou Vance. — Queremos interrogá-lo sobre as combinações necessárias relativas aos Drukkers.

— Foi à Universidade de manhã cedo, porém voltará antes do almoço. Estou certa de que atenderá a tudo. Éramos os únicos amigos que Lady Mae e Adolph possuíam. Eu me encarregarei de tudo e providenciarei para que Greta ponha a casa em ordem.

Alguns minutos mais tarde, deixamo-la e fomos entrevistar o professor Dillard.


XIX

 

O CADERNO VERMELHO

 

 

(Sábado, 16 de abril — meio-dia)

 


Quando entramos, ao meio-dia, na biblioteca, o professor encontrava-se visivelmente perturbado. Estava sentado em uma poltrona, de costas para a janela. Sobre a mesa, junto a ele, havia uma garrafa de seu precioso vinho do Porto.

— Estava à sua espera Markham — disse ele antes que tivéssemos tempo de falar. — Não há necessidade de dissimular. A morte de Drukker não foi um acidente. Admitirei que me senti inclinado a deixar de lado as insanas complicações oriundas das mortes de Robin e de Sprigg; porém, no momento em que Pyne relatou as circunstâncias da queda de Drukker, verifiquei que havia um desígnio oculto atrás dessas mortes: as probabilidades de que fossem acidentais seriam incalculáveis. Você pensa como eu, do contrário não estaria aqui.

— Exatamente — respondeu Markham, sentado em frente ao professor. — Estamos diante de um problema terrível. Mais ainda, a Sra. Drukker morreu de um ataque do coração, a noite passada, quase ao mesmo tempo em que seu filho era morto.

— Pelo menos — replicou o professor depois de uma pausa — isso pode-se considerar uma graça. Foi melhor não ter sobrevivido... Inquestionavelmente sua mente entraria em colapso. — Levantou a vista e disse: — Em que posso ajudar?

— Provavelmente o senhor terá sido a última pessoa, com exceção do assassino, que viu Drukker ainda vivo e gostaríamos de saber tudo o que o senhor pudesse dizer-nos acerca do que sucedeu à noite passada.

O professor Dillard acenou com a cabeça, concordando.

— Drukker veio aqui depois do jantar... mais ou menos às oito horas, diria eu. Pardee tinha jantado conosco. Ao encontrar-se com ele, Drukker sentiu-se aborrecido... na realidade, mostrou-se abertamente hostil. Arnesson repreendeu-o, gentilmente, pela sua irascibilidade, coisa que o irritou ainda mais. E, sabendo que Drukker estava ansioso por tratar comigo de um problema, sugeri, por fim, que ele e eu passeássemos pelo parque...

— Os senhores não estiveram lá muito tempo — sugeriu Markham.

— Não. Um episódio desagradável aconteceu. Íamos pelo caminho de cavaleiros, até próximo ao lugar, onde segundo me consta, foi morto o pobre Adolph. Não havia transcorrido meia hora ainda quando Pardee se aproximou de nós. Ele se deteve a falar conosco, porém a hostilidade de Drukker era tal que Pardee resolveu retirar-se pelo mesmo caminho por que havia vindo. Drukker estava muito nervoso e propus-lhe que abandonássemos a discussão por uns momentos. Além disso, havia uma cerração úmida e eu comecei a sentir dores nas pernas. Drukker, repentinamente, ficou de mau humor e disse que não tinha desejo de retirar-se ainda. Assim, deixei-o só, junto ao muro, e voltei para casa.

— Relatou o episódio a Arnesson?

— Quando voltei, não o vi. Imagino que já se tinha deitado.

Mais tarde, quando nos levantamos para partir, Vance perguntou, displicentemente:

— O senhor pode-nos dizer onde está guardada a chave da porta da passagem?

— Não sei, senhor — replicou o professor, irritado, mas acrescentou num tom de voz mais conciliador: — Todavia, agora me lembro, antes estava pendurada num prego na porta da sala do clube.

Da casa do professor Dillard fomos diretamente à casa de Pardee, sendo recebidos em seguida em seu gabinete de estudo. Suas maneiras eram frias e distintas. Mesmo depois que nos sentamos, ele permaneceu de pé junto à janela, olhando-nos com uma expressão nada cordial.

— Sabe, Pardee — perguntou Markham, — que Drukker caiu do muro do parque, ontem à noite, às dez horas... logo depois que você parou para falar-lhe?

— Esta manhã tive conhecimento do acidente.

A palidez do homem tornou-se mais acentuada e ele começou a brincar nervosamente com a corrente do relógio.

— E muito triste — acrescentou. Seus olhos pousaram apàticamente durante uns minutos sobre Markham. — Interrogou o professor Dillard? Ele estava com Drukker...

— Sim, sim. Estamos vindo da casa do professor — interrompeu Vance. — E lá soubemos que houve ontem à noite uma atmosfera de hostilidade entre você e Drukker.

Pardee caminhou lentamente em direção à mesa, sentando-se bruscamente.

— Drukker estava aborrecido não sei com que, ao encontrar-me em casa de Dillard, depois do jantar. Não teve a prudência de ocultar seu mal-estar e criou assim uma situação um tanto incômoda. Porém, conhecendo-o como eu o conhecia, tratei de não dar grande importância ao incidente. Em seguida, o professor Dillard levou-o a passear.

— Você não permaneceu muito tempo na casa depois disso — observou Vance displicentemente.

— Não; uns quinze minutos, mais ou menos, Arnesson estava cansado e desejava deitar-se, então eu também resolvi sair, para passear. Ao regressar, passei pelo caminho de cavaleiros, em vez de vir pelo Drive e dei com o professor Dillard e Drukker, que conversavam junto ao muro. Não desejando passar por grosseiro, detive-me com eles um momento; porém, Drukker estava com um mau humor insuportável e fez vários comentários escarninhos. Retirei-me e me dirigi à Rua 79, atravessei o Drive e cheguei a casa.

— E não se deteve nem um momento no caminho?

— Sentei-me a fumar um cigarro, perto da entrada Rua 79 — foi a resposta de Pardee.

Durante quase meia hora, Markham e Vance interrogaram Pardee, porém, com resultado negativo. Ao sairmos para a rua, Arnesson nos chamou do vestíbulo da casa de Dillard e veio ao nosso encontro.

— Acabo de ouvir tristes novas. Faz um momento que cheguei da Universidade e o professor me disse que os senhores tinham ido interrogar Pardee. Há alguma novidade? — Sem esperar resposta, prosseguiu: — É terrível. Conforme tenho ouvido, toda a família Drukker foi eliminada. Bem, bem. E o pior é que continuam pondo em prática os episódios dos livros infantis... Alguma pista?

— Ariadna não nos favoreceu ainda — respondeu Vance. — É o senhor um embaixador de Creta?

— Quem sabe?... Interrogue.

Vance encaminhou-se para a porta e nos detivemos no campo de exercícios.

— Primeiro vamos à casa de Drukker — disse. — Há muitas coisas a resolver. Suponho que os senhores cuidarão dos assuntos dos Drukkers e se ocuparão do enterro.

Arnesson fez uma careta.

— Aceito! Entretanto, recuso-me desde já a assistir ao enterro. Os enterros são espetáculos obscenos. Mas, Belle e eu cuidaremos de tudo. Lady Mae provavelmente deixou testamento. É necessário averiguar. Mas, onde as mulheres guardam seus testamentos?...

Vance se deteve junto à porta da sala do clube, entrando imediatamente. Depois de observar as molduras da porta, foi reunir-se lá fora conosco.

— A chave da passagem não está ali. A propósito, que sabe você dela, Arnesson?

— Refere-se você à chave daquela porta de madeira?... Não tenho a menor idéia. Eu não uso a passagem... é muito mais simples sair pela porta principal. Creio que ninguém a usa. Faz anos que Belle trancou essa porta; pensou que alguém podia vir do Drive e por curiosidade abrir a porta e teve medo de um acidente enquanto praticava o tiro de flecha. Eu lhe disse que isso não tinha importância... e que bem o mereceria quem tivesse interesse por esse esporte.

Entramos em casa de Drukker pelos fundos. Belle Dillard e a Sra. Menzel se achavam ocupadas na cozinha.

— Olá, irmã! — exclamou Arnesson, dirigindo-se a Belle Dillard. Seu cinismo havia desaparecido. — Os tempos são maus para uma jovem como você. É melhor que você vá para casa. Eu cuidarei de tudo — Dito isto, levou-a por um braço de um modo ao mesmo tempo jocoso e paternal até à porta.

A jovem hesitou e dirigiu um olhar inquiridor a Vance.

— Arnesson tem razão — disse ele, confirmando com um sinal de cabeça. — Por enquanto, ficaremos só nós. Mas, antes de você ir, permita-me uma pergunta: Você guardava sempre a chave da porta de passagem que dá para a sala do clube?

— Sim... sempre. Por quê? Ela não está lá agora? Foi Arnesson quem respondeu com uma ironia chistosa:

— Não está! Desapareceu! Que tragédia! Parece-me que algum excêntrico colecionador de chaves anda por aí. — Quando a jovem se retirou, olhou para Vance. — Mas, em nome de tudo que é sagrado, que relação pode ter com este caso uma chave enferrujada?

— Talvez nenhuma — disse Vance displicentemente. — Vamos até a sala. Estaremos mais à vontade. — Atravessaram o vestíbulo.— Queremos que você nos diga o que sabe acerca dos acontecimentos de ontem à noite.

Arnesson sentou-se numa poltrona junto à janela da frente e tirou do bolso o seu cachimbo.

— De ontem à noite, hem?... Bem, Pardee veio jantar conosco, como costuma fazer todas as quintas-feiras. Depois Drukker mergulhou na especulação da teoria dos quanta para auscultar o professor. A presença de Pardee tirou-lhe a calma. Que gênio, por Deus Não tinha domínio sobre si mesmo. O professor pôs termo ao incidente, levando Drukker para tomar ar. Pardee permaneceu ainda uns quinze minutos, enquanto eu me esforçava para me manter desperto. Em seguida, ele teve a bondade de retirar-se. Examinei uma chusma de provas escritas... e me deitei. — Tomou o cachimbo e perguntou: — Em que pode servir este breve relato para explicar a morte de Drukker?

— Não o explica — disse Vance. — Mas, não é destituído de interesse. Você ouviu quando o professor Dillard chegou?

— Se eu ouvi? — Arnesson soltou uma gargalhada. — Quando ele caminha com o pé atacado de gota, batendo com a bengala no chão e sacudindo o corrimão, não há surdo que não o ouça. E o fato é que, ontem à noite, estava mais barulhento que nunca.

— E que pensa você de tudo isto? — perguntou Vance, depois de uma breve pausa.

— Em relação aos detalhes, estou um tanto no escuro. O professor Dillard não estava exatamente fosforescente. De fato, Drukker caiu no muro como Humpty Dumpty, cerca das dez horas, sendo apenas encontrado na manhã de hoje... Até aqui, tudo muito claro. Porém, por que motivo Lady Mae sucumbiu de uma síncope? Quem, ou qual foi a causa? E como?

— O assassino tomou a chave de Drukker e veio imediatamente aqui, depois do crime. A Sra. Drukker surpreendeu-o no quarto do filho. Segundo a cozinheira, que escutou de cima da escada, produziu-se uma cena. E, durante ela, a Sra. Drukker faleceu de uma síncope cardíaca.

— Evitando ao cavalheiro o incômodo de assassiná-la.

— Isto parece muito claro — concordou Vance. — Mas o motivo da visita do criminoso a esta casa não o é. Pode você sugerir alguma explicação?

Arnesson lançou umas baforadas de fumo, pensativamente.

— É incompreensível — murmurou por fim. — Drukker não possuía objeto de valor, nem documentos comprometedores... Era um tipo direito... Incapaz de tomar parte em negócios sujos... Não vejo motivo algum para que alguém tivesse interesse em devassar o seu quarto.

Vance recostou-se na cadeira e pareceu não dar importância.

— Que teoria é essa dos quanta que tanto preocupava Drukker?

— Ah! Algo soberbo! — Arnesson se animou. — Estava em caminho de conciliar a teoria de Einstein-Bohr sobre a irradiação com os fatores da interferência e de vencer as inconsistências inerentes à hipótese de Einstein. Sua investigação o havia levado ao abandono da coordenação causai tempo-espaço, do fenômeno atômico, e à sua substituição por uma descrição estatística. Teria revolucionado a Física... teria ficado famoso. É uma pena que ele tenha desaparecido, antes de haver coordenado todos os seus dados.

— Você sabe, por acaso, em que lugar Drukker guardava os registros dos seus cálculos?

— Em um caderno de folhas soltas, todas tabuladas e organizadas em índice. Era um homem metódico e correto em tudo. Sua própria caligrafia era como uma lâmina gravada.

Então, você sabe como era o caderno?

— Tinha que sabê-lo. Ele o mostrou muitas vezes a mim. Capa de couro flexível vermelha... páginas finas e amarelas... dois ou três clips em todas as folhas, prendendo anotações... seu nome estampado em ouro, em letras grandes, no frontispício... Pobre diabo! Sic transit...

— Onde poderia estar agora esse caderno?

— Em um dos lugares seguintes: na gaveta de sua mesa no gabinete de estudo, ou na escrivaninha de seu quarto. Durante o dia, trabalhava no gabinete de estudo, mas aí permanecia noite e dia, quando estava interessado em algum problema. Conservava em seu quarto uma escrivaninha, onde guardava seus registros correntes, antes de se retirar, a fim de poder manuseá-los durante a noite, quando lhe surgisse alguma inspiração. De manhã, voltava para o gabinete de estudo. Era uma máquina regular.

Vance, enquanto Arnesson falava indolentemente olhava pela janela. A impressão era de que ele apenas escutava a descrição dos hábitos de Drukker; porém, em seguida, voltando-se, fixou em Arnesson um olhar demorado.

— Diga-me — disse ele. — Ser-lhe-ia incômodo subir e trazer o caderno de Drukker? Tenha a bondade de procurar em ambos os lugares no gabinete de estudo e no quarto.

Julguei observar em Arnesson uma dúvida quase imperceptível, porém ele se ergueu imediatamente.

— Boa idéia. É um documento demasiado valioso para permanecer aqui. — E saiu da sala.

Markham começou a passear e Heath revelou seu nervosismo, chupando o charuto com mais energia. Na saleta, enquanto esperávamos Arnesson, a tensão era grande. Cada um de nós estava em um estado de expectativa intensa, embora o que esperávamos ou temíamos fosse algo difícil de definir. Em menos de dez minutos, Arnesson reapareceu. Encolheu os ombros e mostrou as mãos vazias.

— Desapareceu! — anunciou. Procurei em todos os lugares mais prováveis... Não pude encontrá-lo. — Deixou-se cair em uma poltrona e tornou a acender o cachimbo. — Não posso compreender... talvez ele o tenha escondido.

— Talvez — murmurou Vance.


XX

 

NÊMESIS

 

(Sábado, 16 de abril — 13h)

 

Passava das treze horas quando Markham, Vance e eu nos dirigimos ao Club Stuyvesant. Heath permaneceu na casa de Drukker, para fazer as investigações habituais, preparar o seu relatório e tratar com os repórteres que não tardariam a ir para lá.

Markham tinha uma conferência com o comissário de polícia às três horas; e depois do jantar Vance e eu caminhamos pela galeria interna de Stlegliez e passamos uma hora na exposição de motivos florais de Geórgia O'Keeffe. Mais tarde, fomos ao Aeolian Hall e ouvimos o Quarteto de Debussy em sol menor. Havia algumas aquarelas de Cézanne nas galerias de Monstros; porém, quando rompíamos caminho através do tráfego do anoitecer na Quinta Avenida, a luz começava a declinar e Vance ordenou ao motorista que nos deixasse no Stuyvesant, onde nos reunimos com Markham para o chá.

— Sinto-me tão jovem, tão simples, tão inocente — disse Vance, queixando-se lugubremente. — Tantas coisas têm acontecido e são tão engenhosamente manipuladas que eu não me posso aperceber delas. É muito desconcertante, muito confuso. Não me agrada isso... Não me agrada em absoluto. É por demais exaustivo.

Suspirou tristemente e sorveu seu chá.

— Suas atribulações me deixam frio — replicou Markham. — Provavelmente passou a tarde inspecionando arcabuzes e pistolas no Museu Metropolitano. Se você tivesse de passar pelo que eu passei...

— Ora, não se aborreça — respondeu Vance. — No mundo há muita emoção. A paixão não vai resolver este caso. O cérebro é a nossa única esperança. Tenhamos calma e pensemos. — Tornou-se sério. — Markham, isto se aproxima de um crime perfeito. Como uma das grandes combinações de xadrez de Morphy, foi calculado com muita antecipação. Não existem pistas e, mesmo que existissem, nos conduziriam ao erro. E, não obstante... e, não obstante, há algo que procura revelar-se. Sinto isto; mera intuição... Quero dizer nervos. Há uma voz inarticulada que precisa falar e não pode. Por várias vezes, senti a presença de uma força que luta como um fantasma invisível que procura pôr-se em contato, sem revelar sua identidade.

Markham deixou escapar um suspiro exasperado.

— Muito útil. Aconselha você que chamemos um médium?

— Há alguma coisa que temos omitido — continuou Vance, sem dar atenção ao sarcasmo de Markham. — O caso é um enigma e a chave está em alguma parte perto de nós, mas não a reconhecemos. Palavra de honra, é bastante incômodo... Tenhamos ordem. Lucidez... eis o nosso desideratum. Primeiro, Robin e assassinado. Depois, cai Sprigg com um balaço. Em seguida, a Sra. Drukker é atemorizada por um bispo negro. Depois disto, Drukker é atirado de cima de um muro. Quatro episódios distintos na obra fanática do assassino. Três foram planejados cuidadosamente. Um — a colocação do bispo preto na porta do quarto da Sra. Drukker — foi forçado pelas circunstâncias e, por conseguinte, havia sido decidido sem preparação...

— Esclareça seu raciocínio neste ponto.

— Oh, meu querido amigo! O portador do bispo preto estava evidentemente atuando em defesa própria. Um perigo inesperado surgiu ao longo de sua linha de ação e escolheu esse meio para conjurá-lo. Justamente antes da morte de Robin, Drukker saiu da sala do clube e instalou-se no caramanchão, donde podia ver a referida sala pela janela dos fundos. Um pouco mais tarde, viu alguém falando com Robin na sala. Voltou para sua casa e, nesse momento, o corpo de Robin era arrojado para fora. A Sra. Drukker viu e talvez seu filho também tenha visto. Ela gritou... muito natural, não? Drukker ouviu o grito e nos falou dele, num esforço para estabelecer um álibi para si, quando o informamos de que Robin tinha sido assassinado. Assim o assassino se inteirou de que a Sra. Drukker tinha visto algo... Quanto, não o sabia; porém, não se queria expor a perigos, foi ao seu quarto, à meia-noite, para fazê-la calar-se e levou o bispo para deixá-lo como sinal junto ao cadáver. Mas encontrou a porta fechada à chave e deixou o bispo do lado de fora, como para adverti-la de que nada dissesse, sob pena de morte. Não sabia que a pobre mulher suspeitava de seu próprio filho.

— Mas, por que Drukker não nos disse quem tinha visto na sala do clube com Robin?

— Só podemos supor que a pessoa fosse alguém que ele não podia conceber como culpável. E estou quase certo de que ele referiu o fato a essa pessoa, cavando assim a sua própria sepultura.

— Suponho que a sua teoria esteja certa, aonde nos leva?

— Ao episódio que não foi cuidadosamente preparado por antecipação. E, quando não houve preparação para um ato secreto, há seguramente um ponto fraco em um ou outro detalhe. Agora, peço-lhe que observe que, no momento de cada um dos assassinatos, qualquer das diversas pessoas no drama podia estar presente. Nenhum álibi havia. Isto, provavelmente, estava calculado inteligentemente: o assassino escolheu uma hora em que todos os atores estavam, por assim dizer, esperando nos bastidores. Mas aquela visita da meia-noite! Ah! Isso é um assunto diferente. Não houve tempo para elaborar uma série perfeita de circunstâncias... a ameaça era demasiado iminente. E qual foi o resultado? Drukker e o professor Dillard eram aparentemente as únicas pessoas à mão, à meia-noite. Arnesson e Belle Dillard estavam ceando no Plaza e não voltaram para casa senão aos trinta minutos depois da meia-noite. Pardee estava engalfinhado com Rubinstein sobre um tabuleiro de xadrez desde as onze até à uma. Drukker está agora naturalmente eliminado... Qual é a resposta?

— Eu podia lembrar-lhe — replicou Markham acremente — que os depoimentos dos outros não foram completamente contraditados.

— Bem, bem, você podia, não? — manifestou Vance, recostando-se indolentemente e lançando para o ar uma larga e regular série de anéis de fumaça. De súbito, seu corpo se estirou e com meticuloso cuidado inclinou-se para diante e tirou o cigarro. Então mirou o relógio e pôs-se de pé. Fitou Markham com um olhar burlesco.

— Vamos, meu velho. Não são ainda seis. Eis aqui o ponto em que Arnesson nos pode ser útil.

— Que há agora? — perguntou Markham.

— Sua própria sugestão — replicou Vance, tomando-o pelo braço e conduzindo-o para a porta. — Vamos pôr à prova o depoimento de Pardee.

Meia hora depois, estávamos sentados com o professor e Arnesson na biblioteca de Dillard.

— Vimos em uma missão um tanto inusitada — explicou Vance. — Mas, pode ser de importância vital para a nossa investigação. — Puxou a carteira e tirou dela uma folha de papel. — Eis aqui um documento, Arnesson, que eu desejava que você examinasse. É uma cópia da folha oficial de escores da partida de xadrez entre Pardee e Rubinstein. Muito interessante. Manuseei-a um pouco, porém gostaria de ter sua análise de perito. A primeira parte do jogo é bastante comum mas depois da suspensão me agrada muito.

Arnesson segurou o papel e estudou-o com céptica satisfação.

— Ah! O inglório recorde do Waterloo de Pardee, hem?

— Que significa isso, Markham? — perguntou o professor Dillard com desdém. — Espera você descobrir um assassino malbaratando o tempo em uma partida de xadrez?

— O Sr. Vance esperava poder saber algo com isto.

— Tolices! — O professor encheu outro copo de vinho do Porto e, abrindo um livro, não se preocupou mais conosco.

Arnesson estava absorto com as anotações do escore do xadrez.

— Alguma coisa um tanto estranha há aqui — murmurou. — O desvio do tempo. Vejamos... A folha de escore mostra que até o momento da suspensão, as brancas, isto é, Pardee, haviam jogado uma hora e quarenta e cinco minutos, e as negras, ou Rubinstein, uma hora e cinqüenta e oito minutos. Até aqui, tudo vai bem. Trinta movimentos. Tudo em ordem. Porém o tempo, no final da partida, quando Pardee desistiu, deu duas horas e trinta minutos para as brancas e três horas e trinta minutos para as negras, o que quer dizer que, durante a segunda sessão da partida, as brancas consumiram só quarenta e cinco minutos, enquanto as negras tomaram uma hora e trinta e quatro minutos. Vance meneou a cabeça.

— Exatamente. Houve duas horas e dezenove minutos de jogo começando às onze, que levou a partida até à uma e dezenove da madrugada. E as jogadas de Rubinstein durante este tempo levaram quarenta e nove minutos mais que as de Pardee. Você pode saber o que sucedeu?

Arnesson cerrou os lábios e olhou de soslaio para as anotações.

— Não está claro. Necessitaria de tempo.

— Suponha-se — sugeriu Vance — que puséssemos o jogo na posição em que ficou ao suspender-se a partida, e o jogássemos. Gostaria de conhecer sua opinião sobre as táticas.

Arnesson levantou-se de um salto e foi à mesinha do xadrez que estava no canto.

— Boa idéia — disse, esvaziando a caixa das peças. — Vejamos agora... Oh! falta um bispo negro. A propósito, quando o conseguirei de volta? — Dirigiu a Vance um olhar queixoso. — Não importa. Não é necessário. Um bispo negro foi roubado. — Então procedeu ao arranjo das peças de acordo com a posição do jogo no momento da suspensão. Em seguida sentou-se e estudou a defesa.

— A mim não parece que a posição fosse tão desfavorável para Pardee — aventurou Vance.

— Tampouco a mim; não posso compreender como perdeu a partida.

Depois de um momento, Arnesson referiu-se à folha de escores. — Desenvolvamos a jogada e vejamos onde está a falha. — Fez meia dúzia de jogadas; então, depois de alguns minutos de estudo resmungou: — Ah! Isto sim é que é profundo da parte de Rubinstein. Combinação surpreendente. Foi aqui que ele começou a trabalhar. Sutil, por Deus! Pelo que vejo, Rubinstein levou muito tempo para planejá-la. É lento, porém perseverante.

— É possível — sugeriu Vance — que a elaboração dessa combinação explique a discrepância quanto ao tempo entre as pretas e as brancas?

— Oh, indubitavelmente. Rubinstein devia estar em boa forma para não ter tornado ainda maior a discrepância. Planejando a combinação, levou quarenta e cinco minutos... ou então eu não entendo nada.

— A que horas diria você — perguntou Vance como por descuido — que Rubinstein usou esses quarenta e cinco minutos?

— Bem, vejamos. A partida começou às onze: seis jogadas antes que a combinação começasse... Oh, diga, entre ·as onze e meia e doze e meia... Sim, justamente por aí. Trinta jogadas antes que fosse suspenso; seis jogadas começando às onze... Isto faz trinta e seis: então na jogada quarenta e quatro Rubinstein moveu seu peão para o bispo-7-xeque, e Pardee abandonou... Sim, o desenvolvimento da combinação ocorreu entre onze e meia e doze e meia.

Vance olhou as peças no tabuleiro e que agora estavam na posição que haviam ocupado no momento da desistência de Pardee (1).

(1) Para benefício do jogador de xadrez que possa estar academicamente interessado, acrescento a posição exata do jogo, quando Pardee abandonou: Brancas — R em DCtsg; Torre em RO8; Peão em DR2 e O2; Negras: R em D5; C em Dct5; Bispo em D6; Peão em Dct7 e DO7.

 

— Por curiosidade — disse tranqüilamente — joguei a partida até o xeque-mate, à noite passada. Diga, Arnesson, você se incomodaria de fazer o mesmo? Gostaria de ouvir seu comentário.

Arnesson estudou a posição cuidadosamente durante uns minutos. Então volveu a cabeça lentamente e levantou a vista para Vance. Um sardônico sorriso espalhou-se em seu rosto.

— Compreendo, por Deus! Que situação! Cinco jogadas para que as negras ganhassem e um final quase inédito em xadrez. Não posso recordar-me de caso semelhante. A última jogada seria Bispo ao Cavalo-7, xeque-mate. Em outras palavras: Pardee foi derrotado pelo bispo negro! Incrível!(2)

(2) As cinco últimas jogadas não verificadas para que as negras fizessem mate, como eu mais tarde as obtive de Vance, eram: — 45. RxP; CtxR. 46 Cxct; P-ct8 (rainha). 47. Cxd; C-D6. 48. C-Rsq; c-07 .49. p-d3. O-Cd7 mate.

 

O professor Dillard largou o livro.

— Que é isto? — exclamou, reunindo-se conosco na mesa de xadrez. — Pardee foi derrotado pelo bispo? — Dirigiu a Vance um olhar sagaz cheio de admiração. — Evidentemente você tinha um bom motivo para investigar essa partida de xadrez. Rogo-lhe que desculpe o temperamento de um velho. — Permaneceu mirando o tabuleiro com uma expressão de tristeza e ao mesmo tempo espanto.

Markham franziu o cenho, denotando profunda perplexidade.

— Você disse que é inusitado um bispo só dar mate? — perguntou ele a Arnesson.

— Nunca sucede... É uma situação quase singular. E que isto sucedesse, entre todos, a Pardee! Incompreensível! — Soltou um riso breve e irônico. — Como você sabe, o bispo vem sendo a bête noire de Pardee há vinte anos... Arruinou a vida do pobre homem. O bispo negro é o símbolo de seus pesares. O Destino, por Deus! É a peça de xadrez que derrotou o gambito Pardee. Bispo a Cavalo-5 sempre arruinou seus cálculos, desqualificou sua teoria favorita... e fez uma burla e um escárnio do trabalho de sua vida. E agora, com uma probabilidade para empatar com o grande Rubinstein, o bispo aparece outra vez e o leva para as trevas.

Uns minutos mais tarde, despedimo-nos e caminhamos até a West End Avenue, onde tomamos um táxi.

— Não é de estranhar, Vance — Comentou Markham enquanto íamos em direção ao centro da cidade — que Pardee se tornasse pálido há poucos dias, quando você disse que o bispo negro estava fazendo das suas à meia-noite. Provavelmente pensou que você o insultava propositadamente, atirando-lhe na face o fracasso de sua vida.

— Talvez... — Vance olhou como em sonho as sombras que se estendiam pela cidade. — É estranho que o bispo venha sendo seu incubo durante todos esses anos. Semelhantes descoroçoamentos periódicos, às vezes afetam os cérebros mais fortes; criam um desejo de vingança contra o mundo.

— É difícil enquadrar Pardee em um papel vingativo — objetou Markham. — Qual era seu ponto de vista acerca da discrepância do tempo entre as jogadas de Pardee e de Rubinstein? Suponha-se que Rubinstein levasse quarenta e cinco minutos mais ou menos para desenvolver sua combinação. A partida não estava terminada depois da uma. Não vejo em que a visita a Arnesson nos tenha proporcionado progresso.

— Isto é porque você não está relacionado com os costumes dos enxadristas. Em uma partida com relógio, nenhum jogador fica sentado à mesa todo o tempo que o adversário pensa em sua jogada. Passeia. Distende seus músculos, sai a tomar ar, fala com as senhoras, alimenta-se e toma água gelada. No Torneio de Mestres do Manhattan Square, no ano passado, havia quatro mesas, não sendo raro ver vazias, às vezes, até três cadeiras. Pardee é um sujeito nervoso. Ele não poderia ficar sentado durante as prolongadas especulações mentais de Rubinstein.

Vance acendeu um cigarro lentamente.

— Markham, a análise desta partida por parte de Arnesson revela o fato de que Pardee dispôs naquela noite de três quartos de hora em torno da meia-noite.


XXI


A MATEMÁTICA E O ASSASSINATO

 

 

(Sábado, 16 de abril — 20h30)

 


Durante o jantar, falou-se muito pouco no caso, porém quando nos instalamos num canto solitário da ante-sala do clube, Markham puxou de novo o assunto.

— Não vejo como uma brecha no álibi de Pardee nos possa ser útil. Complica simplesmente uma situação já de si intolerável.

— Sim — suspirou Vance. — Este mundo é triste e desalentador. Cada passo que damos parece enredar-nos um pouco mais. E o mais surpreendente é que a verdade nos olha de face e nós não podemos vê-la.

— Não existem provas contra ninguém. Nem sequer uma pessoa suspeita, contra cuja culpabilidade a razão não se rebele.

— Eu não diria isso, sabe? É o crime de um matemático num ambiente de matemáticos.

Durante toda a investigação ninguém havia sido indicado como o possível assassino. Todavia, cada um de nós, consigo mesmo, suspeitava de que uma das pessoas com quem tínhamos falado fosse o culpado, e tão espantosa era essas suspeita que instintivamente recusávamos aceitá-la. Desde o princípio, cobrimos os nossos pensamentos e temores com um manto de generalidades.

— Um crime de matemático? — repetiu Markham. — O caso, segundo o meu parecer, é uma série de atos sem sentido cometidos por um louco.

Vance sacudiu a cabeça.

— Nossos criminoso é supersadio, Markham. E seus atos não são sem sentido: são odiosamente lógicos e precisos. É certo que eles foram concebidos com um sombrio e terrível humorismo, com uma atitude tremendamente cínica, porém, em si mesmos, em essência, são exatos e racionais.

Markham olhou para Vance pensativamente.

— Como pode você conciliar estes crimes do folclore infantil com um espírito matemático? — perguntou ele. — De que forma podem ser considerados lógicos? Para mim não são mais que pesadelos sem relação alguma com um cérebro são.

Vance se afundou mais em sua poltrona, fumando durante vários minutos. Em seguida, começou a fazer uma análise do caso, que não só esclareceu a aparente loucura dos crimes, como também colocou todos os sucessos e pessoas que neles intervieram sob um foco uniforme.

A exatidão desta análise foi verificada, de forma trágica e estonteante, antes de decorridos muitos dias. (1)

(1) Evidentemente não posso reproduzir as palavras exatas de Vance, apesar de serem completos os meus apontamentos; porém, enviei-lhe uma prova dos parágrafos seguintes, com um pedido de que os revisasse e os deixasse prontos para serem publicados; assim como estão agora, representam uma paráfrase exata da análise dos fatores psicológicos dos assassinatos do Bispo.


— Para compreender estes crimes — começou dizendo — devemos considerar os valores do matemático, pois todas as suas especulações e cálculos tendem a fazer ressaltar a insignificância relativa deste planeta e a nenhuma importância da vida humana. Considere em primeiro lugar a imensa extensão do campo de ação do matemático. Por um lado, ele procura medir o espaço infinito em termos de parsecs e anos-luz; e por outro o elétron, que é tão infinitamente pequeno que foi preciso inventar a unidade Rutherford equivalente à milionésima parte de um milimícron. Sua visão abrange perspectivas transcendentais, nas quais esta terra e seus habitantes se fundem até quase um ponto imperceptível. Algumas estrelas, tais como Canopus, Arcturus e Betelgeuse, que ele considera simplesmente como unidades pequenas e insignificantes, são muitas vezes maiores que todo o nosso sistema solar. O cálculo de Shapleigh do diâmetro da Via Láctea é de trezentos mil anos-luz; ainda temos de colocar dez mil Vias Lácteas juntas para conseguir o diâmetro do Universo, o que nos dá um conteúdo cúbico cem milhares de vezes maior do que a extensão da observação astronômica. Ou, então, colocando relativamente em termos de massa: o peso do Sol é 324.000 vezes maior que o da Terra; e o peso do Universo é calculado em um trilhão (um milhar de milhares) de sóis... (1) É estranho, então, que pessoas que trabalham com semelhantes grandezas estupendas percam toda noção das proporções terrestres?

(1) Vance usa aqui o sentido inglês de "trilhão" que é a terceira potência de um milhão, oposto ao sistema de numeração americano e francês, que considera um trilhão como um milhão de milhões.

 

Após curta pausa, Vance prosseguiu:

— Mas, essas são cifras elementares... fatos quotidianos. O matemático superior vai muito adiante. Trata de especulações obscuras e aparentemente contraditórias, que a inteligência mediana não pode compreender. Vive num reino onde o tempo, tal como nós o concebemos, não tem significado senão como uma ficção do cérebro e se transforma em uma quarta coordenada do espaço tridimensional, onde a distância tampouco tem significação, a não ser para os pontos vizinhos, desde que há um número infinito de caminhos mais curtos entre dois pontos dados; onde a linguagem de causa e efeito se transforma singelamente numa taquigrafia conveniente para fins explicativos; onde as linhas retas não existem e não são suscetíveis de definição; onde a massa cresce infinitamente quando atinge a velocidade da luz; onde o espaço em si está caracterizado por curvas; onde há infinitos de ordem superior e inferior; onde a lei da gravidade é abolida como força ativa e substituída por uma característica do espaço — concepção que diz que a maçã cai não porque é atraída pela terra, mas porque segue uma linha-mundo, ou geodésica...

"Nesse reino do moderno matemático — continuou Vance — existem as curvas sem tangentes. Nem Newton, nem Leibnitz, nem Bernoulli, sequer sonharam com a possibilidade de uma curva sem tangente, quer dizer, uma função contínua sem um coeficiente diferencial. Por certo, ninguém é capaz de figurar tal contradição: está muito além do poder de imaginação. E todavia, é um lugar-comum da matemática moderna trabalhar com curvas que não têm tangentes. Mais ainda, Pi, aquele velho conhecido de nossos dias escolares que considerávamos imutável, e a proporção entre o diâmetro e a circunferência varia agora conforme o que se mede seja um círculo em descanso ou um círculo em rotação... Aborreço-o com isto?

— Inquestionavelmente — replicou Markham. — Peço, porém, que continue, uma vez que as suas observações estão tomando uma direção terrestres.

— Os conceitos da matemática moderna projetam o indivíduo fora da realidade concreta em uma pura ficção do pensamento e conduzem ao que Einstein chama de "a mais degenerada forma de imaginação" — o individualismo patológico. Silberstein, por exemplo, concebe cinco e até seis dimensões espaciais e especula com habilidade para divisar um acontecimento antes que ele se produza. As conclusões contingentes sobre a concepção do Lúmen de Flammarion — pessoa imaginária que viaja mais rapidamente do que a velocidade da luz e é por conseguinte capaz de experimentar o tempo estendendo-se em uma direção inversa — são em si mesmas suficientes para abalar qualquer ponto de vista natural e são. (1) Porém existe outro homúnculo conceptual ainda mais fantástico do que Lúmen, sob o ponto de vista do pensamento racional. Este ser hipotético pode atravessar todos os mundos ao mesmo tempo com velocidade infinita, de maneira que é capaz de contemplar toda a história da humanidade, num golpe de vista. Desde Alfa Centauro pode ver a Terra como era quatro anos antes; desde a Via Láctea pode vê-la como era há quatro mil anos! E pode também escolher um ponto no espaço de onde possa presenciar a idade glacial e o tempo atual, simultaneamente!...

(1) Lúmen foi inventado pelo astrônomo francês para provar a possibilidade da reversão do tempo; com uma velocidade de 250.000 milhas por segundo, foi concebido remontando no espaço ao final da batalha de Waterloo, recolhendo todos os raios de luz deixados no campo de batalha. Conseguiu uma dianteira gradualmente maior, até que ao cabo de dois dias estava presenciando, não o final, mas o princípio da batalha; e durante esse tempo esteve observando acontecimentos de ordens diversas. Viu projéteis abandonando objetos em que haviam penetrado, e voltarem ao canhão; mortos ressuscitarem e retornarem ao combate. Outra aventura hipotética de Lúmen era saltar à Lua, voltando-se imediatamente e vendo-se a si mesmo saltando de volta da Lua à Terra.

 

Vance afundou-se mais na poltrona:

— Jogar com a simples idéia de infinito é o suficiente para perturbar o espírito do homem mediano. Porém, que é a proposição bem conhecida da Física que diz que não podemos seguir um caminho reto, sempre adiante, no espaço, sem voltar ao nosso ponto de partida? E essa proposição sustenta, numa palavra, que podemos ir diretamente a Sirius e um milhão de vezes mais adiante sem mudar de direção, porém nunca podemos abandonar o universo, voltando afinal ao nosso ponto de partida, pelo lado oposto! Diria você, Markham, que essa idéia conduz ao que nós costumamos chamar um pensamento normal? Porém, por paradoxal e incompreensível que pareça, é quase rudimentar quando a comparamos com outros teoremas avançados da física matemática. Considere, por exemplo, o chamado problema dos gêmeos: um dos gêmeos começa ao nascer uma viagem a Arcturus — com um movimento acelerado num campo de gravidade — e ao voltar descobre que é muito mais moço que o seu irmão. Se, pelo contrário, supusermos que o movimento dos gêmeos é galileano e que por conseguinte viajam com movimento uniforme, um em relação ao outro, então cada gêmeo descobrirá que o seu outro irmão é mais moço do que ele próprio...

"Na verdade — continuou Vance — não são paradoxos da lógica, Markham; paradoxos do sentimento. As matemáticas respondem por eles, lógica e matematicamente. (1) O ponto que desejo apresentar é que as coisas que parecem inconsistentes e ainda absurdas para a inteligência comum são vulgaridades para a inteligência matemática. Um físico-matemático como Einstein anuncia que o diâmetro do espaço — do espaço, compreende? — é de cem milhões de anos-luz, ou seja, setecentos trilhões de milhas, e considera este cálculo como o mais simples. Quando perguntamos o que há além desse diâmetro, a resposta é esta: "Não há mais além: estes limites incluem tudo." Quer dizer: o infinito é finito. Ou como diria o homem de ciência: o espaço não é limitado, porém finito. Medite nisso durante meia hora, Markham, e você terá a sensação de que vai enlouquecer.

(1) Vance me pediu que mencionasse aqui o trabalho escolástico de A. d'Abro, A Evolução do Pensamento Científico, em que há uma excelente discussão dos paradoxos relativos à idéia do espaço-tempo.


Parou de falar para acender um cigarro, após o que prosseguiu:

— O espaço e a matéria... eis aí o terreno especulativo dos matemáticos. Eddington concebe a matéria como uma característica do espaço, um tropeção no nada; enquanto que Weil concebe o espaço como uma característica da matéria; para ele o espaço vazio não tem significação. Assim, o número e o fenômeno de Kant têm relações entre si, trocando-se elementos; e mesmo a filosofia perde todo o significado. Porém, quando chegamos às concepções matemáticas do espaço finito, todas as leis racionais são revogadas. A concepção de De Sitter sobre a forma de espaço é que este tem uma conformação de globo ou de esfera. O espaço de Einstein é cilíndrico e a matéria se aproxima do zero na periferia ou "condição de fronteira". O espaço de Weil, baseado na mecânica de Mach, tem a forma de uma sela de montar... Ora, a que se reduz a natureza, o mundo em que vivemos, a existência humana, quando meditamos sobre tais concepções? Eddington sugere a conclusão de que não há leis naturais, quer dizer, a natureza não está sujeita à lei da razão suficiente. Pobre Schopenhauer!(1) E Bertrand Russell resume os resultados inevitáveis da física moderna, sugerindo que a matéria deve ser interpretada simplesmente como um grupo de ocorrências e que a matéria em si não precisa existir!... Veja você aonde nos conduz tudo isso. Se o mundo é não-causal e não-existente, que é uma simples vida humana ou a vida de uma nação? Ou, no caso em questão, a própria existência?...

(1) A tese de Vance para obter o título de Mestre em Artes, segundo me lembro, versava sobre Veber die Vierfache Wurzel des Satzes von zureichenden Gründen de Schopenhauer.


Vance ergueu a vista e Markham meneou a cabeça, de modo um tanto incrédulo.

— Até agora compreendo, por suposição — disse ele — porém, seu ponto de vista parece vago, para não dizer esotérico.

— É surpreendente — perguntou Vance — que um homem que lida com esses conceitos colossais e incomensuráveis, segundo os quais os indivíduos da sociedade humana são infinitesimais, possa com o tempo perder todo o senso dos valores relativos da terra e chegue a sentir um desprezo enormes pela vida humana? Os assuntos deste mundo, comparativamente insignificantes, chegariam então a ser minúsculas intrusões no macrocosmo de sua consciência. A atitude de semelhante homem chegaria a ser inevitavelmente céptica. No seu íntimo, zombaria de todos os valores humanos e da pequenez das coisas visíveis em torno de si. Talvez houvesse em sua atitude um elemento sadista, pois o cepticismo é uma forma de sadismo...

— Mas o assassinato deliberado, projetado de antemão! — objetou Markham.

— Considere os aspectos psicológicos do caso. Com a pessoa normal, que goza de recreações diariamente, mantém-se um equilíbrio entre as atividades conscientes e as inconscientes; as emoções, por serem constantemente dispersadas, não se podem acumular. Porém, com a pessoa anormal, que passa todo o seu tempo em uma intensa concentração mental e que suprime rigorosamente todas as suas emoções, o relaxamento do subconsciente prepara manifestações violentas, sempre prontas a se desencadearem. Esta larga inibição e aplicação mental prolongada, sem recreio ou repouso de qualquer espécie, causam uma explosão, que não raro, assume a forma de fatos de um horror inexplicável. Nenhum ser humano, por intelectual que seja, pode escapar a esses resultados. O matemático que repudia as leis da natureza é, não obstante, obediente a essas leis.

"Certamente, sua absorção estática nos problemas hiper-físicos só faz aumentar a pressão de suas emoções recalcadas. Uma natureza violentada, a fim de manter seu equilíbrio, produz as fulminações mais grotescas, reações que em seu humor terrível e alegria perversa são o reverso exato da seriedade sombria das impenetráveis teorias matemáticas. O fato de que Sir William Crookes e Sir Ouve Lodge, ambos grandes físicos matemáticos, se apresentem como espíritas confirmados, constitui um fenômeno psicológico análogo.

Vance deu várias baforadas em seu cigarro, e continuou:

— Markham, não é possível fugir aos fatos: estes assassinatos fantásticos e na aparência incríveis foram projetados por um matemático, como desafogos forçados de uma vida de intensa especulação abstrata e de repressão emocional. Preenchem todos os requisitos assinalados: são nítidos e precisos, admiravelmente elaborados com os menores fatores encaixados perfeitamente em seus lugares. Nenhum ponto frouxo, nenhum rastro, e aparentemente nenhum motivo. E, ao lado de uma precisão altamente imaginativa, todas as suas inclinações assinalam, sem erro, uma inteligência sempre mergulhada em concepções obscuras... um devoto da ciência pura, em liberdade de ação...

— Mas, por que aquele humor espantoso? — perguntou Markham. — Como concilia você o período do folclore infantil deles com a sua teoria?

— A existência de impulsos reprimidos — explicou Vance — sempre produz um estado favorável ao humor. Dugas apresenta o humor como uma detente, um relaxamento da tensão. E Bain, seguindo Spencer, chama o humor um alívio da restrição. O campo mais fértil para uma manifestação do humor encontra-se na energia potencial acumulada, o que Freud chama Besetzungsenergie, que a seu tempo exige uma descarga livre. Nestes crimes calcados em motivos infantis temos o matemático reagindo até aos atos frívolos mais fantásticos, a fim de equilibrar suas especulações lógicas supersérias. É como se fosse dizendo cèpticamente: "Olha! Este é o mundo que tu levas tão a sério porque nada sabes do mundo abstrato infinitamente maior. A vida na terra é um jogo de crianças, apenas e suficientemente importante para se fazer um chiste"... E semelhante atitude seria plenamente explicável pela psicologia; pois após qualquer excesso mental por demais prolongado, as reações tomam a forma de reversões, quer dizer, os mais sérios e dignos procurariam uma válvula de escape nos folguedos infantis. Aqui, incidentemente tem você a explicação para o camarada jocoso e prático com seus instintos sádicos...

Mais ainda, todos os sádicos têm um complexo infantil. E a criança é totalmente amoral. Um homem, por conseguinte, que experimente estas regressões psicológicas infantis, está além do bem e do mal. Muitos matemáticos modernos sustentam, todavia, que toda convenção, o dever, a moralidade, o bem, etc, não poderia existir a não ser pela ficção do livre arbítrio. Para eles, a ciência da ética é um campo freqüentado pelos fantasmas conceptuais. E ainda chegam à dúvida desintegrante sobre se a verdade mesma não é simplesmente uma ficção da imaginação... Acrescente a estas considerações o sentido da distorção terrestre e o desprezo pela vida humana, que poderiam facilmente resultar das especulações matemáticas superiores, e eis aí uma perfeita série de condições para o tipo de crimes como os que agora nos ocupam.

Quando Vance terminou de falar, Markham permaneceu em silêncio durante um largo tempo. Finalmente, moveu-se com impaciência.

— Posso compreender — disse ele — como estes crimes podiam adaptar-se a qualquer das pessoas envolvidas neste caso. Porém, com base em seu argumento, como explica você as notas aos jornais?

— O humor deve ser transmitido — respondeu Vance. — "O êxito de um chiste se acha no ouvido daquele que o escuta." Além disso, o impulso para o exibicionismo entra no presente caso.

— Mas o pseudônimo "O Bispo"?

— Ah! Este é um ponto importantíssimo. A razão de ser desta terrível orgia de humor se encontra na assinatura críptica.

Markham se voltou lentamente.

— O enxadrista e o astrônomo preenchem as condições de sua teoria, da mesma forma como o físico-matemático?

— Sim — respondeu Vance. — Desde os tempos de Philidor, Staunton e Kieseritzki, quando o xadrez era como uma bela arte, o jogo transformou-se até quase chegar a ser uma ciência exata. E durante o regime da Capablanca chegou a ser amplamente um assunto de especulações matemática abstrata. Por certo Maroczy, o Dr. Lasker e Vidimar são todos matemáticos bem conhecidos... E o astrônomo, que realmente observa o universo, pode conseguir uma impressão ainda mais intensa da nenhuma importância do mundo de que o físico especulativo. A imaginação corre velozmente através de um telescópio. A simples teoria da existência de vida nos planetas distantes tende a reduzir a vida terrestre a uma consideração secundária. Durante horas, depois que contemplamos Marte, por exemplo, e nos deixamos entreter pela idéia de que seus habitantes ultrapassam em número e em inteligência a nossa população, sentimos dificuldade em nos reajustarmos aos insignificantes assuntos da vida aqui na Terra. Mesmo a simples leitura do livro romântico de Percival Lowell afasta momentaneamente da pessoa imaginativa a consciência da importância de qualquer existência planetária singela...

Aqui houve um prolongado silêncio, após o qual Markham perguntou:

— Por que Pardee levou o bispo preto da casa de Arnesson naquela noite e não do clube, onde não se teria notado a falta?

— Não sabemos o bastante sobre o motivo que o impulsionou, para dar respostas a essa pergunta. Ele pode tê-lo levado com algum propósito deliberado. Mas, que indícios tem você da culpabilidade dele? Todas as suspeitas do mundo não lhe permitiriam tomar qualquer medida contra ele. Ainda que soubéssemos, sem nenhuma dúvida, quem fosse o assassino, não poderíamos... Digo a você, Markham, que estamos enfrentando uma inteligência audaciosa e sagaz... uma inteligência que elabora cada jogada e calcula todas as probabilidades. Nossa única esperança é criar nossa própria evidência, encontrando um ponto fraco na combinação do assassino.

— A primeira coisa que farei amanhã de manhã — declarou Markham sombriamente — é pôr Heath em ação para averiguar o que Pardee fez, naquela noite. Destacarei vinte homens para apurarem o álibi e farei com que interroguem todos os espectadores daquela partida de xadrez e façam averiguações de porta em porta, desde o Clube de Xadrez de Manhattan até à casa de Drukker. Se pudermos encontrar alguém que haja visto Pardee nas vizinhanças da casa de Drukker, cerca da meia-noite, então teremos um elemento de suspeita, de prova circunstancial contra ele.

— Sim — concordou Vance. — Isso nos daria um ponto de partida definido. Pardee teria muita dificuldade em explicar por que motivo estava a seis quadras do Clube durante sua partida de xadrez com Rubinstein, à hora exata em que era deixado, na porta do quarto da Sra. Drukker, um bispo preto... Sim, sim. Faça tudo para que Heath e sua gente se ponham em ação. Pode ser que consigamos algo.

O sargento, porém, não chegou a ser chamado para fazer as averiguações lembradas. Antes das nove do dia seguinte, Markham se apresentou em casa de Vance, para informar-lhe que Pardee se havia suicidado.


XXII

 

O CASTELO DE CARTAS

 

(Domingo, 17 de abril — 9h)

 

A notícia surpreendente da morte de Pardee teve sobre Vance um efeito curiosamente perturbador. Olhou incredulamente para Markham. Em seguida, tocou a campainha com toda a pressa. Apresentou-se Currie, a quem ordenou que preparasse sua roupa e trouxesse uma xícara de café. Enquanto se vestia, seus movimentos revelavam impaciência e ansiedade.

— Demônios, Markham! — exclamou. — Isso é extraordinário... Como soube?

— O professor Dillard me telefonou para a minha casa há menos de meia hora. Pardee se suicidou na sala do clube de Dillard durante a noite. Pyne descobriu o corpo esta manhã e informou o professor. Eu transmiti a notícia a Heath e em seguida vim para aqui. Nas circunstâncias atuais, pensei que fosse oportuno que estivéssemos juntos. — Markham fez uma pausa para acender um charuto. — Parece que se acabou o caso do Bispo... Não é um fim inteiramente satisfatório, mas o melhor para todas as pessoas envolvidas.

Vance não emitiu comentário imediato. Sorveu o seu café abstraidamente, levantando-se por fim, e apanhando o seu chapéu e a bengala...

— Suicídio... — murmurou ele enquanto descíamos a escada. — Sim, isso seria bastante coerente mas, como você disse, insatisfatório... infelizmente insatisfatório...

Chegamos à casa de Dillard e Pyne nos fez entrar. Mal o professor se juntou a nós, soou a campainha da porta da rua. Heath, belicoso e dinâmico, irrompeu na sala onde nos achávamos.

— Isto esclarece as coisas, senhor — disse jubiloso a Markham, depois do ritual aperto de mão. — Estes pássaros calados... nunca se podem julgar. Todavia, quem poderia pensar...?

— Escute, sargento, — interrompeu lentamente Vance — não pensemos. Isso cansa muito. Um espírito aberto... árido como o deserto... é que é o indicado.

O professor Dillard encaminhou-se para a sala do clube seguido por nós. As persianas estavam corridas e as lâmpadas elétricas acesas ainda. Também notei que as janelas estavam fechadas.

— Deixei tudo exatamente como estava — exclamou o professor.

Markham encaminhou-se para a mesa grande do centro. O corpo de Pardee estava sentado numa cadeira, defronte à porta que dava para o campo de exercícios. A cabeça e os ombros apoiavam-se sobre a mesa. O braço direito abraçava o espaldar da cadeira e a mão segurava a pistola automática. No lado direito do peito, apresentava um ferimento de bala. E na mesa, debaixo de sua cabeça, uma poça de sangue coagulado.

Nossos olhos permaneceram muito pouco tempo sobre o cadáver, pois uma coisa surpreendente, insólita, desviava nossa atenção. As revistas haviam sido postas a um lado da mesa, deixando um espaço aberto diante do cadáver. E nessa zona livre, erguia-se um alto e bem feito castelo de cartas. Quatro flechas marcavam os limites do pátio. Os passeios do jardim estavam representados por paus de fósforo, colocados um junto ao outro. Era uma reprodução que faria a alegria de uma criança. E eu recordei o que Vance havia dito na noite anterior, sobre os espíritos sérios que buscavam recreação nos divertimentos infantis. Havia algo de inefavelmente horrível na justaposição daquela estrutura de cartas e a morte violenta.

Vance, de pé, olhava a cena com um ar triste e preocupado.

— Hic jacet John Pardee — murmurou numa espécie de reverência. — E este é o castelo que John construiu... um castelo de cartas... — Deu uns passos para diante como para inspecioná-lo mais de perto. Mas seu corpo bateu na mesa, houve uma ligeira trepidação e o frágil edifício de cartas veio abaixo.

Markham ergueu-se e, voltando-se para Heath, perguntou-lhe:

— Você notificou o médico legista?

— Sim. — O sargento parecia ter dificuldade em desviar a vista da mesa. — E caso seja preciso, virá também Burke. — Dirigindo-se às janelas, levantou as persianas, deixando penetrar a luz do dia. Em seguida, voltou para junto do corpo de Pardee e ficou a olhá-lo demoradamente. De súbito, ajoelhou-se e se inclinou para diante.

— Este me parece o 38 que estava no armário das ferramentas — comentou o sargento.

— Sem dúvida — afirmou Vance, tirando a cigarreira do bolso.

Heath levantou-se e se encaminhou para o armário, inspecionando-lhe o conteúdo.

— Não me enganei, é ele mesmo. Chamaremos a Srta. Dillard para que o identifique, depois de que o médico tenha examinado o cadáver.

— Nesse momento, Arnesson, num robe roxo e amarelo, irrompeu na sala, nervoso e excitado.

Por todas as bruxas! — exclamou ele. — Pyne acaba de dar-me a notícia. — Aproximando-se da mesa, examinou o corpo de Pardee. — Suicídio, hem?... Mas por que não escolheu a sua própria casa para isto? Não teve consideração em fazê-lo em casa alheia. É coisa mesmo de enxadristas.

Ergueu a vista para Markham.

— Espero que isto não nos envolverá em mais complicações desagradáveis. Já temos tido muita notoriedade. Isso perturba o espírito da gente. Quando poderão levar daqui este cadáver? Não quero que Belle o veja.

— Será removido logo que o médico legista o tiver examinado — respondeu Markham em um tom de gelada censura. Além disso, não há necessidade de trazer aqui a Srta. Dillard.

— Excelente. — Arnesson mirava, entretanto, o cadáver. Lentamente seu rosto se cobriu de uma expressão de cínica piedade. — Pobre diabo! A vida era demais para ele. Hipersensível... nenhuma força psíquica. Levava as coisas a sério em demasia. Construía o seu próprio destino, e o seu sonho se desfez em fumaça. Não podia encontrar outra diversão. O bispo preto o enfeitiçava. Provavelmente, desviava seu cérebro do eixo. Por Deus! Não me surpreende que a sua obsessão o tenha levado à autodestruição.

— Inteligente idéia — replicou Vance. — A propósito, sobre a mesa, quando entramos aqui, havia um castelo de cartas.

— Ah! Que fariam aí estas cartas? Pensou ele que poderia encontrar consolo no solitário durante seus últimos momentos... Um castelo de cartas... Parece tolice. Sabe você a resposta?

— Em absoluto. "A casa que João construiu" poderia explicar algo.

— Compreendo. — Arnesson parecia uma abelha. — Divertindo-se com jogos infantis até o fim... mesmo contra si próprio. Estranha idéia. — Aqui bocejou cavernosamente. — Vou-me vestir. — E se foi para cima.

O professor Dillard havia permanecido contemplando Arnesson com um olhar ao mesmo tempo angustiado e paternal. Agora, voltou-se para Markham num gesto de fastio.

— Sigurd sempre procura conter suas emoções. Tem vergonha de seus sentimentos. Não levem a sério sua atitude despreocupada.

Antes de que Markham pudesse responder, Pyne fez entrar o detetive Burke. E Vance aproveitou a oportunidade para interrogar o mordomo a respeito de sua descoberta.

— Como foi que você entrou aqui esta manhã? — perguntou ele.

— Havia uma atmosfera pesada na despensa, senhor, — respondeu Pyne, — e abri a porta ao pé da escada para entrar ar. Logo percebi que as persianas estavam corridas...

— Então, não costumava baixar as persianas de noite?

— Não, senhor... nesta sala não.

— Que me diz das janelas?

— Sempre as deixo de noite um pouco abertas em cima.

— Foram deixadas abertas ontem de noite?

— Sim, senhor.

— Perfeitamente. E depois que você abriu a porta esta manhã?

— Comecei a apagar as luzes, pensando que a Srta. Dillard houvesse esquecido de desligar a chave. Foi nesse momento que enxerguei o pobre cavalheiro ali, sobre a mesa. Então, fui avisar o professor Dillard.

— Sabe Beedle alguma coisa sobre a tragédia?

— Eu lhe contei, depois que os senhores chegaram a esta casa.

— A que hora você e Beedle foram deitar-se?

— Às dez.

—Logo que Pyne saiu, Markham dirigiu-se ao professor Dillard.

— Ficaríamos agradecidos se o senhor nos desse todos os detalhes possíveis, enquanto esperamos o Dr. Doremus. Podemos ir lá em cima?

Burke ficou na sala e todos subimos à biblioteca.

— Receio que tenha pouca coisa a dizer-lhes — começou a falar o professor, sentando-se ao tempo em que apanhava o cachimbo. Em suas maneiras, havia uma reserva notável, uma espécie de acentuada relutância. — Pardee veio aqui ontem à noite, depois do jantar, com a intenção de falar com Arnesson, porém agora acredito que foi para ver Belle. Esta, todavia, escusou-se, retirando-se logo, pois estava com enxaqueca. Pardee permaneceu até às onze e meia. Em seguida, saiu. E esta foi a última vez que o vi, até o momento em que Pyne me trouxe esta manhã a terrível notícia...

— Mas se o Sr. Pardee — interveio Vance — veio ver sua sobrinha, como explica o senhor que tenha permanecido tanto tempo depois que ela se retirou?

— Não sei explicar. — O ancião parecia perplexo. — Ele dava a impressão, todavia, de que em seu espírito alguma coisa se agitava e de que desejava a companhia de alguém. O fato é que tive de insinuar-lhe sem rodeios que me sentia cansado antes de que ele finalmente se erguesse para sair.

— Onde esteve Arnesson, ontem à noite?

— Sigurd se demorou conversando conosco durante uma hora mais ou menos, depois que Belle se retirou, deitando-se em seguida. Toda a tarde tinha estado ocupado com os assuntos de Drukker e se achava fatigado.

— Que hora seria?

— Dez e meia.

— E o senhor disse — continuou Vance — que Pardee lhe deu a impressão de se encontrar sob os efeitos de uma angústia mental?

— Não angústia, exatamente. — O professor franziu o cenho, soltou ao ar uma baforada de fumaça. Parecia deprimido, quase melancólico.

— Pareceu ao senhor que ele se achava com temor de alguma coisa?

— Não. Absolutamente. Seu aspecto era o de um homem que houvesse experimentado um grande pesar e não pudesse desprender-se dos efeitos causados pela dor.

— Quando se retirou, acompanhou-o o senhor até o vestíbulo? Quer dizer, notou que direção tomou ele?

— Não. Sempre tratamos Pardee como pessoa da família. Ele deu boa noite e saiu do quarto. Acho que ele saiu pela porta principal.

— Retirou-se o senhor imediatamente para o seu quarto?

— Dentro de dez minutos. Demorei o tempo suficiente para pôr em ordem uns papéis em que estivera trabalhando.

Vance permaneceu em silêncio. Sem dúvida alguma estava confundido em face do último episódio. Markham retomou o interrogatório.

— Suponho que será inútil perguntar-lhe se ouviu algum disparo ontem à noite.

— Tudo em casa estava tranqüilo — respondeu o professor Dillard. — E, de qualquer modo, um tiro disparado na sala do clube não poderia ser ouvido aqui. Há dois lanços de escadas, todo o comprimento do vestíbulo inferior e um corredor, e entre eles três grossas portas, sem aludir à espessura e solidez das paredes desta velha casa.

— E ninguém — completou Vance — pode ter ouvido da rua, pois as janelas da sala estavam fechadas cuidadosamente.

O professor fez que sim a cabeça e dirigiu-lhe um olhar perscrutador.

— É verdade. Vejo que você também notou esta circunstância particular. Não compreendo bem por que Pardee fechou as janelas.

— As idiossincrasias dos suicidas nunca foram explicadas satisfatoriamente — replicou Vance, como por acaso. E depois de uma breve pausa, perguntou:

— De que falavam o senhor e Pardee, antes de este se retirar?

— Falamos muito pouco. Eu estava ocupado com um novo artigo da Revista de Física e procurei interessá-lo sobre o assunto, mas o seu espírito, como já lhe disse, mostrava certa preocupação, entretendo-se com o tabuleiro de xadrez a maior parte do tempo.

— Ah! Deveras? É muito interessante.

Vance lançou um olhar ao tabuleiro. Um certo número de peças permanecia nos quadros. Levantou-se rapidamente e, atravessando a sala, foi até à mesinha. Depois de um instante, voltou, sentando-se de novo.

— É curioso — murmurou ele e muito deliberadamente acendeu um cigarro. — Sem dúvida alguma, ele testava refletindo no final de sua partida de xadrez com Rubinstein, antes de sair ontem à noite. As peças estão postas exatamente como estavam quando abandonou a luta... com o inevitável mate do bispo preto, em cinco lances.

O olhar do professor Dillard pousou pensativamente sobre a mesinha de xadrez.

— O bispo preto — repetiu em voz baixa. — Pode ser isto que ocupava seu espírito ontem à noite? Parece incrível que uma coisa tão banal pudesse impressioná-lo assim, tão desastradamente.

— Não esqueça — lembrou Vance — que o bispo preto era o símbolo de seu fracasso. Representava o naufrágio de suas esperanças. Fatores menos patentes levaram muitos homens a abandonar a vida.

Uns minutos depois, Burke nos informou que o médico havia chegado. Deixando o professor, descemos outra vez até à sala do clube, onde o Dr. Doremus estava ocupado em examinar o cadáver de Pardee.

O médico levantou a cabeça quando entramos, e ondeou a mão superficialmente. Seu costumeiro modo jovial havia desaparecido.

— Quando irá terminar tudo isto? — grunhiu ele. — Não me agrada o ambiente deste lugar. Assassinatos... morte por síncope... suicídios... O bastante para eriçar o cabelo. Vou procurar um emprego bom e tranqüilo num matadouro.

— Cremos — disse Markham — que este é o último de todos.

Doremus escarneceu.

— Ora, vá! Você acha? O bispo se suicida depois de percorrer, andrajoso, a cidade. Parece razoável. Espero que você tenha razão. — Inclinou-se de novo sobre o cadáver e, separando-lhe os dedos da mão, tirou-lhe o revólver, jogando-o sobre a mesa. — Para o seu arsenal, sargento.

Heath guardou a arma no bolso.

— Quanto tempo faz que está morto, doutor?

— Oh, desde meia-noite, mais ou menos. Pode ser que antes, pode ser que depois. Mais algumas perguntas tolas?

Heath sorriu.

— Há alguma dúvida de que se tenha suicidado?

— Que lhe parece que seja? Uma bomba da mão negra? — Em seguida, falou em tom profissional. — A arma estava em sua mão. No peito, sinais de fogo. Orifício de entrada produzido pela bala do mesmo revólver que empunhava. Posição do corpo, natural. Não vejo nada de suspeito. Por quê? Tem dúvidas?

Foi Markham quem respondeu:

— Ao contrário, doutor. Nós acreditamos que foi um suicídio.

— Pois foi mesmo. Examinarei um pouco mais. Sargento, ajude-me.

Quando Heath ajudou a levantar o corpo de Pardee e a colocá-lo num diva para um exame mais detido, fomos até a sala de visitas, onde Arnesson se juntou a nós.

— Qual é o veredicto? — perguntou ele, deixando-se cair numa cadeira próxima. — Suponho que não haverá dúvidas de que foi ele mesmo que se matou, não?

— Por que torna ao assunto, Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Não tenho motivo algum. Um comentário ocioso. Muitas coisas raras estão acontecendo por aqui.

— Oh, evidentemente — disse Vance, ao mesmo tempo que soltava para o teto uma espiral de fumaça.

— Não, segundo o médico, não há dúvida de que foi um suicídio. A propósito, Pardee deu a você a impressão de achar-se inclinado ao suicídio?

Arnesson pensou um pouco.

— Difícil de dizer — concluiu. — Nunca foi alegre. Mas suicidar-se?... Não sei. Entretanto, você disse que não havia lugar para dúvidas. Assim, já se vê...

— Sim, sim. E como entra em sua fórmula esta situação?

— Dissipa toda a equação, não há dúvida. Não há mais necessidade de especular. — Apesar de suas palavras, parecia incerto. — O que não posso compreender — acrescentou — é por que escolheu a sala do clube. Na casa dele, havia bastante lugar para suicidar-se.

— É que aqui havia um revólver conveniente — sugeriu Vance. — E agora me lembro de que o sargento Heath queria que a Srta. Dillard identificasse a arma, pro forma.

— Isso é fácil. Onde está?

Heath entregou-lhe o revólver e Arnesson retirou-se com ele.

— Também podia perguntar-lhe se ela guardava um baralho na sala do clube.

Arnesson voltou após alguns minutos, informando-nos que o revólver era o que estava no armário das ferramentas, e que não só havia um baralho na gaveta da mesa da sala, como também Pardee sabia onde ele estava.

Em seguida, apareceu o Dr. Doremus e reiterou sua conclusão de que Pardee havia-se suicidado.

— Esta será minha informação — disse ele. — Não vejo outra coisa. Para ser exato, muitos suicídios são forjados, porém isso é de seu domínio. Neste caso, não há nada absolutamente de suspeito.

Markham sacudiu a cabeça, sem ocultar sua satisfação.

— Não temos motivo para discutir suas conclusões, doutor. Em realidade, este suicídio se harmoniza perfeitamente com o que já sabemos. Conduz toda essa orgia do Bispo a um fim lógico. — Levantou-se como um homem de cujos ombros tivessem tirado uma enorme carga. — Sargento, deixarei a você o cuidado de ordenar as diligências necessárias para que o cadáver seja levado para a autópsia. Mais tarde, passe pelo Stuyvesant. Graças a Deus que hoje é domingo! Temos tempo para dar umas voltas por aí.

Aquela noite, no Clube, Vance, Markham e eu estávamos sentados no salão. Heath fez ato de presença, retirando-se em seguida. Uma nota cuidadosa sobre o suicídio de Pardee foi redigida para a imprensa indicando ao mesmo tempo que o caso do Bispo estava, com tal fato, encerrado. Vance havia falado pouco durante todo o dia. Recusara-se a oferecer qualquer sugestão sobre a redação da declaração oficial, parecendo nada disposto a discutir a nova fase do caso. Agora, porém, dava voz às dúvidas que tinham estado trabalhando o seu espírito.

— É muito fácil, Markham, fácil demais. Há apenas um cheiro de plausibilidade em tudo isto. É perfeitamente lógico, sabe, mas não é satisfatório. Não posso imaginar o nosso Bispo terminando toda a sua carnificina humorística de uma forma tão brutal. Não há nada de engenhoso em fazer saltar a tampa do cérebro... é demasiado vulgar, sabe? Mostra uma horrível falta de originalidade. Não é digno de artífice dos assassinatos do Bispo.

Markham estava aborrecido.

— Você mesmo explicou como os crimes estavam de acordo com as possibilidades psicológicas da mentalidade de Pardee. E para mim parece altamente razoável que, havendo levado a cabo seus trágicos intentos, e chegado ao final da aventura, tenha-se eliminado.

— Pode ser que você tenha razão — suspirou Vance. — Eu não tenho nenhum argumento decisivo para contrariar o seu ponto de vista. Mas estou desapontado. Não me agradam os anticlímaxes, especialmente quando não correspondem à minha idéia do talento do dramaturgo. A morte de Pardee neste momento é demasiado clara... esclarece as coisas de forma por demais nítida. Há nela demasiada utilidade e muito pouca imaginação.

Markham sentiu que podia dar-se ao luxo de ser tolerante.

— Talvez a imaginação dele estivesse esgotada com tantos crimes. Seu suicídio poderia ser considerado simplesmente como o descer do pano, uma vez terminado o espetáculo. De todo modo, foi sem dúvida alguma um ato incrível. A derrota, a desilusão e o desânimo... o fracasso de todas as ambições... têm constituído causa suficiente para o suicídio, desde tempos imemoriais.

— Exatamente. Temos um motivo razoável, ou uma explicação para o suicídio, mas nenhum motivo para os crimes.

— Pardee estava enamorado de Belle Dillard — replicou Markham. — E provavelmente sabia que Robin a cortejava. Também tinha um ciúme intenso de Drukker.

— E o assassinato de Sprigg?

— Não temos dados sobre esse ponto. Vance sacudiu a cabeça.

— Não podemos separar os crimes quanto ao motivo. Todos tiveram origem num mesmo impulso fundamental: foram cometidos por uma única paixão fremente.

Markham suspirou com impaciência.

— Mesmo supondo que o suicídio de Pardee não tenha relação com os assassinatos anteriores, estamos num ponto morto, figurativa e literalmente.

— Sim, sim. Um ponto morto. Muito triste. Ainda que, para a polícia, consolador: deixa-a livre por algum tempo, seja como for. Porém, não interprete mal minhas fantasias. A morte de Pardee está indubitavelmente relacionada com os assassinatos. Eu diria que existe uma relação muito íntima.

Markham tirou da boca, lentamente, seu charuto e contemplou Vance durante alguns momentos.

— Há alguma dúvida em seu espírito — perguntou ele — de que Pardee se tenha suicidado?

Vance hesitou, antes de responder.

— Eu queria saber — disse ele lentamente — por que aquele castelo de cartas caiu tão rapidamente, logo que eu deliberadamente me encostei na mesa...

— Sim?

— ... E por que não caiu, quando a cabeça e os ombros de Pardee desabaram sobre a mesa, depois de haver disparado o tiro contra si.

— Isso não quer dizer nada — disse Markham. — A primeira sacudidela pode ter afrouxado as cartas... — Subitamente seus olhos se entrecerraram. — Quer você dizer que o castelo de cartas foi armado depois da morte de Pardee?

— Oh, meu caro amigo! Eu não me estou entregando a deduções. Estou dando rédea solta à minha curiosidade juvenil, sabe?


XXIII

 

UMA DESCOBERTA SURPREENDENTE

 

(Segunda-feira, 25 de abril — 8h30)

 

Oito dias tinham transcorrido depois da morte de Pardee. O enterro de Drukker saiu da casa da Rua 76. Assistiram-no unicamente os Dillards e Arnesson e alguns homens da Universidade, que vieram render um último tributo de respeito ao homem de ciência, por cuja obra tinham sincera admiração.

Vance e eu estivemos na casa, na manhã do enterro, quando uma menina trouxe um ramalhete de flores primaveris que ela mesma colhera, e pediu a Arnesson que as colocasse no ataúde de Drukker. Quase esperei uma resposta cínica de Arnesson, surpreendendo-me, porém, quando tomou as flores gravemente e disse, num tom de voz quase de ternura:

— Serão postas em seguida, Madalena. E Humpty Dumpty lhe agradece a lembrança.

Quando a governanta levou a criança, Arnesson voltou-se para nós e disse:

— Era a favorita de Drukker... Camarada engraçado... Nunca ia ao teatro. Detestava viagens. Sua única diversão era entreter as crianças.

Menciono este episódio, porque, apesar de parecer sem importância, punha em destaque um dos elos mais vitais da cadeia de evidência que acabou por esclarecer, sem dúvida alguma, o problema dos assassinatos do Bispo.

A morte de Pardee havia criado uma situação única nos anais do crime. A declaração fornecida pelo procurador do distrito havia apenas indicado a possibilidade de ser Pardee o autor dos assassinatos. Não importa o que Markham pudesse ter pensado intimamente; estava longe de ser nobre e justo lançar uma dúvida direta sobre o caráter de outrem sem provas decisivas. Porém, a onda de terror levantada por esses estranhos assassinatos havia atingido tais proporções que ele não podia, diante do dever para com a comunidade, limitar-se a dizer que o caso estava terminado. Assim, embora nenhuma acusação aberta pesasse sobre Pardee, os assassinatos do Bispo não eram mais olhados como uma fonte de ameaça contra a cidade, e um suspiro de alívio partiu de todos os pontos.

No Clube de Xadrez de Manhattan, havia provavelmente menos discussão do caso do que em qualquer outro lugar de Nova York. Os sócios sentiram, talvez, que a honra do Clube estava, de qualquer forma, envolvida. Ou talvez houvesse um sentimento de lealdade para com um homem que tanto havia feito pelo xadrez como Pardee. Porém, qualquer que fosse a causa, o fato é que os membros do Clube assistiram em sua unanimidade aos funerais do companheiro. Não pude admirar menos essa homenagem ao colega de xadrez, pois, deixando de lado seus atos particulares, havia sido um dos grandes animadores do antigo e real jogo, a que se dedicavam. (1)

(1) Pardee deixou em seu testamento uma grande soma para o incremento do xadrez. É de lembrar que, no outono do mesmo ano, teve lugar em Cambridge Springs um torneio em memória de Pardee.

 

O primeiro ato oficial de Markham, no primeiro dia seguinte à morte de Pardee, foi relaxar a prisão de Sperling. Nessa mesma tarde, o Departamento de Polícia arquivou todas as investigações em torno dos assassinatos do Bispo e cessou a vigilância da casa de Dillard. Vance protestou francamente contra esta última deliberação; em virtude, porém, de haver o médico legista em seu laudo post mortem confirmado, totalmente, a teoria do suicídio, restava a Markham pouca coisa a fazer no caso. Além disso, estava convencido de que com Pardee tudo havia terminado, e mofava das dúvidas que ocorriam a Vance.

Durante a semana seguinte ao encontro do corpo de Pardee, Vance estava inquieto e mais preocupado que nunca. Procurou interessar-se por vários assuntos, porém sem êxito visível. Mostrava sinais de irritabilidade. E sua quase milagrosa equanimidade parecia haver-lhe desertado do espírito. Tive a impressão de que estava esperando que algo sucedesse. Sua atitude não era exatamente de expectativa, porém havia nele um ar de vigilância que, às vezes, chegava à apreensão. No dia seguinte ao enterro de Drukker, Vance visitou Arnesson. E, quinta-feira, à noite, acompanhou-o ao teatro para assistir à peça Os Espectros, de Ibsen, obra que, segundo vim a saber, não lhe agradava. Soube que Belle Dillard havia ido passar um mês em casa de um parente em Albany. Como explicou Arnesson, ela começara a sentir os efeitos de tantos dissabores, sendo-lhe necessário uma mudança de ambiente. O homem encontrava-se visivelmente triste pela ausência da jovem. Confiou a Vance que eles haviam combinado casarem-se no mês de julho. E Vance também soube por ele que a Sra. Drukker deixara em testamento todos os seus bens para Belle e para o professor Dillard, em caso de morte do seu filho, fato que interessou, particularmente, a Vance.

Se tivesse sabido, ou embora suspeitado que coisas surpreendentes e terríveis se acumulavam sobre nós naquela semana, duvido que eu pudesse suportar o esforço. Pois o caso dos assassinatos do Bispo não tinha ainda terminado. O clímax do horror estava ainda por chegar; porém este, tão terrível e horripilante, foi apenas uma sombra do que podia ter sido, se Vance não tivesse examinado o caso, chegando a duas conclusões distintas, uma das quais havia sido abandonada em vista da morte de Pardee. Era a outra possibilidade, como vim a saber mais tarde, que o fez permanecer em Nova York, vigilante e mentalmente alerta.

Segunda-feira, 25 de abril, foi o começo do fim. Fomos jantar com Markham no Clube dos Banqueiros, para em seguida irmos assistir aos Mestres Cantores(1). Porém, aquela noite não presenciamos os triunfos de Walter. Observei que quando nos encontramos com Markham, este parecia preocupado. E nem bem nos havíamos sentado no salão de refeições do Clube quando ele nos contou um telefonema que havia recebido do professor Dillard aquela tarde.

(1) Das óperas de Wagner era esta a predileta de Vance. Sempre afirmou que era esta a única ópera que tinha a forma estrutural de uma sinfonia. E mais de uma vez lamentou que não tivesse sido escrita como uma peça orquestral, ao invés de veículo para um drama absurdo.

 

— Pediu-me particularmente que fosse vê-lo esta noite

— explicou Markham. — E, quando procurei desculpar-me, demonstrou grande impaciência. Acentuou o fato de que Arnesson estaria fora toda a noite e disse que uma oportunidade semelhante não poderia apresentar-se senão quando fosse tarde demais. Negou-se a dar explicações e insistiu em que eu fosse à sua casa depois do jantar. Disselhe que lhe comunicaria se me fosse possível atender ao seu pedido.

Vance escutara com um interesse mais intenso.

— Devemos ir, Markham. Esperava um chamado assim. É possível que por fim encontremos a chave da verdade.

— A verdade acerca de quê?

— Da culpabilidade de Pardee.

Markham não disse mais nada e jantamos em silêncio.

Às oito e meia tocávamos a campainha da casa de Dillard. Pyne nos conduziu imediatamente à biblioteca. O velho professor saudou-nos com reserva nervosa.

— Você foi muito amável em vir, Markham — disse ele sem se levantar. — Sente-se e fume um charuto. Quero falar com você... E desejo fazê-lo com calma. É muito difícil...

— Sua voz se arrastava enquanto ele enchia seu cachimbo.

Nós nos acomodamos e esperamos. Um sentimento de inquietação invadiu-me sem motivo aparente, a não ser, talvez, que eu tenha captado as vibrações emanadas do estado de profunda preocupação do professor.

— Não sei como expor o assunto — começou ele — porque tem relação não com fatores físicos, mas com a consciência humana invisível. Lutei toda a semana com certas idéias vagas que penetraram meu espírito; e não vejo outra forma de desfazer-me delas senão falando com você...

Levantou a vista, hesitante. — Preferi discutir com você essas idéias, quando Sigurd não estivesse presente, e como ele saiu esta noite para ver Os Simuladores, de Ibsen, seu drama favorito, aproveitei a oportunidade para pedir-lhe que viesse aqui.

— A que se referem essas idéias? — perguntou Markham.

— A nada, especificamente. Como disse, elas são muito vagas; porem, apesar disso, se têm tornado insistentes... Tão insistentes, na realidade — ajuntou ele — que acreditei oportuno mandar Belle para fora por algum tempo. É verdade que seu espírito estava torturado com o resultado de todas essas tragédias; mas meu verdadeiro motivo ao enviá-la para o Norte é que eu estava acossado por dúvidas intangíveis.

— Dúvidas? — Markham inclinou-se para diante. — Que espécie de dúvidas?

O professor Dillard não respondeu logo.

— Permita-me responder a esta pergunta fazendo-lhe uma outra — replicou enfim. — Está seu espírito completamente satisfeito com a situação criada pela morte de Pardee?

— Refere-se o senhor à autenticidade de seu suicídio?

— A isso e à sua presumida culpabilidade. Markham reclinou-se contemplativamente.

— E o senhor não está inteiramente satisfeito? — perguntou ele.

— Não posso responder a essa pergunta. — O professor Dillard falou quase rispidamente. — Você não tem direito de perguntar-me. Eu apenas desejava estar seguro de que as autoridades, tendo todos os dados nas mãos, estivessem convencidas de que esse assunto terrível era um livro fechado. — Uma expressão de ansiedade profunda dominou sua fisionomia. — Se eu soubesse que isso era um fato, teria forças para repelir os pressentimentos vagos que me perseguem dia e noite, há uma semana.

— E se lhe dissesse que não estou satisfeito?

O olhar do velho professor tornou-se distante e angustiado. Sua cabeça caiu levemente para frente, como se uma carga de pesares a fizesse inclinar-se subitamente. Ao cabo de uns instantes, levantou os ombros e respirou profundamente.

— A coisa mais difícil neste mundo — disse ele — é saber onde está o dever de alguém; pois o dever é um mecanismo do espírito, e o coração procura sempre destruir as suas resoluções. Eu talvez tenha feito mal em chamá-lo aqui; pois afinal, não tenho senão suspeitas nebulosas e idéias obscuras para prosseguir. Mas, existia a possibilidade de que minha intranqüilidade mental estivesse apoiada sobre uma base oculta e profunda cuja existência eu ignorava. Você me compreende? — Apesar das suas palavras evasivas, não havia dúvida relativamente ao aspecto perturbador da imagem sombria que se emboscava atrás de seu espírito.

Markham meneou a cabeça em sinal de aquiescência.

— Não há motivo nenhum para pôr em dúvida o laudo do médico legista — disse ele de um modo meio forçado. — Posso compreender como a proximidade dessas tragédias poderia ter criado uma atmosfera propícia a dúvidas. Mas acredito que o senhor não precisa ter mais apreensões.

— Sinceramente, espero que você esteja certo — murmurou o professor, porém era claro que ele não estava satisfeito. — Suponho, Markham... — começou a dizer, interrompendo-se em seguida. — Sim, espero que você esteja certo — repetiu ele.

Vance tinha-se sentado, fumando plàcidamente, durante essa discussão pouco satisfatória; mas estivera escutando com uma concentração especial, e depois falou:

— Diga-me, professor Dillard, se aconteceu algo, embora vago, que possa ter dado origem às suas dúvidas.

— Não... Nada. — A resposta não se fez esperar. — Estive simplesmente pensando... experimentando todas as possibilidades... Não ousei ser demasiado confiante, sem ter alguma certeza. A lógica pura é aceita em assuntos que não nos tocam pessoalmente. Mas, quando concerne à nossa própria segurança, a inteligência humana imperfeita exige evidência visual.

— Ah, sim! — Vance ergueu a vista, e acreditei ver uma chama de compreensão brilhar entre esses dois homens antagônicos.

Markham se levantou para despedir-se, porém o professor rogou-lhe que esperasse um momento mais.

— Sigurd estará de volta sem demora. Ele gostará de vê-lo aqui. Como lhe disse, foi ver Os Simuladores, mas estou certo de que voltará diretamente para casa... A propósito, Sr. Vance — continuou, voltando-se para este — Sigurd me disse que o senhor o acompanhou ao teatro, na semana passada, para ver Os Espectros; compartilha do entusiasmo dele por Ibsen?

Uma ligeira elevação de cenho de Vance me indicou que ele estava surpreendido com semelhante pergunta; porém, quando respondeu, não se notava o mais leve sinal de perplexidade em sua voz.

— Li muito Ibsen. E não posso negar o seu grande gênio criador, ainda que não se possa ver em sua obra a forma estética e a profundidade filosófica que caracterizam o Fausto de Goethe, por exemplo.

— Pelo que vejo, o senhor e Sigurd teriam uma base permanente de desacordo.

Markham declinou do convite para permanecer mais tempo e, minutos depois, caminhávamos pela West End Avenue, respirando o ar fresco de abril.

— Rogo-lhe que tome nota, meu caro Markham, — observou Vance com uma pancadinha de gracejo nas costas do companheiro, ao dobrar a Rua 72 em direção ao parque, — que há outros, além de seu humilde colaborador, que estão acossados por dúvidas acerca da realidade do suicídio de Pardee. E eu poderia acrescentar que o professor não está de acordo, de modo algum, com a sua certeza.

— Seu estado mental de suspeita é compreensível — opinou Markham. — Esses assassinatos afetaram-no muito de perto.

— Isso não é explicação. O velho tem medo. E ele sabe alguma coisa que não nos quer dizer.

— Eu não diria que me causou esta impressão.

— Oh, Markham... meu caro Markham! Não escutou atentamente a sua vacilante e relutante história? Parece que ele tentava transmitir-nos uma sugestão, sem necessidade de empregar palavras. Supunha que deveríamos adivinhar. Sim! Por isso, insistiu para que você o visitasse, enquanto Arnesson estava ausente, assistindo a um drama de Ibsen...

Vance parou de falar abruptamente. Em seus olhos se notou um ar sobressaltado.

— Ora, bolas! Foi por isso que ele perguntou se eu gostava de Ibsen!... Ora, bolas! Que imbecil eu fui! — Mirou fixamente Markham. Os músculos do rosto tornaram-se-lhe rígidos. — Por fim a verdade! — disse ele com serenidade impressionante. — E não foi você, nem eu, nem a polícia quem resolveu este caso. Foi um dramaturgo norueguês falecido há muitos anos. Em Ibsen está a chave do mistério.

Markham olhou-o como se ele tivesse enlouquecido de repente. Mas, antes que pudesse falar, Vance chamou um táxi.

— Vou-lhe mostrar o que quero dizer quando chegarmos a casa — disse ele, quando atravessávamos velozmente o Parque Central na direção leste. — É incrível, mas é verdade. E eu poderia ter adivinhado, há mais tempo; porém, a significação sugerida pela assinatura naquelas notas estava demasiado obscurecida devido a outras significações possíveis...

— Se em vez da primavera, estivéssemos em meados do verão, — comentou Markham, colèricamente, — diria que o calor havia afetado seu cérebro.

— Desde o princípio, percebi que havia três culpados possíveis — continuou Vance. — Cada um deles era psicologicamente capaz de cometer esses assassinatos, sempre que o excesso de suas emoções alterasse seu equilíbrio mental. Assim, não havia nada mais a fazer que esperar uma indicação que focalizasse a suspeita. Drukker era um dos três suspeitos, mas foi assassinado. Ficaram, então, dois. Em seguida Pardee, aparentemente, suicidou-se; e admitirei que sua morte tornou razoável a presunção de que era ele o culpado. Mas, uma grande dúvida corroia-me o espírito. A morte dele não foi conclusiva. Aquele castelo de cartas me preocupou. Estávamos num beco sem saída. Deste modo, esperei vigilante pela minha terceira possibilidade. Agora eu sei que Pardee é inocente e que não se suicidou. Foi assassinado, como o foram Robin, Sprigg e Drukker. Sua morte foi um brinquedo terrível, uma vítima atirada à face da polícia, com espírito diabólico. E, desde então, o assassino vem-se rindo da nossa ingenuidade.

— Por que raciocínio chega você a esta fantástica conclusão?

— Já não é questão de raciocínio. Afinal tenho a explicação dos crimes. E conheço a significação da assinatura "O Bispo" colocada ao pé das notas. Mostrar-lhe-ei, muito breve, uma prova incontroversa e espantosa.

Alguns minutos depois, chegamos ao seu apartamento e ele nos conduziu diretamente à biblioteca.

— A evidência esteve aqui, todo o tempo, ao alcance da minha mão.

Foi até à estante onde guardava seus dramas e retirou o volume segundo das obras de Henrique Ibsen. O livro continha Os Vikings em Helgeland e Os Simuladores. A primeira dessas obras não interessava a Vance. Procurando em Os Simuladores, encontrou a página onde estavam impressos os nomes dos personagens do drama e colocou o livro sobre a mesa diante de Markham.

— Leia os nomes dos personagens da obra de Ibsen, favorito de Arnesson — disse ele, assinalando os nomes.

Markham, silencioso e confundido, aproximou de si o volume e eu, por cima de seu ombro, li:

 

Hakon Hakonson, o rei eleito pelos birchlegs.

Inga de Varteig, sua mãe.

Conde Skule.

Lady Ragnild, sua mulher.

Sigrid, sua irmã.

Margrete, sua filha.

Guthorm Ingesson.

Sigurd Ribbung.

Nicholau Arnesson, bispo de Oslo.

Dagfinn o Camponês, marechal de Hakon.

Ivar Bodde, seu capelão.

Vegard Veradal, um dos seus guardas.

Gregorius Jonsson, um nobre.

Paul Flida, um nobre.

Ingeborg, esposa de Andres Skialdarband.

Peter, seu filho, um jovem sacerdote.

Sira Viliam, capelão do Bispo Nicolau.

Mestre Sigard de Brabant, médico.

Jatgeir Skald, um islandês.

Bard Bratte, chefe do distrito de Trondheim.

 

— Porém, duvido que qualquer um de nós fosse além da linha:

Nicolau Arnesson, bispo de Oslo.

Meus olhos se fixaram neste nome. Havia nele qualquer coisa de horrível e fascinante. Logo me lembrei de que o bispo Arnesson foi um dos vilãos mais diabólicos em toda a literatura. Um monstro cínico e burlão, que transformava todos os valores sãos da vida em bufonarias hediondas.


XXIV

 

O ÚLTIMO ATO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 9h)

 

Com esta revelação surpreendente, os misteriosos crimes do Bispo entraram em sua fase final e mais terrível. Heath tinha sido informado da descoberta de Vance; e ficou combinado que nos encontraríamos no gabinete do procurador do distrito, na manhã seguinte, muito cedo, para formarmos um conselho de guerra.

Quando, naquela noite, Markham se despediu de nós, estava mais preocupado e desapontado do que nunca.

— Não sei o que se poderá fazer — disse ele, desesperançado. — Não existe nenhuma prova legal contra o homem. Mas podemos traçar uma linha de ação que poderá ser vantajosa... Nunca fui adepto da tortura, mas quase desejaria que hoje tivéssemos em execução o torniquete e o ecúleo—.

Vance e eu chegamos ao gabinete pouco depois das nove do dia seguinte. Swacker nos interceptou à entrada e pediu-nos que aguardássemos na sala de espera um momento.

— Markham — explicou ele — estava ocupado naquele momento.

Nem bem tomáramos assento, quando apareceu Heath belicoso, sombrio e de cenho cerrado.

— Tenho que entregar o caso ao senhor — disse ele a Vance. — O senhor tem o fio da situação. Mas o que eu não posso compreender é que vantagem nos trará isto. Não podemos prender um sujeito, só porque o seu nome está num livro.

— Mas talvez possamos forçar o resultado, de uma forma ou outra — replicou Vance. — De qualquer modo, sabemos onde estamos.

Dez minutos depois, Swacker nos fez sinal indicando que Markham estava livre.

— Sinto tê-los feito esperar — desculpou-se o procurador do distrito. — Tive uma visita inesperada. — Sua voz tinha um timbre de desespero. — Mais preocupações; e, para maior coincidência, se relaciona com a própria zona do Riverside Park, onde Drukker foi morto. Entretanto, nada posso fazei...

Apanhou alguns papéis que estavam diante de si e disse:

— Agora, ao nosso assunto.

— Qual é o novo problema com o Riverside Park? — perguntou Vance como por acaso.

Markham franziu o sobrecenho.

— Nada que nos possa incomodar. Provavelmente, trata-se de um seqüestro. Os matutinos relatam-no ligeiramente. Se você tem interesse...

— Não gosto de ler jornais — disse Vance brandamente; porém, com uma insistência que me intrigou. — Que sucedeu?

Markham respirou fortemente com impaciência e respondeu:

— Uma menina desapareceu do playground, ontem, depois de haver falado com um desconhecido. Seu pai esteve aqui e solicitou a minha intervenção. Mas eu lhe respondi que esse assunto não me pertence, enviando-o ao Departamento de Pessoas Procuradas. Agora, se sua curiosidade está satisfeita...

— Oh, mas é que ela não está — persistiu Vance. — Narre-me os pormenores do caso. Aquela zona do parque me fascina particularmente.

Markham lançou-lhe um olhar inquiridor, através de seus olhos semicerrados.

— Muito bem — aquiesceu ele. — Uma menina de cinco anos de idade, chamada Madalena Mofatt, estava brincando com um grupo de meninas, mais ou menos às cinco e meia da tarde. Em certo momento, ela subiu a um monte de terra, junto ao muro de contenção e, pouco depois, quando a governanta foi à sua procura, pensando que ela havia descido para o outro lado, a criança não foi encontrada em parte alguma. O único indício existente é ter sido ela vista por duas ou três meninas falando com um homem, pouco antes de seu desaparecimento; mas, naturalmente, elas não puderam dar uma descrição desse homem. A polícia foi notificada e está procedendo às investigações necessárias. Isto é tudo o que existe até agora.

— Madalena — Vance repetiu o nome pensativamente.

— Diga-me, Markham, sabe você se esta menina conhecia Drukker?

— Sim! — respondeu Markham, erguendo-se em seu assento. — O pai da menina disseme que ela ia, freqüentemente, às festas que o corcunda dava em sua casa...

— Eu vi essa menina — respondeu Vance, levantando-se, ao mesmo tempo em que metia as mãos nos bolsos e baixava os olhos para o chão. — Uma criaturinha encantadora... de cachinhos dourados. Trouxe um ramalhete de flores para Drukker na manhã do enterro dele... E, agora, ela desaparece depois de ter sido vista com um estranho...

— Que tem você em mente? — perguntou Markham firmemente.

Vance pareceu não ter ouvido a pergunta.

— Por que o pai dela apelou para você?

— Conheço Mofatt, há alguns anos. Ele colaborou, uma vez, na administração da cidade. Está como louco... procura sua filhinha por toda a parte. O caso dos assassinatos do Bispo o deixou mòrbidamente apreensivo... Mas, olhe aqui,

Vance, não estamos aqui para discutir o desaparecimento da filha de Mofatt...

Vance levantou a cabeça. Havia em seu rosto uma expressão de sobressalto e horror.

— Não fale... Oh, não fale!... — Começou a passear na sala de um lado para outro, enquanto Markham e Heath observavam-no com assombro mudo. — Sim... é isto mesmo — murmurou para si mesmo. — A hora é exata... tudo se enquadra...

Deu meia-volta e, tomando Markham pelo braço, lhe disse:

— Vamos, depressa! É a nossa única oportunidade... Não podemos esperar um minuto mais. — Com um puxão, pôs Markham de pé, levando-o para a porta. — Receei isto durante toda a semana.

— Eu não me moverei daqui, Vance, se você não me explicar.

— É outro ato mais!... O último ato! Oh, acredite-me! — Nos olhos de Vance brilhava uma expressão como antes ainda não tinha visto. — Agora ela é a "Little Miss Muffet" (1). O nome não é o mesmo, mas não importa, é quase idêntico para a brincadeira do Bispo; ele explicará tudo aos jornais. Provavelmente, chamou a menina por meio de sinais, para que se sentasse na relva, sentando-se também ele junto dela. E então a criaturinha se foi...

(1) Nome de outra personagem do folclore infantil anglo-americano (N. do T.).

 

Markham deu uns passos para diante um tanto perturbado, e Heath, com os olhos salientes, deu um pulo em direção à porta. Muitas vezes tenho pensado no que poderia ter atravessado seus cérebros, naquele momento em que Vance apresentava seus argumentos. Teriam crido na interpretação do episódio ou simplesmente tiveram medo de não investigar, diante da remota possibilidade de outra hedionda brincadeira do Bispo? Fossem quais fossem suas convicções ou dúvidas, aceitaram a situação tal como Vance a delineou. Um momento mais tarde, estávamos atravessando o vestíbulo apressadamente para tomarmos o elevador. Por sugestão de Vance, levamos o detetive Tracy, da seção de detetives, sediada no Edifício das Cortes Criminais.

— Este assunto é sério — explicou. — Pode suceder alguma coisa.

Saímos pela porta que dá para a Rua Franklin, e alguns ·' minutos depois atravessamos o centro da cidade no carro do procurador do distrito, violando a lei da velocidade e não atendendo aos sinais do tráfego.

Pouco se falou durante aquela viagem transcendental; porém, quando tomamos a estrada tortuosa do Parque Central, Vance disse:

— Pode ser que nos enganemos, mas é preciso arriscar.

Se esperarmos que os jornais recebam alguma nota, pode ser demasiado tarde. Não se suspeita de que nós sabemos, e esta é nossa única vantagem.

— Que espera você encontrar? — O tom de voz de Markham era um tanto incerto.

Vance sacudiu a cabeça, desalentadamente.

— Oh, não sei, porém será algo diabólico.

Quando o carro parou em frente à casa de Dillard, Vance apeou e subiu correndo as escadas, tomando a nossa dianteira. Pyne atendeu ao seu insistente toque de campainha.

— Onde está o Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Na Universidade, senhor — respondeu o velho mordomo. Em seus olhos pareceu-me notar uma expressão de medo. — Mas voltará para casa cedo para almoçar.

— Então, leve-nos já à presença do professor Dillard.

— Sinto muito, senhor — disse Pyne. — O professor também não está, foi à Biblioteca Pública...

— Você está só?

— Sim, senhor; Beedle foi ao mercado.

— Tanto melhor. — Vance ordenou ao mordomo que subisse as escadas e lhe disse: — Vamos dar uma busca na casa, Pyne. E você será nosso guia.

Markham adiantou-se.

— Mas, não podemos fazer isto, Vance! Vance voltou-se.

— Não me interessa o que se pode ou o que não se pode fazer. Vou vasculhar esta casa... Sargento, você está comigo? — Em seu rosto brilhava uma estranha expressão.

— Como sempre! (nunca estimei tanto Heath como naquele instante).

A devassa começou na sala do clube. Todos os vestíbulos, armários e outros móveis, todos os recantos, enfim, foram inspecionados.

Pyne, completamente intimidado pela belicosidade que dominava Heath, funcionou como guia. Trouxe chaves e abriu portas para nós e ainda lembrou lugares que, de outro modo, teriam passado despercebidos. O sargento agiu com extrema energia, embora eu soubesse que ele apenas tinha uma vaga idéia do objeto dessa devassa.

Markham nos acompanhou, se bem que desaprovasse aquela iniciativa; porém, ele também havia sido arrastado pela atitude dinâmica de Vance, devendo, certamente, ter pensado que este possuía uma justificativa realmente séria para a sua conduta temerária.

Gradualmente, fomos atingindo o pavimento superior. A biblioteca e o quarto de Arnesson foram examinados minuciosamente, bem como o quarto de Belle. Cuidadosamente, devassamos os quartos sem esquecer as peças desocupadas do terceiro andar e as dependências dos criados. Nada de suspeito foi descoberto, entretanto.

Ainda que Vance reprimisse sua ansiedade, eu podia dizer que ele agia debaixo de uma tensão nervosa extrema, pela pressa com que levou a cabo sua investigação.

Por fim, chegamos a uma porta fechada a chave, situada na parte posterior do vestíbulo de cima.

— Para onde dá essa porta? — perguntou Vance.

— Para um pequeno quarto no sótão que nunca usam, senhor...

— Abra-a.

O homem procurou a chave no molho que levava consigo.

— Não encontro a chave, senhor; devia estar aqui...

— Quando a teve pela última vez?

— Não poderia dizer, senhor. Que eu saiba, faz muito anos que ninguém entra nesse quarto.

Vance recuou um passo e abaixou-se.

Fique aí ao lado, Pyne.

Vance lançou-se de encontro à porta com uma força terrível. Ouviu-se um estrondo e um arrebentar de madeira, porém a fechadura se manteve incólume.

Markham avançou para ele e segurou-o pelos ombros.

— Você está louco! — exclamou. — Está violando a lei!

— A lei! — A resposta de Vance encerrava severa ironia. — Estamos tratando com um monstro que burla a lei. Você pode defendê-lo, se quiser; mas eu vou examinar este sótão ainda que tenha de passar o resto de minha vida num cárcere. Sargento, abra esta porta!

Outra vez, experimentei um sentimento de simpatia por Heath. Sem hesitar um momento, pôs-se na ponta dos pés e lançou seus ombros contra a porta, exatamente acima da fechadura, quebrando a madeira e fazendo saltar o ferrolho através da moldura. A porta girou para o lado de dentro.

Vance desfez-se do braço de Markham, e correu escadas acima, seguido por nós. Não havia luz no sótão e nos detivemos um momento em cima da escada, para nos habituarmos à escuridão. Vance acendeu um fósforo e, caminhando às apalpadelas para diante, ergueu uma cortina com ruído. A luz do sol penetrou no aposento, deixando-nos ver um pequeno quarto, de apenas três metros quadrados, cheio de trastes.

O ar era pesado e sufocante. As paredes, o assoalho e todos os objetos estavam cobertos de uma grossa camada de pó.

Vance esquadrinhou rapidamente o quarto e uma espécie de desânimo se lhe estampou no rosto.

— Este é o último lugar que nos resta — sublinhou com a lentidão do desalento.

Depois de um minucioso exame do quarto, dirigiu-se ao canto perto de uma pequena janela e encontrou uma maleta estragada junto a ela. Notei que não tinha fechadura e que suas correias estavam livres. Inclinando-se para diante, abriu-lhe a tampa.

— Oh, enfim há aqui alguma coisa para você, Markham! Rodeamos Vance e vimos na maleta uma velha máquina de escrever, marca Corona. No cilindro, havia uma folha de papel em que estava escrito num tom azul-pálido, o seguinte:

 

"A pequena Misse Muffet

Estava sentada na relva."

 

Neste ponto, o datilografo havia sido interrompido ou talvez qualquer outro motivo o impedira de continuar a rima infantil.

— É a nova nota do Bispo para os jornais — observou Vance. Em seguida, procurando na maleta, achou uma pilha de papel em branco e de envelopes. No fundo, havia um caderno de couro roxo com folhas delgadas e amarelas. Entregou-o a Markham, com a observação concisa:

— Os cálculos de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas, apesar de tudo, havia ainda em seus olhos um ar de derrota, e outra vez começou ele a inspecionar o quarto. Daí a pouco, dirigiu-se a um toucador que se achava encostado à parede oposta à janelinha. Ao inclinar-se para ver atrás do toucador, retrocedeu subitamente e, levantando a cabeça, fungou várias vezes. Ao mesmo tempo, viu algo no chão, a seus pés, e com um pontapé atirou o objeto para o centro do quarto. Olhamos com assombro. Era uma máscara contra gases, como as que usam os químicos.

— Para trás! — ordenou ele e, levando uma mão ao nariz e à boca, afastou da parede, com a outra, o toucador. Exatamente atrás havia a porta de um cubículo, de quase um metro de altura, incrustada na parede. Abriu-a com um puxão violento e olhou para dentro, fechando-a bruscamente em seguida. E não obstante o curto espaço de tempo em que esteve aberta a porta, pude ver o que havia dentro: duas estantes, a inferior com livros abertos e a superior com um frasco de Erlenmeyer preso a um suporte de ferro, uma lâmpada de álcool, um tubo condensador, um copo grande de vidro para análises e duas garrafinhas.

Vance voltou-se e nos dirigiu um olhar de desespero.

— Podemos ir. Aqui não há nada mais. Regressamos à sala, deixando Tracy montando guarda à porta do sótão.

— Talvez, apesar de tudo, você encontre justificativa para a sua devassa na casa — disse Markham, dirigindo a Vance um olhar sério. — Mas, sou contrário a esses métodos. Se não tivéssemos encontrado a máquina de escrever...

— Oh, bah! — Vance, preocupado e agitado, foi até a janela que dá para o campo de exercícios. — Eu não procurava a máquina de escrever, nem o caderno. Para quê? — A cabeça caiu-lhe sobre o peito e seus olhos se fecharam numa espécie de torpor da derrota. — Tudo saiu mal... fracassou minha lógica. Chegamos demasiado tarde.

— Não estou querendo saber o que tanto o contraria — disse Markham. — Mas, você me forneceu uma prova de importância. Agora, poderei prender Arnesson quando ele voltar da Universidade.

— Sim, sim, por certo. Mas eu não estava pensando em Arnesson, nem na prisão do culpado, ou no triunfo do gabinete do procurador do distrito. Eu esperava...

Aqui Vance parou e se empertigou.

— Não chegamos tarde! Não havia pensado... — Correu veloz em direção à porta. — O que devemos devassar é a casa de Drukker... Depressa!

Já estava na metade do caminho para o vestíbulo, Heath atrás dele, e Markham e eu fechando o cortejo.

Descemos pela escada dos fundos, atravessamos a sala do clube e saímos. Não sabíamos, e duvido que algum de nós pudesse adivinhar o que havia no espírito de Vance; porém, algo de sua excitação interior nos tinha influenciado e pensamos que só uma grande urgência o teria posto completamente fora de sua atitude habitual de alheamento e calma.

Quando chegamos à porta de arame trançado da casa de Drukker, ele passou a mão pela trama rota e abriu o trinco. Para assombro meu, a porta da cozinha estava sem chave. Vance parecia contar com isto, pois sem hesitação fez girar a maçaneta e abriu a porta. i

— Esperem! — disse ele, detendo-se no pequeno pórtico dos fundos. — Não há necessidade de examinar toda a casa. O lugar mais provável é... Sim! Vamos... Acima... em algum lugar no centro da casa... no armário provavelmente... onde ninguém pudesse ouvir...

Ao mesmo tempo em que falava, subia a escada e indicava-nos o caminho, passou pela porta do quarto da Sra. Drukker e pelo gabinete do filho, indo até o terceiro pavimento. Aqui não havia mais do que duas portas, uma na extremidade final e outra, menor, na metade do caminho, ao lado direito. Vance dirigiu-se imediatamente para esta última. A chave estava na fechadura, e ele, fazendo-a girar, abriu a porta.

Uma obscuridade completa reinava ali. Em um segundo, Vance se achava ajoelhado, tateando nas coisas.

— Rápido, sargento, sua lanterna.

Quase antes de pronunciar estas palavras, um círculo luminoso irrompeu no chão do quartinho. O que vi me fez estremecer de horror. Uma exclamação abafada partiu da boca de Markham. Um leve sibilo me disse que também Heath estava aterrado pelo que vira. Diante de nós, no chão, jazia a criaturinha que levara flores ao seu malogrado Humpty Dumpty, na manhã do enterro deste. Seus cabelos dourados estavam desgrenhados, o rosto pálido como a morte, e em suas pálpebras havia sinais enxutos de lágrimas inúteis. Vance inclinou-se e auscultou o coração da menininha. Em seguida, ergueu-a nos braços, com ternura.

— Pobre pequena Muffet — murmurou e, levantando-se, foi até à escada da frente. Heath o precedeu, alumiando o caminho para que ele não tropeçasse. No vestíbulo principal inferior se deteve.

— Abra a porta, sargento.

Heath obedeceu com presteza e Vance saiu pelo jardim.

— Va para a casa de Dillard e espere-me lá — disse por cima do ombro.

E, com a criança apertada contra o peito, atravessou diagonalmente a Rua 76, em direção a uma casa em que pôde distinguir uma chapa de bronze com o nome de um médico.


XXV

 

CAI O PANO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 11h)

 

Vinte minutos depois, Vance juntou-se a nós na sala de visitas da casa de Dillard.

— Está fora de perigo — anunciou, mergulhando numa poltrona e acendendo um cigarro. — Estava apenas desacordada. Havia desmaiado de susto. Achava-se meio asfixiada. Seus bracinhos apresentam equimoses, como se tivesse lutado para libertar-se do monstro, ao ver que na casa não se encontrava Humpty Dumpty. Em seguida, a besta humana encerrou-a à chave no quartinho. Não teve tempo de matá-la, sabe? Ademais, no livro não constava que devia matá-la. "A pequena Miss Muffet" não foi assassinada... mas simplesmente aterrorizada. Entretanto, ela teria morrido por falta de ar. E ele ficaria a salvo, pois ninguém poderia ouvir os gritos dela...

Os olhos de Markham pousaram afetuosamente em Vance.

— Sinto muitíssimo ter procurado retê-lo — disse singelamente. (Pois, apesar de seus instintos convencionalmente legais, havia em sua natureza uma grandeza fundamental.) — Você teve razão em violar os regulamentos, Vance... E você também, sargento, pois devemos muitíssimo à sua determinação e à sua fé.

Heath estava embaraçado.

— Não é nada, senhor. Como vê, o Sr. Vance me encheu a cabeça a respeito da menina. E como eu gosto muito de crianças...

Markham dirigiu a Vance um olhar inquiridor.

— Esperava você encontrar com vida a menina?

— Sim; porém narcotizada ou aturdida por um golpe qualquer. Nunca a acreditei morta, pois isto teria contrariado o humor do Bispo.

Heath devia estar parafusando algum ponto incômodo.

— O que não pode entrar em minha cabeça — disse — é por que o Bispo, sempre tão cuidadoso, deixou aberta a porta da casa de Drukker, e não a fechou à chave.

— Esperava que encontrássemos a criaturinha — respondeu Vance. — Tudo foi preparado para nós. O Bispo foi muito delicado, não? Porém não acreditava que a encontrássemos, antes de amanhã... depois que os jornais recebessem as notas sobre a "Pequena Miss Muffet", e que constituiriam nossa pista. Os acontecimentos quiseram que nós nos adiantássemos a esse cavalheiro.

— E por que não foram enviadas as notas, ontem?

— Evidentemente, esta foi a primeira intenção do Bispo; mas, imagino que achou melhor que o desaparecimento da menina atraísse antes a atenção pública. De outro modo, a relação entre Madalena Moffat e a "Pequena Miss Muffet" poderia ser obscura.

— Sim! — grunhiu Heath entredentes. — E, amanhã, a menina estaria morta. Então, não teria receio de que ela o identificasse.

Markham consultou o relógio e levantou-se com decisão.

— Não vale a pena esperar Arnesson. Quanto mais cedo o prendermos, tanto melhor.

Estava para dar uma ordem a Heath, quando Vance o interrompeu.

— Não nos apressemos, Markham. Não temos nenhuma prova positiva contra o homem. É uma situação muito delicada, esta. Devemos ir cuidadosamente, senão fracassaremos.

— No meu entender, o achado da máquina e do caderno não é concludente — manifestou Markham a Vance. — Mas a identificação pela menina...

— Oh, meu caro amigo! Que fé poderia dar um júri a uma identificação feita por uma menina de cinco anos, amedrontada, sem uma poderosa evidência esclarecedora? Um advogado inteligente anularia tal prova em cinco minutos. E ainda concordando que você pudesse fazer valer a identificação, de que lhe serviria? Não relacionaria de nenhum modo -Arnesson com os assassinatos do Bispo. Você só poderia processá-lo por crime de tentativa de seqüestro... Lembre-se de que a menina não está ferida. E se você, por um milagre legal, obtivesse uma prova de culpabilidade duvidosa, tudo o que Arnesson receberia não passaria de alguns anos de prisão. E isto não acabaria com o terror... Não nos devemos precipitar.

Markham voltou a sentar-se de mau humor. Compreendeu a força da argumentação de Vance.

— Mas, não podemos deixar que isto continue — declarou ferozmente. — Devemos parar este maníaco, de uma forma ou de outra.

— Sim, é verdade... — Vance começou a passear nervosamente pela sala. — Nós podemos fazê-lo contar a verdade, por meio de subterfúgios. Ele ainda não sabe que já encontramos a menina... É possível que o professor Dillard nos queira ajudar... — Interrompeu seu passeio e ficou olhando o chão. — Sim! É nossa única oportunidade. Devemos enfrentar Arnesson com o que sabemos, na presença do professor. A situação forçará com segurança um resultado de qualquer espécie. O professor fará tudo, agora, para ajudar a condenar Arnesson.

— Acredita você que ele saiba mais do que já nos disse?

— Sem dúvida. Eu disse isso a você desde o princípio. E, quando ouvir o episódio da "Pequena Miss Muffet" é bem provável que nos forneça a prova de que necessitamos.

— É uma probabilidade muito remota. — Markham era pessimista. — Mas, não há prejuízo em experimentar. De todo modo, prenderei Arnesson antes de eu sair daqui, e espero que suceda o melhor.

Minutos depois, abriu-se a porta principal, aparecendo no vestíbulo oposto o professor Dillard. Este apenas retribuiu o cumprimento de Markham. Examinou nossas expressões como para descobrir o sentido da nossa visita inesperada.

— Vocês pensaram talvez no que eu lhes disse, ontem à noite, não é verdade?

— Não só pensamos — disse Markham — como também o Sr. Vance encontrou o que tanto preocupa o senhor. Depois que saímos daqui, ele nos mostrou um exemplar de Os Simuladores.

— Ah! — A exclamação era como que um suspiro de alívio.' — Durante muitos dias, este drama esteve envenenando meus pensamentos... — Ergueu com temor a vista. — Que significa isto?

Vance respondeu à pergunta.

— Significa que o senhor nos conduziu à verdade. Agora, estamos esperando o Sr. Arnesson. E penso que, enquanto esperamos, seria bom que falássemos com o senhor, pois é possível que possa ajudar-nos...

O professor hesitou.

— Eu havia esperado que não me fizessem de instrumento de acusação contra o rapaz. — Sua voz tinha um tom trágico e paternal. Porém, logo em seguida seus traços enrijeceram-se. Uma chama de vingança brilhou em seus olhos. Sua mão apertou o castão da bengala. — Entretanto, não posso, agora, considerar meus sentimentos. Vamos. Farei o que puder.

Ao chegar à biblioteca deteve-se junto ao bar e serviu-se de um cálice de vinho do Porto. Depois de beber, voltou-se para Markham com um olhar de desculpa.

— Desculpe-me. Eu não estou em mim. — Aproximou-se da mesa de xadrez e dispôs cálices para nós. — Peço que esqueçam minha descortesia. — Encheu os cálices e sentou-se.

Creio que todos nós sentíamos necessidade de beber, depois dos horripilantes sucessos que acabávamos de presenciar.

Quando estávamos acomodados, o professor ergueu a vista penosamente para Vance, que se sentara diante dele.

— Diga-me tudo — disse. — Não me oculte nada. Vance tirou a cigarreira.

— Primeiro permita-me que lhe faça uma pergunta: onde esteve Arnesson, ontem à tarde, entre cinco e seis horas?

— Eu... não sei. — Havia em suas palavras certa relutância. — Tomou chá aqui, na biblioteca; mas saiu mais ou menos às quatro e meia e só voltou para jantar.

Vance encarou-o com simpatia, durante um momento, dizendo em seguida:

— Encontramos a máquina em que o Bispo escreveu suas notas. Estava dentro de uma velha maleta escondida no sótão desta casa.

O professor não deu sinal de sobressalto.

— Pôde o senhor identificá-la?

— Sem dúvida alguma. Ontem desapareceu do parque uma menininha chamada Madalena Moffat. No cilindro da máquina de escrever, havia uma folha de papel onde estava escrito:

"A pequena Miss Muffet Estava sentada na relva." A cabeça do professor Dillard caiu pesadamente para a frente.

— Outra atrocidade louca! Se eu não tivesse esperado até ontem à noite para avisá-los!

— Não houve grande prejuízo nisso — apressou-se a informar-lhe Vance. — Encontramos a menina a tempo. Agora, já está fora de perigo.

— Ah!

— Foi encontrada encerrada no quartinho do hall do andar superior da casa de Drukker. Nós pensávamos que ela devia estar aqui em alguma parte... e, por isso, devassamos o sótão de sua casa.

Após um breve silêncio, o professor perguntou:

— Que tem mais o senhor a dizer?

— O caderno de Drukker com anotações recentes sobre a teoria dos quanta, que havia sido roubado do quarto dele na noite de sua morte, apareceu também na maleta junto com a máquina de escrever.

— Ele desceu também a isso! — Não era uma pergunta; era mais uma exclamação de incredulidade. — Está você seguro de suas conclusões? Talvez se eu não tivesse fornecido nenhuma indicação ontem à noite... não teria semeado a semente da suspeita...

— Não pode haver dúvida — declarou Vance tranqüilamente. — O senhor Markham pensa deter Arnesson, quando ele voltar da Universidade. Mas para ser-lhe franco, senhor, não temos prova legal alguma. E o próprio Markham pergunta se a lei pode detê-lo ou não. O mais que podemos conseguir é uma prova de culpabilidade por tentativa de seqüestro, por meio da identificação que a menina realize.

— Ah, sim... A menina pode reconhecê-lo. — Nos olhos do ancião surgiu uma expressão de amargura. — Entretanto, deveria haver outros meios de obter justiça para os outros crimes.

Vance sentou-se, fumando pensativamente, com os olhos postos na parede oposta. Ao cabo de um instante, falou com tranqüila gravidade:

— Se Arnesson estivesse convencido de que as provas contra ele eram fortes, seria capaz de escolher o suicídio como meio de eliminação. Era, talvez, a solução mais humana para todos.

Markham ia protestar indignado, porém Vance adiantou-se a ele:

— O suicídio não é um ato indefensável por si. A Bíblia contém muitos relatos de suicídios heróicos. Que exemplo mais belo de valor que o de Rhazis, quando se arrojou da torre para fugir ao jugo de Demétrio? (1) Também existiu valentia na morte do porta-espadas de Saul e, com toda a certeza, nos suicídios de Sansão e de Judas Iscariotes também se pode encontrar alguma virtude.

(1) Admito que o nome de Rhazis não me era familiar. E quando examinei mais tarde o assunto, verifiquei que o episódio a que Vance se referia se encontra no livro segundo (apócrifo) dos Macabeus.

 

A História está cheia de suicídios notáveis... os de Bruto e Catão de Útica, de Aníbal, Lucrécia, Cleópatra, Sêneca... Nero se matou antes de cair nas mãos de Oto e dos guardas pretorianos. Na Grécia, temos a famosa auto-eliminação de Demóstenes; Empédocles arrojou-se na cratera do Etna. Aristóteles foi o primeiro grande pensador a emitir a opinião de que o suicídio é um ato anti-social, mas segundo a tradição ele se envenenou depois da morte de Alexandre. E nos tempos modernos, não esqueçamos o gesto sublime do Barão de Nogi...

— Tudo isso não justifica o ato — replicou Markham. — A lei...

— Ah, sim... a lei. Na China, todos os criminosos condenados à morte podem optar pelo suicídio. O código adotado pela Assembléia Nacional Francesa, no fim do século XVIII, aboliu todo castigo pelo suicídio; e no Sachsenspiegel, a base principal da lei alemã, está claramente esclarecido que o suicídio não é um ato punível. Além disso, entre os donatistas, circunceliões e patrícios, o suicídio era considerado um ato agradável aos deuses. Além disso, na Utopia de More havia um sínodo que decidia do direito do cidadão de abandonar a vida... A lei, Markham, é para proteger a sociedade. E que dizer de um suicídio que torne possível essa proteção? Devemos invocar um tecnicismo legal quando, fazendo assim, deixamos a sociedade desprotegida para que o perigo continue? Não há lei mais alta que as leis escritas nos livros?

Markham sentia-se profundamente perturbado. Levantando-se, começou a passear de um lado para outro, na sala, e seu semblante mostrava ansiedade. Quando voltou a sentar-se, fixou Vance durante largo tempo, enquanto tamborilava com os dedos sobre a mesa, com indecisão nervosa.

— O inocente, naturalmente deve ser considerado — disse com voz cheia de desalento. — Apesar do erro do suicídio, sob o ponto de vista moral, concordo com sua idéia de que, às vezes, ele pode ser justificado teoricamente.

(Conhecendo Markham como eu conhecia, avaliei como lhe devia ter custado essa concessão e calculei, por outro lado, quão totalmente desesperançado se sentiu diante do flagelo que era de seu dever exterminar.)

O velho professor meneou a cabeça, compreensivamente.

— Sim; há alguns segredos tão hediondos que é melhor que o mundo não os conheça. Uma justiça mais alta pode, às vezes, ser lograda, sem que a lei intervenha.

No momento em que falava, abriu-se a porta e Arnesson entrou na biblioteca.

— Bem, bem, outra conferência, hem? — Dirigiu-nos um olhar de troça e deixou-se cair numa cadeira ao lado do professor. — Acreditei que o assunto já tinha sido adjudicado, por assim dizer. Não pôs fim a tudo o suicídio de Pardee?

Vance olhou fixamente nos seus olhos.

— Encontramos a "Pequena Miss Muffet", Sr. Arnesson. Este ergueu as sobrancelhas com uma expressão ao mesmo

tempo jocosa e sardônica.

— Parece uma charada.

— Encontramo-la na casa de Drukker, encerrada num quartinho — disse, ampliando sua explicação com voz baixa e monótona. Arnesson ficou sério e franziu as sobrancelhas involuntariamente. Mas, este enfraquecimento de sua pose foi apenas passageiro. Lentamente sua boca esboçou um sorriso afetado.

— Os senhores, os policiais, são tão eficientes! Imaginam encontrar Miss Muffet tão cedo. É notabilíssimo. — Ele meneou ligeiramente a cabeça num gesto de admiração zombeteira. — Entretanto, tarde ou cedo, era de esperar. E qual, se me é permitida a pergunta, será o próximo passo?

— Também encontramos a máquina de escrever — prosseguiu Vance, não dando atenção à pergunta. — E o caderno de Drukker que havia sido roubado.

Arnesson se pôs imediatamente em guarda.

— Deveras? — dirigiu a Vance um olhar prudente. — Onde estavam esses objetos?

— Em cima, no sótão.

— Olá! Violação de domicílio?

— Mais ou menos isso.

— Por outro lado, — disse Arnesson com mofa, — não posso acreditar que o senhor tenha prova suficiente contra alguém. Uma máquina de escrever não é um terno que assenta bem apenas numa determinada pessoa. E quem pode dizer como pôde chegar ao nosso sótão o caderno de Drukker? Tem de proceder melhor, senhor Vance.

— Por certo, existe o fator da oportunidade. O Bispo é uma pessoa que pôde ter estado disponível no momento de cada assassinato.

— Esta é a prova concorrente mais inconsistente que pode haver — replicou o homem. — Não seria de grande valor como prova de culpabilidade.

— Poderíamos mostrar por que o assassino preferiu o nome de Bispo.

— Ah! Isto, sim, poderia ser útil. — Uma nuvem cobriu o rosto de Arnesson e seus olhos tornaram-se evocativos. — Eu também havia pensado nisso.

— Oh, deveras? — Vance observava-o de perto. — E há outra prova que não mencionei. A Pequena Miss Muffet poderia identificar o homem que a conduziu à casa de Drukker, encerrando-a num quartinho.

— Deveras? Melhorou a enferma?

— Sim. Na verdade, está quase boa. Encontramo-la vinte e quatro horas antes da hora que o Bispo desejava que a encontrássemos.

Arnesson ficou silencioso. Olhava suas próprias mãos que, embora fechadas, se moviam nervosamente. Por fim, falou:

— E se, apesar de tudo, o senhor estivesse equivocado...

— Asseguro-lhe, Sr. Arnesson — disse Vance tranqüilamente — que eu sei quem é o culpado.

— Positivamente o senhor me alarma! — Arnesson tinha recuperado o domínio sobre si mesmo e replicou com mordaz ironia. — Se, por acaso, fosse eu o Bispo, estaria inclinado a admitir a derrota... Entretanto, é evidente que foi o Bispo que levou a peça de xadrez à casa da Sra. Drukker e eu não voltei para casa com Belle, senão às doze e meia.

— Assim disse você a ela. Se bem me recordo, você mesmo foi que consultou seu relógio para dizer-lhe a hora. Bem, que horas eram?

— Doze e meia.

Vance suspirou e deitou a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Diga-me Sr. Arnesson, é o senhor um bom químico?

— Sou um dos melhores — sorriu ele. — Diplomei-me em Química. Que tem isso?

— Quando, esta manhã, estive examinando o sótão, descobri um cubículo em que alguém estivera extraindo ácido cianídrico do ferrocianureto de potássio. Havia uma máscara contra gases, como as que usam os químicos em seus laboratórios e todos os atavios pertinentes. Um cheiro de amêndoas amargas dominava o ambiente.

— Nosso sótão é um tesouro descoberto. Uma espécie de retiro de Loki, diria eu.

— Era isso mesmo — replicou Vance gravemente — o antro de um espírito mau.

— Ou o laboratório de um moderno Dr. Fausto... Mas, para que o cianureto?

— Eu diria que por precaução. Em caso de apuro, o Bispo poderia partir desta vida, sem sofrimento algum. Tudo preparado, sabe?

Arnesson meneou a cabeça.

— Atitude corretíssima da parte dele. Na realidade, é muita decência dele, creia-me. Sim, é uma atitude muito correta.

Durante este diálogo sinistro, o professor Dillard havia permanecido sentado, apertando os olhos com a mão como se sentisse uma grande dor. Voltou-se então para o homem que havia protegido durante tantos anos, como um filho:

— Muitos grandes homens, Sigurd, justificaram o suicídio... — começou a dizer, porém Arnesson interrompeu-o logo com uma risota cínica.

— Bah! O suicídio não precisa de justificação. Nietzsche pôs nestes termos o espantalho da morte voluntária: "Um homem deve morrer orgulhosamente quando não lhe é mais possível viver com orgulho. A morte que sobrevém em circunstâncias desprezíveis, a morte que não é livre, a morte que ocorre quando não deve ocorrer, é a morte de um covarde. Não temos o poder de evitar nosso nascimento; porém, este erro — pois às vezes é um erro — pode ser retificado se o desejarmos. O homem que se elimina realiza o mais respeitável dos atos. Quase merece viver por tê-lo praticado". Em minha juventude decorei esta passagem no Gotzen-Dämmerung. Nunca a esqueci. Uma doutrina sã, por certo.

— Nietzsche teve muitos predecessores famosos que também defenderam o suicídio — acrescentou Vance. — Zenon, o estóico, nos legou um ditirambo apaixonado elogiando a morte voluntária. E Tácito, Epicteto, Marco Aurélio, Catão, Kant, Fichte, Diderot, Voltaire e Rousseau, todos eles fizeram a apologia do suicídio. Schopenhauer protestou amargamente por ser o suicídio considerado crime na Inglaterra... E, no entanto, penso se é um assunto que deva ser formulado. De qualquer modo, sinto que é uma questão muito pessoal para uma discussão acadêmica.

O professor concordou tristemente.

— Ninguém pode saber o que sucede no coração do homem, em sua última hora negra.

Durante esta discussão, Markham se impacientava cada vez mais e seus nervos estavam por estalar. Heath, embora a princípio firme e vigilante, agora começava a derrear. Eu não podia constatar se Vance tinha feito algum progresso. E cheguei à conclusão de que havia fracassado redondamente no seu propósito de armar um laço a Arnesson. Entretanto, ele não parecia de modo algum perturbado. Mais ainda, minha impressão era de que estava satisfeito com o rumo tomado pelas coisas. Mas, isto eu não notei, a despeito de toda a sua calma, estava intensamente alerta. Seus pés mantinham-se encolhidos e suspensos. E todos os músculos de seu corpo retesados.

Comecei a pensar onde pararia aquela terrível conferência.

O final chegou rapidamente. Um breve silêncio seguiu-se ao comentário do professor. Em seguida, Arnesson dirigiu-se a Vance:

— O senhor disse que sabe quem é o Bispo. Se é assim, a que vem todo esse palavrório?

— Não havia muita pressa. — Vance disse isto quase displicentemente. — E tinha esperança de obter todos os dados. Os jurados são muito exigentes, sabe?... Além disso, este vinho do Porto está excelente...

— O vinho do Porto?... Ah, sim. — Arnesson olhou os nossos cálices, e em seguida dirigiu um olhar aborrecido para o professor. — Desde quando sou abstêmio, senhor?

O professor Dillard sobressaltou-se, titubeou e levantou-se.

— Desculpe-me, Sigurd. Não me lembrava... como você nunca bebe pela manhã.

Foi até ao licoreiro e, enchendo outro cálice, colocou-o com a mão insegura diante de Arnesson. Depois tornou a encher os outros cálices.

Mal se tinha sentado, Vance soltou uma exclamação de surpresa. Tinha-se levantado e estava inclinado para diante, com as mãos apoiadas no bordo da mesa, e os olhos, cheios de assombro, fixos no painel do outro extremo da sala.

— Demônio! Nunca o tinha notado... Extraordinário! Tão inesperado e surpreendente havia sido esse gesto e tão tensa estava a atmosfera, que, involuntariamente, nos voltamos e dirigimos a vista na direção do seu olhar fascinado.

— Um quadro de Cellini! — exclamou ele. — A Ninfa de Fontainebleau! Berenson disseme que foi destruído no século XXVII. Vi uma reprodução no Louvre...

A indignação de Markham congestionou-lhe as faces. Em relação a mim, direi que, apesar de estar familiarizado com as idiossincrasias de Vance e com a sua paixão intelectual pelas coisas antigas, nunca o tinha visto exibir tão indefensável mau gosto. Parecia incrível que se distraísse com um objeto de arte, em um momento tão trágico.

O professor Dillard olhou para ele com o cenho cerrado e cheio de consternação.

— Escolheu um momento estranho, senhor, para demonstrar o seu entusiasmo pela arte — foi o comentário que fez o professor.

Vance parecia abatido e mortificado. Mergulhou em sua poltrona, evitando os nossos olhares, e começou a mover o cálice entre os dedos.

— O senhor tem razão — murmurou ele. — Devo pedir-lhe desculpas.

— A tela, incidentemente — acrescentou o professor, como para mitigar a severidade da sua censura — é simplesmente uma cópia da que existe no Louvre.

Vance, como se desejasse ocultar a sua confusão, levou o cálice aos lábios. Foi um momento altamente desagradável. Nossos nervos estavam quase estalando e, automaticamente, imitando o seu gesto, erguemos também os nossos cálices.

Vance lançou um rápido olhar através da mesa e, levantando-se, caminhou até à janela, onde permaneceu encostado. Tão inesperada foi sua marcha apressada que eu me voltei e observei-o pensativamente. Quase ao mesmo tempo, a mesa foi empurrada para o meu lado e, simultaneamente, ouviu-se um barulho de copos que se quebravam.

Pus-me de pé e olhei com horror o corpo inerte e estirado para diante na cadeira oposta com um braço e um ombro apoiados sobre a mesa. A isto seguiu-se um breve silêncio de espanto e aturdimento. Cada um de nós parecia momentaneamente paralisado. Markham permanecia como uma imagem esculpida, os olhos fixos na mesa. Heath, olhando, sem poder falar, se comprimia contra o espaldar de sua cadeira.

— Santo Deus!

Foi a exclamação de assombro de Arnesson que quebrou a atenção.

Markham deu volta à mesa, inclinando-se sobre o corpo do professor Dillard.

— Chame um médico, Arnesson — ordenou.

Vance voltou, sucumbido, da janela e deixou-se cair na poltrona.

— Nada se pode fazer — disse ele com profundo suspiro de fadiga. — Preparou-se para morrer rapidamente e sem dor, quando destilou o cianureto. O caso do Bispo está encerrado.

Markham olhava-o, sem compreender.

— Oh, eu suspeitava mais ou menos da verdade, desde a morte de Pardee — continuou Vance, respondendo à pergunta muda de Markham. — Mas não tive certeza, senão ontem à noite, quando começou a culpar o Sr. Arnesson.

— Hem? Que é isto? — Arnesson voltava do telefone.

— É o que eu digo — concluiu Vance, meneando a cabeça. — Você é que ia pagar pela culpa de outro. Desde o princípio foi escolhido como vítima. Mais ainda, ele nos sugeriu a culpabilidade de você.

Arnesson não parecia tão surpreso como se esperava.

— Eu sabia que o professor me odiava — disse ele. — Tinha um ciúme intenso de meu interesse por Belle. E, além disto, sua capacidade intelectual estava em decadência... isto notei há meses. O trabalho de seu último livro foi meu, e ele se ressentia, quando me concediam honras acadêmicas. Eu desconfiava de que ele estivesse atrás de toda essa diabrura; mas não tinha certeza. Não obstante, nunca acreditei que ele tentasse enviar-me para a cadeira elétrica.

Vance levantou-se e, estendendo a mão a Arnesson, lhe disse:

— Não havia perigo disto. Agora devo pedir-lhe desculpas pela forma por que eu o tratei, nesta última meia hora. Foi uma questão de tática. Como você sabe, não tínhamos nenhuma prova real e eu esperava forçar a mão dele.

Arnesson sorriu tristemente.

— Não é necessária nenhuma desculpa. Eu sabia que você não tinha o olho posto em mim. Quando você começou a incomodar-me, sabia que era só uma questão de técnica. Não sabia o que você procurava, mas segui as suas sugestões o melhor que pude. Espero que não lhe tenha entorpecido a ação.

— Não, não, você portou-se bem.

— Deveras? — Arnesson franziu o sobrolho com profunda perplexidade. — Mas o que não compreendo é por que ele tomou cianureto, sabendo que o suspeitado era eu.

— Este ponto particular não o saberemos nunca — disse Vance. — Talvez ele temesse a identificação da menina, ou pode ter percebido o meu ardil. Ou quem sabe tenha-se revoltado de súbito ante a idéia de ter posto sobre você todo o peso da culpa... Como ele mesmo disse, ninguém sabe o que se passa no coração do homem durante a sua última hora negra.

Arnesson não se moveu. Fixava os olhos em Vance com penetrante sagacidade.

— Oh, bem — disse ele por fim. — Deixaremos a coisa assim... De qualquer modo, obrigado!


XXVI

 

HEATH FAZ UMA PERGUNTA

 

(Terça-feira, 26 de abril — 16h)

 

Quando Markham, Vance e eu saímos da casa de Dillard uma hora depois, pensei que o assunto do Bispo estivesse encerrado. E assim era com efeito, em relação ao público, porém iria surgir outra revelação, que foi, de certo modo, o fato mais surpreendente de todos os que ocorreram naquele dia.

Heath reuniu-se a nós, no gabinete do procurador do distrito, depois do almoço, pois havia diversos assuntos oficiais delicados a tratar. E, mais tarde, naquele mesmo dia, Vance reviu todo o processo, explicando muitos dos seus pontos obscuros.

— Arnesson já sugeriu o motivo desses crimes insanos — principiou ele. — O professor percebeu que sua posição, no mundo da ciência, estava sendo usurpada pelo homem mais moço. Seu espírito tinha começado a perder a força de penetração; e ele verificou que seu novo livro sobre a estrutura atômica não teria sido escrito sem a colaboração de Arnesson. Um ódio enorme cresceu dentro dele contra o seu protegido. A seus olhos, Arnesson tornou-se um monstro que ele mesmo, como Frankenstein, havia criado, e que agora se levantava para destruí-lo. E esta inimizade intelectual era agravada por uma primitiva emoção de ciúme. Durante dez anos, ele havia concentrado em Belle Dillard toda a afeição da sua vida de solteirão; ela representava um apoio na sua existência quotidiana; e, quando viu que Arnesson provavelmente conquistaria o coração dela, seu ódio e ressentimento redobraram de intensidade.

— O motivo é compreensível — disse Markham. — Mas não explica os crimes.

O motivo atuou como faísca na pólvora seca de suas emoções recalcadas. Procurando um meio para destruir Arnesson, ele imaginou os diabólicos assassinatos do Bispo. Esses crimes constituíram uma válvula para as suas repressões e satisfizeram sua necessidade psíquica de uma expressão violenta. E, ao mesmo tempo, responderam à pergunta, formulada em seu espírito, de como poderia ver-se livre de Arnesson e conservar Belle Dillard para si.

— Mas por que — perguntou Markham — não assassinou simplesmente Arnesson e terminou com tudo de uma vez?

— Você passa por alto sobre os aspectos psicológicos da situação. O espírito do professor havia-se desintegrado, através de uma intensa e longa repressão. A natureza pedia um desafogo. E foi seu ódio contra Arnesson que levou a pressão ao ponto de explosão. Os dois impulsos ficaram assim combinados. Ao cometer os assassinatos, não só aliviava suas inibições, como também descarregava o seu ódio contra Arnesson, pois este, como se sabe, era quem ia pagar a culpa. Semelhante vingança era mais poderosa, e daí também mais satisfatória, do que o simples assassinato do homem... Era a grande farsa tétrica, no fundo das farsas menores dos assassinatos em si mesmos.

"Sem embargo, esse diabólico plano tinha uma grande desvantagem que o professor não notou. Deixava o assunto aberto a uma análise psicológica; e, no princípio, pude postular que o agente do crime era um matemático. A dificuldade de mencionar o nome do assassino residia no fato de que quase todos os suspeitos eram matemáticos. O único de cuja inocência eu estava certo era Arnesson, pois era o único que mantinha o equilíbrio psíquico, quer dizer, que constantemente descarregava as emoções que se formavam, durante suas prolongadas especulações abstrusas. Uma atitude geral sádica e céptica voluvelmente expressa e uma explosão homicida violenta são psicologicamente equivalentes. Dar rédea solta ao ceticismo de alguém à medida que se vai desenvolvendo produz um desafogo normal e mantém o equilíbrio emocional. Os homens cépticos e zombeteiros são sempre equilibrados, pois estão muito longe de explosões físicas esporádicas; enquanto que o homem que reprime o sadismo e acumula o cepticismo sob uma aparência estóica e grave é sempre capaz de explosões perigosas. É por isso que eu sabia que Arnesson seria incapaz de cometer os assassinatos do Bispo, e aí está por que eu sugeri a você, Markham, que permitisse que ele nos auxiliasse na investigação. Como nos disse, ele suspeitava do professor. E seu pedido para que lhe permitíssemos auxiliar-nos na investigação dos fatos era, creio eu, movido pelo desejo de estar ao corrente de tudo de modo a poder proteger melhor Belle Dillard e proteger-se a si mesmo, caso suas suspeitas se verificassem.

— Isso parece razoável — concordou Markham. — Mas onde se inspiraram as idéias fantásticas do professor Dillard sobre o modo de executar esses crimes?

— O tema folclórico infantil, provavelmente, lhe foi sugerido, quando ouviu Arnesson dizer, por gracejo, a Robin que tivesse cuidado com as flechas que partiam do arco de Sperling. Ele viu, nessa observação pilhérica, um meio de desafogar seu ódio contra um homem que o havia sobrepujado; e esperou o momento. A oportunidade de cometer seu crime apresentou-se, pouco tempo depois. Quando viu Sperling subir a rua, aquela manhã, soube que Robin estava só na sala do clube. Assim que desceu, falou com Robin, deu-lhe um golpe na cabeça, cravou-lhe uma flecha no coração e arrastou-o para fora. Depois lavou as manchas de sangue, destruiu o pano de que se servira, deixou sua nota na caixa do correio da esquina e outra na da correspondência da casa, voltou à biblioteca e telefonou para a Procuradoria do Distrito. Um fator imprevisto produziu-se, no entanto; Pyne estava no quarto de Arnesson, quando o professor disse que saíra para a sacada, porém nenhum prejuízo sobreveio, pois, embora Pyne desconfiasse de que algo anormal estava acontecendo, quando ouviu o professor mentir, certamente não suspeitou de que seu velho patrão fosse um assassino. O crime foi um sucesso.

— E, no entanto — interrompeu Heath, — o senhor adivinhou que Robin não tinha sido morto por um flechaço.

— É certo. Eu descobri isto pela condição do punho da flecha introduzida no corpo de Robin. E deduzi, por conseguinte, que este tinha sido morto no interior da casa, depois de receber o golpe na cabeça. Por isso, concluí que o arco havia sido atirado pela janela para o campo de exercícios. Então eu não sabia que o professor era culpado. Indubitavelmente, o arco nunca esteve fora. Mas a evidência, em que eu baseava as minhas deduções, não pode ser considerada como um erro ou descuido da parte do professor. Contanto que o episódio do folclore infantil fosse realizado, o resto não tinha importância para ele.

— Que instrumento pensa que ele usou? — perguntou Markham.

— Provavelmente sua bengala. Você deve ter notado que ela tem um enorme castão de ouro perfeitamente construído como arma letal.(1) A propósito, estou inclinado a crer que ele exagerava sua gota para atrair simpatia e afastar de si qualquer suspeita possível.

(1) Mais tarde foi descoberto que o pesado castão de ouro, de quase vinte centímetros, estava solto e podia ser facilmente destacado da bengala. O castão pesava cerca de 900 gramas e, como Vance havia observado, constituía um cacete altamente eficiente. Se tinha sido ou não afrouxado para o propósito a que foi destinado é por certo uma conjetura.

 

— E a sugestão para o assassinato de Sprigg?

— Depois da morte de Robin, deve ter procurado, deliberadamente, material para outro crime no livro infantil de Mother Goose. Seja como for, Sprigg visitou a casa na quinta-feira, à noite, véspera de seu assassinato; e foi nesse momento, segundo creio, que a idéia surgiu. No dia escolhido para a sua monstruosa obra, ele se levantou cedo e vestiu-se, esperou que Pyne o chamasse às sete e meia, respondeu-lhe e, então, foi ao parque — provavelmente pela sala do clube e pela passagem. O costume de Sprigg de passear todas as manhãs pode ter sido casualmente mencionado por Arnesson ou pelo próprio moço.

— Mas como explica você a fórmula do tensor?

— O professor tinha ouvido Arnesson falar ao moço sobre ela, algumas noites antes. E eu penso que a colocou debaixo do corpo para despertar a atenção, por associação de idéias, sobre Arnesson. Mais ainda, aquela fórmula particular sutilmente expressava o impulso psicológico que animava os crimes. O tensor de Riemann-Christoffel é uma exposição do infinito espacial, a negação da vida humana infinitesimal desta terra; e, subconscientemente satisfez, sem dúvida, o senso de humor pervertido do professor, dando maior homogeneidade à sua concepção monstruosa. No momento em que a vi, percebi seu significado sinistro e consolidei minha teoria de que os crimes do Bispo eram obra de um matemático, cujos valores se haviam tornado abstratos e incomensuráveis.

Vance fez uma pausa para acender outro cigarro, continuando depois de um silêncio meditativo:

— Chegamos agora à visita de meia-noite à casa de Drukker. Isso foi um triste entreato forçado do assassino, motivado pela informação do grito da Sra. Drukker. Receava que a mulher houvesse visto o corpo de Robin ser arrojado para fora. E, quando, na manhã do assassinato de Sprigg, ela o encontrou no pátio de volta do crime, ele se sentiu mais preocupado do que nunca que ela pusesse as coisas no seu lugar. Não me admira que ele procurasse evitar que a interrogássemos. E na oportunidade mais próxima quis fazê-la silenciar para sempre. Tirou a chave da carteira de Belle Dillard, antes que ela saísse para o teatro aquela noite, pondo-a em seu lugar na manhã seguinte. Mandou Pyne e Beedle deitarem-se cedo; e às dez e meia Drukker se queixava de cansaço e retirava-se para a sua casa. À meia-noite, julgou que o cenário estava pronto para sua fatídica visita. O uso do bispo negro como assinatura simbólica do assassinato premeditado foi provavelmente inspirado pela discussão de xadrez entre Pardee e Drukker. Suspeito que ele nos falou sobre a partida de xadrez para chamar a atenção sobre o jogo de propriedade de Arnesson, no caso de o bispo vir a cair em nossas mãos.

— Crê você que ele tinha idéia de envolver Pardee naquela ocasião?

— Oh, não. Surpreendeu-se genuinamente quando a análise de Arnesson sobre a partida Pardee-Rubinstein revelou o fato de que o bispo tinha sido por largo tempo a Nêmesis de Pardee... E você estava indubitavelmente certo acerca da reação de Pardee, quando eu mencionei no dia seguinte o bispo negro. O pobre homem pensou que eu o ridicularizava deliberadamente por motivo da sua derrota nas mãos de Rubinstein...

Vance inclinou-se e deixou cair a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Lastimo — murmurou com pesar. — Devo-lhe uma desculpa sabe? — Encolheu os ombros ligeiramente e, recostando-se em sua cadeira, prosseguiu a narração. — A idéia do assassinato de Drukker o professor a obteve da própria mãe deste. Ela comunicou seus temores imaginários a Belle Dillard, que os repetiu naquela noite, durante o jantar; e o projeto tomou corpo. Não havia complicações em sua execução. Depois do jantar, subiu ao sótão e datilografou as notas. Mais tarde, sugeriu um passeio a Drukker, sabendo que Pardee não se demoraria muito tempo com Arnesson. E, quando viu Pardee no caminho para cavaleiros do parque, soube que Arnesson estava só. Assim que Pardee se afastou, deu o golpe em Drukker, atirando-o em seguida do muro abaixo. Imediatamente, dirigiu-se pelo pequeno atalho até o Drive, cruzou a Rua Setenta e Seis e foi ao quarto de Drukker, voltando pelo mesmo caminho. Toda a cena não podia ocupar-lhe mais de dez minutos. Então, tranqüilamente, passou por Emery e dirigiu-se para casa com o caderno de Drukker por baixo do casaco...

— Mas, por que, — interrompeu Markham, — se você estava seguro de que Arnesson era inocente, fez cavalo-de-batalha da chave da porta da passagem? Somente Arnesson poderia ter usado a passagem na noite da morte de Drukker. Dillard e Pardee saíram pela porta da frente.

— Do ponto de vista da culpabilidade de Arnesson, eu não tinha interesse na chave. Mas, se esta não estava, isso significava que alguém a havia levado a fim de lançar suspeita sobre Arnesson. Quão simples teria sido para Arnesson deslizar pela passagem, depois que Pardee se retirou, cruzar o Drive até o pequeno atalho e atacar Drukker depois que o professor o tivesse deixado... E, Markham, isto é o que nós éramos forçados a pensar. Foi, de fato, a óbvia explicação do assassinato de Drukker.

— O que eu não posso compreender — queixou-se Heath — é por que o velho matou Pardee. Isto não lançava suspeita sobre Arnesson e fez com que crêssemos que Pardee era o culpado e que se havia, por isso, suicidado.

— Esse suicídio espúrio, sargento, foi a piada mais fantástica do professor. Foi ao mesmo tempo irônica e desdenhosa. Pois durante todo esse interlúdio cômico ele ruminou projetos para a destruição de Arnesson. E decerto a circunstância de possuirmos um culpado plausível tinha a grande vantagem de relaxar a vigilância e fazer com que os agentes fossem retirados da casa. O assassinato, creio eu, foi concebido espontaneamente. O professor inventou algum pretexto para acompanhar Pardee à sala do clube onde já tinha fechado as janelas e descido as persianas. Então, talvez apontando para algum artigo de revista, desfechou um tiro contra seu confiante hóspede, atingindo-o no peito, pôs-lhe o revólver na mão e, como humorista sardônico, construiu o castelo de cartas. Ao voltar à biblioteca, colocou as peças de xadrez como para fazer crer que Pardee tivesse estado refletindo sobre o bispo negro... Mas, como eu digo, este fragmento de grotesca maldade foi apenas um acontecimento secundário. O episódio da "Pequena Miss Muffet" devia ser o desfecho. E foi cuidadosamente projetado para que a tempestade caísse sobre Arnesson. O professor estava na casa de Drukker na manhã dos funerais, quando Madalena Moffat trouxe as flores para Humpty Dumpty; indubitavelmente ele conhecia o nome da criança. Era a favorita de Drukker e havia estado na casa deste em numerosas ocasiões. Com a idéia dos personagens do folclore infantil firmemente implantada em seu espírito, como uma obsessão homicida, associou naturalmente o nome de Moffat com Muffet. Por certo, é provável que Drukker ou a Sra. Drukker chamassem a menina "A pequena Miss Muffet", em sua presença. Foi fácil para ele atrair a atenção da menina e chamá-la para o montículo perto do muro, ontem à tarde. Provavelmente, disselhe que Humpty Dumpty desejava vê-la. E ela foi-se com ele ansiosamente, seguindo-o sob as árvores pelo caminho de cavaleiros, depois através do Drive e pela passagem entre os prédios de apartamentos. Ninguém os teria notado, pois o Drive a essa hora está cheio de crianças. Depois, à noite passada, ele lançou em nós a semente da suspeita contra Arnesson, crendo que, quando as notas da "Pequena Miss Muffet" chegassem à imprensa, procuraríamos a menina para encontrá-la morta por asfixia na casa de Drukker... Um plano diabólico e inteligente!

— Mas por que ele esperou que devassássemos o sótão de sua casa?

— Oh, sim, mas não antes de amanhã. Então, ele teria limpado o quarto e colocado a máquina num lugar mais seguro. E teria guardado o caderno, pois há muito pouca dúvida de que pretendia apropriar-se das investigações de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas nós chegamos um dia antes e todos os seus cálculos fracassaram.

Markham fumou pensativamente, durante um certo tempo.

— Você disse que estava convencido da culpabilidade de Dillard, ontem à noite, quando você recordou o personagem do Bispo Arnesson...

— Sim... oh, sim... Isso me deu o rumo. Naquele momento, concluí que a intenção do professor era lançar sobre Arnesson a culpabilidade e que a assinatura das notas havia sido escolhida com esse propósito.

— Ele esperou muito tempo antes de chamar-nos a atenção sobre Os Simuladores — comentou Markham.

— O fato é que não esperava ter de fazê-lo. Pensava que nós descobriríamos o nome por nós mesmos. Porém, éramos mais imbecis do que ele julgava. E, afinal, desesperado, chamou você e foi, inteligentemente, direto ao assunto, acentuando Os Simuladores.

Durante um momento, Markham permaneceu silencioso. Sentou-se, franzindo o cenho e tamborilando com os dedos no mata-borrão da mesa.

— Por que — perguntou afinal — você não nos disse, ontem à noite, que o professor e não Arnesson era o Bispo? Você nos fez pensar...

— Meu caro Markham! Que mais podia eu fazer? Em primeiro lugar, você não me acreditaria e provavelmente me teria sugerido outra viagem transoceânica. Mas era essencial fazer crer ao professor que suspeitávamos de Arnesson. De outro modo, não teríamos a probabilidade de forçarmos a decisão como conseguimos. O subterfúgio era a nossa única esperança; e eu sabia que, se você e o sargento suspeitassem dele, iriam logo descobrir o jogo. Deste modo, não tiveram de fingir e tudo saiu que foi uma beleza!

Notei que o sargento havia estado, durante a última meia hora, observando Vance, de vez em quando, com um olhar de incerteza perplexa; porém, por algum motivo, dava a impressão de achar-se embaraçado para exprimir os pensamentos que o preocupavam. Entretanto, nesse momento, mudou de posição, contrafeito, e, tirando com lentidão o cigarro da boca, fez a Vance uma pergunta alarmante:

— Eu não me queixo de o senhor não nos ter revelado sua idéia, ontem à noite, mas o que me agradaria saber é por que, quando o senhor se levantou de um salto e apontou para o painel existente no outro lado da sala, trocou o cálice do professor pelo de Arnesson?

