Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BISPO / Steven James
O BISPO / Steven James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Sábado, 17 de maio
Parque Estadual Patuxent River
Sudoeste de Maryland
85 quilômetros a norte de Washington, DC
Primavera, mas ainda frio.
21h42
Os oficiais Craig Walker e Trevor Meyers pararam em frente à casa baixa e com a tinta descascando de Philip e Jeanne Styles, a única casa na estrada municipal vazia que circundava o parque estadual.
Saíram da viatura.
Alguns cães latiram distantes, mas a floresta atrás da casa engolia a maioria dos sons noturnos; então, além dos gritos abafados vindos de dentro da casa, a noite estava silenciosa, úmida e imóvel.
Craig subiu os degraus quebrados do alpendre, Trevor o seguia. Ele tentou distinguir as palavras das pessoas gritando lá dentro. Tentou entender o motivo da discussão.
Após um momento, Trevor limpou a garganta.
– Você não vai bater? – ele havia dito a Craig mais cedo naquele dia que gostava de ser chamado de Trev, entre outras coisas. Que agradável.
– Calma, Tonto1 – mesmo estando na força policial há apenas cinco anos, Craig já havia lidado com mais do que sua cota de maridos bêbados e esposas espancadas. – Chamadas por perturbação domésticas são as piores.
As vozes lá dentro eram altas, mas indistintas.
– Você já foi chamado aqui?
– Não.
Craig quase disse a ele que havia ouvido falar que esse cara, Styles, tinha um histórico de abuso de conjugal, mas então lembrou-se de que Trevor – não, Trev – estava no carro com ele quando ouviram o chamado da expedição.
Mais gritos dentro da casa. Duas vozes: uma masculina e uma feminina.
Craig abriu a porta de tela e bateu na porta de madeira. – Sr. Styles – ele se certificou de ter chamado alto o suficiente para que qualquer pessoa na casa tivesse escutado. – Senhor, abra a porta. É a polícia.
– É ele? – o homem dentro da casa gritou. – É esse o cara que você...
– Pare! – a voz dela era estridente, desesperada, cheia de medo. – Saia de perto de mim!
Craig gritou, mais alto dessa vez. – Sr. Styles, abra a porta!
O homem: – Largue isso, sua...
Craig Walker desabotoou o coldre de couro de sua arma e avisou pela última vez. – Abra a porta ou vamos entrar!
O homem: – Me dê isso.
– Pare!
E então.
O rugido de uma escopeta.
Cortando a noite.
Craig gritou para Trevor cobrir os fundos da casa, para cobrir agora! Mas então as palavras eram apenas névoa e memória e ele só estava ciente da maçaneta em uma mão e da sensação familiar de sua Glock na outra quando abriu a porta e apontou a arma para frente.
Entrou.
Sem lâmpada no teto, uma luminária no canto. Uma lareira fumegante. Um sofá xadrez, uma poltrona verde.
E uma mulher do outro lado da sala, tremendo, agitada. Com uma Stoeger calibre 12 de cano duplo nas mãos.
Craig mirou sua arma nela. – Largue a arma!
Um homem estava caído no chão a dois metros dela, o peito ensopado de sangue, com espasmos esporádicos. Ele tossiu e tentou falar, mas as palavras eram ininteligíveis e úmidas, e Craig sabia o que queriam dizer.
– Senhora! Largue a arma! – Craig nunca havia mirado em uma mulher antes e sentiu as mãos tremerem levemente.
Ela usava um roupão rosa. O rosto manchado de lágrimas. Ela não baixou a arma.
– Ele ia me matar – eram palavras desesperadas, sem fôlego. – Eu sei que dessa vez ele ia. Ele disse que ia me matar.
O homem no chão balbuciou alguma coisa ininteligível e então parou de fazer barulho de repente.
Cadê o Trevor?!
– Coloque a arma no chão, sra. Styles. Agora.
Finalmente, olhando para o homem em quem ela havia atirado, ela começou a baixar a escopeta. – Ele me bateu. Ele ia me matar.
– Tudo bem – Craig disse –, agora coloque a arma no chão.
Ela se curvou e um calafrio a atravessou. – Essa não foi a primeira vez – ela deixou a arma escorregar de suas mãos. Ela caiu com um baque desigual sobre o carpete marrom surrado. – Ele gostava de me bater. Ele disse que ia me matar dessa vez.
Eu sei... – suas palavras pareciam vir de algum lugar distante. Choque.
Dominando-a por inteiro.
– Senhora, precisa se afastar da arma.
– A arma disparou – ela levantou-se lentamente. – Eu não queria machucá-lo, mas ela disparou – ela deu dois passos cambaleantes para trás.
– Tem mais alguém na casa?
Ela balançou a cabeça.
Enquanto ela se afastava, Craig, ainda empunhando a arma, cuidadosamente se aproximou da vítima do tiro para ver se o homem ainda tinha pulso.
Mas assim que se inclinou, a mulher gritou e ele olhou para ela por uma fração de segundo, apenas isso, um minúsculo instante, mas foi o suficiente.
Quando ele olhou de volta para o corpo, o homem havia rolado na direção da escopeta, pegou-a do chão e mirou em seu peito.
E atirou.
O impacto do cartucho mandou Craig cambaleando e tropeçando contra o sofá. Ele tentou levantar a mão para atirar com sua própria arma, mas seu braço não obedecia. A sala escureceu e, por um pequeno momento, ele esteve ciente de todos os seus sonhos e lembranças, que vieram num turbilhão, se misturando, se somando, culminando em arrependimento final por todas as coisas que ele deixaria inacabadas para sempre.
E então, todos os seus pensamentos se dobraram sobre si mesmos, caindo em um último esquecimento profundo, e o oficial Craig Walker se acomodou imóvel e morto sobre o carpete esfarrapado ao lado do sofá xadrez na sala de estar de Philip e Jeanne Styles.
Ela viu o homem por quem havia se apaixonado, o homem com quem ela havia passado de tudo, o homem cujo filho ela estava carregando, puxar o gatilho.
Atirar no policial.
Levantar-se.
Apoiar a arma no quadril.
Então ela ouviu a pancada da porta dos fundos se abrindo e o viu girar e atirar no segundo policial.
Esse policial conseguiu puxar o gatilho e abrir um buraco no chão ao lado do seu pé enquanto caía de um jeito desengonçado contra a parede, e já estava morto quando tocou o chão. Os bagos de chumbo haviam-no acertado no rosto, mas não dava para dizer que um dia aquilo tinha sido um osto. Tudo que sobrou foi um borrão de sangue, dentes e ossos lascados.
Ela desviou o olhar.
Bem para os olhos do homem que havia acabado de assassinar os dois policiais. Ela ainda não havia contado a ele sobre o bebê; por algum motivo, era nisso que ela pensava naquele momento. Na vida minúscula crescendo dentro dela.
O coração dela martelava. As cores de tudo na sala pareciam cortar o ar com uma diferenciação que ela mal podia entender.
Ele não havia se preocupado em baixar a arma, e ela estava apontada para sua barriga. Para o bebê.
– Então? – ele disse suavemente.
Ela tomou fôlego com dificuldade. – Então.
E aí.
Ele baixou a arma.
Ela olhou para a arma por um longo momento, então falou vacilante, com as palavras carregadas de adrenalina: – Foi por pouco. O segundo quase teve tempo de mirar.
– Sim – ele disse. – Quase.
Então o homem, que certamento não era Philip Styles, e que também não havia tomado um tiro no peito, começou a limpar as impressões digitais da coronha, da telha e do gatilho.
E Astrid, o nome que ela havia escolhido para si mesma quando havia começado nesse hobby, arrancou o roupão e o enfiou na bolsa esportiva que ela havia escondido mais cedo no armário da sala.
– Você foi bem – ela disse.
– Obrigado.
Ela estava vestindo apenas sutiã e calcinha agora. E quando ela se curvou, pelo canto dos olhos percebeu seu homem, que chamava a si mesmo de Brad, observando-a.
Mesmo estando com cerca de treze semanas, sua barriga ainda não havia começado a aparecer, e ela havia se mantido em forma; então, aos vinte e nove anos de idade, era bom ainda conseguir distraí-lo quando se trocava. Ela revirou a bolsa sem pressa, então lentamente se levantou e vestiu seu jeans, um moletom e um par de luvas de látex.
Finalmente ele desviou os olhos, na direção da janela. – Quanto tempo você acha que temos?
– Menos de cinco minutos, eu diria – ela gesticulou na direção da cozinha. – Vamos fazer a ligação.
O corpo da verdadeira Jeanne Styles jazia esparramado a esmo em uma poça de sangue escuro no piso de linóleo desgastado perto da geladeira. Quando Astrid andou na direção da bancada onde estava a bolsa de Jeanne, um gato amarelado, ressabiado mas curioso, entrou na cozinha, e Astrid gentilmente acariciou suas costas. O gato arqueou o corpo e ronronou de um jeito familiar e agradável.
– Gato bonzinho – um momento delicado, vivo e caloroso. Maternal em sua ternura.
Ela acariciou a cabeça do gato e depois pegou a bolsa da mulher morta. Vasculhou-a. Encontrou o celular e acionou o viva-voz para que Brad pudesse ouvir. Ligou para a emergência.
Uma voz masculina atendeu, falando automaticamente. – Serviço de emergência. Como posso...Ela interrompeu, sua voz alta, histérica: – Eles estão mortos! Os dois estão mortos! Oh, meu Deus, os policiais. Ele atirou neles, ele...
– Quem? Quem está morto?
– Ele vai me matar. Meu marido! Oh, ele está...
O eco agudo do tiro a interrompeu e ela deixou o telefone se espatifar no chão enquanto Brad dava outro tiro no cadáver de Jeanne Styles.
– Senhora? – sua voz mais atenta agora. Preocupada. – Você está bem? Está ferida?
Na verdade, não. Estou morta, Astrid pensou. Ferida é uma coisa totalmente diferente.
Ela deslizou para trás, para longe da mulher morta, na direção da sala de estar, mas ainda podia ouvir o atendente ao telefone.
– Senhora? – a voz do homem estava tensa, uma sensação de medo crescente em cada palavra. – Você está aí?
Quando saiu para encontrar Brad no cômodo ao lado, ela percebeu que o atendente provavelmente ainda estaria falando com o cadáver da mulher quando os policiais chegassem, ainda perguntando se ela estava bem.
Astrid foi atingida pela trágica e deliciosa ironia daquilo tudo.
Falando com os mortos. Esperando uma resposta.
Machucada é uma coisa totalmente diferente.
O gato, agora menos hesitante, a seguiu.
Brad estava colocando suas próprias roupas. Ele havia colocado as roupas cheias de resíduos de tiro de Philip Styles na beirada da lareira para que ela chamuscasse mas sem ser consumida pelas brasas. Pelo menos não até que a próxima leva de autoridades tivesse chegado.
Dessa vez, ela e Brad não usariam explosivos ou provocariam um incêndio para destruir evidências. Dessa vez, eles deixariam pistas cuidadosamente arranjadas para trás. Pistas que queriam ser encontradas.
Astrid olhou pela janela e viu um par de faróis surgindo no final da longa e sinuosa estrada.
Brad acompanhou seu olhar. – Philip – ele disse nervosamente. – Eu não o esperava tão...
– Precisamos ir embora – ela gesticulou na direção do sofá. – Não esqueça a bolsa.
Brad pegou suas coisas e ela andou até o corredor onde o segundo policial estava caído contra a parede manchada de sangue.
O gato caminhou ao lado dela e se esfregou em sua perna.
Quando Brad passou por ela para sair, Astrid se inclinou ao lado do corpo. Ela esticou a mão para mostrar ao gato que não era uma ameaça. – Venha aqui.
Após hesitar por um momento, o gato marchou na direção dela, confiante, e ela o colocou gentilmente sobre o peito do policial morto. – Pronto.
Ela se levantou e o gato começou a lamber a mancha vermelha que costumava ser o rosto do policial.
– Gato bonzinho.
Ele ronronou.
Ela o acariciou mais uma vez e então se juntou a Brad lá fora.
O ar estava limpo, vivo, revigorante.
Astrid fechou os olhos e ouviu o canto delicado e invisível dos grilos, o ruído suave do tráfego distante, o som emergente de sirenes.
Mais policiais a caminho da casa.
“Então eles fugiram para a noite fria de Maryland enquanto o homem que estava prestes a encontrar os três corpos entrava na casa.”
Ela ouviu as palavras como se estivessem sendo lidas por um ator em uma das audionovelas que ela ouvia enquanto ia para o trabalho. Então Brad falou com ela da borda da floresta. – Eu gostaria que pudéssemos ficar.
Ela abriu os olhos. Os faróis do carro estavam a meio caminho da entrada.
– Só uma vez – Brad continuou. – Para ver quando a polícia chegasse. Para ver a cara deles.
– É muito arriscado.
– Eu sei. Mas só uma vez. Para ver.
Ela ficou em silêncio.
– Só estou dizendo que seria bom – ele soava um pouco derrotado agora, e ela gostava do fato de poder controlá-lo com tanta facilidade, manipular suas emoções como desejasse...
Mas por outro lado, ela tinha que admitir que seria bom poder assistir. – Vou ver se consigo pensar em um jeito – ela lhe disse.
Isso pareceu satisfazê-lo. Ele esperou por ela para que o conduzisse pela trilha.
Ele a seguiu obedientemente através da floresta, na direção do carro que os esperava. Em questão de minutos, os policiais encontrariam Philip Styles na cozinha, inclinado sobre o corpo da esposa. O jovem mecânico seria preso e, com o tempo, julgado e então condenado por três assassinatos que não havia cometido. Mais um crime perfeito.
Enquanto Astrid conduzia Brad pelo interior da floresta, ela pensava em tudo o que eles haviam acabado de realizar.
A polícia encontra o que ela espera encontrar, e como quase setenta e cinco por cento das mulheres assassinadas são mortas por seus maridos ou amantes, os policiais não se dariam ao trabalho de procurar além da infinidade de evidências físicas: duas ligações para a emergência de uma esposa desesperada, as roupas de Philip sujas de sangue rapidamente jogadas no fogo, sua arma – a arma do crime – convenientemente livre de impressões digitais e até mesmo, em um sentido muito real, uma testemunha: o atendente do serviço de emergência que ouviu o último tiro logo após a mulher ter dito que o marido ia matá-la.
Não era uma montanha de evidências, mas era mais do que a polícia consegue na maioria dos crimes. Junto com o histórico de abuso de drogas e violência doméstica de Philip Styles, seria mais do que suficiente.
Não foi por engano que ela e Brad haviam escolhido Maryland para esse crime. O estado ainda tinha pena de morte.
Como Philip nunca teria condição de bancar um advogado competente, seu advogado apontado pelo estado, com trabalho demais e salário de menos, certamente iria encorajá-lo a confessar em vez de ir a julgamento e encarar a agulha, o melhor que ele podia esperar era uma vida sem a possibilidade de uma condicional.
E isso era exatamente o que ela queria, porque, para ela, era ainda mais satisfatório mandá-los para a prisão do que vê-los morrer. Porque assim, o poder que ela tinha sobre eles nunca acabava. Apenas se fortalecia com o tempo.
Pensar.
Pensar que usando um roupão rosa, atirando em uma parede e fazendo duas ligações para a emergência, ela havia orquestrado o fim da vida de Philip.
Dez, vinte, trinta anos, o tempo que ele sobrevivesse.
A sensação de controlar o destino de alguém completa e absolutamente era intoxicante, irresistível.
Excitante.
Ela parou e encarou Brad; depois puxou-o para perto e o beijou profundamente, deixando sua mão caminhar pelas cicatrizes ásperas que cobriam seu pescoço e sua bochecha esquerda. Elas eram profundas e pálidas, e pareciam assustar a maioria das pessoas, mas ela sempre havia agido como se não a incomodassem, e talvez esse fosse um dos motivos pelos quais ele era tão obediente a ela – ele acreditava que ela o aceitava como ele era. Algo que todos os seres humanos desejam.
Dentro de uma hora eles encontrariam um lugar para fazer amor e seria tão bom quanto era toda vez que o jogo acabava, mas essa noite ela não queria esperar. Ela deixou uma mão deslizar pelas costas dele e explorar seu corpo firme e musculoso.
Ele gentilmente se afastou dela. – Temos que sair dessa antes.
Ela entendeu o que ele quis dizer e sorriu. Sair dessa antes. Sim. Brad, o cuidadoso.
Ela o beijou mais uma vez e então o conduziu pela trilha na direção do carro em que havia feito ligação direta mais cedo, quando o pegou emprestado em um estacionamento do metrô de Washington.
Quando chegaram à borda da floresta, ele disse:
– Estive pensando.
– Sim?
– Eu tenho uma ideia para o próximo. Algo que deveríamos tentar.
Eles chegaram ao carro.
– Sério?
– Sim.
Seria bom deixá-lo planejar um; ou pelo menos ouvir o que ele tinha a dizer. – Bem, então sou toda ouvidos.
E, então, o casal apaixonado partiu para encontrar um local furtivo para consumar a noite, e ela ouviu atenciosamente seu parceiro, tanto no crime quanto no amor, traçar sua ideia para a próxima noite perfeita que passariam juntos.
O próximo encontro perfeito.
O jogo número cinco.

 

 

 


 

 

 


1
Duas semanas depois
Sábado, 31 de maio
Igreja de St. Ambrose
Chicago, Illinois
18h36
O corpo do dr. Calvin Werjonic jazia austero e imóvel em um caixão solitário na frente da igreja. Fiquei na fila, a nove pessoas de distância dele, aguardando minha
vez de prestar a última homenagem a meu amigo.
O ar na igreja tinha gosto de poeira e de cânticos fúnebres.
Tendo passado seis anos como detetive de homicídios e os últimos nove como criminologista do FBI, eu já tinha investigado centenas de homicídios, mas nunca fui capaz
de olhar para os cadáveres com objetividade criminológica. Toda vez que vejo um, penso na fragilidade da vida. Na tênue linha que separa os vivos dos mortos – o
fluxo de um momento, a amplitude de eternidade contida numa única e delicada batida de um coração.
E lembrei-me das vezes que tive de contar para familiares que havíamos encontrado seus entes queridos, mas que “suas condições eram comprovadamente fatais”, que
“havíamos chegado tarde demais para salvá-los”, ou que “havíamos feito tudo que podíamos mas eles não sobreviveram”. Banalidades cuidadosamente ditas para suavizar
o choque.
Banalidades que não funcionavam.
Em diversos programas criminalísticos do horário nobre, quando os investigadores chegam a uma cena de crime e observam o corpo, eles fazem piadas, mexem nele como
se fosse um pedaço de carne. E entram os comerciais.
Mas não é assim que funciona na vida real.
A fila caminhou.
A morte não é banal porque a vida também não é, e no dia em que eu parar de acreditar nisso, não mais farei bem o meu trabalho.
Outra pessoa se afastou do caixão e percebi que dava para ver parte do rosto de Calvin, enrugado e contraído, cansado pelos anos. Sua pele tinha o tom branco artificial
da maquiagem, o que deveria ajudar a fazê-lo parecer vivo novamente, mas servia apenas para deixá-lo parecido com um manequim, uma réplica pálida do homem que eu
havia conhecido.
Aos setenta e dois anos, ele tinha o dobro da minha idade, mas isso não havia impedido nossa amizade. Quando não nos conhecemos, ele era meu professor de criminologia;
logo se tornou meu orientador, e quando concluí meu doutorado em investigação geoespacial, ele era um dos meus amigos mais próximos.
Ele morreu há dois dias, depois de ficar dez dias em coma.
Um coma no qual ele não deveria ter estado.
Apesar de não ter sido o consultor oficial do caso, Calvin havia começado a rastrear independentemente um assassino brutal pelo qual eu estava procurando em Denver.
O homem, que chamava a si mesmo de Giovanni, chegou até Calvin, atacou-o e o drogou. E quando Giovanni foi pego – conseguindo matar dois oficias da SWAT durante
sua apreensão – ele se recusou a nos dizer que droga havia usado.
Apesar de todos os esforços por parte da polícia de Denver e do FBI, não fomos capazes de extrair a informação ou identificar a droga e, como já estava fraco após
lutar contra uma insuficiência cardíaca congestiva, Calvin acabou falecendo.
Sua condição foi comprovadamente fatal.
Havíamos chegado tarde demais para salvá-lo.
Havíamos feito tudo que podíamos, mas ele não sobreviveu.
Banalidades.
Que não funcionam.
Três pessoas à minha frente.
A fila estava andando mais devagar do que eu esperava. Olhei para o meu relógio. Minha enteada de 17 anos, Tessa, estava esperando por mim no carro. Desde o funeral
de sua mãe ano passado, a morte a tem perturbado profundamente, fazendo-a se sentir oprimida. Então, mesmo conhecendo Calvin e com vontade de ter entrado, ela me
disse que não conseguiria. Eu entendi.
Tínhamos menos de uma hora para pegar nosso voo às 19h34 no O’Hare.2 Seria apertado.
Apenas uma pessoa na fila.
Antes de entrar em coma, Calvin havia descoberto uma pista que estava aparentemente relacionada ao caso de Giovanni, mas também tocava no caso mais famoso da minha
carreira: o assassinato e canibalismo de dezesseis mulheres há mais de uma década no meio-oeste. A pista: H814b Patricia E.
A princípio, um psicopata chamado Richard Devin Basque havia sido condenado pelos crimes, mas recentemente foi submetido a um novo julgamento bem aqui em Chicago,
à luz de um novo exame de DNA, e foi considerado inocente. E agora ele estava livre.
Cheguei ao caixão. É um clichê dizer que os mortos parecem estar dormindo. É um jeito de romantizar a morte, uma tentativa de mandar a dor embora. Se você falar
com qualquer policial, médico ou cientista forense, eles não falarão desse modo porque conhecem a verdade.
Os mortos não parecem estar dormindo; eles parecem mortos. Seus corpos se enrijecendo de jeitos estranhos e cheios de sangue. Sua pele pastosa e cinzenta, se desprendendo
do cadáver, ou se prendendo a ele em pedaços apodrecidos e malcheirosos. Às vezes suas peles se contraem e se movem por causa de uma grossa subcamada de insetos
se contorcendo dentro do corpo.
Não há como confundir morte com sono.
E Então vi os lábios eternamente selados de Calvin. Seus olhos silenciosos. A maquiagem que deveria esconder as rugas e as evidências de sua deterioração.
A verdade da vida é tão dura, tão brutal, que fazemos tudo que podemos para ignorá-la: nós nascemos, lutamos, perduramos, morremos, e nada resta para mostrar que
estivemos aqui além de algumas poucas marcas, alguns bens pelos quais as pessoas deixadas para trás brigam entre si, e então todo mundo segue em frente.
Do pó ao pó.
Das cinzas às cinzas.
A sombria poesia da existência.
Apoiei a mão na madeira delicada e fria do caixão.
Mais cedo, eu havia prometido a mim mesmo que não iria chorar, mas ao pensar na vida de Calvin e em tudo que ela significava para tantas pessoas, senti os olhos
ardendo.
Me afastei.
Indo para o saguão, passei pelas outras pessoas de luto, acenei para algumas delas, pousei gentilmente a mão em um cotovelo ou sobre um ombro para confortar os familiares
ou amigos enquanto ia na direção da porta.
Ao passar pela porta, percebi que a luz no saguão havia sido diminuí da e ele parecia vazio, mas ao me aproximar da saída, ouvi um homem chamar meu nome.
Ele estava de pé, meio escondido pelas sombras, parado perto dos degraus bloqueados que levavam à sacada. Seu rosto estava encoberto, mas reconheci a voz e senti
a raiva me invadir quando percebi quem era: o homem que eu havia encontrado há treze anos com o bisturi na mão, inclinado sobre sua última vítima, o homem que um
júri de Chicago havia inocentado mês passado.
Richard Devin Basque.
2
Ele se aproximou de mim.
– Imagino – ele disse – como isso deve ser difícil para você. – Ele usava um paletó cinza escuro e sua boa aparência morena e europeia fazia com que parecesse ter
trinta anos, dez anos a menos que sua verdadeira idade. Um homem poderoso, coberto de músculos, ele parou a menos de um metro de mim. – Eu sei que vocês dois eram
muito próximos. Estou orando por vocês.
Logo antes de seu novo julgamento, ele havia convenientemente “se convertido a Jesus”.
Na hora certa.
Táticas. Jogos.
O ódio invadiu minha tristeza e eu já não sentia mais vontade de chorar. Eu sentia vontade de acertar Basque. Com força.
– É melhor você sair da minha frente – eu disse.
Ele hesitou por um momento e então fez o que eu sugeri.
Durante seu último julgamento, houve um atentado contra sua vida cometido pelo pai de uma das jovens que ele havia massacrado. Consegui impedir o atirador, mas no
processo a arma disparou e o homem foi ferido fatalmente.
Enquanto estava caído, moribundo, ele implorou que eu prometesse que impediria Richard Basque de matar novamente, e eu prometi, esperando que um veredicto de culpado
resolveria o problema, para que eu não tivesse que resolver as coisas com minhas próprias mãos.
Então, Grant Sikora morreu em meus braços.
E menos de duas semanas depois, Basque foi considerado inocente. Só podia imaginar que ele havia aparecido ali naquela noite porque sabia que eu estaria no velório
de Calvin e queria apenas me provocar.
Ele tem todo o direito de estar aqui. Ele é um homem livre.
Senti a raiva queimando dentro de mim e percebi que se ficasse naquele saguão por mais tempo, eu faria alguma coisa da qual me arrependeria pelo resto da vida.
Ou talvez não me arrependesse no fim das contas.
Parti para a porta, então parei.
Uma ideia.
Virei-me.
As sombras pareciam no lugar certo ao redor de Basque.
– Quem é Patricia E.? – perguntei.
– Patricia E.?
– Sim.
Ele desviou o olhar na direção das portas do santuário, de onde duas pessoas estavam saindo. Não parecia que elas haviam nos notado. – Não sei de quem você está
falando.
– Não acredito em você.
Ele deu um sorriso lento e longo que, apesar de sua aparência de galã, parecia reptiliano na luz fraca. – Esse sempre foi o problema entre a gente, não é? Essa falta
de confiança. Você nunca acreditou que eu fosse inocente, você nunca acreditou...
– Quieto.
Ele piscou.
Então me aproximei e baixei minha voz até um cochicho. – Estou de olho em você, Richard. Eu sei que você matou aquelas mulheres. Vou encontrar Patricia e, se ela
não for a chave, vou descobrir o que mais for preciso. Não fique muito à vontade aqui fora. Você vai voltar para sua jaula.
Ele me observou silenciosamente, sem dúvida tentando me abalar. Neguei tal satisfação a ele, e apenas o fitei com um olhar duro.
– A prisão é apenas um estado da mente – ele disse, bancando o despreocupado. – Mas onde o Espírito do Senhor estiver, existe liberdade – vindas dele, tais palavras
soavam como uma zombaria, tanto da liberdade quanto de Deus.
Uma última e fria opção me ocorreu enquanto eu estava ali parado ao lado dele, no canto recluso do saguão.
Agora, agora. Acerte-o. Você pode acabar com isso para sempre.
Apesar de tudo, senti minhas mãos se fechando em punhos.
Basque pareceu ter lido meus pensamentos. – Você pode sentir, não é? – sua língua passou pelo canto de seus lábios. – Eu não costumava achar que você seria capaz
disso, mas agora...
– Você não faz ideia do que sou capaz.
Algo passou pelo rosto dele. Uma centelha de medo. E foi algo bom de se ver.
Alguns segundos, é tudo de que você precisa...
Uma esguelha de luz da porta lateral cortou o saguão.
– Patrick?
Olhei na direção da porta e vi minha enteada Tessa entrar na igreja. – Já está pronto para...
– Volte para o carro – meu tom era mais duro do que uma voz de pai deveria ser.
Então ela reparou em Basque e, da faixa angular de luz, eu podia dizer pelo olhar no rosto dela, que ela o havia reconhecido.
Ela deu um passo para trás.
Gesticulei na direção da rua. – Eu já vou sair. Vá.
Os olhos dela estavam arregalados e inquietos enquanto recuava, deixando a porta bater sozinha, cortando a luz do dia de dentro da igreja.
Basque acenou delicadamente com a cabeça para mim. – A gente se vê, Patrick.
Saia agora, Pat. Vá embora.
– Mal posso esperar.
Encontrei Tessa lá fora, os cabelos pretos na altura dos ombros tremulavam em frente ao seu rosto levados pela brisa. – Era ele?
– Não.
– Era sim.
Levei-a na direção do carro alugado. – Vamos.
– Você mente muito mal.
– Você já disse isso.
Apenas quando cheguei à porta percebi que minhas mãos ainda estavam cerradas, punhos apertados e prontos. Chacoalhei os dedos, flexionei-os, mas Tessa viu.
– Sim – abri a porta do carro. – Era ele.
Entramos no carro, assumi meu lugar ao volante e por um longo momento nenhum de nós falou. Finalmente, liguei o motor.
– Ainda não acabou, né? – Sua voz era suave, frágil, e fez com que ela parecesse muito mais nova do que era.
Tomei fôlego e tentei dizer a coisa certa, algo distinto, mas acabei não dizendo nada.
Ela olhou em minha direção. – Então, o que acontece agora?
– Guardamos luto – eu disse. – Por Calvin – mas não era nisso que eu estava pensando.
Essas foram as últimas palavras que falamos um para o outro pelo resto do caminho até o aeroporto O’Hare.
3
Dez dias depois
Terça-feira, 10 de junho
Rodovia interestadual 95
63 quilômetros a sudoeste de Washington, DC
18h19
Céu agitado. Nada de chuva ainda, mas uma faixa de nuvens de tempestades pairava sobre Washington e não parecia que ia se desviar da gente.
Pelo menos a tempestade romperia a baixa umidade sufocante de junho.
A saída para a Academia do FBI ficava a menos de três quilômetros de distância.
Tessa estava sentada no banco de passageiros e silenciosamente escrevia algumas letras nos quadradinhos de uma palavra cruzada do New York Times, a terceira que
ela fazia no dia.
– Qual é a palavra com oito letras – ela disse – para a habilidade de lembrar eventos e detalhes com precisão extraordinária?
– Hum... – pensei a respeito. – Não sei.
Ela apontou para os quadradinhos que havia acabado de preencher. – Eidética.
– Se você já sabia a resposta, por que me perguntou?
– Eu estava te testando.
– Sério?
– Vendo se você tinha memória eidética.
– Talvez eu estivesse te testando também – eu disse.
– Uh-hum – a placa ao lado da rodovia sinalizava a saída para a Quantico Marine Corps Base. – É logo em frente.
Ela dobrou a palavra cruzada e olhou pelo para-brisa para as nuvens em forma de bigorna, ameaçadoras no céu que escurecia.
O painel de discussão dessa noite era uma função oficial do Bureau, então eu havia pedido a ela para tirar o piercing da sobrancelha e não usar sombra preta. Ela
obedecera, mas só depois de me lançar um olhar adolescente do tipo “você só pode estar brincando”.
– Se algum dia revirar os olhos for um esporte olímpico – eu disse a ela –, você ganhará a medalha de ouro.
– Que esperto – ela murmurou. – Você escreve seu próprio material ou contrata alguém pra isso?
Tinha aberto a boca para responder, mas não consegui pensar em nada inteligente na hora, e isso pareceu agradá-la.
Eu decidira ignorar o esmalte preto, mas pedi que ela se arrumasse um pouco e, em vez de suas típicas meias pretas ou jeans rasgados, ela havia colocado, de má vontade,
uma saia de amarrar e uma camisa de botão de mangas compridas cor de chumbo que escondia a linha de cicatrizes de cinco centímetros em seu braço direito, testemunhas
de sua fase de autoflagelação.
Pulseiras de couro e de fibra de cânhamo circulavam seu braço esquerdo, alguns anéis de metal abraçavam seus dedos.
Paradoxalmente, a garota que não dava a mínima para ser descolada havia conseguido definir seu próprio estilo de vanguarda: boêmia, levemente gótica. De espírito
livre, raciocínio rápido e graciosa de um jeito maliciosamente sarcástico, ela havia se tornado a pessoa mais importante para mim, mais do que qualquer outra no
mundo, agora que minha esposa Christie havia falecido.
Peguei a saída e Tessa olhou para mim. – Você promete que não vamos passar perto do...
– Não se preocupe – eu sabia a que ela estava se referindo. Havía mos falado sobre isso mais cedo. – Não vamos passar nem perto de lá.
Silêncio.
– Eu prometo – tomei um gole do café que ela havia comprado para mim vinte minutos atrás em uma cafeteria estilosa no subúrbio de Washington.
– Tudo bem.
Recentemente, a Academia do FBI havia iniciado uma fazenda de corpos3 do lado leste da propriedade, similar à Tennessee Forensic Anthropology Research Facility em
Knoxville, Tennessee.
Então, agora, em um canto nos fundos do campus, dúzias de cadáveres estavam nos mais diversos estados de decomposição. Alguns em porta-malas, outros em covas rasas,
outros em riachos ou lagoas, outros em florestas sombreadas ou em prados ensolarados, todos dispostos para nos dar uma oportunidade de estudar o funcionamento da
decomposição, a atividade dos insetos e a maneira como a desarticulação iniciada pela decomposição varia de acordo com os diferentes modos de disposição dos corpos.
Um meio prático para avançar no campo da tafonomia forense, a ciência do entendimento sobre como organismos mortos se decompõem com o tempo.
Mesmo que eu que não tenho a intenção de levar Tessa lá, essa tem sido a grande preocupação dela desde que a convidei para assistir ao painel de discussão de hoje
à noite.
Dei um gole no café e dessa vez ela me observou atenciosamente.
– Então?
– O quê?
– O café.
– Não vou fazer isso, Tessa.
– Admita. Eu te peguei dessa vez.
– Eu não tenho que provar nada...
– Você não faz ideia de qual café é esse.
Tomei outro gole.
– Faço sim.
– Agora você está enrolando.
– Vamos ver. Encorpado e suave. Moderado com acidez expansiva. Sabor complexo. Levemente terroso, uma nota de figo seco e uma complexão profunda e aveludada: Sumatra.
Acho que cultivado na sombra, na região de Jagong, ao longo da ponta norte da ilha – tomei outro gole. – Você colocou um pouco de canela para me confundir.
Ela não disse nada.
– E então?
– Você precisa sair mais de casa.
4
Christie e eu nos conhecemos na primavera, casamos no outono e, nove semanas após o casamento, ela descobriu o nódulo no seio. Ela faleceu antes do aniversário de
um ano do dia em que nos conhecemos.
Tessa crescera sem nunca ter conhecido o pai e, lamentavelmente, as coisas entre a gente foram tensas desde o começo. Então, após a morte de Christie, só pioraram.
Com o tempo, porém, Tessa e eu começamos a nos sentir bem na companhia um do outro, até íntimos – até algumas semanas atrás quando ela se deparou com o diário da
mãe e descobriu que seu pai biológico estava vivo e morava nas montanhas do Wyoming.
Seu verdadeiro pai.
No começo, quando ela me pediu para se encontrar com ele, eu hesitei em concordar, mas claro que não podia negar a ela a chance de conhecer o pai.
Então, nós o visitamos e, apesar das minhas reservas, Paul Lansing parecia ser um bom homem. Recluso e privado, mas que trabalhava duro e era honesto. Um escultor,
um carpinteiro, um homem que preferia viver da terra. Paul e Tessa pareciam ter se dado bem, e conhecê-lo serviu apenas para complicar ainda mais as coisas entre
mim e ela.
Algumas pessoas poderiam questionar minha decisão de checar o passado dele, mas, como responsável legal dela, tudo o que eu mais queria no mundo era que Tessa estivesse
segura. Como Calvin costumava dizer: “A verdade não teme um exame minucioso”. Então, se Paul não tinha nada a esconder, ele não tinha pelo que temer.
A ficha de Paul era impecável, talvez impecável até demais, então fiquei um pouco apreensivo sobre ele. Até que soubéssemos mais, decidi permitir que Tessa enviasse
e-mails para ele, contanto que eu os revisasse seus e-mails antes, para garantir que nada pessoal, como um número de telefone, endereço, ou algo sobre meu trabalho,
não fosse parar acidentalmente no meio da mensagem. Tessa não gostou, mas até que eu tivesse certeza de que podia confiar nele, não correria nenhum risco.
Não estava claro para mim que papel ele queria ter na vida dela, mas desde aquela viagem para Wyoming, eu notei uma rachadura se formando na base do meu relacionamento
com Tessa. O passado havia se instalava em nossas vidas e estava se estendendo entre nós.
– Você está feliz em voltar, não está? – ela perguntou, interrompendo meus pensamentos.