Vance suspirou profundamente e meneou, desesperado, a cabeça.

— Eu devia ter sabido que nada podia escapar a seus olhos de águia, sargento.

Markham inclinou-se sobre a mesa e mirou Vance, com aturdimento e raiva.

— Que é isso! — exclamou Markham, esquecendo seu habitual comedimento. — Você trocou os cálices? Você deliberadamente...

— Oh! — rogou Vance. — Que sua ira não desabe sobre mim. — Voltou-se para Heath num tom burlesco de censura. — Veja em que aperto me colocou, sargento.

— Este não é o momento para fugir pela tangente. — A voz de Markham era fria e inexorável. — Eu quero uma explicação.

Vance fez um gesto de resignação.

— Pois bem. Escutem. Minha idéia, como já expliquei a vocês, foi acompanhar o plano do professor e fingir que alimentava suspeitas contra Arnesson. Esta manhã fiz-lhe ver, a propósito, que não tínhamos provas e que, mesmo que prendêssemos Arnesson era duvidoso que pudéssemos retê-lo. Eu sabia que, nessas circunstâncias, ele tomaria alguma decisão para fazer face à situação de uma forma heróica, pois o único objetivo dos assassinatos era aniquilar completamente Arnesson. Eu tinha certeza de que ele cometera um ato imprudente e descobrira-se a si mesmo. De que forma, não sei. Mas nós o vínhamos observando muito de perto... Então, o vinho me deu uma inspiração. Sabendo que ele tinha cianureto, trouxe para a palestra o assunto do suicídio e assim lancei a idéia em seu espírito. Caiu na armadilha e procurou envenenar Arnesson e fazer crer que era um suicídio. Eu o vi sub—repticiamente esvaziar um frasquinho de líquido incolor no cálice de Arnesson, quando este fora buscar o vinho no licoreiro. Minha primeira intenção era deter o assassino e mandar analisar o vinho. Podíamos pesquisá-lo e encontrar o veneno e eu podia testemunhar o fato de tê-lo visto envenenar o vinho. Esta evidência, além da identificação da menina, poderia corresponder ao nosso propósito. Porém, no último momento, depois que ele encheu de novo os nossos cálices, decidi empregar o método mais singelo...

— E assim você distraiu nossa atenção e trocou os cálices!

— Sim, sim. Naturalmente. Acreditei que um homem desejaria beber o vinho que serviu para outro.

— Você fez justiça pelas suas próprias mãos!

— Tomei-a em meus braços... Era inevitável... Mas não sejam tão severos. Levam vocês à presença da Justiça uma cascavel? Apresentam diante de um tribunal um cachorro furioso? Não senti mais remorsos em concorrer para que um monstro como Dillard se projetasse no além do que os que teria sentido, ao esmagar um réptil venenoso, no momento de este atacar.

— Mas isso é assassinato! — exclamou Markham com horror e indignação.

— Oh, sem dúvida — disse Vance com alegria. — Sim... Naturalmente, muito repreensível... Diga-me: estou por acaso preso?

O "suicídio" do professor Dillard pôs fim ao famoso caso dos assassinatos do Bispo, absolvendo Pardee de qualquer suspeita. No ano seguinte, Arnesson e Belle Dillard contraíram núpcias, na maior intimidade, e partiram para a Noruega, onde instalaram o seu lar. Arnesson aceitou a cadeira de Matemáticas Aplicadas da Universidade de Oslo; e dois anos depois obteve o prêmio Nobel por seu trabalho de Física.

A velha casa de Dillard, na Rua 75, foi demolida e, em seu lugar, eleva-se hoje um moderno prédio de apartamentos em cuja fachada há dois imensos medalhões de terracota, que sugerem fortemente alvos para tiros de flecha. Tenho pensado muitas vezes, se o arquiteto não escolheu deliberadamente semelhante motivo ornamental.

O caso do Bispo Preto empolgou toda uma nação. Era um mistério criminal de excepcional interesse em vista das circunstâncias sinistras e estranhas que o cercavam.
Parecia, porém, quase impossível desvendar a cadeia de fatos misteriosos e recônditos que precederam o crime. Em dado momento, as pistas se multiplicavam com tal exuberância que os homens mais treinados nas técnicas da investigação criminal se perdiam nelas, sem saber por onde prosseguir.
Felizmente, o espírito insaciável e os métodos analíticos notáveis de Philo Vance fizeram-no absorver-se em todas as complicações do caso para resolvê-lo numa série de raciocínios e análises que constituem uma verdadeira jóia da literatura policial.
Sem a sua intervenção, sem a sua aplicação ao caso dos seus poderes magistrais de dedução e de análise, sem a sua agudeza intelectual desenvolvida e comprovada no conhecimento profundo de quase todos os setores do conhecimento humano, seria muito provável que o mistério do Bispo Preto nunca fosse decifrado.

 

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I

"QUEM MATOU COCK ROBIN?"

(Sábado, 2 de abril — meio-dia)

De todos os casos criminais em que Philo Vance interveio como investigador particular, o mais sinistro, grotesco e aparentemente ò mais incompreensível, e sem dúvida o mais terrível, foi o que se seguiu aos famosos assassinatos dos Greenes (1). A orgia de horror na velha mansão havia chegado a um fim surpreendente no mês de dezembro, tendo Vance ido à Suíça, depois das festas de Natal, para dedicar-se aos desportos de inverno. Voltando a Nova York, em fins de fevereiro, aplicou-se a um trabalho literário que, há muito tempo, planejara: à tradução dos principais fragmentos de Menandro, encontrados nos papiros egípcios em princípios do atual século.

Durante mais de um mês, esteve ele trabalhando diligentemente nessa tarefa ingrata. Se a teria completado ou não, eu não posso dizer. Vance era um homem culto, cujo espírito de investigação e aventura intelectual estava constantemente em contraste com o trabalho necessário para a criação escolástica. Recordo-me de que, no ano anterior, começara a escrever a vida de Xenofonte, resultado do entusiasmo do seu tempo de universitário, quando pela primeira vez leu a Anabasis e a Memorabilia, perdendo o interesse pelo aludido trabalho, quando chegou ao episódio histórico em que Xenofonte conduz os Dez Mil de volta para o mar. Entretanto, poderei assegurar que a tradução de Menandro foi bruscamente interrompida em princípios de abril, e, durante algumas semanas, ele se deixou absorver pelo misterioso crime que levou o país inteiro a um estado de horrível excitação.

(1) Relato em A Série Sangrenta, do mesmo autor. Dist. Record.


Essa nova investigação criminal em que ele atuou como uma espécie de amicus curiae de John F. X. Markham, procurador do distrito judicial de Nova York, imediatamente se tornou conhecida pela designação de "os misteriosos crimes do Bispo". A designação, resultado do nosso instinto jornalístico de pôr rótulo em qualquer cause célebre, era de certo modo inadequada. Não existia nada de eclesiástico acerca dessa campiresca saturnal de crimes que fez com que uma inteira comunidade lesse as Melodias de Mama Goose, com temerosa apreensão (2).

(2) Durante um período de várias semanas venderam-se mais exemplares das Melodias de Mama Goose que de qualquer novela. Uma das casas editoras menores tornou a imprimir e vendeu por completo a edição dessas velhas e famosas rimas infantis.

E ninguém, de nome Bispo, estava, pelo que eu sei, nem sequer remotamente relacionado com os sucessos monstruosos que deram lugar a essa denominação. Contudo, a palavra Bispo era apropriada por ser o nome suposto empregado pelo assassino para seus tenebrosos propósitos. Aliás, foi este nome que por fim conduziu Vance à mais incrível das verdades, terminando assim um dos mais espantosos crimes em série da história policial.

A série de acontecimentos sobrenaturais e aparentemente não relacionados que constituíam o "caso Bispo" e que fizeram com que Vance se esquecesse de Menandro e dos monásticos gregos teve seu início na manhã de 2 de abril, perto de cinco meses depois do duplo assassinato de Julia e Ada Greene. Era um desses dias primaveris temperados e formosos que, às vezes, em princípios de abril, favorecem Nova York. Vance estava fazendo o seu desjejum no pequeno jardim do terraço da sua casa da Rua 38, Leste. Era quase meio-dia, pois ele trabalhava ou lia até altas horas da noite, levantando-se por conseguinte muito tarde. O sol, que caía de um céu azul sem nuvens, estendia um manto de letargia sobre a cidade. Vance, esparramado em uma poltrona, com seu desjejum ao lado numa mesinha baixa, olhava com céptico e saudoso olhar as copas das árvores do pátio.

Eu sabia que seu espírito maquinava. Era seu costume ir todas as primaveras à França; e, há muito tempo, havia pensado como pensara George Moore, que Paris e maio eram cousas correlatas. Porém, a grande corrente de nouveaux riches americanos de após-guerra, em Paris, tirou-lhe o prazer dessa peregrinação anual; e, no dia anterior, informara-me que este verão passaríamos em Nova York.

Há muitos anos que sou amigo de Vance, além de conselheiro legal, uma espécie de administrador financeiro e agente. Abandonei a firma de advocacia de meu pai, Van Dine, Davis Van Dine, para dedicar-me inteiramente aos seus interesses, posição que era muito mais de meu gosto que a de advogado em um escritório mal ventilado; e, embora meus aposentos de solteiro fossem num hotel do West Side, eu passava a maior parte do tempo nos aposentos de Vance.

Aquela manhã, eu havia chegado cedo, muito antes de Vance se levantar, para revisar as contas de fim de mês. Agora, enquanto ele almoçava, eu fumava preguiçosamente meu cachimbo.

— Como suporá você, Van — disseme ele com sua enunciação lenta e insensível — a perspectiva da primavera e do verão em Nova York nem é excitante nem romântica. Vai ser enfadonho. Entretanto, será menos incômodo que viajar pela Europa com aquele bando de turistas vulgares, acotovelando-se com eles em cada esquina... É muito penoso.

Nada suspeitava ele do que se lhe havia reservado para as semanas próximas. Se ele o soubesse de antemão, nem a mais brilhante primavera em Paris o faria deixar o país; pois não havia nada que mais agradasse a seu insaciável espírito do que um problema complicado. E enquanto me falava aquela manhã, os deuses que presidiam ao seu destino lhe estavam preparando um estranho e fascinante enigma, que iria eletrizar profundamente toda a nação e acrescentar aos anais do crime um novo e terrível capítulo.

Mal Vance acabara de encher sua segunda xícara de café, Currie, seu velho mordomo inglês e jactatum geral, apareceu à porta francesa com um telefone portátil.

— É o senhor Markham, — disse o velho em tom de desculpa. — Como parecia ter urgência, tomei a liberdade de comunicar-lhe que o senhor estava em casa.

Ligou o telefone ao comutador e colocou o aparelho sobre a mesa onde estava a refeição.

— Está bem, Currie, — murmurou Vance segurando o receptor. — Qualquer coisa é boa para romper esta monotonia.

A seguir falou a Markham.

— Diga-me, companheiro, você nunca dorme? Estou terminando uma omelette aux fines herbes. É servido? Ou prefere ouvir a música de minha voz?

Deteve-se bruscamente, e o aspecto trocista desapareceu de seu rosto magro. Vance era o tipo característico do homem nórdico, de face larga e agudamente cinzelada; olhos cinzentos muito separados; nariz delgado e aquilino e um queixo ovalado; boca enérgica e bem cortada, porém com um ar de crueldade e cepticismo que era antes do Mediterrâneo. Seu rosto forte e atraente não era exatamente belo; era antes um rosto de pensador e de monge; e sua própria austeridade, ao mesmo tempo, de um estudioso e introspectivo, constituía como que uma barreira entre ele e seus companheiros. Embora fosse por natureza impassível e cuidadosamente disciplinado na repressão das suas emoções, notei que, enquanto ele escutava Markham no telefone aquela manhã, não podia inteiramente ocultar seu interesse veemente no que lhe diziam. Suas sobrancelhas estavam ligeiramente franzidas e seus olhos refletiam seu assombro interno. De vez em quando, deixava escapar um "Surpreendente!", um "Diabo!" ou um "Extraordinário!" — suas exclamações prediletas. E, quando depois de alguns minutos falou a Markham, uma excitação curiosa assinalava suas maneiras.

— Oh, de nenhum modo! — disse ele. — Não o deixaria nem por todas as comédias perdidas de Menandro... parece loucura. Imediatamente, vou-me vestir já... Au revoir.

Largando o receptor, tocou a campainha para chamar Currie.

— Minha roupa cinzenta — ordenou ele. — Uma gravata escura e meu chapéu.

E voltou à sua omelette, mas já com ar preocupado.

Ao fim de alguns minutos, mirou-me zombeteiramente.

— Que sabe você de arco e flecha, Vance? — perguntou ele.

Tudo o que eu sabia era que consistia em atirar flechas em alvos, e foi o que lhe confessei.

— Não se pode dizer que é muito o que você sabe. — Acendeu indolentemente um cigarro Régie. — Contudo, parece que estamos metidos em um caso de toxofilia. Eu tampouco sou uma autoridade no assunto, porém em Oxford pratiquei um pouco esse esporte. Não é um passatempo apaixonadamente excitante, é muito mais insípido que o golfe e tão complicado como este.

Durante momentos fumou como em sonhos.

— Van, quer ir buscar na biblioteca o volume do Dr. Elmer sobre Balística? Faça-me esta fineza.

Trouxe-lhe o livro, e durante quase meia hora ele mergulhou na sua leitura detendo-se nos capítulos sobre associações de arqueiros, torneios e encontros, e examinando as longas tabelas dos melhores pontos americanos.

Finalmente recostou-se na sua cadeira. Era evidente que havia encontrado algo que o abalara e que pôs em atividade seu sensível espírito.

— É uma loucura, Van — observou com os olhos fixos no espaço. — Uma tragédia medieval na moderna Nova York! Não usamos mais botas nem gibões de couro, e não obstante... Puxa! — Subitamente se empertigou em sua cadeira: — Não..., não! É absurdo. Não devo deixar que as tolas notícias de Markham se apoderem de mim... — Bebeu mais uns goles de café, porém sua expressão me revelou que não podia desprender-se da obsessão que se havia infiltrado em seu cérebro.

— Outro favor mais, Van — disse ao fim de uns minutos. — Traga-me o dicionário alemão e o livro de Versos Domésticos de Burton E. Stevenson.

Quando eu os trouxe, procurou uma palavra no dicionário e o colocou de lado.

— É infelizmente isto mesmo... embora eu já estivesse bem certo a respeito.

Em seguida, examinou a seção da gigantesca antologia de Stevenson dedicada às rimas infantis. Não tardou muito a fechar também este livro, e, estirando-se na sua cadeira, lançou uma larga baforada de fumo até o toldo que cobria o terraço. — Não pode ser — protestou, como para si mesmo. — É demasiado fantástico, demasiado diabólico, demasiado absurdo. Um conto de fadas sangrento... um mundo em anamorfose... uma perversão de toda a racionalidade. É inimaginável, insensato, semelhante à magia negra, à feitiçaria, à taumaturgia. É decididamente uma loucura.

Olhou seu relógio e levantando-se entrou em casa, deixando-me a especular vagamente sobre a causa da sua inusitada agitação.

Um tratado sobre balística, um dicionário alemão, uma coleção de versos infantis e as incompreensíveis expressões de Vance acerca da loucura e da fantasia... que relações podiam existir em tudo isso?

Tentei encontrar um denominador comum, porém sem o menor sucesso. Não é de estranhar que eu tenha fracassado. Mesmo a verdade, quando apareceu semanas depois apoiada em um conjunto de provas incontestáveis, parecia demasiado incrível e demasiado perversa para ser aceita pelo espírito humano em estado normal.

Pouco depois, ele interrompeu minhas inúteis especulações. Vestia traje de passeio e parecia impaciente pela demora de Markham.

— É verdade que eu necessitava de algo que me interessasse... um crime requintado e fascinante, por exemplo — observou ele — mas, por Deus, não desejava um pesadelo. Se eu não conhecesse Markham tão bem, diria que ele exagerava.

Quando, minutos depois, Markham entrava no terraço, podia observar-se a sua sinceridade. A expressão da sua fisionomia era sombria e revelava preocupação. Sua saudação habitualmente cordial ele a reduziu à mais simples cortesia formal. Markham e Vance eram amigos íntimos há quinze anos. Embora de naturezas opostas: um severamente agressivo, brusco, sincero e quase rudemente grave e o outro caprichoso, céptico, afável, alheio às inquietações passageiras da vida — encontraram, porém, entre si a atração complementar que, muita vez, forma a base de uma amizade inseparável e duradoura.

Durante o tempo em que Markham desempenhou as funções de procurador do distrito de Nova York, chamava sempre Vance para conferenciar sobre assuntos de grave importância, e, em todos os casos, Vance justificava a confiança por ele depositada em suas opiniões. É indubitável que a Vance compete quase que exclusivamente o mérito de ter resolvido grande número dos maiores crimes ocorridos durante os quatro anos em que Markham esteve no exercício das suas funções.

Seu conhecimento da natureza humana, seus amplos estudos e realizações culturais, o sutil senso lógico e o amor pela verdade oculta sob aparências enganadoras, tudo o capacitava para a tarefa que realizava não oficialmente, nos casos que caíam sob a jurisdição de Markham.

O primeiro caso de Vance, como devem estar lembrados, prendia-se ao assassinato de Alvin Benson (1). E, se não fosse a sua participação nesse caso, duvido de que a verdade sobre o mesmo tivesse vindo à luz. Logo se seguiu o atroz estrangulamento de Margarida Odell (2), assassinato misterioso, em que os métodos ordinários de investigação policial teriam fracassado inevitavelmente. E, no ano passado, o surpreendente assassinato dos Greenes (ao qual anteriormente já me referi) que ficaria impune, se Vance não frustrasse a tentativa final do assassino. Não era de estranhar, portanto, que Markham procurasse Vance desde o início dos misteriosos crimes do Bispo. Eu havia notado que cada vez ele dependia mais de Philo para suas investigações criminais. E, no caso presente, teve sorte em recorrer a Vance, pois só através de um conhecimento profundo das manifestações psicológicas anormais do espírito humano, tal como possuía Vance, podia ter sido destrinçada aquela tétrica e louca conspiração e descoberto o seu autor.

(1) O Caso Benson.

(2) O Crime da Canária.

 

— Pode acontecer que tudo isto não seja como eu penso — disse Markham sem convicção. — Mas pensei que poderia interessá-lo...

— Oh, inteiramente! — exclamou Vance e dirigiu a Markham um sorriso sardônico... — Sente-se e conte-me o caso tranqüilamente. O cadáver não fugirá. E é necessário que ponhamos tudo em ordens antes de vermos o corpo. Assim, por exemplo — quem são os interessados da primeira parte? E por que a intervenção da procuradoria do distrito, em um caso de assassinato, uma hora depois da morte do indivíduo? Tudo o que você me disse até agora se reduz à maior das tolices.

Markham sentou-se sombriamente à borda de uma cadeira e olhou a extremidade do seu charuto.

— Caramba, Vance! Não comece com atitudes misteriosas de Ugolfo. O crime, se é que o há, está bastante claro. Admitirei que é um assassinato nada vulgar; porém, certamente, não é insensato. Ultimamente o arco-e-flecha tem tido grande incremento. Não há cidade, nem colégio onde não se pratique esse esporte.

— Concordo. Todavia, desde muito tempo não se costuma matar indivíduos que se chamem Robin.

Os olhos de Markham semicerraram-se e puseram-se a observar Vance interrogativamente.

— Ocorreu a você também esta idéia?

— Se ocorreu a mim? Saltou-me no espírito, assim que você pronunciou o nome da vítima. — Vance tirou umas baforadas de seu cigarro. — "Quem matou Cock Robin?" E com um arco e uma flecha!... É interessante como esses versinhos aprendidos na infância gravam-se na memória. E, a propósito, como se chama o infortunado Sr. Robin?

— Creio que Joseph.

— Nem edificante, nem sugestivo.

— Algum outro nome mais?

— Vamos, Vance, — disse Markham, ao mesmo tempo que se levantava nervosamente. — Que tem que ver com o caso o outro nome da vítima?

— Não sei. Entretanto, como estamos ficando loucos, é melhor que o fiquemos de todo. De nada nos servirá um pouquinho de sensatez.

Apertou a campainha para chamar Currie. Logo que este atendeu, pediu-lhe Vance a lista telefônica. Markham protestou, porém Vance fingiu que não ouviu. De posse do guia, começou a folheá-lo durante minutos.

— A vítima morava em Riverside Drive? — perguntou por fim, assinalando com o dedo um nome.

— Creio que sim.

— Está bem! — Vance fechou o livro e fixou no procurador do distrito um olhar burlesco e triunfante.

— Markham — disse lentamente — há um único Joseph Robin na lista telefônica. Vive em Riverside Drive e seu nome é Cochrane!

— Que tolice é esta? — O tom de voz de Markham era quase feroz. — Suponhamos que se chamasse Cochrane: quer você seriamente insinuar que esse fato influirá em seu assassinato?

— Dou-lhe a minha palavra que não insinuo nada — disse Vance, encolhendo ligeiramente os ombros. — Estou apenas anotando uns quantos fatos relacionados com o assunto. Até agora isto se apresenta assim: — O Sr. Joseph Cochrane Robin, isto é, Cock Robin... foi morto por um flechaço. Não lhe diz seu espírito legal que isto é algo verdadeiramente raro?

— Não! — retrucou Markham. — O nome da vítima é certamente muito vulgar. E o que mais me surpreende é que não tenham morto mais pessoas com este ressurgimento do esporte do arco-e-flecha em todo o país. Além disto, é de todo possível que a morte de Robin tenha sido causada por um acidente.

— Oh! Caramba! — e Vance meneou a cabeça em sinal de desaprovação. — Embora fosse assim, isto não melhoraria em nada a situação. Só a tornaria mais singular. Entre todos os milhares de entusiastas do arco que habitam nosso belo país, havia de ser precisamente o chamado Cock Robin quem caísse morto por um flechaço! Semelhante suposição nos conduziria ao espiritismo e à demoniologia, ou a qualquer outra cousa. Por acaso, crê você nos Eblises, Azazels e Jinas que vão pelo mundo adiante pregando peças satânicas à humanidade?

— Devo ser um mitólogo maometano para admitir coincidências? — replicou Markham asperamente.

— Meu prezado amigo! O braço proverbialmente comprido da Providência não se estende ao infinito. Há, além disto, leis de probabilidades baseadas em fórmulas matemáticas bem definidas. Entristecer-me-ia pensar que homens como Laplace (1), Czuber e Von Kries tivessem vivido em vão.

(1) Embora Laplace seja mais conhecido por sua Mecânica Celeste, Vance referia-se aqui à sua magistral obra Teoria Analítica das Probabilidades.


A situação presente, entretanto, é mais complicada do que você suspeita. Por exemplo, você mencionou pelo telefone que a última pessoa, que se sabe esteve com Robin antes de sua morte, é um Sperling.

— E que significação esotérica encerra esse pormenor?

— Talvez você saiba o que quer dizer Sperling em alemão — sugeriu Vance delicadamente.

— Freqüentei o ginásio — retrucou Markham. Seus olhos abriram-se um pouco e ele empertigou o corpo.

Vance empurrou o dicionário alemão para junto dele.

— Em todo caso, procure a palavra. O saber não ocupa lugar. Eu já a procurei. Temia que minha memória me enganasse e nasceu em mim o desejo de ver a palavra em letra de forma.

Markham abriu o livro em silêncio e percorreu a página com a vista. Ao cabo de uns instantes, ergueu-se resolutamente, como se lutasse para resistir a uma tentação. Quando falou, a sua voz era um desafio.

— Sperling quer dizer pardal. Qualquer escolar o sabe. E o que tem isto?

— Oh, nada! — Vance languidamente acendeu outro cigarro. — Qualquer escolar também conhece as velhas rimas da infância intituladas "A morte e o enterro de Cock Robin". Que me diz você a isto? — Olhou para Markham atormentadoramente, enquanto este se conservava imóvel, dirigindo o olhar para o sol primaveril. — Já que você aparentou não estar familiarizado com esse clássico da infância, permita-me que lhe recite a primeira estrofe.

Um arrepio, como de alguma aparição espectral, passou por mim no momento em que Vance repetia aqueles velhos versos familiares:


"Quem matou Cock Robin?

"Eu" — disse o pardal.

"Com meu arco e flecha

"Eu matei Cock Robin."


II

 

NA MIRA DA FLECHA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 12h30)

 


Vagarosamente Markham voltou os olhos para Vance.

— Ê loucura — observou ele, como um homem que enfrenta algo inexplicável e horrendo.

— Ora! Ora! — manifestou Vance sacudindo vivamente a mão. — Isto é um plágio. Eu o disse primeiro. (Estava-se esforçando por dominar seu próprio sentimento de perplexidade, tomando uma atitude frívola.) — Não seria estranho que houvesse uma inamorata que chorasse a morte do Sr. Robin. Recorda-se talvez da estrofe:


"Quem será a principal carpideira?

"Eu" — disse a pomba;

"Lamento o meu amor perdido;

"Eu serei a principal carpideira."


Markham sacudiu a cabeça ligeiramente, enquanto nervosamente tamborilava sobre a mesa.

— Por Deus, Vance! Neste assunto intervém uma moça, existindo, portanto, uma possibilidade de que o ciúme tenha sido a causa do crime.

— Imagine isto, agora! Receio que o caso se transforme em uma espécie de tableau vivant para adultos que freqüentem o jardim de infância — que me diz? Mas isto fará com que nossa tarefa seja mais fácil. Tudo o que teremos de fazer é encontrar a mosca.

— A mosca?

— A Musca domestica, para falar pedantemente... Meu caro Markham, você se esqueceu?


"Quem o viu morrer?

"Eu" — disse a mosca.

"Com meus olhinhos

"Eu o vi morrer."


— Desça do seu reino de fantasia — disse Markham acerbamente. — Isto não é um brinquedo de crianças! É um assunto terrivelmente sério.

Vance meneou a cabeça distraidamente.

— Os brinquedos de criança são, às vezes, os assuntos mais sérios da vida. — Suas palavras tinham um tom distante e curioso. — Não me agrada isto... não me agrada absolutamente. Há muito de infantil nisto... de criança que nasceu velha e com um cérebro enfermo. É como uma perversão odiosa. — Aspirou profundamente o fumo de seu cigarro e fez uma ligeira careta de repugnância. — Dê-me os pormenores, vejamos onde nos encontramos nesta terra transtornada.

Markham sentou-se novamente.

— Tenho poucos pormenores. Praticamente, pelo telefone lhe disse tudo quanto sei. O velho professor Dillard chamou-me pouco tempo antes de eu ter falado com você.

— Dillard? Porventura o professor Bertrand Dillard?

— Sim, a tragédia passou-se em sua casa. Conhece-o?

— Pessoalmente, não. Conheço-o como o conhece o mundo científico... Como um dos maiores matemáticos do mundo. Tenho quase todos os seus livros. Mas, como aconteceu que ele o chamasse?

— Conheço-o há quase vinte anos. Na Universidade de Columbia foi meu professor de matemática e, mais tarde, fiz alguns trabalhos forenses para ele. Quando se encontrou o corpo de Robin, telefonou-me imediatamente... cerca de onze e meia. Chamei o sargento Heath, da Seção de Homicídios, e entreguei-lhe o caso... embora dissesse que, mais tarde, iria pessoalmente. Em seguida, telefonei a você. O sargento e seus homens esperam-nos na casa de Dillard.

— Qual é a situação doméstica do professor?

— Como você deve saber, ele renunciou à sua cátedra há uns dez anos. Desde essa época mora na Rua 75, Oeste, perto do Drive. Levou consigo para a sua casa a filha de um irmão, menina de quinze anos. Agora provavelmente terá vinte e cinco anos. Com eles vive o seu protegido Sigurd Arnesson, que foi meu condiscípulo na faculdade. O professor adotou-o, quando ele estava completando os seus estudos. Arnesson tem agora uns quarenta anos. É monitor de matemática em Colúmbia. Veio da Noruega com três anos de idade, ficando órfão cinco anos depois. É um matemático genial, e provavelmente Dillard viu nele um futuro grande físico e adotou-o.

— Já ouvi falar de Arnesson — observou Vance. — Recentemente publicou algumas modificações sobre a teoria de Mie a respeito da eletrodinâmica dos corpos em movimento... E estes três... Dillard, Arnesson e a moça vivem sós?

— Com dois criados. Ao que parece, Dillard tem uma renda bem apreciável. Entretanto, não estão muito sós. A casa é uma espécie de templo de matemáticos; tornou-se mesmo um cenáculo. Além disto, a moça, que sempre se dedicou aos desportos ao ar livre, tem o seu próprio círculo social. Estive lá várias vezes, e sempre encontrei visitas: um ou dois estudantes de ciências abstratas distraídos na biblioteca, ou alguns jovens barulhentos embaixo na sala.

— E Robin?

— Era amigo de Belle Dillard... jovem excêntrico, pertencente à alta sociedade e que possuía vários recordes de tiro de flecha...

— Sim, já sei. Vi o nome dele neste tratado. Um tal J. C. Robin parece ter feito os mais altos pontos em vários campeonatos recentes. Notei também que um Sr. Sperling foi o que mais se aproximou dele em vários grandes torneios. A Srta. Dillard é amante do esporte?

— Sim. É muito entusiasta. Na realidade, foi ela que organizou o Clube de Arco e Flecha do Riverside. Suas linhas de tiro permanentes estão localizadas na casa de Sperling, em Scarsdale; mas a Srta. Dillard preparou um lugar de exercício no pátio lateral da casa do professor, na Rua 75. Foi nesse lugar que mataram Robin.

— Ah! E, segundo você, a última pessoa que se sabe ter estado com ele foi Sperling. Onde está agora o nosso pardal?

— Não sei. Ele esteve com Robin, pouco tempo antes da tragédia; porém, quando o cadáver foi encontrado, já havia desaparecido. Espero que Heath tenha novidades sobre este ponto.

— E onde se acha o possível motivo de ciúmes, a que você se referiu? — As pálpebras de Vance caíram indolentemente e ele fumava com deliberada lentidão. Isto era sinal de que o assunto lhe interessava muitíssimo.

— O professor Dillard mencionou que havia simpatia entre sua sobrinha e Robin; e, quando lhe perguntei quem era Sperling e qual a sua posição na casa, o professor insinuou que ele pretendia a mão da moça. Não quis entrar em pormenores pelo telefone, porém a impressão que tive é que Sperling e Robin eram rivais, e que este último levava vantagem na luta.

— E assim o pardal matou Cock Robin. — Vance meneou a cabeça em sinal de dúvida. — Não basta. É demasiado simples e não corresponde à reconstrução diabolicamente perfeita dos versos de Cock Robin. Há algo mais profundo... algo mais sombrio e mais terrível nesse assunto grotesco. E, a propósito, quem encontrou Robin?

— O próprio Dillard. Este havia assomado ao pequeno balcão que há atrás da casa e foi então que o viu no chão, no lugar onde praticavam o jogo de flecha. Imediatamente desceu... com considerável dificuldade, pois o velho sofre horrivelmente da gota... e viu que o homem tinha o coração atravessado por uma flecha. Foi então que me telefonou. Isto é tudo que lhe posso adiantar até agora.

— Não poderíamos dizer que isto traz muita luz, porém é um tanto sugestivo. — Vance levantou-se. — Markham, meu velho amigo, prepare-se para algo bem bizarro... e odioso. Podemos já eliminar hipóteses de acidentes e coincidências. Conquanto seja verdade que as flechas comuns para atirar ao alvo sejam feitas de madeira flexível e providas de pequenas pontas chanfradas, podem facilmente penetrar a roupa de uma pessoa e o tórax mesmo, ainda quando impulsionadas por um arco de peso mediano, todavia o fato de ter um homem chamado "Pardal" matado outro de nome Cochrane Robin, com um arco e uma flecha, exclui qualquer idéia de concatenação fortuita de circunstâncias. Certamente, esta incrível série de acontecimentos prova concludentemente que houve um desígnio sutil e diabólico neste caso. — Encaminhou-se até a porta. — Venha, procuremos achar alguma coisa mais no lugar que a polícia austríaca eruditamente chama de situs criminis.

Saímos em seguida, dirigindo-nos ao centro da cidade no carro de Markham. Cruzando o Parque Central, saímos pelo portão da Rua 72, dobrando minutos mais tarde pela West End Avenue para entrar na Rua 75. A casa de Dillard, nº 391, estava à nossa direita, bem distante, na direção do rio. Entre este e o Drive, ocupando toda a esquina, se erguia um prédio de apartamentos de quinze andares. A casa do professor parecia abrigar-se como em busca de proteção, à sombra desse enorme edifício.

A casa de Dillard era de pedra cinzenta, enegrecida pela ação do tempo. Pertencia aos dias em que as casas eram construídas para que durassem e fossem cômodas. O terreno sobre que ela se erguia tinha 10 metros de frente, dos quais oito eram ocupados pela casa. O resto formava uma superfície que separava a casa de Dillard do edifício de apartamentos e estava isolada da rua por um muro de pedra, em cuja parte central havia um portão de ferro.

A casa era de arquitetura colonial modificada. Uma pequena escada conduzia da rua a um pórtico estreito revestido de ladrilhos e guarnecido com quatro colunas brancas corintianas. No segundo andar, havia uma série de janelas de batente com vidros retangulares, que ocupavam toda a frente da casa. (Estas, segundo soube mais tarde, eram as janelas da biblioteca.) O lugar dava a sensação de repouso e tranqüilidade; parecia tudo, menos o teatro de um horrendo crime.

Perto da porta de entrada, quando nós chegamos, já estavam dois carros da polícia e, ao redor deles, uma dúzia de curiosos. Um dos agentes de polícia estava encostado a uma das colunas estriadas do pórtico, olhando com desdém aborrecido os curiosos que se mantinham na sua frente. Um velho mordomo nos fez passar, conduzindo-nos à sala situada à esquerda do vestíbulo de entrada. Ali encontramos o sargento Ernest Heath com outros dois indivíduos da Seção dos Homicídios. O sargento, que estava de pé junto à mesa do centro fumando, com os dedos metidos na cava do colete, adiantou-se, estendendo amistosamente a mão a Markham.

— Alegro-me por ter vindo, senhor — disse ele; e a expressão atribulada dos seus olhos azuis parecia relaxar-se um pouco. — Estava à espera do senhor. Há alguma cousa que cheira a mistério neste caso.

Ao avistar Vance, que se havia conservado atrás, suas feições amplas e belicosas se enrugaram em um sorriso bem-humorado.

— Como vai, Sr. Vance? Tinha uma ligeira idéia de que isto ia-lhe interessar. Por onde tem andado todo esse tempo?

Não pude deixar de comparar esta cordialidade espontânea do sargento com a hostilidade de seu primeiro encontro com Vance, no caso Benson. Mas muita água havia passado sob a ponte desde o dia em que se viram na deslumbrante sala em que se deu o assassinato de Alvin; e entre Heath e Vance se havia desenvolvido uma boa amizade, baseada em um respeito mútuo e em uma franca admiração pelas capacidades um do outro.

Vance estendeu a mão e um sorriso pairou na comissura dos seus lábios.

— A verdade é, sargento, que tenho estado procurando as glórias perdidas de um ateniense chamado Menandro, rival dramático de Filêmon. Tolice, não é?

Heath grunhiu desdenhosamente.

— Bem, de qualquer forma, se o senhor é tão bom nisso como o é em descobrir assassinos, não duvido de que obterá êxito.

Este foi o primeiro elogio que ouvi de seus lábios e que confirmava não só a sua admiração profundamente arraigada por Vance, como também a preocupação e incerteza de seu estado mental.

Markham, percebendo essa insegurança mental do sargento, perguntou-lhe abruptamente:

— Qual parece ser a dificuldade no caso presente?

— Eu não disse que havia dificuldade, senhor — replicou Heath. — Parece-me que o pássaro que cometeu o crime está engaiolado. Entretanto, não estou satisfeito e... oh, diabo! Sr. Markham... não é natural, é contra o bom senso.

— Penso entender o que você quer dizer. — Markham observou o sargento atentamente. — Você está inclinado a crer na culpabilidade de Sperling?

— Seguramente, ele é o culpado — declarou Heath sem vacilar. — Porém, não é isto o que me preocupa. Ser-lhe-ei franco, não me agrada o nome da vítima... especialmente como foi assassinada... com arco e flecha... — Hesitou um pouco envergonhado. — Não lhe parece estranho?

Markham meneou a cabeça com perplexidade.

— Vejo que vocês dois se recordam dos versos da infância — disse ele, dando-lhes as costas.

Vance fixou um olhar zombeteiro em Heath.

— Você acaba de referir-se a "Sperling" como se fosse um "pássaro", sargento. A designação não pode ser melhor. Sperling quer dizer, em alemão, "pardal". E você se recorda de que foi um pardal quem matou Cock Robin com uma flecha... Uma situação fascinante, não é verdade?

Os olhos do sargento se abriram ligeiramente e seus lábios se separaram. Olhou para Vance com quase ridículo aturdimento.

— Eu disse que este negócio cheirava a mistério!

— Eu diria, antes, a ave.

— O senhor o chamaria alguma coisa que ninguém compreendesse — replicou Heath truculentamente. Era seu costume tornar-se belicoso, quando se achava diante de algo inexplicável.

Markham interveio diplomaticamente.

— Dê-nos os pormenores do caso, sargento. Suponho que tenha interrogado os moradores da casa.

— Só de um modo geral, senhor. — Heath descansou a perna em um ângulo da mesa e reacendeu seu charuto. — Estava esperando que o senhor chegasse para descerrar o véu. Sabia que o senhor era amigo do velho que está lá em cima. Assim não fiz mais do que o rotineiro. Destaquei um agente para fora, no corredor, para que ninguém toque no cadáver até chegar o doutor Doremus (1) — ele estará aqui depois do almoço. Telefonei para a Seção de Datiloscopia para que mandem peritos, que não tardarão a pôr-se em atividade, embora eu não veja o que de útil poderão fazer...

(1) Heath referia-se ao Dr. Emanuel Doremus, médico inspetor da polícia de Nova York.


— Que me diz do arco que desferiu a flecha? — perguntou Vance.

— Esse seria o nosso melhor indício, se o velho Sr. Dillard não o recolhesse e guardasse em casa. Provavelmente, destruiu todos os sinais que pudesse ter.

— Que é que você fez sobre Sperling? — perguntou Markham.

— Consegui seu endereço. Vive em uma casa de campo no caminho de Westchester. Enviei dois homens para que o detenham. Também falei com os dois criados; o velho que lhes abriu a porta e sua filha, uma mulher de meia-idade, que é cozinheira. Porém, nenhum deles sabia nada, ou aparentavam não saber. Em seguida, tratei de interrogar a jovem dona da casa. — O sargento levantou a mão num gesto de desespero. — Mas ela estava tão abatida e chorosa que pensei em deixar ao senhor o prazer de interrogá-la. Snitkin e Burke — apontou com o indicador os dois detetives destacados na janela da frente — foram ao porão, ao corredor e ao pátio dos fundos para ver se recolhiam algo. Obtiveram um resultado negativo. É isso tudo o que até agora pude averiguar. Assim que Doremus e os peritos da Seção de Datiloscopia cheguem e uma vez que eu tenha falado com Sperling, então farei girar a bola e esclarecerei o assunto.

Vance lançou um suspiro perceptível.

— Você é muito otimista, sargento! Não se desaponte se a bola se transformar num paralelepípedo e não rolar. Há alguma coisa diabòlicamente rara nesta extravagância infantil. E, a não ser que todos os prognósticos me enganem, você estará envolvido por muito tempo ainda, num jogo de cabra-cega.

— O quê? — Heath lançou a Vance um olhar entre rude e desanimado. Era evidente que tinha mais ou menos a mesma opinião.

— Não se deixe desencorajar por Vance, sargento — disse Markham, dando-lhe ânimo. — Não vê que ele está dando livre curso à imaginação? — Então com um gesto de impaciência voltou-se para a porta. — Examinemos o terreno antes que cheguem os outros. Falarei mais tarde com o professor Dillard e com os demais da casa. E, a propósito, sargento, você não nos falou a respeito de Arnesson. Ele não está em casa?

— Está na universidade, mas não tardará a chegar.

Markham meneou a cabeça e seguiu o sargento até o saguão principal. No momento em que passavam pelo corredor atapetado, produziu-se um ruído na escada, seguido da voz clara e trêmula de uma mulher que se achava em cima, na obscuridade.

— É o Sr. Markham? Meu tio pensou ter reconhecido sua voz. Ele o espera na biblioteca.

— Dentro de poucos minutos irei ter com seu tio, Srta. Dillard. — O modo de Markham era paternal e cheio de simpatia. — E faça o favor de esperar-me com ele, pois desejo também falar-lhe.

Com um murmúrio de aquiescência, desapareceu a moça no cimo da escada.

Encaminhamo-nos para a porta dos fundos do saguão inferior. Adiante havia uma passagem estreita que terminava nuns degraus de madeira que conduziam ao porão. Ao pé desses degraus, havia um grande compartimento de teto baixo com uma porta que dava diretamente para o terreno do lado ocidental da casa. A porta estava apenas encostada, deixando uma fresta pela qual se podia ver o homem que Heath havia destacado para cuidar do cadáver.

Indubitavelmente esse compartimento tinha sido uma adega; porém, fora bem alterado e convenientemente preparado e servia agora como sede do clube. O piso de cimento se achava coberto de esteiras e uma das paredes tinha uma pintura em que se viam os arqueiros através das idades. Em um painel oblongo, à esquerda, havia uma imensa reprodução ilustrada de um campo de tiro de flecha com a legenda "Ayme para arqueiros de Finsburie. Londres, 1594", vendo-se em um canto a colina Bloody House; no centro, o Westminster Hall e, em primeiro plano, o Welsh Hall. No quarto, havia um piano e uma vitrola, numerosas cadeiras de vime, um diva de cores variadas, uma mesa central de vime cheia de revistas desportivas de todas as classes e uma pequena biblioteca abarrotada de livros sobre arco-e-flecha. Vários alvos jaziam em um canto; seus discos dourados e seus anéis cromáticos concêntricos lançavam brilhantes reflexos, devido à luz do sol que inundava o compartimento pelas duras janelas de trás. Em um espaço da parede, perto da porta, pendiam largos arcos de tamanhos e pesos distintos, e, quase ao lado, podia ver-se uma grande arca antiga para ferramentas. Em cima se achava suspenso um pequeno armário cheio de fragmentos de braçais, luvas para atirar, estacas, alvos e cordas para arcos. Um mostruário de carvalho situado entre a porta e a janela exibia uma das coleções de flechas mais interessantes e variadas que eu tinha visto. Este mostruário atraiu particularmente Vance, que, ajustando cuidadosamente seu monóculo, se encaminhou para ele.

— Flechas de caça e de guerra — observou ele. — A maioria coberta com um véu... Ah! Um dos troféus parece haver desaparecido. E, além disso, arrancado com uma pressa considerável. O pequeno prego de bronze que o sustinha em seu lugar está dobrado.

No chão havia várias aljavas cheias de flechas. Inclinou-se e, pegando uma, entregou-a a Markham.

— Esta seta de junco não parece que pudesse penetrar no peito humano e, não obstante, atravessa um veado a uns oitenta metros de distância. Por que então a flecha de caça falta no mostruário? É um pormenor interessante.

Markham franziu as sobrancelhas e apertou os lábios; e eu me lembrei de que ele tinha estado aferrado à idéia de um acidente... Arrojou a flecha desconsoladamente em uma cadeira e caminhou até a porta que dava para fora do aposento.

— Examinemos o cadáver e o terreno — disse ele asperamente.

Quando saímos à fraca luz solar da primavera, sobreveio-me uma sensação de isolamento. A estreita área calçada, em que nos encontrávamos, parecia um canyon entre empinados muros de pedra. Estava cerca de metro e meio abaixo do nível da rua, a que se chegava por uma escada que subia até ao portão no muro. A parede posterior lisa e sem janelas do prédio de apartamentos se elevava até quarenta e cinco metros de altura; e o prédio de Dillard, embora só tivesse quatro andares, equivalia a seis, medidos pelos padrões arquiteturais de hoje em dia. Embora estivéssemos ao ar livre, em plena Nova York, ninguém podia ver-nos, exceto das poucas janelas laterais do prédio de Dillard e de um alpendre da casa da Rua 76, cujo pátio posterior limitava com o do terreno do professor.

Esta outra casa, não tardaríamos muito em saber que era de uma certa Sra. Drukker, e que estava destinada a desempenhar uma parte vital e trágica na solução do assassinato de Robin. Vários salgueiros altos ocultavam suas janelas dos fundos; e só do alpendre poderia observar-se aquela parte do terreno em que nos achávamos.

Eu notei que Vance não tirava a vista daquele alpendre e enquanto ele o estudava, vi passar pelo seu rosto um sinal de interesse. Não foi senão muito mais tarde que eu pude adivinhar o que havia chamado tanto a sua atenção.

O campo de exercícios de tiro de flecha se estendia desde a parede do lote de Dillard na Rua 75 até uma parede similar do lote dos Drukkers na Rua 76, onde uma pilha de fardos de feno tinha sido levantada sobre uma baixo leito de areia. A distância entre as duas paredes era de 30 metros, que, como soube depois, era suficiente para se poder praticar exercício de arco e assim preparar-se para qualquer concurso, com exceção do York Round para homens.

O lote de Dillard era de 40 metros de fundos, sendo por conseguinte o dos Drukkers de 20 metros. Uma seção da alta cerca de ferro que havia sido removida do lugar onde antes separava os dois lotes, permitiu que o terreno pudesse ser usado para o desporto da moda. Na extremidade mais afastada do terreno, situada contra a linha ocidental da linha da propriedade dos Drukkers, havia outro prédio de apartamentos, que ocupava a esquina da Rua 76 com Riverside Drive. Entre esses dois edifícios gigantescos, havia uma passagem estreita cuja extremidade posterior estava fechada por um alto muro com uma portinha com fechadura.

A fim de ser claro, incorporo a estas memórias um diagrama do escritório completo; pois a disposição dos vários detalhes topográficos e arquiteturais teve um sentido muito importante na solução do caso. Eu chamaria a atenção particularmente para os dois seguintes pontos: 1? — o balcãozinho do segundo andar na parte posterior da casa de Dillard que sobressai um pouco sobre o campo de exercício de tiro de flecha; 2? — o alpendre, no segundo andar da casa dos Drukkers, cujo ângulo meridional tem uma vista de todo o terreno até à Rua 75; e 3? — a passagem entre os dois prédios de apartamentos que vai desde o Riverside Drive até o pátio posterior do prédio de Dillard. O corpo de Robin jazia quase diretamente fora da porta do compartimento que servia de sede do clube. Estava de costas, com os braços estendidos, as pernas ligeiramente encolhidas, a cabeça virada para a extremidade do terreno que dá para a Rua 76. Robin era um homem talvez de 35 anos, de altura regular e corpulento. Havia uma inchação esférica em seu rosto todo barbeado, com exceção de um bigodinho fino e louro. Vestia traje esportivo de flanela cinzenta, camisa de seda azul-pálido e sapatos Oxford, amarelos, com sola de borracha. Perto dos pés estava o seu chapéu de feltro cor de pérola.

Junto do cadáver havia uma poça de sangue coagulado que tomara a forma de um grande ponteiro de relógio. Mas o que nos infundiu horror foi a seta delgada que se estendia verticalmente pelo lado esquerdo do peito da vítima. A flecha sobressaía uns cinqüenta centímetros, e pelo lugar de entrada se via a mancha grande e escura da hemorragia. E o que fez com que este estranho assassino parecesse ainda mais incongruente foram as belas plumas colocadas na flecha. Elas tinham sido coloridas de roxo claro; e perto da seta duas franjas azul-turquesa davam à flecha um aspecto de gala. Eu tinha uma sensação de irrealidade acerca da tragédia, como se estivesse presenciando uma cena em uma comédia pastoral para crianças. Vance permaneceu olhando o cadáver com os olhos semicerrados e as mãos nos bolsos do casaco. Apesar de sua aparente atitude de indolência, eu podia dizer que ele estava sutilmente alerta e que seu cérebro tratava de coordenar os fatores da cena que agora presenciava.

— Que coisa estranha essa flecha — comentou ele. — Foi feita para caça grande... indubitavelmente pertence àquela exposição etnológica que acabamos de ver. Em um golpe limpo... diretamente no ponto vital, entre as costelas, e sem o menor desvio. Extraordinário!... Diga, Markham, semelhante pontaria não é humana. Um tiro causai podia tê-la feito; porém, o assassino desse homem não deixou nada ao acaso. Essa poderosa flecha de caça que evidentemente foi arrancada da caixa indica premeditação e propósito... — Subitamente se inclinou sobre o cadáver. — Ah! Muito interessante. O punho da flecha está quebrado. Eu duvido que ele sustentasse a corda do arco estirada. — Virando-se para Heath. — Diga-me, sargento: Onde o professor Dillard encontrou o arco? Não longe da janela desse quarto, não é? Heath teve um sobressalto.

— Fora da janela, de fato, senhor Vance. Está agora sobre o piano esperando que cheguem os peritos da Seção de Datiloscopia.

— Receio que a única impressão digital que vão achar seja do professor Dillard. — Vance abriu sua cigarreira e tirou outro cigarro. — E estou quase inclinado a crer que a flecha propriamente está livre de impressões.

Heath perscrutava Vance inquisitivamente.

— Que lhe fez pensar que o arco fora encontrado perto da janela, Sr. Vance? — perguntou ele.

— Parecia o lugar lógico, em vista da posição do corpo do Sr. Robin, sabe?

— O senhor acha que ela foi disparada de curta distância?

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, sargento. Referia-me ao fato de que os pés da vítima se acham na direção da porta do porão, e que embora os braços estejam estendidos, as pernas estão encolhidas. Acredita você que um homem com o coração atravessado possa cair nessa posição?

Heath considerou a questão.

— Não — admitiu ele. — O mais provável é que estivesse encolhido, ou se caísse de costas, suas pernas estariam estiradas e os braços encolhidos.

— Exatamente! E olhe o chapéu. Se o homem tivesse caído de costas, o chapéu estaria atrás do morto e não a seus pés.

— Escute aqui, Vance, — interveio Markham rudemente. — Que pensa você?

— Oh! Muitíssimas coisas. Todas, porém, chegam à conclusão irracional de que esse cavalheiro não foi morto com arco e flecha.

— Então por que, em nome de Deus...

— Exatamente! Por que a insana manifestação desse elaborado jogo de cena?

— Palavra, Markham! Este negócio é espantoso.

Enquanto Vance falava, a porta do porão se abriu e o Dr. Doremus, guiado pelo detetive Burke, penetrou airoso na área. Saudou-os garbosamente, apertando-lhes as mãos. Logo olhou para Heath com displicência.

— Essa não, sargento. — Queixou-se ele, baixando seu chapéu até tomar um ângulo mais fechado que o usual. — Só dedico 3 horas das 24 para comer; e você escolhe invariavelmente essas 3 horas para molestar-me com seus malditos cadáveres. Você está arruinando a minha digestão. — Olhou a seu redor com petulância e, ao ver Robin, assoviou baixinho. — Por amor de Deus! Esta vez, sim, você escolheu um lindo assassinato.

Ajoelhou-se e começou a apalpar com os seus dedos práticos o corpo do morto. Markham se conservou olhando por um momento, mas voltando-se para Heath lhe disse:

— Enquanto o doutor estiver ocupado com o seu exame, sargento, subirei para falar com o professor Dillard. — Então dirigindo-se a Doremus: — Gostaria de vê-lo antes de ir, doutor.

— Oh, decerto, — respondeu Doremus sem olhar para cima. Ele havia virado o cadáver de lado e apalpava-lhe a base do crânio.


III

 

UMA PROFECIA RELEMBRADA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 13h30)

 


Quando entramos no salão principal, chegavam o capitão Dubois e o detetive Bellamy, peritos em impressões digitais. O detetive Snitkin, que, evidentemente, estava aguardando a chegada deles, conduziu-os logo para a escada do porão, e Markham, Vance e eu subimos ao segundo andar.

A biblioteca era um salão grande e luxuoso com seis metros de fundo pelo menos e ocupava toda a largura do edifício. Duas paredes laterais achavam-se tomadas até o teto de armários embutidos, e ao centro da parede do lado do ocidente elevava-se uma lareira de bronze maciço, estilo imperial. Ao lado da porta, encontrava-se um aparador bem trabalhado, estilo jacobino, e, fronteiro a este, perto da janela que dava para a Rua 75, havia uma enorme escrivaninha artisticamente trabalhada e coberta de papéis, jornais e folhetos. Havia muitos objetos de arte na sala; dois quadros de Dürer olhavam-nos dos painéis da tapeçaria do lado da prateleira da lareira. Todas as cadeiras eram amplas e cobertas de couro escuro.

O professor Dillard estava sentado defronte da escrivaninha, com um pé descansado em uma pequena otomana aveludada; e, em um canto perto da janela, estendida numa grande poltrona, estava sua sobrinha, moça vigorosa, trajando costume muito bem talhado, com feições fortes, esculturadas em molde clássico. O velho professor não se ergueu para saudar-nos e nem se desculpou por essa omissão. Parecia supor que todos já sabiam de sua fraqueza. As apresentações foram ligeiras, embora tivesse Markham dado uma breve explicação da presença de Vance e de mim ali.

— Eu lamento, Markham, — disse o professor, quando nós nos acomodamos — que uma tragédia seja o motivo desta reunião; todavia, sempre é agradável vê-lo. Suponho que queira interrogar a mim e a Belle. Bem, faça as perguntas que quiser.

O professor Bertrand Dillard era um homem que aparentava ter sessenta anos, ligeiramente curvado devido à vida sedentária e estudiosa que levava: braquicéfalo, rosto liso e com uma basta cabeleira branca penteada à Pompadour. Seus olhos, embora pequenos, eram notavelmente vivos e penetrantes; e as rugas ao redor da boca davam-lhe a expressão séria e grave resultante, muita vez, dos longos anos de concentração em problema difíceis. Suas feições eram as de um sonhador e cientista; e, como todo o mundo sabe, os sonhos extravagantes tidos por este homem sobre o espaço, o tempo e o movimento atualizaram-se dentro de nova base de fatos científicos. Mesmo agora, sua fisionomia espelhava uma abstração introspectiva, como se a morte de Robin fosse apenas uma intromissão no drama íntimo dos seus próprios pensamentos.

Markham hesitou por momentos, antes de se decidir. Então, falou com a maior deferência:

— Talvez queira o senhor contar exatamente o que sabe a respeito da tragédia. Depois farei as perguntas que julgar necessárias.

O professor Dillard estendeu a mão para segurar um velho cachimbo de espuma do mar que estava sobre uma estante a seu lado. Quando terminou de enchê-lo e o acendeu, acomodou-se melhor na cadeira.

— Já lhe disse pelo telefone tudo o que sei. Robin e Sperling vieram visitar Belle, hoje de manhã, pelas dez horas. Ela não estava, pois havia ido jogar tênis; assim os dois esperaram-na embaixo, na sala. Ouvi-os conversarem por espaço de meia hora, até que desceram para a sala do clube no porão. Eu me conservei aqui lendo durante uma hora talvez, ao cabo da qual, achando o sol tão agradável decidi-me a ir até a sacada que há nos fundos da casa. Acho que não haviam decorrido cinco minutos, quando por acaso olhei para baixo e vi, com grande espanto, Robin caído de costas na linha de tiro com uma flecha atravessada no coração. Desci o mais rapidamente que me permitia a minha gota, porém logo vi que o homem estava morto. Imediatamente fui ao telefone e comuniquei-me com você. Na ocasião, não havia ninguém em casa, a não ser o velho Pyne — o mordomo — e eu. A cozinheira tinha ido ao mercado. Arnesson tinha partido para a Universidade às 9 horas; e Belle ainda estava jogando tênis. Mandei Pyne procurar Sperling, mas este não foi encontrado em parte alguma, e eu voltei para a biblioteca a fim de esperá-lo. Belle voltou pouco antes da chegada do seu pessoal, e a cozinheira um pouco mais tarde. Arnesson não estará de volta antes das duas.

— Não havia ninguém mais esta manhã... nenhum estranho ou visitante?

O professor sacudiu a cabeça.

— Somente Drukker... Creio que você o viu uma vez aqui. Ele mora na casa que dá fundos para a nossa. Ele nos visita seguidamente... para ver quase sempre o Arnesson; têm muito de comum. Escreveu um livro sobre Ajustes Mundiais na Contínua Multidimensional. O homem é um sábio a seu modo. Tem o verdadeiro espírito científico. Quando soube que Arnesson não estava em casa, sentou-se um pouco comigo falando sobre a expedição ao Brasil da Real Sociedade de Astronomia. Logo se retirou para a casa.

— A que horas?

— Isto pelas nove e meia. Drukker já se havia ido embora, quando chegaram Robin e Sperling.

— É raro, professor Dillard, que o Sr. Arnesson saia aos sábados pela manhã? — perguntou Vance.

O velho professor olhou para cima penetrantemente, e houve uma pequena pausa ou hesitação, antes de responder.

— Não é exatamente raro; apesar de ficar em casa geralmente aos sábados, é verdade que sai algumas vezes. Hoje mesmo foi à biblioteca da faculdade colher certos dados para um livro que, em breve, publicaremos em colaboração (1).

(1) O livro a que se referia o prof. Dillard era a grande obra que apareceu dois anos mais tarde A Estrutura Atômica da Energia Radiante, emenda da teoria do quantum, de Planck, refutando o axioma clássico da continuidade de todos os processos físicos, contido na obra de Maximus Tyrius.


Houve um pequeno silêncio, logo rompido por Markham.

— O senhor disse que tanto Robin como Sperling eram

pretendentes à mão da Srta. Dillard...

— Tio! — A moça ergueu-se em sua cadeira e, voltando-se para o velho professor, lhe lançou um olhar cheio de ressentimento. — Não fica bem dizer isto.

— Não obstante, é verdade, querida. — A sua voz era extremamente carinhosa.

— É verdade... em parte — admitiu ela. — Porém, não havia necessidade de mencionar isto. O senhor sabe tão bem como eles o meu modo de pensar. Éramos muito bons amigos... e só isto. Sem ir mais longe, ontem à noite, quando estávamos reunidos aqui, eu lhe disse... com franqueza... que não queria ouvir mais tolices acerca de casamento nem de um, nem de outro. Eram muito jovens... e agora um deles morreu... Pobre Cock Robin!

A moça esforçou-se bravamente para sufocar a sua emoção.

Vance levantou as sobrancelhas e inclinou-se para diante:

— Cock Robin?

— Oh, nós o chamávamos assim para mexer com ele, pois ele não gostava do apelido.

— O aditamento era inevitável — ajuntou Vance com simpatia. — E era um apelido bastante lindo, não acha? O Cock Robin original era amado "por todas as aves do ar", e todas choraram a sua morte. — Enquanto falava, ele olhava atentamente a moça.

— Já sei — disse ela, meneando a cabeça. — Isto mesmo eu lhe disse uma vez. Todos o estimavam muito. Não podia ser de outro modo. Tinha tão... bom coração, era tão bondoso...

Vance encostou-se de novo na cadeira e Markham continuou o seu interrogatório.

— O senhor disse, professor, que ouvira Robin e Sperling conversarem na sala. Pôde compreender o que diziam? O ancião olhou de soslaio para a sobrinha.

— Esta pergunta tem importância real, Markham? — perguntou ele, após hesitar por momentos.

— É possível que seja de grande utilidade para deslindar posições.

— Talvez. — O professor sugou, pensativamente, o seu cachimbo. — Por outro lado, se eu responder, é possível que dê uma interpretação errônea e faça uma grande injustiça ao que vive.

— Não pode confiar em mim para julgar este ponto? — A voz de Markham se havia tornado grave e imperativa. Houve outro breve silêncio, esta vez rompido pela moça.

— Por que não conta ao Sr. Markham o que ouviu, tio? Que mal há nisto?

— Porque pensava em você, Belle — contestou suavemente o professor. — Porém, talvez você tenha razão. — Dito isto, olhou para cima com relutância. — A verdade é, Markham, que Robin e Sperling se insultaram por causa de Belle. Ouvi só um pouco, porém o suficiente para deduzir que se acusavam reciprocamente de falta de lealdade... de estarem atrapalhando o caminho...

— Oh! Não falavam a sério — interrompeu a Srta. Dillard com veemência. — Eles sempre discutiam por ciúmes; porém eu não era a verdadeira causa. Eram rivais no arco-e-flecha. Como o senhor sabe, Raymond — o Sr. Sperling — era o melhor atirador; porém, este último ano, Joseph derrotou-o em vários concursos e, no último torneio anual, ganhou o campeonato de nosso clube.

— E Sperling pensou talvez — ajuntou Markham — que, devido a isso, havia perdido a sua estima.

— Que absurdo! — replicou a moça com azedume.

— Eu creio, querida, que podemos deixar este assunto, sem receio, nas mãos do Sr. Markham — disse o professor Dillard, apaziguadoramente. Então, dirigindo-se a Markham. — Deseja fazer-me outra pergunta?

— Quisera saber tudo o que o senhor sabe a respeito de Sperling e Robin... Quem são eles, quais as suas associações. Quanto tempo faz que o senhor os conhece...

— Creio que Belle pode esclarecer-lhe melhor do que eu. Eram antes amizade dela. Eu os via apenas ocasionalmente.

— Faz anos que os conheço — disse ela imediatamente. — Joseph tinha uns oito ou dez anos mais que Raymond, e até há uns cinco anos vivia na Inglaterra, quando morreram seus pais. Veio então para a América e adquiriu um apartamento no Drive. Tinha bastante dinheiro e se dedicava à pesca, à caça e aos desportos ao ar livre. Freqüentava muito pouco a sociedade e era um desses amigos cômodos que sempre estão à mão, na falta de outro. Nele não havia muito... do ponto de vista intelectual.

Fez uma pausa, como se suas observações fossem de uma forma ou outra desleais para com o morto. Markham, interpretando-lhe os sentimentos, perguntou com simplicidade:

— E Sperling?

— É filho de um rico industrial... agora aposentado. Vivia em Scardale, em uma formosa herdade... onde nosso clube de balística tem agora seu campo de exercícios... Raymond é engenheiro consultor de uma firma da cidade, embora eu creia que ele trabalha só para tranqüilizar seu pai, pois só vai ao escritório duas ou três vezes por semana. Formou-se em Boston e eu o conheci nas férias, quando estava em seu segundo ano de estudos. Não era dos que se sobressaíam muito, porém é o protótipo do jovem norte-americano... sincero, alegre, algo retraído e absolutamente correto.

Pela breve descrição da moça foi fácil ter-se uma idéia de como eram Robin e Sperling, sendo conseqüentemente difícil relacionar qualquer um dos dois com a sinistra tragédia que nos trouxera a essa casa.

Markham permaneceu com as sobrancelhas franzidas durante uns instantes, levantando por fim a cabeça e fixando o olhar na moça:

— Diga-me, Srta. Dillard, tem alguma teoria ou hipótese que pudesse de uma forma ou outra explicar o porquê da morte do Sr. Robin?

— Não! — A resposta foi antes uma explosão. — Quem podia desejar a morte de Cock Robin? Ele não tinha inimigos. É algo incrível o que aconteceu. Antes de ver com os meus próprios olhos, não podia crer. E ainda assim não parecia real.

— Não obstante, minha querida menina, — interrompeu o professor Dillard, — o homem foi assassinado, assim é que deve haver algo na sua vida que você desconhecia ou de que não suspeitava. Constantemente encontramos estrelas novas que os antigos astrônomos não criam que pudessem existir.

— Eu não posso imaginar que Joseph tivesse inimigos — replicou ela. — Não o crerei. É completamente absurdo.

— Então, pensa você — perguntou Markham — que é improvável que Sperling fosse de certo modo responsável pela morte de Robin?

— Improvável? — Os olhos da moça relampejaram. — É impossível!

— E, não obstante, a senhorita sabe — agora era Vance quem falava como quem não quer nada — que "Sperling" significa "pardal".

A moça permaneceu imóvel. Seu rosto empalideceu e as mãos apertaram fortemente os braços da cadeira. Então, lentamente e com grande dificuldade, meneou a cabeça, enquanto que seu peito arfava fortemente ao respirar. Subitamente estremeceu e apertou o lenço contra o seu rosto.

— Tenho medo! — murmurou ela.

Vance levantou-se e, encaminhando-se até ela, lhe tocou , o ombro consoladoramente.

— Por que tem medo?

Ela levantou a vista e encontrou o olhar de Vance que parece tê-la tranqüilizado, pois forçou um sorriso lastimoso.

— Ainda outro dia — disse ela com voz tensa — estávamos todos embaixo, no pátio de exercícios. Raymond preparava-se para arremessar um Single American Round, quando Joseph abriu a porta do porão e saiu. Não existia, em verdade, perigo algum. Sigurd — o Sr. Arnesson — estava sentado na sacada olhando-nos. E, quando gracejando gritei apontando para Joseph, "a ele! a ele!", Sigurd virou-se e disse: "Você não sabe ao que se expõe, jovem amigo. Você é Cock Robin e aquele arqueiro é um pardal. E você bem sabe o que aconteceu a seu homônimo, quando um senhor Pardal empunhou o arco e a flecha... ou qualquer coisa assim". Naquele momento ninguém prestou atenção. Mas agora!... — Sua voz se converteu em um murmúrio de temor.

— Vamos, Belle, não seja mórbida, — disse o professor consolando-a, porém não sem impaciência. — Era simplesmente um dos gracejos de mau gosto de Sigurd. Você bem sabe que ele moteja e ri continuamente das realidades. É a única evasão que tem da sua constante aplicação às ciências abstratas.

— Acho que sim — respondeu ela. — Por hipótese, foi uma troça. Porém, agora, parece uma profecia terrível. Somente — apressou-se a dizer — Raymond não podia ser o autor.

Enquanto falava, abriu-se a porta da biblioteca e uma figura alta e magra apareceu no umbral.

— Sigurd! — A exclamação de assombro proferida por Belle Dillard revelava uma inegável sensação de alívio.

Sigurd Arnesson, protegido e filho adotivo do professor Dillard, era um homem de aspecto surpreendente — 1,80 m de altura, vigoroso, com uma cabeça que à primeira vista parecia demasiado grande para seu corpo, o cabelo quase amarelo desgrenhado como o de um escolar, nariz aquilino e faces magras e musculosas. Embora não tivesse mais de quarenta, as rugas formavam no seu rosto uma rede que dava uma impressão sardonicamente fantástica; porém, a paixão intensamente intelectual que lhe iluminava os olhos cinzento-azulados contradizia qualquer superficialidade da natureza. Minha reação inicial relativamente à sua personalidade era de respeito e agrado. Havia nele profundidades... potencialidades poderosas e altas capacidades.

No momento que entrava, seus olhos perscrutadores nos abrangeram a todos com um olhar veloz e inquiridor. Saudou com a cabeça levantada a Srta. Dillard e logo mirou o velho professor com um olhar de fria distração.

— Por favor, digam-me o que aconteceu nesta casa tridimensional. Lá fora, o carro da polícia, muita gente, uma sentinela na porta... e dois homens em traje civil que me enviaram aqui quase aos empurrões, sem cerimônia nem explicação alguma... Muito divertido, porém desconcertante... Ah! Ao que parece, está aqui o procurador do distrito. Bom dia... ou dito melhor, boa tarde... Sr. Markham.

Antes que este pudesse responder ao cumprimento, Belle Dillard falou:

— Sigurd, rogo a você que não caçoe. Mataram o Sr. Robin.

— Você quer dizer Cock Robin. Vá! Vá! Com este nome, que outra coisa podia esperar? — Parecia não se emocionar com a notícia. — Quem o fez volver aos elementos?

— Quanto a isso, não sabemos — contestou Markham em tom de censura pela jovialidade intempestiva do outro. — O que sabemos é que o senhor Robin foi assassinado com uma flecha que lhe cravaram no coração.

— Não podia ser de outro modo — disse Arnesson, sentando-se no braço de uma cadeira e estirando suas longas pernas. — Que poderia haver de mais apropriado para esse Cock Robin do que morrer de um flechaço arremessado pelo arco de...

— Sigurd! — Belle Dillard lhe cortou a frase. — Você já não caçoou o suficiente? Você sabe que não foi Raymond.

— Indubitavelmente, irmã. — O homem mirou-a um tanto reflexivamente. — Eu estava pensando no progenitor ornitológico do Sr. Robin. — Voltando-se lentamente para Markham perguntou-lhe: — Assim é que se trata de um crime misterioso, com um cadáver, pistas e acessórios, não? Posso saber o que é que se passou?

Markham expôs brevemente um resumo da situação, o que ele escutou com grande interesse. Uma vez terminada a exposição, perguntou:

— Não se encontrou arco algum no pátio?

— Ah! — Vance, pela primeira vez, desde que chegou Arnesson, despertou de uma aparente letargia e respondeu em lugar de Markham. — Esta é uma pergunta que vem muito a propósito, Sr. Arnesson. Sim, um arco foi encontrado fora da janela do porão a uns três metros do cadáver.

— Isso, naturalmente, simplifica o assunto — disse Arnesson desiludidamente. — Agora é só tomar as impressões digitais.

— Infelizmente o arco foi tocado — explicou Markham. — O professor Dillard recolheu-o e guardou-o no porão.

Arnesson voltou-se com curiosidade para o ancião.

— Que impulso, senhor, o levou a fazer tal coisa?

— Impulso? Meu caro Sigurd, eu não analisei minhas emoções. Todavia, imaginei que o arco fosse uma parte principal do corpo de delito, guardando-o como medida de precaução até que chegasse a polícia.

Arnesson fez uma careta e levantou humoristicamente um olho.

— Isso se assemelha ao que nossos amigos psicanalistas chamariam uma explicação da suspensão crítica. Gostaria de saber que idéia se achava submersa em seu espírito...

A cabeça de Burke assomou à porta ao mesmo tempo que anunciava:

— O Dr. Doremus espera-os embaixo. Já terminou o exame médico.

Markham levantou-se desculpando-se:

— Por ora não os molestarei mais. Há muito trabalho rotineiro que fazer ainda. Mas devo pedir-lhe que façam o favor de não sair daqui. Vê-los-ei antes de ir-me embora.

Doremus estava-se balançando impacientemente sobre a ponta dos pés quando nos reunimos a ele na sala.

— Não há nada completo — começou a dizer antes que Markham tivesse ocasião de falar. — Nosso amigo desportista foi morto por uma flecha cuja ponta fortemente afilada penetrou no coração pelo quarto espaço intercostal. Foi disparada com grande força. Muita hemorragia interna e externa. Faz duas horas que morreu, e acredito que seriam onze e meia quando caiu. Entretanto, tudo isto é pura teoria. Nenhum sinal de luta... nenhuma marca em sua roupa, nem arranhões em suas mãos. A morte sobreveio sem que ele percebesse o que acontecia a seu redor. Recebeu um forte golpe na parte posterior da cabeça, ao cair no piso de cimento...

— Isso é muito interessante — interrompeu Vance, com sua voz lenta e penosa, o médico da polícia, em seu monótono relato. — É muito sério o "golpe", doutor?

Doremus pestanejou e mirou Vance um tanto assombrado.

— O suficiente para causar a fratura do crânio. Não pude apalpá-lo, certamente, porém havia um enorme hematoma sobre a região ocipital, sangue seco nas narinas e nos ouvidos e as pupilas desiguais que indicavam uma fratura de crânio. Depois da autópsia, poderei dizer alguma coisa mais.

— Voltando-se para o procurador do distrito: — Alguma coisa mais?

— Nada mais, doutor. A única coisa que lhe peço é que nos forneça quanto antes seu laudo post mortem.

— Esta noite o senhor o terá. O sargento já telefonou chamando o carro.

Apertando nossas mãos, retirou-se apressadamente. Heath, um pouco retirado de nós, franzia a testa.

— Bem, isto não nos leva a lado algum — disse, queixoso, enquanto mascava viciosamente seu cigarro.

— Não desanime, sargento — censurou Vance. — Este golpe na parte posterior do crânio é digno da mais profunda consideração. Minha opinião é que não recebeu ao cair, sabe?

O sargento não se impressionou ante esta observação.

— E ainda mais, Sr. Markham — continuou falando. — Não havia impressões digitais nem na flecha, nem no arco. Dubois disse parecer que foram apagadas. Havia umas manchas na extremidade do arco em que o professor tocou, mas nenhum outro sinal ou impressão.

Markham, silenciosamente sombrio, fumou durante um momento.

— Que me diz da maçaneta da porta da rua? E do ferrolho da porta de passagem entre os dois prédios de apartamentos?

— Nada — bufou Heath com desgosto. — Ambos são de ferro oxidado e rugoso, incapazes de reter qualquer impressão.

— Olhe aqui, Markham — disse Vance. — Você está considerando o assunto de forma errônea. É lógico que não haja impressões digitais. É fora de dúvida que você sabe que não se produz cuidadosamente uma obra para logo deixar todos os truques à vista dos espectadores. O que é preciso saber é por que esse empresário particular decidiu entregar-se a teatralidades estúpidas.

— Não é fácil como pensa, Sr. Vance — manifestou Heath com amargura.

— Eu disse que era fácil? Não, sargento, é terrivelmente difícil. E mais difícil: sutil, obscuro e... diabólico.


IV

 

UMA CARTA MISTERIOSA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 14h)

 


Markham sentou-se resolutamente diante da mesa de centro.

— Que lhe parece, sargento, se interrogarmos agora os dois criados?

Heath saiu do vestíbulo e expediu uma ordem a um dos agentes. Ao cabo de instantes apareceu um homem alto, sombrio, desmazelado, que permaneceu de pé, em atitude respeitosa e atenta.

— Este é o mordomo, senhor — explicou o agente. — Chama-se Pyne.

Markham estudou o indivíduo detidamente. Teria uns sessenta anos. Suas feições eram acentuadamente acromegálicas, distorção que se estendia por todo o corpo. Mãos grandes e pés chatos e disformes. O traje, embora cuidadosamente passado, lhe sentava mal, o colarinho alto era demasiado grande. Os olhos pálidos e aquosos se ocultavam sob espessas sobrancelhas grisalhas, e a boca era um talho em um rosto doentio e balofo.

Fora de sua manifesta ausência de simpatia física, dava não obstante a impressão de astúcia e competência.

— Então é você o mordomo dos Dillard, não? — murmurou Markham. — Há quanto tempo está com a família, Pyne?

— Vai para dez anos, senhor.

— Você deve ter entrado para o serviço do professor, quando ele renunciou à sua cátedra da universidade, não?

— Creio que sim, senhor. — A voz de Pyne era profunda e estrondosa.

— Que sabe da tragédia desta manhã?

Apesar de ter feito Markham a pergunta repentinamente na esperança, segundo creio, de surpreender algum assentimento, Pyne recebeu-a com a maior impassibilidade.

— Absolutamente nada, senhor. Eu ignorava o que havia sucedido até que o professor Dillard, que estava em sua biblioteca, me mandou chamar para que fosse procurar o Sr. Sperling.

— Então ele lhe contou a tragédia?

— O senhor disseme: "Robin foi assassinado e queria que você fosse à procura do Sr. Sperling e lhe comunicasse que eu desejava vê-lo". Isto é tudo, senhor.

— Está você seguro de que ele disse "assassinado", Pyne? — interrompeu Vance.

Pela primeira vez o mordomo hesitou e em seus olhos apareceu um brilho de astúcia, mas...

— Sim, senhor. Estou seguro de que sim. "Assassinado", esta é a palavra.

— E você viu o corpo do Sr. Robin quando saiu para cumprir a ordem? — prosseguiu Vance, enquanto sua vista traçava indolentemente um desenho na parede.

Nova hesitação.

— Sim, senhor. Eu abri a porta do porão e vi o corpo do pobre homem...

— Uma grande impressão deve ter-lhe causado, Pyne

— observou friamente Vance. — Por acaso, você tocou no corpo do pobre homem... ou na flecha... talvez no arco?

Os olhos aquosos de Pyne brilharam um momento.

— Não... certamente que não... Para quê?

— É verdade — suspirou Vance contristado. — Mas você viu o arco?

O homem olhou de soslaio, como se procurasse ver mentalmente.

— Não poderia dizê-lo, senhor. Pode ser que sim, pode ser que não. Não me recordo.

Vance pareceu perder todo interesse por ele e Markham continuou o interrogatório.

— Disseram-me, Pyne, que o Sr. Drukker veio aqui esta manhã, às nove e meia. Você viu-o?

— Sim, senhor. Sempre entra pela porta do porão. Ao passar, deu-me bom dia. Eu estava na despensa, em cima da escada.

— Retirou-se pelo mesmo lugar?

— Parece-me que sim, senhor. Embora, quando ele se foi eu estivesse em cima. Vive na casa dos fundos.

— Eu sei. — Markham inclinou-se para diante. — Presumo que foi você quem recebeu esta manhã o Sr. Sperling e o Sr. Robin?

— Sim, senhor, cerca das dez horas.

— Viu-os depois, ou ouviu alguns dos seus comentários, enquanto esperavam aqui na sala?

— Não, senhor, eu estive ocupado a maior parte da manhã arrumando os aposentos do Sr. Arnesson.

— Ah! — Vance dirigiu o olhar até o homem. — Ficam na parte dos fundos, no segundo pavimento, não? É o quarto com balcão, não é exato?

— Sim, senhor.

— Muito interessante... E foi desse balcão que o professor Dillard viu pela primeira vez o cadáver do Sr. Robin. Como pôde ter entrado no quarto, sem que você o soubesse? Segundo creio, você disse que o primeiro conhecimento que teve da tragédia foi quando o professor Dillard o chamou à biblioteca para que fosse em busca do Sr. Sperling.

O rosto do mordomo voltou-se branco e pastoso e notei que seus dedos se crispavam nervosamente.

— Talvez eu tenha saído por um instante dos aposentos do Sr. Arnesson — explicou ele com grande esforço. — Sim... é muito provável. Na realidade, senhor, agora me recordo de haver ido ao armário...

— Oh, sem dúvida! — Vance parecia ter caído num estado de letargia.

Markham fumou um pouco. Concentrou seu olhar na mesa.

— Veio alguém mais a esta casa hoje de manhã, Pyne? — perguntou.

— Ninguém, senhor.

— Então, pode você sugerir alguma explicação do que se passou?

O homem sacudiu fortemente a cabeça e olhou para o ar com seus olhos aquosos.

— Não, senhor. O Sr. Robin parecia um jovem agradável e benquisto. Não era desses que induzem ao assassinato... se o senhor compreende o que quero dizer.

Vance levantou o olhar.

— Não posso dizer que eu, pessoalmente, compreenda com exatidão o que você quer dizer, Pyne. Como sabe você que não foi um acidente?

— Eu não sei, senhor — foi a resposta serena. — Mas conheço algo da arte de atirar flechas, se me permite que o diga, e vi imediatamente que o senhor Robin tinha sido morto por uma flecha de caça.

— Você é muito observador, Pyne, — disse Vance, movendo a cabeça — e bastante correto nas suas observações.

Era claro que não se podia colher do mordomo nenhuma informação direta. Por isso, Markham o despediu abruptamente, ordenando ao mesmo tempo a Heath que fizesse entrar a cozinheira. Quando esta entrou, notei de imediato uma semelhança entre o pai e a filha. Era ela uma mulher desalinhada, de uns 40 anos, também alta, rosto angular, delgado e comprido. Mãos e pés grandes. Evidentemente na família Pyne o hiperpituitarismo era hereditário.

Depois de algumas perguntas preliminares, ficamos sabendo que era viúva, que se chamava Beedle e que com a morte de seu marido, há cinco anos, e por recomendação de Pyne havia entrado para o serviço do professor Dillard.

— A que horas saiu você de casa esta manhã? — perguntou-lhe Markham.

— Pouco depois das dez e meia. — Beedle parecia intranqüila e alerta. Sua voz era defensivamente agressiva.

— E a que horas voltou?

— Perto das doze e meia. Aquele homem deixou-me entrar — ela olhou rancorosamente para Heath — e tratou-me como se eu tivesse cometido um crime.

Heath sorriu.

— A hora é exata, Sr. Markham. A senhora se incomodou porque não a deixei descer.

Markham meneou a cabeça.

— Sabe algo do que sucedeu aqui esta manhã? — continuou ele estudando-a muito de perto.

— Como quer que saiba se estive toda a manhã no mercado de Jefferson?

— Viu o Sr. Robin, ou Sr. Sperling?

Ao descerem para a sala do clube, passaram em frente à cozinha, pouco antes de eu sair.

— Ouviu você algo do que disseram?

— Não costumo escutar.

Markham irritou-se e ia falar qualquer coisa, quando Vance, dirigindo-se suavemente a ela, disselhe:

— O procurador do distrito pensou que talvez a porta estivesse aberta, podendo assim escutar, ainda que não o quisesse.

— É possível que a porta estivesse aberta, porém eu não ouvi nada — contestou, enfadada.

— Então você não podia dizer-nos se no quarto havia alguma outra pessoa.

Beedle semicerrou os olhos e dirigiu a Vance um olhar calculador.

— É possível que houvesse algum outro — disse ela lentamente. — Na realidade, creio ter ouvido a voz do Sr. Drukker. A mulher destilava veneno e a sombra de um sorriso malévolo percorreu seus lábios delgados. — Pela manhã, cedo, esteve com o Sr. Arnesson.

— Oh, sim! — Vance se surpreendeu ante semelhante notícia. — E você viu-o?

— Eu o vi entrar, porém não o vi sair... Ou, pelo menos, eu não notei. É um homem que entra e sai às furtadelas a toda hora.

— Às furtadelas? Hum!... A propósito, por que porta você saiu quando foi ao mercado?

— Pela da frente. Desde que a Srta. Belle fez do porão um clube, saio sempre pela porta principal.

— Então você não entrou esta manhã neste aposento? — Não.

Vance ergueu-se na cadeira.

— Obrigado por tudo, Beedle. Pode ir.

Assim que a mulher se retirou, Vance levantou-se e foi à janela.

— Estamos gastando demasiadas energias em coisas que não interessam, Markham — disse ele. — Não chegaremos a nada molestando a criadagem e interrogando os da casa. Há um muro psicológico que é preciso derrubar, antes de poder penetrar nas trincheiras inimigas. Todos, neste assunto, reservam algo que lhe convém e temem que se lhes escape. Até agora nos têm dito o que sabem mais ou menos. Desesperante, por certo. Nada do que ouvimos tem ligação. E quando os sucessos cronológicos não se ajustam, pode ter a segurança de que os pontos endentados do contato foram deliberadamente retorcidos. Não encontrei uma articulação clara em todos esses relatos que nos fizeram ouvir.

— O mais provável é que faltem as conexões — redargüiu Markham — e nunca as encontraremos se abandonarmos os interrogatórios.

— Você é demasiado confiante. — Vamos para a mesa. — Quanto mais perguntarmos, mais longe iremos do assunto. Nem o próprio professor Dillard nos disse toda a verdade. Há algo que oculta... alguma suspeita que não deixa escapar. Por que recolheu ele o arco? Arnesson pôs o dedo na chaga quando lhe fez a mesma pergunta. Astuto, este Arnesson. Depois temos a nossa jovenzinha atleta, de pernas musculosas. Está enredada em vários assuntos amorosos e trata de salvar-se e aos seus, sem culpar a ninguém. Um desígnio de louvor, porém não conducente a uma verdade livre de alterações. Pyne tem também idéias. Aquela sua máscara facial deixa ocultos muitos pensamentos arrebatadores. Porém, nunca exploraremos sua rusticidade sobrecarregando-o com perguntas. Algo singular também a respeito dos seus trabalhos matinais. Disse que estivera no quarto de Arnesson toda a manhã; e, não reparou que o professor havia ido para o balcão do referido quarto, a fim de tomar sol. Aquela sua saída, para ir até o armário... é muito capciosa. Além disso, Markham, deixe que seu espírito voe ao redor do conto da viúva Beedle. A ela não agrada o supersocial Drukker. E, quando viu uma ocasião de envolvê-lo no assunto, aproveitou-a. Ela "julgou" ter ouvido sua voz no quarto do clube. Porém, será certo? Quem sabe? É verdade que ele podia ter-se demorado entre as fundas e dardos, em seu caminho de retirada, reunindo-se com ele, mais tarde, Robin e Sperling... Sim, é um ponto que tem de ser investigado. Em uma palavra, impõe-se um pouco de conversação cortês com o Sr. Drukker.

Neste momento, ouviram-se passos que indicavam que alguém descia as escadas da frente. Era Arnesson, que entrou na sala.

— E quem matou Cock Robin? — perguntou ele com um sorriso de sátiro.

Markham levantou-se, aborrecido, e estava a ponto de protestar por semelhante impertinência, porém Arnesson levantou a mão e disse:

— Um momento, por favor. Estou aqui para oferecer meus exaltados serviços à causa nobre da justiça... da justiça mundana, compreendem. Filosòficamente, é certo, não existe tal coisa. Se verdadeiramente houvesse justiça, estaríamos todos numa temporada dentro da estância cósmica. — Sentou-se defronte a Markham e cèpticamente riu entre dentes. — O fato é que a triste e precipitada viagem do Sr. Robin clama por minha natureza científica. É um ótimo problema de método. Tem decididamente um sabor matemático... sem termos indivisíveis, compreende, com números inteiros bem claros, com certas quantidades desconhecidas, por determinar. Pois bem, eu sou o gênio que o resolverá.

— Qual seria a sua solução, Arnesson? — Markham conhecia e respeitava a inteligência do homem e pareceu de pronto sentir um propósito sério debaixo de sua atitude frívola e burlesca.

— Ah! Ainda não desenvolvi a equação. — Arnesson tirou do bolso um velho cachimbo, apertando-o, afetuosamente. — Sempre tive desejos de atuar como detetive em um plano terreal... é a curiosidade insaciável e a natural investigação do físico, sabe? E há tempos que tenho uma teoria segundo a qual a ciência matemática pode ser vantajosamente aplicada às trivialidades da nossa vida neste insignificante planeta. No universo não há nada mais que leis... a menos que Eddington tenha razão e que não exista lei nenhuma... e eu não vejo razão bastante para que a identidade e posição de um criminoso não possa ser determinada da mesma maneira como Leverrier calculou a massa e o calendário de Netuno a partir dos desvios observados na órbita de Urano. Você se recorda de como, depois de seus cálculos, ele disse a Galle, o astrônomo berlinês, que procurasse o planeta em uma longitude especificada da eclíptica. — Arnesson fez uma pausa e encheu o cachimbo.

— Agora, Sr. Markham — continuou enquanto eu procurava descobrir se ele falava sério ou não — gostaria de aproveitar a oportunidade para aplicar a este absurdo enredo os meios puramente racionais usados por Leverrier no descobrimento de Netuno. Porém, devo ter os dados sobre as perturbações da órbita de Urano, como se disséssemos... isto é, devo conhecer todos os fatores variáveis da equação. O favor que vim pedir aqui é que vocês confiem em mim e não me ocultem absolutamente nada do que saibam do assunto. Uma espécie de sociedade intelectual. Eu resolverei o problema para vocês, do ponto de vista científico. Será um esporte magnífico, além de que incidentalmente me agradaria provar por minha teoria que a matemática forma a base da verdade, não importando quão afastada possa estar das abstrações escolásticas. — Por fim acendeu seu cachimbo e se recostou na cadeira. — Negócio feito?

— Para mim é um prazer não lhe ocultar nada, Arnesson — observou Markham depois de uma breve pausa. — Mas não posso prometer-lhe revelar tudo o que haja de agora em diante. Poderia ir contra os fins da justiça e dificultar nossa investigação.

Vance, que se havia sentado com os olhos semicerrados, aparentemente enfastiado pelo surpreendente pedido de Arnesson, voltou-se para Markham com um sinal positivo de animação.

— Em verdade, não vejo por que não deveríamos dar ao Sr. Arnesson uma ocasião de transportar esse crime aos domínios da matemática aplicada. Estou seguro de que ele será discreto e que usará nossa informação só para propósitos científicos. E... nunca se sabe, verdade?... poderemos necessitar de seu auxílio altamente disciplinado antes de termos terminado este caso tão fascinante.

Markham conhecia Vance muito bem para compreender que a sua sugestão não havia sido feita impensadamente, e eu que não tive a mínima surpresa quando, enfrentando Arnesson, ele disse:

— Muito bem. Facilitar-lhe-emos toda informação de que o senhor necessite para poder desenvolver a sua fórmula matemática. Há algo que lhe interessa saber agora?

— Oh, não! Até este momento conheço os pormenores que vocês possam saber. Eu tratarei de espremer Pyne e Beedle quando vocês saírem. Se eu resolver este problema e determinar a posição exata do criminoso, não encerrarei meus descobrimentos como fez Sir George Airy com os do pobre Adams quando submeteu seus cálculos netunianos anteriores aos de Leverrier...

Neste instante abriu-se a porta e o agente uniformizado que estava estacionado no pórtico entrou seguido de um estranho.

— Este cavalheiro diz que deseja ver o professor — anunciou com radiante suspeita, e virando-se em seguida para Markham com um movimento de cabeça indicou: — Aí está o procurador do distrito. Conte-lhe os seus problemas.

O recém-chegado parecia um tanto desconcertado. Era esbelto, bem vestido, com um ar inequívoco de refinamento. Aparentava uns cinqüenta anos. Seu rosto mantinha um aspecto de juventude perene. O cabelo era ralo e grisalho, o nariz um tanto afilado e o queixo pequeno, porém de nenhum modo débil. A característica mais notável residia naqueles olhos situados sob uma testa ampla e alta. Eram os olhos de um sonhador contrariado e desiludido... meio tristes, meio ressentidos, como se a vida o houvesse ludibriado deixando-o infeliz e amargurado. Estava a ponto de dirigir-se a Markham, quando avistou Arnesson.

— Oh, bom dia, Arnesson — disse ele com voz tranqüila e bem modulada. — Espero que não haja nada de mau ou errado.

— Só uma morte. Pardee — replicou o outro, sem lhe dar maior importância. — A proverbial tormenta num copo d'água.

Markham sentou-se molestado pela interrupção.

— Em que posso ser-lhe útil, senhor? — perguntou ele.

— Espero não haver sido um intruso — disse o homem, desculpando-se. — Sou amigo da casa. Moro no outro lado da rua e notei que algo de desusado havia acontecido aqui. Ocorreu-me então que podia ser útil de uma forma ou de outra.

Arnesson riu entredentes.

— Meu estimado Pardee! Por que encobre sua curiosidade natural com o manto da retórica?

Pardee corou.

— Asseguro-lhe, Arnesson, que...

Ao começar a falar, foi interrompido por Vance.

— O senhor diz que vive do outro lado da rua. Esteve por acaso olhando esta casa, durante a manhã?

— Nem tanto, senhor. Meu gabinete dá, entretanto, para a Rua 75 e é certo que estive sentado perto da janela quase toda a manhã. Mas estive escrevendo. Quando, depois de almoçar, voltei para meu trabalho, notei muita gente, o carro da polícia, assim como o agente uniformizado, que estava na porta.

Vance esteve examinando-o com o canto do olho.

— Viu entrar ou sair desta casa alguém esta manhã, Sr. Pardee?

O homem meneou a cabeça lentamente.

— Ninguém em particular. Notei a presença dos dois jovens amigos da Srta. Dillard, que vieram perto das dez horas, e vi Beedle que saía com sua cesta para o mercado. Isto é tudo de que me recordo.

— Viu retirar-se algum dos dois?

— Não me lembro. — Pardee franziu o cenho. — Não obstante, creio que um deles saiu pela porta do pátio. Mas é só uma impressão.

— A que horas seria?

— Verdadeiramente não poderia dizer-lhe. Talvez uma hora mais ou menos depois da sua chegada. Eu não poderia ser mais específico.

— Não se recorda de nenhuma outra pessoa que tenha entrado ou saído daqui?

— Vi a Srta. Dillard, quando voltou da quadra de tênis, pelas doze e meia, no momento em que me chamavam para almoçar. Para dizer a verdade, saudou-me com a raqueta.

— E ninguém mais?

— Receio que não. — Havia em sua resposta um sentimento inequívoco.

— Um dos jovens que o senhor viu entrar aqui foi morto — disse Vance.

— O Sr. Robin, cognominado Cock Robin — ajuntou Arnesson com uma careta cômica que me chocou.

— Meu Deus! Que desgraça! — Pardee parecia verdadeiramente assombrado. — Robin? Não era o campeão de arco-e-flecha no clube de Belle?

— Sua única pretensão para a imortalidade. Este é o homem.

— Pobre Belle! — Algo nos modos do indivíduo fez com que Vance o observasse agudamente. — Espero que esta tragédia não a tenha transtornado.

— Ela está naturalmente dramatizando tudo — replicou Arnesson. — Aliás, a polícia também o faz. Muita teatralidade para nada em particular. A terra está coberta de "pequenas massas serpenteantes de hidratos de carbono", como Robin, e às quais nos referimos globalmente como humanidade.

Pardee sorriu com tolerante tristeza. Evidentemente estava familiarizado com o cepticismo de Arnesson. Então apelou para Markham.

— Permite-me que veja a Srta. Dillard e o professor?

— Oh! À vontade! — Foi Vance quem respondeu antes que Markham opinasse. — O senhor os encontrará na biblioteca.

O homem abandonou o aposento com um cortês murmúrio de agradecimento.

— É um tipo curioso — comentou Arnesson, quando Pardee já não podia ouvi-lo. — Cheio de dinheiro, leva uma vida ociosa. Sua única paixão é resolver problemas de Xadrez...

— De Xadrez? — Vance levantou o olhar com interesse. — E porventura John Pardee, o inventor do famoso gambito de seu nome?

— Ele mesmo. — O rosto de Arnesson contraiu-se humoristicamente. — Passou vinte anos desenvolvendo uma ofensiva que servia para juntar novos pontos decimais ao jogo. Escreveu um livro sobre o mesmo. Então continuou fazendo prosélitos como um cruzado diante das portas de Damasco. Sempre foi um apaixonado do xadrez, tomando parte nos torneios e correndo todo o mundo para assistir às várias partidas desse jogo. Mais tarde, conseguiu que seu sistema fosse experimentado. Causou grande perturbação entre os infracampeões do Clube de Xadrez Manhattan. Então, o pobre Pardee organizou uma série de torneios magistrais, pagando todas as despesas. Isto lhe custou uma fortuna. Certamente ele estipulava que se jogasse exclusivamente o sistema Pardee. Foi algo muito triste. Quando homens como o Dr. Lasker, Capablanca, Rubinstein e Finn se puseram a combatê-lo, tudo fracassou. Quase todos os que jogavam por esse sistema perdiam. Foi desqualificado de forma ainda pior que o malfadado sistema de Rice. Pardee sofreu um golpe muito rude, que lhe embranqueceu os cabelos e lhe tirou toda a elasticidade dos músculos. Em uma palavra, ficou envelhecido. É um homem destroçado.

— Conheço a história desse sistema — murmurou Van-ce com seu olhar preso no teto. — Eu mesmo o empreguei. Eduard Lasker me ensinou a jogá-lo...

O agente uniformizado apareceu de novo no portal e fez sinal a Heath para que se acercasse. O sargento levantou-se com presteza; evidentemente lhe aborrecia a conversação sobre xadrez. Foi ao vestíbulo. Pouco depois voltava com uma folhinha de papel.

— Isto sim que tem graça, senhor — disse ele entregando-a a Markham. — O agente de fora viu que saía da caixa do correio e decidiu examiná-la. Que lhe parece, senhor?

Markham olhou-a com assombro e confusão, passando-a a Vance sem nada dizer. Eu me levantei e olhei por cima do seu ombro. O papel era do tamanho convencional para máquina de escrever, tendo sido dobrado para que entrasse na abertura da caixa do correio. Continha várias linhas escritas à máquina com tipo "elite" e com uma fita de um azul esmaecido.

A primeira linha dizia:

"Joseph Cochrane Robin está morto."

A segunda linha perguntava:

"Quem matou Cock Robin?"

Embaixo estava escrito:

"Sperling quer dizer pardal."

No canto inferior direito, no lugar da assinatura, estavam estas duas palavras, em letras maiúsculas:

"O BISPO."


V

 

UM GRITO DE MULHER

 

(Sábado, 2 de abril — 14h30)


Depois que Vance olhou a estranha mensagem com a sua firma ainda mais estranha, procurou o monóculo com aquela lenta deliberação que, segundo eu sabia, denotava um agudo interesse. Tendo colocado a lente, estudou o papel com suma atenção. Em seguida, passou-o a Arnesson, dizendo-lhe:

— Aqui tem você um fator valioso para a sua equação. — Seus olhos estavam zombeteiramente fixados no indivíduo.

Arnesson examinou a nota com ar desdenhoso, e com uma careta colocou-a na mesa.

— Espero que o clero não esteja envolvido neste problema. São notoriamente anticientíficos. Não se pode atacá-los com matemática. "O Bispo" — murmurou. — Não conheço nenhum cavalheiro que vista vestes talares. Creio que destrinçarei este enigma quando fizer meus cálculos.

— Se o destrinçar, Sr. Arnesson — replicou Vance seriamente — receio que sua equação venha abaixo. Esta carta secreta parece-me muito significativa, não sei por quê. Por certo, se me permite uma nova opinião, dir-lhe-ei que é a coisa mais matemática que apareceu neste caso até agora. Elimina da situação todo o caso ou acidente. É por assim dizer o g, a constante gravitacional que dirigirá todas as nossas equações.

Heath havia olhado o papel com solene desgosto.

— Algum desequilibrado foi quem escreveu isto, Sr. Vance — declarou o sargento.

— Indubitavelmente foi um louco, sargento — concordou Vance. — Mas não podemos desprezar o fato de que esse louco particular deve ter sabido muitos pormenores íntimos e interessantes... isto é, que o sobrenome do Sr. Robin é Cochrane, que o referido cavalheiro foi morto por um flechaço, e que o Sr. Sperling estava nas vizinhanças no momento da morte de Robin. Mais ainda, esse bem-informado maníaco deve ter meditado muito o assassinato, pois a nota foi evidentemente escrita e posta na caixa do correio antes que os agentes chegassem ao lugar.

— A menos que — replicou tenazmente Heath — seja um desses ociosos que, inteirado do que sucedera, meteu o papel na caixa, quando o agente estava de costas.

— Tendo corrido antes à casa e escrito à máquina a mensagem, não? — Vance meneou a cabeça sorrindo tristemente. — Não, sargento, receio que a sua teoria não tenha base alguma.

— Então, que diabo significa isto? — perguntou Heath truculentamente.

— Não tenho a menor idéia. — Vance bocejou e levantou-se da cadeira.

— Que lhe parece, Markham, se dedicarmos uns breves instantes a este Sr. Drukker, a quem Beedle tanto odeia?

— Drukker! — exclamou Arnesson com considerável surpresa. — Que tem que ver o assunto com ele?

— O Sr. Drukker — explicou Markham — veio esta manhã visitar o senhor e pode ter visto Robin e Sperling antes que tivesse ido embora para a sua casa. — Hesitou um instante. — Quer vir conosco?

— Não, obrigado. — Arnesson limpou seu cachimbo e levantou-se. — Tenho muitos trabalhos para corrigir. Não obstante, não seria demais se Belle os acompanhasse. Lady Mae é um tanto peculiar...

— Lady Mae?

— Oh, enganei-me! Havia esquecido que vocês não a conheciam. Todos a chamamos de Lady Mae. É um título de cortesia que agrada muito à pobrezinha. Refiro-me à mãe de Drukker. É um tipo curioso. — Pôs o dedo na fronte significativamente. — Um pouco pancada, porém perfeitamente inócua. É uma monomaníaca. Crê que o sol sai e se oculta em Drukker. Cuida dele como se fosse um menino. Triste situação... Sim, é melhor que levem Belle com vocês. Lady Mae gosta muitíssimo dela.

— Boa idéia, Sr. Arnesson — disse Vance. — Faça o favor de perguntar à Srta. Dillard se quer ter a bondade de acompanhar-nos.

— Com muito prazer.

Arnesson despediu-se com um sorriso ao mesmo tempo protetor e satírico. Um instante depois a Srta. Dillard estava conosco.

— Sigurd disseme que os senhores desejam ver Adolph. Ele terá muito gosto em recebê-los, porém a pobre Lady Mae altera-se tanto por qualquer coisa...

— Esperamos não molestá-la absolutamente — disse Vance tranqüilizadoramente. — Mas o caso é que esta manhã esteve aqui o Sr. Drukker e a cozinheira disse que crê ter ouvido ele falar com os Srs. Sperling e Robin, no quarto do clube. Talvez possa ajudar-nos em algo.

— Estou certa de que assim o fará, se puder — respondeu a moça, com ênfase. — Mas tenham muito cuidado com Lady Mae, sim?

Havia em sua voz um tom implorante e protetor. Vance observou-a cuidadosamente.

— Fale-nos da Sra. Drukker, ou Lady Mae, antes que a visitemos. Por que devemos ter tanto cuidado?

— Sua vida foi uma tragédia — explicou Belle. — Foi outrora uma grande cantora... não uma artista de segunda categoria, mas uma prima-dona de brilhante futuro (1). Ela se casou com um crítico famoso de Viena, Otto Drukker (2), e quatro anos mais tarde nasceu Adolph. Um dia, no Wiener Prater, quando o bebê tinha dois anos, caiu-lhe dos braços. Desde aquele momento sua vida mudou por completo. A coluna vertebral de Adolph se danificou, ficando o menino aleijado. Lady Mae desesperou-se. Ela mesma se considerava culpada e abandonou a carreira para dedicar-se por completo ao filho. Quando o esposo morreu um ano depois, trouxe Adolph para a América, onde havia passado parte da sua juventude, e comprou a casa onde agora vive. Toda a sua vida foi dedicada a Adolph, que cresceu corcunda. Tudo sacrificou por ele e cuida-o como se fosse um bebê...

(1) Mae Brenner ainda deve ser lembrada pelos amantes europeus da boa música. Estreou com a idade, sem precedentes, de 23 anos no papel de Sulamita na Rainha de Sabá, na Casa Imperial de ópera, em Viena; embora seu êxito mais grandioso fosse antes na Desdêmona em Otelo, o último papel que cantou antes de se retirar.

(2) O nome certamente era escrito originariamente Drucker. A troca, possivelmente alguma tentativa de americanização, foi feita pela senhora Drukker, quando fixou residência nos E.E.U.U.


Uma sombra cruzou pelo seu rosto e continuou:

— Às vezes penso... pensamos que ela ainda o imagina um menino. Tem-se tornado mórbida a respeito dele. Mas é a doce e terrível morbidez de um tremendo amor materno... uma espécie de loucura, de ternura, segundo diz o tio. Durante os últimos meses tornou-se muito estranha... esquisita. Encontrei-a muitas vezes cantarolando velhas canções de berço alemãs, com os braços cruzados sobre o peito como se — Oh, isso parece tão sagrado e tão terrível! — como se estivesse embalando uma criança. E tornou-se terrivelmente ciumenta por Adolph. Está ressentida com os outros homens. Sem ir mais longe, a semana passada levei o Sr. Sperling para visitá-la... constantemente vamos vê-la, parece tão só e desditosa... pois bem, levei o Sr. Sperling e ela o olhou quase furiosamente e disselhe: "Por que você não é também um aleijado?"

A jovem fez uma pausa e observou nossas fisionomias.

— Compreendem agora por que lhes rogo que tenham cuidado?... Lady Mae pode pensar que tenhamos ido causar algum mal a Adolph.

— Evitaremos tudo que a possa molestar — assegurou Vance com simpatia.

Então, ao tempo que caminhávamos para o vestíbulo, fez-lhe uma pergunta que me recordou o breve exame mental da casa de Drukker aquela tarde.

— Onde se acha o quarto da Sra. Drukker?

A moça dirigiu-lhe um olhar de assombro, mas respondeu em seguida:

— No lado oeste da casa... Sua janela projetada para fora dá para o campo de prática de tiro de flecha.

— Ah! — Vance tirou sua cigarreira e cuidadosamente escolheu um Régie. — Freqüenta muito este mirador?

— Muitíssimo. Lady Mae sempre observa quando estamos atirando ao alvo; não sei por quê. Estou certa de que sofre ao ver-nos, pois Adolph não é bastante forte para lançar uma flecha. Várias vezes fez tentativas; porém, teve que abandonar, porque se fatigava.

— Olha como praticam vocês, porque isto a tortura... é uma espécie de auto-imolação, sabe? Estas situações são muito penosas.

Vance falava com ternura tal que para quem não conhecesse sua verdadeira natureza pareceria estranho.

— Talvez — ajuntou no momento em que saíamos da casa pela porta do porão — fosse melhor que por agora só víssemos a Sra. Drukker. Isto suavizaria qualquer suspeita que nossa visita pudesse causar-lhe. Poderíamos chegar até o seu quarto, sem que o filho soubesse?

— Oh, sim. — A moça estava satisfeita com a idéia. — Podemos entrar pelos fundos. O gabinete de Adolph, onde ele costuma trabalhar, fica na frente.

Quando chegamos, encontramos a Sra. Drukker sentada na varanda fechada em um canapé antigo, entre almofadões. A Srta. Dillard saudou-a como se fosse sua filha, inclinando-se sobre ela e beijando-a carinhosamente na testa.

— Algo horrível passou-se esta manhã em minha casa, Lady Mae — disse — e estes cavalheiros desejam falar com a senhora a respeito. Prometi-lhes que os traria aqui. Tem a senhora algum inconveniente em recebê-los?

O rosto pálido e trágico da Sra. Drukker se havia desviado da porta quando entramos, porém ela agora nos mirava horrorizada.

Lady Mae era uma mulher alta, delgada até à magreza. Suas mãos, que se apoiavam ligeiramente encurvadas nos braços do canapé, eram cheias de tendões e enrugadas como as garras das fabulosas harpias. Seu rosto, também delgado e profundamente enrugado, era um tanto atraente. Os olhos eram claros e vivos e o nariz estreito e dominante. Embora já devesse ter passado dos sessenta, seu cabelo era abundante e castanho.

Durante uns minutos permaneceu imóvel e silenciosa. Depois, suas mãos cerraram-se lentamente e seus lábios se abriram.

— De que necessitam os senhores? — perguntou com voz baixa e ressoante.

Sra. Drukker, — foi Vance quem respondeu — como a Srta. Dillard acaba de dizer-lhe, uma tragédia ocorreu na casa ao lado esta manhã e desde que a sua janela é a única que dá exatamente para o campo de exercícios, pensamos que possivelmente haja visto algo que pudesse ajudar-nos em nossa investigação.

A vigilância da mulher se relaxou perceptivelmente, porém demorou um pouco antes de responder.

— E que aconteceu?

— Um Sr. Robin foi morto. Talvez a senhora o tenha conhecido.

— O atirador de flechas — o campeão de Belle?... Se o conheço. Era um rapagão forte que podia sustentar um arco pesado sem se fatigar. Quem o matou?

— Não o sabemos. — Vance, apesar de seu ar negligente, a observava com astúcia. — Porém, como foi morto diante de sua sacada, esperávamos que a senhora soubesse de alguma coisa.

As pálpebras da senhora Drukker caíram astutamente e seus dedos se entrelaçaram com uma espécie de satisfação deliberada.

— Está o senhor seguro de que foi morto lá fora?

— Pelo menos, foi lá que o encontramos — replicou Vance com reserva.

— Enfim... Mas, que posso fazer para ajudar os senhores? — Dito isto recostou-se languidamente.

— Notou a senhora a presença de alguém no campo de exercícios esta manhã? — perguntou Vance.

— Não! — A negativa foi rápida e enfática. — Não vi ninguém. Durante todo o dia não vim à janela.

Vance cruzou seu olhar com o da mulher e suspirou.

— É uma lástima — murmurou. — Se a senhora tivesse olhado esta manhã pela janela, possivelmente teria presenciado a tragédia... O Sr. Robin foi morto por um flechaço e, ao que parece, não há motivo razoável que justifique isto.

— Sabe o senhor que o mataram com um flechaço? — perguntou ela, e suas faces pálidas se cobriram de um leve rubor.

— Essa foi a informação do médico da polícia. Quando encontramos o corpo tinha uma flecha cravada no coração.

— Certamente. Isto parece perfeitamente natural, não?... Uma flecha cravada no coração de Robin!...

Ela falava como em sonho. Em seus olhos havia uma imagem longínqua e fascinante.

Produziu-se um silêncio forçado, durante o qual Vance se encaminhou para a janela.

— Incomoda-lhe que olhe por aqui?

Com dificuldade a mulher volveu de seu recolhimento.

— Absolutamente. O panorama não é muito formoso. Podem ver-se as árvores da Rua 76 até o norte e uma parte do pátio de Dillard até o sul. Porém, essa parede de ladrilhos é desconsoladora. Antes de edificarem o prédio de apartamentos, via-se daqui o bonito panorama do rio.

Vance examinou durante um momento o campo de exercícios.

— Sim, — observou, — se tivesse assomado à janela esta manhã, poderia a senhora ter visto o que aconteceu. Daqui vê-se claramente o terreno e a porta do porão de Dillard... Que lástima! — Olhou o relógio. — O seu filho está em casa, Sra. Drukker?

— Meu filho! Meu bebê! Que querem dele? — Sua voz se elevou, lastimosamente e seus olhos se fixaram em Vance envenenados de ódio.

— Nada de importante — disse este pacificamente. — Talvez tenha visto alguém...

— Não viu ninguém! Não podia ter visto ninguém, pois não esteve aqui. Saiu muito cedo e ainda não voltou.

Vance olhou com pesar a mulher.

— Esteve fora toda a manhã? — perguntou. — Sabe a senhora onde ele se encontra?

— Eu sempre sei onde ele está — respondeu ela orgulhosamente. — Não me oculta nada.

— Ele lhe disse aonde ia esta manhã? — insistiu Vance em tom suave.

— Creio que sim, porém neste momento me esqueci. Deixe-me pensar... — Seus longos dedos tamborilavam no braço do canapé e seus olhos se revolviam intranqüilos. — Não me posso recordar; mas lhe perguntarei assim que voltar.

A Srta. Dillard tinha estado observando a mulher com perplexidade crescente.

— Mas, Lady Mae, Adolph esteve em nossa casa. Foi ver Sigurd...

A Sra. Drukker ergueu-se.

— Não é exata! — disse cortante, olhando a jovem quase com rancor. — Adolph tinha que ir à cidade por qualquer coisa. Não esteve em sua casa para nada... Eu sei que não esteve. — Seus olhos chisparam e ela olhou Vance desafiadoramente.

Era um momento desconcertante, porém o que se seguiu foi ainda mais doloroso.

A porta se abriu lentamente e de súbito os braços da Sra. Drukker se estenderam.

— Meu filhinho... meu bebê! — exclamou ela. — Vem aqui, querido.

O homem, porém, não avançou, permaneceu pestanejando seus olhinhos para nós, como uma pessoa que desperta em lugar desconhecido. Adolph Drukker tinha apenas metro e meio de altura. Seu aspecto era o típico congestionado dos corcundas. Suas pernas eram longas e delgadas e o tamanho do seu tronco arqueado e torcido parecia exagerado pela sua imensa cabeça semelhante a uma cúpula. Seu rosto, porém, indicava intelectualidade... um poder passional terrífico que chamava a atenção. O professor Dillard lhe havia chamado gênio matemático, e não se podia duvidar da sua erudição (1).

(1) Causou-me a mesma impressão que o general Homero Lee, quando o visitei em Santa Mônica, pouco antes de sua morte.


— Que significa isto? — perguntou com voz alta e trêmula olhando a Srta. Dillard. — São amigos seus, Belle?

A moça ia responder, porém Vance deteve-a com um gesto.

— A verdade é, Sr. Drukker, — explicou ele em tom grave — que na casa ao lado houve uma tragédia. Este cavalheiro é o Sr. Markham, procurador do distrito, e este outro o sargento Heath, do Departamento de Polícia. A pedido nosso, a Srta. Dillard acompanhou-nos até aqui para perguntar à senhora sua mãe se ela tinha notado algo de anormal no campo de exercícios esta manhã. A tragédia ocorreu mesmo fora da porta do porão da casa de Dillard.

Drukker projetou seu queixo para diante e olhou de soslaio.

— Uma tragédia, hem? Que classe de tragédia?

— Um Sr. Robin foi morto por um flechaço.

O rosto do homem começou a retorcer-se espasmodicamente.

— Robin morto? Morto?... A que horas?

— Provavelmente entre as onze e meio-dia.

— Entre onze e meio-dia? — Rapidamente o olhar de Drukker se desviou para a sua mãe. Parecia cada vez mais nervoso, e seus imensos dedos retorciam a bainha do casaco.

— Que foi que a senhora viu? — Seus olhos faiscavam ao encarar a mulher.

— Que queres dizer, filho? — A réplica era um murmúrio que encerrava imenso pânico. O rosto de Drukker se endureceu e a sugestão de um sorriso cômico torceu seus lábios.

— Quero dizer que foi a essa hora que ouvi um grito neste quarto.

— Não ouviste! Não... Não! — Ela conteve a respiração e meneou fortemente a cabeça. — Estás equivocado, filho. Eu não gritei esta manhã.

— Bem, alguém foi. — Havia na voz do homem uma implacabilidade iria. Logo depois de uma pausa ajuntou:

— O fato é que subi depois de ter ouvido o grito e escutei aqui na porta. Mas a senhora passeava de um lado para outro cantando Eia Popéia, portanto voltei ao meu trabalho.

A Sra. Drukker apertou o lenço contra o seu rosto, cerrando os olhos momentaneamente.

— Trabalhavas entre as onze e o meio-dia? — Sua voz ressoou agora com ansiedade reprimida. — Pois eu te chamei várias vezes...

— Eu a ouvi, porém não respondi. Estava muito ocupado.

— Sim, verdade? — Ela se voltou lentamente para a janela. — Pensei que não estavas em casa. Não me disseste que?...

— Eu lhe disse que ia à casa de Dillard. Mas, como Sigurd não estava, voltei pouco antes das onze.

— Não te vi entrar. — A energia da mulher se havia esgotado, recostando-se negligentemente com a vista posta no muro de tijolos do lado oposto. — E quando te chamei, ao ver que não respondias, acreditei que estavas fora.

— Saí da casa de Dillard pelo portão que dá para a rua e fui dar um passeio pelo parque. — A voz de Drukker mostrava irritação. — Depois entrei pela porta principal.

— E dizes que me ouviste gritar... Por que ia gritar, meu filho? Hoje não me doeram as costas.

Drukker franziu o cenho e seus olhinhos se moveram rapidamente de Vance para Markham.

— Ouvi alguém gritar... uma mulher... neste quarto — insistiu ele tenazmente — isto às onze e meia. — Então afundou-se em uma cadeira e olhou pensativamente para o chão.

Este diálogo intrincado entre mãe e filho enfeitiçou-nos a todos. Embora Vance permanecesse defronte de uma antiga estampa do século dezoito, perto da porta, mirando-a com absorção aparente, eu sabia que nenhuma palavra ou inflexão lhe tinha escapado. Agora girou em redor e, fazendo um sinal a Markham para que não interviesse, aproximou-se da Sra. Drukker.

— Sentimos muitíssimo, senhora, que a tenhamos molestado. Rogo-lhe que nos perdoe. — Fez uma inclinação de cabeça e se voltou para a Srta. Dillard.

— Acompanha-nos, ou prefere que vamos sós?

— Irei com os senhores — disse a moça. Foi até a Sra. Drukker, dizendo a esta, enquanto a abraçava:

— Sinto muitíssimo, Lady Mae.

Enquanto passávamos ao vestíbulo, Vance, como que refletindo, deteve-se. E, dando volta, disse a Drukker com um tom de voz casual embora urgente:

— Precisamos que o senhor venha conosco. O senhor conhecia Robin e pode sugerir-nos alguma coisa...

— Não vás com ele, filho! — exclamou a Sra. Drukker. Agora estava erguida em sua cadeira com o rosto contorcido de angústia e terror. — Não vás! São inimigos. Querem fazer-te mal...

Drukker se havia posto em pé.

— Por que não devo ir com eles? — replicou com petulância. — Quero averiguar este assunto. Pode ser, como dizem eles, que eu lhes seja de alguma utilidade. — E com um gesto de impaciência veio ter conosco.


VI

 

"EU", DISSE O PARDAL

 

(Sábado, 2 de abril — 15h)

 

Quando estávamos de novo na sala de Dillard, e uma vez que a Srta. Belle nos deixara para ir em busca de seu tio que se achava na biblioteca, Vance, sem preâmbulo algum, retomou o assunto que o preocupava.

— Não o quis interrogar, Sr. Drukker, diante da senhora sua mãe para não incomodá-la, porém, considerando que o senhor esteve aqui esta manhã pouco antes da morte do Sr. Robin, é necessário, como simples procedimento de rotina, que procuremos toda a informação que o senhor possa nos dar.

Drukker, que estava sentado perto da lareira, estendeu a cabeça cautelosamente, porém não respondeu.

— O senhor chegou aqui — continuou Vance — perto das nove e meia, segundo creio, para visitar Arnesson.

— Sim.

— Pelo campo de exercício e pela porta do porão?

— Como sempre. Para que dar uma volta ao quarteirão?

— Mas o Sr. Arnesson não estava em casa. Drukker meneou a cabeça e disse:

— Estava na Universidade.

— E ao ver que o Sr. Arnesson não estava em casa, o senhor se sentou um pouco na biblioteca com o professor Dillard, segundo parece, conversando sobre uma expedição de astrônomos à América do Sul.

— A expedição da Real Sociedade de Astronomia a Sobral para comprovar a deflexão einsteiniana — completou Drukker.

— Quanto tempo permaneceu o senhor na biblioteca?

— Menos de meia hora.

— E depois?

— Desci à sala do clube e li uma das revistas onde havia um problema de xadrez... um final da partida que se desenvolveu recentemente entre Shapiro e Marshall... como me interessou muito, tentei resolvê-la...

— Um momento, Sr. Drukker. — Na voz de Vance havia um tom de interesse. — Interessa-lhe o xadrez?

— Até certo ponto. Entretanto, não lhe dedico muito tempo. O jogo não é puramente matemático. Além disso, é insuficientemente especulativo para que interesse a um espírito completamente científico.

— Achou complicada a situação Shapiro-Marshall?

— Era mais uma questão de habilidade. — Drukker observava Vance astutamente. — Assim que descobri que um movimento de peão aparentemente inútil era a chave do impasse, a solução foi fácil.

— Quanto tempo lhe custou?

— Uma meia hora.

— Diremos até perto das dez e meia.

— Essa hora seria a mais aproximada. — Drukker afundou-se mais na poltrona, porém a sua disfarçada vigilância não diminuiu.

— Então você deve ter estado na sala do clube quando o Sr. Robin e o Sr. Sperling chegaram lá.

O homem não contestou de imediato e Vance, aparentando não perceber a sua hesitação, acrescentou:

— O professor Dillard disse que eles chegaram a casa perto das dez e que, depois de esperarem um pouco na sala, desceram ao porão.

— A propósito, onde está agora Sperling? — Os olhos de Drukker percorreram velozmente cada um de nós.

— Esperamo-lo aqui de um momento para outro — replicou Vance. — O sargento Heath mandou dois agentes buscá-lo.

As sobrancelhas do corcunda se ergueram.

— Ah! Então Sperling será trazido à força. — Ele pôs em pirâmide seus espatulados dedos e os olhou pensativamente. Em seguida, levantou lentamente os olhos para Vance. — O senhor perguntou-me se havia visto Robin e Sperling na sala do clube. Sim. Desciam, quando eu saía.

Vance recostou-se, estirando as pernas.

— Teve o senhor a impressão de que haviam tido, como dizemos por eufemismo, uma troca de palavras?

O homem considerou esta pergunta durante um certo tempo.

— Agora que o senhor menciona isto — disse ele por fim —, recordo-me de que as relações de ambos se haviam esfriado. Entretanto, não queria ser demasiado categórico neste ponto, pois eu saí da sala quase logo depois que eles entraram.

— Creio que o senhor disse que saiu pela porta do porão e depois pelo portão do muro que dá para a Rua 75. É exato?

Durante um momento, Drukker pareceu não querer responder, porém replicou, forçando indiferença:

— Exato. Pensei em dar um passeio pela margem do rio, antes de começar a trabalhar. Fui ao Riverside Drive, depois segui o caminho circular e voltei ao parque pela Rua 79.

Heath, com a sua suspeita habitual diante de todas as declarações feitas à polícia, fez a seguinte pergunta:

— Encontrou algum conhecido seu?

Drukker voltou-se irritado, porém Vance aproveitou a brecha.

— Isto não interessa, sargento. Se for necessário considerar este ponto, fá-lo-emos mais tarde. — Então, dirigindo-se a Drukker: — O senhor voltou do seu passeio um pouco antes das onze, conforme ouvi, e entrou em sua casa pela porta principal.

— Exato.

— Notou o senhor algo de extraordinário, esta manhã, por casualidade?

— Não vi nada mais do que lhe disse.

— E o senhor está seguro de ter ouvido a sua mãe gritar perto das onze e meia?

Vance permaneceu imóvel ao fazer-lhe esta pergunta, porém em sua voz se produziu uma nota ligeiramente distinta, fazendo com que Drukker se sobressaltasse um pouco.

Inclinou para frente seu corpo rechonchudo e olhou Vance com ameaçadora fúria. Seus olhinhos redondos faiscavam e seus lábios se moveram convulsivamente. Suas mãos trêmulas se dobraram e espalmaram como as de um homem em paroxismo.

— Que pretende o senhor? — perguntou com voz estridente de falsete. — Sim, ouvi-a gritar. A mim não interessa se ela o confirme ou negue. Mais ainda, eu a ouvi caminhar em seu quarto. Ela estava em seu quarto, compreenda-o bem, e eu estava no meu, entre as onze e as doze. E o senhor não pode provar outra coisa. Além do mais, não vou permitir que o senhor ou seja lá quem for me interrogue a respeito do que eu fazia ou onde estava... Não podem meter-se no que não lhes importa... estão ouvindo, senhores?

Sua ira era tão insana que eu pensei que ele fosse arrojar-se contra Vance. Heath se havia posto em pé, avançando, percebendo o perigo potencial do homem. Entretanto, Vance não se moveu. Continuou fumando languidamente e, quando a fúria do outro desapareceu, disse tranqüilamente e sem a mínima emoção:

— Não são necessárias mais perguntas, Sr. Drukker. E, verdadeiramente, não tem por que se incomodar. O fato é que me ocorreu que o grito da senhora sua mãe podia ajudar a estabelecer a hora exata do crime.

— Que tem que ver o grito dela com a hora da morte do Sr. Robin? Não lhes disse ela que não viu nada? — Drukker parecia exausto e se apoiou fortemente contra a mesa.

— Neste instante apareceu no umbral o professor Dillard. Atrás dele, Arnesson.

— Que sucede? — perguntou o professor. — Ouvi barulho aqui e desci. — Olhou friamente Drukker. — Não sofreu Belle bastante já para que você venha agora assustá-la?

Vance se havia levantado, porém, antes que pudesse falar, Arnesson avançou e moveu o seu dedo como que repreendendo Drukker.

— Adolph, é necessário que saiba conter-se. Você toma a vida com tão abominável seriedade... Você trabalhou tanto tempo com as magnitudes dos espaços interestelares que devia ter algum senso de proporção. Por que dar tanta importância a esta futilidade da vida sobre a terra? Drukker respirava ofegantemente.

— Esses porcos... — começou dizendo.

— Oh, meu caro Adolph! — Arnesson cortou-lhe a palavra. — Toda a raça humana está constituída de porcos. Por que particularizar?... Vamos, acompanhá-lo-ei à sua casa. — E segurando Drukker firmemente pelo braço, conduziu-o para baixo.

— Sentimos muito tê-lo incomodado, senhor — disse Markham ao professor Dillard. — O homem alterou-se por alguma razão desconhecida. Estas investigações são das mais desagradáveis, mas esperamos terminar muito breve.

— Assim o espero, Markham. E a respeito de Belle, tratem de evitar-lhe todo incômodo. Desejo falar com os senhores antes de irem.

Quando o professor Dillard se retirou para cima, Markham passeou, de um lado para outro da sala, com o cenho franzido e com as mãos nas costas.

— Que idéia tem de Drukker? — perguntou, detendo-se diante de Vance.

— Decididamente um tipo pouco agradável. Um enfermo física e mentalmente. Embusteiro congênito. Todavia astuto... oh, malditamente astuto. Um cérebro anormal... como amiúde se encontra nos aleijados do seu tipo. Às vezes, inclinam-se para um gênio construtivo, como no caso de Steinmetz, porém, muito freqüentemente tendem para uma especulação abstrusa, sobre linhas impraticáveis, como acontece com Drukker. Entretanto, nosso interrogatório deu seus frutos. Ele está ocultando algo que lhe agradaria dizer, porém não se atreve.

— Naturalmente, é possível — replicou Markham em tom de dúvida. — É muito suscetível no que se refere àquela hora, entre as onze e doze. E durante todo o tempo, olhava para você como um gato selvagem.

— Como uma doninha — corrigiu Vance. — Sim, eu estava percebendo seus olhares lisonjeiros.

— Apesar de tudo, não creio que tenha esclarecido nenhum ponto.

— Não — concordou Vance. — Não é muito o que sabemos, porém, pelo menos, temos alguma bagagem a bordo. Nosso excitável mago das matemáticas abriu algumas linhas de especulação muito interessantes. E a Sra. Drukker é bastante prolifera em possibilidades. Se soubéssemos o que eles juntos sabem, poderíamos encontrar a chave deste caso estúpido.

Heath estivera durante a hora passada observando com triste e fatigante desdém os procedimentos empregados. Agora, porém, mostrava-se combativo.

— Devo dizer-lhe, Sr. Markham, que estamos perdendo tempo. Para que servem todas essas conversas? É de Sperling que precisamos, e quando meus agentes o trouxerem e fizerem-no suar um pouco, teremos material de sobra para uma acusação. Estava enamorado da Srta. Dillard e tinha ciúmes de Robin... não só pela moça, como porque Cochrane sabia lançar essas flechas com maior destreza do que ele. Aqui mesmo brigaram. O professor ouviu-os. Sperling estava embaixo com Robin, segundo a evidência, uns minutos antes do assassinato...

— E — ajuntou Vance ironicamente — o nome dele significa "pardal". Quod erat demonstrandum. Não, sargento, isso é demasiado fácil. Desenvolve-se como um jogo de Canfield com as cartas empilhadas, visto que isto foi planejado com demasiado cuidado para que a suspeita recaísse diretamente sobre o culpado.

— Eu não vejo nenhum plano cuidadoso nisto — persistiu Heath. — Esse Sperling se irrita, levanta um arco, tira uma flecha da parede, segue Robin, e lá fora então atravessa-lhe o coração, fugindo em seguida.

Vance suspirou.

— Você é demasiado ingênuo para este mundo malvado, sargento. Se as coisas sucedessem com semelhante prontidão e candura, a vida seria muito simples... e penosa. Porém, não foi esse o modus operandi do assassinato de Robin. Em primeiro lugar, ninguém poderá disparar uma flecha contra um alvo humano móvel e dar exatamente entre as costelas sobre o ponto vital do coração. Segundo, existe essa fratura do crânio de Robin. Podia ter sido feita ao cair, porém não é provável. Terceiro, o chapéu dele estava a seus pés, o que não teria acontecido se a queda fosse natural. Quarto, o punho da flecha está tão amassado que duvido de que sustentaria um cordel. Quinto, Robin dava o rosto para a flecha, e enquanto Sperling fazia a pontaria com o arco, teria tido tempo de gritar e pôr-se a salvo. Sexto... — Vance fez uma pausa, enquanto acendia um cigarro. — Por Deus, sargento! Havia omitido algo. Quando a um homem lhe atravessam o coração, é certo que corre sangue de imediato, especialmente quando a extremidade da arma é maior do que o cabo e não há um tampão adequado para a abertura. Olhe! É possível que você encontre algumas manchas de sangue no piso da sala do clube... provavelmente perto da porta.

Heath duvidou, porém só momentaneamente. A experiência lhe havia ensinado há muito tempo que as sugestões de Vance não eram para ser tratadas com desprezo e, com um grunhido bem-humorado, se levantou e desapareceu na direção dos fundos da casa.

— Creio, Vance, que começo a entender o que você quer dizer — observou Markham com um olhar ofendido. — Mas, Santo Deus! Se a morte de Robin aparentemente de um flechaço fosse uma montagem teatral ex post fact, então estamos diante de alguma coisa demasiadamente diabólica.

— Foi obra de um maníaco — declarou Vance com sobriedade não habitual. — Não, porém, o maníaco convencional que se imagina ser Napoleão, mas um louco com um cérebro tão colossal que levou o juízo a um, falando humanamente, reductio ad absurdum... a um ponto em que o próprio humor se converte em uma fórmula de quatro dimensões.

Markham fumava vigorosamente, perdido em meditações.

— Espero que Heath não encontre nada — disse ele por fim.

— Por quê... em nome do céu? — replicou Vance. — Se não houver evidência material de que Robin encontrou seu fim na sala do clube, isso só fará com que o problema seja mais difícil do ponto de vista legal.

A evidência material, porém, lá estava. O sargento voltou minutos depois, cabisbaixo e nervoso.

— Raios, Sr. Vance! — explodiu ele. — O senhor tinha razão. — Não procurou ocultar a sua admiração. — Não há sangue no chão, mas sim uma mancha escura no cimento e sinais de que alguém a esteve esfregando com um pano molhado hoje. A mancha ainda não está seca. E fica bem perto da porta, onde o senhor havia dito. E o que é mais suspeitoso é que puseram um tapete em cima. Mas isto não quer dizer que Sperling não tenha nada com o assunto — disse ele belicosamente. — Ele podia ter disparado a flecha, dentro de casa, contra Robin...

— E depois limpou o sangue, secou o arco e a flecha fora, antes de ir... O tiro de flecha, para começar, sargento, não é um esporte interno. E Sperling sabe-o demasiado bem para procurar matar alguém com um flechaço. Um golpe tal como o que terminou com a memorável carreira de Robin teria sido uma casualidade pura. Nem o próprio Teucer o teria conseguido com toda a segurança... e, segundo Homero, Teucer era o campeão de arco-e-flecha entre os gregos.

No momento em que falava, Pardee cruzou pelo vestíbulo, em seu caminho para fora. Apenas chegara à porta da rua, Vance levantou-se de súbito e encaminhou-se para o umbral.

— Sr. Pardee, um momento por favor.

O interpelado virou-se com ar de graciosa complacência.

— Há uma pergunta mais que gostaríamos de fazer-lhe — disse Vance. — O senhor mencionou que viu Sperling e Beedle saírem daqui esta manhã pelo portão do muro. Está certo de que não viu nenhuma outra pessoa?

— Seguríssimo. Isto é, não me recordo de ter visto outra pessoa?

— Eu pensava particularmente no Sr. Drukker.

— Oh, Drukker? — Pardee sacudiu a cabeça com suave ênfase. — Não, pois de outro modo, eu me lembraria. Mas compreenda que poderia ter entrado uma dúzia de pessoas sem que eu as tivesse visto.

— É muito certo, muito certo — murmurou Vance com indiferença. — A propósito, a que classe de enxadristas pertence o Sr. Drukker?

Pardee mostrou certa surpresa.

— Praticamente, não é um jogador no verdadeiro sentido da palavra — explicou ele com cuidadosa precisão. — É um analista excelente, não obstante, e entende a teoria do jogo como ninguém. Mas não tem muita prática no tabuleiro.

Assim que Pardee se foi embora, Heath dirigiu um olhar triunfante a Vance.

— Noto, senhor, que não sou eu o único a quem interessa verificar o álibi do corcunda.

— Ah, porém há uma diferença entre comprovar um álibi e exigir que a pessoa mesma o comprove.

Nesse instante, abriu-se a porta da frente. Ouviram-se no vestíbulo fortes passos e no umbral apareceram três homens. Dois eram evidentemente detetives e ladeavam um jovem alto, de bom porte, de uns trinta anos de idade.

— Detivemo-lo, sargento — anunciou um dos detetives com um sorriso de satisfação. — Daqui foi diretamente para casa e estava fazendo as malas quando o apanhamos.

Os olhos de Sperling percorreram o quarto com apreensão cheia de ira.

Heath havia-se colocado diante do homem mirando-o triunfantemente, de cima a baixo.

— Bem, jovem. Você pensou que podia escapar, não?

— O cigarro do sargento subia e abaixava entre seus lábios enquanto falava.

As faces de Sperling ruborizaram-se e ele apertou a boca tenazmente.

— Então você não tem nada a dizer? — continuou falando Heath, segurando o queixo e com uma expressão feroz.

— Por ventura é mudo? Bem, já o faremos falar. — Voltou-se para Markham. — Que lhe parece, senhor? Levo-o para a Polícia Central?

— Talvez o Sr. Sperling não objete a responder aqui a umas quantas perguntas — disse tranqüilamente Markham. Sperling estudou durante um pouco o procurador do distrito. Depois dirigiu seu olhar para Vance, que meneou a cabeça animando-o.

— Que é que querem que eu diga? — perguntou ele com um evidente esforço para dominar-se. — Estava-me preparando para excursionar durante meu fim-de-semana, quando estes rufiões entraram violentamente em minha casa. E sem nenhuma palavra esclarecedora, nem sequer dando-me a oportunidade de falar com alguém de minha família, trouxeram-me para cá. Agora falam de levar-me à Central de Polícia. — Lançou a Heath um olhar de desafio. — Perfeitamente, leve-me lá... porém você pagará por isso.

— A que horas saiu daqui esta manhã, Sr. Sperling? — A voz de Vance era suave e insinuante e suas maneiras tranqüilizadoras.

— Cerca de onze e quinze — respondeu o indivíduo. — A tempo de tomar o trem de Scardale das onze e quarenta na estação Grande Central.

— E o Sr. Robin?

— Não sei a que hora saiu Robin. Disse que ia esperar Belle... a Srta. Dillard. Eu o deixei na sala do clube.

— Viu o Sr. Drukker?

— Sim, porém um minuto. Estava ali quando Robin e eu descemos; mas ele saiu imediatamente.

— Pelo portão do muro? Ou pelo campo de exercícios?

— Não me recordo... para dizer a verdade não prestei atenção... Mas, diga-me: a que vem tudo isto?

— O Sr. Robin foi assassinado esta manhã — disse Vance — perto das onze horas.

Os olhos de Sperling pareciam saltar das órbitas.

— Robin morto? Meu Deus!... Quem... quem o matou?

Os lábios do homem estavam secos, e ele os umedecia com a língua.

— Ainda não sabemos — respondeu Vance. — Atravessaram-lhe o coração com uma flecha.

Essa notícia deixou Sperling aturdido. Seus olhos moveram-se vagamente de um lado a outro e ele levou a mão ao bolso em busca de cigarro.

Heath se acercou mais dele e estendeu seu queixo para a frente.

— Pode ser que você saiba quem matou... com arco e flecha!

— Por que... por que pensa você que eu saiba? — tartamudeou Sperling.

— Bem — replicou o sargento implacavelmente —, não estava você com ciúmes de Robin? Você discutiu com ele acaloradamente nesta mesma sala, sendo a Srta. Dillard a causa não? E você esteve a sós com ele pouco antes de o matarem, não? E você é um bom atirador de flecha, não é? Por isto creio que você há de saber algo. Vamos! Não oculte nada. Ninguém mais senão você podia fazê-lo. Você brigou com ele por causa da moça e foi você a última pessoa vista com ele... só uns poucos minutos antes de ele ser morto. E que outro homem que não fosse um campeão como você podia matá-lo com arco e flecha? Apanhamos você.

Uma luz estranha iluminou os olhos de Sperling e seu corpo tornou-se rígido.

— Diga-me — falou com voz forçada e artificial — você encontrou o arco?

— Creio que sim. — Heath riu desagradavelmente. — No lugar onde você o deixou... no corredor.

— Como era o arco? — Sperling olhava como em sonho.

— Como era o arco? — repetiu Heath. — Um arco de tamanho regular...

Vance que havia estado observando fixamente, interrompeu:

— Creio compreender a pergunta, sargento. Era um arco de mulher, Sr. Sperling. De cerca de metro e meio. Mas bem leve... menos de quinze quilos de peso, diria eu.

Sperling respirou lenta e profundamente como um homem que se encoraja com alguma amarga resolução. Então seus lábios se separaram em um débil e triste sorriso.

— De que adianta? — perguntou ele com indiferença. — Pensei que tinha tempo de fugir... Pois sim, eu o matei.

Heath grunhiu com satisfação e sua maneira beligerante desapareceu imediatamente.

— Você tem mais senso do que eu pensava — disse ele com um tom quase paternal, fazendo sinais convencionais aos dois detetives. — Levem-no, rapazes. Usem o meu carro... está na rua. E metam-no na cadeia sem anotar o nome. Prefiro acusá-lo quando chegar ao gabinete.

— Vamos, rapaz — ordenou um dos detetives voltando-se para o vestíbulo.

Sperling, porém, não obedeceu imediatamente. Olhando para Vance, suplicou:

— Poderia... será que me permitiriam?... — começou a dizer.

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, Sr. Sperling. É melhor que o senhor não veja a Srta. Dillard. Não vale a pena afligi-la agora... Boa sorte.

Sperling voltou-se e, sem dizer nenhuma palavra mais, saiu entre os agentes.


VII

 

VANCE CHEGA A UMA CONCLUSÃO

 

(Sábado, 2 de abril — 15h30)

 

Assim que ficamos sós, Vance levantou-se, e espreguiçando-se, dirigiu-se à janela. A cena que acabava de se verificar, com seu alarmante clímax, nos havia deixado um tanto aturdidos. Nossos espíritos estavam ocupados, eu penso, com a mesma idéia. E quando Vance falou era como se expressasse nossos pensamentos.

— Ao que parece, voltamos à infância...

 

"Eu", disse o Pardal,

"Com meu arco-e-flecha,

Matei Cock Robin..."

 

Voltou lentamente para a mesa do centro e apagou no cinzeiro o seu cigarro. Com o canto do olho mirou Heath.

— Por que está tão pensativo, sargento? Deveria estar cantando melodias e dançando uma alegre tarantela. Não confessou ele seu vil e horrível feito? Não o enche de alegria saber que o culpado logo se consumirá de desgosto em uma cela?

— Para dizer a verdade, Sr. Vance — admitiu Heath com tristeza — não estou muito satisfeito. Esta confissão saiu demasiado fácil e... bem, vi muitos indivíduos desfilarem diante de mim, porém este, não sei por que, não me parece culpado. Realmente não sei o que dizer.

— De qualquer forma — manifestou Markham esperançosamente — sua confissão absurda esfriará a curiosidade dos jornais, dando-nos liberdade para prosseguir nossa investigação. Este caso vai levantar uma celeuma infernal; mas, enquanto a imprensa acreditar que o culpado está preso, não nos incomodará, perguntando-nos como vão as investigações.

— Eu não digo que ele seja inocente — falou Heath belicosamente, argumentando obviamente contra as suas mais íntimas convicções. — Temo-lo sobrecarregado de perguntas e penso que, confessando seu crime, no dia do julgamento os jurados considerariam essa confissão uma atenuante. Talvez ele não seja tão tolo, afinal.

— Eu não penso assim, sargento — replicou Vance. — O trabalho mental do moço foi espantosamente fácil. Sabia que Robin esperava a Srta. Dillard. Também sabia que ela lhe dera, por assim dizer, um despacho de improcedência à noite passada. Sperling evidentemente não tinha uma boa opinião de Robin, e quando se inteirou de sua morte por mãos de alguém que empunhava um arco pequeno e leve, chegou à conclusão de que Robin se havia excedido com a moça e ela lhe cravara uma flecha no coração. Ao nosso nobre pardal vitoriano não lhe restou senão fazer golpear seu peito juvenil e exclamar: "Ecce homom!"... É desolador.

— Bem, seja como for — grunhiu Heath —, eu não vou pô-lo em liberdade. Se o Sr. Markham não quer processá-lo, deve ter suas razões.

Markham olhou o sargento com certa tolerância. Percebia o nervosismo que o dominava e, graças à sua grande bondade, não se deu por ofendido.

— Embora, sargento — manifestou bondosamente — eu espere que você não se oponha continuar comigo a investigação, ainda que eu não me decida por enquanto a processar Sperling.

— Heath sentiu-se muito pesaroso e, levantando-se bruscamente, encaminhou-se para Markham, estendendo-lhe a mão, ao mesmo tempo que dizia:

— Bem sabe o senhor que estou às suas ordens!

Markham tomou a mão que o sargento lhe estendia e pôs-se em pé com um sorriso indulgente.

— Deixarei o caso em suas mãos. Tenho que fazer em meu escritório, pois Swacker está-me esperando. (1) — Encaminhou-se algo deprimido até o vestíbulo. — Antes de ir-me, explicarei a situação à Srta. Dillard e ao professor. Alguma outra idéia, sargento?

(1) Aos sábados, trabalhava-se meio expediente no escritório do procurador do distrito. Swacker era secretário de Markham.

 

— Sim, pretendo examinar bem este capacho que foi usado para limpar o piso embaixo. E irei à sala do clube com um pente fino. Também apertarei de novo os parafusos à cozinheira e ao mordomo; especialmente, à primeira, pois devia ter estado muito perto, quando se fez este sujo trabalho... Depois, toda a rotina... investigações pela vizinhança e coisas assim.

— Comunique-nos os resultados. Estarei no Club Stuyvesant, logo mais e amanhã à tarde.

Vance fora ter com Markham na arcada.

— Ouça, camarada — disse ele enquanto nos dirigíamos às escadas — não passe por alto esta nota secreta que deixaram no buraco da caixa de correspondência. Tenho uma forte suspeita psíquica de que possa ser a chave de tudo. Não seria demais se perguntássemos ao professor Dillard e a sua sobrinha se a palavra "Bispo" tem para eles algum sentido especial. Essa assinatura diocesana quer dizer algo, sem dúvida alguma.

— Pois eu não tenho tanta certeza — replicou Markham com ar incrédulo. — Para mim não tem significado algum. Mas seguirei as suas indicações.

Nem o professor, nem a Srta. Dillard puderam, entretanto, lembrar-se de alguma associação pessoal com a palavra "Bispo". O professor estava inclinado a pensar com Markham que a nota não teria significado nenhum em relação ao caso em foco.

— Na minha opinião — disse ele — é uma peça de melodrama juvenil. Não é provável que a pessoa que matou Robin adotasse um pseudônimo e escrevesse notas acerca de seu crime. Eu não conheço os costumes dos criminosos, mas tal conduta parece-me ilógica.

— O crime, sim, foi ilógico — aventurou Vance agradavelmente.

— Não se pode dizer que uma coisa seja ilógica, senhor

— replicou asperamente o professor — quando se ignoram as premissas de um silogismo.

— Exatamente. — O tom de voz de Vance era calculadoramente cortês. — Por conseguinte, a nota mesma pode não ser desprovida de lógica.

Markham diplomaticamente mudou o rumo da conversação.

— Vim particularmente para dizer-lhe, professor, que o Sr. Sperling esteve aqui há momentos; e, quando lhe disseram da morte do Sr. Robin, confessou ter sido ele o autor...

— Raymond confessou! — murmurou a Srta. Dillard. Markham olhou para a moça com simpatia.

— Para lhes ser franco, eu não acreditei no Sr. Sperling. Alguma idéia errônea de cavalheirismo conduziu-o indubitavelmente a admitir a culpabilidade do crime.

— Cavalheirismo? — repetiu ela, inclinando-se tensamente para a frente. — Que quer exatamente dizer com isto, Sr. Markham?

Foi Vance quem respondeu.

— O arco que se encontrou no local era de mulher.

— Oh! — A moça cobriu o rosto com as mãos e seu corpo se sacudia com os soluços.

O professor Dillard olhou-a desconsolado; e sua impotência tomou a forma de irritação.

— Que disparate é este, Markham? — perguntou ele.

— Qualquer atirador pode lançar flechas com arco de mulher... Este grande idiota! Por que tornar Belle infeliz com sua absurda confissão?... Markham, meu amigo, faça o que puder pelo rapaz.

Markham prometeu-lhe que o faria e nos levantamos para sair.

— A propósito, professor Dillard — disse Vance, detendo-se à porta. — Não vá interpretar-me mal, porém acho muito provável que a pessoa que se permitiu a zombaria de escrever à máquina essa nota, seja alguém que freqüenta esta casa. Há, por acaso, alguma máquina de escrever no prédio?

Era claro que o professor se ressentira com a pergunta de Vance, mas respondeu bastante cortesmente.

— Não, nem é do meu conhecimento que tenha tido alguma. Faz uns dez anos que me desfiz da minha, quando deixei a universidade. Quando preciso, mando tirar cópias numa agência.

— E o Sr. Arnesson?

— Nunca usou máquina de escrever.

Quando descíamos, encontramos Arnesson, que voltava da casa de Drukker.

— Acalmei o nosso Leibnitz local — anunciou com um suspiro exagerado. — Pobre Adolph! O mundo é demasiado para ele. Só está sereno quando se revolve nas fórmulas relativistas de Lorentz e Einstein. Mas, quando é arrastado à realidade, se desintegra.

— Talvez lhe interesse saber — disse Vance, com naturalidade — que Sperling acaba de confessar o crime.

— Já! — Arnesson deu gargalhadas. — Isso faz sentido. "Eu, disse o pardal..." Muito nítido. Entretanto, não sei como será do ponto de vista matemático.

— E desde que concordamos em pô-lo a par de tudo — continuou Vance — talvez seja útil para seus cálculos saber que temos motivos para crer que Robin foi assassinado na sala do clube, sendo levado para fora depois.

— Alegra-me sabê-lo. — Arnesson tornou-se momentaneamente sério. — Sim, isto pode afetar meu problema. — Acompanhou-nos até a porta principal. — Se houver alguma coisa em que eu possa servir-lhes, procurem-me.

Vance se havia detido para acender um cigarro, porém eu sabia, pelo aspecto lânguido do seu olhar, que estava formando alguma decisão. Lentamente se voltou para Arnesson.

— Sabe se o Sr. Drukker ou o Sr. Pardee têm máquina de escrever?

Arnesson sobressaltou-se um pouco e seus olhos piscaram astutamente.

— Ah! A nota do Bispo... Compreendo. Meramente um assunto de pormenores. Inteiramente certo. — Meneou a cabeça com satisfação. — Sim, ambos têm máquina de escrever. Drukker escreve incessantemente; e a correspondência de Pardee é tão volumosa como a de um astro de cinema. Também escreve tudo à máquina.

— Não seria muito incômodo — perguntou Vance — se o senhor pudesse conseguir um modelo do tipo de escrita de cada máquina e também uma amostra do papel que usam esses cavalheiros?

— Incômodo nenhum. — Arnesson parecia encantado com a incumbência. — Esta tarde o senhor terá tudo. Onde posso encontrá-lo?

— O Sr. Markham estará no Club Stuyvesant. O senhor poderá telefonar para lá, e ele pode providenciar...

— Por que se molestar em providenciar algo? Levarei tudo pessoalmente ao Sr. Markham. Ficarei encantado de fazê-lo. É uma carreira fascinante a de detetive.

Vance e eu voltamos para a casa no carro de Markham e este prosseguiu para a repartição. Às sete horas daquela noite, encontramo-nos os três no Club Stuyvesant para jantar; e às oito e meia estávamos sentados no canto favorito de Markham na ante-sala, fumando e tomando café.

Durante a refeição, não se falou nada sobre o caso. As últimas edições dos vespertinos traziam breves informações sobre a morte de Robin. Evidentemente Heath tinha conseguido desviar a curiosidade dos repórteres cortando-lhes as asas da imaginação. Estando fechado o gabinete do procurador do distrito, os repórteres não puderam bombardear Markham com perguntas, de modo que os últimos jornais do dia não puderam conseguir informações adequadas. O sargento tinha guardado bem a casa de Dillard, pois os repórteres não conseguiram aproximar-se de qualquer membro da criadagem.

Markham havia apanhado um exemplar da última edição do Sun quando vinha da sala de jantar para a ante-sala, lendo-o cuidadosamente enquanto sorvia seu café.

— Este é o primeiro eco débil — comentou tristemente. — Tremo ao pensar o que dirão os jornais de amanhã.

— Não há outra coisa a fazer senão suportá-los — sorriu Vance. — Assim que algum repórter sagaz perceber a combinação Robin — Pardal — Flecha, os editores de jornais da cidade ficarão loucos de alegria e em cada primeira página aparecerão os versos infantis.

Markham estava desalentado. Finalmente, indignado, deu um murro no braço da poltrona.

— Que diabo, Vance! Não permitirei que você esgote a minha paciência com essa idiotice de rimas infantis. — Logo acrescentou com a ferocidade da incerteza: — É uma mera coincidência, digo-lhe eu. Simplesmente, não pode ser outra coisa.

Vance suspirou.

— Convença-se contra sua vontade; você é da mesma opinião ainda, para parafrasear Butler. — Meteu a mão no bolso e tirou uma folha de papel. — Deixando de parte pro tempore tudo o que pertence à infância, apresento-lhe aqui uma cronologia edificante que fiz antes do jantar... Edificante? Bem, poderia sê-lo, se soubéssemos como interpretá-la.

Markham estudou o papel durante vários minutos. Vance havia escrito o seguinte:

9:00h — Arnesson saiu de casa para ir à biblioteca da Universidade.

9:15 h — Belle Dillard saiu de casa para ir jogar tênis.

9:30h — Drukker foi ver Arnesson.

9:50 h — Drukker desceu à sala do Clube.

10:00 h — Robin e Sperling permaneceram meia hora na sala da casa de Dillard.

10:30 h — Robin e Sperling desceram à sala do clube.

10:32 h — Drukker disse que saiu pelo portão do muro para passear no parque.

10:35 h — Beedle foi ao mercado.

10:55 h — Drukker disse que se retirou para sua casa.

11:15 h — Sperling saiu pelo portão do muro.

11:30h — Drukker disse que ouviu um grito de mulher no quarto de sua mãe.

11:35 h — O professor Dillard assomou ao balcão do quarto de Arnesson.

11:40h — O professor Dillard viu o corpo de Robin no campo de exercícios de tiro de flecha.

11:45 h — O professor Dillard telefonou para o gabinete do procurador do distrito.

12:25 h — Belle Dillard voltou do tênis.

12:30 h — A polícia chegou à casa de Dillard.

12:35 h — Beedle voltou do mercado.

14:00 h — Arnesson voltou da Universidade.

 

Portanto, Robin foi assassinado entre 11:15 (quando se retirou Sperling) e 11:40 (quando o professor Dillard descobriu o cadáver).

As outras pessoas que se sabe terem estado na casa durante esse tempo são Pyne e o professor Dillard.

A posição de todas as outras pessoas relacionadas de um modo ou outro com o assassinato era como se segue (conforme declarações e provas ora em mão):

 

1. — Arnesson esteve na biblioteca da Universidade entre 9:40 e 14:00 horas.

2. — Belle Dillard esteve na cancha de tênis entre 9:15 e 12:25.

3. — Drukker esteve no parque entre 10:32 e 10:55 e em seu estúdio das 10:55 em diante.

4. — Pardee esteve em sua casa toda a manhã.

5. — A Sra. Drukker esteve em seu quarto toda a manhã.