Olhei para ela.
– Nessas últimas semanas. Ministrando esse curso de verão – ela apontou para a placa na entrada para Quantico. – Você está feliz por voltar aqui, na Academia.
– Durante o verão; é apenas durante o verão.
– Eu sei.
Uma pausa.
– Por que você diz isso, que estou feliz por voltar?
– É fácil perceber as coisas em você.
Atualmente, vivemos em Denver; nos mudamos de Nova York após a morte da mãe dela. Agora, enquanto eu respondia, optei pelo apelido que eu havia dado a ela carinhosamente
no ano passado. – Sim, Raven, parece que estou voltando para casa.
Ela ficou quieta então, e me perguntei se ela estava pensando em Denver, ou Nova York, ou possivelmente alguma das pequenas cidades de Minnesota onde ela havia morado
quando criança.
– Isso é bom – ela disse com simplicidade.
Tive vontade de lhe perguntar o que a fazia se sentir em casa, mas imaginei que isso poderia estar relacionado de algum modo com o encontro dela com o pai, então
me segurei e ela silenciosamente desdobrou o jornal para terminar sua palavra cruzada enquanto eu encostava atrás da linha de carros, esperando a liberação para
entrar na base.
Washington, DC
Astrid e Brad entraram no escritório de segurança do instituto de pesquisa de primatas que eles haviam escolhido para o jogo daquela noite. O horário da troca de
turno havia conspirado a favor deles. Eles drogaram o guarda da segurança, e então, com exceção dos gorilas e outros macacos, ficaram com o lugar só para eles.
Esse jogo, pelos próximos três dias, seria o jogo mais emocionante e mais satisfatório de todos.
O jogo de Brad.
Astrid já podia sentir a emoção que a noite traria, o glorioso surto de poder preenchendo-a, libertando-a, preparando-a para a paixão que mais tarde eles compartilhariam
um com o outro no quarto.
Brad estava reconectando o roteador do console da câmera de segurança.
– Estou acabando – ele disse suavemente.
– Quanto tempo?
– Cinco minutos, no máximo.
Um dos fuzileiros navais ergueu a mão, sinalizando para pararmos. Entreguei a ele minha credencial pela janela aberta. – Boa noite, sargento Hastings – eu disse.
– É bom vê-lo novamente.
– Dr. Bowers – ele apenas deu uma rápida olhada na minha identificação e verificou a placa do carro. Apesar do olhar severo em seu rosto, senti entusiasmo em sua
voz. – Quanto tempo faz, senhor? Um ano?
O sargento Eric Hastings tinha seus vinte e poucos anos. Olhos cor de mel. Cabelo loiro curto. Provavelmente menos de 6% de gordura corporal.
Era a primeira vez que eu o via nesse verão, e a primeira vez que eu trazia Tessa para uma recepção na Academia. – Quase. E quando você vai começar a me chamar de
Pat, como todo mundo faz?
Um pequeno sorriso. – Bem, de uniforme, nunca, senhor.
Tessa me entregou sua carteira de motorista, tentando não olhar para Eric, mas seus olhos a traíram. Peguei de volta minha credencial com Eric e dei a ele a carteira
de Tessa.
Ele se inclinou para comparar o rosto dela com a foto da carteira e a observou calmamente. – Senhora – ele disse respeitosamente.
– Oi – ela disse. Deu para perceber que ela estava procurando o jeito mais apropriado de se dirigir a ele. – Sargento... senhor.
O exame dele pareceu realçar sua timidez, e ela baixou os olhos. Modéstia. Isso isso a deixou ainda mais bonita que o normal, e de repente fiquei ansioso para seguir
em frente. Finalmente ele entregou a carteira dela de volta para nós. – Bem-vinda a Quantico, senhora.
– É Tessa – ela disse, um pouco alto demais, em resposta.
Tessa sentiu vontade de bater na própria cabeça. Com força.
Tudo bem, primeiro você estava de boca aberta para o cara e então você
fala seu nome para ele logo após ele ter checado sua carteira de motorista? Brilhante, Tessa Bernice Ellis. Simplesmente brilhante.
Quando Patrick seguiu em frente, ela olhou para fora da janela do carro e tentou evitar pensar no sargento bonito e na impressão idiota que ela havia passado.
Não adiantou.
Patrick não gostava que ela saísse com caras mais velhos.
E então ela se pegou pensando no que seu pai pensaria disso. Seu verdadeiro pai.
Ela sabia que não era justo comparar os dois homens daquele jeito, mas desde que havia conhecido Paul, ela se pegava fazendo isso cada vez mais.
E em sua imaginação, Patrick estava se saindo mal na comparação.
Tudo havia se tornado muito confuso.
E ah, e tinha mais isso, outra coisa que ela vinha fazendo que com certeza estragaria as coisas entre ela e Patrick: além dos e-mails sobre os quais ele sabia, ela
estava secretamente, mandando e-mails por conta própria para Paul quase todos os dias.
Ela não fazia isso propositalmente, como uma afronta ao padrasto, era só que havia coisas sobre as quais ela queria perguntar para seu pai, coisas que não se sentia
confortável para perguntar com Patrick olhando por cima do seu ombro. No entanto, os e-mails haviam se tornado um segredinho rebelde que ela estava escondendo da
única pessoa que nunca gostaria de enganar.
Deixei Tessa em paz com seus pensamentos.
Passamos por placas que indicavam o estande de tiro e o trajeto de obstáculos dos fuzileiros navais; depois passamos por um cruzamento que intencionalmente não tinha
placas. Afinal, existem seções da Quan-tico Marine Corps Base que não devem ser indicadas para visitantes.
Passamos pelo extenso e ultramoderno Laboratório de Análise Forense do FBI, o laboratório forense mais avançado do mundo; então veio a conversão para o Hogan’s Alley,
uma cidade vazia de dezesseis acres que o FBI construiu nos anos 1980 com o intuito de treinar agentes a coletar evidências, responder a situações com reféns, realizar
paradas de veículos de criminosos e apreender suspeitos hostis em áreas urbanas. Eu não mencionei para Tessa que a fazenda de corpos ficava na faixa de floresta
atrás dali.
Em vez disso, eu disse: – Aqui estamos. – Parei no estacionamento ao lado do prédio da administração da Academia e então levei-a para dentro.
Do lado seguro do vidro, Astrid assistiu à mulher lutando contra as amarras de couro, enquanto dois chimpanzés começaram a agir.
Os gritos da mulher ficaram mais e mais estridentes, mais e mais desesperados, até culminarem em um último guincho de horror.
A cena ficou muito perturbadora. Astrid percebeu que estava desviando o olhar.
Brad, porém, ainda estava focado na mulher, cujos gritos estavam se afundando em meio a uma série de gorgolejos molhados que foram rapidamente abafados pelos gritos
frenéticos dos chimpanzés trancados com ela na jaula de paredes de vidro.
Astrid olhou para ela novamente.
Ela havia parado de lutar.
Parado de se mexer.
Para ela, estava acabado.
Mas os chimpanzés tinham só começado.
Astrid virou-se e falou para Brad: – Vejo você mais tarde.
– Sim.
– Aproveite o show.
Ela estava se referindo ao jogo, o jogo deles, mas ele não desviou os olhos dos chimpanzés quando respondeu: – Você também.
Ela sentiu que ele estava pensando apenas no que estava acontecendo do outro lado do vidro, então pegou o queixo dele e virou seu rosto para que ele olhasse em seus
olhos. – É hora de ir.
– Ok.
Brad deu uma última olhada na mulher antes de seguir Astrid para fora da ala dos chimpanzés; então cada um deles seguiu por um caminho diferente para se preparar
para o espetáculo da noite. Brad na direção da chuva que caía, e Astrid foi trocar de roupa para sua performance.
5
Para chegar ao auditório da Academia do FBI, era preciso atravessar uma das passarelas iluminadas e com controle de temperatura que ligavam os prédios, carinhosamente
chamadas de “tubos de hamster”. Quando mencionei o apelido para Tessa, antecipei que ela poderia dizer algo como: “Maravilha. As mentes mais brilhantes da polícia
e o melhor que vocês conseguem inventar é ‘tubos de hamster’. Que reconfortante. Me sinto tão mais segura contra as forças do mal”.
Em vez disso, ela apenas murmurou: – Animais enjaulados – e eu não tinha certeza se ela estava se referindo ao pessoal do FBI, ou apenas reafirmando sua visão militante
sobre a proteção dos direitos dos animais. Evitei comentar.
Atualmente, a Academia tinha cerca de 350 agentes de campo em treinamento, a quem nos referimos como novos agentes. Além disso, temos praticamente trezentos funcionários,
muitos dos quais fogem de eventos como esse.
Na segunda-feira seguinte, começaríamos um novo curso de dez semanas da Academia Nacional para comandantes e polícias de elite do mundo inteiro, outras trezentas
pessoas, metade das quais já havia chegado.
O auditório comporta cerca de mil e cem pessoas, mas eu esperava que apenas metade dessa quantidade aparecesse para o painel de discussão dessa noite.
Para o programa, o tenente Cole Doehring, do departamento metropolitano de polícia de Washington e meu amigo, o agente especial Ralph Hawkins, estavam agendados
para palestrar comigo, e uma mesa de dois metros e meio equipada com três microfones estava montada no palco. Três cadeiras foram colocadas atrás da mesa. Um palanque
de madeira estava ao lado delas.
Embora ainda faltasse cerca de quinze minutos para começar, pelo menos cem homens e mulheres já estavam sentados. Tessa reparou neles rapidamente.
– Vou sentar no fundo – ela me deu um sorriso irônico. – Caso eu acabe dormindo.
– Se você dormir – eu disse –, tente não roncar. Você pode acordar outra pessoa.
– Nada mal – ela estava respondendo por sobre o ombro. – Eu daria para essa um 8,5.
Fui até o palco, posicionei-me atrás de um dos microfones e levei alguns minutos para dar uma olhada em minhas anotações. Quando levantei os olhos, percebi a diretora-assistente-ex
ecutiva do FBI, Margaret Wellington, entrar no auditório e, após fazer uma varredura pela sala, fixar seu olhar em mim e marchar na direção do palco.
Ótimo.
Há cinco anos, eu havia reparado em algumas discrepâncias em um relatório relacionado a um dos casos dela. Evidências foram perdidas e fui convocado para uma auditoria
no Escritório de Responsabilidade Profissional do FBI, nosso departamento de assuntos internos. Reportei minhas descobertas e, apesar de ela não ter recebido uma
carta de censura ou mesmo uma reprimenda oficial, ela foi realocada para um escritório-satélite em Asheville, Carolina do Norte. Não exatamente o empurrão na carreira
que ela estava procurando.
Desde então, ela sentia rancor por mim e, como acontece, o destino a favoreceu. Após duas promoções inesperadas nos últimos nove meses, ela agora era minha chefe.
A vida no Bureau.
Vestida elegantemente com um terno feminino sob medida e usando sapatos de salto alto – um jeito não tão sutil de anunciar sua chegada – ela carregava uma pasta
de couro italiano marrom que quase combinava com seu cabelo, que me lembrava fios de piaçava cuidadosamente penteados. – Agente Bowers – ela disse secamente.
– Olá, Margaret.
Ela ergueu a mão com retidão, colocando a pasta sobre a mesa. – Você não consegue se acostumar com o fato de eu ser uma diretora--assistente-executiva, não é?
– Estou digerindo.
Um sorriso que não era um sorriso. – Bom saber – ela centralizou a pasta bem à sua frente. – E portanto, vou pedir que você se dirija a mim apropriadamente. Conquistei
minha posição e mereço ser chamada pelo meu título formal.
– Sabe de uma coisa, Margaret? Eu concordo.
Ela piscou.
– Concorda?
– Claro, por que não? Usar os títulos formais de cada um parece uma boa ideia.
Ele me olhou desconfiada. – Ah... Entendo. Você quer que eu chame você de dr. Bowers, é isso? Ou agente especial Bowers, Ph.D?
Dei de ombros. – Qualquer um serviria para mim.
Eu suspeitava que a ideia de constantemente lembrá-la que alguém havia realizado algo que ela não havia a incomodaria mais ainda do que ser chamada pelo primeiro
nome, e parecia que eu estava certo. Era divertido observar a reação dela.
– Acho – ela admitiu finalmente – que um certo grau de relação casual pode ser aceitável, considerando nosso longo histórico profissional juntos. Mas não na frente
dos novos agentes.
Apesar de eu saber o que ela queria dizer, a frase “relação casual” realmente não soava bem vinda de sua boca, especialmente quando ela acrescentou “não na frente
dos novos agentes”.
– Acho justo – eu disse.
Ela abriu sua pasta. – Eu tive que dar outra tarefa para o agente Hawkins, então ocuparei o lugar dele hoje.
Com base no quanto Margaret acredita em meu método de investigação e considerando a visão do tenente Doehring sobre investigação geoespacial, eu tinha a sensação
de que isso se tornaria mais um debate do que um painel de discussão.
– Entendo – eu disse.
Quando ela removeu alguns dos papéis de sua pasta, fiquei surpreso ao ver uma foto de um golden retriever colada na aba interna. Tentando redirecionar a conversa,
eu apontei: – Que cachorro bonito, Margaret.
– É o Lewis.
– Lewis.
– Sim, Lewis – ela checou seu relógio e, de onde eu estava, dava para ver que faltavam apenas alguns minutos para as 19h. O tenente Doehring ainda não havia chegado.
– Lewis é o meu cachorro de estimação.
– Eu não sabia que você tinha animais de estimação, Margaret.
– Agora você sabe.
Decidi dar uma trégua para ela. – Bom, como eu disse, ele é um cachorro bonito.
Doehring apareceu na porta e seguiu na direção do palco.
Ela fechou a pasta autoritariamente. – Ele é de raça pura.
Claro que era.
Doehring, que sempre me lembrou o personagem Wolverine dos X-Men tirando a barba do mutante, subiu os degraus para se juntar a nós.
Após vinte anos na força policial, ele tinha reputação de conhecer as manhas das ruas, ser durão e extremamente forte, mas também era o pai de duas garotinhas: uma
com sete e outra com quatro anos. E pelo que eu já tinha visto, elas o tinham nas palmas das mãozinhas. Um policial por excelência em todos os sentidos, Doehring
e eu havíamos trabalhado juntos diversas vezes ao longo dos anos e, apesar de nem sempre concordarmos, eu gostava dele. Ele sabia como trabalhar em um caso e como
concluí-lo.
– Pat, fiquei sabendo do Werjonic – ele balançou a cabeça lentamente. – Sinto muito – havia compaixão genuína em sua voz.
– Obrigado.
– Ele era um bom homem.
– Sim, ele era.
Por um momento ele deixou as palavras, a tristeza, pairarem no ar, então cumprimentou Margaret. – Diretora-assistente Wellington.
– Tenente. Obrigada por não se atrasar.
– Pois não.
Compartilhamos um olhar, um quase sorriso, então ele sentou-se. Coloquei meu telefone para vibrar, deslizei-o para dentro do bolso, e Margaret subiu no palanque
para iniciar o seminário.
6
– Boa noite – ela disse. – Sou a diretora-assistente-executiva Margaret Wellington e gostaria de começar agradecendo-os por comparecerem esta noite. Como vocês sabem,
pesquisas emergentes estão remodelando o modo como investigações criminais são estruturadas e conduzidas. Hoje, discutiremos a integração da tecnologia às investigações
criminais no século XXI.
Uma pausa.
– Estamos honrados por ter conosco o tenente Doehring, da Polícia Metropolitana de Washington, DC – ela acenou para ele com a cabeça. – E Patrick Bowers, um dos
criminologistas mais experientes do Bureau.
Tenho certeza de que acharão as ideias dele brilhantes.
Seu comentário sobre minhas ideias brilhantes foi completamente desprovido de sarcasmo, o que, por si só, parecia ser uma forma inovadora de sarcasmo.
– Esta noite promete uma discussão envolvente e provocativa – ela acrescentou mais alguns comentários e declarações de abertura, e então deu espaço para o tenente
Doehring.
Doehring tomou o palanque e começou a descrever como a comunidade policial de Washington, DC estava implementando o uso de telefones celulares equipados com telas
sensíveis ao toque, que também escaneavam impressões digitais para que as impressões de suspeitos pudessem ser processadas pelo sistema de identificação automático
segundos após a apreensão.
Recentemente, a Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, uma pequena ramificação do departamento de defesa para o qual eu presto consultoria em nome do FBI,
havia me dado o protótipo de um novo telefone, ainda em desenvolvimento, que incluía a função que Doehring havia acabado de mencionar, assim como recursos de mapeamento
do satélite de defesa e um projetor de hologramas tridimensionais para mapeamento e análise de cenas de crimes. Coisas impressionantes.
Doehring listou avanços no uso de emissores de micro-ondas para dispersão não letal de multidões, armas desenvolvidas pelos israelenses cujos disparos podem virar
esquinas, meios de visualizar multidões por raios X para determinar se há agressores armados, fotografias ortodigitais tridimensionais para ajudar em análises de
marcas de mordidas, e assim por diante. Todos os dispositivos que já vínhamos usando no Bureau nos últimos anos.
– No entanto – ele disse –, você pode ter todos os dispositivos de alta tecnologia do mundo, mas a menos que se prenda a procedimentos investigativos provados, testados
pelo tempo, eles não serão suficientes. Boas investigações sempre focam em descobrir o motivo, o modo e a oportunidade do perpetrador.
E é aqui que nossas visões começam a divergir.
Eu não procuro por nenhuma dessas coisas.
E eu definitivamente não uso a palavra perpetrador.
Doehring continuou detalhando alguns casos que ficaram “encalhados pela tecnologia” até que “os bons e velhos instintos” resolveram o caso. Percebi seu tom de voz
mudando, tornando-se levemente antagônico. De onde eu estava sentado no palco, dava para ver os rostos dos participantes, e a maioria das pessoas parecia concordar
com ele que o método clássico era o melhor.
Ótimo. Isso tornaria meu trabalho muito mais fácil.
Vinte minutos se passaram, Margaret encorajando o tenente Doehring, ocasionalmente pedindo minha opinião, nunca questionando suas asserções. Fui cuidadoso para manter
meus comentários focados nos pontos válidos de Doehring. Não fazia sentido diminuir sua autoridade na frente dos participantes.
Finalmente ele terminou e Margaret virou-se para mim e simplesmente: – Agente Bowers.
Minha vez de usar o palanque.
– Bem – o microfone chiou e eu me afastei dele, tentando novamente. – Avanços recentes na tecnologia nos permitiram usar inteligência geoespacial, ou GEOINT, a partir
da rede de satélites do departamento de defesa, e aplicá-la na polícia. Analisando os locais relacionados a crimes seriais e estudando horário, locação e progressão
dos crimes, podemos trilhar o caminho inverso para encontrar a localização mais provável da base de ação do infrator, uma região geográfica que tipicamente chamamos
de zona de perigo.
– Um perfil geográfico – Margaret interrompeu, possivelmente com uma leve nota de desprezo, era difícil dizer.
– Isso mesmo – antes de prosseguir para os aspectos técnicos e algoritmos, ou de demonstrar os recursos de holograma geoespacial do meu celular, eu precisava expor
um pouco de fundamento teórico. – A investigação geoespacial se baseia em pesquisas em criminologia espacial, sociologia, teoria de atividade de rotina, análise
das cenas dos crimes e psicologia ambiental, e é baseada em quatro princípios básicos que dizem respeito ao comportamento criminoso.
Rostos inexpressivos na plateia.
Introdução fantástica, Pat. Você está com eles na palma da mão.
Tomei fôlego. – Primeiro, mesmo parecendo óbvio, todos os crimes ocorrem em um lugar específico em uma hora específica; quase todos são cometidos em locais com os
quais o infrator está familiarizado, ou nos percursos entre essas áreas. A compreensão desses aspectos geoespaciais e temporais do crime nos leva a um melhor entendimento
dos padrões de deslocamento do infrator e do mapa cognitivo de seus arredores.
Mesmo perto do fundo da sala, reparei em Tessa bocejando.
Deve ter sido uma piada rápida. Não tinha como eu saber.
– Essencialmente, a distribuição e o horário dos crimes nos mostram como o criminoso entende e interage com seu ambiente – expliquei. – Em segundo lugar, apesar
do conhecimento convencional de que muitos crimes acontecem aleatoriamente, a maioria das pesquisas atuais apoia a conclusão de que as pessoas cometem crimes somente
após uma série de decisões racionais definidas por sugestões ambientais.
Fiz uma pausa e Margaret pediu-me, cordialmente, para esclarecer o processo de tomada de decisão ao qual eu estava me referindo.
– Bem, o passado de um infrator, sua familiaridade com a região, o desejo por reclusão durante o sequestro ou ataque, a ciência de ou disponibilidade de rotas de
fuga, e a falta de força policial visível, tudo isso afeta suas escolhas no que diz respeito à prática do crime. Infratores escolhem a hora e o local de seus crimes
de modo que evitar sua captura.
– Em outras palavras – Margaret interrompeu –, a motivação deles é escapar ilesos?
Oh.
Isso foi esperto.
Com um pequeno comentário, ela havia arrumado um jeito de concordar comigo enquanto trazia à tona minha maior implicância: motivo. Olhei para ela. Ela estava sorrindo
de um jeito que só ela sabia fazer.
– Sim – preocupe-se com isso mais tarde, apenas conclua os quatro pontos por enquanto. – Em terceiro, infratores tentam economizar tempo e dinheiro, fazer a mínima
quantidade de esforço pelo maior benefício possível. Isso influencia as rotas que eles tomam para de...
Uma das oito portas do lado direito do auditório se abriu. Mesmo que a maioria das pessoas não tenha reparado, o movimento chamou minha atenção. Uma mulher entrou.
Rosto naturalmente bonito.
Cabelo ruivo encaracolado. Sorriso recatado. Usava uma camisa polo verde-escura da Academia Nacional.
Olhei de novo para ter certeza.
Não podia ser.
Mas era.
A detetive Cheyenne Warren, de Denver.
Uma camisa da Academia Nacional? Isso não faz sentido. Ela é...
Cheyenne olhou para mim levemente sem graça por ter interrompido, então ergueu as mãos em um pequeno sinal de rendição, balbuciou a palavra “desculpa” e foi para
o assento mais próximo.
Margaret limpou a garganta suavemente, trazendo-me de volta para a discussão. – Agente Bowers? Você estava dizendo? Motivos?
Motivos? Eu estava...?
Lutei para retomar minha linha de pensamento, mas o sorriso de Cheyenne havia, ao menos temporariamente, me tirado do rumo.
Durante o ano passado, eu servi em uma força-tarefa conjunta contra crimes violentos com a polícia de Denver, e Cheyenne e eu trabalhamos juntos em sete casos. Desde
o início, nós dois ficamos atraídos um pelo outro, não havia dúvidas sobre isso, mas primeiro minha tristeza pela morte de Christie e então meu relacionamento com
uma das criadoras de perfil aqui de Quantico haviam nos impedido de sair juntos.
Então, mês passado, quando Lien-hua e eu terminamos, Cheyenne não ficou tímida ao me contar o que sentia por mim. No entanto, no momento em que percebi que sair
com ela seria, pelo menos inicialmente, uma maneira de lidar com o término, e eu não podia suportar a ideia de usá-la para isso, eu me afastei mesmo sabendo que
a machucaria.
Mas isso foi há mais de três semanas.
E agora, ali estava ela.
De volta para a discussão, Pat.
– Sim. Eu...
Algo sobre infratores... espaço e tempo...
Ah, sim.
Eu não tinha certeza se era o meu ponto exato, mas era próximo o suficiente: – Então, apesar de agirem, e em muitos casos, pensarem, de modos anormais ou depravados,
os infratores não são fundamentalmente diferentes do resto de nós. Eles não são monstros. Eles são seres humanos que entendem e interagem com seus ambientes do mesmo
modo que todos os seres humanos fazem. Então...
Cheyenne havia sentado na quinta fileira e agora estava me observando atenciosamente, de caneta na mão. Era difícil não olhar para ela.
– Em quarto...
O celular vibrou em meu bolso. Já havia interrupções demais, então eu ignorei, mas reparei que tanto Margaret quanto o tenente Doehring estavam olhando para baixo,
Margaret para o telefone repousado na mesa ao lado de seu bloco de anotações, Doehring para seu cinto.
O fato de nós três estarmos sendo chamados simultaneamente não podia ser um bom sinal. Doehring sacou seu telefone enquanto Margaret discretamente tocou a tela do
dela. Tirei o meu do bolso, mas continuei com os olhos na plateia. – Como eu estava dizendo, a quarta premissa é...
– Com licença, agente Bowers – Margaret abruptamente abaixou seu telefone e se inclinou na direção do seu microfone. – Eu sinto muito por isso, pessoal, mas temo
que seremos obrigados a encerrar nossa discussão prematuramente hoje.
Li a mensagem de texto no meu telefone: um corpo havia sido encontrado em um instituto de pesquisa de primatas em Washington, DC. A mensagem incluía um endereço
na South Capital Street, mas nenhum outro detalhe.
Mas o que me chamou a atenção foi o nome do remetente: Rodale, o diretor do FBI, que não se envolvia nos casos a menos que estivessem relacionados à segurança nacional
ou que envolvessem uma busca de nível nacional ou cobertura anormalmente extensa da mídia.
Após seu rápido anúncio, Margaret prontamente levantou-se e dirigiu-se para o corredor.
Como ela era a diretora-assistente-executiva, me perguntei se a mensagem dela continha mais detalhes do que a minha. Antes de partir para a cena do crime, eu queria
o máximo de informações possível, então rapidamente reuni minhas coisas e fui atrás dela, antes que ela escapasse.
7
Alcancei Margaret no fim do corredor, perto da entrada do tubo de hamster que levava para o prédio da administração.
– Margaret – chamei. Ela continuou andando. – Espere.
Ela não se virou.
– Diretora-assistente-executiva Wellington.
Ela parou. Olhou por cima do ombro. Mediu-me.
– Um instituto de pesquisas de primatas? – quando juntei-me a ela, reparei em Tessa no outro lado do corredor, forçando o caminho na minha direção pelo meio da multidão
que se formava. – Por que estamos sendo envolvidos nisso? Isso está em propriedade federal?
– Não, agente Bowers, não está – esperei que ela explicasse, e finalmente ela disse: – Um corpo foi encontrado.
– Disso eu sei, Margaret. Mas por que Rodale iria...
– Porque – sua voz estava tanto apressada quanto repleta de urgência. – A vítima é filha do deputado Fischer.
– O quê? – agora ela tinha minha atenção.
– Líder da minoria do congresso. Da Virgínia. Democrata. Primeiro distrito.
– Eu sei quem ele é – eu estava pensando nas implicações. Quantico está localizada no distrito do deputado Fischer, e ele havia defendido recentemente diminuir o
tamanho do FBI em vinte por cento por causa do que ele chamava de “redundância burocrática”, apesar de nunca terespecificado exatamente o que queria dizer com aquilo.
Debates sobre o orçamento no Congresso aconteceram durante todo o fim de semana no Capitólio, e como o irmão de Fischer havia sido vice--presidente na administração
passada, o deputado tinha influência e boas ligações e, até onde eu sabia, estava ganhando apoio por cortar a verba do Bureau. Não é preciso dizer que ele não era
a figura política mais popular na Academia naquele momento.
Ela olhou para o relógio. – Tenho duas ligações para fazer. O diretor Rodale transferiu o agente Hawkins para esse caso, então ele vai te encontrar na cena do crime.
Irei assim que puder.
Normalmente, Margaret controlava coisas desse tipo de trás de sua mesa, mas com o inevitável caos por parte da mídia, eu tinha a sensação de que ela via isso como
uma chance de ganhar alguma influência política ou administrativa estando presente na cena do crime perto das câmeras de televisão.
Ela girou sobre os calcanhares, saiu dali e, um momento depois, Tessa chegou ao meu lado.
Obviamente eu não poderia levá-la comigo para a cena do crime, mas a casa onde ficávamos durante o verão estava localizada na direção oposta, então eu não tinha
tempo para levá-la de volta.
Decidi que poderia deixá-la em uma cafeteria ou em um shopping no caminho. Não era o ideal, pois eu poderia ficar preso nisso por horas, mas no momento nenhuma ideia
melhor surgiu na minha cabeça.
– Vamos – coloquei minha mão gentilmente em seu ombro e a guiei na direção de uma porta lateral para o estacionamento. – É hora de ir embora.
– É ruim, não é?
Não fazia sentido tentar esconder. – Não é bom.
Parecia que ela ia fazer mais perguntas, mas permaneceu em silêncio. Estávamos quase chegando à saída quando ouvi passos atrás de mim. O som de alguém correndo.
Virei-me.
– Pat – Cheyenne correu em nossa direção. – Tem algo que eu possa fazer?
– Eu gostaria que tivesse – eu disse, e falava sério. Ela era uma das melhores detetives que eu já havia conhecido. Por um momento, pensei no programa de operação
conjunta do Bureau que envolvia estudantes da Academia Nacional em casos em andamento, tanto para treiná-los como para aprender com eles, mas uma pilha de papéis
que levariam horas para serem preenchidos ficava em nosso caminho.
Eu queria perguntar a ela como havia conseguido a vaga na Academia Nacional, o que tipicamente envolvia um processo seletivo de seis meses, mas essa conversa podia
esperar. Porém, eu acrescentei: – Estou surpreso em vê-la aqui.
– Eu estou surpresa por estar aqui – ela respondeu ambiguamente.
Nós três chegamos à porta. Eu a abri e Cheyenne acenou para Tessa e disse calorosamente: – Srta. Ellis.
– Detetive Warren – um toque de confusão. – Você não deveria estar em Denver?
– Eu estava para tirar uma licença, mas surgiu uma vaga de última hora na Academia Nacional.
A explicação foi curta, me deixando mais curioso ainda.
Nós três saímos para a noite escura e cheia de nuvens.
Gotas de chuva grandes e redondas se espatifavam no pavimento. Trovões rugiam sobre nossas cabeças. A tempestade havia chegado.
– Tessa – eu disse –, deixe-me conversar com a detetive Warren por um segundo – joguei a chave do carro para ela. – Já te alcanço.
Após olhar para Cheyenne e depois para mim, Tessa seguiu em frente.
– Escute – eu disse –, as coisas estão...
– Eu sei que você precisa ir – Cheyenne me cortou. – Vou explicar tudo depois.
Concordei. – Parece que isso vai ser uma bagunça.
– Sim, fala sério... A filha de Fischer.
– Como você...
Usando o corpo para proteger o telefone da chuva, ela o virou para cima e pude ver a tela. Um vídeo de um repórter de jornal no centro de Washington, DC. Ao lado
do repórter estava a foto de uma mulher atraente de uns vinte e poucos anos. O nome abaixo da foto dizia: Mollie Fischer. – A CNN, a FOX e a CNS News já estão lá.
Transmissão ao vivo pela internet.
– Maravilha.
Um relâmpago deslizou e estalou no céu, e os olhos de Cheyenne viraram na direção dele. – Ela só tinha vinte e dois anos – sua voz era suave e triste e eu não sabia
como reagir. Após um rápido momento, ela gesticulou na direção de Tessa, que estava entrando no carro para sair da chuva que apertava. – Você não vai levá-la com
você, né?
– Vou deixá-la em algum lugar no caminho.
Cheyenne e eu partimos na direção do meu carro. – Eu posso levá-la de volta para casa pra você.
– Não, tudo bem. Nós vamos...
– Pat – Cheyenne colocou a mão no meu antebraço. – Você está presumindo coisas demais. Eu só quero ajudar. Apenas como uma amiga. Juro.
Ela estava certa, eu estava enxergando segundas intenções na oferta dela e me incomodou o fato de ela ter percebido. Me senti um pouco envergonhado, mas ainda assim
levemente lisonjeado por ela conseguir me entender tão facilmente.
Cheyenne removeu a mão e esperou minha resposta.
Deixe-a ajudar.
– Honestamente, se você pudesse levá-la para casa, seria ótimo.
– Ótimo.
Corremos na direção do carro e eu abri a porta do lado do passageiro. – Raven, a detetive Warren vai lhe dar uma carona de volta pra casa.
Com a curiosidade insaciável de Tessa, esperei que ela fosse pedir para ir junto até a cena do crime, o que ela fez. – Você sabe que não posso levá-la – respondi.
– Além do mais, tem um corpo lá e pode ser que você veja...
Ela girou as pernas para fora do carro. – Sim, entendi.
Cheyenne partiu na direção do lado sul do estacionamento. – Meu carro está lá.
– Vejo você em casa, Tessa – eu disse.
– Tá bom.
As duas saíram correndo na direção do carro de Cheyenne. – Ei, obrigado novamente – gritei para Cheyenne.
– Sem problema – ela gritou de volta, com um aceno de mão.
Entrei no meu carro. Liguei o rádio para saber das notícias.
E parti para a cena do assassinato de Mollie Fischer.
8
Brad estava anonimamente no meio da multidão assistindo às telas das televisões.
Apesar da tempestade, quinze pessoas haviam se reunido fora da Williamson’s Electronics Store na Connecticut Avenue, perto da Union Station, no coração do centro
de Washington, DC.
O showroom de televisões de última geração mostrava aparelhos da Sony, LG, Samsung e a próxima geração de televisões de LED orgânico da Bang & Olufsen. Telas finas
como lâminas, de 65 polegadas, 70 polegadas, e maiores. Os sistemas de home theater mais caros do mundo à mostra e virados para a rua.
Por ter observado a loja nas últimas semanas, Brad sabia que não era incomum encontrar meia dúzia de pessoas paradas em frente à vitrine, cobiçando as TVs. Na verdade,
a popularidade da loja foi um dos motivos por ele tê-la escolhido.
Agora, as imagens granuladas exibidas em cada uma das telas pareciam um filme no estilo de A Bruxa de Blair ou Cloverfield: Monstro, mas cada televisão continha
seis diferentes ângulos de câmera, e o marcador de tempo na parte de baixo de cada uma delas deixava claro que a transmissão era ao vivo.
Os vídeos mostravam o interior de um grande edifício, uma passarela entre recintos com paredes de vidro de pelo menos seis metros de altura. Caixas de som localizadas
abaixo da fachada da loja projetavam o som de macacos, babuínos, gorilas e outros primatas, que balançavam em cordas grossas e escalavam os membros escuros de árvores
artificiais, obviamente construídas para aguentar o peso imenso dos símios.
Um turbilhão de agentes do FBI e da polícia de Washington, facilmente identificáveis pelas letras estampadas em suas jaquetas, movia-se para dentro e para fora da
imagem.
Por causa das sombras indistinguíveis e do brilho do vidro, era difícil dizer quantos corpos estavam caídos dentro da jaula mais distante à esquerda. Pelo menos
um. Talvez até três.
Ninguém mais sabia disso, mas as cenas estavam sendo transmitidas apenas para esse local.
Brad ouvia silenciosamente enquanto aqueles ao lado dele tentavam descobrir o que estava acontecendo: – É um tipo de zoológico de gorilas, ou algo assim – alguém
disse.
– Isso é ao vivo? – um homem em um terno Valentino cinza perguntou. – Isso é ao vivo, não é?
– Eles estavam falando sobre isso no jornal – a mulher ao lado dele disse. – Acho que foi a filha de um senador que foi morta.
– Morta?
– Essas são as câmeras de segurança de dentro do prédio.
– Não, foi de um deputado – alguém disse.
– A filha de Fischer. Foi isso que ouvi.
Brad havia colocado um boné do Washington Nationals na cabeça para evitar que seus olhos fossem vistos e usava uma barba falsa desgrenhada. Na verdade, os disfarces
eram uma de suas especialidades.
Ele tinha virado a gola para cima, para se proteger do frio, e estava vestido com as roupas fétidas e esfarrapadas que ele havia roubado de um mendigo que espancara
meia hora antes. Vestido como estava, Brad parecia só mais um vagabundo sem nome e sem rosto.
Invisível.
À vista de todos.
Ele queria poder ficar ali e assistir por horas, mas era hora de ir.
Ele tinha uma noite cheia – mais um assassinato para cometer, C-4 para instalar nos tubos de metal, uma sequência de detonação para configurar.
E algumas outras tarefas.
Ele caminhou quatro quarteirões até a van com acesso para defi
cientes que ele e Astrid estavam usando; a van onde ele havia deixado as próximas duas vítimas amarradas e amordaçadas. Pessoalmente, ele preferiria deixá-las inconscientes,
conforme havia planejado, mas Astrid disse que seria mais divertido se eles estivessem acordados, prevendo o que estava por vir.
Como eles se conheciam, se não tivessem sido vendados, eles se sentiriam consolados. Mas como estavam no final, o impacto seria muito maior assim.
Um morreria esta noite.
O outro passaria a noite com ele e Astrid na casa.
9
Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson
1311 South Capital Street
Washington, DC
20h26
As gotas da chuva batiam contra o para-brisa. Pequenas facas escuras no crepúsculo que se aprofundava.
A fita amarela da polícia cercava o instituto e se contorcia e tremulavam no vento cortante. Quinze viaturas de polícia estavam paradas, anguladas sobre o meio-fio,
com as luzes ainda ligadas. As cores perfuravam a chuva.
O estacionamento subterrâneo do instituto havia sido isolado, por isso estacionei na rua, atrás de uma das viaturas. Meia dúzia de equipes de noticiários e de canais
de TV a cabo já estavam ocupando as ruas vizinhas.
Justamente o que a gente precisava.
Apesar da presença da mídia, a cobertura de notícias no rádio estava péssima. Os repórteres pareciam não concordar se havia um corpo, ou dois, ou talvez três, se
a polícia tinha ou não um suspeito sob custódia, e se o deputado Fischer estava na cidade ou fora do país, em um encontro com soldados no Afeganistão.
Grupos de agentes do FBI, oficiais da Polícia Metropolitana (que tem jurisdição sobre a cidade), oficiais de polícia do Capitólio (que protegem Capitol Hill) e mesmo
US Marshals cercavam a entrada do edifício.
A força policial americana é organizada como um prato de espaguete, em que os fios de macarrão individuais se sobrepõem, escorrem e se entrelaçam o tempo todo. Dependendo
do tipo de crime e de onde ele é cometido, você pode ter oito ou nove entidades policiais federais e estaduais, agências de inteligência, unidades militares, organizações
de defesa e agências de departamentos de justiça, todas tentando realizar a investigação.
E na maioria das vezes sem compartilhar as informações da forma eficiente como deveriam.
Cada uma das forças armadas tem sua própria divisão de investigadores forenses criminais; adicione uma ajuda da ATF, da DEA, da CIA, do FBI, da NSA, do Serviço Investigativo
Criminal de Defesa, do Serviço de US Marshals e do Federal Air Marshals, do Serviço Secreto, do Serviço de Proteção Aduaneira e de Fronteiras dos EUA, do Bureau
de Segurança Diplomática, até do Escritório do Inspetor General do Serviço Postal dos Estados Unidos da América – assim como as forças policiais regionais e estaduais,
departamentos do xerife e as seis agências de investigação confidenciais que não aparecem em nenhum registro do governo...
É alucinante.
Com muita frequência, conduzir uma investigação é como enfiar o garfo na bagunça e girá-lo. Às vezes fico impressionado quando algum crime é resolvido, ou quando
algum ataque terrorista é desmantelado.
Agora, ao constatar a variedade de agências já no local, eu sentia isso acontecendo novamente: o espaguete estava começando a transbordar do prato.
Parece-me que o deputado Fischer pode estar certo quanto a querer cortar a redundância burocrática.
Um agente da polícia metropolitana estava se aproximando do meu carro.
Peguei um par de luvas de látex do kit que eu mantinha em meu porta-luvas, certifiquei-me de estar com meu conjunto para abrir fechaduras, minha lanterna Mini MagLite,
meu telefone com projeção de hologramas
3D; depois peguei meu blusão do FBI e saí na tempestade.
O policial ergueu a mão. – Me desculpe, senhor, mas...
Eu já estava com a credencial na mão. – Patrick Bowers. Estou com o FBI – vesti o blusão.
A chuva respingava pelo pavimento, como óleo preto fritando em uma frigideira escura de concreto.
Ele desviou o olhar de mim para o instituto. – Os outros já estão lá dentro – o vento tentou abafar suas palavras e ele aumentou o tom de voz. – Ficou sabendo? O
perpetrador, ele soltou os chimpanzés nela... eles comeram o rosto dela.
A notícia me deixou enjoado.
Guardei minha carteira.
Aproximei-me do edifício.
Entrei.
Uma imensa área de visitação se estendia entre dezoito áreas enormes cercadas por vidro, nove de cada lado. Todas elas tinham pelo menos seis metros de altura.
Me sacudi para tirar o excesso de água, e raspei a mão de leve no coldre da minha .357 SIG P229. A maioria dos agentes do Bureau estava usando a Glock 23 para facilitar
o trabalho dos fabricantes de armas e a de troca demunição em campo, mas alguns dos agentes mais antigos puderam manter suas SIGs. Eu adorava aquela arma, então
estava grato por ser um desses agentes.
A maioria dos policiais estava reunida no lado oposto da sala cavernosa, e comecei a andar na direção deles, esquadrinhando o caminho o máximo que pude.
Três portas de saída, incluindo uma escadaria que provavelmente levava até o estacionamento.
Um elevador logo à esquerda da escada.
Seis câmeras de vídeo, nenhuma panorâmica, presas nos cantos e nas fendas do teto bem acima de mim. Há alguns instantes, assim que entrei no prédio, eu reparei em
duas câmeras adicionais cobrindo a entrada do estacionamento, e esperei que houvesse cobertura nas saídas de emergência também.
E é claro, atrás dos vidros, dos meus dois lados nos primatas.
“Jaulas” não parecia a palavra certa para descrever as estruturas que os prendiam. Habitats, talvez. Habitats cercados por vidro.
Cada um deles era tão largo e comprido quanto alto, e podia ser acessado através de uma porta na parte de trás das portas deslizantes de aço, do tamanho de um macaco,
que ligavam os habitats.
O barulho e os gritos constantes dos primatas preenchiam o ar.
Cada habitat tinha uma combinação diferente de balanços de corda e grandes redes de lona para os animais descansarem. Alguns tinham balanços de pneus ou barras para
eles se pendurarem, outros tinham cobertores para se esconderem. Tudo era coberto por palha.
Os agentes Ralph Hawkins e Lien-hua Jiang estavam parados próximos a um corredor que levava para outra ala do centro. A sólida massa musculosa de Ralph fazia forte
contraste com a figura magra e esguia de Lien-hua.
Então.
Pelo que sabia, ela estava trabalhando em um caso em Miami e não esperava vê-la aqui essa noite.
Ralph me viu. – Pat – sua voz era grave, mais um rosnado do que qualquer outra coisa. – Por aqui.
Lien-hua e eu ainda não havíamos nos encontrado desde o término do nosso relacionamento. Nos cumprimentamos com um aceno meio tenso, então ela virou os olhos para
um habitat próximo. Parecia ser o que continha o corpo de Mollie, mas minha visão estava obstruída pelos policiais da unidade de perícia.
Mesmo usando jeans, uma camiseta e um blusão, Lien-hua estava elegante como nunca, em seu jeito oriental. Pensativa. Bonita. Inteligente.
Duas mechas de cabelo preto emolduravam seu rosto.
Não foi fácil, mas virei meu olhar para Ralph. – Me conte tudo – pus as luvas de látex. – O que já sabemos?
– Uma vítima: Mollie Fischer, caucasiana, 22 anos. Atacada por dois chimpanzés. A tratadora que a encontrou matou os dois – sua voz estava carregada de uma imensa
raiva. – O assassino amarrou os pulsos da garota no galho da árvore. Ela não teve chance. Ainda não sabemos por que o crime aconteceu aqui. Mollie não tem nenhuma
ligação com esse lugar. Até onde sabemos.
Lien-hua disse: – Os animais foram injetados com 1-fenil-2-aminopropano – havia raiva em sua voz também, mas equilibrada com uma profunda compaixão. – Basicamente,
eles foram drogados para ficarem o mais agressivos possível.
– Certo – eu disse, me preparando. – Vamos dar uma olhada.
10
Entramos no labirinto de corredores que serpenteavam atrás dos habitats e passamos por uma série de salas de pesquisa com paredes de vidro, equipadas com repartições
de tela de arame para manter os pesquisadores seguramente separados dos primatas. A porta de trás em cada habitat dava para uma das salas.
Lien-hua andava ao meu lado. Graciosamente.
Eu podia sentir o peso do silêncio ampliando-se entre nós e tentei pensar em um jeito de quebrar o gelo, mas antes que pudesse pensar nas palavras certas, ela rompeu
o silêncio. – Pat, nosso passado precisa ficar no passado – ela falava suavemente, voz repleta de sua ascendência asiática, e apesar de tentar soar objetiva e desapegada,
dava para sentir que o assunto era difícil para ela. – Esse caso, é aqui que nós estamos. É aqui que precisamos estar.
Ela estava certa, é claro, mas isso não facilitaria as coisas em nada.
– Não podemos fingir que nada aconteceu entre a gente – eu disse, mais pelo meu bem do que pelo dela. – Que nós não éramos...
Apaixonados, eu pensei.
– Íntimos – eu disse.
Uma pequena pausa. – Não estou sugerindo que finjamos, só estou dizendo que devemos seguir em frente – um fino fio de dor escorreu de cada palavra, mas não pude
deixar de lembrar que foi ela quem acabou com tudo, não eu. – As pessoas fazem isso, sabe – ela disse. – As pessoas se veem, elas terminam, elas arrumam um modo
de trabalhar juntas novamente.
Sim. Você está certa. As pessoas fazem isso.
Ela olhou para mim. – Precisamos fazer isso também.
– Eu sei – respondi.
– Muito bem – ela tomou fôlego, então acrescentou: – Estou feliz por você ter voltado para cá, no entanto.
– É bom te ver também.
Lien-hua.
Cheyenne.
Esse verão ia ser complicado.
Ao atravessarmos o corredor, reparei em estações de teste computadorizado, máquinas de ressonância magnética e tomografia nas salas adjacentes. Por causa de um caso
em que trabalhei em San Diego no inverno passado, eu até reconheci duas máquinas de MEG, ou magnetoencefalografia, usadas para estudar campos magnéticos gerados
por atividade neurológica.
Certamente havia um bom dinheiro por trás desse instituto.
Lien-hua reparou que eu estava analisando as salas. – Tivemos uma reunião informativa antes de você chegar – o tom dela era profissional, de um colega de trabalho,
e doía ouvi-la usando-o comigo. – A maioria das pesquisas daqui é focada na cognição dos primatas, mas nessa ala eles também estão estudando a agressividade dos
macacos. A tratadora chegou às 19h para verificar os animais, encontrou o segurança drogado, Mollie morta e os chimpanzés mutilando o corpo dela. Foi isso. É tudo
que sabemos. A polícia metropolitana estáentrevistando-a agora.
– Algum indício de que ela possa estar envolvida? – imaginei que
Lien-hua quisesse que eu imitasse seu tom frio, desapegado, e eu tentei, mas falhei lamentavelmente.
– Até agora, não.
– Como a droga foi identificada tão rapidamente?
– Eles a utilizam nas pesquisas.
Após mais alguns passos, ela disse: – Uma pergunta pessoal. Tudo bem?
– Claro.
– Como você e Tessa estão?
Apesar de não ter contado para Lien-hua sobre Paul Lansing, ela estava ciente dos meus esforços no relacionamento com minha enteada.
No momento, evitei todo o assunto sobre o pai de Tessa. – Ela está bem. Obrigado por perguntar. Na verdade, ela disse que estava ansiosa para te ver nesse verão.
Quer conversar com você sobre algo chamado Nagas.
Um pequeno momento. – Sim. Seria legal.
Mantive a curiosidade para mim mesmo.
Chegamos à porta que dava para o habitat onde Mollie havia sido morta. A porta era larga, mas baixa, e com quase 1,91 m de altura, eu tinha que me abaixar para passar.
Quando entrei, fui atingido pelo forte cheiro de palha e fezes e o aroma enferrujado de sangue.
Morte no ar.
Para chegar até Mollie, eu tinha que passar pelos dois chimpanzés mortos.
Ambos tinham os dentes sujos de sangue e manchas de sangue espalhadas pelos rostos e nas mãos. O maior deles tinha um único ferimento à bala no peito. O outro foi
atingido duas ou três vezes, era difícil dizer, e estava caído mais perto da porta. Um policial estava entrevistando uma civil do sexo feminino com aparência perturbada,
possivelmente a tratadora, mas tentei não fazer suposições.
Ralph estava conversando com os três oficiais da unidade de perícia ao lado do corpo de Mollie. Quando eu e Lien-hua chegamos, eles se afastaram.
E então, Mollie.
Caída aos meus pés.
Eu sabia que chimpanzés são inúmeras vezes mais fortes que humanos e podem se tornar violentos, mas eu não fazia ideia de que eles podiam ser tão selvagens. A maior
parte do rosto de Mollie havia desaparecido, as marcas fundas de mordidas sangrentas seguiam pelo que havia sobrado de suas bochechas, descendo profundamente até
o pescoço.
Com tanta pele e carne faltando no rosto dela, mandíbula se projetava grotescamente na minha direção. Um de seus olhos foi pulverizado, o outro estava faltando.
Senti que estava ficando cada vez mais enjoado e enraivecido.
Ela tinha um único piercing e um brinco no que havia sobrado de cada orelha e usava no pescoço uma corrente de prata que estava enfiada debaixo de seu moletom da
Georgetown. Uma vez cinza-claro, o moletom agora estava escurecido pelo sangue espirrado. Com a mão enluvada, puxei a corrente e encontrei um medalhão com duas iniciais
gravadas: R.M.
Mollie tinha uma estrutura física pequena, pesava talvez cinquenta quilos, usava jeans azuis, sapatos pretos e tinha cabelo loiro, agora emaranhado com sangue e
diversas tiras finas e medonhas de carne que haviam sido arrancadas de seu rosto. Sua perna direita estava obviamente quebrada, o pé virado para o lado, perpendicular
em relação ao resto da perna.
Uma morte selvagem, brutal e terrível.
O conteúdo de sua bolsa estava espalhado ao meu redor pela palha.
Tirando o sangue em seu moletom, suas roupas estavam secas.
As tiras de couro que o assassino usou ainda estavam amarradas apertadas em torno de cada pulso, e a pele ao redor das tiras estava vermelha e em carne viva do que
devem ter sido suas tentativas desesperadas de se soltar. Percebi que duas de suas unhas estavam lascadas, e presas no canto de uma delas, diversos fios de tecido
azul.
Da roupa do assassino?
De um carpete?
Lençóis? Um cobertor?
Os caras do laboratório descobririam.
Mencionei as fibras para a unidade de perícia e eles me disseram que já haviam tomado nota sobre isso. Olhei para cima e vi duas tiras de couro penduradas no galho
da árvore onde ela havia sido presa. Imaginei que os policiais que responderam ao chamado precisaram cortar as tiras para descê-la para o chão. – Quando ela foi
vista viva pela última vez?
– Não temos certeza – Ralph respondeu. – Alguém a viu na estação Clarendon do metrô por volta de 16h essa tarde. É a mais recente que sabemos.
Considerei isso.
16h00.
Agora eram 20h31.
Olhei para as solas pretas do sapato dela. Desgastadas.
Senti a barra da calça dela.
Seca.
Pensei nos sete passos que os oficiais de polícia seguem: preservar a cena do crime, prender o suspeito, dar assistência aos feridos, chamar reforços, reter testemunhas,
identificar o corpo, buscar todas as pistas.
– Quem fez a identificação?
Ralph indicou a bolsa de Mollie. – A tratadora encontrou a carteira de motorista e ligou para a polícia.
Eles trouxeram o deputado aqui imediatamente. Ele a identificou. Sim, eu sei que não é normal fazer isso na cena do crime – ele continuou, – mas havia suspeita de
ser um crime com motivações políticas, que a vida dele poderia estar em perigo, então a polícia do Capitólio o trouxe. Levaram--no para um local seguro logo em seguida.
Pela extensão dos ferimentos que a desfiguraram, imaginei como ele havia feito a identificação. Talvez por alguma marca de nascença. Uma tatuagem.
Ele é pai dela, Pat. Um pai conhece sua filha. Mesmo morta.
Analisei a palha suja de sangue cercando o corpo de Mollie. Um frenesi de violência. – Outros familiares?
– Ela é filha única. A mãe está na Austrália para o casamento de um parente – os oficiais da unidade de cena do crime me olharam silenciosamente. Tive a sensação
de que eles não estavam felizes comigo mexendo no que era responsabilidade deles.
Levantei-me e avaliei a área toda. – Alguma outra coisa como essa? Algum crime parecido sobre o qual saibamos? Ligações com outros homicídios?
– Checamos o ViCAP,4 – Ralph disse. – Pessoas já foram dadas como comida para dobermans, porcos, jacarés, mas nunca para primatas. Pelo menos não que a gente saiba.
Eu podia dar uma olhada melhor nisso depois.
Os peritos fariam uma varredura na sala procurando evidências físicas. Eu não estava aqui para isso. Meu trabalho era reparar nas peças do quebra-cabeça que passam
despercebidas para outras pessoas.
Recapitulei mentalmente o que eu já sabia.
A parada do metrô.
A chuva.
A posição de visibilidade do congressista como líder da minoria do congresso.
Hora. Local. Padrões. Rotas.
Lien-hua estava estudando a posição dos corpos dos chimpanzés. Ralph estava ajoelhado ao lado de Mollie, inspecionando seus ferimentos. Os três oficiais da unidade
de perícia ainda estavam me observando.
– Hora da morte? – perguntei a eles.
– Não faz muito tempo – um deles respondeu. Ele era magro, com olhos azuis, cabelo loiro, e tinha um tique nervoso de esfregar o dedão esquerdo e o indicador um
no outro. A etiqueta costurada ao seu uniforme dizia Oficial Roger Tielman. – A temperatura e a lividez do corpo sugerem de uma a três horas. Provavelmente próximo
das 18h. Talvez se aproximando das 19h.
Não era específico o suficiente para me ajudar a afunilar as coisas.
– Última chamada em seu telefone? – perguntei. – Alguma mensagem de texto?
– Já verificamos as últimas dez chamadas, todas de números pré--programados. Oito mulheres, dois homens.
– Alguma de um R.M.?
Um olhar confuso.
– Alguma das chamadas foi feita por uma pessoa com as iniciais R.M.?
Ele mandou um dos oficiais ao lado dele ir descobrir.
– Há centenas de mensagens de texto do mês passado – Ralph acrescentou. – Os caras da ERT estão cuidando disso. – A Evidence Response Team, ou ERT, é a unidade forense
do FBI.
Peguei meu celular. Digitei alguns números na tela sensível ao toque.
– E quanto às câmeras de segurança do instituto? – perguntei a Tielman. – Alguma coisa?
– Sim. Verificamos – ele parecia quase insultado pela pergunta. – O trecho das 17h às 19h foi apagado.
No meu telefone, naveguei até o Banco de Dados Digital Federal e entrei no site da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica. Eles podem não gravar dados detalhados
de cada cidade dos EUA, mas eu estava contando com o fato de eles acompanharem mudanças meteorológicas aqui na capital do país. Digitei o número da minha identificação
federal e então olhei pelo vidro, para uma das câmeras sobre o corredor central. – As câmeras estavam ligadas quando vocês chegaram?
– Sim.
– E agora elas estão direcionadas para a mesma posição que estavam antes da filmagem ter desaparecido?
Ele pareceu um pouco confuso. – Na mesma posição?
Eu estava ficando frustrado com a necessidade repetitiva de Tielman por esclarecimentos. – As câmeras estão todas paradas; não estão captando a panorâmica.
Eu quero saber se alguém assistiu à filmagem antes das 17h e confirmou se os ângulos para os quais as câmeras estão apontadas são os mesmos de antes da filmagem
ser apagada.
Ele desviou seus olhos de mim para sua parceira, uma mulher hispânica esbelta, e então de volta para mim. – Eu imagino que eram.
– Não imagine – eu disse. – Descubra.
– Por que isso importaria?
– Tudo importa.
– Vá – Ralph disse, acabando com a discussão.
Tielman falou com sua parceira, mandou-a descobrir sobre os ângulos das câmeras. Ele ficou para trás enquanto ela cruzava a pela porta.
Os dados de precipitação da ANOA apareceram na minha tela em uma série condensada de colunas de números, organizadas por coordenadas de longitude e latitude.
Mais alguns toques na tela e eu havia baixado imagens da cidade do satélite de defesa.
Fui até um canto do habitat, empurrei um pouco da palha para o lado para dar espaço ao meu telefone, coloquei-o sobre o concreto e abri o programa de holograma.
Um instante depois, o telefone estava projetando um holograma em 3D do centro de Washington. Ele pairou a um metro do chão, com meio metro de largura e comprimento.
Edifícios brilhantes, ruas reluzentes.
Com esse telefone, eu era capaz de girar o holograma, dar zoom e sobrepor dados para destacar locais específicos e rotas de deslocamento. Apesar de não ter certeza
de que minha ideia funcionaria, transferi as estatísticas e coordenadas de precipitação sobre a cidade, sobrepondo-as contra as imagens em 3D do holograma, assim
como faço com as rotas de deslocamento de vítimas quando estou fazendo um perfil geográfico.
Os níveis de precipitação estavam marcados em camadas de tons em degradê de azul, correspondendo ao nível de precipitação registrado pelos satélites da ANOA. Apesar
de ser difícil discernir as mudanças sutis entre as cores, quando analisei mais de perto, pude reparar por pouco nas diferenças. Comecei a revisar os níveis com
intervalos de quinze minutos, começando às 16h, quando Mollie foi vista pela última vez.
– Isso aqui não é esporte para se ficar assistindo – Ralph rosnou. Suas palavras chamaram minha atenção e, quando me virei, percebi que todos no habitat, exceto
Ralph e Lien-hua, estavam olhando para o holograma.
– Voltem ao trabalho – quando Ralph fala, as pessoas obedecem. Em instantes, todos haviam dado as costas para mim.
Lien-hua se inclinou e passou a mão em um monte de palha suja de sangue.
Continuei a navegar pelos marcadores de tempo até chegar às 19h e achei o que estava procurando.
– Preciso ver o estacionamento – eu disse.
– O que foi? – Ralph perguntou.
Fechei o programa e o holograma desapareceu. Guardei o telefone no bolso. – Troca de turno e a estação de metrô. Encaixa – parti para a saída, mas antes que pudesse
sair, encontrei dois membros da ERT do Bureau passando pela porta.
Primeiro, o agente Tanner Cassidy, um velho amigo meu, apareceu. Estatura mediana, cabelo castanho. De fala suave, meticuloso e dedicado. Ele apresentou a agente
atraente que, apenas um instante depois, apareceu ao lado dele. – Essa é Natasha Farraday. Transferida de St. Louis. Apresentei-me. – Pat Bowers.
Ela apertou minha mão segurando suavemente meus dedos, em vez de tocar na mão inteira. – Prazer em conhecê-lo – com um sorriso encantador e olhos grandes e tímidos,
ela me fez lembrar de Christina Ricci com uns vinte e cinco anos.
– O prazer é meu.
– Agente Cassidy – Lien-hua chamou, com uma voz fria. – Por aqui.
– Eu li seus livros, dr. Bowers – Natasha me disse.
Eu estava prestando atenção na profunda preocupação estampada no rosto de Lien-hua. – Ok.
Cassidy e Tielman se juntaram a ela. Ajoelharam ao seu lado. Cassidy chamou um fotógrafo e pediu um saco para evidências. – Achamos o olho de Mollie aqui.
Um surto de náusea.
– Com licença – eu disse para Natasha, indicando a porta, mas então percebi que ela poderia me ajudar. – Espere. Você pode vir comigo até o estacionamento?
– Claro.
Perguntei a Ralph se ele poderia vir junto e ele me seguiu, mal conseguindo passar pela porta com seus ombros enormes.
– O bom é que isso é construído para gorilas – eu disse.
– Olha lá o que diz...
Pegamos a escada para o estacionamento. Se eu estivesse certo, o carro do assassino ainda estaria lá.
11
Eu estava verificando os veículos.
– O carro de Mollie não está aqui – Ralph disse, com certa impaciência. – Nós já verificamos.
– Não estou procurando o carro dela – eu esperava encontrar apenas um punhado de carros, mas havia mais de trinta ali. – Havia apenas uma equipe mínima de funcionários
aqui hoje; por que tantos veículos?
– Eu já perguntei sobre isso para o segurança – ele soou incomodado; talvez comigo, talvez com a conversa que teve com o guarda. – Como o instituto fornece estacionamento
gratuito para os funcionários, a maioria da equipe deixa os carros aqui e pega o metrô. Pagar um estacionamento perto de seus apartamentos é tão difícil?
Vida urbana. Regalias.
Então esses carros são só dos funcionários... Ótimo. Isso diminui a lista.
Natasha parou ao meu lado, esperando por instruções.
Ralph disse: – Você está procurando o carro de quem?
– O vídeo teria mostrado o carro saindo do estacionamento. Eu estava presumindo que o assassino estivesse ciente disso.
– Eu pensei que você não presumia coisas.
Uma van seria ideal para transportar uma mulher sequestrada. E, ao passo que não vi nenhuma van, vi seis minivans, mas imediatamente podia dizer que não haviam sido
usadas para transportar Mollie. – Vamos chamar isso de hipótese inicial.
Deixei meus olhos percorrerem o estacionamento... eliminando possibilidades... eliminando... – Procure por carros que tenham porta-malas que sejam...
Então eu vi.
– Ali – comecei a correr na direção dele, um Volvo 2009 azul, sedã.
– Como você sabe? – Natasha disse. Ouvi Ralph e ela correndo atrás de mim.
– Água – apontei. – Debaixo dos para-lamas.
Cheguei perto do carro, usei minha lanterna para enxergar o concreto molhado sob o carro e continuei minha explicação: – Começou a chover em Washington às 17h06
e não parou mais.
Mollie está usando roupas de algodão que absorveriam água, mas elas estão secas, então o assassino obrigatoriamente a tirou do carro aqui dentro. Apenas três carros
dos trinta e dois têm água debaixo deles, dois possuem adesivos de acesso mensal neles, um seria do segurança, o outro, da tratadora. Esse aqui não tem adesivo.
Não faz sentido.
Eu ainda estava usando as luvas de látex. Tentei as portas. Trancadas.
Então o porta-malas.
Trancado.
– Não poderia ser o carro de alguma outra pessoa? – Natasha perguntou.
Talvez...
Apontei para o carpete azul do carro. – Ela tinha fibras azuis presas em uma unha quebrada.
Tirei meu conjunto para abrir fechaduras do bolso e olhei pelas janelas do carro, mas não consegui ver nada anormal.
Ao meu lado, Ralph havia pegado o telefone e já estava verificando a placa, da Virgínia: 134–UU7
– Por que o assassino deixaria o veículo aqui? – Natasha perguntou.
Era uma boa pergunta, a pergunta óbvia.
Talvez para evitar ser pego pela câmera...?
Mas mesmo se ele não foi embora dirigindo, as câmeras o teriam fil
mado indo embora a pé. Além do mais, a filmagem foi apagada...
– Não faço ideia – comecei a trabalhar na fechadura do porta-malas, então percebi um movimento e vi o tenente Doehring se aproximando com um policial atarracado
e de bigode, que eu não conhecia, caminhando ao lado dele.
Ralph guardou o telefone no suporte em seu cinto. – O carro está registrado em nome de Rusty Mahan.
– R.M. – eu disse.
– Mahan? – perguntou Doehring. – Eu acabei de sair de uma ligação com o deputado Fischer. Um cara chamado Rusty Mahan é namorado de Mollie. Vinte anos de idade.
Mora no campus da Georgetown.
– Era namorado dela – o outro policial respondeu. – Até ontem. Eles tiveram uma briga feia na mansão do pai dela. Fischer disse que o garoto ficou arrasado.
Eu estava trabalhando na fechadura do porta-malas. – Precisamos encontrá-lo.
– A segurança do campus já está trabalhando nisso – Doehring respondeu. – Mas você vai adorar isso: ele é um estudante de graduação em biologia evolucionária. Trabalhou
aqui como estagiário no semestre passado.
– Então ele poderia ter acesso ao edifício – o policial corpulento disse. Olhei para seu distintivo: Lee Anderson. Ele continuou: – O carro o coloca na cena do crime,
e como ele acabou de terminar um relacionamento com a vit, temos um motivo – ele soava como se houvesse acabado de resolver o caso.
– Certo, então – eu ainda estava trabalhando na fechadura. – Parece que está tudo resolvido.
– Não o provoque – Doehring disse para Anderson.
– Com o quê?
– Motivo – ele respondeu. – E não diga vits, executores, perpetrador.
Você vai se arrepender.
Definitivamente, não era hora de ter aquela conversa.
– Estamos procurando por pistas – eu disse. – Motivo não é uma pista. Na melhor das hipóteses é uma evidência circunstancial, e ainda assim é discutível.
– Como assim, motivo não é uma pista? – Anderson perguntou ceticamente.
– Lá vamos nós – Ralph grunhiu.
A fechadura estava me dando trabalho, e isso estava me irritando.
Eu não estava com humor para isso. – Não há como provar que uma pessoa teve um motivo específico em um momento específico, e não há motivo nem para tentar: nosso
sistema de justiça não exige uma demonstração de motivo para conseguir uma condenação por qualquer crime previsto na lei. Júris gostam disso, mas é uma enganação
porque tentar descobrir motivos é um jogo de adivinhação que você nunca sabe se ganhou. Investigadores deveriam lidar com fatos, e não com conjecturas.
Pronto.
A fechadura abriu.
Abri o porta-malas.
Todos os três homens e Natasha se inclinaram para olharem dentro dele.
Carpete azul.
E uma série de marcas escuras de pancadas na parte de metal do lado do passageiro. – Ela estava consciente quando a transportaram – não percebi que havia dito as
palavras em voz alta até ver Natasha me olhando curiosamente. Apontei para as marcas. – Da mesma cor que as solas do sapato dela. Ela estava chutando. E forte.
– Ela ficou aqui dentro por um tempo – Doehring estava olhando para as marcas. – Lutou bastante.
Hora, local.
Hora.
Peguei meu celular e liguei para Lien-hua. – Alguma novidade sobre as câmeras de segurança?
– Os mesmo ângulos, Pat – ela disse. – Quem quer que tenha apagado a filmagem, ele não as redirecionou. Por que você queria saber disso, afinal?
– O assassino apagou a filmagem, portanto ele obviamente conhecia o sistema, mas então ele teria que deixar o prédio após fazer isso, e as câmeras estariam ligadas
quando ele fosse embora. Eu queria ver ser ele redirecionou os ângulos de alguma delas para que pudesse sair sem ser detectado. Se ele tivesse feito isso, saberíamos
qual porta usou para deixar a cena, ou se saiu pelo estacionamento.
Um momento de reflexão se passou enquanto ela processava o que eu havia dito. – Boa ideia. Outra coisa: alguém com um celular capturou imagens de uma loja de eletrônicos
que estava transmitindo um sinal ao vivo das câmeras de segurança daqui de dentro do instituto de pesquisa. Eles mandaram a gravação para a CNS News. Estamos em
todos os canais.
Oh. Péssimo.
Ela me passou o nome e o endereço da loja.
– Precisamos comparar uma lista de funcionários da loja com pessoas que possam trabalhar no instituto de pesquisa. Também verifique contas de cartão de crédito,
encontre os clientes mais recentes e mais frequentes.
Essas não eram tarefas para Lien-hua, ela sabia disso, eu sabia disso, mas ela entendia o jeito que eu trabalhava e se certificaria de que as coisas seriam feitas.
Nunca houve nenhum ciúme profissional entre nós.
Nenhuma rivalidade. Nós nos complementávamos.
Ou pelo menos era assim antes.
Me afastei do telefone. – Doehring, veja se Mahan tinha alguma ligação com a Williamson’s Eletronics Store que fica na Connecticut.
Doehring acenou com a cabeça e pegou seu walkie-talkie.
Voltei para minha conversa ao telefone com Lien-hua. – Venha aqui embaixo assim que você puder. Precisamos conversar.
Após desligar, percebi que Natasha havia ligado para mais dois agentes da ERT e os três haviam começado a analisar o carro. Quando Doehring finalizou sua transmissão,
Ralph começou a informá-lo sobre as coisas que já sabíamos e eu fui até a entrada do estacionamento e olhei para a noite, organizando meus pensamentos enquanto esperava
por Lien-hua.
Se Mahan fosse o assassino, por que ter todo o trabalho de trazê-la aqui? Por que deixar seu carro na cena do crime? Por que deixar a bolsa dela com tudo dentro
no habitat...
A chuva caía no telhado. Batidas finas e constantes de água.
O estádio dos Nationals, ali perto, se erguia como uma imensa fera negra manchando a linha do horizonte.
No fim do quarteirão, as luzes dos semáforos se moviam em sua dança lenta e metódica de três passos, passando de verde para amarelo e depois para vermelho.
Chuva cortante. As luzes piscantes de veículos de emergência. As ruas escuras de Washington, DC.
Hora da morte: entre 18h e 19h.
Verde.
Ela foi vista pela última vez na estação Clarendon do metrô...
Pelo menos isso nos dava um local com o qual trabalhar. Tentar seguir os padrões de movimentação dela.
Amarelo.
Lien-hua chegou e eu percebi o cheiro delicado de sua presença. Tão familiar para mim, mas também, agora, tão mais distante do que estava um mês atrás.
Vermelho.
– Pat. Estou aqui.
Em instantes contei a ela sobre o carro e Rusty Mahan, então eu disse: – Eu sei que você não gosta de fazer isso assim, na hora. Mas vocêpoderia me dar um perfil
preliminar? Sejam quais forem suas primeiras impressões, só isso.
– Eu não confio em primeiras impressões, você sabe disso. Eu confio numa avaliação crítica.
– Sim, eu sei – eu disse. – Eu também.
– Eu sei o que você acha de perfis, Pat. Estou surpresa por você ter me pedido para...
– Por favor – não era só a natureza sinistra desse crime; eu não estava conseguindo envolver o contexto do que tínhamos aqui. – O que você está pensando?
Finalmente Lien-hua fechou os olhos. Entrou no mundo de empatia e compreensão dos criadores de perfil, o mundo que nunca fez muito sentido para mim, onde eu nunca
pisei. Levantando um dedo cuidadoso, ela traçou seus pensamentos pelo ar enquanto falava.
– O sequestro, a sofisticação em reencaminhar a transmissão de vídeo, drogar o guarda, usar os chimpanzés, juntos com a habilidade de entrar aqui, me dizem que ele
tem experiência, possui alto nível de educação e organização. De 30 a 35 anos. Com passado em programação de computadores. Talvez um hacker. A demografia e a pele
de Mollie me sugerem um infrator caucasiano.
Até então eu concordava com ela.
– Porém, seria difícil para alguém trabalhando sozinho sequestrar uma mulher sem ser percebido, subjugá-la, acessar o prédio, drogar os chimpanzés e o guarda, transportá-la
até a jaula dos chimpanzés...
– Ele teve ajuda.
Um aceno. – Considerando a posição do deputado Fischer, pode ter sido uma tentativa de atingi-lo, algum tipo de afirmação política.
Eu discordei. – A motivação política me parece fraca. Não tem nenhum bilhete, nenhuma ameaça, nenhuma exigência. E um grupo de assassinos capaz de realizar um crime
tão elaborado poderia certamente ir atrás do próprio deputado se quisesse. Por que não apenas matá-lo?
Ela abriu os olhos. – Isso manda uma mensagem mais forte.
Quando pensei nisso, tive que concordar, apesar de não ter ideia de que mensagem seria. – Mas – ela acrescentou – você está certo; precisamos de mais informações.
Um momento depois, Doehring se juntou a nós.
– Não foi o namorado – Lien-hua continuou. – Sua idade não bate com isso e o crime é muito elaborado para ser bolado em vinte e quatro horas. Além disso, Mollie
não terminou com ele. Eles devem ter discutido, mas foi só isso.
– Como você sabe disso? – ele perguntou a ela.
– Mollie ainda estava usando o medalhão com as iniciais de Rusty.
Se ela tivesse terminado, não estaria usando – Lien-hua desviou os olhos de mim, olhando na direção de Doehring. – Eu sou mulher. Acredite em mim. Ela teria tirado.
Suas palavras faziam sentido, mas eu me peguei imaginando se ela ainda tinha algum dos presentes que eu havia dado a ela. Era doloroso imaginá-la jogando tudo fora.
Enterrei o pensamento.
– E também, a natureza sádica do crime apontam para um, e não me importo que você não goste do termo, Pat, motivo diferente que não ciúme ou raiva por causa do término
de um relacionamento.
Ela deve estar certa sobre isso também, provavelmente estava, mas esse é o problema em analisar alguém psicologicamente: você nunca tem certeza.
Ela concluiu: – Precisamos encontrar Mahan e conversar com ele não como um possível suspeito, mas em busca de informação sobre quem mais poderia querer fazer mal
para Mollie ou sua família.
– Por que alguém enviaria um sinal de vídeo para uma loja de televisão? – Doehring perguntou.