6. — Beedle esteve no mercado entre 10:35 e 12:35.

7. — Sperling estava a caminho da Grande Estação Central entre 11:15 e 11:40, quando então tomou um trem para Scarsdale.

Conclusão: — A menos que algum destes sete álibis seja desfeito, todo o peso da suspeita e por certo a culpabilidade real deve recair sobre um dos dois: Pyne ou o professor Dillard.

 

Quando Markham terminou de ler o papel, fez um gesto de exasperação.

— Toda a sua dedução é absurda — disse irritadamente — e sua conclusão é um non sequitor. A cronologia indica-nos a hora da morte de Robin, porém sua suposição de que uma das pessoas que vimos hoje seja necessariamente culpada é uma notória insensatez. Você ignora completamente a possibilidade de que alguém de fora tenha cometido o crime. São três os caminhos para chegar ao campo de exercícios e à sala do clube sem pôr os pés na casa: o portão do muro que dá para a Rua 75; o portão do outro muro que dá para a Rua 76, e a passagem entre os dois prédios de apartamentos que dá para a Riverside Drive.

— Oh, é altamente provável que uma dessas três entradas fosse usada — replicou Vance. — Porém, não omita o fato de que o mais retirado e, por conseguinte, o mais provável desses três meios de penetração, isto é, a passagem, é guardado por uma porta fechada, cuja chave ninguém, exceto algum membro da família Dillard, tem. Não posso conceber que um assassino entre por qualquer dos portões do muro com o risco de ser descoberto.

Vance inclinou-se para diante com um semblante sério.

— E Markham, há outras razões para que eliminemos estranhos ou gatunos casuais. A pessoa que enviou Robin de volta para seu Criador devia estar informada do que se passava na casa de Dillard esta manhã entre as onze e um quarto e as doze menos vinte. Sabia que Pyne e o velho professor estavam sós. Sabia que Belle Dillard não estava em casa. Também sabia que Beedle se achava ausente e que assim não poderia ouvi-lo, nem surpreendê-lo. Sabia que Robin — sua vítima — estava lá e que Sperling tinha-se retirado. Mais ainda, conhecia o plano do terreno, a situação da sala do clube, por exemplo; é demasiado claro que Robin foi assassinado naquela sala. Ninguém que não estivesse familiarizado com esses pormenores não se teria atrevido a entrar e preparar um assassinato espetacular. Digo a você, Markham, que foi alguém muito íntimo dos Dillards; alguém que pôde encontrar, exatamente esta manhã, todas essas condições.

— Que me diz do grito da Sra. Drukker?

— Ah, por certo, que quer que lhe diga? A janela da Sra. Drukker podia ter sido um fator que ao assassino tenha escapado. Ou talvez soubesse e decidisse correr esse único risco de ser visto. Além do mais, não sabemos se a senhora gritou ou não. Ela disse que não. Drukker disse que sim. Ambos têm um motivo ulterior para o que disseram a nossos confiantes ouvidos. Drukker pode ter-se referido ao grito como meio de provar que estava em casa entre as onze e as doze. E a Sra. Drukker pode ter negado como temor de que ele não estivesse. É uma verdadeira olla podrida. Mas não importa. O ponto principal a que eu desejo chegar é que foi um íntimo dos Dillards quem executou esse diabólico trabalho.

— Temos muito poucos dados que garantam esta conclusão — manifestou Markham. — O acaso pode ter desempenhado uma parte...

— Vamos, homem! O acaso pode responder a umas quantas permutações, mas não a vinte. E há ainda aquela nota deixada na caixa do correio. O assassino sabia até o segundo nome de Robin.

— Supondo, por hipótese, que o assassino tenha escrito a nota.

— Prefere você crer que algum engraçadinho soubesse do crime por telepatia ou por meio de um binóculo, se dirigisse rapidamente a uma máquina de escrever, compusesse um ditirambo, voltasse correndo à casa e sem nenhuma razão plausível assumisse o terrível risco de que alguém o visse deixar o papel na caixa?

Antes que Markham pudesse responder, Heath irrompeu na sala e dirigiu-se para onde estávamos. Sua preocupação e nervosismo eram patentes. Mal nos cumprimentou, foi logo entregando a Markham um envelope escrito à máquina.

— Foi recebido pelo World no correio vespertino. Quinan, o repórter policial do World, trouxe-me ainda há pouco e disse que o Times e o Herald também receberam cópias. As cartas foram seladas hoje à uma hora, o que quer dizer que provavelmente foram postadas entre as onze e as doze horas. E o que é pior, Sr. Markham, na vizinhança da casa de Dillard, isto é, na agência postal da Rua 69, Oeste.

Markham abriu o envelope. De repente seus olhos abriram-se desmedidamente e os músculos de seu rosto se contraíram. Sem levantar os olhos, passou a carta a Vance. Era uma simples folha de papel de máquina onde estavam escritas palavras idênticas às da nota encontrada na caixa do correio da casa de Dillard. Verdadeiramente, a comunicação era uma duplicata exata da outra: "Joseph Cochrane Robin está morto. Quem matou Cock Robin? Sperling significa pardal. — O BISPO".

Vance mirou apenas o papel.

— Isto é próprio do assassino, sabe? — disse ele indiferentemente. — O Bispo temia que o público não entendesse o seu gracejo, e por isso o explicou à imprensa.

— Gracejo, Sr. Vance? — perguntou Heath amargamente- — Não é a classe de gracejos a que estou acostumado. Este caso é coisa de louco...

— Exatamente, sargento, um gracejo estúpido.

Um rapaz uniformizado acercou-se do procurador distrital, inclinou-se sobre o seu ombro e discretamente lhe disse algo ao ouvido.

— Traga-o aqui imediatamente — ordenou Markham. E dirigindo-se a nós:

— É Arnesson. Provavelmente trará as amostras dos tipos de máquina. — Seu rosto obscureceu-se e ele olhou uma vez mais a nota que Heath tinha trazido. — Vance, — disse ele em voz baixa, — estou começando a crer que esse caso pode-se tornar tão terrível como você pensa. Quem sabe se o tipo é o mesmo...

Mas, quando a nota foi comparada com as amostras trazidas por Arnesson, nenhuma semelhança pôde ser encontrada. Não somente eram distintos os caracteres e as tintas como até o papel não era como o das amostras que Arnesson tinha tirado das máquinas de Pardee e Drukker.


VIII

 

SEGUNDO ATO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Não é necessário lembrar aqui a grande sensação que causou em todo o país o assassinato de Robin. Todos se recordam da importância que os jornais deram a tão estonteante tragédia. Designavam-na por diversos nomes. Alguns se referiam ao "assassinato de Cock Robin". Outros mais alusivos, porém menos exatos, chamavam-na "o assassinato de Mother Goose". Mas a assinatura do bilhete à máquina atraía fortemente a atenção jornalística para o mistério; e com o tempo a morte de Robin passou a ser conhecida como o "misterioso assassinato do Bispo". Sua combinação estranha e terrível de horror e linguagem infantil inflamou a imaginação do público, e as implicações sinistras e insanas de seus pormenores afetaram todo o país, como se fosse um grotesco pesadelo cuja atmosfera não se pudesse fazer desaparecer.

Durante a semana seguinte à descoberta do corpo de Robin, os detetives da Seção de Homicídios, da mesma forma que os destacados junto ao gabinete do procurador do distrito, estiveram ocupados dia e noite, em ativas investigações. O recebimento da duplicata das notas do Bispo pelos principais matutinos de Nova York havia dissipado todas as idéias que Heath pudesse ter sobre a culpabilidade de Sperling; e, embora se recusasse a concordar oficialmente com a inocência do jovem, lançou-se com igual gosto e obstinação na tarefa de encontrar um culpado mais plausível. A investigação que organizou e dirigiu foi tão completa como a do caso Greene. Nenhum caminho que encerrasse a esperança mais insignificante foi omitido; e o relatório que redigiu teria causado alegria mesmo aos criminalistas meticulosos da Universidade de Lausanne. Na tarde do dia do crime, ele e seus homens estiveram procurando o pano usado para limpar o sangue derramado na sala do clube. Não o encontraram. Também foi feito um exame minucioso da referida sala na esperança de encontrarem-se outras pistas. Entretanto, embora Heath tenha posto a tarefa nas mãos de peritos, foi nulo o resultado. A única coisa que puderam averiguar é que o capacho que ficava perto da porta tinha sido removido para tapar o lugar onde estivera o sangue no piso de cimento. Este fato, todavia, comprovou simplesmente a primeira observação do sargento.

A informação post-mortem do Dr. Doremus deu força à teoria agora reconhecida e aceita de que Robin tinha sido assassinado na sala do clube e em seguida colocado fora. A autópsia demonstrou que o golpe na base do crânio fora particularmente violento e desferido com um instrumento pesado e redondo, resultando uma fratura com depressão muito distinta da fratura fissurada, causada quando o golpe é dado com uma superfície plana. Procurou-se infrutiferamente o instrumento com que golpearam a vítima.

Beedle e Pyne foram interrogados várias vezes por Heath. Nada de novo se apurou. Pyne insistiu nas suas declarações de que passara toda a manhã no quarto de Arnesson, com exceção de umas breves ausências para ir ao roupeiro e à porta da frente, mantendo-se tenazmente na sua negativa de que houvesse tocado o corpo ou o arco quando o professor Dillard o mandou à procura de Sperling. Entretanto, o sargento não estava de todo satisfeito com o depoimento do homem.

— Este velho glutão e manhoso esconde alguma coisa na manga — disse a Markham com desgosto. — Para fazê-lo falar é preciso uma boa mangueira e a cura de água.

Uma investigação em todas as casas da Rua Setenta e Cinco entre West End Avenue e Riverside Drive foi procedida na esperança de ser encontrado um inquilino que tivesse visto alguém entrar ou sair da casa de Dillard pelo portão do muro, durante aquela manhã. Mas nada se conseguiu com essa diligência incômoda. Ao que parece, Pardee foi o único morador dentro do raio de visão da casa de Dillard que observava alguém na vizinhança.

Enfim, depois de vários dias de árduas investigações, o sargento concluiu que devia prosseguir sem nenhuma ajuda exterior ou fortuita.

Os vários álibis das sete pessoas que Vance havia relacionado numa anotação para Markham foram examinados tão exatamente como as circunstâncias o permitiam.

Foi obviamente impossível verificá-los em todos os detalhes, pois a maioria estava baseada unicamente nas declarações das pessoas envolvidas. Além disso, a investigação teve de ser feita com o maior cuidado para evitar que se levantassem suspeitas. Os resultados dessas inquirições foram os seguintes:

1. Arnesson havia sido visto na biblioteca da Universidade por várias pessoas, inclusive por um bibliotecário-auxiliar e por dois estudantes. Porém, o tempo indicado nesses depoimentos não era nem consecutivos, nem específico em relação à hora.

2. Belle Dillard havia jogado várias partidas de tênis nas quadras públicas da Rua 119 esquina com o Riverside Drive, mas como estavam mais de quatro pessoas com ela, teve de ceder duas vezes o seu lugar a uma amiga, não podendo nenhum dos jogadores afirmar positivamente se havia permanecido nas quadras durante estes dois períodos.

3. A hora em que Drukker deixou a sala do clube foi determinada definitivamente por Sperling; porém não foi encontrado ninguém que o tivesse visto depois. Ele admitiu não haver encontrado nenhum conhecido no parque, mas insistiu em que se deteve alguns minutos antes para brincar com algumas crianças que ele não conhecia.

4. Pardee tinha estado só em seu estúdio. Sua velha cozinheira e o criado japonês mantiveram-se na parte traseira da casa, não vendo seu patrão senão à hora do almoço. O álibi dele, portanto, foi puramente negativo.

5. A palavra da Sra. Drukker teve de ser aceita em relação aos lugares onde ela esteve naquela manhã, pois ninguém a havia visto entre 9:30, hora em que Drukker foi ver Arnesson, e 13 horas, quando a cozinheira serviu o almoço.

6. O depoimento de Beedle foi verificado a fundo e achado satisfatório. Pardee a tinha visto sair da casa às 10:35, e vários mascates do Mercado de Jefferson lembraram-se de tê-la visto entre onze e doze horas.

7. O fato de ter Sperling tomado o trem das 11:40 para Scarsdale foi comprovado; por conseguinte, saiu da casa de Dillard à hora que ele disse, isto é, 11:15. A determinação deste ponto, contudo, era um assunto meramente de rotina, pois ele tinha sido praticamente eliminado do caso. Todavia, se — como Heath explicara — não tivesse ele tomado o trem das 11:40, chegaria a ser de novo uma possibilidade importante.

Prosseguindo nas suas investigações por linhas mais gerais, o sargento entrou nas histórias e associações das várias pessoas envolvida. A tarefa não era difícil. Todos eram bem conhecidos, de modo que as informações concernentes aos mesmos eram de pronto obtidas; porém, nenhum item foi desenterrado que trouxesse, mesmo que remotamente, alguma luz sobre o assassinato de Robin. Nada se soube que desse a mais leve idéia da causa do crime. E depois de uma semana de investigar e especular intensivamente, o assunto estava ainda rodeado de um mistério impenetrável.

Sperling não tinha sido posto em liberdade. A evidência prima facie contra ele, combinada com a sua absurda confissão, tornou impossível tal ato por parte das autoridades. Markham, contudo, havia entretido uma conferência extra-oficial com os advogados que o pai de Sperling contratara para defesa do filho, havendo chegado, segundo creio, a uma espécie de "acordo de honra", pois, embora o Estado nada tivesse feito para processá-lo (apesar de se achar o Grande Júri funcionando nesse tempo), os advogados da defesa não impetraram qualquer habeas corpus a favor do acusado. Todas as indicações assinalavam a suposição de que Markham e os advogados de Sperling esperavam que o verdadeiro culpado fosse detido.

Markham havia entrevistado várias vezes os membros da criadagem da casa de Dillard, num esforço persistente por obter luz sobre um ponto qualquer que pudesse levar a um caminho de investigação frutífera. Pardee havia sido intimado a comparecer ao gabinete do procurador do distrito para prestar seu testemunho a respeito do que havia observado da sua janela, na manhã da tragédia. A Sra. Drukker foi outra vez interrogada, porém não só negou enfaticamente haver olhado pela janela, como zombou da idéia de que tivesse gritado.

Quando interrogaram novamente Drukker, este modificou um pouco o seu depoimento anterior. Disse que talvez se tivesse equivocado a respeito da origem do grito e sugeriu que podia ter sido na rua ou em algum dos apartamentos vizinhos. Em verdade, disse ele, era pouco provável que sua mãe desse um grito, pois quando ele se afastou da porta do quarto, pouco depois, ela cantava uma velha canção Hänsel und Gretel, de Humperdinck.

Markham, convencido de que nada mais se podia extrair de Drukker e sua mãe, terminou concentrando toda a sua atenção na casa dos Dillards.

Arnesson assistiu às conferências preliminares levadas a efeito no gabinete de Markham. E, apesar de suas observações loquazes e cépticas, parecia encontrar-se no mesmo estado de perplexidade que nós. Vance motejou com bom humor sobre a fórmula matemática que ia esclarecer o caso, porém Arnesson insistiu em que a fórmula não podia ser desenvolvida enquanto todos os termos da equação não tivessem sido encontrados. Parecia considerar este assunto como uma espécie de diversão infantil. Markham, em várias ocasiões, expandira a sua exasperação. Censurou Vance por ter feito de Arnesson um auxiliar extra-oficial na investigação, porém Vance se defendeu alegando que Arnesson, mais cedo ou mais tarde, poderia fornecer alguma informação aparentemente estranha que viesse a servir como vantajoso ponto de partida.

— Sua teoria matemático-criminal é sem dúvida uma tolice — disse Vance. — A psicologia, não a ciência abstrata, descomporá, no final das contas, esta mixórdia em seus elementos. Mas precisamos de alguns materiais para continuar, e Arnesson conhece o interior da casa de Dillard melhor do que qualquer um de nós. Conhece os Drukkers e Pardee também. Sem precisar acrescentar que é um homem que mereceu as honras acadêmicas e possui uma inteligência sutil. Enquanto seu cérebro e sua atenção estiverem postos neste caso, há probabilidades de encontrar-se alguma coisa de vital importância para nós.

— Pode ser que você tenha razão — grunhiu Markham. — Mas a atitude zombeteira deste homem me ataca os nervos.

— Seja mais católico — retrucou Vance. — Considere suas ironias em relação a suas especulações científicas. Que poderia ser mais natural para um homem que projeta seu espírito constantemente nas vastas regiões interplanetárias, e lida com infinitas e hiperfísicas dimensões, do que considerar irrisòriamente as pequenezas desta vida? Grande rapaz este Arnesson! Talvez não seja muito familiar e agradável, mas sem dúvida muito interessante.

Vance havia tomado o caso com desusada seriedade. As traduções de seu Menandro tinham sido definitivamente postas de lado. Ele tornou-se pensativo e mal-humorado — seguro sinal de que seu espírito estava ocupado com um problema absorvente. Depois de jantar, todas as noites, ia à sua biblioteca e demorava-se a ler durante várias horas, não os volumes clássicos e preciosos sobre arte com os quais geralmente passava o seu tempo, e sim livros como A Psicologia da Loucura, de Bernard Hart; A Inteligência e sua Relação com o Desconhecido, de Freud; Psicologia Anormal e Emoções Recalcadas, de Coriat; Comicidade e Humor, de Lippo; O Assassinato Complexo, de Daniel A. Huebcch; As Obsessões e a Psicas-tenia, de Janet; Aritmomania, de Donath; O Desejo Alcançado e os Contos de Fadas, de Riklin; A Importância Forense da Representação de Força, de Leppman; Sobre a Inteligência, de Kuno Fischer; Psicologia Criminal, de Erich Wulffen; A Loucura do Gênio, de Hollenden, e Os Jogos dos Seres Humanos, de Groos.

Ele passava horas a fio revisando relatórios policiais. Foi duas vezes à casa de Dillard, e, em uma ocasião, visitou a Sra. Drukker, acompanhado de Belle Dillard. Uma noite teve uma longa conversa com Drukker e Arnesson sobre a concepção do espaço físico como uma pseudo-esfera lobatchewskiana, de Sitter, sendo seu objetivo, penso eu, familiarizar-se com a mentalidade de Drukker. Leu também o livro deste último, Linhas Mundiais no Contínuo Multidimensional, e passou quase um dia todo estudando a Análise do Gambito Pardee, de Janowski e Tarrasch.

No domingo — oito dias depois do assassinato — disseme:

— Van, este problema é de uma sutileza inacreditável. Nenhuma investigação comum poderá resolvê-lo. Acha-se em uma região estranha do cérebro; e a sua infantilidade superficial é o ponto mais terrível e desconcertante. Tampouco o seu autor vai-se contentar com um estratagema singelo. A morte de Cock Robin não serve a nenhum fim definitivo. A imaginação perversa que concebeu esse crime bestial é insaciável. E, a menos que pudéssemos expor o mecanismo psicológico anormal por trás disso tudo, haverá mais dessas piadas amargas...

Na manhã seguinte, seu prognóstico se realizou. Fomos ao gabinete de Markham às onze horas, para ouvir o relatório de Heath e estudar novos meios de ação. Embora tivessem decorrido nove dias desde a morte de Robin, nenhum progresso se havia feito, e os jornais faziam cada vez mais acerbas críticas à polícia e ao gabinete do procurador criminal. Foi, pois, com uma considerável depressão que Markham nos recebeu naquela manhã de segunda-feira. Heath não havia chegado ainda; mas, minutos depois, quando apareceu, era evidente que ele estava também desanimado.

— Cada vez que nos movemos, esbarramos contra um muro — queixou-se ele, quando resumiu os resultados das atividades de seus subordinados. — Não há nenhum indício novo: e só podemos pensar em Sperling, fora dele não há outro. Estou quase crendo que tenha sido algum vagabundo que procurava roubar a sede do clube e, ao ver-se descoberto, complicou-nos a vida.

— Esses vagabundos, sargento, — replicou Vance, — não têm imaginação e são desprovidos de senso de humor, o que não sucede com a pessoa que mandou Robin fazer a viagem eterna. Não só o matou como converteu o ato em uma insana pilhéria, escrevendo depois cartas explicativas à imprensa, para que o público não perdesse nenhum pormenor. Acha que seja esse o procedimento de um assassino comum?

Heath fumou em silêncio durante alguns minutos, com um ar grave. Por fim, dirigiu a Markham um olhar de exasperado terror.

— Parece incrível o que tem sucedido nesta cidade ultimamente — queixou-se ele. — Sem ir mais longe, ainda esta manhã, foi encontrado morto por um balaço em Riverside Park perto da Rua 84, um indivíduo chamado Sprigg. Em seu bolso, havia dinheiro... não lhe tiraram nada. Tinham acabado de o matar. Era um rapazinho... estudante da Universidade de Colúmbia. Morava com os pais. Não tinha inimigos. Saíra para dar seu passeio costumeiro, antes de ir à aula. Um pedreiro encontrou-o morto meia hora depois. — O sargento mastigava, com raiva, seu charuto. — Agora temos que esclarecer este homicídio e, provavelmente, os jornais farão de nossa vida um inferno, se não descobrirmos o autor. E não há nada, absolutamente, em que nos basearmos.

— Não obstante, sargento, — disse Vance, consoladoramente — matar um homem com um tiro é um acontecimento comum. Para esta classe de crime existe uma infinidade de motivos vulgares que os justificam. São os incidentes cênicos e dramáticos do assassinato de Robin que destroem todos os nossos processos de dedução. Se o assunto não fosse tão infantil... — Subitamente, cessou de falar e suas pálpebras caíram levemente. Inclinando-se para diante com deliberação, apertou a cinza do seu cigarro contra o cinzeiro.

— Você disse, sargento, que esse rapaz se chamava Sprigg?

Heath acenou com a cabeça tristemente.

— E — apesar do esforço de Vance, havia na sua voz um tom de ansiedade — qual é o primeiro nome dele?

Heath olhou para Vance surpreendido, porém, ao fim de uma breve pausa, puxou seu amarrotado caderno e, folheando-o, respondeu:

— John Sprigg... John Sprigg.

Vance tirou outro cigarro e acendeu-o com todo o cuidado.

— E, diga-me, não foi morto com um 32?

— Hem? — Os olhos de Heath dilataram-se e ele estendeu para a frente o queixo. — É verdade, com um 32.

— E a bala penetrou por cima da cabeça em direção vertical?

O sargento pôs-se de pé num salto e olhou fixamente para Vance, visivelmente aturdido. A sua cabeça moveu-se lentamente de cima para baixo.

— Também é verdade. Mas, como diabos o senhor...

Vance levantou uma mão para ordenar silêncio. Foi, entretanto, a sua fisionomia mais que o gesto o que fez Heath interromper a pergunta.

— Oh, meu Deus! — E Vance levantou-se como quem se encontra debaixo de uma alucinação. Se eu não o conhecesse tão bem, juraria que ele estava aterrorizado. Então, indo até a alta janela atrás do escritório de Markham, lançou o olhar para os cinzentos muros de pedra do cemitério. — Não posso crer nisso — murmurou ele. — É demasiado espantoso... Mas, de fato, é a realidade...

A voz impaciente de Markham ressoou.

— A propósito de que esta agitação, Vance? Não seja tão misterioso! Como chegou você a saber que Sprigg foi morto com um balaço vertical em cima da cabeça e com um 32? Que é que você pensa?

Vance voltou-se e seus olhos fixaram-se nos de Markham.

— Não está compreendendo? — perguntou calmamente. — É o segundo ato desta diabólica paródia!... Esqueceu você a sua "Mother Goose"? — E, com uma voz muito surda, que trouxe uma sensação de indizível horror àquela sala obscura e velha, recitou:

 

"Havia um homenzinho,

Com um pequeno revólver,

E as suas balas eram de chumbo, chumbo, chumbo,

Disparou contra Johnny Sprigg."


IX

 

A FÓRMULA DO TENSOR

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Markham olhava para Vance como se estivesse hipnotizado. Heath havia permanecido rígido, a boca parcialmente aberta e o charuto suspenso a algumas polegadas de seus lábios. Na atitude do sargento havia algo verdadeiramente cômico, e eu tinha ímpetos de soltar uma risada. Mas, naquele momento, meu sangue parecia gelado e todo movimento muscular era-me impossível.

O primeiro a falar foi Markham. Atirando a cabeça para trás, pôs violentamente a mão sobre a mesa.

— Que nova loucura é essa? — Ele lutava violentamente contra a horrenda sugestão de Vance. — Estou começando a pensar que o assassinato de Robin afetou seu espírito. Não pode ser morto por um balaço um homem com um nome tão vulgar como Sprigg, sem que você trate de converter isso em um grotesco ato de prestidigitação?

— Entretanto, você deve admitir, meu caro Markham, — replicou Vance suavemente — que este Johnny Sprigg foi morto com um pequeno revólver, bem no meio da cabeça.

— Que tem isso? — Um leve rubor cobriu o rosto de Markham. — Será por acaso motivo suficiente para que você vá por aí cantarolando os versos de Mother Goose?

— Oh, vamos! Eu não costumo cantarolar, você sabe. — Vance deixou-se cair numa cadeira em frente à mesa de Markham. — É possível que eu não seja um grande declamador, porém, realmente, eu não cantarolo... — Dirigiu a Heath um olhar insinuante. — Que me diz você, sargento?

Mas este não tinha opinião a manifestar. Estava ainda com o seu ar atônito.

— Você está sugerindo seriamente...? — começou Markham, mas Vance o interrompeu.

— Sim! Estou sugerindo seriamente que a pessoa que matou Cock Robin com uma flecha descarregou seu mau humor sobre o desventurado Sprigg. A coincidência não entra em questão. Semelhantes paralelos que se repetem destruiriam inteiramente a base de todo raciocínio e razão. Para mim, o mundo já está bastante louco; porém, tal loucura dissiparia todo o pensamento científico e racional. A morte de Sprigg é bem espantosa, mas temos de enfrentá-la. E por mais que nos esforcemos em protestar contra estas deduções incríveis, teremos que aceitá-las afinal.

Markham tinha-se levantado, e passeava nervosamente de um lado para outro da sala.

— Admito a presença de elementos inexplicáveis neste novo crime. — Sua combatividade se havia desvanecido, e seu tom de voz era moderado. — Mas, se aceitamos, por hipótese, que um monomaníaco esteja reconstruindo os versos de seus dias de infância, não posso ver em que isto nos possa ajudar. Praticamente, eliminaria todos os meios habituais de investigação.

— Eu não diria isso. — Vance fumava, pensativamente. — Estou inclinado a pensar que semelhante suposição nos proporciona uma base definida de investigação.

— Seguramente! — exclamou Heath num misto de sarcasmo e gravidade. — Tudo o que temos que fazer é sair e encontrar um cançonetista entre seis milhões de indivíduos. Nem fale!

— Não se deixe abater pelo desânimo, sargento. Nosso evasivo tapeador é um espécime entomológico bastante notável. Além disso, temos indícios certos quanto ao seu ambiente verdadeiro...

Markham voltou-se para Vance.

— Que quer dizer com isso?

— Simplesmente que este segundo crime tem relação com o primeiro não só psicológica mas também geograficamente. Os dois assassinatos foram cometidos a pouca distância um do outro. Pelo menos, nosso demônio destruidor tem um fraco pelas vizinhanças da casa de Dillard. Mais ainda, os mesmos fatores dos dois assassinatos excluem a possibilidade de que ele haja vindo de longe para dar expansão ao seu versátil humor, em lugares pouco conhecidos. Como já assinalei para você, Robin foi mandado para o outro mundo por alguém que conhecia todos os costumes e detalhes da casa, e a par das condições existentes na mesma à hora exata em que se desenrolou o sombrio drama. E não há dúvida de que este segundo crime não poderia ter sido posto em cena com tanta perfeição se o seu empresário não tivesse conhecido as intenções ambulatórias de Sprigg esta manhã. Na verdade, todo o mecanismo destas obras misteriosas prova que o operador conhecia intimamente tudo o que se referia a suas vítimas.

O pesado silêncio que se seguiu foi rompido por Heath.

— Se o senhor estiver certo, então já podemos eliminar Sperling do caso. — O sargento admitiu isto de má vontade, porém mostrava que o argumento de Vance havia surtido efeito nele.

De súbito, vira-se para o procurador do distrito e pergunta-lhe desesperadamente:

— Que acha que devemos fazer, Sr. Markham?

Markham estava ainda lutando contra a aceitação da teoria de Vance, e não respondeu. Entretanto, tornou a sentar-se em frente da escrivaninha, e tamborilou com os dedos sobre o mata-borrão. Em seguida, perguntou, sem levantar a vista:

— Quem está encarregado do caso Sprigg, sargento?

— O capitão Pitts. Os agentes do posto da Rua 68 encarregaram-se do caso, primeiro; mas, quando a notícia chegou à Polícia Central, Pitts e dois dos nossos rapazes foram tratar do assunto. Pitts chegou pouco antes de eu ter vindo para cá. Diz que o caso é um fracasso. Mas, o inspetor Moran disse-lhe para ficar com ele.

Markham apertou o botão da campainha situado sob a borda da sua mesa e, quase ao mesmo tempo, apareceu, pela porta giratória, Swacker, seu jovem secretário.

— Chame o inspetor Moran ao telefone — ordenou. Uma vez conseguida a comunicação, Markham tomou o fone, mantendo uma conversação de alguns minutos. Quando largou o fone, dirigiu a Heath um sorriso amargo.

— Você ficou oficialmente, agora, encarregado do caso Sprigg, sargento. O capitão Pitts estará aqui de um momento para outro e então saberemos onde estamos. — Começou a revolver uma pilha de papéis que tinha diante de si... — Tenho de convencer-me — acrescentou meio animado — de que Sprigg e Robin estão na mesma bolsa.

Dez minutos mais tarde, apareceu um homem baixo e forte, de rosto magro e severo, e bigode negro. Era o capitão Pitts. Segundo soube mais tarde, ele era um dos homens mais competentes da Divisão dos Detetives. A sua especialidade eram os gangsters. Depois de apertar a mão de Markham, dirigiu a Heath uma olhadela amistosa. Quando foi apresentado a Vance e a mim, fez uma inclinação de má vontade e olhou-nos com ar suspeito. Já se ia voltar para o outro lado, quando a sua expressão mudou subitamente.

— É o senhor Philo Vance? — perguntou.

— Assim parece, capitão, — suspirou Vance. Pitts sorriu e, avançando, estendeu-lhe a mão.

— Prazer em conhecê-lo, senhor. Tenho ouvido o sargento Heath falar muitas vezes a seu respeito.

— O Sr. Vance está-nos ajudando, não-oficialmente, no caso Robin, capitão, — explicou Markham — e, como o tal Sprigg foi morto nas mesmas redondezas, cremos que seria de grande utilidade para nós ouvir sua informação preliminar sobre o caso. — Tomou da mesa uma caixa de Corona Perfectos e a empurrou até o capitão.

— Não precisa fazer o pedido desta forma, senhor — sorriu o capitão e, escolhendo um charuto, olhou-o com uma espécie de satisfação voluptuosa. — O inspetor disseme que o senhor tinha algumas idéias sobre este novo caso e que queria por isto encarregar-se dele. Para lhe confessar a verdade, alegro-me em não ter nada que ver com o assunto. — Sentando-se comodamente, acendeu o charuto. — Que deseja o senhor saber?

— Conte-nos todo o caso — disse Markham. Pitts acomodou-se em sua cadeira.

— Pois bem, aconteceu que eu estava de serviço, quando se deu o crime, pouco depois das oito da manhã; não tardei em dirigir-me com dois homens ao local. Os agentes da seção já estavam trabalhando. Ao mesmo tempo que eu, chegou o rnédico-perito...

— O senhor ouviu o relatório dele, capitão? — perguntou Vance.

— Certamente. Sprigg foi morto por um balaço. A bala entrou por cima da cabeça em direção vertical. A arma usada foi um 32. Não havia sinal de luta — nenhuma pisadura. Nada extraordinário. Apenas um balaço vertical.

— Estava de costas quando o encontraram?

— Justamente. Estendido no meio do caminho.

— E a parte do crânio que havia tocado o solo não estava fraturada? — A pergunta foi feita negligentemente.

Pitts tirou o cigarro da boca e lançou a Vance um olhar sutil.

— Creio que vocês já sabem alguma coisa do caso — disse, meneando a cabeça sagazmente. — Sim, a parte posterior do crânio estava fraturada. Por certo a queda foi forte. Mas, creio que ele não a sentiu — claro que não, com uma bala no crânio...

— Falando do balaço, capitão, não achou nada estranho?

— Bem... sim, — concordou Pitts fazendo virar seu charuto entre o polegar e o indicador. — A parte superior da cabeça de um indivíduo não é um lugar por onde penetre ordinariamente uma bala. Além do mais, seu chapéu está intacto, o que indica que caiu antes que a pessoa fosse atingida. Estas circunstâncias poderiam ser chamadas estranhas, Sr. Vance.

— Sim, capitão, são extremamente estranhas... E eu diria que o tiro foi à queima-roupa.

— De uma distância não maior que cinco centímetros. O cabelo estava chamuscado ao redor do orifício de entrada. Além disso, o rapaz devia ter visto o outro puxar o revólver e, ao abaixar-se, caiu-lhe o chapéu. Isto explicaria a causa do tiro à queima-roupa em cima da cabeça.

— Sim, sim. Só que, nesse caso, ele não teria caído de costas, mas de bruços... Mas, prossiga com sua exposição, capitão.

Pitts dirigiu a Vance um olhar de assentimento e continuou.

— A primeira coisa que fiz foi revistar-lhe os bolsos. Tinha um bom relógio de ouro e uns quinze dólares em papel e em moeda de prata. De modo que temos de afastar o móvel do roubo, a menos que o criminoso, assustado por sua obra, fugisse sem chegar a realizar seu propósito. Mas, isto não é provável, pois naquela parte do parque nunca há ninguém de manhã cedo. O caminho ali desaparece sob uma enorme pedra, que oculta à vista. O patife que fez o serviço soube escolher o lugar... Enfim, deixei dois homens guardando o cadáver até que viesse o carro para levá-lo e, em seguida, fui à casa de Sprigg, na Rua 93. Soube o nome e o endereço por duas cartas que ele levava no bolso. Averigüei que se tratava de um estudante da Universidade de Colúmbia, que morava com seus pais, e que era seu hábito dar um passeio pelo parque, depois do café da manhã. Hoje, ele saiu de casa cerca das sete e meia...

— Ah! Era seu hábito passear todas as manhãs pelo parque — murmurou Vance. — Muito interessante!

— Entretanto, isso não nos conduz a nenhuma parte — replicou Pitts. — Quantos há que fazem o mesmo! Esta manhã não havia nada de extraordinário em Sprigg. Seus pais disseram-me que não notaram nada fora do comum; e que quando se despediu deles, o fez alegremente. Depois, dirigi-me à Universidade e lá fiz investigações. Falei com dois estudantes que o conheciam e também com um dos instrutores. Sprigg era um rapaz sossegado, com poucos amigos e reservado. Rapaz sério — sempre ocupado com os estudos. Era dos primeiros da classe e nunca foi visto com mulheres. Ao que parece, detestava o sexo feminino. Não era o que se chama sociável. E aí está por que não vejo nada de especial nesse assassinato. Deve ter sido um acidente. O tiro podia ter sido dado contra outro.

— E a que horas acharam o cadáver?

— Cerca das oito e um quarto. Viu-o um pedreiro quando cruzava o dique da Rua 79, junto aos trilhos da estrada de ferro. Notificou o fato a um agente que estava de serviço no Riverside Drive, que, por sua vez, o comunicou ao posto local de polícia.

— E Sprigg saiu de sua casa, na Rua 93, às sete e meia. — Vance olhou para o teto meditativamente. — Por conseguinte teve tempo de sobra para chegar a esse ponto do parque, antes que o matassem. Parece que alguém, conhecedor dos seus costumes, o estava esperando. Limpeza e rapidez, hem?... Segundo creio, não foi fortuito, não lhe parece Markham?

Este, aparentando não ter ouvido, dirigiu-se a Pitts.

— Não foi encontrado nada que pudesse ser utilizado como ponto de partida?...

— Não, senhor. Meus homens pesquisaram o local escrupulosamente com resultado negativo.

— E nos bolsos de Sprigg... entre seus papéis... ?

— Nada. Tenho tudo na repartição... duas cartas comuns, uns quantos objetos que se guardam no bolso... — Aqui se deteve, como se subitamente se recordasse de alguma coisa, e puxou um caderno de notas. — Havia isto — disse sem entusiasmo, entregando a Markham um pedaço de papel cortado em forma triangular. — Encontrei-o debaixo do cadáver. Não tem significado algum, porém guardei-o — força do hábito.

O papel não tinha mais do que dez centímetros de comprimento e parecia arrancado do canto de uma folha de papel sem pauta. Continha parte de uma fórmula matemática escrita à máquina, com o lambda, os sinais de igualdade e do infinito feitos a lápis. Reproduzo o papel aqui, pois, apesar de sua aparente falta de importância, estava destinado a desempenhar mais tarde uma parte sinistra e assombrosa na investigação sobre a morte de Sprigg.

Vance olhou com naturalidade para o papel, porém Markham deteve-lhe a mão durante um momento com o cenho franzido. Ele ia fazer um comentário, quando seu olhar cruzou com o de Vance.

Em vez disso, atirou o papel descuidadamente sobre a mesa, com ligeiro encolhimento de ombros.

— É isso tudo o que encontrou?

— É tudo, senhor. Markham levantou-se.

— Fico-lhe muito agradecido, capitão. Não sei o que se possa fazer neste assunto de Sprigg, mas vamos estudá-lo. — Apontando para a caixa dos Perfectos, disse: — Ponha dois no bolso, antes de sair.

— Muito obrigado, senhor. — Pitts escolheu os charutos e, pondo-os cuidadosamente no bolso do colete, apertou a mão de todos.

Quando se foi embora, Vance levantou-se com presteza, inclinando-se sobre o pedaço de papel que estava na mesa de Markham.

— Meu Deus! — Puxou o seu monóculo e, durante um momento, estudou os símbolos. — É estupendo. Ora, onde foi que vi esta fórmula recentemente?... Ah! O tensor de Riemann-Christoffel... agora me recordo; Drukker usa-a em seu livro para determinar a curvatura gaussiana do espaço esférico e homaloidal... Mas o que Sprigg estaria fazendo com ela? A fórmula está consideravelmente muito além de um curso de faculdade... — Suspendeu o papel contra a luz. — É do mesmo material que o utilizado pelo Bispo em suas notas escritas. E, provavelmente, já observou você que o tipo, isto é, a letra da máquina, é também similar.

Heath havia avançado, e observava agora o papel.

— Sim, é o mesmo. — O fato parecia confundi-lo. — De toda maneira, é um traço de união entre os dois crimes.

Os olhos de Vance tomaram um ar de surpresa.

— Um traço de união... é verdade. Mas, a presença da fórmula debaixo do corpo de Sprigg parece tão irracional como o assassinato em si mesmo...

Markham caminhava nervoso pela sala.

— Disse você que é uma fórmula usada por Drukker em seu livro?

— Sim. Mas o fato não o compromete necessariamente. O tensor é conhecido por todos os matemáticos. É uma das expressões técnicas na geometria não-euclidiana; e, embora fosse descoberta por Riemann em relação com um problema concreto de física (1), chegou a ser de grande importância na matemática da relatividade. É altamente científica no sentido abstrato, e não pode ter valor direto no assassinato de Sprigg. — Ele se sentou novamente. — Arnesson ficará encantado com o achado. Poderá tirar alguma conclusão surpreendente disto.

(1) Esta expressão foi, na realidade, desenvolvida por Christoffel para um problema sobre a condutividade do calor e publicado por ele, em 1869, no Crelle Journal für reine und angewandte Mathematik.

 

— Não vejo motivo — protestou Markham — para informar Arnesson acerca deste novo crime. Sou de opinião que se deveria ocultar-lhe tudo o que fosse possível.

— Receio que o Bispo não o permitirá — replicou Vance.

Markham, baixando a cabeça, exclamou:

— Santo Deus! Que coisa maldita temos entre as mãos? Espero despertar de um momento para outro e constatar que tenho estado sob a ação de um pesadelo.

— Não teremos esta sorte, senhor — resmungou Heath, tomando uma atitude resoluta como um homem que se prepara para combater. — Que devemos fazer? Para onde nos dirigiremos? Preciso de ação.

Markham apelou para Vance.

— Você parece ter alguma idéia acerca deste negócio. Que sugere? Eu, francamente, confesso achar-me perdido em um escuro caos.

Vance aspirou profundamente a fumaça do seu cigarro. Então, inclinou-se para diante como para dar mais força às suas palavras.

— Markham, meu amigo, há somente uma conclusão possível. Estes dois assassinatos foram concebidos pelo mesmo cérebro: ambos são oriundos do mesmo impulso grotesco. E, desde que o primeiro foi cometido por alguém familiarizado perfeitamente com as condições interiores da casa de Dillard, conclui-se daí que devemos procurar alguém que, além desse conhecimento, soubesse também que um homem chamado John Sprigg costumava passear todas as manhãs por certa parte do Riverside Drive. Uma vez que essa pessoa esteja em nosso poder, devemos confrontar as situações de tempo, lugar, oportunidade e causa possível. Existe uma inter-relação entre Sprigg e os Dillards. Qual é, eu não sei. Mas, nosso primeiro passo é encontrá-la. Que melhor ponto de partida que a casa de Dillard?

— Primeiro, almoçaremos — disse Markham displicentemente. — Depois iremos até lá.


X

 

UMA RECUSA DE AUXÍLIO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 14h)

 

Passava pouco das duas horas, quando chegamos à casa de Dillard. Pyne abriu-nos a porta. Se nossa visita lhe causou surpresa, conseguiu ele ocultá-la admiravelmente. Entretanto, notei no olhar que dirigiu a Heath uma certa intranqüilidade; mas, quando falou, sua voz tinha a claridade untuosa e insípida do criado bem-educado:

— O Sr. Arnesson não voltou ainda da Universidade — informou-nos ele.

— Pelo que vejo, Pyne, seu forte não é a leitura do pensamento — disse Vance. — Nós vimos ver você e o professor Dillard.

O homem pareceu perturbar-se, porém, antes que pudesse responder, a Srta. Dillard apareceu na porta de entrada da sala.

— Acreditei reconhecer sua voz, Sr. Vance. — E nos envolveu a todos num sorriso de acolhimento cordial. — Tenham a bondade de entrar... A Sra. Mae veio por alguns minutos... Vamos passear juntas esta tarde — explicou ela, no instante em que entrávamos na sala.

Junto à mesa estava a Sra. Drukker, com a mão ossuda apoiada no espaldar da cadeira. Evidentemente, acabava de levantar-se. Em seus olhos refletia-se o temor enquanto nos mirava sem pestanejar, e os músculos de sua face pareciam tremer; suas delgadas feições pareciam um tanto contorcidas. Ela não fez esforço para falar, mas permaneceu impassível, como se estivesse esperando uma terrível condenação, como um criminoso diante do tribunal, no momento de receber a sentença.

A voz agradável de Belle Dillard aliviou o embaraço da situação.

— Vou correndo até lá em cima para avisar meu tio que os senhores estão aqui.

Mal tinha saído da sala, quando a Sra. Drukker inclinou-se, apoiando-se sobre a mesa, e disse a Markham com voz sepulcral e cheia de espanto:

— Já sei por que vieram. É por causa daquele jovem que foi morto com um balaço esta manhã no parque.

Suas palavras foram tão surpreendentes e inesperadas que Markham não pôde responder logo, e foi Vance quem o fez por ele.

— Então a senhora está inteirada da tragédia, Sra. Drukker? Como pôde saber tão depressa?

Um ar astucioso surgiu no rosto da mulher, dando-lhe o aspecto de uma malvada feiticeira.

— Todo o mundo não fala de outra coisa, na vizinhança — respondeu com evasiva.

— Deveras? Que pena! Mas por que a senhora imagina que vimos aqui por este assunto?

— O jovem não se chamava John Sprigg? — Um sorriso leve e terrível sublinhou a pergunta.

— Na verdade, John Sprigg. Entretanto, isso não explica a relação que possa existir entre ele e os Dillards.

— Ah, mas existe! — Sua cabeça movia-se para cima e para baixo, com uma espécie de horrível satisfação. — É um brinquedo — um brinquedo de criança. Primeiro, Cock Robin... depois John Sprigg. As crianças devem brincar... todas as crianças saudáveis devem brincar. — Subitamente, mudou de tom. Seu rosto cobriu-se de uma expressiva doçura, e seus olhos adquiriram um ar triste.

— É um jogo diabólico, não lhe parece, Sra. Drukker?

— E por que não? Acaso a vida mesma não é diabólica?

— Para alguns de nós, sim. — Uma curiosa simpatia vibrava nas palavras de Vance, enquanto olhava aquele ser estranho e trágico que tínhamos diante de nós. — Diga-me, — continuou ele com voz alterada, — sabe quem é o Bispo?

— O Bispo? — repetiu ela com perplexidade, franzindo as sobrancelhas. — Não, não conheço. É outro jogo infantil?

— Algo dessa espécie, imagino eu. De qualquer modo, o Bispo se interessa por Cock Robin e John Sprigg. De fato, pode ser que alguém esteja fazendo esses jogos fantásticos. E nós estamos assistindo a eles, Sra. Drukker. Esperamos ouvir dos lábios desse alguém toda a verdade.

A mulher meneou a cabeça vagamente.

— Eu não o conheço. — Em seguida, olhou vingativamente para Markham. — Mas de nada serve descobrir quem matou Cock Robin e disparou um balaço em John Sprigg, bem no meio da cabeça. Nunca descobrirá... nunca... nunca... — Sua voz tinha-se elevado com excitação, e um tremor apoderou-se dela.

Nesse momento entrou Belle Dillard, que correu até a Sra. Drukker, passando-lhe o braço pela cintura.

— Vamos — disse ela, consolando-a. — Iremos passear pelo campo, Sra. Mae. — Voltando-se para Markham, em tom de censura, disselhe friamente: — Meu tio espera-os na biblioteca. — Dito isso, saiu da sala, levando consigo a Sra. Drukker.

— Agora é que está bom, senhor — comentou Heath, que assistira a tudo, presa de enorme assombro. — Só lhe ocorria o nome de John Sprigg, a todo o momento.

Vance meneou a cabeça.

— E nossa chegada aqui assustou-a. Todavia, o espírito dela é mórbido e impressionável, sargento. E, vivendo constantemente a contemplar a deformidade do filho e lembrando-se dos dias em que ele era como os outros, é quase possível que acidentalmente ela nos elucide o significado da morte de Sprigg e Robin... — e olhou para Markham. — Há correntes estranhas neste caso, deduções terríveis e incríveis. É como estar perdido nas cavernas de Dovre-Troll, do Peer Gynt, de Ibsen, onde só existem anomalias e monstruosidades. — Encolheu os olhos, embora eu soubesse que não lhe haviam passado despercebidos completamente a tristeza e o horror lançados sobre nós pelas palavras da Sra. Drukker. — Talvez possamos encontrar algo mais sólido com o professor Dillard.

O professor nos recebeu sem entusiasmo e com um mínimo de cordialidade. Sua mesa estava literalmente coberta de papéis e era evidente que nós o perturbávamos em meio às suas ocupações.

— A que se deve esta visita inesperada, Markham? — perguntou ele, depois de nos havermos sentado. — Tem algo a nos informar sobre a morte de Robin? — Colocou um sinal numa página do livro Espaço, Tempo e Matéria, de Weyl, e, recostando-se indeciso, nos olhou com impaciência. — Estou muito ocupado na solução de um problema de mecânica de Mach...

— Sinto muito — disse Markham. — Nada tenho a informar com relação ao caso de Robin. Mas houve outro assassinato na vizinhança e temos motivos para acreditar que ele se relaciona com a morte de Robin. O que eu queria perguntar, particularmente, ao senhor é se o nome de John Sprigg lhe é ou não familiar.

A expressão de enfado do professor Dillard mudou rapidamente.

— É esse o nome do indivíduo que foi assassinado? — Sua atitude já não denotava mais falta de interesse.

— Sim. Um rapaz de nome John Sprigg foi assassinado por um balaço em Riverside Park, perto da Rua 84, esta manhã, pouco depois das sete e meia.

Os olhos do professor pousaram no tapete, e ele permaneceu silencioso por um pequeno lapso de tempo. Parecia lutar interiormente com algo que o preocupava.

— Sim — disse ele, por fim. — Eu... nós conhecemos um moço com esse nome... embora me pareça improvável que seja o mesmo.

— Quem é ele? — A voz de Markham era ansiosamente insistente.

Outra vez o professor hesitou.

— O rapaz a quem me refiro é o melhor aluno de matemática de Arnesson — o que em Cambridge chamam um aluno sobreexcelente nas ciências matemáticas.

— Como o conhece o senhor?

— Arnesson trouxe-o aqui várias vezes. Queria que eu o conhecesse e conversasse com ele. Arnesson orgulhava-se muito dele, e devo reconhecer que possuía um talento pouco comum.

— Então ele era conhecido por todas as pessoas da casa?

— Sim. Creio que o apresentaram a Belle. E se nesse "todas as pessoas da casa" você quer incluir Pyne e Beedle, dir-lhe-ia que o nome lhes era também familiar.

Foi Vance quem fez a pergunta seguinte.

— Diga-me, professor Dillard, os Drukkers conheciam Sprigg?

— É muito possível. Arnesson e Drukker se vêm muito amiúde... Se bem me recordo, creio que Drukker esteve aqui uma noite em que Sprigg nos visitava.

— E Pardee conhecia-o também?

— A respeito deste, eu não poderia dizê-lo. — O professor bateu impacientemente no braço da cadeira e, voltando-se para Markham, disselhe:

— Ouça-me — sua voz tinha uma petulância angustiada — a que vêm todas essas perguntas? Que tem de ver a nossa amizade com um estudante chamado Sprigg com o caso desta manhã? Seguramente, vocês não quererão dizer-me que o morto é o aluno de Arnesson.

— Receio que assim seja — disse Markham.

Havia um tom de ansiedade, quase de temor na voz do professor — segundo me pareceu — quando ele falou em seguida.

— Mesmo assim, que relação pode ter esse fato conosco? E como pode você relacionar sua morte com a de Robin?

— Concordo em que não há nada de positivo para tirarmos deduções — disselhe Markham. — Mas a falta de finalidade de ambos os crimes e a falta total de motivos parecem dar-lhes uma curiosa unidade de aspecto.

— Você quer dizer, certamente, que não encontrou o motivo. Mas, se todos os crimes sem motivo aparente fossem relacionados entre si...

— Também existem as circunstâncias de tempo e proximidade nesses dois casos — acrescentou Markham.

— É essa a base de sua presunção? — A maneira do professor era de benevolência desdenhosa. — Você nunca foi um bom matemático, Markham, mas deveria saber, pelo menos, que nenhuma hipótese pode ser construída sobre uma premissa tão fraca.

— Ambos os nomes, — interpôs Vance — Cock Robin e Johnny Sprigg, são de personagens de versos infantis muito conhecidos.

O ancião mirou-o, fixamente, com grande assombro; e, pouco a pouco, seu rosto ficou rubro de cólera.

— Seu humorismo, senhor, está fora de lugar.

— Não é o meu humorismo, ai de mim! — replicou Vance tristemente. — A troça é do Bispo.

— O Bispo? — O professor Dillard esforçou-se por conter a sua indignação. — Veja, Markham: não posso permitir que brinquem comigo. É a segunda vez que mencionam um Bispo misterioso nesta sala; e eu quero saber o que isso significa. Supondo que um malvado tenha escrito uma carta louca aos jornais, relacionada com a morte de Robin, que tem este Bispo a ver com Sprigg?

— Debaixo de seu cadáver foi encontrado um papel que tinha uma fórmula matemática escrita a máquina, e parecia provir da mesma máquina com que o Bispo escreveu seus bilhetes.

— O quê! — O professor inclinou-se para diante. — Disse você a mesma máquina? E uma fórmula matemática?... Qual era a fórmula?

Markham abriu sua carteira e tomou o pedaço de papel triangular que Pitts lhe havia dado.

— O tensor de Riemann-Christoffel... — O professor Dillard examinou demoradamente o papel, devolvendo-o depois a Markham. Parecia que envelhecera de repente. Seus olhos denotavam fadiga, quando os levantou para olhar-nos. — Não vejo neste caso luz alguma. — Seu tom de voz denotava resignação impotente. — Mas talvez vocês tenham razão em seguir o caminho que se propuseram. Que desejam de mim?

Markham estava sensivelmente surpreendido ante a atitude nervosa de Dillard.

— Vim procurá-lo, principalmente, para assegurar-me se havia ou não alguma ligação entre Sprigg e esta casa. Mas dir-lhe-ei, com toda a franqueza, que não vejo, agora que fiquei sabendo que havia tal ligação, como adaptá-la à cadeia dos acontecimentos. Entretanto, gostaria de, com a sua permissão, interrogar Pyne e Beedle, como eu achasse conveniente.

— Pergunte-lhes o que quiser, Markham. Você jamais poderá acusar-me de lhe ter interceptado o caminho. — Ergueu o olhar suplicante. — O que espero é que me avisem antes de tomarem qualquer medida drástica.

— Isso eu posso prometer-lhe, senhor — Markham levantou-se. — Mas receio que, por enquanto, estejamos muito longe de tomar medidas drásticas. — Estendeu-lhe a mão e notou que havia uma ansiedade oculta no ancião, ao qual desejava expressar sua simpatia sem falar nos seus sentimentos.

O professor acompanhou-nos até a porta.

— Não posso compreender esse tensor escrito a máquina — murmurou ele, sacudindo a cabeça. — Mas, se há alguma coisa que eu possa fazer...

— Há alguma coisa que o senhor pode fazer por nós, professor Dillard — disse Vance, detendo-se na porta. — No dia da morte de Robin, entrevistamos a Sra. Drukker...

— Ah!

— E, embora ela negasse ter estado sentada em sua sacada, naquela manhã, existe uma possibilidade de ela ter visto algo do que sucedeu no campo de exercícios, entre onze horas e meio-dia.

— Ela lhe deu essa impressão? — Na pergunta do professor notava-se um subtom de interesse reprimido.

— Remotamente. Foi o depoimento de Drukker, que disse haver ouvido sua mãe gritar, o que me fez crer que ela podia ter visto algo que preferisse ocultar-nos. E ocorreu-me que o senhor, provavelmente, teria mais influência junto a ela que qualquer outra pessoa, e que, se realmente ela testemunhou o fato, o senhor poderia conseguir que ela lho dissesse.

— Não! — O professor Dillard falou quase asperamente; mas prontamente pôs a mão no braço de Markham e seu tom de voz mudou. — Há coisas que vocês não me devem pedir que faça. Se essa pobre e desgraçada mulher viu alguma coisa da sua sacada naquela manhã, vocês mesmos devem averiguar. Eu não quero torturá-la, e sinceramente tampouco desejo que vocês a incomodem. Existem outros meios para encontrar o que vocês querem saber. — Olhou fixamente para os olhos de Markham. — Ela não deve ser quem diga isso a vocês. Vocês mesmos seriam os primeiros a senti-lo.

— Devemos averiguar o que pudermos — disse Markham resolutamente, porém com bondade. — Há nesta cidade um demônio solto e não posso deter minha mão para evitar o sofrimento de alguém... por muito trágico que pudesse ser esse sofrimento. Todavia, asseguro-lhe que não torturarei a ninguém desnecessariamente.

— Pensaram vocês — perguntou tranqüilamente o professor Dillard — que a verdade que procuram pode ser mais horrível que os próprios crimes?

— Eu o arriscarei. Mas, assim mesmo, se eu soubesse que era exato, não me deteria por nada.

— Decerto que não. Mas, Markham, eu sou muito mais velho que você. Eu já tinha cabelos brancos quando você era apenas um menino que lutava com logaritmos e antilogarítmos; e quando alguém envelhece, aprende as verdadeiras proporções no universo. As proporções todas mudam. Os valores que damos às coisas uma vez perdem seu significado. Eis por que os velhos perdoam mais: eles sabem que os valores feitos pelo homem não têm importância.

— Mas, enquanto tivermos de viver com os valores humanos — argüiu Markham —, é meu dever apoiá-los. E eu não posso, através de nenhum sentido pessoal de simpatia, recusar tomar qualquer caminho que possa conduzir à verdade.

— Talvez você tenha razão — suspirou o professor. — Contudo, você não me deve pedir que o ajude neste caso. Se você souber a verdade, seja caritativo. Esteja seguro de que o culpado é responsável antes que você peça que o mandem à cadeira elétrica. Existem espíritos enfermos como há corpos enfermos. E, amiúde, ambos o estão.

Quando voltamos à sala, Vance acendeu um cigarro com maior cuidado do que de costume.

— O professor — disse ele — não está absolutamente feliz com a morte de Sprigg. E, embora não o tenha admitido, essa fórmula do tensor convenceu-o de que Sprigg e Robin pertencem à mesma equação. Mas ficou convencido de modo demasiadamente rápido. Por quê? Mais ainda, não lhe importou admitir que Sprigg era pessoa conhecida da casa. Eu não digo que ele suspeite, porém tem temores... É engraçada a sua atitude. Aparentemente não quer obstruir a justiça legal que você mantém com tanto zelo, Markham; mas ele decididamente tem pouco interesse em secundar sua cruzada no que concerne aos Drukkers. Quisera saber o que se esconde atrás de sua consideração pela Sra. Drukker. Eu não diria assim, sem mais nem menos, que o professor é de natureza sentimental. E o que significa essa vulgaridade sobre o espírito e o corpo doentes? Parecia um programa para uma classe de cultura física, não?... Que dia azarado! Vamos fazer algumas perguntas a Pyne e a sua filha.

Markham sentou-se, fumando pensativamente. Raras vezes o vi tão desanimado.

— Não vejo o que podemos esperar deles — comentou. — Mesmo assim, sargento, faça vir Pyne aqui.

Quando Heath saiu, Vance dirigiu a Markham um olhar burlesco:

— Verdadeiramente você não deveria queixar-se. Deixe que Terêncio o console: Nil tam difficile est, quin quaerendo investigari possit. E como é difícil este problema!... — Subitamente tornou-se grave. — Estamos manipulando quantidades desconhecidas. Estamos incitados a lutar contra alguma força estranha e anormal que não opera segundo as leis aceitas da conduta. É ao mesmo tempo sutil... oh, infinitamente sutil... e nada familiar. Mas, pelo menos sabemos que emana de alguma parte dos arredores desta casa. E devemos dar busca em todos os recantos e gretas psicológicos. Em alguma parte, perto de nós, jaz o dragão invisível, portanto não se assuste com as perguntas que eu fizer a Pyne. Devemos procurar nos lugares improváveis...

Ouviram-se passos que se aproximavam da porta da sala e um momento depois entrou Heath com o velho mordomo a reboque.


XI

 

O REVÓLVER ROUBADO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 15h)


— Sente-se, Pyne — disse Vance, em tom amável. — Temos permissão do professor Dillard para interrogar você e esperamos que nos responda a todas as perguntas.

— Pois não, senhor, — respondeu o homem. — Estou certo de que não há nada que o professor Dillard tenha motivo para ocultar.

— Excelente — retrucou Vance enquanto se recostava com indolência. — Para começar, a que horas foi servido esta manhã o desjejum?

— Às oito e meia, senhor, como sempre.

— Estiveram presentes todos os membros da família?

— Sim, senhor.

— Quem acorda a família e a que horas?

— Eu, às sete e meia. Chamo à porta.

— E espera a resposta?

— Sim, senhor, sempre.

— Agora, pense, Pyne: deixou alguém de responder-lhe esta manhã?

O homem inclinou a cabeça enfaticamente:

— Não, senhor.

— E ninguém chegou tarde para o café da manhã?

— Todos compareceram a tempo, como sempre, senhor.

Vance inclinou-se para diante e depositou a cinza do cigarro no cinzeiro.

— Viu, por acaso, sair ou entrar alguém esta manhã antes do café?

A pergunta foi lançada como por descuido, porém notei um ligeiro estremecimento de surpresa nas pálpebras delgadas e caídas do mordomo.

— Não, senhor.

— Supondo que assim fosse, — prosseguiu Vance, — não teria sido possível que alguém da casa pudesse sair e entrar, sem que você visse?

Pela primeira vez durante a entrevista, Pyne pareceu relutar em responder.

— Bem, senhor, o fato é — disse ele com dificuldade — que alguém poderia ter usado a porta principal esta manhã sem que eu percebesse, pois estava na sala de refeições pondo a mesa. E ainda mais, poderiam ter usado a porta da sala do clube, pois minha filha conserva geralmente fechada a porta da cozinha enquanto prepara o café.

Vance fumou pensativamente durante um instante. Então, em tom positivo, perguntou:

— Alguém da casa usa revólver?

Os olhos do mordomo abriram-se desmensuradamente.

— Não que eu... saiba, senhor — respondeu ele com certa vacilação.

— Ouviu você alguma vez falar do Bispo, Pyne?

— Oh, não, senhor! — O rosto do mordomo empalideceu. — Refere-se ao homem que escreveu aquelas cartas aos jornais?

— Refiro-me simplesmente ao Bispo — disse Vance com displicência. — Mas, diga-me, ouviu você algo acerca de um homem que assassinaram esta manhã em Riverside Park?

— Sim, senhor, o porteiro da casa ao lado falou-me dele.

— Conhecia você o jovem Sprigg?

— Eu o vi aqui uma ou duas vezes.

— Ele esteve recentemente aqui?

— Na semana passada, senhor. Creio que foi quinta-feira.

— Quem mais esteve aqui com ele?

Pyne franziu o sobrolho procurando recordar-se.

— O Sr. Drukker — disse ele, depois de um momento. —E agora me recordo que também estava o Sr. Pardee. Achavam-se juntos no quarto do Sr. Arnesson. Estiveram conversando até tarde.

— No quarto do Sr. Arnesson, hem? Costuma o Sr. Arnesson receber visitas no quarto?

— Não, senhor, — explicou Pyne — porém o professor estava trabalhando na biblioteca e a Srta. Dillard estava com a Sra. Drukker aqui na sala.

Vance permaneceu em silêncio durante algum tempo.

— Isso é tudo, Pyne — disse ele por fim. — Tenha a bondade de dizer a Beedle que venha imediatamente.

Beedle não tardou a chegar até nós, apresentando-se com sórdida agressividade. Vance fez-lhe as mesmas perguntas que havia feito a Pyne. As respostas, monossilábicas em sua maior parte, não apresentaram nada de novo. Mas, no final da breve entrevista, Vance perguntou-lhe se por acaso havia olhado pela janela da cozinha antes do café.

— Olhei uma ou duas vezes — respondeu ela com ar de desafio. — Por que não havia de olhar?

— Você viu alguém lá fora?

— Ninguém mais do que o professor e a Sra. Drukker.

— Nenhum desconhecido? — Vance procurou dar a impressão de que não tinha importância a presença do professor Dillard e da Sra. Drukker no pátio, aquela manhã, porém pela forma lenta e deliberada com que procurou a sua cigarreira no bolso verifiquei que a informação lhe havia interessado muitíssimo.

— Não — replicou brevemente a mulher.

— A que horas você viu o professor com a Sra. Drukker?

— Cerca das oito.

— Estavam conversando?

— Sim. Pelo menos — corrigiu ela — passeavam de um lado para outro, perto do caramanchão.

— Costumam eles passear pelo pátio antes do café?

— A Sra. Drukker sai muitas vezes cedo e passeia pelo jardim. E creio que o professor tem o direito de passear pela sua propriedade o tempo que deseje.

— Não estou pondo em dúvida os direitos dele, Beedle — disse Vance suavemente. — Eu apenas estava admirado de exercer ele esses direitos tão cedo.

— Pois bem, ele os estava exercendo nessa manhã... Vance despediu a mulher e, levantando-se, foi à janela da frente. Ele estava visivelmente confundido e permaneceu vários minutos olhando a rua na direção do rio.

— Bem, bem — murmurou ele. — É um lindo dia para a gente comungar com a natureza. Esta manhã, às oito, a calhandra voava sem dúvida alguma... quem sabe?... Talvez tenha havido um caracol entre os abrolhos. Mas... diabo!... nada estava certo com o mundo.

Markham reconheceu os sinais de perplexidade de Vance.

— Que deduz você disto? — perguntou ele. — Estou inclinado a não tomar conhecimento da informação de Beedle.

— O que perturba, Markham, é que não nos podemos dar ao luxo de ignorar nada neste assunto — disse Vance suavemente, sem se virar. — Não obstante, admitirei que, neste momento, a revelação de Beedle não faz sentido algum. Soubemos simplesmente que dois dos atores do nosso melodrama estavam levantados passeando esta manhã, pouco depois que Sprigg foi mandado para o outro mundo. O rendez-vous ai fresco pode talvez ser uma de suas tão queridas coincidências. De outra parte, pode ter algo que ver com a atitude sentimental do ancião para com a senhora... Creio que teremos de fazer a ele algumas perguntas discretas sobre o seu encontro em jejum... Que acha?

Inclinou-se subitamente contra a janela.

— Ah! Aí vem Arnesson. Parece muito nervoso. Poucos momentos depois, ouviu-se o ruído de uma chave na porta principal, e Arnesson deu entrada no vestíbulo. Quando nos viu, dirigiu-se depressa até a sala e, sem nos cumprimentar, explodiu:

— Que é isso que estão dizendo sobre a morte de Sprigg? — Seu olhar ansioso ia de um a outro de nós. — Suponho que estão aqui para me fazer perguntas sobre ele. Às suas ordens. — Atirou sobre a mesa uma volumosa pasta, sentando-se bruscamente na borda de uma cadeira. — Esta manhã, esteve um detetive na faculdade fazendo perguntas estúpidas e agindo como esses policiais de opereta. Muito misterioso... Assassinato... horrível assassinato! Que sabíamos acerca de um tal John E. Sprigg? E assim por diante... Assustou um par de alunos do curso superior e fez com que um inofensivo jovem, instrutor de inglês, tivesse um princípio de colapso nervoso. Eu não vi o camarada naquele momento, estava na aula. Ele teve a desfaçatez de perguntar com que mulheres andava Sprigg. Sprigg com mulheres! Aquele rapaz só pensava no estudo. Era o aluno mais brilhante da turma. Jamais faltou a uma aula. Quando não respondeu à chamada esta manhã, não hesitei em pensar que algo de sério havia ocorrido. À hora do almoço, todos falavam do assassinato... Qual é a resposta?

— Não a temos, Sr. Arnesson. — Vance tinha estado a observá-lo bem de perto. — Contudo, temos outra determinante para a sua fórmula. John Sprigg foi assassinado por um tiro esta manhã com um revólver pequeno. A bala penetrou pelo alto da cabeça.

Arnesson olhou fixamente para Vance durante alguns instantes, sem se mover. Então, deitou para trás a cabeça e soltou uma gargalhada sarcástica.

— Algum outro enigma, eh?... como o da morte de Cock Robin... Explique-me o mistério.

Vance explicou brevemente os pormenores do crime.

— Isto é tudo o que sabemos até agora — concluiu ele.

— Poderia você, Arnesson, ajuntar outros pormenores sugestivos?

— Céus, não! — O homem parecia realmente surpreso.

— Nada, absolutamente. Sprigg... era um dos estudantes mais inteligentes que tenho tido. Era um gênio, juro! É uma lástima que seus pais lhe tenham posto o nome de John... havendo tantos outros nomes. Ao que parece, isso selou a sua condenação. Algum maníaco lhe atravessou o crânio com um balaço. Provavelmente o mesmo truão que meteu em Robin um flechaço. — Esfregou as mãos e o filósofo abstrato que há nele chegou a predominar. — Um belo problema. Contou-me tudo? Necessitarei de cada um dos números inteiros conhecidos. Talvez que, como Kepler, eu encontre algum método matemático em processo... — Riu-se da presunção. — Recorda-se o senhor da Doliometria de Kepler? Foi a base do Cálculo Infinitesimal. Chegou a ele procurando construir uma pipa para seu vinho... com uma quantidade mínima de madeira e um conteúdo cúbico máximo. Pode ser que as fórmulas que eu desenvolvo para encontrar os criminosos abram novos campos de investigações científica. Ah! Robin e Sprigg se converterão, então, em mártires.

O humorismo do indivíduo, embora tomando em consideração sua paixão eterna por tudo que é abstrato, chocou-me, como algo particularmente desagradável. Todavia, Vance parecia que não se importava com seu frio cepticismo.

— Há um item que me esqueci de mencionar — disse ele. Voltando-se para Markham, pediu-lhe o pedaço de papel que continha a fórmula e passou-o em seguida a Arnesson. — Foi encontrado isto debaixo do corpo de Sprigg.

Arnesson examinou-o com ar de pouco caso.

— Pelo que vejo, aqui também está envolvido o Bispo. O mesmo papel e o mesmo tipo de letra de máquina dos bilhetes... Mas, onde conseguiu este tensor Riemann-Christoffel? Ora, se houvesse sido outro tensor... como o G-sigma-tau, por exemplo... qualquer pessoa interessada em física prática teria dado com ele. Mas este não é comum e sua exposição aqui é arbitrária e desusada. Certos termos omitidos... Raios! Estive falando precisamente acerca disto a Sprigg na noite passada. Ele escreveu isto, também.

— Pyne disse-nos que Sprigg esteve aqui quinta-feira à noite — observou Vance.

— Oh, sim, é certo... Na quinta-feira... exato. Também estiveram Pardee e Drukker. Tivemos uma discussão sobre as coordenadas de Gaussian. Este tensor surgiu... creio que foi Drukker quem o mencionou primeiro. E Pardee tinha alguma noção de aplicar a matemática superior no xadrez...

— A propósito, você joga xadrez? — perguntou Vance.

— Jogava, porém não jogo mais. Não obstante, seria um jogo formidável... se não fossem os jogadores. São uns tolos, esses xadrezistas.

— Você fez alguma vez estudos sobre o gambito Pardee?

Naquele momento, eu não podia compreender o aparente desatino das perguntas de Vance. Também notei que Markham começava a dar sinais de impaciência.

— Pobre Pardee! — Arnesson sorria sem sentimento algum. — Não é mau matemático elementar. Seria um bom professor de curso secundário. Mas tem muito dinheiro. Dedicou-se ao xadrez. Eu disselhe que seu gambito não era científico. Ainda mais, demonstrei-lhe como podiam vencê-lo. Mas ele não queria ver isso. Então vieram Capablanca, Vadmar e Tartakower e derrotaram-no sem dó nem piedade. Exatamente como eu havia prognosticado. Isso arruinou a sua vida. Durante muitos anos, tratou de conhecer outro gambito, porém não pôde fazê-lo adotar. Lê Weyl, Silberstein, Eddington e Mach na esperança de inspirar-se.

— Isso é muito interessante. — Vance estendeu a sua caixa de fósforos a Arnesson que tinha estado enchendo o seu cachimbo, enquanto falava. — Pardee era muito relacionado com Sprigg?

— Oh, não. Encontraram-se aqui duas vezes — e isso foi tudo. Entretanto, Pardee conhece muito bem Drukker. Sempre lhe pergunta sobre potenciais e setores. Espera encontrar alguma coisa que revolucione o xadrez.

— Interessava-lhe o tensor de Riemann-Christoffel quando você falou a respeito na outra noite?

— Não posso dizer que sim, pois não é de sua esfera. Não se pode enquadrar a curvatura do espaço-tempo num tabuleiro de xadrez.

— Que deduz você do encontro desta fórmula com Sprigg?

— Nada. Se tivesse sido escrita por Sprigg, diria que caíra do bolso. Mas, quem se daria ao trabalho de escrever a máquina uma fórmula matemática?

— Aparentemente, o Bispo.

Arnesson tirou o cachimbo da boca e sorriu.

— O Bispo X. Temos que encontrá-lo. Está cheio de extravagâncias. Confundiu o senso dos valores.

— Evidentemente. — Vance falou com displicência. — A propósito, quase me esquecia de perguntar: há revólveres em casa de Dillard?

— Oh! — Arnesson riu com espontâneo prazer. — É este o assunto? Sinto muito desiludi-lo. Não temos revólveres. Nem portas deslizadoras. Nem passagens secretas. Tudo aberto à luz do dia.

Vance suspirou teatralmente.

— É uma lástima... uma lástima! Eu que tinha uma teoria tão consoladora...

Belle Dillard havia descido silenciosamente ao hall e agora estava na porta da sala. Sem dúvida, ela havia ouvido a pergunta de Vance e a resposta de Arnesson.

— Como que não há revólveres em casa? Há dois, Sigurd, — disse ela. — Não se lembra dos revólveres velhos que eu usava no campo quando me exercitava na pontaria?

— Pensei que você não mais os tivesse. — Arnesson levantou-se e ofereceu uma cadeira a Belle. — Eu lhe disse, quando voltávamos de Hopatcong naquele verão, que só aos ladrões e bandidos é permitido usar revólveres neste tolerante Estado...

— Mas eu não acreditei — protestou a moça. — Nunca sei quando você graceja ou quando fala sério.

— E a Srta. os guardou? — perguntou Vance num tom tranqüilo.

— Claro que sim. — Ela lançou a Heath um olhar apreensivo. — Não devia guardá-los?

— Eu penso que tecnicamente foi ilegal. No entanto — sorriu Vance tranqüilizadoramente — não creio que o sargento vá invocar a lei contra a senhorita. Onde estão agora?

— Embaixo, na sala do clube. Em uma gaveta do porta-ferramentas.

Vance levantou-se.

— Teria a bondade, Srta. Dillard, de mostrar-nos o lugar onde os guardou? Tenho uma grande curiosidade de vê-los.

A moça hesitou e mirou Arnesson, como à procura de conselho. Quando ele fez que sim com a cabeça, ela voltou-se e conduziu-os à sala do clube.

— Estão naquela arca junto à janela — disse ela encaminhando-se até o lugar. Uma vez aí, tirou de um ponta do móvel uma caixa comprida: atrás, debaixo de um monte de outras coisas, estava um Colt automático, 38.

— Como! — exclamou ela. — E o outro? Alguém o levou?

— Era menor, não é verdade? — perguntou Vance.

— Sim...

— Um 32?

A moça confirmou com a cabeça, volvendo os olhos espantados para Arnesson.

— Sim, levaram-no, Belle, — disse ele, encolhendo os ombros.

— Não há nada a fazer. Provavelmente, algum de seus jovens arqueiros se apropriou dele para fazer saltar os miolos depois de haver-se cansado de lançar flechas.

— Não graceje, Sigurd, — rogou-lhe um tanto assustada. — Aonde poderiam levá-lo?

— Ah! Outro tétrico mistério — disse Arnesson, gracejando. — Estranho desaparecimento de um 32.

Percebendo a inquietude da moça, Vance mudou de tema.

— Talvez, Srta. Dillard, possa ter a bondade de levar-nos ao aposento da Sra. Drukker. Precisamos falar com ela, já que, ao que parece, o passeio ao campo foi adiado. — Uma sombra de dor cobriu o rosto da moça.

— Oh, Sr. Vance, não deve incomodá-la hoje. — Seu tom de voz era tragicamente implorante. — A Sra. Mae está muito doente. Não posso compreender. Quando eu falava com ela, lá em cima, parecia estar perfeitamente bem, porém depois que viu os senhores mudou bruscamente: tornou-se fraca e... oh, alguma coisa horrível pareceu perturbar-lhe o espírito. Depois eu a levei para a cama e ela continuou repetindo num murmúrio terrível: "John Sprigg, John Sprigg..." Telefonei ao seu médico, que veio em seguida. Disse que ela precisava de repouso e tranqüilidade.

— O assunto que me levava lá não é de nenhuma importância — afirmou Vance. — Esperemos que ela melhore. Qual é o médico, Srta. Dillard?

— Whitney Barstead. Há muitos anos que a atende.

— Excelente homem — observou Vance. — Em todo país não há melhor neurologista. Não faremos nada sem a sua permissão.

A Srta. Dillard dirigiu-lhe um olhar de agradecimento, e em seguida pediu licença e saiu.

Quando voltamos à sala, Arnesson parou diante da lareira e olhou para Vance sarcàsticamente.

— "John Sprigg, John Sprigg." A Sra. Mae percebeu logo. Pode ser que esteja louca, porém certos lóbulos de seu cérebro estão superativos. O cérebro humano é uma implacável peça de maquinaria. Alguns dos maiores calculadores mentais da Europa são imbecis. E eu conheço dois mestres de xadrez que precisam de amas para vesti-los e alimentá-los.

Vance aparentava não ouvi-lo. Havia parado junto a um pequeno armário perto da porta e parecia absorvido por uma coleção de objetos de arte antiga chinesa.

— Este elefante não está bem aqui — comentou casualmente, apontando para uma diminuta figura da coleção. — É um bunjinga decadente, sabe? Bem feito, porém não autêntico. Talvez seja uma cópia de algum original manchu. — Abafou um bocejo e voltou-se para Markham. — Creio, meu amigo, que não temos mais nada a fazer aqui. Acho que devemos ir. Mas, antes', poderíamos falar com o professor... Desagrada-lhe esperar aqui, Sr. Arnesson?

Arnesson levantou as sobrancelhas um tanto surpreso, porém imediatamente franziu o rosto num sorriso desdenhoso.

— Oh, não! Podem ir. — E começou a encher o cachimbo.

O professor Dillard sentiu-se importunado com nossa segunda intrusão.

— Acabamos de saber — disse Markham — que o senhor esteve falando com a Sra. Drukker esta manhã, antes do café.

Os músculos do rosto do professor Dillard contraíram-se de raiva.

— Importa ao procurador criminal do distrito que eu fale com um vizinho no jardim de minha casa?

— Por certo que não, senhor. Mas estou no meio de uma investigação que concerne seriamente à sua casa, e eu julguei que podia obter esclarecimentos de sua parte.

O ancião começou a balbuciar.

— Muito bem — aquiesceu ele, contrariado. — Não vi ninguém mais que a Sra. Drukker, se é o que o senhor deseja saber.

Vance interveio na conversa.

— Não viemos por isso, professor Dillard. Queríamos perguntar-lhe simplesmente se a Sra. Drukker lhe deu a impressão esta manhã de haver suspeitado do acontecido em Riverside Park.

O professor esteve a ponto de responder asperamente, porém se conteve. Após um momento, ele disse simplesmente:

— Não, ela não me deu tal impressão.

— Aparentava ela estar um tanto incomodada ou, melhor dizendo, excitada?

— Não! — O professor Dillard enfrentou Markham. — Compreendo perfeitamente até onde os senhores querem chegar e eu não o permitirei. Já disse ao senhor, Markham, que não tomarei parte em espionagens e enredos, sempre que se trate dessa infeliz mulher. Isso é tudo que eu tenho a dizer ao senhor. — Voltou à sua mesa. — Sinto muito, porém estou muito ocupado hoje.

Descemos ao pavimento térreo e nos despedimos de Arnesson. Este nos saudou cordialmente com a mão ao sairmos, mas seu sorriso tinha qualquer coisa de proteção desdenhosa, como se tivesse estado presenciando e se deleitasse com o nosso insucesso.

Quando chegamos à rua, Vance acendeu um novo cigarro.

— Agora, tenhamos uma breve conversa com o triste e cavalheiresco Sr. Pardee. Não sei o que nos poderá dizer, porém tenho muita vontade de conversar com ele.

Entretanto, Pardee não estava em casa. Seu criado japonês nos informou que ele provavelmente estava no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Amanhã teremos tempo de sobra — disse Vance a Markham ao retirarem-se. — Conversarei como o Dr. Barstead, pela manhã, e tratarei de arranjar uma entrevista com a Sra. Drukker. Incluiremos Pardee nessa peregrinação.

— Espero com segurança — grunhiu Heath — que saberemos amanhã mais do que sabemos hoje.

— Você omite um ou dois detalhes consoladores, sargento — respondeu Vance. — Verificamos que as pessoas das relações de Dillard conheciam Sprigg e que não é de estranhar que soubessem de seus passeios matinais muito cedo, às margens do Hudson. Soubemos também que o professor Dillard e a Sra. Drukker passearam juntos pelo jardim às oito desta manhã. E descobrimos que um revólver 32 desapareceu da sala do clube. Não é grande coisa... porém já é algo.

Enquanto nos dirigíamos para o centro da cidade, Markham despertou da sombria abstração em que se achava mergulhado e olhou para Vance com apreensão.

— Tenho quase medo de continuar com este caso. A coisa se torna cada vez mais sinistra; se os jornais se inteiram dessa poesia infantil de John Sprigg e relacionam os dois assassinados, não quero pensar na sensação e no espalhafato que se seguirão a tudo isso.

— Receio que dessa você não escape — suspirou Vance. — Eu não sou nem um pouco psíquico, nunca tive sonhos que se realizassem e não sei o que sejam poderes telepáticos... todavia algo me diz que o Bispo vai dar a conhecer à imprensa esse versinho do folclore infantil. O fim dessa nova farsa é ainda mais obscuro que o da comédia de Cock Robin. Tratará de que todos se inteirem. Até o humorista mais sombrio que se utiliza de cadáveres deve ter seu auditório. Eis aí a única fraqueza de seus crimes abomináveis e quase nossa única esperança, Markham.

— Telefonarei a Quinan — disse Heath — e averiguarei se recebeu alguma coisa.

O incômodo foi poupado ao sargento. O repórter do World estava à nossa espera no gabinete do procurador do distrito, e Swacker fê-lo entrar imediatamente.

— Como tem passado, Sr. Markham? — Nas maneiras de Quinan havia um leve ar de impudência, mas, por outro lado, mostrava sinais de excitação nervosa. — Tenho aqui algo para o sargento Heath. Na Polícia Central, disseram-me que estava a seu cargo o caso Sprigg e que, neste momento, o sargento se achava em entendimentos com o senhor. — Mexeu em seu bolso e, tirando uma folha de papel, entregou-a a Heath. — Com você eu estou bem servido, sargento, de modo que espero que me comunique algumas novidades em reciprocidade... Olhe para este documento. Acaba de recebê-lo o mais importante jornal familiar da América.

Era um pedaço de papel de máquina que continha a melodia de John Sprigg, de "Mother Goose", datilografada em tipo "elite" numa fita azul-pálida. No ângulo inferior direito, estava assinado com letras maiúsculas: O BISPO.

— E aqui está o envelope, sargento. — Quinan meteu outra vez a mão no bolso.

O carimbo indicava as 9 horas da manhã e, tal como a primeira nota, esta havia sido postada na Agência "N" do correio.


XII

 

UMA VISITA À MEIA-NOITE

 

(Terça-feira, 12 de abril — 10h)

 

Na manhã seguinte, a primeira página dos diários da cidade trazia reportagens sensacionais que ultrapassavam os maiores temores de Markham.

Além do World, outros dois grandes matutinos receberam notas iguais à que Quinan nos mostrou. A excitação a que deu motivo sua publicação foi tremenda. Toda a cidade se achava num estado de apreensão e temor. E ainda que tentativas diferentes fossem feitas aqui e ali para afastar o aspecto insano dos crimes no terreno da consciência, e para explicar as notas do Bispo como sendo obra de um espírito brincalhão, todos os jornais e a maioria do público estavam completamente convencidos de que um novo e terrível tipo de assassino ameaçava a comunidade (1).

(1) Um estado semelhante de pânico acorreu em Londres em 1888, quando Jack, o Estripador, estava ocupado em sua anormal e macabra tarefa. Outra vez em Hanover, em 1923, quando Haarmann, o Lobo, cometia carnificinas próprias de antropófagos. Mas, não me recordo de nenhum outro paralelo moderno pela atmosfera de horrível terror que reinou em Nova York durante os assassinatos do Bispo.

 

Markham e Heath foram acossados pelos repórteres de todos os jornais, porém um véu de mistério foi mantido resolutamente. Não se deu nenhuma insinuação de que existiam motivos para crer que a solução se encontrava junto à casa de Dillard. Tampouco se fez menção do desaparecimento do revólver 32. A situação de Sperling era tratada pela imprensa com simpatia. A opinião geral era de que o jovem havia sido vítima das circunstâncias, e toda crítica da demora de Markham em acusá-lo havia sido abandonada.

No dia em que mataram Sprigg, Markham teve uma conferência no Club Stuyvesant. Tomaram parte o inspetor Moran, do Gabinete de Investigações, e o inspetor-chefe O'Brien (1) Os dois assassinatos foram discutidos com detalhes e Vance expôs as razões de sua crença de que a resposta ao problema seria encontrada finalmente ou em casa de Dillard ou em algum lugar relacionado diretamente com a referida casa.

(1) O inspetor-chefe O'Brien estava então encarregado de todo o Departamento de Polícia.

 

— Estamos agora em contacto — terminou de falar Vance — com todas as pessoas que puderam evidentemente ter tido suficiente conhecimento das condições que cercavam as duas vítimas para perpetrar os crimes com êxito, e nosso único caminho é concentrar a atenção nessas pessoas.

O inspetor Moran estava inclinado a aceitar essa teoria, exceto — disse ele — que "nenhuma das personagens dramáticas que você mencionou é, na minha opinião, um maníaco sangrento".

— O assassino não é um maníaco no sentido convencional — respondeu Vance. — Provavelmente normal em tudo o mais. Em realidade, seu cérebro pode ser brilhante, exceto quanto a essa lesão... e, direi mais, brilhantíssimo. Ele perdeu todo o senso de proporção através de puras especulações exaltadas.

— Mas um super-homem pervertido se contenta com esses gracejos revoltantes, sem motivo algum? — perguntou o inspetor.

— Ah, mas o caso é que há um motivo. Algum impulso tremendo se oculta atrás da concepção monstruosa destes assassinatos... um impulso que em seus resultados eficazes toma a forma de humorismo satânico.

O'Brien não tomou parte nesta discussão. Ainda que impressionado pelas vagas implicações do caso, ele se exasperava pelo caráter impraticável do mesmo.

— Essa espécie de conversa — disse gravemente — esta bem para os editoriais dos jornais, porém não é viável. — Sacudiu seu grande charuto na direção de Markham. — O que temos de fazer é procurar todos os indícios e conseguir alguma outra evidência legal.

Foi decidido finalmente que as notas do Bispo deviam ser levadas a um perito analista e que se fizesse esforço no sentido de se descobrir a máquina de escrever e a papelaria onde compravam o papel. Uma busca sistemática devia ser feita para se conseguirem testemunhas que pudessem ter visto alguém em Riverside Park, entre as sete e as oito daquela manhã. Os costumes e as relações de Sprigg deviam ser objetos de investigações minuciosas. E um homem devia ser destacado para interrogar o carteiro da seção, com a esperança de que, ao tomar as cartas das diversas caixas, ele tivesse notado os envelopes dirigidos aos jornais e pudesse dizer em que caixa os havia colhido.

Várias outras atividades puramente formais foram traçadas, e Moran sugeriu que por algum tempo três homens fossem estacionados dia e noite na vizinhança dos assassinatos para surpreender algum imprevisto acontecimento ou alguma ação suspeita dos elementos envolvidos. O Departamento de Polícia e o gabinete do inspetor do distrito deviam trabalhar de comum acordo. Markham, implicitamente de acordo com Heath, assumiu a direção.

— Já entrevistei os membros das famílias Dillard e Drukker em relação ao assassinato de Robin — explicou Markham a Moran e a O'Brien — e falei com o professor Dillard e com Arnesson relativamente ao caso Sprigg. Amanhã verei Pardee e os demais Drukkers.

Na manhã seguinte, Markham, acompanhado de Heath, foi à casa de Vance, um pouco antes das dez horas.

— Isso não pode continuar assim — declarou aquele depois dos cumprimentos. — Temos de inquirir alguém que saiba alguma coisa. Vou apertar o torniquete... e ao diabo as conseqüências!

— Persiga-os por todos os meios possíveis. — O próprio Vance parecia desesperado. — Apesar de eu duvidar que isso dê algum resultado. Nenhum processo comum poderá resolver este enigma. Entretanto, telefonei a Barstead. Disseme ele que poderemos falar com a Sra. Drukker esta manhã.

Mas, arranjei para falar com ele primeiro. Tenho de conhecer mais alguma coisa sobre a patologia de Drukker. As corcovas, você sabe, não são geralmente produzidas por quedas.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do médico, sendo recebidos no instante. O Dr. Barstead era um homem corpulento, agradável, e cujas maneiras cordiais eram, a meu ver, resultado de uma disciplina forçada.

Vance foi direto ao assunto.

— Temos motivos para crer, Dr. Barstead, que a Sra. Drukker e talvez seu filho estejam indiretamente comprometidos no caso da morte recente de Robin na casa de Dillard. E, antes de interrogá-los, desejávamos que o senhor dissesse, até onde permite a ética profissional, alguma coisa sobre a situação neuropática que estamos enfrentando.

— Rogo-lhe que seja mais explícito, senhor — disse o Dr. Barstead, com defensiva naturalidade.

— Disseram-me — continuou Vance — que a Sra. Drukker se considera responsável pela cifose de seu filho, porém a meu ver tais deformações não resultam ordinariamente de simples males físicos.

O Dr. Barstead meneou a cabeça lentamente.

— Isso é verdade. A paraplexia compressiva da espinha dorsal pode seguir-se a uma deslocação ou golpe, mas a lesão assim produzida é de tipo focai transversal. A osteíte ou cárie das vértebras, o que comumente chamamos mal de Pott, é geralmente de origem tuberculosa. E esta tuberculose da espinha ocorre mais freqüentemente na infância. Amiúde existe no momento de nascer. É certo que um acidente pode preceder o surto, determinando o lugar da infecção ou excitando um foco latente. E este fato, indubitavelmente, dá origem à crença de que o golpe em si produz a enfermidade. Mas, Schmaus e Harsley expuseram a verdadeira anatomia patológica da cárie espinhal. A deformidade de Drukker é inquestionávelmente de origem tuberculosa. Sua mesma curvatura é de tipo marcadamente redondo, denotando um extenso envolvimento das vértebras. E não há esco-liose de nenhuma classe. Mais ainda, tem todos os sinais locais da osteíte.

— O senhor, naturalmente, explicou a situação à Sra. Drukker, não?

— Em muitas ocasiões. Mas, não tive êxito. O fato é que um instinto terrível de martírio pervertido leva-a a aferrar-se à idéia de que ela é responsável pela situação de seu filho. Esta noção errônea converteu-se nela numa idéia fixa. Constitui todo o seu programa mental e dá uma significação à vida de serviço e sacrifício que ela vem vivendo há quarenta anos.

— Até que ponto — perguntou Vance — diria o senhor que essa psiconeurose afetou o cérebro dela?

— Isto seria difícil afirmar. E não é uma questão que eu gostaria de discutir. Entretanto, posso dizer o seguinte: ela é uma mulher indubitavelmente mórbida. E seus valores têm variado. Às vezes tem havido, isto lhes digo com o maior sigilo, sinais de marcada alucinação quando se trata de seu filho. O bem-estar dele é para ela uma obsessão. Não há nada que ela não faça por ele.

— Apreciamos sua confidencia, doutor... e não seria lógico supor que o ânimo alterado que ela apresentava ontem resultou de algum temor ou susto relacionado com o bem-estar do filho?

— Sem dúvida. Ela não tem vida afetiva ou mental a não ser em função dele. Mas, se seu desfalecimento momentâneo foi devido a um temor real ou imaginário, não se pode dizer. Ela vive há muito tempo na fronteira entre a realidade e a fantasia.

Houve um breve silêncio e em seguida Vance perguntou:

— Em relação a Drukker, o senhor o considera responsável por seus atos?

— Desde que é meu paciente — replicou o Dr. Bartead em tom glacial — e desde que não tomei providência alguma para interditá-lo, considero sua pergunta uma impertinência.

Markham inclinou-se para a frente e falou peremptoriamente.

— Não temos tempo para rodeios, doutor. Estamos investigando uma série de crimes atrozes. O Sr. Drukker está envolvido neles... até que ponto não o sabemos. Mas é nosso dever averiguá-lo.

O primeiro impulso do médico era combater Markham. Mas, evidentemente, pensou melhor, pois quando respondeu, o fez em tom tranqüilo e indulgente.

— Não tenho motivos para negar informação aos senhores. Mas perguntar sobre a responsabilidade do Sr. Drukker é imputar-me negligência em assunto da segurança pública. Talvez, entretanto, eu haja compreendido mal a pergunta deste cavalheiro. — Ele examinou Vance um breve instante. — Há naturalmente graus de responsabilidade — continuou com seus modos profissionais. — A mente do Sr. Drukker está hiperdesenvolvida como sucede amiúde com as vítimas da cifose. Todos os processos mentais estão voltados para dentro, por assim dizer. E a ausência de reações físicas normais tende geralmente a produzir inibições e aberrações. Não notei, porém, sintomas desta espécie no Sr. Drukker. Ele é excitável e propenso à histeria; mas a psicoqueniesia é um acompanhamento comum de sua enfermidade.

— Que forma tomam as reações dele? — perguntou Vance num tom cortês e casual.

O Dr. Barstead pensou um momento.

— A dos jogos infantis, diria eu. Tais divertimentos não são raros nos aleijados. No caso do Sr. Drukker, é o que poderíamos chamar um desejo irrealizado que desperta. Não tendo tido infância normal, apodera-se de tudo que lhe dê um sentido de reabilitação juvenil. Suas atividades infantis tendem a equilibrar sua vida puramente mental.

— Qual é a atitude da Sra. Drukker em relação ao instinto dele para o jogo?

— Ela o estimula muito corretamente. Muitas vezes eu a vi apoiando-se contra o muro sobre o campo de jogos, em Riverside Park, a contemplá-lo. Também preside às festas e banquetes infantis que ele dá em sua casa.

Ao fim de alguns minutos, retiramo-nos. No instante em que dobrávamos a esquina para entrar na Rua 76, Heath, como se despertasse de um pesadelo, suspirou profundamente e ergueu-se no carro.

— O senhor prestou atenção ao ponto dos jogos infantis? — perguntou ele com voz cheia de terror. — Santo Deus, Sr. Vance! Em que vai acabar isso?

Uma tristeza curiosa se mostrava nos olhos de Vance enquanto olhava para os barrancos nevoentos de Jersey, no outro lado do rio.

Ao chegarmos à casa de Drukker, fomos atendidos por uma roliça mulher alemã, que se plantou insòlitamente diante de nós, informando-nos suspeitosamente que o Sr. Drukker estava muito ocupado e não podia receber ninguém.

— É melhor que lhe diga — disse Vance — que o procurador do distrito lhe deseja falar imediatamente.

Suas palavras produziram um efeito estranho na mulher. Levou as mãos ao rosto e seu enorme peito subia e descia convulsivamente. Em seguida, como que cheia de terror, saiu e subiu as escadas. Ouvimos que batia numa porta. Houve sons de vozes. Ao fim de um instante, voltou para informar-nos que o Sr. Drukker nos esperava em seu escritório. Ao passar junto à mulher, Vance voltou-se de súbito e, fixando o olhar sobre ela firmemente, perguntou:

— A que hora se levantou ontem o Sr. Drukker?

— Eu... não sei — tartamudeou ela completamente assustada. — Sim, sim, já sei. Às nove... como sempre.

Vance sacudiu a cabeça e seguiu seu caminho.

Drukker nos recebeu de pé, junto a uma mesa grande coberta de livros e folhas de manuscritos. Fez uma saudação com a cabeça, melancòlicamente, mas não nos convidou a sentar.

Vance estudou-o um momento como se tentasse descobrir o segredo que se ocultava atrás daqueles intranqüilos olhos fundos.

— Sr. Drukker — começou a dizer, — não é nosso desejo causar-lhe um incômodo desnecessário, mas soubemos que o senhor conhecia John Sprigg, que, como deve saber, foi morto por um balaço perto daqui, ontem pela manhã. Poderia o senhor sugerir-nos que motivos pudesse ter alguém para matá-lo?

Drukker empertigou-se todo. Apesar de seu esforço para dominar-se, havia em sua voz, ao responder, um ligeiro tremor.

— Conhecia o Sr. Sprigg, mas muito pouco. Não posso sugerir absolutamente nada a respeito de sua morte.

— Em seu corpo foi encontrado um pedaço de papel com o tensor Riemann-Christoffel que o senhor apresenta em seu livro, no capítulo sobre a limitação do espaço físico. — Enquanto falava, Vance pegara numa folha de papel escrita à máquina e olhava-a como por acaso.

Drukker pareceu não notar a ação. A informação contida nas palavras de Vance havia absorvido sua atenção.

— Não posso compreender — disse ele vagamente. — Posso ver a anotação?

Markham acedeu em seguida ao pedido. Depois de examinar por um momento o papel, Drukker o devolveu, semi-cerrando os olhos maliciosamente.

— O senhor consultou Arnesson sobre isso? Na semana passada ele discutiu essa fórmula com Sprigg.

— Sim — disse Vance como que distraído. — O Sr. Arnesson recordou esse fato, mas não pôde projetar nenhuma luz. Acreditamos que talvez o senhor pudesse ter êxito onde ele havia fracassado.

— Sinto muito não poder satisfazer seus desejos. — Na resposta de Drukker havia algo de escárnio. — O tensor pode ser usado por qualquer pessoa. Weyl e Einstein o empregaram em suas obras muitas vezes. Seu uso não está proibido... — Inclinou-se sobre uma estante giratória, e retirou um pequeno volume. — Aqui está no Princípio da Relatividade de Minkowski, só que com símbolos diferentes... por exemplo, em vez de B, usa T e como índices emprega letras gregas. — Tomou outro volume. — Poincaré também o usou em suas Hipóteses Cosmogônicas, com ainda outros equivalente simbólicos. — Jogou displicentemente os livros sobre a mesa. — Por que me vêm a mim com isso?

— Não foi só a fórmula do tensor que nos fez vir à sua casa — respondeu Vance despreocupadamente. — Temos motivos para crer que a morte de Sprigg está relacionada com o assassinato de Robin...

As mãos largas de Drukker apertaram as bordas da mesa e ele se inclinou para a frente. Seus olhos brilhavam nervosamente.

— Relacionados Sprigg e Robin? Os senhores não acreditam no que os jornais dizem, não é verdade?... É uma mentira infame! — Seu rosto começou a contorcer-se e a voz tornou-se-lhe estridente. — É uma loucura... Eu digo aos senhores que não existe prova nenhuma... em absoluto!

— Cock Robin e John Sprigg, — disse Vance com voz suave e insistente.

— É uma estupidez! Uma verdadeira estupidez! Oh, Deus! O mundo tornou-se louco... — Enquanto golpeava a mesa com a mão, fazendo voar os papéis em todas as direções, balançava-se para trás e para diante.

Vance olhou para ele com surpresa moderada.

— Não conhece o Bispo, Sr. Drukker?

O homem parou de balançar-se e, aprumando-se, olhou Vance com terrível intensidade. Sua boca estava contraída nos cantos, apresentando o riso transversal da distrofia muscular progressiva.

— Também os senhores Tornaram-se loucos! — Passeou o olhar por todos nós. — Os senhores, loucos varridos! Não existe tal Bispo! Nem tampouco existiram Cock Robin ou John Sprigg. E aqui estão os senhores... homens grandes... tratando de assustar-me... A mim, um matemático... com contos infantis! — E começou a rir-se histèricamente.

Vance encaminhou-se para ele rapidamente e, tomando-o pelo braço, levou-o até uma cadeira. Lentamente seu riso foi desaparecendo, e ele fez um movimento com as mãos, denotando cansaço.

— É uma pena que Robin e Sprigg tenham sido mortos. — Sua voz era forte e incolor. — Mas, a única coisa que interessa são as crianças... Os senhores encontrarão provavelmente o assassino. Caso contrário, eu os ajudarei. Mas, não deixem voar a imaginação. Atenham-se aos fatos... aos fatos...

O homem estava esgotado, e o deixamos.

— Está assustado, Markham... Muito assustado — observou Vance, quando atingimos o hall outra vez. — Agradar-me-ia saber o que se oculta naquela mente astuta e distorcida.

Encaminhou-se, então, para a porta do quarto da Sra. Drukker. Nós o seguimos.

— Este método de visitar uma dama não está de acordo com a etiqueta social. Para falar a verdade, Markham, eu não nasci para a polícia. Detesto-a.

Uma voz débil respondeu à nossa chamada. A Sra. Drukker, mais pálida que de ordinário, estava recostada em seu canapé junto à janela. Suas brancas e plácidas mãos descansavam sobre os braços do assento, ligeiramente flexionadas. E mais que uma vez me vieram ao espírito os desenhos que havia visto das vorazes harpias, na lenda dos argonautas.

Antes que pudéssemos falar, ela nos disse com voz tensa e terrível:

— Já sabia que os senhores viriam, que não se haviam cansado de atormentar-me...

— Torturá-la, Sra. Drukker, — respondeu Vance suavemente — é coisa que está longe de nossos pensamentos. Só queremos seu auxílio.

A maneira de Vance pareceu aplacar um pouco seu temor e ela o estudou calculadamente.

— Se pudesse ajudá-los! — murmurou. — Mas não há nada a fazer... nada...

— A senhora nos poderia dizer o que foi que viu de sua janela no dia da morte de Robin — sugeriu Vance, bondosamente.

— Não!... Não!... — Seu olhar era de terror. — Não vi nada... Não estive à janela naquela manhã. Matem-me, porém minhas últimas palavras serão Não... não... não!

Vance não insistiu mais nesse ponto. — Beedle nos disse — continuou ele — que a senhora se levanta em geral muito cedo para passear no jardim.

— Sim — a palavra saiu com um suspiro de alívio. — Eu não durmo bem de manhã. Constantemente desperto com dores na coluna vertebral e com os músculos das costas rígidos e doloridos. Por isso, levanto-me e passeio pelo jardim quando o tempo está bom e agradável.

— Beedle viu a senhora no jardim, ontem de manhã. A mulher anuiu com a cabeça, abstratamente.

— E também viu com a senhora o professor Dillard. Outra vez sacudiu a cabeça, mas logo lançou a Vance um olhar inquisitivo de desafio.

— Às vezes, ele passeia comigo — apressou-se a explicar. — Tem pena de mim e admira Adolph, a quem julga um gênio. E o é! Seria um grande homem... tão grande como o professor Dillard... se não fosse a sua enfermidade... E eu tive a culpa. Deixei-o cair ao chão quando era criança...

Um soluço seco sacudiu-lhe o corpo extenuado e seus dedos se moveram espasmòdicamente.

Após um momento, Vance perguntou:

— Sobre que falaram a senhora e o professor Dillard, ontem de manhã?

A mulher mostrou uma repentina perspicácia.

— De Adolph quase todo o tempo — disse ela numa tentativa evidente de mostrar naturalidade.

— Viu a senhora mais alguém no pátio ou no campo de exercícios?

Os olhos indolentes de Vance pousaram na mulher.

— Não — Outra vez foi a Sra. Drukker dominada por uma espécie de terror. — Contudo, alguém mais estava ali, não é verdade?... Alguém que desejava não ser visto. Sim! Alguém mais estava lá... E acreditaram que eu o havia visto... Porém, não vi! Oh, Deus misericordioso, eu não vi!...

— Ocultou o rosto nas mãos e seu corpo tremeu convulsivamente. — Se eu os tivesse visto! Se eu soubesse! Mas não era Adolph... Não era meu filho. Ele estava dormindo... graças a Deus, estava dormindo!

Vance aproximou-se mais da mulher.

— Por que dá graças a Deus de não ter sido seu filho?

— perguntou gentilmente.

Ela levantou os olhos, assombrada.

— Então, o senhor não se lembra? Um homenzinho disparou um tiro em John Sprigg com um pequeno revólver, ontem pela manhã... O mesmo homenzinho que matou Cock Robin, com um arco e uma flecha. Tudo isso é um jogo horrível... e eu tenho medo... Mas, não devo dizer... não posso dizer. O homenzinho se vingaria horrivelmente. Pode ser... — Sua voz exprimia horror. — Pode ser que ele tenha a idéia louca de que eu seja a velha que morava num sapato.

— Vamos, vamos, Sra. Drukker. — Vance forçou um sorriso consolador. — Não está bem que a senhora fale assim. A senhora deixou que isso tomasse conta de seu cérebro. Há uma explicação perfeitamente racional para todas as coisas. E eu penso que a senhora pode ajudar-nos a encontrar essa explicação.

— Não... não! Não posso... não devo! Eu mesma não compreendo. — Inspirou profunda e fortemente e apertou os lábios.

— Por que não pode dizer-nos? — insistiu Vance.

— Porque não sei — gritou ela. — Bem gostaria de saber! Só sei que algo horrível está-se passando aqui... que alguma terrível maldição paira sobre esta casa...

— Como sabe a senhora?

A mulher começou a tremer violentamente e seus olhos vagavam perdidos pelo teto.

— Porque — sua voz era apenas perceptível — porque o homenzinho veio aqui esta noite!

Um calafrio percorreu-me a medula ante tal revelação, e cheguei até a ouvir a respiração do imperturbável sargento. Em seguida soou a voz tranqüila de Vance:

— Como sabe que ele esteve aqui, Sra. Drukker? A senhora o viu?

— Não, não o vi. Mas ele tentou entrar neste quarto por aquela porta. — Apontou vagamente para a porta de entrada do hall, por onde acabávamos de entrar.

— A senhora deve contar-nos tudo — disse Vance — senão acabaremos crendo que a senhora forjou a história.

— Oh, não inventei nada... que Deus seja testemunha!

— Não podia haver dúvida alguma sobre a sinceridade da mulher. Algo havia ocorrido que a encheu de terror mortal.

— Eu estava desperta, deitada na cama. O pequeno relógio sobre a lareira deu onze horas. E eu ouvi um ruído surdo, fora, no hall. Voltei a cabeça para a porta... nesta mesa aqui havia uma lâmpada... em seguida percebi que a maçaneta se movia lentamente... silenciosamente... como se alguém procurasse penetrar aqui sem me despertar...

— Um momento, Sra. Drukker — interrompeu Vance.

— A senhora fecha sempre à chave a porta de seu quarto, quando se recolhe à noite?

— Até há pouco tempo não a fechava... até à morte do Sr. Robin. Desde então me senti de algum modo insegura... não posso explicar por quê...

— Compreendo. Peço que continue o relato. A senhora disse que viu a maçaneta mexer-se. E depois?

— Sim, sim. Movia-se suavemente, para um lado e para outro. Eu estava deitada ali, em minha cama, gelada de terror. Mas, ao fim de algum tempo pude gritar... não sei se muito alto; mas, subitamente a maçaneta parou de mover-se e ouvi passos que se afastavam rapidamente... pelo vestíbulo. Então pude levantar-me. Fui até à porta e escutei. Tinha medo... medo por causa do Adolph. E eu ouvi aqueles passos descendo pela escada...

— Que escada?

— A dos fundos... a que conduz à cozinha... Em seguida, a porta de tela de arame do pórtico fechou-se e tudo voltou ao silêncio outra vez... Ajoelhei-me, encostando o ouvido na fechadura, durante muito tempo, escutando, esperando. Porém, nada sucedeu. Por fim, me levantei... Algo parecia dizer-me que devia abrir a porta. Eu estava mortalmente amedrontada... e, não obstante, sabia que tinha de abrir a porta... — Um estremecimento percorreu-lhe o corpo. — Levemente, dei a volta à chave e peguei na maçaneta. Enquanto puxava a porta para dentro, lentamente, caiu ao chão, com ruído, um objeto pequeno que estava sobre a maçaneta, do lado de fora. No vestíbulo, estava acesa uma lâmpada... sempre conservo uma luz acesa toda a noite... e tentei não olhar para o chão... tentei... tentei... mas não podia. E ali, a meus pés... oh, Deus dos céus!... havia algo!...

Não pôde continuar. O terror parecia paralisar-lhe a língua. Entretanto, a voz de Vance, fria e insensível, chamou-a à realidade.

— Que é que havia no chão, Sra. Drukker?

Com dificuldade, a mulher levantou-se e, concentrando as forças um momento ao pé da cama, encaminhou-se para o toucador. Apanhando uma caixinha, abriu-a e procurou alguma coisa no seu interior. Em seguida, estendendo a mão em nossa direção, vimos na palma da mesma uma peça de xadrez... preta, de ébano, que contrastava com a brancura de sua pele. Era o bispo!


XIII

 

À SOMBRA DO BISPO

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h)


Vance tomou o bispo da mão da Sra. Drukker e pô-lo no bolso de seu casaco.

— Seria perigoso, senhora, — disse com propositada solenidade — que fosse divulgado o que aconteceu aqui, esta noite. Se a pessoa que amedrontou a senhora soubesse que a polícia já foi informada, poderia fazer novas tentativas para assustá-la. Por conseguinte, nenhuma palavra do que acaba de nos contar deve sair de seus lábios.

— Não posso contar a Adolph? — perguntou a mulher, agitada.

— A ninguém! A senhora deve guardar silêncio absoluto, mesmo em presença de seu próprio filho.

Eu não podia compreender a ênfase de Vance sobre este ponto. Antes, porém, que transcorressem muitos dias, tudo me foi esclarecido. O motivo de tal conselho revelou-se com força trágica. E eu verifiquei que, no mesmo momento da exposição da Sra. Drukker, o espírito penetrante de Vance havia realizado um raciocínio impressionantemente exato e também previsto certas possibilidades insuspeitadas por todos nós.

Ao cabo de um momento, retiramo-nos descendo pela escada de serviço. Esta dobrava para a direita, ao chegar a um patamar, oito ou dez degraus abaixo do segundo andar. Conduzia a um corredor escuro com duas portas: uma à esquerda, que dava para a cozinha e a outra, diagonalmente oposta, que dava para o pórtico, onde se encontra a porta de grades. Saímos imediatamente pelo pórtico, banhado agora pela luz solar, paramos sem dizer palavra, procurando afastar de nós a atmosfera criada pela terrível experiência por que passara a Sra. Drukker.

Markham foi o primeiro a falar.

— Acredita você, Vance, que a pessoa que trouxe esta pedra de xadrez na noite passada seja o assassino de Robin e Sprigg?

— Sem dúvida alguma. O propósito da sua visita da meia-noite é espantosamente claro. Está de acordo com o que já foi esclarecido.

— A mim parece uma pilhéria de mau gosto — respon-i deu Markham. — Obra de um bêbedo diabólico...

Vance sacudiu a cabeça.

— Em todo este pesadelo, é a única coisa que não pode qualificar-se como obra de insano humorismo. Foi uma incursão tremendamente séria. O próprio diabo nunca é tão solene como quando disfarça suas pegadas. A mão do nosso diabo em questão havia sido forçada, e ele fez uma jogada audaciosa. Juro que prefiro seu temperamento jovial ao que o impulsionou a penetrar aqui a noite passada. Entretanto, temos agora alguma coisa positiva em que nos apoiarmos.

Heath, impaciente com tanta teoria, recolheu rapidamente estas últimas palavras.

— E que poderá ser essa coisa, senhor?

— Em primeiro lugar, podemos afirmar que nosso jogador de xadrez está muito familiarizado com a planta desta casa. A luz noturna do vestíbulo superior podia espalhar sua claridade pela escada até ao patamar, mas o resto do percurso deve ter ficado às escuras. Mais ainda, a distribuição da parte posterior da casa é um tanto complicada. Por conseguinte, a menos que conhecesse esta distribuição, não podia encontrar seu caminho nas trevas, sem fazer barulho. Indubitavelmente, o visitante noturno também sabia qual era o quarto da Sra. Drukker e o fato de o filho dela não ter ainda voltado para casa, nesta noite, pois não se teria arriscado a fazer sua visita se não estivesse certo de que o terreno estava livre.

— Até agora, isto não nos ajuda muito — grunhiu Heath.

— Estamos desde o princípio convencidos de que o assassino conhecia tudo que se relaciona com estas duas casas, e não nos podemos afastar dessa convicção.

— É verdade. Mas, pode-se ser íntimo de uma família e, não obstante, ignorar a hora em que se recolhe cada uma das pessoas que a formam, em determinada noite, e como efetuar uma entrada sub-reptícia na casa. Mais ainda, sargento, nosso visitante noturno sabia que a Sra. Drukker costumava deixar sem chave, todas as noites, a porta do seu quarto. A intenção do indivíduo era penetrar no quarto e não deixar, simplesmente, sua pequena lembrança no lado de fora e logo partir. Prova isto a maneira furtiva de mexer na maçaneta.

— É possível que tenha querido simplesmente despertar a Sra. Drukker, para que ela encontrasse imediatamente o objeto — sugeriu Markham.

— Então, por que moveu tão cuidadosamente a maçaneta, como se procurasse não despertar ninguém? Um ruído na maçaneta, uma batida suave na porta, ou simplesmente atirar contra esta a peça de xadrez teria correspondido melhor ao seu propósito... Não, Markham, ele tinha um objetivo mais sinistro, mas, quando encontrou a porta fechada à chave e ouviu o grito de medo da Sra. Drukker, colocou o bispo em lugar que ela o pudesse achar e fugiu.

— Apesar disto, senhor, — redargüiu Heath, — qualquer pessoa podia saber que ela não fechava a porta de seu quarto à chave, à noite, e conhecer a disposição interna da casa para encontrar saída no meio da escuridão.

— Mas, sargento, quem poderia ter uma chave para abrir a porta dos fundos? E quem poderia tê-la usado à meia-noite?

— A porta poderia ter ficado aberta — replicou Heath

— e, quando confrontarmos os álibis de todos, poderemos ter uma pista.

Vance suspirou.

— Provavelmente encontraremos duas ou três pessoas, sem qualquer álibi. E, se a visita da noite passada foi planejada, um convincente álibi pode ter sido preparado. Não estamos lidando com um simplório, sargento. Estamos jogando uma partida de morte com um assassino sutil e de muitos recursos, que pode pensar tão rapidamente como nós e que é amplamente versado nas sutilezas da lógica...

Como movido por um súbito impulso, virou-se, passando para dentro e fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. Dirigiu-se para a cozinha, onde a alemã que nos havia recebido antes estava fleumàticamente sentada a uma mesa, preparando o almoço. Ela levantou-se no momento em que entrávamos e afastou-se de nós. Vance, intrigado por aquele procedimento, estudou-a por alguns momentos em silêncio. Então, seus olhos dirigiram-se para a mesa onde uma berinjela grande tinha sido cortada longitudinalmente em duas metades.

— Ah! — exclamou ele, olhando o conteúdo dos vários pratos que ali havia. — Aubergines à la Turque, hem? Excelente prato. Entretanto, em seu caso, eu teria picado a carne de carneiro em pedaços menores. E não lhe teria posto tanto queijo, pois não combina com o molho espanhol que você está preparando. — Levantando a vista, com sorriso agradável, perguntou: — A propósito, como se chama você?

Seus modos aturdiram grandemente a. mulher, mas também tiveram o efeito de aliviar os temores dela.

— Menzel — respondeu ela com voz sumida. — Greta Menzel.

— Há quanto tempo está com os Drukkers?

— Vai para vinte e cinco anos.

— Muito tempo — comentou Vance pensativamente. — Diga-me: Por que você se assustou quando chegamos?

A mulher irritou-se e cerrou os punhos.

— Eu não estava assustada. Mas o Sr. Drukker estava ocupado.

— Você pensou talvez que viéssemos prendê-lo — disse Vance.

Seus olhos dilataram-se, porém ela não respondeu.

— A que horas o Sr. Drukker se levantou ontem de manhã? — continuou Vance.

— Já lhe disse... às nove horas... como sempre.

— A que horas se levantou o Sr. Drukker? — O tom insistente e preciso de sua voz era muito mais nefasto do que qualquer gesticulação dramática.

— Eu lhe disse...

— Die Wahrheit, Frau Menzel! Um wie viel Uhr ist er aufgestanden?

O efeito psicológico dessa repetição da pergunta em alemão foi instantâneo. A mulher cobriu o rosto com as mãos e deixou escapar um grito abafado como de um animal que caiu numa armadilha.

— Eu não sei... — gemeu ela. — Eu o chamei às oito e meia, porém não me respondeu; tratei de abrir a porta... não estava com chave... e... Du lieber Gott!... Ele tinha saído.

— Quando foi que você o viu depois disso? — perguntou Vance tranqüilamente.

— Às nove. Subi outra vez para dizer-lhe que o desjejum estava pronto. Encontrei-o no escritório... em sua escrivaninha... trabalhando como um louco e num estado de excitação muito grande. Mandou-me embora.

— Desceu para comer?

— Sim... Sim... Desceu... meia hora depois.

A mulher apoiou-se pesadamente na pia e Vance puxou uma cadeira para junto dela.

— Sente-se, Sra. Menzel — disse bondosamente. Assim que ela obedeceu, perguntou-lhe: — Por que me disse esta manhã que o Sr. Drukker se levantou às nove?

— Tive de dizê-lo... obrigaram-me a isto. — Sua resistência havia desaparecido e ela respirava pesadamente como uma pessoa cujas forças se houvessem esgotado. — Quando a Sra. Drukker voltou ontem da casa da Srta. Dillard, disseme que, se alguém perguntasse isso acerca do Sr. Drukker, eu dissesse "Às nove horas". Obrigou-me a jurar que eu o diria... — Sua voz desvaneceu-se e seus olhos tornaram-se vidrados. — Eu tinha medo de dizer coisa diferente.

Vance parecia ainda desconcertado. Depois de tirar algumas baforadas do seu cigarro, observou:

— Não há nada no que você nos disse que possa afetá-la deste modo. Não é raro que uma mulher mórbida como a Sra. Drukker tenha tomado semelhante medida fantástica para proteger seu filho contra uma possível suspeita, quando um assassinato foi cometido na vizinhança. Decerto você está há bastante tempo com ela para perceber como poderia exagerar qualquer possibilidade remota relativamente a seu filho. Na verdade, eu estou surpreendido de ver como você leva isso tão a sério. Terá você algum outro motivo que relacione o Sr. Drukker com esse crime?

— Não!... não!... — A mulher sacudiu a cabeça, fora de si.

Vance caminhou até a janela dos fundos, franzindo o cenho. Subitamente voltou-se. Tornara-se severo e implacável.

— Onde estava você, Menzel, na manhã em que o Sr. Robin foi morto?

Uma mudança surpreendente operou-se na mulher. O rosto tornou-se lívido; os lábios tremeram e as mãos crisparam-se em um gesto espasmódico. Ela procurou desviar seu olhar de Vance, porém algo nos olhos deste a retinha.

— Onde estava você, Menzel? — A pergunta foi repetida duramente.

— Eu estava... aqui... — começou a dizer; então deteve-se bruscamente e lançou um olhar agitado a Heath, que a olhava fixamente.

— Estava na cozinha?

Ela fez que sim com a cabeça. Parecia que a mulher havia perdido a voz.

— E viu o Sr. Drukker voltar da casa de Dillard? Outra vez ela respondeu afirmativamente com a cabeça.

— Exatamente — disse Vance. — E ele entrou pelos fundos, pela porta de grades do vestíbulo, e subiu... E ele não sabia que você o viu pela porta da cozinha... E, mais tarde, perguntou onde teria você estado àquela hora... E quando você lhe disse que tinha estado na cozinha, ordenou-lhe que guardasse silêncio sobre isso... E depois você soube da morte do Sr. Robin uns minutos antes do momento em que você o vira entrar aqui... E, ontem, quando a Sra. Drukker ordenou a você que dissesse que ele não se tinha levantado antes das nove, e quando você soube que alguém também tinha sido morto perto daqui, você suspeitou e assustou-se... Não é assim, Menzel?

A mulher, soluçando em voz alta, cobriu o rosto com o avental. Não havia necessidade de que ela confessasse, pois era evidente que Vance tinha adivinhado a verdade.

Heath tirou o cigarro da boca e olhou-a ferozmente.

— E então! Tudo isto você estava ocultando de mim, hem? — vociferou projetando o queixo. — Você me mentiu, quando eu a interroguei outro dia. Criando obstáculo à ação da justiça, não é?

Ela lançou a Vance um olhar aterrorizado, em busca de proteção.

— A Sra. Menzel, sargento, — disse ele — não teve a intenção de obstruir a ação da polícia; desde que ela nos disse a verdade, creio que poderemos relevar seu erro, que é perfeitamente natural no caso. — Então, antes que Heath tivesse tempo de responder, virou-se para a mulher e perguntou-lhe em tom indiferente:

— Você fecha todas as noites com chave a porta que dá para o vestíbulo?

— Sim... todas as noites. — Ela falava negligentemente. A reação do medo a havia deixado apática.

— Tem certeza de que a fechou a noite passada?

— Às nove e meia... quando eu fui para a cama. Vance atravessou o pequeno corredor e inspecionou a fechadura.

— É uma fechadura de mola — observou ele, voltando. — Quem tem chave desta porta?

— Eu tenho uma e a Sra. Drukker... tem também outra.

— Está certa de que ninguém mais tem chave?

— Ninguém mais, exceto a Srta. Dillard...

— A Srta. Dillard? — A voz de Vance ressoou, subitamente com interesse. — Por que ela deve ter chave?

— Há muito tempo que ela tem uma. Ela é como da família... Vem aqui duas ou três vezes por dia. Quando eu saio, fecho a porta com a chave. Assim, tendo ela uma, evita o incômodo à Sra. Drukker de descer para abrir-lhe a porta.

— Muito natural — murmurou Vance, acrescentando em seguida: — Não a incomodaremos mais, Menzel.

Dito isto, saímos pelo pequeno pórtico posterior. Uma vez fechada a porta atrás de nós, Vance apontou para a porta de grade, que dava para o pátio.

— Note como foi forçada essa tela de arame até separá-la da moldura, permitindo que pudessem meter a mão para puxar o ferrolho, ou pôr a chave da Sra. Drukker ou da Srta. Dillard na fechadura... Provavelmente, foi a chave desta última que usaram para abrir a porta da casa.

Heath meneou a cabeça. Este aspecto tangível do caso lhe agradava. Mas Markham não prestava atenção. Permanecia à margem, fumando com um ar de desprezo. Daí a pouco, voltou-se com resolução para tornar a entrar na casa, quando Vance lhe segurou no braço.

— Não... não, Markham! Esta seria uma técnica abominável. Domine sua raiva. Você é muito impulsivo, sabe?

— Mas, que diabo, Vance! — Markham sacudiu o braço até libertar-se. — Drukker mentiu-nos dizendo que saíra pelo portão de Dillard antes do assassinato de Robin...

— Já sei que ele mentiu. Eu suspeitei sempre de que o relato de seus movimentos era um tanto fantástico. Porém, é inútil subir agora e ameaçá-lo por causa disto. Dirá simplesmente que a cozinheira se enganou.

Markham não se convencia.

— Mas, e sobre ontem de manhã? Quero saber onde ele estava, quando a cozinheira o chamou às oito e meia. Por que a Sra. Drukker estava tão ansiosa em nos fazer acreditar que seu filho dormia?

— Provavelmente, ela foi também ao quarto dele e viu que não estava. E, quando soube da morte de Sprigg, sua imaginação febril sobressaltou-se e começou a construir um álibi. E você apenas aumentará sua perturbação, se lhe mostrar as discrepâncias do seu depoimento.

— Não tenho tanta certeza assim. — Markham falava com gravidade significativa. — Posso estar encaminhando uma solução para este odioso assunto.

Vance demorou em responder. Permaneceu olhando lá embaixo as sombras trêmulas que os salgueiros projetavam no chão. Afinal disse em voz baixa:

— Não podemos arriscar. Se o que você pensa fosse verdadeiro e você revelasse a informação acabada de receber, o homenzinho, que na noite passada esteve aqui, voltaria outra vez. E, desta vez, não se contentaria em deixar a pedra de xadrez fora da porta!

Uma expressão de terror apareceu no olhar de Markham.

— Você crê que eu poderia comprometer a segurança da cozinheira, se usasse de suas informações contra ele neste momento?

— O terrível deste assunto é que, enquanto não soubermos a verdade, encontraremos o perigo diante de nós a cada passo que dermos. — A voz de Vance denotava desânimo. — Não podemos pôr em risco a vida de ninguém.

A porta que dava para o vestíbulo abriu-se e Drukker apareceu no umbral com seus olhos miúdos pestanejando, à luz do sol. Seu olhar pousara em Markham e um sorriso artificial e repulsivo desenhava-se-lhe nos lábios.

— Espero não incomodar os senhores — disse em tom de desculpas e com um olhar furtivo e ameaçador. — Mas a cozinheira acaba de informar-me que lhes disse que me havia visto entrar aqui pela porta dos fundos, na manhã da infortunada morte do Sr. Robin.

— Oh, sim? — murmurou Vance, virando-se, ao mesmo tempo em que escolhia um outro cigarro.

Drukker lançou-lhe um olhar inquiridor e ergueu-se com uma espécie de cínica altivez.

— E que importância tem isso, Sr. Drukker? — perguntou Markham.

— Simplesmente, desejava assegurar aos senhores — replicou Drukker — que a cozinheira estava enganada. Evidentemente, confundiu a data... Como sabem os senhores, entro e saio por esta porta muitíssimas vezes. Na manhã da morte de Robin, como já lhes expliquei, saí para o campo de exercício pelo portão que dá para a Rua 75 e, depois de um ligeiro passeio pelo parque, voltei para casa, entrando pela porta da frente. Já convenci a Greta de que ela se enganou.

Vance escutava atentamente. Voltou-se então e encontrou o sorriso do outro.

— Por acaso, não a terá convencido com uma peça de xadrez?

Drukker sacudiu a cabeça e sorveu profundamente o ar. Seu peito recurvado tornou-se teso; os músculos ao redor dos olhos e da boca começaram a contorcer-se e as veias e liga-mentos do seu pescoço estufaram e ficaram firmes como cordas distendidas. Por um momento, acreditei que ele fosse perder o domínio de si mesmo; porém conteve-se, com grande esforço.

— Não compreendo, senhor. — Havia nas suas palavras a vibração de uma raiva intensa. — Que significa isso de pedras de xadrez?

— As peças de xadrez têm vários nomes — respondeu Vance suavemente.

— Está o senhor falando de xadrez? — Um desprezo venenoso marcou as maneiras de Drukker, mas ele procurava sorrir. — É muito certo, as peças de xadrez têm vários nomes; o rei, a rainha, o cavalo, a torre... — Aqui se deteve. — O bispo!... — Apoiou a cabeça no umbral da porta e começou a rir melancòlicamente. — Então! Refere-se o senhor a isto? O bispo!... Os senhores são umas crianças imbecis que jogam uma partida estúpida e insensata.

— Temos um motivo excelente para crer — disse Vance com calma impressionante — que o jogo está sendo jogado por outro... com o bispo do xadrez como símbolo principal.

Drukker ficou calado.

— Não leve a sério demasiadamente as extravagâncias de minha mãe — aconselhou ele. — Sua imaginação prega-lhe peças algumas vezes.

— Ah! E por que menciona agora a sua mãe?

— Porque os senhores acabam de falar com ela, não é? E os comentários dos senhores, devo dizer, se parecem muitíssimo com uma de suas alucinações inofensivas.

— Por outro lado, — retornou Vance suavemente, — sua mãe pode ter bases suficientes para as suas crenças.

Os olhos de Drukker semicerraram-se e voltaram-se rapidamente para Markham.

— Tolices!

— Ah, muito bem — suspirou Vance. — Não discutiremos este ponto. — Em seguida, com um tom de voz alterado, acrescentou: — Poderia ser-nos útil, se soubéssemos, Sr. Drukker, onde esteve entre as oito e nove horas da manhã de ontem.

O homem abriu ligeiramente a boca como para falar, mas fechou-a rapidamente de novo, olhando perscrutadoramente para Vance. Afinal, respondeu em voz alta e insistente:

— Estive trabalhando... em meu escritório... desde as seis até às nove e meia. — Fez uma pausa, mas sentiu que era necessário ampliar sua explicação. — Durante vários meses tenho estado trabalhando na modificação de uma teoria para explicar a interferência da luz, o que a teoria do "quantum" é incapaz de fazer. Dillard disseme que era impossível. — Uma luz de fanático brilhou em seus olhos. — Mas, acordei cedo, ontem de manhã, com certos fatores do problema já esclarecidos. Levantei-me e fui para o escritório...

— Então foi ali que esteve o senhor — disse Vance displicentemente. — Não tem grande importância. Sinto tê-lo incomodado hoje. — Fez sinal a Markham com a cabeça e encaminhou-se para a porta de grade.

No momento em que nos dirigíamos para o campo de exercícios, voltou-se e disse:

— A Sra. Menzel está sob a nossa proteção. Afetar-nos-ia muitíssimo, se lhe acontecesse algum mal...

Drukker viu-nos afastar com uma espécie de fascínio no olhar.

Quando não podíamos mais ser ouvidos, Vance aproximou-se de Heath e lhe disse com voz cheia de preocupação:

— Sargento, aquela honesta alemã pode ter posto a sua cabeça inconscientemente no laço. E eu tenho medo. Não seria demais que destacássemos debaixo deste salgueiro um bom homem com a missão de vigiar a parte posterior da casa de Drukker esta noite. E diga-lhe que entre, ao primeiro grito ou chamado... Eu descansarei melhor, se souber que há um anjo guardião, em trajes civis, velando o sono de Frau Menzel.

— Compreendo, senhor. — O rosto de Heath estava sombrio. — Esta noite nenhum jogador de xadrez a incomodará.


XIV

 

UMA PARTIDA DE XADREZ

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h30)

 


Enquanto nos dirigíamos lentamente para a casa de Dillard, ficou decidido que se fizessem investigações imediatas acerca dos lugares por onde andaram as pessoas que, de qualquer forma, se achavam envolvidas no horrendo drama.

— Devemos ter muito cuidado em não deixar escapar algo do que aconteceu à Sra. Drukker — aconselhou Vance. — Nosso portador noturno de bispos não tinha a intenção de que viéssemos a saber de sua visita de meia-noite. Julgou que a pobre senhora estaria demasiado assustada para nô-la revelar.

— Estou inclinado a crer — objetou Markham — que você está emprestando demasiada importância a esse episódio.

— Oh, meu caro companheiro! — Vance deteve-se brevemente e pôs as duas mãos nos ombros de Markham. — Você é por demais inocente... este é seu grande defeito. Você não sente... Você não é filho da natureza. A poesia de sua alma converteu-se em prosa. Ora, eu, ao contrário a você, deixo voar minha imaginação e digo-lhe que a colocação daquele bispo na porta do quarto da Sra. Drukker não foi uma inocente travessura, mas o ato desesperado de um homem. Era um sinal de aviso.

— Crê que ela saiba algo?

— Eu penso que ela viu o corpo de Robin no campo de exercícios. E creio que viu também alguma coisa que daria sua vida para não ter visto.

Caminhávamos em silêncio. Era nossa intenção passar pelo portão da Rua 75 e nos apresentar pela porta principal da casa de Dillard; porém, ao passarmos pela sede do clube, a porta abriu-se e Belle Dillard encarou-nos ansiosamente.

— Vi os senhores se dirigirem para o campo de exercícios — disse ela com certa perturbação, dirigindo suas palavras para Markham. — Há uma hora que venho procurando falar-lhe... telefonei para o seu gabinete... — Suas maneiras tornaram-se mais agitadas. — Alguma coisa estranha sucedeu. Oh, pode não ser nada... mas, quando entrei na sede do clube esta manhã, com a idéia de visitar a Lady Mae, um impulso qualquer fez-me ir ao armário das ferramentas outra vez e olhar a gaveta... parecia tão... tão estranho que o pequeno revólver fosse roubado... Pois ali estava... bem à vista... ao lado do outro! — Ela respirou ansiosa. — Sr. Markham, alguém, na última noite, o pôs de novo na gaveta.

Esta informação foi para Heath como um choque elétrico.

— Você tocou nele? — perguntou nervosamente.

— Por quê?... Não...

O sargento passou junto a ela, quase roçando-a, sem cerimônia alguma, encaminhando-se para o armário das ferramentas e abriu-o violentamente. Junto à automática maior que havíamos visto no dia anterior, estava o pequeno 32, de cabo de nácar. Os olhos do sargento brilharam ao correr seu lápis pela guarda do gatilho, levantando-a cuidadosamente. Suspendeu-o e cheirou a extremidade do cano.

— Uma cápsula vazia — anunciou com satisfação. — Foi descarregada recentemente... Isto nos pode esclarecer alguma coisa. — Enrolou cuidadosamente o revólver em um lenço e guardou-o no bolso do casaco.

— Encarregarei Dubois de examinar as impressões digitais e farei com que o capitão Hagedorn (1) examine as balas.

(1) O capitão Hagedorn era perito em armas de fogo, no Departamento de Polícia de Nova York. Foi ele quem, no caso do assassinato de Benson, deu a Vance os dados, com os quais ele estabeleceu a altura do assassino; e quem fez o exame das três balas disparadas com o revólver Smith Wesson, no assassinato dos Greenes.


— Esta é muito boa, sargento — disse Vance zombeteiramente. — Então você acredita que o cavalheiro que procuramos e que limpou o arco e a flecha ia deixar o seu monograma digital em um revólver?

— Não tenho sua imaginação, senhor Vance — replicou Heath grosseiramente. — Portanto, continuarei fazendo aquilo que deve ser feito.

— Você tem razão. — Vance sorriu com admiração e bom humor pela tenacidade esplêndida do sargento. — Perdoe-me por procurar arrefecer seu zelo. — E, voltando-se para Belle Dillard, acrescentou:

— Nós viemos aqui principalmente para ver o professor e o Sr. Arnesson. Mas há também alguma coisa sobre que nós desejaríamos conversar com você. Nós sabemos que você tem uma chave da porta dos fundos da casa de Drukker.

Ela fez um movimento confuso de cabeça.

— Sim. Faz anos que a tenho. Vou e volto tantas vezes durante o dia, e evito desse modo molestar a Lady Mae...

— Nosso único interesse pela chave é que pode ter sido usada por alguém que não tinha direito a tal.

— Mas isso é impossível. Nunca a emprestei a ninguém. E eu sempre guardo em minha bolsa.

— E todo mundo sabe que você tem essa chave?

— Por quê?... Creio que sim. — Estava evidentemente perplexa. — Nunca fiz segredo disso. Certamente toda a família sabe disso.

— E teria você talvez mencionado ou revelado o fato na presença de estranhos?

— Sim... Embora não possa recordar-me de um exemplo específico.

— Está certa de possuir a chave agora?

Ela lançou a Vance um olhar de assombro e, sem dizer palavra, tomou da mesa uma carteirinha de couro de lagarto. Abrindo-a, meteu a mão rapidamente em um dos compartimentos interiores.

— Sim! — anunciou ela com alívio. — Está onde sempre a guardo... Por que pergunta isso?

— É importante que nós saibamos quem teve acesso à casa de Drukker — disselhe Vance. Então, antes que ela tivesse tempo de responder-lhe, perguntou: — Podia a chave ter saído de sua posse a noite passada? Isto é, podia ter sido retirada de sua carteira sem que você soubesse?

A fisionomia de Belle cobriu-se de um ar de terror.

— Oh! Que sucedeu?... — começou a dizer, mas Van-ce a interrompeu.

— Por favor, Belle! Não há nada que possa preocupá-la. Estamos simplesmente lutando para eliminar as possibilidades mais remotas relacionadas com nossa investigação. Diga-me: podia alguém ter-se apoderado dessa chave na noite passada?

— Ninguém — respondeu ela, embaraçada. — Fui ao teatro às oito horas e não me separei um instante de minha carteira.

— Quando usou a chave pela última vez?

— A noite passada, depois de cear. Dei um pulo lá, para ver como estava Lady Mae e desejar-lhe uma boa noite.

Vance franziu ligeiramente o cenho. Pude ver que aquela informação não se enquadrava com alguma teoria que havia formado.

— Você fez uso da chave depois da ceia — insistiu — e conservou-a em sua carteira o resto da noite, sem deixá-la um momento fora do alcance de sua vista. Não é assim, Belle?

A jovem afirmou com um movimento de cabeça.

— Mais ainda, durante o espetáculo, conservei a carteira no colo — acrescentou a jovem.

Vance olhou a carteira pensativamente.

— Bem, — disse displicentemente. — Assim termina o romance da chave. E agora vamos incomodar seu tio novamente. Crê você conveniente servimo-nos de um avant-courir, ou lhe parece melhor que assaltemos a cidadela, sem nos anunciar?

— O tio saiu — disse a moça. — Foi passear no Drive.

— E o Sr. Arnesson ainda não voltou da Universidade, não é?

— Não; mas estará para o almoço. Às terças, à tarde, ele não tem aula.

— Então, nesse intervalo, conferenciaremos com Beedle e com o admirável Pyne. Eu poderia sugerir-lhe que uma visita sua à Sra. Drukker seria muito útil para ela neste momento.

Com um sorriso de preocupação e uma ligeira inclinação de cabeça, a jovem saiu pela porta do porão.

Heath, imediatamente, foi em busca de Beedle e de Pyne, trazendo-os à sala, onde Vance os interrogou sobre a noite precedente. Entretanto, não obteve deles nenhuma informação. Os dois haviam-se deitado às dez. Seus quartos ficavam no quarto andar, num lado da casa. E nem sequer ouviram a Srta. Dillard entrar, quando voltou do teatro. Vance perguntou-lhes se haviam ouvido algum ruído no campo de exercícios e informou-lhes que a porta de grades do vestíbulo da casa de Drukker poderia ter sido fechada com estrondo, cerca da meia-noite. Porém, aparentemente, os dois estavam dormindo àquela hora. Finalmente foram liberados com a advertência de não transmitirem a ninguém o que lhes fora perguntado. Cinco minutos depois, entrou o professor Dillard. Ainda que se surpreendesse, ao nos ver, cumprimentou-nos amavelmente.

— Pela primeira vez, Markham, escolheu você uma hora para a sua visita em que eu não estou ocupado. Imagino que isto significa mais interrogações. Bem, passem para a biblioteca e perguntem o que quiserem. Lá estaremos mais à vontade. — Ele foi à nossa frente, escada acima.

Uma vez sentados na biblioteca, insistiu em oferecer-nos um copo de vinho do Porto que ele mesmo serviu.

— Drukker deveria estar aqui — disse o professor. — Tem muito carinho pelo meu "Noventa e seis", embora ele beba somente em raras ocasiões. Eu disselhe que deveria tomar mais vinho do Porto; mas ele pensa que lhe faz mal e lembra a minha gota. Todavia, não existe relação alguma entre a minha gota e o vinho do Porto... A opinião é mera superstição. Um bom vinho do Porto é o mais são de todos os vinhos. A gota não é conhecida na cidade do Porto. Drukker precisa de um pouco de estimulante físico de boa qualidade... Pobre homem! Seu espírito é como um forno que lhe queima o corpo. É um homem brilhante, Markham. Se tivesse suficiente energia física, que se harmonizasse com o seu espírito, seria um dos maiores físicos do mundo.

— Ele me disse — comentou Vance — que o senhor o censurou por sua inabilidade em elaborar uma modificação da teoria dos quanta em relação à interferência da luz.

O ancião sorriu tristemente.

— Sim. Eu sabia que essa crítica o estimularia a fazer um esforço máximo. O fato é que Drukker está na pista de algo revolucionário. Já resolveu vários teoremas interessantes... Entretanto, estou certo de que não é isso que os senhores vieram discutir aqui. Em que posso servir-lhe, Markham? Ou, acaso, vieram trazer-me notícias?

— Infelizmente, não temos notícias para dar-lhe. Vimos solicitar seu auxílio outra vez... — Markham hesitou, como se não soubesse como proceder; e Vance assumiu o papel de inquiridor.

— A situação mudou um pouco desde que estivemos aqui, ontem. Um ou dois fatos novos surgiram e há uma possibilidade de que nossa investigação seja facilitada, se soubermos das atividades exatas dos membros da sua casa, durante a noite passada. Essas atividades, de fato, podem ter influenciado certos fatores neste caso.

O professor ergueu a cabeça com alguma surpresa, porém não fez comentário nenhum. Limitou-se a dizer:

— Esta informação é fácil de dar. A quem se refere o senhor?

— A ninguém em particular. — Vance apressou-se a afirmar.

— Bem, deixe-me pensar. — Tirou seu velho cachimbo de espuma do mar e começou a enchê-lo. — Belle, Sigurd e eu jantamos às seis; às sete e meia, Drukker chegou e, minutos depois, Pardee. Às oito, Sigurd e Belle foram ao teatro, c às dez e meia Drukker e Pardee se retiraram. Pouco depois das onze, recolhime ao quarto, tendo fechado à cha+ve as portas da casa. Disse a Pyne e a Beedie que podiam deitar-se cedo. Eis aí tudo que posso dizer-lhes.

— Devo entender que a Srta. Dillard e o Sr. Arnesson foram juntos ao teatro?

— Sim, Sigurd raramente vai ao teatro, mas, quando vai, sempre leva Belle. Na maior parte das vezes, assiste às representações das obras de Ibsen. Sua educação norte-americana não lhe diminuiu em nada o entusiasmo por tudo o que é norueguês. É devotado de todo o coração à sua terra natal. Também conhece a literatura norueguesa como qualquer professor da Universidade de Oslo; e a única música que admira realmente é a de Grieg. Quando vai aos concertos ou aos teatros, com toda a certeza, os programas são quase sempre noruegueses.

— Então ontem à noite assistiu a um drama de Ibsen?

— Creio que levaram a cena o Rosmersholm. Atualmente estão revivendo em Nova York o repertório ibseniano.

Vance meneou a cabeça.

— Walter Hampden é o protagonista. O senhor viu Arnesson ou a Srta. Dillard depois que voltaram do teatro?

— Não. Parece-me que voltaram tarde. Belle me disse esta manhã que, terminado o espetáculo, foram cear no Hotel Palace. Todavia, Sigurd estará aqui dentro de pouco tempo e lhe fornecerá mais pormenores.

Embora o professor falasse com paciência, era visível que se sentia incomodado pela natureza aparentemente irrelevante das perguntas.

— Terá o senhor a bondade — prosseguiu Vance — de dizer-nos as circunstâncias relacionadas com as visitas dos Srs. Drukker e Pardee, depois do jantar?

— Não havia nada de extraordinário sobre essas visitas. Eles vêm, muitas vezes, aqui, à noite. O objeto da visita de Drukker era discutir comigo o trabalho que havia feito na sua modificação da teoria dos quanta. Mas, quando Pardee apareceu, a discussão cessou. Este homem é um bom matemático, porém a física superior está muito além dele.

— O Sr. Drukker ou o Sr. Pardee viram a Srta. Dillard antes de ela ir para o teatro?

O professor Dillard tirou lentamente o cachimbo da boca e sua expressão denunciava enfado.

— Devo dizer — replicou irritado — que não vejo nenhuma utilidade em responder tais perguntas. Todavia, — acrescentou, com um tom de voz mais indulgente, — se as trivialidades da minha casa lhes podem ser úteis, terei prazer em lhes dar todos os pormenores. — Olhou para Vance por um momento. — Sim, tanto Drukker como Pardee viram Belle, ontem à noite. Todos, inclusive Sigurd, estivemos juntos nesta mesma sala, meia hora antes de eles saírem para o teatro. Houve também uma discussão acidental sobre o gênio de Ibsen, na qual Drukker aborreceu bastante Sigurd, sustentando a superioridade de Hauptmann.

— Então, segundo vejo, o Sr. Arnesson e a Srta. Dillard saíram às oito, ficando aqui o senhor, Pardee e Drukker.

— Exatamente.

— E às dez e meia, creio que o senhor disse, Drukker e Pardee se retiraram. Retiraram-se juntos?

— Desceram juntos — respondeu o professor com mais uma demonstração de acrimônia. — Creio que Drukker foi para sua casa, mas Pardee tinha um encontro no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Parece muito cedo para que Drukker se recolhesse — murmurou Vance — especialmente, tendo ele um assunto importante a discutir com o senhor e não tivesse tido a oportunidade de fazê-lo até o momento de retirar-se.

— Drukker não está bom. — A voz do professor era outra vez estudadamente paciente. — Como já lhes disse, ele se cansa logo. A noite passada, achava-se extraordinariamente esgotado. De fato, queixou-se para mim da sua fadiga e disseme que ia imediatamente para a cama.

— Sim... é certo — murmurou Vance. — Ele nos disse há momentos que esteve trabalhando ontem, desde as seis da manhã.

— Não me surpreende. Uma vez que um problema se assenta em seu espírito, ele trabalha incessantemente nele. Infelizmente, não tem reações normais para contrabalançar sua paixão absorvente pelas matemáticas. Há ocasiões em que eu me tenho preocupado com sua estabilidade mental.

Vance, por algum motivo, fez a conversação mudar de rumo.

— O senhor falou do compromisso de Pardee, a noite passada no Clube de Xadrez, — disse após acender cuidadosamente um novo cigarro. — Disse-lhe a natureza do mesmo?

O professor Dillard sorriu com afável tolerância.

— Falou a respeito durante uma hora. Parece que um cavalheiro chamado Rubinstein, um gênio do mundo enxadrista, segundo tenho ouvido, que está agora visitando este país, o tinha convidado para jogar três partidas de exibições. A última foi ontem. Começou às duas noras e, às seis, adiaram-na. Deveriam ter jogado às oito, porém Rubinstein era convidado de honra num banquete; assim, marcaram para continuá-la às onze. Pardee estava em um estado de agonia, porque perdeu a primeira partida e empatou a segunda. E se, na noite passada, ganhasse, conseguiria um empate com Rubinstein. Parecia pensar que tinha uma excelente probabilidade, pelo modo como tinha deixado o jogo às seis, embora Drukker discordasse dele. Ele deve ter ido diretamente daqui para o clube, porque já eram dez e meia quando ele e Drukker se retiraram.

— Rubinstein é um forte jogador — observou Vance. Uma nova nota de interesse, que procurou ocultar, transpareceu em sua voz. — É um dos grandes mestres do xadrez.

— Derrotou Capablanca em San Sebastian em 1911, e entre 1907 e 1912 foi considerado o contendor lógico para o título de campeão mundial em poder do Dr. Lasker... Sim, seria um grande galardão para Pardee, se o derrotasse. Por certo, apesar da fama de seu gambito, Pardee nunca foi considerado um mestre. A propósito, o senhor sabe o resultado da partida da noite passada?

Outra vez, observei um sorriso débil de tolerância nos cantos dos lábios do professor Dillard. Dava a impressão de olhar, de uma grande altura intelectual, benevolentemente, para travessuras de crianças.

— Não — respondeu ele. — Não perguntei. Mas sou de parecer que Pardee tenha perdido, pois que, quando Drukker assinalou o ponto fraco de sua posição, ao ser suspensa a partida, foi mais positivo do que de costume. Drukker é por natureza cauteloso, e raramente expressa uma opinião definida sobre um problema, sem ter uma base sólida para assim fazê-lo.

Vance levantou as sobrancelhas com certo assombro.

— Quer o senhor dizer que Pardee analisou seu jogo, sem tê-lo terminado, com Drukker, e discutiu as possibilidades de sua terminação? Isto não é só falta de ética, mas qualquer jogador seria desqualificado por fazer semelhante coisa.

— Não estou familiarizado com as sutilezas do xadrez

— replicou o professor Dillard com acrimônia. — Mas estou seguro de que Pardee não é culpado de falta de ética a este respeito. E, além de tudo, recordo-me de que, quando estava ocupado com as peças no tabuleiro, e Drukker encaminhou-se para vê-las, Pardee lhe pediu que não emitisse conselho algum. A discussão sobreveio depois e referiu-se, inteiramente, a generalidades. Não creio que se haja mencionado nenhuma linha particular do jogo.

Vance inclinou-se, lentamente, para a frente e quebrou a cinza do cigarro no cinzeiro, num gesto nervoso que há muito tempo aprendi a identificar como um sinal de excitação recalcada. Em seguida, levantou-se despreocupadamente e dirigiu-se para a mesa de xadrez que estava num ângulo da sala. Permaneceu ali com uma mão apoiada no esquisito tabuleiro de quadrados alternados.

— O senhor disse que Pardee esteve analisando sua posição neste tabuleiro, quando Drukker se aproximou dele, não é assim?

— Sim. — O professor Dillard falava com forçada cortesia. — Drukker estava defronte dele estudando o movimento das pedras. Começou a fazer comentários e Pardee pediu-lhe que se calasse. Cerca de um quarto de hora depois, Pardee colocou as pedras de lado. E foi quando Drukker lhe disse que sua partida estava perdida... que, apesar de aparentemente favorável, sua situação era fraca.

Vance alisava com os dedos as bordas do tabuleiro sem fazer ruído. E tirou da caixa duas ou três peças e colocou-as de novo no tabuleiro, como se jogasse com elas.

— O senhor se lembra do que Drukker disse então?

— Não prestei muita atenção. O assunto não era muito interessante para mim. — Na resposta havia uma nota inevitável de ironia. — Mas o que posso recordar é que Drukker disse que Pardee poderia ganhar, sempre que se tratasse de um jogo de trânsito rápido, porém que Rubinstein era um jogador notoriamente lento e que, forçosamente, encontraria o ponto fraco da posição de Pardee.

— Pardee ressentiu-se com essa crítica?

Vance voltou de novo até a sua cadeira e tirou outro cigarro da cigarreira; mas não se sentou.

— Muitíssimo. Drukker tem uma maneira rude e agressiva de criticar; e Pardee é hipersensível em tudo que se relaciona com xadrez. O fato é que empalideceu de raiva, diante da censura de Drukker. Então, eu tratei de mudar de assunto e, quando se retiraram, o incidente havia sido aparentemente esquecido.

Permanecemos alguns minutos mais. Markham foi profuso em desculpar-se com o professor e procurou dar explicações que justificassem o evidente incômodo que nossa visita lhe havia causado.

Ele não estava satisfeito com Vance, por causa da sua insistência aparentemente excessiva nos pormenores da partida de xadrez. Temos outras coisas que fazer em vez de conversa fiada.

— Uma aversão pela conversa fiada caracterizou também Isabel de Tennyson durante toda a sua plácida vida — replicou Vance. — Porém... que diabo, Markham!... nossa vida não é como a de Isabel. Falando sério, havia nexo em minha conversa fiada. Eu tagarelei... e aprendi.

— O que foi que aprendeu? — perguntou Markham com rispidez.

Com um olhar cauteloso para o vestíbulo, Vance inclinou-se para diante e, em voz baixa, disse:

— Aprendi, meu querido Licurgo, que falta um bispo negro no jogo da biblioteca e que a peça deixada à porta do quarto da Sra. Drukker combina com as outras peças que estão lá em cima!


XV

 

UMA ENTREVISTA COM PARDEE

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 12h30)

 


Aquela notícia produziu um efeito profundo no espírito de Markham. Como era seu costume, quando estava agitado, levantou-se e começou a passear de um lado para outro, com as mãos nas costas. Heath também, apesar de mais demorado em compreender o significado da revelação de Vance, chupava vigorosamente o charuto, o que indicava que a sua inteligência estava ocupada com um difícil ajustamento de fatos.

Antes que qualquer dos dois formulasse comentários, a porta dos fundos do vestíbulo se abriu, ouvindo-se passos ligeiros que se aproximavam da sala. Belle Dillard, voltando da casa de Drukker, apareceu na porta. Sua fisionomia estava perturbada. E, olhando para Markham, perguntou:

— O que disse o senhor a Adolph esta manhã? Ele está terrivelmente apavorado. Anda por todos os lados, experimentando fechaduras e trincos como se temesse ladrões. Atemorizou a pobre Greta, dizendo-lhe que não se esquecesse de fechar bem o quarto dela, de noite.

— Ah! Avisou a Sra. Menzel, não é? — murmurou Vance. — Muito interessante!

Os olhos da moça voltaram-se rapidamente para ele.

— Sim, mas ele não explica por quê. Está nervoso e cheio de mistérios. E o que é mais de estranhar é que não quer encontrar-se com sua mãe... Que significa isso, Sr. Vance? Sinto que está iminente alguma coisa terrível.

— Na verdade, eu não sei — replicou Vance em voz baixa e angustiada. — Tenho medo de procurar interpretá-lo. Poderia equivocar-me... — Durante um momento, guardou silêncio. — Devemos esperar e ver. Talvez esta noite o saibamos. Mas, não há motivo de alarme de sua parte, Belle. — Vance sorriu confortadoramente. — Como achou a Sra. Drukker?

— Parecia muito melhor. Mas há ainda alguma coisa que a preocupa; e penso que se relaciona com Adolph, pois todo o tempo não fez mais que falar dele, perguntando-me com insistência se havia notado, ultimamente, alguma mudança nele.

— Isto é muito natural nas circunstâncias atuais — observou Vance. — Porém, você não deve deixar que a atitude mórbida dela afete você. E agora, mudando de tema: eu soube que você esteve na biblioteca, na noite passada, durante meia hora, antes de ir ao teatro. Diga-me: onde estava sua carteira de mão, durante esse tempo?

A pergunta sobressaltou-a; porém, depois de uma momentânea hesitação, respondeu:

— Quando eu fui à biblioteca, deixei-a com meu manto na mesinha junto à porta.

— Era a carteira de couro de lagarto, contendo a chave?

— Sim. Sigurd não gosta dos trajes de cerimônia, e quando saímos juntos sempre levo meus vestidos de uso diário.

— Então você deixou a carteira na mesa durante essa meia hora, e depois conservou-a em seu poder durante o resto da noite. E esta manhã?

— Saí para um passeio, antes do café, e levei-a comigo. Mais tarde, eu a coloquei no porta-chapéus do vestíbulo, durante uma hora mais ou menos; mas, quando fui ver Lady Mae, perto das dez, levei-a comigo. Foi quando notei a reposição do pequeno revólver, atrasando assim a visita. Deixei a carteira na sala do clube até que os senhores chegaram. Desde esse momento conservo-a comigo.

Vance agradeceu-lhe.

— E agora que foi traçada completamente a peregrinação da carteira, rogo-lhe tenha a bondade de esquecer tudo.

Belle esteve a ponto de fazer uma pergunta, mas ele se antecipou à sua curiosidade e lhe disse rapidamente:

— Seu tio nos disse que você tinha ido cear no Palace a noite passada, e só voltara muito tarde.

— Eu nunca fico até tarde, quando vou a alguma parte com Sigurd — respondeu ela com uma expressão maternal de queixa. — Ele tem uma aversão profunda pela vida noturna. Pedi-lhe que ficasse mais um tempo, porém parecia tão cansado que não tive coragem de ficar. Chegamos a casa meia hora depois da meia-noite.

Vance levantou-se com um gracioso sorriso.

— Você tem sido muito amável em responder tão pacientemente nossas perguntas tolas... Agora vamos até a casa do Sr. Pardee, para ver se ele tem algumas idéias que nos iluminem o caminho. Creio que, a esta hora, ele está geralmente em casa.

— Estou certa de que ele está em casa agora — disse a jovem, acompanhando-nos até o vestíbulo. — Ele esteve aqui um momento antes de os senhores chegarem e disse que voltaria para casa a fim de responder alguma correspondência.

Estávamos para sair, quando Vance se deteve.

— Oh, diga-me, Belle: há um ponto sobre o qual eu esqueci de perguntar. Quando você veio para casa, a noite passada, com o Sr. Arnesson, como soube exatamente a hora? Notei que você não usa relógio.

— Sigurd disseme — explicou ela. — Eu estava zangada com ele por ter-me trazido tão cedo para casa; e, quando entramos no hall, perguntei-lhe que horas eram. Ele olhou para seu relógio e disseme a hora...

Nesse momento, abriu-se a porta da frente e Arnesson entrou. Olhou-nos com um assombro jocoso. Então, ao ver Belle Dillard, disselhe prazenteiramente:

— Alô, irmãzinha! Segundo vejo, estás nas mãos da polícia. — Dito isto, lançou-nos um olhar zombeteiro. — Por que o conclave? Esta casa está-se tornando um verdadeiro departamento da polícia. Procurando uma pista do assassino de Sprigg? Ah! Um jovem brilhante, a quem um professor invejoso fez desaparecer, hem?... Espero que vocês não tenham estado pondo em apuros Diana, a caçadora.

— Nada disso — replicou a jovem. — Eles têm sido muito atenciosos. Eu disselhes como você foi retrógrado por me trazer para casa à meia-noite e trinta.

— Creio que fui muito indulgente — sorriu Arnesson.

— É demasiado tarde para uma menina como você.

— A velhice deve ser uma coisa horrível... como também dedicar-se às matemáticas — retorquiu ela com algum calor, subindo a escada apressadamente.

Arnesson encolheu os ombros e seguiu-a até perdê-la de vista. Em seguida, olhou cinicamente para Markham:

— Que boas notícias traz você? Alguma coisa sobre a última vítima? — Encaminhou-se outra vez para a sala. — Sinto saudade daquele moço. Iria muito longe. É uma vergonha chamar-se John Sprigg. "Peter Piper" teria sido mais certo. Nada sucedeu a Peter Piper a não ser o episódio da pimenta; e isso não poderia transformar-se num assassinato...

— Não temos nada a informar, Arnesson — respondeu bruscamente Markham, irritado com a petulância do indivíduo.

— A situação é a mesma de antes.

— Então, vieram em visita de cortesia; ficam para almoçar?

— Nós nos reservamos o direito — disse friamente Markham — de investigar o caso da forma que nos parecer melhor. Nem tampouco devemos dar conta a você de nossas ações.

— Oh! Algo se passou que o incomoda — falou Arnesson com sarcasmo. — Eu pensei que me haviam aceito como auxiliar, porém, pelo que vejo, vão-me mandar às favas. — Suspirou profundamente, tirou o seu cachimbo. — Abandonam o piloto! Bismarck e eu. Ai de mim!

Vance estava fumando como em sonho perto da porta, aparentemente distraído, sem dar atenção às queixas de Arnesson. Então entrou na sala.

— Realmente, Markham, o Sr. Arnesson tem razão. Convencionamos que ele nos serviria de auxiliar e temos que dar-lhe a conhecer todos os pormenores.

— Foi precisamente você mesmo — protestou Markham

— quem lembrou o perigo possível de contar o sucedido na noite passada...

— E certo. Mas, nesse momento, havia esquecido a promessa feita ao Sr. Arnesson. E eu estou certo de que poderemos confiar em sua discrição. — Dito isto, Vance relatou detalhadamente a experiência da Sra. Drukker na noite passada. Arnesson escutou com imensa atenção. Notei que sua expressão sardônica desaparecia gradualmente e era substituída por um olhar de seriedade reflexiva. Durante vários minutos ele ouviu num silêncio contemplativo, com o cachimbo na mão.

— Esse é, verdadeiramente, um fator vital no problema

— comentou finalmente. — Muda nossa constante. Vejo que o caso pode ser observado através de um novo ângulo. Ao que parece, o Bispo está entre nós. Porém, por que vai perseguir a Lady Mae?

— Diz-se que ela gritou no preciso momento da morte de Robin.

— Ah! — Arnesson levantou-se da cadeira. — Compreendo sua dedução. Ela viu o Bispo da sua sacada, na manhã do assassinato de Cock Robin, e mais tarde ele voltou e mexeu no trinco da porta como para avisá-la que se calasse.

— Talvez, alguma coisa como isso... Tem você elementos suficientes para desenvolver sua fórmula?

— Gostaria de ver esse bispo negro. Onde está ele? — Vance procurou no bolso e, tirando a peça de xadrez, entregou a Arnesson, que a segurou ansiosamente. Seus olhos brilharam por um momento. Volveu-a várias vezes na mão, devolvendo-a depois a Vance.

— Parece que você conhece este bispo particularmente

— disse Vance sutilmente. — E tem razão. Foi levado do jogo que está na biblioteca do professor.

Arnesson confirmou com a cabeça.

— Assim penso eu. — De súbito, voltou-se para Markham e lançou sobre suas finas feições um olhar de grande ironia.

— Era esse o motivo pelo qual devia eu permanecer afastado? Estou sob suspeita? Ora, bolas! Que castigo se recebe pelo nefando crime de distribuir peças de xadrez entre os vizinhos?

Markham levantou-se e encaminhou-se para o vestíbulo.

— Você não está sob suspeita, Arnesson — respondeu ele, não procurando ocultar seu mau humor. — O bispo foi deixado na casa da Sra. Drukker à meia-noite em ponto.

— E eu cheguei meia hora mais tarde, para poder preencher os requisitos necessários. Sinto muito tê-lo desapontado.

— Se sua fórmula se realizar, avise-nos — disse Vance, ao sair pela porta principal. — Temos de fazer agora uma pequena visita ao Sr. Pardee.

— Pardee! Olá! Visitando um enxadrista perito em bispos, hem? Percebi já o seu raciocínio... Pelo menos, tem a virtude de ser simples e direto...

Permaneceu no pequeno vestíbulo a nos observar enquanto atravessávamos a rua.

Pardee nos recebeu com a sua habitual e serena cortesia. O tom trágico e frustrado de sua fisionomia estava mais acentuado que nunca. E, quando nos ofereceu cadeiras, em seu gabinete, suas maneiras eram a de um homem cujo interesse pela vida havia desaparecido e que apenas executava os movimentos mecânicos da existência.

— Vimos aqui, Sr. Pardee — começou a dizer Vance

— para saber alguma coisa sobre a morte de Sprigg no Riverside Park, ontem pela manhã. Temos excelentes motivos para fazer-lhe perguntas sobre esse caso.

Pardee meneou resignadamente a cabeça.

— Não me ofenderão as perguntas que o senhor possa fazer. Depois de ler os jornais, tive conhecimento do problema incomum que os senhores estão procurando decifrar.

— Então, rogamos-lhe que, antes de tudo, nos informe onde se achava, ontem de manhã, entre sete e oito horas.

Um leve rubor coloriu o rosto de Pardee, mas ele respondeu em voz baixa e monótona.

— Na cama. Só me levantei pelas nove horas.

— Não costuma passear pelo parque antes do café?

Eu percebi que isso era simplesmente um trabalho de adivinhação de Vance, pois, até agora, os hábitos de Pardee não tinham sido objeto de investigação.

— Sim, costumo — replicou o homem, sem hesitação.

— Mas, ontem, não saí, porque trabalhei até tarde da noite.

— Quando teve conhecimento da morte de Sprigg?

— À hora do café. Minha cozinheira me pôs a par do que se dizia na vizinhança. Eu li a notícia oficial da tragédia na primeira edição do vespertino Sun.

— E indubitavelmente terá visto a reprodução da nota do Bispo nos jornais desta manhã. Qual é a sua opinião sobre esse negócio, Sr. Pardee?

— Eu pouco sei. — Pela primeira vez, seus olhos sem brilho mostraram sinais de animação. — É uma situação incrível. As probabilidades matemáticas são totalmente opostas a que semelhantes séries de sucessos mutuamente relacionados sejam coincidentes.

— Sim — concordou Vance. — E por falar de matemática: O senhor está familiarizado com o tensor de Riemann-Christoffel?

— Conheço-o — admitiu o homem. — Drukker usa-o em seu livro, sobre as linhas do mundo. Minhas matemáticas não são, contudo, do tipo das dos físicos. Se eu não me tivesse enamorado do xadrez — sorriu tristemente — teria sido um astrônomo. Depois de manobrar com os fatores em uma complicada combinação de xadrez, a maior satisfação mental que se pode obter, penso eu, é traçar o plano dos astros. Eu mesmo tenho um telescópio equatorial de cinco polegadas para observações de amador.

Vance escutou Pardee atentamente e, por alguns minutos, discutiu com ele a determinação recente da "O" transnetuniana do professor Pickering (1) com grande assombro de Markham e enfado de Heath. Por fim a conversação recaiu sobre a fórmula do tensor.

— Segundo soube, o senhor esteve na casa de Dillard, quinta-feira passada, quando Arnesson falava sobre esse tensor com Drukker e Sprigg.

— Sim, recordo-me de que este assunto veio à tona nessa ocasião.

— Como conheceu Sprigg?

— Casualmente, apenas. Vi-o com Arnesson, uma ou duas vezes.

— Parece que Sprigg também tinha o hábito de passear pelo Riverside Park, antes do café — observou Vance, negligentemente. — Não se encontrou alguma vez ali com ele, Sr. Pardee?

(1) Depois dessa discussão, o professor Pickering tem afirmado, com base nas perturbações de Urano, a presença de dois outros planetas exteriores mais, além de Netuno: P e S.


As pálpebras do homem tremeram ligeiramente e ele titubeou, antes de responder.

— Nunca — disse finalmente.

Vance parecia indiferente à negativa. Levantou-se e, indo à janela, olhou para fora.

— Pensei que daqui se poderia ver a sede do clube. Mas observo que o ângulo o oculta por completo.

— Sim, o campo de exercícios não é visível. Do outro lado do muro há um terreno baldio, de modo que ninguém pode ver por cima... O senhor pensa em uma possível testemunha da morte de Robin?

— Nisso e em muitas outras coisas. — Vance voltou para a sua cadeira. — Desagrada-lhe o jogo de arco-e-flecha, não é verdade?

— É muito fatigante para mim. Belle procurou uma vez interessar-me nesse esporte, porém eu não fui um aluno muito promissor. Não obstante, fui com ela a vários torneios.

Uma nota inusitadamente suave se produziu na voz de Pardee, e, por alguma razão, que não podia exatamente explicar, percebi que ele estava enamorado de Belle Dillard. Vance também deve ter recebido a mesma impressão, porque, depois de uma breve pausa, disse:

— O senhor decerto compreende que não é nossa intenção imiscuir-nos desnecessariamente nos negócios particulares de ninguém; mas a questão do motivo dos dois assassinatos, que estamos investigando, ainda permanece obscura, e como a morte de Robin foi, a princípio, superficialmente atribuída a uma rivalidade em torno do afeto da Srta. Dillard, ser-nos-ia útil saber, de um modo geral, qual é a verdadeira situação concernente à preferência da moça... O senhor, como amigo da família, provavelmente sabe; e nós apreciaríamos sua confidencia a esse respeito.

O olhar de Pardee se perdia através da janela, e um suspiro escapou-se de seus lábios.

— Senhor, julguei que ela e Arnesson se casariam algum dia. Mas isto é somente uma conjetura. Ela disseme uma vez que, positivamente, não pensava em contrair matrimônio, enquanto não tivesse trinta anos. (Facilmente se podia adivinhar a que propósito fora feito esse pronunciamento por parte de Belle Dillard. A vida emotiva e intelectual de Pardee haviam fracassado.)

— Então não crê — prosseguiu Vance — que o coração dela esteja seriamente comprometido com o jovem Sperling?

Pardee sacudiu a cabeça.

— Contudo — manifestou ele — o martírio que ele está sofrendo agora é de um efeito tremendamente sentimental para as mulheres.

— Belle disseme que o senhor conversou com ela esta manhã.

— Eu, geralmente, vou lá durante o dia. — Sem dúvida alguma, ele se achava intranqüilo e, segundo creio, um tanto desconcertado.

— Conhece bem a Sra. Drukker?

Pardee dirigiu a Vance um rápido olhar inquiridor.

— Não particularmente — disse ele. — Eu a vi várias vezes, como é natural.

— Esteve alguma vez na casa dela?

— Muitas vezes, porém para ver Drukker. Estive interessado, durante muitos anos, nas relações da matemática com o xadrez.

Vance meneou a cabeça.

— E, a propósito, qual foi o resultado da sua partida de xadrez com Rubinstein, à noite passada? Não vi os jornais esta manhã.

— Desisti na jogada quarenta e cinco. — O homem falou desiludido. — Rubinstein encontrou um ponto fraco no meu ataque e que eu havia passado por alto inteiramente, quando fiz meu movimento, depois do adiamento da partida.

— Drukker, disse-nos o professor Dillard, previu o resultado, quando o senhor e ele discutiram, ontem à noite, a situação.

Eu não podia compreender por que Vance se referia tão marcadamente a esse episódio, sabendo, como sabia, quanto era delicado este ponto para Pardee. Markham também franziu o sobrecenho, diante do que lhe parecia ser uma imperdoável falta de tato da parte de Vance.

Pardee ruborizou-se e se mexeu na cadeira.

— Drukker falou demais. — A manifestação não estava desprovida de veneno. — Apesar de não ser jogador de torneio, devia saber que tais discussões são proibidas durante as partidas não terminadas. Francamente, dei pouca atenção à sua profecia. Acreditei que meu movimento selado tinha salvo a situação, porém Drukker viu mais longe que eu. Sua análise foi fantàsticamente profunda. — Havia, em seu modo de dizer, um tom de autopiedade e me parecia que odiava Drukker tão amargamente quanto sua natureza aparentemente suave podia permitir.

— Quanto tempo durou a partida? — perguntou Vance distraidamente.

— Até pouco depois da uma. Na seção de ontem à noite, só restavam 14 lances.

— Havia muitos espectadores?

— Considerando a hora avançada, sim.

Vance apagou o cigarro e se levantou. Quando estávamos no vestíbulo do andar inferior, caminhando em direção à porta principal, deteve-se subitamente e, lançando a Pardee um olhar sardônico, disse:

— O bispo preto esteve fazendo das suas pela meia-noite.

Suas palavras produziram um efeito surpreendente. Pardee se ergueu, como se tivesse sido esbofeteado. Suas faces empalideceram. Durante meio minuto, olhou fixamente para Vance. Seus olhos pareciam carvões acesos. Os lábios se moveram com ligeiro tremor, mas nenhuma palavra saiu deles. Em seguida, com um esforço sobre-humano, ele se voltou, encaminhando-se para a porta que abriu bruscamente, fechando-a assim que transpusemos o umbral.

Enquanto caminhávamos pelo Riverside Park, em direção ao carro do procurador, que tinha sido deixado em frente à casa de Drukker, na Rua 76, Markham falou abruptamente a Vance discordando do comentário final que ele havia feito a Pardee.

Tinha esperança — explicou Vance — de surpreender nele algum sinal de reconhecimento ou compreensão. Porém, com os demônios, Markham, eu não esperava um efeito como o que foi produzido. A reação dele foi surpreendente. Não compreendo... absolutamente, não compreendo...

Vance calou-se, ficando absorto em seus pensamentos. No momento, porém, em que o carro entrava na Broadway pela Rua 72, despertou e disse ao motorista que o levasse ao Sherman Square Hotel.

— Tenho grande desejo de conhecer mais detalhes sobre a tal partida entre Pardee e Rubinstein. Não é que haja um motivo muito especial... É uma extravagância da minha parte... Mas a idéia vem trabalhando em meu espírito, desde o momento em que o professor falou a respeito. Desde as onze até à uma e meia... É um tempo excessivo para jogar uma partida de 44 lances apenas, e que ficou sem terminar.

Havíamos chegado à esquina da Avenida Amsterdam com a Rua 71. Vance desapareceu no Clube de Xadrez de Manhattan. Voltou daí a cinco minutos. Trazia na mão uma folha de papel cheia de anotações. Entretanto, no seu rosto não se via nenhum sinal de satisfação.

— Minha encantadora e largamente incubada teoria — disse com uma careta — ruiu ante o prosaico dos fatos. Acabo de falar com o secretário do Clube e ele me disse que a sessão de ontem à noite durou duas horas e dezenove minutos. Parece que foi uma batalha fulgurante, cheia de esotéricas argúcias e de estratégicas penetrações de almas. Pelas onze e meia, os gênios que presenciavam o combate tinham dado Pardee como vencedor; porém, então, Rubinstein desenvolveu uma obra-prima de análise, e conseguiu destruir a tática do adversário até reduzi-la a cacos... Exatamente como havia prognosticado Drukker. Inteligência assombrosa a de Drukker...

Era evidente que ele não estava ainda satisfeito por completo quanto ao que havia averiguado; e as palavras que proferiu a seguir exprimiram seu descontentamento:

— Enquanto estava nisso, pensei em tirar, como diríamos, uma página do livro do sargento e permitir-me a um pouco de trabalho rotineiro. Assim pedi emprestada a folha das jogadas da partida de ontem a noite, copiando cada um dos lances. Pode ser que, algum dia, examine essa partida.

E, como uma precaução fora de hábito, dobrou o papel e guardou-o em sua carteira.


XVI

 

ATO TERCEIRO

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — sábado, 16 de abril)

 


Depois de almoçar no Eliseu, Markham e Heath continuaram no centro da cidade. Tinham pela frente uma tarde dura. O trabalho ordinário de Markham se achava acumulado. E o sargento, havendo tomado a si o caso Sprigg, além das investigações de Robin, tinha de manter trabalhando duas máquinas separadas, coordenar todos os seus informes, responder às inúmeras perguntas de seus superiores e tratar de satisfazer a voracidade de um exército de repórteres. Vance e eu fomos a uma exposição de arte moderna francesa no salão Knoedler, tomamos chá no St. Regis e fomos ao encontro de Markham, no Stuyvesant, para jantar. Heath e o inspetor Moran chegaram às oito e meia. Tivemos uma conferência que durou até cerca de meia-noite, sem nenhum resultado prático.

O dia seguinte não nos trouxe também senão desilusões. O laudo do capitão Dubois dizia que o revólver entregue por Heath não apresentava nenhuma impressão digital. O capitão Hagedorn identificou a arma como a usada contra Sprigg; mas isto reforçava simplesmente a nossa crença.

O homem destacado para vigiar a parte posterior da casa de Drukker não viu nada digno de nota. Ninguém havia entrado ou saído. E, às onze, todas as luzes estavam apagadas. Nenhum ruído se ouviu na casa até a manhã seguinte, quando a cozinheira começou as suas tarefas domésticas do dia. Mas, depois das oito horas, apareceu no jardim a Sra. Drukker e, às nove e meia, saiu seu filho, pela porta principal, sentando-se no parque, onde esteve lendo durante duas horas.

Transcorreram dois dias. Na casa de Dillard, foram colocadas sentinelas. Pardee foi posto sob severa vigilância. E, debaixo dos salgueiros, atrás da casa de Drukker, ficou estacionado um homem todas as noites. Porém, nada de anormal ocorreu. E, não obstante a atividade infatigável do sargento, todas as linhas prometedoras das investigações pareceram fechar-se automaticamente. Tanto Heath como Markham estavam profundamente aborrecidos. Os jornais se desfaziam em grandes retóricas. A incapacidade do Departamento da Polícia e do procurador do distrito, no sentido de esclarecer o mistério de dois assassinatos espetaculares, estava-se convertendo rapidamente num escândalo político.

Vance visitou o professor Dillard e discutiu o caso em linhas gerais. Também, na tarde de quinta-feira, passou mais de uma hora com Arnesson, na esperança de que o desenvolvimento da fórmula proposta houvesse trazido à luz algum detalhe que pudesse ser usado como ponto de partida para especulação. Porém, não ficou satisfeito com a entrevista e queixou-se para mim de que Arnesson não tinha sido franco com ele. Duas vezes havia ido ao Clube de Xadrez de Manhattan e tentado fazer Pardee falar; porém, todas as vezes encontrou a reticência de uma fria cortesia. Notei que não fez esforços para comunicar-se com Drukker ou com a Sra. Drukker. E quando lhe perguntei o motivo dessa despreocupação, respondeu:

— A verdade não se pode saber deles agora. Cada um está jogando uma partida, e os dois estão completamente assustados. Enquanto não tivermos alguma prova definitiva, resultará maior mal que bem qualquer tentativa de acareação entre eles.

Essa prova definitiva devia chegar no dia seguinte, e do lugar menos esperado. Foi o começo da última fase de nossa investigação... fase trágica e sinistra, de crueldade tão desenfreada e humor tão monstruoso, que ainda agora, depois de muitos anos, no momento em que escrevo, encontro dificuldades em crer que os sucessos mencionados não foram um sonho grotesco de uma perversidade fabulosa.

Na quarta-feira à tarde, Markham, em estado de desânimo, chamou-nos para uma nova conferência.

Arnesson pediu permissão para assistir. Às quatro, nos encontramos todos, inclusive o inspetor Moran, no gabinete particular do procurador do distrito, no velho edifício dos tribunais criminais. Arnesson permaneceu, durante a discussão, inusitadamente silencioso e nem uma vez emitiu suas despropositadas opiniões. Escutou com suma atenção tudo o que foi dito e parecia evitar, propositadamente, manifestar qualquer opinião ainda quando diretamente convidado a isso por Vance.

Havia transcorrido meia hora, talvez, quando Swacker entrou em silêncio e colocou um memorando sobre a mesa do procurador do distrito. Markham olhou-o e franziu o cenho, Passado um momento, rubricou dois formulários impressos e entregou-os a Swacker.

— Preencha-os imediatamente e entregue-os a Ben (1) — ordenou ele.

(1) O coronel Benjamin Hanlon, chefe da Divisão de Investigações, destacado junto ao gabinete do procurador do distrito.


Assim que o homem saiu, explicou o motivo da interrupção.

— Sperling acaba de mandar-me um pedido para falar comigo. Disse que tem uma informação que pode ser de importância. Pensei que, nas circunstâncias, talvez fosse bom ouvi-lo agora.

Dez minutos mais tarde, um funcionário trouxe Sperling, que saudou Markham com um sorriso amigável e Vance com uma gentil inclinação de cabeça. Fez outro tanto, porém com certa seriedade, a Arnesson, cuja presença pareceu surpreendê-lo e desconcertá-lo. Markham convidou-o com um gesto a sentar-se e Vance ofereceu-lhe um cigarro.

— Queria falar-lhe, Sr. Markham — começou a dizer timidamente — acerca de um assunto que talvez possa interessar-lhe... O senhor recorda-se de que, quando me interrogaram sobre se eu estava com Robin na sede do clube, o senhor desejava saber que caminho tomou o Sr. Drukker, quando nos deixou. Eu lhe disse que não havia reparado, mas que ele saíra pela porta do porão... Pois bem, ultimamente, tive muito tempo para pensar e, como é natural, desfilou pelo meu cérebro tudo o que se havia passado naquela manhã. Não sei justamente como explicá-lo, porém as coisas se tornaram claras agora. Certas impressões, poderíamos dizer, voltaram a mim...

Fez uma pausa e olhou para o tapete. Então, levantando a cabeça prosseguiu:

— Uma dessas impressões se refere ao Sr. Drukker... e eis por que eu quis lhe falar. Esta tarde eu estava... bem, imaginava estar na sede do clube falando com Robin. E, de súbito, o quadro da janela posterior cruzou por meu espírito. E recordei-me de que, quando havia olhado pela janela naquela manhã, a fim de observar como estava o tempo para minha viagem, vi o Sr. Drukker, em vez de sair da casa, foi para o caramanchão, permanecendo ali até que você saísse.

— Assim parece, senhor. — Sperling estava relutante em concordar.

— Está seguro de que o viu?

— Sim, senhor. Agora, recordo-me, perfeitamente, até da maneira peculiar como tinha as pernas cruzadas.

— Você o juraria — perguntou Markham com gravidade — sabendo que a vida de um homem podia depender de seu testemunho?

— Juraria, senhor — respondeu Sperling simplesmente. Quando o guarda escoltou Sperling para fora do quarto,

Markham olhou para Vance.

— Creio que isso nos dá um ponto de apoio.

— Sim; o testemunho da cozinheira tinha pouco valor, desde que Drukker negou simplesmente, e ela é o tipo da alemã leal e cabeçuda que sustentaria sua negativa, se algum perigo real ameaçasse seu amo. Agora, temos uma arma efetiva.

— Parece-me — disse Markham, depois de uns momentos de silêncio especulativo — que temos boa prova circunstancial contra Drukker. Estava no quintal da casa de Dillard segundos antes de terem matado Robin. Facilmente pôde ver quando Sperling saiu. E, como havia vindo recentemente da casa do professor Dillard, sabia que os outros membros da família não estavam. A Sra. Drukker negou que tivesse visto alguém de sua janela naquela manhã, embora tenha gritado na hora da morte de Robin, caindo em pânico quando fomos interrogar Drukker. Ela mesma preveniu-o contra nós e nos chamou "o inimigo". Minha opinião é que ela viu o filho voltando para casa, logo após ter sido colocado o corpo de Robin no campo de exercícios. Drukker não estava em seu quarto, no momento em que Sprigg foi morto; e ambos, ele e a mãe, fizeram o possível para ocultar esse pormenor. Tornou-se excitado, quando mencionamos pela primeira vez o caso dos assassinatos, e ridicularizou a idéia de que estavam relacionados. Em verdade, muitos dos seus atos têm sido suspeitos. Também sabemos que é anormal e desequilibrado e que é dado a jogos infantis. É muito possível, em vista do que nos disse o Dr. Barstead, que tenha confundido a fantasia com a realidade e perpetrasse esses crimes em um momento de loucura súbita. Não só lhe é familiar a fórmula do tensor, como podia tê-la associado, de alguma forma estúpida, com Sprigg, como resultado da discussão de Arnesson com Sprigg sobre a mesma. Quanto às notas do Bispo, podem ter sido parte da irrealidade dos seus jogos insanos, pois as crianças necessitam de um auditório que aprove uma nova forma de diversão que tenham inventado. Sua escolha da palavra Bispo foi provavelmente o resultado de seu interesse pelo xadrez — uma assinatura pitoresca destinada a confundir. E esta suposição é sustentada pela aparição de um bispo de xadrez, na porta do quarto de sua mãe. Talvez tenha receado que ela o visse aquela manhã e assim procurou silenciá-la, sem admitir, abertamente, a sua culpabilidade. Podia facilmente ter cortado a tela de arame do portão de dentro, sem ter chave alguma, e dar, por conseguinte, a impressão de que o portador do bispo entrara e saíra pela porta dos fundos. Mais ainda, teria sido um negócio muito simples para ele carregar o bispo da biblioteca na noite em que Pardee esteve analisando o seu jogo...

Markham continuou ainda durante algum tempo construindo sua prova contra Drukker. Era completo e pormenorizado e seu sumário respondia praticamente a toda a evidência que tinha sido aduzida. A forma lógica e implacável em que ele reunia seus vários fatores era impressionantemente convincente, e um largo silêncio seguiu-se a esse resumo.

Vance, por fim, levantou-se como para quebrar a tensão de seus pensamentos e encaminhou-se para a janela.

— Pode ser que você tenha razão, Markham — admitiu ele. — Porém, minha objeção principal à sua conclusão é que as alegações contra Drukker são demasiado boas. Desde o princípio, considerei assim; porém, quanto mais suspeitosa-mente atuava e quanto mais numerosos eram os indícios contra ele, tanto mais eu me inclinava a afastá-lo de toda consideração. O cérebro que planejou esses crimes abomináveis é muito superior, muito diabòlicamente sutil para ser enredado numa rede semelhante de evidência circunstancial como a que você traçou em torno de Drukker. Este tem um espírito surpreendente... sua inteligência é supernormal, na verdade, e é difícil conceber que, culpado, houvesse deixado tantas falhas.

— Não se pode esperar — replicou Markham com azedume — que a lei despreze possibilidades porque sejam demasiado convincentes.

— De outro lado, — prosseguiu Vance, desprezando o comentário de Markham, — é evidente que Drukker, ainda mesmo não sendo culpado, sabe algo que tem relação direta e essencial com o assunto. E minha humilde opinião é que tratemos de obter esta informação do próprio interessado. O depoimento de Sperling nos deu a base para esse fim... E você que pensa, Arnesson?

— Nada — contestou ele. — Eu não sou mais que um observador desinteressado. Sem embargo, não me agradaria ver Adolph na prisão. — Ainda que não manifestasse sua opinião, era claro que estava de acordo com Vance.

Heath achava, como era de seu feitio, aconselhável uma ação imediata, e exprimiu-se desta maneira:

— Se ele tem algo a dizer, di-lo-á imediatamente, se estiver atrás das grades.

— É uma situação difícil — objetou o inspetor Moran em tom judicioso e suave. — Não nos é permitido cometer um erro. Se a evidência de Drukker acusasse mais alguém, seríamos censurados e ridicularizados por deter um inocente.

Vance olhou para Markham e sacudiu a cabeça em sinal de assentimento.

— Por que não mantê-lo em consideração primeiro, e ver se podemos persuadi-lo a descarregar sua alma. Você poderia suspender sobre a sua cabeça uma ordem de prisão, como uma espécie de coação moral. Então, se ele permanecesse esquivo e reticente, você o mandaria escoltar até à cadeia.

Markham sentou-se, batendo indeciso sobre a mesa, e com a cabeça envolta na fumaça do seu charuto, que chupava nervosamente. Por fim, voltou-se para Heath.

— Traga Drukker aqui amanhã, às nove horas. Leve um carro e uma ordem de prisão em branco para o caso de ele oferecer resistência. — A expressão severa do seu rosto traduzia uma firme determinação. — Depois, averiguarei o que ele sabe... e agirei de acordo.

A conferência terminou imediatamente. Já eram cinco horas, e Markham, Vance e eu fomos juntos ao Club Stuyvesant. Deixamos Arnesson no metrô e ele partiu logo, quase sem se despedir de nós. Seu cinismo loquaz parecia ter desertado dele. Depois de cear, Markham se desculpou, por achar-se fatigado, e Vance e eu fomos ao Metropolitan ouvir Geraldine Farrar em Louise (1)

(1) Louise era a ópera moderna favorita de Vance


A manhã seguinte se apresentou escura e nebulosa. Currie despertou-nos às sete e meia, pois Vance desejava estar presente à entrevista com Drukker. Às oito, fizemos a refeição matinal na biblioteca diante de um pequeno fogo que ardia na lareira. O trânsito nos deteve em nosso caminho no centro da cidade, e embora fossem nove e um quarto quando chegamos ao gabinete do procurador do distrito, Drukker e Heath não haviam ainda chegado. Vance sentou-se comodamente em uma poltrona de couro e acendeu um cigarro.

— Esta manhã me sinto muito bem — disse ele. — Se Drukker relatar a sua história e se esta é como eu suponho, teremos o segredo do cofre.

Mal foram emitidas estas palavras, Heath penetrou no gabinete e, olhando firmemente para Markham, sem saudar ninguém, levantou os braços, deixando-os cair num gesto de desespero resignado.

— Não interrogaremos hoje... nem nunca mais o Sr. Drukker — disse abruptamente. — Caiu ontem à noite, do muro alto do Riverside Park, quase ao lado da casa. Não foi encontrado senão às sete desta manhã. Seu corpo está agora no necrotério... Lindos princípios temos! — Dito isto, afundou-se numa poltrona, numa atitude de desânimo.

Markham mirou-o, sem crer no que ele dizia.

— Está certo disso? — perguntou.

— Estive lá, antes de levarem o corpo. Um dos empregados da seção me telefonou sobre o caso, no momento em que eu saía do gabinete. Fui até lá e consegui colher todas as informações possíveis.

— Que soube então? — Markham estava lutando contra um desapontamento dominante.

— Não muita coisa. Alguns meninos encontraram o cadáver no parque mais ou menos às sete desta manhã... Muitos garotos rodeavam o corpo, pois era sábado; o posto policial providenciou com presteza a vinda do médico da polícia. Este disse que Drukker devia ter caído mais ou menos às dez da noite. Sua morte deve ter sido instantânea. O muro naquele lugar, exatamente oposto à Rua 76, tem uns dez metros de altura.

— A Sra. Drukker foi avisada?

— Não. Eu lhes disse que me encarregaria disso, mas achei conveniente vir antes aqui saber o que pensam os senhores que se deva fazer.

Markham recostou-se em sua cadeira, desanimado.

— Não vejo muita coisa a fazer.

— Seria bom avisar Arnesson — sugeriu Vance. — Provavelmente, é ele que tem de se ocupar disso. Que diabo, Markham! Estou começando a pensar que é tudo um pesadelo. Drukker era a nossa maior esperança, e, no momento em que íamos conseguir fazê-lo falar, ele cai do muro... — Aqui se deteve bruscamente. — De um muro!...

Enquanto repetia essas palavras pôs-se de pé num salto.

— Um corcunda cai do muro Um corcunda!

Todos ficamos a olhá-lo como se ele tivesse ficado louco. E eu admito que seus olhos me fizeram estremecer. Estavam fixos como os de um homem que encara um fantasma. Lentamente, voltou-se para Markham e disse com voz que eu mal podia reconhecer:

— É outro melodrama vesânico... outra cantiga de "Mama Goose". Desta vez é Humpty Dumpty! (1).

(1) Humpty Dumpty, personagem de versos infantis, representada por um ovo, e que uma vez caído ao chão não se pode refazer na sua integridade original (N. do T.).


O silêncio de assombro, que se seguiu, foi quebrado pelo riso forçado do sargento.

— Isto sim é que é pôr as coisas em seu devido lugar, hem, Sr. Vance?

— É absurdo! — declarou Markham, estudando Vance com particular inquietação. — Meu querido amigo, você deixou que este caso tomasse conta do seu cérebro de um modo absorvente. Nada aconteceu, a não ser que um homem corcunda caiu de cima do muro no parque. É uma desgraça, eu confesso. E o é duplamente neste instante. — Foi até Vance c pôs-lhe a mão sobre o ombro. — Deixe que eu e o sargento continuemos com isto... estamos acostumados com estas coisas. Faça uma viagem e descanse. Por que não vai à Europa, como costuma fazer na primavera?

— Oh, sim, sim — suspirou Vance e sorriu com ar cansado. O ar do mar me faria muito bem na verdade. Far-me-ia voltar à normalidade, hem?... Reconstituiria este cérebro outrora perfeito... Desisto! O terceiro ato desta terrível tragédia está-se desenvolvendo quase diante de seus olhos e você serenamente o ignora.

— Sua fantasia apoderou-se do melhor que há em você — replicou Markham, com a benevolência oriunda de um profundo afeto. — Não se preocupe mais com o caso. Venha jantar comigo esta noite. Então conversaremos.

Nesse momento, Swacker entrou e falou ao sargento.

— Quinan, do World está aí e deseja falar com você. Markham voltou-se.

— Oh, Deus meu, faça-o entrar!

Quinan entrou, saudou-nos alegremente e entregou uma carta ao sargento.

— Outra cartinha de amor... Recebia esta manhã. Que privilégios obtenho por ser tão magnânimo?

Heath abriu a carta diante de nosso silêncio. Imediatamente reconheci o papel e o tipo elite da máquina de escrever, impresso em tom azul-claro. A nota dizia:

"Humpty Dumpty estava sentado no muro.

Humpty Dumpty deu uma grande queda;

Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei

Não podem juntar e unir os restos de Humpty Dumpty outra vez."

E em seguida, esta assinatura nefasta, em letras maiúsculas: "O BISPO."


XVII

 

UMA LUZ DURANTE A NOITE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 9h30)

 


Quando Heath pôde desfazer-se de Quinan com promessas tais que teriam alegrado o coração de qualquer repórter. (1), houve alguns minutos de silêncio profundo no gabinete. "O Bispo" tinha estado outra vez desenvolvendo a sua obra macabra. E o caso agora se tornara triplicemente terrível, com a solução aparentemente mais remota que nunca. Não era, contudo, a insolubilidade desses crimes incríveis o que, principalmente, nos afetava; era, antes, o horror intrínseco que emanava como um miasma dos atos em si.

(1) As informações do Caso do Bispo no World causaram inveja aos outros jornais nova-iorquinos. O sargento Heath, apesar de imparcial em suas declarações à imprensa, conseguiu, entretanto, salvar vários pitorescos bons-bocados para Quinan, e se permitiu certas especulações que, embora sem valor noticioso, deram às reportagens do World muito interesse e colorido.


Vance, que passeava pensativo de um lado para outro, deu vazão a suas emoções conturbadas.

— É uma maldição, Markham... é a essência da maldade inexprimível... Essas crianças no parque... levantadas tão cedo em seu dia de folga, em busca de sonhos... ocupadas com seus jogos e brincadeiras... e então a realidade inquietante... a horrível e dominante desilusão... Você não vê a maldade de tudo isso? Essas crianças encontraram o Humpty Dumpty... o seu Humpty Dumpty... morto ao pé do muro famoso... um Humpty Dumpty que elas podiam tocar e ver, quebrado, retorcido, para nunca mais se poder unir de novo...

Deteve-se, ao chegar à janela e olhou para fora. A névoa se dissipara e uma débil difusão do sol primaveril cobria as pedras cinzentas da cidade. A distância brilhava a águia dourada do New York Life.

— Bem, simplesmente, deve-se deixar de lado o sentimentalismo — observou ele com um sorriso forçado, retornando à sala. — Deforma a inteligência e imbeciliza os processos dialéticos. Agora que sabemos que Drukker não foi a vítima caprichosa da lei da gravidade, mas que foi auxiliado em sua viagem para o outro mundo, quando mais rapidamente usarmos de energia tanto melhor, não?

Embora sua mudança de modo de pensar fosse um tour de force, despertou-nos de nossa apatia sombria. Markham acercou-se do telefone e entendeu-se com o inspetor Moran para que Heath se incumbisse desse outro caso. Em seguida, telefonou para o médico da polícia e pediu-lhe um imediato laudo post mortem.

Heath levantou-se vigorosamente e, depois de tomar três copos de água gelada, ficou à espera de que o procurador do distrito indicasse uma linha de ação.

Markham movia-se nervosamente.

— Vários homens de seu Departamento, sargento, parecem ter estado vigiando as casas de Drukker e de Dillard. Você falou com alguns deles?

— Não tive tempo, senhor. E, além do mais, pensei que fosse um acidente. Mas, disselhes que seguissem para os seus postos até que eu voltasse.

— Que disse o médico?

— Somente que parecia um acidente e que Drukker estava morto há dez horas mais ou menos...

Vance intercalou uma pergunta.

— Não mencionou fratura do crânio, além do pescoço quebrado?

— Bem, senhores, ele não disse exatamente que o crânio estivesse fraturado, mas observou que Drukker havia caído de costas. — Heath meneou a cabeça compreensivamente. — Suponho que poderá provar-se que é uma fratura... como as de Robin e Sprigg.

— Indubitavelmente. A técnica de nosso assassino parece ser simples e eficaz. Fere as suas vítimas na cabeça, quer aturdindo-as ou matando-as diretamente, e então arroja-se nos lugares que escolheu para que desempenhem o papel de fantoches de sua nefasta obra. Sem dúvida alguma, Drukker estava debruçado no muro, perfeitamente exposto a esse tipo de ataque. Havia nevoeiro, o lugar estava escuro. De chofre, recebeu o golpe na cabeça, um leve empurrão e caiu sem ruído, por cima do parapeito... O terceiro sacrifício oferecido no altar da velha "Mama Goose".

— O que eu não compreendo — declarou Heath, irritado — é porque Guilfoyle (1), o rapaz que eu pus vigiando a parte dos fundos da casa de Drukker, não me comunicou que este tinha pernoitado fora. Voltou à seção às oito e não pude vê-lo. Não lhe parece, senhor, que seria melhor averiguar o que ele sabe, antes de irmos ao lugar da tragédia?

(1) Como se devem recordar, Guilfoyle era um dos detetives que seguiram a pista de Tony Skeel, no Crime da Canária.


Markham concordou e Heath transmitiu uma ordem pelo telefone.

Em menos de dez minutos, Guilfoyle apresentou-se vindo do Departamento Central da Polícia.

O sargento quase se atirou de encontro ao detetive, quando este entrou na sala.

— A que horas saiu Drukker, ontem à noite? — vociferou Heath.

— Pelas oito horas, depois de ter ceado. — Guilfoyle não se sentia à vontade, e sua atitude tinha a doçura constrangida de quem fora colhido no abandono do dever.

— Para onde foi ele?

— Saiu pela porta dos fundos, andou pelo campo de exercícios e entrou em casa de Dillard, passando pela sala do clube.

— Em visita?

— Assim parecia, sargento. Permaneceu muito tempo em casa de Dillard.

— Ah! E a que horas voltou para casa? Guilfoyle moveu-se intranqüilo.

— Parece que não voltou, sargento.

— Oh! Não voltou? — A réplica de Heath estava cheia de sarcasmo. — Pensei que depois de quebrai o pescoço, podia ter voltado para passar o dia com você.

— O que eu quero dizer, sargento, é que...

— Você quis dizer que Drukker... o pássaro de que você devia cuidar... foi à casa de Dillard às oito horas, voltando você, em seguida, a deitar-se debaixo da árvore para tirar uma soneca... A que horas acordou você?

— Olhe, escute — disse Guilfoyle, irritando-se. — Eu não dormi. Estive cumprindo o meu dever toda a noite. Por que não vi esse moço voltar à casa, não quer dizer que minha vigilância foi abandonada.

— Bem, mas se você não o viu voltar, por que não telefonou dizendo que ele estava passando o fim-de-semana fora da cidade ou outra coisa semelhante?

— Pensei que pudesse ter entrado pela porta principal.

— Pensando outra vez, hem? Seu cérebro não está cansado esta manhã?

— Tenha coração, sargento. Minha obrigação não era seguir Drukker. O senhor recomendou-me que vigiasse a casa e tomasse nota das pessoas que entravam e saíam, e, caso sucedesse qualquer coisa de anormal, nela penetrasse sem mais preâmbulos. Ora, o que se passou foi isto: Drukker encaminhou-se para a casa de Dillard às oito horas. Então, dirigiu o olhar para a casa de Drukker. Pelas nove horas, a cozinheira subiu para seu quarto e acendeu a luz, apagando-a meia hora depois. Então disse a mim mesmo. — "Deitou-se." Pelas dez horas, acenderam-se as luzes do quarto de Drukker...

— O quê?

— Isso mesmo: as luzes se acenderam no quarto de Drukker. E pude ver a sombra de alguém que se movia de um lado para outro. Agora, eu lhe pergunto, sargento: não afirmaria o senhor mesmo que o corcunda havia entrado pela porta da frente?

Heath grunhiu.

— Pode ser que sim — admitiu ele. — Você está certo de que eram dez horas?

— Não consultei o relógio; mas estou aqui para dizer ao senhor que não eram muito mais de dez horas.

— A que horas se apagaram as luzes do quarto de Drukker?

— Não se apagaram. Permaneceram acesas toda a noite. Era um pássaro estranho. Não tinha método, nem obedecia a horas regulares e, duas vezes antes, as luzes estiveram acesas até quase de manhã.

— Isto é compreensível — ouviu-se a voz indolente de Vance. — Ultimamente, tem estado trabalhando até altas horas da noite, no desenvolvimento de um tema difícil. Mas, Guilfoyle, que nos diz da luz no quarto da Sra. Drukker?

— Nada de particular. A velha sempre conserva a luz acesa em seu quarto.

— Havia alguém a noite passada, montando guarda defronte à casa de Drukker? — perguntou Markham a Heath.

— Não depois das seis, senhor. Destacamos um homem para seguir Drukker durante o dia, porém ele termina o seu plantão às seis horas, quando Guilfoyle assume o seu posto na parte dos fundos.

Houve um momento de silêncio. Em seguida, Vance voltou-se para Guilfoyle:

— A que distância estava você da porta de passagem entre as duas casas vizinhas?

O homem fez uma pausa como que para visualizar a cena.

— Digamos doze ou quinze metros.

— E entre você e a passagem estavam a cerca de ferro e alguns galhos de árvore.

— Sim, senhor. A vista estava um tanto cortada, se é isto o que o senhor quer dizer.

— Seria possível que alguém que viesse da casa de Dillard saísse e voltasse pela tal porta, sem ser notado?

— Seguramente — admitiu o detetive — sempre que, por hipótese, o indivíduo fizesse o possível para não ser visto. A noite estava muito escura, devido à cerração, e o ruído proveniente do tráfego no Riverside Drive teria abafado o som de seus passos, bastando um pouco de cautela.

Quando o sargento mandou Guilfoyle voltar para a seção e aguardar ordens, Vance manifestou a sua perplexidade.

— É uma situação para lá de complicada. Drukker foi visitar Dillard às oito e, às dez horas, foi arrojado por cima do muro do parque. Como você observou, a nota que Quinan acaba de mostrar-nos foi postada no correio às onze da noite, o que quer dizer que foi escrita provavelmente "antes do crime". Por conseguinte, o Bispo planejara a sua comédia antecipadamente e preparara a nota para a imprensa. A audácia de tudo isto é surpreendente. Porém, há uma suposição que devemos acentuar: o assassino conhecia os lugares exatos freqüentados por Drukker, entre as oito e dez horas.

— Entendi — disse Markham. — Seu ponto de vista é que o assassino foi e voltou pela passagem entre as duas casas: a de Dillard e a de Drukker.

— Oh! Compreenda! Eu não tenho ponto de vista algum. Indaguei a Guilfoyle sobre a passagem com a intenção de saber somente se Drukker foi o único indivíduo que pôde ser visto sair em direção ao parque. Sendo assim, podíamos admitir como uma hipótese que o assassino havia conseguido evitar de ser visto, indo pela passagem e atravessando o parque.

— Com essa possível rota aberta ao assassino — observou Markham tristemente — não importaria muita coisa constatar quem fora visto sair com Drukker.

— Precisamente. A pessoa que preparou essa farsa pode ter caminhado audaciosamente até ao parque, sob as vistas de um "tira" alerta, ou pode ter corrido furtivamente pela passagem.

Markham meneou a cabeça num assentimento a contragosto.

— O que mais me preocupa, todavia — continuou Van-ce, — é a luz no quarto de Drukker durante toda a noite. Foi acesa à hora em que o pobre homem era atirado para a eternidade. E Guilfoyle disse que pôde divisar alguém andar pelo quarto depois que a luz foi acesa...

Cessou de falar e permaneceu alguns segundos numa atitude de concentração.

— Diga-me, sargento, sabe você se a chave da porta principal da casa de Drukker estava no bolso do seu casaco, quando o encontraram morto?

— Não, senhor, mas posso averiguá-lo imediatamente, Os objetos encontrados em seus bolsos estão guardados até que se faça autópsia.

Heath encaminhou-se para o telefone e um momento depois falava com o sargento de guarda no posto da Rua 63. Seguiram-se vários minutos de espera. Em seguida, resmungou qualquer coisa e largou o fone.

— Ele não levava consigo chave alguma.

— Ah! — Vance deu uma grande tragada em seu cigarro e, lentamente, soltou a fumaça no ar. — Estou começando pensar que o Bispo roubou a chave de Drukker e fez uma visita à sua casa, depois do assassinato. Parece incrível, bem sei, mas, se nos fixamos nas outras circunstâncias, tudo tem mesmo esse aspecto incrível neste caso fantástico.

— Mas, santo Deus, qual pode ter sido o propósito? — protestou Markham, incrèdulamente.

— Não o sabemos ainda. Mas tenho idéia de que, quando entendermos os motivos desses crimes monstruosos, compreenderemos o porquê dessa visita.

Markham, com a fisionomia austera, tomou o seu chapéu.

— É melhor irmos até lá.

Mas Vance não se moveu, permanecendo junto da mesa, parado com ar distraído.

— Markham, — disse ele, parece-me que, antes, devemos visitar a Sra. Drukker. Ontem à noite, houve em sua casa uma tragédia: algo estranho aconteceu lá que necessita de uma explicação. E agora talvez nos revele o segredo guardado em seu espírito. Mais ainda, não teve conhecimento da morte do filho e, com todo o rumor e comentários da vizinhança, chegará alguma palavra aos seus ouvidos dentro de pouco tempo. Receio o resultado do golpe, quando ela se inteirar de tudo. Em verdade, eu me sentiria melhor se levássemos conosco o Dr. Bartead. Que lhe parece se lhe telefonarmos?

Markham concordou e Vance rapidamente explicou ao doutor a situação.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do Dr. Barstead e, em seguida, partimos para a casa de Drukker. Fomos recebidos pela Sra. Menzel, cuja fisionomia indicava que ela sabia da morte de Drukker. Vance, depois de dirigir-lhe um rápido olhar, levou-a à sala, longe da escada, e perguntou-lhe em voz baixa:

— A Sra. Drukker já sabe?

— Ainda não — respondeu ela com voz trêmula e assustada. — A Srta. Dillard veio faz uma hora, porém eu lhe disse que a senhora tinha saído. Tive medo de deixá-la subir. Há algo errado... — Ela começou a tremer violentamente.

— Que há de errado, Sra. Menzel? — Vance colocou uma mão tranqüilizadora em seu braço.

— Não sei. Mas, toda a manhã não a vi. Ela não veio para a refeição matinal... E eu tenho medo de ir chamá-la.

— Quando soube você do acidente?

— Cedo. Depois das oito. O jornaleiro me disse. E eu vi aglomeração de povo no Drive.

— Não se assuste — Vance consolou-a. — O médico está conosco aqui e atenderemos a tudo.

Ele voltou ao vestíbulo e subimos. Quando chegamos ao quarto da Sra. Drukker, bateu levemente e, não recebendo resposta, abriu a porta. Não havia ninguém no quarto. A luz noturna estava acesa ainda sobre a mesa. E notei que a cama não tinha sido desfeita.

Sem dizer palavra, Vance retornou ao vestíbulo. Só existiam duas outras portas principais. Sabíamos que uma delas dava para o gabinete de Drukker. Sem titubear, Vance se dirigiu à outra, abrindo-a sem bater. As persianas estavam descidas, porém, como eram brancas e semitransparentes, a luz cinzenta do dia se mesclava com a espectral irradiação amarela do candelabro de velho estilo. A luz que Guilfoyle vira acesa toda a noite ainda não se tinha apagado.

Vance deteve-se no umbral.

— Mãe de Deus! — exclamou o sargento e persignou-se. Aos pés da antiga cama jazia a Sra. Drukker, a fisionomia pálida, os olhos fora das órbitas e as mãos sobre o peito.

Barstead adiantou-se de um salto e inclinou-se sobre ela. Depois de auscultá-la, ergueu-se sacudindo a cabeça lentamente.

— Está morta. Provavelmente, desde ontem à noite. — Outra vez se inclinou sobre o corpo e começou a fazer um exame. — Há anos que ela sofre de nefrite crônica, arteriosclerose e hipertrofia do coração... Algum choque provocou uma dilatação aguda... Sim, diria que morreu quase ao mesmo tempo que Drukker... Cerca das dez horas.

— Morte natural? — perguntou Vance.

— Oh, indubitavelmente. Uma injeção de adrenalina no coração podia tê-la salvo, se fosse aplicada a tempo...

— Nenhum sinal de violência?

— Nenhum. Como lhe disse antes, ela morreu de dilatação do coração ocasionada por um choque. Um caso evidente... típico em todo o sentido.


XVIII

 

O MURO DO PARQUE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 11h)

 


Quando o médico estendeu na cama o cadáver da Sra. Drukker e o cobriu com um lençol, descemos para o andar térreo. Barstead retirou-se imediatamente, prometendo enviar ao sargento, antes de uma hora, o atestado de óbito.

— Do ponto de vista científico, é correto falar em morte natural devido ao choque — disse Vance, quando ficamos a sós. — Mas, nosso problema imediato é averiguar a causa desse choque súbito. Evidentemente, está relacionado com a morte de Drukker. Ora, eu penso...

Voltando-se bruscamente, entrou na sala. A Sra. Menzel estava sentada no lugar onde a havíamos deixado, numa atitude de expectativa. Vance dirigiu-se para ela e lhe disse com bondade:

— Sua patroa morreu, ontem à noite, de um ataque de coração. É muito melhor que não tenha sobrevivido a seu filho.

— Gott geb' ihr die ewige Ruh! — murmurou a mulher piedosamente. — Sim, é melhor...

— Morreu às dez horas, mais ou menos. Estava você acordada a essa hora, Greta?

— Estive acordada toda a noite — respondeu ela em voz baixa e cheia de terror.

Vance contemplou-a com os olhos semicerrados.

— Diga-nos o que ouviu.

— Alguém veio aqui ontem à noite!

— Sim, alguém veio perto das dez horas... Entrou pela porta principal.

— Você ouviu-o entrar?

— Não, mas depois que me deitei, ouvi vozes no quarto do Sr. Drukker.

— Era raro ouvir vozes no quarto dele, às dez da noite?

— Mas, não era ele! A voz dele era alta, e a que eu ouvi era baixa e áspera. — A mulher ergueu a vista assustadíssima. — E a outra voz era a da Sra. Drukker... E ela não ia nunca de noite ao quarto do filho!

— Como pôde ouvir tão claro com a porta fechada?

— Meu quarto está precisamente acima do quarto do Sr. Drukker — replicou ela. — E eu estava preocupada com o que se passava. Então me levantei e ouvi tudo de cima da escada.

— Não posso culpar você — disse Vance. — Que foi que ouviu?

— A princípio, parecia que a patroa soluçava, mas logo começou a rir. O homem falava, como se estivesse zangado. Em seguida, eu o ouvi rir também. Depois me pareceu que a senhora rezava... pude ouvir dizer: "Oh, Deus! Oh, Deus!" Aí, o homem disse alguma coisa mais, muito tranqüilo e em voz baixa... Em um instante, pareceu que a senhora estava recitando... um poema...

— Você reconheceria o poema, se o ouvisse outra vez?... Era "Humpty Dumpty estava sentado em um muro; Humpty Dumpty deu uma grande queda...?"

— Bei Gott, das ist's! Era isso mesmo. — O pavor estampou-se-lhe novamente no rosto. — E o Sr. Drukker caiu do muro ontem à noite!

— Ouviu alguma coisa mais, Greta? — A voz despreocupada de Vance interrompeu sua correlação confusa da morte com o verso que tinha ouvido.

Lentamente, ela sacudiu a cabeça.

— Não. Depois tudo ficou quieto.

— Ouviu alguém sair do quarto do Sr. Drukker? Ela moveu assustada a cabeça.

— Uns minutos depois, alguém abriu e fechou a porta, sem fazer ruído, e ouvi passos pelo vestíbulo escuro. Em seguida, as escadas rangeram e a porta principal foi fechada.

— Que fez você depois?

— Escutei durante um momento e voltei para a cama. Mas, não pude dormir...

— Está tudo acabado agora — disse Vance, consolando-a. — Não tem nada a recear. É melhor que vá para o seu quarto e espere lá até que a chamemos.

Com um pouco de relutância, a mulher subiu as escadas.

— Creio que agora — disse Vance — podemos fazer um resumo bastante aproximado do que sucedeu aqui ontem à noite. O assassino tirou a chave do bolso de Drukker e entrou pela porta principal. Sabia que os aposentos da Sra. Drukker ficavam na parte posterior da casa, e, sem dúvida, ele confiava em levar a cabo seu propósito no quarto de Drukker e partir como tinha vindo. Mas, a Sra. Drukker o pressentiu. Pode ser que ela o tivesse associado ao homenzinho que deixara o bispo preto em sua porta, e receasse que seu filho estivesse em perigo. De qualquer modo, encaminhou-se sem demora para o quarto de Drukker. A porta talvez estivesse ligeiramente aberta, e creio que ela viu o intruso, reconhecendo-o. Sobressaltada e cheia de apreensão, entrou no quarto e perguntou-lhe por que estava ali. Ele, com certeza, lhe respondeu que tinha vindo para informá-la da morte de Drukker, o que deu causa aos gemidos e ao riso histérico. Mas, isso era somente uma preliminar da parte dele... um jogo para passar tempo. Estava imaginando como a mataria. Oh, não pode haver dúvida sobre isto. Ele não podia deixar que ela saísse viva daquele quarto. Pode ser que ele lhe dissesse isto em outras palavras... falava como se estivesse aborrecido... E, em seguida, riu-se. Depois, atormentou-a... Talvez lhe tivesse dito toda a verdade, numa explosão de egoísmo desvairado. E ela só sabia dizer: "Oh, Deus!... Oh, Deus!" Ele explicou de que forma empurrou Drukker de cima do muro. E repetiu o "Humpty Dumpty". Creio que sim, pois que melhor auditório poderia apreciar sua obra monstruosa que a própria mãe da vítima? Esta última revelação foi excessiva para o seu espírito hipersensível. Ela repetiu a rima infantil com um acento de horror. E, em seguida, o terror acumulado dilatou seu coração. Ela caiu sobre a cama e o assassino não precisou, assim, selar-lhe os lábios com as suas próprias mãos. Viu o que havia sucedido e saiu tranqüilamente.

Markham inspecionou o quarto todo.

— A parte menos compreensível da tragédia da noite de ontem — disse ele — é o motivo da vinda desse homem até aqui, depois da morte de Drukker.

Vance fumava pensativamente.

— É melhor pedirmos a Arnesson que nos ajude a esclarecer este ponto. É possível que ele nos forneça alguma luz sobre a morte de Drukker.

— Sim, talvez — concordou Heath. Em seguida, depois de revolver o charuto entre os lábios durante uns instantes, acrescentou com mau humor: — Há muitas pessoas em torno de nós, segundo me parece, que nos poderiam dar excelentes explicações.

Markham deteve-se diante do sargento.

— O que devíamos fazer, antes, era averiguar o que sabem seus homens sobre os movimentos das pessoas da vizinhança ontem à noite. Que lhe parece se mandarmos chamá-los e os interrogarmos aqui? A propósito, quantos eram e em que pontos estavam destacados?

— Eram três, senhor, além de Guilfoyle. Emery foi destacado para seguir Pardee; Snitkin estava destacado no Drive esquina da Rua 75 para vigiar a casa de Dillard. E Hennessey na Rua 75 perto da West End Avenue. Todos estão esperando no lugar onde foi encontrado Drukker. Eu os terei aqui num instante.

Ele desapareceu pela porta principal e em menos de cinco minutos reapareceu com os três detetives. Eu os reconheci a todos, pois haviam trabalhado em dois ou mais casos em que Vance havia figurado (1).

(1) Hennessey tinha vigiado o Dr. Drumm na mansão dos Greenes, nos Apartamentos Narcoss, no caso dos assassinatos dos Greenes. Snitkin também tinha tomado parte na investigação do caso dos Greenes e desempenhou um papel menor nos casos Benson e da Canária. E Emery foi o detetive que encontrou os tocos de cigarros debaixo da lenha da lareira, no living de Alvin Benson.


Markham interrogou primeiro Snitkin por ser ele o que provavelmente pudesse fornecer informações que se relacionassem diretamente com o caso da noite anterior. Os seguintes detalhes foram conhecidos em virtude de seus informes:

 

Pardee tinha saído de sua casa às 6:30, dirigindo-se diretamente para a casa de Dillard. Às 8:30, Belle Dillard, em traje de soirée, tomou um táxi que subiu a West End Avenue. (Arnesson saiu com ela e a ajudou a tomar o carro, porém logo depois voltou para a casa.)


Às 9:15, o professor Dillard e Drukker saíram da casa do primeiro, caminhando lentamente para o Riverside Drive. Atravessaram o Drive pela Rua 74 e voltaram pelo caminho em forma de ferradura.


Às 9:30, Pardee saiu da casa de Dillard, encaminhando-se para o Drive e tomando a direção do centro da cidade.


Pouco depois das dez, o professor Dillard voltou sozinho para a casa, cruzando de novo o Drive pela Rua 74.


Às 10:20, Pardee retornou à casa vindo da mesma direção que havia tomado antes.


Belle Dillard regressou à casa numa limusine cheia de jovens, aos trinta minutos depois da meia-noite.


Hennessey foi interrogado em seguida, mas suas informações apenas reforçaram as de Snitkin. Ninguém se havia aproximado da casa de Dillard pela West End Avenue. E nada de caráter suspeito se havia passado ali.

Markham voltou em seguida a sua atenção para Emery o qual informou que, segundo Santos, a quem tinha substituído às seis horas, Pardee passara as primeiras horas da tarde no Clube de Xadrez de Manhattan, voltando à casa cerca das quatro horas.

— Depois, como disseram Snitkin e Hennessey — continuou Emery — foi à casa de Dillard às seis horas e trinta, permanecendo lá até às 9:30. Quando saiu, seguiu-o a uns cinqüenta metros de distância. Caminhou pelo Drive até à Rua 79, atravessou a parte superior do parque e passeou ao redor do grande tufo de arbustos, passando pelas rochas e encaminhando-se para o Iate Clube...

— Tomou o caminho onde Sprigg foi alvejado? — perguntou Vance.

— Teve de tomá-lo, pois não existe outro caminho por ali, a não ser que se vá pelo Drive.

— Até onde foi?

— Ele se deteve no lugar preciso onde Sprigg foi assassinado. Sem demora, voltou pelo mesmo caminho de antes e penetrou no pequeno parque do playground, no lado que dá para a Rua 79. Caminhou lentamente pelo passeio, debaixo das árvores, ao longo do caminho em forma de ferradura, e ao passar por cima do muro sob a fonte de água para beber, encontrou o professor Dillard e o corcunda apoiado no parapeito e conversando...

— Você disse que ele encontrou o professor Dillard e Drukker no mesmo lugar em que este último caiu do muro? — Markham inclinou-se para diante, esperançado.

— Sim, senhor. Pardee se deteve com eles e eu naturalmente prossegui o meu caminho. Ao passar diante deles, ouvi que o corcunda dizia: "Por que não joga xadrez esta noite?" E me pareceu que ele estava aborrecido com Pardee por este ter-se detido, dando-lhe a entender que a sua presença ali era demais. Mas, de qualquer modo, segui pelo muro até chegar à Rua 74, onde havia um grupo de árvores para ocultar-me...

— Pôde desse lugar ver bem Pardee e Drukker? — interrompeu-o Markham.

— Bem, para dizer a verdade, não podia vê-los. Àquela hora, a névoa era muito espessa e, além do mais, naquela parte do passeio onde estavam confabulando, não havia luz alguma. Mas, imaginando que Pardee se separasse logo, esperei por ele.

— Isso devia ter sido perto das dez horas.

— Cerca das dez e um quarto, diria eu.

— Havia alguém no passeio àquela hora?

— Não vi ninguém. A cerração deveria ter afugentado os passeantes. E a noite estava muito fria. E porque ali não houvesse ninguém, arrisquei-me a ir até onde fui. Pardee não é tolo e eu observei que ele me olhava algumas vezes como se suspeitasse de que eu o seguia.

— Quanto tempo transcorreu até que você voltasse a pôr-se em contacto com ele?

Emery mudou de posição.

— Minha atuação não foi tão boa na noite passada — confessou ele com um débil sorriso. — Pardee devia ter voltado por onde veio, atravessando de novo o Drive pela Rua 79. Ao cabo de meia hora, mais ou menos, eu o vi dirigindo-se para o prédio de apartamentos, na esquina da Rua 75.

— Mas, — objetou Vance, — se você esteve na entrada do parque, na Rua 74, até às 10:15, devia ter visto o professor Dillard passar perto de você. Ele voltou para casa, cerca das dez horas, por esse caminho.

— Creio que o vi. Fazia vinte minutos que esperava por Pardee, quando o professor, caminhando só atravessou o Drive, entrando em sua casa. Eu, naturalmente, acreditei que o corcunda e Pardee tinham ficado conversando... por isso, me preocupei em ver onde estavam.

— Então, segundo penso, quinze minutos depois de ter o professor Dillard passado a seu lado, você viu Pardee que voltava pelo Drive em direção oposta.

— Isto mesmo, senhor. E, em seguida, voltei a ocupar o meu posto na Rua 75.

— Você dá a entender, Emery, — disse gravemente Markham — que foi durante o tempo que esteve esperando na Rua 74 que Drukker caiu do muro.

— Sim, mas o senhor não me culpa, não é verdade? Vigiar um homem numa noite de cerração, num lugar descampado, quando não há ninguém ao redor para despistar, não é tarefa fácil. É preciso dissimular e ser um tanto audaz se não quiser ser descoberto.

— Compreendo a sua dificuldade — disse Markham — e não o estou criticando.

O sargento despediu os três detetives mal-humoradamente. Via-se que não estava satisfeito com as suas informações.

— Quanto mais longe vamos — queixou-se — tanto mais confuso se torna o caso.

— Sursum corda, sargento — exclamou Vance. — Que nenhum negro desânimo tome conta de você. Quando tivermos o depoimento de Pardee e do professor sobre o caso, sobre o que se deu no espaço de tempo em que Emery esteve esperando debaixo das árvores da Rua 74, poderemos reunir algumas circunstâncias interessantes.

Enquanto Vance falava, entrou Belle Dillard no vestíbulo vinda da parte posterior da casa. Divisou-nos na sala e veio até nós imediatamente.

— Onde está Lady Mae? — perguntou ela com voz emocionada. — Estive aqui faz uma hora e Greta me disse que ela havia saído. E agora ela não está no seu quarto.

Vance levantou-se e deu-lhe uma cadeira.

— A Sra. Drukker morreu a noite passada de um ataque de coração. Quando você esteve anteriormente aqui, a Sra. Menzel teve medo de deixá-la subir.

A moça sentou-se silenciosa por algum tempo. Em seguida, as lágrimas lhe afluíram aos olhos.

— Talvez tenha sabido do terrível acidente ocorrido com Drukker.

— É possível. Mas não está muito claro o que sucedeu aqui a noite passada. O Dr. Barstead pensa que a Sra. Drukker morreu cerca das dez horas.

— Quase ao mesmo tempo em que morreu Adolph — murmurou ela. — Parece demasiado terrível... Pyne informou-me do acidente quando eu desci para o café esta manhã. Não se falava de outra coisa na vizinhança; e eu vim imediatamente para ficar com Lady Mae. Mas Greta disseme que ela tinha saído, e eu não sabia o que pensar. Há alguma coisa muito estranha nesta morte de Adolph...

— Que quer dizer com isso, Srta. Dillard? — Vance permanecia de pé junto à janela, observando-a discretamente.

— Eu... não sei... o que quero dizer — contestou ela titubeando. — Mas, ontem mesmo à tarde, Lady Mae falou-me de Adolph e do... muro.

— Oh, deveras? — O tom de voz de Vance era mais indolente que de costume, mas todos os nervos de seu corpo, eu o sabia, estavam vigilantes.

— Em meu caminho para a quadra de tênis — continuou a jovem em voz baixa e tranqüila — caminhava com Lady Mae através do caminho de cavaleiros acima do playground. Ela, amiúde, ia ali para ver Adolph brincar com as crianças. Durante um largo tempo, permanecemos ali apoiadas no muro. Um grupo de crianças rodeava Adolph. Este tinha um aeroplano de brinquedo e mostrava-lhes como podia voar. E os garotos olhavam-no como se fosse um deles. Não o consideravam como um homem. Lady Mae estava muito feliz e se orgulhava dele. Olhava-o com olhos brilhantes e, então, disse-me: "Ele é corcunda, Belle, e eles não têm medo dele. Chamam-no Humpty Dumpty... É o seu velho amigo do livro de contos. Meu pobre Humpty Dumpty! A culpa foi minha por tê-lo deixado cair, quando era pequeno..." — A voz da jovem ficou embargada e ela levou o lenço aos olhos.

— Então, ela disse a você que os meninos chamavam Drukker de Humpty Dumpty. — Vance lentamente procurou em seu bolso a cigarreira.

Ela confirmou com um movimento da cabeça e, um momento depois, levantou-a como forçando-a a encarar algo que temia.

— Sim! E isto é que foi estranho, porque logo depois ela foi possuída de um tremor e se retirou do muro. Perguntei-lhe o que tinha, e ela disseme numa voz horrorizada: "Suponha, Belle, suponha que Adolph caísse deste muro... como caiu o verdadeiro Humpty Dumpty!" Eu mesma tive medo; mas forcei um sorriso e disselhe que era tolice pensar em semelhante coisa. Isto não adiantou nada. Sacudiu a cabeça e me encarou de um modo apavorante. "Não é loucura", disseme. "Não mataram Cock Robin com um arco e uma flecha? E não mataram John Sprigg com uma bala de um pequeno revólver... aqui em Nova York?" — A jovem dirigiu-nos um olhar cheio de terror. — E assim aconteceu, não?... Como ela havia previsto.

— E verdade, aconteceu assim — disse Vance, meneando a cabeça. — Mas, não devemos ser muito crédulos a respeito disso. A imaginação da Sra. Drukker era anormal. Todas as formas de conjeturas disparatadas atravessavam o seu espírito torturado. E com estas outras duas mortes de personagens infantis tão vivas em sua memória não é estranho que ela tivesse transformado a alcunha que os meninos puseram em seu filho, numa especulação trágica dessa espécie. O fato de ele ter morrido da forma que ela temia não passa de coincidência.

Neste ponto, fez uma pausa e deu uma longa tragada em seu cigarro.

— Diga-me, Srta. Dillard — perguntou, em seguida, displicentemente — repetiu sua conversa com a Sra. Drukker, por acaso, diante de outra pessoa, ontem?

A jovem mirou-o com certa surpresa antes de responder.

— Mencionei-a ontem à noite, quando ceávamos. Toda a tarde estive preocupada e... não sei... mas não quis guardá-la comigo.

— Fizeram comentários a respeito?

— Titio me disse que eu não devia passar muito tempo na companhia de Lady Mae, pois era uma mulher enferma e anormal. Disse que a situação era muito trágica, porém que não havia necessidade de eu compartilhar os seus sofrimentos. O Sr. Pardee concordou com o que meu tio disse. Mostrou-se compassivo e perguntou se não havia um modo de modificar a condição mental de Lady Mae.

— E o Sr. Arnesson?

— Oh, Sigurd nunca leva nada a sério. Riu-se como se se tratasse de uma pilhéria. E tudo o que disse foi simplesmente isto: "Seria uma decepção se Adolph se despenhasse antes de ter conseguido desenvolver seu novo problema dos quanta."

— E, a propósito, o Sr. Arnesson está em casa? — perguntou Vance. — Queremos interrogá-lo sobre as combinações necessárias relativas aos Drukkers.

— Foi à Universidade de manhã cedo, porém voltará antes do almoço. Estou certa de que atenderá a tudo. Éramos os únicos amigos que Lady Mae e Adolph possuíam. Eu me encarregarei de tudo e providenciarei para que Greta ponha a casa em ordem.

Alguns minutos mais tarde, deixamo-la e fomos entrevistar o professor Dillard.


XIX

 

O CADERNO VERMELHO

 

 

(Sábado, 16 de abril — meio-dia)

 


Quando entramos, ao meio-dia, na biblioteca, o professor encontrava-se visivelmente perturbado. Estava sentado em uma poltrona, de costas para a janela. Sobre a mesa, junto a ele, havia uma garrafa de seu precioso vinho do Porto.

— Estava à sua espera Markham — disse ele antes que tivéssemos tempo de falar. — Não há necessidade de dissimular. A morte de Drukker não foi um acidente. Admitirei que me senti inclinado a deixar de lado as insanas complicações oriundas das mortes de Robin e de Sprigg; porém, no momento em que Pyne relatou as circunstâncias da queda de Drukker, verifiquei que havia um desígnio oculto atrás dessas mortes: as probabilidades de que fossem acidentais seriam incalculáveis. Você pensa como eu, do contrário não estaria aqui.

— Exatamente — respondeu Markham, sentado em frente ao professor. — Estamos diante de um problema terrível. Mais ainda, a Sra. Drukker morreu de um ataque do coração, a noite passada, quase ao mesmo tempo em que seu filho era morto.

— Pelo menos — replicou o professor depois de uma pausa — isso pode-se considerar uma graça. Foi melhor não ter sobrevivido... Inquestionavelmente sua mente entraria em colapso. — Levantou a vista e disse: — Em que posso ajudar?

— Provavelmente o senhor terá sido a última pessoa, com exceção do assassino, que viu Drukker ainda vivo e gostaríamos de saber tudo o que o senhor pudesse dizer-nos acerca do que sucedeu à noite passada.

O professor Dillard acenou com a cabeça, concordando.

— Drukker veio aqui depois do jantar... mais ou menos às oito horas, diria eu. Pardee tinha jantado conosco. Ao encontrar-se com ele, Drukker sentiu-se aborrecido... na realidade, mostrou-se abertamente hostil. Arnesson repreendeu-o, gentilmente, pela sua irascibilidade, coisa que o irritou ainda mais. E, sabendo que Drukker estava ansioso por tratar comigo de um problema, sugeri, por fim, que ele e eu passeássemos pelo parque...

— Os senhores não estiveram lá muito tempo — sugeriu Markham.

— Não. Um episódio desagradável aconteceu. Íamos pelo caminho de cavaleiros, até próximo ao lugar, onde segundo me consta, foi morto o pobre Adolph. Não havia transcorrido meia hora ainda quando Pardee se aproximou de nós. Ele se deteve a falar conosco, porém a hostilidade de Drukker era tal que Pardee resolveu retirar-se pelo mesmo caminho por que havia vindo. Drukker estava muito nervoso e propus-lhe que abandonássemos a discussão por uns momentos. Além disso, havia uma cerração úmida e eu comecei a sentir dores nas pernas. Drukker, repentinamente, ficou de mau humor e disse que não tinha desejo de retirar-se ainda. Assim, deixei-o só, junto ao muro, e voltei para casa.

— Relatou o episódio a Arnesson?

— Quando voltei, não o vi. Imagino que já se tinha deitado.

Mais tarde, quando nos levantamos para partir, Vance perguntou, displicentemente:

— O senhor pode-nos dizer onde está guardada a chave da porta da passagem?

— Não sei, senhor — replicou o professor, irritado, mas acrescentou num tom de voz mais conciliador: — Todavia, agora me lembro, antes estava pendurada num prego na porta da sala do clube.

Da casa do professor Dillard fomos diretamente à casa de Pardee, sendo recebidos em seguida em seu gabinete de estudo. Suas maneiras eram frias e distintas. Mesmo depois que nos sentamos, ele permaneceu de pé junto à janela, olhando-nos com uma expressão nada cordial.

— Sabe, Pardee — perguntou Markham, — que Drukker caiu do muro do parque, ontem à noite, às dez horas... logo depois que você parou para falar-lhe?

— Esta manhã tive conhecimento do acidente.

A palidez do homem tornou-se mais acentuada e ele começou a brincar nervosamente com a corrente do relógio.

— E muito triste — acrescentou. Seus olhos pousaram apàticamente durante uns minutos sobre Markham. — Interrogou o professor Dillard? Ele estava com Drukker...

— Sim, sim. Estamos vindo da casa do professor — interrompeu Vance. — E lá soubemos que houve ontem à noite uma atmosfera de hostilidade entre você e Drukker.

Pardee caminhou lentamente em direção à mesa, sentando-se bruscamente.

— Drukker estava aborrecido não sei com que, ao encontrar-me em casa de Dillard, depois do jantar. Não teve a prudência de ocultar seu mal-estar e criou assim uma situação um tanto incômoda. Porém, conhecendo-o como eu o conhecia, tratei de não dar grande importância ao incidente. Em seguida, o professor Dillard levou-o a passear.

— Você não permaneceu muito tempo na casa depois disso — observou Vance displicentemente.

— Não; uns quinze minutos, mais ou menos, Arnesson estava cansado e desejava deitar-se, então eu também resolvi sair, para passear. Ao regressar, passei pelo caminho de cavaleiros, em vez de vir pelo Drive e dei com o professor Dillard e Drukker, que conversavam junto ao muro. Não desejando passar por grosseiro, detive-me com eles um momento; porém, Drukker estava com um mau humor insuportável e fez vários comentários escarninhos. Retirei-me e me dirigi à Rua 79, atravessei o Drive e cheguei a casa.

— E não se deteve nem um momento no caminho?

— Sentei-me a fumar um cigarro, perto da entrada Rua 79 — foi a resposta de Pardee.

Durante quase meia hora, Markham e Vance interrogaram Pardee, porém, com resultado negativo. Ao sairmos para a rua, Arnesson nos chamou do vestíbulo da casa de Dillard e veio ao nosso encontro.

— Acabo de ouvir tristes novas. Faz um momento que cheguei da Universidade e o professor me disse que os senhores tinham ido interrogar Pardee. Há alguma novidade? — Sem esperar resposta, prosseguiu: — É terrível. Conforme tenho ouvido, toda a família Drukker foi eliminada. Bem, bem. E o pior é que continuam pondo em prática os episódios dos livros infantis... Alguma pista?

— Ariadna não nos favoreceu ainda — respondeu Vance. — É o senhor um embaixador de Creta?

— Quem sabe?... Interrogue.

Vance encaminhou-se para a porta e nos detivemos no campo de exercícios.

— Primeiro vamos à casa de Drukker — disse. — Há muitas coisas a resolver. Suponho que os senhores cuidarão dos assuntos dos Drukkers e se ocuparão do enterro.

Arnesson fez uma careta.

— Aceito! Entretanto, recuso-me desde já a assistir ao enterro. Os enterros são espetáculos obscenos. Mas, Belle e eu cuidaremos de tudo. Lady Mae provavelmente deixou testamento. É necessário averiguar. Mas, onde as mulheres guardam seus testamentos?...

Vance se deteve junto à porta da sala do clube, entrando imediatamente. Depois de observar as molduras da porta, foi reunir-se lá fora conosco.

— A chave da passagem não está ali. A propósito, que sabe você dela, Arnesson?

— Refere-se você à chave daquela porta de madeira?... Não tenho a menor idéia. Eu não uso a passagem... é muito mais simples sair pela porta principal. Creio que ninguém a usa. Faz anos que Belle trancou essa porta; pensou que alguém podia vir do Drive e por curiosidade abrir a porta e teve medo de um acidente enquanto praticava o tiro de flecha. Eu lhe disse que isso não tinha importância... e que bem o mereceria quem tivesse interesse por esse esporte.

Entramos em casa de Drukker pelos fundos. Belle Dillard e a Sra. Menzel se achavam ocupadas na cozinha.

— Olá, irmã! — exclamou Arnesson, dirigindo-se a Belle Dillard. Seu cinismo havia desaparecido. — Os tempos são maus para uma jovem como você. É melhor que você vá para casa. Eu cuidarei de tudo — Dito isto, levou-a por um braço de um modo ao mesmo tempo jocoso e paternal até à porta.

A jovem hesitou e dirigiu um olhar inquiridor a Vance.

— Arnesson tem razão — disse ele, confirmando com um sinal de cabeça. — Por enquanto, ficaremos só nós. Mas, antes de você ir, permita-me uma pergunta: Você guardava sempre a chave da porta de passagem que dá para a sala do clube?

— Sim... sempre. Por quê? Ela não está lá agora? Foi Arnesson quem respondeu com uma ironia chistosa:

— Não está! Desapareceu! Que tragédia! Parece-me que algum excêntrico colecionador de chaves anda por aí. — Quando a jovem se retirou, olhou para Vance. — Mas, em nome de tudo que é sagrado, que relação pode ter com este caso uma chave enferrujada?

— Talvez nenhuma — disse Vance displicentemente. — Vamos até a sala. Estaremos mais à vontade. — Atravessaram o vestíbulo.— Queremos que você nos diga o que sabe acerca dos acontecimentos de ontem à noite.

Arnesson sentou-se numa poltrona junto à janela da frente e tirou do bolso o seu cachimbo.

— De ontem à noite, hem?... Bem, Pardee veio jantar conosco, como costuma fazer todas as quintas-feiras. Depois Drukker mergulhou na especulação da teoria dos quanta para auscultar o professor. A presença de Pardee tirou-lhe a calma. Que gênio, por Deus Não tinha domínio sobre si mesmo. O professor pôs termo ao incidente, levando Drukker para tomar ar. Pardee permaneceu ainda uns quinze minutos, enquanto eu me esforçava para me manter desperto. Em seguida, ele teve a bondade de retirar-se. Examinei uma chusma de provas escritas... e me deitei. — Tomou o cachimbo e perguntou: — Em que pode servir este breve relato para explicar a morte de Drukker?

— Não o explica — disse Vance. — Mas, não é destituído de interesse. Você ouviu quando o professor Dillard chegou?

— Se eu ouvi? — Arnesson soltou uma gargalhada. — Quando ele caminha com o pé atacado de gota, batendo com a bengala no chão e sacudindo o corrimão, não há surdo que não o ouça. E o fato é que, ontem à noite, estava mais barulhento que nunca.

— E que pensa você de tudo isto? — perguntou Vance, depois de uma breve pausa.

— Em relação aos detalhes, estou um tanto no escuro. O professor Dillard não estava exatamente fosforescente. De fato, Drukker caiu no muro como Humpty Dumpty, cerca das dez horas, sendo apenas encontrado na manhã de hoje... Até aqui, tudo muito claro. Porém, por que motivo Lady Mae sucumbiu de uma síncope? Quem, ou qual foi a causa? E como?

— O assassino tomou a chave de Drukker e veio imediatamente aqui, depois do crime. A Sra. Drukker surpreendeu-o no quarto do filho. Segundo a cozinheira, que escutou de cima da escada, produziu-se uma cena. E, durante ela, a Sra. Drukker faleceu de uma síncope cardíaca.

— Evitando ao cavalheiro o incômodo de assassiná-la.

— Isto parece muito claro — concordou Vance. — Mas o motivo da visita do criminoso a esta casa não o é. Pode você sugerir alguma explicação?

Arnesson lançou umas baforadas de fumo, pensativamente.

— É incompreensível — murmurou por fim. — Drukker não possuía objeto de valor, nem documentos comprometedores... Era um tipo direito... Incapaz de tomar parte em negócios sujos... Não vejo motivo algum para que alguém tivesse interesse em devassar o seu quarto.

Vance recostou-se na cadeira e pareceu não dar importância.

— Que teoria é essa dos quanta que tanto preocupava Drukker?

— Ah! Algo soberbo! — Arnesson se animou. — Estava em caminho de conciliar a teoria de Einstein-Bohr sobre a irradiação com os fatores da interferência e de vencer as inconsistências inerentes à hipótese de Einstein. Sua investigação o havia levado ao abandono da coordenação causai tempo-espaço, do fenômeno atômico, e à sua substituição por uma descrição estatística. Teria revolucionado a Física... teria ficado famoso. É uma pena que ele tenha desaparecido, antes de haver coordenado todos os seus dados.

— Você sabe, por acaso, em que lugar Drukker guardava os registros dos seus cálculos?

— Em um caderno de folhas soltas, todas tabuladas e organizadas em índice. Era um homem metódico e correto em tudo. Sua própria caligrafia era como uma lâmina gravada.

Então, você sabe como era o caderno?

— Tinha que sabê-lo. Ele o mostrou muitas vezes a mim. Capa de couro flexível vermelha... páginas finas e amarelas... dois ou três clips em todas as folhas, prendendo anotações... seu nome estampado em ouro, em letras grandes, no frontispício... Pobre diabo! Sic transit...

— Onde poderia estar agora esse caderno?

— Em um dos lugares seguintes: na gaveta de sua mesa no gabinete de estudo, ou na escrivaninha de seu quarto. Durante o dia, trabalhava no gabinete de estudo, mas aí permanecia noite e dia, quando estava interessado em algum problema. Conservava em seu quarto uma escrivaninha, onde guardava seus registros correntes, antes de se retirar, a fim de poder manuseá-los durante a noite, quando lhe surgisse alguma inspiração. De manhã, voltava para o gabinete de estudo. Era uma máquina regular.

Vance, enquanto Arnesson falava indolentemente olhava pela janela. A impressão era de que ele apenas escutava a descrição dos hábitos de Drukker; porém, em seguida, voltando-se, fixou em Arnesson um olhar demorado.

— Diga-me — disse ele. — Ser-lhe-ia incômodo subir e trazer o caderno de Drukker? Tenha a bondade de procurar em ambos os lugares no gabinete de estudo e no quarto.

Julguei observar em Arnesson uma dúvida quase imperceptível, porém ele se ergueu imediatamente.

— Boa idéia. É um documento demasiado valioso para permanecer aqui. — E saiu da sala.

Markham começou a passear e Heath revelou seu nervosismo, chupando o charuto com mais energia. Na saleta, enquanto esperávamos Arnesson, a tensão era grande. Cada um de nós estava em um estado de expectativa intensa, embora o que esperávamos ou temíamos fosse algo difícil de definir. Em menos de dez minutos, Arnesson reapareceu. Encolheu os ombros e mostrou as mãos vazias.

— Desapareceu! — anunciou. Procurei em todos os lugares mais prováveis... Não pude encontrá-lo. — Deixou-se cair em uma poltrona e tornou a acender o cachimbo. — Não posso compreender... talvez ele o tenha escondido.

— Talvez — murmurou Vance.


XX

 

NÊMESIS

 

(Sábado, 16 de abril — 13h)

 

Passava das treze horas quando Markham, Vance e eu nos dirigimos ao Club Stuyvesant. Heath permaneceu na casa de Drukker, para fazer as investigações habituais, preparar o seu relatório e tratar com os repórteres que não tardariam a ir para lá.

Markham tinha uma conferência com o comissário de polícia às três horas; e depois do jantar Vance e eu caminhamos pela galeria interna de Stlegliez e passamos uma hora na exposição de motivos florais de Geórgia O'Keeffe. Mais tarde, fomos ao Aeolian Hall e ouvimos o Quarteto de Debussy em sol menor. Havia algumas aquarelas de Cézanne nas galerias de Monstros; porém, quando rompíamos caminho através do tráfego do anoitecer na Quinta Avenida, a luz começava a declinar e Vance ordenou ao motorista que nos deixasse no Stuyvesant, onde nos reunimos com Markham para o chá.

— Sinto-me tão jovem, tão simples, tão inocente — disse Vance, queixando-se lugubremente. — Tantas coisas têm acontecido e são tão engenhosamente manipuladas que eu não me posso aperceber delas. É muito desconcertante, muito confuso. Não me agrada isso... Não me agrada em absoluto. É por demais exaustivo.

Suspirou tristemente e sorveu seu chá.

— Suas atribulações me deixam frio — replicou Markham. — Provavelmente passou a tarde inspecionando arcabuzes e pistolas no Museu Metropolitano. Se você tivesse de passar pelo que eu passei...

— Ora, não se aborreça — respondeu Vance. — No mundo há muita emoção. A paixão não vai resolver este caso. O cérebro é a nossa única esperança. Tenhamos calma e pensemos. — Tornou-se sério. — Markham, isto se aproxima de um crime perfeito. Como uma das grandes combinações de xadrez de Morphy, foi calculado com muita antecipação. Não existem pistas e, mesmo que existissem, nos conduziriam ao erro. E, não obstante... e, não obstante, há algo que procura revelar-se. Sinto isto; mera intuição... Quero dizer nervos. Há uma voz inarticulada que precisa falar e não pode. Por várias vezes, senti a presença de uma força que luta como um fantasma invisível que procura pôr-se em contato, sem revelar sua identidade.

Markham deixou escapar um suspiro exasperado.

— Muito útil. Aconselha você que chamemos um médium?

— Há alguma coisa que temos omitido — continuou Vance, sem dar atenção ao sarcasmo de Markham. — O caso é um enigma e a chave está em alguma parte perto de nós, mas não a reconhecemos. Palavra de honra, é bastante incômodo... Tenhamos ordem. Lucidez... eis o nosso desideratum. Primeiro, Robin e assassinado. Depois, cai Sprigg com um balaço. Em seguida, a Sra. Drukker é atemorizada por um bispo negro. Depois disto, Drukker é atirado de cima de um muro. Quatro episódios distintos na obra fanática do assassino. Três foram planejados cuidadosamente. Um — a colocação do bispo preto na porta do quarto da Sra. Drukker — foi forçado pelas circunstâncias e, por conseguinte, havia sido decidido sem preparação...

— Esclareça seu raciocínio neste ponto.

— Oh, meu querido amigo! O portador do bispo preto estava evidentemente atuando em defesa própria. Um perigo inesperado surgiu ao longo de sua linha de ação e escolheu esse meio para conjurá-lo. Justamente antes da morte de Robin, Drukker saiu da sala do clube e instalou-se no caramanchão, donde podia ver a referida sala pela janela dos fundos. Um pouco mais tarde, viu alguém falando com Robin na sala. Voltou para sua casa e, nesse momento, o corpo de Robin era arrojado para fora. A Sra. Drukker viu e talvez seu filho também tenha visto. Ela gritou... muito natural, não? Drukker ouviu o grito e nos falou dele, num esforço para estabelecer um álibi para si, quando o informamos de que Robin tinha sido assassinado. Assim o assassino se inteirou de que a Sra. Drukker tinha visto algo... Quanto, não o sabia; porém, não se queria expor a perigos, foi ao seu quarto, à meia-noite, para fazê-la calar-se e levou o bispo para deixá-lo como sinal junto ao cadáver. Mas encontrou a porta fechada à chave e deixou o bispo do lado de fora, como para adverti-la de que nada dissesse, sob pena de morte. Não sabia que a pobre mulher suspeitava de seu próprio filho.

— Mas, por que Drukker não nos disse quem tinha visto na sala do clube com Robin?

— Só podemos supor que a pessoa fosse alguém que ele não podia conceber como culpável. E estou quase certo de que ele referiu o fato a essa pessoa, cavando assim a sua própria sepultura.

— Suponho que a sua teoria esteja certa, aonde nos leva?

— Ao episódio que não foi cuidadosamente preparado por antecipação. E, quando não houve preparação para um ato secreto, há seguramente um ponto fraco em um ou outro detalhe. Agora, peço-lhe que observe que, no momento de cada um dos assassinatos, qualquer das diversas pessoas no drama podia estar presente. Nenhum álibi havia. Isto, provavelmente, estava calculado inteligentemente: o assassino escolheu uma hora em que todos os atores estavam, por assim dizer, esperando nos bastidores. Mas aquela visita da meia-noite! Ah! Isso é um assunto diferente. Não houve tempo para elaborar uma série perfeita de circunstâncias... a ameaça era demasiado iminente. E qual foi o resultado? Drukker e o professor Dillard eram aparentemente as únicas pessoas à mão, à meia-noite. Arnesson e Belle Dillard estavam ceando no Plaza e não voltaram para casa senão aos trinta minutos depois da meia-noite. Pardee estava engalfinhado com Rubinstein sobre um tabuleiro de xadrez desde as onze até à uma. Drukker está agora naturalmente eliminado... Qual é a resposta?

— Eu podia lembrar-lhe — replicou Markham acremente — que os depoimentos dos outros não foram completamente contraditados.

— Bem, bem, você podia, não? — manifestou Vance, recostando-se indolentemente e lançando para o ar uma larga e regular série de anéis de fumaça. De súbito, seu corpo se estirou e com meticuloso cuidado inclinou-se para diante e tirou o cigarro. Então mirou o relógio e pôs-se de pé. Fitou Markham com um olhar burlesco.

— Vamos, meu velho. Não são ainda seis. Eis aqui o ponto em que Arnesson nos pode ser útil.

— Que há agora? — perguntou Markham.

— Sua própria sugestão — replicou Vance, tomando-o pelo braço e conduzindo-o para a porta. — Vamos pôr à prova o depoimento de Pardee.

Meia hora depois, estávamos sentados com o professor e Arnesson na biblioteca de Dillard.

— Vimos em uma missão um tanto inusitada — explicou Vance. — Mas, pode ser de importância vital para a nossa investigação. — Puxou a carteira e tirou dela uma folha de papel. — Eis aqui um documento, Arnesson, que eu desejava que você examinasse. É uma cópia da folha oficial de escores da partida de xadrez entre Pardee e Rubinstein. Muito interessante. Manuseei-a um pouco, porém gostaria de ter sua análise de perito. A primeira parte do jogo é bastante comum mas depois da suspensão me agrada muito.

Arnesson segurou o papel e estudou-o com céptica satisfação.

— Ah! O inglório recorde do Waterloo de Pardee, hem?

— Que significa isso, Markham? — perguntou o professor Dillard com desdém. — Espera você descobrir um assassino malbaratando o tempo em uma partida de xadrez?

— O Sr. Vance esperava poder saber algo com isto.

— Tolices! — O professor encheu outro copo de vinho do Porto e, abrindo um livro, não se preocupou mais conosco.

Arnesson estava absorto com as anotações do escore do xadrez.

— Alguma coisa um tanto estranha há aqui — murmurou. — O desvio do tempo. Vejamos... A folha de escore mostra que até o momento da suspensão, as brancas, isto é, Pardee, haviam jogado uma hora e quarenta e cinco minutos, e as negras, ou Rubinstein, uma hora e cinqüenta e oito minutos. Até aqui, tudo vai bem. Trinta movimentos. Tudo em ordem. Porém o tempo, no final da partida, quando Pardee desistiu, deu duas horas e trinta minutos para as brancas e três horas e trinta minutos para as negras, o que quer dizer que, durante a segunda sessão da partida, as brancas consumiram só quarenta e cinco minutos, enquanto as negras tomaram uma hora e trinta e quatro minutos. Vance meneou a cabeça.

— Exatamente. Houve duas horas e dezenove minutos de jogo começando às onze, que levou a partida até à uma e dezenove da madrugada. E as jogadas de Rubinstein durante este tempo levaram quarenta e nove minutos mais que as de Pardee. Você pode saber o que sucedeu?

Arnesson cerrou os lábios e olhou de soslaio para as anotações.

— Não está claro. Necessitaria de tempo.

— Suponha-se — sugeriu Vance — que puséssemos o jogo na posição em que ficou ao suspender-se a partida, e o jogássemos. Gostaria de conhecer sua opinião sobre as táticas.

Arnesson levantou-se de um salto e foi à mesinha do xadrez que estava no canto.

— Boa idéia — disse, esvaziando a caixa das peças. — Vejamos agora... Oh! falta um bispo negro. A propósito, quando o conseguirei de volta? — Dirigiu a Vance um olhar queixoso. — Não importa. Não é necessário. Um bispo negro foi roubado. — Então procedeu ao arranjo das peças de acordo com a posição do jogo no momento da suspensão. Em seguida sentou-se e estudou a defesa.

— A mim não parece que a posição fosse tão desfavorável para Pardee — aventurou Vance.

— Tampouco a mim; não posso compreender como perdeu a partida.

Depois de um momento, Arnesson referiu-se à folha de escores. — Desenvolvamos a jogada e vejamos onde está a falha. — Fez meia dúzia de jogadas; então, depois de alguns minutos de estudo resmungou: — Ah! Isto sim é que é profundo da parte de Rubinstein. Combinação surpreendente. Foi aqui que ele começou a trabalhar. Sutil, por Deus! Pelo que vejo, Rubinstein levou muito tempo para planejá-la. É lento, porém perseverante.

— É possível — sugeriu Vance — que a elaboração dessa combinação explique a discrepância quanto ao tempo entre as pretas e as brancas?

— Oh, indubitavelmente. Rubinstein devia estar em boa forma para não ter tornado ainda maior a discrepância. Planejando a combinação, levou quarenta e cinco minutos... ou então eu não entendo nada.

— A que horas diria você — perguntou Vance como por descuido — que Rubinstein usou esses quarenta e cinco minutos?

— Bem, vejamos. A partida começou às onze: seis jogadas antes que a combinação começasse... Oh, diga, entre ·as onze e meia e doze e meia... Sim, justamente por aí. Trinta jogadas antes que fosse suspenso; seis jogadas começando às onze... Isto faz trinta e seis: então na jogada quarenta e quatro Rubinstein moveu seu peão para o bispo-7-xeque, e Pardee abandonou... Sim, o desenvolvimento da combinação ocorreu entre onze e meia e doze e meia.

Vance olhou as peças no tabuleiro e que agora estavam na posição que haviam ocupado no momento da desistência de Pardee (1).

(1) Para benefício do jogador de xadrez que possa estar academicamente interessado, acrescento a posição exata do jogo, quando Pardee abandonou: Brancas — R em DCtsg; Torre em RO8; Peão em DR2 e O2; Negras: R em D5; C em Dct5; Bispo em D6; Peão em Dct7 e DO7.

 

— Por curiosidade — disse tranqüilamente — joguei a partida até o xeque-mate, à noite passada. Diga, Arnesson, você se incomodaria de fazer o mesmo? Gostaria de ouvir seu comentário.

Arnesson estudou a posição cuidadosamente durante uns minutos. Então volveu a cabeça lentamente e levantou a vista para Vance. Um sardônico sorriso espalhou-se em seu rosto.

— Compreendo, por Deus! Que situação! Cinco jogadas para que as negras ganhassem e um final quase inédito em xadrez. Não posso recordar-me de caso semelhante. A última jogada seria Bispo ao Cavalo-7, xeque-mate. Em outras palavras: Pardee foi derrotado pelo bispo negro! Incrível!(2)

(2) As cinco últimas jogadas não verificadas para que as negras fizessem mate, como eu mais tarde as obtive de Vance, eram: — 45. RxP; CtxR. 46 Cxct; P-ct8 (rainha). 47. Cxd; C-D6. 48. C-Rsq; c-07 .49. p-d3. O-Cd7 mate.

 

O professor Dillard largou o livro.

— Que é isto? — exclamou, reunindo-se conosco na mesa de xadrez. — Pardee foi derrotado pelo bispo? — Dirigiu a Vance um olhar sagaz cheio de admiração. — Evidentemente você tinha um bom motivo para investigar essa partida de xadrez. Rogo-lhe que desculpe o temperamento de um velho. — Permaneceu mirando o tabuleiro com uma expressão de tristeza e ao mesmo tempo espanto.

Markham franziu o cenho, denotando profunda perplexidade.

— Você disse que é inusitado um bispo só dar mate? — perguntou ele a Arnesson.

— Nunca sucede... É uma situação quase singular. E que isto sucedesse, entre todos, a Pardee! Incompreensível! — Soltou um riso breve e irônico. — Como você sabe, o bispo vem sendo a bête noire de Pardee há vinte anos... Arruinou a vida do pobre homem. O bispo negro é o símbolo de seus pesares. O Destino, por Deus! É a peça de xadrez que derrotou o gambito Pardee. Bispo a Cavalo-5 sempre arruinou seus cálculos, desqualificou sua teoria favorita... e fez uma burla e um escárnio do trabalho de sua vida. E agora, com uma probabilidade para empatar com o grande Rubinstein, o bispo aparece outra vez e o leva para as trevas.

Uns minutos mais tarde, despedimo-nos e caminhamos até a West End Avenue, onde tomamos um táxi.

— Não é de estranhar, Vance — Comentou Markham enquanto íamos em direção ao centro da cidade — que Pardee se tornasse pálido há poucos dias, quando você disse que o bispo negro estava fazendo das suas à meia-noite. Provavelmente pensou que você o insultava propositadamente, atirando-lhe na face o fracasso de sua vida.

— Talvez... — Vance olhou como em sonho as sombras que se estendiam pela cidade. — É estranho que o bispo venha sendo seu incubo durante todos esses anos. Semelhantes descoroçoamentos periódicos, às vezes afetam os cérebros mais fortes; criam um desejo de vingança contra o mundo.

— É difícil enquadrar Pardee em um papel vingativo — objetou Markham. — Qual era seu ponto de vista acerca da discrepância do tempo entre as jogadas de Pardee e de Rubinstein? Suponha-se que Rubinstein levasse quarenta e cinco minutos mais ou menos para desenvolver sua combinação. A partida não estava terminada depois da uma. Não vejo em que a visita a Arnesson nos tenha proporcionado progresso.

— Isto é porque você não está relacionado com os costumes dos enxadristas. Em uma partida com relógio, nenhum jogador fica sentado à mesa todo o tempo que o adversário pensa em sua jogada. Passeia. Distende seus músculos, sai a tomar ar, fala com as senhoras, alimenta-se e toma água gelada. No Torneio de Mestres do Manhattan Square, no ano passado, havia quatro mesas, não sendo raro ver vazias, às vezes, até três cadeiras. Pardee é um sujeito nervoso. Ele não poderia ficar sentado durante as prolongadas especulações mentais de Rubinstein.

Vance acendeu um cigarro lentamente.

— Markham, a análise desta partida por parte de Arnesson revela o fato de que Pardee dispôs naquela noite de três quartos de hora em torno da meia-noite.


XXI


A MATEMÁTICA E O ASSASSINATO

 

 

(Sábado, 16 de abril — 20h30)

 


Durante o jantar, falou-se muito pouco no caso, porém quando nos instalamos num canto solitário da ante-sala do clube, Markham puxou de novo o assunto.

— Não vejo como uma brecha no álibi de Pardee nos possa ser útil. Complica simplesmente uma situação já de si intolerável.

— Sim — suspirou Vance. — Este mundo é triste e desalentador. Cada passo que damos parece enredar-nos um pouco mais. E o mais surpreendente é que a verdade nos olha de face e nós não podemos vê-la.

— Não existem provas contra ninguém. Nem sequer uma pessoa suspeita, contra cuja culpabilidade a razão não se rebele.

— Eu não diria isso, sabe? É o crime de um matemático num ambiente de matemáticos.

Durante toda a investigação ninguém havia sido indicado como o possível assassino. Todavia, cada um de nós, consigo mesmo, suspeitava de que uma das pessoas com quem tínhamos falado fosse o culpado, e tão espantosa era essas suspeita que instintivamente recusávamos aceitá-la. Desde o princípio, cobrimos os nossos pensamentos e temores com um manto de generalidades.

— Um crime de matemático? — repetiu Markham. — O caso, segundo o meu parecer, é uma série de atos sem sentido cometidos por um louco.

Vance sacudiu a cabeça.

— Nossos criminoso é supersadio, Markham. E seus atos não são sem sentido: são odiosamente lógicos e precisos. É certo que eles foram concebidos com um sombrio e terrível humorismo, com uma atitude tremendamente cínica, porém, em si mesmos, em essência, são exatos e racionais.

Markham olhou para Vance pensativamente.

— Como pode você conciliar estes crimes do folclore infantil com um espírito matemático? — perguntou ele. — De que forma podem ser considerados lógicos? Para mim não são mais que pesadelos sem relação alguma com um cérebro são.

Vance se afundou mais em sua poltrona, fumando durante vários minutos. Em seguida, começou a fazer uma análise do caso, que não só esclareceu a aparente loucura dos crimes, como também colocou todos os sucessos e pessoas que neles intervieram sob um foco uniforme.

A exatidão desta análise foi verificada, de forma trágica e estonteante, antes de decorridos muitos dias. (1)

(1) Evidentemente não posso reproduzir as palavras exatas de Vance, apesar de serem completos os meus apontamentos; porém, enviei-lhe uma prova dos parágrafos seguintes, com um pedido de que os revisasse e os deixasse prontos para serem publicados; assim como estão agora, representam uma paráfrase exata da análise dos fatores psicológicos dos assassinatos do Bispo.


— Para compreender estes crimes — começou dizendo — devemos considerar os valores do matemático, pois todas as suas especulações e cálculos tendem a fazer ressaltar a insignificância relativa deste planeta e a nenhuma importância da vida humana. Considere em primeiro lugar a imensa extensão do campo de ação do matemático. Por um lado, ele procura medir o espaço infinito em termos de parsecs e anos-luz; e por outro o elétron, que é tão infinitamente pequeno que foi preciso inventar a unidade Rutherford equivalente à milionésima parte de um milimícron. Sua visão abrange perspectivas transcendentais, nas quais esta terra e seus habitantes se fundem até quase um ponto imperceptível. Algumas estrelas, tais como Canopus, Arcturus e Betelgeuse, que ele considera simplesmente como unidades pequenas e insignificantes, são muitas vezes maiores que todo o nosso sistema solar. O cálculo de Shapleigh do diâmetro da Via Láctea é de trezentos mil anos-luz; ainda temos de colocar dez mil Vias Lácteas juntas para conseguir o diâmetro do Universo, o que nos dá um conteúdo cúbico cem milhares de vezes maior do que a extensão da observação astronômica. Ou, então, colocando relativamente em termos de massa: o peso do Sol é 324.000 vezes maior que o da Terra; e o peso do Universo é calculado em um trilhão (um milhar de milhares) de sóis... (1) É estranho, então, que pessoas que trabalham com semelhantes grandezas estupendas percam toda noção das proporções terrestres?

(1) Vance usa aqui o sentido inglês de "trilhão" que é a terceira potência de um milhão, oposto ao sistema de numeração americano e francês, que considera um trilhão como um milhão de milhões.

 

Após curta pausa, Vance prosseguiu:

— Mas, essas são cifras elementares... fatos quotidianos. O matemático superior vai muito adiante. Trata de especulações obscuras e aparentemente contraditórias, que a inteligência mediana não pode compreender. Vive num reino onde o tempo, tal como nós o concebemos, não tem significado senão como uma ficção do cérebro e se transforma em uma quarta coordenada do espaço tridimensional, onde a distância tampouco tem significação, a não ser para os pontos vizinhos, desde que há um número infinito de caminhos mais curtos entre dois pontos dados; onde a linguagem de causa e efeito se transforma singelamente numa taquigrafia conveniente para fins explicativos; onde as linhas retas não existem e não são suscetíveis de definição; onde a massa cresce infinitamente quando atinge a velocidade da luz; onde o espaço em si está caracterizado por curvas; onde há infinitos de ordem superior e inferior; onde a lei da gravidade é abolida como força ativa e substituída por uma característica do espaço — concepção que diz que a maçã cai não porque é atraída pela terra, mas porque segue uma linha-mundo, ou geodésica...

"Nesse reino do moderno matemático — continuou Vance — existem as curvas sem tangentes. Nem Newton, nem Leibnitz, nem Bernoulli, sequer sonharam com a possibilidade de uma curva sem tangente, quer dizer, uma função contínua sem um coeficiente diferencial. Por certo, ninguém é capaz de figurar tal contradição: está muito além do poder de imaginação. E todavia, é um lugar-comum da matemática moderna trabalhar com curvas que não têm tangentes. Mais ainda, Pi, aquele velho conhecido de nossos dias escolares que considerávamos imutável, e a proporção entre o diâmetro e a circunferência varia agora conforme o que se mede seja um círculo em descanso ou um círculo em rotação... Aborreço-o com isto?

— Inquestionavelmente — replicou Markham. — Peço, porém, que continue, uma vez que as suas observações estão tomando uma direção terrestres.

— Os conceitos da matemática moderna projetam o indivíduo fora da realidade concreta em uma pura ficção do pensamento e conduzem ao que Einstein chama de "a mais degenerada forma de imaginação" — o individualismo patológico. Silberstein, por exemplo, concebe cinco e até seis dimensões espaciais e especula com habilidade para divisar um acontecimento antes que ele se produza. As conclusões contingentes sobre a concepção do Lúmen de Flammarion — pessoa imaginária que viaja mais rapidamente do que a velocidade da luz e é por conseguinte capaz de experimentar o tempo estendendo-se em uma direção inversa — são em si mesmas suficientes para abalar qualquer ponto de vista natural e são. (1) Porém existe outro homúnculo conceptual ainda mais fantástico do que Lúmen, sob o ponto de vista do pensamento racional. Este ser hipotético pode atravessar todos os mundos ao mesmo tempo com velocidade infinita, de maneira que é capaz de contemplar toda a história da humanidade, num golpe de vista. Desde Alfa Centauro pode ver a Terra como era quatro anos antes; desde a Via Láctea pode vê-la como era há quatro mil anos! E pode também escolher um ponto no espaço de onde possa presenciar a idade glacial e o tempo atual, simultaneamente!...

(1) Lúmen foi inventado pelo astrônomo francês para provar a possibilidade da reversão do tempo; com uma velocidade de 250.000 milhas por segundo, foi concebido remontando no espaço ao final da batalha de Waterloo, recolhendo todos os raios de luz deixados no campo de batalha. Conseguiu uma dianteira gradualmente maior, até que ao cabo de dois dias estava presenciando, não o final, mas o princípio da batalha; e durante esse tempo esteve observando acontecimentos de ordens diversas. Viu projéteis abandonando objetos em que haviam penetrado, e voltarem ao canhão; mortos ressuscitarem e retornarem ao combate. Outra aventura hipotética de Lúmen era saltar à Lua, voltando-se imediatamente e vendo-se a si mesmo saltando de volta da Lua à Terra.

 

Vance afundou-se mais na poltrona:

— Jogar com a simples idéia de infinito é o suficiente para perturbar o espírito do homem mediano. Porém, que é a proposição bem conhecida da Física que diz que não podemos seguir um caminho reto, sempre adiante, no espaço, sem voltar ao nosso ponto de partida? E essa proposição sustenta, numa palavra, que podemos ir diretamente a Sirius e um milhão de vezes mais adiante sem mudar de direção, porém nunca podemos abandonar o universo, voltando afinal ao nosso ponto de partida, pelo lado oposto! Diria você, Markham, que essa idéia conduz ao que nós costumamos chamar um pensamento normal? Porém, por paradoxal e incompreensível que pareça, é quase rudimentar quando a comparamos com outros teoremas avançados da física matemática. Considere, por exemplo, o chamado problema dos gêmeos: um dos gêmeos começa ao nascer uma viagem a Arcturus — com um movimento acelerado num campo de gravidade — e ao voltar descobre que é muito mais moço que o seu irmão. Se, pelo contrário, supusermos que o movimento dos gêmeos é galileano e que por conseguinte viajam com movimento uniforme, um em relação ao outro, então cada gêmeo descobrirá que o seu outro irmão é mais moço do que ele próprio...

"Na verdade — continuou Vance — não são paradoxos da lógica, Markham; paradoxos do sentimento. As matemáticas respondem por eles, lógica e matematicamente. (1) O ponto que desejo apresentar é que as coisas que parecem inconsistentes e ainda absurdas para a inteligência comum são vulgaridades para a inteligência matemática. Um físico-matemático como Einstein anuncia que o diâmetro do espaço — do espaço, compreende? — é de cem milhões de anos-luz, ou seja, setecentos trilhões de milhas, e considera este cálculo como o mais simples. Quando perguntamos o que há além desse diâmetro, a resposta é esta: "Não há mais além: estes limites incluem tudo." Quer dizer: o infinito é finito. Ou como diria o homem de ciência: o espaço não é limitado, porém finito. Medite nisso durante meia hora, Markham, e você terá a sensação de que vai enlouquecer.

(1) Vance me pediu que mencionasse aqui o trabalho escolástico de A. d'Abro, A Evolução do Pensamento Científico, em que há uma excelente discussão dos paradoxos relativos à idéia do espaço-tempo.


Parou de falar para acender um cigarro, após o que prosseguiu:

— O espaço e a matéria... eis aí o terreno especulativo dos matemáticos. Eddington concebe a matéria como uma característica do espaço, um tropeção no nada; enquanto que Weil concebe o espaço como uma característica da matéria; para ele o espaço vazio não tem significação. Assim, o número e o fenômeno de Kant têm relações entre si, trocando-se elementos; e mesmo a filosofia perde todo o significado. Porém, quando chegamos às concepções matemáticas do espaço finito, todas as leis racionais são revogadas. A concepção de De Sitter sobre a forma de espaço é que este tem uma conformação de globo ou de esfera. O espaço de Einstein é cilíndrico e a matéria se aproxima do zero na periferia ou "condição de fronteira". O espaço de Weil, baseado na mecânica de Mach, tem a forma de uma sela de montar... Ora, a que se reduz a natureza, o mundo em que vivemos, a existência humana, quando meditamos sobre tais concepções? Eddington sugere a conclusão de que não há leis naturais, quer dizer, a natureza não está sujeita à lei da razão suficiente. Pobre Schopenhauer!(1) E Bertrand Russell resume os resultados inevitáveis da física moderna, sugerindo que a matéria deve ser interpretada simplesmente como um grupo de ocorrências e que a matéria em si não precisa existir!... Veja você aonde nos conduz tudo isso. Se o mundo é não-causal e não-existente, que é uma simples vida humana ou a vida de uma nação? Ou, no caso em questão, a própria existência?...

(1) A tese de Vance para obter o título de Mestre em Artes, segundo me lembro, versava sobre Veber die Vierfache Wurzel des Satzes von zureichenden Gründen de Schopenhauer.


Vance ergueu a vista e Markham meneou a cabeça, de modo um tanto incrédulo.

— Até agora compreendo, por suposição — disse ele — porém, seu ponto de vista parece vago, para não dizer esotérico.

— É surpreendente — perguntou Vance — que um homem que lida com esses conceitos colossais e incomensuráveis, segundo os quais os indivíduos da sociedade humana são infinitesimais, possa com o tempo perder todo o senso dos valores relativos da terra e chegue a sentir um desprezo enormes pela vida humana? Os assuntos deste mundo, comparativamente insignificantes, chegariam então a ser minúsculas intrusões no macrocosmo de sua consciência. A atitude de semelhante homem chegaria a ser inevitavelmente céptica. No seu íntimo, zombaria de todos os valores humanos e da pequenez das coisas visíveis em torno de si. Talvez houvesse em sua atitude um elemento sadista, pois o cepticismo é uma forma de sadismo...

— Mas o assassinato deliberado, projetado de antemão! — objetou Markham.

— Considere os aspectos psicológicos do caso. Com a pessoa normal, que goza de recreações diariamente, mantém-se um equilíbrio entre as atividades conscientes e as inconscientes; as emoções, por serem constantemente dispersadas, não se podem acumular. Porém, com a pessoa anormal, que passa todo o seu tempo em uma intensa concentração mental e que suprime rigorosamente todas as suas emoções, o relaxamento do subconsciente prepara manifestações violentas, sempre prontas a se desencadearem. Esta larga inibição e aplicação mental prolongada, sem recreio ou repouso de qualquer espécie, causam uma explosão, que não raro, assume a forma de fatos de um horror inexplicável. Nenhum ser humano, por intelectual que seja, pode escapar a esses resultados. O matemático que repudia as leis da natureza é, não obstante, obediente a essas leis.

"Certamente, sua absorção estática nos problemas hiper-físicos só faz aumentar a pressão de suas emoções recalcadas. Uma natureza violentada, a fim de manter seu equilíbrio, produz as fulminações mais grotescas, reações que em seu humor terrível e alegria perversa são o reverso exato da seriedade sombria das impenetráveis teorias matemáticas. O fato de que Sir William Crookes e Sir Ouve Lodge, ambos grandes físicos matemáticos, se apresentem como espíritas confirmados, constitui um fenômeno psicológico análogo.

Vance deu várias baforadas em seu cigarro, e continuou:

— Markham, não é possível fugir aos fatos: estes assassinatos fantásticos e na aparência incríveis foram projetados por um matemático, como desafogos forçados de uma vida de intensa especulação abstrata e de repressão emocional. Preenchem todos os requisitos assinalados: são nítidos e precisos, admiravelmente elaborados com os menores fatores encaixados perfeitamente em seus lugares. Nenhum ponto frouxo, nenhum rastro, e aparentemente nenhum motivo. E, ao lado de uma precisão altamente imaginativa, todas as suas inclinações assinalam, sem erro, uma inteligência sempre mergulhada em concepções obscuras... um devoto da ciência pura, em liberdade de ação...

— Mas, por que aquele humor espantoso? — perguntou Markham. — Como concilia você o período do folclore infantil deles com a sua teoria?

— A existência de impulsos reprimidos — explicou Vance — sempre produz um estado favorável ao humor. Dugas apresenta o humor como uma detente, um relaxamento da tensão. E Bain, seguindo Spencer, chama o humor um alívio da restrição. O campo mais fértil para uma manifestação do humor encontra-se na energia potencial acumulada, o que Freud chama Besetzungsenergie, que a seu tempo exige uma descarga livre. Nestes crimes calcados em motivos infantis temos o matemático reagindo até aos atos frívolos mais fantásticos, a fim de equilibrar suas especulações lógicas supersérias. É como se fosse dizendo cèpticamente: "Olha! Este é o mundo que tu levas tão a sério porque nada sabes do mundo abstrato infinitamente maior. A vida na terra é um jogo de crianças, apenas e suficientemente importante para se fazer um chiste"... E semelhante atitude seria plenamente explicável pela psicologia; pois após qualquer excesso mental por demais prolongado, as reações tomam a forma de reversões, quer dizer, os mais sérios e dignos procurariam uma válvula de escape nos folguedos infantis. Aqui, incidentemente tem você a explicação para o camarada jocoso e prático com seus instintos sádicos...

Mais ainda, todos os sádicos têm um complexo infantil. E a criança é totalmente amoral. Um homem, por conseguinte, que experimente estas regressões psicológicas infantis, está além do bem e do mal. Muitos matemáticos modernos sustentam, todavia, que toda convenção, o dever, a moralidade, o bem, etc, não poderia existir a não ser pela ficção do livre arbítrio. Para eles, a ciência da ética é um campo freqüentado pelos fantasmas conceptuais. E ainda chegam à dúvida desintegrante sobre se a verdade mesma não é simplesmente uma ficção da imaginação... Acrescente a estas considerações o sentido da distorção terrestre e o desprezo pela vida humana, que poderiam facilmente resultar das especulações matemáticas superiores, e eis aí uma perfeita série de condições para o tipo de crimes como os que agora nos ocupam.

Quando Vance terminou de falar, Markham permaneceu em silêncio durante um largo tempo. Finalmente, moveu-se com impaciência.

— Posso compreender — disse ele — como estes crimes podiam adaptar-se a qualquer das pessoas envolvidas neste caso. Porém, com base em seu argumento, como explica você as notas aos jornais?

— O humor deve ser transmitido — respondeu Vance. — "O êxito de um chiste se acha no ouvido daquele que o escuta." Além disso, o impulso para o exibicionismo entra no presente caso.

— Mas o pseudônimo "O Bispo"?

— Ah! Este é um ponto importantíssimo. A razão de ser desta terrível orgia de humor se encontra na assinatura críptica.

Markham se voltou lentamente.

— O enxadrista e o astrônomo preenchem as condições de sua teoria, da mesma forma como o físico-matemático?

— Sim — respondeu Vance. — Desde os tempos de Philidor, Staunton e Kieseritzki, quando o xadrez era como uma bela arte, o jogo transformou-se até quase chegar a ser uma ciência exata. E durante o regime da Capablanca chegou a ser amplamente um assunto de especulações matemática abstrata. Por certo Maroczy, o Dr. Lasker e Vidimar são todos matemáticos bem conhecidos... E o astrônomo, que realmente observa o universo, pode conseguir uma impressão ainda mais intensa da nenhuma importância do mundo de que o físico especulativo. A imaginação corre velozmente através de um telescópio. A simples teoria da existência de vida nos planetas distantes tende a reduzir a vida terrestre a uma consideração secundária. Durante horas, depois que contemplamos Marte, por exemplo, e nos deixamos entreter pela idéia de que seus habitantes ultrapassam em número e em inteligência a nossa população, sentimos dificuldade em nos reajustarmos aos insignificantes assuntos da vida aqui na Terra. Mesmo a simples leitura do livro romântico de Percival Lowell afasta momentaneamente da pessoa imaginativa a consciência da importância de qualquer existência planetária singela...

Aqui houve um prolongado silêncio, após o qual Markham perguntou:

— Por que Pardee levou o bispo preto da casa de Arnesson naquela noite e não do clube, onde não se teria notado a falta?

— Não sabemos o bastante sobre o motivo que o impulsionou, para dar respostas a essa pergunta. Ele pode tê-lo levado com algum propósito deliberado. Mas, que indícios tem você da culpabilidade dele? Todas as suspeitas do mundo não lhe permitiriam tomar qualquer medida contra ele. Ainda que soubéssemos, sem nenhuma dúvida, quem fosse o assassino, não poderíamos... Digo a você, Markham, que estamos enfrentando uma inteligência audaciosa e sagaz... uma inteligência que elabora cada jogada e calcula todas as probabilidades. Nossa única esperança é criar nossa própria evidência, encontrando um ponto fraco na combinação do assassino.

— A primeira coisa que farei amanhã de manhã — declarou Markham sombriamente — é pôr Heath em ação para averiguar o que Pardee fez, naquela noite. Destacarei vinte homens para apurarem o álibi e farei com que interroguem todos os espectadores daquela partida de xadrez e façam averiguações de porta em porta, desde o Clube de Xadrez de Manhattan até à casa de Drukker. Se pudermos encontrar alguém que haja visto Pardee nas vizinhanças da casa de Drukker, cerca da meia-noite, então teremos um elemento de suspeita, de prova circunstancial contra ele.

— Sim — concordou Vance. — Isso nos daria um ponto de partida definido. Pardee teria muita dificuldade em explicar por que motivo estava a seis quadras do Clube durante sua partida de xadrez com Rubinstein, à hora exata em que era deixado, na porta do quarto da Sra. Drukker, um bispo preto... Sim, sim. Faça tudo para que Heath e sua gente se ponham em ação. Pode ser que consigamos algo.

O sargento, porém, não chegou a ser chamado para fazer as averiguações lembradas. Antes das nove do dia seguinte, Markham se apresentou em casa de Vance, para informar-lhe que Pardee se havia suicidado.


XXII

 

O CASTELO DE CARTAS

 

(Domingo, 17 de abril — 9h)

 

A notícia surpreendente da morte de Pardee teve sobre Vance um efeito curiosamente perturbador. Olhou incredulamente para Markham. Em seguida, tocou a campainha com toda a pressa. Apresentou-se Currie, a quem ordenou que preparasse sua roupa e trouxesse uma xícara de café. Enquanto se vestia, seus movimentos revelavam impaciência e ansiedade.

— Demônios, Markham! — exclamou. — Isso é extraordinário... Como soube?

— O professor Dillard me telefonou para a minha casa há menos de meia hora. Pardee se suicidou na sala do clube de Dillard durante a noite. Pyne descobriu o corpo esta manhã e informou o professor. Eu transmiti a notícia a Heath e em seguida vim para aqui. Nas circunstâncias atuais, pensei que fosse oportuno que estivéssemos juntos. — Markham fez uma pausa para acender um charuto. — Parece que se acabou o caso do Bispo... Não é um fim inteiramente satisfatório, mas o melhor para todas as pessoas envolvidas.

Vance não emitiu comentário imediato. Sorveu o seu café abstraidamente, levantando-se por fim, e apanhando o seu chapéu e a bengala...

— Suicídio... — murmurou ele enquanto descíamos a escada. — Sim, isso seria bastante coerente mas, como você disse, insatisfatório... infelizmente insatisfatório...

Chegamos à casa de Dillard e Pyne nos fez entrar. Mal o professor se juntou a nós, soou a campainha da porta da rua. Heath, belicoso e dinâmico, irrompeu na sala onde nos achávamos.

— Isto esclarece as coisas, senhor — disse jubiloso a Markham, depois do ritual aperto de mão. — Estes pássaros calados... nunca se podem julgar. Todavia, quem poderia pensar...?

— Escute, sargento, — interrompeu lentamente Vance — não pensemos. Isso cansa muito. Um espírito aberto... árido como o deserto... é que é o indicado.

O professor Dillard encaminhou-se para a sala do clube seguido por nós. As persianas estavam corridas e as lâmpadas elétricas acesas ainda. Também notei que as janelas estavam fechadas.

— Deixei tudo exatamente como estava — exclamou o professor.

Markham encaminhou-se para a mesa grande do centro. O corpo de Pardee estava sentado numa cadeira, defronte à porta que dava para o campo de exercícios. A cabeça e os ombros apoiavam-se sobre a mesa. O braço direito abraçava o espaldar da cadeira e a mão segurava a pistola automática. No lado direito do peito, apresentava um ferimento de bala. E na mesa, debaixo de sua cabeça, uma poça de sangue coagulado.

Nossos olhos permaneceram muito pouco tempo sobre o cadáver, pois uma coisa surpreendente, insólita, desviava nossa atenção. As revistas haviam sido postas a um lado da mesa, deixando um espaço aberto diante do cadáver. E nessa zona livre, erguia-se um alto e bem feito castelo de cartas. Quatro flechas marcavam os limites do pátio. Os passeios do jardim estavam representados por paus de fósforo, colocados um junto ao outro. Era uma reprodução que faria a alegria de uma criança. E eu recordei o que Vance havia dito na noite anterior, sobre os espíritos sérios que buscavam recreação nos divertimentos infantis. Havia algo de inefavelmente horrível na justaposição daquela estrutura de cartas e a morte violenta.

Vance, de pé, olhava a cena com um ar triste e preocupado.

— Hic jacet John Pardee — murmurou numa espécie de reverência. — E este é o castelo que John construiu... um castelo de cartas... — Deu uns passos para diante como para inspecioná-lo mais de perto. Mas seu corpo bateu na mesa, houve uma ligeira trepidação e o frágil edifício de cartas veio abaixo.

Markham ergueu-se e, voltando-se para Heath, perguntou-lhe:

— Você notificou o médico legista?

— Sim. — O sargento parecia ter dificuldade em desviar a vista da mesa. — E caso seja preciso, virá também Burke. — Dirigindo-se às janelas, levantou as persianas, deixando penetrar a luz do dia. Em seguida, voltou para junto do corpo de Pardee e ficou a olhá-lo demoradamente. De súbito, ajoelhou-se e se inclinou para diante.

— Este me parece o 38 que estava no armário das ferramentas — comentou o sargento.

— Sem dúvida — afirmou Vance, tirando a cigarreira do bolso.

Heath levantou-se e se encaminhou para o armário, inspecionando-lhe o conteúdo.

— Não me enganei, é ele mesmo. Chamaremos a Srta. Dillard para que o identifique, depois de que o médico tenha examinado o cadáver.

— Nesse momento, Arnesson, num robe roxo e amarelo, irrompeu na sala, nervoso e excitado.

Por todas as bruxas! — exclamou ele. — Pyne acaba de dar-me a notícia. — Aproximando-se da mesa, examinou o corpo de Pardee. — Suicídio, hem?... Mas por que não escolheu a sua própria casa para isto? Não teve consideração em fazê-lo em casa alheia. É coisa mesmo de enxadristas.

Ergueu a vista para Markham.

— Espero que isto não nos envolverá em mais complicações desagradáveis. Já temos tido muita notoriedade. Isso perturba o espírito da gente. Quando poderão levar daqui este cadáver? Não quero que Belle o veja.

— Será removido logo que o médico legista o tiver examinado — respondeu Markham em um tom de gelada censura. Além disso, não há necessidade de trazer aqui a Srta. Dillard.

— Excelente. — Arnesson mirava, entretanto, o cadáver. Lentamente seu rosto se cobriu de uma expressão de cínica piedade. — Pobre diabo! A vida era demais para ele. Hipersensível... nenhuma força psíquica. Levava as coisas a sério em demasia. Construía o seu próprio destino, e o seu sonho se desfez em fumaça. Não podia encontrar outra diversão. O bispo preto o enfeitiçava. Provavelmente, desviava seu cérebro do eixo. Por Deus! Não me surpreende que a sua obsessão o tenha levado à autodestruição.

— Inteligente idéia — replicou Vance. — A propósito, sobre a mesa, quando entramos aqui, havia um castelo de cartas.

— Ah! Que fariam aí estas cartas? Pensou ele que poderia encontrar consolo no solitário durante seus últimos momentos... Um castelo de cartas... Parece tolice. Sabe você a resposta?

— Em absoluto. "A casa que João construiu" poderia explicar algo.

— Compreendo. — Arnesson parecia uma abelha. — Divertindo-se com jogos infantis até o fim... mesmo contra si próprio. Estranha idéia. — Aqui bocejou cavernosamente. — Vou-me vestir. — E se foi para cima.

O professor Dillard havia permanecido contemplando Arnesson com um olhar ao mesmo tempo angustiado e paternal. Agora, voltou-se para Markham num gesto de fastio.

— Sigurd sempre procura conter suas emoções. Tem vergonha de seus sentimentos. Não levem a sério sua atitude despreocupada.

Antes de que Markham pudesse responder, Pyne fez entrar o detetive Burke. E Vance aproveitou a oportunidade para interrogar o mordomo a respeito de sua descoberta.

— Como foi que você entrou aqui esta manhã? — perguntou ele.

— Havia uma atmosfera pesada na despensa, senhor, — respondeu Pyne, — e abri a porta ao pé da escada para entrar ar. Logo percebi que as persianas estavam corridas...

— Então, não costumava baixar as persianas de noite?

— Não, senhor... nesta sala não.

— Que me diz das janelas?

— Sempre as deixo de noite um pouco abertas em cima.

— Foram deixadas abertas ontem de noite?

— Sim, senhor.

— Perfeitamente. E depois que você abriu a porta esta manhã?

— Comecei a apagar as luzes, pensando que a Srta. Dillard houvesse esquecido de desligar a chave. Foi nesse momento que enxerguei o pobre cavalheiro ali, sobre a mesa. Então, fui avisar o professor Dillard.

— Sabe Beedle alguma coisa sobre a tragédia?

— Eu lhe contei, depois que os senhores chegaram a esta casa.

— A que hora você e Beedle foram deitar-se?

— Às dez.

—Logo que Pyne saiu, Markham dirigiu-se ao professor Dillard.

— Ficaríamos agradecidos se o senhor nos desse todos os detalhes possíveis, enquanto esperamos o Dr. Doremus. Podemos ir lá em cima?

Burke ficou na sala e todos subimos à biblioteca.

— Receio que tenha pouca coisa a dizer-lhes — começou a falar o professor, sentando-se ao tempo em que apanhava o cachimbo. Em suas maneiras, havia uma reserva notável, uma espécie de acentuada relutância. — Pardee veio aqui ontem à noite, depois do jantar, com a intenção de falar com Arnesson, porém agora acredito que foi para ver Belle. Esta, todavia, escusou-se, retirando-se logo, pois estava com enxaqueca. Pardee permaneceu até às onze e meia. Em seguida, saiu. E esta foi a última vez que o vi, até o momento em que Pyne me trouxe esta manhã a terrível notícia...

— Mas se o Sr. Pardee — interveio Vance — veio ver sua sobrinha, como explica o senhor que tenha permanecido tanto tempo depois que ela se retirou?

— Não sei explicar. — O ancião parecia perplexo. — Ele dava a impressão, todavia, de que em seu espírito alguma coisa se agitava e de que desejava a companhia de alguém. O fato é que tive de insinuar-lhe sem rodeios que me sentia cansado antes de que ele finalmente se erguesse para sair.

— Onde esteve Arnesson, ontem à noite?

— Sigurd se demorou conversando conosco durante uma hora mais ou menos, depois que Belle se retirou, deitando-se em seguida. Toda a tarde tinha estado ocupado com os assuntos de Drukker e se achava fatigado.

— Que hora seria?

— Dez e meia.

— E o senhor disse — continuou Vance — que Pardee lhe deu a impressão de se encontrar sob os efeitos de uma angústia mental?

— Não angústia, exatamente. — O professor franziu o cenho, soltou ao ar uma baforada de fumaça. Parecia deprimido, quase melancólico.

— Pareceu ao senhor que ele se achava com temor de alguma coisa?

— Não. Absolutamente. Seu aspecto era o de um homem que houvesse experimentado um grande pesar e não pudesse desprender-se dos efeitos causados pela dor.

— Quando se retirou, acompanhou-o o senhor até o vestíbulo? Quer dizer, notou que direção tomou ele?

— Não. Sempre tratamos Pardee como pessoa da família. Ele deu boa noite e saiu do quarto. Acho que ele saiu pela porta principal.

— Retirou-se o senhor imediatamente para o seu quarto?

— Dentro de dez minutos. Demorei o tempo suficiente para pôr em ordem uns papéis em que estivera trabalhando.

Vance permaneceu em silêncio. Sem dúvida alguma estava confundido em face do último episódio. Markham retomou o interrogatório.

— Suponho que será inútil perguntar-lhe se ouviu algum disparo ontem à noite.

— Tudo em casa estava tranqüilo — respondeu o professor Dillard. — E, de qualquer modo, um tiro disparado na sala do clube não poderia ser ouvido aqui. Há dois lanços de escadas, todo o comprimento do vestíbulo inferior e um corredor, e entre eles três grossas portas, sem aludir à espessura e solidez das paredes desta velha casa.

— E ninguém — completou Vance — pode ter ouvido da rua, pois as janelas da sala estavam fechadas cuidadosamente.

O professor fez que sim a cabeça e dirigiu-lhe um olhar perscrutador.

— É verdade. Vejo que você também notou esta circunstância particular. Não compreendo bem por que Pardee fechou as janelas.

— As idiossincrasias dos suicidas nunca foram explicadas satisfatoriamente — replicou Vance, como por acaso. E depois de uma breve pausa, perguntou:

— De que falavam o senhor e Pardee, antes de este se retirar?

— Falamos muito pouco. Eu estava ocupado com um novo artigo da Revista de Física e procurei interessá-lo sobre o assunto, mas o seu espírito, como já lhe disse, mostrava certa preocupação, entretendo-se com o tabuleiro de xadrez a maior parte do tempo.

— Ah! Deveras? É muito interessante.

Vance lançou um olhar ao tabuleiro. Um certo número de peças permanecia nos quadros. Levantou-se rapidamente e, atravessando a sala, foi até à mesinha. Depois de um instante, voltou, sentando-se de novo.

— É curioso — murmurou ele e muito deliberadamente acendeu um cigarro. — Sem dúvida alguma, ele testava refletindo no final de sua partida de xadrez com Rubinstein, antes de sair ontem à noite. As peças estão postas exatamente como estavam quando abandonou a luta... com o inevitável mate do bispo preto, em cinco lances.

O olhar do professor Dillard pousou pensativamente sobre a mesinha de xadrez.

— O bispo preto — repetiu em voz baixa. — Pode ser isto que ocupava seu espírito ontem à noite? Parece incrível que uma coisa tão banal pudesse impressioná-lo assim, tão desastradamente.

— Não esqueça — lembrou Vance — que o bispo preto era o símbolo de seu fracasso. Representava o naufrágio de suas esperanças. Fatores menos patentes levaram muitos homens a abandonar a vida.

Uns minutos depois, Burke nos informou que o médico havia chegado. Deixando o professor, descemos outra vez até à sala do clube, onde o Dr. Doremus estava ocupado em examinar o cadáver de Pardee.

O médico levantou a cabeça quando entramos, e ondeou a mão superficialmente. Seu costumeiro modo jovial havia desaparecido.

— Quando irá terminar tudo isto? — grunhiu ele. — Não me agrada o ambiente deste lugar. Assassinatos... morte por síncope... suicídios... O bastante para eriçar o cabelo. Vou procurar um emprego bom e tranqüilo num matadouro.

— Cremos — disse Markham — que este é o último de todos.

Doremus escarneceu.

— Ora, vá! Você acha? O bispo se suicida depois de percorrer, andrajoso, a cidade. Parece razoável. Espero que você tenha razão. — Inclinou-se de novo sobre o cadáver e, separando-lhe os dedos da mão, tirou-lhe o revólver, jogando-o sobre a mesa. — Para o seu arsenal, sargento.

Heath guardou a arma no bolso.

— Quanto tempo faz que está morto, doutor?

— Oh, desde meia-noite, mais ou menos. Pode ser que antes, pode ser que depois. Mais algumas perguntas tolas?

Heath sorriu.

— Há alguma dúvida de que se tenha suicidado?

— Que lhe parece que seja? Uma bomba da mão negra? — Em seguida, falou em tom profissional. — A arma estava em sua mão. No peito, sinais de fogo. Orifício de entrada produzido pela bala do mesmo revólver que empunhava. Posição do corpo, natural. Não vejo nada de suspeito. Por quê? Tem dúvidas?

Foi Markham quem respondeu:

— Ao contrário, doutor. Nós acreditamos que foi um suicídio.

— Pois foi mesmo. Examinarei um pouco mais. Sargento, ajude-me.

Quando Heath ajudou a levantar o corpo de Pardee e a colocá-lo num diva para um exame mais detido, fomos até a sala de visitas, onde Arnesson se juntou a nós.

— Qual é o veredicto? — perguntou ele, deixando-se cair numa cadeira próxima. — Suponho que não haverá dúvidas de que foi ele mesmo que se matou, não?

— Por que torna ao assunto, Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Não tenho motivo algum. Um comentário ocioso. Muitas coisas raras estão acontecendo por aqui.

— Oh, evidentemente — disse Vance, ao mesmo tempo que soltava para o teto uma espiral de fumaça.

— Não, segundo o médico, não há dúvida de que foi um suicídio. A propósito, Pardee deu a você a impressão de achar-se inclinado ao suicídio?

Arnesson pensou um pouco.

— Difícil de dizer — concluiu. — Nunca foi alegre. Mas suicidar-se?... Não sei. Entretanto, você disse que não havia lugar para dúvidas. Assim, já se vê...

— Sim, sim. E como entra em sua fórmula esta situação?

— Dissipa toda a equação, não há dúvida. Não há mais necessidade de especular. — Apesar de suas palavras, parecia incerto. — O que não posso compreender — acrescentou — é por que escolheu a sala do clube. Na casa dele, havia bastante lugar para suicidar-se.

— É que aqui havia um revólver conveniente — sugeriu Vance. — E agora me lembro de que o sargento Heath queria que a Srta. Dillard identificasse a arma, pro forma.

— Isso é fácil. Onde está?

Heath entregou-lhe o revólver e Arnesson retirou-se com ele.

— Também podia perguntar-lhe se ela guardava um baralho na sala do clube.

Arnesson voltou após alguns minutos, informando-nos que o revólver era o que estava no armário das ferramentas, e que não só havia um baralho na gaveta da mesa da sala, como também Pardee sabia onde ele estava.

Em seguida, apareceu o Dr. Doremus e reiterou sua conclusão de que Pardee havia-se suicidado.

— Esta será minha informação — disse ele. — Não vejo outra coisa. Para ser exato, muitos suicídios são forjados, porém isso é de seu domínio. Neste caso, não há nada absolutamente de suspeito.

Markham sacudiu a cabeça, sem ocultar sua satisfação.

— Não temos motivo para discutir suas conclusões, doutor. Em realidade, este suicídio se harmoniza perfeitamente com o que já sabemos. Conduz toda essa orgia do Bispo a um fim lógico. — Levantou-se como um homem de cujos ombros tivessem tirado uma enorme carga. — Sargento, deixarei a você o cuidado de ordenar as diligências necessárias para que o cadáver seja levado para a autópsia. Mais tarde, passe pelo Stuyvesant. Graças a Deus que hoje é domingo! Temos tempo para dar umas voltas por aí.

Aquela noite, no Clube, Vance, Markham e eu estávamos sentados no salão. Heath fez ato de presença, retirando-se em seguida. Uma nota cuidadosa sobre o suicídio de Pardee foi redigida para a imprensa indicando ao mesmo tempo que o caso do Bispo estava, com tal fato, encerrado. Vance havia falado pouco durante todo o dia. Recusara-se a oferecer qualquer sugestão sobre a redação da declaração oficial, parecendo nada disposto a discutir a nova fase do caso. Agora, porém, dava voz às dúvidas que tinham estado trabalhando o seu espírito.

— É muito fácil, Markham, fácil demais. Há apenas um cheiro de plausibilidade em tudo isto. É perfeitamente lógico, sabe, mas não é satisfatório. Não posso imaginar o nosso Bispo terminando toda a sua carnificina humorística de uma forma tão brutal. Não há nada de engenhoso em fazer saltar a tampa do cérebro... é demasiado vulgar, sabe? Mostra uma horrível falta de originalidade. Não é digno de artífice dos assassinatos do Bispo.

Markham estava aborrecido.

— Você mesmo explicou como os crimes estavam de acordo com as possibilidades psicológicas da mentalidade de Pardee. E para mim parece altamente razoável que, havendo levado a cabo seus trágicos intentos, e chegado ao final da aventura, tenha-se eliminado.

— Pode ser que você tenha razão — suspirou Vance. — Eu não tenho nenhum argumento decisivo para contrariar o seu ponto de vista. Mas estou desapontado. Não me agradam os anticlímaxes, especialmente quando não correspondem à minha idéia do talento do dramaturgo. A morte de Pardee neste momento é demasiado clara... esclarece as coisas de forma por demais nítida. Há nela demasiada utilidade e muito pouca imaginação.

Markham sentiu que podia dar-se ao luxo de ser tolerante.

— Talvez a imaginação dele estivesse esgotada com tantos crimes. Seu suicídio poderia ser considerado simplesmente como o descer do pano, uma vez terminado o espetáculo. De todo modo, foi sem dúvida alguma um ato incrível. A derrota, a desilusão e o desânimo... o fracasso de todas as ambições... têm constituído causa suficiente para o suicídio, desde tempos imemoriais.

— Exatamente. Temos um motivo razoável, ou uma explicação para o suicídio, mas nenhum motivo para os crimes.

— Pardee estava enamorado de Belle Dillard — replicou Markham. — E provavelmente sabia que Robin a cortejava. Também tinha um ciúme intenso de Drukker.

— E o assassinato de Sprigg?

— Não temos dados sobre esse ponto. Vance sacudiu a cabeça.

— Não podemos separar os crimes quanto ao motivo. Todos tiveram origem num mesmo impulso fundamental: foram cometidos por uma única paixão fremente.

Markham suspirou com impaciência.

— Mesmo supondo que o suicídio de Pardee não tenha relação com os assassinatos anteriores, estamos num ponto morto, figurativa e literalmente.

— Sim, sim. Um ponto morto. Muito triste. Ainda que, para a polícia, consolador: deixa-a livre por algum tempo, seja como for. Porém, não interprete mal minhas fantasias. A morte de Pardee está indubitavelmente relacionada com os assassinatos. Eu diria que existe uma relação muito íntima.

Markham tirou da boca, lentamente, seu charuto e contemplou Vance durante alguns momentos.

— Há alguma dúvida em seu espírito — perguntou ele — de que Pardee se tenha suicidado?

Vance hesitou, antes de responder.

— Eu queria saber — disse ele lentamente — por que aquele castelo de cartas caiu tão rapidamente, logo que eu deliberadamente me encostei na mesa...

— Sim?

— ... E por que não caiu, quando a cabeça e os ombros de Pardee desabaram sobre a mesa, depois de haver disparado o tiro contra si.

— Isso não quer dizer nada — disse Markham. — A primeira sacudidela pode ter afrouxado as cartas... — Subitamente seus olhos se entrecerraram. — Quer você dizer que o castelo de cartas foi armado depois da morte de Pardee?

— Oh, meu caro amigo! Eu não me estou entregando a deduções. Estou dando rédea solta à minha curiosidade juvenil, sabe?


XXIII

 

UMA DESCOBERTA SURPREENDENTE

 

(Segunda-feira, 25 de abril — 8h30)

 

Oito dias tinham transcorrido depois da morte de Pardee. O enterro de Drukker saiu da casa da Rua 76. Assistiram-no unicamente os Dillards e Arnesson e alguns homens da Universidade, que vieram render um último tributo de respeito ao homem de ciência, por cuja obra tinham sincera admiração.

Vance e eu estivemos na casa, na manhã do enterro, quando uma menina trouxe um ramalhete de flores primaveris que ela mesma colhera, e pediu a Arnesson que as colocasse no ataúde de Drukker. Quase esperei uma resposta cínica de Arnesson, surpreendendo-me, porém, quando tomou as flores gravemente e disse, num tom de voz quase de ternura:

— Serão postas em seguida, Madalena. E Humpty Dumpty lhe agradece a lembrança.

Quando a governanta levou a criança, Arnesson voltou-se para nós e disse:

— Era a favorita de Drukker... Camarada engraçado... Nunca ia ao teatro. Detestava viagens. Sua única diversão era entreter as crianças.

Menciono este episódio, porque, apesar de parecer sem importância, punha em destaque um dos elos mais vitais da cadeia de evidência que acabou por esclarecer, sem dúvida alguma, o problema dos assassinatos do Bispo.

A morte de Pardee havia criado uma situação única nos anais do crime. A declaração fornecida pelo procurador do distrito havia apenas indicado a possibilidade de ser Pardee o autor dos assassinatos. Não importa o que Markham pudesse ter pensado intimamente; estava longe de ser nobre e justo lançar uma dúvida direta sobre o caráter de outrem sem provas decisivas. Porém, a onda de terror levantada por esses estranhos assassinatos havia atingido tais proporções que ele não podia, diante do dever para com a comunidade, limitar-se a dizer que o caso estava terminado. Assim, embora nenhuma acusação aberta pesasse sobre Pardee, os assassinatos do Bispo não eram mais olhados como uma fonte de ameaça contra a cidade, e um suspiro de alívio partiu de todos os pontos.

No Clube de Xadrez de Manhattan, havia provavelmente menos discussão do caso do que em qualquer outro lugar de Nova York. Os sócios sentiram, talvez, que a honra do Clube estava, de qualquer forma, envolvida. Ou talvez houvesse um sentimento de lealdade para com um homem que tanto havia feito pelo xadrez como Pardee. Porém, qualquer que fosse a causa, o fato é que os membros do Clube assistiram em sua unanimidade aos funerais do companheiro. Não pude admirar menos essa homenagem ao colega de xadrez, pois, deixando de lado seus atos particulares, havia sido um dos grandes animadores do antigo e real jogo, a que se dedicavam. (1)

(1) Pardee deixou em seu testamento uma grande soma para o incremento do xadrez. É de lembrar que, no outono do mesmo ano, teve lugar em Cambridge Springs um torneio em memória de Pardee.

 

O primeiro ato oficial de Markham, no primeiro dia seguinte à morte de Pardee, foi relaxar a prisão de Sperling. Nessa mesma tarde, o Departamento de Polícia arquivou todas as investigações em torno dos assassinatos do Bispo e cessou a vigilância da casa de Dillard. Vance protestou francamente contra esta última deliberação; em virtude, porém, de haver o médico legista em seu laudo post mortem confirmado, totalmente, a teoria do suicídio, restava a Markham pouca coisa a fazer no caso. Além disso, estava convencido de que com Pardee tudo havia terminado, e mofava das dúvidas que ocorriam a Vance.

Durante a semana seguinte ao encontro do corpo de Pardee, Vance estava inquieto e mais preocupado que nunca. Procurou interessar-se por vários assuntos, porém sem êxito visível. Mostrava sinais de irritabilidade. E sua quase milagrosa equanimidade parecia haver-lhe desertado do espírito. Tive a impressão de que estava esperando que algo sucedesse. Sua atitude não era exatamente de expectativa, porém havia nele um ar de vigilância que, às vezes, chegava à apreensão. No dia seguinte ao enterro de Drukker, Vance visitou Arnesson. E, quinta-feira, à noite, acompanhou-o ao teatro para assistir à peça Os Espectros, de Ibsen, obra que, segundo vim a saber, não lhe agradava. Soube que Belle Dillard havia ido passar um mês em casa de um parente em Albany. Como explicou Arnesson, ela começara a sentir os efeitos de tantos dissabores, sendo-lhe necessário uma mudança de ambiente. O homem encontrava-se visivelmente triste pela ausência da jovem. Confiou a Vance que eles haviam combinado casarem-se no mês de julho. E Vance também soube por ele que a Sra. Drukker deixara em testamento todos os seus bens para Belle e para o professor Dillard, em caso de morte do seu filho, fato que interessou, particularmente, a Vance.

Se tivesse sabido, ou embora suspeitado que coisas surpreendentes e terríveis se acumulavam sobre nós naquela semana, duvido que eu pudesse suportar o esforço. Pois o caso dos assassinatos do Bispo não tinha ainda terminado. O clímax do horror estava ainda por chegar; porém este, tão terrível e horripilante, foi apenas uma sombra do que podia ter sido, se Vance não tivesse examinado o caso, chegando a duas conclusões distintas, uma das quais havia sido abandonada em vista da morte de Pardee. Era a outra possibilidade, como vim a saber mais tarde, que o fez permanecer em Nova York, vigilante e mentalmente alerta.

Segunda-feira, 25 de abril, foi o começo do fim. Fomos jantar com Markham no Clube dos Banqueiros, para em seguida irmos assistir aos Mestres Cantores(1). Porém, aquela noite não presenciamos os triunfos de Walter. Observei que quando nos encontramos com Markham, este parecia preocupado. E nem bem nos havíamos sentado no salão de refeições do Clube quando ele nos contou um telefonema que havia recebido do professor Dillard aquela tarde.