– Assim como os assassinos que voltam para a cena do crime para observar – ela respondeu –, esse foi o jeito dele, ou deles, de estar presente e ao mesmo tempo estar
a salvo.
– Eles sabiam do procedimento, que fotografamos aqueles que se juntam na cena do crime.
Ou o assassino pode ter aprendido isso assistindo a praticamente qualquer episódio de CSI ou Law & Order.
Percebi que a chuva estava finalmente parando. Uma sutil variação no clima.
– Nós sabemos se tem alguma câmera de segurança na loja? – perguntei para Doehring. – Que esteja virada para a rua? Para a multidão lá fora?
– Estão checando.
Semáforos.
Vermelho.
Verde.
Repassei os fatos mentalmente. Tentei organizá-los um a um, mas me peguei unindo coisas baseado em suposições sem fundamento em vez de me guiar pelas evidências.
Amarelo.
Deixei minhas especulações de lado e voltei para o andar térreo para dar outra olhada no corpo de Mollie Fischer.
12
Passei mais duas horas na cena do crime e até a hora em que me arrumei para ir embora, nem a segurança do campus de Georgetown nem a polícia metropolitana de Washington
havia conseguido localizar Rusty Mahan.
Descobrimos que as câmeras de segurança na loja de eletrônicos haviam sido desligadas, dificultando o trabalho de rastrear quem estava presente lá: tudo que tínhamos
para trabalhar era o curto vídeo de celular da CNS News, que não mostrava nenhum rosto, e o mais cedo que o Laboratório do FBI poderia analisar o vídeo seria amanhã
de manhã.
O pessoal da ERT no centro de primatas havia identificado dúzias de impressões digitais nas portas do instituto e no carro de Mahan, mas nenhuma delas estava registrada
no sistema de identificação de digitais.
Uma série de becos sem saída.
Todas as evidências circunstanciais apontam para Mahan, mas quando todas as evidências apontam para um lado, normalmente é uma boa ideia começar a procurar pelo
outro; caso contrário você acaba acidentalmente confirmando suas suposições em vez de tentar refutá-las vigorosamente.
Margaret chegara há dez minutos, muito mais tarde do que eu esperava, especialmente considerando o que ela havia acabado de me dizer na Academia sobre ter que fazer
duas ligações rápidas antes de ir. Eu ouvi enquanto Ralph e Lien-hua a informavam sobre o que já sabíamos.
Margaret ordenou que entregassem os relatórios até as 21h em ponto; depois ela virou-se para mim. – Vá para casa, agente Bowers. Eu não quero que a qualidade de
suas aulas seja afetada porque você não dormiu o suficiente. Nós cuidaremos das coisas por aqui e o informaremos amanhã sobre o que descobrirmos.
Não era preocupação pelos alunos que eu percebia na voz dela, mas, em vez disso, um descarte sutil, como se ela achasse que eu havia cumprido meu papel e agora estava
me dispensando.
– Venha aqui um segundo – gesticulei na direção de um canto do estacionamento, atrás de uma SUV próxima. – Preciso te perguntar algumas coisas.
Quando estávamos a sós, ela colocou as mãos na cintura. – Sim?
– Primeiro, por que estou nesse caso? Ao que tudo indica, esse é um homicídio isolado. Minha especialidade é analisar infrações em série interligadas, não...
– O diretor Rodale fez a atribuição, não eu. E só estou especulando isso, mas acho que é por causa da sua experiência de campo trabalhando em casos com alta exposição
na mídia, e não por ser na sua área de experiência. Que mais?
– Certo. A detetive Warren, de Denver. Existe um processo de seis meses de inscrição para entrar na Academia Nacional. Como ela foi aceita se acabou de se inscrever?
– Ela é muito qualificada – senti alguma coisa em seu tom de voz.
Dissimulação. – Você deveria saber disso, pois já trabalhou com ela.
– É claro que eu sei disso, mas ninguém sabe que as férias estão chegando e se inscreve para uma turma na Academia Nacional. Alguém teve que mexer os pauzinhos para
colocá-la lá dentro, e esse alguém seria...
– Eu.
– Sim.
– O delegado em Denver estava preocupado com a carga emocional do caso Giovanni. Ele quis afastá-la da cidade por um tempo – um sorriso malicioso. – Eu pensei que
você ficaria feliz em vê-la. Pelo que sei, vocês dois têm um relacionamento íntimo de trabalho.
Olhei para ela.
– Não esconda coisas de mim, Margaret.
– E não questione minhas decisões, Patrick. Vou pedir que o agente Hawkins passe o informe às 11h30 amanhã. Isso dará a você tempo sufi-ciente para chegar até o
NCAVC quando terminar sua aula – o National Center for the Analysis of Violent Crime é a seção do FBI onde Ralph, Lien-hua e eu trabalhamos. O prédio fica a doze
minutos de carro da Academia em Quantico. – Boa noite.
Ela deu um passo.
– Espere – eu disse.
Ela parou. Me fulminou com o olhar.
– Se Rodale quer que eu me envolva nisso, estou dentro. Mas não interfira. Deixe-me fazer meu trabalho.
– É exatamente por isso que estou aqui: para garantir que todos façam seus trabalhos.
Ela foi embora.
Pensei sobre o caso e sobre Cheyenne.
Pode chamar de TOC, mas não gosto de perguntas sem respostas, então mesmo sentindo que estava sendo vagamente desleal com Cheyenne, decidi verificar qualquer ligação
prévia que ela pudesse ter com a diretora-assistente-executiva Margaret Wellington.
Enquanto me dirigia ao meu carro, desviei-me da loucura das equipes de TV a cabo do lado de fora do prédio.
Desde que chegou em casa cerca de três horas atrás, Tessa estava tentando ler Boulders Dancing in the Tip of My Tongue, uma coleção de poemas de Alexi Marenchivek,
poeta russo pouco conhecido nos Estados Unidos, mas alguém que entendia os paradoxos da vida: tanto suas tragédias quanto suas glórias.
Tessa não sabia russo, apenas latim e francês, então estava limitada a ler uma tradução em inglês, o que meio que a irritava.
Por fim, ela deixou o livro de lado. Sua amiga Pandora andava a enchendo para ler algo de Sherlock Holmes, o que não era o barato dela, mas Tessa estava com esperanças
de ler algo de Robert Louis Stevenson, que, ao contrário de tantos escritores de “clássicos”, realmente sabia escrever.
Ela optou por Stevenson em vez de Doyle e pegou O Médico e o Monstro.
A cada cinco minutos ela checava se havia algum e-mail de Paul. Ele sempre mandava seus e-mails às 21h, mas por algum motivo essa noite ele estava atrasado e aquilo
a deixou um pouco preocupada. Ela havia mandado um e-mail para ele há cerca de uma hora, mas ele ainda não tinha respondido.
Ela abriu o livro na página marcada e leu a descrição de Stevenson para uma noite com neblina em Londres.
A neblina ainda descansava na ala sobre a cidade submersa, onde as lâmpadas brilhavam como carbúnculos; e através do silêncio abafado dessas nuvens caídas, a procissão
da vida da cidade continuava passando pelas grandes artérias com o som de uma poderosa asa.
Bom.
Muito bom.
Tessa verificou o e-mail novamente.
Nada.
Ela continuou lendo, mas dez minutos depois, distraída por seus pensamentos, deixou o livro sobre o sofá e tentou ver TV. Reprises de American Idol.
Karaokê com esteroides.
Acho que não.
Clique.
Algum filme de faroeste. Clique.
Uma reprise de Seinfeld, comerciais, comerciais, um dos filmes da série Star Wars. Mais comerciais. Ela estava prestes a desligar aquela coisa idiota quando encontrou
uma história em um canal de notícias a cabo com imagens de um zoológico ou algo do tipo em Washington, DC onde a filha de um deputado aparentemente havia sido atacada.
Ela parou.
A repórter, uma mulher perfeitamente esculpida com o cabelo perfeitamente arrumado falando com uma voz perfeitamente artificial, estava explicando que o deputado
não fora encontrado para comentar. – Mas confirmamos que isso é uma investigação conjunta e que o FBI já está trabalhando com a força policial local. Bob...
O FBI, é?
– Obrigado, Chelsea – a imagem cortou para o âncora. Então, ele começou a entrevistar o “analista especialista em crime” do canal, que aparentemente não tinha nenhuma
informação adicional mas não iria deixar que aquilo o impedisse de dar uma interpretação detalhada dos fatos não confirmados relacionados ao caso.
Palpites sobre uma conjectura baseada em boatos.
Os noticiários de hoje.
Nas imagens capturadas “apenas alguns momentos atrás”, exibidas por trás do ombro esquerdo do âncora Bob, Tessa reparou em um homem ao fundo andando na direção de
um carro. Ele estava usando uma jaqueta do FBI e poderia ser apenas outro agente anônimo, mas ela reconheceu o jeito como ele andava. E ela conhecia o carro.
Patrick.
Certo.
Isso é informação.
Ela esperou por mais detalhes do âncora, mas a mesma filmagem ficava sendo repetida e Bob continuava repetindo a mesma informação com as palavras levemente diferentes
a cada vez, incluindo um anúncio que fazia antes de cada comercial para parecer que havia novas notícias sobre o caso.
Finalmente, quando ele convidou as pessoas a mandarem e-mail para ele com suas opiniões dizendo se isso foi um ato de terrorismo doméstico ou não, prometendo ler
as mensagens no ar, ela não aguentou mais. A verdadeira cobertura jornalística tinha sofrido uma morte rápida e definitiva na era de mensagens instantâneas e com
um limite máximo de 140 caracteres.
Ela desligou a TV.
Checou seu e-mail.
Nada.
Pegou um pacote de salgadinho na cozinha, caiu no sofá novamente e recapitulou aquela noite.
A detetive Warren a deixou em casa pouco minutos depois das 20h, com a tempestade se agitando em volta delas.
Elas conversaram sobre coisas superficiais pelo caminho: o que Tessa queria fazer durante o verão (visitar o Smithsonian, a Biblioteca do Congresso, talvez o museu
da NSA, o Museu da Espionagem, coisas do tipo), se ela tinha um namorado (nada), se já estava pensando na faculdade (sim, talvez a Brown ou a USC; talvez a Duke)
e o que queria estudar (essa era fácil: graduação dupla em inglês e ecologia).
Quando chegaram em casa, a detetive Warren se ofereceu para ficar com ela, mas Tessa lhe disse para não se preocupar. – Vou ficar bem. Sério. Mas obrigada pela carona.
– Tudo bem. Tranque as portas – e mesmo não estando nem perto de ter idade suficiente para ser mãe de Tessa, ela soou maternal.
– Vou trancar.
– Boa noite.
Tessa hesitou antes de sair do carro. – Você não está aqui só para assistir um punhado de aulas, né? – ela não esperou uma resposta. – Eu sei o que você sente por
Patrick. Deu para perceber. Em Denver.
Uma longa pausa. – Bons homens são difíceis de se encontrar – nesse ponto, a detetive soava mais como uma irmã do que uma mãe. Papo de amigas.
– Então você veio pra cá pra reconquistá-lo?
– Eu nunca o conquistei, Tessa.
– E quanto ao seu ex-marido? Vocês dois não...
– Tessa.
Ela parou, esperando ouvir que aquilo não era da conta dela, mas a detetive Warren teve uma reação diferente. – Estamos nos dando bem novamente, e isso é uma coisa
boa. Mas nunca mais seremos próximos como éramos. Aquilo acabou.
Era difícil saber como responder.
Na verdade, Tessa a respeitava por sua franqueza e por ir atrás daquilo que realmente importava para ela, e por tudo que ela havia dito, Cheyenne e Patrick realmente
seriam um bom casal. – Ele gosta de você também – ela disse finalmente, apesar de não ter certeza se deveria. – Patrick gosta.
A detetive Warren ficou quieta.
– É melhor eu ir. Boa noite, Tessa.
– Boa noite.
– E tranque essas portas, tá?
– Certo.
Então Tessa se apressou sob a chuva, protegendo com o corpo as cartas que havia apanhado a caminho da casa.
Então lá dentro.
Porta fechada.
Trancada.
Desde que havia sido atacada e quase morta por um assassino em série a quem Patrick estava rastreando em outubro passado, ela havia aprendido a ser muito cautelosa.
Verificou a porta dos fundos, confirmou que estava trancada.
Certo.
Está tudo bem.
Mas agora, três horas depois, Patrick ainda não tinha chegado em casa. Ela sabia que ele ainda não havia superado Lien-hua, mas se as coisas não fse resolvessem
entre eles, ela achava que ele deveria muito bem ficar com a detetive Warren.
No entanto, era óbvio que ele gostava das duas, e, honestamente, ela também. Seria muito mais simples se uma delas fosse uma idiota, mas a detetive Warren, a cowgirl
sincera, e a agente Jiang, a bela introspectiva, eram ambas mulheres incríveis.
Tessa checou seu laptop novamente e dessa vez viu o ícone do e-mail piscando.
Com um pequeno arrepio de culpa, que sentimos ao fazer algo pelas costas de alguém, ela clicou para ler a mensagem.
Tessa,
Oi! Você não vai acreditar nisso. Estou em Washington! Apenas pelos próximos dois dias. Uma amiga minha tem algumas esculturas que serão exibidas no Museu Hirshhorn.
Eu tenho o meio do dia livre amanhã e adoraria te ver. A gente poderia se encontrar por volta das 10h30. Estou pensando em perto do Capitólio, talvez. Eu conheço
algumas pessoas e acho que consigo um passeio turístico para você.
Me avise.
Com amor,
Paul
Oh.
Inacreditável.
Nada bom.
Nada bom mesmo.
Ela releu a mensagem.
Amanhã!
Por que ele não te avisou sobre isso antes? Por que ele...
Um par de faróis virou a rua e começou a vir pelo longo e sinuoso caminho que dava na casa.
Oh, não.
Patrick.
Tessa não conseguia pensar em nenhuma maneira de contar para ele o que estava acontecendo. Não, não, não, não agora. Ele suspeitava de Paul desde o começo, e se
descobrisse que ela estava trocando e-mails com Paul assim, pelas costas dele, ficaria furioso.
Além do mais, mesmo que ele desse permissão a ela para se encontrar com Paul, de jeito nenhum ele ficaria feliz com isso.
De jeito nenhum no mundo.
Chega de e-mails. Tem coisas sobre as quais você precisa conversar com
Paul. Vá encontrá-lo, consiga suas respostas, então resolva tudo com Patrick amanhã à noite.
Ela digitou sua resposta para Paul.
A porta da garagem se abriu.
Patrick estava em casa.
13
Ouvi Tessa vasculhando os armários da cozinha. – É você? – eu falei.
– Como a resposta para essa pergunta poderia ser não?
Parei.
Faz sentido.
Ela apareceu, atravessou a sala e se jogou no sofá.
– Teve uma boa noite? – perguntei.
Ela deu de ombros. – E você? Foi muito ruim? Lá, no lugar dos macacos.
Deixei meus olhos perguntarem como ela sabia onde eu estava, e ela apontou o dedo para a televisão. – Eu vi você na TV.
– Perfeito.
– Está em todos os noticiários.
Suspirei. – Sim. Bom, a mídia vai ter bastante trabalho dessa vez.
Ela havia empilhado as cartas na mesa de centro ao lado de seu laptop, eu peguei o monte e comecei a olhá-las enquanto conversávamos: a última edição da Sports Illustrated
e da Soldier of Fortune, ambas endereçadas para
Freeman Runnels, o homem que nos deixou ficar em sua casa no verão... – Você agradeceu à detetive Warren pela carona?
– Patrick, eu não tenho cinco anos.
– Eu sei disso – um punhado de panfletos de venda, algumas ofertas de cartão de crédito, tudo para os Runnels.
– Então, não me trate como se eu tivesse. Eu sei quando dizer por favor e obrigada.
Olhei para Tessa e vi que ela me fitava com irritação.
– Eu só estava me certificando de que você foi educada – eu disse.
– Eu sou a rainha da educação.
Pisquei. – Você é a rainha da educação?
Uma sobrancelha erguida. – Cuidado.
– Só estou dizendo.
Ela deixou o livro sobre o sofá e se levantou. – Preciso ir pra cama.
– Você está se sentindo bem?
– Sim, claro – seu tom se suavizou. – Só estou, sabe, cansada. Eu acho.
Vou ter um dia cheio amanhã.
Voltei para as correspondências. – Pensei que você fosse passear por aqui. Certo? – dificilmente alguém saberia que estávamos ali, então fiquei surpreso ao ver uma
carta com aparência oficial endereçada para mim de um escritório de advocacia em Washington, DC.
– Sim, quer dizer, eu estava pensando em pegar o trem até a cidade.
Talvez ver se consigo uma carteirinha de leitora na Biblioteca do Congresso. Ouvi falar que eles são muito legais quando o pedido é feito por estudantes. Tudo bem?
A Biblioteca do Congresso é a maior biblioteca do mundo. Um paraíso para os bibliófilos. Eu sabia que era um ponto de interesse obrigatório para ela durante o verão.
Ela falou comigo mais cedo sobre arrumar uma carteirinha de leitora para ter acesso à sala de leitura principal, então seu pedido não era surpresa.
Conforme abria a carta, percebi que não havia nenhum bom motivo para não deixá-la ir, exceto que eu realmente não gostava da ideia de ela perambular sozinha pelo
Distrito de Colúmbia.
Fique tranquilo. Ela já tem dezessete anos.
– Claro, tudo bem. Vou dar aula quase o dia inteiro amanhã – então uma ideia. – Estarei em aula das 8h às 11h e depois das 14h às 17h. Tenho uma reunião no intervalo,
mas devo ter tempo suficiente para ir até Washington, DC almoçar e voltar para a Academia. O que você diz?
Vamos almoçar juntos?
Você nunca vai conseguir, Pat. Não com a reunião... só a viagem já demoraria...
– Almoço – uma breve pausa. – Sim.
Ótimo.
Eu daria um jeito de chegar a Washington, DC a tempo.
Após um momento de embaraço, ela foi para o quarto, mas fui atrás dela. – Tem certeza de que está se sentindo bem?
Ela não virou. – Sim.
– Eu amo você – eu disse.
Ela abriu a porta do quarto. – Eu também.
Ela entrou e fechou a porta.
Sim, definitivamente converse com ela amanhã.
Escorreguei o conteúdo do envelope para minha mão e verifiquei as páginas.
Senti um nó na garganta.
A carta era de um escritório de advocacia que representava Paul Lansing.
Ele estava me levando para o tribunal para ficar com a custódia de sua filha.
14
Eu só estava em Washington,DC há algumas semanas, não é tempo suficiente para conhecer algum advogado, mas Ralph viveu aqui na última década.
Liguei para ele, e ele atendeu após duas chamadas. – Sim? – sua voz estava baixa.
– Ainda está no centro de primatas?
– Não. Estou em casa. Tony está dormindo – Tony era o filho de onze anos de Ralph. Um garoto que Tessa chamava de “idiota comedor de Cheetos, jogador de futebol
e videogame”.
– Desculpa ligar tão tarde.
– O que foi?
– Acho que preciso de um advogado.
Uma pausa. Tive a sensação de que ele estava reposicionando o telefone. – Pra que você precisa de um advogado?
Contei a ele sobre a carta do escritório de advocacia de Lansing.
– É o seguinte: eu sou o responsável legal por ela, então não acho que terei algum prob...
– Esse cara é pai dela, Pat.
– Eu sei, mas ele nunca assumiu esse papel.
– Ele queria assumir?
Uma lembrança desconfortável se retorceu dentro de mim.
Mês passado, Tessa encontrou uma antiga carta que Christie guardara na qual Paul implorava a ela que não abortasse sua filha. Ele prometeu ajudá-la a criar o bebê,
mas Christie não queria que ele fosse parte da vida delas e foi embora. E então criou Tessa sozinha.
– Esse não é o ponto, Ralph.
– O tribunal sempre favorece os parentes de sangue. Você sabe disso.
E ela ainda é menor de idade – sua voz havia se suavizado, e eu não achei que a simpatia dele nesse momento era um bom sinal. – Você vai precisar de um advogado
– ele disse. – Um muito bom.
Não era o que eu queria ouvir. – Você conhece algum?
– A maioria dos que eu conheço não trabalha com divórcios, guardas de filhos, nada dessas coisas. São todos de direito criminal – ele pensou por um momento. – Espere
um segundo. Deixe-me falar com Brineesha – escutei-o trocar algumas palavras indecifráveis com sua esposa e então voltar para o telefone. – Brineesha está dizendo
oi.
– Oi de volta.
– Direi a ela. Enfim, pode ser que ela conheça alguém para te indicar.
Uma de suas amigas do trabalho, Tracy, acho que acabou de passar por um divórcio, uma briga enorme por custódia, essa coisa toda. Seja quem for o advogado de Tracy,
parecia ser muito bom. Brin disse que vai perguntar o nome dele amanhã de manhã, assim que chegar ao banco.
Pelo menos era um começo. – Agradeça a ela.
– Ei, não se preocupe com isso, tá bom? Vai dar tudo certo – sua segurança parecia surtir o efeito oposto em mim.
– Sim.
– Vejo você às 11h30 amanhã. No meu escritório.
– Tudo bem.
Astrid conduziu Brad pelos degraus até o porão.
Onde eles estavam mantendo a mulher.
– Como foi para você? – ela lhe perguntou. – Hoje, eu digo. Poder assistir.
– Foi tudo como eu esperava que fosse.
Ela assistiu a tudo também, de um ponto privilegiado e exclusivo. – A transmissão do vídeo para aquela loja foi uma ótima ideia – ela disse.
– Obrigado.
– Você fez a filmagem que eu pedi? Depois?
Ele mostrou o telefone.
– Bom – ela pegou o telefone dele. Guardou-o no bolso.
Ela tinha que admitir, o plano de Brad era de longe o mais devastador e descarado de todos até então. Algumas falhas ela corrigiria nos próximos dois dias, mas,
no geral, ele havia feito um trabalho satisfatório, até admirável, e ela estava muito orgulhosa dele. Mais duas pessoas morreriam e o FBI nunca suspeitaria dela
ou de Brad.
– Como você aprendeu a reencaminhar o vídeo daquele jeito para a loja de televisão?
– Pesquisa.
– Pesquisa?
– Um emprego que tive antes do meu acidente.
Ela parou por aí e sentiu que era desconfortável para ele continuar. Ele nunca contou como conseguiu suas cicatrizes, mas desde que os dois haviam se conhecido,
ficou evidente para ela que era uma lembrança dolorosa.
Ela decidiu não insistir no assunto naquele momento.
Eles chegaram ao fim da escada e foram para o quarto que Brad tinha reformado recentemente.
Mês passado, ele lhe perguntou se eles poderiam transferir um pouco do trabalho deles para a casa. Ela não gostou da ideia no começo, mas ele foi persistente e,
quando ela percebeu que seria mais difícil se locomover depois que o bebê nascesse, ela deu a permissão.
Ele passou as últimas semanas trabalhando no quarto. Ela lhe deu carta branca e no final ficou surpresa pela dedicação que ele teve em projetá-lo para que servisse
a uma variedade de propósitos perturbadores. Ele até fez o quarto à prova de som e adicionou um ralo no chão para facilitar a limpeza.
Para ela, a excitação vinha da sensação de controle, não de inflingir dor física. Brad, por outro lado, havia recentemente ficado mais e mais fascinado com o aspecto
secundário de seu hobby.
Suas escolhas para a montagem do quarto refletiam isso.
Ela abriu a porta.
Brad ficou silenciosamente ao seu lado enquanto ela conferia se a mulher estava seguramente acomodada para a noite.
Quando Astrid terminou, ela trancou a porta atrás deles e levou Brad para o andar de cima.
Saber que a mulher estava lá embaixo, indefesa, presa e com medo servia para aumentar a emoção, e quando Astrid alcançou a porta do quarto, ela deslizou sedutoramente
para a frente de seu homem. – Pronto?
– Esperei por isso o dia todo.
E enquanto a prisioneira no porão gritava inutilmente por ajuda, no andar de cima, no quarto, os jogos da meia-noite começavam.
15
Quarta-feira, 11 de junho
491 Riley Road
Stafford, Virgínia
5h03
Acordei irritado, pensando na carta dos advogados de Paul Lansing.
E também no caso Mollie Fischer, poucos passos atrás na corrida pela minha atenção.
E na morte de Calvin.
E em Basque, é claro, o fantasma de carne e osso de um tempo na minha vida que pensei ter deixado para trás, à espreita, sempre à espreita, lá no fundo.
– Prometa que você não vai deixá-lo fazer isso novamente – Grant Sikora havia me implorado enquanto morria.
– Eu prometo – eu havia dito.
Meus pensamentos remoíam tudo isso, avaliando o que estava em jogo em cada caso, imaginando novamente como os advogados de Lansing poderiam saber nosso endereço,
ponderando, analisando. Todos os problemas pareciam cabos se esticando dentro de mim, puxando meus pensamentos em direções opostas.
Coisas demais com as quais lidar. O resumo da minha vida.
Mesmo sabendo que Brineesha ainda não teria chegado ao trabalho, chequei minhas mensagens para ver se, por acaso, ela teria me ligado com o nome e o número do advogado.
Mas não havia nada.
Olhei meu e-mail. Nada importante.
Como eu não precisava sair para a Academia até cerca de 7h30, me troquei, fiz um pouco de exercício – uma corrida de trinta minutos, vinte barras em um galho de
árvore no canto da propriedade e, então, abdominais até mal poder me sentar.
Mas isso não esvaziou minha cabeça.
Uma ducha.
Café da manhã.
Engoli um pouco de aveia e uma banana, peguei uma xícara do café Lavado Fino da Venezuela e meu laptop e fui para a varanda na parte de trás da casa.
Apesar de ainda nem ser 6h30, a manhã estava cheia de aromas do verão: grama recém-cortada, sol quente e o céu de um azul intenso. O ligeiro cheiro de peixe de um
lago próximo.
Pássaros cantavam nas árvores.
O vapor do meu café ondulava, rarefeito, saindo da xícara fumegante, e então se desvanecia, no sopro suave do vento, desaparecendo no momento.
Fiquei lá sentado, apenas existindo na quietude, no delicado alvorecer do dia. Eu nunca fui uma pessoa de meditar, mas sempre fui atraído pela clareza que a solidão
traz.
Um pequeno toque de calmaria no meio da minha vida tempestuosa.
Uma chance para pensar.
Quando a DEA transferiu seu treinamento básico de agentes para Quantico alguns anos atrás, um de seus instrutores de análise de cena do crime, e amigo meu, chamado
Freeman Runnels comprara essa casa. Na verdade, é mais uma cabana: de elaboração rústica, portas grossas de carvalho, móveis feitos à mão, de cerejeira.
Porém, nesse verão, ele estava em missão no Panamá e quando soube que eu iria dar aulas por três meses na Academia, ele gentilmente se ofereceu para abrigar Tessa
e eu aqui. – Só coloque água nas plantas – ele havia dito, e nós concordamos.
O terreno de dez acres era quase todo arborizado, exceto por uma faixa de grama atrás da casa. Um antigo muro de pedra, na altura da cintura, se estendia pela borda
das árvores que ficavam a cerca de trinta metros da varanda.
Tessa não é exatamente do tipo que gosta de atividades ao ar livre, mas ela valoriza sua privacidade, e quando ela viu a propriedade e descobriu que uma estação
da Virginia Railway Express ficava a apenas quinze minutos de caminhada, ela disse: – Acho que isso está bom – que na língua de Tessa queria dizer: – Legal. Vou
poder ir para Washington, DC sempre que quiser.
Acessei os arquivos on-line do caso para ver se tínhamos alguma novidade sobre o homicídio de Mollie Fischer.
O registro completo da polícia ainda não tinha sido postado, nenhum depoimento da tratadora ou do segurança e, apesar de me incomodar, isso não me surpreendia. Oficiais
da força policial são notoriamente lentos ao preencherem papéis de burocracia. É aquela parte do trabalho da qual ninguém parece gostar. Incluindo eu.
No entanto, fiquei satisfeito pelas fotos da cena do crime terem sido postadas.
Noventa e quatro delas.
Rolei pelas imagens.
Nenhuma foto de Mollie viva, apenas dela morta.
Primeiro, pendurada pelos pulsos, então deitada sobre a palha. Fotos de seus ferimentos, das amarras, dos chimpanzés mortos, das portas de entrada e saída. Seis
fotos separadas do olho que Lien-hua havia encontrado caído na palha, uma órbita injetada de sangue com uma íris azul-clara e uma parte do nervo óptico arrancado
de onde o órgão havia sido puxado...
Um pequeno movimento perto de uma rachadura no muro de pedra chamou minha atenção.
As folhas se separaram e um veado-de-cauda-branca entrou delicadamente no terreno.
Quando eu era adolescente em Wisconsin, meu pai me apresentou à religião não oficial do estado: caça ao veado. E pelo que conseguia me lembrar dos ciclos de crescimento
dos veados, percebi que aquele tinha talvez dois ou três anos de idade.
Ele perambulou pelo quintal, silencioso como uma batida de coração, mordiscando a grama até que algo o assustou e ele congelou, a cabeça erguida, as orelhas eretas.
Talvez ele tenha sentido meu cheiro.
Fiquei sentado imóvel, observando.
Ele ficou parado por apenas um momento, então, seja o que for que o deixou agitado deve ter parecido ameaçador demais, e ele repentinamente partiu, disparando para
o lado oposto do quintal, a cauda balançando, até que desapareceu nas sombras da manhã, no meio das árvores, logo após o final do muro.
Um momento de tranquilidade, de graça, deposto pelo medo. A tensa corrida pela sobrevivência. A vida fugindo da morte.
Sempre fugindo.
Sempre sendo perseguida.
Olhei para as fotos novamente.
Uma corrida que todos nós perdemos.
Como Calvin perdeu.
Como Mollie Fischer.
Como tantas vítimas que tinha visto ao longo dos anos.
Seus olhos mortos e fixos. Seus lábios silenciosos e cinzentos.
Suas famílias destruídas, aflitas.
Pensei naquelas banalidades que não funcionam enquanto observava o vapor fino e fantasmagórico do meu café se ondular e então sumir no ar matinal, então fechei as
fotos macabras da cena do crime.
Meus pensamentos voltaram para Basque.
Desde que fora solto, ele estava no centro do turbilhão da mídia. Sua condenação inicial, o novo julgamento subsequente e o veredicto de inocente pareciam uma história
boa demais para a imprensa deixar escapar, e como ele ainda estava sob os olhos vigilantes da mídia, eu duvidada que ele faria algo descaradamente ilegal, pelo menos
num futuro próximo.
Então eu fui cuidadoso e meticuloso em vez de apressado e desleixado na minha pesquisa acerca da pista que Calvin deixou: H814b Patricia E.
Mas até agora havia falhado em encontrá-la.
Se ela fosse mesmo uma pessoa.
Se ela fosse mesmo uma testemunha.
Ou uma vítima.
Ou se estivesse viva.
Peguei minhas anotações.
No começo, eu trabalhei com a ideia de que o bilhete era algum tipo de jogo de palavras, mas nenhuma combinação parecia fazer sentido.
A sequência não tinha dígitos suficientes para ser um número de telefone.
Não era um endereço, pelo menos não nos Estados Unidos. Não era um número decimal de Dewey.
Após esgotar minhas ideias, entrei em contato com Angela Knight, uma das melhores analistas de crimes cibernéticos do Bureau, e que tem uma queda por análise criptográfica.
Tínhamos tentado pesquisas envolvendo todas as combinações de Patricia em que pudemos pensar: Patty, Patsy, Tricia, Trisha, Trish; e claro, meu próprio nome, só
para garantir: Pat, Patrick, Rick, Eric, Ricci, Erica.
E assim por diante.
Não descobrimos nada.
Fizemos buscas em todos os dados coletados nas cenas dos crimes de Giovanni e Basque por possíveis relações com o nome ou com a sequên-cia de letras e números. Nada
sólido.
Angela sugeriu que poderia ser uma senha para algum arquivo do computador de Calvin, ou para site que ele talvez tivesse visitado, mas quando fizemos uma análise
digital de dados em seus três computadores e comparamos as letras e os números com todos os sites que ele tinha visitado, com os endereços em sua agenda, e com números
gravados em seu celular, não conseguimos resultado nenhum.
Vasculhei meus arquivos, procurando por algo que pudéssemos ter esquecido, até às 7h30.
Nada.
Esfreguei a cabeça.
Voltei para dentro de casa.
Enquanto juntava minhas coisas para partir para minha aula na Academia, percebi que tinha uma mensagem de voz de Ralph: “Ei, cara, Brin foi para o trabalho mais
cedo, encontrou a amiga, acabou de ligar. Missy Schuel. Esse é o nome dela. Da advogada. Não tenho um telefone, mas ela tem um escritório na 11th St. NW. Vejo você
às 11h30”.
Procurei o número, liguei para ela, deixei meu nome e meu telefone assim como um breve resumo da minha situação, então pedi que ela me ligasse assim que possível.
Então enfiei a carta dos advogados de Lansing na minha bolsa do computador para poder consultá-la e responder a qualquer pergunta que ela pudesse fazer.
Finalmente, antes de me dirigir à aula, deixei um bilhete para Tessa: “Me liga. Vamos combinar uma hora e um lugar para nos encontrarmos para o almoço”. Pensei em
acrescentar: “Temos que conversar sobre uma coisa, como o seu pai tentando te levar embora”.
Mas esse não é o tipo de coisa que se diz a alguém em um bilhete.
Com a bolsa do computador na mão, fui para a Academia.
16
Astrid e Brad se conheceram pelo DuaLife, um site onde você cria avatares, ou identidades on-line, e vive outra vida como qualquer um que você escolher. Casa, se
você quiser. Tem filhos, se divorcia, começa de novo. O que você quiser. Você pode ser um homem ou uma mulher, heterossexual ou gay, jovem ou velho.
Uma prostituta.
Um banqueiro.
Uma sacerdotisa.
Ou um assassino em série.
Ou uma vítima.
Ela havia encontrado Brad em um dos continentes mais novos, um que foi projetado para suprir os gostos exclusivos de adultos.
Mas não foi sexo virtual que os uniu.
Ela estava experimentando na época, explorando maneiras de controlar e manipular pessoas, e acabou decidindo ser a primeira mulher assassina em série do continente.
É claro, como os usuários do site tinham investido tanto tempo, e em alguns casos, dinheiro, na criação de suas vidas virtuais, você não pode simplesmente matar
os outros avatares sem pedir permissão ou negociar com seus criadores.
Então, contando com o fato de que, mesmo no DuaLife, as pessoas gostariam de ter seus quinze minutos de fama, Astrid havia postado um aviso dizendo que estava procurando
por voluntários que queriam ser atraídos, subjugados e então assassinados.
E ela estava certa sobre as pessoas quererem seu lugar ao sol. Dois homens e uma mulher responderam quase que imediatamente.
Aqueles foram seus primeiros jogos.
Mas eram só virtuais.
Apenas imaginários.
E, além disso, nenhuma daquelas três primeiras vítimas fora tão cativante como relacionamento ou intelectualmente e, como uma mulher que possuía um QI de 142, Astrid
começou a desejar alguém um pouco mais intrigante para matar. Então, em uma de suas conversas on-line com vítimas em potencial, ela conheceu Brad.
O avatar de Brad era um oncologista de 28 anos. Um mórmon fundamentalista que nunca havia casado, ele gostava de caminhadas, golfe, futebol americano e leituras
sobre filosofia.
É claro, na vida real ele poderia ser uma mãe solteira budista de 45 anos que gostava de filmes clássicos e judô.
Ou qualquer outra coisa.
Isso era parte da diversão. Uma vida completamente nova vivida em sua imaginação.
Apesar de ser possível que na vida real ele fosse uma mulher, em seus e-mails iniciais, Brad havia respondido às perguntas dela de um jeito inquestionavelmente masculino.
Ele também parecia exibir as qualidades que ela estava procurando em um homem na vida real.
Algum tempo depois de tê-lo conhecido on-line, ela começou a imaginar como seria jogar esses jogos de vida e morte e destino com pessoas de verdade.
Ela o convidara para seu apartamento no DuaLife e o estava embebedando para que pudesse subjugá-lo mais facilmente antes de matá-lo, mas foi então que ela começou
a ter outros pensamentos.
– Por que você quer morrer nas minhas mãos? – ela lhe perguntou. – Por que você quer que eu te mate?
– Porque você é uma mulher.
– Uma mulher? – na tela de seu computador, ela viu que ele tinha terminado sua vodca. Ela serviu outra para ele.
Ele tomou um gole. – Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche escreveu: “Um homem de verdade quer duas coisas: perigo e diversão. Portanto, ele quer a mulher como o
brinquedo mais perigoso”.