(1) Das óperas de Wagner era esta a predileta de Vance. Sempre afirmou que era esta a única ópera que tinha a forma estrutural de uma sinfonia. E mais de uma vez lamentou que não tivesse sido escrita como uma peça orquestral, ao invés de veículo para um drama absurdo.

 

— Pediu-me particularmente que fosse vê-lo esta noite

— explicou Markham. — E, quando procurei desculpar-me, demonstrou grande impaciência. Acentuou o fato de que Arnesson estaria fora toda a noite e disse que uma oportunidade semelhante não poderia apresentar-se senão quando fosse tarde demais. Negou-se a dar explicações e insistiu em que eu fosse à sua casa depois do jantar. Disselhe que lhe comunicaria se me fosse possível atender ao seu pedido.

Vance escutara com um interesse mais intenso.

— Devemos ir, Markham. Esperava um chamado assim. É possível que por fim encontremos a chave da verdade.

— A verdade acerca de quê?

— Da culpabilidade de Pardee.

Markham não disse mais nada e jantamos em silêncio.

Às oito e meia tocávamos a campainha da casa de Dillard. Pyne nos conduziu imediatamente à biblioteca. O velho professor saudou-nos com reserva nervosa.

— Você foi muito amável em vir, Markham — disse ele sem se levantar. — Sente-se e fume um charuto. Quero falar com você... E desejo fazê-lo com calma. É muito difícil...

— Sua voz se arrastava enquanto ele enchia seu cachimbo.

Nós nos acomodamos e esperamos. Um sentimento de inquietação invadiu-me sem motivo aparente, a não ser, talvez, que eu tenha captado as vibrações emanadas do estado de profunda preocupação do professor.

— Não sei como expor o assunto — começou ele — porque tem relação não com fatores físicos, mas com a consciência humana invisível. Lutei toda a semana com certas idéias vagas que penetraram meu espírito; e não vejo outra forma de desfazer-me delas senão falando com você...

Levantou a vista, hesitante. — Preferi discutir com você essas idéias, quando Sigurd não estivesse presente, e como ele saiu esta noite para ver Os Simuladores, de Ibsen, seu drama favorito, aproveitei a oportunidade para pedir-lhe que viesse aqui.

— A que se referem essas idéias? — perguntou Markham.

— A nada, especificamente. Como disse, elas são muito vagas; porem, apesar disso, se têm tornado insistentes... Tão insistentes, na realidade — ajuntou ele — que acreditei oportuno mandar Belle para fora por algum tempo. É verdade que seu espírito estava torturado com o resultado de todas essas tragédias; mas meu verdadeiro motivo ao enviá-la para o Norte é que eu estava acossado por dúvidas intangíveis.

— Dúvidas? — Markham inclinou-se para diante. — Que espécie de dúvidas?

O professor Dillard não respondeu logo.

— Permita-me responder a esta pergunta fazendo-lhe uma outra — replicou enfim. — Está seu espírito completamente satisfeito com a situação criada pela morte de Pardee?

— Refere-se o senhor à autenticidade de seu suicídio?

— A isso e à sua presumida culpabilidade. Markham reclinou-se contemplativamente.

— E o senhor não está inteiramente satisfeito? — perguntou ele.

— Não posso responder a essa pergunta. — O professor Dillard falou quase rispidamente. — Você não tem direito de perguntar-me. Eu apenas desejava estar seguro de que as autoridades, tendo todos os dados nas mãos, estivessem convencidas de que esse assunto terrível era um livro fechado. — Uma expressão de ansiedade profunda dominou sua fisionomia. — Se eu soubesse que isso era um fato, teria forças para repelir os pressentimentos vagos que me perseguem dia e noite, há uma semana.

— E se lhe dissesse que não estou satisfeito?

O olhar do velho professor tornou-se distante e angustiado. Sua cabeça caiu levemente para frente, como se uma carga de pesares a fizesse inclinar-se subitamente. Ao cabo de uns instantes, levantou os ombros e respirou profundamente.

— A coisa mais difícil neste mundo — disse ele — é saber onde está o dever de alguém; pois o dever é um mecanismo do espírito, e o coração procura sempre destruir as suas resoluções. Eu talvez tenha feito mal em chamá-lo aqui; pois afinal, não tenho senão suspeitas nebulosas e idéias obscuras para prosseguir. Mas, existia a possibilidade de que minha intranqüilidade mental estivesse apoiada sobre uma base oculta e profunda cuja existência eu ignorava. Você me compreende? — Apesar das suas palavras evasivas, não havia dúvida relativamente ao aspecto perturbador da imagem sombria que se emboscava atrás de seu espírito.

Markham meneou a cabeça em sinal de aquiescência.

— Não há motivo nenhum para pôr em dúvida o laudo do médico legista — disse ele de um modo meio forçado. — Posso compreender como a proximidade dessas tragédias poderia ter criado uma atmosfera propícia a dúvidas. Mas acredito que o senhor não precisa ter mais apreensões.

— Sinceramente, espero que você esteja certo — murmurou o professor, porém era claro que ele não estava satisfeito. — Suponho, Markham... — começou a dizer, interrompendo-se em seguida. — Sim, espero que você esteja certo — repetiu ele.

Vance tinha-se sentado, fumando plàcidamente, durante essa discussão pouco satisfatória; mas estivera escutando com uma concentração especial, e depois falou:

— Diga-me, professor Dillard, se aconteceu algo, embora vago, que possa ter dado origem às suas dúvidas.

— Não... Nada. — A resposta não se fez esperar. — Estive simplesmente pensando... experimentando todas as possibilidades... Não ousei ser demasiado confiante, sem ter alguma certeza. A lógica pura é aceita em assuntos que não nos tocam pessoalmente. Mas, quando concerne à nossa própria segurança, a inteligência humana imperfeita exige evidência visual.

— Ah, sim! — Vance ergueu a vista, e acreditei ver uma chama de compreensão brilhar entre esses dois homens antagônicos.

Markham se levantou para despedir-se, porém o professor rogou-lhe que esperasse um momento mais.

— Sigurd estará de volta sem demora. Ele gostará de vê-lo aqui. Como lhe disse, foi ver Os Simuladores, mas estou certo de que voltará diretamente para casa... A propósito, Sr. Vance — continuou, voltando-se para este — Sigurd me disse que o senhor o acompanhou ao teatro, na semana passada, para ver Os Espectros; compartilha do entusiasmo dele por Ibsen?

Uma ligeira elevação de cenho de Vance me indicou que ele estava surpreendido com semelhante pergunta; porém, quando respondeu, não se notava o mais leve sinal de perplexidade em sua voz.

— Li muito Ibsen. E não posso negar o seu grande gênio criador, ainda que não se possa ver em sua obra a forma estética e a profundidade filosófica que caracterizam o Fausto de Goethe, por exemplo.

— Pelo que vejo, o senhor e Sigurd teriam uma base permanente de desacordo.

Markham declinou do convite para permanecer mais tempo e, minutos depois, caminhávamos pela West End Avenue, respirando o ar fresco de abril.

— Rogo-lhe que tome nota, meu caro Markham, — observou Vance com uma pancadinha de gracejo nas costas do companheiro, ao dobrar a Rua 72 em direção ao parque, — que há outros, além de seu humilde colaborador, que estão acossados por dúvidas acerca da realidade do suicídio de Pardee. E eu poderia acrescentar que o professor não está de acordo, de modo algum, com a sua certeza.

— Seu estado mental de suspeita é compreensível — opinou Markham. — Esses assassinatos afetaram-no muito de perto.

— Isso não é explicação. O velho tem medo. E ele sabe alguma coisa que não nos quer dizer.

— Eu não diria que me causou esta impressão.

— Oh, Markham... meu caro Markham! Não escutou atentamente a sua vacilante e relutante história? Parece que ele tentava transmitir-nos uma sugestão, sem necessidade de empregar palavras. Supunha que deveríamos adivinhar. Sim! Por isso, insistiu para que você o visitasse, enquanto Arnesson estava ausente, assistindo a um drama de Ibsen...

Vance parou de falar abruptamente. Em seus olhos se notou um ar sobressaltado.

— Ora, bolas! Foi por isso que ele perguntou se eu gostava de Ibsen!... Ora, bolas! Que imbecil eu fui! — Mirou fixamente Markham. Os músculos do rosto tornaram-se-lhe rígidos. — Por fim a verdade! — disse ele com serenidade impressionante. — E não foi você, nem eu, nem a polícia quem resolveu este caso. Foi um dramaturgo norueguês falecido há muitos anos. Em Ibsen está a chave do mistério.

Markham olhou-o como se ele tivesse enlouquecido de repente. Mas, antes que pudesse falar, Vance chamou um táxi.

— Vou-lhe mostrar o que quero dizer quando chegarmos a casa — disse ele, quando atravessávamos velozmente o Parque Central na direção leste. — É incrível, mas é verdade. E eu poderia ter adivinhado, há mais tempo; porém, a significação sugerida pela assinatura naquelas notas estava demasiado obscurecida devido a outras significações possíveis...

— Se em vez da primavera, estivéssemos em meados do verão, — comentou Markham, colèricamente, — diria que o calor havia afetado seu cérebro.

— Desde o princípio, percebi que havia três culpados possíveis — continuou Vance. — Cada um deles era psicologicamente capaz de cometer esses assassinatos, sempre que o excesso de suas emoções alterasse seu equilíbrio mental. Assim, não havia nada mais a fazer que esperar uma indicação que focalizasse a suspeita. Drukker era um dos três suspeitos, mas foi assassinado. Ficaram, então, dois. Em seguida Pardee, aparentemente, suicidou-se; e admitirei que sua morte tornou razoável a presunção de que era ele o culpado. Mas, uma grande dúvida corroia-me o espírito. A morte dele não foi conclusiva. Aquele castelo de cartas me preocupou. Estávamos num beco sem saída. Deste modo, esperei vigilante pela minha terceira possibilidade. Agora eu sei que Pardee é inocente e que não se suicidou. Foi assassinado, como o foram Robin, Sprigg e Drukker. Sua morte foi um brinquedo terrível, uma vítima atirada à face da polícia, com espírito diabólico. E, desde então, o assassino vem-se rindo da nossa ingenuidade.

— Por que raciocínio chega você a esta fantástica conclusão?

— Já não é questão de raciocínio. Afinal tenho a explicação dos crimes. E conheço a significação da assinatura "O Bispo" colocada ao pé das notas. Mostrar-lhe-ei, muito breve, uma prova incontroversa e espantosa.

Alguns minutos depois, chegamos ao seu apartamento e ele nos conduziu diretamente à biblioteca.

— A evidência esteve aqui, todo o tempo, ao alcance da minha mão.

Foi até à estante onde guardava seus dramas e retirou o volume segundo das obras de Henrique Ibsen. O livro continha Os Vikings em Helgeland e Os Simuladores. A primeira dessas obras não interessava a Vance. Procurando em Os Simuladores, encontrou a página onde estavam impressos os nomes dos personagens do drama e colocou o livro sobre a mesa diante de Markham.

— Leia os nomes dos personagens da obra de Ibsen, favorito de Arnesson — disse ele, assinalando os nomes.

Markham, silencioso e confundido, aproximou de si o volume e eu, por cima de seu ombro, li:

 

Hakon Hakonson, o rei eleito pelos birchlegs.

Inga de Varteig, sua mãe.

Conde Skule.

Lady Ragnild, sua mulher.

Sigrid, sua irmã.

Margrete, sua filha.

Guthorm Ingesson.

Sigurd Ribbung.

Nicholau Arnesson, bispo de Oslo.

Dagfinn o Camponês, marechal de Hakon.

Ivar Bodde, seu capelão.

Vegard Veradal, um dos seus guardas.

Gregorius Jonsson, um nobre.

Paul Flida, um nobre.

Ingeborg, esposa de Andres Skialdarband.

Peter, seu filho, um jovem sacerdote.

Sira Viliam, capelão do Bispo Nicolau.

Mestre Sigard de Brabant, médico.

Jatgeir Skald, um islandês.

Bard Bratte, chefe do distrito de Trondheim.

 

— Porém, duvido que qualquer um de nós fosse além da linha:

Nicolau Arnesson, bispo de Oslo.

Meus olhos se fixaram neste nome. Havia nele qualquer coisa de horrível e fascinante. Logo me lembrei de que o bispo Arnesson foi um dos vilãos mais diabólicos em toda a literatura. Um monstro cínico e burlão, que transformava todos os valores sãos da vida em bufonarias hediondas.


XXIV

 

O ÚLTIMO ATO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 9h)

 

Com esta revelação surpreendente, os misteriosos crimes do Bispo entraram em sua fase final e mais terrível. Heath tinha sido informado da descoberta de Vance; e ficou combinado que nos encontraríamos no gabinete do procurador do distrito, na manhã seguinte, muito cedo, para formarmos um conselho de guerra.

Quando, naquela noite, Markham se despediu de nós, estava mais preocupado e desapontado do que nunca.

— Não sei o que se poderá fazer — disse ele, desesperançado. — Não existe nenhuma prova legal contra o homem. Mas podemos traçar uma linha de ação que poderá ser vantajosa... Nunca fui adepto da tortura, mas quase desejaria que hoje tivéssemos em execução o torniquete e o ecúleo—.

Vance e eu chegamos ao gabinete pouco depois das nove do dia seguinte. Swacker nos interceptou à entrada e pediu-nos que aguardássemos na sala de espera um momento.

— Markham — explicou ele — estava ocupado naquele momento.

Nem bem tomáramos assento, quando apareceu Heath belicoso, sombrio e de cenho cerrado.

— Tenho que entregar o caso ao senhor — disse ele a Vance. — O senhor tem o fio da situação. Mas o que eu não posso compreender é que vantagem nos trará isto. Não podemos prender um sujeito, só porque o seu nome está num livro.

— Mas talvez possamos forçar o resultado, de uma forma ou outra — replicou Vance. — De qualquer modo, sabemos onde estamos.

Dez minutos depois, Swacker nos fez sinal indicando que Markham estava livre.

— Sinto tê-los feito esperar — desculpou-se o procurador do distrito. — Tive uma visita inesperada. — Sua voz tinha um timbre de desespero. — Mais preocupações; e, para maior coincidência, se relaciona com a própria zona do Riverside Park, onde Drukker foi morto. Entretanto, nada posso fazei...

Apanhou alguns papéis que estavam diante de si e disse:

— Agora, ao nosso assunto.

— Qual é o novo problema com o Riverside Park? — perguntou Vance como por acaso.

Markham franziu o sobrecenho.

— Nada que nos possa incomodar. Provavelmente, trata-se de um seqüestro. Os matutinos relatam-no ligeiramente. Se você tem interesse...

— Não gosto de ler jornais — disse Vance brandamente; porém, com uma insistência que me intrigou. — Que sucedeu?

Markham respirou fortemente com impaciência e respondeu:

— Uma menina desapareceu do playground, ontem, depois de haver falado com um desconhecido. Seu pai esteve aqui e solicitou a minha intervenção. Mas eu lhe respondi que esse assunto não me pertence, enviando-o ao Departamento de Pessoas Procuradas. Agora, se sua curiosidade está satisfeita...

— Oh, mas é que ela não está — persistiu Vance. — Narre-me os pormenores do caso. Aquela zona do parque me fascina particularmente.

Markham lançou-lhe um olhar inquiridor, através de seus olhos semicerrados.

— Muito bem — aquiesceu ele. — Uma menina de cinco anos de idade, chamada Madalena Mofatt, estava brincando com um grupo de meninas, mais ou menos às cinco e meia da tarde. Em certo momento, ela subiu a um monte de terra, junto ao muro de contenção e, pouco depois, quando a governanta foi à sua procura, pensando que ela havia descido para o outro lado, a criança não foi encontrada em parte alguma. O único indício existente é ter sido ela vista por duas ou três meninas falando com um homem, pouco antes de seu desaparecimento; mas, naturalmente, elas não puderam dar uma descrição desse homem. A polícia foi notificada e está procedendo às investigações necessárias. Isto é tudo o que existe até agora.

— Madalena — Vance repetiu o nome pensativamente.

— Diga-me, Markham, sabe você se esta menina conhecia Drukker?

— Sim! — respondeu Markham, erguendo-se em seu assento. — O pai da menina disseme que ela ia, freqüentemente, às festas que o corcunda dava em sua casa...

— Eu vi essa menina — respondeu Vance, levantando-se, ao mesmo tempo em que metia as mãos nos bolsos e baixava os olhos para o chão. — Uma criaturinha encantadora... de cachinhos dourados. Trouxe um ramalhete de flores para Drukker na manhã do enterro dele... E, agora, ela desaparece depois de ter sido vista com um estranho...

— Que tem você em mente? — perguntou Markham firmemente.

Vance pareceu não ter ouvido a pergunta.

— Por que o pai dela apelou para você?

— Conheço Mofatt, há alguns anos. Ele colaborou, uma vez, na administração da cidade. Está como louco... procura sua filhinha por toda a parte. O caso dos assassinatos do Bispo o deixou mòrbidamente apreensivo... Mas, olhe aqui,

Vance, não estamos aqui para discutir o desaparecimento da filha de Mofatt...

Vance levantou a cabeça. Havia em seu rosto uma expressão de sobressalto e horror.

— Não fale... Oh, não fale!... — Começou a passear na sala de um lado para outro, enquanto Markham e Heath observavam-no com assombro mudo. — Sim... é isto mesmo — murmurou para si mesmo. — A hora é exata... tudo se enquadra...

Deu meia-volta e, tomando Markham pelo braço, lhe disse:

— Vamos, depressa! É a nossa única oportunidade... Não podemos esperar um minuto mais. — Com um puxão, pôs Markham de pé, levando-o para a porta. — Receei isto durante toda a semana.

— Eu não me moverei daqui, Vance, se você não me explicar.

— É outro ato mais!... O último ato! Oh, acredite-me! — Nos olhos de Vance brilhava uma expressão como antes ainda não tinha visto. — Agora ela é a "Little Miss Muffet" (1). O nome não é o mesmo, mas não importa, é quase idêntico para a brincadeira do Bispo; ele explicará tudo aos jornais. Provavelmente, chamou a menina por meio de sinais, para que se sentasse na relva, sentando-se também ele junto dela. E então a criaturinha se foi...

(1) Nome de outra personagem do folclore infantil anglo-americano (N. do T.).

 

Markham deu uns passos para diante um tanto perturbado, e Heath, com os olhos salientes, deu um pulo em direção à porta. Muitas vezes tenho pensado no que poderia ter atravessado seus cérebros, naquele momento em que Vance apresentava seus argumentos. Teriam crido na interpretação do episódio ou simplesmente tiveram medo de não investigar, diante da remota possibilidade de outra hedionda brincadeira do Bispo? Fossem quais fossem suas convicções ou dúvidas, aceitaram a situação tal como Vance a delineou. Um momento mais tarde, estávamos atravessando o vestíbulo apressadamente para tomarmos o elevador. Por sugestão de Vance, levamos o detetive Tracy, da seção de detetives, sediada no Edifício das Cortes Criminais.

— Este assunto é sério — explicou. — Pode suceder alguma coisa.

Saímos pela porta que dá para a Rua Franklin, e alguns ·' minutos depois atravessamos o centro da cidade no carro do procurador do distrito, violando a lei da velocidade e não atendendo aos sinais do tráfego.

Pouco se falou durante aquela viagem transcendental; porém, quando tomamos a estrada tortuosa do Parque Central, Vance disse:

— Pode ser que nos enganemos, mas é preciso arriscar.

Se esperarmos que os jornais recebam alguma nota, pode ser demasiado tarde. Não se suspeita de que nós sabemos, e esta é nossa única vantagem.

— Que espera você encontrar? — O tom de voz de Markham era um tanto incerto.

Vance sacudiu a cabeça, desalentadamente.

— Oh, não sei, porém será algo diabólico.

Quando o carro parou em frente à casa de Dillard, Vance apeou e subiu correndo as escadas, tomando a nossa dianteira. Pyne atendeu ao seu insistente toque de campainha.

— Onde está o Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Na Universidade, senhor — respondeu o velho mordomo. Em seus olhos pareceu-me notar uma expressão de medo. — Mas voltará para casa cedo para almoçar.

— Então, leve-nos já à presença do professor Dillard.

— Sinto muito, senhor — disse Pyne. — O professor também não está, foi à Biblioteca Pública...

— Você está só?

— Sim, senhor; Beedle foi ao mercado.

— Tanto melhor. — Vance ordenou ao mordomo que subisse as escadas e lhe disse: — Vamos dar uma busca na casa, Pyne. E você será nosso guia.

Markham adiantou-se.

— Mas, não podemos fazer isto, Vance! Vance voltou-se.

— Não me interessa o que se pode ou o que não se pode fazer. Vou vasculhar esta casa... Sargento, você está comigo? — Em seu rosto brilhava uma estranha expressão.

— Como sempre! (nunca estimei tanto Heath como naquele instante).

A devassa começou na sala do clube. Todos os vestíbulos, armários e outros móveis, todos os recantos, enfim, foram inspecionados.

Pyne, completamente intimidado pela belicosidade que dominava Heath, funcionou como guia. Trouxe chaves e abriu portas para nós e ainda lembrou lugares que, de outro modo, teriam passado despercebidos. O sargento agiu com extrema energia, embora eu soubesse que ele apenas tinha uma vaga idéia do objeto dessa devassa.

Markham nos acompanhou, se bem que desaprovasse aquela iniciativa; porém, ele também havia sido arrastado pela atitude dinâmica de Vance, devendo, certamente, ter pensado que este possuía uma justificativa realmente séria para a sua conduta temerária.

Gradualmente, fomos atingindo o pavimento superior. A biblioteca e o quarto de Arnesson foram examinados minuciosamente, bem como o quarto de Belle. Cuidadosamente, devassamos os quartos sem esquecer as peças desocupadas do terceiro andar e as dependências dos criados. Nada de suspeito foi descoberto, entretanto.

Ainda que Vance reprimisse sua ansiedade, eu podia dizer que ele agia debaixo de uma tensão nervosa extrema, pela pressa com que levou a cabo sua investigação.

Por fim, chegamos a uma porta fechada a chave, situada na parte posterior do vestíbulo de cima.

— Para onde dá essa porta? — perguntou Vance.

— Para um pequeno quarto no sótão que nunca usam, senhor...

— Abra-a.

O homem procurou a chave no molho que levava consigo.

— Não encontro a chave, senhor; devia estar aqui...

— Quando a teve pela última vez?

— Não poderia dizer, senhor. Que eu saiba, faz muito anos que ninguém entra nesse quarto.

Vance recuou um passo e abaixou-se.

Fique aí ao lado, Pyne.

Vance lançou-se de encontro à porta com uma força terrível. Ouviu-se um estrondo e um arrebentar de madeira, porém a fechadura se manteve incólume.

Markham avançou para ele e segurou-o pelos ombros.

— Você está louco! — exclamou. — Está violando a lei!

— A lei! — A resposta de Vance encerrava severa ironia. — Estamos tratando com um monstro que burla a lei. Você pode defendê-lo, se quiser; mas eu vou examinar este sótão ainda que tenha de passar o resto de minha vida num cárcere. Sargento, abra esta porta!

Outra vez, experimentei um sentimento de simpatia por Heath. Sem hesitar um momento, pôs-se na ponta dos pés e lançou seus ombros contra a porta, exatamente acima da fechadura, quebrando a madeira e fazendo saltar o ferrolho através da moldura. A porta girou para o lado de dentro.

Vance desfez-se do braço de Markham, e correu escadas acima, seguido por nós. Não havia luz no sótão e nos detivemos um momento em cima da escada, para nos habituarmos à escuridão. Vance acendeu um fósforo e, caminhando às apalpadelas para diante, ergueu uma cortina com ruído. A luz do sol penetrou no aposento, deixando-nos ver um pequeno quarto, de apenas três metros quadrados, cheio de trastes.

O ar era pesado e sufocante. As paredes, o assoalho e todos os objetos estavam cobertos de uma grossa camada de pó.

Vance esquadrinhou rapidamente o quarto e uma espécie de desânimo se lhe estampou no rosto.

— Este é o último lugar que nos resta — sublinhou com a lentidão do desalento.

Depois de um minucioso exame do quarto, dirigiu-se ao canto perto de uma pequena janela e encontrou uma maleta estragada junto a ela. Notei que não tinha fechadura e que suas correias estavam livres. Inclinando-se para diante, abriu-lhe a tampa.

— Oh, enfim há aqui alguma coisa para você, Markham! Rodeamos Vance e vimos na maleta uma velha máquina de escrever, marca Corona. No cilindro, havia uma folha de papel em que estava escrito num tom azul-pálido, o seguinte:

 

"A pequena Misse Muffet

Estava sentada na relva."

 

Neste ponto, o datilografo havia sido interrompido ou talvez qualquer outro motivo o impedira de continuar a rima infantil.

— É a nova nota do Bispo para os jornais — observou Vance. Em seguida, procurando na maleta, achou uma pilha de papel em branco e de envelopes. No fundo, havia um caderno de couro roxo com folhas delgadas e amarelas. Entregou-o a Markham, com a observação concisa:

— Os cálculos de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas, apesar de tudo, havia ainda em seus olhos um ar de derrota, e outra vez começou ele a inspecionar o quarto. Daí a pouco, dirigiu-se a um toucador que se achava encostado à parede oposta à janelinha. Ao inclinar-se para ver atrás do toucador, retrocedeu subitamente e, levantando a cabeça, fungou várias vezes. Ao mesmo tempo, viu algo no chão, a seus pés, e com um pontapé atirou o objeto para o centro do quarto. Olhamos com assombro. Era uma máscara contra gases, como as que usam os químicos.

— Para trás! — ordenou ele e, levando uma mão ao nariz e à boca, afastou da parede, com a outra, o toucador. Exatamente atrás havia a porta de um cubículo, de quase um metro de altura, incrustada na parede. Abriu-a com um puxão violento e olhou para dentro, fechando-a bruscamente em seguida. E não obstante o curto espaço de tempo em que esteve aberta a porta, pude ver o que havia dentro: duas estantes, a inferior com livros abertos e a superior com um frasco de Erlenmeyer preso a um suporte de ferro, uma lâmpada de álcool, um tubo condensador, um copo grande de vidro para análises e duas garrafinhas.

Vance voltou-se e nos dirigiu um olhar de desespero.

— Podemos ir. Aqui não há nada mais. Regressamos à sala, deixando Tracy montando guarda à porta do sótão.

— Talvez, apesar de tudo, você encontre justificativa para a sua devassa na casa — disse Markham, dirigindo a Vance um olhar sério. — Mas, sou contrário a esses métodos. Se não tivéssemos encontrado a máquina de escrever...

— Oh, bah! — Vance, preocupado e agitado, foi até a janela que dá para o campo de exercícios. — Eu não procurava a máquina de escrever, nem o caderno. Para quê? — A cabeça caiu-lhe sobre o peito e seus olhos se fecharam numa espécie de torpor da derrota. — Tudo saiu mal... fracassou minha lógica. Chegamos demasiado tarde.

— Não estou querendo saber o que tanto o contraria — disse Markham. — Mas, você me forneceu uma prova de importância. Agora, poderei prender Arnesson quando ele voltar da Universidade.

— Sim, sim, por certo. Mas eu não estava pensando em Arnesson, nem na prisão do culpado, ou no triunfo do gabinete do procurador do distrito. Eu esperava...

Aqui Vance parou e se empertigou.

— Não chegamos tarde! Não havia pensado... — Correu veloz em direção à porta. — O que devemos devassar é a casa de Drukker... Depressa!

Já estava na metade do caminho para o vestíbulo, Heath atrás dele, e Markham e eu fechando o cortejo.

Descemos pela escada dos fundos, atravessamos a sala do clube e saímos. Não sabíamos, e duvido que algum de nós pudesse adivinhar o que havia no espírito de Vance; porém, algo de sua excitação interior nos tinha influenciado e pensamos que só uma grande urgência o teria posto completamente fora de sua atitude habitual de alheamento e calma.

Quando chegamos à porta de arame trançado da casa de Drukker, ele passou a mão pela trama rota e abriu o trinco. Para assombro meu, a porta da cozinha estava sem chave. Vance parecia contar com isto, pois sem hesitação fez girar a maçaneta e abriu a porta. i

— Esperem! — disse ele, detendo-se no pequeno pórtico dos fundos. — Não há necessidade de examinar toda a casa. O lugar mais provável é... Sim! Vamos... Acima... em algum lugar no centro da casa... no armário provavelmente... onde ninguém pudesse ouvir...

Ao mesmo tempo em que falava, subia a escada e indicava-nos o caminho, passou pela porta do quarto da Sra. Drukker e pelo gabinete do filho, indo até o terceiro pavimento. Aqui não havia mais do que duas portas, uma na extremidade final e outra, menor, na metade do caminho, ao lado direito. Vance dirigiu-se imediatamente para esta última. A chave estava na fechadura, e ele, fazendo-a girar, abriu a porta.

Uma obscuridade completa reinava ali. Em um segundo, Vance se achava ajoelhado, tateando nas coisas.

— Rápido, sargento, sua lanterna.

Quase antes de pronunciar estas palavras, um círculo luminoso irrompeu no chão do quartinho. O que vi me fez estremecer de horror. Uma exclamação abafada partiu da boca de Markham. Um leve sibilo me disse que também Heath estava aterrado pelo que vira. Diante de nós, no chão, jazia a criaturinha que levara flores ao seu malogrado Humpty Dumpty, na manhã do enterro deste. Seus cabelos dourados estavam desgrenhados, o rosto pálido como a morte, e em suas pálpebras havia sinais enxutos de lágrimas inúteis. Vance inclinou-se e auscultou o coração da menininha. Em seguida, ergueu-a nos braços, com ternura.

— Pobre pequena Muffet — murmurou e, levantando-se, foi até à escada da frente. Heath o precedeu, alumiando o caminho para que ele não tropeçasse. No vestíbulo principal inferior se deteve.

— Abra a porta, sargento.

Heath obedeceu com presteza e Vance saiu pelo jardim.

— Va para a casa de Dillard e espere-me lá — disse por cima do ombro.

E, com a criança apertada contra o peito, atravessou diagonalmente a Rua 76, em direção a uma casa em que pôde distinguir uma chapa de bronze com o nome de um médico.


XXV

 

CAI O PANO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 11h)

 

Vinte minutos depois, Vance juntou-se a nós na sala de visitas da casa de Dillard.

— Está fora de perigo — anunciou, mergulhando numa poltrona e acendendo um cigarro. — Estava apenas desacordada. Havia desmaiado de susto. Achava-se meio asfixiada. Seus bracinhos apresentam equimoses, como se tivesse lutado para libertar-se do monstro, ao ver que na casa não se encontrava Humpty Dumpty. Em seguida, a besta humana encerrou-a à chave no quartinho. Não teve tempo de matá-la, sabe? Ademais, no livro não constava que devia matá-la. "A pequena Miss Muffet" não foi assassinada... mas simplesmente aterrorizada. Entretanto, ela teria morrido por falta de ar. E ele ficaria a salvo, pois ninguém poderia ouvir os gritos dela...

Os olhos de Markham pousaram afetuosamente em Vance.

— Sinto muitíssimo ter procurado retê-lo — disse singelamente. (Pois, apesar de seus instintos convencionalmente legais, havia em sua natureza uma grandeza fundamental.) — Você teve razão em violar os regulamentos, Vance... E você também, sargento, pois devemos muitíssimo à sua determinação e à sua fé.

Heath estava embaraçado.

— Não é nada, senhor. Como vê, o Sr. Vance me encheu a cabeça a respeito da menina. E como eu gosto muito de crianças...

Markham dirigiu a Vance um olhar inquiridor.

— Esperava você encontrar com vida a menina?

— Sim; porém narcotizada ou aturdida por um golpe qualquer. Nunca a acreditei morta, pois isto teria contrariado o humor do Bispo.

Heath devia estar parafusando algum ponto incômodo.

— O que não pode entrar em minha cabeça — disse — é por que o Bispo, sempre tão cuidadoso, deixou aberta a porta da casa de Drukker, e não a fechou à chave.

— Esperava que encontrássemos a criaturinha — respondeu Vance. — Tudo foi preparado para nós. O Bispo foi muito delicado, não? Porém não acreditava que a encontrássemos, antes de amanhã... depois que os jornais recebessem as notas sobre a "Pequena Miss Muffet", e que constituiriam nossa pista. Os acontecimentos quiseram que nós nos adiantássemos a esse cavalheiro.

— E por que não foram enviadas as notas, ontem?

— Evidentemente, esta foi a primeira intenção do Bispo; mas, imagino que achou melhor que o desaparecimento da menina atraísse antes a atenção pública. De outro modo, a relação entre Madalena Moffat e a "Pequena Miss Muffet" poderia ser obscura.

— Sim! — grunhiu Heath entredentes. — E, amanhã, a menina estaria morta. Então, não teria receio de que ela o identificasse.

Markham consultou o relógio e levantou-se com decisão.

— Não vale a pena esperar Arnesson. Quanto mais cedo o prendermos, tanto melhor.

Estava para dar uma ordem a Heath, quando Vance o interrompeu.

— Não nos apressemos, Markham. Não temos nenhuma prova positiva contra o homem. É uma situação muito delicada, esta. Devemos ir cuidadosamente, senão fracassaremos.

— No meu entender, o achado da máquina e do caderno não é concludente — manifestou Markham a Vance. — Mas a identificação pela menina...

— Oh, meu caro amigo! Que fé poderia dar um júri a uma identificação feita por uma menina de cinco anos, amedrontada, sem uma poderosa evidência esclarecedora? Um advogado inteligente anularia tal prova em cinco minutos. E ainda concordando que você pudesse fazer valer a identificação, de que lhe serviria? Não relacionaria de nenhum modo -Arnesson com os assassinatos do Bispo. Você só poderia processá-lo por crime de tentativa de seqüestro... Lembre-se de que a menina não está ferida. E se você, por um milagre legal, obtivesse uma prova de culpabilidade duvidosa, tudo o que Arnesson receberia não passaria de alguns anos de prisão. E isto não acabaria com o terror... Não nos devemos precipitar.

Markham voltou a sentar-se de mau humor. Compreendeu a força da argumentação de Vance.

— Mas, não podemos deixar que isto continue — declarou ferozmente. — Devemos parar este maníaco, de uma forma ou de outra.

— Sim, é verdade... — Vance começou a passear nervosamente pela sala. — Nós podemos fazê-lo contar a verdade, por meio de subterfúgios. Ele ainda não sabe que já encontramos a menina... É possível que o professor Dillard nos queira ajudar... — Interrompeu seu passeio e ficou olhando o chão. — Sim! É nossa única oportunidade. Devemos enfrentar Arnesson com o que sabemos, na presença do professor. A situação forçará com segurança um resultado de qualquer espécie. O professor fará tudo, agora, para ajudar a condenar Arnesson.

— Acredita você que ele saiba mais do que já nos disse?

— Sem dúvida. Eu disse isso a você desde o princípio. E, quando ouvir o episódio da "Pequena Miss Muffet" é bem provável que nos forneça a prova de que necessitamos.

— É uma probabilidade muito remota. — Markham era pessimista. — Mas, não há prejuízo em experimentar. De todo modo, prenderei Arnesson antes de eu sair daqui, e espero que suceda o melhor.

Minutos depois, abriu-se a porta principal, aparecendo no vestíbulo oposto o professor Dillard. Este apenas retribuiu o cumprimento de Markham. Examinou nossas expressões como para descobrir o sentido da nossa visita inesperada.

— Vocês pensaram talvez no que eu lhes disse, ontem à noite, não é verdade?

— Não só pensamos — disse Markham — como também o Sr. Vance encontrou o que tanto preocupa o senhor. Depois que saímos daqui, ele nos mostrou um exemplar de Os Simuladores.

— Ah! — A exclamação era como que um suspiro de alívio.' — Durante muitos dias, este drama esteve envenenando meus pensamentos... — Ergueu com temor a vista. — Que significa isto?

Vance respondeu à pergunta.

— Significa que o senhor nos conduziu à verdade. Agora, estamos esperando o Sr. Arnesson. E penso que, enquanto esperamos, seria bom que falássemos com o senhor, pois é possível que possa ajudar-nos...

O professor hesitou.

— Eu havia esperado que não me fizessem de instrumento de acusação contra o rapaz. — Sua voz tinha um tom trágico e paternal. Porém, logo em seguida seus traços enrijeceram-se. Uma chama de vingança brilhou em seus olhos. Sua mão apertou o castão da bengala. — Entretanto, não posso, agora, considerar meus sentimentos. Vamos. Farei o que puder.

Ao chegar à biblioteca deteve-se junto ao bar e serviu-se de um cálice de vinho do Porto. Depois de beber, voltou-se para Markham com um olhar de desculpa.

— Desculpe-me. Eu não estou em mim. — Aproximou-se da mesa de xadrez e dispôs cálices para nós. — Peço que esqueçam minha descortesia. — Encheu os cálices e sentou-se.

Creio que todos nós sentíamos necessidade de beber, depois dos horripilantes sucessos que acabávamos de presenciar.

Quando estávamos acomodados, o professor ergueu a vista penosamente para Vance, que se sentara diante dele.

— Diga-me tudo — disse. — Não me oculte nada. Vance tirou a cigarreira.

— Primeiro permita-me que lhe faça uma pergunta: onde esteve Arnesson, ontem à tarde, entre cinco e seis horas?

— Eu... não sei. — Havia em suas palavras certa relutância. — Tomou chá aqui, na biblioteca; mas saiu mais ou menos às quatro e meia e só voltou para jantar.

Vance encarou-o com simpatia, durante um momento, dizendo em seguida:

— Encontramos a máquina em que o Bispo escreveu suas notas. Estava dentro de uma velha maleta escondida no sótão desta casa.

O professor não deu sinal de sobressalto.

— Pôde o senhor identificá-la?

— Sem dúvida alguma. Ontem desapareceu do parque uma menininha chamada Madalena Moffat. No cilindro da máquina de escrever, havia uma folha de papel onde estava escrito:

"A pequena Miss Muffet Estava sentada na relva." A cabeça do professor Dillard caiu pesadamente para a frente.

— Outra atrocidade louca! Se eu não tivesse esperado até ontem à noite para avisá-los!

— Não houve grande prejuízo nisso — apressou-se a informar-lhe Vance. — Encontramos a menina a tempo. Agora, já está fora de perigo.

— Ah!

— Foi encontrada encerrada no quartinho do hall do andar superior da casa de Drukker. Nós pensávamos que ela devia estar aqui em alguma parte... e, por isso, devassamos o sótão de sua casa.

Após um breve silêncio, o professor perguntou:

— Que tem mais o senhor a dizer?

— O caderno de Drukker com anotações recentes sobre a teoria dos quanta, que havia sido roubado do quarto dele na noite de sua morte, apareceu também na maleta junto com a máquina de escrever.

— Ele desceu também a isso! — Não era uma pergunta; era mais uma exclamação de incredulidade. — Está você seguro de suas conclusões? Talvez se eu não tivesse fornecido nenhuma indicação ontem à noite... não teria semeado a semente da suspeita...

— Não pode haver dúvida — declarou Vance tranqüilamente. — O senhor Markham pensa deter Arnesson, quando ele voltar da Universidade. Mas para ser-lhe franco, senhor, não temos prova legal alguma. E o próprio Markham pergunta se a lei pode detê-lo ou não. O mais que podemos conseguir é uma prova de culpabilidade por tentativa de seqüestro, por meio da identificação que a menina realize.

— Ah, sim... A menina pode reconhecê-lo. — Nos olhos do ancião surgiu uma expressão de amargura. — Entretanto, deveria haver outros meios de obter justiça para os outros crimes.

Vance sentou-se, fumando pensativamente, com os olhos postos na parede oposta. Ao cabo de um instante, falou com tranqüila gravidade:

— Se Arnesson estivesse convencido de que as provas contra ele eram fortes, seria capaz de escolher o suicídio como meio de eliminação. Era, talvez, a solução mais humana para todos.

Markham ia protestar indignado, porém Vance adiantou-se a ele:

— O suicídio não é um ato indefensável por si. A Bíblia contém muitos relatos de suicídios heróicos. Que exemplo mais belo de valor que o de Rhazis, quando se arrojou da torre para fugir ao jugo de Demétrio? (1) Também existiu valentia na morte do porta-espadas de Saul e, com toda a certeza, nos suicídios de Sansão e de Judas Iscariotes também se pode encontrar alguma virtude.

(1) Admito que o nome de Rhazis não me era familiar. E quando examinei mais tarde o assunto, verifiquei que o episódio a que Vance se referia se encontra no livro segundo (apócrifo) dos Macabeus.

 

A História está cheia de suicídios notáveis... os de Bruto e Catão de Útica, de Aníbal, Lucrécia, Cleópatra, Sêneca... Nero se matou antes de cair nas mãos de Oto e dos guardas pretorianos. Na Grécia, temos a famosa auto-eliminação de Demóstenes; Empédocles arrojou-se na cratera do Etna. Aristóteles foi o primeiro grande pensador a emitir a opinião de que o suicídio é um ato anti-social, mas segundo a tradição ele se envenenou depois da morte de Alexandre. E nos tempos modernos, não esqueçamos o gesto sublime do Barão de Nogi...

— Tudo isso não justifica o ato — replicou Markham. — A lei...

— Ah, sim... a lei. Na China, todos os criminosos condenados à morte podem optar pelo suicídio. O código adotado pela Assembléia Nacional Francesa, no fim do século XVIII, aboliu todo castigo pelo suicídio; e no Sachsenspiegel, a base principal da lei alemã, está claramente esclarecido que o suicídio não é um ato punível. Além disso, entre os donatistas, circunceliões e patrícios, o suicídio era considerado um ato agradável aos deuses. Além disso, na Utopia de More havia um sínodo que decidia do direito do cidadão de abandonar a vida... A lei, Markham, é para proteger a sociedade. E que dizer de um suicídio que torne possível essa proteção? Devemos invocar um tecnicismo legal quando, fazendo assim, deixamos a sociedade desprotegida para que o perigo continue? Não há lei mais alta que as leis escritas nos livros?

Markham sentia-se profundamente perturbado. Levantando-se, começou a passear de um lado para outro, na sala, e seu semblante mostrava ansiedade. Quando voltou a sentar-se, fixou Vance durante largo tempo, enquanto tamborilava com os dedos sobre a mesa, com indecisão nervosa.

— O inocente, naturalmente deve ser considerado — disse com voz cheia de desalento. — Apesar do erro do suicídio, sob o ponto de vista moral, concordo com sua idéia de que, às vezes, ele pode ser justificado teoricamente.

(Conhecendo Markham como eu conhecia, avaliei como lhe devia ter custado essa concessão e calculei, por outro lado, quão totalmente desesperançado se sentiu diante do flagelo que era de seu dever exterminar.)

O velho professor meneou a cabeça, compreensivamente.

— Sim; há alguns segredos tão hediondos que é melhor que o mundo não os conheça. Uma justiça mais alta pode, às vezes, ser lograda, sem que a lei intervenha.

No momento em que falava, abriu-se a porta e Arnesson entrou na biblioteca.

— Bem, bem, outra conferência, hem? — Dirigiu-nos um olhar de troça e deixou-se cair numa cadeira ao lado do professor. — Acreditei que o assunto já tinha sido adjudicado, por assim dizer. Não pôs fim a tudo o suicídio de Pardee?

Vance olhou fixamente nos seus olhos.

— Encontramos a "Pequena Miss Muffet", Sr. Arnesson. Este ergueu as sobrancelhas com uma expressão ao mesmo

tempo jocosa e sardônica.

— Parece uma charada.

— Encontramo-la na casa de Drukker, encerrada num quartinho — disse, ampliando sua explicação com voz baixa e monótona. Arnesson ficou sério e franziu as sobrancelhas involuntariamente. Mas, este enfraquecimento de sua pose foi apenas passageiro. Lentamente sua boca esboçou um sorriso afetado.

— Os senhores, os policiais, são tão eficientes! Imaginam encontrar Miss Muffet tão cedo. É notabilíssimo. — Ele meneou ligeiramente a cabeça num gesto de admiração zombeteira. — Entretanto, tarde ou cedo, era de esperar. E qual, se me é permitida a pergunta, será o próximo passo?

— Também encontramos a máquina de escrever — prosseguiu Vance, não dando atenção à pergunta. — E o caderno de Drukker que havia sido roubado.

Arnesson se pôs imediatamente em guarda.

— Deveras? — dirigiu a Vance um olhar prudente. — Onde estavam esses objetos?

— Em cima, no sótão.

— Olá! Violação de domicílio?

— Mais ou menos isso.

— Por outro lado, — disse Arnesson com mofa, — não posso acreditar que o senhor tenha prova suficiente contra alguém. Uma máquina de escrever não é um terno que assenta bem apenas numa determinada pessoa. E quem pode dizer como pôde chegar ao nosso sótão o caderno de Drukker? Tem de proceder melhor, senhor Vance.

— Por certo, existe o fator da oportunidade. O Bispo é uma pessoa que pôde ter estado disponível no momento de cada assassinato.

— Esta é a prova concorrente mais inconsistente que pode haver — replicou o homem. — Não seria de grande valor como prova de culpabilidade.

— Poderíamos mostrar por que o assassino preferiu o nome de Bispo.

— Ah! Isto, sim, poderia ser útil. — Uma nuvem cobriu o rosto de Arnesson e seus olhos tornaram-se evocativos. — Eu também havia pensado nisso.

— Oh, deveras? — Vance observava-o de perto. — E há outra prova que não mencionei. A Pequena Miss Muffet poderia identificar o homem que a conduziu à casa de Drukker, encerrando-a num quartinho.

— Deveras? Melhorou a enferma?

— Sim. Na verdade, está quase boa. Encontramo-la vinte e quatro horas antes da hora que o Bispo desejava que a encontrássemos.

Arnesson ficou silencioso. Olhava suas próprias mãos que, embora fechadas, se moviam nervosamente. Por fim, falou:

— E se, apesar de tudo, o senhor estivesse equivocado...

— Asseguro-lhe, Sr. Arnesson — disse Vance tranqüilamente — que eu sei quem é o culpado.

— Positivamente o senhor me alarma! — Arnesson tinha recuperado o domínio sobre si mesmo e replicou com mordaz ironia. — Se, por acaso, fosse eu o Bispo, estaria inclinado a admitir a derrota... Entretanto, é evidente que foi o Bispo que levou a peça de xadrez à casa da Sra. Drukker e eu não voltei para casa com Belle, senão às doze e meia.

— Assim disse você a ela. Se bem me recordo, você mesmo foi que consultou seu relógio para dizer-lhe a hora. Bem, que horas eram?

— Doze e meia.

Vance suspirou e deitou a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Diga-me Sr. Arnesson, é o senhor um bom químico?

— Sou um dos melhores — sorriu ele. — Diplomei-me em Química. Que tem isso?

— Quando, esta manhã, estive examinando o sótão, descobri um cubículo em que alguém estivera extraindo ácido cianídrico do ferrocianureto de potássio. Havia uma máscara contra gases, como as que usam os químicos em seus laboratórios e todos os atavios pertinentes. Um cheiro de amêndoas amargas dominava o ambiente.

— Nosso sótão é um tesouro descoberto. Uma espécie de retiro de Loki, diria eu.

— Era isso mesmo — replicou Vance gravemente — o antro de um espírito mau.

— Ou o laboratório de um moderno Dr. Fausto... Mas, para que o cianureto?

— Eu diria que por precaução. Em caso de apuro, o Bispo poderia partir desta vida, sem sofrimento algum. Tudo preparado, sabe?

Arnesson meneou a cabeça.

— Atitude corretíssima da parte dele. Na realidade, é muita decência dele, creia-me. Sim, é uma atitude muito correta.

Durante este diálogo sinistro, o professor Dillard havia permanecido sentado, apertando os olhos com a mão como se sentisse uma grande dor. Voltou-se então para o homem que havia protegido durante tantos anos, como um filho:

— Muitos grandes homens, Sigurd, justificaram o suicídio... — começou a dizer, porém Arnesson interrompeu-o logo com uma risota cínica.

— Bah! O suicídio não precisa de justificação. Nietzsche pôs nestes termos o espantalho da morte voluntária: "Um homem deve morrer orgulhosamente quando não lhe é mais possível viver com orgulho. A morte que sobrevém em circunstâncias desprezíveis, a morte que não é livre, a morte que ocorre quando não deve ocorrer, é a morte de um covarde. Não temos o poder de evitar nosso nascimento; porém, este erro — pois às vezes é um erro — pode ser retificado se o desejarmos. O homem que se elimina realiza o mais respeitável dos atos. Quase merece viver por tê-lo praticado". Em minha juventude decorei esta passagem no Gotzen-Dämmerung. Nunca a esqueci. Uma doutrina sã, por certo.

— Nietzsche teve muitos predecessores famosos que também defenderam o suicídio — acrescentou Vance. — Zenon, o estóico, nos legou um ditirambo apaixonado elogiando a morte voluntária. E Tácito, Epicteto, Marco Aurélio, Catão, Kant, Fichte, Diderot, Voltaire e Rousseau, todos eles fizeram a apologia do suicídio. Schopenhauer protestou amargamente por ser o suicídio considerado crime na Inglaterra... E, no entanto, penso se é um assunto que deva ser formulado. De qualquer modo, sinto que é uma questão muito pessoal para uma discussão acadêmica.

O professor concordou tristemente.

— Ninguém pode saber o que sucede no coração do homem, em sua última hora negra.

Durante esta discussão, Markham se impacientava cada vez mais e seus nervos estavam por estalar. Heath, embora a princípio firme e vigilante, agora começava a derrear. Eu não podia constatar se Vance tinha feito algum progresso. E cheguei à conclusão de que havia fracassado redondamente no seu propósito de armar um laço a Arnesson. Entretanto, ele não parecia de modo algum perturbado. Mais ainda, minha impressão era de que estava satisfeito com o rumo tomado pelas coisas. Mas, isto eu não notei, a despeito de toda a sua calma, estava intensamente alerta. Seus pés mantinham-se encolhidos e suspensos. E todos os músculos de seu corpo retesados.

Comecei a pensar onde pararia aquela terrível conferência.

O final chegou rapidamente. Um breve silêncio seguiu-se ao comentário do professor. Em seguida, Arnesson dirigiu-se a Vance:

— O senhor disse que sabe quem é o Bispo. Se é assim, a que vem todo esse palavrório?

— Não havia muita pressa. — Vance disse isto quase displicentemente. — E tinha esperança de obter todos os dados. Os jurados são muito exigentes, sabe?... Além disso, este vinho do Porto está excelente...

— O vinho do Porto?... Ah, sim. — Arnesson olhou os nossos cálices, e em seguida dirigiu um olhar aborrecido para o professor. — Desde quando sou abstêmio, senhor?

O professor Dillard sobressaltou-se, titubeou e levantou-se.

— Desculpe-me, Sigurd. Não me lembrava... como você nunca bebe pela manhã.

Foi até ao licoreiro e, enchendo outro cálice, colocou-o com a mão insegura diante de Arnesson. Depois tornou a encher os outros cálices.

Mal se tinha sentado, Vance soltou uma exclamação de surpresa. Tinha-se levantado e estava inclinado para diante, com as mãos apoiadas no bordo da mesa, e os olhos, cheios de assombro, fixos no painel do outro extremo da sala.

— Demônio! Nunca o tinha notado... Extraordinário! Tão inesperado e surpreendente havia sido esse gesto e tão tensa estava a atmosfera, que, involuntariamente, nos voltamos e dirigimos a vista na direção do seu olhar fascinado.

— Um quadro de Cellini! — exclamou ele. — A Ninfa de Fontainebleau! Berenson disseme que foi destruído no século XXVII. Vi uma reprodução no Louvre...

A indignação de Markham congestionou-lhe as faces. Em relação a mim, direi que, apesar de estar familiarizado com as idiossincrasias de Vance e com a sua paixão intelectual pelas coisas antigas, nunca o tinha visto exibir tão indefensável mau gosto. Parecia incrível que se distraísse com um objeto de arte, em um momento tão trágico.

O professor Dillard olhou para ele com o cenho cerrado e cheio de consternação.

— Escolheu um momento estranho, senhor, para demonstrar o seu entusiasmo pela arte — foi o comentário que fez o professor.

Vance parecia abatido e mortificado. Mergulhou em sua poltrona, evitando os nossos olhares, e começou a mover o cálice entre os dedos.

— O senhor tem razão — murmurou ele. — Devo pedir-lhe desculpas.

— A tela, incidentemente — acrescentou o professor, como para mitigar a severidade da sua censura — é simplesmente uma cópia da que existe no Louvre.

Vance, como se desejasse ocultar a sua confusão, levou o cálice aos lábios. Foi um momento altamente desagradável. Nossos nervos estavam quase estalando e, automaticamente, imitando o seu gesto, erguemos também os nossos cálices.

Vance lançou um rápido olhar através da mesa e, levantando-se, caminhou até à janela, onde permaneceu encostado. Tão inesperada foi sua marcha apressada que eu me voltei e observei-o pensativamente. Quase ao mesmo tempo, a mesa foi empurrada para o meu lado e, simultaneamente, ouviu-se um barulho de copos que se quebravam.

Pus-me de pé e olhei com horror o corpo inerte e estirado para diante na cadeira oposta com um braço e um ombro apoiados sobre a mesa. A isto seguiu-se um breve silêncio de espanto e aturdimento. Cada um de nós parecia momentaneamente paralisado. Markham permanecia como uma imagem esculpida, os olhos fixos na mesa. Heath, olhando, sem poder falar, se comprimia contra o espaldar de sua cadeira.

— Santo Deus!

Foi a exclamação de assombro de Arnesson que quebrou a atenção.

Markham deu volta à mesa, inclinando-se sobre o corpo do professor Dillard.

— Chame um médico, Arnesson — ordenou.

Vance voltou, sucumbido, da janela e deixou-se cair na poltrona.

— Nada se pode fazer — disse ele com profundo suspiro de fadiga. — Preparou-se para morrer rapidamente e sem dor, quando destilou o cianureto. O caso do Bispo está encerrado.

Markham olhava-o, sem compreender.

— Oh, eu suspeitava mais ou menos da verdade, desde a morte de Pardee — continuou Vance, respondendo à pergunta muda de Markham. — Mas não tive certeza, senão ontem à noite, quando começou a culpar o Sr. Arnesson.

— Hem? Que é isto? — Arnesson voltava do telefone.

— É o que eu digo — concluiu Vance, meneando a cabeça. — Você é que ia pagar pela culpa de outro. Desde o princípio foi escolhido como vítima. Mais ainda, ele nos sugeriu a culpabilidade de você.

Arnesson não parecia tão surpreso como se esperava.

— Eu sabia que o professor me odiava — disse ele. — Tinha um ciúme intenso de meu interesse por Belle. E, além disto, sua capacidade intelectual estava em decadência... isto notei há meses. O trabalho de seu último livro foi meu, e ele se ressentia, quando me concediam honras acadêmicas. Eu desconfiava de que ele estivesse atrás de toda essa diabrura; mas não tinha certeza. Não obstante, nunca acreditei que ele tentasse enviar-me para a cadeira elétrica.

Vance levantou-se e, estendendo a mão a Arnesson, lhe disse:

— Não havia perigo disto. Agora devo pedir-lhe desculpas pela forma por que eu o tratei, nesta última meia hora. Foi uma questão de tática. Como você sabe, não tínhamos nenhuma prova real e eu esperava forçar a mão dele.

Arnesson sorriu tristemente.

— Não é necessária nenhuma desculpa. Eu sabia que você não tinha o olho posto em mim. Quando você começou a incomodar-me, sabia que era só uma questão de técnica. Não sabia o que você procurava, mas segui as suas sugestões o melhor que pude. Espero que não lhe tenha entorpecido a ação.

— Não, não, você portou-se bem.

— Deveras? — Arnesson franziu o sobrolho com profunda perplexidade. — Mas o que não compreendo é por que ele tomou cianureto, sabendo que o suspeitado era eu.

— Este ponto particular não o saberemos nunca — disse Vance. — Talvez ele temesse a identificação da menina, ou pode ter percebido o meu ardil. Ou quem sabe tenha-se revoltado de súbito ante a idéia de ter posto sobre você todo o peso da culpa... Como ele mesmo disse, ninguém sabe o que se passa no coração do homem durante a sua última hora negra.

Arnesson não se moveu. Fixava os olhos em Vance com penetrante sagacidade.

— Oh, bem — disse ele por fim. — Deixaremos a coisa assim... De qualquer modo, obrigado!


XXVI

 

HEATH FAZ UMA PERGUNTA

 

(Terça-feira, 26 de abril — 16h)

 

Quando Markham, Vance e eu saímos da casa de Dillard uma hora depois, pensei que o assunto do Bispo estivesse encerrado. E assim era com efeito, em relação ao público, porém iria surgir outra revelação, que foi, de certo modo, o fato mais surpreendente de todos os que ocorreram naquele dia.

Heath reuniu-se a nós, no gabinete do procurador do distrito, depois do almoço, pois havia diversos assuntos oficiais delicados a tratar. E, mais tarde, naquele mesmo dia, Vance reviu todo o processo, explicando muitos dos seus pontos obscuros.

— Arnesson já sugeriu o motivo desses crimes insanos — principiou ele. — O professor percebeu que sua posição, no mundo da ciência, estava sendo usurpada pelo homem mais moço. Seu espírito tinha começado a perder a força de penetração; e ele verificou que seu novo livro sobre a estrutura atômica não teria sido escrito sem a colaboração de Arnesson. Um ódio enorme cresceu dentro dele contra o seu protegido. A seus olhos, Arnesson tornou-se um monstro que ele mesmo, como Frankenstein, havia criado, e que agora se levantava para destruí-lo. E esta inimizade intelectual era agravada por uma primitiva emoção de ciúme. Durante dez anos, ele havia concentrado em Belle Dillard toda a afeição da sua vida de solteirão; ela representava um apoio na sua existência quotidiana; e, quando viu que Arnesson provavelmente conquistaria o coração dela, seu ódio e ressentimento redobraram de intensidade.

— O motivo é compreensível — disse Markham. — Mas não explica os crimes.

O motivo atuou como faísca na pólvora seca de suas emoções recalcadas. Procurando um meio para destruir Arnesson, ele imaginou os diabólicos assassinatos do Bispo. Esses crimes constituíram uma válvula para as suas repressões e satisfizeram sua necessidade psíquica de uma expressão violenta. E, ao mesmo tempo, responderam à pergunta, formulada em seu espírito, de como poderia ver-se livre de Arnesson e conservar Belle Dillard para si.

— Mas por que — perguntou Markham — não assassinou simplesmente Arnesson e terminou com tudo de uma vez?

— Você passa por alto sobre os aspectos psicológicos da situação. O espírito do professor havia-se desintegrado, através de uma intensa e longa repressão. A natureza pedia um desafogo. E foi seu ódio contra Arnesson que levou a pressão ao ponto de explosão. Os dois impulsos ficaram assim combinados. Ao cometer os assassinatos, não só aliviava suas inibições, como também descarregava o seu ódio contra Arnesson, pois este, como se sabe, era quem ia pagar a culpa. Semelhante vingança era mais poderosa, e daí também mais satisfatória, do que o simples assassinato do homem... Era a grande farsa tétrica, no fundo das farsas menores dos assassinatos em si mesmos.

"Sem embargo, esse diabólico plano tinha uma grande desvantagem que o professor não notou. Deixava o assunto aberto a uma análise psicológica; e, no princípio, pude postular que o agente do crime era um matemático. A dificuldade de mencionar o nome do assassino residia no fato de que quase todos os suspeitos eram matemáticos. O único de cuja inocência eu estava certo era Arnesson, pois era o único que mantinha o equilíbrio psíquico, quer dizer, que constantemente descarregava as emoções que se formavam, durante suas prolongadas especulações abstrusas. Uma atitude geral sádica e céptica voluvelmente expressa e uma explosão homicida violenta são psicologicamente equivalentes. Dar rédea solta ao ceticismo de alguém à medida que se vai desenvolvendo produz um desafogo normal e mantém o equilíbrio emocional. Os homens cépticos e zombeteiros são sempre equilibrados, pois estão muito longe de explosões físicas esporádicas; enquanto que o homem que reprime o sadismo e acumula o cepticismo sob uma aparência estóica e grave é sempre capaz de explosões perigosas. É por isso que eu sabia que Arnesson seria incapaz de cometer os assassinatos do Bispo, e aí está por que eu sugeri a você, Markham, que permitisse que ele nos auxiliasse na investigação. Como nos disse, ele suspeitava do professor. E seu pedido para que lhe permitíssemos auxiliar-nos na investigação dos fatos era, creio eu, movido pelo desejo de estar ao corrente de tudo de modo a poder proteger melhor Belle Dillard e proteger-se a si mesmo, caso suas suspeitas se verificassem.

— Isso parece razoável — concordou Markham. — Mas onde se inspiraram as idéias fantásticas do professor Dillard sobre o modo de executar esses crimes?

— O tema folclórico infantil, provavelmente, lhe foi sugerido, quando ouviu Arnesson dizer, por gracejo, a Robin que tivesse cuidado com as flechas que partiam do arco de Sperling. Ele viu, nessa observação pilhérica, um meio de desafogar seu ódio contra um homem que o havia sobrepujado; e esperou o momento. A oportunidade de cometer seu crime apresentou-se, pouco tempo depois. Quando viu Sperling subir a rua, aquela manhã, soube que Robin estava só na sala do clube. Assim que desceu, falou com Robin, deu-lhe um golpe na cabeça, cravou-lhe uma flecha no coração e arrastou-o para fora. Depois lavou as manchas de sangue, destruiu o pano de que se servira, deixou sua nota na caixa do correio da esquina e outra na da correspondência da casa, voltou à biblioteca e telefonou para a Procuradoria do Distrito. Um fator imprevisto produziu-se, no entanto; Pyne estava no quarto de Arnesson, quando o professor disse que saíra para a sacada, porém nenhum prejuízo sobreveio, pois, embora Pyne desconfiasse de que algo anormal estava acontecendo, quando ouviu o professor mentir, certamente não suspeitou de que seu velho patrão fosse um assassino. O crime foi um sucesso.

— E, no entanto — interrompeu Heath, — o senhor adivinhou que Robin não tinha sido morto por um flechaço.

— É certo. Eu descobri isto pela condição do punho da flecha introduzida no corpo de Robin. E deduzi, por conseguinte, que este tinha sido morto no interior da casa, depois de receber o golpe na cabeça. Por isso, concluí que o arco havia sido atirado pela janela para o campo de exercícios. Então eu não sabia que o professor era culpado. Indubitavelmente, o arco nunca esteve fora. Mas a evidência, em que eu baseava as minhas deduções, não pode ser considerada como um erro ou descuido da parte do professor. Contanto que o episódio do folclore infantil fosse realizado, o resto não tinha importância para ele.

— Que instrumento pensa que ele usou? — perguntou Markham.

— Provavelmente sua bengala. Você deve ter notado que ela tem um enorme castão de ouro perfeitamente construído como arma letal.(1) A propósito, estou inclinado a crer que ele exagerava sua gota para atrair simpatia e afastar de si qualquer suspeita possível.

(1) Mais tarde foi descoberto que o pesado castão de ouro, de quase vinte centímetros, estava solto e podia ser facilmente destacado da bengala. O castão pesava cerca de 900 gramas e, como Vance havia observado, constituía um cacete altamente eficiente. Se tinha sido ou não afrouxado para o propósito a que foi destinado é por certo uma conjetura.

 

— E a sugestão para o assassinato de Sprigg?

— Depois da morte de Robin, deve ter procurado, deliberadamente, material para outro crime no livro infantil de Mother Goose. Seja como for, Sprigg visitou a casa na quinta-feira, à noite, véspera de seu assassinato; e foi nesse momento, segundo creio, que a idéia surgiu. No dia escolhido para a sua monstruosa obra, ele se levantou cedo e vestiu-se, esperou que Pyne o chamasse às sete e meia, respondeu-lhe e, então, foi ao parque — provavelmente pela sala do clube e pela passagem. O costume de Sprigg de passear todas as manhãs pode ter sido casualmente mencionado por Arnesson ou pelo próprio moço.

— Mas como explica você a fórmula do tensor?

— O professor tinha ouvido Arnesson falar ao moço sobre ela, algumas noites antes. E eu penso que a colocou debaixo do corpo para despertar a atenção, por associação de idéias, sobre Arnesson. Mais ainda, aquela fórmula particular sutilmente expressava o impulso psicológico que animava os crimes. O tensor de Riemann-Christoffel é uma exposição do infinito espacial, a negação da vida humana infinitesimal desta terra; e, subconscientemente satisfez, sem dúvida, o senso de humor pervertido do professor, dando maior homogeneidade à sua concepção monstruosa. No momento em que a vi, percebi seu significado sinistro e consolidei minha teoria de que os crimes do Bispo eram obra de um matemático, cujos valores se haviam tornado abstratos e incomensuráveis.

Vance fez uma pausa para acender outro cigarro, continuando depois de um silêncio meditativo:

— Chegamos agora à visita de meia-noite à casa de Drukker. Isso foi um triste entreato forçado do assassino, motivado pela informação do grito da Sra. Drukker. Receava que a mulher houvesse visto o corpo de Robin ser arrojado para fora. E, quando, na manhã do assassinato de Sprigg, ela o encontrou no pátio de volta do crime, ele se sentiu mais preocupado do que nunca que ela pusesse as coisas no seu lugar. Não me admira que ele procurasse evitar que a interrogássemos. E na oportunidade mais próxima quis fazê-la silenciar para sempre. Tirou a chave da carteira de Belle Dillard, antes que ela saísse para o teatro aquela noite, pondo-a em seu lugar na manhã seguinte. Mandou Pyne e Beedle deitarem-se cedo; e às dez e meia Drukker se queixava de cansaço e retirava-se para a sua casa. À meia-noite, julgou que o cenário estava pronto para sua fatídica visita. O uso do bispo negro como assinatura simbólica do assassinato premeditado foi provavelmente inspirado pela discussão de xadrez entre Pardee e Drukker. Suspeito que ele nos falou sobre a partida de xadrez para chamar a atenção sobre o jogo de propriedade de Arnesson, no caso de o bispo vir a cair em nossas mãos.

— Crê você que ele tinha idéia de envolver Pardee naquela ocasião?

— Oh, não. Surpreendeu-se genuinamente quando a análise de Arnesson sobre a partida Pardee-Rubinstein revelou o fato de que o bispo tinha sido por largo tempo a Nêmesis de Pardee... E você estava indubitavelmente certo acerca da reação de Pardee, quando eu mencionei no dia seguinte o bispo negro. O pobre homem pensou que eu o ridicularizava deliberadamente por motivo da sua derrota nas mãos de Rubinstein...

Vance inclinou-se e deixou cair a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Lastimo — murmurou com pesar. — Devo-lhe uma desculpa sabe? — Encolheu os ombros ligeiramente e, recostando-se em sua cadeira, prosseguiu a narração. — A idéia do assassinato de Drukker o professor a obteve da própria mãe deste. Ela comunicou seus temores imaginários a Belle Dillard, que os repetiu naquela noite, durante o jantar; e o projeto tomou corpo. Não havia complicações em sua execução. Depois do jantar, subiu ao sótão e datilografou as notas. Mais tarde, sugeriu um passeio a Drukker, sabendo que Pardee não se demoraria muito tempo com Arnesson. E, quando viu Pardee no caminho para cavaleiros do parque, soube que Arnesson estava só. Assim que Pardee se afastou, deu o golpe em Drukker, atirando-o em seguida do muro abaixo. Imediatamente, dirigiu-se pelo pequeno atalho até o Drive, cruzou a Rua Setenta e Seis e foi ao quarto de Drukker, voltando pelo mesmo caminho. Toda a cena não podia ocupar-lhe mais de dez minutos. Então, tranqüilamente, passou por Emery e dirigiu-se para casa com o caderno de Drukker por baixo do casaco...

— Mas, por que, — interrompeu Markham, — se você estava seguro de que Arnesson era inocente, fez cavalo-de-batalha da chave da porta da passagem? Somente Arnesson poderia ter usado a passagem na noite da morte de Drukker. Dillard e Pardee saíram pela porta da frente.

— Do ponto de vista da culpabilidade de Arnesson, eu não tinha interesse na chave. Mas, se esta não estava, isso significava que alguém a havia levado a fim de lançar suspeita sobre Arnesson. Quão simples teria sido para Arnesson deslizar pela passagem, depois que Pardee se retirou, cruzar o Drive até o pequeno atalho e atacar Drukker depois que o professor o tivesse deixado... E, Markham, isto é o que nós éramos forçados a pensar. Foi, de fato, a óbvia explicação do assassinato de Drukker.

— O que eu não posso compreender — queixou-se Heath — é por que o velho matou Pardee. Isto não lançava suspeita sobre Arnesson e fez com que crêssemos que Pardee era o culpado e que se havia, por isso, suicidado.

— Esse suicídio espúrio, sargento, foi a piada mais fantástica do professor. Foi ao mesmo tempo irônica e desdenhosa. Pois durante todo esse interlúdio cômico ele ruminou projetos para a destruição de Arnesson. E decerto a circunstância de possuirmos um culpado plausível tinha a grande vantagem de relaxar a vigilância e fazer com que os agentes fossem retirados da casa. O assassinato, creio eu, foi concebido espontaneamente. O professor inventou algum pretexto para acompanhar Pardee à sala do clube onde já tinha fechado as janelas e descido as persianas. Então, talvez apontando para algum artigo de revista, desfechou um tiro contra seu confiante hóspede, atingindo-o no peito, pôs-lhe o revólver na mão e, como humorista sardônico, construiu o castelo de cartas. Ao voltar à biblioteca, colocou as peças de xadrez como para fazer crer que Pardee tivesse estado refletindo sobre o bispo negro... Mas, como eu digo, este fragmento de grotesca maldade foi apenas um acontecimento secundário. O episódio da "Pequena Miss Muffet" devia ser o desfecho. E foi cuidadosamente projetado para que a tempestade caísse sobre Arnesson. O professor estava na casa de Drukker na manhã dos funerais, quando Madalena Moffat trouxe as flores para Humpty Dumpty; indubitavelmente ele conhecia o nome da criança. Era a favorita de Drukker e havia estado na casa deste em numerosas ocasiões. Com a idéia dos personagens do folclore infantil firmemente implantada em seu espírito, como uma obsessão homicida, associou naturalmente o nome de Moffat com Muffet. Por certo, é provável que Drukker ou a Sra. Drukker chamassem a menina "A pequena Miss Muffet", em sua presença. Foi fácil para ele atrair a atenção da menina e chamá-la para o montículo perto do muro, ontem à tarde. Provavelmente, disselhe que Humpty Dumpty desejava vê-la. E ela foi-se com ele ansiosamente, seguindo-o sob as árvores pelo caminho de cavaleiros, depois através do Drive e pela passagem entre os prédios de apartamentos. Ninguém os teria notado, pois o Drive a essa hora está cheio de crianças. Depois, à noite passada, ele lançou em nós a semente da suspeita contra Arnesson, crendo que, quando as notas da "Pequena Miss Muffet" chegassem à imprensa, procuraríamos a menina para encontrá-la morta por asfixia na casa de Drukker... Um plano diabólico e inteligente!

— Mas por que ele esperou que devassássemos o sótão de sua casa?

— Oh, sim, mas não antes de amanhã. Então, ele teria limpado o quarto e colocado a máquina num lugar mais seguro. E teria guardado o caderno, pois há muito pouca dúvida de que pretendia apropriar-se das investigações de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas nós chegamos um dia antes e todos os seus cálculos fracassaram.

Markham fumou pensativamente, durante um certo tempo.

— Você disse que estava convencido da culpabilidade de Dillard, ontem à noite, quando você recordou o personagem do Bispo Arnesson...

— Sim... oh, sim... Isso me deu o rumo. Naquele momento, concluí que a intenção do professor era lançar sobre Arnesson a culpabilidade e que a assinatura das notas havia sido escolhida com esse propósito.

— Ele esperou muito tempo antes de chamar-nos a atenção sobre Os Simuladores — comentou Markham.

— O fato é que não esperava ter de fazê-lo. Pensava que nós descobriríamos o nome por nós mesmos. Porém, éramos mais imbecis do que ele julgava. E, afinal, desesperado, chamou você e foi, inteligentemente, direto ao assunto, acentuando Os Simuladores.

Durante um momento, Markham permaneceu silencioso. Sentou-se, franzindo o cenho e tamborilando com os dedos no mata-borrão da mesa.

— Por que — perguntou afinal — você não nos disse, ontem à noite, que o professor e não Arnesson era o Bispo? Você nos fez pensar...

— Meu caro Markham! Que mais podia eu fazer? Em primeiro lugar, você não me acreditaria e provavelmente me teria sugerido outra viagem transoceânica. Mas era essencial fazer crer ao professor que suspeitávamos de Arnesson. De outro modo, não teríamos a probabilidade de forçarmos a decisão como conseguimos. O subterfúgio era a nossa única esperança; e eu sabia que, se você e o sargento suspeitassem dele, iriam logo descobrir o jogo. Deste modo, não tiveram de fingir e tudo saiu que foi uma beleza!

Notei que o sargento havia estado, durante a última meia hora, observando Vance, de vez em quando, com um olhar de incerteza perplexa; porém, por algum motivo, dava a impressão de achar-se embaraçado para exprimir os pensamentos que o preocupavam. Entretanto, nesse momento, mudou de posição, contrafeito, e, tirando com lentidão o cigarro da boca, fez a Vance uma pergunta alarmante:

— Eu não me queixo de o senhor não nos ter revelado sua idéia, ontem à noite, mas o que me agradaria saber é por que, quando o senhor se levantou de um salto e apontou para o painel existente no outro lado da sala, trocou o cálice do professor pelo de Arnesson?

Vance suspirou profundamente e meneou, desesperado, a cabeça.

— Eu devia ter sabido que nada podia escapar a seus olhos de águia, sargento.

Markham inclinou-se sobre a mesa e mirou Vance, com aturdimento e raiva.

— Que é isso! — exclamou Markham, esquecendo seu habitual comedimento. — Você trocou os cálices? Você deliberadamente...

— Oh! — rogou Vance. — Que sua ira não desabe sobre mim. — Voltou-se para Heath num tom burlesco de censura. — Veja em que aperto me colocou, sargento.

— Este não é o momento para fugir pela tangente. — A voz de Markham era fria e inexorável. — Eu quero uma explicação.

Vance fez um gesto de resignação.

— Pois bem. Escutem. Minha idéia, como já expliquei a vocês, foi acompanhar o plano do professor e fingir que alimentava suspeitas contra Arnesson. Esta manhã fiz-lhe ver, a propósito, que não tínhamos provas e que, mesmo que prendêssemos Arnesson era duvidoso que pudéssemos retê-lo. Eu sabia que, nessas circunstâncias, ele tomaria alguma decisão para fazer face à situação de uma forma heróica, pois o único objetivo dos assassinatos era aniquilar completamente Arnesson. Eu tinha certeza de que ele cometera um ato imprudente e descobrira-se a si mesmo. De que forma, não sei. Mas nós o vínhamos observando muito de perto... Então, o vinho me deu uma inspiração. Sabendo que ele tinha cianureto, trouxe para a palestra o assunto do suicídio e assim lancei a idéia em seu espírito. Caiu na armadilha e procurou envenenar Arnesson e fazer crer que era um suicídio. Eu o vi sub—repticiamente esvaziar um frasquinho de líquido incolor no cálice de Arnesson, quando este fora buscar o vinho no licoreiro. Minha primeira intenção era deter o assassino e mandar analisar o vinho. Podíamos pesquisá-lo e encontrar o veneno e eu podia testemunhar o fato de tê-lo visto envenenar o vinho. Esta evidência, além da identificação da menina, poderia corresponder ao nosso propósito. Porém, no último momento, depois que ele encheu de novo os nossos cálices, decidi empregar o método mais singelo...

— E assim você distraiu nossa atenção e trocou os cálices!

— Sim, sim. Naturalmente. Acreditei que um homem desejaria beber o vinho que serviu para outro.

— Você fez justiça pelas suas próprias mãos!

— Tomei-a em meus braços... Era inevitável... Mas não sejam tão severos. Levam vocês à presença da Justiça uma cascavel? Apresentam diante de um tribunal um cachorro furioso? Não senti mais remorsos em concorrer para que um monstro como Dillard se projetasse no além do que os que teria sentido, ao esmagar um réptil venenoso, no momento de este atacar.

— Mas isso é assassinato! — exclamou Markham com horror e indignação.

— Oh, sem dúvida — disse Vance com alegria. — Sim... Naturalmente, muito repreensível... Diga-me: estou por acaso preso?

O "suicídio" do professor Dillard pôs fim ao famoso caso dos assassinatos do Bispo, absolvendo Pardee de qualquer suspeita. No ano seguinte, Arnesson e Belle Dillard contraíram núpcias, na maior intimidade, e partiram para a Noruega, onde instalaram o seu lar. Arnesson aceitou a cadeira de Matemáticas Aplicadas da Universidade de Oslo; e dois anos depois obteve o prêmio Nobel por seu trabalho de Física.

A velha casa de Dillard, na Rua 75, foi demolida e, em seu lugar, eleva-se hoje um moderno prédio de apartamentos em cuja fachada há dois imensos medalhões de terracota, que sugerem fortemente alvos para tiros de flecha. Tenho pensado muitas vezes, se o arquiteto não escolheu deliberadamente semelhante motivo ornamental.

O caso do Bispo Preto empolgou toda uma nação. Era um mistério criminal de excepcional interesse em vista das circunstâncias sinistras e estranhas que o cercavam.
Parecia, porém, quase impossível desvendar a cadeia de fatos misteriosos e recônditos que precederam o crime. Em dado momento, as pistas se multiplicavam com tal exuberância que os homens mais treinados nas técnicas da investigação criminal se perdiam nelas, sem saber por onde prosseguir.
Felizmente, o espírito insaciável e os métodos analíticos notáveis de Philo Vance fizeram-no absorver-se em todas as complicações do caso para resolvê-lo numa série de raciocínios e análises que constituem uma verdadeira jóia da literatura policial.
Sem a sua intervenção, sem a sua aplicação ao caso dos seus poderes magistrais de dedução e de análise, sem a sua agudeza intelectual desenvolvida e comprovada no conhecimento profundo de quase todos os setores do conhecimento humano, seria muito provável que o mistério do Bispo Preto nunca fosse decifrado.

 

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I

"QUEM MATOU COCK ROBIN?"

(Sábado, 2 de abril — meio-dia)

De todos os casos criminais em que Philo Vance interveio como investigador particular, o mais sinistro, grotesco e aparentemente ò mais incompreensível, e sem dúvida o mais terrível, foi o que se seguiu aos famosos assassinatos dos Greenes (1). A orgia de horror na velha mansão havia chegado a um fim surpreendente no mês de dezembro, tendo Vance ido à Suíça, depois das festas de Natal, para dedicar-se aos desportos de inverno. Voltando a Nova York, em fins de fevereiro, aplicou-se a um trabalho literário que, há muito tempo, planejara: à tradução dos principais fragmentos de Menandro, encontrados nos papiros egípcios em princípios do atual século.

Durante mais de um mês, esteve ele trabalhando diligentemente nessa tarefa ingrata. Se a teria completado ou não, eu não posso dizer. Vance era um homem culto, cujo espírito de investigação e aventura intelectual estava constantemente em contraste com o trabalho necessário para a criação escolástica. Recordo-me de que, no ano anterior, começara a escrever a vida de Xenofonte, resultado do entusiasmo do seu tempo de universitário, quando pela primeira vez leu a Anabasis e a Memorabilia, perdendo o interesse pelo aludido trabalho, quando chegou ao episódio histórico em que Xenofonte conduz os Dez Mil de volta para o mar. Entretanto, poderei assegurar que a tradução de Menandro foi bruscamente interrompida em princípios de abril, e, durante algumas semanas, ele se deixou absorver pelo misterioso crime que levou o país inteiro a um estado de horrível excitação.

(1) Relato em A Série Sangrenta, do mesmo autor. Dist. Record.


Essa nova investigação criminal em que ele atuou como uma espécie de amicus curiae de John F. X. Markham, procurador do distrito judicial de Nova York, imediatamente se tornou conhecida pela designação de "os misteriosos crimes do Bispo". A designação, resultado do nosso instinto jornalístico de pôr rótulo em qualquer cause célebre, era de certo modo inadequada. Não existia nada de eclesiástico acerca dessa campiresca saturnal de crimes que fez com que uma inteira comunidade lesse as Melodias de Mama Goose, com temerosa apreensão (2).

(2) Durante um período de várias semanas venderam-se mais exemplares das Melodias de Mama Goose que de qualquer novela. Uma das casas editoras menores tornou a imprimir e vendeu por completo a edição dessas velhas e famosas rimas infantis.

E ninguém, de nome Bispo, estava, pelo que eu sei, nem sequer remotamente relacionado com os sucessos monstruosos que deram lugar a essa denominação. Contudo, a palavra Bispo era apropriada por ser o nome suposto empregado pelo assassino para seus tenebrosos propósitos. Aliás, foi este nome que por fim conduziu Vance à mais incrível das verdades, terminando assim um dos mais espantosos crimes em série da história policial.

A série de acontecimentos sobrenaturais e aparentemente não relacionados que constituíam o "caso Bispo" e que fizeram com que Vance se esquecesse de Menandro e dos monásticos gregos teve seu início na manhã de 2 de abril, perto de cinco meses depois do duplo assassinato de Julia e Ada Greene. Era um desses dias primaveris temperados e formosos que, às vezes, em princípios de abril, favorecem Nova York. Vance estava fazendo o seu desjejum no pequeno jardim do terraço da sua casa da Rua 38, Leste. Era quase meio-dia, pois ele trabalhava ou lia até altas horas da noite, levantando-se por conseguinte muito tarde. O sol, que caía de um céu azul sem nuvens, estendia um manto de letargia sobre a cidade. Vance, esparramado em uma poltrona, com seu desjejum ao lado numa mesinha baixa, olhava com céptico e saudoso olhar as copas das árvores do pátio.

Eu sabia que seu espírito maquinava. Era seu costume ir todas as primaveras à França; e, há muito tempo, havia pensado como pensara George Moore, que Paris e maio eram cousas correlatas. Porém, a grande corrente de nouveaux riches americanos de após-guerra, em Paris, tirou-lhe o prazer dessa peregrinação anual; e, no dia anterior, informara-me que este verão passaríamos em Nova York.

Há muitos anos que sou amigo de Vance, além de conselheiro legal, uma espécie de administrador financeiro e agente. Abandonei a firma de advocacia de meu pai, Van Dine, Davis Van Dine, para dedicar-me inteiramente aos seus interesses, posição que era muito mais de meu gosto que a de advogado em um escritório mal ventilado; e, embora meus aposentos de solteiro fossem num hotel do West Side, eu passava a maior parte do tempo nos aposentos de Vance.

Aquela manhã, eu havia chegado cedo, muito antes de Vance se levantar, para revisar as contas de fim de mês. Agora, enquanto ele almoçava, eu fumava preguiçosamente meu cachimbo.

— Como suporá você, Van — disseme ele com sua enunciação lenta e insensível — a perspectiva da primavera e do verão em Nova York nem é excitante nem romântica. Vai ser enfadonho. Entretanto, será menos incômodo que viajar pela Europa com aquele bando de turistas vulgares, acotovelando-se com eles em cada esquina... É muito penoso.

Nada suspeitava ele do que se lhe havia reservado para as semanas próximas. Se ele o soubesse de antemão, nem a mais brilhante primavera em Paris o faria deixar o país; pois não havia nada que mais agradasse a seu insaciável espírito do que um problema complicado. E enquanto me falava aquela manhã, os deuses que presidiam ao seu destino lhe estavam preparando um estranho e fascinante enigma, que iria eletrizar profundamente toda a nação e acrescentar aos anais do crime um novo e terrível capítulo.

Mal Vance acabara de encher sua segunda xícara de café, Currie, seu velho mordomo inglês e jactatum geral, apareceu à porta francesa com um telefone portátil.

— É o senhor Markham, — disse o velho em tom de desculpa. — Como parecia ter urgência, tomei a liberdade de comunicar-lhe que o senhor estava em casa.

Ligou o telefone ao comutador e colocou o aparelho sobre a mesa onde estava a refeição.

— Está bem, Currie, — murmurou Vance segurando o receptor. — Qualquer coisa é boa para romper esta monotonia.

A seguir falou a Markham.

— Diga-me, companheiro, você nunca dorme? Estou terminando uma omelette aux fines herbes. É servido? Ou prefere ouvir a música de minha voz?

Deteve-se bruscamente, e o aspecto trocista desapareceu de seu rosto magro. Vance era o tipo característico do homem nórdico, de face larga e agudamente cinzelada; olhos cinzentos muito separados; nariz delgado e aquilino e um queixo ovalado; boca enérgica e bem cortada, porém com um ar de crueldade e cepticismo que era antes do Mediterrâneo. Seu rosto forte e atraente não era exatamente belo; era antes um rosto de pensador e de monge; e sua própria austeridade, ao mesmo tempo, de um estudioso e introspectivo, constituía como que uma barreira entre ele e seus companheiros. Embora fosse por natureza impassível e cuidadosamente disciplinado na repressão das suas emoções, notei que, enquanto ele escutava Markham no telefone aquela manhã, não podia inteiramente ocultar seu interesse veemente no que lhe diziam. Suas sobrancelhas estavam ligeiramente franzidas e seus olhos refletiam seu assombro interno. De vez em quando, deixava escapar um "Surpreendente!", um "Diabo!" ou um "Extraordinário!" — suas exclamações prediletas. E, quando depois de alguns minutos falou a Markham, uma excitação curiosa assinalava suas maneiras.

— Oh, de nenhum modo! — disse ele. — Não o deixaria nem por todas as comédias perdidas de Menandro... parece loucura. Imediatamente, vou-me vestir já... Au revoir.

Largando o receptor, tocou a campainha para chamar Currie.

— Minha roupa cinzenta — ordenou ele. — Uma gravata escura e meu chapéu.

E voltou à sua omelette, mas já com ar preocupado.

Ao fim de alguns minutos, mirou-me zombeteiramente.

— Que sabe você de arco e flecha, Vance? — perguntou ele.

Tudo o que eu sabia era que consistia em atirar flechas em alvos, e foi o que lhe confessei.

— Não se pode dizer que é muito o que você sabe. — Acendeu indolentemente um cigarro Régie. — Contudo, parece que estamos metidos em um caso de toxofilia. Eu tampouco sou uma autoridade no assunto, porém em Oxford pratiquei um pouco esse esporte. Não é um passatempo apaixonadamente excitante, é muito mais insípido que o golfe e tão complicado como este.

Durante momentos fumou como em sonhos.

— Van, quer ir buscar na biblioteca o volume do Dr. Elmer sobre Balística? Faça-me esta fineza.

Trouxe-lhe o livro, e durante quase meia hora ele mergulhou na sua leitura detendo-se nos capítulos sobre associações de arqueiros, torneios e encontros, e examinando as longas tabelas dos melhores pontos americanos.

Finalmente recostou-se na sua cadeira. Era evidente que havia encontrado algo que o abalara e que pôs em atividade seu sensível espírito.

— É uma loucura, Van — observou com os olhos fixos no espaço. — Uma tragédia medieval na moderna Nova York! Não usamos mais botas nem gibões de couro, e não obstante... Puxa! — Subitamente se empertigou em sua cadeira: — Não..., não! É absurdo. Não devo deixar que as tolas notícias de Markham se apoderem de mim... — Bebeu mais uns goles de café, porém sua expressão me revelou que não podia desprender-se da obsessão que se havia infiltrado em seu cérebro.

— Outro favor mais, Van — disse ao fim de uns minutos. — Traga-me o dicionário alemão e o livro de Versos Domésticos de Burton E. Stevenson.

Quando eu os trouxe, procurou uma palavra no dicionário e o colocou de lado.

— É infelizmente isto mesmo... embora eu já estivesse bem certo a respeito.

Em seguida, examinou a seção da gigantesca antologia de Stevenson dedicada às rimas infantis. Não tardou muito a fechar também este livro, e, estirando-se na sua cadeira, lançou uma larga baforada de fumo até o toldo que cobria o terraço. — Não pode ser — protestou, como para si mesmo. — É demasiado fantástico, demasiado diabólico, demasiado absurdo. Um conto de fadas sangrento... um mundo em anamorfose... uma perversão de toda a racionalidade. É inimaginável, insensato, semelhante à magia negra, à feitiçaria, à taumaturgia. É decididamente uma loucura.

Olhou seu relógio e levantando-se entrou em casa, deixando-me a especular vagamente sobre a causa da sua inusitada agitação.

Um tratado sobre balística, um dicionário alemão, uma coleção de versos infantis e as incompreensíveis expressões de Vance acerca da loucura e da fantasia... que relações podiam existir em tudo isso?

Tentei encontrar um denominador comum, porém sem o menor sucesso. Não é de estranhar que eu tenha fracassado. Mesmo a verdade, quando apareceu semanas depois apoiada em um conjunto de provas incontestáveis, parecia demasiado incrível e demasiado perversa para ser aceita pelo espírito humano em estado normal.

Pouco depois, ele interrompeu minhas inúteis especulações. Vestia traje de passeio e parecia impaciente pela demora de Markham.

— É verdade que eu necessitava de algo que me interessasse... um crime requintado e fascinante, por exemplo — observou ele — mas, por Deus, não desejava um pesadelo. Se eu não conhecesse Markham tão bem, diria que ele exagerava.

Quando, minutos depois, Markham entrava no terraço, podia observar-se a sua sinceridade. A expressão da sua fisionomia era sombria e revelava preocupação. Sua saudação habitualmente cordial ele a reduziu à mais simples cortesia formal. Markham e Vance eram amigos íntimos há quinze anos. Embora de naturezas opostas: um severamente agressivo, brusco, sincero e quase rudemente grave e o outro caprichoso, céptico, afável, alheio às inquietações passageiras da vida — encontraram, porém, entre si a atração complementar que, muita vez, forma a base de uma amizade inseparável e duradoura.

Durante o tempo em que Markham desempenhou as funções de procurador do distrito de Nova York, chamava sempre Vance para conferenciar sobre assuntos de grave importância, e, em todos os casos, Vance justificava a confiança por ele depositada em suas opiniões. É indubitável que a Vance compete quase que exclusivamente o mérito de ter resolvido grande número dos maiores crimes ocorridos durante os quatro anos em que Markham esteve no exercício das suas funções.

Seu conhecimento da natureza humana, seus amplos estudos e realizações culturais, o sutil senso lógico e o amor pela verdade oculta sob aparências enganadoras, tudo o capacitava para a tarefa que realizava não oficialmente, nos casos que caíam sob a jurisdição de Markham.

O primeiro caso de Vance, como devem estar lembrados, prendia-se ao assassinato de Alvin Benson (1). E, se não fosse a sua participação nesse caso, duvido de que a verdade sobre o mesmo tivesse vindo à luz. Logo se seguiu o atroz estrangulamento de Margarida Odell (2), assassinato misterioso, em que os métodos ordinários de investigação policial teriam fracassado inevitavelmente. E, no ano passado, o surpreendente assassinato dos Greenes (ao qual anteriormente já me referi) que ficaria impune, se Vance não frustrasse a tentativa final do assassino. Não era de estranhar, portanto, que Markham procurasse Vance desde o início dos misteriosos crimes do Bispo. Eu havia notado que cada vez ele dependia mais de Philo para suas investigações criminais. E, no caso presente, teve sorte em recorrer a Vance, pois só através de um conhecimento profundo das manifestações psicológicas anormais do espírito humano, tal como possuía Vance, podia ter sido destrinçada aquela tétrica e louca conspiração e descoberto o seu autor.

(1) O Caso Benson.

(2) O Crime da Canária.

 

— Pode acontecer que tudo isto não seja como eu penso — disse Markham sem convicção. — Mas pensei que poderia interessá-lo...

— Oh, inteiramente! — exclamou Vance e dirigiu a Markham um sorriso sardônico... — Sente-se e conte-me o caso tranqüilamente. O cadáver não fugirá. E é necessário que ponhamos tudo em ordens antes de vermos o corpo. Assim, por exemplo — quem são os interessados da primeira parte? E por que a intervenção da procuradoria do distrito, em um caso de assassinato, uma hora depois da morte do indivíduo? Tudo o que você me disse até agora se reduz à maior das tolices.

Markham sentou-se sombriamente à borda de uma cadeira e olhou a extremidade do seu charuto.

— Caramba, Vance! Não comece com atitudes misteriosas de Ugolfo. O crime, se é que o há, está bastante claro. Admitirei que é um assassinato nada vulgar; porém, certamente, não é insensato. Ultimamente o arco-e-flecha tem tido grande incremento. Não há cidade, nem colégio onde não se pratique esse esporte.

— Concordo. Todavia, desde muito tempo não se costuma matar indivíduos que se chamem Robin.

Os olhos de Markham semicerraram-se e puseram-se a observar Vance interrogativamente.

— Ocorreu a você também esta idéia?

— Se ocorreu a mim? Saltou-me no espírito, assim que você pronunciou o nome da vítima. — Vance tirou umas baforadas de seu cigarro. — "Quem matou Cock Robin?" E com um arco e uma flecha!... É interessante como esses versinhos aprendidos na infância gravam-se na memória. E, a propósito, como se chama o infortunado Sr. Robin?

— Creio que Joseph.

— Nem edificante, nem sugestivo.

— Algum outro nome mais?

— Vamos, Vance, — disse Markham, ao mesmo tempo que se levantava nervosamente. — Que tem que ver com o caso o outro nome da vítima?

— Não sei. Entretanto, como estamos ficando loucos, é melhor que o fiquemos de todo. De nada nos servirá um pouquinho de sensatez.

Apertou a campainha para chamar Currie. Logo que este atendeu, pediu-lhe Vance a lista telefônica. Markham protestou, porém Vance fingiu que não ouviu. De posse do guia, começou a folheá-lo durante minutos.

— A vítima morava em Riverside Drive? — perguntou por fim, assinalando com o dedo um nome.

— Creio que sim.

— Está bem! — Vance fechou o livro e fixou no procurador do distrito um olhar burlesco e triunfante.

— Markham — disse lentamente — há um único Joseph Robin na lista telefônica. Vive em Riverside Drive e seu nome é Cochrane!

— Que tolice é esta? — O tom de voz de Markham era quase feroz. — Suponhamos que se chamasse Cochrane: quer você seriamente insinuar que esse fato influirá em seu assassinato?

— Dou-lhe a minha palavra que não insinuo nada — disse Vance, encolhendo ligeiramente os ombros. — Estou apenas anotando uns quantos fatos relacionados com o assunto. Até agora isto se apresenta assim: — O Sr. Joseph Cochrane Robin, isto é, Cock Robin... foi morto por um flechaço. Não lhe diz seu espírito legal que isto é algo verdadeiramente raro?

— Não! — retrucou Markham. — O nome da vítima é certamente muito vulgar. E o que mais me surpreende é que não tenham morto mais pessoas com este ressurgimento do esporte do arco-e-flecha em todo o país. Além disto, é de todo possível que a morte de Robin tenha sido causada por um acidente.

— Oh! Caramba! — e Vance meneou a cabeça em sinal de desaprovação. — Embora fosse assim, isto não melhoraria em nada a situação. Só a tornaria mais singular. Entre todos os milhares de entusiastas do arco que habitam nosso belo país, havia de ser precisamente o chamado Cock Robin quem caísse morto por um flechaço! Semelhante suposição nos conduziria ao espiritismo e à demoniologia, ou a qualquer outra cousa. Por acaso, crê você nos Eblises, Azazels e Jinas que vão pelo mundo adiante pregando peças satânicas à humanidade?

— Devo ser um mitólogo maometano para admitir coincidências? — replicou Markham asperamente.

— Meu prezado amigo! O braço proverbialmente comprido da Providência não se estende ao infinito. Há, além disto, leis de probabilidades baseadas em fórmulas matemáticas bem definidas. Entristecer-me-ia pensar que homens como Laplace (1), Czuber e Von Kries tivessem vivido em vão.

(1) Embora Laplace seja mais conhecido por sua Mecânica Celeste, Vance referia-se aqui à sua magistral obra Teoria Analítica das Probabilidades.


A situação presente, entretanto, é mais complicada do que você suspeita. Por exemplo, você mencionou pelo telefone que a última pessoa, que se sabe esteve com Robin antes de sua morte, é um Sperling.

— E que significação esotérica encerra esse pormenor?

— Talvez você saiba o que quer dizer Sperling em alemão — sugeriu Vance delicadamente.

— Freqüentei o ginásio — retrucou Markham. Seus olhos abriram-se um pouco e ele empertigou o corpo.

Vance empurrou o dicionário alemão para junto dele.

— Em todo caso, procure a palavra. O saber não ocupa lugar. Eu já a procurei. Temia que minha memória me enganasse e nasceu em mim o desejo de ver a palavra em letra de forma.

Markham abriu o livro em silêncio e percorreu a página com a vista. Ao cabo de uns instantes, ergueu-se resolutamente, como se lutasse para resistir a uma tentação. Quando falou, a sua voz era um desafio.

— Sperling quer dizer pardal. Qualquer escolar o sabe. E o que tem isto?

— Oh, nada! — Vance languidamente acendeu outro cigarro. — Qualquer escolar também conhece as velhas rimas da infância intituladas "A morte e o enterro de Cock Robin". Que me diz você a isto? — Olhou para Markham atormentadoramente, enquanto este se conservava imóvel, dirigindo o olhar para o sol primaveril. — Já que você aparentou não estar familiarizado com esse clássico da infância, permita-me que lhe recite a primeira estrofe.

Um arrepio, como de alguma aparição espectral, passou por mim no momento em que Vance repetia aqueles velhos versos familiares:


"Quem matou Cock Robin?

"Eu" — disse o pardal.

"Com meu arco e flecha

"Eu matei Cock Robin."


II

 

NA MIRA DA FLECHA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 12h30)

 


Vagarosamente Markham voltou os olhos para Vance.

— Ê loucura — observou ele, como um homem que enfrenta algo inexplicável e horrendo.

— Ora! Ora! — manifestou Vance sacudindo vivamente a mão. — Isto é um plágio. Eu o disse primeiro. (Estava-se esforçando por dominar seu próprio sentimento de perplexidade, tomando uma atitude frívola.) — Não seria estranho que houvesse uma inamorata que chorasse a morte do Sr. Robin. Recorda-se talvez da estrofe:


"Quem será a principal carpideira?

"Eu" — disse a pomba;

"Lamento o meu amor perdido;

"Eu serei a principal carpideira."


Markham sacudiu a cabeça ligeiramente, enquanto nervosamente tamborilava sobre a mesa.

— Por Deus, Vance! Neste assunto intervém uma moça, existindo, portanto, uma possibilidade de que o ciúme tenha sido a causa do crime.

— Imagine isto, agora! Receio que o caso se transforme em uma espécie de tableau vivant para adultos que freqüentem o jardim de infância — que me diz? Mas isto fará com que nossa tarefa seja mais fácil. Tudo o que teremos de fazer é encontrar a mosca.

— A mosca?

— A Musca domestica, para falar pedantemente... Meu caro Markham, você se esqueceu?


"Quem o viu morrer?

"Eu" — disse a mosca.

"Com meus olhinhos

"Eu o vi morrer."


— Desça do seu reino de fantasia — disse Markham acerbamente. — Isto não é um brinquedo de crianças! É um assunto terrivelmente sério.

Vance meneou a cabeça distraidamente.

— Os brinquedos de criança são, às vezes, os assuntos mais sérios da vida. — Suas palavras tinham um tom distante e curioso. — Não me agrada isto... não me agrada absolutamente. Há muito de infantil nisto... de criança que nasceu velha e com um cérebro enfermo. É como uma perversão odiosa. — Aspirou profundamente o fumo de seu cigarro e fez uma ligeira careta de repugnância. — Dê-me os pormenores, vejamos onde nos encontramos nesta terra transtornada.

Markham sentou-se novamente.

— Tenho poucos pormenores. Praticamente, pelo telefone lhe disse tudo quanto sei. O velho professor Dillard chamou-me pouco tempo antes de eu ter falado com você.

— Dillard? Porventura o professor Bertrand Dillard?

— Sim, a tragédia passou-se em sua casa. Conhece-o?

— Pessoalmente, não. Conheço-o como o conhece o mundo científico... Como um dos maiores matemáticos do mundo. Tenho quase todos os seus livros. Mas, como aconteceu que ele o chamasse?

— Conheço-o há quase vinte anos. Na Universidade de Columbia foi meu professor de matemática e, mais tarde, fiz alguns trabalhos forenses para ele. Quando se encontrou o corpo de Robin, telefonou-me imediatamente... cerca de onze e meia. Chamei o sargento Heath, da Seção de Homicídios, e entreguei-lhe o caso... embora dissesse que, mais tarde, iria pessoalmente. Em seguida, telefonei a você. O sargento e seus homens esperam-nos na casa de Dillard.

— Qual é a situação doméstica do professor?

— Como você deve saber, ele renunciou à sua cátedra há uns dez anos. Desde essa época mora na Rua 75, Oeste, perto do Drive. Levou consigo para a sua casa a filha de um irmão, menina de quinze anos. Agora provavelmente terá vinte e cinco anos. Com eles vive o seu protegido Sigurd Arnesson, que foi meu condiscípulo na faculdade. O professor adotou-o, quando ele estava completando os seus estudos. Arnesson tem agora uns quarenta anos. É monitor de matemática em Colúmbia. Veio da Noruega com três anos de idade, ficando órfão cinco anos depois. É um matemático genial, e provavelmente Dillard viu nele um futuro grande físico e adotou-o.

— Já ouvi falar de Arnesson — observou Vance. — Recentemente publicou algumas modificações sobre a teoria de Mie a respeito da eletrodinâmica dos corpos em movimento... E estes três... Dillard, Arnesson e a moça vivem sós?

— Com dois criados. Ao que parece, Dillard tem uma renda bem apreciável. Entretanto, não estão muito sós. A casa é uma espécie de templo de matemáticos; tornou-se mesmo um cenáculo. Além disto, a moça, que sempre se dedicou aos desportos ao ar livre, tem o seu próprio círculo social. Estive lá várias vezes, e sempre encontrei visitas: um ou dois estudantes de ciências abstratas distraídos na biblioteca, ou alguns jovens barulhentos embaixo na sala.

— E Robin?

— Era amigo de Belle Dillard... jovem excêntrico, pertencente à alta sociedade e que possuía vários recordes de tiro de flecha...

— Sim, já sei. Vi o nome dele neste tratado. Um tal J. C. Robin parece ter feito os mais altos pontos em vários campeonatos recentes. Notei também que um Sr. Sperling foi o que mais se aproximou dele em vários grandes torneios. A Srta. Dillard é amante do esporte?

— Sim. É muito entusiasta. Na realidade, foi ela que organizou o Clube de Arco e Flecha do Riverside. Suas linhas de tiro permanentes estão localizadas na casa de Sperling, em Scarsdale; mas a Srta. Dillard preparou um lugar de exercício no pátio lateral da casa do professor, na Rua 75. Foi nesse lugar que mataram Robin.

— Ah! E, segundo você, a última pessoa que se sabe ter estado com ele foi Sperling. Onde está agora o nosso pardal?

— Não sei. Ele esteve com Robin, pouco tempo antes da tragédia; porém, quando o cadáver foi encontrado, já havia desaparecido. Espero que Heath tenha novidades sobre este ponto.

— E onde se acha o possível motivo de ciúmes, a que você se referiu? — As pálpebras de Vance caíram indolentemente e ele fumava com deliberada lentidão. Isto era sinal de que o assunto lhe interessava muitíssimo.

— O professor Dillard mencionou que havia simpatia entre sua sobrinha e Robin; e, quando lhe perguntei quem era Sperling e qual a sua posição na casa, o professor insinuou que ele pretendia a mão da moça. Não quis entrar em pormenores pelo telefone, porém a impressão que tive é que Sperling e Robin eram rivais, e que este último levava vantagem na luta.

— E assim o pardal matou Cock Robin. — Vance meneou a cabeça em sinal de dúvida. — Não basta. É demasiado simples e não corresponde à reconstrução diabolicamente perfeita dos versos de Cock Robin. Há algo mais profundo... algo mais sombrio e mais terrível nesse assunto grotesco. E, a propósito, quem encontrou Robin?

— O próprio Dillard. Este havia assomado ao pequeno balcão que há atrás da casa e foi então que o viu no chão, no lugar onde praticavam o jogo de flecha. Imediatamente desceu... com considerável dificuldade, pois o velho sofre horrivelmente da gota... e viu que o homem tinha o coração atravessado por uma flecha. Foi então que me telefonou. Isto é tudo que lhe posso adiantar até agora.

— Não poderíamos dizer que isto traz muita luz, porém é um tanto sugestivo. — Vance levantou-se. — Markham, meu velho amigo, prepare-se para algo bem bizarro... e odioso. Podemos já eliminar hipóteses de acidentes e coincidências. Conquanto seja verdade que as flechas comuns para atirar ao alvo sejam feitas de madeira flexível e providas de pequenas pontas chanfradas, podem facilmente penetrar a roupa de uma pessoa e o tórax mesmo, ainda quando impulsionadas por um arco de peso mediano, todavia o fato de ter um homem chamado "Pardal" matado outro de nome Cochrane Robin, com um arco e uma flecha, exclui qualquer idéia de concatenação fortuita de circunstâncias. Certamente, esta incrível série de acontecimentos prova concludentemente que houve um desígnio sutil e diabólico neste caso. — Encaminhou-se até a porta. — Venha, procuremos achar alguma coisa mais no lugar que a polícia austríaca eruditamente chama de situs criminis.

Saímos em seguida, dirigindo-nos ao centro da cidade no carro de Markham. Cruzando o Parque Central, saímos pelo portão da Rua 72, dobrando minutos mais tarde pela West End Avenue para entrar na Rua 75. A casa de Dillard, nº 391, estava à nossa direita, bem distante, na direção do rio. Entre este e o Drive, ocupando toda a esquina, se erguia um prédio de apartamentos de quinze andares. A casa do professor parecia abrigar-se como em busca de proteção, à sombra desse enorme edifício.

A casa de Dillard era de pedra cinzenta, enegrecida pela ação do tempo. Pertencia aos dias em que as casas eram construídas para que durassem e fossem cômodas. O terreno sobre que ela se erguia tinha 10 metros de frente, dos quais oito eram ocupados pela casa. O resto formava uma superfície que separava a casa de Dillard do edifício de apartamentos e estava isolada da rua por um muro de pedra, em cuja parte central havia um portão de ferro.

A casa era de arquitetura colonial modificada. Uma pequena escada conduzia da rua a um pórtico estreito revestido de ladrilhos e guarnecido com quatro colunas brancas corintianas. No segundo andar, havia uma série de janelas de batente com vidros retangulares, que ocupavam toda a frente da casa. (Estas, segundo soube mais tarde, eram as janelas da biblioteca.) O lugar dava a sensação de repouso e tranqüilidade; parecia tudo, menos o teatro de um horrendo crime.

Perto da porta de entrada, quando nós chegamos, já estavam dois carros da polícia e, ao redor deles, uma dúzia de curiosos. Um dos agentes de polícia estava encostado a uma das colunas estriadas do pórtico, olhando com desdém aborrecido os curiosos que se mantinham na sua frente. Um velho mordomo nos fez passar, conduzindo-nos à sala situada à esquerda do vestíbulo de entrada. Ali encontramos o sargento Ernest Heath com outros dois indivíduos da Seção dos Homicídios. O sargento, que estava de pé junto à mesa do centro fumando, com os dedos metidos na cava do colete, adiantou-se, estendendo amistosamente a mão a Markham.

— Alegro-me por ter vindo, senhor — disse ele; e a expressão atribulada dos seus olhos azuis parecia relaxar-se um pouco. — Estava à espera do senhor. Há alguma cousa que cheira a mistério neste caso.

Ao avistar Vance, que se havia conservado atrás, suas feições amplas e belicosas se enrugaram em um sorriso bem-humorado.

— Como vai, Sr. Vance? Tinha uma ligeira idéia de que isto ia-lhe interessar. Por onde tem andado todo esse tempo?

Não pude deixar de comparar esta cordialidade espontânea do sargento com a hostilidade de seu primeiro encontro com Vance, no caso Benson. Mas muita água havia passado sob a ponte desde o dia em que se viram na deslumbrante sala em que se deu o assassinato de Alvin; e entre Heath e Vance se havia desenvolvido uma boa amizade, baseada em um respeito mútuo e em uma franca admiração pelas capacidades um do outro.

Vance estendeu a mão e um sorriso pairou na comissura dos seus lábios.

— A verdade é, sargento, que tenho estado procurando as glórias perdidas de um ateniense chamado Menandro, rival dramático de Filêmon. Tolice, não é?

Heath grunhiu desdenhosamente.

— Bem, de qualquer forma, se o senhor é tão bom nisso como o é em descobrir assassinos, não duvido de que obterá êxito.

Este foi o primeiro elogio que ouvi de seus lábios e que confirmava não só a sua admiração profundamente arraigada por Vance, como também a preocupação e incerteza de seu estado mental.

Markham, percebendo essa insegurança mental do sargento, perguntou-lhe abruptamente:

— Qual parece ser a dificuldade no caso presente?

— Eu não disse que havia dificuldade, senhor — replicou Heath. — Parece-me que o pássaro que cometeu o crime está engaiolado. Entretanto, não estou satisfeito e... oh, diabo! Sr. Markham... não é natural, é contra o bom senso.

— Penso entender o que você quer dizer. — Markham observou o sargento atentamente. — Você está inclinado a crer na culpabilidade de Sperling?

— Seguramente, ele é o culpado — declarou Heath sem vacilar. — Porém, não é isto o que me preocupa. Ser-lhe-ei franco, não me agrada o nome da vítima... especialmente como foi assassinada... com arco e flecha... — Hesitou um pouco envergonhado. — Não lhe parece estranho?

Markham meneou a cabeça com perplexidade.

— Vejo que vocês dois se recordam dos versos da infância — disse ele, dando-lhes as costas.

Vance fixou um olhar zombeteiro em Heath.

— Você acaba de referir-se a "Sperling" como se fosse um "pássaro", sargento. A designação não pode ser melhor. Sperling quer dizer, em alemão, "pardal". E você se recorda de que foi um pardal quem matou Cock Robin com uma flecha... Uma situação fascinante, não é verdade?

Os olhos do sargento se abriram ligeiramente e seus lábios se separaram. Olhou para Vance com quase ridículo aturdimento.

— Eu disse que este negócio cheirava a mistério!

— Eu diria, antes, a ave.

— O senhor o chamaria alguma coisa que ninguém compreendesse — replicou Heath truculentamente. Era seu costume tornar-se belicoso, quando se achava diante de algo inexplicável.

Markham interveio diplomaticamente.

— Dê-nos os pormenores do caso, sargento. Suponho que tenha interrogado os moradores da casa.

— Só de um modo geral, senhor. — Heath descansou a perna em um ângulo da mesa e reacendeu seu charuto. — Estava esperando que o senhor chegasse para descerrar o véu. Sabia que o senhor era amigo do velho que está lá em cima. Assim não fiz mais do que o rotineiro. Destaquei um agente para fora, no corredor, para que ninguém toque no cadáver até chegar o doutor Doremus (1) — ele estará aqui depois do almoço. Telefonei para a Seção de Datiloscopia para que mandem peritos, que não tardarão a pôr-se em atividade, embora eu não veja o que de útil poderão fazer...

(1) Heath referia-se ao Dr. Emanuel Doremus, médico inspetor da polícia de Nova York.


— Que me diz do arco que desferiu a flecha? — perguntou Vance.

— Esse seria o nosso melhor indício, se o velho Sr. Dillard não o recolhesse e guardasse em casa. Provavelmente, destruiu todos os sinais que pudesse ter.

— Que é que você fez sobre Sperling? — perguntou Markham.

— Consegui seu endereço. Vive em uma casa de campo no caminho de Westchester. Enviei dois homens para que o detenham. Também falei com os dois criados; o velho que lhes abriu a porta e sua filha, uma mulher de meia-idade, que é cozinheira. Porém, nenhum deles sabia nada, ou aparentavam não saber. Em seguida, tratei de interrogar a jovem dona da casa. — O sargento levantou a mão num gesto de desespero. — Mas ela estava tão abatida e chorosa que pensei em deixar ao senhor o prazer de interrogá-la. Snitkin e Burke — apontou com o indicador os dois detetives destacados na janela da frente — foram ao porão, ao corredor e ao pátio dos fundos para ver se recolhiam algo. Obtiveram um resultado negativo. É isso tudo o que até agora pude averiguar. Assim que Doremus e os peritos da Seção de Datiloscopia cheguem e uma vez que eu tenha falado com Sperling, então farei girar a bola e esclarecerei o assunto.

Vance lançou um suspiro perceptível.

— Você é muito otimista, sargento! Não se desaponte se a bola se transformar num paralelepípedo e não rolar. Há alguma coisa diabòlicamente rara nesta extravagância infantil. E, a não ser que todos os prognósticos me enganem, você estará envolvido por muito tempo ainda, num jogo de cabra-cega.

— O quê? — Heath lançou a Vance um olhar entre rude e desanimado. Era evidente que tinha mais ou menos a mesma opinião.

— Não se deixe desencorajar por Vance, sargento — disse Markham, dando-lhe ânimo. — Não vê que ele está dando livre curso à imaginação? — Então com um gesto de impaciência voltou-se para a porta. — Examinemos o terreno antes que cheguem os outros. Falarei mais tarde com o professor Dillard e com os demais da casa. E, a propósito, sargento, você não nos falou a respeito de Arnesson. Ele não está em casa?

— Está na universidade, mas não tardará a chegar.

Markham meneou a cabeça e seguiu o sargento até o saguão principal. No momento em que passavam pelo corredor atapetado, produziu-se um ruído na escada, seguido da voz clara e trêmula de uma mulher que se achava em cima, na obscuridade.

— É o Sr. Markham? Meu tio pensou ter reconhecido sua voz. Ele o espera na biblioteca.

— Dentro de poucos minutos irei ter com seu tio, Srta. Dillard. — O modo de Markham era paternal e cheio de simpatia. — E faça o favor de esperar-me com ele, pois desejo também falar-lhe.

Com um murmúrio de aquiescência, desapareceu a moça no cimo da escada.

Encaminhamo-nos para a porta dos fundos do saguão inferior. Adiante havia uma passagem estreita que terminava nuns degraus de madeira que conduziam ao porão. Ao pé desses degraus, havia um grande compartimento de teto baixo com uma porta que dava diretamente para o terreno do lado ocidental da casa. A porta estava apenas encostada, deixando uma fresta pela qual se podia ver o homem que Heath havia destacado para cuidar do cadáver.

Indubitavelmente esse compartimento tinha sido uma adega; porém, fora bem alterado e convenientemente preparado e servia agora como sede do clube. O piso de cimento se achava coberto de esteiras e uma das paredes tinha uma pintura em que se viam os arqueiros através das idades. Em um painel oblongo, à esquerda, havia uma imensa reprodução ilustrada de um campo de tiro de flecha com a legenda "Ayme para arqueiros de Finsburie. Londres, 1594", vendo-se em um canto a colina Bloody House; no centro, o Westminster Hall e, em primeiro plano, o Welsh Hall. No quarto, havia um piano e uma vitrola, numerosas cadeiras de vime, um diva de cores variadas, uma mesa central de vime cheia de revistas desportivas de todas as classes e uma pequena biblioteca abarrotada de livros sobre arco-e-flecha. Vários alvos jaziam em um canto; seus discos dourados e seus anéis cromáticos concêntricos lançavam brilhantes reflexos, devido à luz do sol que inundava o compartimento pelas duras janelas de trás. Em um espaço da parede, perto da porta, pendiam largos arcos de tamanhos e pesos distintos, e, quase ao lado, podia ver-se uma grande arca antiga para ferramentas. Em cima se achava suspenso um pequeno armário cheio de fragmentos de braçais, luvas para atirar, estacas, alvos e cordas para arcos. Um mostruário de carvalho situado entre a porta e a janela exibia uma das coleções de flechas mais interessantes e variadas que eu tinha visto. Este mostruário atraiu particularmente Vance, que, ajustando cuidadosamente seu monóculo, se encaminhou para ele.

— Flechas de caça e de guerra — observou ele. — A maioria coberta com um véu... Ah! Um dos troféus parece haver desaparecido. E, além disso, arrancado com uma pressa considerável. O pequeno prego de bronze que o sustinha em seu lugar está dobrado.

No chão havia várias aljavas cheias de flechas. Inclinou-se e, pegando uma, entregou-a a Markham.

— Esta seta de junco não parece que pudesse penetrar no peito humano e, não obstante, atravessa um veado a uns oitenta metros de distância. Por que então a flecha de caça falta no mostruário? É um pormenor interessante.

Markham franziu as sobrancelhas e apertou os lábios; e eu me lembrei de que ele tinha estado aferrado à idéia de um acidente... Arrojou a flecha desconsoladamente em uma cadeira e caminhou até a porta que dava para fora do aposento.

— Examinemos o cadáver e o terreno — disse ele asperamente.

Quando saímos à fraca luz solar da primavera, sobreveio-me uma sensação de isolamento. A estreita área calçada, em que nos encontrávamos, parecia um canyon entre empinados muros de pedra. Estava cerca de metro e meio abaixo do nível da rua, a que se chegava por uma escada que subia até ao portão no muro. A parede posterior lisa e sem janelas do prédio de apartamentos se elevava até quarenta e cinco metros de altura; e o prédio de Dillard, embora só tivesse quatro andares, equivalia a seis, medidos pelos padrões arquiteturais de hoje em dia. Embora estivéssemos ao ar livre, em plena Nova York, ninguém podia ver-nos, exceto das poucas janelas laterais do prédio de Dillard e de um alpendre da casa da Rua 76, cujo pátio posterior limitava com o do terreno do professor.

Esta outra casa, não tardaríamos muito em saber que era de uma certa Sra. Drukker, e que estava destinada a desempenhar uma parte vital e trágica na solução do assassinato de Robin. Vários salgueiros altos ocultavam suas janelas dos fundos; e só do alpendre poderia observar-se aquela parte do terreno em que nos achávamos.

Eu notei que Vance não tirava a vista daquele alpendre e enquanto ele o estudava, vi passar pelo seu rosto um sinal de interesse. Não foi senão muito mais tarde que eu pude adivinhar o que havia chamado tanto a sua atenção.

O campo de exercícios de tiro de flecha se estendia desde a parede do lote de Dillard na Rua 75 até uma parede similar do lote dos Drukkers na Rua 76, onde uma pilha de fardos de feno tinha sido levantada sobre uma baixo leito de areia. A distância entre as duas paredes era de 30 metros, que, como soube depois, era suficiente para se poder praticar exercício de arco e assim preparar-se para qualquer concurso, com exceção do York Round para homens.

O lote de Dillard era de 40 metros de fundos, sendo por conseguinte o dos Drukkers de 20 metros. Uma seção da alta cerca de ferro que havia sido removida do lugar onde antes separava os dois lotes, permitiu que o terreno pudesse ser usado para o desporto da moda. Na extremidade mais afastada do terreno, situada contra a linha ocidental da linha da propriedade dos Drukkers, havia outro prédio de apartamentos, que ocupava a esquina da Rua 76 com Riverside Drive. Entre esses dois edifícios gigantescos, havia uma passagem estreita cuja extremidade posterior estava fechada por um alto muro com uma portinha com fechadura.

A fim de ser claro, incorporo a estas memórias um diagrama do escritório completo; pois a disposição dos vários detalhes topográficos e arquiteturais teve um sentido muito importante na solução do caso. Eu chamaria a atenção particularmente para os dois seguintes pontos: 1? — o balcãozinho do segundo andar na parte posterior da casa de Dillard que sobressai um pouco sobre o campo de exercício de tiro de flecha; 2? — o alpendre, no segundo andar da casa dos Drukkers, cujo ângulo meridional tem uma vista de todo o terreno até à Rua 75; e 3? — a passagem entre os dois prédios de apartamentos que vai desde o Riverside Drive até o pátio posterior do prédio de Dillard. O corpo de Robin jazia quase diretamente fora da porta do compartimento que servia de sede do clube. Estava de costas, com os braços estendidos, as pernas ligeiramente encolhidas, a cabeça virada para a extremidade do terreno que dá para a Rua 76. Robin era um homem talvez de 35 anos, de altura regular e corpulento. Havia uma inchação esférica em seu rosto todo barbeado, com exceção de um bigodinho fino e louro. Vestia traje esportivo de flanela cinzenta, camisa de seda azul-pálido e sapatos Oxford, amarelos, com sola de borracha. Perto dos pés estava o seu chapéu de feltro cor de pérola.

Junto do cadáver havia uma poça de sangue coagulado que tomara a forma de um grande ponteiro de relógio. Mas o que nos infundiu horror foi a seta delgada que se estendia verticalmente pelo lado esquerdo do peito da vítima. A flecha sobressaía uns cinqüenta centímetros, e pelo lugar de entrada se via a mancha grande e escura da hemorragia. E o que fez com que este estranho assassino parecesse ainda mais incongruente foram as belas plumas colocadas na flecha. Elas tinham sido coloridas de roxo claro; e perto da seta duas franjas azul-turquesa davam à flecha um aspecto de gala. Eu tinha uma sensação de irrealidade acerca da tragédia, como se estivesse presenciando uma cena em uma comédia pastoral para crianças. Vance permaneceu olhando o cadáver com os olhos semicerrados e as mãos nos bolsos do casaco. Apesar de sua aparente atitude de indolência, eu podia dizer que ele estava sutilmente alerta e que seu cérebro tratava de coordenar os fatores da cena que agora presenciava.

— Que coisa estranha essa flecha — comentou ele. — Foi feita para caça grande... indubitavelmente pertence àquela exposição etnológica que acabamos de ver. Em um golpe limpo... diretamente no ponto vital, entre as costelas, e sem o menor desvio. Extraordinário!... Diga, Markham, semelhante pontaria não é humana. Um tiro causai podia tê-la feito; porém, o assassino desse homem não deixou nada ao acaso. Essa poderosa flecha de caça que evidentemente foi arrancada da caixa indica premeditação e propósito... — Subitamente se inclinou sobre o cadáver. — Ah! Muito interessante. O punho da flecha está quebrado. Eu duvido que ele sustentasse a corda do arco estirada. — Virando-se para Heath. — Diga-me, sargento: Onde o professor Dillard encontrou o arco? Não longe da janela desse quarto, não é? Heath teve um sobressalto.

— Fora da janela, de fato, senhor Vance. Está agora sobre o piano esperando que cheguem os peritos da Seção de Datiloscopia.

— Receio que a única impressão digital que vão achar seja do professor Dillard. — Vance abriu sua cigarreira e tirou outro cigarro. — E estou quase inclinado a crer que a flecha propriamente está livre de impressões.

Heath perscrutava Vance inquisitivamente.

— Que lhe fez pensar que o arco fora encontrado perto da janela, Sr. Vance? — perguntou ele.

— Parecia o lugar lógico, em vista da posição do corpo do Sr. Robin, sabe?

— O senhor acha que ela foi disparada de curta distância?

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, sargento. Referia-me ao fato de que os pés da vítima se acham na direção da porta do porão, e que embora os braços estejam estendidos, as pernas estão encolhidas. Acredita você que um homem com o coração atravessado possa cair nessa posição?

Heath considerou a questão.

— Não — admitiu ele. — O mais provável é que estivesse encolhido, ou se caísse de costas, suas pernas estariam estiradas e os braços encolhidos.

— Exatamente! E olhe o chapéu. Se o homem tivesse caído de costas, o chapéu estaria atrás do morto e não a seus pés.

— Escute aqui, Vance, — interveio Markham rudemente. — Que pensa você?

— Oh! Muitíssimas coisas. Todas, porém, chegam à conclusão irracional de que esse cavalheiro não foi morto com arco e flecha.

— Então por que, em nome de Deus...

— Exatamente! Por que a insana manifestação desse elaborado jogo de cena?

— Palavra, Markham! Este negócio é espantoso.

Enquanto Vance falava, a porta do porão se abriu e o Dr. Doremus, guiado pelo detetive Burke, penetrou airoso na área. Saudou-os garbosamente, apertando-lhes as mãos. Logo olhou para Heath com displicência.

— Essa não, sargento. — Queixou-se ele, baixando seu chapéu até tomar um ângulo mais fechado que o usual. — Só dedico 3 horas das 24 para comer; e você escolhe invariavelmente essas 3 horas para molestar-me com seus malditos cadáveres. Você está arruinando a minha digestão. — Olhou a seu redor com petulância e, ao ver Robin, assoviou baixinho. — Por amor de Deus! Esta vez, sim, você escolheu um lindo assassinato.

Ajoelhou-se e começou a apalpar com os seus dedos práticos o corpo do morto. Markham se conservou olhando por um momento, mas voltando-se para Heath lhe disse:

— Enquanto o doutor estiver ocupado com o seu exame, sargento, subirei para falar com o professor Dillard. — Então dirigindo-se a Doremus: — Gostaria de vê-lo antes de ir, doutor.

— Oh, decerto, — respondeu Doremus sem olhar para cima. Ele havia virado o cadáver de lado e apalpava-lhe a base do crânio.


III

 

UMA PROFECIA RELEMBRADA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 13h30)

 


Quando entramos no salão principal, chegavam o capitão Dubois e o detetive Bellamy, peritos em impressões digitais. O detetive Snitkin, que, evidentemente, estava aguardando a chegada deles, conduziu-os logo para a escada do porão, e Markham, Vance e eu subimos ao segundo andar.

A biblioteca era um salão grande e luxuoso com seis metros de fundo pelo menos e ocupava toda a largura do edifício. Duas paredes laterais achavam-se tomadas até o teto de armários embutidos, e ao centro da parede do lado do ocidente elevava-se uma lareira de bronze maciço, estilo imperial. Ao lado da porta, encontrava-se um aparador bem trabalhado, estilo jacobino, e, fronteiro a este, perto da janela que dava para a Rua 75, havia uma enorme escrivaninha artisticamente trabalhada e coberta de papéis, jornais e folhetos. Havia muitos objetos de arte na sala; dois quadros de Dürer olhavam-nos dos painéis da tapeçaria do lado da prateleira da lareira. Todas as cadeiras eram amplas e cobertas de couro escuro.

O professor Dillard estava sentado defronte da escrivaninha, com um pé descansado em uma pequena otomana aveludada; e, em um canto perto da janela, estendida numa grande poltrona, estava sua sobrinha, moça vigorosa, trajando costume muito bem talhado, com feições fortes, esculturadas em molde clássico. O velho professor não se ergueu para saudar-nos e nem se desculpou por essa omissão. Parecia supor que todos já sabiam de sua fraqueza. As apresentações foram ligeiras, embora tivesse Markham dado uma breve explicação da presença de Vance e de mim ali.

— Eu lamento, Markham, — disse o professor, quando nós nos acomodamos — que uma tragédia seja o motivo desta reunião; todavia, sempre é agradável vê-lo. Suponho que queira interrogar a mim e a Belle. Bem, faça as perguntas que quiser.

O professor Bertrand Dillard era um homem que aparentava ter sessenta anos, ligeiramente curvado devido à vida sedentária e estudiosa que levava: braquicéfalo, rosto liso e com uma basta cabeleira branca penteada à Pompadour. Seus olhos, embora pequenos, eram notavelmente vivos e penetrantes; e as rugas ao redor da boca davam-lhe a expressão séria e grave resultante, muita vez, dos longos anos de concentração em problema difíceis. Suas feições eram as de um sonhador e cientista; e, como todo o mundo sabe, os sonhos extravagantes tidos por este homem sobre o espaço, o tempo e o movimento atualizaram-se dentro de nova base de fatos científicos. Mesmo agora, sua fisionomia espelhava uma abstração introspectiva, como se a morte de Robin fosse apenas uma intromissão no drama íntimo dos seus próprios pensamentos.

Markham hesitou por momentos, antes de se decidir. Então, falou com a maior deferência:

— Talvez queira o senhor contar exatamente o que sabe a respeito da tragédia. Depois farei as perguntas que julgar necessárias.

O professor Dillard estendeu a mão para segurar um velho cachimbo de espuma do mar que estava sobre uma estante a seu lado. Quando terminou de enchê-lo e o acendeu, acomodou-se melhor na cadeira.

— Já lhe disse pelo telefone tudo o que sei. Robin e Sperling vieram visitar Belle, hoje de manhã, pelas dez horas. Ela não estava, pois havia ido jogar tênis; assim os dois esperaram-na embaixo, na sala. Ouvi-os conversarem por espaço de meia hora, até que desceram para a sala do clube no porão. Eu me conservei aqui lendo durante uma hora talvez, ao cabo da qual, achando o sol tão agradável decidi-me a ir até a sacada que há nos fundos da casa. Acho que não haviam decorrido cinco minutos, quando por acaso olhei para baixo e vi, com grande espanto, Robin caído de costas na linha de tiro com uma flecha atravessada no coração. Desci o mais rapidamente que me permitia a minha gota, porém logo vi que o homem estava morto. Imediatamente fui ao telefone e comuniquei-me com você. Na ocasião, não havia ninguém em casa, a não ser o velho Pyne — o mordomo — e eu. A cozinheira tinha ido ao mercado. Arnesson tinha partido para a Universidade às 9 horas; e Belle ainda estava jogando tênis. Mandei Pyne procurar Sperling, mas este não foi encontrado em parte alguma, e eu voltei para a biblioteca a fim de esperá-lo. Belle voltou pouco antes da chegada do seu pessoal, e a cozinheira um pouco mais tarde. Arnesson não estará de volta antes das duas.

— Não havia ninguém mais esta manhã... nenhum estranho ou visitante?

O professor sacudiu a cabeça.

— Somente Drukker... Creio que você o viu uma vez aqui. Ele mora na casa que dá fundos para a nossa. Ele nos visita seguidamente... para ver quase sempre o Arnesson; têm muito de comum. Escreveu um livro sobre Ajustes Mundiais na Contínua Multidimensional. O homem é um sábio a seu modo. Tem o verdadeiro espírito científico. Quando soube que Arnesson não estava em casa, sentou-se um pouco comigo falando sobre a expedição ao Brasil da Real Sociedade de Astronomia. Logo se retirou para a casa.

— A que horas?

— Isto pelas nove e meia. Drukker já se havia ido embora, quando chegaram Robin e Sperling.

— É raro, professor Dillard, que o Sr. Arnesson saia aos sábados pela manhã? — perguntou Vance.

O velho professor olhou para cima penetrantemente, e houve uma pequena pausa ou hesitação, antes de responder.

— Não é exatamente raro; apesar de ficar em casa geralmente aos sábados, é verdade que sai algumas vezes. Hoje mesmo foi à biblioteca da faculdade colher certos dados para um livro que, em breve, publicaremos em colaboração (1).

(1) O livro a que se referia o prof. Dillard era a grande obra que apareceu dois anos mais tarde A Estrutura Atômica da Energia Radiante, emenda da teoria do quantum, de Planck, refutando o axioma clássico da continuidade de todos os processos físicos, contido na obra de Maximus Tyrius.


Houve um pequeno silêncio, logo rompido por Markham.

— O senhor disse que tanto Robin como Sperling eram

pretendentes à mão da Srta. Dillard...

— Tio! — A moça ergueu-se em sua cadeira e, voltando-se para o velho professor, lhe lançou um olhar cheio de ressentimento. — Não fica bem dizer isto.

— Não obstante, é verdade, querida. — A sua voz era extremamente carinhosa.

— É verdade... em parte — admitiu ela. — Porém, não havia necessidade de mencionar isto. O senhor sabe tão bem como eles o meu modo de pensar. Éramos muito bons amigos... e só isto. Sem ir mais longe, ontem à noite, quando estávamos reunidos aqui, eu lhe disse... com franqueza... que não queria ouvir mais tolices acerca de casamento nem de um, nem de outro. Eram muito jovens... e agora um deles morreu... Pobre Cock Robin!

A moça esforçou-se bravamente para sufocar a sua emoção.

Vance levantou as sobrancelhas e inclinou-se para diante:

— Cock Robin?

— Oh, nós o chamávamos assim para mexer com ele, pois ele não gostava do apelido.

— O aditamento era inevitável — ajuntou Vance com simpatia. — E era um apelido bastante lindo, não acha? O Cock Robin original era amado "por todas as aves do ar", e todas choraram a sua morte. — Enquanto falava, ele olhava atentamente a moça.

— Já sei — disse ela, meneando a cabeça. — Isto mesmo eu lhe disse uma vez. Todos o estimavam muito. Não podia ser de outro modo. Tinha tão... bom coração, era tão bondoso...

Vance encostou-se de novo na cadeira e Markham continuou o seu interrogatório.

— O senhor disse, professor, que ouvira Robin e Sperling conversarem na sala. Pôde compreender o que diziam? O ancião olhou de soslaio para a sobrinha.

— Esta pergunta tem importância real, Markham? — perguntou ele, após hesitar por momentos.

— É possível que seja de grande utilidade para deslindar posições.

— Talvez. — O professor sugou, pensativamente, o seu cachimbo. — Por outro lado, se eu responder, é possível que dê uma interpretação errônea e faça uma grande injustiça ao que vive.

— Não pode confiar em mim para julgar este ponto? — A voz de Markham se havia tornado grave e imperativa. Houve outro breve silêncio, esta vez rompido pela moça.

— Por que não conta ao Sr. Markham o que ouviu, tio? Que mal há nisto?

— Porque pensava em você, Belle — contestou suavemente o professor. — Porém, talvez você tenha razão. — Dito isto, olhou para cima com relutância. — A verdade é, Markham, que Robin e Sperling se insultaram por causa de Belle. Ouvi só um pouco, porém o suficiente para deduzir que se acusavam reciprocamente de falta de lealdade... de estarem atrapalhando o caminho...

— Oh! Não falavam a sério — interrompeu a Srta. Dillard com veemência. — Eles sempre discutiam por ciúmes; porém eu não era a verdadeira causa. Eram rivais no arco-e-flecha. Como o senhor sabe, Raymond — o Sr. Sperling — era o melhor atirador; porém, este último ano, Joseph derrotou-o em vários concursos e, no último torneio anual, ganhou o campeonato de nosso clube.

— E Sperling pensou talvez — ajuntou Markham — que, devido a isso, havia perdido a sua estima.

— Que absurdo! — replicou a moça com azedume.

— Eu creio, querida, que podemos deixar este assunto, sem receio, nas mãos do Sr. Markham — disse o professor Dillard, apaziguadoramente. Então, dirigindo-se a Markham. — Deseja fazer-me outra pergunta?

— Quisera saber tudo o que o senhor sabe a respeito de Sperling e Robin... Quem são eles, quais as suas associações. Quanto tempo faz que o senhor os conhece...

— Creio que Belle pode esclarecer-lhe melhor do que eu. Eram antes amizade dela. Eu os via apenas ocasionalmente.

— Faz anos que os conheço — disse ela imediatamente. — Joseph tinha uns oito ou dez anos mais que Raymond, e até há uns cinco anos vivia na Inglaterra, quando morreram seus pais. Veio então para a América e adquiriu um apartamento no Drive. Tinha bastante dinheiro e se dedicava à pesca, à caça e aos desportos ao ar livre. Freqüentava muito pouco a sociedade e era um desses amigos cômodos que sempre estão à mão, na falta de outro. Nele não havia muito... do ponto de vista intelectual.

Fez uma pausa, como se suas observações fossem de uma forma ou outra desleais para com o morto. Markham, interpretando-lhe os sentimentos, perguntou com simplicidade:

— E Sperling?

— É filho de um rico industrial... agora aposentado. Vivia em Scardale, em uma formosa herdade... onde nosso clube de balística tem agora seu campo de exercícios... Raymond é engenheiro consultor de uma firma da cidade, embora eu creia que ele trabalha só para tranqüilizar seu pai, pois só vai ao escritório duas ou três vezes por semana. Formou-se em Boston e eu o conheci nas férias, quando estava em seu segundo ano de estudos. Não era dos que se sobressaíam muito, porém é o protótipo do jovem norte-americano... sincero, alegre, algo retraído e absolutamente correto.

Pela breve descrição da moça foi fácil ter-se uma idéia de como eram Robin e Sperling, sendo conseqüentemente difícil relacionar qualquer um dos dois com a sinistra tragédia que nos trouxera a essa casa.

Markham permaneceu com as sobrancelhas franzidas durante uns instantes, levantando por fim a cabeça e fixando o olhar na moça:

— Diga-me, Srta. Dillard, tem alguma teoria ou hipótese que pudesse de uma forma ou outra explicar o porquê da morte do Sr. Robin?

— Não! — A resposta foi antes uma explosão. — Quem podia desejar a morte de Cock Robin? Ele não tinha inimigos. É algo incrível o que aconteceu. Antes de ver com os meus próprios olhos, não podia crer. E ainda assim não parecia real.

— Não obstante, minha querida menina, — interrompeu o professor Dillard, — o homem foi assassinado, assim é que deve haver algo na sua vida que você desconhecia ou de que não suspeitava. Constantemente encontramos estrelas novas que os antigos astrônomos não criam que pudessem existir.

— Eu não posso imaginar que Joseph tivesse inimigos — replicou ela. — Não o crerei. É completamente absurdo.

— Então, pensa você — perguntou Markham — que é improvável que Sperling fosse de certo modo responsável pela morte de Robin?

— Improvável? — Os olhos da moça relampejaram. — É impossível!

— E, não obstante, a senhorita sabe — agora era Vance quem falava como quem não quer nada — que "Sperling" significa "pardal".

A moça permaneceu imóvel. Seu rosto empalideceu e as mãos apertaram fortemente os braços da cadeira. Então, lentamente e com grande dificuldade, meneou a cabeça, enquanto que seu peito arfava fortemente ao respirar. Subitamente estremeceu e apertou o lenço contra o seu rosto.

— Tenho medo! — murmurou ela.

Vance levantou-se e, encaminhando-se até ela, lhe tocou , o ombro consoladoramente.

— Por que tem medo?

Ela levantou a vista e encontrou o olhar de Vance que parece tê-la tranqüilizado, pois forçou um sorriso lastimoso.

— Ainda outro dia — disse ela com voz tensa — estávamos todos embaixo, no pátio de exercícios. Raymond preparava-se para arremessar um Single American Round, quando Joseph abriu a porta do porão e saiu. Não existia, em verdade, perigo algum. Sigurd — o Sr. Arnesson — estava sentado na sacada olhando-nos. E, quando gracejando gritei apontando para Joseph, "a ele! a ele!", Sigurd virou-se e disse: "Você não sabe ao que se expõe, jovem amigo. Você é Cock Robin e aquele arqueiro é um pardal. E você bem sabe o que aconteceu a seu homônimo, quando um senhor Pardal empunhou o arco e a flecha... ou qualquer coisa assim". Naquele momento ninguém prestou atenção. Mas agora!... — Sua voz se converteu em um murmúrio de temor.

— Vamos, Belle, não seja mórbida, — disse o professor consolando-a, porém não sem impaciência. — Era simplesmente um dos gracejos de mau gosto de Sigurd. Você bem sabe que ele moteja e ri continuamente das realidades. É a única evasão que tem da sua constante aplicação às ciências abstratas.

— Acho que sim — respondeu ela. — Por hipótese, foi uma troça. Porém, agora, parece uma profecia terrível. Somente — apressou-se a dizer — Raymond não podia ser o autor.

Enquanto falava, abriu-se a porta da biblioteca e uma figura alta e magra apareceu no umbral.

— Sigurd! — A exclamação de assombro proferida por Belle Dillard revelava uma inegável sensação de alívio.

Sigurd Arnesson, protegido e filho adotivo do professor Dillard, era um homem de aspecto surpreendente — 1,80 m de altura, vigoroso, com uma cabeça que à primeira vista parecia demasiado grande para seu corpo, o cabelo quase amarelo desgrenhado como o de um escolar, nariz aquilino e faces magras e musculosas. Embora não tivesse mais de quarenta, as rugas formavam no seu rosto uma rede que dava uma impressão sardonicamente fantástica; porém, a paixão intensamente intelectual que lhe iluminava os olhos cinzento-azulados contradizia qualquer superficialidade da natureza. Minha reação inicial relativamente à sua personalidade era de respeito e agrado. Havia nele profundidades... potencialidades poderosas e altas capacidades.

No momento que entrava, seus olhos perscrutadores nos abrangeram a todos com um olhar veloz e inquiridor. Saudou com a cabeça levantada a Srta. Dillard e logo mirou o velho professor com um olhar de fria distração.

— Por favor, digam-me o que aconteceu nesta casa tridimensional. Lá fora, o carro da polícia, muita gente, uma sentinela na porta... e dois homens em traje civil que me enviaram aqui quase aos empurrões, sem cerimônia nem explicação alguma... Muito divertido, porém desconcertante... Ah! Ao que parece, está aqui o procurador do distrito. Bom dia... ou dito melhor, boa tarde... Sr. Markham.

Antes que este pudesse responder ao cumprimento, Belle Dillard falou:

— Sigurd, rogo a você que não caçoe. Mataram o Sr. Robin.

— Você quer dizer Cock Robin. Vá! Vá! Com este nome, que outra coisa podia esperar? — Parecia não se emocionar com a notícia. — Quem o fez volver aos elementos?

— Quanto a isso, não sabemos — contestou Markham em tom de censura pela jovialidade intempestiva do outro. — O que sabemos é que o senhor Robin foi assassinado com uma flecha que lhe cravaram no coração.

— Não podia ser de outro modo — disse Arnesson, sentando-se no braço de uma cadeira e estirando suas longas pernas. — Que poderia haver de mais apropriado para esse Cock Robin do que morrer de um flechaço arremessado pelo arco de...

— Sigurd! — Belle Dillard lhe cortou a frase. — Você já não caçoou o suficiente? Você sabe que não foi Raymond.

— Indubitavelmente, irmã. — O homem mirou-a um tanto reflexivamente. — Eu estava pensando no progenitor ornitológico do Sr. Robin. — Voltando-se lentamente para Markham perguntou-lhe: — Assim é que se trata de um crime misterioso, com um cadáver, pistas e acessórios, não? Posso saber o que é que se passou?

Markham expôs brevemente um resumo da situação, o que ele escutou com grande interesse. Uma vez terminada a exposição, perguntou:

— Não se encontrou arco algum no pátio?

— Ah! — Vance, pela primeira vez, desde que chegou Arnesson, despertou de uma aparente letargia e respondeu em lugar de Markham. — Esta é uma pergunta que vem muito a propósito, Sr. Arnesson. Sim, um arco foi encontrado fora da janela do porão a uns três metros do cadáver.

— Isso, naturalmente, simplifica o assunto — disse Arnesson desiludidamente. — Agora é só tomar as impressões digitais.

— Infelizmente o arco foi tocado — explicou Markham. — O professor Dillard recolheu-o e guardou-o no porão.

Arnesson voltou-se com curiosidade para o ancião.

— Que impulso, senhor, o levou a fazer tal coisa?

— Impulso? Meu caro Sigurd, eu não analisei minhas emoções. Todavia, imaginei que o arco fosse uma parte principal do corpo de delito, guardando-o como medida de precaução até que chegasse a polícia.

Arnesson fez uma careta e levantou humoristicamente um olho.

— Isso se assemelha ao que nossos amigos psicanalistas chamariam uma explicação da suspensão crítica. Gostaria de saber que idéia se achava submersa em seu espírito...

A cabeça de Burke assomou à porta ao mesmo tempo que anunciava:

— O Dr. Doremus espera-os embaixo. Já terminou o exame médico.

Markham levantou-se desculpando-se:

— Por ora não os molestarei mais. Há muito trabalho rotineiro que fazer ainda. Mas devo pedir-lhe que façam o favor de não sair daqui. Vê-los-ei antes de ir-me embora.

Doremus estava-se balançando impacientemente sobre a ponta dos pés quando nos reunimos a ele na sala.

— Não há nada completo — começou a dizer antes que Markham tivesse ocasião de falar. — Nosso amigo desportista foi morto por uma flecha cuja ponta fortemente afilada penetrou no coração pelo quarto espaço intercostal. Foi disparada com grande força. Muita hemorragia interna e externa. Faz duas horas que morreu, e acredito que seriam onze e meia quando caiu. Entretanto, tudo isto é pura teoria. Nenhum sinal de luta... nenhuma marca em sua roupa, nem arranhões em suas mãos. A morte sobreveio sem que ele percebesse o que acontecia a seu redor. Recebeu um forte golpe na parte posterior da cabeça, ao cair no piso de cimento...

— Isso é muito interessante — interrompeu Vance, com sua voz lenta e penosa, o médico da polícia, em seu monótono relato. — É muito sério o "golpe", doutor?

Doremus pestanejou e mirou Vance um tanto assombrado.

— O suficiente para causar a fratura do crânio. Não pude apalpá-lo, certamente, porém havia um enorme hematoma sobre a região ocipital, sangue seco nas narinas e nos ouvidos e as pupilas desiguais que indicavam uma fratura de crânio. Depois da autópsia, poderei dizer alguma coisa mais.

— Voltando-se para o procurador do distrito: — Alguma coisa mais?

— Nada mais, doutor. A única coisa que lhe peço é que nos forneça quanto antes seu laudo post mortem.

— Esta noite o senhor o terá. O sargento já telefonou chamando o carro.

Apertando nossas mãos, retirou-se apressadamente. Heath, um pouco retirado de nós, franzia a testa.

— Bem, isto não nos leva a lado algum — disse, queixoso, enquanto mascava viciosamente seu cigarro.

— Não desanime, sargento — censurou Vance. — Este golpe na parte posterior do crânio é digno da mais profunda consideração. Minha opinião é que não recebeu ao cair, sabe?

O sargento não se impressionou ante esta observação.

— E ainda mais, Sr. Markham — continuou falando. — Não havia impressões digitais nem na flecha, nem no arco. Dubois disse parecer que foram apagadas. Havia umas manchas na extremidade do arco em que o professor tocou, mas nenhum outro sinal ou impressão.

Markham, silenciosamente sombrio, fumou durante um momento.

— Que me diz da maçaneta da porta da rua? E do ferrolho da porta de passagem entre os dois prédios de apartamentos?

— Nada — bufou Heath com desgosto. — Ambos são de ferro oxidado e rugoso, incapazes de reter qualquer impressão.

— Olhe aqui, Markham — disse Vance. — Você está considerando o assunto de forma errônea. É lógico que não haja impressões digitais. É fora de dúvida que você sabe que não se produz cuidadosamente uma obra para logo deixar todos os truques à vista dos espectadores. O que é preciso saber é por que esse empresário particular decidiu entregar-se a teatralidades estúpidas.

— Não é fácil como pensa, Sr. Vance — manifestou Heath com amargura.

— Eu disse que era fácil? Não, sargento, é terrivelmente difícil. E mais difícil: sutil, obscuro e... diabólico.


IV

 

UMA CARTA MISTERIOSA

 

 

(Sábado, 2 de abril — 14h)

 


Markham sentou-se resolutamente diante da mesa de centro.

— Que lhe parece, sargento, se interrogarmos agora os dois criados?

Heath saiu do vestíbulo e expediu uma ordem a um dos agentes. Ao cabo de instantes apareceu um homem alto, sombrio, desmazelado, que permaneceu de pé, em atitude respeitosa e atenta.

— Este é o mordomo, senhor — explicou o agente. — Chama-se Pyne.

Markham estudou o indivíduo detidamente. Teria uns sessenta anos. Suas feições eram acentuadamente acromegálicas, distorção que se estendia por todo o corpo. Mãos grandes e pés chatos e disformes. O traje, embora cuidadosamente passado, lhe sentava mal, o colarinho alto era demasiado grande. Os olhos pálidos e aquosos se ocultavam sob espessas sobrancelhas grisalhas, e a boca era um talho em um rosto doentio e balofo.

Fora de sua manifesta ausência de simpatia física, dava não obstante a impressão de astúcia e competência.

— Então é você o mordomo dos Dillard, não? — murmurou Markham. — Há quanto tempo está com a família, Pyne?

— Vai para dez anos, senhor.

— Você deve ter entrado para o serviço do professor, quando ele renunciou à sua cátedra da universidade, não?

— Creio que sim, senhor. — A voz de Pyne era profunda e estrondosa.

— Que sabe da tragédia desta manhã?

Apesar de ter feito Markham a pergunta repentinamente na esperança, segundo creio, de surpreender algum assentimento, Pyne recebeu-a com a maior impassibilidade.

— Absolutamente nada, senhor. Eu ignorava o que havia sucedido até que o professor Dillard, que estava em sua biblioteca, me mandou chamar para que fosse procurar o Sr. Sperling.

— Então ele lhe contou a tragédia?

— O senhor disseme: "Robin foi assassinado e queria que você fosse à procura do Sr. Sperling e lhe comunicasse que eu desejava vê-lo". Isto é tudo, senhor.

— Está você seguro de que ele disse "assassinado", Pyne? — interrompeu Vance.

Pela primeira vez o mordomo hesitou e em seus olhos apareceu um brilho de astúcia, mas...

— Sim, senhor. Estou seguro de que sim. "Assassinado", esta é a palavra.

— E você viu o corpo do Sr. Robin quando saiu para cumprir a ordem? — prosseguiu Vance, enquanto sua vista traçava indolentemente um desenho na parede.

Nova hesitação.

— Sim, senhor. Eu abri a porta do porão e vi o corpo do pobre homem...

— Uma grande impressão deve ter-lhe causado, Pyne

— observou friamente Vance. — Por acaso, você tocou no corpo do pobre homem... ou na flecha... talvez no arco?

Os olhos aquosos de Pyne brilharam um momento.

— Não... certamente que não... Para quê?

— É verdade — suspirou Vance contristado. — Mas você viu o arco?

O homem olhou de soslaio, como se procurasse ver mentalmente.

— Não poderia dizê-lo, senhor. Pode ser que sim, pode ser que não. Não me recordo.

Vance pareceu perder todo interesse por ele e Markham continuou o interrogatório.

— Disseram-me, Pyne, que o Sr. Drukker veio aqui esta manhã, às nove e meia. Você viu-o?

— Sim, senhor. Sempre entra pela porta do porão. Ao passar, deu-me bom dia. Eu estava na despensa, em cima da escada.

— Retirou-se pelo mesmo lugar?

— Parece-me que sim, senhor. Embora, quando ele se foi eu estivesse em cima. Vive na casa dos fundos.

— Eu sei. — Markham inclinou-se para diante. — Presumo que foi você quem recebeu esta manhã o Sr. Sperling e o Sr. Robin?

— Sim, senhor, cerca das dez horas.

— Viu-os depois, ou ouviu alguns dos seus comentários, enquanto esperavam aqui na sala?

— Não, senhor, eu estive ocupado a maior parte da manhã arrumando os aposentos do Sr. Arnesson.

— Ah! — Vance dirigiu o olhar até o homem. — Ficam na parte dos fundos, no segundo pavimento, não? É o quarto com balcão, não é exato?

— Sim, senhor.

— Muito interessante... E foi desse balcão que o professor Dillard viu pela primeira vez o cadáver do Sr. Robin. Como pôde ter entrado no quarto, sem que você o soubesse? Segundo creio, você disse que o primeiro conhecimento que teve da tragédia foi quando o professor Dillard o chamou à biblioteca para que fosse em busca do Sr. Sperling.

O rosto do mordomo voltou-se branco e pastoso e notei que seus dedos se crispavam nervosamente.

— Talvez eu tenha saído por um instante dos aposentos do Sr. Arnesson — explicou ele com grande esforço. — Sim... é muito provável. Na realidade, senhor, agora me recordo de haver ido ao armário...

— Oh, sem dúvida! — Vance parecia ter caído num estado de letargia.

Markham fumou um pouco. Concentrou seu olhar na mesa.

— Veio alguém mais a esta casa hoje de manhã, Pyne? — perguntou.

— Ninguém, senhor.

— Então, pode você sugerir alguma explicação do que se passou?

O homem sacudiu fortemente a cabeça e olhou para o ar com seus olhos aquosos.

— Não, senhor. O Sr. Robin parecia um jovem agradável e benquisto. Não era desses que induzem ao assassinato... se o senhor compreende o que quero dizer.

Vance levantou o olhar.

— Não posso dizer que eu, pessoalmente, compreenda com exatidão o que você quer dizer, Pyne. Como sabe você que não foi um acidente?

— Eu não sei, senhor — foi a resposta serena. — Mas conheço algo da arte de atirar flechas, se me permite que o diga, e vi imediatamente que o senhor Robin tinha sido morto por uma flecha de caça.

— Você é muito observador, Pyne, — disse Vance, movendo a cabeça — e bastante correto nas suas observações.

Era claro que não se podia colher do mordomo nenhuma informação direta. Por isso, Markham o despediu abruptamente, ordenando ao mesmo tempo a Heath que fizesse entrar a cozinheira. Quando esta entrou, notei de imediato uma semelhança entre o pai e a filha. Era ela uma mulher desalinhada, de uns 40 anos, também alta, rosto angular, delgado e comprido. Mãos e pés grandes. Evidentemente na família Pyne o hiperpituitarismo era hereditário.

Depois de algumas perguntas preliminares, ficamos sabendo que era viúva, que se chamava Beedle e que com a morte de seu marido, há cinco anos, e por recomendação de Pyne havia entrado para o serviço do professor Dillard.

— A que horas saiu você de casa esta manhã? — perguntou-lhe Markham.

— Pouco depois das dez e meia. — Beedle parecia intranqüila e alerta. Sua voz era defensivamente agressiva.

— E a que horas voltou?

— Perto das doze e meia. Aquele homem deixou-me entrar — ela olhou rancorosamente para Heath — e tratou-me como se eu tivesse cometido um crime.

Heath sorriu.

— A hora é exata, Sr. Markham. A senhora se incomodou porque não a deixei descer.

Markham meneou a cabeça.

— Sabe algo do que sucedeu aqui esta manhã? — continuou ele estudando-a muito de perto.

— Como quer que saiba se estive toda a manhã no mercado de Jefferson?

— Viu o Sr. Robin, ou Sr. Sperling?

Ao descerem para a sala do clube, passaram em frente à cozinha, pouco antes de eu sair.

— Ouviu você algo do que disseram?

— Não costumo escutar.

Markham irritou-se e ia falar qualquer coisa, quando Vance, dirigindo-se suavemente a ela, disselhe:

— O procurador do distrito pensou que talvez a porta estivesse aberta, podendo assim escutar, ainda que não o quisesse.

— É possível que a porta estivesse aberta, porém eu não ouvi nada — contestou, enfadada.

— Então você não podia dizer-nos se no quarto havia alguma outra pessoa.

Beedle semicerrou os olhos e dirigiu a Vance um olhar calculador.

— É possível que houvesse algum outro — disse ela lentamente. — Na realidade, creio ter ouvido a voz do Sr. Drukker. A mulher destilava veneno e a sombra de um sorriso malévolo percorreu seus lábios delgados. — Pela manhã, cedo, esteve com o Sr. Arnesson.

— Oh, sim! — Vance se surpreendeu ante semelhante notícia. — E você viu-o?

— Eu o vi entrar, porém não o vi sair... Ou, pelo menos, eu não notei. É um homem que entra e sai às furtadelas a toda hora.

— Às furtadelas? Hum!... A propósito, por que porta você saiu quando foi ao mercado?

— Pela da frente. Desde que a Srta. Belle fez do porão um clube, saio sempre pela porta principal.

— Então você não entrou esta manhã neste aposento? — Não.

Vance ergueu-se na cadeira.

— Obrigado por tudo, Beedle. Pode ir.

Assim que a mulher se retirou, Vance levantou-se e foi à janela.

— Estamos gastando demasiadas energias em coisas que não interessam, Markham — disse ele. — Não chegaremos a nada molestando a criadagem e interrogando os da casa. Há um muro psicológico que é preciso derrubar, antes de poder penetrar nas trincheiras inimigas. Todos, neste assunto, reservam algo que lhe convém e temem que se lhes escape. Até agora nos têm dito o que sabem mais ou menos. Desesperante, por certo. Nada do que ouvimos tem ligação. E quando os sucessos cronológicos não se ajustam, pode ter a segurança de que os pontos endentados do contato foram deliberadamente retorcidos. Não encontrei uma articulação clara em todos esses relatos que nos fizeram ouvir.

— O mais provável é que faltem as conexões — redargüiu Markham — e nunca as encontraremos se abandonarmos os interrogatórios.

— Você é demasiado confiante. — Vamos para a mesa. — Quanto mais perguntarmos, mais longe iremos do assunto. Nem o próprio professor Dillard nos disse toda a verdade. Há algo que oculta... alguma suspeita que não deixa escapar. Por que recolheu ele o arco? Arnesson pôs o dedo na chaga quando lhe fez a mesma pergunta. Astuto, este Arnesson. Depois temos a nossa jovenzinha atleta, de pernas musculosas. Está enredada em vários assuntos amorosos e trata de salvar-se e aos seus, sem culpar a ninguém. Um desígnio de louvor, porém não conducente a uma verdade livre de alterações. Pyne tem também idéias. Aquela sua máscara facial deixa ocultos muitos pensamentos arrebatadores. Porém, nunca exploraremos sua rusticidade sobrecarregando-o com perguntas. Algo singular também a respeito dos seus trabalhos matinais. Disse que estivera no quarto de Arnesson toda a manhã; e, não reparou que o professor havia ido para o balcão do referido quarto, a fim de tomar sol. Aquela sua saída, para ir até o armário... é muito capciosa. Além disso, Markham, deixe que seu espírito voe ao redor do conto da viúva Beedle. A ela não agrada o supersocial Drukker. E, quando viu uma ocasião de envolvê-lo no assunto, aproveitou-a. Ela "julgou" ter ouvido sua voz no quarto do clube. Porém, será certo? Quem sabe? É verdade que ele podia ter-se demorado entre as fundas e dardos, em seu caminho de retirada, reunindo-se com ele, mais tarde, Robin e Sperling... Sim, é um ponto que tem de ser investigado. Em uma palavra, impõe-se um pouco de conversação cortês com o Sr. Drukker.

Neste momento, ouviram-se passos que indicavam que alguém descia as escadas da frente. Era Arnesson, que entrou na sala.

— E quem matou Cock Robin? — perguntou ele com um sorriso de sátiro.

Markham levantou-se, aborrecido, e estava a ponto de protestar por semelhante impertinência, porém Arnesson levantou a mão e disse:

— Um momento, por favor. Estou aqui para oferecer meus exaltados serviços à causa nobre da justiça... da justiça mundana, compreendem. Filosòficamente, é certo, não existe tal coisa. Se verdadeiramente houvesse justiça, estaríamos todos numa temporada dentro da estância cósmica. — Sentou-se defronte a Markham e cèpticamente riu entre dentes. — O fato é que a triste e precipitada viagem do Sr. Robin clama por minha natureza científica. É um ótimo problema de método. Tem decididamente um sabor matemático... sem termos indivisíveis, compreende, com números inteiros bem claros, com certas quantidades desconhecidas, por determinar. Pois bem, eu sou o gênio que o resolverá.

— Qual seria a sua solução, Arnesson? — Markham conhecia e respeitava a inteligência do homem e pareceu de pronto sentir um propósito sério debaixo de sua atitude frívola e burlesca.

— Ah! Ainda não desenvolvi a equação. — Arnesson tirou do bolso um velho cachimbo, apertando-o, afetuosamente. — Sempre tive desejos de atuar como detetive em um plano terreal... é a curiosidade insaciável e a natural investigação do físico, sabe? E há tempos que tenho uma teoria segundo a qual a ciência matemática pode ser vantajosamente aplicada às trivialidades da nossa vida neste insignificante planeta. No universo não há nada mais que leis... a menos que Eddington tenha razão e que não exista lei nenhuma... e eu não vejo razão bastante para que a identidade e posição de um criminoso não possa ser determinada da mesma maneira como Leverrier calculou a massa e o calendário de Netuno a partir dos desvios observados na órbita de Urano. Você se recorda de como, depois de seus cálculos, ele disse a Galle, o astrônomo berlinês, que procurasse o planeta em uma longitude especificada da eclíptica. — Arnesson fez uma pausa e encheu o cachimbo.

— Agora, Sr. Markham — continuou enquanto eu procurava descobrir se ele falava sério ou não — gostaria de aproveitar a oportunidade para aplicar a este absurdo enredo os meios puramente racionais usados por Leverrier no descobrimento de Netuno. Porém, devo ter os dados sobre as perturbações da órbita de Urano, como se disséssemos... isto é, devo conhecer todos os fatores variáveis da equação. O favor que vim pedir aqui é que vocês confiem em mim e não me ocultem absolutamente nada do que saibam do assunto. Uma espécie de sociedade intelectual. Eu resolverei o problema para vocês, do ponto de vista científico. Será um esporte magnífico, além de que incidentalmente me agradaria provar por minha teoria que a matemática forma a base da verdade, não importando quão afastada possa estar das abstrações escolásticas. — Por fim acendeu seu cachimbo e se recostou na cadeira. — Negócio feito?

— Para mim é um prazer não lhe ocultar nada, Arnesson — observou Markham depois de uma breve pausa. — Mas não posso prometer-lhe revelar tudo o que haja de agora em diante. Poderia ir contra os fins da justiça e dificultar nossa investigação.

Vance, que se havia sentado com os olhos semicerrados, aparentemente enfastiado pelo surpreendente pedido de Arnesson, voltou-se para Markham com um sinal positivo de animação.

— Em verdade, não vejo por que não deveríamos dar ao Sr. Arnesson uma ocasião de transportar esse crime aos domínios da matemática aplicada. Estou seguro de que ele será discreto e que usará nossa informação só para propósitos científicos. E... nunca se sabe, verdade?... poderemos necessitar de seu auxílio altamente disciplinado antes de termos terminado este caso tão fascinante.

Markham conhecia Vance muito bem para compreender que a sua sugestão não havia sido feita impensadamente, e eu que não tive a mínima surpresa quando, enfrentando Arnesson, ele disse:

— Muito bem. Facilitar-lhe-emos toda informação de que o senhor necessite para poder desenvolver a sua fórmula matemática. Há algo que lhe interessa saber agora?

— Oh, não! Até este momento conheço os pormenores que vocês possam saber. Eu tratarei de espremer Pyne e Beedle quando vocês saírem. Se eu resolver este problema e determinar a posição exata do criminoso, não encerrarei meus descobrimentos como fez Sir George Airy com os do pobre Adams quando submeteu seus cálculos netunianos anteriores aos de Leverrier...

Neste instante abriu-se a porta e o agente uniformizado que estava estacionado no pórtico entrou seguido de um estranho.

— Este cavalheiro diz que deseja ver o professor — anunciou com radiante suspeita, e virando-se em seguida para Markham com um movimento de cabeça indicou: — Aí está o procurador do distrito. Conte-lhe os seus problemas.

O recém-chegado parecia um tanto desconcertado. Era esbelto, bem vestido, com um ar inequívoco de refinamento. Aparentava uns cinqüenta anos. Seu rosto mantinha um aspecto de juventude perene. O cabelo era ralo e grisalho, o nariz um tanto afilado e o queixo pequeno, porém de nenhum modo débil. A característica mais notável residia naqueles olhos situados sob uma testa ampla e alta. Eram os olhos de um sonhador contrariado e desiludido... meio tristes, meio ressentidos, como se a vida o houvesse ludibriado deixando-o infeliz e amargurado. Estava a ponto de dirigir-se a Markham, quando avistou Arnesson.

— Oh, bom dia, Arnesson — disse ele com voz tranqüila e bem modulada. — Espero que não haja nada de mau ou errado.

— Só uma morte. Pardee — replicou o outro, sem lhe dar maior importância. — A proverbial tormenta num copo d'água.

Markham sentou-se molestado pela interrupção.

— Em que posso ser-lhe útil, senhor? — perguntou ele.

— Espero não haver sido um intruso — disse o homem, desculpando-se. — Sou amigo da casa. Moro no outro lado da rua e notei que algo de desusado havia acontecido aqui. Ocorreu-me então que podia ser útil de uma forma ou de outra.

Arnesson riu entredentes.

— Meu estimado Pardee! Por que encobre sua curiosidade natural com o manto da retórica?

Pardee corou.

— Asseguro-lhe, Arnesson, que...

Ao começar a falar, foi interrompido por Vance.

— O senhor diz que vive do outro lado da rua. Esteve por acaso olhando esta casa, durante a manhã?

— Nem tanto, senhor. Meu gabinete dá, entretanto, para a Rua 75 e é certo que estive sentado perto da janela quase toda a manhã. Mas estive escrevendo. Quando, depois de almoçar, voltei para meu trabalho, notei muita gente, o carro da polícia, assim como o agente uniformizado, que estava na porta.

Vance esteve examinando-o com o canto do olho.

— Viu entrar ou sair desta casa alguém esta manhã, Sr. Pardee?

O homem meneou a cabeça lentamente.

— Ninguém em particular. Notei a presença dos dois jovens amigos da Srta. Dillard, que vieram perto das dez horas, e vi Beedle que saía com sua cesta para o mercado. Isto é tudo de que me recordo.

— Viu retirar-se algum dos dois?

— Não me lembro. — Pardee franziu o cenho. — Não obstante, creio que um deles saiu pela porta do pátio. Mas é só uma impressão.

— A que horas seria?

— Verdadeiramente não poderia dizer-lhe. Talvez uma hora mais ou menos depois da sua chegada. Eu não poderia ser mais específico.

— Não se recorda de nenhuma outra pessoa que tenha entrado ou saído daqui?

— Vi a Srta. Dillard, quando voltou da quadra de tênis, pelas doze e meia, no momento em que me chamavam para almoçar. Para dizer a verdade, saudou-me com a raqueta.

— E ninguém mais?

— Receio que não. — Havia em sua resposta um sentimento inequívoco.

— Um dos jovens que o senhor viu entrar aqui foi morto — disse Vance.

— O Sr. Robin, cognominado Cock Robin — ajuntou Arnesson com uma careta cômica que me chocou.

— Meu Deus! Que desgraça! — Pardee parecia verdadeiramente assombrado. — Robin? Não era o campeão de arco-e-flecha no clube de Belle?

— Sua única pretensão para a imortalidade. Este é o homem.

— Pobre Belle! — Algo nos modos do indivíduo fez com que Vance o observasse agudamente. — Espero que esta tragédia não a tenha transtornado.

— Ela está naturalmente dramatizando tudo — replicou Arnesson. — Aliás, a polícia também o faz. Muita teatralidade para nada em particular. A terra está coberta de "pequenas massas serpenteantes de hidratos de carbono", como Robin, e às quais nos referimos globalmente como humanidade.

Pardee sorriu com tolerante tristeza. Evidentemente estava familiarizado com o cepticismo de Arnesson. Então apelou para Markham.

— Permite-me que veja a Srta. Dillard e o professor?

— Oh! À vontade! — Foi Vance quem respondeu antes que Markham opinasse. — O senhor os encontrará na biblioteca.

O homem abandonou o aposento com um cortês murmúrio de agradecimento.

— É um tipo curioso — comentou Arnesson, quando Pardee já não podia ouvi-lo. — Cheio de dinheiro, leva uma vida ociosa. Sua única paixão é resolver problemas de Xadrez...

— De Xadrez? — Vance levantou o olhar com interesse. — E porventura John Pardee, o inventor do famoso gambito de seu nome?

— Ele mesmo. — O rosto de Arnesson contraiu-se humoristicamente. — Passou vinte anos desenvolvendo uma ofensiva que servia para juntar novos pontos decimais ao jogo. Escreveu um livro sobre o mesmo. Então continuou fazendo prosélitos como um cruzado diante das portas de Damasco. Sempre foi um apaixonado do xadrez, tomando parte nos torneios e correndo todo o mundo para assistir às várias partidas desse jogo. Mais tarde, conseguiu que seu sistema fosse experimentado. Causou grande perturbação entre os infracampeões do Clube de Xadrez Manhattan. Então, o pobre Pardee organizou uma série de torneios magistrais, pagando todas as despesas. Isto lhe custou uma fortuna. Certamente ele estipulava que se jogasse exclusivamente o sistema Pardee. Foi algo muito triste. Quando homens como o Dr. Lasker, Capablanca, Rubinstein e Finn se puseram a combatê-lo, tudo fracassou. Quase todos os que jogavam por esse sistema perdiam. Foi desqualificado de forma ainda pior que o malfadado sistema de Rice. Pardee sofreu um golpe muito rude, que lhe embranqueceu os cabelos e lhe tirou toda a elasticidade dos músculos. Em uma palavra, ficou envelhecido. É um homem destroçado.

— Conheço a história desse sistema — murmurou Van-ce com seu olhar preso no teto. — Eu mesmo o empreguei. Eduard Lasker me ensinou a jogá-lo...

O agente uniformizado apareceu de novo no portal e fez sinal a Heath para que se acercasse. O sargento levantou-se com presteza; evidentemente lhe aborrecia a conversação sobre xadrez. Foi ao vestíbulo. Pouco depois voltava com uma folhinha de papel.

— Isto sim que tem graça, senhor — disse ele entregando-a a Markham. — O agente de fora viu que saía da caixa do correio e decidiu examiná-la. Que lhe parece, senhor?

Markham olhou-a com assombro e confusão, passando-a a Vance sem nada dizer. Eu me levantei e olhei por cima do seu ombro. O papel era do tamanho convencional para máquina de escrever, tendo sido dobrado para que entrasse na abertura da caixa do correio. Continha várias linhas escritas à máquina com tipo "elite" e com uma fita de um azul esmaecido.

A primeira linha dizia:

"Joseph Cochrane Robin está morto."

A segunda linha perguntava:

"Quem matou Cock Robin?"

Embaixo estava escrito:

"Sperling quer dizer pardal."

No canto inferior direito, no lugar da assinatura, estavam estas duas palavras, em letras maiúsculas:

"O BISPO."


V

 

UM GRITO DE MULHER

 

(Sábado, 2 de abril — 14h30)


Depois que Vance olhou a estranha mensagem com a sua firma ainda mais estranha, procurou o monóculo com aquela lenta deliberação que, segundo eu sabia, denotava um agudo interesse. Tendo colocado a lente, estudou o papel com suma atenção. Em seguida, passou-o a Arnesson, dizendo-lhe:

— Aqui tem você um fator valioso para a sua equação. — Seus olhos estavam zombeteiramente fixados no indivíduo.

Arnesson examinou a nota com ar desdenhoso, e com uma careta colocou-a na mesa.

— Espero que o clero não esteja envolvido neste problema. São notoriamente anticientíficos. Não se pode atacá-los com matemática. "O Bispo" — murmurou. — Não conheço nenhum cavalheiro que vista vestes talares. Creio que destrinçarei este enigma quando fizer meus cálculos.

— Se o destrinçar, Sr. Arnesson — replicou Vance seriamente — receio que sua equação venha abaixo. Esta carta secreta parece-me muito significativa, não sei por quê. Por certo, se me permite uma nova opinião, dir-lhe-ei que é a coisa mais matemática que apareceu neste caso até agora. Elimina da situação todo o caso ou acidente. É por assim dizer o g, a constante gravitacional que dirigirá todas as nossas equações.

Heath havia olhado o papel com solene desgosto.

— Algum desequilibrado foi quem escreveu isto, Sr. Vance — declarou o sargento.

— Indubitavelmente foi um louco, sargento — concordou Vance. — Mas não podemos desprezar o fato de que esse louco particular deve ter sabido muitos pormenores íntimos e interessantes... isto é, que o sobrenome do Sr. Robin é Cochrane, que o referido cavalheiro foi morto por um flechaço, e que o Sr. Sperling estava nas vizinhanças no momento da morte de Robin. Mais ainda, esse bem-informado maníaco deve ter meditado muito o assassinato, pois a nota foi evidentemente escrita e posta na caixa do correio antes que os agentes chegassem ao lugar.

— A menos que — replicou tenazmente Heath — seja um desses ociosos que, inteirado do que sucedera, meteu o papel na caixa, quando o agente estava de costas.

— Tendo corrido antes à casa e escrito à máquina a mensagem, não? — Vance meneou a cabeça sorrindo tristemente. — Não, sargento, receio que a sua teoria não tenha base alguma.

— Então, que diabo significa isto? — perguntou Heath truculentamente.

— Não tenho a menor idéia. — Vance bocejou e levantou-se da cadeira.

— Que lhe parece, Markham, se dedicarmos uns breves instantes a este Sr. Drukker, a quem Beedle tanto odeia?

— Drukker! — exclamou Arnesson com considerável surpresa. — Que tem que ver o assunto com ele?

— O Sr. Drukker — explicou Markham — veio esta manhã visitar o senhor e pode ter visto Robin e Sperling antes que tivesse ido embora para a sua casa. — Hesitou um instante. — Quer vir conosco?

— Não, obrigado. — Arnesson limpou seu cachimbo e levantou-se. — Tenho muitos trabalhos para corrigir. Não obstante, não seria demais se Belle os acompanhasse. Lady Mae é um tanto peculiar...

— Lady Mae?

— Oh, enganei-me! Havia esquecido que vocês não a conheciam. Todos a chamamos de Lady Mae. É um título de cortesia que agrada muito à pobrezinha. Refiro-me à mãe de Drukker. É um tipo curioso. — Pôs o dedo na fronte significativamente. — Um pouco pancada, porém perfeitamente inócua. É uma monomaníaca. Crê que o sol sai e se oculta em Drukker. Cuida dele como se fosse um menino. Triste situação... Sim, é melhor que levem Belle com vocês. Lady Mae gosta muitíssimo dela.

— Boa idéia, Sr. Arnesson — disse Vance. — Faça o favor de perguntar à Srta. Dillard se quer ter a bondade de acompanhar-nos.

— Com muito prazer.

Arnesson despediu-se com um sorriso ao mesmo tempo protetor e satírico. Um instante depois a Srta. Dillard estava conosco.

— Sigurd disseme que os senhores desejam ver Adolph. Ele terá muito gosto em recebê-los, porém a pobre Lady Mae altera-se tanto por qualquer coisa...

— Esperamos não molestá-la absolutamente — disse Vance tranqüilizadoramente. — Mas o caso é que esta manhã esteve aqui o Sr. Drukker e a cozinheira disse que crê ter ouvido ele falar com os Srs. Sperling e Robin, no quarto do clube. Talvez possa ajudar-nos em algo.

— Estou certa de que assim o fará, se puder — respondeu a moça, com ênfase. — Mas tenham muito cuidado com Lady Mae, sim?

Havia em sua voz um tom implorante e protetor. Vance observou-a cuidadosamente.

— Fale-nos da Sra. Drukker, ou Lady Mae, antes que a visitemos. Por que devemos ter tanto cuidado?

— Sua vida foi uma tragédia — explicou Belle. — Foi outrora uma grande cantora... não uma artista de segunda categoria, mas uma prima-dona de brilhante futuro (1). Ela se casou com um crítico famoso de Viena, Otto Drukker (2), e quatro anos mais tarde nasceu Adolph. Um dia, no Wiener Prater, quando o bebê tinha dois anos, caiu-lhe dos braços. Desde aquele momento sua vida mudou por completo. A coluna vertebral de Adolph se danificou, ficando o menino aleijado. Lady Mae desesperou-se. Ela mesma se considerava culpada e abandonou a carreira para dedicar-se por completo ao filho. Quando o esposo morreu um ano depois, trouxe Adolph para a América, onde havia passado parte da sua juventude, e comprou a casa onde agora vive. Toda a sua vida foi dedicada a Adolph, que cresceu corcunda. Tudo sacrificou por ele e cuida-o como se fosse um bebê...

(1) Mae Brenner ainda deve ser lembrada pelos amantes europeus da boa música. Estreou com a idade, sem precedentes, de 23 anos no papel de Sulamita na Rainha de Sabá, na Casa Imperial de ópera, em Viena; embora seu êxito mais grandioso fosse antes na Desdêmona em Otelo, o último papel que cantou antes de se retirar.

(2) O nome certamente era escrito originariamente Drucker. A troca, possivelmente alguma tentativa de americanização, foi feita pela senhora Drukker, quando fixou residência nos E.E.U.U.


Uma sombra cruzou pelo seu rosto e continuou:

— Às vezes penso... pensamos que ela ainda o imagina um menino. Tem-se tornado mórbida a respeito dele. Mas é a doce e terrível morbidez de um tremendo amor materno... uma espécie de loucura, de ternura, segundo diz o tio. Durante os últimos meses tornou-se muito estranha... esquisita. Encontrei-a muitas vezes cantarolando velhas canções de berço alemãs, com os braços cruzados sobre o peito como se — Oh, isso parece tão sagrado e tão terrível! — como se estivesse embalando uma criança. E tornou-se terrivelmente ciumenta por Adolph. Está ressentida com os outros homens. Sem ir mais longe, a semana passada levei o Sr. Sperling para visitá-la... constantemente vamos vê-la, parece tão só e desditosa... pois bem, levei o Sr. Sperling e ela o olhou quase furiosamente e disselhe: "Por que você não é também um aleijado?"

A jovem fez uma pausa e observou nossas fisionomias.

— Compreendem agora por que lhes rogo que tenham cuidado?... Lady Mae pode pensar que tenhamos ido causar algum mal a Adolph.

— Evitaremos tudo que a possa molestar — assegurou Vance com simpatia.

Então, ao tempo que caminhávamos para o vestíbulo, fez-lhe uma pergunta que me recordou o breve exame mental da casa de Drukker aquela tarde.

— Onde se acha o quarto da Sra. Drukker?

A moça dirigiu-lhe um olhar de assombro, mas respondeu em seguida:

— No lado oeste da casa... Sua janela projetada para fora dá para o campo de prática de tiro de flecha.

— Ah! — Vance tirou sua cigarreira e cuidadosamente escolheu um Régie. — Freqüenta muito este mirador?

— Muitíssimo. Lady Mae sempre observa quando estamos atirando ao alvo; não sei por quê. Estou certa de que sofre ao ver-nos, pois Adolph não é bastante forte para lançar uma flecha. Várias vezes fez tentativas; porém, teve que abandonar, porque se fatigava.

— Olha como praticam vocês, porque isto a tortura... é uma espécie de auto-imolação, sabe? Estas situações são muito penosas.

Vance falava com ternura tal que para quem não conhecesse sua verdadeira natureza pareceria estranho.

— Talvez — ajuntou no momento em que saíamos da casa pela porta do porão — fosse melhor que por agora só víssemos a Sra. Drukker. Isto suavizaria qualquer suspeita que nossa visita pudesse causar-lhe. Poderíamos chegar até o seu quarto, sem que o filho soubesse?

— Oh, sim. — A moça estava satisfeita com a idéia. — Podemos entrar pelos fundos. O gabinete de Adolph, onde ele costuma trabalhar, fica na frente.

Quando chegamos, encontramos a Sra. Drukker sentada na varanda fechada em um canapé antigo, entre almofadões. A Srta. Dillard saudou-a como se fosse sua filha, inclinando-se sobre ela e beijando-a carinhosamente na testa.

— Algo horrível passou-se esta manhã em minha casa, Lady Mae — disse — e estes cavalheiros desejam falar com a senhora a respeito. Prometi-lhes que os traria aqui. Tem a senhora algum inconveniente em recebê-los?

O rosto pálido e trágico da Sra. Drukker se havia desviado da porta quando entramos, porém ela agora nos mirava horrorizada.

Lady Mae era uma mulher alta, delgada até à magreza. Suas mãos, que se apoiavam ligeiramente encurvadas nos braços do canapé, eram cheias de tendões e enrugadas como as garras das fabulosas harpias. Seu rosto, também delgado e profundamente enrugado, era um tanto atraente. Os olhos eram claros e vivos e o nariz estreito e dominante. Embora já devesse ter passado dos sessenta, seu cabelo era abundante e castanho.

Durante uns minutos permaneceu imóvel e silenciosa. Depois, suas mãos cerraram-se lentamente e seus lábios se abriram.

— De que necessitam os senhores? — perguntou com voz baixa e ressoante.

Sra. Drukker, — foi Vance quem respondeu — como a Srta. Dillard acaba de dizer-lhe, uma tragédia ocorreu na casa ao lado esta manhã e desde que a sua janela é a única que dá exatamente para o campo de exercícios, pensamos que possivelmente haja visto algo que pudesse ajudar-nos em nossa investigação.

A vigilância da mulher se relaxou perceptivelmente, porém demorou um pouco antes de responder.

— E que aconteceu?

— Um Sr. Robin foi morto. Talvez a senhora o tenha conhecido.

— O atirador de flechas — o campeão de Belle?... Se o conheço. Era um rapagão forte que podia sustentar um arco pesado sem se fatigar. Quem o matou?

— Não o sabemos. — Vance, apesar de seu ar negligente, a observava com astúcia. — Porém, como foi morto diante de sua sacada, esperávamos que a senhora soubesse de alguma coisa.

As pálpebras da senhora Drukker caíram astutamente e seus dedos se entrelaçaram com uma espécie de satisfação deliberada.

— Está o senhor seguro de que foi morto lá fora?

— Pelo menos, foi lá que o encontramos — replicou Vance com reserva.

— Enfim... Mas, que posso fazer para ajudar os senhores? — Dito isto recostou-se languidamente.

— Notou a senhora a presença de alguém no campo de exercícios esta manhã? — perguntou Vance.

— Não! — A negativa foi rápida e enfática. — Não vi ninguém. Durante todo o dia não vim à janela.

Vance cruzou seu olhar com o da mulher e suspirou.

— É uma lástima — murmurou. — Se a senhora tivesse olhado esta manhã pela janela, possivelmente teria presenciado a tragédia... O Sr. Robin foi morto por um flechaço e, ao que parece, não há motivo razoável que justifique isto.

— Sabe o senhor que o mataram com um flechaço? — perguntou ela, e suas faces pálidas se cobriram de um leve rubor.

— Essa foi a informação do médico da polícia. Quando encontramos o corpo tinha uma flecha cravada no coração.

— Certamente. Isto parece perfeitamente natural, não?... Uma flecha cravada no coração de Robin!...

Ela falava como em sonho. Em seus olhos havia uma imagem longínqua e fascinante.

Produziu-se um silêncio forçado, durante o qual Vance se encaminhou para a janela.

— Incomoda-lhe que olhe por aqui?

Com dificuldade a mulher volveu de seu recolhimento.

— Absolutamente. O panorama não é muito formoso. Podem ver-se as árvores da Rua 76 até o norte e uma parte do pátio de Dillard até o sul. Porém, essa parede de ladrilhos é desconsoladora. Antes de edificarem o prédio de apartamentos, via-se daqui o bonito panorama do rio.

Vance examinou durante um momento o campo de exercícios.

— Sim, — observou, — se tivesse assomado à janela esta manhã, poderia a senhora ter visto o que aconteceu. Daqui vê-se claramente o terreno e a porta do porão de Dillard... Que lástima! — Olhou o relógio. — O seu filho está em casa, Sra. Drukker?

— Meu filho! Meu bebê! Que querem dele? — Sua voz se elevou, lastimosamente e seus olhos se fixaram em Vance envenenados de ódio.

— Nada de importante — disse este pacificamente. — Talvez tenha visto alguém...

— Não viu ninguém! Não podia ter visto ninguém, pois não esteve aqui. Saiu muito cedo e ainda não voltou.

Vance olhou com pesar a mulher.

— Esteve fora toda a manhã? — perguntou. — Sabe a senhora onde ele se encontra?

— Eu sempre sei onde ele está — respondeu ela orgulhosamente. — Não me oculta nada.

— Ele lhe disse aonde ia esta manhã? — insistiu Vance em tom suave.

— Creio que sim, porém neste momento me esqueci. Deixe-me pensar... — Seus longos dedos tamborilavam no braço do canapé e seus olhos se revolviam intranqüilos. — Não me posso recordar; mas lhe perguntarei assim que voltar.

A Srta. Dillard tinha estado observando a mulher com perplexidade crescente.

— Mas, Lady Mae, Adolph esteve em nossa casa. Foi ver Sigurd...

A Sra. Drukker ergueu-se.

— Não é exata! — disse cortante, olhando a jovem quase com rancor. — Adolph tinha que ir à cidade por qualquer coisa. Não esteve em sua casa para nada... Eu sei que não esteve. — Seus olhos chisparam e ela olhou Vance desafiadoramente.

Era um momento desconcertante, porém o que se seguiu foi ainda mais doloroso.

A porta se abriu lentamente e de súbito os braços da Sra. Drukker se estenderam.

— Meu filhinho... meu bebê! — exclamou ela. — Vem aqui, querido.

O homem, porém, não avançou, permaneceu pestanejando seus olhinhos para nós, como uma pessoa que desperta em lugar desconhecido. Adolph Drukker tinha apenas metro e meio de altura. Seu aspecto era o típico congestionado dos corcundas. Suas pernas eram longas e delgadas e o tamanho do seu tronco arqueado e torcido parecia exagerado pela sua imensa cabeça semelhante a uma cúpula. Seu rosto, porém, indicava intelectualidade... um poder passional terrífico que chamava a atenção. O professor Dillard lhe havia chamado gênio matemático, e não se podia duvidar da sua erudição (1).

(1) Causou-me a mesma impressão que o general Homero Lee, quando o visitei em Santa Mônica, pouco antes de sua morte.


— Que significa isto? — perguntou com voz alta e trêmula olhando a Srta. Dillard. — São amigos seus, Belle?

A moça ia responder, porém Vance deteve-a com um gesto.

— A verdade é, Sr. Drukker, — explicou ele em tom grave — que na casa ao lado houve uma tragédia. Este cavalheiro é o Sr. Markham, procurador do distrito, e este outro o sargento Heath, do Departamento de Polícia. A pedido nosso, a Srta. Dillard acompanhou-nos até aqui para perguntar à senhora sua mãe se ela tinha notado algo de anormal no campo de exercícios esta manhã. A tragédia ocorreu mesmo fora da porta do porão da casa de Dillard.

Drukker projetou seu queixo para diante e olhou de soslaio.

— Uma tragédia, hem? Que classe de tragédia?

— Um Sr. Robin foi morto por um flechaço.

O rosto do homem começou a retorcer-se espasmodicamente.

— Robin morto? Morto?... A que horas?

— Provavelmente entre as onze e meio-dia.

— Entre onze e meio-dia? — Rapidamente o olhar de Drukker se desviou para a sua mãe. Parecia cada vez mais nervoso, e seus imensos dedos retorciam a bainha do casaco.

— Que foi que a senhora viu? — Seus olhos faiscavam ao encarar a mulher.

— Que queres dizer, filho? — A réplica era um murmúrio que encerrava imenso pânico. O rosto de Drukker se endureceu e a sugestão de um sorriso cômico torceu seus lábios.

— Quero dizer que foi a essa hora que ouvi um grito neste quarto.

— Não ouviste! Não... Não! — Ela conteve a respiração e meneou fortemente a cabeça. — Estás equivocado, filho. Eu não gritei esta manhã.

— Bem, alguém foi. — Havia na voz do homem uma implacabilidade iria. Logo depois de uma pausa ajuntou:

— O fato é que subi depois de ter ouvido o grito e escutei aqui na porta. Mas a senhora passeava de um lado para outro cantando Eia Popéia, portanto voltei ao meu trabalho.

A Sra. Drukker apertou o lenço contra o seu rosto, cerrando os olhos momentaneamente.

— Trabalhavas entre as onze e o meio-dia? — Sua voz ressoou agora com ansiedade reprimida. — Pois eu te chamei várias vezes...

— Eu a ouvi, porém não respondi. Estava muito ocupado.

— Sim, verdade? — Ela se voltou lentamente para a janela. — Pensei que não estavas em casa. Não me disseste que?...

— Eu lhe disse que ia à casa de Dillard. Mas, como Sigurd não estava, voltei pouco antes das onze.

— Não te vi entrar. — A energia da mulher se havia esgotado, recostando-se negligentemente com a vista posta no muro de tijolos do lado oposto. — E quando te chamei, ao ver que não respondias, acreditei que estavas fora.

— Saí da casa de Dillard pelo portão que dá para a rua e fui dar um passeio pelo parque. — A voz de Drukker mostrava irritação. — Depois entrei pela porta principal.

— E dizes que me ouviste gritar... Por que ia gritar, meu filho? Hoje não me doeram as costas.

Drukker franziu o cenho e seus olhinhos se moveram rapidamente de Vance para Markham.

— Ouvi alguém gritar... uma mulher... neste quarto — insistiu ele tenazmente — isto às onze e meia. — Então afundou-se em uma cadeira e olhou pensativamente para o chão.

Este diálogo intrincado entre mãe e filho enfeitiçou-nos a todos. Embora Vance permanecesse defronte de uma antiga estampa do século dezoito, perto da porta, mirando-a com absorção aparente, eu sabia que nenhuma palavra ou inflexão lhe tinha escapado. Agora girou em redor e, fazendo um sinal a Markham para que não interviesse, aproximou-se da Sra. Drukker.

— Sentimos muitíssimo, senhora, que a tenhamos molestado. Rogo-lhe que nos perdoe. — Fez uma inclinação de cabeça e se voltou para a Srta. Dillard.

— Acompanha-nos, ou prefere que vamos sós?

— Irei com os senhores — disse a moça. Foi até a Sra. Drukker, dizendo a esta, enquanto a abraçava:

— Sinto muitíssimo, Lady Mae.

Enquanto passávamos ao vestíbulo, Vance, como que refletindo, deteve-se. E, dando volta, disse a Drukker com um tom de voz casual embora urgente:

— Precisamos que o senhor venha conosco. O senhor conhecia Robin e pode sugerir-nos alguma coisa...

— Não vás com ele, filho! — exclamou a Sra. Drukker. Agora estava erguida em sua cadeira com o rosto contorcido de angústia e terror. — Não vás! São inimigos. Querem fazer-te mal...

Drukker se havia posto em pé.

— Por que não devo ir com eles? — replicou com petulância. — Quero averiguar este assunto. Pode ser, como dizem eles, que eu lhes seja de alguma utilidade. — E com um gesto de impaciência veio ter conosco.


VI

 

"EU", DISSE O PARDAL

 

(Sábado, 2 de abril — 15h)

 

Quando estávamos de novo na sala de Dillard, e uma vez que a Srta. Belle nos deixara para ir em busca de seu tio que se achava na biblioteca, Vance, sem preâmbulo algum, retomou o assunto que o preocupava.

— Não o quis interrogar, Sr. Drukker, diante da senhora sua mãe para não incomodá-la, porém, considerando que o senhor esteve aqui esta manhã pouco antes da morte do Sr. Robin, é necessário, como simples procedimento de rotina, que procuremos toda a informação que o senhor possa nos dar.

Drukker, que estava sentado perto da lareira, estendeu a cabeça cautelosamente, porém não respondeu.

— O senhor chegou aqui — continuou Vance — perto das nove e meia, segundo creio, para visitar Arnesson.

— Sim.

— Pelo campo de exercício e pela porta do porão?

— Como sempre. Para que dar uma volta ao quarteirão?

— Mas o Sr. Arnesson não estava em casa. Drukker meneou a cabeça e disse:

— Estava na Universidade.

— E ao ver que o Sr. Arnesson não estava em casa, o senhor se sentou um pouco na biblioteca com o professor Dillard, segundo parece, conversando sobre uma expedição de astrônomos à América do Sul.

— A expedição da Real Sociedade de Astronomia a Sobral para comprovar a deflexão einsteiniana — completou Drukker.

— Quanto tempo permaneceu o senhor na biblioteca?

— Menos de meia hora.

— E depois?

— Desci à sala do clube e li uma das revistas onde havia um problema de xadrez... um final da partida que se desenvolveu recentemente entre Shapiro e Marshall... como me interessou muito, tentei resolvê-la...

— Um momento, Sr. Drukker. — Na voz de Vance havia um tom de interesse. — Interessa-lhe o xadrez?

— Até certo ponto. Entretanto, não lhe dedico muito tempo. O jogo não é puramente matemático. Além disso, é insuficientemente especulativo para que interesse a um espírito completamente científico.

— Achou complicada a situação Shapiro-Marshall?

— Era mais uma questão de habilidade. — Drukker observava Vance astutamente. — Assim que descobri que um movimento de peão aparentemente inútil era a chave do impasse, a solução foi fácil.

— Quanto tempo lhe custou?

— Uma meia hora.

— Diremos até perto das dez e meia.

— Essa hora seria a mais aproximada. — Drukker afundou-se mais na poltrona, porém a sua disfarçada vigilância não diminuiu.

— Então você deve ter estado na sala do clube quando o Sr. Robin e o Sr. Sperling chegaram lá.

O homem não contestou de imediato e Vance, aparentando não perceber a sua hesitação, acrescentou:

— O professor Dillard disse que eles chegaram a casa perto das dez e que, depois de esperarem um pouco na sala, desceram ao porão.

— A propósito, onde está agora Sperling? — Os olhos de Drukker percorreram velozmente cada um de nós.

— Esperamo-lo aqui de um momento para outro — replicou Vance. — O sargento Heath mandou dois agentes buscá-lo.

As sobrancelhas do corcunda se ergueram.

— Ah! Então Sperling será trazido à força. — Ele pôs em pirâmide seus espatulados dedos e os olhou pensativamente. Em seguida, levantou lentamente os olhos para Vance. — O senhor perguntou-me se havia visto Robin e Sperling na sala do clube. Sim. Desciam, quando eu saía.

Vance recostou-se, estirando as pernas.

— Teve o senhor a impressão de que haviam tido, como dizemos por eufemismo, uma troca de palavras?

O homem considerou esta pergunta durante um certo tempo.

— Agora que o senhor menciona isto — disse ele por fim —, recordo-me de que as relações de ambos se haviam esfriado. Entretanto, não queria ser demasiado categórico neste ponto, pois eu saí da sala quase logo depois que eles entraram.

— Creio que o senhor disse que saiu pela porta do porão e depois pelo portão do muro que dá para a Rua 75. É exato?

Durante um momento, Drukker pareceu não querer responder, porém replicou, forçando indiferença:

— Exato. Pensei em dar um passeio pela margem do rio, antes de começar a trabalhar. Fui ao Riverside Drive, depois segui o caminho circular e voltei ao parque pela Rua 79.

Heath, com a sua suspeita habitual diante de todas as declarações feitas à polícia, fez a seguinte pergunta:

— Encontrou algum conhecido seu?

Drukker voltou-se irritado, porém Vance aproveitou a brecha.

— Isto não interessa, sargento. Se for necessário considerar este ponto, fá-lo-emos mais tarde. — Então, dirigindo-se a Drukker: — O senhor voltou do seu passeio um pouco antes das onze, conforme ouvi, e entrou em sua casa pela porta principal.

— Exato.

— Notou o senhor algo de extraordinário, esta manhã, por casualidade?

— Não vi nada mais do que lhe disse.

— E o senhor está seguro de ter ouvido a sua mãe gritar perto das onze e meia?

Vance permaneceu imóvel ao fazer-lhe esta pergunta, porém em sua voz se produziu uma nota ligeiramente distinta, fazendo com que Drukker se sobressaltasse um pouco.

Inclinou para frente seu corpo rechonchudo e olhou Vance com ameaçadora fúria. Seus olhinhos redondos faiscavam e seus lábios se moveram convulsivamente. Suas mãos trêmulas se dobraram e espalmaram como as de um homem em paroxismo.

— Que pretende o senhor? — perguntou com voz estridente de falsete. — Sim, ouvi-a gritar. A mim não interessa se ela o confirme ou negue. Mais ainda, eu a ouvi caminhar em seu quarto. Ela estava em seu quarto, compreenda-o bem, e eu estava no meu, entre as onze e as doze. E o senhor não pode provar outra coisa. Além do mais, não vou permitir que o senhor ou seja lá quem for me interrogue a respeito do que eu fazia ou onde estava... Não podem meter-se no que não lhes importa... estão ouvindo, senhores?

Sua ira era tão insana que eu pensei que ele fosse arrojar-se contra Vance. Heath se havia posto em pé, avançando, percebendo o perigo potencial do homem. Entretanto, Vance não se moveu. Continuou fumando languidamente e, quando a fúria do outro desapareceu, disse tranqüilamente e sem a mínima emoção:

— Não são necessárias mais perguntas, Sr. Drukker. E, verdadeiramente, não tem por que se incomodar. O fato é que me ocorreu que o grito da senhora sua mãe podia ajudar a estabelecer a hora exata do crime.

— Que tem que ver o grito dela com a hora da morte do Sr. Robin? Não lhes disse ela que não viu nada? — Drukker parecia exausto e se apoiou fortemente contra a mesa.

— Neste instante apareceu no umbral o professor Dillard. Atrás dele, Arnesson.

— Que sucede? — perguntou o professor. — Ouvi barulho aqui e desci. — Olhou friamente Drukker. — Não sofreu Belle bastante já para que você venha agora assustá-la?

Vance se havia levantado, porém, antes que pudesse falar, Arnesson avançou e moveu o seu dedo como que repreendendo Drukker.

— Adolph, é necessário que saiba conter-se. Você toma a vida com tão abominável seriedade... Você trabalhou tanto tempo com as magnitudes dos espaços interestelares que devia ter algum senso de proporção. Por que dar tanta importância a esta futilidade da vida sobre a terra? Drukker respirava ofegantemente.

— Esses porcos... — começou dizendo.

— Oh, meu caro Adolph! — Arnesson cortou-lhe a palavra. — Toda a raça humana está constituída de porcos. Por que particularizar?... Vamos, acompanhá-lo-ei à sua casa. — E segurando Drukker firmemente pelo braço, conduziu-o para baixo.

— Sentimos muito tê-lo incomodado, senhor — disse Markham ao professor Dillard. — O homem alterou-se por alguma razão desconhecida. Estas investigações são das mais desagradáveis, mas esperamos terminar muito breve.

— Assim o espero, Markham. E a respeito de Belle, tratem de evitar-lhe todo incômodo. Desejo falar com os senhores antes de irem.

Quando o professor Dillard se retirou para cima, Markham passeou, de um lado para outro da sala, com o cenho franzido e com as mãos nas costas.

— Que idéia tem de Drukker? — perguntou, detendo-se diante de Vance.

— Decididamente um tipo pouco agradável. Um enfermo física e mentalmente. Embusteiro congênito. Todavia astuto... oh, malditamente astuto. Um cérebro anormal... como amiúde se encontra nos aleijados do seu tipo. Às vezes, inclinam-se para um gênio construtivo, como no caso de Steinmetz, porém, muito freqüentemente tendem para uma especulação abstrusa, sobre linhas impraticáveis, como acontece com Drukker. Entretanto, nosso interrogatório deu seus frutos. Ele está ocultando algo que lhe agradaria dizer, porém não se atreve.

— Naturalmente, é possível — replicou Markham em tom de dúvida. — É muito suscetível no que se refere àquela hora, entre as onze e doze. E durante todo o tempo, olhava para você como um gato selvagem.

— Como uma doninha — corrigiu Vance. — Sim, eu estava percebendo seus olhares lisonjeiros.

— Apesar de tudo, não creio que tenha esclarecido nenhum ponto.

— Não — concordou Vance. — Não é muito o que sabemos, porém, pelo menos, temos alguma bagagem a bordo. Nosso excitável mago das matemáticas abriu algumas linhas de especulação muito interessantes. E a Sra. Drukker é bastante prolifera em possibilidades. Se soubéssemos o que eles juntos sabem, poderíamos encontrar a chave deste caso estúpido.

Heath estivera durante a hora passada observando com triste e fatigante desdém os procedimentos empregados. Agora, porém, mostrava-se combativo.

— Devo dizer-lhe, Sr. Markham, que estamos perdendo tempo. Para que servem todas essas conversas? É de Sperling que precisamos, e quando meus agentes o trouxerem e fizerem-no suar um pouco, teremos material de sobra para uma acusação. Estava enamorado da Srta. Dillard e tinha ciúmes de Robin... não só pela moça, como porque Cochrane sabia lançar essas flechas com maior destreza do que ele. Aqui mesmo brigaram. O professor ouviu-os. Sperling estava embaixo com Robin, segundo a evidência, uns minutos antes do assassinato...

— E — ajuntou Vance ironicamente — o nome dele significa "pardal". Quod erat demonstrandum. Não, sargento, isso é demasiado fácil. Desenvolve-se como um jogo de Canfield com as cartas empilhadas, visto que isto foi planejado com demasiado cuidado para que a suspeita recaísse diretamente sobre o culpado.

— Eu não vejo nenhum plano cuidadoso nisto — persistiu Heath. — Esse Sperling se irrita, levanta um arco, tira uma flecha da parede, segue Robin, e lá fora então atravessa-lhe o coração, fugindo em seguida.

Vance suspirou.

— Você é demasiado ingênuo para este mundo malvado, sargento. Se as coisas sucedessem com semelhante prontidão e candura, a vida seria muito simples... e penosa. Porém, não foi esse o modus operandi do assassinato de Robin. Em primeiro lugar, ninguém poderá disparar uma flecha contra um alvo humano móvel e dar exatamente entre as costelas sobre o ponto vital do coração. Segundo, existe essa fratura do crânio de Robin. Podia ter sido feita ao cair, porém não é provável. Terceiro, o chapéu dele estava a seus pés, o que não teria acontecido se a queda fosse natural. Quarto, o punho da flecha está tão amassado que duvido de que sustentaria um cordel. Quinto, Robin dava o rosto para a flecha, e enquanto Sperling fazia a pontaria com o arco, teria tido tempo de gritar e pôr-se a salvo. Sexto... — Vance fez uma pausa, enquanto acendia um cigarro. — Por Deus, sargento! Havia omitido algo. Quando a um homem lhe atravessam o coração, é certo que corre sangue de imediato, especialmente quando a extremidade da arma é maior do que o cabo e não há um tampão adequado para a abertura. Olhe! É possível que você encontre algumas manchas de sangue no piso da sala do clube... provavelmente perto da porta.

Heath duvidou, porém só momentaneamente. A experiência lhe havia ensinado há muito tempo que as sugestões de Vance não eram para ser tratadas com desprezo e, com um grunhido bem-humorado, se levantou e desapareceu na direção dos fundos da casa.

— Creio, Vance, que começo a entender o que você quer dizer — observou Markham com um olhar ofendido. — Mas, Santo Deus! Se a morte de Robin aparentemente de um flechaço fosse uma montagem teatral ex post fact, então estamos diante de alguma coisa demasiadamente diabólica.

— Foi obra de um maníaco — declarou Vance com sobriedade não habitual. — Não, porém, o maníaco convencional que se imagina ser Napoleão, mas um louco com um cérebro tão colossal que levou o juízo a um, falando humanamente, reductio ad absurdum... a um ponto em que o próprio humor se converte em uma fórmula de quatro dimensões.

Markham fumava vigorosamente, perdido em meditações.

— Espero que Heath não encontre nada — disse ele por fim.

— Por quê... em nome do céu? — replicou Vance. — Se não houver evidência material de que Robin encontrou seu fim na sala do clube, isso só fará com que o problema seja mais difícil do ponto de vista legal.

A evidência material, porém, lá estava. O sargento voltou minutos depois, cabisbaixo e nervoso.

— Raios, Sr. Vance! — explodiu ele. — O senhor tinha razão. — Não procurou ocultar a sua admiração. — Não há sangue no chão, mas sim uma mancha escura no cimento e sinais de que alguém a esteve esfregando com um pano molhado hoje. A mancha ainda não está seca. E fica bem perto da porta, onde o senhor havia dito. E o que é mais suspeitoso é que puseram um tapete em cima. Mas isto não quer dizer que Sperling não tenha nada com o assunto — disse ele belicosamente. — Ele podia ter disparado a flecha, dentro de casa, contra Robin...

— E depois limpou o sangue, secou o arco e a flecha fora, antes de ir... O tiro de flecha, para começar, sargento, não é um esporte interno. E Sperling sabe-o demasiado bem para procurar matar alguém com um flechaço. Um golpe tal como o que terminou com a memorável carreira de Robin teria sido uma casualidade pura. Nem o próprio Teucer o teria conseguido com toda a segurança... e, segundo Homero, Teucer era o campeão de arco-e-flecha entre os gregos.

No momento em que falava, Pardee cruzou pelo vestíbulo, em seu caminho para fora. Apenas chegara à porta da rua, Vance levantou-se de súbito e encaminhou-se para o umbral.

— Sr. Pardee, um momento por favor.

O interpelado virou-se com ar de graciosa complacência.

— Há uma pergunta mais que gostaríamos de fazer-lhe — disse Vance. — O senhor mencionou que viu Sperling e Beedle saírem daqui esta manhã pelo portão do muro. Está certo de que não viu nenhuma outra pessoa?

— Seguríssimo. Isto é, não me recordo de ter visto outra pessoa?

— Eu pensava particularmente no Sr. Drukker.

— Oh, Drukker? — Pardee sacudiu a cabeça com suave ênfase. — Não, pois de outro modo, eu me lembraria. Mas compreenda que poderia ter entrado uma dúzia de pessoas sem que eu as tivesse visto.

— É muito certo, muito certo — murmurou Vance com indiferença. — A propósito, a que classe de enxadristas pertence o Sr. Drukker?

Pardee mostrou certa surpresa.

— Praticamente, não é um jogador no verdadeiro sentido da palavra — explicou ele com cuidadosa precisão. — É um analista excelente, não obstante, e entende a teoria do jogo como ninguém. Mas não tem muita prática no tabuleiro.

Assim que Pardee se foi embora, Heath dirigiu um olhar triunfante a Vance.

— Noto, senhor, que não sou eu o único a quem interessa verificar o álibi do corcunda.

— Ah, porém há uma diferença entre comprovar um álibi e exigir que a pessoa mesma o comprove.

Nesse instante, abriu-se a porta da frente. Ouviram-se no vestíbulo fortes passos e no umbral apareceram três homens. Dois eram evidentemente detetives e ladeavam um jovem alto, de bom porte, de uns trinta anos de idade.

— Detivemo-lo, sargento — anunciou um dos detetives com um sorriso de satisfação. — Daqui foi diretamente para casa e estava fazendo as malas quando o apanhamos.

Os olhos de Sperling percorreram o quarto com apreensão cheia de ira.

Heath havia-se colocado diante do homem mirando-o triunfantemente, de cima a baixo.

— Bem, jovem. Você pensou que podia escapar, não?

— O cigarro do sargento subia e abaixava entre seus lábios enquanto falava.

As faces de Sperling ruborizaram-se e ele apertou a boca tenazmente.

— Então você não tem nada a dizer? — continuou falando Heath, segurando o queixo e com uma expressão feroz.

— Por ventura é mudo? Bem, já o faremos falar. — Voltou-se para Markham. — Que lhe parece, senhor? Levo-o para a Polícia Central?

— Talvez o Sr. Sperling não objete a responder aqui a umas quantas perguntas — disse tranqüilamente Markham. Sperling estudou durante um pouco o procurador do distrito. Depois dirigiu seu olhar para Vance, que meneou a cabeça animando-o.

— Que é que querem que eu diga? — perguntou ele com um evidente esforço para dominar-se. — Estava-me preparando para excursionar durante meu fim-de-semana, quando estes rufiões entraram violentamente em minha casa. E sem nenhuma palavra esclarecedora, nem sequer dando-me a oportunidade de falar com alguém de minha família, trouxeram-me para cá. Agora falam de levar-me à Central de Polícia. — Lançou a Heath um olhar de desafio. — Perfeitamente, leve-me lá... porém você pagará por isso.

— A que horas saiu daqui esta manhã, Sr. Sperling? — A voz de Vance era suave e insinuante e suas maneiras tranqüilizadoras.

— Cerca de onze e quinze — respondeu o indivíduo. — A tempo de tomar o trem de Scardale das onze e quarenta na estação Grande Central.

— E o Sr. Robin?

— Não sei a que hora saiu Robin. Disse que ia esperar Belle... a Srta. Dillard. Eu o deixei na sala do clube.

— Viu o Sr. Drukker?

— Sim, porém um minuto. Estava ali quando Robin e eu descemos; mas ele saiu imediatamente.

— Pelo portão do muro? Ou pelo campo de exercícios?

— Não me recordo... para dizer a verdade não prestei atenção... Mas, diga-me: a que vem tudo isto?

— O Sr. Robin foi assassinado esta manhã — disse Vance — perto das onze horas.

Os olhos de Sperling pareciam saltar das órbitas.

— Robin morto? Meu Deus!... Quem... quem o matou?

Os lábios do homem estavam secos, e ele os umedecia com a língua.

— Ainda não sabemos — respondeu Vance. — Atravessaram-lhe o coração com uma flecha.

Essa notícia deixou Sperling aturdido. Seus olhos moveram-se vagamente de um lado a outro e ele levou a mão ao bolso em busca de cigarro.

Heath se acercou mais dele e estendeu seu queixo para a frente.

— Pode ser que você saiba quem matou... com arco e flecha!

— Por que... por que pensa você que eu saiba? — tartamudeou Sperling.

— Bem — replicou o sargento implacavelmente —, não estava você com ciúmes de Robin? Você discutiu com ele acaloradamente nesta mesma sala, sendo a Srta. Dillard a causa não? E você esteve a sós com ele pouco antes de o matarem, não? E você é um bom atirador de flecha, não é? Por isto creio que você há de saber algo. Vamos! Não oculte nada. Ninguém mais senão você podia fazê-lo. Você brigou com ele por causa da moça e foi você a última pessoa vista com ele... só uns poucos minutos antes de ele ser morto. E que outro homem que não fosse um campeão como você podia matá-lo com arco e flecha? Apanhamos você.

Uma luz estranha iluminou os olhos de Sperling e seu corpo tornou-se rígido.

— Diga-me — falou com voz forçada e artificial — você encontrou o arco?

— Creio que sim. — Heath riu desagradavelmente. — No lugar onde você o deixou... no corredor.

— Como era o arco? — Sperling olhava como em sonho.

— Como era o arco? — repetiu Heath. — Um arco de tamanho regular...

Vance que havia estado observando fixamente, interrompeu:

— Creio compreender a pergunta, sargento. Era um arco de mulher, Sr. Sperling. De cerca de metro e meio. Mas bem leve... menos de quinze quilos de peso, diria eu.

Sperling respirou lenta e profundamente como um homem que se encoraja com alguma amarga resolução. Então seus lábios se separaram em um débil e triste sorriso.

— De que adianta? — perguntou ele com indiferença. — Pensei que tinha tempo de fugir... Pois sim, eu o matei.

Heath grunhiu com satisfação e sua maneira beligerante desapareceu imediatamente.

— Você tem mais senso do que eu pensava — disse ele com um tom quase paternal, fazendo sinais convencionais aos dois detetives. — Levem-no, rapazes. Usem o meu carro... está na rua. E metam-no na cadeia sem anotar o nome. Prefiro acusá-lo quando chegar ao gabinete.

— Vamos, rapaz — ordenou um dos detetives voltando-se para o vestíbulo.

Sperling, porém, não obedeceu imediatamente. Olhando para Vance, suplicou:

— Poderia... será que me permitiriam?... — começou a dizer.

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, Sr. Sperling. É melhor que o senhor não veja a Srta. Dillard. Não vale a pena afligi-la agora... Boa sorte.

Sperling voltou-se e, sem dizer nenhuma palavra mais, saiu entre os agentes.


VII

 

VANCE CHEGA A UMA CONCLUSÃO

 

(Sábado, 2 de abril — 15h30)

 

Assim que ficamos sós, Vance levantou-se, e espreguiçando-se, dirigiu-se à janela. A cena que acabava de se verificar, com seu alarmante clímax, nos havia deixado um tanto aturdidos. Nossos espíritos estavam ocupados, eu penso, com a mesma idéia. E quando Vance falou era como se expressasse nossos pensamentos.

— Ao que parece, voltamos à infância...

 

"Eu", disse o Pardal,

"Com meu arco-e-flecha,

Matei Cock Robin..."

 

Voltou lentamente para a mesa do centro e apagou no cinzeiro o seu cigarro. Com o canto do olho mirou Heath.

— Por que está tão pensativo, sargento? Deveria estar cantando melodias e dançando uma alegre tarantela. Não confessou ele seu vil e horrível feito? Não o enche de alegria saber que o culpado logo se consumirá de desgosto em uma cela?

— Para dizer a verdade, Sr. Vance — admitiu Heath com tristeza — não estou muito satisfeito. Esta confissão saiu demasiado fácil e... bem, vi muitos indivíduos desfilarem diante de mim, porém este, não sei por que, não me parece culpado. Realmente não sei o que dizer.

— De qualquer forma — manifestou Markham esperançosamente — sua confissão absurda esfriará a curiosidade dos jornais, dando-nos liberdade para prosseguir nossa investigação. Este caso vai levantar uma celeuma infernal; mas, enquanto a imprensa acreditar que o culpado está preso, não nos incomodará, perguntando-nos como vão as investigações.

— Eu não digo que ele seja inocente — falou Heath belicosamente, argumentando obviamente contra as suas mais íntimas convicções. — Temo-lo sobrecarregado de perguntas e penso que, confessando seu crime, no dia do julgamento os jurados considerariam essa confissão uma atenuante. Talvez ele não seja tão tolo, afinal.

— Eu não penso assim, sargento — replicou Vance. — O trabalho mental do moço foi espantosamente fácil. Sabia que Robin esperava a Srta. Dillard. Também sabia que ela lhe dera, por assim dizer, um despacho de improcedência à noite passada. Sperling evidentemente não tinha uma boa opinião de Robin, e quando se inteirou de sua morte por mãos de alguém que empunhava um arco pequeno e leve, chegou à conclusão de que Robin se havia excedido com a moça e ela lhe cravara uma flecha no coração. Ao nosso nobre pardal vitoriano não lhe restou senão fazer golpear seu peito juvenil e exclamar: "Ecce homom!"... É desolador.

— Bem, seja como for — grunhiu Heath —, eu não vou pô-lo em liberdade. Se o Sr. Markham não quer processá-lo, deve ter suas razões.

Markham olhou o sargento com certa tolerância. Percebia o nervosismo que o dominava e, graças à sua grande bondade, não se deu por ofendido.

— Embora, sargento — manifestou bondosamente — eu espere que você não se oponha continuar comigo a investigação, ainda que eu não me decida por enquanto a processar Sperling.

— Heath sentiu-se muito pesaroso e, levantando-se bruscamente, encaminhou-se para Markham, estendendo-lhe a mão, ao mesmo tempo que dizia:

— Bem sabe o senhor que estou às suas ordens!

Markham tomou a mão que o sargento lhe estendia e pôs-se em pé com um sorriso indulgente.

— Deixarei o caso em suas mãos. Tenho que fazer em meu escritório, pois Swacker está-me esperando. (1) — Encaminhou-se algo deprimido até o vestíbulo. — Antes de ir-me, explicarei a situação à Srta. Dillard e ao professor. Alguma outra idéia, sargento?

(1) Aos sábados, trabalhava-se meio expediente no escritório do procurador do distrito. Swacker era secretário de Markham.

 

— Sim, pretendo examinar bem este capacho que foi usado para limpar o piso embaixo. E irei à sala do clube com um pente fino. Também apertarei de novo os parafusos à cozinheira e ao mordomo; especialmente, à primeira, pois devia ter estado muito perto, quando se fez este sujo trabalho... Depois, toda a rotina... investigações pela vizinhança e coisas assim.

— Comunique-nos os resultados. Estarei no Club Stuyvesant, logo mais e amanhã à tarde.

Vance fora ter com Markham na arcada.

— Ouça, camarada — disse ele enquanto nos dirigíamos às escadas — não passe por alto esta nota secreta que deixaram no buraco da caixa de correspondência. Tenho uma forte suspeita psíquica de que possa ser a chave de tudo. Não seria demais se perguntássemos ao professor Dillard e a sua sobrinha se a palavra "Bispo" tem para eles algum sentido especial. Essa assinatura diocesana quer dizer algo, sem dúvida alguma.

— Pois eu não tenho tanta certeza — replicou Markham com ar incrédulo. — Para mim não tem significado algum. Mas seguirei as suas indicações.

Nem o professor, nem a Srta. Dillard puderam, entretanto, lembrar-se de alguma associação pessoal com a palavra "Bispo". O professor estava inclinado a pensar com Markham que a nota não teria significado nenhum em relação ao caso em foco.

— Na minha opinião — disse ele — é uma peça de melodrama juvenil. Não é provável que a pessoa que matou Robin adotasse um pseudônimo e escrevesse notas acerca de seu crime. Eu não conheço os costumes dos criminosos, mas tal conduta parece-me ilógica.

— O crime, sim, foi ilógico — aventurou Vance agradavelmente.

— Não se pode dizer que uma coisa seja ilógica, senhor

— replicou asperamente o professor — quando se ignoram as premissas de um silogismo.

— Exatamente. — O tom de voz de Vance era calculadoramente cortês. — Por conseguinte, a nota mesma pode não ser desprovida de lógica.

Markham diplomaticamente mudou o rumo da conversação.

— Vim particularmente para dizer-lhe, professor, que o Sr. Sperling esteve aqui há momentos; e, quando lhe disseram da morte do Sr. Robin, confessou ter sido ele o autor...

— Raymond confessou! — murmurou a Srta. Dillard. Markham olhou para a moça com simpatia.

— Para lhes ser franco, eu não acreditei no Sr. Sperling. Alguma idéia errônea de cavalheirismo conduziu-o indubitavelmente a admitir a culpabilidade do crime.

— Cavalheirismo? — repetiu ela, inclinando-se tensamente para a frente. — Que quer exatamente dizer com isto, Sr. Markham?

Foi Vance quem respondeu.

— O arco que se encontrou no local era de mulher.

— Oh! — A moça cobriu o rosto com as mãos e seu corpo se sacudia com os soluços.

O professor Dillard olhou-a desconsolado; e sua impotência tomou a forma de irritação.

— Que disparate é este, Markham? — perguntou ele.

— Qualquer atirador pode lançar flechas com arco de mulher... Este grande idiota! Por que tornar Belle infeliz com sua absurda confissão?... Markham, meu amigo, faça o que puder pelo rapaz.

Markham prometeu-lhe que o faria e nos levantamos para sair.

— A propósito, professor Dillard — disse Vance, detendo-se à porta. — Não vá interpretar-me mal, porém acho muito provável que a pessoa que se permitiu a zombaria de escrever à máquina essa nota, seja alguém que freqüenta esta casa. Há, por acaso, alguma máquina de escrever no prédio?

Era claro que o professor se ressentira com a pergunta de Vance, mas respondeu bastante cortesmente.

— Não, nem é do meu conhecimento que tenha tido alguma. Faz uns dez anos que me desfiz da minha, quando deixei a universidade. Quando preciso, mando tirar cópias numa agência.

— E o Sr. Arnesson?

— Nunca usou máquina de escrever.

Quando descíamos, encontramos Arnesson, que voltava da casa de Drukker.

— Acalmei o nosso Leibnitz local — anunciou com um suspiro exagerado. — Pobre Adolph! O mundo é demasiado para ele. Só está sereno quando se revolve nas fórmulas relativistas de Lorentz e Einstein. Mas, quando é arrastado à realidade, se desintegra.

— Talvez lhe interesse saber — disse Vance, com naturalidade — que Sperling acaba de confessar o crime.

— Já! — Arnesson deu gargalhadas. — Isso faz sentido. "Eu, disse o pardal..." Muito nítido. Entretanto, não sei como será do ponto de vista matemático.

— E desde que concordamos em pô-lo a par de tudo — continuou Vance — talvez seja útil para seus cálculos saber que temos motivos para crer que Robin foi assassinado na sala do clube, sendo levado para fora depois.

— Alegra-me sabê-lo. — Arnesson tornou-se momentaneamente sério. — Sim, isto pode afetar meu problema. — Acompanhou-nos até a porta principal. — Se houver alguma coisa em que eu possa servir-lhes, procurem-me.

Vance se havia detido para acender um cigarro, porém eu sabia, pelo aspecto lânguido do seu olhar, que estava formando alguma decisão. Lentamente se voltou para Arnesson.

— Sabe se o Sr. Drukker ou o Sr. Pardee têm máquina de escrever?

Arnesson sobressaltou-se um pouco e seus olhos piscaram astutamente.

— Ah! A nota do Bispo... Compreendo. Meramente um assunto de pormenores. Inteiramente certo. — Meneou a cabeça com satisfação. — Sim, ambos têm máquina de escrever. Drukker escreve incessantemente; e a correspondência de Pardee é tão volumosa como a de um astro de cinema. Também escreve tudo à máquina.

— Não seria muito incômodo — perguntou Vance — se o senhor pudesse conseguir um modelo do tipo de escrita de cada máquina e também uma amostra do papel que usam esses cavalheiros?

— Incômodo nenhum. — Arnesson parecia encantado com a incumbência. — Esta tarde o senhor terá tudo. Onde posso encontrá-lo?

— O Sr. Markham estará no Club Stuyvesant. O senhor poderá telefonar para lá, e ele pode providenciar...

— Por que se molestar em providenciar algo? Levarei tudo pessoalmente ao Sr. Markham. Ficarei encantado de fazê-lo. É uma carreira fascinante a de detetive.

Vance e eu voltamos para a casa no carro de Markham e este prosseguiu para a repartição. Às sete horas daquela noite, encontramo-nos os três no Club Stuyvesant para jantar; e às oito e meia estávamos sentados no canto favorito de Markham na ante-sala, fumando e tomando café.

Durante a refeição, não se falou nada sobre o caso. As últimas edições dos vespertinos traziam breves informações sobre a morte de Robin. Evidentemente Heath tinha conseguido desviar a curiosidade dos repórteres cortando-lhes as asas da imaginação. Estando fechado o gabinete do procurador do distrito, os repórteres não puderam bombardear Markham com perguntas, de modo que os últimos jornais do dia não puderam conseguir informações adequadas. O sargento tinha guardado bem a casa de Dillard, pois os repórteres não conseguiram aproximar-se de qualquer membro da criadagem.

Markham havia apanhado um exemplar da última edição do Sun quando vinha da sala de jantar para a ante-sala, lendo-o cuidadosamente enquanto sorvia seu café.

— Este é o primeiro eco débil — comentou tristemente. — Tremo ao pensar o que dirão os jornais de amanhã.

— Não há outra coisa a fazer senão suportá-los — sorriu Vance. — Assim que algum repórter sagaz perceber a combinação Robin — Pardal — Flecha, os editores de jornais da cidade ficarão loucos de alegria e em cada primeira página aparecerão os versos infantis.

Markham estava desalentado. Finalmente, indignado, deu um murro no braço da poltrona.

— Que diabo, Vance! Não permitirei que você esgote a minha paciência com essa idiotice de rimas infantis. — Logo acrescentou com a ferocidade da incerteza: — É uma mera coincidência, digo-lhe eu. Simplesmente, não pode ser outra coisa.

Vance suspirou.

— Convença-se contra sua vontade; você é da mesma opinião ainda, para parafrasear Butler. — Meteu a mão no bolso e tirou uma folha de papel. — Deixando de parte pro tempore tudo o que pertence à infância, apresento-lhe aqui uma cronologia edificante que fiz antes do jantar... Edificante? Bem, poderia sê-lo, se soubéssemos como interpretá-la.

Markham estudou o papel durante vários minutos. Vance havia escrito o seguinte:

9:00h — Arnesson saiu de casa para ir à biblioteca da Universidade.

9:15 h — Belle Dillard saiu de casa para ir jogar tênis.

9:30h — Drukker foi ver Arnesson.

9:50 h — Drukker desceu à sala do Clube.

10:00 h — Robin e Sperling permaneceram meia hora na sala da casa de Dillard.

10:30 h — Robin e Sperling desceram à sala do clube.

10:32 h — Drukker disse que saiu pelo portão do muro para passear no parque.

10:35 h — Beedle foi ao mercado.

10:55 h — Drukker disse que se retirou para sua casa.

11:15 h — Sperling saiu pelo portão do muro.

11:30h — Drukker disse que ouviu um grito de mulher no quarto de sua mãe.

11:35 h — O professor Dillard assomou ao balcão do quarto de Arnesson.

11:40h — O professor Dillard viu o corpo de Robin no campo de exercícios de tiro de flecha.

11:45 h — O professor Dillard telefonou para o gabinete do procurador do distrito.

12:25 h — Belle Dillard voltou do tênis.

12:30 h — A polícia chegou à casa de Dillard.

12:35 h — Beedle voltou do mercado.

14:00 h — Arnesson voltou da Universidade.

 

Portanto, Robin foi assassinado entre 11:15 (quando se retirou Sperling) e 11:40 (quando o professor Dillard descobriu o cadáver).

As outras pessoas que se sabe terem estado na casa durante esse tempo são Pyne e o professor Dillard.

A posição de todas as outras pessoas relacionadas de um modo ou outro com o assassinato era como se segue (conforme declarações e provas ora em mão):

 

1. — Arnesson esteve na biblioteca da Universidade entre 9:40 e 14:00 horas.

2. — Belle Dillard esteve na cancha de tênis entre 9:15 e 12:25.

3. — Drukker esteve no parque entre 10:32 e 10:55 e em seu estúdio das 10:55 em diante.

4. — Pardee esteve em sua casa toda a manhã.

5. — A Sra. Drukker esteve em seu quarto toda a manhã.

6. — Beedle esteve no mercado entre 10:35 e 12:35.

7. — Sperling estava a caminho da Grande Estação Central entre 11:15 e 11:40, quando então tomou um trem para Scarsdale.

Conclusão: — A menos que algum destes sete álibis seja desfeito, todo o peso da suspeita e por certo a culpabilidade real deve recair sobre um dos dois: Pyne ou o professor Dillard.

 

Quando Markham terminou de ler o papel, fez um gesto de exasperação.

— Toda a sua dedução é absurda — disse irritadamente — e sua conclusão é um non sequitor. A cronologia indica-nos a hora da morte de Robin, porém sua suposição de que uma das pessoas que vimos hoje seja necessariamente culpada é uma notória insensatez. Você ignora completamente a possibilidade de que alguém de fora tenha cometido o crime. São três os caminhos para chegar ao campo de exercícios e à sala do clube sem pôr os pés na casa: o portão do muro que dá para a Rua 75; o portão do outro muro que dá para a Rua 76, e a passagem entre os dois prédios de apartamentos que dá para a Riverside Drive.

— Oh, é altamente provável que uma dessas três entradas fosse usada — replicou Vance. — Porém, não omita o fato de que o mais retirado e, por conseguinte, o mais provável desses três meios de penetração, isto é, a passagem, é guardado por uma porta fechada, cuja chave ninguém, exceto algum membro da família Dillard, tem. Não posso conceber que um assassino entre por qualquer dos portões do muro com o risco de ser descoberto.

Vance inclinou-se para diante com um semblante sério.

— E Markham, há outras razões para que eliminemos estranhos ou gatunos casuais. A pessoa que enviou Robin de volta para seu Criador devia estar informada do que se passava na casa de Dillard esta manhã entre as onze e um quarto e as doze menos vinte. Sabia que Pyne e o velho professor estavam sós. Sabia que Belle Dillard não estava em casa. Também sabia que Beedle se achava ausente e que assim não poderia ouvi-lo, nem surpreendê-lo. Sabia que Robin — sua vítima — estava lá e que Sperling tinha-se retirado. Mais ainda, conhecia o plano do terreno, a situação da sala do clube, por exemplo; é demasiado claro que Robin foi assassinado naquela sala. Ninguém que não estivesse familiarizado com esses pormenores não se teria atrevido a entrar e preparar um assassinato espetacular. Digo a você, Markham, que foi alguém muito íntimo dos Dillards; alguém que pôde encontrar, exatamente esta manhã, todas essas condições.

— Que me diz do grito da Sra. Drukker?

— Ah, por certo, que quer que lhe diga? A janela da Sra. Drukker podia ter sido um fator que ao assassino tenha escapado. Ou talvez soubesse e decidisse correr esse único risco de ser visto. Além do mais, não sabemos se a senhora gritou ou não. Ela disse que não. Drukker disse que sim. Ambos têm um motivo ulterior para o que disseram a nossos confiantes ouvidos. Drukker pode ter-se referido ao grito como meio de provar que estava em casa entre as onze e as doze. E a Sra. Drukker pode ter negado como temor de que ele não estivesse. É uma verdadeira olla podrida. Mas não importa. O ponto principal a que eu desejo chegar é que foi um íntimo dos Dillards quem executou esse diabólico trabalho.

— Temos muito poucos dados que garantam esta conclusão — manifestou Markham. — O acaso pode ter desempenhado uma parte...

— Vamos, homem! O acaso pode responder a umas quantas permutações, mas não a vinte. E há ainda aquela nota deixada na caixa do correio. O assassino sabia até o segundo nome de Robin.

— Supondo, por hipótese, que o assassino tenha escrito a nota.

— Prefere você crer que algum engraçadinho soubesse do crime por telepatia ou por meio de um binóculo, se dirigisse rapidamente a uma máquina de escrever, compusesse um ditirambo, voltasse correndo à casa e sem nenhuma razão plausível assumisse o terrível risco de que alguém o visse deixar o papel na caixa?

Antes que Markham pudesse responder, Heath irrompeu na sala e dirigiu-se para onde estávamos. Sua preocupação e nervosismo eram patentes. Mal nos cumprimentou, foi logo entregando a Markham um envelope escrito à máquina.

— Foi recebido pelo World no correio vespertino. Quinan, o repórter policial do World, trouxe-me ainda há pouco e disse que o Times e o Herald também receberam cópias. As cartas foram seladas hoje à uma hora, o que quer dizer que provavelmente foram postadas entre as onze e as doze horas. E o que é pior, Sr. Markham, na vizinhança da casa de Dillard, isto é, na agência postal da Rua 69, Oeste.

Markham abriu o envelope. De repente seus olhos abriram-se desmedidamente e os músculos de seu rosto se contraíram. Sem levantar os olhos, passou a carta a Vance. Era uma simples folha de papel de máquina onde estavam escritas palavras idênticas às da nota encontrada na caixa do correio da casa de Dillard. Verdadeiramente, a comunicação era uma duplicata exata da outra: "Joseph Cochrane Robin está morto. Quem matou Cock Robin? Sperling significa pardal. — O BISPO".

Vance mirou apenas o papel.

— Isto é próprio do assassino, sabe? — disse ele indiferentemente. — O Bispo temia que o público não entendesse o seu gracejo, e por isso o explicou à imprensa.

— Gracejo, Sr. Vance? — perguntou Heath amargamente- — Não é a classe de gracejos a que estou acostumado. Este caso é coisa de louco...

— Exatamente, sargento, um gracejo estúpido.

Um rapaz uniformizado acercou-se do procurador distrital, inclinou-se sobre o seu ombro e discretamente lhe disse algo ao ouvido.

— Traga-o aqui imediatamente — ordenou Markham. E dirigindo-se a nós:

— É Arnesson. Provavelmente trará as amostras dos tipos de máquina. — Seu rosto obscureceu-se e ele olhou uma vez mais a nota que Heath tinha trazido. — Vance, — disse ele em voz baixa, — estou começando a crer que esse caso pode-se tornar tão terrível como você pensa. Quem sabe se o tipo é o mesmo...

Mas, quando a nota foi comparada com as amostras trazidas por Arnesson, nenhuma semelhança pôde ser encontrada. Não somente eram distintos os caracteres e as tintas como até o papel não era como o das amostras que Arnesson tinha tirado das máquinas de Pardee e Drukker.


VIII

 

SEGUNDO ATO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Não é necessário lembrar aqui a grande sensação que causou em todo o país o assassinato de Robin. Todos se recordam da importância que os jornais deram a tão estonteante tragédia. Designavam-na por diversos nomes. Alguns se referiam ao "assassinato de Cock Robin". Outros mais alusivos, porém menos exatos, chamavam-na "o assassinato de Mother Goose". Mas a assinatura do bilhete à máquina atraía fortemente a atenção jornalística para o mistério; e com o tempo a morte de Robin passou a ser conhecida como o "misterioso assassinato do Bispo". Sua combinação estranha e terrível de horror e linguagem infantil inflamou a imaginação do público, e as implicações sinistras e insanas de seus pormenores afetaram todo o país, como se fosse um grotesco pesadelo cuja atmosfera não se pudesse fazer desaparecer.

Durante a semana seguinte à descoberta do corpo de Robin, os detetives da Seção de Homicídios, da mesma forma que os destacados junto ao gabinete do procurador do distrito, estiveram ocupados dia e noite, em ativas investigações. O recebimento da duplicata das notas do Bispo pelos principais matutinos de Nova York havia dissipado todas as idéias que Heath pudesse ter sobre a culpabilidade de Sperling; e, embora se recusasse a concordar oficialmente com a inocência do jovem, lançou-se com igual gosto e obstinação na tarefa de encontrar um culpado mais plausível. A investigação que organizou e dirigiu foi tão completa como a do caso Greene. Nenhum caminho que encerrasse a esperança mais insignificante foi omitido; e o relatório que redigiu teria causado alegria mesmo aos criminalistas meticulosos da Universidade de Lausanne. Na tarde do dia do crime, ele e seus homens estiveram procurando o pano usado para limpar o sangue derramado na sala do clube. Não o encontraram. Também foi feito um exame minucioso da referida sala na esperança de encontrarem-se outras pistas. Entretanto, embora Heath tenha posto a tarefa nas mãos de peritos, foi nulo o resultado. A única coisa que puderam averiguar é que o capacho que ficava perto da porta tinha sido removido para tapar o lugar onde estivera o sangue no piso de cimento. Este fato, todavia, comprovou simplesmente a primeira observação do sargento.

A informação post-mortem do Dr. Doremus deu força à teoria agora reconhecida e aceita de que Robin tinha sido assassinado na sala do clube e em seguida colocado fora. A autópsia demonstrou que o golpe na base do crânio fora particularmente violento e desferido com um instrumento pesado e redondo, resultando uma fratura com depressão muito distinta da fratura fissurada, causada quando o golpe é dado com uma superfície plana. Procurou-se infrutiferamente o instrumento com que golpearam a vítima.

Beedle e Pyne foram interrogados várias vezes por Heath. Nada de novo se apurou. Pyne insistiu nas suas declarações de que passara toda a manhã no quarto de Arnesson, com exceção de umas breves ausências para ir ao roupeiro e à porta da frente, mantendo-se tenazmente na sua negativa de que houvesse tocado o corpo ou o arco quando o professor Dillard o mandou à procura de Sperling. Entretanto, o sargento não estava de todo satisfeito com o depoimento do homem.

— Este velho glutão e manhoso esconde alguma coisa na manga — disse a Markham com desgosto. — Para fazê-lo falar é preciso uma boa mangueira e a cura de água.

Uma investigação em todas as casas da Rua Setenta e Cinco entre West End Avenue e Riverside Drive foi procedida na esperança de ser encontrado um inquilino que tivesse visto alguém entrar ou sair da casa de Dillard pelo portão do muro, durante aquela manhã. Mas nada se conseguiu com essa diligência incômoda. Ao que parece, Pardee foi o único morador dentro do raio de visão da casa de Dillard que observava alguém na vizinhança.

Enfim, depois de vários dias de árduas investigações, o sargento concluiu que devia prosseguir sem nenhuma ajuda exterior ou fortuita.

Os vários álibis das sete pessoas que Vance havia relacionado numa anotação para Markham foram examinados tão exatamente como as circunstâncias o permitiam.

Foi obviamente impossível verificá-los em todos os detalhes, pois a maioria estava baseada unicamente nas declarações das pessoas envolvidas. Além disso, a investigação teve de ser feita com o maior cuidado para evitar que se levantassem suspeitas. Os resultados dessas inquirições foram os seguintes:

1. Arnesson havia sido visto na biblioteca da Universidade por várias pessoas, inclusive por um bibliotecário-auxiliar e por dois estudantes. Porém, o tempo indicado nesses depoimentos não era nem consecutivos, nem específico em relação à hora.

2. Belle Dillard havia jogado várias partidas de tênis nas quadras públicas da Rua 119 esquina com o Riverside Drive, mas como estavam mais de quatro pessoas com ela, teve de ceder duas vezes o seu lugar a uma amiga, não podendo nenhum dos jogadores afirmar positivamente se havia permanecido nas quadras durante estes dois períodos.

3. A hora em que Drukker deixou a sala do clube foi determinada definitivamente por Sperling; porém não foi encontrado ninguém que o tivesse visto depois. Ele admitiu não haver encontrado nenhum conhecido no parque, mas insistiu em que se deteve alguns minutos antes para brincar com algumas crianças que ele não conhecia.

4. Pardee tinha estado só em seu estúdio. Sua velha cozinheira e o criado japonês mantiveram-se na parte traseira da casa, não vendo seu patrão senão à hora do almoço. O álibi dele, portanto, foi puramente negativo.

5. A palavra da Sra. Drukker teve de ser aceita em relação aos lugares onde ela esteve naquela manhã, pois ninguém a havia visto entre 9:30, hora em que Drukker foi ver Arnesson, e 13 horas, quando a cozinheira serviu o almoço.

6. O depoimento de Beedle foi verificado a fundo e achado satisfatório. Pardee a tinha visto sair da casa às 10:35, e vários mascates do Mercado de Jefferson lembraram-se de tê-la visto entre onze e doze horas.

7. O fato de ter Sperling tomado o trem das 11:40 para Scarsdale foi comprovado; por conseguinte, saiu da casa de Dillard à hora que ele disse, isto é, 11:15. A determinação deste ponto, contudo, era um assunto meramente de rotina, pois ele tinha sido praticamente eliminado do caso. Todavia, se — como Heath explicara — não tivesse ele tomado o trem das 11:40, chegaria a ser de novo uma possibilidade importante.

Prosseguindo nas suas investigações por linhas mais gerais, o sargento entrou nas histórias e associações das várias pessoas envolvida. A tarefa não era difícil. Todos eram bem conhecidos, de modo que as informações concernentes aos mesmos eram de pronto obtidas; porém, nenhum item foi desenterrado que trouxesse, mesmo que remotamente, alguma luz sobre o assassinato de Robin. Nada se soube que desse a mais leve idéia da causa do crime. E depois de uma semana de investigar e especular intensivamente, o assunto estava ainda rodeado de um mistério impenetrável.

Sperling não tinha sido posto em liberdade. A evidência prima facie contra ele, combinada com a sua absurda confissão, tornou impossível tal ato por parte das autoridades. Markham, contudo, havia entretido uma conferência extra-oficial com os advogados que o pai de Sperling contratara para defesa do filho, havendo chegado, segundo creio, a uma espécie de "acordo de honra", pois, embora o Estado nada tivesse feito para processá-lo (apesar de se achar o Grande Júri funcionando nesse tempo), os advogados da defesa não impetraram qualquer habeas corpus a favor do acusado. Todas as indicações assinalavam a suposição de que Markham e os advogados de Sperling esperavam que o verdadeiro culpado fosse detido.

Markham havia entrevistado várias vezes os membros da criadagem da casa de Dillard, num esforço persistente por obter luz sobre um ponto qualquer que pudesse levar a um caminho de investigação frutífera. Pardee havia sido intimado a comparecer ao gabinete do procurador do distrito para prestar seu testemunho a respeito do que havia observado da sua janela, na manhã da tragédia. A Sra. Drukker foi outra vez interrogada, porém não só negou enfaticamente haver olhado pela janela, como zombou da idéia de que tivesse gritado.

Quando interrogaram novamente Drukker, este modificou um pouco o seu depoimento anterior. Disse que talvez se tivesse equivocado a respeito da origem do grito e sugeriu que podia ter sido na rua ou em algum dos apartamentos vizinhos. Em verdade, disse ele, era pouco provável que sua mãe desse um grito, pois quando ele se afastou da porta do quarto, pouco depois, ela cantava uma velha canção Hänsel und Gretel, de Humperdinck.

Markham, convencido de que nada mais se podia extrair de Drukker e sua mãe, terminou concentrando toda a sua atenção na casa dos Dillards.

Arnesson assistiu às conferências preliminares levadas a efeito no gabinete de Markham. E, apesar de suas observações loquazes e cépticas, parecia encontrar-se no mesmo estado de perplexidade que nós. Vance motejou com bom humor sobre a fórmula matemática que ia esclarecer o caso, porém Arnesson insistiu em que a fórmula não podia ser desenvolvida enquanto todos os termos da equação não tivessem sido encontrados. Parecia considerar este assunto como uma espécie de diversão infantil. Markham, em várias ocasiões, expandira a sua exasperação. Censurou Vance por ter feito de Arnesson um auxiliar extra-oficial na investigação, porém Vance se defendeu alegando que Arnesson, mais cedo ou mais tarde, poderia fornecer alguma informação aparentemente estranha que viesse a servir como vantajoso ponto de partida.

— Sua teoria matemático-criminal é sem dúvida uma tolice — disse Vance. — A psicologia, não a ciência abstrata, descomporá, no final das contas, esta mixórdia em seus elementos. Mas precisamos de alguns materiais para continuar, e Arnesson conhece o interior da casa de Dillard melhor do que qualquer um de nós. Conhece os Drukkers e Pardee também. Sem precisar acrescentar que é um homem que mereceu as honras acadêmicas e possui uma inteligência sutil. Enquanto seu cérebro e sua atenção estiverem postos neste caso, há probabilidades de encontrar-se alguma coisa de vital importância para nós.

— Pode ser que você tenha razão — grunhiu Markham. — Mas a atitude zombeteira deste homem me ataca os nervos.

— Seja mais católico — retrucou Vance. — Considere suas ironias em relação a suas especulações científicas. Que poderia ser mais natural para um homem que projeta seu espírito constantemente nas vastas regiões interplanetárias, e lida com infinitas e hiperfísicas dimensões, do que considerar irrisòriamente as pequenezas desta vida? Grande rapaz este Arnesson! Talvez não seja muito familiar e agradável, mas sem dúvida muito interessante.

Vance havia tomado o caso com desusada seriedade. As traduções de seu Menandro tinham sido definitivamente postas de lado. Ele tornou-se pensativo e mal-humorado — seguro sinal de que seu espírito estava ocupado com um problema absorvente. Depois de jantar, todas as noites, ia à sua biblioteca e demorava-se a ler durante várias horas, não os volumes clássicos e preciosos sobre arte com os quais geralmente passava o seu tempo, e sim livros como A Psicologia da Loucura, de Bernard Hart; A Inteligência e sua Relação com o Desconhecido, de Freud; Psicologia Anormal e Emoções Recalcadas, de Coriat; Comicidade e Humor, de Lippo; O Assassinato Complexo, de Daniel A. Huebcch; As Obsessões e a Psicas-tenia, de Janet; Aritmomania, de Donath; O Desejo Alcançado e os Contos de Fadas, de Riklin; A Importância Forense da Representação de Força, de Leppman; Sobre a Inteligência, de Kuno Fischer; Psicologia Criminal, de Erich Wulffen; A Loucura do Gênio, de Hollenden, e Os Jogos dos Seres Humanos, de Groos.

Ele passava horas a fio revisando relatórios policiais. Foi duas vezes à casa de Dillard, e, em uma ocasião, visitou a Sra. Drukker, acompanhado de Belle Dillard. Uma noite teve uma longa conversa com Drukker e Arnesson sobre a concepção do espaço físico como uma pseudo-esfera lobatchewskiana, de Sitter, sendo seu objetivo, penso eu, familiarizar-se com a mentalidade de Drukker. Leu também o livro deste último, Linhas Mundiais no Contínuo Multidimensional, e passou quase um dia todo estudando a Análise do Gambito Pardee, de Janowski e Tarrasch.

No domingo — oito dias depois do assassinato — disseme:

— Van, este problema é de uma sutileza inacreditável. Nenhuma investigação comum poderá resolvê-lo. Acha-se em uma região estranha do cérebro; e a sua infantilidade superficial é o ponto mais terrível e desconcertante. Tampouco o seu autor vai-se contentar com um estratagema singelo. A morte de Cock Robin não serve a nenhum fim definitivo. A imaginação perversa que concebeu esse crime bestial é insaciável. E, a menos que pudéssemos expor o mecanismo psicológico anormal por trás disso tudo, haverá mais dessas piadas amargas...

Na manhã seguinte, seu prognóstico se realizou. Fomos ao gabinete de Markham às onze horas, para ouvir o relatório de Heath e estudar novos meios de ação. Embora tivessem decorrido nove dias desde a morte de Robin, nenhum progresso se havia feito, e os jornais faziam cada vez mais acerbas críticas à polícia e ao gabinete do procurador criminal. Foi, pois, com uma considerável depressão que Markham nos recebeu naquela manhã de segunda-feira. Heath não havia chegado ainda; mas, minutos depois, quando apareceu, era evidente que ele estava também desanimado.

— Cada vez que nos movemos, esbarramos contra um muro — queixou-se ele, quando resumiu os resultados das atividades de seus subordinados. — Não há nenhum indício novo: e só podemos pensar em Sperling, fora dele não há outro. Estou quase crendo que tenha sido algum vagabundo que procurava roubar a sede do clube e, ao ver-se descoberto, complicou-nos a vida.

— Esses vagabundos, sargento, — replicou Vance, — não têm imaginação e são desprovidos de senso de humor, o que não sucede com a pessoa que mandou Robin fazer a viagem eterna. Não só o matou como converteu o ato em uma insana pilhéria, escrevendo depois cartas explicativas à imprensa, para que o público não perdesse nenhum pormenor. Acha que seja esse o procedimento de um assassino comum?

Heath fumou em silêncio durante alguns minutos, com um ar grave. Por fim, dirigiu a Markham um olhar de exasperado terror.

— Parece incrível o que tem sucedido nesta cidade ultimamente — queixou-se ele. — Sem ir mais longe, ainda esta manhã, foi encontrado morto por um balaço em Riverside Park perto da Rua 84, um indivíduo chamado Sprigg. Em seu bolso, havia dinheiro... não lhe tiraram nada. Tinham acabado de o matar. Era um rapazinho... estudante da Universidade de Colúmbia. Morava com os pais. Não tinha inimigos. Saíra para dar seu passeio costumeiro, antes de ir à aula. Um pedreiro encontrou-o morto meia hora depois. — O sargento mastigava, com raiva, seu charuto. — Agora temos que esclarecer este homicídio e, provavelmente, os jornais farão de nossa vida um inferno, se não descobrirmos o autor. E não há nada, absolutamente, em que nos basearmos.

— Não obstante, sargento, — disse Vance, consoladoramente — matar um homem com um tiro é um acontecimento comum. Para esta classe de crime existe uma infinidade de motivos vulgares que os justificam. São os incidentes cênicos e dramáticos do assassinato de Robin que destroem todos os nossos processos de dedução. Se o assunto não fosse tão infantil... — Subitamente, cessou de falar e suas pálpebras caíram levemente. Inclinando-se para diante com deliberação, apertou a cinza do seu cigarro contra o cinzeiro.

— Você disse, sargento, que esse rapaz se chamava Sprigg?

Heath acenou com a cabeça tristemente.

— E — apesar do esforço de Vance, havia na sua voz um tom de ansiedade — qual é o primeiro nome dele?

Heath olhou para Vance surpreendido, porém, ao fim de uma breve pausa, puxou seu amarrotado caderno e, folheando-o, respondeu:

— John Sprigg... John Sprigg.

Vance tirou outro cigarro e acendeu-o com todo o cuidado.

— E, diga-me, não foi morto com um 32?

— Hem? — Os olhos de Heath dilataram-se e ele estendeu para a frente o queixo. — É verdade, com um 32.

— E a bala penetrou por cima da cabeça em direção vertical?

O sargento pôs-se de pé num salto e olhou fixamente para Vance, visivelmente aturdido. A sua cabeça moveu-se lentamente de cima para baixo.

— Também é verdade. Mas, como diabos o senhor...

Vance levantou uma mão para ordenar silêncio. Foi, entretanto, a sua fisionomia mais que o gesto o que fez Heath interromper a pergunta.

— Oh, meu Deus! — E Vance levantou-se como quem se encontra debaixo de uma alucinação. Se eu não o conhecesse tão bem, juraria que ele estava aterrorizado. Então, indo até a alta janela atrás do escritório de Markham, lançou o olhar para os cinzentos muros de pedra do cemitério. — Não posso crer nisso — murmurou ele. — É demasiado espantoso... Mas, de fato, é a realidade...

A voz impaciente de Markham ressoou.

— A propósito de que esta agitação, Vance? Não seja tão misterioso! Como chegou você a saber que Sprigg foi morto com um balaço vertical em cima da cabeça e com um 32? Que é que você pensa?

Vance voltou-se e seus olhos fixaram-se nos de Markham.

— Não está compreendendo? — perguntou calmamente. — É o segundo ato desta diabólica paródia!... Esqueceu você a sua "Mother Goose"? — E, com uma voz muito surda, que trouxe uma sensação de indizível horror àquela sala obscura e velha, recitou:

 

"Havia um homenzinho,

Com um pequeno revólver,

E as suas balas eram de chumbo, chumbo, chumbo,

Disparou contra Johnny Sprigg."


IX

 

A FÓRMULA DO TENSOR

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 11h30)

 

Markham olhava para Vance como se estivesse hipnotizado. Heath havia permanecido rígido, a boca parcialmente aberta e o charuto suspenso a algumas polegadas de seus lábios. Na atitude do sargento havia algo verdadeiramente cômico, e eu tinha ímpetos de soltar uma risada. Mas, naquele momento, meu sangue parecia gelado e todo movimento muscular era-me impossível.

O primeiro a falar foi Markham. Atirando a cabeça para trás, pôs violentamente a mão sobre a mesa.

— Que nova loucura é essa? — Ele lutava violentamente contra a horrenda sugestão de Vance. — Estou começando a pensar que o assassinato de Robin afetou seu espírito. Não pode ser morto por um balaço um homem com um nome tão vulgar como Sprigg, sem que você trate de converter isso em um grotesco ato de prestidigitação?

— Entretanto, você deve admitir, meu caro Markham, — replicou Vance suavemente — que este Johnny Sprigg foi morto com um pequeno revólver, bem no meio da cabeça.

— Que tem isso? — Um leve rubor cobriu o rosto de Markham. — Será por acaso motivo suficiente para que você vá por aí cantarolando os versos de Mother Goose?

— Oh, vamos! Eu não costumo cantarolar, você sabe. — Vance deixou-se cair numa cadeira em frente à mesa de Markham. — É possível que eu não seja um grande declamador, porém, realmente, eu não cantarolo... — Dirigiu a Heath um olhar insinuante. — Que me diz você, sargento?

Mas este não tinha opinião a manifestar. Estava ainda com o seu ar atônito.

— Você está sugerindo seriamente...? — começou Markham, mas Vance o interrompeu.

— Sim! Estou sugerindo seriamente que a pessoa que matou Cock Robin com uma flecha descarregou seu mau humor sobre o desventurado Sprigg. A coincidência não entra em questão. Semelhantes paralelos que se repetem destruiriam inteiramente a base de todo raciocínio e razão. Para mim, o mundo já está bastante louco; porém, tal loucura dissiparia todo o pensamento científico e racional. A morte de Sprigg é bem espantosa, mas temos de enfrentá-la. E por mais que nos esforcemos em protestar contra estas deduções incríveis, teremos que aceitá-las afinal.

Markham tinha-se levantado, e passeava nervosamente de um lado para outro da sala.

— Admito a presença de elementos inexplicáveis neste novo crime. — Sua combatividade se havia desvanecido, e seu tom de voz era moderado. — Mas, se aceitamos, por hipótese, que um monomaníaco esteja reconstruindo os versos de seus dias de infância, não posso ver em que isto nos possa ajudar. Praticamente, eliminaria todos os meios habituais de investigação.

— Eu não diria isso. — Vance fumava, pensativamente. — Estou inclinado a pensar que semelhante suposição nos proporciona uma base definida de investigação.

— Seguramente! — exclamou Heath num misto de sarcasmo e gravidade. — Tudo o que temos que fazer é sair e encontrar um cançonetista entre seis milhões de indivíduos. Nem fale!

— Não se deixe abater pelo desânimo, sargento. Nosso evasivo tapeador é um espécime entomológico bastante notável. Além disso, temos indícios certos quanto ao seu ambiente verdadeiro...

Markham voltou-se para Vance.

— Que quer dizer com isso?

— Simplesmente que este segundo crime tem relação com o primeiro não só psicológica mas também geograficamente. Os dois assassinatos foram cometidos a pouca distância um do outro. Pelo menos, nosso demônio destruidor tem um fraco pelas vizinhanças da casa de Dillard. Mais ainda, os mesmos fatores dos dois assassinatos excluem a possibilidade de que ele haja vindo de longe para dar expansão ao seu versátil humor, em lugares pouco conhecidos. Como já assinalei para você, Robin foi mandado para o outro mundo por alguém que conhecia todos os costumes e detalhes da casa, e a par das condições existentes na mesma à hora exata em que se desenrolou o sombrio drama. E não há dúvida de que este segundo crime não poderia ter sido posto em cena com tanta perfeição se o seu empresário não tivesse conhecido as intenções ambulatórias de Sprigg esta manhã. Na verdade, todo o mecanismo destas obras misteriosas prova que o operador conhecia intimamente tudo o que se referia a suas vítimas.

O pesado silêncio que se seguiu foi rompido por Heath.

— Se o senhor estiver certo, então já podemos eliminar Sperling do caso. — O sargento admitiu isto de má vontade, porém mostrava que o argumento de Vance havia surtido efeito nele.

De súbito, vira-se para o procurador do distrito e pergunta-lhe desesperadamente:

— Que acha que devemos fazer, Sr. Markham?

Markham estava ainda lutando contra a aceitação da teoria de Vance, e não respondeu. Entretanto, tornou a sentar-se em frente da escrivaninha, e tamborilou com os dedos sobre o mata-borrão. Em seguida, perguntou, sem levantar a vista:

— Quem está encarregado do caso Sprigg, sargento?

— O capitão Pitts. Os agentes do posto da Rua 68 encarregaram-se do caso, primeiro; mas, quando a notícia chegou à Polícia Central, Pitts e dois dos nossos rapazes foram tratar do assunto. Pitts chegou pouco antes de eu ter vindo para cá. Diz que o caso é um fracasso. Mas, o inspetor Moran disse-lhe para ficar com ele.

Markham apertou o botão da campainha situado sob a borda da sua mesa e, quase ao mesmo tempo, apareceu, pela porta giratória, Swacker, seu jovem secretário.

— Chame o inspetor Moran ao telefone — ordenou. Uma vez conseguida a comunicação, Markham tomou o fone, mantendo uma conversação de alguns minutos. Quando largou o fone, dirigiu a Heath um sorriso amargo.

— Você ficou oficialmente, agora, encarregado do caso Sprigg, sargento. O capitão Pitts estará aqui de um momento para outro e então saberemos onde estamos. — Começou a revolver uma pilha de papéis que tinha diante de si... — Tenho de convencer-me — acrescentou meio animado — de que Sprigg e Robin estão na mesma bolsa.

Dez minutos mais tarde, apareceu um homem baixo e forte, de rosto magro e severo, e bigode negro. Era o capitão Pitts. Segundo soube mais tarde, ele era um dos homens mais competentes da Divisão dos Detetives. A sua especialidade eram os gangsters. Depois de apertar a mão de Markham, dirigiu a Heath uma olhadela amistosa. Quando foi apresentado a Vance e a mim, fez uma inclinação de má vontade e olhou-nos com ar suspeito. Já se ia voltar para o outro lado, quando a sua expressão mudou subitamente.

— É o senhor Philo Vance? — perguntou.

— Assim parece, capitão, — suspirou Vance. Pitts sorriu e, avançando, estendeu-lhe a mão.

— Prazer em conhecê-lo, senhor. Tenho ouvido o sargento Heath falar muitas vezes a seu respeito.

— O Sr. Vance está-nos ajudando, não-oficialmente, no caso Robin, capitão, — explicou Markham — e, como o tal Sprigg foi morto nas mesmas redondezas, cremos que seria de grande utilidade para nós ouvir sua informação preliminar sobre o caso. — Tomou da mesa uma caixa de Corona Perfectos e a empurrou até o capitão.

— Não precisa fazer o pedido desta forma, senhor — sorriu o capitão e, escolhendo um charuto, olhou-o com uma espécie de satisfação voluptuosa. — O inspetor disseme que o senhor tinha algumas idéias sobre este novo caso e que queria por isto encarregar-se dele. Para lhe confessar a verdade, alegro-me em não ter nada que ver com o assunto. — Sentando-se comodamente, acendeu o charuto. — Que deseja o senhor saber?

— Conte-nos todo o caso — disse Markham. Pitts acomodou-se em sua cadeira.

— Pois bem, aconteceu que eu estava de serviço, quando se deu o crime, pouco depois das oito da manhã; não tardei em dirigir-me com dois homens ao local. Os agentes da seção já estavam trabalhando. Ao mesmo tempo que eu, chegou o rnédico-perito...

— O senhor ouviu o relatório dele, capitão? — perguntou Vance.

— Certamente. Sprigg foi morto por um balaço. A bala entrou por cima da cabeça em direção vertical. A arma usada foi um 32. Não havia sinal de luta — nenhuma pisadura. Nada extraordinário. Apenas um balaço vertical.

— Estava de costas quando o encontraram?

— Justamente. Estendido no meio do caminho.

— E a parte do crânio que havia tocado o solo não estava fraturada? — A pergunta foi feita negligentemente.

Pitts tirou o cigarro da boca e lançou a Vance um olhar sutil.

— Creio que vocês já sabem alguma coisa do caso — disse, meneando a cabeça sagazmente. — Sim, a parte posterior do crânio estava fraturada. Por certo a queda foi forte. Mas, creio que ele não a sentiu — claro que não, com uma bala no crânio...

— Falando do balaço, capitão, não achou nada estranho?

— Bem... sim, — concordou Pitts fazendo virar seu charuto entre o polegar e o indicador. — A parte superior da cabeça de um indivíduo não é um lugar por onde penetre ordinariamente uma bala. Além do mais, seu chapéu está intacto, o que indica que caiu antes que a pessoa fosse atingida. Estas circunstâncias poderiam ser chamadas estranhas, Sr. Vance.

— Sim, capitão, são extremamente estranhas... E eu diria que o tiro foi à queima-roupa.

— De uma distância não maior que cinco centímetros. O cabelo estava chamuscado ao redor do orifício de entrada. Além disso, o rapaz devia ter visto o outro puxar o revólver e, ao abaixar-se, caiu-lhe o chapéu. Isto explicaria a causa do tiro à queima-roupa em cima da cabeça.

— Sim, sim. Só que, nesse caso, ele não teria caído de costas, mas de bruços... Mas, prossiga com sua exposição, capitão.

Pitts dirigiu a Vance um olhar de assentimento e continuou.

— A primeira coisa que fiz foi revistar-lhe os bolsos. Tinha um bom relógio de ouro e uns quinze dólares em papel e em moeda de prata. De modo que temos de afastar o móvel do roubo, a menos que o criminoso, assustado por sua obra, fugisse sem chegar a realizar seu propósito. Mas, isto não é provável, pois naquela parte do parque nunca há ninguém de manhã cedo. O caminho ali desaparece sob uma enorme pedra, que oculta à vista. O patife que fez o serviço soube escolher o lugar... Enfim, deixei dois homens guardando o cadáver até que viesse o carro para levá-lo e, em seguida, fui à casa de Sprigg, na Rua 93. Soube o nome e o endereço por duas cartas que ele levava no bolso. Averigüei que se tratava de um estudante da Universidade de Colúmbia, que morava com seus pais, e que era seu hábito dar um passeio pelo parque, depois do café da manhã. Hoje, ele saiu de casa cerca das sete e meia...

— Ah! Era seu hábito passear todas as manhãs pelo parque — murmurou Vance. — Muito interessante!

— Entretanto, isso não nos conduz a nenhuma parte — replicou Pitts. — Quantos há que fazem o mesmo! Esta manhã não havia nada de extraordinário em Sprigg. Seus pais disseram-me que não notaram nada fora do comum; e que quando se despediu deles, o fez alegremente. Depois, dirigi-me à Universidade e lá fiz investigações. Falei com dois estudantes que o conheciam e também com um dos instrutores. Sprigg era um rapaz sossegado, com poucos amigos e reservado. Rapaz sério — sempre ocupado com os estudos. Era dos primeiros da classe e nunca foi visto com mulheres. Ao que parece, detestava o sexo feminino. Não era o que se chama sociável. E aí está por que não vejo nada de especial nesse assassinato. Deve ter sido um acidente. O tiro podia ter sido dado contra outro.

— E a que horas acharam o cadáver?

— Cerca das oito e um quarto. Viu-o um pedreiro quando cruzava o dique da Rua 79, junto aos trilhos da estrada de ferro. Notificou o fato a um agente que estava de serviço no Riverside Drive, que, por sua vez, o comunicou ao posto local de polícia.

— E Sprigg saiu de sua casa, na Rua 93, às sete e meia. — Vance olhou para o teto meditativamente. — Por conseguinte teve tempo de sobra para chegar a esse ponto do parque, antes que o matassem. Parece que alguém, conhecedor dos seus costumes, o estava esperando. Limpeza e rapidez, hem?... Segundo creio, não foi fortuito, não lhe parece Markham?

Este, aparentando não ter ouvido, dirigiu-se a Pitts.

— Não foi encontrado nada que pudesse ser utilizado como ponto de partida?...

— Não, senhor. Meus homens pesquisaram o local escrupulosamente com resultado negativo.

— E nos bolsos de Sprigg... entre seus papéis... ?

— Nada. Tenho tudo na repartição... duas cartas comuns, uns quantos objetos que se guardam no bolso... — Aqui se deteve, como se subitamente se recordasse de alguma coisa, e puxou um caderno de notas. — Havia isto — disse sem entusiasmo, entregando a Markham um pedaço de papel cortado em forma triangular. — Encontrei-o debaixo do cadáver. Não tem significado algum, porém guardei-o — força do hábito.

O papel não tinha mais do que dez centímetros de comprimento e parecia arrancado do canto de uma folha de papel sem pauta. Continha parte de uma fórmula matemática escrita à máquina, com o lambda, os sinais de igualdade e do infinito feitos a lápis. Reproduzo o papel aqui, pois, apesar de sua aparente falta de importância, estava destinado a desempenhar mais tarde uma parte sinistra e assombrosa na investigação sobre a morte de Sprigg.

Vance olhou com naturalidade para o papel, porém Markham deteve-lhe a mão durante um momento com o cenho franzido. Ele ia fazer um comentário, quando seu olhar cruzou com o de Vance.

Em vez disso, atirou o papel descuidadamente sobre a mesa, com ligeiro encolhimento de ombros.

— É isso tudo o que encontrou?

— É tudo, senhor. Markham levantou-se.

— Fico-lhe muito agradecido, capitão. Não sei o que se possa fazer neste assunto de Sprigg, mas vamos estudá-lo. — Apontando para a caixa dos Perfectos, disse: — Ponha dois no bolso, antes de sair.

— Muito obrigado, senhor. — Pitts escolheu os charutos e, pondo-os cuidadosamente no bolso do colete, apertou a mão de todos.

Quando se foi embora, Vance levantou-se com presteza, inclinando-se sobre o pedaço de papel que estava na mesa de Markham.

— Meu Deus! — Puxou o seu monóculo e, durante um momento, estudou os símbolos. — É estupendo. Ora, onde foi que vi esta fórmula recentemente?... Ah! O tensor de Riemann-Christoffel... agora me recordo; Drukker usa-a em seu livro para determinar a curvatura gaussiana do espaço esférico e homaloidal... Mas o que Sprigg estaria fazendo com ela? A fórmula está consideravelmente muito além de um curso de faculdade... — Suspendeu o papel contra a luz. — É do mesmo material que o utilizado pelo Bispo em suas notas escritas. E, provavelmente, já observou você que o tipo, isto é, a letra da máquina, é também similar.

Heath havia avançado, e observava agora o papel.

— Sim, é o mesmo. — O fato parecia confundi-lo. — De toda maneira, é um traço de união entre os dois crimes.

Os olhos de Vance tomaram um ar de surpresa.

— Um traço de união... é verdade. Mas, a presença da fórmula debaixo do corpo de Sprigg parece tão irracional como o assassinato em si mesmo...

Markham caminhava nervoso pela sala.

— Disse você que é uma fórmula usada por Drukker em seu livro?

— Sim. Mas o fato não o compromete necessariamente. O tensor é conhecido por todos os matemáticos. É uma das expressões técnicas na geometria não-euclidiana; e, embora fosse descoberta por Riemann em relação com um problema concreto de física (1), chegou a ser de grande importância na matemática da relatividade. É altamente científica no sentido abstrato, e não pode ter valor direto no assassinato de Sprigg. — Ele se sentou novamente. — Arnesson ficará encantado com o achado. Poderá tirar alguma conclusão surpreendente disto.

(1) Esta expressão foi, na realidade, desenvolvida por Christoffel para um problema sobre a condutividade do calor e publicado por ele, em 1869, no Crelle Journal für reine und angewandte Mathematik.

 

— Não vejo motivo — protestou Markham — para informar Arnesson acerca deste novo crime. Sou de opinião que se deveria ocultar-lhe tudo o que fosse possível.

— Receio que o Bispo não o permitirá — replicou Vance.

Markham, baixando a cabeça, exclamou:

— Santo Deus! Que coisa maldita temos entre as mãos? Espero despertar de um momento para outro e constatar que tenho estado sob a ação de um pesadelo.

— Não teremos esta sorte, senhor — resmungou Heath, tomando uma atitude resoluta como um homem que se prepara para combater. — Que devemos fazer? Para onde nos dirigiremos? Preciso de ação.

Markham apelou para Vance.

— Você parece ter alguma idéia acerca deste negócio. Que sugere? Eu, francamente, confesso achar-me perdido em um escuro caos.

Vance aspirou profundamente a fumaça do seu cigarro. Então, inclinou-se para diante como para dar mais força às suas palavras.

— Markham, meu amigo, há somente uma conclusão possível. Estes dois assassinatos foram concebidos pelo mesmo cérebro: ambos são oriundos do mesmo impulso grotesco. E, desde que o primeiro foi cometido por alguém familiarizado perfeitamente com as condições interiores da casa de Dillard, conclui-se daí que devemos procurar alguém que, além desse conhecimento, soubesse também que um homem chamado John Sprigg costumava passear todas as manhãs por certa parte do Riverside Drive. Uma vez que essa pessoa esteja em nosso poder, devemos confrontar as situações de tempo, lugar, oportunidade e causa possível. Existe uma inter-relação entre Sprigg e os Dillards. Qual é, eu não sei. Mas, nosso primeiro passo é encontrá-la. Que melhor ponto de partida que a casa de Dillard?

— Primeiro, almoçaremos — disse Markham displicentemente. — Depois iremos até lá.


X

 

UMA RECUSA DE AUXÍLIO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 14h)

 

Passava pouco das duas horas, quando chegamos à casa de Dillard. Pyne abriu-nos a porta. Se nossa visita lhe causou surpresa, conseguiu ele ocultá-la admiravelmente. Entretanto, notei no olhar que dirigiu a Heath uma certa intranqüilidade; mas, quando falou, sua voz tinha a claridade untuosa e insípida do criado bem-educado:

— O Sr. Arnesson não voltou ainda da Universidade — informou-nos ele.

— Pelo que vejo, Pyne, seu forte não é a leitura do pensamento — disse Vance. — Nós vimos ver você e o professor Dillard.

O homem pareceu perturbar-se, porém, antes que pudesse responder, a Srta. Dillard apareceu na porta de entrada da sala.

— Acreditei reconhecer sua voz, Sr. Vance. — E nos envolveu a todos num sorriso de acolhimento cordial. — Tenham a bondade de entrar... A Sra. Mae veio por alguns minutos... Vamos passear juntas esta tarde — explicou ela, no instante em que entrávamos na sala.

Junto à mesa estava a Sra. Drukker, com a mão ossuda apoiada no espaldar da cadeira. Evidentemente, acabava de levantar-se. Em seus olhos refletia-se o temor enquanto nos mirava sem pestanejar, e os músculos de sua face pareciam tremer; suas delgadas feições pareciam um tanto contorcidas. Ela não fez esforço para falar, mas permaneceu impassível, como se estivesse esperando uma terrível condenação, como um criminoso diante do tribunal, no momento de receber a sentença.

A voz agradável de Belle Dillard aliviou o embaraço da situação.

— Vou correndo até lá em cima para avisar meu tio que os senhores estão aqui.

Mal tinha saído da sala, quando a Sra. Drukker inclinou-se, apoiando-se sobre a mesa, e disse a Markham com voz sepulcral e cheia de espanto:

— Já sei por que vieram. É por causa daquele jovem que foi morto com um balaço esta manhã no parque.

Suas palavras foram tão surpreendentes e inesperadas que Markham não pôde responder logo, e foi Vance quem o fez por ele.

— Então a senhora está inteirada da tragédia, Sra. Drukker? Como pôde saber tão depressa?

Um ar astucioso surgiu no rosto da mulher, dando-lhe o aspecto de uma malvada feiticeira.

— Todo o mundo não fala de outra coisa, na vizinhança — respondeu com evasiva.

— Deveras? Que pena! Mas por que a senhora imagina que vimos aqui por este assunto?

— O jovem não se chamava John Sprigg? — Um sorriso leve e terrível sublinhou a pergunta.

— Na verdade, John Sprigg. Entretanto, isso não explica a relação que possa existir entre ele e os Dillards.

— Ah, mas existe! — Sua cabeça movia-se para cima e para baixo, com uma espécie de horrível satisfação. — É um brinquedo — um brinquedo de criança. Primeiro, Cock Robin... depois John Sprigg. As crianças devem brincar... todas as crianças saudáveis devem brincar. — Subitamente, mudou de tom. Seu rosto cobriu-se de uma expressiva doçura, e seus olhos adquiriram um ar triste.

— É um jogo diabólico, não lhe parece, Sra. Drukker?

— E por que não? Acaso a vida mesma não é diabólica?

— Para alguns de nós, sim. — Uma curiosa simpatia vibrava nas palavras de Vance, enquanto olhava aquele ser estranho e trágico que tínhamos diante de nós. — Diga-me, — continuou ele com voz alterada, — sabe quem é o Bispo?

— O Bispo? — repetiu ela com perplexidade, franzindo as sobrancelhas. — Não, não conheço. É outro jogo infantil?

— Algo dessa espécie, imagino eu. De qualquer modo, o Bispo se interessa por Cock Robin e John Sprigg. De fato, pode ser que alguém esteja fazendo esses jogos fantásticos. E nós estamos assistindo a eles, Sra. Drukker. Esperamos ouvir dos lábios desse alguém toda a verdade.

A mulher meneou a cabeça vagamente.

— Eu não o conheço. — Em seguida, olhou vingativamente para Markham. — Mas de nada serve descobrir quem matou Cock Robin e disparou um balaço em John Sprigg, bem no meio da cabeça. Nunca descobrirá... nunca... nunca... — Sua voz tinha-se elevado com excitação, e um tremor apoderou-se dela.

Nesse momento entrou Belle Dillard, que correu até a Sra. Drukker, passando-lhe o braço pela cintura.

— Vamos — disse ela, consolando-a. — Iremos passear pelo campo, Sra. Mae. — Voltando-se para Markham, em tom de censura, disselhe friamente: — Meu tio espera-os na biblioteca. — Dito isso, saiu da sala, levando consigo a Sra. Drukker.

— Agora é que está bom, senhor — comentou Heath, que assistira a tudo, presa de enorme assombro. — Só lhe ocorria o nome de John Sprigg, a todo o momento.

Vance meneou a cabeça.

— E nossa chegada aqui assustou-a. Todavia, o espírito dela é mórbido e impressionável, sargento. E, vivendo constantemente a contemplar a deformidade do filho e lembrando-se dos dias em que ele era como os outros, é quase possível que acidentalmente ela nos elucide o significado da morte de Sprigg e Robin... — e olhou para Markham. — Há correntes estranhas neste caso, deduções terríveis e incríveis. É como estar perdido nas cavernas de Dovre-Troll, do Peer Gynt, de Ibsen, onde só existem anomalias e monstruosidades. — Encolheu os olhos, embora eu soubesse que não lhe haviam passado despercebidos completamente a tristeza e o horror lançados sobre nós pelas palavras da Sra. Drukker. — Talvez possamos encontrar algo mais sólido com o professor Dillard.

O professor nos recebeu sem entusiasmo e com um mínimo de cordialidade. Sua mesa estava literalmente coberta de papéis e era evidente que nós o perturbávamos em meio às suas ocupações.

— A que se deve esta visita inesperada, Markham? — perguntou ele, depois de nos havermos sentado. — Tem algo a nos informar sobre a morte de Robin? — Colocou um sinal numa página do livro Espaço, Tempo e Matéria, de Weyl, e, recostando-se indeciso, nos olhou com impaciência. — Estou muito ocupado na solução de um problema de mecânica de Mach...

— Sinto muito — disse Markham. — Nada tenho a informar com relação ao caso de Robin. Mas houve outro assassinato na vizinhança e temos motivos para acreditar que ele se relaciona com a morte de Robin. O que eu queria perguntar, particularmente, ao senhor é se o nome de John Sprigg lhe é ou não familiar.

A expressão de enfado do professor Dillard mudou rapidamente.

— É esse o nome do indivíduo que foi assassinado? — Sua atitude já não denotava mais falta de interesse.

— Sim. Um rapaz de nome John Sprigg foi assassinado por um balaço em Riverside Park, perto da Rua 84, esta manhã, pouco depois das sete e meia.

Os olhos do professor pousaram no tapete, e ele permaneceu silencioso por um pequeno lapso de tempo. Parecia lutar interiormente com algo que o preocupava.

— Sim — disse ele, por fim. — Eu... nós conhecemos um moço com esse nome... embora me pareça improvável que seja o mesmo.

— Quem é ele? — A voz de Markham era ansiosamente insistente.

Outra vez o professor hesitou.

— O rapaz a quem me refiro é o melhor aluno de matemática de Arnesson — o que em Cambridge chamam um aluno sobreexcelente nas ciências matemáticas.

— Como o conhece o senhor?

— Arnesson trouxe-o aqui várias vezes. Queria que eu o conhecesse e conversasse com ele. Arnesson orgulhava-se muito dele, e devo reconhecer que possuía um talento pouco comum.

— Então ele era conhecido por todas as pessoas da casa?

— Sim. Creio que o apresentaram a Belle. E se nesse "todas as pessoas da casa" você quer incluir Pyne e Beedle, dir-lhe-ia que o nome lhes era também familiar.

Foi Vance quem fez a pergunta seguinte.

— Diga-me, professor Dillard, os Drukkers conheciam Sprigg?

— É muito possível. Arnesson e Drukker se vêm muito amiúde... Se bem me recordo, creio que Drukker esteve aqui uma noite em que Sprigg nos visitava.

— E Pardee conhecia-o também?

— A respeito deste, eu não poderia dizê-lo. — O professor bateu impacientemente no braço da cadeira e, voltando-se para Markham, disselhe:

— Ouça-me — sua voz tinha uma petulância angustiada — a que vêm todas essas perguntas? Que tem de ver a nossa amizade com um estudante chamado Sprigg com o caso desta manhã? Seguramente, vocês não quererão dizer-me que o morto é o aluno de Arnesson.

— Receio que assim seja — disse Markham.

Havia um tom de ansiedade, quase de temor na voz do professor — segundo me pareceu — quando ele falou em seguida.

— Mesmo assim, que relação pode ter esse fato conosco? E como pode você relacionar sua morte com a de Robin?

— Concordo em que não há nada de positivo para tirarmos deduções — disselhe Markham. — Mas a falta de finalidade de ambos os crimes e a falta total de motivos parecem dar-lhes uma curiosa unidade de aspecto.

— Você quer dizer, certamente, que não encontrou o motivo. Mas, se todos os crimes sem motivo aparente fossem relacionados entre si...

— Também existem as circunstâncias de tempo e proximidade nesses dois casos — acrescentou Markham.

— É essa a base de sua presunção? — A maneira do professor era de benevolência desdenhosa. — Você nunca foi um bom matemático, Markham, mas deveria saber, pelo menos, que nenhuma hipótese pode ser construída sobre uma premissa tão fraca.

— Ambos os nomes, — interpôs Vance — Cock Robin e Johnny Sprigg, são de personagens de versos infantis muito conhecidos.

O ancião mirou-o, fixamente, com grande assombro; e, pouco a pouco, seu rosto ficou rubro de cólera.

— Seu humorismo, senhor, está fora de lugar.

— Não é o meu humorismo, ai de mim! — replicou Vance tristemente. — A troça é do Bispo.

— O Bispo? — O professor Dillard esforçou-se por conter a sua indignação. — Veja, Markham: não posso permitir que brinquem comigo. É a segunda vez que mencionam um Bispo misterioso nesta sala; e eu quero saber o que isso significa. Supondo que um malvado tenha escrito uma carta louca aos jornais, relacionada com a morte de Robin, que tem este Bispo a ver com Sprigg?

— Debaixo de seu cadáver foi encontrado um papel que tinha uma fórmula matemática escrita a máquina, e parecia provir da mesma máquina com que o Bispo escreveu seus bilhetes.

— O quê! — O professor inclinou-se para diante. — Disse você a mesma máquina? E uma fórmula matemática?... Qual era a fórmula?

Markham abriu sua carteira e tomou o pedaço de papel triangular que Pitts lhe havia dado.

— O tensor de Riemann-Christoffel... — O professor Dillard examinou demoradamente o papel, devolvendo-o depois a Markham. Parecia que envelhecera de repente. Seus olhos denotavam fadiga, quando os levantou para olhar-nos. — Não vejo neste caso luz alguma. — Seu tom de voz denotava resignação impotente. — Mas talvez vocês tenham razão em seguir o caminho que se propuseram. Que desejam de mim?

Markham estava sensivelmente surpreendido ante a atitude nervosa de Dillard.

— Vim procurá-lo, principalmente, para assegurar-me se havia ou não alguma ligação entre Sprigg e esta casa. Mas dir-lhe-ei, com toda a franqueza, que não vejo, agora que fiquei sabendo que havia tal ligação, como adaptá-la à cadeia dos acontecimentos. Entretanto, gostaria de, com a sua permissão, interrogar Pyne e Beedle, como eu achasse conveniente.

— Pergunte-lhes o que quiser, Markham. Você jamais poderá acusar-me de lhe ter interceptado o caminho. — Ergueu o olhar suplicante. — O que espero é que me avisem antes de tomarem qualquer medida drástica.

— Isso eu posso prometer-lhe, senhor — Markham levantou-se. — Mas receio que, por enquanto, estejamos muito longe de tomar medidas drásticas. — Estendeu-lhe a mão e notou que havia uma ansiedade oculta no ancião, ao qual desejava expressar sua simpatia sem falar nos seus sentimentos.

O professor acompanhou-nos até a porta.

— Não posso compreender esse tensor escrito a máquina — murmurou ele, sacudindo a cabeça. — Mas, se há alguma coisa que eu possa fazer...

— Há alguma coisa que o senhor pode fazer por nós, professor Dillard — disse Vance, detendo-se na porta. — No dia da morte de Robin, entrevistamos a Sra. Drukker...

— Ah!

— E, embora ela negasse ter estado sentada em sua sacada, naquela manhã, existe uma possibilidade de ela ter visto algo do que sucedeu no campo de exercícios, entre onze horas e meio-dia.

— Ela lhe deu essa impressão? — Na pergunta do professor notava-se um subtom de interesse reprimido.

— Remotamente. Foi o depoimento de Drukker, que disse haver ouvido sua mãe gritar, o que me fez crer que ela podia ter visto algo que preferisse ocultar-nos. E ocorreu-me que o senhor, provavelmente, teria mais influência junto a ela que qualquer outra pessoa, e que, se realmente ela testemunhou o fato, o senhor poderia conseguir que ela lho dissesse.

— Não! — O professor Dillard falou quase asperamente; mas prontamente pôs a mão no braço de Markham e seu tom de voz mudou. — Há coisas que vocês não me devem pedir que faça. Se essa pobre e desgraçada mulher viu alguma coisa da sua sacada naquela manhã, vocês mesmos devem averiguar. Eu não quero torturá-la, e sinceramente tampouco desejo que vocês a incomodem. Existem outros meios para encontrar o que vocês querem saber. — Olhou fixamente para os olhos de Markham. — Ela não deve ser quem diga isso a vocês. Vocês mesmos seriam os primeiros a senti-lo.

— Devemos averiguar o que pudermos — disse Markham resolutamente, porém com bondade. — Há nesta cidade um demônio solto e não posso deter minha mão para evitar o sofrimento de alguém... por muito trágico que pudesse ser esse sofrimento. Todavia, asseguro-lhe que não torturarei a ninguém desnecessariamente.

— Pensaram vocês — perguntou tranqüilamente o professor Dillard — que a verdade que procuram pode ser mais horrível que os próprios crimes?

— Eu o arriscarei. Mas, assim mesmo, se eu soubesse que era exato, não me deteria por nada.

— Decerto que não. Mas, Markham, eu sou muito mais velho que você. Eu já tinha cabelos brancos quando você era apenas um menino que lutava com logaritmos e antilogarítmos; e quando alguém envelhece, aprende as verdadeiras proporções no universo. As proporções todas mudam. Os valores que damos às coisas uma vez perdem seu significado. Eis por que os velhos perdoam mais: eles sabem que os valores feitos pelo homem não têm importância.

— Mas, enquanto tivermos de viver com os valores humanos — argüiu Markham —, é meu dever apoiá-los. E eu não posso, através de nenhum sentido pessoal de simpatia, recusar tomar qualquer caminho que possa conduzir à verdade.

— Talvez você tenha razão — suspirou o professor. — Contudo, você não me deve pedir que o ajude neste caso. Se você souber a verdade, seja caritativo. Esteja seguro de que o culpado é responsável antes que você peça que o mandem à cadeira elétrica. Existem espíritos enfermos como há corpos enfermos. E, amiúde, ambos o estão.

Quando voltamos à sala, Vance acendeu um cigarro com maior cuidado do que de costume.

— O professor — disse ele — não está absolutamente feliz com a morte de Sprigg. E, embora não o tenha admitido, essa fórmula do tensor convenceu-o de que Sprigg e Robin pertencem à mesma equação. Mas ficou convencido de modo demasiadamente rápido. Por quê? Mais ainda, não lhe importou admitir que Sprigg era pessoa conhecida da casa. Eu não digo que ele suspeite, porém tem temores... É engraçada a sua atitude. Aparentemente não quer obstruir a justiça legal que você mantém com tanto zelo, Markham; mas ele decididamente tem pouco interesse em secundar sua cruzada no que concerne aos Drukkers. Quisera saber o que se esconde atrás de sua consideração pela Sra. Drukker. Eu não diria assim, sem mais nem menos, que o professor é de natureza sentimental. E o que significa essa vulgaridade sobre o espírito e o corpo doentes? Parecia um programa para uma classe de cultura física, não?... Que dia azarado! Vamos fazer algumas perguntas a Pyne e a sua filha.

Markham sentou-se, fumando pensativamente. Raras vezes o vi tão desanimado.

— Não vejo o que podemos esperar deles — comentou. — Mesmo assim, sargento, faça vir Pyne aqui.

Quando Heath saiu, Vance dirigiu a Markham um olhar burlesco:

— Verdadeiramente você não deveria queixar-se. Deixe que Terêncio o console: Nil tam difficile est, quin quaerendo investigari possit. E como é difícil este problema!... — Subitamente tornou-se grave. — Estamos manipulando quantidades desconhecidas. Estamos incitados a lutar contra alguma força estranha e anormal que não opera segundo as leis aceitas da conduta. É ao mesmo tempo sutil... oh, infinitamente sutil... e nada familiar. Mas, pelo menos sabemos que emana de alguma parte dos arredores desta casa. E devemos dar busca em todos os recantos e gretas psicológicos. Em alguma parte, perto de nós, jaz o dragão invisível, portanto não se assuste com as perguntas que eu fizer a Pyne. Devemos procurar nos lugares improváveis...

Ouviram-se passos que se aproximavam da porta da sala e um momento depois entrou Heath com o velho mordomo a reboque.


XI

 

O REVÓLVER ROUBADO

 

(Segunda-feira, 11 de abril — 15h)


— Sente-se, Pyne — disse Vance, em tom amável. — Temos permissão do professor Dillard para interrogar você e esperamos que nos responda a todas as perguntas.

— Pois não, senhor, — respondeu o homem. — Estou certo de que não há nada que o professor Dillard tenha motivo para ocultar.

— Excelente — retrucou Vance enquanto se recostava com indolência. — Para começar, a que horas foi servido esta manhã o desjejum?

— Às oito e meia, senhor, como sempre.

— Estiveram presentes todos os membros da família?

— Sim, senhor.

— Quem acorda a família e a que horas?

— Eu, às sete e meia. Chamo à porta.

— E espera a resposta?

— Sim, senhor, sempre.

— Agora, pense, Pyne: deixou alguém de responder-lhe esta manhã?

O homem inclinou a cabeça enfaticamente:

— Não, senhor.

— E ninguém chegou tarde para o café da manhã?

— Todos compareceram a tempo, como sempre, senhor.

Vance inclinou-se para diante e depositou a cinza do cigarro no cinzeiro.

— Viu, por acaso, sair ou entrar alguém esta manhã antes do café?

A pergunta foi lançada como por descuido, porém notei um ligeiro estremecimento de surpresa nas pálpebras delgadas e caídas do mordomo.

— Não, senhor.

— Supondo que assim fosse, — prosseguiu Vance, — não teria sido possível que alguém da casa pudesse sair e entrar, sem que você visse?

Pela primeira vez durante a entrevista, Pyne pareceu relutar em responder.

— Bem, senhor, o fato é — disse ele com dificuldade — que alguém poderia ter usado a porta principal esta manhã sem que eu percebesse, pois estava na sala de refeições pondo a mesa. E ainda mais, poderiam ter usado a porta da sala do clube, pois minha filha conserva geralmente fechada a porta da cozinha enquanto prepara o café.

Vance fumou pensativamente durante um instante. Então, em tom positivo, perguntou:

— Alguém da casa usa revólver?

Os olhos do mordomo abriram-se desmensuradamente.

— Não que eu... saiba, senhor — respondeu ele com certa vacilação.

— Ouviu você alguma vez falar do Bispo, Pyne?

— Oh, não, senhor! — O rosto do mordomo empalideceu. — Refere-se ao homem que escreveu aquelas cartas aos jornais?

— Refiro-me simplesmente ao Bispo — disse Vance com displicência. — Mas, diga-me, ouviu você algo acerca de um homem que assassinaram esta manhã em Riverside Park?

— Sim, senhor, o porteiro da casa ao lado falou-me dele.

— Conhecia você o jovem Sprigg?

— Eu o vi aqui uma ou duas vezes.

— Ele esteve recentemente aqui?

— Na semana passada, senhor. Creio que foi quinta-feira.

— Quem mais esteve aqui com ele?

Pyne franziu o sobrolho procurando recordar-se.

— O Sr. Drukker — disse ele, depois de um momento. —E agora me recordo que também estava o Sr. Pardee. Achavam-se juntos no quarto do Sr. Arnesson. Estiveram conversando até tarde.

— No quarto do Sr. Arnesson, hem? Costuma o Sr. Arnesson receber visitas no quarto?

— Não, senhor, — explicou Pyne — porém o professor estava trabalhando na biblioteca e a Srta. Dillard estava com a Sra. Drukker aqui na sala.

Vance permaneceu em silêncio durante algum tempo.

— Isso é tudo, Pyne — disse ele por fim. — Tenha a bondade de dizer a Beedle que venha imediatamente.

Beedle não tardou a chegar até nós, apresentando-se com sórdida agressividade. Vance fez-lhe as mesmas perguntas que havia feito a Pyne. As respostas, monossilábicas em sua maior parte, não apresentaram nada de novo. Mas, no final da breve entrevista, Vance perguntou-lhe se por acaso havia olhado pela janela da cozinha antes do café.

— Olhei uma ou duas vezes — respondeu ela com ar de desafio. — Por que não havia de olhar?

— Você viu alguém lá fora?

— Ninguém mais do que o professor e a Sra. Drukker.

— Nenhum desconhecido? — Vance procurou dar a impressão de que não tinha importância a presença do professor Dillard e da Sra. Drukker no pátio, aquela manhã, porém pela forma lenta e deliberada com que procurou a sua cigarreira no bolso verifiquei que a informação lhe havia interessado muitíssimo.

— Não — replicou brevemente a mulher.

— A que horas você viu o professor com a Sra. Drukker?

— Cerca das oito.

— Estavam conversando?

— Sim. Pelo menos — corrigiu ela — passeavam de um lado para outro, perto do caramanchão.

— Costumam eles passear pelo pátio antes do café?

— A Sra. Drukker sai muitas vezes cedo e passeia pelo jardim. E creio que o professor tem o direito de passear pela sua propriedade o tempo que deseje.

— Não estou pondo em dúvida os direitos dele, Beedle — disse Vance suavemente. — Eu apenas estava admirado de exercer ele esses direitos tão cedo.

— Pois bem, ele os estava exercendo nessa manhã... Vance despediu a mulher e, levantando-se, foi à janela da frente. Ele estava visivelmente confundido e permaneceu vários minutos olhando a rua na direção do rio.

— Bem, bem — murmurou ele. — É um lindo dia para a gente comungar com a natureza. Esta manhã, às oito, a calhandra voava sem dúvida alguma... quem sabe?... Talvez tenha havido um caracol entre os abrolhos. Mas... diabo!... nada estava certo com o mundo.

Markham reconheceu os sinais de perplexidade de Vance.

— Que deduz você disto? — perguntou ele. — Estou inclinado a não tomar conhecimento da informação de Beedle.

— O que perturba, Markham, é que não nos podemos dar ao luxo de ignorar nada neste assunto — disse Vance suavemente, sem se virar. — Não obstante, admitirei que, neste momento, a revelação de Beedle não faz sentido algum. Soubemos simplesmente que dois dos atores do nosso melodrama estavam levantados passeando esta manhã, pouco depois que Sprigg foi mandado para o outro mundo. O rendez-vous ai fresco pode talvez ser uma de suas tão queridas coincidências. De outra parte, pode ter algo que ver com a atitude sentimental do ancião para com a senhora... Creio que teremos de fazer a ele algumas perguntas discretas sobre o seu encontro em jejum... Que acha?

Inclinou-se subitamente contra a janela.

— Ah! Aí vem Arnesson. Parece muito nervoso. Poucos momentos depois, ouviu-se o ruído de uma chave na porta principal, e Arnesson deu entrada no vestíbulo. Quando nos viu, dirigiu-se depressa até a sala e, sem nos cumprimentar, explodiu:

— Que é isso que estão dizendo sobre a morte de Sprigg? — Seu olhar ansioso ia de um a outro de nós. — Suponho que estão aqui para me fazer perguntas sobre ele. Às suas ordens. — Atirou sobre a mesa uma volumosa pasta, sentando-se bruscamente na borda de uma cadeira. — Esta manhã, esteve um detetive na faculdade fazendo perguntas estúpidas e agindo como esses policiais de opereta. Muito misterioso... Assassinato... horrível assassinato! Que sabíamos acerca de um tal John E. Sprigg? E assim por diante... Assustou um par de alunos do curso superior e fez com que um inofensivo jovem, instrutor de inglês, tivesse um princípio de colapso nervoso. Eu não vi o camarada naquele momento, estava na aula. Ele teve a desfaçatez de perguntar com que mulheres andava Sprigg. Sprigg com mulheres! Aquele rapaz só pensava no estudo. Era o aluno mais brilhante da turma. Jamais faltou a uma aula. Quando não respondeu à chamada esta manhã, não hesitei em pensar que algo de sério havia ocorrido. À hora do almoço, todos falavam do assassinato... Qual é a resposta?

— Não a temos, Sr. Arnesson. — Vance tinha estado a observá-lo bem de perto. — Contudo, temos outra determinante para a sua fórmula. John Sprigg foi assassinado por um tiro esta manhã com um revólver pequeno. A bala penetrou pelo alto da cabeça.

Arnesson olhou fixamente para Vance durante alguns instantes, sem se mover. Então, deitou para trás a cabeça e soltou uma gargalhada sarcástica.

— Algum outro enigma, eh?... como o da morte de Cock Robin... Explique-me o mistério.

Vance explicou brevemente os pormenores do crime.

— Isto é tudo o que sabemos até agora — concluiu ele.

— Poderia você, Arnesson, ajuntar outros pormenores sugestivos?

— Céus, não! — O homem parecia realmente surpreso.

— Nada, absolutamente. Sprigg... era um dos estudantes mais inteligentes que tenho tido. Era um gênio, juro! É uma lástima que seus pais lhe tenham posto o nome de John... havendo tantos outros nomes. Ao que parece, isso selou a sua condenação. Algum maníaco lhe atravessou o crânio com um balaço. Provavelmente o mesmo truão que meteu em Robin um flechaço. — Esfregou as mãos e o filósofo abstrato que há nele chegou a predominar. — Um belo problema. Contou-me tudo? Necessitarei de cada um dos números inteiros conhecidos. Talvez que, como Kepler, eu encontre algum método matemático em processo... — Riu-se da presunção. — Recorda-se o senhor da Doliometria de Kepler? Foi a base do Cálculo Infinitesimal. Chegou a ele procurando construir uma pipa para seu vinho... com uma quantidade mínima de madeira e um conteúdo cúbico máximo. Pode ser que as fórmulas que eu desenvolvo para encontrar os criminosos abram novos campos de investigações científica. Ah! Robin e Sprigg se converterão, então, em mártires.

O humorismo do indivíduo, embora tomando em consideração sua paixão eterna por tudo que é abstrato, chocou-me, como algo particularmente desagradável. Todavia, Vance parecia que não se importava com seu frio cepticismo.

— Há um item que me esqueci de mencionar — disse ele. Voltando-se para Markham, pediu-lhe o pedaço de papel que continha a fórmula e passou-o em seguida a Arnesson. — Foi encontrado isto debaixo do corpo de Sprigg.

Arnesson examinou-o com ar de pouco caso.

— Pelo que vejo, aqui também está envolvido o Bispo. O mesmo papel e o mesmo tipo de letra de máquina dos bilhetes... Mas, onde conseguiu este tensor Riemann-Christoffel? Ora, se houvesse sido outro tensor... como o G-sigma-tau, por exemplo... qualquer pessoa interessada em física prática teria dado com ele. Mas este não é comum e sua exposição aqui é arbitrária e desusada. Certos termos omitidos... Raios! Estive falando precisamente acerca disto a Sprigg na noite passada. Ele escreveu isto, também.

— Pyne disse-nos que Sprigg esteve aqui quinta-feira à noite — observou Vance.

— Oh, sim, é certo... Na quinta-feira... exato. Também estiveram Pardee e Drukker. Tivemos uma discussão sobre as coordenadas de Gaussian. Este tensor surgiu... creio que foi Drukker quem o mencionou primeiro. E Pardee tinha alguma noção de aplicar a matemática superior no xadrez...

— A propósito, você joga xadrez? — perguntou Vance.

— Jogava, porém não jogo mais. Não obstante, seria um jogo formidável... se não fossem os jogadores. São uns tolos, esses xadrezistas.

— Você fez alguma vez estudos sobre o gambito Pardee?

Naquele momento, eu não podia compreender o aparente desatino das perguntas de Vance. Também notei que Markham começava a dar sinais de impaciência.

— Pobre Pardee! — Arnesson sorria sem sentimento algum. — Não é mau matemático elementar. Seria um bom professor de curso secundário. Mas tem muito dinheiro. Dedicou-se ao xadrez. Eu disselhe que seu gambito não era científico. Ainda mais, demonstrei-lhe como podiam vencê-lo. Mas ele não queria ver isso. Então vieram Capablanca, Vadmar e Tartakower e derrotaram-no sem dó nem piedade. Exatamente como eu havia prognosticado. Isso arruinou a sua vida. Durante muitos anos, tratou de conhecer outro gambito, porém não pôde fazê-lo adotar. Lê Weyl, Silberstein, Eddington e Mach na esperança de inspirar-se.

— Isso é muito interessante. — Vance estendeu a sua caixa de fósforos a Arnesson que tinha estado enchendo o seu cachimbo, enquanto falava. — Pardee era muito relacionado com Sprigg?

— Oh, não. Encontraram-se aqui duas vezes — e isso foi tudo. Entretanto, Pardee conhece muito bem Drukker. Sempre lhe pergunta sobre potenciais e setores. Espera encontrar alguma coisa que revolucione o xadrez.

— Interessava-lhe o tensor de Riemann-Christoffel quando você falou a respeito na outra noite?

— Não posso dizer que sim, pois não é de sua esfera. Não se pode enquadrar a curvatura do espaço-tempo num tabuleiro de xadrez.

— Que deduz você do encontro desta fórmula com Sprigg?

— Nada. Se tivesse sido escrita por Sprigg, diria que caíra do bolso. Mas, quem se daria ao trabalho de escrever a máquina uma fórmula matemática?

— Aparentemente, o Bispo.

Arnesson tirou o cachimbo da boca e sorriu.

— O Bispo X. Temos que encontrá-lo. Está cheio de extravagâncias. Confundiu o senso dos valores.

— Evidentemente. — Vance falou com displicência. — A propósito, quase me esquecia de perguntar: há revólveres em casa de Dillard?

— Oh! — Arnesson riu com espontâneo prazer. — É este o assunto? Sinto muito desiludi-lo. Não temos revólveres. Nem portas deslizadoras. Nem passagens secretas. Tudo aberto à luz do dia.

Vance suspirou teatralmente.

— É uma lástima... uma lástima! Eu que tinha uma teoria tão consoladora...

Belle Dillard havia descido silenciosamente ao hall e agora estava na porta da sala. Sem dúvida, ela havia ouvido a pergunta de Vance e a resposta de Arnesson.

— Como que não há revólveres em casa? Há dois, Sigurd, — disse ela. — Não se lembra dos revólveres velhos que eu usava no campo quando me exercitava na pontaria?

— Pensei que você não mais os tivesse. — Arnesson levantou-se e ofereceu uma cadeira a Belle. — Eu lhe disse, quando voltávamos de Hopatcong naquele verão, que só aos ladrões e bandidos é permitido usar revólveres neste tolerante Estado...

— Mas eu não acreditei — protestou a moça. — Nunca sei quando você graceja ou quando fala sério.

— E a Srta. os guardou? — perguntou Vance num tom tranqüilo.

— Claro que sim. — Ela lançou a Heath um olhar apreensivo. — Não devia guardá-los?

— Eu penso que tecnicamente foi ilegal. No entanto — sorriu Vance tranqüilizadoramente — não creio que o sargento vá invocar a lei contra a senhorita. Onde estão agora?

— Embaixo, na sala do clube. Em uma gaveta do porta-ferramentas.

Vance levantou-se.

— Teria a bondade, Srta. Dillard, de mostrar-nos o lugar onde os guardou? Tenho uma grande curiosidade de vê-los.

A moça hesitou e mirou Arnesson, como à procura de conselho. Quando ele fez que sim com a cabeça, ela voltou-se e conduziu-os à sala do clube.

— Estão naquela arca junto à janela — disse ela encaminhando-se até o lugar. Uma vez aí, tirou de um ponta do móvel uma caixa comprida: atrás, debaixo de um monte de outras coisas, estava um Colt automático, 38.

— Como! — exclamou ela. — E o outro? Alguém o levou?

— Era menor, não é verdade? — perguntou Vance.

— Sim...

— Um 32?

A moça confirmou com a cabeça, volvendo os olhos espantados para Arnesson.

— Sim, levaram-no, Belle, — disse ele, encolhendo os ombros.

— Não há nada a fazer. Provavelmente, algum de seus jovens arqueiros se apropriou dele para fazer saltar os miolos depois de haver-se cansado de lançar flechas.

— Não graceje, Sigurd, — rogou-lhe um tanto assustada. — Aonde poderiam levá-lo?

— Ah! Outro tétrico mistério — disse Arnesson, gracejando. — Estranho desaparecimento de um 32.

Percebendo a inquietude da moça, Vance mudou de tema.

— Talvez, Srta. Dillard, possa ter a bondade de levar-nos ao aposento da Sra. Drukker. Precisamos falar com ela, já que, ao que parece, o passeio ao campo foi adiado. — Uma sombra de dor cobriu o rosto da moça.

— Oh, Sr. Vance, não deve incomodá-la hoje. — Seu tom de voz era tragicamente implorante. — A Sra. Mae está muito doente. Não posso compreender. Quando eu falava com ela, lá em cima, parecia estar perfeitamente bem, porém depois que viu os senhores mudou bruscamente: tornou-se fraca e... oh, alguma coisa horrível pareceu perturbar-lhe o espírito. Depois eu a levei para a cama e ela continuou repetindo num murmúrio terrível: "John Sprigg, John Sprigg..." Telefonei ao seu médico, que veio em seguida. Disse que ela precisava de repouso e tranqüilidade.

— O assunto que me levava lá não é de nenhuma importância — afirmou Vance. — Esperemos que ela melhore. Qual é o médico, Srta. Dillard?

— Whitney Barstead. Há muitos anos que a atende.

— Excelente homem — observou Vance. — Em todo país não há melhor neurologista. Não faremos nada sem a sua permissão.

A Srta. Dillard dirigiu-lhe um olhar de agradecimento, e em seguida pediu licença e saiu.

Quando voltamos à sala, Arnesson parou diante da lareira e olhou para Vance sarcàsticamente.

— "John Sprigg, John Sprigg." A Sra. Mae percebeu logo. Pode ser que esteja louca, porém certos lóbulos de seu cérebro estão superativos. O cérebro humano é uma implacável peça de maquinaria. Alguns dos maiores calculadores mentais da Europa são imbecis. E eu conheço dois mestres de xadrez que precisam de amas para vesti-los e alimentá-los.

Vance aparentava não ouvi-lo. Havia parado junto a um pequeno armário perto da porta e parecia absorvido por uma coleção de objetos de arte antiga chinesa.

— Este elefante não está bem aqui — comentou casualmente, apontando para uma diminuta figura da coleção. — É um bunjinga decadente, sabe? Bem feito, porém não autêntico. Talvez seja uma cópia de algum original manchu. — Abafou um bocejo e voltou-se para Markham. — Creio, meu amigo, que não temos mais nada a fazer aqui. Acho que devemos ir. Mas, antes', poderíamos falar com o professor... Desagrada-lhe esperar aqui, Sr. Arnesson?

Arnesson levantou as sobrancelhas um tanto surpreso, porém imediatamente franziu o rosto num sorriso desdenhoso.

— Oh, não! Podem ir. — E começou a encher o cachimbo.

O professor Dillard sentiu-se importunado com nossa segunda intrusão.

— Acabamos de saber — disse Markham — que o senhor esteve falando com a Sra. Drukker esta manhã, antes do café.

Os músculos do rosto do professor Dillard contraíram-se de raiva.

— Importa ao procurador criminal do distrito que eu fale com um vizinho no jardim de minha casa?

— Por certo que não, senhor. Mas estou no meio de uma investigação que concerne seriamente à sua casa, e eu julguei que podia obter esclarecimentos de sua parte.