– Então, para um homem, uma mulher é um brinquedo?
– Sim – ele terminou a bebida. – E quanto mais perigosa, mais desejável ela é. Quanto maior o perigo, maior o prazer.
– Mas seria eu que brincaria com você.
– Sim – ele digitou.
Quando ele não explicou, ela respondeu: – Pensei que você acreditava em Deus, e ainda assim você lê Nietzsche? O homem que disse que “Deus está morto”?
– Você pode encontrar flores mesmo em um campo de ervas daninhas.
Então.
Bom.
Talvez fosse a hora de ver se Brad seria o escolhido para ser o parceiro dela. Ela digitou: – Quanta diversão e quanto perigo você pode aguentar? E, após uma pausa,
ele respondeu: – Quanto você tem para oferecer?
Oh, sim.
– Acho que é hora de nos conhecermos – ela digitou. – Pessoalmente.
E assim fizeram.
E o sexo veio em seguida. E também o amor. E agora, apesar de ela ainda não ter lhe contado, também um filho.
Uma nova família nascida de seu encontro no DuaLife.
Quando se conheceram, eles preferiram continuar usando seus nomes do DuaLife em vez de usar seus nomes verdadeiros. Um jeito de estender a fantasia. De manter a
ilusão viva.
DuaLife.
Vida real.
Tornando-se uma única coisa.
Não demorou para os dois aprenderem a arte da morte e então, a arte de culpar outros pelos seus crimes.
Ela descobriu que, assim como seu avatar, o Brad da vida real acreditava em Deus, e ainda assim, apesar de suas convicções religiosas, ele parecia surpreendentemente
disposto a tirar a vida de outro ser humano sempre que ela lhe pedia isso.
Agora, deitada na cama com ele, ela deslizou a mão até sua barriga, onde o filho deles estava crescendo. Uma segunda batida de coração dentro dela. O filho da paixão
e do desejo deles.
Uma nova vida. Para ser ensinada e modelada. Assim como o homem dela.
Ele se mexeu.
– Você está sonolento essa manhã – ela disse.
– Matei duas pessoas na noite passada. Isso deixa qualquer um morto.
– Ha – ela sorriu. – Deus não diz que matar é errado?
– Ninguém age em completo acordo com suas convicções – ele ainda parecia estar meio dormindo. – Confesso que essa é uma área que preciso trabalhar.
Ela passou os dedos pelo cabelo dele. – Isso parece a fala de algum filme da TV. Isso não é suficiente para um motivo. Não para você. Tem mais do que isso, não tem?
– São Paulo escreveu: “Aquilo que faço, eu não compreendo. Pois eu não faço o bem que desejo, mas o mal que não desejo, isso eu faço. Sou um homem desgraçado! Quem
irá me resgatar desse corpo de morte?”. A guerra interna é o fardo de todos que acreditam.
Ela percorreu com o dedo a marca de suas cicatrizes. – Brad, Brad, Brad, você é meu pequeno enigma, não é?
Uma breve hesitação, talvez um toque de intimidação. – Você conhece alguém que não seja?
– Que não seja?
– Um enigma.
– Bem, se você estiver certo sobre Deus, querido, eu imagino que você vai para o inferno pelas coisas que tem feito.
Ele ficou quieto.
– Alguma frase sobre isso? Sobre o enigma do inferno?
Ele pensou.
Ela sorriu. – Te peguei dessa vez.
– François de Fénelon.
– Quem é François de Fénelon?
– Foi um padre no século XVII. Ele observou que você pode ver Deus em todas as coisas, mas nunca tão claramente quanto quando você sofre. Talvez o inferno, onde
as pessoas sofrem mais intensamente, seja o lugar onde elas começam a vê-lo mais claramente.
Ela riu do absurdo de usar um padre para justificar uma jornada para o inferno a fim de encontrar Deus. Só Brad podia arrumar uma história dessas. – Bom – ela disse
–, se Deus existir...
– Não tem “se”.
– Se ele existe – e pelo seu tom de voz ela o deixou perceber que o assunto não estava em discussão – e se as pessoas ficam mais cientes dele no inferno, então eu
acho que nós dois seremos os maiores especialistas em Deus algum dia.
– Espero que sejamos.
Após mais alguns minutos deixando que ele a abraçasse, ela levantou, e disse que ele poderia dormir mais se quisesse, que ela iria deixar tudo pronto.
– Obrigado.
– Vejo você às 14h.
– Sim.
– Você vai cuidar do vídeo do beco? – ela perguntou.
– A câmera de segurança vai estar repetindo imagens antigas quando você chegar.
– E a porta?
– Vou deixá-la encostada.
Ela abriu o laptop que pertencia à mulher no porão, baixou o vídeo que Brad havia feito na noite anterior com seu celular, então colocou o computador na van.
Entrou em seu carro.
E partiu para o trabalho.
17
Academia do FBI
Sala 317
7h46
Morte.
Essa era a programação de hoje.
Vídeos de assassinato de manhã e depois uma visita à fazenda de corpos à tarde.
Ao longo dos anos, o Bureau havia coletado milhares de DVDs e fitas de vídeo de cenas de crimes, de coleções secretas de assassinos e vídeos de certos sites que
aprendemos a monitorar.
Temos a maior coleção do mundo de vídeos com humanos morrendo pelas mãos de outros humanos.
Perturbador.
Mas, infelizmente, necessário.
Mostramos esses vídeos para os novos agentes e alunos da Academia Nacional para que possam entender a verdadeira natureza de quem perseguimos. Fazemos os agentes
e oficiais das forças policias assistirem a pessoas de verdade morrendo em dolorosa câmera lenta, rebobinamos, pausamos e passamos de novo.
Então assim eles saberão.
Saberão de verdade.
Algumas vítimas imploram, outras subornam. Homens fazem ameaças que sabem com certeza que serão incapazes de cumprir. Mulheres tentam fazer trocas, oferecendo seus
corpos e prometendo não contar para ninguém.
Às vezes me pergunto quantas mulheres conseguiram trocar sexo pela sobrevivência. Eu só vi os vídeos daquelas que falharam.
Em minhas aulas, já vi mesmo os policiais mais durões, os investigadores mais experientes de todo o mundo, ficarem destruídos quando veem esses vídeos.
Quase sempre, independentemente de a vítima ser complacente ou de lutar contra, de estar rezando ou implorando, existe aquele momento em que ela percebe o que está
para acontecer. Você vê a noção do inevitável passar por seus rostos.
A verdade inegável que passamos nossas vidas refutando finalmente vem à tona: a morte está chegando.
O fim é aqui, daqui a alguns instantes.
Aquele olhar, quando ela tem aquela revelação aterrorizante, é a parte mais desoladora de todas. A corrida acabou. A vida perdeu.
Liguei o projetor para exibir o primeiro vídeo de hoje: um homem em São Francisco que fez com garotos pré-adolescentes coisas das quais pesadelos são feitos.
Para mim, os piores vídeos para assistir são aqueles em as que pessoas rezam, porque na maioria dos casos você vê que elas realmente acreditam que Deus vai ouvi-las,
vai interferir, vai salvá-las. Mas nos vídeos que temos aqui na Academia, Ele invariavelmente escolhia não se envolver.
Eu frequentemente me pergunto se Seu silêncio é prova de que Ele não está lá. Essa é a resposta fácil, é claro. A resposta intelectualmente simples, mas, ainda assim,
é tentador se recolher no ceticismo quando você vê tal sofrimento respondido com silêncio.
Às vezes eu invejo pessoas que encontram um jeito de viver em negação silenciosa sobre o que nós, como uma espécie, somos capazes de fazer uns com os outros. Seria
tão mais fácil viver com esse tipo de ingenuidade, fechando os olhos para as lágrimas do mundo, pensando que tudo tem um fim no estilo Disney, com uma luz no fim
do túnel, um pôr do sol para onde cavalgar.
Alguns meses atrás, quando falava com Lien-hua sobre isso, ela me disse para não focar tanto na negatividade.
– Eu não consigo fingir que o mundo não é o que é – eu disse.
– Como assim?
– Que essas coisas que eu vejo não acontecem, que a vida é melhor que isso.
Uma pequena pausa. – Mas você consegue parar de fingir que ele é pior? Levei um bom tempo para responder. – Vou tentar – eu disse.
E continuo tentando.
Liguei o projetor, apertei o botão de play do DVD, mas a primeira cena, uma em que o assassino deu zoom nos olhos amedrontados do garoto que olhava para a câmera,
hoje só aquela imagem era demais para mim.
Eu não conseguia fazer aquilo. Eu precisava olhar para outra coisa que não sofrimento, pelo menos naquele momento.
Então, desliguei o projetor.
Plano B.
Astrid sabia que Brad tinha dinheiro; ele nunca manteve isso em segredo, mas não explicara de onde ele veio, e ela nunca havia perguntado.
Ela suspeitava que ele havia roubado ou extorquido até que o viu trabalhando no sistema de computadores no instituto de pesquisa ontem. Então ela começou a imaginar
se ele não tinha ganhado aquele dinheiro todo como programador.
Bem, o que importava não era de onde o dinheiro vinha, mas o que eles poderiam fazer com ele se precisassem.
Desaparecer.
Ou, se precisasse, ela podia fazer isso por conta própria.
Sim, ela sabia a senha da conta bancária dele. Ela encontrou o número anotado em um de seus extratos dois meses atrás. E essa informação secreta era uma coisa doce
e sutil.
Agora, enquanto entrava no estacionamento no trabalho, ela pensou no que aconteceria com a mulher às 15h, quando o jogo rumasse para o clímax.
Tessa havia combinado de encontrar Paul Lansing nos degraus da Biblioteca do Congresso às 10h30 em ponto. E agora, enquanto entrava no trem que a levaria para a
cidade, ela se sentiu, de algum modo, fugindo.
Ela disse para si mesma que assim que conseguisse algumas respostas para as perguntas que não se sentiu confortável em fazer com Patrick por perto, ela explicaria
tudo para ele e as coisas voltariam ao normal entre eles.
Através dos e-mails de Paul pelas últimas semanas, ela havia descoberto onde ele cresceu: em St. Paul, Minnesota. Seus passatempos: escultura (muito legal), caça
(com certeza nada legal), caminhada, carpintaria e jardinagem orgânica (assim é melhor). Seu aniversário: 9 de setembro. E assim sucessivamente.
E sucessivamente.
Mas as coisas importantes eram muito mais profundas.
Essas eram as coisas que ela queria saber.
As portas do trem se fecharam, e ela se sentou.
Ela escolheu uma camiseta que deixava suas cicatrizes no braço visíveis, as cicatrizes que ela havia feito em si mesma quando se cortava. Um homem olhava fixamente
para ela agora, os olhos se demoraram em seu braço, e então nas palavras paradoxais em sua camiseta: “Anarquia é que manda!”
Ela lidou com a curiosidade dele com um olhar firme, fixando os olhos nele até ele olhar para outro lado.
Tessa guardara as perguntas mais importantes para um encontro cara a cara com seu pai: quanto tempo você namorou minha mãe antes de dormir com ela? Você a amava?
Por que você vive sozinho nas montanhas? Do que você está fugindo?
Parecia mais do que estranho para ela que um homem que vivia sem um telefone ou água encanada, um cara que enviava e-mails para ela de um laptop velho emprestado,
tivesse repentinamente decidido pegar um avião e voar até a capital da nação apenas para ver algumas esculturas que um de seus amigos havia feito. Ela teria que
lhe perguntar sobre isso também.
Ele disse que não sabia que Christie tinha chegado a ter a criança, que pensava que ela tivera o aborto que planejara. Isso foi o que ele disse, mas Tessa não acreditou
nele. Ela encontrou os cartões-postais que ele tinha mandado para sua mãe apenas alguns anos atrás. Se ele mantinha contato com sua mãe, como poderia não saber sobre
ela?
E então, talvez a pergunta mais importante de todas: por que você nunca veio me ver depois que vocês se separaram?
E então tinha Patrick.
Ela tentou pensar em um jeito de cancelar o almoço com ele educadamente, sem levantar suspeitas. E sem mentir. Isso ela já tinha feito o suficiente.
Com um tranco, o trem partiu para levar Tessa Bernice Ellis até seu pai.
A aula havia começado fazia cinco minutos.
Havia uma variedade de seminários acontecendo ao mesmo tempo essa manhã, e apesar de oficialmente o curso da Academia Nacional não começar até segunda-feira, os
alunos que já tivessem chegado eram convidados a participar das palestras dessa semana que eles achassem que seriam mais úteis para eles.
Esperava que Cheyenne participasse da minha aula para que eu pudesse agradecê-la por levar Tessa para casa na noite passada. Pelo menos esse era o motivo que eu
disse para mim mesmo. Mas quando a aula começou e ela não estava na sala, percebi que isso provavelmente era uma coisa boa, pois ela tem um jeito especial de monopolizar
minha atenção, e eu já tinha coisa demais na cabeça.
Então, sem vídeos hoje. Apenas discussão.
Iniciei os trabalhos dizendo aos meus alunos que entender o processo pelo qual um infrator planeja e executa seu crime é vital para eliminar suspeitos.
– Com licença – uma mulher na primeira fila disse, com dois dedos apontados para cima. Eu a conhecera no começo da semana: Annette Larotte, uma aluna da Academia
Nacional de Houston. Uma detetive de homicídios. Alta: 1,80 m. Morena. Olhos profundos e reflexivos.
– Sim?
– O que era o número quatro? De ontem à noite.
– Número quatro?
– No painel de discussão você disse que havia quatro premissas subjacentes à investigação geoespacial. Mas você só teve tempo de listar três antes da discussão ser
interrompida. O que é o número quatro?
Eu revisei rapidamente as três primeiras: – Número um: hora e local. A maioria dos crimes acontece no espaço de conhecimento do infrator. Dois: decisões racionais
levam ao ato criminoso. Três: princípio do esforço mínimo.
Quando fiz uma pausa para tomar fôlego, Annette concluiu meu pensamento por mim: – Infratores tentam economizar tempo e dinheiro assim como todo mundo.
Eu assenti. – Exatamente. Então eis o número quatro: progressão. A cada crime sucessivo, os infratores se tornam mais eficientes e experientes, aprendem com seus
erros, desenvolvem gostos e preferências por determinadas atividades em detrimento de outras. Eles também aprendem com outras pessoas, colaboradores criminosos,
pesquisa, observações, e quando fazem isso, duas coisas acontecem: eles se tornam mais competentes e, consequentemente, confiantes demais, o que pode levar a descuidos.
Algumas pessoas fizeram anotações, Annette assentiu, me agradecendo, e eu continuei: – Então, para começarmos hoje, digam-me: quais são os segredos para cometer
um assassinato perfeito?
Os alunos começaram apontando o óbvio:
Tomar precauções para evitar a produção de evidências físicas. Contaminar a cena com células, fluidos corporais ou DNA de outras pessoas para confundir os investigadores.
Livrar-se do corpo em lugares ao ar livre, onde a atividade de insetos, animais carniceiros e o clima vai ajudar a dispersar e destruir evidências físicas – ou,
melhor ainda, não permitir que o corpo seja encontrado. Nunca mate alguém com quem você tenha um relacionamento próximo; em vez disso, escolha alguém cujo desaparecimento
passará despercebido (fugitivos, transeuntes, vagabundos, caroneiros, prostitutas, etc.). Ideias rudimentares e óbvias.
Eu sabia que os alunos na minha sala podiam fazer melhor, e eu os desafiei a irem mais longe.
E eles não me decepcionaram:
5. Como as autoridades começam procurando pelas pessoas que mais provavelmente estavam presentes na hora e no lugar do assassinato, é inteligente quebrar seus hábitos
não intuitivamente em vez de mantê-los quando você comete o crime.
6. Mate sozinho porque assim que você arruma um cúmplice, vocêfica com uma ponta solta.
7. Se possível, artificialmente, microscopicamente, falsifique a evidência de DNA que você deixar. Desde dois anos atrás, quando pesquisadores israelenses descobriram
como era fácil fazer isso – que até estudantes de primeiro ano da faculdade de biologia podiam fazer – isso tem se tornado mais e mais comum entre criminosos refinados,
e mesmo com os avanços tecnológicos do Bureau no último ano, ainda é frustrantemente difícil de detectar.
8. Não mate próximo de seus lugares de atividade (casa, trabalho, áreas de recreação preferidas e empresas comerciais) ou nas rotas de movimentação entre elas.
– Ótimo – eu disse, construindo a ideia. – Muito bom. As pesquisas mais recentes indicam que a proximidade de uma série de crimes pode ser um indicador ainda mais
preciso de ligação entre crimes do que o modus operandi ou outra particularidade.
Então, um homem na terceira fila deu uma sugestão, um detetive de Bangkok, membro da Polícia Real Tailandesa: – Simplifique.
A porta no fundo da sala se abriu e Cheyenne sorrateiramente deslizou para a sala e sentou-se na fileira dos fundos.
O detetive Nantakarn continuou: – Quanto mais único for o crime, mais atenção você vai chamar entre os investigadores. E mais flechas apontarão para você.
Eu assenti.
Annette sugeriu o uso de meios indetectáveis de morte, e por causa da famosa afirmação forense de que sempre que você sai de uma sala você leva algo com você e deixa
algo para trás, a classe debateu se isso era possível ou não. No entanto, eu já tinha trabalhado em casos onde o princípio não se confirmara, então deixei a sugestão
permanecer.
– Mais alguma coisa?
Cheyenne levantou sua mão, e eu acenei para ela.
– Não construir um álibi tão detalhado. Só uma pessoa com algo para esconder se lembraria de detalhes sobre sua localização bem o suficiente para apresentar um álibi
tão sólido. Quanto mais perfeito o álibi, mais suspeita ele deveria levantar.
– Ótimo.
Com Cheyenne nós teríamos outro enfoque no assassinato de Mollie
Fischer. Outro ótimo enfoque... Não seria problema liberá-la para ser parte do programa de operação conjunta.
Uma rápida olhada no relógio.
9h44.
Eu tinha um intervalo marcado às 10h.
Sim. Eu lhe perguntaria então se ela gostaria de se juntar à nossa equipe.
Eu estava confiante de que ela aceitaria.
Nós dois trabalharíamos juntos novamente.
18
9h57
– Hora de acordar.
Brad chacoalhou gentilmente a mulher que, após ser deixada sozinha no porão escuro como breu por praticamente dez horas, sem dúvida já tinha perdido a noção do tempo.
Ela gemeu.
– Vamos, acorde – ele acendeu uma lâmpada de aquecimento e ela se encolheu, protegendo-se da luz forte e repentina.
Sorriu para ela. Ele tinha algumas coisas para lhe contar, alguns conselhos sobre como se preparar para sua morte em menos de cinco horas. – Pensei que pudéssemos
conversar por alguns minutos – ele disse. – Agora que estamos sozinhos.
No intervalo, Cheyenne saiu para o corredor antes que eu pudesse alcançá-la, e correr atrás dela me pareceu muito adolescente; então, em vez disso, mexi nas minhas
anotações por alguns minutos, esperando que ela voltasse, e depois decidi verificar minhas mensagens.
Missy Schuel não retornara minha ligação.
Tentei ligar para ela novamente, mas só deu caixa postal.
Após avaliar as coisas, decidi que se não tivesse resposta da srta. Schuel até meio-dia, eu procuraria por alguém um pouco mais atencioso com clientes em potencial.
Eu tinha, no entanto, uma mensagem de voz, de Tessa, fugindo de nosso almoço: – Parece que as coisas podem demorar um pouco mais do que eu esperava. Tudo bem se
só nos encontrarmos à noite? Isso seria ótimo. Te vejo mais tarde.
Breve. Direto ao ponto.
Tudo bem.
Fiquei um pouco desapontado, mas não frustrado. Isso livrava o meio do meu dia, e sem uma viagem até a cidade eu não precisaria sair correndo da minha reunião com
Ralph às 11h30. Talvez pudéssemos até fazer algum progresso no caso Fischer.
Os alunos estavam retornando para a sala.
Um pouco antes do fim do intervalo, Cheyenne voltou, seguida de perto por Annette. Elas sentaram-se no fundo, e como estávamos para recomeçar, imaginei que seria
melhor esperar até o fim da aula para falar com Cheyenne. Até lá, voltaríamos a discutir os meios de escapar ileso de um assassinato.
Tessa encontrou Paul Lansing esperando por ela nos degraus do lado oeste do edifício Jefferson da Biblioteca do Congresso.
Por algum motivo, quando ela o viu, pensou em como Patrick o descreveria: caucasiano. Mais de trinta e cinco anos. Cabelo castanho. Barba. 1,85 m. Noventa quilos.
Jeans azul, botas de caminhada, camisa xadrez com as mangas dobradas até os cotovelos.
E então, mesmo se condenando por fazer isso, pensou em como ela o descreveria: O lenhador visita a cidade.
– Tessa – ele chamou. Estava sorrindo. Ele caminhou na direção dela e lhe deu um meio abraço, então um beijo na bochecha, e mesmo sendo seu pai, ele nunca a havia
beijado antes e isso foi um pouco desconfortável.
– Oi – ela deu um meio abraço e então se afastou. – Como foi seu voo?
– Longo. Peguei na noite passada, às 22h. Duas escalas. Não tem nenhum voo direto de Riverton, Wyoming, para Washington, DC.
– Não, acho que não.
Tudo isso só para ver uma escultura que sua amiga fez?
Ela se perguntou que tipo de amiga seria essa.
Mas então uma compreensão que deveria ter sido óbvia desde o começo: Dããã, Tessa. Ele veio ver você, não o escultor. Não precisa ser um gênio.
Ele ainda estava sorrindo. – E você? Veio passar o verão aqui?
– Sim.
– Onde vocês estão ficando?
– No interior, em uma casa perto da Academia. Um aceno com a cabeça.
– Muito bom.
Então.
A vez dela. – E você vai ficar na cidade por alguns dias, então?
– Eu vou embora sábado – ele disse.
– Tá.
Uma pausa. – Então – ele disse.
– Então.
Ela esperou.
A vez dele.
– Ah! – os olhos dele brilharam. – Eu trouxe algo para você – ele pegou a pochete que havia deixado sobre um degrau antes de ela chegar.
– Não precisava...
– Não, não. Eu sei – ele estava procurando dentro da pochete como uma criança em uma caixa de cereal. – Aqui.
Ele lhe deu um BlackBerry.
– Um telefone?
– Para que a gente possa manter contato – ele bateu levemente sobre seu bolso. – Comprei um para mim também.
– Eu já tenho um celular – ela não queria ser rude, mas pelo que sabia, Paul não era rico e talvez ele pudesse devolvê-lo e pegar seu dinheiro de volta.
– Sim, eu sei. Mas desse jeito...
Patrick não vai ter como descobrir sobre as ligações.
– ...nós podemos conversar a hora que quisermos.
– Nós já podemos fazer isso.
Ela podia sentir a animação dele diminuindo lentamente. – Tem aquela coisa de GPS do Google, então, se nós nos separarmos, podemos encontrar um ao outro.
Certo, isso era muito idiota. – Você pode me ligar no meu telefone normal.
Ele parecia derrotado, sabotado pelo óbvio. – Sim, claro – um filhotinho do tamanho de um homem que parou de abanar o rabo. – Eu devia ter pensado nisso.
Oh, não.
Ele estendeu a mão. – Tudo bem, vou ver se consigo...
Continue, Tessa...
– Na verdade, sabe de uma coisa? Esse aqui é bem melhor do que o telefone que tenho – aceitar o presente pareceu outra sutil traição com Patrick, mas ela não queria
começar com o pé esquerdo com seu pai. – Sério, foi legal. Obrigada.
Ele esperou que ela guardasse o BlackBerry na bolsa, então gesticulou na direção do Capitólio. – Então, está a fim de um passeio?
– Escute, eu estava meio que pensando: como você conhece alguém que trabalha aqui, sendo que você vive, tipo, no meio do nada há seis anos?
– É meu comparsa.
Por uma fração de segundo, ela pensou que ele tivesse dito “é uma farsa”, mas então se conteve.
Qual é o seu problema? Relaxe!
– Eu vivi aqui por um período – ele acrescentou. – Há muito tempo.
– Ah, legal.
Ele olhou curiosamente para ela. – Tem alguma coisa errada?
– Não. Desculpa. Hum... – ela apontou para o edifício Madison da Biblioteca do Congresso. – Já que estamos aqui, quero pegar uma carteirinha de leitora primeiro.
Então talvez possamos fazer esse passeio ou ver as esculturas da sua amiga – ela não gostava muito de esculturas porque a maioria delas era superficial ou confusa,
mas ela sabia que era importante para seu pai. – Imagino que sejam legais.
– Então, uma carteirinha de leitora – ele estendeu a mão para indicar que ela deveria ir na frente, e ela começou a descer os degraus com ele ao lado dela, mas levemente
atrás.
– Estou muito feliz que você tenha conseguido vir hoje – ele disse. Ela percebia que ele estava se esforçando para ser amigável, mas ela não levava isso a mal. Levaria
tempo para eles se darem bem. Levou quase um ano para ela e Patrick se sentirem confortáveis um com o outro. – Desde que você e seu padrasto apareceram na minha...
– Patrick.
– Como?
– O nome dele é Patrick.
Mas assim que disse as palavras, ela se deu conta de que seu comentá
rio provavelmente soou rude. – Quero dizer, talvez se você pudesse chamá-lo de Patrick em vez de “seu padrasto”, seria legal. Eu o chamo de Patrick.
– Sim, claro. Eu não fiz por mal.
– Eu sei.
Eles atravessaram a Independence Avenue.
– Bem, desde que vocês dois apareceram na minha cabana, eu não consegui mais parar de pensar em você.
– Tudo bem.
– Temos tanto o que conversar.
– Sim.
Paul Lansing colocou uma mão no ombro dela. Um gesto amigável. Só isso.
Algo que um pai faria.
Por sua filha.
Mas quando um grupo de homens de negócios se aproximou deles, ela gentilmente se afastou para que os homens pudessem passar entre eles.
– Cheyenne, espere um pouco.
A aula havia acabado, e ela estava a caminho da porta com o resto dos alunos. Quando me ouviu chamá-la, parou e olhou para mim. Ela normalmente não usava maquiagem,
mas percebi que estava usando batom hoje. – Sim?
– Obrigado novamente por ter levado Tessa para casa ontem à noite.
– Sem problema.
Meus pensamentos oscilavam entre ela e Lien-hua, me incomodando de um jeito que não exatamente me incomodava. – Escute, na noite passada você me perguntou se tinha
algo que poderia fazer em relação a esse caso. Você estava falando sério?
– É claro.
– Bem, eu acho que consigo colocá-la no programa de operação conjunta; é onde os alunos da Academia Nacional...
– Claro. Consultam casos em conjunto com o NCAVC.
– Você sabe sobre...
– Está explicado no processo de inscrição, Pat. Não é segredo de estado.
– Ah. Certo.
– E sim, eu adoraria trabalhar com você.
Reparei na escolha de palavras que ela fez: “com você”, e não “no caso”.
Trabalhar comigo.
– Mas eu tenho aula na maior parte do tempo nesse verão – ela disse. – Quase todos os dias.
– Podemos nos encontrar à noite.
Uma breve pausa e, com isso, um sorriso. – Parece viável.
– Ótimo. Então, na verdade estou a caminho do NCAVC agora para uma reunião. Se você não estiver fazendo nada, por que não vem junto? Podemos dar um jeito na papelada
e eu mostro o lugar para você.
Ela hesitou. – Seria ótimo, mas o problema é que... – ela apontou o dedo na direção do refeitório. – Eu não tomei café da manhã. Preciso comer alguma coisa, ou não
vou aguentar até à tarde.
– Nós comemos algo no caminho. Por minha conta. Por ter me ajudado levando Tessa para casa.
– Pat, você não me deve nada – suas palavras ficaram tensas. Eu devo tê-la ofendido. – Eu já disse antes. Eu só queria ajudar.
– Tudo bem, então. Por sua conta.
Com meu comentário, o clima da conversa se atenuou, e ela esbo
çou um leve sorriso maroto. – E por que eu faria isso?
Pensei por um momento e tomei uma decisão. – Em troca de eu não perguntar o porquê de você realmente estar aqui nesse verão.
– Bem, então, no seu carro ou no meu?
– No meu.
Passamos pelo tubo de hamster. – E onde exatamente você está pensando? – ela perguntou. – Para almoçar.
– Cabana do Hambúrguer do Billy Bongo. Fica bem no caminho.
– Cabana do Hambúrguer do Billy Bongo? Você tá brincando.
– Não. O fast food mais rápido da cidade.
Ela balançou a cabeça. – Você e seus cheeseburgers – foi isso o que ela disse, mas nas entrelinhas suas palavras eram uma mensagem sutil: Eu conheço você. O que
você gosta. Nós temos uma história juntos.
– Bem, eu nunca como hambúrgueres em casa. Uma das desvantagens de viver com uma adolescente membro da PETA. Eu tenho que sair escondido para comer um sempre que
posso.
– Então agora eu sei do seu segredinho sujo.
– Todo mundo precisa de alguns desses.
E seguimos nosso rumo.
Tudo bem, alguma coisa não estava certa.
Quando o funcionário da Biblioteca do Congresso pediu para ver as carteiras de motorista do casal na frente deles, Paul cochichou para Tessa que precisava fazer
uma ligação rápida e que voltaria em um minuto e a encontraria perto da porta. – Você vai ficar bem? – ele perguntou.
– Sim, claro.
– Bom. Certo, eu já volto.
E, assim que ele se afastou, Tessa sentiu uma pontada pequena e silenciosa dentro de si, bem na parte onde ela mais precisava se sentir segura. Ela não conhecia
esse homem muito bem. Patrick suspeitava dele. Ela não deveria estar ali, na cidade, sozinha com ele.
Fique calma.
Ele é seu pai.
Ela se lembrou de que sua mãe confiara o suficiente para dormir com ele. E se sua mãe podia confiar nele, ela também podia.
Tessa andou na fila, pegou sua carteira e entregou sua identificação para o homem.
19
O prédio do NCAVC era, na verdade, um velho armazém que ainda tinha uma placa na frente com os dizeres Tarry Suprimentos para Cortadores de Grama. Cartazes de cortadores
de grama ainda ocupavam o saguão da frente e a recepcionista ainda atendia ao telefone dizendo: “Tarry Suprimentos para Cortadores de Grama, como podemos ajudá-lo?”
Não fazia sentido alardear sobre o quartel-general do grupo investigativo do FBI dedicado a estudar e resolver os crimes mais violentos da nação, assim como a localização
do ViCAP e dos escritórios dos quinze maiores criadores de perfil comportamental do mundo.
Cheyenne e eu passamos pela segurança, eu peguei a papelada da operação conjunta no balcão da frente, assinei os formulários de recomendação e lhe disse: – Você
vai precisar preencher o resto. Não se preocupe, Ralph vai mandá-los direto – entreguei a pilha de papéis a ela. – Tente não ficar com tendinite depois de escrever.
Ela sentiu o peso da pilha nas mãos. – Vou tentar não machucar as costas primeiro.
Ralph estava ao telefone quando entramos em seu escritório. Ele deu uma rápida olhada em Cheyenne, e me dei conta de que mesmo ele tendo me visitado em Denver, os
dois nunca tinham se encontrado. Gesticulei para ele que ela estava comigo, então apontei para os formulários da operação conjunta na mão dela e ele acenou para
irmos para a sala de conferência.
Entrei na sala com ela.
E encontrei Lien-hua sentada à mesa, folheando uma pasta de arquivo.
Oh.
Ela ergueu os olhos quando entramos. Seus olhos foram direto para Cheyenne.
A frase “consequências não intencionais” veio à minha cabeça.
– Lien-hua – eu disse. – Essa é a detetive Warren. De Denver.
– De Denver – Lien-hua disse.
– Trabalhamos juntos algumas vezes.
– Sete – Cheyenne disse.
– Entendi – Lien-hua levantou-se e estendeu a mão para Cheyenne. – Lien-hua Jiang.
Cheyenne apertou a mão amigavelmente. – Cheyenne Warren. Então você deve ser a criadora de perfil de quem Patrick fala tanto.
– Sério?
Ela sorriu calorosamente para Lien-hua. – Só coisas boas, eu garanto.
Parecia que Lien-hua estava prestes a responder, mas antes que ela pudesse, Cheyenne acrescentou: – Pat e eu acabamos de almoçar juntos, e ele se ofereceu para me
mostrar a repartição – ela mostrou os papéis da operação conjunta. – E parece que vou ajudar no caso.
– Bem-vinda à equipe, então – Lien-hua disse em um tom que era impossível decifrar. – Detetive.
– Obrigada, estou feliz por ter a chance de trabalhar com você.
As duas mulheres começaram a conversar do meu lado, como se eu nem estivesse na sala.
– E onde você foram? – Lien-hua perguntou.
– Ah, nós acabamos de chegar.
– Não, para almoçar.
– Na Cabana do Hambúrguer do Billy Bongo.
Por algum motivo, senti que precisava me defender. – Fica bem no caminho.
– Claro – Lien-hua piscou para Cheyenne. – Deixe-me adivinhar: ele pediu o cheeseburger clássico extremo máximo, batatas fritas e uma cherry coke média?
Cheyenne olhou para Lien-hua curiosamente. – Acertou na primeira tentativa.
– O lobo perde o pelo mas não perde o vício – Lien-hua disse.
Certo. Uma situação oficialmente desconfortável.
Ouvi passos pesados do lado de fora da sala e fiquei aliviado quando Ralph abriu a porta e se juntou a nós. Ele lançou uma pilha de pastas velhas de papel pardo
sobre a mesa e parecia que estava prestes a começar a tratar do caso, mas tirou um momento para se apresentar a Cheyenne e, com base nas minhas recomendações, imediatamente
assinou seus formulários. – Termine-os e os entregue amanhã – ele murmurou, mas eu podia ver que alguma coisa estava definitivamente pesando em sua cabeça.
– Obrigada – ela disse.
– Então é o seguinte – seu tom era áspero e duro. – Era Doehring ao telefone. Eles acabaram de encontrar Rusty Mahan. Morto. Enforcou-se em algum momento na noite
passada. Deixou uma mensagem confessando o assassinato de Mollie.
Um silêncio elegíaco dominou a sala. Lien-hua sentou-se lentamente em uma das cadeiras ao redor da mesa da sala de conferência. – Onde ele foi encontrado?
– Debaixo da ponte da Connecticut Avenue, perto da margem do rio.
Ele estava escondido pelas árvores. Nunca o teriam encontrado se o telefone no bolso dele não tivesse começado a tocar. Alguém que corria por ali ouviu e encontrou
o corpo.
– A mensagem foi digitada ou escrita à mão? – perguntei.
– Digitada. Em seu telefone.
– Foi possível identificar quem ligou?
– Não – ele balançou a cabeça. – Eu sei que é tudo muito conveniente, mas Doehring não concorda. O garoto tinha motivo, meios e oportunidade. Você conhece Doehring.
E o melhor: ele está planejando ir a público com essas informações ao meio-dia.
Ele olhou para o relógio na parede.
11h35.
– Apenas vinte e cinco minutos antes de tudo explodir – Lien-hua disse.
Ralph acenou para nos sentarmos.
– É isso que temos que impedir.
Cheyenne escolheu a cadeira entre mim e Lien-hua.
– Atualização rápida – Ralph disse. – Margaret está em Washington, DC chefiando a força-tarefa conjunta. Definimos o posto de comando na central da polícia metropolitana,
no terceiro andar. Até agora temos o FBI, a polícia metropolitana, a polícia do Capitólio e os US Marshals – ele balançou a cabeça. – Provavelmente vão chamar a
droga dos escoteiros antes de tudo acabar.
Ele respirou fundo, então abriu uma das pastas. – Certo. Vamos lá. Eis o que sabemos até agora.
A mulher não estava cooperando.
Ok. Chega disso.
Brad forçou uma mordaça em sua boca.
Prendeu com força.
Olhou em seu relógio.
11h39.
– Você tem até as 15h dessa tarde para viver: três horas e vinte e um minutos para você refletir sobre a eternidade – ele tomou fôlego. – Eu esperava que isso não
precisasse acabar assim. Se você estivesse mais disposta, as coisas teriam acontecido de um jeito diferente.
Ela tentou gritar, mas a mordaça abafou o som.
– Eu vou voltar.
Então ele a deixou novamente, deitada sozinha no escuro. Foi verifi
car a fiação e o temporizador do dispositivo explosivo que havia criado. Um objeto único. Uma obra de arte.
Uma surpresa requintada para o agente especial Patrick Bowers.
20
Ralph passou cinco minutos nos informando e principalmente revisando informações que eu já havia lido nos arquivos on-line do caso.