O ancião começou a balbuciar.

— Muito bem — aquiesceu ele, contrariado. — Não vi ninguém mais que a Sra. Drukker, se é o que o senhor deseja saber.

Vance interveio na conversa.

— Não viemos por isso, professor Dillard. Queríamos perguntar-lhe simplesmente se a Sra. Drukker lhe deu a impressão esta manhã de haver suspeitado do acontecido em Riverside Park.

O professor esteve a ponto de responder asperamente, porém se conteve. Após um momento, ele disse simplesmente:

— Não, ela não me deu tal impressão.

— Aparentava ela estar um tanto incomodada ou, melhor dizendo, excitada?

— Não! — O professor Dillard enfrentou Markham. — Compreendo perfeitamente até onde os senhores querem chegar e eu não o permitirei. Já disse ao senhor, Markham, que não tomarei parte em espionagens e enredos, sempre que se trate dessa infeliz mulher. Isso é tudo que eu tenho a dizer ao senhor. — Voltou à sua mesa. — Sinto muito, porém estou muito ocupado hoje.

Descemos ao pavimento térreo e nos despedimos de Arnesson. Este nos saudou cordialmente com a mão ao sairmos, mas seu sorriso tinha qualquer coisa de proteção desdenhosa, como se tivesse estado presenciando e se deleitasse com o nosso insucesso.

Quando chegamos à rua, Vance acendeu um novo cigarro.

— Agora, tenhamos uma breve conversa com o triste e cavalheiresco Sr. Pardee. Não sei o que nos poderá dizer, porém tenho muita vontade de conversar com ele.

Entretanto, Pardee não estava em casa. Seu criado japonês nos informou que ele provavelmente estava no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Amanhã teremos tempo de sobra — disse Vance a Markham ao retirarem-se. — Conversarei como o Dr. Barstead, pela manhã, e tratarei de arranjar uma entrevista com a Sra. Drukker. Incluiremos Pardee nessa peregrinação.

— Espero com segurança — grunhiu Heath — que saberemos amanhã mais do que sabemos hoje.

— Você omite um ou dois detalhes consoladores, sargento — respondeu Vance. — Verificamos que as pessoas das relações de Dillard conheciam Sprigg e que não é de estranhar que soubessem de seus passeios matinais muito cedo, às margens do Hudson. Soubemos também que o professor Dillard e a Sra. Drukker passearam juntos pelo jardim às oito desta manhã. E descobrimos que um revólver 32 desapareceu da sala do clube. Não é grande coisa... porém já é algo.

Enquanto nos dirigíamos para o centro da cidade, Markham despertou da sombria abstração em que se achava mergulhado e olhou para Vance com apreensão.

— Tenho quase medo de continuar com este caso. A coisa se torna cada vez mais sinistra; se os jornais se inteiram dessa poesia infantil de John Sprigg e relacionam os dois assassinados, não quero pensar na sensação e no espalhafato que se seguirão a tudo isso.

— Receio que dessa você não escape — suspirou Vance. — Eu não sou nem um pouco psíquico, nunca tive sonhos que se realizassem e não sei o que sejam poderes telepáticos... todavia algo me diz que o Bispo vai dar a conhecer à imprensa esse versinho do folclore infantil. O fim dessa nova farsa é ainda mais obscuro que o da comédia de Cock Robin. Tratará de que todos se inteirem. Até o humorista mais sombrio que se utiliza de cadáveres deve ter seu auditório. Eis aí a única fraqueza de seus crimes abomináveis e quase nossa única esperança, Markham.

— Telefonarei a Quinan — disse Heath — e averiguarei se recebeu alguma coisa.

O incômodo foi poupado ao sargento. O repórter do World estava à nossa espera no gabinete do procurador do distrito, e Swacker fê-lo entrar imediatamente.

— Como tem passado, Sr. Markham? — Nas maneiras de Quinan havia um leve ar de impudência, mas, por outro lado, mostrava sinais de excitação nervosa. — Tenho aqui algo para o sargento Heath. Na Polícia Central, disseram-me que estava a seu cargo o caso Sprigg e que, neste momento, o sargento se achava em entendimentos com o senhor. — Mexeu em seu bolso e, tirando uma folha de papel, entregou-a a Heath. — Com você eu estou bem servido, sargento, de modo que espero que me comunique algumas novidades em reciprocidade... Olhe para este documento. Acaba de recebê-lo o mais importante jornal familiar da América.

Era um pedaço de papel de máquina que continha a melodia de John Sprigg, de "Mother Goose", datilografada em tipo "elite" numa fita azul-pálida. No ângulo inferior direito, estava assinado com letras maiúsculas: O BISPO.

— E aqui está o envelope, sargento. — Quinan meteu outra vez a mão no bolso.

O carimbo indicava as 9 horas da manhã e, tal como a primeira nota, esta havia sido postada na Agência "N" do correio.


XII

 

UMA VISITA À MEIA-NOITE

 

(Terça-feira, 12 de abril — 10h)

 

Na manhã seguinte, a primeira página dos diários da cidade trazia reportagens sensacionais que ultrapassavam os maiores temores de Markham.

Além do World, outros dois grandes matutinos receberam notas iguais à que Quinan nos mostrou. A excitação a que deu motivo sua publicação foi tremenda. Toda a cidade se achava num estado de apreensão e temor. E ainda que tentativas diferentes fossem feitas aqui e ali para afastar o aspecto insano dos crimes no terreno da consciência, e para explicar as notas do Bispo como sendo obra de um espírito brincalhão, todos os jornais e a maioria do público estavam completamente convencidos de que um novo e terrível tipo de assassino ameaçava a comunidade (1).

(1) Um estado semelhante de pânico acorreu em Londres em 1888, quando Jack, o Estripador, estava ocupado em sua anormal e macabra tarefa. Outra vez em Hanover, em 1923, quando Haarmann, o Lobo, cometia carnificinas próprias de antropófagos. Mas, não me recordo de nenhum outro paralelo moderno pela atmosfera de horrível terror que reinou em Nova York durante os assassinatos do Bispo.

 

Markham e Heath foram acossados pelos repórteres de todos os jornais, porém um véu de mistério foi mantido resolutamente. Não se deu nenhuma insinuação de que existiam motivos para crer que a solução se encontrava junto à casa de Dillard. Tampouco se fez menção do desaparecimento do revólver 32. A situação de Sperling era tratada pela imprensa com simpatia. A opinião geral era de que o jovem havia sido vítima das circunstâncias, e toda crítica da demora de Markham em acusá-lo havia sido abandonada.

No dia em que mataram Sprigg, Markham teve uma conferência no Club Stuyvesant. Tomaram parte o inspetor Moran, do Gabinete de Investigações, e o inspetor-chefe O'Brien (1) Os dois assassinatos foram discutidos com detalhes e Vance expôs as razões de sua crença de que a resposta ao problema seria encontrada finalmente ou em casa de Dillard ou em algum lugar relacionado diretamente com a referida casa.

(1) O inspetor-chefe O'Brien estava então encarregado de todo o Departamento de Polícia.

 

— Estamos agora em contacto — terminou de falar Vance — com todas as pessoas que puderam evidentemente ter tido suficiente conhecimento das condições que cercavam as duas vítimas para perpetrar os crimes com êxito, e nosso único caminho é concentrar a atenção nessas pessoas.

O inspetor Moran estava inclinado a aceitar essa teoria, exceto — disse ele — que "nenhuma das personagens dramáticas que você mencionou é, na minha opinião, um maníaco sangrento".

— O assassino não é um maníaco no sentido convencional — respondeu Vance. — Provavelmente normal em tudo o mais. Em realidade, seu cérebro pode ser brilhante, exceto quanto a essa lesão... e, direi mais, brilhantíssimo. Ele perdeu todo o senso de proporção através de puras especulações exaltadas.

— Mas um super-homem pervertido se contenta com esses gracejos revoltantes, sem motivo algum? — perguntou o inspetor.

— Ah, mas o caso é que há um motivo. Algum impulso tremendo se oculta atrás da concepção monstruosa destes assassinatos... um impulso que em seus resultados eficazes toma a forma de humorismo satânico.

O'Brien não tomou parte nesta discussão. Ainda que impressionado pelas vagas implicações do caso, ele se exasperava pelo caráter impraticável do mesmo.

— Essa espécie de conversa — disse gravemente — esta bem para os editoriais dos jornais, porém não é viável. — Sacudiu seu grande charuto na direção de Markham. — O que temos de fazer é procurar todos os indícios e conseguir alguma outra evidência legal.

Foi decidido finalmente que as notas do Bispo deviam ser levadas a um perito analista e que se fizesse esforço no sentido de se descobrir a máquina de escrever e a papelaria onde compravam o papel. Uma busca sistemática devia ser feita para se conseguirem testemunhas que pudessem ter visto alguém em Riverside Park, entre as sete e as oito daquela manhã. Os costumes e as relações de Sprigg deviam ser objetos de investigações minuciosas. E um homem devia ser destacado para interrogar o carteiro da seção, com a esperança de que, ao tomar as cartas das diversas caixas, ele tivesse notado os envelopes dirigidos aos jornais e pudesse dizer em que caixa os havia colhido.

Várias outras atividades puramente formais foram traçadas, e Moran sugeriu que por algum tempo três homens fossem estacionados dia e noite na vizinhança dos assassinatos para surpreender algum imprevisto acontecimento ou alguma ação suspeita dos elementos envolvidos. O Departamento de Polícia e o gabinete do inspetor do distrito deviam trabalhar de comum acordo. Markham, implicitamente de acordo com Heath, assumiu a direção.

— Já entrevistei os membros das famílias Dillard e Drukker em relação ao assassinato de Robin — explicou Markham a Moran e a O'Brien — e falei com o professor Dillard e com Arnesson relativamente ao caso Sprigg. Amanhã verei Pardee e os demais Drukkers.

Na manhã seguinte, Markham, acompanhado de Heath, foi à casa de Vance, um pouco antes das dez horas.

— Isso não pode continuar assim — declarou aquele depois dos cumprimentos. — Temos de inquirir alguém que saiba alguma coisa. Vou apertar o torniquete... e ao diabo as conseqüências!

— Persiga-os por todos os meios possíveis. — O próprio Vance parecia desesperado. — Apesar de eu duvidar que isso dê algum resultado. Nenhum processo comum poderá resolver este enigma. Entretanto, telefonei a Barstead. Disseme ele que poderemos falar com a Sra. Drukker esta manhã.

Mas, arranjei para falar com ele primeiro. Tenho de conhecer mais alguma coisa sobre a patologia de Drukker. As corcovas, você sabe, não são geralmente produzidas por quedas.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do médico, sendo recebidos no instante. O Dr. Barstead era um homem corpulento, agradável, e cujas maneiras cordiais eram, a meu ver, resultado de uma disciplina forçada.

Vance foi direto ao assunto.

— Temos motivos para crer, Dr. Barstead, que a Sra. Drukker e talvez seu filho estejam indiretamente comprometidos no caso da morte recente de Robin na casa de Dillard. E, antes de interrogá-los, desejávamos que o senhor dissesse, até onde permite a ética profissional, alguma coisa sobre a situação neuropática que estamos enfrentando.

— Rogo-lhe que seja mais explícito, senhor — disse o Dr. Barstead, com defensiva naturalidade.

— Disseram-me — continuou Vance — que a Sra. Drukker se considera responsável pela cifose de seu filho, porém a meu ver tais deformações não resultam ordinariamente de simples males físicos.

O Dr. Barstead meneou a cabeça lentamente.

— Isso é verdade. A paraplexia compressiva da espinha dorsal pode seguir-se a uma deslocação ou golpe, mas a lesão assim produzida é de tipo focai transversal. A osteíte ou cárie das vértebras, o que comumente chamamos mal de Pott, é geralmente de origem tuberculosa. E esta tuberculose da espinha ocorre mais freqüentemente na infância. Amiúde existe no momento de nascer. É certo que um acidente pode preceder o surto, determinando o lugar da infecção ou excitando um foco latente. E este fato, indubitavelmente, dá origem à crença de que o golpe em si produz a enfermidade. Mas, Schmaus e Harsley expuseram a verdadeira anatomia patológica da cárie espinhal. A deformidade de Drukker é inquestionávelmente de origem tuberculosa. Sua mesma curvatura é de tipo marcadamente redondo, denotando um extenso envolvimento das vértebras. E não há esco-liose de nenhuma classe. Mais ainda, tem todos os sinais locais da osteíte.

— O senhor, naturalmente, explicou a situação à Sra. Drukker, não?

— Em muitas ocasiões. Mas, não tive êxito. O fato é que um instinto terrível de martírio pervertido leva-a a aferrar-se à idéia de que ela é responsável pela situação de seu filho. Esta noção errônea converteu-se nela numa idéia fixa. Constitui todo o seu programa mental e dá uma significação à vida de serviço e sacrifício que ela vem vivendo há quarenta anos.

— Até que ponto — perguntou Vance — diria o senhor que essa psiconeurose afetou o cérebro dela?

— Isto seria difícil afirmar. E não é uma questão que eu gostaria de discutir. Entretanto, posso dizer o seguinte: ela é uma mulher indubitavelmente mórbida. E seus valores têm variado. Às vezes tem havido, isto lhes digo com o maior sigilo, sinais de marcada alucinação quando se trata de seu filho. O bem-estar dele é para ela uma obsessão. Não há nada que ela não faça por ele.

— Apreciamos sua confidencia, doutor... e não seria lógico supor que o ânimo alterado que ela apresentava ontem resultou de algum temor ou susto relacionado com o bem-estar do filho?

— Sem dúvida. Ela não tem vida afetiva ou mental a não ser em função dele. Mas, se seu desfalecimento momentâneo foi devido a um temor real ou imaginário, não se pode dizer. Ela vive há muito tempo na fronteira entre a realidade e a fantasia.

Houve um breve silêncio e em seguida Vance perguntou:

— Em relação a Drukker, o senhor o considera responsável por seus atos?

— Desde que é meu paciente — replicou o Dr. Bartead em tom glacial — e desde que não tomei providência alguma para interditá-lo, considero sua pergunta uma impertinência.

Markham inclinou-se para a frente e falou peremptoriamente.

— Não temos tempo para rodeios, doutor. Estamos investigando uma série de crimes atrozes. O Sr. Drukker está envolvido neles... até que ponto não o sabemos. Mas é nosso dever averiguá-lo.

O primeiro impulso do médico era combater Markham. Mas, evidentemente, pensou melhor, pois quando respondeu, o fez em tom tranqüilo e indulgente.

— Não tenho motivos para negar informação aos senhores. Mas perguntar sobre a responsabilidade do Sr. Drukker é imputar-me negligência em assunto da segurança pública. Talvez, entretanto, eu haja compreendido mal a pergunta deste cavalheiro. — Ele examinou Vance um breve instante. — Há naturalmente graus de responsabilidade — continuou com seus modos profissionais. — A mente do Sr. Drukker está hiperdesenvolvida como sucede amiúde com as vítimas da cifose. Todos os processos mentais estão voltados para dentro, por assim dizer. E a ausência de reações físicas normais tende geralmente a produzir inibições e aberrações. Não notei, porém, sintomas desta espécie no Sr. Drukker. Ele é excitável e propenso à histeria; mas a psicoqueniesia é um acompanhamento comum de sua enfermidade.

— Que forma tomam as reações dele? — perguntou Vance num tom cortês e casual.

O Dr. Barstead pensou um momento.

— A dos jogos infantis, diria eu. Tais divertimentos não são raros nos aleijados. No caso do Sr. Drukker, é o que poderíamos chamar um desejo irrealizado que desperta. Não tendo tido infância normal, apodera-se de tudo que lhe dê um sentido de reabilitação juvenil. Suas atividades infantis tendem a equilibrar sua vida puramente mental.

— Qual é a atitude da Sra. Drukker em relação ao instinto dele para o jogo?

— Ela o estimula muito corretamente. Muitas vezes eu a vi apoiando-se contra o muro sobre o campo de jogos, em Riverside Park, a contemplá-lo. Também preside às festas e banquetes infantis que ele dá em sua casa.

Ao fim de alguns minutos, retiramo-nos. No instante em que dobrávamos a esquina para entrar na Rua 76, Heath, como se despertasse de um pesadelo, suspirou profundamente e ergueu-se no carro.

— O senhor prestou atenção ao ponto dos jogos infantis? — perguntou ele com voz cheia de terror. — Santo Deus, Sr. Vance! Em que vai acabar isso?

Uma tristeza curiosa se mostrava nos olhos de Vance enquanto olhava para os barrancos nevoentos de Jersey, no outro lado do rio.

Ao chegarmos à casa de Drukker, fomos atendidos por uma roliça mulher alemã, que se plantou insòlitamente diante de nós, informando-nos suspeitosamente que o Sr. Drukker estava muito ocupado e não podia receber ninguém.

— É melhor que lhe diga — disse Vance — que o procurador do distrito lhe deseja falar imediatamente.

Suas palavras produziram um efeito estranho na mulher. Levou as mãos ao rosto e seu enorme peito subia e descia convulsivamente. Em seguida, como que cheia de terror, saiu e subiu as escadas. Ouvimos que batia numa porta. Houve sons de vozes. Ao fim de um instante, voltou para informar-nos que o Sr. Drukker nos esperava em seu escritório. Ao passar junto à mulher, Vance voltou-se de súbito e, fixando o olhar sobre ela firmemente, perguntou:

— A que hora se levantou ontem o Sr. Drukker?

— Eu... não sei — tartamudeou ela completamente assustada. — Sim, sim, já sei. Às nove... como sempre.

Vance sacudiu a cabeça e seguiu seu caminho.

Drukker nos recebeu de pé, junto a uma mesa grande coberta de livros e folhas de manuscritos. Fez uma saudação com a cabeça, melancòlicamente, mas não nos convidou a sentar.

Vance estudou-o um momento como se tentasse descobrir o segredo que se ocultava atrás daqueles intranqüilos olhos fundos.

— Sr. Drukker — começou a dizer, — não é nosso desejo causar-lhe um incômodo desnecessário, mas soubemos que o senhor conhecia John Sprigg, que, como deve saber, foi morto por um balaço perto daqui, ontem pela manhã. Poderia o senhor sugerir-nos que motivos pudesse ter alguém para matá-lo?

Drukker empertigou-se todo. Apesar de seu esforço para dominar-se, havia em sua voz, ao responder, um ligeiro tremor.

— Conhecia o Sr. Sprigg, mas muito pouco. Não posso sugerir absolutamente nada a respeito de sua morte.

— Em seu corpo foi encontrado um pedaço de papel com o tensor Riemann-Christoffel que o senhor apresenta em seu livro, no capítulo sobre a limitação do espaço físico. — Enquanto falava, Vance pegara numa folha de papel escrita à máquina e olhava-a como por acaso.

Drukker pareceu não notar a ação. A informação contida nas palavras de Vance havia absorvido sua atenção.

— Não posso compreender — disse ele vagamente. — Posso ver a anotação?

Markham acedeu em seguida ao pedido. Depois de examinar por um momento o papel, Drukker o devolveu, semi-cerrando os olhos maliciosamente.

— O senhor consultou Arnesson sobre isso? Na semana passada ele discutiu essa fórmula com Sprigg.

— Sim — disse Vance como que distraído. — O Sr. Arnesson recordou esse fato, mas não pôde projetar nenhuma luz. Acreditamos que talvez o senhor pudesse ter êxito onde ele havia fracassado.

— Sinto muito não poder satisfazer seus desejos. — Na resposta de Drukker havia algo de escárnio. — O tensor pode ser usado por qualquer pessoa. Weyl e Einstein o empregaram em suas obras muitas vezes. Seu uso não está proibido... — Inclinou-se sobre uma estante giratória, e retirou um pequeno volume. — Aqui está no Princípio da Relatividade de Minkowski, só que com símbolos diferentes... por exemplo, em vez de B, usa T e como índices emprega letras gregas. — Tomou outro volume. — Poincaré também o usou em suas Hipóteses Cosmogônicas, com ainda outros equivalente simbólicos. — Jogou displicentemente os livros sobre a mesa. — Por que me vêm a mim com isso?

— Não foi só a fórmula do tensor que nos fez vir à sua casa — respondeu Vance despreocupadamente. — Temos motivos para crer que a morte de Sprigg está relacionada com o assassinato de Robin...

As mãos largas de Drukker apertaram as bordas da mesa e ele se inclinou para a frente. Seus olhos brilhavam nervosamente.

— Relacionados Sprigg e Robin? Os senhores não acreditam no que os jornais dizem, não é verdade?... É uma mentira infame! — Seu rosto começou a contorcer-se e a voz tornou-se-lhe estridente. — É uma loucura... Eu digo aos senhores que não existe prova nenhuma... em absoluto!

— Cock Robin e John Sprigg, — disse Vance com voz suave e insistente.

— É uma estupidez! Uma verdadeira estupidez! Oh, Deus! O mundo tornou-se louco... — Enquanto golpeava a mesa com a mão, fazendo voar os papéis em todas as direções, balançava-se para trás e para diante.

Vance olhou para ele com surpresa moderada.

— Não conhece o Bispo, Sr. Drukker?

O homem parou de balançar-se e, aprumando-se, olhou Vance com terrível intensidade. Sua boca estava contraída nos cantos, apresentando o riso transversal da distrofia muscular progressiva.

— Também os senhores Tornaram-se loucos! — Passeou o olhar por todos nós. — Os senhores, loucos varridos! Não existe tal Bispo! Nem tampouco existiram Cock Robin ou John Sprigg. E aqui estão os senhores... homens grandes... tratando de assustar-me... A mim, um matemático... com contos infantis! — E começou a rir-se histèricamente.

Vance encaminhou-se para ele rapidamente e, tomando-o pelo braço, levou-o até uma cadeira. Lentamente seu riso foi desaparecendo, e ele fez um movimento com as mãos, denotando cansaço.

— É uma pena que Robin e Sprigg tenham sido mortos. — Sua voz era forte e incolor. — Mas, a única coisa que interessa são as crianças... Os senhores encontrarão provavelmente o assassino. Caso contrário, eu os ajudarei. Mas, não deixem voar a imaginação. Atenham-se aos fatos... aos fatos...

O homem estava esgotado, e o deixamos.

— Está assustado, Markham... Muito assustado — observou Vance, quando atingimos o hall outra vez. — Agradar-me-ia saber o que se oculta naquela mente astuta e distorcida.

Encaminhou-se, então, para a porta do quarto da Sra. Drukker. Nós o seguimos.

— Este método de visitar uma dama não está de acordo com a etiqueta social. Para falar a verdade, Markham, eu não nasci para a polícia. Detesto-a.

Uma voz débil respondeu à nossa chamada. A Sra. Drukker, mais pálida que de ordinário, estava recostada em seu canapé junto à janela. Suas brancas e plácidas mãos descansavam sobre os braços do assento, ligeiramente flexionadas. E mais que uma vez me vieram ao espírito os desenhos que havia visto das vorazes harpias, na lenda dos argonautas.

Antes que pudéssemos falar, ela nos disse com voz tensa e terrível:

— Já sabia que os senhores viriam, que não se haviam cansado de atormentar-me...

— Torturá-la, Sra. Drukker, — respondeu Vance suavemente — é coisa que está longe de nossos pensamentos. Só queremos seu auxílio.

A maneira de Vance pareceu aplacar um pouco seu temor e ela o estudou calculadamente.

— Se pudesse ajudá-los! — murmurou. — Mas não há nada a fazer... nada...

— A senhora nos poderia dizer o que foi que viu de sua janela no dia da morte de Robin — sugeriu Vance, bondosamente.

— Não!... Não!... — Seu olhar era de terror. — Não vi nada... Não estive à janela naquela manhã. Matem-me, porém minhas últimas palavras serão Não... não... não!

Vance não insistiu mais nesse ponto. — Beedle nos disse — continuou ele — que a senhora se levanta em geral muito cedo para passear no jardim.

— Sim — a palavra saiu com um suspiro de alívio. — Eu não durmo bem de manhã. Constantemente desperto com dores na coluna vertebral e com os músculos das costas rígidos e doloridos. Por isso, levanto-me e passeio pelo jardim quando o tempo está bom e agradável.

— Beedle viu a senhora no jardim, ontem de manhã. A mulher anuiu com a cabeça, abstratamente.

— E também viu com a senhora o professor Dillard. Outra vez sacudiu a cabeça, mas logo lançou a Vance um olhar inquisitivo de desafio.

— Às vezes, ele passeia comigo — apressou-se a explicar. — Tem pena de mim e admira Adolph, a quem julga um gênio. E o é! Seria um grande homem... tão grande como o professor Dillard... se não fosse a sua enfermidade... E eu tive a culpa. Deixei-o cair ao chão quando era criança...

Um soluço seco sacudiu-lhe o corpo extenuado e seus dedos se moveram espasmòdicamente.

Após um momento, Vance perguntou:

— Sobre que falaram a senhora e o professor Dillard, ontem de manhã?

A mulher mostrou uma repentina perspicácia.

— De Adolph quase todo o tempo — disse ela numa tentativa evidente de mostrar naturalidade.

— Viu a senhora mais alguém no pátio ou no campo de exercícios?

Os olhos indolentes de Vance pousaram na mulher.

— Não — Outra vez foi a Sra. Drukker dominada por uma espécie de terror. — Contudo, alguém mais estava ali, não é verdade?... Alguém que desejava não ser visto. Sim! Alguém mais estava lá... E acreditaram que eu o havia visto... Porém, não vi! Oh, Deus misericordioso, eu não vi!...

— Ocultou o rosto nas mãos e seu corpo tremeu convulsivamente. — Se eu os tivesse visto! Se eu soubesse! Mas não era Adolph... Não era meu filho. Ele estava dormindo... graças a Deus, estava dormindo!

Vance aproximou-se mais da mulher.

— Por que dá graças a Deus de não ter sido seu filho?

— perguntou gentilmente.

Ela levantou os olhos, assombrada.

— Então, o senhor não se lembra? Um homenzinho disparou um tiro em John Sprigg com um pequeno revólver, ontem pela manhã... O mesmo homenzinho que matou Cock Robin, com um arco e uma flecha. Tudo isso é um jogo horrível... e eu tenho medo... Mas, não devo dizer... não posso dizer. O homenzinho se vingaria horrivelmente. Pode ser... — Sua voz exprimia horror. — Pode ser que ele tenha a idéia louca de que eu seja a velha que morava num sapato.

— Vamos, vamos, Sra. Drukker. — Vance forçou um sorriso consolador. — Não está bem que a senhora fale assim. A senhora deixou que isso tomasse conta de seu cérebro. Há uma explicação perfeitamente racional para todas as coisas. E eu penso que a senhora pode ajudar-nos a encontrar essa explicação.

— Não... não! Não posso... não devo! Eu mesma não compreendo. — Inspirou profunda e fortemente e apertou os lábios.

— Por que não pode dizer-nos? — insistiu Vance.

— Porque não sei — gritou ela. — Bem gostaria de saber! Só sei que algo horrível está-se passando aqui... que alguma terrível maldição paira sobre esta casa...

— Como sabe a senhora?

A mulher começou a tremer violentamente e seus olhos vagavam perdidos pelo teto.

— Porque — sua voz era apenas perceptível — porque o homenzinho veio aqui esta noite!

Um calafrio percorreu-me a medula ante tal revelação, e cheguei até a ouvir a respiração do imperturbável sargento. Em seguida soou a voz tranqüila de Vance:

— Como sabe que ele esteve aqui, Sra. Drukker? A senhora o viu?

— Não, não o vi. Mas ele tentou entrar neste quarto por aquela porta. — Apontou vagamente para a porta de entrada do hall, por onde acabávamos de entrar.

— A senhora deve contar-nos tudo — disse Vance — senão acabaremos crendo que a senhora forjou a história.

— Oh, não inventei nada... que Deus seja testemunha!

— Não podia haver dúvida alguma sobre a sinceridade da mulher. Algo havia ocorrido que a encheu de terror mortal.

— Eu estava desperta, deitada na cama. O pequeno relógio sobre a lareira deu onze horas. E eu ouvi um ruído surdo, fora, no hall. Voltei a cabeça para a porta... nesta mesa aqui havia uma lâmpada... em seguida percebi que a maçaneta se movia lentamente... silenciosamente... como se alguém procurasse penetrar aqui sem me despertar...

— Um momento, Sra. Drukker — interrompeu Vance.

— A senhora fecha sempre à chave a porta de seu quarto, quando se recolhe à noite?

— Até há pouco tempo não a fechava... até à morte do Sr. Robin. Desde então me senti de algum modo insegura... não posso explicar por quê...

— Compreendo. Peço que continue o relato. A senhora disse que viu a maçaneta mexer-se. E depois?

— Sim, sim. Movia-se suavemente, para um lado e para outro. Eu estava deitada ali, em minha cama, gelada de terror. Mas, ao fim de algum tempo pude gritar... não sei se muito alto; mas, subitamente a maçaneta parou de mover-se e ouvi passos que se afastavam rapidamente... pelo vestíbulo. Então pude levantar-me. Fui até à porta e escutei. Tinha medo... medo por causa do Adolph. E eu ouvi aqueles passos descendo pela escada...

— Que escada?

— A dos fundos... a que conduz à cozinha... Em seguida, a porta de tela de arame do pórtico fechou-se e tudo voltou ao silêncio outra vez... Ajoelhei-me, encostando o ouvido na fechadura, durante muito tempo, escutando, esperando. Porém, nada sucedeu. Por fim, me levantei... Algo parecia dizer-me que devia abrir a porta. Eu estava mortalmente amedrontada... e, não obstante, sabia que tinha de abrir a porta... — Um estremecimento percorreu-lhe o corpo. — Levemente, dei a volta à chave e peguei na maçaneta. Enquanto puxava a porta para dentro, lentamente, caiu ao chão, com ruído, um objeto pequeno que estava sobre a maçaneta, do lado de fora. No vestíbulo, estava acesa uma lâmpada... sempre conservo uma luz acesa toda a noite... e tentei não olhar para o chão... tentei... tentei... mas não podia. E ali, a meus pés... oh, Deus dos céus!... havia algo!...

Não pôde continuar. O terror parecia paralisar-lhe a língua. Entretanto, a voz de Vance, fria e insensível, chamou-a à realidade.

— Que é que havia no chão, Sra. Drukker?

Com dificuldade, a mulher levantou-se e, concentrando as forças um momento ao pé da cama, encaminhou-se para o toucador. Apanhando uma caixinha, abriu-a e procurou alguma coisa no seu interior. Em seguida, estendendo a mão em nossa direção, vimos na palma da mesma uma peça de xadrez... preta, de ébano, que contrastava com a brancura de sua pele. Era o bispo!


XIII

 

À SOMBRA DO BISPO

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h)


Vance tomou o bispo da mão da Sra. Drukker e pô-lo no bolso de seu casaco.

— Seria perigoso, senhora, — disse com propositada solenidade — que fosse divulgado o que aconteceu aqui, esta noite. Se a pessoa que amedrontou a senhora soubesse que a polícia já foi informada, poderia fazer novas tentativas para assustá-la. Por conseguinte, nenhuma palavra do que acaba de nos contar deve sair de seus lábios.

— Não posso contar a Adolph? — perguntou a mulher, agitada.

— A ninguém! A senhora deve guardar silêncio absoluto, mesmo em presença de seu próprio filho.

Eu não podia compreender a ênfase de Vance sobre este ponto. Antes, porém, que transcorressem muitos dias, tudo me foi esclarecido. O motivo de tal conselho revelou-se com força trágica. E eu verifiquei que, no mesmo momento da exposição da Sra. Drukker, o espírito penetrante de Vance havia realizado um raciocínio impressionantemente exato e também previsto certas possibilidades insuspeitadas por todos nós.

Ao cabo de um momento, retiramo-nos descendo pela escada de serviço. Esta dobrava para a direita, ao chegar a um patamar, oito ou dez degraus abaixo do segundo andar. Conduzia a um corredor escuro com duas portas: uma à esquerda, que dava para a cozinha e a outra, diagonalmente oposta, que dava para o pórtico, onde se encontra a porta de grades. Saímos imediatamente pelo pórtico, banhado agora pela luz solar, paramos sem dizer palavra, procurando afastar de nós a atmosfera criada pela terrível experiência por que passara a Sra. Drukker.

Markham foi o primeiro a falar.

— Acredita você, Vance, que a pessoa que trouxe esta pedra de xadrez na noite passada seja o assassino de Robin e Sprigg?

— Sem dúvida alguma. O propósito da sua visita da meia-noite é espantosamente claro. Está de acordo com o que já foi esclarecido.

— A mim parece uma pilhéria de mau gosto — respon-i deu Markham. — Obra de um bêbedo diabólico...

Vance sacudiu a cabeça.

— Em todo este pesadelo, é a única coisa que não pode qualificar-se como obra de insano humorismo. Foi uma incursão tremendamente séria. O próprio diabo nunca é tão solene como quando disfarça suas pegadas. A mão do nosso diabo em questão havia sido forçada, e ele fez uma jogada audaciosa. Juro que prefiro seu temperamento jovial ao que o impulsionou a penetrar aqui a noite passada. Entretanto, temos agora alguma coisa positiva em que nos apoiarmos.

Heath, impaciente com tanta teoria, recolheu rapidamente estas últimas palavras.

— E que poderá ser essa coisa, senhor?

— Em primeiro lugar, podemos afirmar que nosso jogador de xadrez está muito familiarizado com a planta desta casa. A luz noturna do vestíbulo superior podia espalhar sua claridade pela escada até ao patamar, mas o resto do percurso deve ter ficado às escuras. Mais ainda, a distribuição da parte posterior da casa é um tanto complicada. Por conseguinte, a menos que conhecesse esta distribuição, não podia encontrar seu caminho nas trevas, sem fazer barulho. Indubitavelmente, o visitante noturno também sabia qual era o quarto da Sra. Drukker e o fato de o filho dela não ter ainda voltado para casa, nesta noite, pois não se teria arriscado a fazer sua visita se não estivesse certo de que o terreno estava livre.

— Até agora, isto não nos ajuda muito — grunhiu Heath.

— Estamos desde o princípio convencidos de que o assassino conhecia tudo que se relaciona com estas duas casas, e não nos podemos afastar dessa convicção.

— É verdade. Mas, pode-se ser íntimo de uma família e, não obstante, ignorar a hora em que se recolhe cada uma das pessoas que a formam, em determinada noite, e como efetuar uma entrada sub-reptícia na casa. Mais ainda, sargento, nosso visitante noturno sabia que a Sra. Drukker costumava deixar sem chave, todas as noites, a porta do seu quarto. A intenção do indivíduo era penetrar no quarto e não deixar, simplesmente, sua pequena lembrança no lado de fora e logo partir. Prova isto a maneira furtiva de mexer na maçaneta.

— É possível que tenha querido simplesmente despertar a Sra. Drukker, para que ela encontrasse imediatamente o objeto — sugeriu Markham.

— Então, por que moveu tão cuidadosamente a maçaneta, como se procurasse não despertar ninguém? Um ruído na maçaneta, uma batida suave na porta, ou simplesmente atirar contra esta a peça de xadrez teria correspondido melhor ao seu propósito... Não, Markham, ele tinha um objetivo mais sinistro, mas, quando encontrou a porta fechada à chave e ouviu o grito de medo da Sra. Drukker, colocou o bispo em lugar que ela o pudesse achar e fugiu.

— Apesar disto, senhor, — redargüiu Heath, — qualquer pessoa podia saber que ela não fechava a porta de seu quarto à chave, à noite, e conhecer a disposição interna da casa para encontrar saída no meio da escuridão.

— Mas, sargento, quem poderia ter uma chave para abrir a porta dos fundos? E quem poderia tê-la usado à meia-noite?

— A porta poderia ter ficado aberta — replicou Heath

— e, quando confrontarmos os álibis de todos, poderemos ter uma pista.

Vance suspirou.

— Provavelmente encontraremos duas ou três pessoas, sem qualquer álibi. E, se a visita da noite passada foi planejada, um convincente álibi pode ter sido preparado. Não estamos lidando com um simplório, sargento. Estamos jogando uma partida de morte com um assassino sutil e de muitos recursos, que pode pensar tão rapidamente como nós e que é amplamente versado nas sutilezas da lógica...

Como movido por um súbito impulso, virou-se, passando para dentro e fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. Dirigiu-se para a cozinha, onde a alemã que nos havia recebido antes estava fleumàticamente sentada a uma mesa, preparando o almoço. Ela levantou-se no momento em que entrávamos e afastou-se de nós. Vance, intrigado por aquele procedimento, estudou-a por alguns momentos em silêncio. Então, seus olhos dirigiram-se para a mesa onde uma berinjela grande tinha sido cortada longitudinalmente em duas metades.

— Ah! — exclamou ele, olhando o conteúdo dos vários pratos que ali havia. — Aubergines à la Turque, hem? Excelente prato. Entretanto, em seu caso, eu teria picado a carne de carneiro em pedaços menores. E não lhe teria posto tanto queijo, pois não combina com o molho espanhol que você está preparando. — Levantando a vista, com sorriso agradável, perguntou: — A propósito, como se chama você?

Seus modos aturdiram grandemente a. mulher, mas também tiveram o efeito de aliviar os temores dela.

— Menzel — respondeu ela com voz sumida. — Greta Menzel.

— Há quanto tempo está com os Drukkers?

— Vai para vinte e cinco anos.

— Muito tempo — comentou Vance pensativamente. — Diga-me: Por que você se assustou quando chegamos?

A mulher irritou-se e cerrou os punhos.

— Eu não estava assustada. Mas o Sr. Drukker estava ocupado.

— Você pensou talvez que viéssemos prendê-lo — disse Vance.

Seus olhos dilataram-se, porém ela não respondeu.

— A que horas o Sr. Drukker se levantou ontem de manhã? — continuou Vance.

— Já lhe disse... às nove horas... como sempre.

— A que horas se levantou o Sr. Drukker? — O tom insistente e preciso de sua voz era muito mais nefasto do que qualquer gesticulação dramática.

— Eu lhe disse...

— Die Wahrheit, Frau Menzel! Um wie viel Uhr ist er aufgestanden?

O efeito psicológico dessa repetição da pergunta em alemão foi instantâneo. A mulher cobriu o rosto com as mãos e deixou escapar um grito abafado como de um animal que caiu numa armadilha.

— Eu não sei... — gemeu ela. — Eu o chamei às oito e meia, porém não me respondeu; tratei de abrir a porta... não estava com chave... e... Du lieber Gott!... Ele tinha saído.

— Quando foi que você o viu depois disso? — perguntou Vance tranqüilamente.

— Às nove. Subi outra vez para dizer-lhe que o desjejum estava pronto. Encontrei-o no escritório... em sua escrivaninha... trabalhando como um louco e num estado de excitação muito grande. Mandou-me embora.

— Desceu para comer?

— Sim... Sim... Desceu... meia hora depois.

A mulher apoiou-se pesadamente na pia e Vance puxou uma cadeira para junto dela.

— Sente-se, Sra. Menzel — disse bondosamente. Assim que ela obedeceu, perguntou-lhe: — Por que me disse esta manhã que o Sr. Drukker se levantou às nove?

— Tive de dizê-lo... obrigaram-me a isto. — Sua resistência havia desaparecido e ela respirava pesadamente como uma pessoa cujas forças se houvessem esgotado. — Quando a Sra. Drukker voltou ontem da casa da Srta. Dillard, disseme que, se alguém perguntasse isso acerca do Sr. Drukker, eu dissesse "Às nove horas". Obrigou-me a jurar que eu o diria... — Sua voz desvaneceu-se e seus olhos tornaram-se vidrados. — Eu tinha medo de dizer coisa diferente.

Vance parecia ainda desconcertado. Depois de tirar algumas baforadas do seu cigarro, observou:

— Não há nada no que você nos disse que possa afetá-la deste modo. Não é raro que uma mulher mórbida como a Sra. Drukker tenha tomado semelhante medida fantástica para proteger seu filho contra uma possível suspeita, quando um assassinato foi cometido na vizinhança. Decerto você está há bastante tempo com ela para perceber como poderia exagerar qualquer possibilidade remota relativamente a seu filho. Na verdade, eu estou surpreendido de ver como você leva isso tão a sério. Terá você algum outro motivo que relacione o Sr. Drukker com esse crime?

— Não!... não!... — A mulher sacudiu a cabeça, fora de si.

Vance caminhou até a janela dos fundos, franzindo o cenho. Subitamente voltou-se. Tornara-se severo e implacável.

— Onde estava você, Menzel, na manhã em que o Sr. Robin foi morto?

Uma mudança surpreendente operou-se na mulher. O rosto tornou-se lívido; os lábios tremeram e as mãos crisparam-se em um gesto espasmódico. Ela procurou desviar seu olhar de Vance, porém algo nos olhos deste a retinha.

— Onde estava você, Menzel? — A pergunta foi repetida duramente.

— Eu estava... aqui... — começou a dizer; então deteve-se bruscamente e lançou um olhar agitado a Heath, que a olhava fixamente.

— Estava na cozinha?

Ela fez que sim com a cabeça. Parecia que a mulher havia perdido a voz.

— E viu o Sr. Drukker voltar da casa de Dillard? Outra vez ela respondeu afirmativamente com a cabeça.

— Exatamente — disse Vance. — E ele entrou pelos fundos, pela porta de grades do vestíbulo, e subiu... E ele não sabia que você o viu pela porta da cozinha... E, mais tarde, perguntou onde teria você estado àquela hora... E quando você lhe disse que tinha estado na cozinha, ordenou-lhe que guardasse silêncio sobre isso... E depois você soube da morte do Sr. Robin uns minutos antes do momento em que você o vira entrar aqui... E, ontem, quando a Sra. Drukker ordenou a você que dissesse que ele não se tinha levantado antes das nove, e quando você soube que alguém também tinha sido morto perto daqui, você suspeitou e assustou-se... Não é assim, Menzel?

A mulher, soluçando em voz alta, cobriu o rosto com o avental. Não havia necessidade de que ela confessasse, pois era evidente que Vance tinha adivinhado a verdade.

Heath tirou o cigarro da boca e olhou-a ferozmente.

— E então! Tudo isto você estava ocultando de mim, hem? — vociferou projetando o queixo. — Você me mentiu, quando eu a interroguei outro dia. Criando obstáculo à ação da justiça, não é?

Ela lançou a Vance um olhar aterrorizado, em busca de proteção.

— A Sra. Menzel, sargento, — disse ele — não teve a intenção de obstruir a ação da polícia; desde que ela nos disse a verdade, creio que poderemos relevar seu erro, que é perfeitamente natural no caso. — Então, antes que Heath tivesse tempo de responder, virou-se para a mulher e perguntou-lhe em tom indiferente:

— Você fecha todas as noites com chave a porta que dá para o vestíbulo?

— Sim... todas as noites. — Ela falava negligentemente. A reação do medo a havia deixado apática.

— Tem certeza de que a fechou a noite passada?

— Às nove e meia... quando eu fui para a cama. Vance atravessou o pequeno corredor e inspecionou a fechadura.

— É uma fechadura de mola — observou ele, voltando. — Quem tem chave desta porta?

— Eu tenho uma e a Sra. Drukker... tem também outra.

— Está certa de que ninguém mais tem chave?

— Ninguém mais, exceto a Srta. Dillard...

— A Srta. Dillard? — A voz de Vance ressoou, subitamente com interesse. — Por que ela deve ter chave?

— Há muito tempo que ela tem uma. Ela é como da família... Vem aqui duas ou três vezes por dia. Quando eu saio, fecho a porta com a chave. Assim, tendo ela uma, evita o incômodo à Sra. Drukker de descer para abrir-lhe a porta.

— Muito natural — murmurou Vance, acrescentando em seguida: — Não a incomodaremos mais, Menzel.

Dito isto, saímos pelo pequeno pórtico posterior. Uma vez fechada a porta atrás de nós, Vance apontou para a porta de grade, que dava para o pátio.

— Note como foi forçada essa tela de arame até separá-la da moldura, permitindo que pudessem meter a mão para puxar o ferrolho, ou pôr a chave da Sra. Drukker ou da Srta. Dillard na fechadura... Provavelmente, foi a chave desta última que usaram para abrir a porta da casa.

Heath meneou a cabeça. Este aspecto tangível do caso lhe agradava. Mas Markham não prestava atenção. Permanecia à margem, fumando com um ar de desprezo. Daí a pouco, voltou-se com resolução para tornar a entrar na casa, quando Vance lhe segurou no braço.

— Não... não, Markham! Esta seria uma técnica abominável. Domine sua raiva. Você é muito impulsivo, sabe?

— Mas, que diabo, Vance! — Markham sacudiu o braço até libertar-se. — Drukker mentiu-nos dizendo que saíra pelo portão de Dillard antes do assassinato de Robin...

— Já sei que ele mentiu. Eu suspeitei sempre de que o relato de seus movimentos era um tanto fantástico. Porém, é inútil subir agora e ameaçá-lo por causa disto. Dirá simplesmente que a cozinheira se enganou.

Markham não se convencia.

— Mas, e sobre ontem de manhã? Quero saber onde ele estava, quando a cozinheira o chamou às oito e meia. Por que a Sra. Drukker estava tão ansiosa em nos fazer acreditar que seu filho dormia?

— Provavelmente, ela foi também ao quarto dele e viu que não estava. E, quando soube da morte de Sprigg, sua imaginação febril sobressaltou-se e começou a construir um álibi. E você apenas aumentará sua perturbação, se lhe mostrar as discrepâncias do seu depoimento.

— Não tenho tanta certeza assim. — Markham falava com gravidade significativa. — Posso estar encaminhando uma solução para este odioso assunto.

Vance demorou em responder. Permaneceu olhando lá embaixo as sombras trêmulas que os salgueiros projetavam no chão. Afinal disse em voz baixa:

— Não podemos arriscar. Se o que você pensa fosse verdadeiro e você revelasse a informação acabada de receber, o homenzinho, que na noite passada esteve aqui, voltaria outra vez. E, desta vez, não se contentaria em deixar a pedra de xadrez fora da porta!

Uma expressão de terror apareceu no olhar de Markham.

— Você crê que eu poderia comprometer a segurança da cozinheira, se usasse de suas informações contra ele neste momento?

— O terrível deste assunto é que, enquanto não soubermos a verdade, encontraremos o perigo diante de nós a cada passo que dermos. — A voz de Vance denotava desânimo. — Não podemos pôr em risco a vida de ninguém.

A porta que dava para o vestíbulo abriu-se e Drukker apareceu no umbral com seus olhos miúdos pestanejando, à luz do sol. Seu olhar pousara em Markham e um sorriso artificial e repulsivo desenhava-se-lhe nos lábios.

— Espero não incomodar os senhores — disse em tom de desculpas e com um olhar furtivo e ameaçador. — Mas a cozinheira acaba de informar-me que lhes disse que me havia visto entrar aqui pela porta dos fundos, na manhã da infortunada morte do Sr. Robin.

— Oh, sim? — murmurou Vance, virando-se, ao mesmo tempo em que escolhia um outro cigarro.

Drukker lançou-lhe um olhar inquiridor e ergueu-se com uma espécie de cínica altivez.

— E que importância tem isso, Sr. Drukker? — perguntou Markham.

— Simplesmente, desejava assegurar aos senhores — replicou Drukker — que a cozinheira estava enganada. Evidentemente, confundiu a data... Como sabem os senhores, entro e saio por esta porta muitíssimas vezes. Na manhã da morte de Robin, como já lhes expliquei, saí para o campo de exercício pelo portão que dá para a Rua 75 e, depois de um ligeiro passeio pelo parque, voltei para casa, entrando pela porta da frente. Já convenci a Greta de que ela se enganou.

Vance escutava atentamente. Voltou-se então e encontrou o sorriso do outro.

— Por acaso, não a terá convencido com uma peça de xadrez?

Drukker sacudiu a cabeça e sorveu profundamente o ar. Seu peito recurvado tornou-se teso; os músculos ao redor dos olhos e da boca começaram a contorcer-se e as veias e liga-mentos do seu pescoço estufaram e ficaram firmes como cordas distendidas. Por um momento, acreditei que ele fosse perder o domínio de si mesmo; porém conteve-se, com grande esforço.

— Não compreendo, senhor. — Havia nas suas palavras a vibração de uma raiva intensa. — Que significa isso de pedras de xadrez?

— As peças de xadrez têm vários nomes — respondeu Vance suavemente.

— Está o senhor falando de xadrez? — Um desprezo venenoso marcou as maneiras de Drukker, mas ele procurava sorrir. — É muito certo, as peças de xadrez têm vários nomes; o rei, a rainha, o cavalo, a torre... — Aqui se deteve. — O bispo!... — Apoiou a cabeça no umbral da porta e começou a rir melancòlicamente. — Então! Refere-se o senhor a isto? O bispo!... Os senhores são umas crianças imbecis que jogam uma partida estúpida e insensata.

— Temos um motivo excelente para crer — disse Vance com calma impressionante — que o jogo está sendo jogado por outro... com o bispo do xadrez como símbolo principal.

Drukker ficou calado.

— Não leve a sério demasiadamente as extravagâncias de minha mãe — aconselhou ele. — Sua imaginação prega-lhe peças algumas vezes.

— Ah! E por que menciona agora a sua mãe?

— Porque os senhores acabam de falar com ela, não é? E os comentários dos senhores, devo dizer, se parecem muitíssimo com uma de suas alucinações inofensivas.

— Por outro lado, — retornou Vance suavemente, — sua mãe pode ter bases suficientes para as suas crenças.

Os olhos de Drukker semicerraram-se e voltaram-se rapidamente para Markham.

— Tolices!

— Ah, muito bem — suspirou Vance. — Não discutiremos este ponto. — Em seguida, com um tom de voz alterado, acrescentou: — Poderia ser-nos útil, se soubéssemos, Sr. Drukker, onde esteve entre as oito e nove horas da manhã de ontem.

O homem abriu ligeiramente a boca como para falar, mas fechou-a rapidamente de novo, olhando perscrutadoramente para Vance. Afinal, respondeu em voz alta e insistente:

— Estive trabalhando... em meu escritório... desde as seis até às nove e meia. — Fez uma pausa, mas sentiu que era necessário ampliar sua explicação. — Durante vários meses tenho estado trabalhando na modificação de uma teoria para explicar a interferência da luz, o que a teoria do "quantum" é incapaz de fazer. Dillard disseme que era impossível. — Uma luz de fanático brilhou em seus olhos. — Mas, acordei cedo, ontem de manhã, com certos fatores do problema já esclarecidos. Levantei-me e fui para o escritório...

— Então foi ali que esteve o senhor — disse Vance displicentemente. — Não tem grande importância. Sinto tê-lo incomodado hoje. — Fez sinal a Markham com a cabeça e encaminhou-se para a porta de grade.

No momento em que nos dirigíamos para o campo de exercícios, voltou-se e disse:

— A Sra. Menzel está sob a nossa proteção. Afetar-nos-ia muitíssimo, se lhe acontecesse algum mal...

Drukker viu-nos afastar com uma espécie de fascínio no olhar.

Quando não podíamos mais ser ouvidos, Vance aproximou-se de Heath e lhe disse com voz cheia de preocupação:

— Sargento, aquela honesta alemã pode ter posto a sua cabeça inconscientemente no laço. E eu tenho medo. Não seria demais que destacássemos debaixo deste salgueiro um bom homem com a missão de vigiar a parte posterior da casa de Drukker esta noite. E diga-lhe que entre, ao primeiro grito ou chamado... Eu descansarei melhor, se souber que há um anjo guardião, em trajes civis, velando o sono de Frau Menzel.

— Compreendo, senhor. — O rosto de Heath estava sombrio. — Esta noite nenhum jogador de xadrez a incomodará.


XIV

 

UMA PARTIDA DE XADREZ

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 11h30)

 


Enquanto nos dirigíamos lentamente para a casa de Dillard, ficou decidido que se fizessem investigações imediatas acerca dos lugares por onde andaram as pessoas que, de qualquer forma, se achavam envolvidas no horrendo drama.

— Devemos ter muito cuidado em não deixar escapar algo do que aconteceu à Sra. Drukker — aconselhou Vance. — Nosso portador noturno de bispos não tinha a intenção de que viéssemos a saber de sua visita de meia-noite. Julgou que a pobre senhora estaria demasiado assustada para nô-la revelar.

— Estou inclinado a crer — objetou Markham — que você está emprestando demasiada importância a esse episódio.

— Oh, meu caro companheiro! — Vance deteve-se brevemente e pôs as duas mãos nos ombros de Markham. — Você é por demais inocente... este é seu grande defeito. Você não sente... Você não é filho da natureza. A poesia de sua alma converteu-se em prosa. Ora, eu, ao contrário a você, deixo voar minha imaginação e digo-lhe que a colocação daquele bispo na porta do quarto da Sra. Drukker não foi uma inocente travessura, mas o ato desesperado de um homem. Era um sinal de aviso.

— Crê que ela saiba algo?

— Eu penso que ela viu o corpo de Robin no campo de exercícios. E creio que viu também alguma coisa que daria sua vida para não ter visto.

Caminhávamos em silêncio. Era nossa intenção passar pelo portão da Rua 75 e nos apresentar pela porta principal da casa de Dillard; porém, ao passarmos pela sede do clube, a porta abriu-se e Belle Dillard encarou-nos ansiosamente.

— Vi os senhores se dirigirem para o campo de exercícios — disse ela com certa perturbação, dirigindo suas palavras para Markham. — Há uma hora que venho procurando falar-lhe... telefonei para o seu gabinete... — Suas maneiras tornaram-se mais agitadas. — Alguma coisa estranha sucedeu. Oh, pode não ser nada... mas, quando entrei na sede do clube esta manhã, com a idéia de visitar a Lady Mae, um impulso qualquer fez-me ir ao armário das ferramentas outra vez e olhar a gaveta... parecia tão... tão estranho que o pequeno revólver fosse roubado... Pois ali estava... bem à vista... ao lado do outro! — Ela respirou ansiosa. — Sr. Markham, alguém, na última noite, o pôs de novo na gaveta.

Esta informação foi para Heath como um choque elétrico.

— Você tocou nele? — perguntou nervosamente.

— Por quê?... Não...

O sargento passou junto a ela, quase roçando-a, sem cerimônia alguma, encaminhando-se para o armário das ferramentas e abriu-o violentamente. Junto à automática maior que havíamos visto no dia anterior, estava o pequeno 32, de cabo de nácar. Os olhos do sargento brilharam ao correr seu lápis pela guarda do gatilho, levantando-a cuidadosamente. Suspendeu-o e cheirou a extremidade do cano.

— Uma cápsula vazia — anunciou com satisfação. — Foi descarregada recentemente... Isto nos pode esclarecer alguma coisa. — Enrolou cuidadosamente o revólver em um lenço e guardou-o no bolso do casaco.

— Encarregarei Dubois de examinar as impressões digitais e farei com que o capitão Hagedorn (1) examine as balas.

(1) O capitão Hagedorn era perito em armas de fogo, no Departamento de Polícia de Nova York. Foi ele quem, no caso do assassinato de Benson, deu a Vance os dados, com os quais ele estabeleceu a altura do assassino; e quem fez o exame das três balas disparadas com o revólver Smith Wesson, no assassinato dos Greenes.


— Esta é muito boa, sargento — disse Vance zombeteiramente. — Então você acredita que o cavalheiro que procuramos e que limpou o arco e a flecha ia deixar o seu monograma digital em um revólver?

— Não tenho sua imaginação, senhor Vance — replicou Heath grosseiramente. — Portanto, continuarei fazendo aquilo que deve ser feito.

— Você tem razão. — Vance sorriu com admiração e bom humor pela tenacidade esplêndida do sargento. — Perdoe-me por procurar arrefecer seu zelo. — E, voltando-se para Belle Dillard, acrescentou:

— Nós viemos aqui principalmente para ver o professor e o Sr. Arnesson. Mas há também alguma coisa sobre que nós desejaríamos conversar com você. Nós sabemos que você tem uma chave da porta dos fundos da casa de Drukker.

Ela fez um movimento confuso de cabeça.

— Sim. Faz anos que a tenho. Vou e volto tantas vezes durante o dia, e evito desse modo molestar a Lady Mae...

— Nosso único interesse pela chave é que pode ter sido usada por alguém que não tinha direito a tal.

— Mas isso é impossível. Nunca a emprestei a ninguém. E eu sempre guardo em minha bolsa.

— E todo mundo sabe que você tem essa chave?

— Por quê?... Creio que sim. — Estava evidentemente perplexa. — Nunca fiz segredo disso. Certamente toda a família sabe disso.

— E teria você talvez mencionado ou revelado o fato na presença de estranhos?

— Sim... Embora não possa recordar-me de um exemplo específico.

— Está certa de possuir a chave agora?

Ela lançou a Vance um olhar de assombro e, sem dizer palavra, tomou da mesa uma carteirinha de couro de lagarto. Abrindo-a, meteu a mão rapidamente em um dos compartimentos interiores.

— Sim! — anunciou ela com alívio. — Está onde sempre a guardo... Por que pergunta isso?

— É importante que nós saibamos quem teve acesso à casa de Drukker — disselhe Vance. Então, antes que ela tivesse tempo de responder-lhe, perguntou: — Podia a chave ter saído de sua posse a noite passada? Isto é, podia ter sido retirada de sua carteira sem que você soubesse?

A fisionomia de Belle cobriu-se de um ar de terror.

— Oh! Que sucedeu?... — começou a dizer, mas Van-ce a interrompeu.

— Por favor, Belle! Não há nada que possa preocupá-la. Estamos simplesmente lutando para eliminar as possibilidades mais remotas relacionadas com nossa investigação. Diga-me: podia alguém ter-se apoderado dessa chave na noite passada?

— Ninguém — respondeu ela, embaraçada. — Fui ao teatro às oito horas e não me separei um instante de minha carteira.

— Quando usou a chave pela última vez?

— A noite passada, depois de cear. Dei um pulo lá, para ver como estava Lady Mae e desejar-lhe uma boa noite.

Vance franziu ligeiramente o cenho. Pude ver que aquela informação não se enquadrava com alguma teoria que havia formado.

— Você fez uso da chave depois da ceia — insistiu — e conservou-a em sua carteira o resto da noite, sem deixá-la um momento fora do alcance de sua vista. Não é assim, Belle?

A jovem afirmou com um movimento de cabeça.

— Mais ainda, durante o espetáculo, conservei a carteira no colo — acrescentou a jovem.

Vance olhou a carteira pensativamente.

— Bem, — disse displicentemente. — Assim termina o romance da chave. E agora vamos incomodar seu tio novamente. Crê você conveniente servimo-nos de um avant-courir, ou lhe parece melhor que assaltemos a cidadela, sem nos anunciar?

— O tio saiu — disse a moça. — Foi passear no Drive.

— E o Sr. Arnesson ainda não voltou da Universidade, não é?

— Não; mas estará para o almoço. Às terças, à tarde, ele não tem aula.

— Então, nesse intervalo, conferenciaremos com Beedle e com o admirável Pyne. Eu poderia sugerir-lhe que uma visita sua à Sra. Drukker seria muito útil para ela neste momento.

Com um sorriso de preocupação e uma ligeira inclinação de cabeça, a jovem saiu pela porta do porão.

Heath, imediatamente, foi em busca de Beedle e de Pyne, trazendo-os à sala, onde Vance os interrogou sobre a noite precedente. Entretanto, não obteve deles nenhuma informação. Os dois haviam-se deitado às dez. Seus quartos ficavam no quarto andar, num lado da casa. E nem sequer ouviram a Srta. Dillard entrar, quando voltou do teatro. Vance perguntou-lhes se haviam ouvido algum ruído no campo de exercícios e informou-lhes que a porta de grades do vestíbulo da casa de Drukker poderia ter sido fechada com estrondo, cerca da meia-noite. Porém, aparentemente, os dois estavam dormindo àquela hora. Finalmente foram liberados com a advertência de não transmitirem a ninguém o que lhes fora perguntado. Cinco minutos depois, entrou o professor Dillard. Ainda que se surpreendesse, ao nos ver, cumprimentou-nos amavelmente.

— Pela primeira vez, Markham, escolheu você uma hora para a sua visita em que eu não estou ocupado. Imagino que isto significa mais interrogações. Bem, passem para a biblioteca e perguntem o que quiserem. Lá estaremos mais à vontade. — Ele foi à nossa frente, escada acima.

Uma vez sentados na biblioteca, insistiu em oferecer-nos um copo de vinho do Porto que ele mesmo serviu.

— Drukker deveria estar aqui — disse o professor. — Tem muito carinho pelo meu "Noventa e seis", embora ele beba somente em raras ocasiões. Eu disselhe que deveria tomar mais vinho do Porto; mas ele pensa que lhe faz mal e lembra a minha gota. Todavia, não existe relação alguma entre a minha gota e o vinho do Porto... A opinião é mera superstição. Um bom vinho do Porto é o mais são de todos os vinhos. A gota não é conhecida na cidade do Porto. Drukker precisa de um pouco de estimulante físico de boa qualidade... Pobre homem! Seu espírito é como um forno que lhe queima o corpo. É um homem brilhante, Markham. Se tivesse suficiente energia física, que se harmonizasse com o seu espírito, seria um dos maiores físicos do mundo.

— Ele me disse — comentou Vance — que o senhor o censurou por sua inabilidade em elaborar uma modificação da teoria dos quanta em relação à interferência da luz.

O ancião sorriu tristemente.

— Sim. Eu sabia que essa crítica o estimularia a fazer um esforço máximo. O fato é que Drukker está na pista de algo revolucionário. Já resolveu vários teoremas interessantes... Entretanto, estou certo de que não é isso que os senhores vieram discutir aqui. Em que posso servir-lhe, Markham? Ou, acaso, vieram trazer-me notícias?

— Infelizmente, não temos notícias para dar-lhe. Vimos solicitar seu auxílio outra vez... — Markham hesitou, como se não soubesse como proceder; e Vance assumiu o papel de inquiridor.

— A situação mudou um pouco desde que estivemos aqui, ontem. Um ou dois fatos novos surgiram e há uma possibilidade de que nossa investigação seja facilitada, se soubermos das atividades exatas dos membros da sua casa, durante a noite passada. Essas atividades, de fato, podem ter influenciado certos fatores neste caso.

O professor ergueu a cabeça com alguma surpresa, porém não fez comentário nenhum. Limitou-se a dizer:

— Esta informação é fácil de dar. A quem se refere o senhor?

— A ninguém em particular. — Vance apressou-se a afirmar.

— Bem, deixe-me pensar. — Tirou seu velho cachimbo de espuma do mar e começou a enchê-lo. — Belle, Sigurd e eu jantamos às seis; às sete e meia, Drukker chegou e, minutos depois, Pardee. Às oito, Sigurd e Belle foram ao teatro, c às dez e meia Drukker e Pardee se retiraram. Pouco depois das onze, recolhime ao quarto, tendo fechado à cha+ve as portas da casa. Disse a Pyne e a Beedie que podiam deitar-se cedo. Eis aí tudo que posso dizer-lhes.

— Devo entender que a Srta. Dillard e o Sr. Arnesson foram juntos ao teatro?

— Sim, Sigurd raramente vai ao teatro, mas, quando vai, sempre leva Belle. Na maior parte das vezes, assiste às representações das obras de Ibsen. Sua educação norte-americana não lhe diminuiu em nada o entusiasmo por tudo o que é norueguês. É devotado de todo o coração à sua terra natal. Também conhece a literatura norueguesa como qualquer professor da Universidade de Oslo; e a única música que admira realmente é a de Grieg. Quando vai aos concertos ou aos teatros, com toda a certeza, os programas são quase sempre noruegueses.

— Então ontem à noite assistiu a um drama de Ibsen?

— Creio que levaram a cena o Rosmersholm. Atualmente estão revivendo em Nova York o repertório ibseniano.

Vance meneou a cabeça.

— Walter Hampden é o protagonista. O senhor viu Arnesson ou a Srta. Dillard depois que voltaram do teatro?

— Não. Parece-me que voltaram tarde. Belle me disse esta manhã que, terminado o espetáculo, foram cear no Hotel Palace. Todavia, Sigurd estará aqui dentro de pouco tempo e lhe fornecerá mais pormenores.

Embora o professor falasse com paciência, era visível que se sentia incomodado pela natureza aparentemente irrelevante das perguntas.

— Terá o senhor a bondade — prosseguiu Vance — de dizer-nos as circunstâncias relacionadas com as visitas dos Srs. Drukker e Pardee, depois do jantar?

— Não havia nada de extraordinário sobre essas visitas. Eles vêm, muitas vezes, aqui, à noite. O objeto da visita de Drukker era discutir comigo o trabalho que havia feito na sua modificação da teoria dos quanta. Mas, quando Pardee apareceu, a discussão cessou. Este homem é um bom matemático, porém a física superior está muito além dele.

— O Sr. Drukker ou o Sr. Pardee viram a Srta. Dillard antes de ela ir para o teatro?

O professor Dillard tirou lentamente o cachimbo da boca e sua expressão denunciava enfado.

— Devo dizer — replicou irritado — que não vejo nenhuma utilidade em responder tais perguntas. Todavia, — acrescentou, com um tom de voz mais indulgente, — se as trivialidades da minha casa lhes podem ser úteis, terei prazer em lhes dar todos os pormenores. — Olhou para Vance por um momento. — Sim, tanto Drukker como Pardee viram Belle, ontem à noite. Todos, inclusive Sigurd, estivemos juntos nesta mesma sala, meia hora antes de eles saírem para o teatro. Houve também uma discussão acidental sobre o gênio de Ibsen, na qual Drukker aborreceu bastante Sigurd, sustentando a superioridade de Hauptmann.

— Então, segundo vejo, o Sr. Arnesson e a Srta. Dillard saíram às oito, ficando aqui o senhor, Pardee e Drukker.

— Exatamente.

— E às dez e meia, creio que o senhor disse, Drukker e Pardee se retiraram. Retiraram-se juntos?

— Desceram juntos — respondeu o professor com mais uma demonstração de acrimônia. — Creio que Drukker foi para sua casa, mas Pardee tinha um encontro no Clube de Xadrez de Manhattan.

— Parece muito cedo para que Drukker se recolhesse — murmurou Vance — especialmente, tendo ele um assunto importante a discutir com o senhor e não tivesse tido a oportunidade de fazê-lo até o momento de retirar-se.

— Drukker não está bom. — A voz do professor era outra vez estudadamente paciente. — Como já lhes disse, ele se cansa logo. A noite passada, achava-se extraordinariamente esgotado. De fato, queixou-se para mim da sua fadiga e disseme que ia imediatamente para a cama.

— Sim... é certo — murmurou Vance. — Ele nos disse há momentos que esteve trabalhando ontem, desde as seis da manhã.

— Não me surpreende. Uma vez que um problema se assenta em seu espírito, ele trabalha incessantemente nele. Infelizmente, não tem reações normais para contrabalançar sua paixão absorvente pelas matemáticas. Há ocasiões em que eu me tenho preocupado com sua estabilidade mental.

Vance, por algum motivo, fez a conversação mudar de rumo.

— O senhor falou do compromisso de Pardee, a noite passada no Clube de Xadrez, — disse após acender cuidadosamente um novo cigarro. — Disse-lhe a natureza do mesmo?

O professor Dillard sorriu com afável tolerância.

— Falou a respeito durante uma hora. Parece que um cavalheiro chamado Rubinstein, um gênio do mundo enxadrista, segundo tenho ouvido, que está agora visitando este país, o tinha convidado para jogar três partidas de exibições. A última foi ontem. Começou às duas noras e, às seis, adiaram-na. Deveriam ter jogado às oito, porém Rubinstein era convidado de honra num banquete; assim, marcaram para continuá-la às onze. Pardee estava em um estado de agonia, porque perdeu a primeira partida e empatou a segunda. E se, na noite passada, ganhasse, conseguiria um empate com Rubinstein. Parecia pensar que tinha uma excelente probabilidade, pelo modo como tinha deixado o jogo às seis, embora Drukker discordasse dele. Ele deve ter ido diretamente daqui para o clube, porque já eram dez e meia quando ele e Drukker se retiraram.

— Rubinstein é um forte jogador — observou Vance. Uma nova nota de interesse, que procurou ocultar, transpareceu em sua voz. — É um dos grandes mestres do xadrez.

— Derrotou Capablanca em San Sebastian em 1911, e entre 1907 e 1912 foi considerado o contendor lógico para o título de campeão mundial em poder do Dr. Lasker... Sim, seria um grande galardão para Pardee, se o derrotasse. Por certo, apesar da fama de seu gambito, Pardee nunca foi considerado um mestre. A propósito, o senhor sabe o resultado da partida da noite passada?

Outra vez, observei um sorriso débil de tolerância nos cantos dos lábios do professor Dillard. Dava a impressão de olhar, de uma grande altura intelectual, benevolentemente, para travessuras de crianças.

— Não — respondeu ele. — Não perguntei. Mas sou de parecer que Pardee tenha perdido, pois que, quando Drukker assinalou o ponto fraco de sua posição, ao ser suspensa a partida, foi mais positivo do que de costume. Drukker é por natureza cauteloso, e raramente expressa uma opinião definida sobre um problema, sem ter uma base sólida para assim fazê-lo.

Vance levantou as sobrancelhas com certo assombro.

— Quer o senhor dizer que Pardee analisou seu jogo, sem tê-lo terminado, com Drukker, e discutiu as possibilidades de sua terminação? Isto não é só falta de ética, mas qualquer jogador seria desqualificado por fazer semelhante coisa.

— Não estou familiarizado com as sutilezas do xadrez

— replicou o professor Dillard com acrimônia. — Mas estou seguro de que Pardee não é culpado de falta de ética a este respeito. E, além de tudo, recordo-me de que, quando estava ocupado com as peças no tabuleiro, e Drukker encaminhou-se para vê-las, Pardee lhe pediu que não emitisse conselho algum. A discussão sobreveio depois e referiu-se, inteiramente, a generalidades. Não creio que se haja mencionado nenhuma linha particular do jogo.

Vance inclinou-se, lentamente, para a frente e quebrou a cinza do cigarro no cinzeiro, num gesto nervoso que há muito tempo aprendi a identificar como um sinal de excitação recalcada. Em seguida, levantou-se despreocupadamente e dirigiu-se para a mesa de xadrez que estava num ângulo da sala. Permaneceu ali com uma mão apoiada no esquisito tabuleiro de quadrados alternados.

— O senhor disse que Pardee esteve analisando sua posição neste tabuleiro, quando Drukker se aproximou dele, não é assim?

— Sim. — O professor Dillard falava com forçada cortesia. — Drukker estava defronte dele estudando o movimento das pedras. Começou a fazer comentários e Pardee pediu-lhe que se calasse. Cerca de um quarto de hora depois, Pardee colocou as pedras de lado. E foi quando Drukker lhe disse que sua partida estava perdida... que, apesar de aparentemente favorável, sua situação era fraca.

Vance alisava com os dedos as bordas do tabuleiro sem fazer ruído. E tirou da caixa duas ou três peças e colocou-as de novo no tabuleiro, como se jogasse com elas.

— O senhor se lembra do que Drukker disse então?

— Não prestei muita atenção. O assunto não era muito interessante para mim. — Na resposta havia uma nota inevitável de ironia. — Mas o que posso recordar é que Drukker disse que Pardee poderia ganhar, sempre que se tratasse de um jogo de trânsito rápido, porém que Rubinstein era um jogador notoriamente lento e que, forçosamente, encontraria o ponto fraco da posição de Pardee.

— Pardee ressentiu-se com essa crítica?

Vance voltou de novo até a sua cadeira e tirou outro cigarro da cigarreira; mas não se sentou.

— Muitíssimo. Drukker tem uma maneira rude e agressiva de criticar; e Pardee é hipersensível em tudo que se relaciona com xadrez. O fato é que empalideceu de raiva, diante da censura de Drukker. Então, eu tratei de mudar de assunto e, quando se retiraram, o incidente havia sido aparentemente esquecido.

Permanecemos alguns minutos mais. Markham foi profuso em desculpar-se com o professor e procurou dar explicações que justificassem o evidente incômodo que nossa visita lhe havia causado.

Ele não estava satisfeito com Vance, por causa da sua insistência aparentemente excessiva nos pormenores da partida de xadrez. Temos outras coisas que fazer em vez de conversa fiada.

— Uma aversão pela conversa fiada caracterizou também Isabel de Tennyson durante toda a sua plácida vida — replicou Vance. — Porém... que diabo, Markham!... nossa vida não é como a de Isabel. Falando sério, havia nexo em minha conversa fiada. Eu tagarelei... e aprendi.

— O que foi que aprendeu? — perguntou Markham com rispidez.

Com um olhar cauteloso para o vestíbulo, Vance inclinou-se para diante e, em voz baixa, disse:

— Aprendi, meu querido Licurgo, que falta um bispo negro no jogo da biblioteca e que a peça deixada à porta do quarto da Sra. Drukker combina com as outras peças que estão lá em cima!


XV

 

UMA ENTREVISTA COM PARDEE

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — 12h30)

 


Aquela notícia produziu um efeito profundo no espírito de Markham. Como era seu costume, quando estava agitado, levantou-se e começou a passear de um lado para outro, com as mãos nas costas. Heath também, apesar de mais demorado em compreender o significado da revelação de Vance, chupava vigorosamente o charuto, o que indicava que a sua inteligência estava ocupada com um difícil ajustamento de fatos.

Antes que qualquer dos dois formulasse comentários, a porta dos fundos do vestíbulo se abriu, ouvindo-se passos ligeiros que se aproximavam da sala. Belle Dillard, voltando da casa de Drukker, apareceu na porta. Sua fisionomia estava perturbada. E, olhando para Markham, perguntou:

— O que disse o senhor a Adolph esta manhã? Ele está terrivelmente apavorado. Anda por todos os lados, experimentando fechaduras e trincos como se temesse ladrões. Atemorizou a pobre Greta, dizendo-lhe que não se esquecesse de fechar bem o quarto dela, de noite.

— Ah! Avisou a Sra. Menzel, não é? — murmurou Vance. — Muito interessante!

Os olhos da moça voltaram-se rapidamente para ele.

— Sim, mas ele não explica por quê. Está nervoso e cheio de mistérios. E o que é mais de estranhar é que não quer encontrar-se com sua mãe... Que significa isso, Sr. Vance? Sinto que está iminente alguma coisa terrível.

— Na verdade, eu não sei — replicou Vance em voz baixa e angustiada. — Tenho medo de procurar interpretá-lo. Poderia equivocar-me... — Durante um momento, guardou silêncio. — Devemos esperar e ver. Talvez esta noite o saibamos. Mas, não há motivo de alarme de sua parte, Belle. — Vance sorriu confortadoramente. — Como achou a Sra. Drukker?

— Parecia muito melhor. Mas há ainda alguma coisa que a preocupa; e penso que se relaciona com Adolph, pois todo o tempo não fez mais que falar dele, perguntando-me com insistência se havia notado, ultimamente, alguma mudança nele.

— Isto é muito natural nas circunstâncias atuais — observou Vance. — Porém, você não deve deixar que a atitude mórbida dela afete você. E agora, mudando de tema: eu soube que você esteve na biblioteca, na noite passada, durante meia hora, antes de ir ao teatro. Diga-me: onde estava sua carteira de mão, durante esse tempo?

A pergunta sobressaltou-a; porém, depois de uma momentânea hesitação, respondeu:

— Quando eu fui à biblioteca, deixei-a com meu manto na mesinha junto à porta.

— Era a carteira de couro de lagarto, contendo a chave?

— Sim. Sigurd não gosta dos trajes de cerimônia, e quando saímos juntos sempre levo meus vestidos de uso diário.

— Então você deixou a carteira na mesa durante essa meia hora, e depois conservou-a em seu poder durante o resto da noite. E esta manhã?

— Saí para um passeio, antes do café, e levei-a comigo. Mais tarde, eu a coloquei no porta-chapéus do vestíbulo, durante uma hora mais ou menos; mas, quando fui ver Lady Mae, perto das dez, levei-a comigo. Foi quando notei a reposição do pequeno revólver, atrasando assim a visita. Deixei a carteira na sala do clube até que os senhores chegaram. Desde esse momento conservo-a comigo.

Vance agradeceu-lhe.

— E agora que foi traçada completamente a peregrinação da carteira, rogo-lhe tenha a bondade de esquecer tudo.

Belle esteve a ponto de fazer uma pergunta, mas ele se antecipou à sua curiosidade e lhe disse rapidamente:

— Seu tio nos disse que você tinha ido cear no Palace a noite passada, e só voltara muito tarde.

— Eu nunca fico até tarde, quando vou a alguma parte com Sigurd — respondeu ela com uma expressão maternal de queixa. — Ele tem uma aversão profunda pela vida noturna. Pedi-lhe que ficasse mais um tempo, porém parecia tão cansado que não tive coragem de ficar. Chegamos a casa meia hora depois da meia-noite.

Vance levantou-se com um gracioso sorriso.

— Você tem sido muito amável em responder tão pacientemente nossas perguntas tolas... Agora vamos até a casa do Sr. Pardee, para ver se ele tem algumas idéias que nos iluminem o caminho. Creio que, a esta hora, ele está geralmente em casa.

— Estou certa de que ele está em casa agora — disse a jovem, acompanhando-nos até o vestíbulo. — Ele esteve aqui um momento antes de os senhores chegarem e disse que voltaria para casa a fim de responder alguma correspondência.

Estávamos para sair, quando Vance se deteve.

— Oh, diga-me, Belle: há um ponto sobre o qual eu esqueci de perguntar. Quando você veio para casa, a noite passada, com o Sr. Arnesson, como soube exatamente a hora? Notei que você não usa relógio.

— Sigurd disseme — explicou ela. — Eu estava zangada com ele por ter-me trazido tão cedo para casa; e, quando entramos no hall, perguntei-lhe que horas eram. Ele olhou para seu relógio e disseme a hora...

Nesse momento, abriu-se a porta da frente e Arnesson entrou. Olhou-nos com um assombro jocoso. Então, ao ver Belle Dillard, disselhe prazenteiramente:

— Alô, irmãzinha! Segundo vejo, estás nas mãos da polícia. — Dito isto, lançou-nos um olhar zombeteiro. — Por que o conclave? Esta casa está-se tornando um verdadeiro departamento da polícia. Procurando uma pista do assassino de Sprigg? Ah! Um jovem brilhante, a quem um professor invejoso fez desaparecer, hem?... Espero que vocês não tenham estado pondo em apuros Diana, a caçadora.

— Nada disso — replicou a jovem. — Eles têm sido muito atenciosos. Eu disselhes como você foi retrógrado por me trazer para casa à meia-noite e trinta.

— Creio que fui muito indulgente — sorriu Arnesson.

— É demasiado tarde para uma menina como você.

— A velhice deve ser uma coisa horrível... como também dedicar-se às matemáticas — retorquiu ela com algum calor, subindo a escada apressadamente.

Arnesson encolheu os ombros e seguiu-a até perdê-la de vista. Em seguida, olhou cinicamente para Markham:

— Que boas notícias traz você? Alguma coisa sobre a última vítima? — Encaminhou-se outra vez para a sala. — Sinto saudade daquele moço. Iria muito longe. É uma vergonha chamar-se John Sprigg. "Peter Piper" teria sido mais certo. Nada sucedeu a Peter Piper a não ser o episódio da pimenta; e isso não poderia transformar-se num assassinato...

— Não temos nada a informar, Arnesson — respondeu bruscamente Markham, irritado com a petulância do indivíduo.

— A situação é a mesma de antes.

— Então, vieram em visita de cortesia; ficam para almoçar?

— Nós nos reservamos o direito — disse friamente Markham — de investigar o caso da forma que nos parecer melhor. Nem tampouco devemos dar conta a você de nossas ações.

— Oh! Algo se passou que o incomoda — falou Arnesson com sarcasmo. — Eu pensei que me haviam aceito como auxiliar, porém, pelo que vejo, vão-me mandar às favas. — Suspirou profundamente, tirou o seu cachimbo. — Abandonam o piloto! Bismarck e eu. Ai de mim!

Vance estava fumando como em sonho perto da porta, aparentemente distraído, sem dar atenção às queixas de Arnesson. Então entrou na sala.

— Realmente, Markham, o Sr. Arnesson tem razão. Convencionamos que ele nos serviria de auxiliar e temos que dar-lhe a conhecer todos os pormenores.

— Foi precisamente você mesmo — protestou Markham

— quem lembrou o perigo possível de contar o sucedido na noite passada...

— E certo. Mas, nesse momento, havia esquecido a promessa feita ao Sr. Arnesson. E eu estou certo de que poderemos confiar em sua discrição. — Dito isto, Vance relatou detalhadamente a experiência da Sra. Drukker na noite passada. Arnesson escutou com imensa atenção. Notei que sua expressão sardônica desaparecia gradualmente e era substituída por um olhar de seriedade reflexiva. Durante vários minutos ele ouviu num silêncio contemplativo, com o cachimbo na mão.

— Esse é, verdadeiramente, um fator vital no problema

— comentou finalmente. — Muda nossa constante. Vejo que o caso pode ser observado através de um novo ângulo. Ao que parece, o Bispo está entre nós. Porém, por que vai perseguir a Lady Mae?

— Diz-se que ela gritou no preciso momento da morte de Robin.

— Ah! — Arnesson levantou-se da cadeira. — Compreendo sua dedução. Ela viu o Bispo da sua sacada, na manhã do assassinato de Cock Robin, e mais tarde ele voltou e mexeu no trinco da porta como para avisá-la que se calasse.

— Talvez, alguma coisa como isso... Tem você elementos suficientes para desenvolver sua fórmula?

— Gostaria de ver esse bispo negro. Onde está ele? — Vance procurou no bolso e, tirando a peça de xadrez, entregou a Arnesson, que a segurou ansiosamente. Seus olhos brilharam por um momento. Volveu-a várias vezes na mão, devolvendo-a depois a Vance.

— Parece que você conhece este bispo particularmente

— disse Vance sutilmente. — E tem razão. Foi levado do jogo que está na biblioteca do professor.

Arnesson confirmou com a cabeça.

— Assim penso eu. — De súbito, voltou-se para Markham e lançou sobre suas finas feições um olhar de grande ironia.

— Era esse o motivo pelo qual devia eu permanecer afastado? Estou sob suspeita? Ora, bolas! Que castigo se recebe pelo nefando crime de distribuir peças de xadrez entre os vizinhos?

Markham levantou-se e encaminhou-se para o vestíbulo.

— Você não está sob suspeita, Arnesson — respondeu ele, não procurando ocultar seu mau humor. — O bispo foi deixado na casa da Sra. Drukker à meia-noite em ponto.

— E eu cheguei meia hora mais tarde, para poder preencher os requisitos necessários. Sinto muito tê-lo desapontado.

— Se sua fórmula se realizar, avise-nos — disse Vance, ao sair pela porta principal. — Temos de fazer agora uma pequena visita ao Sr. Pardee.

— Pardee! Olá! Visitando um enxadrista perito em bispos, hem? Percebi já o seu raciocínio... Pelo menos, tem a virtude de ser simples e direto...

Permaneceu no pequeno vestíbulo a nos observar enquanto atravessávamos a rua.

Pardee nos recebeu com a sua habitual e serena cortesia. O tom trágico e frustrado de sua fisionomia estava mais acentuado que nunca. E, quando nos ofereceu cadeiras, em seu gabinete, suas maneiras eram a de um homem cujo interesse pela vida havia desaparecido e que apenas executava os movimentos mecânicos da existência.

— Vimos aqui, Sr. Pardee — começou a dizer Vance

— para saber alguma coisa sobre a morte de Sprigg no Riverside Park, ontem pela manhã. Temos excelentes motivos para fazer-lhe perguntas sobre esse caso.

Pardee meneou resignadamente a cabeça.

— Não me ofenderão as perguntas que o senhor possa fazer. Depois de ler os jornais, tive conhecimento do problema incomum que os senhores estão procurando decifrar.

— Então, rogamos-lhe que, antes de tudo, nos informe onde se achava, ontem de manhã, entre sete e oito horas.

Um leve rubor coloriu o rosto de Pardee, mas ele respondeu em voz baixa e monótona.

— Na cama. Só me levantei pelas nove horas.

— Não costuma passear pelo parque antes do café?

Eu percebi que isso era simplesmente um trabalho de adivinhação de Vance, pois, até agora, os hábitos de Pardee não tinham sido objeto de investigação.

— Sim, costumo — replicou o homem, sem hesitação.

— Mas, ontem, não saí, porque trabalhei até tarde da noite.

— Quando teve conhecimento da morte de Sprigg?

— À hora do café. Minha cozinheira me pôs a par do que se dizia na vizinhança. Eu li a notícia oficial da tragédia na primeira edição do vespertino Sun.

— E indubitavelmente terá visto a reprodução da nota do Bispo nos jornais desta manhã. Qual é a sua opinião sobre esse negócio, Sr. Pardee?

— Eu pouco sei. — Pela primeira vez, seus olhos sem brilho mostraram sinais de animação. — É uma situação incrível. As probabilidades matemáticas são totalmente opostas a que semelhantes séries de sucessos mutuamente relacionados sejam coincidentes.

— Sim — concordou Vance. — E por falar de matemática: O senhor está familiarizado com o tensor de Riemann-Christoffel?

— Conheço-o — admitiu o homem. — Drukker usa-o em seu livro, sobre as linhas do mundo. Minhas matemáticas não são, contudo, do tipo das dos físicos. Se eu não me tivesse enamorado do xadrez — sorriu tristemente — teria sido um astrônomo. Depois de manobrar com os fatores em uma complicada combinação de xadrez, a maior satisfação mental que se pode obter, penso eu, é traçar o plano dos astros. Eu mesmo tenho um telescópio equatorial de cinco polegadas para observações de amador.

Vance escutou Pardee atentamente e, por alguns minutos, discutiu com ele a determinação recente da "O" transnetuniana do professor Pickering (1) com grande assombro de Markham e enfado de Heath. Por fim a conversação recaiu sobre a fórmula do tensor.

— Segundo soube, o senhor esteve na casa de Dillard, quinta-feira passada, quando Arnesson falava sobre esse tensor com Drukker e Sprigg.

— Sim, recordo-me de que este assunto veio à tona nessa ocasião.

— Como conheceu Sprigg?

— Casualmente, apenas. Vi-o com Arnesson, uma ou duas vezes.

— Parece que Sprigg também tinha o hábito de passear pelo Riverside Park, antes do café — observou Vance, negligentemente. — Não se encontrou alguma vez ali com ele, Sr. Pardee?

(1) Depois dessa discussão, o professor Pickering tem afirmado, com base nas perturbações de Urano, a presença de dois outros planetas exteriores mais, além de Netuno: P e S.


As pálpebras do homem tremeram ligeiramente e ele titubeou, antes de responder.

— Nunca — disse finalmente.

Vance parecia indiferente à negativa. Levantou-se e, indo à janela, olhou para fora.

— Pensei que daqui se poderia ver a sede do clube. Mas observo que o ângulo o oculta por completo.

— Sim, o campo de exercícios não é visível. Do outro lado do muro há um terreno baldio, de modo que ninguém pode ver por cima... O senhor pensa em uma possível testemunha da morte de Robin?

— Nisso e em muitas outras coisas. — Vance voltou para a sua cadeira. — Desagrada-lhe o jogo de arco-e-flecha, não é verdade?

— É muito fatigante para mim. Belle procurou uma vez interessar-me nesse esporte, porém eu não fui um aluno muito promissor. Não obstante, fui com ela a vários torneios.

Uma nota inusitadamente suave se produziu na voz de Pardee, e, por alguma razão, que não podia exatamente explicar, percebi que ele estava enamorado de Belle Dillard. Vance também deve ter recebido a mesma impressão, porque, depois de uma breve pausa, disse:

— O senhor decerto compreende que não é nossa intenção imiscuir-nos desnecessariamente nos negócios particulares de ninguém; mas a questão do motivo dos dois assassinatos, que estamos investigando, ainda permanece obscura, e como a morte de Robin foi, a princípio, superficialmente atribuída a uma rivalidade em torno do afeto da Srta. Dillard, ser-nos-ia útil saber, de um modo geral, qual é a verdadeira situação concernente à preferência da moça... O senhor, como amigo da família, provavelmente sabe; e nós apreciaríamos sua confidencia a esse respeito.

O olhar de Pardee se perdia através da janela, e um suspiro escapou-se de seus lábios.

— Senhor, julguei que ela e Arnesson se casariam algum dia. Mas isto é somente uma conjetura. Ela disseme uma vez que, positivamente, não pensava em contrair matrimônio, enquanto não tivesse trinta anos. (Facilmente se podia adivinhar a que propósito fora feito esse pronunciamento por parte de Belle Dillard. A vida emotiva e intelectual de Pardee haviam fracassado.)

— Então não crê — prosseguiu Vance — que o coração dela esteja seriamente comprometido com o jovem Sperling?

Pardee sacudiu a cabeça.

— Contudo — manifestou ele — o martírio que ele está sofrendo agora é de um efeito tremendamente sentimental para as mulheres.

— Belle disseme que o senhor conversou com ela esta manhã.

— Eu, geralmente, vou lá durante o dia. — Sem dúvida alguma, ele se achava intranqüilo e, segundo creio, um tanto desconcertado.

— Conhece bem a Sra. Drukker?

Pardee dirigiu a Vance um rápido olhar inquiridor.

— Não particularmente — disse ele. — Eu a vi várias vezes, como é natural.

— Esteve alguma vez na casa dela?

— Muitas vezes, porém para ver Drukker. Estive interessado, durante muitos anos, nas relações da matemática com o xadrez.

Vance meneou a cabeça.

— E, a propósito, qual foi o resultado da sua partida de xadrez com Rubinstein, à noite passada? Não vi os jornais esta manhã.

— Desisti na jogada quarenta e cinco. — O homem falou desiludido. — Rubinstein encontrou um ponto fraco no meu ataque e que eu havia passado por alto inteiramente, quando fiz meu movimento, depois do adiamento da partida.

— Drukker, disse-nos o professor Dillard, previu o resultado, quando o senhor e ele discutiram, ontem à noite, a situação.

Eu não podia compreender por que Vance se referia tão marcadamente a esse episódio, sabendo, como sabia, quanto era delicado este ponto para Pardee. Markham também franziu o sobrecenho, diante do que lhe parecia ser uma imperdoável falta de tato da parte de Vance.

Pardee ruborizou-se e se mexeu na cadeira.

— Drukker falou demais. — A manifestação não estava desprovida de veneno. — Apesar de não ser jogador de torneio, devia saber que tais discussões são proibidas durante as partidas não terminadas. Francamente, dei pouca atenção à sua profecia. Acreditei que meu movimento selado tinha salvo a situação, porém Drukker viu mais longe que eu. Sua análise foi fantàsticamente profunda. — Havia, em seu modo de dizer, um tom de autopiedade e me parecia que odiava Drukker tão amargamente quanto sua natureza aparentemente suave podia permitir.

— Quanto tempo durou a partida? — perguntou Vance distraidamente.

— Até pouco depois da uma. Na seção de ontem à noite, só restavam 14 lances.

— Havia muitos espectadores?

— Considerando a hora avançada, sim.

Vance apagou o cigarro e se levantou. Quando estávamos no vestíbulo do andar inferior, caminhando em direção à porta principal, deteve-se subitamente e, lançando a Pardee um olhar sardônico, disse:

— O bispo preto esteve fazendo das suas pela meia-noite.

Suas palavras produziram um efeito surpreendente. Pardee se ergueu, como se tivesse sido esbofeteado. Suas faces empalideceram. Durante meio minuto, olhou fixamente para Vance. Seus olhos pareciam carvões acesos. Os lábios se moveram com ligeiro tremor, mas nenhuma palavra saiu deles. Em seguida, com um esforço sobre-humano, ele se voltou, encaminhando-se para a porta que abriu bruscamente, fechando-a assim que transpusemos o umbral.

Enquanto caminhávamos pelo Riverside Park, em direção ao carro do procurador, que tinha sido deixado em frente à casa de Drukker, na Rua 76, Markham falou abruptamente a Vance discordando do comentário final que ele havia feito a Pardee.

Tinha esperança — explicou Vance — de surpreender nele algum sinal de reconhecimento ou compreensão. Porém, com os demônios, Markham, eu não esperava um efeito como o que foi produzido. A reação dele foi surpreendente. Não compreendo... absolutamente, não compreendo...

Vance calou-se, ficando absorto em seus pensamentos. No momento, porém, em que o carro entrava na Broadway pela Rua 72, despertou e disse ao motorista que o levasse ao Sherman Square Hotel.

— Tenho grande desejo de conhecer mais detalhes sobre a tal partida entre Pardee e Rubinstein. Não é que haja um motivo muito especial... É uma extravagância da minha parte... Mas a idéia vem trabalhando em meu espírito, desde o momento em que o professor falou a respeito. Desde as onze até à uma e meia... É um tempo excessivo para jogar uma partida de 44 lances apenas, e que ficou sem terminar.

Havíamos chegado à esquina da Avenida Amsterdam com a Rua 71. Vance desapareceu no Clube de Xadrez de Manhattan. Voltou daí a cinco minutos. Trazia na mão uma folha de papel cheia de anotações. Entretanto, no seu rosto não se via nenhum sinal de satisfação.

— Minha encantadora e largamente incubada teoria — disse com uma careta — ruiu ante o prosaico dos fatos. Acabo de falar com o secretário do Clube e ele me disse que a sessão de ontem à noite durou duas horas e dezenove minutos. Parece que foi uma batalha fulgurante, cheia de esotéricas argúcias e de estratégicas penetrações de almas. Pelas onze e meia, os gênios que presenciavam o combate tinham dado Pardee como vencedor; porém, então, Rubinstein desenvolveu uma obra-prima de análise, e conseguiu destruir a tática do adversário até reduzi-la a cacos... Exatamente como havia prognosticado Drukker. Inteligência assombrosa a de Drukker...

Era evidente que ele não estava ainda satisfeito por completo quanto ao que havia averiguado; e as palavras que proferiu a seguir exprimiram seu descontentamento:

— Enquanto estava nisso, pensei em tirar, como diríamos, uma página do livro do sargento e permitir-me a um pouco de trabalho rotineiro. Assim pedi emprestada a folha das jogadas da partida de ontem a noite, copiando cada um dos lances. Pode ser que, algum dia, examine essa partida.

E, como uma precaução fora de hábito, dobrou o papel e guardou-o em sua carteira.


XVI

 

ATO TERCEIRO

 

 

(Terça-feira, 12 de abril — sábado, 16 de abril)

 


Depois de almoçar no Eliseu, Markham e Heath continuaram no centro da cidade. Tinham pela frente uma tarde dura. O trabalho ordinário de Markham se achava acumulado. E o sargento, havendo tomado a si o caso Sprigg, além das investigações de Robin, tinha de manter trabalhando duas máquinas separadas, coordenar todos os seus informes, responder às inúmeras perguntas de seus superiores e tratar de satisfazer a voracidade de um exército de repórteres. Vance e eu fomos a uma exposição de arte moderna francesa no salão Knoedler, tomamos chá no St. Regis e fomos ao encontro de Markham, no Stuyvesant, para jantar. Heath e o inspetor Moran chegaram às oito e meia. Tivemos uma conferência que durou até cerca de meia-noite, sem nenhum resultado prático.

O dia seguinte não nos trouxe também senão desilusões. O laudo do capitão Dubois dizia que o revólver entregue por Heath não apresentava nenhuma impressão digital. O capitão Hagedorn identificou a arma como a usada contra Sprigg; mas isto reforçava simplesmente a nossa crença.

O homem destacado para vigiar a parte posterior da casa de Drukker não viu nada digno de nota. Ninguém havia entrado ou saído. E, às onze, todas as luzes estavam apagadas. Nenhum ruído se ouviu na casa até a manhã seguinte, quando a cozinheira começou as suas tarefas domésticas do dia. Mas, depois das oito horas, apareceu no jardim a Sra. Drukker e, às nove e meia, saiu seu filho, pela porta principal, sentando-se no parque, onde esteve lendo durante duas horas.

Transcorreram dois dias. Na casa de Dillard, foram colocadas sentinelas. Pardee foi posto sob severa vigilância. E, debaixo dos salgueiros, atrás da casa de Drukker, ficou estacionado um homem todas as noites. Porém, nada de anormal ocorreu. E, não obstante a atividade infatigável do sargento, todas as linhas prometedoras das investigações pareceram fechar-se automaticamente. Tanto Heath como Markham estavam profundamente aborrecidos. Os jornais se desfaziam em grandes retóricas. A incapacidade do Departamento da Polícia e do procurador do distrito, no sentido de esclarecer o mistério de dois assassinatos espetaculares, estava-se convertendo rapidamente num escândalo político.

Vance visitou o professor Dillard e discutiu o caso em linhas gerais. Também, na tarde de quinta-feira, passou mais de uma hora com Arnesson, na esperança de que o desenvolvimento da fórmula proposta houvesse trazido à luz algum detalhe que pudesse ser usado como ponto de partida para especulação. Porém, não ficou satisfeito com a entrevista e queixou-se para mim de que Arnesson não tinha sido franco com ele. Duas vezes havia ido ao Clube de Xadrez de Manhattan e tentado fazer Pardee falar; porém, todas as vezes encontrou a reticência de uma fria cortesia. Notei que não fez esforços para comunicar-se com Drukker ou com a Sra. Drukker. E quando lhe perguntei o motivo dessa despreocupação, respondeu:

— A verdade não se pode saber deles agora. Cada um está jogando uma partida, e os dois estão completamente assustados. Enquanto não tivermos alguma prova definitiva, resultará maior mal que bem qualquer tentativa de acareação entre eles.

Essa prova definitiva devia chegar no dia seguinte, e do lugar menos esperado. Foi o começo da última fase de nossa investigação... fase trágica e sinistra, de crueldade tão desenfreada e humor tão monstruoso, que ainda agora, depois de muitos anos, no momento em que escrevo, encontro dificuldades em crer que os sucessos mencionados não foram um sonho grotesco de uma perversidade fabulosa.

Na quarta-feira à tarde, Markham, em estado de desânimo, chamou-nos para uma nova conferência.

Arnesson pediu permissão para assistir. Às quatro, nos encontramos todos, inclusive o inspetor Moran, no gabinete particular do procurador do distrito, no velho edifício dos tribunais criminais. Arnesson permaneceu, durante a discussão, inusitadamente silencioso e nem uma vez emitiu suas despropositadas opiniões. Escutou com suma atenção tudo o que foi dito e parecia evitar, propositadamente, manifestar qualquer opinião ainda quando diretamente convidado a isso por Vance.

Havia transcorrido meia hora, talvez, quando Swacker entrou em silêncio e colocou um memorando sobre a mesa do procurador do distrito. Markham olhou-o e franziu o cenho, Passado um momento, rubricou dois formulários impressos e entregou-os a Swacker.

— Preencha-os imediatamente e entregue-os a Ben (1) — ordenou ele.

(1) O coronel Benjamin Hanlon, chefe da Divisão de Investigações, destacado junto ao gabinete do procurador do distrito.


Assim que o homem saiu, explicou o motivo da interrupção.

— Sperling acaba de mandar-me um pedido para falar comigo. Disse que tem uma informação que pode ser de importância. Pensei que, nas circunstâncias, talvez fosse bom ouvi-lo agora.

Dez minutos mais tarde, um funcionário trouxe Sperling, que saudou Markham com um sorriso amigável e Vance com uma gentil inclinação de cabeça. Fez outro tanto, porém com certa seriedade, a Arnesson, cuja presença pareceu surpreendê-lo e desconcertá-lo. Markham convidou-o com um gesto a sentar-se e Vance ofereceu-lhe um cigarro.

— Queria falar-lhe, Sr. Markham — começou a dizer timidamente — acerca de um assunto que talvez possa interessar-lhe... O senhor recorda-se de que, quando me interrogaram sobre se eu estava com Robin na sede do clube, o senhor desejava saber que caminho tomou o Sr. Drukker, quando nos deixou. Eu lhe disse que não havia reparado, mas que ele saíra pela porta do porão... Pois bem, ultimamente, tive muito tempo para pensar e, como é natural, desfilou pelo meu cérebro tudo o que se havia passado naquela manhã. Não sei justamente como explicá-lo, porém as coisas se tornaram claras agora. Certas impressões, poderíamos dizer, voltaram a mim...

Fez uma pausa e olhou para o tapete. Então, levantando a cabeça prosseguiu:

— Uma dessas impressões se refere ao Sr. Drukker... e eis por que eu quis lhe falar. Esta tarde eu estava... bem, imaginava estar na sede do clube falando com Robin. E, de súbito, o quadro da janela posterior cruzou por meu espírito. E recordei-me de que, quando havia olhado pela janela naquela manhã, a fim de observar como estava o tempo para minha viagem, vi o Sr. Drukker, em vez de sair da casa, foi para o caramanchão, permanecendo ali até que você saísse.

— Assim parece, senhor. — Sperling estava relutante em concordar.

— Está seguro de que o viu?

— Sim, senhor. Agora, recordo-me, perfeitamente, até da maneira peculiar como tinha as pernas cruzadas.

— Você o juraria — perguntou Markham com gravidade — sabendo que a vida de um homem podia depender de seu testemunho?

— Juraria, senhor — respondeu Sperling simplesmente. Quando o guarda escoltou Sperling para fora do quarto,

Markham olhou para Vance.

— Creio que isso nos dá um ponto de apoio.

— Sim; o testemunho da cozinheira tinha pouco valor, desde que Drukker negou simplesmente, e ela é o tipo da alemã leal e cabeçuda que sustentaria sua negativa, se algum perigo real ameaçasse seu amo. Agora, temos uma arma efetiva.

— Parece-me — disse Markham, depois de uns momentos de silêncio especulativo — que temos boa prova circunstancial contra Drukker. Estava no quintal da casa de Dillard segundos antes de terem matado Robin. Facilmente pôde ver quando Sperling saiu. E, como havia vindo recentemente da casa do professor Dillard, sabia que os outros membros da família não estavam. A Sra. Drukker negou que tivesse visto alguém de sua janela naquela manhã, embora tenha gritado na hora da morte de Robin, caindo em pânico quando fomos interrogar Drukker. Ela mesma preveniu-o contra nós e nos chamou "o inimigo". Minha opinião é que ela viu o filho voltando para casa, logo após ter sido colocado o corpo de Robin no campo de exercícios. Drukker não estava em seu quarto, no momento em que Sprigg foi morto; e ambos, ele e a mãe, fizeram o possível para ocultar esse pormenor. Tornou-se excitado, quando mencionamos pela primeira vez o caso dos assassinatos, e ridicularizou a idéia de que estavam relacionados. Em verdade, muitos dos seus atos têm sido suspeitos. Também sabemos que é anormal e desequilibrado e que é dado a jogos infantis. É muito possível, em vista do que nos disse o Dr. Barstead, que tenha confundido a fantasia com a realidade e perpetrasse esses crimes em um momento de loucura súbita. Não só lhe é familiar a fórmula do tensor, como podia tê-la associado, de alguma forma estúpida, com Sprigg, como resultado da discussão de Arnesson com Sprigg sobre a mesma. Quanto às notas do Bispo, podem ter sido parte da irrealidade dos seus jogos insanos, pois as crianças necessitam de um auditório que aprove uma nova forma de diversão que tenham inventado. Sua escolha da palavra Bispo foi provavelmente o resultado de seu interesse pelo xadrez — uma assinatura pitoresca destinada a confundir. E esta suposição é sustentada pela aparição de um bispo de xadrez, na porta do quarto de sua mãe. Talvez tenha receado que ela o visse aquela manhã e assim procurou silenciá-la, sem admitir, abertamente, a sua culpabilidade. Podia facilmente ter cortado a tela de arame do portão de dentro, sem ter chave alguma, e dar, por conseguinte, a impressão de que o portador do bispo entrara e saíra pela porta dos fundos. Mais ainda, teria sido um negócio muito simples para ele carregar o bispo da biblioteca na noite em que Pardee esteve analisando o seu jogo...

Markham continuou ainda durante algum tempo construindo sua prova contra Drukker. Era completo e pormenorizado e seu sumário respondia praticamente a toda a evidência que tinha sido aduzida. A forma lógica e implacável em que ele reunia seus vários fatores era impressionantemente convincente, e um largo silêncio seguiu-se a esse resumo.

Vance, por fim, levantou-se como para quebrar a tensão de seus pensamentos e encaminhou-se para a janela.

— Pode ser que você tenha razão, Markham — admitiu ele. — Porém, minha objeção principal à sua conclusão é que as alegações contra Drukker são demasiado boas. Desde o princípio, considerei assim; porém, quanto mais suspeitosa-mente atuava e quanto mais numerosos eram os indícios contra ele, tanto mais eu me inclinava a afastá-lo de toda consideração. O cérebro que planejou esses crimes abomináveis é muito superior, muito diabòlicamente sutil para ser enredado numa rede semelhante de evidência circunstancial como a que você traçou em torno de Drukker. Este tem um espírito surpreendente... sua inteligência é supernormal, na verdade, e é difícil conceber que, culpado, houvesse deixado tantas falhas.

— Não se pode esperar — replicou Markham com azedume — que a lei despreze possibilidades porque sejam demasiado convincentes.

— De outro lado, — prosseguiu Vance, desprezando o comentário de Markham, — é evidente que Drukker, ainda mesmo não sendo culpado, sabe algo que tem relação direta e essencial com o assunto. E minha humilde opinião é que tratemos de obter esta informação do próprio interessado. O depoimento de Sperling nos deu a base para esse fim... E você que pensa, Arnesson?

— Nada — contestou ele. — Eu não sou mais que um observador desinteressado. Sem embargo, não me agradaria ver Adolph na prisão. — Ainda que não manifestasse sua opinião, era claro que estava de acordo com Vance.

Heath achava, como era de seu feitio, aconselhável uma ação imediata, e exprimiu-se desta maneira:

— Se ele tem algo a dizer, di-lo-á imediatamente, se estiver atrás das grades.

— É uma situação difícil — objetou o inspetor Moran em tom judicioso e suave. — Não nos é permitido cometer um erro. Se a evidência de Drukker acusasse mais alguém, seríamos censurados e ridicularizados por deter um inocente.

Vance olhou para Markham e sacudiu a cabeça em sinal de assentimento.

— Por que não mantê-lo em consideração primeiro, e ver se podemos persuadi-lo a descarregar sua alma. Você poderia suspender sobre a sua cabeça uma ordem de prisão, como uma espécie de coação moral. Então, se ele permanecesse esquivo e reticente, você o mandaria escoltar até à cadeia.

Markham sentou-se, batendo indeciso sobre a mesa, e com a cabeça envolta na fumaça do seu charuto, que chupava nervosamente. Por fim, voltou-se para Heath.

— Traga Drukker aqui amanhã, às nove horas. Leve um carro e uma ordem de prisão em branco para o caso de ele oferecer resistência. — A expressão severa do seu rosto traduzia uma firme determinação. — Depois, averiguarei o que ele sabe... e agirei de acordo.

A conferência terminou imediatamente. Já eram cinco horas, e Markham, Vance e eu fomos juntos ao Club Stuyvesant. Deixamos Arnesson no metrô e ele partiu logo, quase sem se despedir de nós. Seu cinismo loquaz parecia ter desertado dele. Depois de cear, Markham se desculpou, por achar-se fatigado, e Vance e eu fomos ao Metropolitan ouvir Geraldine Farrar em Louise (1)

(1) Louise era a ópera moderna favorita de Vance


A manhã seguinte se apresentou escura e nebulosa. Currie despertou-nos às sete e meia, pois Vance desejava estar presente à entrevista com Drukker. Às oito, fizemos a refeição matinal na biblioteca diante de um pequeno fogo que ardia na lareira. O trânsito nos deteve em nosso caminho no centro da cidade, e embora fossem nove e um quarto quando chegamos ao gabinete do procurador do distrito, Drukker e Heath não haviam ainda chegado. Vance sentou-se comodamente em uma poltrona de couro e acendeu um cigarro.

— Esta manhã me sinto muito bem — disse ele. — Se Drukker relatar a sua história e se esta é como eu suponho, teremos o segredo do cofre.

Mal foram emitidas estas palavras, Heath penetrou no gabinete e, olhando firmemente para Markham, sem saudar ninguém, levantou os braços, deixando-os cair num gesto de desespero resignado.

— Não interrogaremos hoje... nem nunca mais o Sr. Drukker — disse abruptamente. — Caiu ontem à noite, do muro alto do Riverside Park, quase ao lado da casa. Não foi encontrado senão às sete desta manhã. Seu corpo está agora no necrotério... Lindos princípios temos! — Dito isto, afundou-se numa poltrona, numa atitude de desânimo.

Markham mirou-o, sem crer no que ele dizia.

— Está certo disso? — perguntou.

— Estive lá, antes de levarem o corpo. Um dos empregados da seção me telefonou sobre o caso, no momento em que eu saía do gabinete. Fui até lá e consegui colher todas as informações possíveis.

— Que soube então? — Markham estava lutando contra um desapontamento dominante.

— Não muita coisa. Alguns meninos encontraram o cadáver no parque mais ou menos às sete desta manhã... Muitos garotos rodeavam o corpo, pois era sábado; o posto policial providenciou com presteza a vinda do médico da polícia. Este disse que Drukker devia ter caído mais ou menos às dez da noite. Sua morte deve ter sido instantânea. O muro naquele lugar, exatamente oposto à Rua 76, tem uns dez metros de altura.

— A Sra. Drukker foi avisada?

— Não. Eu lhes disse que me encarregaria disso, mas achei conveniente vir antes aqui saber o que pensam os senhores que se deva fazer.

Markham recostou-se em sua cadeira, desanimado.

— Não vejo muita coisa a fazer.

— Seria bom avisar Arnesson — sugeriu Vance. — Provavelmente, é ele que tem de se ocupar disso. Que diabo, Markham! Estou começando a pensar que é tudo um pesadelo. Drukker era a nossa maior esperança, e, no momento em que íamos conseguir fazê-lo falar, ele cai do muro... — Aqui se deteve bruscamente. — De um muro!...

Enquanto repetia essas palavras pôs-se de pé num salto.

— Um corcunda cai do muro Um corcunda!

Todos ficamos a olhá-lo como se ele tivesse ficado louco. E eu admito que seus olhos me fizeram estremecer. Estavam fixos como os de um homem que encara um fantasma. Lentamente, voltou-se para Markham e disse com voz que eu mal podia reconhecer:

— É outro melodrama vesânico... outra cantiga de "Mama Goose". Desta vez é Humpty Dumpty! (1).

(1) Humpty Dumpty, personagem de versos infantis, representada por um ovo, e que uma vez caído ao chão não se pode refazer na sua integridade original (N. do T.).


O silêncio de assombro, que se seguiu, foi quebrado pelo riso forçado do sargento.

— Isto sim é que é pôr as coisas em seu devido lugar, hem, Sr. Vance?

— É absurdo! — declarou Markham, estudando Vance com particular inquietação. — Meu querido amigo, você deixou que este caso tomasse conta do seu cérebro de um modo absorvente. Nada aconteceu, a não ser que um homem corcunda caiu de cima do muro no parque. É uma desgraça, eu confesso. E o é duplamente neste instante. — Foi até Vance c pôs-lhe a mão sobre o ombro. — Deixe que eu e o sargento continuemos com isto... estamos acostumados com estas coisas. Faça uma viagem e descanse. Por que não vai à Europa, como costuma fazer na primavera?

— Oh, sim, sim — suspirou Vance e sorriu com ar cansado. O ar do mar me faria muito bem na verdade. Far-me-ia voltar à normalidade, hem?... Reconstituiria este cérebro outrora perfeito... Desisto! O terceiro ato desta terrível tragédia está-se desenvolvendo quase diante de seus olhos e você serenamente o ignora.

— Sua fantasia apoderou-se do melhor que há em você — replicou Markham, com a benevolência oriunda de um profundo afeto. — Não se preocupe mais com o caso. Venha jantar comigo esta noite. Então conversaremos.

Nesse momento, Swacker entrou e falou ao sargento.

— Quinan, do World está aí e deseja falar com você. Markham voltou-se.

— Oh, Deus meu, faça-o entrar!

Quinan entrou, saudou-nos alegremente e entregou uma carta ao sargento.

— Outra cartinha de amor... Recebia esta manhã. Que privilégios obtenho por ser tão magnânimo?

Heath abriu a carta diante de nosso silêncio. Imediatamente reconheci o papel e o tipo elite da máquina de escrever, impresso em tom azul-claro. A nota dizia:

"Humpty Dumpty estava sentado no muro.

Humpty Dumpty deu uma grande queda;

Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei

Não podem juntar e unir os restos de Humpty Dumpty outra vez."

E em seguida, esta assinatura nefasta, em letras maiúsculas: "O BISPO."


XVII

 

UMA LUZ DURANTE A NOITE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 9h30)

 


Quando Heath pôde desfazer-se de Quinan com promessas tais que teriam alegrado o coração de qualquer repórter. (1), houve alguns minutos de silêncio profundo no gabinete. "O Bispo" tinha estado outra vez desenvolvendo a sua obra macabra. E o caso agora se tornara triplicemente terrível, com a solução aparentemente mais remota que nunca. Não era, contudo, a insolubilidade desses crimes incríveis o que, principalmente, nos afetava; era, antes, o horror intrínseco que emanava como um miasma dos atos em si.

(1) As informações do Caso do Bispo no World causaram inveja aos outros jornais nova-iorquinos. O sargento Heath, apesar de imparcial em suas declarações à imprensa, conseguiu, entretanto, salvar vários pitorescos bons-bocados para Quinan, e se permitiu certas especulações que, embora sem valor noticioso, deram às reportagens do World muito interesse e colorido.


Vance, que passeava pensativo de um lado para outro, deu vazão a suas emoções conturbadas.

— É uma maldição, Markham... é a essência da maldade inexprimível... Essas crianças no parque... levantadas tão cedo em seu dia de folga, em busca de sonhos... ocupadas com seus jogos e brincadeiras... e então a realidade inquietante... a horrível e dominante desilusão... Você não vê a maldade de tudo isso? Essas crianças encontraram o Humpty Dumpty... o seu Humpty Dumpty... morto ao pé do muro famoso... um Humpty Dumpty que elas podiam tocar e ver, quebrado, retorcido, para nunca mais se poder unir de novo...

Deteve-se, ao chegar à janela e olhou para fora. A névoa se dissipara e uma débil difusão do sol primaveril cobria as pedras cinzentas da cidade. A distância brilhava a águia dourada do New York Life.

— Bem, simplesmente, deve-se deixar de lado o sentimentalismo — observou ele com um sorriso forçado, retornando à sala. — Deforma a inteligência e imbeciliza os processos dialéticos. Agora que sabemos que Drukker não foi a vítima caprichosa da lei da gravidade, mas que foi auxiliado em sua viagem para o outro mundo, quando mais rapidamente usarmos de energia tanto melhor, não?

Embora sua mudança de modo de pensar fosse um tour de force, despertou-nos de nossa apatia sombria. Markham acercou-se do telefone e entendeu-se com o inspetor Moran para que Heath se incumbisse desse outro caso. Em seguida, telefonou para o médico da polícia e pediu-lhe um imediato laudo post mortem.

Heath levantou-se vigorosamente e, depois de tomar três copos de água gelada, ficou à espera de que o procurador do distrito indicasse uma linha de ação.

Markham movia-se nervosamente.

— Vários homens de seu Departamento, sargento, parecem ter estado vigiando as casas de Drukker e de Dillard. Você falou com alguns deles?

— Não tive tempo, senhor. E, além do mais, pensei que fosse um acidente. Mas, disselhes que seguissem para os seus postos até que eu voltasse.

— Que disse o médico?

— Somente que parecia um acidente e que Drukker estava morto há dez horas mais ou menos...

Vance intercalou uma pergunta.

— Não mencionou fratura do crânio, além do pescoço quebrado?

— Bem, senhores, ele não disse exatamente que o crânio estivesse fraturado, mas observou que Drukker havia caído de costas. — Heath meneou a cabeça compreensivamente. — Suponho que poderá provar-se que é uma fratura... como as de Robin e Sprigg.

— Indubitavelmente. A técnica de nosso assassino parece ser simples e eficaz. Fere as suas vítimas na cabeça, quer aturdindo-as ou matando-as diretamente, e então arroja-se nos lugares que escolheu para que desempenhem o papel de fantoches de sua nefasta obra. Sem dúvida alguma, Drukker estava debruçado no muro, perfeitamente exposto a esse tipo de ataque. Havia nevoeiro, o lugar estava escuro. De chofre, recebeu o golpe na cabeça, um leve empurrão e caiu sem ruído, por cima do parapeito... O terceiro sacrifício oferecido no altar da velha "Mama Goose".

— O que eu não compreendo — declarou Heath, irritado — é porque Guilfoyle (1), o rapaz que eu pus vigiando a parte dos fundos da casa de Drukker, não me comunicou que este tinha pernoitado fora. Voltou à seção às oito e não pude vê-lo. Não lhe parece, senhor, que seria melhor averiguar o que ele sabe, antes de irmos ao lugar da tragédia?

(1) Como se devem recordar, Guilfoyle era um dos detetives que seguiram a pista de Tony Skeel, no Crime da Canária.


Markham concordou e Heath transmitiu uma ordem pelo telefone.

Em menos de dez minutos, Guilfoyle apresentou-se vindo do Departamento Central da Polícia.

O sargento quase se atirou de encontro ao detetive, quando este entrou na sala.

— A que horas saiu Drukker, ontem à noite? — vociferou Heath.

— Pelas oito horas, depois de ter ceado. — Guilfoyle não se sentia à vontade, e sua atitude tinha a doçura constrangida de quem fora colhido no abandono do dever.

— Para onde foi ele?

— Saiu pela porta dos fundos, andou pelo campo de exercícios e entrou em casa de Dillard, passando pela sala do clube.

— Em visita?

— Assim parecia, sargento. Permaneceu muito tempo em casa de Dillard.

— Ah! E a que horas voltou para casa? Guilfoyle moveu-se intranqüilo.

— Parece que não voltou, sargento.

— Oh! Não voltou? — A réplica de Heath estava cheia de sarcasmo. — Pensei que depois de quebrai o pescoço, podia ter voltado para passar o dia com você.

— O que eu quero dizer, sargento, é que...

— Você quis dizer que Drukker... o pássaro de que você devia cuidar... foi à casa de Dillard às oito horas, voltando você, em seguida, a deitar-se debaixo da árvore para tirar uma soneca... A que horas acordou você?

— Olhe, escute — disse Guilfoyle, irritando-se. — Eu não dormi. Estive cumprindo o meu dever toda a noite. Por que não vi esse moço voltar à casa, não quer dizer que minha vigilância foi abandonada.

— Bem, mas se você não o viu voltar, por que não telefonou dizendo que ele estava passando o fim-de-semana fora da cidade ou outra coisa semelhante?

— Pensei que pudesse ter entrado pela porta principal.

— Pensando outra vez, hem? Seu cérebro não está cansado esta manhã?

— Tenha coração, sargento. Minha obrigação não era seguir Drukker. O senhor recomendou-me que vigiasse a casa e tomasse nota das pessoas que entravam e saíam, e, caso sucedesse qualquer coisa de anormal, nela penetrasse sem mais preâmbulos. Ora, o que se passou foi isto: Drukker encaminhou-se para a casa de Dillard às oito horas. Então, dirigiu o olhar para a casa de Drukker. Pelas nove horas, a cozinheira subiu para seu quarto e acendeu a luz, apagando-a meia hora depois. Então disse a mim mesmo. — "Deitou-se." Pelas dez horas, acenderam-se as luzes do quarto de Drukker...

— O quê?

— Isso mesmo: as luzes se acenderam no quarto de Drukker. E pude ver a sombra de alguém que se movia de um lado para outro. Agora, eu lhe pergunto, sargento: não afirmaria o senhor mesmo que o corcunda havia entrado pela porta da frente?

Heath grunhiu.

— Pode ser que sim — admitiu ele. — Você está certo de que eram dez horas?

— Não consultei o relógio; mas estou aqui para dizer ao senhor que não eram muito mais de dez horas.

— A que horas se apagaram as luzes do quarto de Drukker?

— Não se apagaram. Permaneceram acesas toda a noite. Era um pássaro estranho. Não tinha método, nem obedecia a horas regulares e, duas vezes antes, as luzes estiveram acesas até quase de manhã.

— Isto é compreensível — ouviu-se a voz indolente de Vance. — Ultimamente, tem estado trabalhando até altas horas da noite, no desenvolvimento de um tema difícil. Mas, Guilfoyle, que nos diz da luz no quarto da Sra. Drukker?

— Nada de particular. A velha sempre conserva a luz acesa em seu quarto.

— Havia alguém a noite passada, montando guarda defronte à casa de Drukker? — perguntou Markham a Heath.

— Não depois das seis, senhor. Destacamos um homem para seguir Drukker durante o dia, porém ele termina o seu plantão às seis horas, quando Guilfoyle assume o seu posto na parte dos fundos.

Houve um momento de silêncio. Em seguida, Vance voltou-se para Guilfoyle:

— A que distância estava você da porta de passagem entre as duas casas vizinhas?

O homem fez uma pausa como que para visualizar a cena.

— Digamos doze ou quinze metros.

— E entre você e a passagem estavam a cerca de ferro e alguns galhos de árvore.

— Sim, senhor. A vista estava um tanto cortada, se é isto o que o senhor quer dizer.

— Seria possível que alguém que viesse da casa de Dillard saísse e voltasse pela tal porta, sem ser notado?

— Seguramente — admitiu o detetive — sempre que, por hipótese, o indivíduo fizesse o possível para não ser visto. A noite estava muito escura, devido à cerração, e o ruído proveniente do tráfego no Riverside Drive teria abafado o som de seus passos, bastando um pouco de cautela.

Quando o sargento mandou Guilfoyle voltar para a seção e aguardar ordens, Vance manifestou a sua perplexidade.

— É uma situação para lá de complicada. Drukker foi visitar Dillard às oito e, às dez horas, foi arrojado por cima do muro do parque. Como você observou, a nota que Quinan acaba de mostrar-nos foi postada no correio às onze da noite, o que quer dizer que foi escrita provavelmente "antes do crime". Por conseguinte, o Bispo planejara a sua comédia antecipadamente e preparara a nota para a imprensa. A audácia de tudo isto é surpreendente. Porém, há uma suposição que devemos acentuar: o assassino conhecia os lugares exatos freqüentados por Drukker, entre as oito e dez horas.

— Entendi — disse Markham. — Seu ponto de vista é que o assassino foi e voltou pela passagem entre as duas casas: a de Dillard e a de Drukker.

— Oh! Compreenda! Eu não tenho ponto de vista algum. Indaguei a Guilfoyle sobre a passagem com a intenção de saber somente se Drukker foi o único indivíduo que pôde ser visto sair em direção ao parque. Sendo assim, podíamos admitir como uma hipótese que o assassino havia conseguido evitar de ser visto, indo pela passagem e atravessando o parque.

— Com essa possível rota aberta ao assassino — observou Markham tristemente — não importaria muita coisa constatar quem fora visto sair com Drukker.

— Precisamente. A pessoa que preparou essa farsa pode ter caminhado audaciosamente até ao parque, sob as vistas de um "tira" alerta, ou pode ter corrido furtivamente pela passagem.

Markham meneou a cabeça num assentimento a contragosto.

— O que mais me preocupa, todavia — continuou Van-ce, — é a luz no quarto de Drukker durante toda a noite. Foi acesa à hora em que o pobre homem era atirado para a eternidade. E Guilfoyle disse que pôde divisar alguém andar pelo quarto depois que a luz foi acesa...

Cessou de falar e permaneceu alguns segundos numa atitude de concentração.

— Diga-me, sargento, sabe você se a chave da porta principal da casa de Drukker estava no bolso do seu casaco, quando o encontraram morto?

— Não, senhor, mas posso averiguá-lo imediatamente, Os objetos encontrados em seus bolsos estão guardados até que se faça autópsia.

Heath encaminhou-se para o telefone e um momento depois falava com o sargento de guarda no posto da Rua 63. Seguiram-se vários minutos de espera. Em seguida, resmungou qualquer coisa e largou o fone.

— Ele não levava consigo chave alguma.

— Ah! — Vance deu uma grande tragada em seu cigarro e, lentamente, soltou a fumaça no ar. — Estou começando pensar que o Bispo roubou a chave de Drukker e fez uma visita à sua casa, depois do assassinato. Parece incrível, bem sei, mas, se nos fixamos nas outras circunstâncias, tudo tem mesmo esse aspecto incrível neste caso fantástico.

— Mas, santo Deus, qual pode ter sido o propósito? — protestou Markham, incrèdulamente.

— Não o sabemos ainda. Mas tenho idéia de que, quando entendermos os motivos desses crimes monstruosos, compreenderemos o porquê dessa visita.

Markham, com a fisionomia austera, tomou o seu chapéu.

— É melhor irmos até lá.

Mas Vance não se moveu, permanecendo junto da mesa, parado com ar distraído.

— Markham, — disse ele, parece-me que, antes, devemos visitar a Sra. Drukker. Ontem à noite, houve em sua casa uma tragédia: algo estranho aconteceu lá que necessita de uma explicação. E agora talvez nos revele o segredo guardado em seu espírito. Mais ainda, não teve conhecimento da morte do filho e, com todo o rumor e comentários da vizinhança, chegará alguma palavra aos seus ouvidos dentro de pouco tempo. Receio o resultado do golpe, quando ela se inteirar de tudo. Em verdade, eu me sentiria melhor se levássemos conosco o Dr. Bartead. Que lhe parece se lhe telefonarmos?

Markham concordou e Vance rapidamente explicou ao doutor a situação.

Dirigimo-nos imediatamente à casa do Dr. Barstead e, em seguida, partimos para a casa de Drukker. Fomos recebidos pela Sra. Menzel, cuja fisionomia indicava que ela sabia da morte de Drukker. Vance, depois de dirigir-lhe um rápido olhar, levou-a à sala, longe da escada, e perguntou-lhe em voz baixa:

— A Sra. Drukker já sabe?

— Ainda não — respondeu ela com voz trêmula e assustada. — A Srta. Dillard veio faz uma hora, porém eu lhe disse que a senhora tinha saído. Tive medo de deixá-la subir. Há algo errado... — Ela começou a tremer violentamente.

— Que há de errado, Sra. Menzel? — Vance colocou uma mão tranqüilizadora em seu braço.

— Não sei. Mas, toda a manhã não a vi. Ela não veio para a refeição matinal... E eu tenho medo de ir chamá-la.

— Quando soube você do acidente?

— Cedo. Depois das oito. O jornaleiro me disse. E eu vi aglomeração de povo no Drive.

— Não se assuste — Vance consolou-a. — O médico está conosco aqui e atenderemos a tudo.

Ele voltou ao vestíbulo e subimos. Quando chegamos ao quarto da Sra. Drukker, bateu levemente e, não recebendo resposta, abriu a porta. Não havia ninguém no quarto. A luz noturna estava acesa ainda sobre a mesa. E notei que a cama não tinha sido desfeita.

Sem dizer palavra, Vance retornou ao vestíbulo. Só existiam duas outras portas principais. Sabíamos que uma delas dava para o gabinete de Drukker. Sem titubear, Vance se dirigiu à outra, abrindo-a sem bater. As persianas estavam descidas, porém, como eram brancas e semitransparentes, a luz cinzenta do dia se mesclava com a espectral irradiação amarela do candelabro de velho estilo. A luz que Guilfoyle vira acesa toda a noite ainda não se tinha apagado.

Vance deteve-se no umbral.

— Mãe de Deus! — exclamou o sargento e persignou-se. Aos pés da antiga cama jazia a Sra. Drukker, a fisionomia pálida, os olhos fora das órbitas e as mãos sobre o peito.

Barstead adiantou-se de um salto e inclinou-se sobre ela. Depois de auscultá-la, ergueu-se sacudindo a cabeça lentamente.

— Está morta. Provavelmente, desde ontem à noite. — Outra vez se inclinou sobre o corpo e começou a fazer um exame. — Há anos que ela sofre de nefrite crônica, arteriosclerose e hipertrofia do coração... Algum choque provocou uma dilatação aguda... Sim, diria que morreu quase ao mesmo tempo que Drukker... Cerca das dez horas.

— Morte natural? — perguntou Vance.

— Oh, indubitavelmente. Uma injeção de adrenalina no coração podia tê-la salvo, se fosse aplicada a tempo...

— Nenhum sinal de violência?

— Nenhum. Como lhe disse antes, ela morreu de dilatação do coração ocasionada por um choque. Um caso evidente... típico em todo o sentido.


XVIII

 

O MURO DO PARQUE

 

 

(Sábado, 16 de abril — 11h)

 


Quando o médico estendeu na cama o cadáver da Sra. Drukker e o cobriu com um lençol, descemos para o andar térreo. Barstead retirou-se imediatamente, prometendo enviar ao sargento, antes de uma hora, o atestado de óbito.

— Do ponto de vista científico, é correto falar em morte natural devido ao choque — disse Vance, quando ficamos a sós. — Mas, nosso problema imediato é averiguar a causa desse choque súbito. Evidentemente, está relacionado com a morte de Drukker. Ora, eu penso...

Voltando-se bruscamente, entrou na sala. A Sra. Menzel estava sentada no lugar onde a havíamos deixado, numa atitude de expectativa. Vance dirigiu-se para ela e lhe disse com bondade:

— Sua patroa morreu, ontem à noite, de um ataque de coração. É muito melhor que não tenha sobrevivido a seu filho.

— Gott geb' ihr die ewige Ruh! — murmurou a mulher piedosamente. — Sim, é melhor...

— Morreu às dez horas, mais ou menos. Estava você acordada a essa hora, Greta?

— Estive acordada toda a noite — respondeu ela em voz baixa e cheia de terror.

Vance contemplou-a com os olhos semicerrados.

— Diga-nos o que ouviu.

— Alguém veio aqui ontem à noite!

— Sim, alguém veio perto das dez horas... Entrou pela porta principal.

— Você ouviu-o entrar?

— Não, mas depois que me deitei, ouvi vozes no quarto do Sr. Drukker.

— Era raro ouvir vozes no quarto dele, às dez da noite?

— Mas, não era ele! A voz dele era alta, e a que eu ouvi era baixa e áspera. — A mulher ergueu a vista assustadíssima. — E a outra voz era a da Sra. Drukker... E ela não ia nunca de noite ao quarto do filho!

— Como pôde ouvir tão claro com a porta fechada?

— Meu quarto está precisamente acima do quarto do Sr. Drukker — replicou ela. — E eu estava preocupada com o que se passava. Então me levantei e ouvi tudo de cima da escada.

— Não posso culpar você — disse Vance. — Que foi que ouviu?

— A princípio, parecia que a patroa soluçava, mas logo começou a rir. O homem falava, como se estivesse zangado. Em seguida, eu o ouvi rir também. Depois me pareceu que a senhora rezava... pude ouvir dizer: "Oh, Deus! Oh, Deus!" Aí, o homem disse alguma coisa mais, muito tranqüilo e em voz baixa... Em um instante, pareceu que a senhora estava recitando... um poema...

— Você reconheceria o poema, se o ouvisse outra vez?... Era "Humpty Dumpty estava sentado em um muro; Humpty Dumpty deu uma grande queda...?"

— Bei Gott, das ist's! Era isso mesmo. — O pavor estampou-se-lhe novamente no rosto. — E o Sr. Drukker caiu do muro ontem à noite!

— Ouviu alguma coisa mais, Greta? — A voz despreocupada de Vance interrompeu sua correlação confusa da morte com o verso que tinha ouvido.

Lentamente, ela sacudiu a cabeça.

— Não. Depois tudo ficou quieto.

— Ouviu alguém sair do quarto do Sr. Drukker? Ela moveu assustada a cabeça.

— Uns minutos depois, alguém abriu e fechou a porta, sem fazer ruído, e ouvi passos pelo vestíbulo escuro. Em seguida, as escadas rangeram e a porta principal foi fechada.

— Que fez você depois?

— Escutei durante um momento e voltei para a cama. Mas, não pude dormir...

— Está tudo acabado agora — disse Vance, consolando-a. — Não tem nada a recear. É melhor que vá para o seu quarto e espere lá até que a chamemos.

Com um pouco de relutância, a mulher subiu as escadas.

— Creio que agora — disse Vance — podemos fazer um resumo bastante aproximado do que sucedeu aqui ontem à noite. O assassino tirou a chave do bolso de Drukker e entrou pela porta principal. Sabia que os aposentos da Sra. Drukker ficavam na parte posterior da casa, e, sem dúvida, ele confiava em levar a cabo seu propósito no quarto de Drukker e partir como tinha vindo. Mas, a Sra. Drukker o pressentiu. Pode ser que ela o tivesse associado ao homenzinho que deixara o bispo preto em sua porta, e receasse que seu filho estivesse em perigo. De qualquer modo, encaminhou-se sem demora para o quarto de Drukker. A porta talvez estivesse ligeiramente aberta, e creio que ela viu o intruso, reconhecendo-o. Sobressaltada e cheia de apreensão, entrou no quarto e perguntou-lhe por que estava ali. Ele, com certeza, lhe respondeu que tinha vindo para informá-la da morte de Drukker, o que deu causa aos gemidos e ao riso histérico. Mas, isso era somente uma preliminar da parte dele... um jogo para passar tempo. Estava imaginando como a mataria. Oh, não pode haver dúvida sobre isto. Ele não podia deixar que ela saísse viva daquele quarto. Pode ser que ele lhe dissesse isto em outras palavras... falava como se estivesse aborrecido... E, em seguida, riu-se. Depois, atormentou-a... Talvez lhe tivesse dito toda a verdade, numa explosão de egoísmo desvairado. E ela só sabia dizer: "Oh, Deus!... Oh, Deus!" Ele explicou de que forma empurrou Drukker de cima do muro. E repetiu o "Humpty Dumpty". Creio que sim, pois que melhor auditório poderia apreciar sua obra monstruosa que a própria mãe da vítima? Esta última revelação foi excessiva para o seu espírito hipersensível. Ela repetiu a rima infantil com um acento de horror. E, em seguida, o terror acumulado dilatou seu coração. Ela caiu sobre a cama e o assassino não precisou, assim, selar-lhe os lábios com as suas próprias mãos. Viu o que havia sucedido e saiu tranqüilamente.

Markham inspecionou o quarto todo.

— A parte menos compreensível da tragédia da noite de ontem — disse ele — é o motivo da vinda desse homem até aqui, depois da morte de Drukker.

Vance fumava pensativamente.

— É melhor pedirmos a Arnesson que nos ajude a esclarecer este ponto. É possível que ele nos forneça alguma luz sobre a morte de Drukker.

— Sim, talvez — concordou Heath. Em seguida, depois de revolver o charuto entre os lábios durante uns instantes, acrescentou com mau humor: — Há muitas pessoas em torno de nós, segundo me parece, que nos poderiam dar excelentes explicações.

Markham deteve-se diante do sargento.

— O que devíamos fazer, antes, era averiguar o que sabem seus homens sobre os movimentos das pessoas da vizinhança ontem à noite. Que lhe parece se mandarmos chamá-los e os interrogarmos aqui? A propósito, quantos eram e em que pontos estavam destacados?

— Eram três, senhor, além de Guilfoyle. Emery foi destacado para seguir Pardee; Snitkin estava destacado no Drive esquina da Rua 75 para vigiar a casa de Dillard. E Hennessey na Rua 75 perto da West End Avenue. Todos estão esperando no lugar onde foi encontrado Drukker. Eu os terei aqui num instante.

Ele desapareceu pela porta principal e em menos de cinco minutos reapareceu com os três detetives. Eu os reconheci a todos, pois haviam trabalhado em dois ou mais casos em que Vance havia figurado (1).

(1) Hennessey tinha vigiado o Dr. Drumm na mansão dos Greenes, nos Apartamentos Narcoss, no caso dos assassinatos dos Greenes. Snitkin também tinha tomado parte na investigação do caso dos Greenes e desempenhou um papel menor nos casos Benson e da Canária. E Emery foi o detetive que encontrou os tocos de cigarros debaixo da lenha da lareira, no living de Alvin Benson.


Markham interrogou primeiro Snitkin por ser ele o que provavelmente pudesse fornecer informações que se relacionassem diretamente com o caso da noite anterior. Os seguintes detalhes foram conhecidos em virtude de seus informes:

 

Pardee tinha saído de sua casa às 6:30, dirigindo-se diretamente para a casa de Dillard. Às 8:30, Belle Dillard, em traje de soirée, tomou um táxi que subiu a West End Avenue. (Arnesson saiu com ela e a ajudou a tomar o carro, porém logo depois voltou para a casa.)


Às 9:15, o professor Dillard e Drukker saíram da casa do primeiro, caminhando lentamente para o Riverside Drive. Atravessaram o Drive pela Rua 74 e voltaram pelo caminho em forma de ferradura.


Às 9:30, Pardee saiu da casa de Dillard, encaminhando-se para o Drive e tomando a direção do centro da cidade.


Pouco depois das dez, o professor Dillard voltou sozinho para a casa, cruzando de novo o Drive pela Rua 74.


Às 10:20, Pardee retornou à casa vindo da mesma direção que havia tomado antes.


Belle Dillard regressou à casa numa limusine cheia de jovens, aos trinta minutos depois da meia-noite.


Hennessey foi interrogado em seguida, mas suas informações apenas reforçaram as de Snitkin. Ninguém se havia aproximado da casa de Dillard pela West End Avenue. E nada de caráter suspeito se havia passado ali.

Markham voltou em seguida a sua atenção para Emery o qual informou que, segundo Santos, a quem tinha substituído às seis horas, Pardee passara as primeiras horas da tarde no Clube de Xadrez de Manhattan, voltando à casa cerca das quatro horas.

— Depois, como disseram Snitkin e Hennessey — continuou Emery — foi à casa de Dillard às seis horas e trinta, permanecendo lá até às 9:30. Quando saiu, seguiu-o a uns cinqüenta metros de distância. Caminhou pelo Drive até à Rua 79, atravessou a parte superior do parque e passeou ao redor do grande tufo de arbustos, passando pelas rochas e encaminhando-se para o Iate Clube...

— Tomou o caminho onde Sprigg foi alvejado? — perguntou Vance.

— Teve de tomá-lo, pois não existe outro caminho por ali, a não ser que se vá pelo Drive.

— Até onde foi?

— Ele se deteve no lugar preciso onde Sprigg foi assassinado. Sem demora, voltou pelo mesmo caminho de antes e penetrou no pequeno parque do playground, no lado que dá para a Rua 79. Caminhou lentamente pelo passeio, debaixo das árvores, ao longo do caminho em forma de ferradura, e ao passar por cima do muro sob a fonte de água para beber, encontrou o professor Dillard e o corcunda apoiado no parapeito e conversando...

— Você disse que ele encontrou o professor Dillard e Drukker no mesmo lugar em que este último caiu do muro? — Markham inclinou-se para diante, esperançado.

— Sim, senhor. Pardee se deteve com eles e eu naturalmente prossegui o meu caminho. Ao passar diante deles, ouvi que o corcunda dizia: "Por que não joga xadrez esta noite?" E me pareceu que ele estava aborrecido com Pardee por este ter-se detido, dando-lhe a entender que a sua presença ali era demais. Mas, de qualquer modo, segui pelo muro até chegar à Rua 74, onde havia um grupo de árvores para ocultar-me...

— Pôde desse lugar ver bem Pardee e Drukker? — interrompeu-o Markham.

— Bem, para dizer a verdade, não podia vê-los. Àquela hora, a névoa era muito espessa e, além do mais, naquela parte do passeio onde estavam confabulando, não havia luz alguma. Mas, imaginando que Pardee se separasse logo, esperei por ele.

— Isso devia ter sido perto das dez horas.

— Cerca das dez e um quarto, diria eu.

— Havia alguém no passeio àquela hora?

— Não vi ninguém. A cerração deveria ter afugentado os passeantes. E a noite estava muito fria. E porque ali não houvesse ninguém, arrisquei-me a ir até onde fui. Pardee não é tolo e eu observei que ele me olhava algumas vezes como se suspeitasse de que eu o seguia.

— Quanto tempo transcorreu até que você voltasse a pôr-se em contacto com ele?

Emery mudou de posição.

— Minha atuação não foi tão boa na noite passada — confessou ele com um débil sorriso. — Pardee devia ter voltado por onde veio, atravessando de novo o Drive pela Rua 79. Ao cabo de meia hora, mais ou menos, eu o vi dirigindo-se para o prédio de apartamentos, na esquina da Rua 75.

— Mas, — objetou Vance, — se você esteve na entrada do parque, na Rua 74, até às 10:15, devia ter visto o professor Dillard passar perto de você. Ele voltou para casa, cerca das dez horas, por esse caminho.

— Creio que o vi. Fazia vinte minutos que esperava por Pardee, quando o professor, caminhando só atravessou o Drive, entrando em sua casa. Eu, naturalmente, acreditei que o corcunda e Pardee tinham ficado conversando... por isso, me preocupei em ver onde estavam.

— Então, segundo penso, quinze minutos depois de ter o professor Dillard passado a seu lado, você viu Pardee que voltava pelo Drive em direção oposta.

— Isto mesmo, senhor. E, em seguida, voltei a ocupar o meu posto na Rua 75.

— Você dá a entender, Emery, — disse gravemente Markham — que foi durante o tempo que esteve esperando na Rua 74 que Drukker caiu do muro.

— Sim, mas o senhor não me culpa, não é verdade? Vigiar um homem numa noite de cerração, num lugar descampado, quando não há ninguém ao redor para despistar, não é tarefa fácil. É preciso dissimular e ser um tanto audaz se não quiser ser descoberto.

— Compreendo a sua dificuldade — disse Markham — e não o estou criticando.

O sargento despediu os três detetives mal-humoradamente. Via-se que não estava satisfeito com as suas informações.

— Quanto mais longe vamos — queixou-se — tanto mais confuso se torna o caso.

— Sursum corda, sargento — exclamou Vance. — Que nenhum negro desânimo tome conta de você. Quando tivermos o depoimento de Pardee e do professor sobre o caso, sobre o que se deu no espaço de tempo em que Emery esteve esperando debaixo das árvores da Rua 74, poderemos reunir algumas circunstâncias interessantes.

Enquanto Vance falava, entrou Belle Dillard no vestíbulo vinda da parte posterior da casa. Divisou-nos na sala e veio até nós imediatamente.

— Onde está Lady Mae? — perguntou ela com voz emocionada. — Estive aqui faz uma hora e Greta me disse que ela havia saído. E agora ela não está no seu quarto.

Vance levantou-se e deu-lhe uma cadeira.

— A Sra. Drukker morreu a noite passada de um ataque de coração. Quando você esteve anteriormente aqui, a Sra. Menzel teve medo de deixá-la subir.

A moça sentou-se silenciosa por algum tempo. Em seguida, as lágrimas lhe afluíram aos olhos.

— Talvez tenha sabido do terrível acidente ocorrido com Drukker.

— É possível. Mas não está muito claro o que sucedeu aqui a noite passada. O Dr. Barstead pensa que a Sra. Drukker morreu cerca das dez horas.

— Quase ao mesmo tempo em que morreu Adolph — murmurou ela. — Parece demasiado terrível... Pyne informou-me do acidente quando eu desci para o café esta manhã. Não se falava de outra coisa na vizinhança; e eu vim imediatamente para ficar com Lady Mae. Mas Greta disseme que ela tinha saído, e eu não sabia o que pensar. Há alguma coisa muito estranha nesta morte de Adolph...

— Que quer dizer com isso, Srta. Dillard? — Vance permanecia de pé junto à janela, observando-a discretamente.

— Eu... não sei... o que quero dizer — contestou ela titubeando. — Mas, ontem mesmo à tarde, Lady Mae falou-me de Adolph e do... muro.

— Oh, deveras? — O tom de voz de Vance era mais indolente que de costume, mas todos os nervos de seu corpo, eu o sabia, estavam vigilantes.

— Em meu caminho para a quadra de tênis — continuou a jovem em voz baixa e tranqüila — caminhava com Lady Mae através do caminho de cavaleiros acima do playground. Ela, amiúde, ia ali para ver Adolph brincar com as crianças. Durante um largo tempo, permanecemos ali apoiadas no muro. Um grupo de crianças rodeava Adolph. Este tinha um aeroplano de brinquedo e mostrava-lhes como podia voar. E os garotos olhavam-no como se fosse um deles. Não o consideravam como um homem. Lady Mae estava muito feliz e se orgulhava dele. Olhava-o com olhos brilhantes e, então, disse-me: "Ele é corcunda, Belle, e eles não têm medo dele. Chamam-no Humpty Dumpty... É o seu velho amigo do livro de contos. Meu pobre Humpty Dumpty! A culpa foi minha por tê-lo deixado cair, quando era pequeno..." — A voz da jovem ficou embargada e ela levou o lenço aos olhos.

— Então, ela disse a você que os meninos chamavam Drukker de Humpty Dumpty. — Vance lentamente procurou em seu bolso a cigarreira.

Ela confirmou com um movimento da cabeça e, um momento depois, levantou-a como forçando-a a encarar algo que temia.

— Sim! E isto é que foi estranho, porque logo depois ela foi possuída de um tremor e se retirou do muro. Perguntei-lhe o que tinha, e ela disseme numa voz horrorizada: "Suponha, Belle, suponha que Adolph caísse deste muro... como caiu o verdadeiro Humpty Dumpty!" Eu mesma tive medo; mas forcei um sorriso e disselhe que era tolice pensar em semelhante coisa. Isto não adiantou nada. Sacudiu a cabeça e me encarou de um modo apavorante. "Não é loucura", disseme. "Não mataram Cock Robin com um arco e uma flecha? E não mataram John Sprigg com uma bala de um pequeno revólver... aqui em Nova York?" — A jovem dirigiu-nos um olhar cheio de terror. — E assim aconteceu, não?... Como ela havia previsto.

— E verdade, aconteceu assim — disse Vance, meneando a cabeça. — Mas, não devemos ser muito crédulos a respeito disso. A imaginação da Sra. Drukker era anormal. Todas as formas de conjeturas disparatadas atravessavam o seu espírito torturado. E com estas outras duas mortes de personagens infantis tão vivas em sua memória não é estranho que ela tivesse transformado a alcunha que os meninos puseram em seu filho, numa especulação trágica dessa espécie. O fato de ele ter morrido da forma que ela temia não passa de coincidência.

Neste ponto, fez uma pausa e deu uma longa tragada em seu cigarro.

— Diga-me, Srta. Dillard — perguntou, em seguida, displicentemente — repetiu sua conversa com a Sra. Drukker, por acaso, diante de outra pessoa, ontem?

A jovem mirou-o com certa surpresa antes de responder.

— Mencionei-a ontem à noite, quando ceávamos. Toda a tarde estive preocupada e... não sei... mas não quis guardá-la comigo.

— Fizeram comentários a respeito?

— Titio me disse que eu não devia passar muito tempo na companhia de Lady Mae, pois era uma mulher enferma e anormal. Disse que a situação era muito trágica, porém que não havia necessidade de eu compartilhar os seus sofrimentos. O Sr. Pardee concordou com o que meu tio disse. Mostrou-se compassivo e perguntou se não havia um modo de modificar a condição mental de Lady Mae.

— E o Sr. Arnesson?

— Oh, Sigurd nunca leva nada a sério. Riu-se como se se tratasse de uma pilhéria. E tudo o que disse foi simplesmente isto: "Seria uma decepção se Adolph se despenhasse antes de ter conseguido desenvolver seu novo problema dos quanta."

— E, a propósito, o Sr. Arnesson está em casa? — perguntou Vance. — Queremos interrogá-lo sobre as combinações necessárias relativas aos Drukkers.

— Foi à Universidade de manhã cedo, porém voltará antes do almoço. Estou certa de que atenderá a tudo. Éramos os únicos amigos que Lady Mae e Adolph possuíam. Eu me encarregarei de tudo e providenciarei para que Greta ponha a casa em ordem.

Alguns minutos mais tarde, deixamo-la e fomos entrevistar o professor Dillard.


XIX

 

O CADERNO VERMELHO

 

 

(Sábado, 16 de abril — meio-dia)

 


Quando entramos, ao meio-dia, na biblioteca, o professor encontrava-se visivelmente perturbado. Estava sentado em uma poltrona, de costas para a janela. Sobre a mesa, junto a ele, havia uma garrafa de seu precioso vinho do Porto.

— Estava à sua espera Markham — disse ele antes que tivéssemos tempo de falar. — Não há necessidade de dissimular. A morte de Drukker não foi um acidente. Admitirei que me senti inclinado a deixar de lado as insanas complicações oriundas das mortes de Robin e de Sprigg; porém, no momento em que Pyne relatou as circunstâncias da queda de Drukker, verifiquei que havia um desígnio oculto atrás dessas mortes: as probabilidades de que fossem acidentais seriam incalculáveis. Você pensa como eu, do contrário não estaria aqui.

— Exatamente — respondeu Markham, sentado em frente ao professor. — Estamos diante de um problema terrível. Mais ainda, a Sra. Drukker morreu de um ataque do coração, a noite passada, quase ao mesmo tempo em que seu filho era morto.

— Pelo menos — replicou o professor depois de uma pausa — isso pode-se considerar uma graça. Foi melhor não ter sobrevivido... Inquestionavelmente sua mente entraria em colapso. — Levantou a vista e disse: — Em que posso ajudar?

— Provavelmente o senhor terá sido a última pessoa, com exceção do assassino, que viu Drukker ainda vivo e gostaríamos de saber tudo o que o senhor pudesse dizer-nos acerca do que sucedeu à noite passada.

O professor Dillard acenou com a cabeça, concordando.

— Drukker veio aqui depois do jantar... mais ou menos às oito horas, diria eu. Pardee tinha jantado conosco. Ao encontrar-se com ele, Drukker sentiu-se aborrecido... na realidade, mostrou-se abertamente hostil. Arnesson repreendeu-o, gentilmente, pela sua irascibilidade, coisa que o irritou ainda mais. E, sabendo que Drukker estava ansioso por tratar comigo de um problema, sugeri, por fim, que ele e eu passeássemos pelo parque...

— Os senhores não estiveram lá muito tempo — sugeriu Markham.

— Não. Um episódio desagradável aconteceu. Íamos pelo caminho de cavaleiros, até próximo ao lugar, onde segundo me consta, foi morto o pobre Adolph. Não havia transcorrido meia hora ainda quando Pardee se aproximou de nós. Ele se deteve a falar conosco, porém a hostilidade de Drukker era tal que Pardee resolveu retirar-se pelo mesmo caminho por que havia vindo. Drukker estava muito nervoso e propus-lhe que abandonássemos a discussão por uns momentos. Além disso, havia uma cerração úmida e eu comecei a sentir dores nas pernas. Drukker, repentinamente, ficou de mau humor e disse que não tinha desejo de retirar-se ainda. Assim, deixei-o só, junto ao muro, e voltei para casa.

— Relatou o episódio a Arnesson?

— Quando voltei, não o vi. Imagino que já se tinha deitado.

Mais tarde, quando nos levantamos para partir, Vance perguntou, displicentemente:

— O senhor pode-nos dizer onde está guardada a chave da porta da passagem?

— Não sei, senhor — replicou o professor, irritado, mas acrescentou num tom de voz mais conciliador: — Todavia, agora me lembro, antes estava pendurada num prego na porta da sala do clube.

Da casa do professor Dillard fomos diretamente à casa de Pardee, sendo recebidos em seguida em seu gabinete de estudo. Suas maneiras eram frias e distintas. Mesmo depois que nos sentamos, ele permaneceu de pé junto à janela, olhando-nos com uma expressão nada cordial.