Eu estava ansioso para saber o que mais havíamos descoberto desde que deixei a cena do crime na noite passada, mas tentei não parecer tão impaciente como estava.
– Aliás – ele disse –, não há sinal do laptop de Mollie Fischer. Esperávamos que ele nos ajudasse de algum jeito.
Quando ele mencionou o laptop de Mollie, percebi que Cheyenne precisaria de mais do que só o resumo apressado de Ralph, então abri meu computador, cliquei nos arquivos
on-line do caso e virei a tela para que ela pudesse ver. – Para você entender melhor enquanto falamos.
– Obrigada – ela tocou no mousepad e começou a navegar pelos arquivos.
– Onde está Doehring? – Lien-hua perguntou.
– No posto de comando. A equipe dele voltou ao centro de primatas para entrevistar os funcionários – Ralph pegou uma caderneta. – Certo, vamos repassar a linha do
tempo. O que nós sabemos?
– Talvez – Lien-hua disse – o segredo agora não seja focar no que já sabemos, mas sim no que ainda não sabemos – ela ressaltava os pontos com os dedos, um de cada
vez, enquanto os listava: – Não sabemos se Rusty dirigiu seu carro até a cena, se acessou o instituto, se estava na frente da loja, se escreveu a nota de suicídio,
ou se cometeu suicídio. Nem ao menos temos certeza de que ele e Mollie terminaram o relacionamento.
– Então, basicamente, nada – Cheyenne observou, seus olhos ainda colados na tela do laptop. – Estaca zero.
– Certo, vamos pensar nisso – levantei-me. Comecei a andar. – Vamos supor que alguém esteja tentando incriminar Rusty. Considerando os aspectos técnicos e táticos
desse crime, deixar o carro dele na cena do crime não parece um jeito estranho de entregá-lo? Levando em conta a confissão digitada, a ligação telefônica programada
na hora certa, bem quando um corredor ia passar perto do corpo de Mahan...
– Muito óbvio – Ralph disse. – Amador.
– Sim. E por que deixar a bolsa de Mollie com ela no habitat dos chimpanzés?
– Mas se alguém não estava tentando incriminar Mahan – Cheyenne disse –, então deve ter sido ele. Todas as evidências circunstanciais o apontam como o assassino.
– Isso é verdade – Lien-hua assentiu. – Mas Rusty quase com certeza não é o assassino, então...
– Estaca zero – Ralph disse.
Apesar de minha especialidade ser crimes em série com meia dúzia ou mais de cenas de crime, primárias ou secundárias, a chave para todas as investigações é começar
do zero com a hora e o local, e era aí que precisávamos procurar mais cuidadosamente agora. – A filmagem da câmera de segurança do centro de pesquisa foi apagada
das 17h às 19h, certo?
Acenos positivos de cabeça.
– E a morte de Mollie parece ter acontecido entre 18h e 19h... – eu estava pensando alto agora, reavaliando uma ideia com a qual eu tinha flertado, mas nunca explorado.
– E ainda assim, os assassinos, vamos dizer que é no plural agora, saíram da cena do crime em algum momento, provavelmente após a morte dela, mas possivelmente antes.
Nos dois casos, eles não foram pegos saindo do prédio na filmagem... então, a menos que houvesse algum modo de desviar das câmeras ou pré-programar o sistema de
segurança para começar a filmar novamente depois que eles fossem embora...
– Eles ficaram lá dentro – Lien-hua se adiantou. – Então saíram depois de ligar as câmeras novamente.
Uma fagulha.
Uma possibilidade.
– E eles teriam sido pegos na filmagem indo embora em algum momento depois das 19h – Ralph disse.
– Vamos tentar isso – eu disse. – Se revisarmos as filmagens a partir das 19h, devemos conseguir identificar todos que entraram ou saíram do prédio após a ligação
da tratadora para a emergência: todo o pessoal das forças policiais, paramédicos, todo mundo.
– Sim – Lien-hua disse. – Então, se encontrarmos imagens de alguém que saiu do prédio...
– Mas nenhuma imagem dessa pessoa entrando – Ralph interrompeu –, temos nosso infiltrado.
– Ou infiltrada – Cheyenne disse.
Assenti.
– Está certo.
A lógica disso era simples, mas, reconhecidamente, havia furos. Pode ser que houvesse um jeito que não conhecíamos de evitar as câmeras, mas era um caminho a ser
percorrido. Um lugar para começar.
Ralph rabiscou em sua caderneta. – Vou colocar alguns agentes nisso o mais rápido possível.
– Sabemos mais alguma coisa sobre Sandra Reynolds, a tratadora? – Cheyenne estava estudando a tela do computador. – A mulher que atirou nos chimpanzés. Ela estava
presente quando os policiais chegaram.
– Ela parece limpa – Ralph disse. – Doehring e seu pessoal entrevistaram-na extensivamente. Veremos se eles vão conseguir alguma coisa dela nessa manhã.
– E o guarda de segurança?
– Fizemos um exame toxicológico para verificar se ele estava mentindo sobre estar desacordado, mas ele ainda tinha tranquilizantes em seu sistema. Eu diria que ele
está limpo também. Nenhum deles viu mais ninguém lá.
Ralph parecia convencido. Decidi prosseguir. – E Mollie estava morta quando os policiais chegaram? Eles confirmaram isso?
– Ah, sim – ele disse, com a voz sombria. – Não havia dúvida sobre isso.
Um momento de silêncio desconfortável tomou a sala.
As peças não estavam se encaixando.
Cheyenne desviou os olhos do laptop e olhou para mim. – Estou pensando: e se os chimpanzés não a mataram?
– O que você quer dizer?
– Quero dizer, é possível que ela já estivesse morta antes que os chimpanzés a atacassem? – ela apontou para uma foto da cena do crime que mostrava o chão coberto
de palha do habitat que ela havia aberto no computador. – Tem sangue na palha, mas não está tão espalhado quanto você imaginaria, considerando os ferimentos na veia
jugular, no pescoço dela, e uma vez que o coração dela parou de bater, ela teria parado de sangrar.
– Gravidade – Ralph acenou. – Poças de sangue nas partes mais baixas do corpo.
– Sim – ela disse.
Olhei para Ralph. – A autópsia já foi concluída?
Uma olhada no relógio. – Está em andamento.
– Vamos ver se o médico forense pode definir com certeza o mecanismo de morte.
Mais anotações.
Muito o que fazer.
Ele se levantou.
– Na verdade, vou colocar isso tudo em prática. Acho que temos perguntas suficientes para segurar o anúncio de Doehring. Eu já volto.
Assim que ele saiu, Cheyenne discretamente perguntou para Lien-hua onde ficava o banheiro feminino.
– Vou mostrar para você – ela respondeu, e as duas saíram para o corredor.
Aproveitei a oportunidade para ligar meu laptop à porta USB do monitor na parede para que todos pudéssemos ver as imagens quando os três voltassem.
Então comecei a passar pelas fotos da cena do crime, me focando no conteúdo da bolsa de Mollie, tentando encontrar qualquer coisa que não seencaixasse na teoria
de que Mahan era inocente.
– É incrível – Tessa sussurrou quando ela e Paul se aproximaram da escultura.
Próximo deles, uma mãe tentava conduzir dois jovens garotos na direção da escada, mas mesmo com aquele irritante draminha acontecendo, a escultura ainda prendia
a atenção de Tessa.
Era uma escultura de técnica mista com um metro de altura de uma garota com as mãos envoltas na cintura de um garoto. De algum modo, o escultor havia capturado o
momento de um jeito que fazia parecer que a garota se agarrava ao garoto e o empurrava ao mesmo tempo.
Mesmo hesitante sobre toda a ideia do museu de arte, após ver essa escultura Tessa tinha esperança de que isso não seria uma completa perda de tempo. Sem um invólucro
de vidro em torno das esculturas, você podia chegar muito perto, e ela deu um passo à frente e a inspecionou com admiração.
Aqui você tinha a tensão de uma vida capturada em arame e resina plástica: segurando e empurrando para longe; queremos estar próximos mas separados, ser independentes
mas necessários, livres mas presos pelo amor. Um resumo da natureza humana.
– Estou feliz que tenha gostado – Paul parecia satisfeito, quase orgulhoso.
– Sim. É muito legal.
Pelo canto dos olhos, Tessa reparou que a mulher virou as costas para um dos garotos. Sem sua supervisão, o garoto aparentemente sentiu-se livre para se aproximar
de uma escultura de cerâmica sobre um pequeno suporte de madeira.
– Essa é uma das peças que sua amiga fez? – Tessa disse, mas seus olhos estavam no garotinho que tentava alcançar a escultura.
– Julia? Não. As dela são...
Ela podia ver o desastre escrito naquela situação e chamou a mulher para avisá-la: – Ei, seu filho!
Mas a mulher virou-se para Tessa em vez de olhar para o garoto. Tessa apontou para ele assim que ele tocou na escultura...
A peça de cerâmica se estatelou no chão.
E, naquele instante, Paul virou-se rapidamente, de costas para Tessa, protegendo-a contra a direção de onde veio o barulho, mas claro que não havia nada contra o
qual protegê-la.
Então um alarme começou a soar e dois funcionários foram correndo até a família. A mãe já estava repreendendo seu filho, e agora Paul estava conduzindo Tessa para
o outro lado do salão de exposição.
– Nossa, o que foi aquilo? – ela perguntou a ele. – Você foi muito absurdamente rápido. Você já foi policial ou algo do tipo?
– Não – ele disse simplesmente. – Vamos, temos que ir até o quarto andar.
Faria sentido se ele fosse. A mamãe sempre gostou do tipo policial.
– Sério, você...
– Não – e ele a guiou até a escada rolante na frente dele.
21
11h58
Não encontrei nada digno de nota enquanto haviam saído; quando nós quatro nos reunimos, Ralph anunciou: – Certo, Doehring disse que não vai liberar nenhuma informação
para a imprensa por enquanto, mas o deputado vai. Ele agendou uma coletiva de imprensa para as 13h. E ponto final. Então, a menos que tenhamos algo a mais até lá,
ele vai dizer à imprensa que o assassino de sua filha foi Rusty Mahan.
– Precisamos controlá-lo – eu disse. – Isso pode dificultar seriamente a investigação.
– Liguei para Margaret para perguntar sobre isso, mas Rodale parece estar por trás do deputado.
– Isso é inacreditável – Lien-hua disse. – O que está acontecendo aqui?
Política, como sempre.
Ele balançou a cabeça. – Eu não sei – ele disse rispidamente. – Mas não cheira bem para mim também.
Esqueça a imprensa, concentre-se nas evidências.
Fechei os olhos e revisei a disposição das ruas que cercavam o instituto de pesquisa, seguindo mentalmente a rota que eu havia tomado para chegar lá, formando um
mapa tridimensional em minha cabeça. Mas minha memória não estava nem perto de ser tão precisa quanto uma imagem de satélite seria, então abri os olhos, peguei meu
telefone e projetei o holograma 3D de Washington, DC sobre a mesa.
Nós quatro nos juntamos ao redor dele e o estudamos.
Passei o dedo pela tela do telefone para dar um zoom na South Capitol Street, onde o centro de pesquisa ficava; então girei a imagem, estudando as linhas de visão
da saída do estacionamento, das outras saídas do prédio em relação à rua... os semáforos... o estádio imenso.
Espere.
Uma ideia.
No laptop, cliquei no site da polícia metropolitana de Washington, DC. Digitei meu número de identificação federal.
Ah, sim.
Uma pequena animação. As coisas ficando claras.
– O que foi? – Ralph perguntou.
– Câmeras – murmurei.
– A filmagem foi apagada – eu podia perceber pela sua voz que ele estava ficando cada vez mais impaciente. – Nós já pensamos nisso tudo. Precisamos...
– Não. Câmeras de trânsito – senti os pensamentos fluindo. O caso começando a entrar no meu sistema do jeito que deveria, do jeito que eu gostava. – Podemos não
ter imagens do assassino chegando ao centro de pesquisa, mas podemos ter um vídeo dele se aproximando. Se encontrarmos o carro de Mahan a caminho do instituto, talvez
possamos ver o motorista.
– Confirmar com certeza se foi Mahan ou não – ele estava me acompanhando agora, passo a passo.
– Exatamente.
Levei menos de um minuto para entrar, acessar o banco de dados das câmeras de trânsito de Washington, DC e encontrar os arquivos de vídeo.
Mollie foi vista pela última vez deixando a estação Clarendon do metrô.
Escolhi os semáforos de duas quadras a norte do instituto, por ser em uma rota mais direta para a área da cidade onde ela foi vista pela última vez.
E, a partir das 16h, a hora em que Mollie foi vista viva pela última vez, começamos a analisar as imagens, passando-as de oito vezes mais rápido, procurando pelo
Volvo 2009 de Rusty Mahan.
Brad carregou a sacola esportiva com tudo o que ele e Astrid precisariam para a van. Colocou-a lá dentro.
De acordo com o plano, Astrid o encontraria no hotel às 14h, mas ele gostava da ideia de ficar um tempo sozinho com a mulher no quarto antes que Astrid chegasse.
Sair agora lhe daria mais tempo.
Ele colocou munição em sua arma, uma Walther P99, guardou-a no coldre e então voltou para o andar de baixo; agarrou a mulher pelos cabelos e, enquanto ela se contorcia
desesperadamente para fugir, arrastou-a na direção da escada.
Não demorou muito para Tessa perceber que a escultura do garoto e da garota era a exceção, e não a regra.
A maioria das esculturas era completamente idiota: esforçavam-se demais para dizer muito, ou eram tão esotéricas que falhavam em passar qualquer mensagem. No último
caso, a equipe do museu havia colocado pequenas placas ao lado das esculturas descrevendo por que o artista as fez, o que estava acontecendo em sua vida e o que
a escultura deveria significar.
Eram muito úteis.
Mas o fato é que, arte verdadeira, arte real, não precisa de explicação. Não existe um epílogo no final de um romance dizendo a você o que a história significa.
Nem comentários no fim de uma sinfonia explicando o que o compositor estava tentando comunicar com aquelas notas específi-cas. Nenhuma nota de rodapé esclarecendo
o significado de poemas – pelo menos nenhuma que valha a pena ler. A arte ou se sustenta por si mesma, ou não se sustenta. Assim que é necessário ser explicada,
ela deixa de ser arte.
Ela não disse nada disso para Paul, no entanto. Provavelmente não era a conversa ideal entre pai e filha, pois ela sem dúvida acabaria tirando sarro dessa coisa
toda de “escultor recluso” que ele tinha, e ela não queria fazer isso.
Eles ainda estavam no segundo andar, e a viagem até o andar da exposição de Julia estava sendo terrivelmente lenta, pois Paul ficava um bom tempo admirando cada
escultura.
Finalmente, quando ele parou para ler a placa ao lado de uma escultura de bronze de duas maçãs cinza com perucas vermelhas se beijando, Tessa disse: – Então, você
nunca se casou?
– Não.
– Por que não?
– Acho que nunca encontrei a mulher certa na hora certa.
– Então minha mãe era a mulher errada ou apareceu na hora errada? Ele olhou para ela. – Eu era o homem errado. Eu acho.
Não era a resposta que ela esperava. Ela digeriu as palavras dele.
Ele a conduziu até uma caixa grande dos correios, enclausurada em vidro. Uma espada lhe atravessava, como se fosse Excalibur perfurando uma pedra.
Outra placa explicativa.
Ah, que beleza.
– Então, nenhum outro filho?
– Não.
– Que você saiba.
O sorriso estampado em seu rosto assim que eles se encontraram nos degraus da Biblioteca do Congresso desaparecera lentamente no decorrer da manhã, e agora ele a
olhava de um jeito curioso. Talvez com um toque de hostilidade.
– Quero dizer, você deixou bem claro que não sabia sobre mim – ela explicou. – Mas aqui estou. Então, o que estou dizendo é: você quer dizer que não tem outros filhos
sobre os quais você saiba.
– Não tenho nenhum outro.
Ele soava determinado, mas ela não acreditava que nos últimos dezessete anos ele não tinha dormido com nenhuma outra mulher.
– Como você sabe?
– Eu não tenho nenhum outro filho, Tessa – algo frio e incerto havia se arrastado para o espaço entre eles.
Ela repetiu, falando mais lentamente dessa vez. – Como você sabe?
– Eu fiz vasectomia, Tessa.
Foi muito direto, não é o tipo de coisa que um pai conta para sua filha adolescente. Claro, ela havia pressionado, mas ainda assim...
– Vamos – ele apontou para o elevador. – Vou te mostrar as esculturas de Julia.
– Tá bom – ela disse. – E você pode me contar mais sobre ela no caminho.
22
Nada
Nenhum Volvo.
Mas tínhamos imagens do carro do guarda passando pelo cruzamento às 17h53 e do GM Volt da tratadora, Sandra Reynolds, às 19h02.
Anotei os horários mentalmente. No entanto, a tempestade, o trânsito, qualquer série de fatores pode ter afetado seus horários de chegada.
Tente os semáforos ao sul do instituto.
Seria um caminho mais sinuoso da estação do metrô onde Mollie fora vista pela última vez, talvez indicando que seus sequestradores deixaram a cidade e então voltaram
com ela. E se for esse o caso, quando eu desenhar o perfil geográfico, dependendo do local da zona de perigo, isso pode ser significante.
Para casa? Eles a levaram para seu local de residência?
Perguntas, perguntas.
Eu precisava de fatos.
Segundos após eu ter começado o segundo vídeo, Ralph apontou o dedo para a tela. – Peguei.
Às 17h32, o Volvo 2009 de Rusty Mahan passou pelo cruzamento.
Eles chegaram e então esperaram a troca de turno?
Talvez.
Pausei a imagem, voltei para o momento em que o carro surgia na tela.
Apertei play.
– É isso – Lien-hua disse, mas havia um tom de decepção em sua voz. – Mas não dá para ver o motorista, tem muito reflexo por causa da chuva.
– Passe novamente – Cheyenne disse.
Passei duas vezes e em velocidades diferentes, mas o reflexo obscurecia o rosto do motorista.
Ralph pegou seu celular. – Os caras do laboratório podem tirar um pouco disso...
– Não – murmurei. Eu estava olhando para a imagem. – Isso não está certo.
– O quê?
– Olhem – dei zoom na placa. – É uma placa diferente. O Volvo no estacionamento tinha a placa 134–UU7; esse é TEP–ROM.
Ralph baixou o telefone. – Mas é o mesmo carro.
– Vamos tirar a prova – pressionei o botão play novamente.
Lien-hua foi checar a segunda placa enquanto Cheyenne, Ralph e eu revisamos a filmagem até o ponto em que os veículos de emergência passaram pelo cruzamento às 19h14,
a caminho da cena do crime.
Nenhum outro Volvo sedã.
– Ok – Lien-hua disse –, ambas as placas estão registradas no nome de Rusty Mahan.
– Duas placas para o mesmo carro? – Cheyenne virou o teclado em sua direção para que pudesse digitar, abrindo os arquivos do caso. – Você precisaria de alguém dentro
do departamento de trânsito para conseguir algo assim.
Ralph balançou a cabeça. – Não. Uma carteira de motorista, um endereço e algum dinheiro bastam para você conseguir placas.
– Identidade falsa? – Lien-hua perguntou.
– Custa uns sessenta dólares por aí.
Balancei a cabeça. – Eu entendo a troca de placas para evitar apreensão, mas por que trocá-las se você vai deixar o carro na cena do crime? Especialmente se você
usar placas registradas no mesmo nome.
O caso parecia estar se desviando para uma direção completamente diferente.
– Certo, vamos pensar sobre isso – Lien-hua disse. – TEP–ROM. Isso significa alguma coisa para alguém?
– TEP é Propagação Transequatorial – Cheyenne disse. – Tem a ver com propagação de ondas. ROM tem algo a ver com memória de computador.
– Read-only memory, ou memória somente de leitura – Lien-hua disse.
Cheyenne digitou no teclado.
– PROM pode ser memória somente de leitura programável.
Ralph interrompeu: – Lien-hua, você disse que o cara poderia ser um hacker?
– Sim. Mas e quanto ao TE no começo?
Estávamos afundando rapidamente no pântano das conjecturas.
Ele balançou a cabeça.
– Espere um minuto – eu disse. – Em vez de nos preocuparmos com o tipo de mensagem oculta que as placas podem conter, vamos encontrar o atendente do departamento
de trânsito que arquivou os papéis de registro e ver se conseguimos uma descrição da pessoa que fez o pedido. Ver se foi Mahan ou não. Podemos pedir para Angela
Knight ou para os criptógrafos da NSA trabalharem na história da placa para nós.
Sem oposição.
– Certo, abra o vídeo novamente, Cheyenne – falei para os três. – Mais alguma coisa? Algo que estamos esquecendo?
Ela passou a filmagem de novo.
O semáforo.
Vermelho. Amarelo.
– As câmeras do instituto, – eu murmurei – a loja de eletrônicos... os assassinos sabem sobre vídeo.
Verde.
– Espere – eu disse. – Volte e passe de novo.
E finalmente eu vi.
Não acreditava que não tinha visto antes.
– Aqui, aqui, aqui. Assista de novo. As luzes do semáforo – me inclinei para perto de Cheyenne. Apertei play. Senti o cheiro delicado e doce de seu perfume. Tentei
ignorar.
Enquanto o vídeo passava, eu podia ver no olhar de cada um que nenhum dos meus colegas tinha a mínima ideia do que eu estava falando.
Voltei o vídeo com o cursor e apertei play uma última vez. – O semáforo. Reparem quando ele muda.
Nós todos vimos o carro se aproximando, a luz ficar verde, o veículo desacelerar, passar pelo cruzamento e acelerar.
– Ele desacelera – Lien-hua disse – conforme se aproxima do semáforo.
– Sim, conforme se aproxima – eu disse. – Mas fica verde quando ele ainda está a pelo menos trinta metros de distância. Então, por que ele desaceleraria em uma rua
vazia enquanto se aproximava de um semáforo que já estava verde?
– Poderia ser praticamente qualquer coisa – Ralph falou com dureza, e estava claro que ele não achava que isso tivesse algum significado. – Ele podia estar distraído,
ao telefone, mexendo no rádio... – uma extensão de silêncio reflexivo, então ele murmurou a mesma coisa que eu havia pensado. – Ou ele queria ser pego na câmera.
– É isso que estou imaginando – eu disse. – Tudo até agora foi arranjado para nos fazer olhar em uma direção enquanto perdemos os fatos óbvios em outra. Eles mudaram
as placas e parece que queriam que percebêssemos, mas não imediatamente.
– Quem poderia imaginar que verificaríamos as câmeras de trânsito? – Lien-hua perguntou.
– Alguém que pensa como Pat – Cheyenne disse.
– Mas por quê? – Ralph perguntou. – Por que alguém...
Meu telefone tocou e meu identificador de chamadas mostrou que era Missy Schuel, a advogada.
A hora não podia ser pior. Eu odiava ter que sair de tal conversa, mas essa era uma ligação que eu não podia me dar o luxo de perder.
Tocou novamente.
– Segurem esse pensamento – eu disse aos meus amigos. – Eu já volto.
Deslizei para o corredor e atendi o celular.
23
– Pat Bowers falando.
– Dr. Bowers, é Missy Schuel. Recebi sua mensagem. Desculpe-me não ter retornado mais cedo, minha filha passou mal hoje de manhã e tive que buscá-la na creche.
De todas as desculpas por não ter retornado uma ligação, cuidar de um filho doente teria que encabeçar o topo da lista, mas me parecia estranho um advogado compartilhar
isso com um potencial cliente.
– Ela está bem?
– Sim. Obrigada por perguntar. Ela está com uma amiga – uma breve pausa, supostamente para passar a conversa de assuntos pessoais para profissionais. – Normalmente,
não consigo conversar com novos clientes em tão pouco tempo, mas tive um cancelamento às 12h50. Posso me encontrar com você por talvez cinquenta minutos. É meu único
horário até o dia 17.
Olhei para o meu relógio.
12h20.
Sem chance.
Eu sabia que o escritório de Missy Schuel ficava no centro de Washington, DC a pelo menos trinta minutos de carro do NCAVC, então mesmo que eu partisse imediatamente
e fosse correndo para lá, eu mal conseguiria, e considerando o quanto Missy e eu precisávamos conversar, eu não conseguia pensar em nenhum modo de voltar para Quantico
a tempo da minha aula às 14h. – Não tem mais nada? Tem certeza?
– Dr. Bowers, posso encontrar-me com você às 12h50 – nenhuma irritação em sua voz, apenas formalidade profissional. – Caso contrário, ficarei feliz em passar para
você os nomes e números de outros advogados que eu recomendo. O que você prefere?
– Eles são tão bons quanto você?
– Não – uma avaliação franca e simples que me impressionou.
Pensei na lista de Ralph com todas as agências envolvidas nessa investiga
ção, todas as pessoas que estavam no caso. Eles podem sobreviver por algumas horas sem você, Pat. Não estrague tudo. Faça o que é melhor para Tessa.
– Estarei aí às 12h50.
– Certo. Meu escritório fica localizado na 1213 11th St. NW. Estacione na loja de bebidas do outro lado da rua. Eles não ligam.
– Loja de bebidas?
– Eu não tenho estacionamento aqui no meu escritório, então digo aos meus clientes para usar o deles. Só não demore por lá ou vão pensar que você está lá para comprar
drogas.
Minha confiança na srta. Schuel estava começando a vacilar.
– Tudo bem.
– Vejo você em breve, agente Bowers.
– Espere. Eu disse a você que era doutor; não disse nada sobre ser um agente.
– Eu pesquisei sobre você. Não gosto de surpresas – e isso foi tudo.
Encerramos a ligação e corri de volta para a sala de conferência. Juntei minhas coisas, deixando meu laptop para a equipe usar. – Preciso ir.
Lien-hua olhou preocupada para mim. – Você está bem?
– Sim. Gesticulei na direção do corredor. – Posso falar com você um minuto? – Assim que saímos, percebi que Cheyenne nos observava com curiosidade, mas quando ela
me viu olhando para ela, se concentrou no monitor do computador novamente.
Quando Lien-hua e eu estávamos sozinhos no corredor, eu disse: – Você poderia me fazer um favor? Você vai voltar para a Academia?
Uma pausa. – Posso.
– Você daria minha aula das 14h? – eu podia ouvir minha voz urgente, apressada. – Apenas meia hora, talvez. Nós íamos dar uma passada na fazenda de corpos.
– Pat, o que está acontecendo?
Vamos, bote para fora. Daí, vá embora.
– É o pai de Tessa. Nós o encontramos mês passado, e ele está tentando tirá-la de mim. Ele está me processando pela custódia dela. Preciso me encontrar com uma advogada
e não pode ser outra hora.
Pronto. Bem direto.
– Eu dou sua aula inteira. Vá.
– Obrigado, fico devendo... oh, não. Cheyenne. Ela veio de carona comigo. Ela vai precisar de uma carona de volta para a Academia.
– Não se preocupe. Eu a levo.
– Certeza?
– Se nós vamos trabalhar juntas, precisaremos nos conhecer.
Consequências não intencionais.
Sem pensar, apertei suavemente seu ombro. – Obrigado – tocá-la foi familiar e estranho ao mesmo tempo. Tons diferentes do passado.
Eu estava prestes a tirar minha mão, mas ela pôs a sua sobre a minha e seus dedos envolveram os meus, ainda que delicadamente, mas envolveram. – Você não precisa
me agradecer. Agora, vá.
Então, o momento desapareceu. Ela voltou para a sala de conferência e eu corri para o estacionamento, meus pensamentos se adiantando para meu encontro com Missy
Schuel.
24
Então, de acordo com o pai de Tessa, Julia Rasmussen era alguém que ele havia conhecido quando morou em Washington, DC seis anos atrás. Aparentemente, foi ela que
o introduziu às esculturas.
Ela era uma escultora.
Que legal.
– Você vai se encontrar com ela enquanto estiver aqui na cidade? – Tessa perguntou.
Ele demorou para responder. – Amanhã. Sim – ele gesticulou na direção de uma escultura a cerca de seis metros de distância. – Bem, aqui estamos.
Tessa olhou para a figura na direção da qual Paul estava andando: 1,20 m de altura, feita de um tipo de resina plástica. Os pés da escultura eram nadadeiras que
lentamente se transformavam em pernas musculosas e peludas e então se moldavam em um torso e um pescoço nus e, então, no rosto de uma garota com um sorriso tragicamente
triste, mas com olhos otimistas.
E tinha uma placa explicativa. Claro.
Paul estava radiante.
– Incrível, não é?
Julia, hum?
A escultora.
– É... interessante.
– O que diz para você?
– Honestamente?
– Sim. Claro.
– Diz que ela não conseguia decidir o que fazer: um sapo, um gorila ou a Shirley Temple.
Ele olhou para ela de forma estranha.
– Desculpa, eu quero dizer... Tá certo, que tal isso: é a história da vida nesse planeta, de peixe para primata para homem, movendo-se inexoravelmente para a felicidade.
Mas nossa raça ainda não a alcançou; ainda estamos presos à nossa natureza animal, e por isso o rosto dela está tão abatido. Ela está cheia de esperanças, otimista,
mas ainda precisa alcançar a iluminação.
Ele piscou. Olhou para a placa. Olhou novamente para Tessa.
– Não, eu não tinha visto antes – ela disse.
– Isso é extraordinário.
– Sim, mas não é honesta.
– Não é honesta?
– A escultura. Sobre a vida. Ela supõe que a seleção natural sempre se move na direção da felicidade, impondo juízo de valor, o que é ilógico. E quem pode dizer
que animais não são mais felizes do que nós? Não são muitos deles que cometem suicídio. Além do mais, muitas pessoas pensam que somos modelados pela mão de Deus,
e não por um simples processo natural. Minha mãe acreditava nisso. Eu também acredito.
Uma pausa. – Você tinha pensado nisso antes.
– Sim – ela considerou contar a ele que Patrick lhe dissera mais de uma vez que a verdade não teme um exame minucioso. Mas se segurou.
– Você acredita em Deus, Paul?
Ele demorou para responder. – Não tenho certeza.
– Julia acredita?
– Tessa, isso...
– Não é da minha conta?
Ele olhou para ela mais de perto. – Não, eu não acho que Julia acredite em Deus.
Tessa sentiu no ar: constrangimento, constrangimento, constrangimento.
– Então – ele apontou para uma escultura próxima: um vaso sanitário cercado de pele de animal falsa e enquadrado dentro de um triângulo verde gigante. – E quanto
a esse? Vamos ver se você consegue acertar duas seguidas.
Oh, por favor não diga que Julia, a escultora, fez essa coisa também.
Tessa olhou o nome na placa.
Ótimo.
– Então?
– Vamos, Paul. Eu só quero conversar. Eu realmente não curto muito essa coisa toda de interpretação de esculturas.
– Você acertou a última.
– Sorte.
– Não acredito em você.
Ela segurou um suspiro.
– É um vaso sanitário em um triângulo gigante. Podemos continuar? Por favor?
– Vamos, você pode fazer melhor que isso. Consegue me dizer o que significa?
Certo.
Chega disso.
– Eu não sou artista, mas acho que o importante na arte não é signifi-car, mas sim acrescentar. Se ela não fizer isso, se ela precisa de uma placa para explicar,
não é arte. É como a natureza: o que um pássaro quer dizer com sua música? O que uma flor quer dizer quando desabrocha? Quer dizer beleza. Qualquer explicação além
dessa é supérflua.
Ele ficou olhando para ela.
– Olhe, o que você fez antes de se mudar para Wyoming e se tornar um recluso?
– Trabalhei para o governo. Já falei isso para você antes. Como você sabe tanto sobre...
– Sim. O departamento de caça e pesca.
– Está certa.
– Por que você está lá, no meio do nada? Está fugindo de alguma coisa?
– Eu precisava de um lugar para ficar sozinho para trabalhar nas minhas esculturas; já falamos sobre tudo isso quando você e seu padrasto foram até a minha cabana.
Você estudou arte ou...
– Patrick. Quando Patrick e eu fomos até sua cabana. Por favor, use o nome dele.
Um olhar duro. – Não estou certo do que você está tentando fazer aqui. Você está brava comigo?
– Não.
– Vamos tentar mudar isso de um interrogatório para uma conversa, tudo bem?
Ela sentiu uma pontada aguda de raiva. – Não estou te interrogando.
– Que tal se revezarmos? Você me faz uma pergunta, daí eu faço outra para você – ele gesticulou na direção de algumas poltronas de couro perto da janela, mas ela
não se mexeu.
– Por quanto tempo você e minha mãe ficaram juntos? – ela disse.
– Três semanas.
– E vocês...
Um sorriso.
– É minha vez, Tessa.
Ela não disse nada.
– Você ama Patrick?
– Eu o amo. Sim. E quanto à minha mãe? Você a amava? Uma pausa. – Nós saímos por três semanas, Tessa.
– E?
Ele não respondeu.
– Então – ela disse – você dormiu com ela mesmo sem amá-la?
– Nós dormimos juntos. Sim. Três ou quatro vezes.
– Três ou quatro? Você não se lembra?
– Minha vez de perguntar. Ele já fez alguma coisa para machucar você?
– Quem?
– Patrick.
– Para me machucar? Do que está falando?
Ele apontou para o braço dela, para suas cicatrizes. – Ele fez isso em você?
– Como você pode pensar nisso? Eu mesma fiz isso. Você não consegue se lembrar de quantas vezes dormiu com a minha mãe? Com quantas outras mulheres você estava dormindo
ao mesmo tempo para que perdesse até a conta?
– Não havia nenhuma outra – então, de volta para as cicatrizes. – Algumas delas parecem recentes. Por que ele não te impediu?
Ela olhou friamente para ele. – Acho que não quero mais saber dessa conversa – ela colocou a alça da bolsa sobre o ombro. – E já tive o suficiente de arte por um
dia. Estou indo embora.
Ele tentou alcançar seu braço para impedi-la, mas ela o fulminou com o olhar. – Nem tente.
Ele parou um pouco antes de tocá-la.
– Eu me preocupo com você – ele recuou a mão. – Eu quero que você fique segura. Durante o julgamento de Basque no mês passado, seu padrasto, Patrick, admitiu tê-lo
agredido fisicamente, ter quebrado a mandíbula de Basque quando o prendeu.
– O cara estava tentando matá-lo.
– Não foi exatamente assim que a imprensa colocou...
– Patrick nunca me machucaria. Nunca.
Um rápido silêncio.
– Fico feliz por saber disso.
Ela estreitou os olhos. – Por que todas essas perguntas sobre Patrick?
– Você é minha filha. Eu só quero garantir que esteja num ambiente seguro. Você é importante para...
– Ah, é? Bom, então me responda isso: se eu sou tão importante para você, por que você nunca foi me ver? E por favor não me diga que é porque você pensou que minha
mãe ia me abortar. Você sabia onde ela estava. Você escreveu para ela quinze anos depois. Eu achei o cartão--postal! Você sabia sobre mim.
Ela o observava atentamente. Seu rosto. Sua linguagem corporal.
– Honestamente, eu sempre pensei que sua mãe tinha feito o aborto.
– Sim, claro.
– Estou te dizendo a verdade. Eu não sabia que você tinha nascido, Tessa. Eu não tinha como saber. Antes de sua mãe se mudar, ela deixou bem claro que não me queria
na vida dela – uma pausa. – Mas agora estamos aqui; estamos juntos, e eu só estou tentando me certificar de que esse homem que está cuidando de você...
– Patrick! O nome dele é Patrick! E ele é mais do que só o cara que cuida de mim, tá bom?
– Tá bom.
Mostre a ele, Tessa. Prove.
Ela puxou a manga esquerda, revelando a tatuagem de corvo que tinha feito para esconder a cicatriz que Sevren Adkins fizera nela quando cortou sua artéria braquial
e a deixou para morrer sangrando.
– Patrick salvou minha vida ano passado quando um assassino em série me atacou. Ele arriscou sua vida. Ele quase foi morto fazendo isso.
– Um assassino em série?
– Isso mesmo.
Ele estava olhando cuidadosamente para a tatuagem. E para a cicatriz.
– Eu não sabia disso.
Ela soltou a manga. – Sim, então, agora você sabe.
– Sinto muito por você ter se machucado assim. Eu nunca teria deixado alguém...
– Eu não aguento mais isso – ela virou-se para ir embora.
– Tessa, não saia andando quando estou falando com você.
Ela virou-se de volta. Cara a cara com ele. – Patrick faria qualquer coisa por mim, e enquanto você estava lá na sua cabana de Unabomber brincando com papel machê,
ele estava ocupado sendo um pai para mim. Não me mande mais e-mails. Acho que sei tudo que preciso saber.
– Ainda tem muita coisa para nós conversarmos. Eu vou...
– A conversa acabou, Paul.
– Eu já falei para você. Nos meus e-mails. Você não precisa me chamar de Paul. Eu sou seu pai. Você pode me chamar de pai.
Inacreditável.
– Patrick é meu pai. Você é só o homem que engravidou minha mãe.
Ela saiu andando, mas assim que entrou no elevador, deu mais uma olhada e viu que ele saíra de onde estava, de pé, parado. Ele ainda a observava com os olhos claros
e inabaláveis.
Isso a assustou.
As portas do elevador se fecharam.
Ele usou sua mãe. Ele não a amava.
Ele a usou...
Ela sentiu uma rajada quente de ódio e um aperto pela decepção. Ele
não amava mamãe. Como ele poderia em algum momento ter amado você?
E assim que chegou ao térreo, ela fugiu para o banheiro para pensar.
Para se esconder. E, mesmo sem querer, para chorar.
25
A mulher na parte de trás da van agora estava calada e imóvel.
Mais cedo, quando Brad a transferiu do porão para o veículo, ela lutou mais do que ele gostaria, mas ele a fez parar.
Agora, complacente de novo, ela estava deitada perto da cadeira de rodas que ele usaria para levá-la até o quarto onde ela morreria no oitavo andar do recém-reformado
Lincoln Towers Hotel, mais conhecido como o lugar onde, há seis anos, um pretenso assassino tentou matar o vice-presidente.
Ele e Astrid reservaram um quarto no hotel mês passado e, aumentando o volume da televisão, testaram quanto do som era perceptível no corredor. Eles descobriram
que, mesmo o quarto não sendo tão à prova de som quanto aquele em seu porão, com a televisão ligada para abafar os gritos da mulher, tudo daria certo.
Como uma doce ironia, a mulher morreria em um quarto que o cadáver do centro de primatas estava pagando – a uma generosa quantia de 598 dólares por noite. E ninguém
descobriria isso até que fosse tarde demais.
Ele saiu da rodovia.
12h41.
O hotel não estava longe.
Que os jogos comecem.
26
Eu estava a menos de cinco minutos do escritório de Missy Schuel, e na ansiedade pelo nosso encontro, meus pensamentos giravam em torno de Tessa e seu pai.
Nós o conhecemos em Wyoming no fim do mês passado.
O ar nas montanhas estava tomado pela chuva naquele dia, e os picos ao redor a cabana dele foram engolidos por uma grossa neblina cinzenta.
Um céu fatigado com chuviscos.
Assim que saiu do carro, Tessa tirou uma mecha de cabelo da frente dos olhos. Por algum motivo, eu me lembrava disso. Um pequeno gesto.
Congelado no tempo. – Eu quero fazer isso sozinha.
– Isso não vai ser possível.
– Estou falando sério.
– Eu também. Tessa, eu não vou deixá-la sozinha com ele. Não até eu saber mais sobre ele.
– Ele é meu pai.
Apesar de saber que as palavras eram verdadeiras, elas atingiram uma parte do meu coração que eu não sabia que existia até a morte de Christie, quando Tessa se tornou
a pessoa mais importante da minha vida. – Sim, ele é – eu disse. – Mas se você for entrar lá, eu vou com você.
Uma pausa. – Tá bom.
Então, juntos, nos aproximamos da cabana. A névoa serpenteando ao nosso redor. A lama grossa sob nossos pés.
Eu não tinha certeza de como Paul reagiria ao se deparar com a gente aparecendo assim, sem avisar. Nós não ligamos para avisar que estávamos indo; afinal, ele não
possuía um telefone. Nem uma conta no banco. Ou histórico de crédito. No papel, esse homem não existia.
E essa foi uma das razões pela qual eu não ia deixar Tessa sozinha com ele. Ele deixara a sociedade para trás, e eu queria saber o porquê.
Quando ele atendeu à porta, decidi que mencionar que eu era um agente federal talvez não fosse o melhor jeito de começar com o pé direito. – Meu nome é Patrick Bowers
– eu disse. – Você é Paul Lansing?
Seus olhos passearam entre mim e Tessa. – Sou.
Eu estava prestes a explicar o propósito de nossa visita, mas antes que eu pudesse, Tessa mostrou o diário, abriu em uma página com um bilhete que um homem chamado
Paul havia escrito para sua mãe há dezessete anos pedindo a ela para não fazer um aborto. – Você escreveu isso?
Ele olhou para a página e sua expressão mudou de curiosidade para uma certa suspeita. – Quem são vocês?
– Meu nome é Tessa Bernice Ellis. Minha mãe era Christie Rose Ellis.
Há dezessete anos, você dormiu com ela e ela queria me abortar, mas você implorou a ela para que não o fizesse. Eu sou sua filha.
Esperei que Paul falasse, dissesse alguma coisa, qualquer coisa. Mas ele apenas estudou Tessa por um momento infinitamente longo, e, finalmente, sussurrou: – Então,
ela não fez... – nem Tessa nem eu nos movemos. – Eu sempre pensei...
Então, uma delicada lágrima se formou em seu olho e ele nos convidou para entrar.
Naquele momento, percebi que ele amara Tessa pelos últimos dezessete anos mesmo sem saber que ela estava viva.
Já no quarteirão do escritório de Missy, o toque do meu telefone me arrancou dos meus pensamentos sobre aquele dia cinzento em Wyoming. Atendi.
Ralph: – Onde você está, cara?
– Washington, DC.
– Ótimo. O deputado Fischer quer ver você.
– Do que você está falando?
– Ele pediu para falar com você. Acho que é sobre Mahan.
– Eu? Por quê?
– Não falou. Eu sei que não faz sentido, mas preciso que você...
– Escute, estou a caminho do escritório da advogada que Brin comentou. Fale para Margaret lidar com...
– Eu sei que você precisa fazer isso, mas essas coisas levam semanas.
Você tem tempo. Fischer tem uma coletiva de imprensa em menos de quinze minutos.
Entrei no estacionamento da loja de bebidas do outro lado da rua do escritório de Missy Schuel. – Ralph, isso não faz sentido. Tem muitas pessoas que podem falar
com Fischer. Mande Doehring.
– Você pode impedi-lo de...
– Que tal uma ligação? Por que eu não só ligo pra ele?
– Ele pediu para te ver – sua voz estava começando a ficar agitada. – Eu não preciso te dizer que agora não é hora de deixá-lo irritado com o Bureau.
– Espere – eu estava perdendo minha paciência também. – Estou falando com Ralph ou com Margaret?
Um momento de silêncio.
– O encontro com a advogada pode esperar – o tom de Ralph era frio. – Você tem dez minutos para estar no escritório do líder da minoria do congresso para que então
Fischer possa conversar com você antes de se encontrar com a imprensa, e não quero que você se atrase.
– Prepare-se para ficar decepcionado.
– Pat, a prioridade agora tem que ser...
– Minha filha – eu disse, e encerrei a ligação.
Então, coloquei o celular no modo silencioso, peguei minha bolsa com a carta dos advogados de Lansing e desci do carro.
Segui na direção do outro lado da rua, até o prédio de Missy.
Tessa estava lavando o rosto, mas seu rímel preto estava muito borrado e ela ainda estava com uma aparência terrível.
Como aquele homem pode ser mesmo seu pai? Não é possível!
Ela sentiu vontade de bater em alguma coisa, bater nele, e é claro, de se cortar novamente. Tentar se cortar para espantar a dor.
Seus olhos foram parar nas cicatrizes em seu braço.
Ela estava tentando seriamente deixar para trás aquele capítulo de sua vida, nem carregava mais uma navalha ou um estilete com ela. Mas ela podia arranjar uma. Ela
poderia comprar...
Não faça isso, Tessa. De novo, não.
Ela terminou o que fazia na pia, secou o rosto e saiu do banheiro.
Ela precisava conversar com Patrick.
Agora.
Contar tudo a ele, pedir desculpas.
Ah, ótimo. Muito bem.
O telefone. O Blackberry que Paul lhe dava com seu programa GPS do Google para que ele pudesse encontrá-la.
Ela o pegou e deixou nele uma mensagem nada ambígua sobre o que ele podia fazer com seu telefone de presente; então o jogou na lata do lixo ao lado da porta da frente
quando saiu do museu. Vá em frente, procure, encontre e leia.
Curta essa, pai.
Ela pegou seu próprio celular. Ligou para Patrick.
Nenhuma resposta.
Vamos, atenda, atenda.
Nada.
Droga.
Ela deixou uma mensagem, tentando não parecer que estava completamente prestes a se descontrolar, mas não foi fácil.
Volte para casa.
De volta para casa. Apenas saia daqui.
Na esquina da rua, ela viu uma placa indicando os locais das estações de metrô da cidade; encontrou a mais próxima que pudesse levá-la ao trem de volta para Virgínia
e partiu na direção dela.
A área da recepção de Missy Schuel era um espaço pequeno e amontoado de uma sala contendo uma escrivaninha com altas pilhas de papel, faturas e cadernetas cheias
de anotações ilegíveis. Nenhuma recepcionista. Uma TV velha ficava no canto da sala, com o som desligado, mostrando um palanque vazio com uma bandeira ao lado. O
texto na parte inferior da tela dizia que a conferência de imprensa do deputado Fischer começaria em instantes.
Eu havia lidado com crimes o suficiente na área de Washington, DC para reconhecer a sala do corpo de imprensa do lado de fora do escritório do líder da minoria do
congresso.
O lugar para onde Ralph me mandara ir.
Uma porta à minha esquerda tinha um post-it colado nela: “Estou aqui”.
Um post-it.
Maravilha.
Brineesha disse que ela é boa. Pelo menos dê uma chance a ela.
Bati.
– Entre, dr. Bowers.
Entrei.
27
12h48
Um escritório simples.
Manuais de direito lotavam as prateleiras, uma pequena janela na parede do lado leste fazia frente para outro prédio a menos de cinco metros de distância. Um laptop
estava no centro de sua mesa flanqueado por um pequeno relógio digital e uma foto de três crianças sorridentes: um menino e duas meninas, todos pareciam ter dez
anos de idade ou menos. Um escaninho arrumado, quase vazio.
Missy Schuel não era nem robusta, nem esbelta, nem bonita e nem desinteressante. Cerca de quarenta e poucos anos, cabelo preto com um leve toque grisalho. Ela me
lembrou mais uma diretora de escola fundamental do que em uma advogada de divórcios durona.
Ela se levantou e apertou minha mão. – Dr. Bowers, é um prazer conhecê-lo.
– Pode me chamar de Pat.
– Missy.
Antes de perguntar sobre minha situação com Lansing, ela começou uma explicação de sua própria história: ela era uma mãe de três crianças que recentemente voltara
a trabalhar após seu marido deixá-la no verão passado; ele era um bom homem, ela disse, e não havia sido por causa de outra mulher e ela não ficou ressentida com
ele.
Mais uma vez, uma proximidade estranha.
E apesar de eu achar difícil de acreditar, ela realmente não parecia amarga em relação a seu ex-marido, apenas magoada com ele. Tive a sensação de que ela estava
arrasada pelo fato de o homem para quem ela havia dado sua vida ter decidido que preferia ficar sozinho a ficar com ela. Um choque que, e eu só podia imaginar, deveria
custar uma vida inteira para uma pessoa se recuperar.
Ainda assim, por mais simpático que eu fosse em relação à sua situação, eu só queria começar a resolver a minha, e acho que ela podia ver isso. – Eu só divido isso
com você – ela explicou – para que saiba que sou uma mãe solteira também e que entendo os tipos de conflitos e problemas com os quais vocês lidam. Cada caso é pessoal
para mim.
– Fico feliz em saber.
Imediatamente discutimos o quanto ela cobrava e, em contraste com a vizinhança de seu escritório, não era barato, mas aceitei seus termos. Então ela me disse que
só poderia conversar até as 13h20, vinte minutos a menos do que eu havia pensado, e ambos nos sentamos. Ela posicionou uma caderneta à sua frente. – Não vou mentir
para você, agente Bowers. Essas coisas, esses casos de custódia, eles podem ser... – ela parecia estar procurando a palavra certa.
– Delicados – eu disse.
Um aceno de cabeça. – Sim. E dolorosos. E confusos. Especialmente para as crianças.
Senti uma mistura de ansiedade, talvez até culpa, embora eu não conseguisse pensar em nada que eu tivesse feito para me sentir culpado. – Estou ciente disso.
Ela ergueu um lápis incrivelmente apontado, segurou-o, a ponta contra a primeira linha da caderneta. – Certo. Pela mensagem de voz que você me deixou hoje de manhã,
entendo que o pai biológico de sua enteada está tentando tomar a guarda dela.
– Sim.
Entreguei-lhe a carta dos advogados de Paul Lansing.
Ela a analisou. Colocou-a de lado.
– Me conte a história toda. Quando você conheceu Tessa?
Meu celular vibrou no meu bolso e eu o ignorei.
– Cerca de três meses antes de me casar com a mãe dela.
– Três meses.
– Sim. Christie e eu fomos noivos por um tempo curto – disse a ela as datas.
Ela escreveu.
O telefone continuou a vibrar e eu continuei a ignorá-lo.
Meu novo hábito.
Eu meio que gostava disso.
Ela olhou na direção do meu bolso. Deve ter percebido o barulho do telefone vibrando. – E seu casamento durou quanto tempo?
– Christie morreu quatro meses após nos casarmos.
Missy fez uma pausa. – Eu sinto muito – a simpatia em sua voz parecia honesta e sincera, e eu comecei a confiar meu caso a Missy Schuel.
– Obrigado.
Meu telefone parou.
– Continue – eu disse.
– Posso perguntar... se você só conhecia Tessa por um período curto de tempo quando a mãe dela faleceu, por que você não entrou em contato com outro parente para
que eles cuidassem de Tessa após a morte de Christie?
– Os pais de Christie morreram quando Tessa era muito nova. Christie não tinha irmãos. E eu não tinha como descobrir quem era ou onde estava seu pai biológico.
– Então não havia parentes próximos?
– Não que eu soubesse. Antes de morrer, Christie me pediu para cuidar de Tessa – eu estava recebendo outra ligação, mas eu não queria que nada me distraísse, então
tirei um momento para desabilitar a função de vibração no meu telefone.
– Então você tem a custódia? A guarda legal?
– Sim.
– Bom.
Um raio de otimismo. As coisas ficariam bem, afinal.
Mas não foi isso que o rosto de Missy me disse quando ela me pediu mais informações. Contei a história de como, após a morte de Christie, eu mudei com Tessa de Nova
York para Denver na esperança de colocar alguma distância entre nós e nossa tristeza. No começo, penamos para nos darmos bem, mas como meus horários de trabalho
requeriam sete ou oito dias de viagem por mês, na maioria das vezes durante os fins de semana, ambos conseguíamos ter espaço suficiente para ficarmos tranquilos.
– E onde ela fica durante esse tempo? Quando você viaja.
– Com meus pais.
Mencionei as épocas difíceis de Tessa com a autoflagelação e então concluí contando a Missy sobre o fim de semana em outubro passado quando nosso relacionamento
começou a melhorar. A dor nos uniu.
– Ela foi sequestrada por um assassino em série. Ele a cortou e a largou para morrer.
– Isso é horrível.
– Sim, mas cheguei até ela a tempo. Depois disso, eu não sei... talvez ambos percebemos o quanto nós sempre nos amamos, o quanto precisamos um do outro, mas nunca
havíamos entendido como demonstrar isso.
– Ela tem cicatrizes?
– Perdão?
– Você disse que ele a cortou. Ela tem cicatrizes?
A pergunta parecia um pouco invasiva. – Sim. Ela tem uma cicatriz no braço esquerdo. Tem uma tatuagem a cobrindo, mas ainda é visível.
Missy fez algumas anotações em sua caderneta. Eu não gostava que ela escrevesse em um tipo de letra de mão que era impossível de ler de cabeça para baixo. – E Paul
Lansing – ela disse –, o que sabemos sobre o relacionamento dele com Christie?
– Nas poucas vezes que perguntei a ela sobre quem era o pai de Tessa, ela apenas me disse que ele não fazia mais parte da vida delas.
Missy estava com a cabeça baixa, olhando para o papel, mas agora ergueu os olhos, me deu uma olhada lenta e medida. Senti que não acreditou em mim.
– Não forcei o assunto com ela. Todos temos coisas que são muito dolorosas ou embaraçosas para compartilhar. Coisas que precisamos deixar para trás.
– Certo.
– Tessa só encontrou o diário com o nome de Paul recentemente, algumas semanas atrás.
Ela inclinou a cabeça. – Diário?
– Sim, de Christie. De quando ela estava na faculdade. De acordo com o que escreveu, ela teve um relacionamento rápido com Paul, e isso foi tudo.
– E ele escolheu afirmar seus direitos como pai de Tessa na época?
Hesitei.
Missy me observava. Lendo meu rosto, meu silêncio.
– Conte-me.
– Quando Christie descobriu que estava grávida, ela decidiu fazer um aborto. Ele escreveu para ela, Paul escreveu, implorando que ela não fizesse isso. Ela guardou
essa carta no diário. Após ela ter decidido ganhar Tessa, não há mais menção nenhuma sobre ele no diário. Mas não foi a carta que a persuadiu. Foi...
Missy soltou seu lápis.
– Vou precisar ver essa carta. O diário também.
Apesar de ser só um desejo, eu esperava conseguir manter esses dois itens fora disso. De jeito nenhum a carta de Paul ou o diário ajudariam nosso caso. – Tudo bem.
– E após o falecimento de Christie, você não correu atrás para adotar Tessa legalmente?
– Eu tinha a custódia. Nunca passou pela minha cabeça adotá-la – quanto mais conversávamos, mais me faltava o chão, como se tudo que eu tivesse pensado ser sólido
na minha vida estivesse afundando, mudando.
Um pequeno fôlego.
– Conte-me um pouco mais sobre sua enteada.
Brad estava estacionado na vaga para deficientes ao lado do Lincoln Towers Hotel.
Ele se arrastou para a parte de trás da van, segurou firmemente o braço da mulher e injetou a agulha em sua veia. Pressionou o êmbolo.
A droga que ele estava usando faria efeito rápido. Não demoraria até que ela ficasse inconsciente.
Ele removeu a agulha, recostou-se e observou sua respiração ficando cada vez mais lenta.
Enquanto suas pálpebras caíam.
Enquanto seu corpo ficava mole.
Ela estava caída desamparada ao lado dele.
Ele tirou o telefone do bolso e gravou alguns vídeos. Não era oficialmente parte do plano. Esse vídeo era só por diversão. Para seu uso pessoal.
Então ele pegou o computador da mulher para invadir o sistema de segurança do hotel e colocar em repetição as imagens do vídeo da câmera de segurança que ficava
no beco, na parte de trás do hotel.
28
13h15
Missy Schuel colocou o lápis sobre a mesa.
– Você mencionou que nos primeiros oito meses após a morte de Christie, que vocês dois, você e Tessa, brigavam bastante.
– Sim. As coisas eram um pouco complicadas entre a gente no começo, mas, como eu disse, nós não nos conhecíamos bem, nós dois estávamos magoados – nosso tempo estava
quase acabando, e eu não achava que havíamos feito muito progresso. Ainda tinha muito a ser dito.
– Certo – Missy deixou escapar um suspiro cuidadoso. – Isso é o que eu diria se eu fosse advogada de Paul Lansing: após a morte trágica da mãe dela, você tirou a
garota de onde ela nasceu, se mudou para o outro lado do país, e lá, em Denver, exerceu um emprego que o fazia estar fora todos os fins de semana, forçando ela a
ficar com seus pais, a quem ela mal conhecia. Você a colocou em perigo permitindo-a ter uma vida que nenhuma adolescente sofrendo com a perda da mãe deveria experimentar.
Na verdade, como resultado direto de uma de suas investigações, ela foi sequestrada, sofreu constrangimento psicológico inimaginável e quase foi morta.
Quando Missy colocou as coisas daquele modo, eu não podia imaginar nenhum juiz ficando do meu lado. – Ela estava em um esconderijo do FBI quando foi pega – as palavras
pareciam débeis. Sem mérito. – Eu fiz tudo que pude para garantir que ela estivesse segura.
– Temo que isso não tenha importância. O fato de esse assassino ter conseguido encontrá-la e atacá-la, isso é tudo que o juiz vai ouvir, especialmente se ele vir
aquela cicatriz, e você pode ter certeza de que os advogados de Lansing farão com que isso aconteça.
Reposicionei-me no meu assento. – Então, para onde vamos agora?
Em vez de responder minha pergunta, ela fez uma por conta dela: – Nós temos certeza de que Paul Lansing é o pai biológico de Tessa?
– Fizemos um exame de DNA. Está confirmado. Ele é pai dela.
Ela deslizou a caderneta para o lado.
– Vou ser honesta com você: esse diário, essa carta, eles me perturbam.
– Não foi a carta que convenceu Christie a ter o bebê.
– Eu entendo, mas os advogados dele vão argumentar que foi, e nós não podemos provar que essas palavras não a influenciaram, pelo menos de algum modo – disse após
uma pausa. – Podemos?
– Não – eu odiava ter que admitir. – Não podemos.
Ao longo dos anos dos anos, eu trabalhei o suficiente com o sistema judicial para saber onde isso tudo ia chegar. – Ele tem um caso ganho – não disse isso como uma
pergunta.
– Um caso fácil – ela corrigiu, mas então hesitou por um longo tempo antes de continuar, e eu tinha a sensação de que ela estava tentando encontrar um jeito de conferir
um toque positivo às coisas. – Tessa prefere ficar com você a ficar com Paul, correto?
Sua pergunta foi ácida, não por causa do seu tom, mas porque eu não tinha certeza sobre a resposta. – Isso importa?
– Para uma menina da idade dela, sim, importa.
– Acho que sim.
Um aceno de cabeça. – E você é o responsável legal por ela. Você foi o único cuidador e provedor dela por mais de um ano. Isso conta muito. Conta mesmo.
Ela fez uma pausa.
Havia mais.
– Mas?
– Mas Lansing aparentemente desejava estar envolvido na criação dela, e a mãe dela negou isso a ele. Se realmente ele é pai biológico dela e tomou atitudes legais
durante a gravidez de Christie para estabelecer seus direitos paternos, ele pode... bom, ele pode ganhar alguma simpatia do juiz. Mas me escute, eu sou boa no que
faço e prometo fazer o meu melhor para ajudar você a manter a custódia única de sua filha.
– Enteada.
– Não, sua filha – ela disse simplesmente, deixando-me interpretar aquilo como eu quisesse.
Ela olhou para o relógio sobre a mesa; meus olhos seguiram os dela.
13h18.
– Preciso ir – ela disse. – Nos falamos em breve.
Nós dois nos levantamos. – Consiga para mim esse diário e a carta. Hoje – ela rabiscou um endereço na parte de trás de um cartão de visita. – Se você não conseguir
trazê-lo aqui antes das 18h, deixe-o em minha casa – ela me entregou o cartão. – E vou entrar em contato com os advogados de Paul Lansing. Quero me encontrar com
eles o quanto antes.
Eu hesitei. – Por que o quanto antes?
– As pessoas só se escondem quando estão com medo ou quando têm algo a esconder. Não queremos que pareça que estamos enrolando ou arrastando os pés. Se formos adiante
rapidamente e com confiança, isso vai mostrar a verdade ao juiz: que temos um caso sólido e nada a temer.
Gostei do jeito como ela pensava. – Vou consegui-los para você.
– Uma última coisa. Paul Lansing sabe que você tem a carta dele e o diário de Christie?
Deixei escapar um pequeno suspiro. – Nós mostramos para ele quando nos encontramos em Wyoming, na primeira vez que o vimos.
Ela manteve o rosto sem expressão. Apontou para seu cartão. – Ligue no meu celular se você pensar em mais alguma coisa que possa ser útil. Qualquer coisa mesmo.
Sem segredos. Lembre-se...
– Você não gosta de surpresas.
– Vejo você em breve.
Ao sair do escritório, olhei para a tela da televisão no canto da área da recepção sem recepcionista. O deputado estava saindo do palanque.
Aumentei o volume bem a tempo de ouvir a correspondente dizer: – Bob, para reiterar, o deputado Fischer acabou de anunciar que Rusty Mahan, o suspeito primário do
caso, foi encontrado morto, aparentemente por suicídio. Ainda não sabemos mais detalhes, mas faremos a cobertura do caso de perto para acompanhar o desenrolar dos
fatos.
Ótimo.
Enquanto a repórter continuou resumindo a coletiva de imprensa de Fischer, uma foto sorridente de sua filha pairava no canto superior esquerdo da tela e eu percebi
que, tirando a olhada rápida no celular de Cheyenne antes de sair da Academia para ir até a cena do crime, eu ainda não tinha visto o rosto de Mollie.
Eu a observava atentamente, agora. Ela tinha um fino contorno na parte inferior do rosto, olhos verdes, uma covinha atraente. Peguei-me sobrepondo suas características
sobre os restos destruídos e horríveis que eu tinha visto na noite anterior, e rapidamente espantei a imagem da cabeça... compleição leve, um par de brincos em cada
orelha, um nariz pequeno e delicado...
Um calafrio me atravessou.
Não pode ser!
Peguei meu telefone e liguei para Ralph. Ele atendeu imediatamente, com a voz ríspida: – Pat, você está muito...
– Escute – eu disse. – Mollie Fischer usava lentes de contato?
– O quê?
A foto desapareceu da tela da televisão.
– Lentes de contato. Ela usava lentes de contato?
– O que você...
– Verifique, Ralph. Os arquivos do caso!
Uma longa pausa acompanhada pelo clique de teclas.
– Não – ele disse. – Nem óculos. O que está havendo? – o calor da raiva que eu tinha sentido em sua voz momentos atrás tinha desaparecido. Senti que estávamos em
sintonia novamente.
– Não é ela.
– O quê?
– A mulher que encontramos no instituto de primatas não é Mollie Fischer. A mulher morta tinha apenas um furo em cada orelha, Mollie tem dois; e a íris encontrada
na cena do crime era azul. Em sua foto na imprensa, os olhos de Mollie são verdes, e como ela não usava lentes de contato...
– Mas ela foi identificada positivamente pelo próprio pai – ele murmurou, e não dava para dizer se ele estava discordando de mim ou simplesmente pensando alto.
– O rosto dela estava desfigurado – eu estava correndo pela porta.
É claro que ela foi identificada positivamente, todo o resto apontava para ela. Os assassinos a vestiram com as roupas de Mollie, deixaram com ela a carteira de
motorista de Mollie, bolsa, anel, colar, telefone. A profundidade da fraude pela qual fomos enganados era desconcertante.
Mollie Fischer ainda podia estar viva.
Cheguei correndo à calçada.
Mollie estava desaparecida há quase vinte e uma horas, e a cada minuto nossas chances de encontrá-la diminuíam; Ralph sabia disso tudo, eu não precisava dizer a
ele. – Ligue para o deputado – eu disse. – Diga a ele para anunciar isso agora, nessa coletiva de imprensa. Se Mollie estiver viva...
– Sim, eu sei. O público pode ajudar. Vá para o Capitólio, Pat. Se ele não quiser me ouvir, você pode falar com ele pessoalmente.
– Estou perto. Chego lá em menos de cinco minutos.
– Vou tentar conseguir a identificação da mulher morta – ele disse.
Fim da ligação.
Disparei para o meu carro.
Brad fechou o computador. Pronto.
A mulher estava inconsciente; apenas seu peito estava se movendo, subindo e descendo. Continuamente. A cada respiração suave.
Por um momento, Brad sentiu uma emoção, a mesma excitação que sentia quando estava sozinho com Astrid depois de cada jogo. Ele hesitou por um momento, então beijou
a mulher na bochecha, mas isso foi tudo. Ele não a tocou, não de um jeito íntimo. Afinal, ele era um cavalheiro e nunca levaria vantagem em cima de uma dama inconsciente.
Não, ele não a tocaria, não assim. Não fazia parte do plano. Em vez disso, ele a abraçou gentilmente por um momento, então a reposicionou na cadeira de rodas e a
desceu da van com o elevador para deficientes.
Então ele a empurrou por uma entrada lateral para dentro do hotel.
Irrompi pela porta da sala do corpo de imprensa do lado de fora do escritório do líder da minoria do congresso.
A coletiva de imprensa tinha terminado, mas a sala ainda estava cheia de repórteres esperando encontrar membros do congresso para comentários e, quando entrei, todas
as cabeças viraram-se na minha direção.
Por que fingir a morte de Mollie?
Por que na noite passada?
Por que lá?
E quem é a mulher que encontramos no centro de primatas?
Eu já havia mostrado minha credencial em três pontos de segurança anteriores e agora fiz o mesmo para o policial do Capitólio ao lado da porta. – Onde está o deputado
Fischer?
Com um olhar ligeiramente curioso, ele apontou para o escritório do líder da minoria do congresso.
Entrei.
Quatro pessoas na sala, três homens e uma mulher. O deputado foi o único que reconheci: entre cinquenta e sessenta anos, levemente acima do peso, mas ele lidava
bem com isso. Óculos com armação de arame, um terno muito bem costurado, cabelo castanho assiduamente penteado.
Todos olharam para mim, obviamente não acostumados a serem interrompidos assim.
– Sou Patrick Bowers – eu disse – do FBI.
– Você é Bowers? – o deputado Fischer disse.
– Sim.
– Foi você que percebeu? Que a mulher morta não é Mollie?
– Há apenas alguns minutos, senhor. Sim. E preciso dizer a você...
– Nos deem um minuto – ele me interrompeu, então olhou para as pessoas na sala que, obedientemente e sem dar uma palavra, pegaram suas coisas e saíram porta afora.
Fischer atravessou a sala e fechou a porta atrás dele.
– Deputado Fischer, eu...
– Minha filha ainda está viva?
– Infelizmente, a essa altura, não temos como saber. Vim aqui para...
– E quem é a garota que foi morta? A que foi encontrada.
– Não creio que ela já tenha sido identificada. Escute, temos uma ótima oportunidade aqui. A imprensa já está do lado de fora daquela porta. Tudo que você tem a
fazer é voltar lá e contar a verdade para eles.
– Eu acabei de passar por idiota – ele estava sacudindo a cabeça.
– Desculpe?
Ele apontou para a porta. – Lá fora. Agora. Eu disse a eles que Mollie estava morta e que o assassino cometeu suicídio na noite passada.
– Podemos consertar isso se você...
– Dr. Bowers, você não entende? Fui eu que identifiquei o corpo. Eles vão dizer que eu não conheço nem minha própria filha.
Eu mal podia acreditar que estava ouvindo aquilo.
Talvez ele estivesse em choque.
– Com o devido respeito, deputado, existe uma chance muito real de sua filha ainda estar viva; você precisa parar de se preocupar com o que as pessoas podem pensar
de você e começar a se concentrar no melhor jeito de ajudá-la.
Ele ficou quieto. – Não vamos nos apressar aqui.
– O quê? Você tem alguma ideia do que...
– Acabei de conversar com seus superiores no Bureau, logo antes de você entrar. Eles me disseram que você apareceria.
Isso era coisa da Margaret.
Ou de Rodale.
Mas por que qualquer um deles...
– E – Fischer continuou – eles me garantiram que esperar uma hora mais estratégica para fazer esse pronunciamento vai nos dar uma vantagem para encontrar Mollie
o mais rápido possível.
– Uma hora mais estratégica? Com quem você falou?
Ele ignorou as perguntas. – Além do mais, nós nem sabemos com certeza se Mollie foi seques-trada. Ela pode só ter fugido com alguns amigos.
Isso era ridículo.
– Escute. As pessoas que mataram a mulher no instituto de primatas encontraram alguém que tinha a mesma altura e o peso de Mollie. Eles a vestiram com as roupas
da sua filha, colocaram o colar de Mollie nela e então a mataram de uma das maneiras mais perturbadoras que já vi. Sua filha não fugiu. Rusty Mahan não se matou,
isso é um plano elaborado...
– Para fazer o quê?
– Não sei.
– Por que minha filha?
– Eu também não sei, mas...
– Bem, o que você sabe, agente Bowers? – sua voz ficou estranhamente diplomática, cultivada por anos de cuidadosa postura política, e considerando as circunstâncias,
seu desprendimento emocional era incompreensível para mim. – Você tem certeza de que revelar essa informação vai ser o melhor para a minha filha?
– Eis o que eu sei: se sua filha ainda estiver viva, ela está em grave perigo, e quanto mais cedo conseguirmos que o público comece a procurar por ela e a ligar
com pistas, maior é a chance que temos de...
– Você é o quê, agente Bowers? Um doutor? Um criminologista?
Está certo?
Senti uma onda de raiva. – Eu sou o cara que encontra e prende assassinos como esse. Eu faço isso melhor do que qualquer um. E manipular os fatos e enganar o público
em vez de permitir que ele colabore não é o jeito de se fazer isso.
O Bureau só libera declarações cuidadosamente preparadas para a imprensa, claro que eu sabia disso, mas a esse ponto eu não ligava. Apesar de ser possível que Mollie
já estivesse morta, ela poderia estar viva, e o tempo era essencial. – Se você não for lá dar fazer essa declaração – eu disse –, eu irei.
Ele me olhou. – Eu sei que você está envolvido em uma briga pela guarda de sua enteada.
– O que você acabou de dizer?
– Tenho certeza de que você odiaria perder seu emprego no Bureau por ter feito algo por impulso. Estar desempregado pode comprometer suas chances de mantê-la.
Dei um passo em sua direção. – Você está me ameaçando?
Como ele sabe sobre o caso da custódia?
– Não. Apenas oferecendo um conselho. De pai para pai.
– Se você fosse um pai de verdade, faria o que fosse preciso para proteger sua filha. Deputado.
Faça, Pat.
Vá.
Saí de seu escritório; ele me chamou mas eu o ignorei.
Na sala do corpo de imprensa, me aproximei do palanque, fui até o microfone e após ter a atenção de todos, eu disse: – Sou o agente especial Bowers, do FBI, e tenho
uma declaração a fazer.
E, então, contei para todo mundo que Mollie Fischer não era a mulher que havíamos encontrado no Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson.
29
Fui seco, rápido, direto ao ponto.
A coletiva de imprensa acabou em minutos e as consequências foram rápidas e certeiras.
Um grupo de repórteres correu na minha direção para comentários adicionais, mas abri caminho através deles até a área restrita. Só então eles correram para escrever
seus artigos, reportar suas informações, filmar suas reportagens ao vivo.
Olhei para meu telefone.
Quatro ligações perdidas.
Duas desde o início da minha coletiva de imprensa improvisada.
Que beleza.
Uma de Margaret, uma do diretor Rodale do FBI. Além disso, Tessa tinha me ligado duas vezes enquanto meu toque estava no silencioso durante minha conversa com Missy
Schuel.
Ela me deixou duas mensagens de voz.
“Patrick, hum, eu sei que você tem aula ou coisa do tipo, mas eu...
Bem, eu estava pensando se a gente poderia conversar, talvez. Se você tiver um intervalo ou algo assim. Estou indo para casa... Então, de qualquer maneira, ligue-me
quando tiver uma chance.”
E a segunda: “Só vendo se você ainda estava na sua reunião. Só isso.
Tudo bem, falo com você mais tarde”.
Nas entrelinhas, ouvi uma urgência que me deixou preocupado. Tentei ligar para o número dela, mas estava sem sinal e me dei conta que se ela estava a caminho de
casa, devia estar em um metrô, onde o celular não funcionaria.
Tente novamente daqui a pouco. Por enquanto, saia daqui. Vá para o posto de comando no quartel-general da polícia.
Habilitei o toque, guardei o telefone no bolso e estava indo para os túneis que levavam ao estacionamento subterrâneo onde havia deixado meu carro quando encontrei
o tenente Doehring passando pelo corredor, procurando por mim.
Ele correu em minha direção. – Isso foi corajoso.
– Obrigado.
– Foi a coisa certa também. Apesar do que a Wellington vai dizer.
Lembrei-me das palavras do deputado: “Você tem certeza de que reve
lar dessa informação vai ser o melhor para a minha filha?”
– Sim, bem, veremos.
– Eu não devia ter suposto que Mahan estava envolvido – sua voz estava afiada, com uma raiva que ele dirigia a si mesmo. – Eu queimei a largada.
– Nada disso importa. Só precisamos...
– Encontrar esses psicopatas.
– Sim. Vamos para o posto de comando.
Ele apontou para porta de saída. – Meu carro está por aqui.
– Ele está próximo?
– Logo ali fora – eu podia me preocupar com meu carro depois. Fomos na direção que ele apontou. – Me informe – eu disse. – O que nós sabemos?
– Meus policiais acabaram de interrogar os funcionários do centro de primatas – ele soava exasperado. – Tratadores, pesquisadores, guardiães, administradores, estagiários,
todos que não estejam de férias.