— Sabe, Pardee — perguntou Markham, — que Drukker caiu do muro do parque, ontem à noite, às dez horas... logo depois que você parou para falar-lhe?

— Esta manhã tive conhecimento do acidente.

A palidez do homem tornou-se mais acentuada e ele começou a brincar nervosamente com a corrente do relógio.

— E muito triste — acrescentou. Seus olhos pousaram apàticamente durante uns minutos sobre Markham. — Interrogou o professor Dillard? Ele estava com Drukker...

— Sim, sim. Estamos vindo da casa do professor — interrompeu Vance. — E lá soubemos que houve ontem à noite uma atmosfera de hostilidade entre você e Drukker.

Pardee caminhou lentamente em direção à mesa, sentando-se bruscamente.

— Drukker estava aborrecido não sei com que, ao encontrar-me em casa de Dillard, depois do jantar. Não teve a prudência de ocultar seu mal-estar e criou assim uma situação um tanto incômoda. Porém, conhecendo-o como eu o conhecia, tratei de não dar grande importância ao incidente. Em seguida, o professor Dillard levou-o a passear.

— Você não permaneceu muito tempo na casa depois disso — observou Vance displicentemente.

— Não; uns quinze minutos, mais ou menos, Arnesson estava cansado e desejava deitar-se, então eu também resolvi sair, para passear. Ao regressar, passei pelo caminho de cavaleiros, em vez de vir pelo Drive e dei com o professor Dillard e Drukker, que conversavam junto ao muro. Não desejando passar por grosseiro, detive-me com eles um momento; porém, Drukker estava com um mau humor insuportável e fez vários comentários escarninhos. Retirei-me e me dirigi à Rua 79, atravessei o Drive e cheguei a casa.

— E não se deteve nem um momento no caminho?

— Sentei-me a fumar um cigarro, perto da entrada Rua 79 — foi a resposta de Pardee.

Durante quase meia hora, Markham e Vance interrogaram Pardee, porém, com resultado negativo. Ao sairmos para a rua, Arnesson nos chamou do vestíbulo da casa de Dillard e veio ao nosso encontro.

— Acabo de ouvir tristes novas. Faz um momento que cheguei da Universidade e o professor me disse que os senhores tinham ido interrogar Pardee. Há alguma novidade? — Sem esperar resposta, prosseguiu: — É terrível. Conforme tenho ouvido, toda a família Drukker foi eliminada. Bem, bem. E o pior é que continuam pondo em prática os episódios dos livros infantis... Alguma pista?

— Ariadna não nos favoreceu ainda — respondeu Vance. — É o senhor um embaixador de Creta?

— Quem sabe?... Interrogue.

Vance encaminhou-se para a porta e nos detivemos no campo de exercícios.

— Primeiro vamos à casa de Drukker — disse. — Há muitas coisas a resolver. Suponho que os senhores cuidarão dos assuntos dos Drukkers e se ocuparão do enterro.

Arnesson fez uma careta.

— Aceito! Entretanto, recuso-me desde já a assistir ao enterro. Os enterros são espetáculos obscenos. Mas, Belle e eu cuidaremos de tudo. Lady Mae provavelmente deixou testamento. É necessário averiguar. Mas, onde as mulheres guardam seus testamentos?...

Vance se deteve junto à porta da sala do clube, entrando imediatamente. Depois de observar as molduras da porta, foi reunir-se lá fora conosco.

— A chave da passagem não está ali. A propósito, que sabe você dela, Arnesson?

— Refere-se você à chave daquela porta de madeira?... Não tenho a menor idéia. Eu não uso a passagem... é muito mais simples sair pela porta principal. Creio que ninguém a usa. Faz anos que Belle trancou essa porta; pensou que alguém podia vir do Drive e por curiosidade abrir a porta e teve medo de um acidente enquanto praticava o tiro de flecha. Eu lhe disse que isso não tinha importância... e que bem o mereceria quem tivesse interesse por esse esporte.

Entramos em casa de Drukker pelos fundos. Belle Dillard e a Sra. Menzel se achavam ocupadas na cozinha.

— Olá, irmã! — exclamou Arnesson, dirigindo-se a Belle Dillard. Seu cinismo havia desaparecido. — Os tempos são maus para uma jovem como você. É melhor que você vá para casa. Eu cuidarei de tudo — Dito isto, levou-a por um braço de um modo ao mesmo tempo jocoso e paternal até à porta.

A jovem hesitou e dirigiu um olhar inquiridor a Vance.

— Arnesson tem razão — disse ele, confirmando com um sinal de cabeça. — Por enquanto, ficaremos só nós. Mas, antes de você ir, permita-me uma pergunta: Você guardava sempre a chave da porta de passagem que dá para a sala do clube?

— Sim... sempre. Por quê? Ela não está lá agora? Foi Arnesson quem respondeu com uma ironia chistosa:

— Não está! Desapareceu! Que tragédia! Parece-me que algum excêntrico colecionador de chaves anda por aí. — Quando a jovem se retirou, olhou para Vance. — Mas, em nome de tudo que é sagrado, que relação pode ter com este caso uma chave enferrujada?

— Talvez nenhuma — disse Vance displicentemente. — Vamos até a sala. Estaremos mais à vontade. — Atravessaram o vestíbulo.— Queremos que você nos diga o que sabe acerca dos acontecimentos de ontem à noite.

Arnesson sentou-se numa poltrona junto à janela da frente e tirou do bolso o seu cachimbo.

— De ontem à noite, hem?... Bem, Pardee veio jantar conosco, como costuma fazer todas as quintas-feiras. Depois Drukker mergulhou na especulação da teoria dos quanta para auscultar o professor. A presença de Pardee tirou-lhe a calma. Que gênio, por Deus Não tinha domínio sobre si mesmo. O professor pôs termo ao incidente, levando Drukker para tomar ar. Pardee permaneceu ainda uns quinze minutos, enquanto eu me esforçava para me manter desperto. Em seguida, ele teve a bondade de retirar-se. Examinei uma chusma de provas escritas... e me deitei. — Tomou o cachimbo e perguntou: — Em que pode servir este breve relato para explicar a morte de Drukker?

— Não o explica — disse Vance. — Mas, não é destituído de interesse. Você ouviu quando o professor Dillard chegou?

— Se eu ouvi? — Arnesson soltou uma gargalhada. — Quando ele caminha com o pé atacado de gota, batendo com a bengala no chão e sacudindo o corrimão, não há surdo que não o ouça. E o fato é que, ontem à noite, estava mais barulhento que nunca.

— E que pensa você de tudo isto? — perguntou Vance, depois de uma breve pausa.

— Em relação aos detalhes, estou um tanto no escuro. O professor Dillard não estava exatamente fosforescente. De fato, Drukker caiu no muro como Humpty Dumpty, cerca das dez horas, sendo apenas encontrado na manhã de hoje... Até aqui, tudo muito claro. Porém, por que motivo Lady Mae sucumbiu de uma síncope? Quem, ou qual foi a causa? E como?

— O assassino tomou a chave de Drukker e veio imediatamente aqui, depois do crime. A Sra. Drukker surpreendeu-o no quarto do filho. Segundo a cozinheira, que escutou de cima da escada, produziu-se uma cena. E, durante ela, a Sra. Drukker faleceu de uma síncope cardíaca.

— Evitando ao cavalheiro o incômodo de assassiná-la.

— Isto parece muito claro — concordou Vance. — Mas o motivo da visita do criminoso a esta casa não o é. Pode você sugerir alguma explicação?

Arnesson lançou umas baforadas de fumo, pensativamente.

— É incompreensível — murmurou por fim. — Drukker não possuía objeto de valor, nem documentos comprometedores... Era um tipo direito... Incapaz de tomar parte em negócios sujos... Não vejo motivo algum para que alguém tivesse interesse em devassar o seu quarto.

Vance recostou-se na cadeira e pareceu não dar importância.

— Que teoria é essa dos quanta que tanto preocupava Drukker?

— Ah! Algo soberbo! — Arnesson se animou. — Estava em caminho de conciliar a teoria de Einstein-Bohr sobre a irradiação com os fatores da interferência e de vencer as inconsistências inerentes à hipótese de Einstein. Sua investigação o havia levado ao abandono da coordenação causai tempo-espaço, do fenômeno atômico, e à sua substituição por uma descrição estatística. Teria revolucionado a Física... teria ficado famoso. É uma pena que ele tenha desaparecido, antes de haver coordenado todos os seus dados.

— Você sabe, por acaso, em que lugar Drukker guardava os registros dos seus cálculos?

— Em um caderno de folhas soltas, todas tabuladas e organizadas em índice. Era um homem metódico e correto em tudo. Sua própria caligrafia era como uma lâmina gravada.

Então, você sabe como era o caderno?

— Tinha que sabê-lo. Ele o mostrou muitas vezes a mim. Capa de couro flexível vermelha... páginas finas e amarelas... dois ou três clips em todas as folhas, prendendo anotações... seu nome estampado em ouro, em letras grandes, no frontispício... Pobre diabo! Sic transit...

— Onde poderia estar agora esse caderno?

— Em um dos lugares seguintes: na gaveta de sua mesa no gabinete de estudo, ou na escrivaninha de seu quarto. Durante o dia, trabalhava no gabinete de estudo, mas aí permanecia noite e dia, quando estava interessado em algum problema. Conservava em seu quarto uma escrivaninha, onde guardava seus registros correntes, antes de se retirar, a fim de poder manuseá-los durante a noite, quando lhe surgisse alguma inspiração. De manhã, voltava para o gabinete de estudo. Era uma máquina regular.

Vance, enquanto Arnesson falava indolentemente olhava pela janela. A impressão era de que ele apenas escutava a descrição dos hábitos de Drukker; porém, em seguida, voltando-se, fixou em Arnesson um olhar demorado.

— Diga-me — disse ele. — Ser-lhe-ia incômodo subir e trazer o caderno de Drukker? Tenha a bondade de procurar em ambos os lugares no gabinete de estudo e no quarto.

Julguei observar em Arnesson uma dúvida quase imperceptível, porém ele se ergueu imediatamente.

— Boa idéia. É um documento demasiado valioso para permanecer aqui. — E saiu da sala.

Markham começou a passear e Heath revelou seu nervosismo, chupando o charuto com mais energia. Na saleta, enquanto esperávamos Arnesson, a tensão era grande. Cada um de nós estava em um estado de expectativa intensa, embora o que esperávamos ou temíamos fosse algo difícil de definir. Em menos de dez minutos, Arnesson reapareceu. Encolheu os ombros e mostrou as mãos vazias.

— Desapareceu! — anunciou. Procurei em todos os lugares mais prováveis... Não pude encontrá-lo. — Deixou-se cair em uma poltrona e tornou a acender o cachimbo. — Não posso compreender... talvez ele o tenha escondido.

— Talvez — murmurou Vance.


XX

 

NÊMESIS

 

(Sábado, 16 de abril — 13h)

 

Passava das treze horas quando Markham, Vance e eu nos dirigimos ao Club Stuyvesant. Heath permaneceu na casa de Drukker, para fazer as investigações habituais, preparar o seu relatório e tratar com os repórteres que não tardariam a ir para lá.

Markham tinha uma conferência com o comissário de polícia às três horas; e depois do jantar Vance e eu caminhamos pela galeria interna de Stlegliez e passamos uma hora na exposição de motivos florais de Geórgia O'Keeffe. Mais tarde, fomos ao Aeolian Hall e ouvimos o Quarteto de Debussy em sol menor. Havia algumas aquarelas de Cézanne nas galerias de Monstros; porém, quando rompíamos caminho através do tráfego do anoitecer na Quinta Avenida, a luz começava a declinar e Vance ordenou ao motorista que nos deixasse no Stuyvesant, onde nos reunimos com Markham para o chá.

— Sinto-me tão jovem, tão simples, tão inocente — disse Vance, queixando-se lugubremente. — Tantas coisas têm acontecido e são tão engenhosamente manipuladas que eu não me posso aperceber delas. É muito desconcertante, muito confuso. Não me agrada isso... Não me agrada em absoluto. É por demais exaustivo.

Suspirou tristemente e sorveu seu chá.

— Suas atribulações me deixam frio — replicou Markham. — Provavelmente passou a tarde inspecionando arcabuzes e pistolas no Museu Metropolitano. Se você tivesse de passar pelo que eu passei...

— Ora, não se aborreça — respondeu Vance. — No mundo há muita emoção. A paixão não vai resolver este caso. O cérebro é a nossa única esperança. Tenhamos calma e pensemos. — Tornou-se sério. — Markham, isto se aproxima de um crime perfeito. Como uma das grandes combinações de xadrez de Morphy, foi calculado com muita antecipação. Não existem pistas e, mesmo que existissem, nos conduziriam ao erro. E, não obstante... e, não obstante, há algo que procura revelar-se. Sinto isto; mera intuição... Quero dizer nervos. Há uma voz inarticulada que precisa falar e não pode. Por várias vezes, senti a presença de uma força que luta como um fantasma invisível que procura pôr-se em contato, sem revelar sua identidade.

Markham deixou escapar um suspiro exasperado.

— Muito útil. Aconselha você que chamemos um médium?

— Há alguma coisa que temos omitido — continuou Vance, sem dar atenção ao sarcasmo de Markham. — O caso é um enigma e a chave está em alguma parte perto de nós, mas não a reconhecemos. Palavra de honra, é bastante incômodo... Tenhamos ordem. Lucidez... eis o nosso desideratum. Primeiro, Robin e assassinado. Depois, cai Sprigg com um balaço. Em seguida, a Sra. Drukker é atemorizada por um bispo negro. Depois disto, Drukker é atirado de cima de um muro. Quatro episódios distintos na obra fanática do assassino. Três foram planejados cuidadosamente. Um — a colocação do bispo preto na porta do quarto da Sra. Drukker — foi forçado pelas circunstâncias e, por conseguinte, havia sido decidido sem preparação...

— Esclareça seu raciocínio neste ponto.

— Oh, meu querido amigo! O portador do bispo preto estava evidentemente atuando em defesa própria. Um perigo inesperado surgiu ao longo de sua linha de ação e escolheu esse meio para conjurá-lo. Justamente antes da morte de Robin, Drukker saiu da sala do clube e instalou-se no caramanchão, donde podia ver a referida sala pela janela dos fundos. Um pouco mais tarde, viu alguém falando com Robin na sala. Voltou para sua casa e, nesse momento, o corpo de Robin era arrojado para fora. A Sra. Drukker viu e talvez seu filho também tenha visto. Ela gritou... muito natural, não? Drukker ouviu o grito e nos falou dele, num esforço para estabelecer um álibi para si, quando o informamos de que Robin tinha sido assassinado. Assim o assassino se inteirou de que a Sra. Drukker tinha visto algo... Quanto, não o sabia; porém, não se queria expor a perigos, foi ao seu quarto, à meia-noite, para fazê-la calar-se e levou o bispo para deixá-lo como sinal junto ao cadáver. Mas encontrou a porta fechada à chave e deixou o bispo do lado de fora, como para adverti-la de que nada dissesse, sob pena de morte. Não sabia que a pobre mulher suspeitava de seu próprio filho.

— Mas, por que Drukker não nos disse quem tinha visto na sala do clube com Robin?

— Só podemos supor que a pessoa fosse alguém que ele não podia conceber como culpável. E estou quase certo de que ele referiu o fato a essa pessoa, cavando assim a sua própria sepultura.

— Suponho que a sua teoria esteja certa, aonde nos leva?

— Ao episódio que não foi cuidadosamente preparado por antecipação. E, quando não houve preparação para um ato secreto, há seguramente um ponto fraco em um ou outro detalhe. Agora, peço-lhe que observe que, no momento de cada um dos assassinatos, qualquer das diversas pessoas no drama podia estar presente. Nenhum álibi havia. Isto, provavelmente, estava calculado inteligentemente: o assassino escolheu uma hora em que todos os atores estavam, por assim dizer, esperando nos bastidores. Mas aquela visita da meia-noite! Ah! Isso é um assunto diferente. Não houve tempo para elaborar uma série perfeita de circunstâncias... a ameaça era demasiado iminente. E qual foi o resultado? Drukker e o professor Dillard eram aparentemente as únicas pessoas à mão, à meia-noite. Arnesson e Belle Dillard estavam ceando no Plaza e não voltaram para casa senão aos trinta minutos depois da meia-noite. Pardee estava engalfinhado com Rubinstein sobre um tabuleiro de xadrez desde as onze até à uma. Drukker está agora naturalmente eliminado... Qual é a resposta?

— Eu podia lembrar-lhe — replicou Markham acremente — que os depoimentos dos outros não foram completamente contraditados.

— Bem, bem, você podia, não? — manifestou Vance, recostando-se indolentemente e lançando para o ar uma larga e regular série de anéis de fumaça. De súbito, seu corpo se estirou e com meticuloso cuidado inclinou-se para diante e tirou o cigarro. Então mirou o relógio e pôs-se de pé. Fitou Markham com um olhar burlesco.

— Vamos, meu velho. Não são ainda seis. Eis aqui o ponto em que Arnesson nos pode ser útil.

— Que há agora? — perguntou Markham.

— Sua própria sugestão — replicou Vance, tomando-o pelo braço e conduzindo-o para a porta. — Vamos pôr à prova o depoimento de Pardee.

Meia hora depois, estávamos sentados com o professor e Arnesson na biblioteca de Dillard.

— Vimos em uma missão um tanto inusitada — explicou Vance. — Mas, pode ser de importância vital para a nossa investigação. — Puxou a carteira e tirou dela uma folha de papel. — Eis aqui um documento, Arnesson, que eu desejava que você examinasse. É uma cópia da folha oficial de escores da partida de xadrez entre Pardee e Rubinstein. Muito interessante. Manuseei-a um pouco, porém gostaria de ter sua análise de perito. A primeira parte do jogo é bastante comum mas depois da suspensão me agrada muito.

Arnesson segurou o papel e estudou-o com céptica satisfação.

— Ah! O inglório recorde do Waterloo de Pardee, hem?

— Que significa isso, Markham? — perguntou o professor Dillard com desdém. — Espera você descobrir um assassino malbaratando o tempo em uma partida de xadrez?

— O Sr. Vance esperava poder saber algo com isto.

— Tolices! — O professor encheu outro copo de vinho do Porto e, abrindo um livro, não se preocupou mais conosco.

Arnesson estava absorto com as anotações do escore do xadrez.

— Alguma coisa um tanto estranha há aqui — murmurou. — O desvio do tempo. Vejamos... A folha de escore mostra que até o momento da suspensão, as brancas, isto é, Pardee, haviam jogado uma hora e quarenta e cinco minutos, e as negras, ou Rubinstein, uma hora e cinqüenta e oito minutos. Até aqui, tudo vai bem. Trinta movimentos. Tudo em ordem. Porém o tempo, no final da partida, quando Pardee desistiu, deu duas horas e trinta minutos para as brancas e três horas e trinta minutos para as negras, o que quer dizer que, durante a segunda sessão da partida, as brancas consumiram só quarenta e cinco minutos, enquanto as negras tomaram uma hora e trinta e quatro minutos. Vance meneou a cabeça.

— Exatamente. Houve duas horas e dezenove minutos de jogo começando às onze, que levou a partida até à uma e dezenove da madrugada. E as jogadas de Rubinstein durante este tempo levaram quarenta e nove minutos mais que as de Pardee. Você pode saber o que sucedeu?

Arnesson cerrou os lábios e olhou de soslaio para as anotações.

— Não está claro. Necessitaria de tempo.

— Suponha-se — sugeriu Vance — que puséssemos o jogo na posição em que ficou ao suspender-se a partida, e o jogássemos. Gostaria de conhecer sua opinião sobre as táticas.

Arnesson levantou-se de um salto e foi à mesinha do xadrez que estava no canto.

— Boa idéia — disse, esvaziando a caixa das peças. — Vejamos agora... Oh! falta um bispo negro. A propósito, quando o conseguirei de volta? — Dirigiu a Vance um olhar queixoso. — Não importa. Não é necessário. Um bispo negro foi roubado. — Então procedeu ao arranjo das peças de acordo com a posição do jogo no momento da suspensão. Em seguida sentou-se e estudou a defesa.

— A mim não parece que a posição fosse tão desfavorável para Pardee — aventurou Vance.

— Tampouco a mim; não posso compreender como perdeu a partida.

Depois de um momento, Arnesson referiu-se à folha de escores. — Desenvolvamos a jogada e vejamos onde está a falha. — Fez meia dúzia de jogadas; então, depois de alguns minutos de estudo resmungou: — Ah! Isto sim é que é profundo da parte de Rubinstein. Combinação surpreendente. Foi aqui que ele começou a trabalhar. Sutil, por Deus! Pelo que vejo, Rubinstein levou muito tempo para planejá-la. É lento, porém perseverante.

— É possível — sugeriu Vance — que a elaboração dessa combinação explique a discrepância quanto ao tempo entre as pretas e as brancas?

— Oh, indubitavelmente. Rubinstein devia estar em boa forma para não ter tornado ainda maior a discrepância. Planejando a combinação, levou quarenta e cinco minutos... ou então eu não entendo nada.

— A que horas diria você — perguntou Vance como por descuido — que Rubinstein usou esses quarenta e cinco minutos?

— Bem, vejamos. A partida começou às onze: seis jogadas antes que a combinação começasse... Oh, diga, entre ·as onze e meia e doze e meia... Sim, justamente por aí. Trinta jogadas antes que fosse suspenso; seis jogadas começando às onze... Isto faz trinta e seis: então na jogada quarenta e quatro Rubinstein moveu seu peão para o bispo-7-xeque, e Pardee abandonou... Sim, o desenvolvimento da combinação ocorreu entre onze e meia e doze e meia.

Vance olhou as peças no tabuleiro e que agora estavam na posição que haviam ocupado no momento da desistência de Pardee (1).

(1) Para benefício do jogador de xadrez que possa estar academicamente interessado, acrescento a posição exata do jogo, quando Pardee abandonou: Brancas — R em DCtsg; Torre em RO8; Peão em DR2 e O2; Negras: R em D5; C em Dct5; Bispo em D6; Peão em Dct7 e DO7.

 

— Por curiosidade — disse tranqüilamente — joguei a partida até o xeque-mate, à noite passada. Diga, Arnesson, você se incomodaria de fazer o mesmo? Gostaria de ouvir seu comentário.

Arnesson estudou a posição cuidadosamente durante uns minutos. Então volveu a cabeça lentamente e levantou a vista para Vance. Um sardônico sorriso espalhou-se em seu rosto.

— Compreendo, por Deus! Que situação! Cinco jogadas para que as negras ganhassem e um final quase inédito em xadrez. Não posso recordar-me de caso semelhante. A última jogada seria Bispo ao Cavalo-7, xeque-mate. Em outras palavras: Pardee foi derrotado pelo bispo negro! Incrível!(2)

(2) As cinco últimas jogadas não verificadas para que as negras fizessem mate, como eu mais tarde as obtive de Vance, eram: — 45. RxP; CtxR. 46 Cxct; P-ct8 (rainha). 47. Cxd; C-D6. 48. C-Rsq; c-07 .49. p-d3. O-Cd7 mate.

 

O professor Dillard largou o livro.

— Que é isto? — exclamou, reunindo-se conosco na mesa de xadrez. — Pardee foi derrotado pelo bispo? — Dirigiu a Vance um olhar sagaz cheio de admiração. — Evidentemente você tinha um bom motivo para investigar essa partida de xadrez. Rogo-lhe que desculpe o temperamento de um velho. — Permaneceu mirando o tabuleiro com uma expressão de tristeza e ao mesmo tempo espanto.

Markham franziu o cenho, denotando profunda perplexidade.

— Você disse que é inusitado um bispo só dar mate? — perguntou ele a Arnesson.

— Nunca sucede... É uma situação quase singular. E que isto sucedesse, entre todos, a Pardee! Incompreensível! — Soltou um riso breve e irônico. — Como você sabe, o bispo vem sendo a bête noire de Pardee há vinte anos... Arruinou a vida do pobre homem. O bispo negro é o símbolo de seus pesares. O Destino, por Deus! É a peça de xadrez que derrotou o gambito Pardee. Bispo a Cavalo-5 sempre arruinou seus cálculos, desqualificou sua teoria favorita... e fez uma burla e um escárnio do trabalho de sua vida. E agora, com uma probabilidade para empatar com o grande Rubinstein, o bispo aparece outra vez e o leva para as trevas.

Uns minutos mais tarde, despedimo-nos e caminhamos até a West End Avenue, onde tomamos um táxi.

— Não é de estranhar, Vance — Comentou Markham enquanto íamos em direção ao centro da cidade — que Pardee se tornasse pálido há poucos dias, quando você disse que o bispo negro estava fazendo das suas à meia-noite. Provavelmente pensou que você o insultava propositadamente, atirando-lhe na face o fracasso de sua vida.

— Talvez... — Vance olhou como em sonho as sombras que se estendiam pela cidade. — É estranho que o bispo venha sendo seu incubo durante todos esses anos. Semelhantes descoroçoamentos periódicos, às vezes afetam os cérebros mais fortes; criam um desejo de vingança contra o mundo.

— É difícil enquadrar Pardee em um papel vingativo — objetou Markham. — Qual era seu ponto de vista acerca da discrepância do tempo entre as jogadas de Pardee e de Rubinstein? Suponha-se que Rubinstein levasse quarenta e cinco minutos mais ou menos para desenvolver sua combinação. A partida não estava terminada depois da uma. Não vejo em que a visita a Arnesson nos tenha proporcionado progresso.

— Isto é porque você não está relacionado com os costumes dos enxadristas. Em uma partida com relógio, nenhum jogador fica sentado à mesa todo o tempo que o adversário pensa em sua jogada. Passeia. Distende seus músculos, sai a tomar ar, fala com as senhoras, alimenta-se e toma água gelada. No Torneio de Mestres do Manhattan Square, no ano passado, havia quatro mesas, não sendo raro ver vazias, às vezes, até três cadeiras. Pardee é um sujeito nervoso. Ele não poderia ficar sentado durante as prolongadas especulações mentais de Rubinstein.

Vance acendeu um cigarro lentamente.

— Markham, a análise desta partida por parte de Arnesson revela o fato de que Pardee dispôs naquela noite de três quartos de hora em torno da meia-noite.


XXI


A MATEMÁTICA E O ASSASSINATO

 

 

(Sábado, 16 de abril — 20h30)

 


Durante o jantar, falou-se muito pouco no caso, porém quando nos instalamos num canto solitário da ante-sala do clube, Markham puxou de novo o assunto.

— Não vejo como uma brecha no álibi de Pardee nos possa ser útil. Complica simplesmente uma situação já de si intolerável.

— Sim — suspirou Vance. — Este mundo é triste e desalentador. Cada passo que damos parece enredar-nos um pouco mais. E o mais surpreendente é que a verdade nos olha de face e nós não podemos vê-la.

— Não existem provas contra ninguém. Nem sequer uma pessoa suspeita, contra cuja culpabilidade a razão não se rebele.

— Eu não diria isso, sabe? É o crime de um matemático num ambiente de matemáticos.

Durante toda a investigação ninguém havia sido indicado como o possível assassino. Todavia, cada um de nós, consigo mesmo, suspeitava de que uma das pessoas com quem tínhamos falado fosse o culpado, e tão espantosa era essas suspeita que instintivamente recusávamos aceitá-la. Desde o princípio, cobrimos os nossos pensamentos e temores com um manto de generalidades.

— Um crime de matemático? — repetiu Markham. — O caso, segundo o meu parecer, é uma série de atos sem sentido cometidos por um louco.

Vance sacudiu a cabeça.

— Nossos criminoso é supersadio, Markham. E seus atos não são sem sentido: são odiosamente lógicos e precisos. É certo que eles foram concebidos com um sombrio e terrível humorismo, com uma atitude tremendamente cínica, porém, em si mesmos, em essência, são exatos e racionais.

Markham olhou para Vance pensativamente.

— Como pode você conciliar estes crimes do folclore infantil com um espírito matemático? — perguntou ele. — De que forma podem ser considerados lógicos? Para mim não são mais que pesadelos sem relação alguma com um cérebro são.

Vance se afundou mais em sua poltrona, fumando durante vários minutos. Em seguida, começou a fazer uma análise do caso, que não só esclareceu a aparente loucura dos crimes, como também colocou todos os sucessos e pessoas que neles intervieram sob um foco uniforme.

A exatidão desta análise foi verificada, de forma trágica e estonteante, antes de decorridos muitos dias. (1)

(1) Evidentemente não posso reproduzir as palavras exatas de Vance, apesar de serem completos os meus apontamentos; porém, enviei-lhe uma prova dos parágrafos seguintes, com um pedido de que os revisasse e os deixasse prontos para serem publicados; assim como estão agora, representam uma paráfrase exata da análise dos fatores psicológicos dos assassinatos do Bispo.


— Para compreender estes crimes — começou dizendo — devemos considerar os valores do matemático, pois todas as suas especulações e cálculos tendem a fazer ressaltar a insignificância relativa deste planeta e a nenhuma importância da vida humana. Considere em primeiro lugar a imensa extensão do campo de ação do matemático. Por um lado, ele procura medir o espaço infinito em termos de parsecs e anos-luz; e por outro o elétron, que é tão infinitamente pequeno que foi preciso inventar a unidade Rutherford equivalente à milionésima parte de um milimícron. Sua visão abrange perspectivas transcendentais, nas quais esta terra e seus habitantes se fundem até quase um ponto imperceptível. Algumas estrelas, tais como Canopus, Arcturus e Betelgeuse, que ele considera simplesmente como unidades pequenas e insignificantes, são muitas vezes maiores que todo o nosso sistema solar. O cálculo de Shapleigh do diâmetro da Via Láctea é de trezentos mil anos-luz; ainda temos de colocar dez mil Vias Lácteas juntas para conseguir o diâmetro do Universo, o que nos dá um conteúdo cúbico cem milhares de vezes maior do que a extensão da observação astronômica. Ou, então, colocando relativamente em termos de massa: o peso do Sol é 324.000 vezes maior que o da Terra; e o peso do Universo é calculado em um trilhão (um milhar de milhares) de sóis... (1) É estranho, então, que pessoas que trabalham com semelhantes grandezas estupendas percam toda noção das proporções terrestres?

(1) Vance usa aqui o sentido inglês de "trilhão" que é a terceira potência de um milhão, oposto ao sistema de numeração americano e francês, que considera um trilhão como um milhão de milhões.

 

Após curta pausa, Vance prosseguiu:

— Mas, essas são cifras elementares... fatos quotidianos. O matemático superior vai muito adiante. Trata de especulações obscuras e aparentemente contraditórias, que a inteligência mediana não pode compreender. Vive num reino onde o tempo, tal como nós o concebemos, não tem significado senão como uma ficção do cérebro e se transforma em uma quarta coordenada do espaço tridimensional, onde a distância tampouco tem significação, a não ser para os pontos vizinhos, desde que há um número infinito de caminhos mais curtos entre dois pontos dados; onde a linguagem de causa e efeito se transforma singelamente numa taquigrafia conveniente para fins explicativos; onde as linhas retas não existem e não são suscetíveis de definição; onde a massa cresce infinitamente quando atinge a velocidade da luz; onde o espaço em si está caracterizado por curvas; onde há infinitos de ordem superior e inferior; onde a lei da gravidade é abolida como força ativa e substituída por uma característica do espaço — concepção que diz que a maçã cai não porque é atraída pela terra, mas porque segue uma linha-mundo, ou geodésica...

"Nesse reino do moderno matemático — continuou Vance — existem as curvas sem tangentes. Nem Newton, nem Leibnitz, nem Bernoulli, sequer sonharam com a possibilidade de uma curva sem tangente, quer dizer, uma função contínua sem um coeficiente diferencial. Por certo, ninguém é capaz de figurar tal contradição: está muito além do poder de imaginação. E todavia, é um lugar-comum da matemática moderna trabalhar com curvas que não têm tangentes. Mais ainda, Pi, aquele velho conhecido de nossos dias escolares que considerávamos imutável, e a proporção entre o diâmetro e a circunferência varia agora conforme o que se mede seja um círculo em descanso ou um círculo em rotação... Aborreço-o com isto?

— Inquestionavelmente — replicou Markham. — Peço, porém, que continue, uma vez que as suas observações estão tomando uma direção terrestres.

— Os conceitos da matemática moderna projetam o indivíduo fora da realidade concreta em uma pura ficção do pensamento e conduzem ao que Einstein chama de "a mais degenerada forma de imaginação" — o individualismo patológico. Silberstein, por exemplo, concebe cinco e até seis dimensões espaciais e especula com habilidade para divisar um acontecimento antes que ele se produza. As conclusões contingentes sobre a concepção do Lúmen de Flammarion — pessoa imaginária que viaja mais rapidamente do que a velocidade da luz e é por conseguinte capaz de experimentar o tempo estendendo-se em uma direção inversa — são em si mesmas suficientes para abalar qualquer ponto de vista natural e são. (1) Porém existe outro homúnculo conceptual ainda mais fantástico do que Lúmen, sob o ponto de vista do pensamento racional. Este ser hipotético pode atravessar todos os mundos ao mesmo tempo com velocidade infinita, de maneira que é capaz de contemplar toda a história da humanidade, num golpe de vista. Desde Alfa Centauro pode ver a Terra como era quatro anos antes; desde a Via Láctea pode vê-la como era há quatro mil anos! E pode também escolher um ponto no espaço de onde possa presenciar a idade glacial e o tempo atual, simultaneamente!...

(1) Lúmen foi inventado pelo astrônomo francês para provar a possibilidade da reversão do tempo; com uma velocidade de 250.000 milhas por segundo, foi concebido remontando no espaço ao final da batalha de Waterloo, recolhendo todos os raios de luz deixados no campo de batalha. Conseguiu uma dianteira gradualmente maior, até que ao cabo de dois dias estava presenciando, não o final, mas o princípio da batalha; e durante esse tempo esteve observando acontecimentos de ordens diversas. Viu projéteis abandonando objetos em que haviam penetrado, e voltarem ao canhão; mortos ressuscitarem e retornarem ao combate. Outra aventura hipotética de Lúmen era saltar à Lua, voltando-se imediatamente e vendo-se a si mesmo saltando de volta da Lua à Terra.

 

Vance afundou-se mais na poltrona:

— Jogar com a simples idéia de infinito é o suficiente para perturbar o espírito do homem mediano. Porém, que é a proposição bem conhecida da Física que diz que não podemos seguir um caminho reto, sempre adiante, no espaço, sem voltar ao nosso ponto de partida? E essa proposição sustenta, numa palavra, que podemos ir diretamente a Sirius e um milhão de vezes mais adiante sem mudar de direção, porém nunca podemos abandonar o universo, voltando afinal ao nosso ponto de partida, pelo lado oposto! Diria você, Markham, que essa idéia conduz ao que nós costumamos chamar um pensamento normal? Porém, por paradoxal e incompreensível que pareça, é quase rudimentar quando a comparamos com outros teoremas avançados da física matemática. Considere, por exemplo, o chamado problema dos gêmeos: um dos gêmeos começa ao nascer uma viagem a Arcturus — com um movimento acelerado num campo de gravidade — e ao voltar descobre que é muito mais moço que o seu irmão. Se, pelo contrário, supusermos que o movimento dos gêmeos é galileano e que por conseguinte viajam com movimento uniforme, um em relação ao outro, então cada gêmeo descobrirá que o seu outro irmão é mais moço do que ele próprio...

"Na verdade — continuou Vance — não são paradoxos da lógica, Markham; paradoxos do sentimento. As matemáticas respondem por eles, lógica e matematicamente. (1) O ponto que desejo apresentar é que as coisas que parecem inconsistentes e ainda absurdas para a inteligência comum são vulgaridades para a inteligência matemática. Um físico-matemático como Einstein anuncia que o diâmetro do espaço — do espaço, compreende? — é de cem milhões de anos-luz, ou seja, setecentos trilhões de milhas, e considera este cálculo como o mais simples. Quando perguntamos o que há além desse diâmetro, a resposta é esta: "Não há mais além: estes limites incluem tudo." Quer dizer: o infinito é finito. Ou como diria o homem de ciência: o espaço não é limitado, porém finito. Medite nisso durante meia hora, Markham, e você terá a sensação de que vai enlouquecer.

(1) Vance me pediu que mencionasse aqui o trabalho escolástico de A. d'Abro, A Evolução do Pensamento Científico, em que há uma excelente discussão dos paradoxos relativos à idéia do espaço-tempo.


Parou de falar para acender um cigarro, após o que prosseguiu:

— O espaço e a matéria... eis aí o terreno especulativo dos matemáticos. Eddington concebe a matéria como uma característica do espaço, um tropeção no nada; enquanto que Weil concebe o espaço como uma característica da matéria; para ele o espaço vazio não tem significação. Assim, o número e o fenômeno de Kant têm relações entre si, trocando-se elementos; e mesmo a filosofia perde todo o significado. Porém, quando chegamos às concepções matemáticas do espaço finito, todas as leis racionais são revogadas. A concepção de De Sitter sobre a forma de espaço é que este tem uma conformação de globo ou de esfera. O espaço de Einstein é cilíndrico e a matéria se aproxima do zero na periferia ou "condição de fronteira". O espaço de Weil, baseado na mecânica de Mach, tem a forma de uma sela de montar... Ora, a que se reduz a natureza, o mundo em que vivemos, a existência humana, quando meditamos sobre tais concepções? Eddington sugere a conclusão de que não há leis naturais, quer dizer, a natureza não está sujeita à lei da razão suficiente. Pobre Schopenhauer!(1) E Bertrand Russell resume os resultados inevitáveis da física moderna, sugerindo que a matéria deve ser interpretada simplesmente como um grupo de ocorrências e que a matéria em si não precisa existir!... Veja você aonde nos conduz tudo isso. Se o mundo é não-causal e não-existente, que é uma simples vida humana ou a vida de uma nação? Ou, no caso em questão, a própria existência?...

(1) A tese de Vance para obter o título de Mestre em Artes, segundo me lembro, versava sobre Veber die Vierfache Wurzel des Satzes von zureichenden Gründen de Schopenhauer.


Vance ergueu a vista e Markham meneou a cabeça, de modo um tanto incrédulo.

— Até agora compreendo, por suposição — disse ele — porém, seu ponto de vista parece vago, para não dizer esotérico.

— É surpreendente — perguntou Vance — que um homem que lida com esses conceitos colossais e incomensuráveis, segundo os quais os indivíduos da sociedade humana são infinitesimais, possa com o tempo perder todo o senso dos valores relativos da terra e chegue a sentir um desprezo enormes pela vida humana? Os assuntos deste mundo, comparativamente insignificantes, chegariam então a ser minúsculas intrusões no macrocosmo de sua consciência. A atitude de semelhante homem chegaria a ser inevitavelmente céptica. No seu íntimo, zombaria de todos os valores humanos e da pequenez das coisas visíveis em torno de si. Talvez houvesse em sua atitude um elemento sadista, pois o cepticismo é uma forma de sadismo...

— Mas o assassinato deliberado, projetado de antemão! — objetou Markham.

— Considere os aspectos psicológicos do caso. Com a pessoa normal, que goza de recreações diariamente, mantém-se um equilíbrio entre as atividades conscientes e as inconscientes; as emoções, por serem constantemente dispersadas, não se podem acumular. Porém, com a pessoa anormal, que passa todo o seu tempo em uma intensa concentração mental e que suprime rigorosamente todas as suas emoções, o relaxamento do subconsciente prepara manifestações violentas, sempre prontas a se desencadearem. Esta larga inibição e aplicação mental prolongada, sem recreio ou repouso de qualquer espécie, causam uma explosão, que não raro, assume a forma de fatos de um horror inexplicável. Nenhum ser humano, por intelectual que seja, pode escapar a esses resultados. O matemático que repudia as leis da natureza é, não obstante, obediente a essas leis.

"Certamente, sua absorção estática nos problemas hiper-físicos só faz aumentar a pressão de suas emoções recalcadas. Uma natureza violentada, a fim de manter seu equilíbrio, produz as fulminações mais grotescas, reações que em seu humor terrível e alegria perversa são o reverso exato da seriedade sombria das impenetráveis teorias matemáticas. O fato de que Sir William Crookes e Sir Ouve Lodge, ambos grandes físicos matemáticos, se apresentem como espíritas confirmados, constitui um fenômeno psicológico análogo.

Vance deu várias baforadas em seu cigarro, e continuou:

— Markham, não é possível fugir aos fatos: estes assassinatos fantásticos e na aparência incríveis foram projetados por um matemático, como desafogos forçados de uma vida de intensa especulação abstrata e de repressão emocional. Preenchem todos os requisitos assinalados: são nítidos e precisos, admiravelmente elaborados com os menores fatores encaixados perfeitamente em seus lugares. Nenhum ponto frouxo, nenhum rastro, e aparentemente nenhum motivo. E, ao lado de uma precisão altamente imaginativa, todas as suas inclinações assinalam, sem erro, uma inteligência sempre mergulhada em concepções obscuras... um devoto da ciência pura, em liberdade de ação...

— Mas, por que aquele humor espantoso? — perguntou Markham. — Como concilia você o período do folclore infantil deles com a sua teoria?

— A existência de impulsos reprimidos — explicou Vance — sempre produz um estado favorável ao humor. Dugas apresenta o humor como uma detente, um relaxamento da tensão. E Bain, seguindo Spencer, chama o humor um alívio da restrição. O campo mais fértil para uma manifestação do humor encontra-se na energia potencial acumulada, o que Freud chama Besetzungsenergie, que a seu tempo exige uma descarga livre. Nestes crimes calcados em motivos infantis temos o matemático reagindo até aos atos frívolos mais fantásticos, a fim de equilibrar suas especulações lógicas supersérias. É como se fosse dizendo cèpticamente: "Olha! Este é o mundo que tu levas tão a sério porque nada sabes do mundo abstrato infinitamente maior. A vida na terra é um jogo de crianças, apenas e suficientemente importante para se fazer um chiste"... E semelhante atitude seria plenamente explicável pela psicologia; pois após qualquer excesso mental por demais prolongado, as reações tomam a forma de reversões, quer dizer, os mais sérios e dignos procurariam uma válvula de escape nos folguedos infantis. Aqui, incidentemente tem você a explicação para o camarada jocoso e prático com seus instintos sádicos...

Mais ainda, todos os sádicos têm um complexo infantil. E a criança é totalmente amoral. Um homem, por conseguinte, que experimente estas regressões psicológicas infantis, está além do bem e do mal. Muitos matemáticos modernos sustentam, todavia, que toda convenção, o dever, a moralidade, o bem, etc, não poderia existir a não ser pela ficção do livre arbítrio. Para eles, a ciência da ética é um campo freqüentado pelos fantasmas conceptuais. E ainda chegam à dúvida desintegrante sobre se a verdade mesma não é simplesmente uma ficção da imaginação... Acrescente a estas considerações o sentido da distorção terrestre e o desprezo pela vida humana, que poderiam facilmente resultar das especulações matemáticas superiores, e eis aí uma perfeita série de condições para o tipo de crimes como os que agora nos ocupam.

Quando Vance terminou de falar, Markham permaneceu em silêncio durante um largo tempo. Finalmente, moveu-se com impaciência.

— Posso compreender — disse ele — como estes crimes podiam adaptar-se a qualquer das pessoas envolvidas neste caso. Porém, com base em seu argumento, como explica você as notas aos jornais?

— O humor deve ser transmitido — respondeu Vance. — "O êxito de um chiste se acha no ouvido daquele que o escuta." Além disso, o impulso para o exibicionismo entra no presente caso.

— Mas o pseudônimo "O Bispo"?

— Ah! Este é um ponto importantíssimo. A razão de ser desta terrível orgia de humor se encontra na assinatura críptica.

Markham se voltou lentamente.

— O enxadrista e o astrônomo preenchem as condições de sua teoria, da mesma forma como o físico-matemático?

— Sim — respondeu Vance. — Desde os tempos de Philidor, Staunton e Kieseritzki, quando o xadrez era como uma bela arte, o jogo transformou-se até quase chegar a ser uma ciência exata. E durante o regime da Capablanca chegou a ser amplamente um assunto de especulações matemática abstrata. Por certo Maroczy, o Dr. Lasker e Vidimar são todos matemáticos bem conhecidos... E o astrônomo, que realmente observa o universo, pode conseguir uma impressão ainda mais intensa da nenhuma importância do mundo de que o físico especulativo. A imaginação corre velozmente através de um telescópio. A simples teoria da existência de vida nos planetas distantes tende a reduzir a vida terrestre a uma consideração secundária. Durante horas, depois que contemplamos Marte, por exemplo, e nos deixamos entreter pela idéia de que seus habitantes ultrapassam em número e em inteligência a nossa população, sentimos dificuldade em nos reajustarmos aos insignificantes assuntos da vida aqui na Terra. Mesmo a simples leitura do livro romântico de Percival Lowell afasta momentaneamente da pessoa imaginativa a consciência da importância de qualquer existência planetária singela...

Aqui houve um prolongado silêncio, após o qual Markham perguntou:

— Por que Pardee levou o bispo preto da casa de Arnesson naquela noite e não do clube, onde não se teria notado a falta?

— Não sabemos o bastante sobre o motivo que o impulsionou, para dar respostas a essa pergunta. Ele pode tê-lo levado com algum propósito deliberado. Mas, que indícios tem você da culpabilidade dele? Todas as suspeitas do mundo não lhe permitiriam tomar qualquer medida contra ele. Ainda que soubéssemos, sem nenhuma dúvida, quem fosse o assassino, não poderíamos... Digo a você, Markham, que estamos enfrentando uma inteligência audaciosa e sagaz... uma inteligência que elabora cada jogada e calcula todas as probabilidades. Nossa única esperança é criar nossa própria evidência, encontrando um ponto fraco na combinação do assassino.

— A primeira coisa que farei amanhã de manhã — declarou Markham sombriamente — é pôr Heath em ação para averiguar o que Pardee fez, naquela noite. Destacarei vinte homens para apurarem o álibi e farei com que interroguem todos os espectadores daquela partida de xadrez e façam averiguações de porta em porta, desde o Clube de Xadrez de Manhattan até à casa de Drukker. Se pudermos encontrar alguém que haja visto Pardee nas vizinhanças da casa de Drukker, cerca da meia-noite, então teremos um elemento de suspeita, de prova circunstancial contra ele.

— Sim — concordou Vance. — Isso nos daria um ponto de partida definido. Pardee teria muita dificuldade em explicar por que motivo estava a seis quadras do Clube durante sua partida de xadrez com Rubinstein, à hora exata em que era deixado, na porta do quarto da Sra. Drukker, um bispo preto... Sim, sim. Faça tudo para que Heath e sua gente se ponham em ação. Pode ser que consigamos algo.

O sargento, porém, não chegou a ser chamado para fazer as averiguações lembradas. Antes das nove do dia seguinte, Markham se apresentou em casa de Vance, para informar-lhe que Pardee se havia suicidado.


XXII

 

O CASTELO DE CARTAS

 

(Domingo, 17 de abril — 9h)

 

A notícia surpreendente da morte de Pardee teve sobre Vance um efeito curiosamente perturbador. Olhou incredulamente para Markham. Em seguida, tocou a campainha com toda a pressa. Apresentou-se Currie, a quem ordenou que preparasse sua roupa e trouxesse uma xícara de café. Enquanto se vestia, seus movimentos revelavam impaciência e ansiedade.

— Demônios, Markham! — exclamou. — Isso é extraordinário... Como soube?

— O professor Dillard me telefonou para a minha casa há menos de meia hora. Pardee se suicidou na sala do clube de Dillard durante a noite. Pyne descobriu o corpo esta manhã e informou o professor. Eu transmiti a notícia a Heath e em seguida vim para aqui. Nas circunstâncias atuais, pensei que fosse oportuno que estivéssemos juntos. — Markham fez uma pausa para acender um charuto. — Parece que se acabou o caso do Bispo... Não é um fim inteiramente satisfatório, mas o melhor para todas as pessoas envolvidas.

Vance não emitiu comentário imediato. Sorveu o seu café abstraidamente, levantando-se por fim, e apanhando o seu chapéu e a bengala...

— Suicídio... — murmurou ele enquanto descíamos a escada. — Sim, isso seria bastante coerente mas, como você disse, insatisfatório... infelizmente insatisfatório...

Chegamos à casa de Dillard e Pyne nos fez entrar. Mal o professor se juntou a nós, soou a campainha da porta da rua. Heath, belicoso e dinâmico, irrompeu na sala onde nos achávamos.

— Isto esclarece as coisas, senhor — disse jubiloso a Markham, depois do ritual aperto de mão. — Estes pássaros calados... nunca se podem julgar. Todavia, quem poderia pensar...?

— Escute, sargento, — interrompeu lentamente Vance — não pensemos. Isso cansa muito. Um espírito aberto... árido como o deserto... é que é o indicado.

O professor Dillard encaminhou-se para a sala do clube seguido por nós. As persianas estavam corridas e as lâmpadas elétricas acesas ainda. Também notei que as janelas estavam fechadas.

— Deixei tudo exatamente como estava — exclamou o professor.

Markham encaminhou-se para a mesa grande do centro. O corpo de Pardee estava sentado numa cadeira, defronte à porta que dava para o campo de exercícios. A cabeça e os ombros apoiavam-se sobre a mesa. O braço direito abraçava o espaldar da cadeira e a mão segurava a pistola automática. No lado direito do peito, apresentava um ferimento de bala. E na mesa, debaixo de sua cabeça, uma poça de sangue coagulado.

Nossos olhos permaneceram muito pouco tempo sobre o cadáver, pois uma coisa surpreendente, insólita, desviava nossa atenção. As revistas haviam sido postas a um lado da mesa, deixando um espaço aberto diante do cadáver. E nessa zona livre, erguia-se um alto e bem feito castelo de cartas. Quatro flechas marcavam os limites do pátio. Os passeios do jardim estavam representados por paus de fósforo, colocados um junto ao outro. Era uma reprodução que faria a alegria de uma criança. E eu recordei o que Vance havia dito na noite anterior, sobre os espíritos sérios que buscavam recreação nos divertimentos infantis. Havia algo de inefavelmente horrível na justaposição daquela estrutura de cartas e a morte violenta.

Vance, de pé, olhava a cena com um ar triste e preocupado.

— Hic jacet John Pardee — murmurou numa espécie de reverência. — E este é o castelo que John construiu... um castelo de cartas... — Deu uns passos para diante como para inspecioná-lo mais de perto. Mas seu corpo bateu na mesa, houve uma ligeira trepidação e o frágil edifício de cartas veio abaixo.

Markham ergueu-se e, voltando-se para Heath, perguntou-lhe:

— Você notificou o médico legista?

— Sim. — O sargento parecia ter dificuldade em desviar a vista da mesa. — E caso seja preciso, virá também Burke. — Dirigindo-se às janelas, levantou as persianas, deixando penetrar a luz do dia. Em seguida, voltou para junto do corpo de Pardee e ficou a olhá-lo demoradamente. De súbito, ajoelhou-se e se inclinou para diante.

— Este me parece o 38 que estava no armário das ferramentas — comentou o sargento.

— Sem dúvida — afirmou Vance, tirando a cigarreira do bolso.

Heath levantou-se e se encaminhou para o armário, inspecionando-lhe o conteúdo.

— Não me enganei, é ele mesmo. Chamaremos a Srta. Dillard para que o identifique, depois de que o médico tenha examinado o cadáver.

— Nesse momento, Arnesson, num robe roxo e amarelo, irrompeu na sala, nervoso e excitado.

Por todas as bruxas! — exclamou ele. — Pyne acaba de dar-me a notícia. — Aproximando-se da mesa, examinou o corpo de Pardee. — Suicídio, hem?... Mas por que não escolheu a sua própria casa para isto? Não teve consideração em fazê-lo em casa alheia. É coisa mesmo de enxadristas.

Ergueu a vista para Markham.

— Espero que isto não nos envolverá em mais complicações desagradáveis. Já temos tido muita notoriedade. Isso perturba o espírito da gente. Quando poderão levar daqui este cadáver? Não quero que Belle o veja.

— Será removido logo que o médico legista o tiver examinado — respondeu Markham em um tom de gelada censura. Além disso, não há necessidade de trazer aqui a Srta. Dillard.

— Excelente. — Arnesson mirava, entretanto, o cadáver. Lentamente seu rosto se cobriu de uma expressão de cínica piedade. — Pobre diabo! A vida era demais para ele. Hipersensível... nenhuma força psíquica. Levava as coisas a sério em demasia. Construía o seu próprio destino, e o seu sonho se desfez em fumaça. Não podia encontrar outra diversão. O bispo preto o enfeitiçava. Provavelmente, desviava seu cérebro do eixo. Por Deus! Não me surpreende que a sua obsessão o tenha levado à autodestruição.

— Inteligente idéia — replicou Vance. — A propósito, sobre a mesa, quando entramos aqui, havia um castelo de cartas.

— Ah! Que fariam aí estas cartas? Pensou ele que poderia encontrar consolo no solitário durante seus últimos momentos... Um castelo de cartas... Parece tolice. Sabe você a resposta?

— Em absoluto. "A casa que João construiu" poderia explicar algo.

— Compreendo. — Arnesson parecia uma abelha. — Divertindo-se com jogos infantis até o fim... mesmo contra si próprio. Estranha idéia. — Aqui bocejou cavernosamente. — Vou-me vestir. — E se foi para cima.

O professor Dillard havia permanecido contemplando Arnesson com um olhar ao mesmo tempo angustiado e paternal. Agora, voltou-se para Markham num gesto de fastio.

— Sigurd sempre procura conter suas emoções. Tem vergonha de seus sentimentos. Não levem a sério sua atitude despreocupada.

Antes de que Markham pudesse responder, Pyne fez entrar o detetive Burke. E Vance aproveitou a oportunidade para interrogar o mordomo a respeito de sua descoberta.

— Como foi que você entrou aqui esta manhã? — perguntou ele.

— Havia uma atmosfera pesada na despensa, senhor, — respondeu Pyne, — e abri a porta ao pé da escada para entrar ar. Logo percebi que as persianas estavam corridas...

— Então, não costumava baixar as persianas de noite?

— Não, senhor... nesta sala não.

— Que me diz das janelas?

— Sempre as deixo de noite um pouco abertas em cima.

— Foram deixadas abertas ontem de noite?

— Sim, senhor.

— Perfeitamente. E depois que você abriu a porta esta manhã?

— Comecei a apagar as luzes, pensando que a Srta. Dillard houvesse esquecido de desligar a chave. Foi nesse momento que enxerguei o pobre cavalheiro ali, sobre a mesa. Então, fui avisar o professor Dillard.

— Sabe Beedle alguma coisa sobre a tragédia?

— Eu lhe contei, depois que os senhores chegaram a esta casa.

— A que hora você e Beedle foram deitar-se?

— Às dez.

—Logo que Pyne saiu, Markham dirigiu-se ao professor Dillard.

— Ficaríamos agradecidos se o senhor nos desse todos os detalhes possíveis, enquanto esperamos o Dr. Doremus. Podemos ir lá em cima?

Burke ficou na sala e todos subimos à biblioteca.

— Receio que tenha pouca coisa a dizer-lhes — começou a falar o professor, sentando-se ao tempo em que apanhava o cachimbo. Em suas maneiras, havia uma reserva notável, uma espécie de acentuada relutância. — Pardee veio aqui ontem à noite, depois do jantar, com a intenção de falar com Arnesson, porém agora acredito que foi para ver Belle. Esta, todavia, escusou-se, retirando-se logo, pois estava com enxaqueca. Pardee permaneceu até às onze e meia. Em seguida, saiu. E esta foi a última vez que o vi, até o momento em que Pyne me trouxe esta manhã a terrível notícia...

— Mas se o Sr. Pardee — interveio Vance — veio ver sua sobrinha, como explica o senhor que tenha permanecido tanto tempo depois que ela se retirou?

— Não sei explicar. — O ancião parecia perplexo. — Ele dava a impressão, todavia, de que em seu espírito alguma coisa se agitava e de que desejava a companhia de alguém. O fato é que tive de insinuar-lhe sem rodeios que me sentia cansado antes de que ele finalmente se erguesse para sair.

— Onde esteve Arnesson, ontem à noite?

— Sigurd se demorou conversando conosco durante uma hora mais ou menos, depois que Belle se retirou, deitando-se em seguida. Toda a tarde tinha estado ocupado com os assuntos de Drukker e se achava fatigado.

— Que hora seria?

— Dez e meia.

— E o senhor disse — continuou Vance — que Pardee lhe deu a impressão de se encontrar sob os efeitos de uma angústia mental?

— Não angústia, exatamente. — O professor franziu o cenho, soltou ao ar uma baforada de fumaça. Parecia deprimido, quase melancólico.

— Pareceu ao senhor que ele se achava com temor de alguma coisa?

— Não. Absolutamente. Seu aspecto era o de um homem que houvesse experimentado um grande pesar e não pudesse desprender-se dos efeitos causados pela dor.

— Quando se retirou, acompanhou-o o senhor até o vestíbulo? Quer dizer, notou que direção tomou ele?

— Não. Sempre tratamos Pardee como pessoa da família. Ele deu boa noite e saiu do quarto. Acho que ele saiu pela porta principal.

— Retirou-se o senhor imediatamente para o seu quarto?

— Dentro de dez minutos. Demorei o tempo suficiente para pôr em ordem uns papéis em que estivera trabalhando.

Vance permaneceu em silêncio. Sem dúvida alguma estava confundido em face do último episódio. Markham retomou o interrogatório.

— Suponho que será inútil perguntar-lhe se ouviu algum disparo ontem à noite.

— Tudo em casa estava tranqüilo — respondeu o professor Dillard. — E, de qualquer modo, um tiro disparado na sala do clube não poderia ser ouvido aqui. Há dois lanços de escadas, todo o comprimento do vestíbulo inferior e um corredor, e entre eles três grossas portas, sem aludir à espessura e solidez das paredes desta velha casa.

— E ninguém — completou Vance — pode ter ouvido da rua, pois as janelas da sala estavam fechadas cuidadosamente.

O professor fez que sim a cabeça e dirigiu-lhe um olhar perscrutador.

— É verdade. Vejo que você também notou esta circunstância particular. Não compreendo bem por que Pardee fechou as janelas.

— As idiossincrasias dos suicidas nunca foram explicadas satisfatoriamente — replicou Vance, como por acaso. E depois de uma breve pausa, perguntou:

— De que falavam o senhor e Pardee, antes de este se retirar?

— Falamos muito pouco. Eu estava ocupado com um novo artigo da Revista de Física e procurei interessá-lo sobre o assunto, mas o seu espírito, como já lhe disse, mostrava certa preocupação, entretendo-se com o tabuleiro de xadrez a maior parte do tempo.

— Ah! Deveras? É muito interessante.

Vance lançou um olhar ao tabuleiro. Um certo número de peças permanecia nos quadros. Levantou-se rapidamente e, atravessando a sala, foi até à mesinha. Depois de um instante, voltou, sentando-se de novo.

— É curioso — murmurou ele e muito deliberadamente acendeu um cigarro. — Sem dúvida alguma, ele testava refletindo no final de sua partida de xadrez com Rubinstein, antes de sair ontem à noite. As peças estão postas exatamente como estavam quando abandonou a luta... com o inevitável mate do bispo preto, em cinco lances.

O olhar do professor Dillard pousou pensativamente sobre a mesinha de xadrez.

— O bispo preto — repetiu em voz baixa. — Pode ser isto que ocupava seu espírito ontem à noite? Parece incrível que uma coisa tão banal pudesse impressioná-lo assim, tão desastradamente.

— Não esqueça — lembrou Vance — que o bispo preto era o símbolo de seu fracasso. Representava o naufrágio de suas esperanças. Fatores menos patentes levaram muitos homens a abandonar a vida.

Uns minutos depois, Burke nos informou que o médico havia chegado. Deixando o professor, descemos outra vez até à sala do clube, onde o Dr. Doremus estava ocupado em examinar o cadáver de Pardee.

O médico levantou a cabeça quando entramos, e ondeou a mão superficialmente. Seu costumeiro modo jovial havia desaparecido.

— Quando irá terminar tudo isto? — grunhiu ele. — Não me agrada o ambiente deste lugar. Assassinatos... morte por síncope... suicídios... O bastante para eriçar o cabelo. Vou procurar um emprego bom e tranqüilo num matadouro.

— Cremos — disse Markham — que este é o último de todos.

Doremus escarneceu.

— Ora, vá! Você acha? O bispo se suicida depois de percorrer, andrajoso, a cidade. Parece razoável. Espero que você tenha razão. — Inclinou-se de novo sobre o cadáver e, separando-lhe os dedos da mão, tirou-lhe o revólver, jogando-o sobre a mesa. — Para o seu arsenal, sargento.

Heath guardou a arma no bolso.

— Quanto tempo faz que está morto, doutor?

— Oh, desde meia-noite, mais ou menos. Pode ser que antes, pode ser que depois. Mais algumas perguntas tolas?

Heath sorriu.

— Há alguma dúvida de que se tenha suicidado?

— Que lhe parece que seja? Uma bomba da mão negra? — Em seguida, falou em tom profissional. — A arma estava em sua mão. No peito, sinais de fogo. Orifício de entrada produzido pela bala do mesmo revólver que empunhava. Posição do corpo, natural. Não vejo nada de suspeito. Por quê? Tem dúvidas?

Foi Markham quem respondeu:

— Ao contrário, doutor. Nós acreditamos que foi um suicídio.

— Pois foi mesmo. Examinarei um pouco mais. Sargento, ajude-me.

Quando Heath ajudou a levantar o corpo de Pardee e a colocá-lo num diva para um exame mais detido, fomos até a sala de visitas, onde Arnesson se juntou a nós.

— Qual é o veredicto? — perguntou ele, deixando-se cair numa cadeira próxima. — Suponho que não haverá dúvidas de que foi ele mesmo que se matou, não?

— Por que torna ao assunto, Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Não tenho motivo algum. Um comentário ocioso. Muitas coisas raras estão acontecendo por aqui.

— Oh, evidentemente — disse Vance, ao mesmo tempo que soltava para o teto uma espiral de fumaça.

— Não, segundo o médico, não há dúvida de que foi um suicídio. A propósito, Pardee deu a você a impressão de achar-se inclinado ao suicídio?

Arnesson pensou um pouco.

— Difícil de dizer — concluiu. — Nunca foi alegre. Mas suicidar-se?... Não sei. Entretanto, você disse que não havia lugar para dúvidas. Assim, já se vê...

— Sim, sim. E como entra em sua fórmula esta situação?

— Dissipa toda a equação, não há dúvida. Não há mais necessidade de especular. — Apesar de suas palavras, parecia incerto. — O que não posso compreender — acrescentou — é por que escolheu a sala do clube. Na casa dele, havia bastante lugar para suicidar-se.

— É que aqui havia um revólver conveniente — sugeriu Vance. — E agora me lembro de que o sargento Heath queria que a Srta. Dillard identificasse a arma, pro forma.

— Isso é fácil. Onde está?

Heath entregou-lhe o revólver e Arnesson retirou-se com ele.

— Também podia perguntar-lhe se ela guardava um baralho na sala do clube.

Arnesson voltou após alguns minutos, informando-nos que o revólver era o que estava no armário das ferramentas, e que não só havia um baralho na gaveta da mesa da sala, como também Pardee sabia onde ele estava.

Em seguida, apareceu o Dr. Doremus e reiterou sua conclusão de que Pardee havia-se suicidado.

— Esta será minha informação — disse ele. — Não vejo outra coisa. Para ser exato, muitos suicídios são forjados, porém isso é de seu domínio. Neste caso, não há nada absolutamente de suspeito.

Markham sacudiu a cabeça, sem ocultar sua satisfação.

— Não temos motivo para discutir suas conclusões, doutor. Em realidade, este suicídio se harmoniza perfeitamente com o que já sabemos. Conduz toda essa orgia do Bispo a um fim lógico. — Levantou-se como um homem de cujos ombros tivessem tirado uma enorme carga. — Sargento, deixarei a você o cuidado de ordenar as diligências necessárias para que o cadáver seja levado para a autópsia. Mais tarde, passe pelo Stuyvesant. Graças a Deus que hoje é domingo! Temos tempo para dar umas voltas por aí.

Aquela noite, no Clube, Vance, Markham e eu estávamos sentados no salão. Heath fez ato de presença, retirando-se em seguida. Uma nota cuidadosa sobre o suicídio de Pardee foi redigida para a imprensa indicando ao mesmo tempo que o caso do Bispo estava, com tal fato, encerrado. Vance havia falado pouco durante todo o dia. Recusara-se a oferecer qualquer sugestão sobre a redação da declaração oficial, parecendo nada disposto a discutir a nova fase do caso. Agora, porém, dava voz às dúvidas que tinham estado trabalhando o seu espírito.

— É muito fácil, Markham, fácil demais. Há apenas um cheiro de plausibilidade em tudo isto. É perfeitamente lógico, sabe, mas não é satisfatório. Não posso imaginar o nosso Bispo terminando toda a sua carnificina humorística de uma forma tão brutal. Não há nada de engenhoso em fazer saltar a tampa do cérebro... é demasiado vulgar, sabe? Mostra uma horrível falta de originalidade. Não é digno de artífice dos assassinatos do Bispo.

Markham estava aborrecido.

— Você mesmo explicou como os crimes estavam de acordo com as possibilidades psicológicas da mentalidade de Pardee. E para mim parece altamente razoável que, havendo levado a cabo seus trágicos intentos, e chegado ao final da aventura, tenha-se eliminado.

— Pode ser que você tenha razão — suspirou Vance. — Eu não tenho nenhum argumento decisivo para contrariar o seu ponto de vista. Mas estou desapontado. Não me agradam os anticlímaxes, especialmente quando não correspondem à minha idéia do talento do dramaturgo. A morte de Pardee neste momento é demasiado clara... esclarece as coisas de forma por demais nítida. Há nela demasiada utilidade e muito pouca imaginação.

Markham sentiu que podia dar-se ao luxo de ser tolerante.

— Talvez a imaginação dele estivesse esgotada com tantos crimes. Seu suicídio poderia ser considerado simplesmente como o descer do pano, uma vez terminado o espetáculo. De todo modo, foi sem dúvida alguma um ato incrível. A derrota, a desilusão e o desânimo... o fracasso de todas as ambições... têm constituído causa suficiente para o suicídio, desde tempos imemoriais.

— Exatamente. Temos um motivo razoável, ou uma explicação para o suicídio, mas nenhum motivo para os crimes.

— Pardee estava enamorado de Belle Dillard — replicou Markham. — E provavelmente sabia que Robin a cortejava. Também tinha um ciúme intenso de Drukker.

— E o assassinato de Sprigg?

— Não temos dados sobre esse ponto. Vance sacudiu a cabeça.

— Não podemos separar os crimes quanto ao motivo. Todos tiveram origem num mesmo impulso fundamental: foram cometidos por uma única paixão fremente.

Markham suspirou com impaciência.

— Mesmo supondo que o suicídio de Pardee não tenha relação com os assassinatos anteriores, estamos num ponto morto, figurativa e literalmente.

— Sim, sim. Um ponto morto. Muito triste. Ainda que, para a polícia, consolador: deixa-a livre por algum tempo, seja como for. Porém, não interprete mal minhas fantasias. A morte de Pardee está indubitavelmente relacionada com os assassinatos. Eu diria que existe uma relação muito íntima.

Markham tirou da boca, lentamente, seu charuto e contemplou Vance durante alguns momentos.

— Há alguma dúvida em seu espírito — perguntou ele — de que Pardee se tenha suicidado?

Vance hesitou, antes de responder.

— Eu queria saber — disse ele lentamente — por que aquele castelo de cartas caiu tão rapidamente, logo que eu deliberadamente me encostei na mesa...

— Sim?

— ... E por que não caiu, quando a cabeça e os ombros de Pardee desabaram sobre a mesa, depois de haver disparado o tiro contra si.

— Isso não quer dizer nada — disse Markham. — A primeira sacudidela pode ter afrouxado as cartas... — Subitamente seus olhos se entrecerraram. — Quer você dizer que o castelo de cartas foi armado depois da morte de Pardee?

— Oh, meu caro amigo! Eu não me estou entregando a deduções. Estou dando rédea solta à minha curiosidade juvenil, sabe?


XXIII

 

UMA DESCOBERTA SURPREENDENTE

 

(Segunda-feira, 25 de abril — 8h30)

 

Oito dias tinham transcorrido depois da morte de Pardee. O enterro de Drukker saiu da casa da Rua 76. Assistiram-no unicamente os Dillards e Arnesson e alguns homens da Universidade, que vieram render um último tributo de respeito ao homem de ciência, por cuja obra tinham sincera admiração.

Vance e eu estivemos na casa, na manhã do enterro, quando uma menina trouxe um ramalhete de flores primaveris que ela mesma colhera, e pediu a Arnesson que as colocasse no ataúde de Drukker. Quase esperei uma resposta cínica de Arnesson, surpreendendo-me, porém, quando tomou as flores gravemente e disse, num tom de voz quase de ternura:

— Serão postas em seguida, Madalena. E Humpty Dumpty lhe agradece a lembrança.

Quando a governanta levou a criança, Arnesson voltou-se para nós e disse:

— Era a favorita de Drukker... Camarada engraçado... Nunca ia ao teatro. Detestava viagens. Sua única diversão era entreter as crianças.

Menciono este episódio, porque, apesar de parecer sem importância, punha em destaque um dos elos mais vitais da cadeia de evidência que acabou por esclarecer, sem dúvida alguma, o problema dos assassinatos do Bispo.

A morte de Pardee havia criado uma situação única nos anais do crime. A declaração fornecida pelo procurador do distrito havia apenas indicado a possibilidade de ser Pardee o autor dos assassinatos. Não importa o que Markham pudesse ter pensado intimamente; estava longe de ser nobre e justo lançar uma dúvida direta sobre o caráter de outrem sem provas decisivas. Porém, a onda de terror levantada por esses estranhos assassinatos havia atingido tais proporções que ele não podia, diante do dever para com a comunidade, limitar-se a dizer que o caso estava terminado. Assim, embora nenhuma acusação aberta pesasse sobre Pardee, os assassinatos do Bispo não eram mais olhados como uma fonte de ameaça contra a cidade, e um suspiro de alívio partiu de todos os pontos.

No Clube de Xadrez de Manhattan, havia provavelmente menos discussão do caso do que em qualquer outro lugar de Nova York. Os sócios sentiram, talvez, que a honra do Clube estava, de qualquer forma, envolvida. Ou talvez houvesse um sentimento de lealdade para com um homem que tanto havia feito pelo xadrez como Pardee. Porém, qualquer que fosse a causa, o fato é que os membros do Clube assistiram em sua unanimidade aos funerais do companheiro. Não pude admirar menos essa homenagem ao colega de xadrez, pois, deixando de lado seus atos particulares, havia sido um dos grandes animadores do antigo e real jogo, a que se dedicavam. (1)

(1) Pardee deixou em seu testamento uma grande soma para o incremento do xadrez. É de lembrar que, no outono do mesmo ano, teve lugar em Cambridge Springs um torneio em memória de Pardee.

 

O primeiro ato oficial de Markham, no primeiro dia seguinte à morte de Pardee, foi relaxar a prisão de Sperling. Nessa mesma tarde, o Departamento de Polícia arquivou todas as investigações em torno dos assassinatos do Bispo e cessou a vigilância da casa de Dillard. Vance protestou francamente contra esta última deliberação; em virtude, porém, de haver o médico legista em seu laudo post mortem confirmado, totalmente, a teoria do suicídio, restava a Markham pouca coisa a fazer no caso. Além disso, estava convencido de que com Pardee tudo havia terminado, e mofava das dúvidas que ocorriam a Vance.

Durante a semana seguinte ao encontro do corpo de Pardee, Vance estava inquieto e mais preocupado que nunca. Procurou interessar-se por vários assuntos, porém sem êxito visível. Mostrava sinais de irritabilidade. E sua quase milagrosa equanimidade parecia haver-lhe desertado do espírito. Tive a impressão de que estava esperando que algo sucedesse. Sua atitude não era exatamente de expectativa, porém havia nele um ar de vigilância que, às vezes, chegava à apreensão. No dia seguinte ao enterro de Drukker, Vance visitou Arnesson. E, quinta-feira, à noite, acompanhou-o ao teatro para assistir à peça Os Espectros, de Ibsen, obra que, segundo vim a saber, não lhe agradava. Soube que Belle Dillard havia ido passar um mês em casa de um parente em Albany. Como explicou Arnesson, ela começara a sentir os efeitos de tantos dissabores, sendo-lhe necessário uma mudança de ambiente. O homem encontrava-se visivelmente triste pela ausência da jovem. Confiou a Vance que eles haviam combinado casarem-se no mês de julho. E Vance também soube por ele que a Sra. Drukker deixara em testamento todos os seus bens para Belle e para o professor Dillard, em caso de morte do seu filho, fato que interessou, particularmente, a Vance.

Se tivesse sabido, ou embora suspeitado que coisas surpreendentes e terríveis se acumulavam sobre nós naquela semana, duvido que eu pudesse suportar o esforço. Pois o caso dos assassinatos do Bispo não tinha ainda terminado. O clímax do horror estava ainda por chegar; porém este, tão terrível e horripilante, foi apenas uma sombra do que podia ter sido, se Vance não tivesse examinado o caso, chegando a duas conclusões distintas, uma das quais havia sido abandonada em vista da morte de Pardee. Era a outra possibilidade, como vim a saber mais tarde, que o fez permanecer em Nova York, vigilante e mentalmente alerta.

Segunda-feira, 25 de abril, foi o começo do fim. Fomos jantar com Markham no Clube dos Banqueiros, para em seguida irmos assistir aos Mestres Cantores(1). Porém, aquela noite não presenciamos os triunfos de Walter. Observei que quando nos encontramos com Markham, este parecia preocupado. E nem bem nos havíamos sentado no salão de refeições do Clube quando ele nos contou um telefonema que havia recebido do professor Dillard aquela tarde.

(1) Das óperas de Wagner era esta a predileta de Vance. Sempre afirmou que era esta a única ópera que tinha a forma estrutural de uma sinfonia. E mais de uma vez lamentou que não tivesse sido escrita como uma peça orquestral, ao invés de veículo para um drama absurdo.

 

— Pediu-me particularmente que fosse vê-lo esta noite

— explicou Markham. — E, quando procurei desculpar-me, demonstrou grande impaciência. Acentuou o fato de que Arnesson estaria fora toda a noite e disse que uma oportunidade semelhante não poderia apresentar-se senão quando fosse tarde demais. Negou-se a dar explicações e insistiu em que eu fosse à sua casa depois do jantar. Disselhe que lhe comunicaria se me fosse possível atender ao seu pedido.

Vance escutara com um interesse mais intenso.

— Devemos ir, Markham. Esperava um chamado assim. É possível que por fim encontremos a chave da verdade.

— A verdade acerca de quê?

— Da culpabilidade de Pardee.

Markham não disse mais nada e jantamos em silêncio.

Às oito e meia tocávamos a campainha da casa de Dillard. Pyne nos conduziu imediatamente à biblioteca. O velho professor saudou-nos com reserva nervosa.

— Você foi muito amável em vir, Markham — disse ele sem se levantar. — Sente-se e fume um charuto. Quero falar com você... E desejo fazê-lo com calma. É muito difícil...

— Sua voz se arrastava enquanto ele enchia seu cachimbo.

Nós nos acomodamos e esperamos. Um sentimento de inquietação invadiu-me sem motivo aparente, a não ser, talvez, que eu tenha captado as vibrações emanadas do estado de profunda preocupação do professor.

— Não sei como expor o assunto — começou ele — porque tem relação não com fatores físicos, mas com a consciência humana invisível. Lutei toda a semana com certas idéias vagas que penetraram meu espírito; e não vejo outra forma de desfazer-me delas senão falando com você...

Levantou a vista, hesitante. — Preferi discutir com você essas idéias, quando Sigurd não estivesse presente, e como ele saiu esta noite para ver Os Simuladores, de Ibsen, seu drama favorito, aproveitei a oportunidade para pedir-lhe que viesse aqui.

— A que se referem essas idéias? — perguntou Markham.

— A nada, especificamente. Como disse, elas são muito vagas; porem, apesar disso, se têm tornado insistentes... Tão insistentes, na realidade — ajuntou ele — que acreditei oportuno mandar Belle para fora por algum tempo. É verdade que seu espírito estava torturado com o resultado de todas essas tragédias; mas meu verdadeiro motivo ao enviá-la para o Norte é que eu estava acossado por dúvidas intangíveis.

— Dúvidas? — Markham inclinou-se para diante. — Que espécie de dúvidas?

O professor Dillard não respondeu logo.

— Permita-me responder a esta pergunta fazendo-lhe uma outra — replicou enfim. — Está seu espírito completamente satisfeito com a situação criada pela morte de Pardee?

— Refere-se o senhor à autenticidade de seu suicídio?

— A isso e à sua presumida culpabilidade. Markham reclinou-se contemplativamente.

— E o senhor não está inteiramente satisfeito? — perguntou ele.

— Não posso responder a essa pergunta. — O professor Dillard falou quase rispidamente. — Você não tem direito de perguntar-me. Eu apenas desejava estar seguro de que as autoridades, tendo todos os dados nas mãos, estivessem convencidas de que esse assunto terrível era um livro fechado. — Uma expressão de ansiedade profunda dominou sua fisionomia. — Se eu soubesse que isso era um fato, teria forças para repelir os pressentimentos vagos que me perseguem dia e noite, há uma semana.

— E se lhe dissesse que não estou satisfeito?

O olhar do velho professor tornou-se distante e angustiado. Sua cabeça caiu levemente para frente, como se uma carga de pesares a fizesse inclinar-se subitamente. Ao cabo de uns instantes, levantou os ombros e respirou profundamente.

— A coisa mais difícil neste mundo — disse ele — é saber onde está o dever de alguém; pois o dever é um mecanismo do espírito, e o coração procura sempre destruir as suas resoluções. Eu talvez tenha feito mal em chamá-lo aqui; pois afinal, não tenho senão suspeitas nebulosas e idéias obscuras para prosseguir. Mas, existia a possibilidade de que minha intranqüilidade mental estivesse apoiada sobre uma base oculta e profunda cuja existência eu ignorava. Você me compreende? — Apesar das suas palavras evasivas, não havia dúvida relativamente ao aspecto perturbador da imagem sombria que se emboscava atrás de seu espírito.

Markham meneou a cabeça em sinal de aquiescência.

— Não há motivo nenhum para pôr em dúvida o laudo do médico legista — disse ele de um modo meio forçado. — Posso compreender como a proximidade dessas tragédias poderia ter criado uma atmosfera propícia a dúvidas. Mas acredito que o senhor não precisa ter mais apreensões.

— Sinceramente, espero que você esteja certo — murmurou o professor, porém era claro que ele não estava satisfeito. — Suponho, Markham... — começou a dizer, interrompendo-se em seguida. — Sim, espero que você esteja certo — repetiu ele.

Vance tinha-se sentado, fumando plàcidamente, durante essa discussão pouco satisfatória; mas estivera escutando com uma concentração especial, e depois falou:

— Diga-me, professor Dillard, se aconteceu algo, embora vago, que possa ter dado origem às suas dúvidas.

— Não... Nada. — A resposta não se fez esperar. — Estive simplesmente pensando... experimentando todas as possibilidades... Não ousei ser demasiado confiante, sem ter alguma certeza. A lógica pura é aceita em assuntos que não nos tocam pessoalmente. Mas, quando concerne à nossa própria segurança, a inteligência humana imperfeita exige evidência visual.

— Ah, sim! — Vance ergueu a vista, e acreditei ver uma chama de compreensão brilhar entre esses dois homens antagônicos.

Markham se levantou para despedir-se, porém o professor rogou-lhe que esperasse um momento mais.

— Sigurd estará de volta sem demora. Ele gostará de vê-lo aqui. Como lhe disse, foi ver Os Simuladores, mas estou certo de que voltará diretamente para casa... A propósito, Sr. Vance — continuou, voltando-se para este — Sigurd me disse que o senhor o acompanhou ao teatro, na semana passada, para ver Os Espectros; compartilha do entusiasmo dele por Ibsen?

Uma ligeira elevação de cenho de Vance me indicou que ele estava surpreendido com semelhante pergunta; porém, quando respondeu, não se notava o mais leve sinal de perplexidade em sua voz.

— Li muito Ibsen. E não posso negar o seu grande gênio criador, ainda que não se possa ver em sua obra a forma estética e a profundidade filosófica que caracterizam o Fausto de Goethe, por exemplo.

— Pelo que vejo, o senhor e Sigurd teriam uma base permanente de desacordo.

Markham declinou do convite para permanecer mais tempo e, minutos depois, caminhávamos pela West End Avenue, respirando o ar fresco de abril.

— Rogo-lhe que tome nota, meu caro Markham, — observou Vance com uma pancadinha de gracejo nas costas do companheiro, ao dobrar a Rua 72 em direção ao parque, — que há outros, além de seu humilde colaborador, que estão acossados por dúvidas acerca da realidade do suicídio de Pardee. E eu poderia acrescentar que o professor não está de acordo, de modo algum, com a sua certeza.

— Seu estado mental de suspeita é compreensível — opinou Markham. — Esses assassinatos afetaram-no muito de perto.

— Isso não é explicação. O velho tem medo. E ele sabe alguma coisa que não nos quer dizer.

— Eu não diria que me causou esta impressão.

— Oh, Markham... meu caro Markham! Não escutou atentamente a sua vacilante e relutante história? Parece que ele tentava transmitir-nos uma sugestão, sem necessidade de empregar palavras. Supunha que deveríamos adivinhar. Sim! Por isso, insistiu para que você o visitasse, enquanto Arnesson estava ausente, assistindo a um drama de Ibsen...

Vance parou de falar abruptamente. Em seus olhos se notou um ar sobressaltado.

— Ora, bolas! Foi por isso que ele perguntou se eu gostava de Ibsen!... Ora, bolas! Que imbecil eu fui! — Mirou fixamente Markham. Os músculos do rosto tornaram-se-lhe rígidos. — Por fim a verdade! — disse ele com serenidade impressionante. — E não foi você, nem eu, nem a polícia quem resolveu este caso. Foi um dramaturgo norueguês falecido há muitos anos. Em Ibsen está a chave do mistério.

Markham olhou-o como se ele tivesse enlouquecido de repente. Mas, antes que pudesse falar, Vance chamou um táxi.

— Vou-lhe mostrar o que quero dizer quando chegarmos a casa — disse ele, quando atravessávamos velozmente o Parque Central na direção leste. — É incrível, mas é verdade. E eu poderia ter adivinhado, há mais tempo; porém, a significação sugerida pela assinatura naquelas notas estava demasiado obscurecida devido a outras significações possíveis...

— Se em vez da primavera, estivéssemos em meados do verão, — comentou Markham, colèricamente, — diria que o calor havia afetado seu cérebro.

— Desde o princípio, percebi que havia três culpados possíveis — continuou Vance. — Cada um deles era psicologicamente capaz de cometer esses assassinatos, sempre que o excesso de suas emoções alterasse seu equilíbrio mental. Assim, não havia nada mais a fazer que esperar uma indicação que focalizasse a suspeita. Drukker era um dos três suspeitos, mas foi assassinado. Ficaram, então, dois. Em seguida Pardee, aparentemente, suicidou-se; e admitirei que sua morte tornou razoável a presunção de que era ele o culpado. Mas, uma grande dúvida corroia-me o espírito. A morte dele não foi conclusiva. Aquele castelo de cartas me preocupou. Estávamos num beco sem saída. Deste modo, esperei vigilante pela minha terceira possibilidade. Agora eu sei que Pardee é inocente e que não se suicidou. Foi assassinado, como o foram Robin, Sprigg e Drukker. Sua morte foi um brinquedo terrível, uma vítima atirada à face da polícia, com espírito diabólico. E, desde então, o assassino vem-se rindo da nossa ingenuidade.

— Por que raciocínio chega você a esta fantástica conclusão?

— Já não é questão de raciocínio. Afinal tenho a explicação dos crimes. E conheço a significação da assinatura "O Bispo" colocada ao pé das notas. Mostrar-lhe-ei, muito breve, uma prova incontroversa e espantosa.

Alguns minutos depois, chegamos ao seu apartamento e ele nos conduziu diretamente à biblioteca.

— A evidência esteve aqui, todo o tempo, ao alcance da minha mão.

Foi até à estante onde guardava seus dramas e retirou o volume segundo das obras de Henrique Ibsen. O livro continha Os Vikings em Helgeland e Os Simuladores. A primeira dessas obras não interessava a Vance. Procurando em Os Simuladores, encontrou a página onde estavam impressos os nomes dos personagens do drama e colocou o livro sobre a mesa diante de Markham.

— Leia os nomes dos personagens da obra de Ibsen, favorito de Arnesson — disse ele, assinalando os nomes.

Markham, silencioso e confundido, aproximou de si o volume e eu, por cima de seu ombro, li:

 

Hakon Hakonson, o rei eleito pelos birchlegs.

Inga de Varteig, sua mãe.

Conde Skule.

Lady Ragnild, sua mulher.

Sigrid, sua irmã.

Margrete, sua filha.

Guthorm Ingesson.

Sigurd Ribbung.

Nicholau Arnesson, bispo de Oslo.

Dagfinn o Camponês, marechal de Hakon.

Ivar Bodde, seu capelão.

Vegard Veradal, um dos seus guardas.

Gregorius Jonsson, um nobre.

Paul Flida, um nobre.

Ingeborg, esposa de Andres Skialdarband.

Peter, seu filho, um jovem sacerdote.

Sira Viliam, capelão do Bispo Nicolau.

Mestre Sigard de Brabant, médico.

Jatgeir Skald, um islandês.

Bard Bratte, chefe do distrito de Trondheim.

 

— Porém, duvido que qualquer um de nós fosse além da linha:

Nicolau Arnesson, bispo de Oslo.

Meus olhos se fixaram neste nome. Havia nele qualquer coisa de horrível e fascinante. Logo me lembrei de que o bispo Arnesson foi um dos vilãos mais diabólicos em toda a literatura. Um monstro cínico e burlão, que transformava todos os valores sãos da vida em bufonarias hediondas.


XXIV

 

O ÚLTIMO ATO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 9h)

 

Com esta revelação surpreendente, os misteriosos crimes do Bispo entraram em sua fase final e mais terrível. Heath tinha sido informado da descoberta de Vance; e ficou combinado que nos encontraríamos no gabinete do procurador do distrito, na manhã seguinte, muito cedo, para formarmos um conselho de guerra.

Quando, naquela noite, Markham se despediu de nós, estava mais preocupado e desapontado do que nunca.

— Não sei o que se poderá fazer — disse ele, desesperançado. — Não existe nenhuma prova legal contra o homem. Mas podemos traçar uma linha de ação que poderá ser vantajosa... Nunca fui adepto da tortura, mas quase desejaria que hoje tivéssemos em execução o torniquete e o ecúleo—.

Vance e eu chegamos ao gabinete pouco depois das nove do dia seguinte. Swacker nos interceptou à entrada e pediu-nos que aguardássemos na sala de espera um momento.

— Markham — explicou ele — estava ocupado naquele momento.

Nem bem tomáramos assento, quando apareceu Heath belicoso, sombrio e de cenho cerrado.

— Tenho que entregar o caso ao senhor — disse ele a Vance. — O senhor tem o fio da situação. Mas o que eu não posso compreender é que vantagem nos trará isto. Não podemos prender um sujeito, só porque o seu nome está num livro.

— Mas talvez possamos forçar o resultado, de uma forma ou outra — replicou Vance. — De qualquer modo, sabemos onde estamos.

Dez minutos depois, Swacker nos fez sinal indicando que Markham estava livre.

— Sinto tê-los feito esperar — desculpou-se o procurador do distrito. — Tive uma visita inesperada. — Sua voz tinha um timbre de desespero. — Mais preocupações; e, para maior coincidência, se relaciona com a própria zona do Riverside Park, onde Drukker foi morto. Entretanto, nada posso fazei...

Apanhou alguns papéis que estavam diante de si e disse:

— Agora, ao nosso assunto.

— Qual é o novo problema com o Riverside Park? — perguntou Vance como por acaso.

Markham franziu o sobrecenho.

— Nada que nos possa incomodar. Provavelmente, trata-se de um seqüestro. Os matutinos relatam-no ligeiramente. Se você tem interesse...

— Não gosto de ler jornais — disse Vance brandamente; porém, com uma insistência que me intrigou. — Que sucedeu?

Markham respirou fortemente com impaciência e respondeu:

— Uma menina desapareceu do playground, ontem, depois de haver falado com um desconhecido. Seu pai esteve aqui e solicitou a minha intervenção. Mas eu lhe respondi que esse assunto não me pertence, enviando-o ao Departamento de Pessoas Procuradas. Agora, se sua curiosidade está satisfeita...

— Oh, mas é que ela não está — persistiu Vance. — Narre-me os pormenores do caso. Aquela zona do parque me fascina particularmente.

Markham lançou-lhe um olhar inquiridor, através de seus olhos semicerrados.

— Muito bem — aquiesceu ele. — Uma menina de cinco anos de idade, chamada Madalena Mofatt, estava brincando com um grupo de meninas, mais ou menos às cinco e meia da tarde. Em certo momento, ela subiu a um monte de terra, junto ao muro de contenção e, pouco depois, quando a governanta foi à sua procura, pensando que ela havia descido para o outro lado, a criança não foi encontrada em parte alguma. O único indício existente é ter sido ela vista por duas ou três meninas falando com um homem, pouco antes de seu desaparecimento; mas, naturalmente, elas não puderam dar uma descrição desse homem. A polícia foi notificada e está procedendo às investigações necessárias. Isto é tudo o que existe até agora.

— Madalena — Vance repetiu o nome pensativamente.

— Diga-me, Markham, sabe você se esta menina conhecia Drukker?

— Sim! — respondeu Markham, erguendo-se em seu assento. — O pai da menina disseme que ela ia, freqüentemente, às festas que o corcunda dava em sua casa...

— Eu vi essa menina — respondeu Vance, levantando-se, ao mesmo tempo em que metia as mãos nos bolsos e baixava os olhos para o chão. — Uma criaturinha encantadora... de cachinhos dourados. Trouxe um ramalhete de flores para Drukker na manhã do enterro dele... E, agora, ela desaparece depois de ter sido vista com um estranho...

— Que tem você em mente? — perguntou Markham firmemente.

Vance pareceu não ter ouvido a pergunta.

— Por que o pai dela apelou para você?

— Conheço Mofatt, há alguns anos. Ele colaborou, uma vez, na administração da cidade. Está como louco... procura sua filhinha por toda a parte. O caso dos assassinatos do Bispo o deixou mòrbidamente apreensivo... Mas, olhe aqui,

Vance, não estamos aqui para discutir o desaparecimento da filha de Mofatt...

Vance levantou a cabeça. Havia em seu rosto uma expressão de sobressalto e horror.

— Não fale... Oh, não fale!... — Começou a passear na sala de um lado para outro, enquanto Markham e Heath observavam-no com assombro mudo. — Sim... é isto mesmo — murmurou para si mesmo. — A hora é exata... tudo se enquadra...

Deu meia-volta e, tomando Markham pelo braço, lhe disse:

— Vamos, depressa! É a nossa única oportunidade... Não podemos esperar um minuto mais. — Com um puxão, pôs Markham de pé, levando-o para a porta. — Receei isto durante toda a semana.

— Eu não me moverei daqui, Vance, se você não me explicar.

— É outro ato mais!... O último ato! Oh, acredite-me! — Nos olhos de Vance brilhava uma expressão como antes ainda não tinha visto. — Agora ela é a "Little Miss Muffet" (1). O nome não é o mesmo, mas não importa, é quase idêntico para a brincadeira do Bispo; ele explicará tudo aos jornais. Provavelmente, chamou a menina por meio de sinais, para que se sentasse na relva, sentando-se também ele junto dela. E então a criaturinha se foi...

(1) Nome de outra personagem do folclore infantil anglo-americano (N. do T.).

 

Markham deu uns passos para diante um tanto perturbado, e Heath, com os olhos salientes, deu um pulo em direção à porta. Muitas vezes tenho pensado no que poderia ter atravessado seus cérebros, naquele momento em que Vance apresentava seus argumentos. Teriam crido na interpretação do episódio ou simplesmente tiveram medo de não investigar, diante da remota possibilidade de outra hedionda brincadeira do Bispo? Fossem quais fossem suas convicções ou dúvidas, aceitaram a situação tal como Vance a delineou. Um momento mais tarde, estávamos atravessando o vestíbulo apressadamente para tomarmos o elevador. Por sugestão de Vance, levamos o detetive Tracy, da seção de detetives, sediada no Edifício das Cortes Criminais.

— Este assunto é sério — explicou. — Pode suceder alguma coisa.

Saímos pela porta que dá para a Rua Franklin, e alguns ·' minutos depois atravessamos o centro da cidade no carro do procurador do distrito, violando a lei da velocidade e não atendendo aos sinais do tráfego.

Pouco se falou durante aquela viagem transcendental; porém, quando tomamos a estrada tortuosa do Parque Central, Vance disse:

— Pode ser que nos enganemos, mas é preciso arriscar.

Se esperarmos que os jornais recebam alguma nota, pode ser demasiado tarde. Não se suspeita de que nós sabemos, e esta é nossa única vantagem.

— Que espera você encontrar? — O tom de voz de Markham era um tanto incerto.

Vance sacudiu a cabeça, desalentadamente.

— Oh, não sei, porém será algo diabólico.

Quando o carro parou em frente à casa de Dillard, Vance apeou e subiu correndo as escadas, tomando a nossa dianteira. Pyne atendeu ao seu insistente toque de campainha.

— Onde está o Sr. Arnesson? — perguntou Vance.

— Na Universidade, senhor — respondeu o velho mordomo. Em seus olhos pareceu-me notar uma expressão de medo. — Mas voltará para casa cedo para almoçar.

— Então, leve-nos já à presença do professor Dillard.

— Sinto muito, senhor — disse Pyne. — O professor também não está, foi à Biblioteca Pública...

— Você está só?

— Sim, senhor; Beedle foi ao mercado.

— Tanto melhor. — Vance ordenou ao mordomo que subisse as escadas e lhe disse: — Vamos dar uma busca na casa, Pyne. E você será nosso guia.

Markham adiantou-se.

— Mas, não podemos fazer isto, Vance! Vance voltou-se.

— Não me interessa o que se pode ou o que não se pode fazer. Vou vasculhar esta casa... Sargento, você está comigo? — Em seu rosto brilhava uma estranha expressão.

— Como sempre! (nunca estimei tanto Heath como naquele instante).

A devassa começou na sala do clube. Todos os vestíbulos, armários e outros móveis, todos os recantos, enfim, foram inspecionados.

Pyne, completamente intimidado pela belicosidade que dominava Heath, funcionou como guia. Trouxe chaves e abriu portas para nós e ainda lembrou lugares que, de outro modo, teriam passado despercebidos. O sargento agiu com extrema energia, embora eu soubesse que ele apenas tinha uma vaga idéia do objeto dessa devassa.

Markham nos acompanhou, se bem que desaprovasse aquela iniciativa; porém, ele também havia sido arrastado pela atitude dinâmica de Vance, devendo, certamente, ter pensado que este possuía uma justificativa realmente séria para a sua conduta temerária.

Gradualmente, fomos atingindo o pavimento superior. A biblioteca e o quarto de Arnesson foram examinados minuciosamente, bem como o quarto de Belle. Cuidadosamente, devassamos os quartos sem esquecer as peças desocupadas do terceiro andar e as dependências dos criados. Nada de suspeito foi descoberto, entretanto.

Ainda que Vance reprimisse sua ansiedade, eu podia dizer que ele agia debaixo de uma tensão nervosa extrema, pela pressa com que levou a cabo sua investigação.

Por fim, chegamos a uma porta fechada a chave, situada na parte posterior do vestíbulo de cima.

— Para onde dá essa porta? — perguntou Vance.

— Para um pequeno quarto no sótão que nunca usam, senhor...

— Abra-a.

O homem procurou a chave no molho que levava consigo.

— Não encontro a chave, senhor; devia estar aqui...

— Quando a teve pela última vez?

— Não poderia dizer, senhor. Que eu saiba, faz muito anos que ninguém entra nesse quarto.

Vance recuou um passo e abaixou-se.

Fique aí ao lado, Pyne.

Vance lançou-se de encontro à porta com uma força terrível. Ouviu-se um estrondo e um arrebentar de madeira, porém a fechadura se manteve incólume.

Markham avançou para ele e segurou-o pelos ombros.

— Você está louco! — exclamou. — Está violando a lei!

— A lei! — A resposta de Vance encerrava severa ironia. — Estamos tratando com um monstro que burla a lei. Você pode defendê-lo, se quiser; mas eu vou examinar este sótão ainda que tenha de passar o resto de minha vida num cárcere. Sargento, abra esta porta!

Outra vez, experimentei um sentimento de simpatia por Heath. Sem hesitar um momento, pôs-se na ponta dos pés e lançou seus ombros contra a porta, exatamente acima da fechadura, quebrando a madeira e fazendo saltar o ferrolho através da moldura. A porta girou para o lado de dentro.

Vance desfez-se do braço de Markham, e correu escadas acima, seguido por nós. Não havia luz no sótão e nos detivemos um momento em cima da escada, para nos habituarmos à escuridão. Vance acendeu um fósforo e, caminhando às apalpadelas para diante, ergueu uma cortina com ruído. A luz do sol penetrou no aposento, deixando-nos ver um pequeno quarto, de apenas três metros quadrados, cheio de trastes.

O ar era pesado e sufocante. As paredes, o assoalho e todos os objetos estavam cobertos de uma grossa camada de pó.

Vance esquadrinhou rapidamente o quarto e uma espécie de desânimo se lhe estampou no rosto.

— Este é o último lugar que nos resta — sublinhou com a lentidão do desalento.

Depois de um minucioso exame do quarto, dirigiu-se ao canto perto de uma pequena janela e encontrou uma maleta estragada junto a ela. Notei que não tinha fechadura e que suas correias estavam livres. Inclinando-se para diante, abriu-lhe a tampa.

— Oh, enfim há aqui alguma coisa para você, Markham! Rodeamos Vance e vimos na maleta uma velha máquina de escrever, marca Corona. No cilindro, havia uma folha de papel em que estava escrito num tom azul-pálido, o seguinte:

 

"A pequena Misse Muffet

Estava sentada na relva."

 

Neste ponto, o datilografo havia sido interrompido ou talvez qualquer outro motivo o impedira de continuar a rima infantil.

— É a nova nota do Bispo para os jornais — observou Vance. Em seguida, procurando na maleta, achou uma pilha de papel em branco e de envelopes. No fundo, havia um caderno de couro roxo com folhas delgadas e amarelas. Entregou-o a Markham, com a observação concisa:

— Os cálculos de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas, apesar de tudo, havia ainda em seus olhos um ar de derrota, e outra vez começou ele a inspecionar o quarto. Daí a pouco, dirigiu-se a um toucador que se achava encostado à parede oposta à janelinha. Ao inclinar-se para ver atrás do toucador, retrocedeu subitamente e, levantando a cabeça, fungou várias vezes. Ao mesmo tempo, viu algo no chão, a seus pés, e com um pontapé atirou o objeto para o centro do quarto. Olhamos com assombro. Era uma máscara contra gases, como as que usam os químicos.

— Para trás! — ordenou ele e, levando uma mão ao nariz e à boca, afastou da parede, com a outra, o toucador. Exatamente atrás havia a porta de um cubículo, de quase um metro de altura, incrustada na parede. Abriu-a com um puxão violento e olhou para dentro, fechando-a bruscamente em seguida. E não obstante o curto espaço de tempo em que esteve aberta a porta, pude ver o que havia dentro: duas estantes, a inferior com livros abertos e a superior com um frasco de Erlenmeyer preso a um suporte de ferro, uma lâmpada de álcool, um tubo condensador, um copo grande de vidro para análises e duas garrafinhas.

Vance voltou-se e nos dirigiu um olhar de desespero.

— Podemos ir. Aqui não há nada mais. Regressamos à sala, deixando Tracy montando guarda à porta do sótão.

— Talvez, apesar de tudo, você encontre justificativa para a sua devassa na casa — disse Markham, dirigindo a Vance um olhar sério. — Mas, sou contrário a esses métodos. Se não tivéssemos encontrado a máquina de escrever...

— Oh, bah! — Vance, preocupado e agitado, foi até a janela que dá para o campo de exercícios. — Eu não procurava a máquina de escrever, nem o caderno. Para quê? — A cabeça caiu-lhe sobre o peito e seus olhos se fecharam numa espécie de torpor da derrota. — Tudo saiu mal... fracassou minha lógica. Chegamos demasiado tarde.

— Não estou querendo saber o que tanto o contraria — disse Markham. — Mas, você me forneceu uma prova de importância. Agora, poderei prender Arnesson quando ele voltar da Universidade.

— Sim, sim, por certo. Mas eu não estava pensando em Arnesson, nem na prisão do culpado, ou no triunfo do gabinete do procurador do distrito. Eu esperava...

Aqui Vance parou e se empertigou.

— Não chegamos tarde! Não havia pensado... — Correu veloz em direção à porta. — O que devemos devassar é a casa de Drukker... Depressa!

Já estava na metade do caminho para o vestíbulo, Heath atrás dele, e Markham e eu fechando o cortejo.

Descemos pela escada dos fundos, atravessamos a sala do clube e saímos. Não sabíamos, e duvido que algum de nós pudesse adivinhar o que havia no espírito de Vance; porém, algo de sua excitação interior nos tinha influenciado e pensamos que só uma grande urgência o teria posto completamente fora de sua atitude habitual de alheamento e calma.

Quando chegamos à porta de arame trançado da casa de Drukker, ele passou a mão pela trama rota e abriu o trinco. Para assombro meu, a porta da cozinha estava sem chave. Vance parecia contar com isto, pois sem hesitação fez girar a maçaneta e abriu a porta. i

— Esperem! — disse ele, detendo-se no pequeno pórtico dos fundos. — Não há necessidade de examinar toda a casa. O lugar mais provável é... Sim! Vamos... Acima... em algum lugar no centro da casa... no armário provavelmente... onde ninguém pudesse ouvir...

Ao mesmo tempo em que falava, subia a escada e indicava-nos o caminho, passou pela porta do quarto da Sra. Drukker e pelo gabinete do filho, indo até o terceiro pavimento. Aqui não havia mais do que duas portas, uma na extremidade final e outra, menor, na metade do caminho, ao lado direito. Vance dirigiu-se imediatamente para esta última. A chave estava na fechadura, e ele, fazendo-a girar, abriu a porta.

Uma obscuridade completa reinava ali. Em um segundo, Vance se achava ajoelhado, tateando nas coisas.

— Rápido, sargento, sua lanterna.

Quase antes de pronunciar estas palavras, um círculo luminoso irrompeu no chão do quartinho. O que vi me fez estremecer de horror. Uma exclamação abafada partiu da boca de Markham. Um leve sibilo me disse que também Heath estava aterrado pelo que vira. Diante de nós, no chão, jazia a criaturinha que levara flores ao seu malogrado Humpty Dumpty, na manhã do enterro deste. Seus cabelos dourados estavam desgrenhados, o rosto pálido como a morte, e em suas pálpebras havia sinais enxutos de lágrimas inúteis. Vance inclinou-se e auscultou o coração da menininha. Em seguida, ergueu-a nos braços, com ternura.

— Pobre pequena Muffet — murmurou e, levantando-se, foi até à escada da frente. Heath o precedeu, alumiando o caminho para que ele não tropeçasse. No vestíbulo principal inferior se deteve.

— Abra a porta, sargento.

Heath obedeceu com presteza e Vance saiu pelo jardim.

— Va para a casa de Dillard e espere-me lá — disse por cima do ombro.

E, com a criança apertada contra o peito, atravessou diagonalmente a Rua 76, em direção a uma casa em que pôde distinguir uma chapa de bronze com o nome de um médico.


XXV

 

CAI O PANO

 

(Terça-feira, 26 de abril — 11h)

 

Vinte minutos depois, Vance juntou-se a nós na sala de visitas da casa de Dillard.

— Está fora de perigo — anunciou, mergulhando numa poltrona e acendendo um cigarro. — Estava apenas desacordada. Havia desmaiado de susto. Achava-se meio asfixiada. Seus bracinhos apresentam equimoses, como se tivesse lutado para libertar-se do monstro, ao ver que na casa não se encontrava Humpty Dumpty. Em seguida, a besta humana encerrou-a à chave no quartinho. Não teve tempo de matá-la, sabe? Ademais, no livro não constava que devia matá-la. "A pequena Miss Muffet" não foi assassinada... mas simplesmente aterrorizada. Entretanto, ela teria morrido por falta de ar. E ele ficaria a salvo, pois ninguém poderia ouvir os gritos dela...

Os olhos de Markham pousaram afetuosamente em Vance.

— Sinto muitíssimo ter procurado retê-lo — disse singelamente. (Pois, apesar de seus instintos convencionalmente legais, havia em sua natureza uma grandeza fundamental.) — Você teve razão em violar os regulamentos, Vance... E você também, sargento, pois devemos muitíssimo à sua determinação e à sua fé.

Heath estava embaraçado.

— Não é nada, senhor. Como vê, o Sr. Vance me encheu a cabeça a respeito da menina. E como eu gosto muito de crianças...

Markham dirigiu a Vance um olhar inquiridor.

— Esperava você encontrar com vida a menina?

— Sim; porém narcotizada ou aturdida por um golpe qualquer. Nunca a acreditei morta, pois isto teria contrariado o humor do Bispo.

Heath devia estar parafusando algum ponto incômodo.

— O que não pode entrar em minha cabeça — disse — é por que o Bispo, sempre tão cuidadoso, deixou aberta a porta da casa de Drukker, e não a fechou à chave.

— Esperava que encontrássemos a criaturinha — respondeu Vance. — Tudo foi preparado para nós. O Bispo foi muito delicado, não? Porém não acreditava que a encontrássemos, antes de amanhã... depois que os jornais recebessem as notas sobre a "Pequena Miss Muffet", e que constituiriam nossa pista. Os acontecimentos quiseram que nós nos adiantássemos a esse cavalheiro.

— E por que não foram enviadas as notas, ontem?

— Evidentemente, esta foi a primeira intenção do Bispo; mas, imagino que achou melhor que o desaparecimento da menina atraísse antes a atenção pública. De outro modo, a relação entre Madalena Moffat e a "Pequena Miss Muffet" poderia ser obscura.

— Sim! — grunhiu Heath entredentes. — E, amanhã, a menina estaria morta. Então, não teria receio de que ela o identificasse.

Markham consultou o relógio e levantou-se com decisão.

— Não vale a pena esperar Arnesson. Quanto mais cedo o prendermos, tanto melhor.

Estava para dar uma ordem a Heath, quando Vance o interrompeu.

— Não nos apressemos, Markham. Não temos nenhuma prova positiva contra o homem. É uma situação muito delicada, esta. Devemos ir cuidadosamente, senão fracassaremos.

— No meu entender, o achado da máquina e do caderno não é concludente — manifestou Markham a Vance. — Mas a identificação pela menina...

— Oh, meu caro amigo! Que fé poderia dar um júri a uma identificação feita por uma menina de cinco anos, amedrontada, sem uma poderosa evidência esclarecedora? Um advogado inteligente anularia tal prova em cinco minutos. E ainda concordando que você pudesse fazer valer a identificação, de que lhe serviria? Não relacionaria de nenhum modo -Arnesson com os assassinatos do Bispo. Você só poderia processá-lo por crime de tentativa de seqüestro... Lembre-se de que a menina não está ferida. E se você, por um milagre legal, obtivesse uma prova de culpabilidade duvidosa, tudo o que Arnesson receberia não passaria de alguns anos de prisão. E isto não acabaria com o terror... Não nos devemos precipitar.

Markham voltou a sentar-se de mau humor. Compreendeu a força da argumentação de Vance.

— Mas, não podemos deixar que isto continue — declarou ferozmente. — Devemos parar este maníaco, de uma forma ou de outra.

— Sim, é verdade... — Vance começou a passear nervosamente pela sala. — Nós podemos fazê-lo contar a verdade, por meio de subterfúgios. Ele ainda não sabe que já encontramos a menina... É possível que o professor Dillard nos queira ajudar... — Interrompeu seu passeio e ficou olhando o chão. — Sim! É nossa única oportunidade. Devemos enfrentar Arnesson com o que sabemos, na presença do professor. A situação forçará com segurança um resultado de qualquer espécie. O professor fará tudo, agora, para ajudar a condenar Arnesson.

— Acredita você que ele saiba mais do que já nos disse?

— Sem dúvida. Eu disse isso a você desde o princípio. E, quando ouvir o episódio da "Pequena Miss Muffet" é bem provável que nos forneça a prova de que necessitamos.

— É uma probabilidade muito remota. — Markham era pessimista. — Mas, não há prejuízo em experimentar. De todo modo, prenderei Arnesson antes de eu sair daqui, e espero que suceda o melhor.

Minutos depois, abriu-se a porta principal, aparecendo no vestíbulo oposto o professor Dillard. Este apenas retribuiu o cumprimento de Markham. Examinou nossas expressões como para descobrir o sentido da nossa visita inesperada.

— Vocês pensaram talvez no que eu lhes disse, ontem à noite, não é verdade?

— Não só pensamos — disse Markham — como também o Sr. Vance encontrou o que tanto preocupa o senhor. Depois que saímos daqui, ele nos mostrou um exemplar de Os Simuladores.

— Ah! — A exclamação era como que um suspiro de alívio.' — Durante muitos dias, este drama esteve envenenando meus pensamentos... — Ergueu com temor a vista. — Que significa isto?

Vance respondeu à pergunta.

— Significa que o senhor nos conduziu à verdade. Agora, estamos esperando o Sr. Arnesson. E penso que, enquanto esperamos, seria bom que falássemos com o senhor, pois é possível que possa ajudar-nos...

O professor hesitou.

— Eu havia esperado que não me fizessem de instrumento de acusação contra o rapaz. — Sua voz tinha um tom trágico e paternal. Porém, logo em seguida seus traços enrijeceram-se. Uma chama de vingança brilhou em seus olhos. Sua mão apertou o castão da bengala. — Entretanto, não posso, agora, considerar meus sentimentos. Vamos. Farei o que puder.

Ao chegar à biblioteca deteve-se junto ao bar e serviu-se de um cálice de vinho do Porto. Depois de beber, voltou-se para Markham com um olhar de desculpa.

— Desculpe-me. Eu não estou em mim. — Aproximou-se da mesa de xadrez e dispôs cálices para nós. — Peço que esqueçam minha descortesia. — Encheu os cálices e sentou-se.

Creio que todos nós sentíamos necessidade de beber, depois dos horripilantes sucessos que acabávamos de presenciar.

Quando estávamos acomodados, o professor ergueu a vista penosamente para Vance, que se sentara diante dele.

— Diga-me tudo — disse. — Não me oculte nada. Vance tirou a cigarreira.

— Primeiro permita-me que lhe faça uma pergunta: onde esteve Arnesson, ontem à tarde, entre cinco e seis horas?

— Eu... não sei. — Havia em suas palavras certa relutância. — Tomou chá aqui, na biblioteca; mas saiu mais ou menos às quatro e meia e só voltou para jantar.

Vance encarou-o com simpatia, durante um momento, dizendo em seguida:

— Encontramos a máquina em que o Bispo escreveu suas notas. Estava dentro de uma velha maleta escondida no sótão desta casa.

O professor não deu sinal de sobressalto.

— Pôde o senhor identificá-la?

— Sem dúvida alguma. Ontem desapareceu do parque uma menininha chamada Madalena Moffat. No cilindro da máquina de escrever, havia uma folha de papel onde estava escrito:

"A pequena Miss Muffet Estava sentada na relva." A cabeça do professor Dillard caiu pesadamente para a frente.

— Outra atrocidade louca! Se eu não tivesse esperado até ontem à noite para avisá-los!

— Não houve grande prejuízo nisso — apressou-se a informar-lhe Vance. — Encontramos a menina a tempo. Agora, já está fora de perigo.

— Ah!

— Foi encontrada encerrada no quartinho do hall do andar superior da casa de Drukker. Nós pensávamos que ela devia estar aqui em alguma parte... e, por isso, devassamos o sótão de sua casa.

Após um breve silêncio, o professor perguntou:

— Que tem mais o senhor a dizer?

— O caderno de Drukker com anotações recentes sobre a teoria dos quanta, que havia sido roubado do quarto dele na noite de sua morte, apareceu também na maleta junto com a máquina de escrever.

— Ele desceu também a isso! — Não era uma pergunta; era mais uma exclamação de incredulidade. — Está você seguro de suas conclusões? Talvez se eu não tivesse fornecido nenhuma indicação ontem à noite... não teria semeado a semente da suspeita...

— Não pode haver dúvida — declarou Vance tranqüilamente. — O senhor Markham pensa deter Arnesson, quando ele voltar da Universidade. Mas para ser-lhe franco, senhor, não temos prova legal alguma. E o próprio Markham pergunta se a lei pode detê-lo ou não. O mais que podemos conseguir é uma prova de culpabilidade por tentativa de seqüestro, por meio da identificação que a menina realize.

— Ah, sim... A menina pode reconhecê-lo. — Nos olhos do ancião surgiu uma expressão de amargura. — Entretanto, deveria haver outros meios de obter justiça para os outros crimes.

Vance sentou-se, fumando pensativamente, com os olhos postos na parede oposta. Ao cabo de um instante, falou com tranqüila gravidade:

— Se Arnesson estivesse convencido de que as provas contra ele eram fortes, seria capaz de escolher o suicídio como meio de eliminação. Era, talvez, a solução mais humana para todos.

Markham ia protestar indignado, porém Vance adiantou-se a ele:

— O suicídio não é um ato indefensável por si. A Bíblia contém muitos relatos de suicídios heróicos. Que exemplo mais belo de valor que o de Rhazis, quando se arrojou da torre para fugir ao jugo de Demétrio? (1) Também existiu valentia na morte do porta-espadas de Saul e, com toda a certeza, nos suicídios de Sansão e de Judas Iscariotes também se pode encontrar alguma virtude.

(1) Admito que o nome de Rhazis não me era familiar. E quando examinei mais tarde o assunto, verifiquei que o episódio a que Vance se referia se encontra no livro segundo (apócrifo) dos Macabeus.

 

A História está cheia de suicídios notáveis... os de Bruto e Catão de Útica, de Aníbal, Lucrécia, Cleópatra, Sêneca... Nero se matou antes de cair nas mãos de Oto e dos guardas pretorianos. Na Grécia, temos a famosa auto-eliminação de Demóstenes; Empédocles arrojou-se na cratera do Etna. Aristóteles foi o primeiro grande pensador a emitir a opinião de que o suicídio é um ato anti-social, mas segundo a tradição ele se envenenou depois da morte de Alexandre. E nos tempos modernos, não esqueçamos o gesto sublime do Barão de Nogi...

— Tudo isso não justifica o ato — replicou Markham. — A lei...

— Ah, sim... a lei. Na China, todos os criminosos condenados à morte podem optar pelo suicídio. O código adotado pela Assembléia Nacional Francesa, no fim do século XVIII, aboliu todo castigo pelo suicídio; e no Sachsenspiegel, a base principal da lei alemã, está claramente esclarecido que o suicídio não é um ato punível. Além disso, entre os donatistas, circunceliões e patrícios, o suicídio era considerado um ato agradável aos deuses. Além disso, na Utopia de More havia um sínodo que decidia do direito do cidadão de abandonar a vida... A lei, Markham, é para proteger a sociedade. E que dizer de um suicídio que torne possível essa proteção? Devemos invocar um tecnicismo legal quando, fazendo assim, deixamos a sociedade desprotegida para que o perigo continue? Não há lei mais alta que as leis escritas nos livros?

Markham sentia-se profundamente perturbado. Levantando-se, começou a passear de um lado para outro, na sala, e seu semblante mostrava ansiedade. Quando voltou a sentar-se, fixou Vance durante largo tempo, enquanto tamborilava com os dedos sobre a mesa, com indecisão nervosa.

— O inocente, naturalmente deve ser considerado — disse com voz cheia de desalento. — Apesar do erro do suicídio, sob o ponto de vista moral, concordo com sua idéia de que, às vezes, ele pode ser justificado teoricamente.

(Conhecendo Markham como eu conhecia, avaliei como lhe devia ter custado essa concessão e calculei, por outro lado, quão totalmente desesperançado se sentiu diante do flagelo que era de seu dever exterminar.)

O velho professor meneou a cabeça, compreensivamente.

— Sim; há alguns segredos tão hediondos que é melhor que o mundo não os conheça. Uma justiça mais alta pode, às vezes, ser lograda, sem que a lei intervenha.

No momento em que falava, abriu-se a porta e Arnesson entrou na biblioteca.

— Bem, bem, outra conferência, hem? — Dirigiu-nos um olhar de troça e deixou-se cair numa cadeira ao lado do professor. — Acreditei que o assunto já tinha sido adjudicado, por assim dizer. Não pôs fim a tudo o suicídio de Pardee?

Vance olhou fixamente nos seus olhos.

— Encontramos a "Pequena Miss Muffet", Sr. Arnesson. Este ergueu as sobrancelhas com uma expressão ao mesmo

tempo jocosa e sardônica.

— Parece uma charada.

— Encontramo-la na casa de Drukker, encerrada num quartinho — disse, ampliando sua explicação com voz baixa e monótona. Arnesson ficou sério e franziu as sobrancelhas involuntariamente. Mas, este enfraquecimento de sua pose foi apenas passageiro. Lentamente sua boca esboçou um sorriso afetado.

— Os senhores, os policiais, são tão eficientes! Imaginam encontrar Miss Muffet tão cedo. É notabilíssimo. — Ele meneou ligeiramente a cabeça num gesto de admiração zombeteira. — Entretanto, tarde ou cedo, era de esperar. E qual, se me é permitida a pergunta, será o próximo passo?

— Também encontramos a máquina de escrever — prosseguiu Vance, não dando atenção à pergunta. — E o caderno de Drukker que havia sido roubado.

Arnesson se pôs imediatamente em guarda.

— Deveras? — dirigiu a Vance um olhar prudente. — Onde estavam esses objetos?

— Em cima, no sótão.

— Olá! Violação de domicílio?

— Mais ou menos isso.

— Por outro lado, — disse Arnesson com mofa, — não posso acreditar que o senhor tenha prova suficiente contra alguém. Uma máquina de escrever não é um terno que assenta bem apenas numa determinada pessoa. E quem pode dizer como pôde chegar ao nosso sótão o caderno de Drukker? Tem de proceder melhor, senhor Vance.

— Por certo, existe o fator da oportunidade. O Bispo é uma pessoa que pôde ter estado disponível no momento de cada assassinato.

— Esta é a prova concorrente mais inconsistente que pode haver — replicou o homem. — Não seria de grande valor como prova de culpabilidade.

— Poderíamos mostrar por que o assassino preferiu o nome de Bispo.

— Ah! Isto, sim, poderia ser útil. — Uma nuvem cobriu o rosto de Arnesson e seus olhos tornaram-se evocativos. — Eu também havia pensado nisso.

— Oh, deveras? — Vance observava-o de perto. — E há outra prova que não mencionei. A Pequena Miss Muffet poderia identificar o homem que a conduziu à casa de Drukker, encerrando-a num quartinho.

— Deveras? Melhorou a enferma?

— Sim. Na verdade, está quase boa. Encontramo-la vinte e quatro horas antes da hora que o Bispo desejava que a encontrássemos.

Arnesson ficou silencioso. Olhava suas próprias mãos que, embora fechadas, se moviam nervosamente. Por fim, falou:

— E se, apesar de tudo, o senhor estivesse equivocado...

— Asseguro-lhe, Sr. Arnesson — disse Vance tranqüilamente — que eu sei quem é o culpado.

— Positivamente o senhor me alarma! — Arnesson tinha recuperado o domínio sobre si mesmo e replicou com mordaz ironia. — Se, por acaso, fosse eu o Bispo, estaria inclinado a admitir a derrota... Entretanto, é evidente que foi o Bispo que levou a peça de xadrez à casa da Sra. Drukker e eu não voltei para casa com Belle, senão às doze e meia.

— Assim disse você a ela. Se bem me recordo, você mesmo foi que consultou seu relógio para dizer-lhe a hora. Bem, que horas eram?

— Doze e meia.

Vance suspirou e deitou a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Diga-me Sr. Arnesson, é o senhor um bom químico?

— Sou um dos melhores — sorriu ele. — Diplomei-me em Química. Que tem isso?

— Quando, esta manhã, estive examinando o sótão, descobri um cubículo em que alguém estivera extraindo ácido cianídrico do ferrocianureto de potássio. Havia uma máscara contra gases, como as que usam os químicos em seus laboratórios e todos os atavios pertinentes. Um cheiro de amêndoas amargas dominava o ambiente.

— Nosso sótão é um tesouro descoberto. Uma espécie de retiro de Loki, diria eu.

— Era isso mesmo — replicou Vance gravemente — o antro de um espírito mau.

— Ou o laboratório de um moderno Dr. Fausto... Mas, para que o cianureto?

— Eu diria que por precaução. Em caso de apuro, o Bispo poderia partir desta vida, sem sofrimento algum. Tudo preparado, sabe?

Arnesson meneou a cabeça.

— Atitude corretíssima da parte dele. Na realidade, é muita decência dele, creia-me. Sim, é uma atitude muito correta.

Durante este diálogo sinistro, o professor Dillard havia permanecido sentado, apertando os olhos com a mão como se sentisse uma grande dor. Voltou-se então para o homem que havia protegido durante tantos anos, como um filho:

— Muitos grandes homens, Sigurd, justificaram o suicídio... — começou a dizer, porém Arnesson interrompeu-o logo com uma risota cínica.

— Bah! O suicídio não precisa de justificação. Nietzsche pôs nestes termos o espantalho da morte voluntária: "Um homem deve morrer orgulhosamente quando não lhe é mais possível viver com orgulho. A morte que sobrevém em circunstâncias desprezíveis, a morte que não é livre, a morte que ocorre quando não deve ocorrer, é a morte de um covarde. Não temos o poder de evitar nosso nascimento; porém, este erro — pois às vezes é um erro — pode ser retificado se o desejarmos. O homem que se elimina realiza o mais respeitável dos atos. Quase merece viver por tê-lo praticado". Em minha juventude decorei esta passagem no Gotzen-Dämmerung. Nunca a esqueci. Uma doutrina sã, por certo.

— Nietzsche teve muitos predecessores famosos que também defenderam o suicídio — acrescentou Vance. — Zenon, o estóico, nos legou um ditirambo apaixonado elogiando a morte voluntária. E Tácito, Epicteto, Marco Aurélio, Catão, Kant, Fichte, Diderot, Voltaire e Rousseau, todos eles fizeram a apologia do suicídio. Schopenhauer protestou amargamente por ser o suicídio considerado crime na Inglaterra... E, no entanto, penso se é um assunto que deva ser formulado. De qualquer modo, sinto que é uma questão muito pessoal para uma discussão acadêmica.

O professor concordou tristemente.

— Ninguém pode saber o que sucede no coração do homem, em sua última hora negra.

Durante esta discussão, Markham se impacientava cada vez mais e seus nervos estavam por estalar. Heath, embora a princípio firme e vigilante, agora começava a derrear. Eu não podia constatar se Vance tinha feito algum progresso. E cheguei à conclusão de que havia fracassado redondamente no seu propósito de armar um laço a Arnesson. Entretanto, ele não parecia de modo algum perturbado. Mais ainda, minha impressão era de que estava satisfeito com o rumo tomado pelas coisas. Mas, isto eu não notei, a despeito de toda a sua calma, estava intensamente alerta. Seus pés mantinham-se encolhidos e suspensos. E todos os músculos de seu corpo retesados.

Comecei a pensar onde pararia aquela terrível conferência.

O final chegou rapidamente. Um breve silêncio seguiu-se ao comentário do professor. Em seguida, Arnesson dirigiu-se a Vance:

— O senhor disse que sabe quem é o Bispo. Se é assim, a que vem todo esse palavrório?

— Não havia muita pressa. — Vance disse isto quase displicentemente. — E tinha esperança de obter todos os dados. Os jurados são muito exigentes, sabe?... Além disso, este vinho do Porto está excelente...

— O vinho do Porto?... Ah, sim. — Arnesson olhou os nossos cálices, e em seguida dirigiu um olhar aborrecido para o professor. — Desde quando sou abstêmio, senhor?

O professor Dillard sobressaltou-se, titubeou e levantou-se.

— Desculpe-me, Sigurd. Não me lembrava... como você nunca bebe pela manhã.

Foi até ao licoreiro e, enchendo outro cálice, colocou-o com a mão insegura diante de Arnesson. Depois tornou a encher os outros cálices.

Mal se tinha sentado, Vance soltou uma exclamação de surpresa. Tinha-se levantado e estava inclinado para diante, com as mãos apoiadas no bordo da mesa, e os olhos, cheios de assombro, fixos no painel do outro extremo da sala.

— Demônio! Nunca o tinha notado... Extraordinário! Tão inesperado e surpreendente havia sido esse gesto e tão tensa estava a atmosfera, que, involuntariamente, nos voltamos e dirigimos a vista na direção do seu olhar fascinado.

— Um quadro de Cellini! — exclamou ele. — A Ninfa de Fontainebleau! Berenson disseme que foi destruído no século XXVII. Vi uma reprodução no Louvre...

A indignação de Markham congestionou-lhe as faces. Em relação a mim, direi que, apesar de estar familiarizado com as idiossincrasias de Vance e com a sua paixão intelectual pelas coisas antigas, nunca o tinha visto exibir tão indefensável mau gosto. Parecia incrível que se distraísse com um objeto de arte, em um momento tão trágico.

O professor Dillard olhou para ele com o cenho cerrado e cheio de consternação.

— Escolheu um momento estranho, senhor, para demonstrar o seu entusiasmo pela arte — foi o comentário que fez o professor.

Vance parecia abatido e mortificado. Mergulhou em sua poltrona, evitando os nossos olhares, e começou a mover o cálice entre os dedos.

— O senhor tem razão — murmurou ele. — Devo pedir-lhe desculpas.

— A tela, incidentemente — acrescentou o professor, como para mitigar a severidade da sua censura — é simplesmente uma cópia da que existe no Louvre.

Vance, como se desejasse ocultar a sua confusão, levou o cálice aos lábios. Foi um momento altamente desagradável. Nossos nervos estavam quase estalando e, automaticamente, imitando o seu gesto, erguemos também os nossos cálices.

Vance lançou um rápido olhar através da mesa e, levantando-se, caminhou até à janela, onde permaneceu encostado. Tão inesperada foi sua marcha apressada que eu me voltei e observei-o pensativamente. Quase ao mesmo tempo, a mesa foi empurrada para o meu lado e, simultaneamente, ouviu-se um barulho de copos que se quebravam.

Pus-me de pé e olhei com horror o corpo inerte e estirado para diante na cadeira oposta com um braço e um ombro apoiados sobre a mesa. A isto seguiu-se um breve silêncio de espanto e aturdimento. Cada um de nós parecia momentaneamente paralisado. Markham permanecia como uma imagem esculpida, os olhos fixos na mesa. Heath, olhando, sem poder falar, se comprimia contra o espaldar de sua cadeira.

— Santo Deus!

Foi a exclamação de assombro de Arnesson que quebrou a atenção.

Markham deu volta à mesa, inclinando-se sobre o corpo do professor Dillard.

— Chame um médico, Arnesson — ordenou.

Vance voltou, sucumbido, da janela e deixou-se cair na poltrona.

— Nada se pode fazer — disse ele com profundo suspiro de fadiga. — Preparou-se para morrer rapidamente e sem dor, quando destilou o cianureto. O caso do Bispo está encerrado.

Markham olhava-o, sem compreender.

— Oh, eu suspeitava mais ou menos da verdade, desde a morte de Pardee — continuou Vance, respondendo à pergunta muda de Markham. — Mas não tive certeza, senão ontem à noite, quando começou a culpar o Sr. Arnesson.

— Hem? Que é isto? — Arnesson voltava do telefone.

— É o que eu digo — concluiu Vance, meneando a cabeça. — Você é que ia pagar pela culpa de outro. Desde o princípio foi escolhido como vítima. Mais ainda, ele nos sugeriu a culpabilidade de você.

Arnesson não parecia tão surpreso como se esperava.

— Eu sabia que o professor me odiava — disse ele. — Tinha um ciúme intenso de meu interesse por Belle. E, além disto, sua capacidade intelectual estava em decadência... isto notei há meses. O trabalho de seu último livro foi meu, e ele se ressentia, quando me concediam honras acadêmicas. Eu desconfiava de que ele estivesse atrás de toda essa diabrura; mas não tinha certeza. Não obstante, nunca acreditei que ele tentasse enviar-me para a cadeira elétrica.

Vance levantou-se e, estendendo a mão a Arnesson, lhe disse:

— Não havia perigo disto. Agora devo pedir-lhe desculpas pela forma por que eu o tratei, nesta última meia hora. Foi uma questão de tática. Como você sabe, não tínhamos nenhuma prova real e eu esperava forçar a mão dele.

Arnesson sorriu tristemente.

— Não é necessária nenhuma desculpa. Eu sabia que você não tinha o olho posto em mim. Quando você começou a incomodar-me, sabia que era só uma questão de técnica. Não sabia o que você procurava, mas segui as suas sugestões o melhor que pude. Espero que não lhe tenha entorpecido a ação.

— Não, não, você portou-se bem.

— Deveras? — Arnesson franziu o sobrolho com profunda perplexidade. — Mas o que não compreendo é por que ele tomou cianureto, sabendo que o suspeitado era eu.

— Este ponto particular não o saberemos nunca — disse Vance. — Talvez ele temesse a identificação da menina, ou pode ter percebido o meu ardil. Ou quem sabe tenha-se revoltado de súbito ante a idéia de ter posto sobre você todo o peso da culpa... Como ele mesmo disse, ninguém sabe o que se passa no coração do homem durante a sua última hora negra.

Arnesson não se moveu. Fixava os olhos em Vance com penetrante sagacidade.

— Oh, bem — disse ele por fim. — Deixaremos a coisa assim... De qualquer modo, obrigado!


XXVI

 

HEATH FAZ UMA PERGUNTA

 

(Terça-feira, 26 de abril — 16h)

 

Quando Markham, Vance e eu saímos da casa de Dillard uma hora depois, pensei que o assunto do Bispo estivesse encerrado. E assim era com efeito, em relação ao público, porém iria surgir outra revelação, que foi, de certo modo, o fato mais surpreendente de todos os que ocorreram naquele dia.

Heath reuniu-se a nós, no gabinete do procurador do distrito, depois do almoço, pois havia diversos assuntos oficiais delicados a tratar. E, mais tarde, naquele mesmo dia, Vance reviu todo o processo, explicando muitos dos seus pontos obscuros.

— Arnesson já sugeriu o motivo desses crimes insanos — principiou ele. — O professor percebeu que sua posição, no mundo da ciência, estava sendo usurpada pelo homem mais moço. Seu espírito tinha começado a perder a força de penetração; e ele verificou que seu novo livro sobre a estrutura atômica não teria sido escrito sem a colaboração de Arnesson. Um ódio enorme cresceu dentro dele contra o seu protegido. A seus olhos, Arnesson tornou-se um monstro que ele mesmo, como Frankenstein, havia criado, e que agora se levantava para destruí-lo. E esta inimizade intelectual era agravada por uma primitiva emoção de ciúme. Durante dez anos, ele havia concentrado em Belle Dillard toda a afeição da sua vida de solteirão; ela representava um apoio na sua existência quotidiana; e, quando viu que Arnesson provavelmente conquistaria o coração dela, seu ódio e ressentimento redobraram de intensidade.

— O motivo é compreensível — disse Markham. — Mas não explica os crimes.

O motivo atuou como faísca na pólvora seca de suas emoções recalcadas. Procurando um meio para destruir Arnesson, ele imaginou os diabólicos assassinatos do Bispo. Esses crimes constituíram uma válvula para as suas repressões e satisfizeram sua necessidade psíquica de uma expressão violenta. E, ao mesmo tempo, responderam à pergunta, formulada em seu espírito, de como poderia ver-se livre de Arnesson e conservar Belle Dillard para si.

— Mas por que — perguntou Markham — não assassinou simplesmente Arnesson e terminou com tudo de uma vez?

— Você passa por alto sobre os aspectos psicológicos da situação. O espírito do professor havia-se desintegrado, através de uma intensa e longa repressão. A natureza pedia um desafogo. E foi seu ódio contra Arnesson que levou a pressão ao ponto de explosão. Os dois impulsos ficaram assim combinados. Ao cometer os assassinatos, não só aliviava suas inibições, como também descarregava o seu ódio contra Arnesson, pois este, como se sabe, era quem ia pagar a culpa. Semelhante vingança era mais poderosa, e daí também mais satisfatória, do que o simples assassinato do homem... Era a grande farsa tétrica, no fundo das farsas menores dos assassinatos em si mesmos.

"Sem embargo, esse diabólico plano tinha uma grande desvantagem que o professor não notou. Deixava o assunto aberto a uma análise psicológica; e, no princípio, pude postular que o agente do crime era um matemático. A dificuldade de mencionar o nome do assassino residia no fato de que quase todos os suspeitos eram matemáticos. O único de cuja inocência eu estava certo era Arnesson, pois era o único que mantinha o equilíbrio psíquico, quer dizer, que constantemente descarregava as emoções que se formavam, durante suas prolongadas especulações abstrusas. Uma atitude geral sádica e céptica voluvelmente expressa e uma explosão homicida violenta são psicologicamente equivalentes. Dar rédea solta ao ceticismo de alguém à medida que se vai desenvolvendo produz um desafogo normal e mantém o equilíbrio emocional. Os homens cépticos e zombeteiros são sempre equilibrados, pois estão muito longe de explosões físicas esporádicas; enquanto que o homem que reprime o sadismo e acumula o cepticismo sob uma aparência estóica e grave é sempre capaz de explosões perigosas. É por isso que eu sabia que Arnesson seria incapaz de cometer os assassinatos do Bispo, e aí está por que eu sugeri a você, Markham, que permitisse que ele nos auxiliasse na investigação. Como nos disse, ele suspeitava do professor. E seu pedido para que lhe permitíssemos auxiliar-nos na investigação dos fatos era, creio eu, movido pelo desejo de estar ao corrente de tudo de modo a poder proteger melhor Belle Dillard e proteger-se a si mesmo, caso suas suspeitas se verificassem.

— Isso parece razoável — concordou Markham. — Mas onde se inspiraram as idéias fantásticas do professor Dillard sobre o modo de executar esses crimes?

— O tema folclórico infantil, provavelmente, lhe foi sugerido, quando ouviu Arnesson dizer, por gracejo, a Robin que tivesse cuidado com as flechas que partiam do arco de Sperling. Ele viu, nessa observação pilhérica, um meio de desafogar seu ódio contra um homem que o havia sobrepujado; e esperou o momento. A oportunidade de cometer seu crime apresentou-se, pouco tempo depois. Quando viu Sperling subir a rua, aquela manhã, soube que Robin estava só na sala do clube. Assim que desceu, falou com Robin, deu-lhe um golpe na cabeça, cravou-lhe uma flecha no coração e arrastou-o para fora. Depois lavou as manchas de sangue, destruiu o pano de que se servira, deixou sua nota na caixa do correio da esquina e outra na da correspondência da casa, voltou à biblioteca e telefonou para a Procuradoria do Distrito. Um fator imprevisto produziu-se, no entanto; Pyne estava no quarto de Arnesson, quando o professor disse que saíra para a sacada, porém nenhum prejuízo sobreveio, pois, embora Pyne desconfiasse de que algo anormal estava acontecendo, quando ouviu o professor mentir, certamente não suspeitou de que seu velho patrão fosse um assassino. O crime foi um sucesso.

— E, no entanto — interrompeu Heath, — o senhor adivinhou que Robin não tinha sido morto por um flechaço.

— É certo. Eu descobri isto pela condição do punho da flecha introduzida no corpo de Robin. E deduzi, por conseguinte, que este tinha sido morto no interior da casa, depois de receber o golpe na cabeça. Por isso, concluí que o arco havia sido atirado pela janela para o campo de exercícios. Então eu não sabia que o professor era culpado. Indubitavelmente, o arco nunca esteve fora. Mas a evidência, em que eu baseava as minhas deduções, não pode ser considerada como um erro ou descuido da parte do professor. Contanto que o episódio do folclore infantil fosse realizado, o resto não tinha importância para ele.

— Que instrumento pensa que ele usou? — perguntou Markham.

— Provavelmente sua bengala. Você deve ter notado que ela tem um enorme castão de ouro perfeitamente construído como arma letal.(1) A propósito, estou inclinado a crer que ele exagerava sua gota para atrair simpatia e afastar de si qualquer suspeita possível.

(1) Mais tarde foi descoberto que o pesado castão de ouro, de quase vinte centímetros, estava solto e podia ser facilmente destacado da bengala. O castão pesava cerca de 900 gramas e, como Vance havia observado, constituía um cacete altamente eficiente. Se tinha sido ou não afrouxado para o propósito a que foi destinado é por certo uma conjetura.

 

— E a sugestão para o assassinato de Sprigg?

— Depois da morte de Robin, deve ter procurado, deliberadamente, material para outro crime no livro infantil de Mother Goose. Seja como for, Sprigg visitou a casa na quinta-feira, à noite, véspera de seu assassinato; e foi nesse momento, segundo creio, que a idéia surgiu. No dia escolhido para a sua monstruosa obra, ele se levantou cedo e vestiu-se, esperou que Pyne o chamasse às sete e meia, respondeu-lhe e, então, foi ao parque — provavelmente pela sala do clube e pela passagem. O costume de Sprigg de passear todas as manhãs pode ter sido casualmente mencionado por Arnesson ou pelo próprio moço.

— Mas como explica você a fórmula do tensor?

— O professor tinha ouvido Arnesson falar ao moço sobre ela, algumas noites antes. E eu penso que a colocou debaixo do corpo para despertar a atenção, por associação de idéias, sobre Arnesson. Mais ainda, aquela fórmula particular sutilmente expressava o impulso psicológico que animava os crimes. O tensor de Riemann-Christoffel é uma exposição do infinito espacial, a negação da vida humana infinitesimal desta terra; e, subconscientemente satisfez, sem dúvida, o senso de humor pervertido do professor, dando maior homogeneidade à sua concepção monstruosa. No momento em que a vi, percebi seu significado sinistro e consolidei minha teoria de que os crimes do Bispo eram obra de um matemático, cujos valores se haviam tornado abstratos e incomensuráveis.

Vance fez uma pausa para acender outro cigarro, continuando depois de um silêncio meditativo:

— Chegamos agora à visita de meia-noite à casa de Drukker. Isso foi um triste entreato forçado do assassino, motivado pela informação do grito da Sra. Drukker. Receava que a mulher houvesse visto o corpo de Robin ser arrojado para fora. E, quando, na manhã do assassinato de Sprigg, ela o encontrou no pátio de volta do crime, ele se sentiu mais preocupado do que nunca que ela pusesse as coisas no seu lugar. Não me admira que ele procurasse evitar que a interrogássemos. E na oportunidade mais próxima quis fazê-la silenciar para sempre. Tirou a chave da carteira de Belle Dillard, antes que ela saísse para o teatro aquela noite, pondo-a em seu lugar na manhã seguinte. Mandou Pyne e Beedle deitarem-se cedo; e às dez e meia Drukker se queixava de cansaço e retirava-se para a sua casa. À meia-noite, julgou que o cenário estava pronto para sua fatídica visita. O uso do bispo negro como assinatura simbólica do assassinato premeditado foi provavelmente inspirado pela discussão de xadrez entre Pardee e Drukker. Suspeito que ele nos falou sobre a partida de xadrez para chamar a atenção sobre o jogo de propriedade de Arnesson, no caso de o bispo vir a cair em nossas mãos.

— Crê você que ele tinha idéia de envolver Pardee naquela ocasião?

— Oh, não. Surpreendeu-se genuinamente quando a análise de Arnesson sobre a partida Pardee-Rubinstein revelou o fato de que o bispo tinha sido por largo tempo a Nêmesis de Pardee... E você estava indubitavelmente certo acerca da reação de Pardee, quando eu mencionei no dia seguinte o bispo negro. O pobre homem pensou que eu o ridicularizava deliberadamente por motivo da sua derrota nas mãos de Rubinstein...

Vance inclinou-se e deixou cair a cinza de seu cigarro no cinzeiro.

— Lastimo — murmurou com pesar. — Devo-lhe uma desculpa sabe? — Encolheu os ombros ligeiramente e, recostando-se em sua cadeira, prosseguiu a narração. — A idéia do assassinato de Drukker o professor a obteve da própria mãe deste. Ela comunicou seus temores imaginários a Belle Dillard, que os repetiu naquela noite, durante o jantar; e o projeto tomou corpo. Não havia complicações em sua execução. Depois do jantar, subiu ao sótão e datilografou as notas. Mais tarde, sugeriu um passeio a Drukker, sabendo que Pardee não se demoraria muito tempo com Arnesson. E, quando viu Pardee no caminho para cavaleiros do parque, soube que Arnesson estava só. Assim que Pardee se afastou, deu o golpe em Drukker, atirando-o em seguida do muro abaixo. Imediatamente, dirigiu-se pelo pequeno atalho até o Drive, cruzou a Rua Setenta e Seis e foi ao quarto de Drukker, voltando pelo mesmo caminho. Toda a cena não podia ocupar-lhe mais de dez minutos. Então, tranqüilamente, passou por Emery e dirigiu-se para casa com o caderno de Drukker por baixo do casaco...

— Mas, por que, — interrompeu Markham, — se você estava seguro de que Arnesson era inocente, fez cavalo-de-batalha da chave da porta da passagem? Somente Arnesson poderia ter usado a passagem na noite da morte de Drukker. Dillard e Pardee saíram pela porta da frente.

— Do ponto de vista da culpabilidade de Arnesson, eu não tinha interesse na chave. Mas, se esta não estava, isso significava que alguém a havia levado a fim de lançar suspeita sobre Arnesson. Quão simples teria sido para Arnesson deslizar pela passagem, depois que Pardee se retirou, cruzar o Drive até o pequeno atalho e atacar Drukker depois que o professor o tivesse deixado... E, Markham, isto é o que nós éramos forçados a pensar. Foi, de fato, a óbvia explicação do assassinato de Drukker.

— O que eu não posso compreender — queixou-se Heath — é por que o velho matou Pardee. Isto não lançava suspeita sobre Arnesson e fez com que crêssemos que Pardee era o culpado e que se havia, por isso, suicidado.

— Esse suicídio espúrio, sargento, foi a piada mais fantástica do professor. Foi ao mesmo tempo irônica e desdenhosa. Pois durante todo esse interlúdio cômico ele ruminou projetos para a destruição de Arnesson. E decerto a circunstância de possuirmos um culpado plausível tinha a grande vantagem de relaxar a vigilância e fazer com que os agentes fossem retirados da casa. O assassinato, creio eu, foi concebido espontaneamente. O professor inventou algum pretexto para acompanhar Pardee à sala do clube onde já tinha fechado as janelas e descido as persianas. Então, talvez apontando para algum artigo de revista, desfechou um tiro contra seu confiante hóspede, atingindo-o no peito, pôs-lhe o revólver na mão e, como humorista sardônico, construiu o castelo de cartas. Ao voltar à biblioteca, colocou as peças de xadrez como para fazer crer que Pardee tivesse estado refletindo sobre o bispo negro... Mas, como eu digo, este fragmento de grotesca maldade foi apenas um acontecimento secundário. O episódio da "Pequena Miss Muffet" devia ser o desfecho. E foi cuidadosamente projetado para que a tempestade caísse sobre Arnesson. O professor estava na casa de Drukker na manhã dos funerais, quando Madalena Moffat trouxe as flores para Humpty Dumpty; indubitavelmente ele conhecia o nome da criança. Era a favorita de Drukker e havia estado na casa deste em numerosas ocasiões. Com a idéia dos personagens do folclore infantil firmemente implantada em seu espírito, como uma obsessão homicida, associou naturalmente o nome de Moffat com Muffet. Por certo, é provável que Drukker ou a Sra. Drukker chamassem a menina "A pequena Miss Muffet", em sua presença. Foi fácil para ele atrair a atenção da menina e chamá-la para o montículo perto do muro, ontem à tarde. Provavelmente, disselhe que Humpty Dumpty desejava vê-la. E ela foi-se com ele ansiosamente, seguindo-o sob as árvores pelo caminho de cavaleiros, depois através do Drive e pela passagem entre os prédios de apartamentos. Ninguém os teria notado, pois o Drive a essa hora está cheio de crianças. Depois, à noite passada, ele lançou em nós a semente da suspeita contra Arnesson, crendo que, quando as notas da "Pequena Miss Muffet" chegassem à imprensa, procuraríamos a menina para encontrá-la morta por asfixia na casa de Drukker... Um plano diabólico e inteligente!

— Mas por que ele esperou que devassássemos o sótão de sua casa?

— Oh, sim, mas não antes de amanhã. Então, ele teria limpado o quarto e colocado a máquina num lugar mais seguro. E teria guardado o caderno, pois há muito pouca dúvida de que pretendia apropriar-se das investigações de Drukker sobre a teoria dos quanta. Mas nós chegamos um dia antes e todos os seus cálculos fracassaram.

Markham fumou pensativamente, durante um certo tempo.

— Você disse que estava convencido da culpabilidade de Dillard, ontem à noite, quando você recordou o personagem do Bispo Arnesson...

— Sim... oh, sim... Isso me deu o rumo. Naquele momento, concluí que a intenção do professor era lançar sobre Arnesson a culpabilidade e que a assinatura das notas havia sido escolhida com esse propósito.

— Ele esperou muito tempo antes de chamar-nos a atenção sobre Os Simuladores — comentou Markham.

— O fato é que não esperava ter de fazê-lo. Pensava que nós descobriríamos o nome por nós mesmos. Porém, éramos mais imbecis do que ele julgava. E, afinal, desesperado, chamou você e foi, inteligentemente, direto ao assunto, acentuando Os Simuladores.

Durante um momento, Markham permaneceu silencioso. Sentou-se, franzindo o cenho e tamborilando com os dedos no mata-borrão da mesa.

— Por que — perguntou afinal — você não nos disse, ontem à noite, que o professor e não Arnesson era o Bispo? Você nos fez pensar...

— Meu caro Markham! Que mais podia eu fazer? Em primeiro lugar, você não me acreditaria e provavelmente me teria sugerido outra viagem transoceânica. Mas era essencial fazer crer ao professor que suspeitávamos de Arnesson. De outro modo, não teríamos a probabilidade de forçarmos a decisão como conseguimos. O subterfúgio era a nossa única esperança; e eu sabia que, se você e o sargento suspeitassem dele, iriam logo descobrir o jogo. Deste modo, não tiveram de fingir e tudo saiu que foi uma beleza!

Notei que o sargento havia estado, durante a última meia hora, observando Vance, de vez em quando, com um olhar de incerteza perplexa; porém, por algum motivo, dava a impressão de achar-se embaraçado para exprimir os pensamentos que o preocupavam. Entretanto, nesse momento, mudou de posição, contrafeito, e, tirando com lentidão o cigarro da boca, fez a Vance uma pergunta alarmante:

— Eu não me queixo de o senhor não nos ter revelado sua idéia, ontem à noite, mas o que me agradaria saber é por que, quando o senhor se levantou de um salto e apontou para o painel existente no outro lado da sala, trocou o cálice do professor pelo de Arnesson?

Vance suspirou profundamente e meneou, desesperado, a cabeça.

— Eu devia ter sabido que nada podia escapar a seus olhos de águia, sargento.

Markham inclinou-se sobre a mesa e mirou Vance, com aturdimento e raiva.

— Que é isso! — exclamou Markham, esquecendo seu habitual comedimento. — Você trocou os cálices? Você deliberadamente...

— Oh! — rogou Vance. — Que sua ira não desabe sobre mim. — Voltou-se para Heath num tom burlesco de censura. — Veja em que aperto me colocou, sargento.

— Este não é o momento para fugir pela tangente. — A voz de Markham era fria e inexorável. — Eu quero uma explicação.

Vance fez um gesto de resignação.

— Pois bem. Escutem. Minha idéia, como já expliquei a vocês, foi acompanhar o plano do professor e fingir que alimentava suspeitas contra Arnesson. Esta manhã fiz-lhe ver, a propósito, que não tínhamos provas e que, mesmo que prendêssemos Arnesson era duvidoso que pudéssemos retê-lo. Eu sabia que, nessas circunstâncias, ele tomaria alguma decisão para fazer face à situação de uma forma heróica, pois o único objetivo dos assassinatos era aniquilar completamente Arnesson. Eu tinha certeza de que ele cometera um ato imprudente e descobrira-se a si mesmo. De que forma, não sei. Mas nós o vínhamos observando muito de perto... Então, o vinho me deu uma inspiração. Sabendo que ele tinha cianureto, trouxe para a palestra o assunto do suicídio e assim lancei a idéia em seu espírito. Caiu na armadilha e procurou envenenar Arnesson e fazer crer que era um suicídio. Eu o vi sub—repticiamente esvaziar um frasquinho de líquido incolor no cálice de Arnesson, quando este fora buscar o vinho no licoreiro. Minha primeira intenção era deter o assassino e mandar analisar o vinho. Podíamos pesquisá-lo e encontrar o veneno e eu podia testemunhar o fato de tê-lo visto envenenar o vinho. Esta evidência, além da identificação da menina, poderia corresponder ao nosso propósito. Porém, no último momento, depois que ele encheu de novo os nossos cálices, decidi empregar o método mais singelo...

— E assim você distraiu nossa atenção e trocou os cálices!

— Sim, sim. Naturalmente. Acreditei que um homem desejaria beber o vinho que serviu para outro.

— Você fez justiça pelas suas próprias mãos!

— Tomei-a em meus braços... Era inevitável... Mas não sejam tão severos. Levam vocês à presença da Justiça uma cascavel? Apresentam diante de um tribunal um cachorro furioso? Não senti mais remorsos em concorrer para que um monstro como Dillard se projetasse no além do que os que teria sentido, ao esmagar um réptil venenoso, no momento de este atacar.

— Mas isso é assassinato! — exclamou Markham com horror e indignação.

— Oh, sem dúvida — disse Vance com alegria. — Sim... Naturalmente, muito repreensível... Diga-me: estou por acaso preso?

O "suicídio" do professor Dillard pôs fim ao famoso caso dos assassinatos do Bispo, absolvendo Pardee de qualquer suspeita. No ano seguinte, Arnesson e Belle Dillard contraíram núpcias, na maior intimidade, e partiram para a Noruega, onde instalaram o seu lar. Arnesson aceitou a cadeira de Matemáticas Aplicadas da Universidade de Oslo; e dois anos depois obteve o prêmio Nobel por seu trabalho de Física.

A velha casa de Dillard, na Rua 75, foi demolida e, em seu lugar, eleva-se hoje um moderno prédio de apartamentos em cuja fachada há dois imensos medalhões de terracota, que sugerem fortemente alvos para tiros de flecha. Tenho pensado muitas vezes, se o arquiteto não escolheu deliberadamente semelhante motivo ornamental.

 

 

                                                   S. S. Van Dine         

 

 

 

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