– E?
– Nada sólido. Não consigo ver nenhuma ligação entre eles e o crime.
Confiei que ele tivesse feito tudo. – E a perícia?
– Os chimpanzés conseguiram destruir ou contaminar praticamente todas as evidências que poderíamos ter conseguido no habitat. Também, não havia nenhuma impressão
digital incriminatória nas tiras de couro e no conteúdo da bolsa de Mollie. Está tudo limpo. Nada ainda sobre a corda usada para enforcar Mahan.
É claro.
Chegamos à porta e saímos do prédio.
– Tem que haver algo. Sabemos onde o sequestro de Mahan aconteceu? Onde o carro dele pode ter ficado estacionado antes de aparecer no estacionamento?
Então chegamos à viatura de Doehring. Ambos entramos.
– Não tenho certeza – ele disse.
Eu não precisei lhe dizer para fazer uma ligação e descobrir. Ele estava com o rádio em uma mão e tentando dar a partida no carro com a outra.
Lembrei-me da minha discussão em aula, mais cedo naquele dia, sobre planejar o assassinato perfeito. Até agora, esses assassinos estavam fazendo tudo direitinho.
Exceto por uma coisa: se nossa hipótese sobre haver múltiplos infratores estivesse correta, isso significava que havia pelo menos um cúmplice. E isso significava
que havia uma ponta solta.
As ruas de Washington, DC estavam cheias, mas nos lançamos no trânsito e fomos na direção do quartel-general da polícia metropolitana.
14h12
Astrid finalmente chegou ao hotel. Usava uma peruca e óculos escuros – um pequeno disfarce. Ela estava um pouco apressada e um pouco frustrada: a força-tarefa descobriu
muito mais rápido do que ela esperava.
Mas isso não mudaria as coisas. Todo o resto ainda estava funcionando.
Ela olhou dentro da van e viu que Brad tinha esquecido a bolsa esportiva e o laptop da mulher. Ela suspirou, pegou-os e então entrou no hotel pela porta do beco
onde Brad se certificou de ter colocado a imagem da câmera em repetição. Pelo menos ele se lembrou de deixar a porta encostada para ela.
Ela foi até a escada.
Por causa do progresso do FBI, ele adiantariam os horários.
Mollie morreria às 14h45 em vez de 15h. Só para garantir.
– O laboratório removeu o reflexo do vídeo de ontem à noite? – perguntei para Doehring. – Das imagens do Volvo.
– A maioria, mas pelo que fiquei sabendo, não foi suficiente para identificarmos o motorista.
Vamos, Pat. O que você está esquecendo aqui? O que está passando batido?
O motorista do Volvo desacelerou quando se aproximou do semáforo...
Ele trocou a placa para que você percebesse... Para que você percebesse...
Liguei para Ralph. – Alguma identificação sobre a mulher?
– Não. Temos uma lista de possibilidades; a polícia metropolitana está cuidando disso.
– Os agentes encontraram alguma filmagem de alguma pessoa não identificada saindo do instituto ontem à noite?
– Eles vão terminar isso em cerca de dez minutos.
– Eles deviam ter terminado há uma hora! – estourei.
– Ele vieram com uma bobagem de que tinha muitas pessoas lá – seu tom era mais duro que o meu havia sido. – Muitos rostos parciais, que tinham que analisar comprimento
de passo, postura, altura, peso, essas coisas.
– Só diga a eles para se apressarem.
– Oh, acredite em mim, eles sabem.
Fim da ligação.
Doehring ligou o giroflex e as sirenes. Lentamente, os carros começaram a se afastar para os lados o máximo que podiam para nos deixar passar, mas com o congestionamento
nas duas pistas, não fazia muita diferença.
Considerei os locais que conhecíamos até agora... a loja de eletrônicos... o instituto de pesquisa de primatas... a estação de metrô onde Mollie fora vista ontem
à tarde... a ponte da Connecticut Avenue onde Rusty fora encontrado...
Os assassinos se aproximaram do centro de primatas pelo sul, menos de noventa minutos após Mollie ter sido vista pela última vez.
Oh.
Óbvio!
Eu mal podia acreditar que não tinha percebido.
Digitei no meu telefone e abri os vídeos do carro de Mahan se aproximando do instituto.
Doehring olhou para mim. – No que você está pensando?
– O Volvo teria passado por mais de um semáforo.
Astrid abriu a porta do quarto do hotel e viu Mollie Fischer sentada na cama, tremendo de medo, as mãos amarradas nas costas, as pernas presas juntas. O sangue escorria
do lado esquerdo de sua testa por algo que Brad deve ter feito com ela. Agora, ele limpava o sangue, mesmo que em alguns minutos nada disso importasse.
Os dois olharam para ela. Ela entrou no quarto, fechou a porta atrás de si e passou a tranca.
E a voz dentro dela, aquela que Astrid percebeu que estava começando a soar mais e mais como seu pai, narrou:
A maioria das pessoas não grita quando morre; elas passam pela porta com um leve suspiro ou uma respiração suave, ou um último gemido fraco.
Alguém pode pensar que o ato culminante da vida seria mais dramático, mais emocionante, mas aquele momento final não chega nem perto de ser tão fascinante como nos
filmes. Com muita frequência, é lamentavelmente desapontador. “Passagem” é, na verdade, uma boa frase para descrevê-lo. Deslizamos para o mar eterno, e as ondulações
de nossas vidas rapidamente enfraquecem, se acomodam e desaparecem.
E em breve, muito em breve, somos esquecidos.
Astrid olhou para a mulher e pensou em morte – aquelas que testemunhou, aquelas que ajudou a planejar –, pensou na dor e na insignificância da vida que a precede.
Às vezes a morte começa anos antes da passagem.
Assim como papai.
Brad terminou de limpar a testa da mulher e ligou a televisão. Passou pelos canais até encontrar uma perseguição de carro que parecia barulhenta o suficiente para
ocultar quaisquer sons que Mollie pudesse emitir quando eles removessem a mordaça.
Astrid não gostava da ideia de Brad provocar danos físicos desnecessários, mas a complacência de Mollie era importante, então ela ameaçou: – Em instantes nós vamos
remover essa mordaça. E se você fizer qualquer barulho, meu amigo vai te bater até você ficar inconsciente, e então fará coisas com você que eu posso garantir que
você não vai gostar. Você entende o que estou dizendo?
Um pequeno aceno aterrorizado.
Poder.
Poder sobre a esperança.
Astrid gesticulou para Brad soltar a mordaça.
Não!
Eu estava com esperanças de refazer o caminho do Volvo desde o fim até o começo, mas não consegui nada. Admito que estava voando pelas imagens rápido demais para
ter certeza absoluta, mas não fui capaz de localizar o Volvo em nenhum outro semáforo, e havia diversas rotas que ele podia ter usado para evitar as câmeras de trânsito
da cidade se ele soubesse onde elas ficavam.
Se a gente soubesse a identidade da desconhecida do centro de pesquisa...
Horário, horário, horário.
Estávamos quase na central da polícia, mas eu não queria esperar. Usando o rádio da viatura de Doehring, chamei o posto de comando, identifiquei-me e falei com um
dos policiais. – A lista de pessoas desaparecidas que vocês estavam analisando. Vocês checaram suas ligações telefônicas recentes, uso de cartão de créditos, e-mails?
– Claro, senhor.
– Mande-os para mim.
Astrid estudou atuação quando estava na faculdade e agora estava aproveitando seu papel.
Ela abriu o laptop de Mollie, acessou a conexão sem fio do hotel e então posicionou a tela de modo que Mollie pudesse vê-la. – Vou te dar um presente que só foi
oferecido a pouquíssimas pessoas.
– Você vai me deixar ir embora? – a voz de Mollie estava trêmula. Ela era um rato olhando nos olhos de uma cobra.
Predador.
Presa.
– A última coisa que você vai ver.
A dúvida cruzou o rosto de Mollie, e Astrid lhe disse: – O que você quer que seja? Vou pegar qualquer imagem no mundo, qualquer uma que você quiser.
Sim.
Controle.
– Não – a voz de Mollie estava trêmula. – Por favor.
Presa.
Astrid olhou para ela por um momento, então deixou seu olhar deslizar na direção de Brad.
Ele falou suavemente, com uma voz tranquilizante. – Mollie, eu preciso te contar uma coisa – ele gesticulou na direção de Astrid. – Minha amiga é uma mulher persistente.
Mais cedo ou mais tarde, ela vai fazer você escolher, mas será menos problemático para todo mundo se você escolher algo agora. O que você quiser. Qualquer imagem,
qualquer vídeo. Apenas escolha algo.
A atuação dele era quase tão boa quanto a dela. Mollie engoliu seco. – Eu não sei.
Brad tomou o teclado e entrou em um site de busca da internet. – Pense em algo que te acalme. Pode ajudar. Uma praia, talvez? Ou um prado nas montanhas, um pôr do
sol? Diga algo para ela.
– Por favor – ela balançou a cabeça. – Pare.
Brad disse: – Não importa o que for.
Predador. Presa.
Controle sobre a esperança.
– Seu tempo acabou – Astrid disse.
– Não, não, não – Mollie gritou. – Rusty. Tá bom, Rusty, por favor.
E quando a mulher pediu para ver o rosto do jovem que ela amava, o homem que já era um cadáver, Astrid sentiu uma doce excitação, o mesmo frisson de prazer sombrio
que ela havia sentido mês passado quando o atendente da emergência ficou perguntando para o cadáver de Jeanne Styles se ela estava bem.
“Você está ferida?”
Não, ferida é uma coisa totalmente diferente.
Rusty estivera na van com ela, amarrado, amordaçado, vendado, na noite passada. Mas Mollie nem chegou a saber.
Presa.
– Certo – Astrid gesticulou na direção do computador da mulher. – Você tem uma foto dele? – o horário estava apertado, mas ela não estava a fim de pular essa parte
do jogo.
Um aceno de cabeça.
– Onde?
– Em “minhas fotos” – Mollie soava assustava, desesperada quando acenou com a cabeça na direção do computador. – No iPhoto.
Astrid gesticulou para Brad e ele abriu o diretório do computador para encontrar os arquivos.
Twana Summie.
Ela era uma universitária do norte da Virgínia que frequentava a Gallaudet e não era vista desde terça-feira de manhã; seu cartão de crédito havia sido usado para
reservar duas noites – a noite passada e a de hoje – no Lincoln Towers Hotel.
Então: uma universitária reservando duas noites em um hotel que cobra uma diária de seiscentos dólares por um quarto? Em um hotel tão perto de sua faculdade?
– Volte – eu disse para Doehring. – Vamos para o Lincoln Towers Hotel – ficava no centro. Perto.
– Você descobriu algo?
– Talvez – quando lhe contei o que havia descobrira, ele deu meia--volta com o carro e eu puxei os registros de Twana no departamento de trânsito para ver o quanto
ela compartilhava de características físicas com Mollie para ser a vítima que encontramos no Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson.
Astrid encontrou as fotos de Rusty e Mollie e quando ela abriu uma do jovem casal na praia, Mollie acenou com a cabeça, fechou os olhos e acenou novamente.
Era uma foto singular. Um cais com um veleiro no fundo. Um horizonte levemente nublado e o oceano azul atrás deles – sol, mar e o céu recortado. O braço de Rusty
estava em volta dos ombros dela, e ela estava recostada com ternura em seu peito.
– É bonita.
– Eu faço qualquer coisa. Por favor, não...
– Shh – Brad repousou uma mão sobre o ombro da mulher. Um gesto de carinho. – Fique calma. Tudo vai ficar bem.
Astrid olhou para ele com amor, com desejo.
Ela deixou seu dedo passear pela foto de Rusty. – Ele é muito bonito. Você fez uma boa escolha. Morrer olhando para ele. – Então falou para Brad: – Aumente o volume
da televisão.
Sim.
Apesar de Twana ser levemente mais alta que Mollie, ela tinha a mesma constituição física e cor de cabelo.
– É isso.
O círculo estava se fechando.
O cartão de crédito de Twana foi utilizado para reservar um quarto no hotel
hoje à noite, seus sequestradores podem estar lá... se eles trouxeram Mollie...
Muitos “ses”.
O hotel ficava a duas quadras de distância.
Liguei para lá para descobrir em qual quarto Twana Summie estava.
E eles me deixaram na espera.
Astrid usou o cursor para selecionar a foto de Mollie e Rusty na praia, apertou delete e então esvaziou a lixeira para que a foto desaparecesse para sempre. – Como
eu fui?
O medo de Mollie diminuiu brevemente, tornando-se confusão. – O quê?
– Te convenci?
– Você vai me deixar ir embora? – um vislumbre de esperança em sua voz. – Você não vai me machucar?
– Não. Eu quis dizer se você achou que eu ia deixar você olhar para a foto enquanto estivesse morrendo.
Astrid percebeu que Brad parecia tão surpreso quanto a mulher.
– O que é isso? – Brad perguntou.
– Te enganei também? – Astrid sentiu um toque de satisfação.
– Me enganou?
– Fazendo você acreditar que eu a deixaria olhar para algo prazeroso enquanto você a matasse – ela falou com ele como se Mollie não estivesse lá. Como se ela já
estivesse morta.
Mollie implorou: – Não, não... – o terror aumentando em seus olhos.
Brad parecia se sentir traído, e aquilo incomodava Astrid. Qual era o problema dele? Era tudo parte do jogo. – Não faça bico.
– Não era esse o plano.
– Pensei que seria mais divertido desse jeito. E é, não é? É mais divertido – ela manteve os olhos cravados nos dele até que finalmente ele desviou o olhar.
– Sim – ele disse silenciosamente. – É mais divertido.
– Por que você acha que te mandei fazer o vídeo de Rusty ontem à noite?
Brad ficou quieto.
– Vídeo de Rusty? – a mulher disse. – O que vocês fizeram com ele?
Astrid imaginava o que aconteceria quando ela mostrasse para Mollie a filmagem do namorado dela lutando para respirar na ponta da corda.
Ela pegou a mordaça e virou-se para ela.
– Vou te mostrar.
Doehring e eu entramos correndo pelas portas do Lincoln Towers Hotel.
Adrian Lees, o gerente, esperava por nós.
Cerca de 45 anos. Magro. Terno feito sob medida. Um pequeno cavanhaque, bem aparado. – Sou o CEO – ele disse. – Aqui do Lincoln Towers. Verificamos o sistema – ele
fazia pausas em intervalos estranhos quando falava, entrecortando sua frase em trechos pequenos e esquisitos. – Ninguém com o nome de Twana Summie reservou um quarto
aqui.
O quê?
– Nenhuma cobrança de cartão de crédito?
Ele balançou a cabeça.
Mas isso não é possível...
– Leve-nos para o centro de controle – eu disse.
Seu rosto estava corado. – Está tudo bem?
– Não – Doehring rosnou. – Para o centro de controle! Agora!
Lees se moveu na direção do corredor atrás da bancada de registro. – Por aqui.
Após minha surpresa inicial por não haver nenhum quarto reservado no nome de Twana, percebi que a falha, a inconsistência, era uma pista de que estávamos no caminho
certo, mas ainda não tínhamos como saber se nossos suspeitos estavam no local. Assim que pudéssemos confirmar...
Meu telefone tocou.
Ralph.
– Sim? – eu atendi. Eu estava correndo pelo corredor, seguindo Lees.
– Os vídeos. Acabei de ter notícias.
– Diga.
– Uma faxineira chamada Aria Petic. Não há imagens dela entrando no prédio, seja antes das 17h ou após as 19h, mas ela foi embora imediatamente após os paramédicos
chegarem. Estamos procurando por ela.
– Temos o rosto dela na gravação?
– Apenas uma parcial. Na maior parte, escurecida.
Pelo menos poderíamos conhecer o ritmo do caminhar dela, seus passos, altura aproximada. – Mande.
Fim da ligação.
Vamos jogar.
30
Astrid passou o vídeo de dois minutos e cinquenta e um segundos que mostrava a morte de Rusty. Primeiro a preparação, então imagens dele balançando debaixo da ponte,
agarrando inutilmente a corda presa ao seu pescoço; e a voz do pai dela, seu falecido pai, dizia:
A cada segundo que passava, o jovem se mexia cada vez menos. Ficava menos desesperado. Mais submisso ao inevitável. O desfecho final de seu pequeno mundinho.
Mollie não tentava mais gritar e agora estava assistindo ao vídeo com olhos arregalados, aterrorizados e destruídos.
Predador.
Presa.
O jogo.
Astrid pressionou a barra de espaço para pausar o vídeo e então disse para Brad: – Certo. Vamos mandar aquela mensagem para o FBI.
Ele foi até a bolsa esportiva para pegar os itens de que precisaria.
A caminho do centro de controle, perguntei a Doehring se ele tinha interrogado alguém que se chamava Aria Petic, e ele checou mentalmente sua lista de nomes. – Não,
acho que não.
Chegamos, e imediatamente percebi que o hotel tinha um sistema de vigilância melhor que a maioria dos escritórios do FBI. Seis funcionários monitoravam uma rede
de telas de vídeo que se estendiam pela parede, os olhos de cada um deles mudavam de uma tela para a outra quando as imagens se alteravam para mostrar ângulos diferentes
e corredores do hotel.
Eram vinte e oito telas.
De última geração.
Adrian Lees nos apresentou para sua chefe de segurança. – Essa é Marianne Keye-Wallace. Já trabalhou para a NSA. Ela vai ajudá-los. Com o que vocês precisarem. Loira
platinada. Olhos firmes e cuidadosos. Ela não podia ter mais de trinta, mas posições de segurança com alta tecnologia dependem mais de cérebros e de adaptabilidade
do que de força ou experiência.
Sem esperar que falássemos nossos nomes, ela disse a Lees: – Ligaremos para você se precisarmos – então ela prontamente sentou-se ao lado de um computador que estava
virado para nós. – Contem tudo.
– Tem alguma hóspede aqui chamada Aria Petic, Twana Summie ou Mollie Fischer? – eu disse.
Os dedos de Marianne eram leves e compridos no teclado. Lees ficou lá por um momento e então desapareceu. – Não – ela disse. – O que estamos procurando aqui?
Demoraria muito para explicar. Peguei o vídeo de Aria Petic que Ralph havia acabado de me mandar. – Você tem reconhecimento facial no seu sistema de vídeo de segurança?
– Claro. Facial, de áudio e de vídeo.
Dei o telefone para ela.
– Carregue essa imagem. Preciso saber se essa mulher está neste hotel.
A cadeira de rodas dobrada estava apoiada na parede ao lado da porta do quarto, a bolsa esportiva próxima dela. As malas que Astrid levara para o hotel na noite
anterior estavam ao lado.
Brad estava ocupado com Mollie.
Astrid fez a ligação para o balcão de atendimento do hotel.
Nenhuma filmagem de Aria Petic.
– Só pode ser brincadeira – Doehring socou a parede.
– O que mais? – Marianne perguntou, os dedos posicionados no teclado.
Vamos, vamos, vamos.
– Estamos procurando por... – eu comecei, mas meus pensamentos me distraíram.
A chave é Mollie. Tudo gira em torno dela.
– Sim? – Marianne perguntou.
– Entre na internet. Baixe uma foto de imprensa de Mollie Fischer.
Ela levou segundos.
– Faça uma busca. Se ela estiver aqui, quero saber em qual quarto ela está. Pegue qualquer vídeo dela entrando ou saindo do hotel a partir das 19h de ontem à noite.
– Pensei em começarmos ali e trabalharmos de trás para a frente, se necessário até as 16h, quando ela foi vista pela última vez.
Alguns minutos depois, Marianne encontrou imagens de Mollie em uma cadeira de rodas, sendo empurrada para dentro do hotel por um homem não identificado que usava
um boné que escondia completamente seu rosto da câmera, o que me dizia que ele conhecia o ângulo da câmera antes mesmo de se aproximar do prédio.
Vá por esse caminho. Se ele sabe onde as câmeras estão, ele provavelmente já esteve aqui antes, analisando o local.
Mais tarde, mais tarde, mais tarde.
Porque, até agora, também tínhamos imagens deles entrando em um elevador de serviço dentro do hotel. – Onde eles saem do elevador? – perguntei. – Em que andar?
– Não tem como saber. Só temos câmeras de segurança cobrindo os elevadores sociais em cada andar; os elevadores de serviço, não.
– Eles saíram do prédio? – Doehring disse.
– Deixe-me descobrir – Marianne deslizou os dedos no teclado.
Ela fez outra busca de reconhecimento facial, então balançou a cabeça. – A menos que tenham arrumado um jeito de não passar pelas câmeras, eles ainda estão aqui
dentro.
Mas isso era suficiente para Doehring. Ele já estava chamando reforços pelo rádio para delimitar um perímetro em torno do hotel; em menos de cinco minutos, teríamos
a área segura.
– Peça para a segurança trancar todas as portas de saída – eu disse a ela. – O suspeito transportou Mollie até o hotel em uma cadeira de rodas, então procure por
um veículo com acesso a deficientes lá fora. E volte para a filmagem dele entrando no elevador. Tive uma ideia.
22
O vídeo mostrava que após entrar no elevador, o homem estendeu a mão para apertar um dos botões de andar antes que as portas se fechassem e os dois sumissem.
– Volte.
Ela voltou o vídeo.
– Pause.
A imagem congelou.
Apontei.
– Ali. Qual botão ele está apertando? Qual andar?
– Espere – Marianne deslizou o cursor, aplicou zoom, então xingou. – Não dá para dizer. O ângulo está errado.
– Transfira isso para o meu telefone.
Ela conectou meu celular ao sistema, digitou no teclado e segundos depois me devolveu o telefone, com a imagem congelada na tela.
– Ele pode ter trocado de roupa, mas distribua essa imagem para a segurança – eu disse. – Vamos ver se conseguimos uma identificação. E ligue para todos os quartos,
deixe uma mensagem gravada de que a segurança está procurando por uma cadeira de rodas que sumiu. Vamos ver quem vai tentar sair escondido. E ninguém deixa esse
hotel – parti na direção da porta. – Onde fica o elevador de serviço que ele usou?
– Saia pela porta à esquerda, no final do corredor, passe pela área de serviço. O elevador fica à sua direita.
Doehring e eu partimos.
Tudo havia sido planejado.
Mollie não seria um problema para eles.
Astrid olhou no seu relógio.
– Precisamos ir – ela disse para Brad, que estava cuidando do quarto.
– Estou quase pronto.
Chegamos aos elevadores.
Analisei o vídeo em meu telefone, a altura da mão do homem em rela
ção aos números dos andares... o ângulo da câmera no corredor... então fiquei no mesmo lugar onde ele esteve, levantei minha mão ao mesmo nível que ele e passei
o vídeo novamente.
Era possível que o suspeito tivesse pressionado um segundo botão após as portas do elevador se fecharem, mas tínhamos que começar de algum lugar.
Doehring e eu analisamos o vídeo. – O que você acha? – eu disse. – Oitavo ou nono andar?
Ele balançou a cabeça. – Não sei.
– Mande seguranças para os dois andares, para que façam uma varredura dos quartos. Você fica com o nono, eu com o oitavo – corri até a escada no fim do corredor.
Astrid e Brad estavam prestes a deixar o quarto quando o telefone tocou.
Ambos olharam para ele.
Outro toque.
Então, embora suaves, eles ouviram toques de telefone simultâneos nos quartos próximos.
– Eles sabem – Brad disse. – De algum jeito eles descobriram.
Ela balançou a cabeça. – Isso é impossível. Você cuidou das câmeras, certo?
– Sim.
Mas conforme os telefones continuavam tocando, Astrid sentiu, pela primeira vez desde que começaram seus jogos, uma pequena pontada nervosa de ansiedade. Ela hesitou
por um momento. Então, usando uma luva, pegou o telefone do quarto e escutou a mensagem. Desligou. – Precisamos ir embora.
Brad não disse nada. Foi até a porta, olhou pelo olho mágico e então abriu a porta. Verificou o corredor. – Está livre.
Ela pegou o laptop.
– Cuidado – ele disse. – Não vai...
– Derrubá-lo. Eu sei – ela gesticulou na direção da porta, onde as coisas deles estavam. – Pegue tudo.
Ele pegou.
Saíram para o corredor.
Oitavo andar.
As pernas doíam da corrida pela escada.
Com minha .357 SIG P229 na mão, abri a porta para o corredor.
Duas faxineiras, algumas crianças em trajes de banho correndo pelo corredor para seus quartos, um carregador de malas puxando um carrinho de bagagem, dois seguranças
batendo nas portas.
Eles chegaram aqui rápido. Ótimo.
Ótimo.
Nenhum sinal do suspeito.
Mostrei minha credencial.
– Alguma coisa? – perguntei para os guardas.
– Não – um deles respondeu.
– Ninguém sai desse andar. Entendido?
– Entendido.
Disparei pelo corredor e depois por um corredor adjacente a leste.
E assim que virei a esquina, vi um homem parar na porta da escada no outro lado do corredor, a cerca de 35 metros de mim. Ele usava a mesma roupa do homem visto
no vídeo de segurança empurrando a cadeira de rodas.
– Pare! – eu gritei. – FBI!
Ele olhou por cima do ombro, com o rosto escurecido pelo boné. Ele esticou a mão na direção do cinto.
Uma arma.
Ele vai pegar uma arma!
Levantei minha SIG. – Mãos para o alto!
Ele hesitou.
– Agora!
Mas uma porta se abriu entre nós, e um casal de idosos saiu do quarto. – Abaixem-se! – gritei.
Ele ficaram apavorados e hesitaram. O homem na frente da porta da escada se abaixou e desapareceu.
– Voltem para seu quarto! – gritei para o casal e disparei pelo corredor enquanto pegava meu celular e ligava para Doehring. – Mande alguém para as escadas do lado
sudeste. Primeiro andar. Agora!
Passei pelo casal apavorado.
Os segundos voavam.
Voavam.
Para a porta da escada.
Me preparei.
Abri a porta.
Passos abaixo de mim.
Com a arma engatilhada, dobrei a curva do corredor, observei a área e vi alguém descendo a escada bem abaixo de mim. – Pare!
Tentei distinguir se havia dois conjuntos de passos ou apenas um.
Dois, eu pensei, mas não tinha certeza.
Um suspeito ou dois?
Conselho do meu treinamento: sempre espere a maior ameaça.
Dois.
Rapidamente verifiquei o patamar acima de mim por algum cúmplice.
Ninguém.
Então voei escada abaixo, pulando três degraus de cada vez.
Astrid e Brad chegaram ao primeiro andar.
Brad estava com sua Walther P99 em uma mão e com a outra empurrou a porta cuidadosamente.
Nenhum policial.
Duas portas diante dela. Ela apontou para a placa do estacionamento subterrâneo, bem em frente, à esquerda.
– Espere – Brad disse. Seus olhos estavam no imenso elevador de carga. – Tenho uma ideia.
Térreo.
Irrompi pela porta.
Ninguém.
Mas as portas de um elevador de carga no final do corredor estavam se fechando. – Pare!
Avancei correndo, meu coração martelando por causa da corrida e por descer oito andares de escada.
E pela adrenalina.
E pela caçada.
Quando as alcancei, as portas se fecharam. Pressionei o botão. Me endireitei. Ergui minha arma.
Elas se abriram.
Vazias.
Corri para o estacionamento.
Fiz uma varredura pela extensão de concreto e carros.
Vi uma luva de látex no chão a cerca de cinco metros de distância, bem à minha direita.
32
Não vi nenhum movimento na área do estacionamento. Não ouvi passos.
Não, não, não!
A porta atrás de mim abriu com uma pancada. Eu me virei, mirando, e vi Doehring chegando correndo. Imediatamente baixei minha arma e voltei minha atenção para o
estacionamento novamente.
– Mollie – eu disse. – Ela está segura?
Ele balançou a cabeça. – Ainda não a encontramos – ele estava sem fôlego. Seus olhos encontraram a luva de látex. – O cara está aqui?
– Eu não sei. Vá pela esquerda. Eu vou...
Espere um minuto.
O elevador de carga, Pat... eles abriram as portas do elevador para
atrasá-lo... Na noite passada, Aria esperou na cena do crime... só foi embora depois que o pessoal da emergência chegou...
Depois.
Depois.
Espere a maior ameaça.
Dois, não um.
Doehring percebeu minha hesitação. – O que foi?
– Fique aqui na porta. Certifique-se de que ninguém volte por aqui.
Feche esse estacionamento e peça para a segurança checar cada carro.
Incluindo porta-malas.
– E quanto a você?
– Eu tive uma ideia.
Corri de volta para dentro e observei o corredor: o elevador, o corredor por onde eu tinha vindo, e vi uma porta na qual não havia reparado antes porque meus olhos
estavam no elevador.
Um placa dizia: Acesso Restrito. Apenas Pessoal Autorizado.
Ah, sim.
Seria isso mesmo.
Astrid e Brad estavam caminhando por um quarto enorme, escuro e bagunçado, seu caminho iluminado apenas por uma placa de saída quinze metros à frente deles. – A
luva – ela disse. – Foi uma boa ideia
– Espero que sim – Brad parecia inseguro. Inquieto. – Esse cara é esperto. Esse agente. De algum modo, nos encontrou.
Fui tateando ao longo da parede, encontrei um interruptor e acionei-o.
Uma linha de lâmpadas fluorescentes piscou, uma de cada vez, em uma linha longa e metódica. – Não tem saída – gritei, e esperava que fosse verdade.zNão vi ninguém
na enorme sala.
Pare, pare, pare.
Desacelere-os.
– O hotel está cercado – segui em frente cautelosamente. – Apareçam agora com as mãos para cima!
O depósito era cavernoso, se estendendo quase no comprimento do hotel, e estava cheio de cadeiras empilhadas, mesas, camas, móveis para TV e espelhos: os móveis
que sobraram depois da reforma recente.
Literalmente, centenas de lugares para se esconder. Mas um caminho livre levava direto para o meio.
Dei outro passo silencioso.
Ouvi um barulho de alguma coisa raspando à minha frente, à esquerda, e virei minha arma naquela direção.
Então um tiro.
Impacto.
A bala acertou meu braço esquerdo enquanto o som reverberava, ecoava, como um trovão dentro da sala. A força me fez cambalear, quase me jogou no chão, mas consegui
rolar para trás de um antigo móvel para TV com quatro espelhos apoiados antes de cair no chão de concreto.
Astrid estava de pé ao lado da saída quando Brad atirou no agente do FBI.
– O que você está fazendo? – ela perguntou, sua voz baixa, acusadora.
– Mandando uma mensagem para ele.
Ele correu pelo corredor para se juntar a ela.
– Você não vai mais jogar desse jeito – ela agarrou sua mão e o puxou para fora; ouviu os sons das sirenes. – Você vai estragar tudo.
– Não, eu...
– Quieto.
O beco se esticava para as duas direções.
Direita ou esquerda?
Uma decisão. Ela a tomou.
Eles correram.
Sangue por toda parte.
Parecia que alguém tinha acertado uma marreta no meu bíceps esquerdo, e com a dor era quase impossível pensar.
Fechei bem os olhos e tentei me concentrar na cena.
A cena.
A cena.
Um momento atrás, eu havia escutado a porta de saída no lado oposto da sala se fechar com uma batida.
Cara, isso dói.
Três possibilidades: os dois suspeitos deixaram o prédio, um ainda estava aqui, ou os dois ainda estavam aqui dentro e apenas abriram a porta para me enganar.
A dor intensa se espalhava pelo ombro, pelo pescoço, e então estourou como numa explosão de vidro em minha cabeça.
Concentre-se, Pat.
Concentre-se!
Eu passei a arma para a mão esquerda e instintivamente pressionava a mão direita contra o ferimento para estancar o sangramento, mas agora eu a retirei, e uma olhada
rápida me disse que a bala havia entrado e saído do meu braço – atravessou-o por completo.
Estava sangrando muito, mas não jorrando, então duvidei que houvesse algum dano arterial, e não vi nem senti nenhuma fratura óbvia, então isso era um bom sinal,
mas o sangue e a dor me impossibilitavam de achar isso uma boa.
Eu precisava da arma na minha mão direita, e isso queria dizer que eu precisava encontrar outro jeito de fazer pressão no ferimento para estancar o sangramento.
Arranquei o cinto e me preparei, pois a dor estava prestes a ficar muito pior.
Rangendo os dentes, enrolei o cinto em torno do ferimento e passei a ponta pela fivela. Eu não precisava de um torniquete, mas apertando-o com força, eu teria um
curativo de pressão rudimentar.
Faça isso, Pat.
Vamos, vamos!
Cerrei os dentes e puxei a ponta do cinto.
Vi estrelas. Perdi o fôlego.
Foco.
Foco!
Prendi o cinto. Meu braço queimava novamente. Dor vertiginosa.
Com os olhos fechados, me inclinei contra o móvel.
Tentei recuperar o fôlego.
A porta de saída.
Não os deixe escapar.
Antes de fazer qualquer coisa, eu precisava saber onde os suspeitos estavam, então inclinei um dos espelhos próximos para ver pelo corredor entre os móveis.
Ninguém.
Estrategicamente, eles tinham a vantagem. Eles estavam em dois, pelo menos um estava armado. Eles poderiam estar em qualquer lugar.
Peguei meu telefone. Liguei para Doehring e sussurrei, rouco, sem fôlego: – O perímetro. Está cercado?
– Deveria estar.
Deveria.
Os suspeitos já poderiam ter desaparecido.
– O lado sul do prédio – eu lutava para não demonstrar dor na minha voz. – Mande policiais lá agora. Os suspeitos estão armados. Proceda com extrema cautela, pode
ser apenas uma pessoa; não tenho certeza.
Fim da ligação.
Você foi atingido. Eles estão armados.
Eu deveria esperar. Realmente deveria...
Dane-se.
Levantei-me e empunhei minha arma, então contornei o móvel e, tentando mover meu braço esquerdo o mínimo possível, fui na direção da porta de saída, de olho em qualquer
movimento enquanto corria pela sala.
Não vi nada.
Ninguém.
Cheguei até a saída. Joguei meu corpo contra a barra de pressão e a porta se abriu.
Uma rápida olhada.
Apenas um beco, uma caçamba de lixo.
Nenhum suspeito fugindo.
Ninguém.
Olhei dentro e em volta da caçamba.
Nada.
Ambas as ruas ficavam a cerca de quarenta metros de distância, e eu não fazia ideia de qual direção os suspeitos haviam tomado.
Sirenes, mas nenhum policial à vista.
Será que os suspeitos se separaram? Foram em direções diferentes?
Fazia sentido eles se separarem, mas obviamente eu só podia verificar uma rua de cada vez. Escolhi ir para a direita e corri para lá.
Na esquina, eis o que vi: uma corredora de rabo de cavalo, o trânsito típico de Washington, uma mulher em frente à faixa de pedestres empurrando um carrinho de bebê,
três crianças pequenas atrás dela. Do outro lado do cruzamento, quatro homens de negócios estavam olhando para o outro lado, esperando o semáforo mudar.
Ninguém se encaixava na compleição de Aria ou do homem não identificado. Ninguém que levantasse suspeitas ou que agisse de maneira suspeita.
Não!
A outra rua. Eles foram para o outro lado do beco.
Com todo o tempo passado desde que eles saíram do prédio, eu duvidava que faria alguma diferença verificar a outra rua, mas precisava ser meticuloso. Parti na sua
direção.
Mas apenas segundos depois, dois policiais corpulentos saíram pela porta do estacionamento subterrâneo para o beco. – Sou o agente Bowers, FBI – apontei para um
dos homens. – Verifique a outra rua – então para o outro. – Volte pela porta e vigie a saída.
Eles ainda podem estar dentro.
Os policiais obedeceram.
Mais sirenes.
As ruas estavam sendo bloqueadas.
Tarde demais. É tarde demais!
A cada batida de meu coração, meu braço latejava. Minha visão ficou embaçada.
Me apoiei na parede.
Outro policial saiu pela porta e pedi que ele chamasse a expedição e pedisse para pararem o trânsito e para mandarem os policiais deterem e interrogarem todo mundo
nas ruas dos dois lados do beco.
– Você está bem, senhor? – ele perguntou.
– Vá.
Quando ele partiu, reparei que a mulher com as crianças pequenas estava olhando para mim. Estava pálida. Ela engoliu em seco e então orientou as crianças a segui-la
na direção da faixa de pedestres.
O sangue.
O sangue em seu braço.
Espere.
Ela não estava virada para o beco quando corri até a rua, mas havia uma boa chance de uma de suas crianças ter visto alguma coisa.
Guardei minha arma e, pressionando a mão direita contra o ferimento para esconder o sangue o máximo possível, me aproximei da mulher. – Com licença, senhora. Preciso
fazer algumas perguntas para você.
33
Ela não me disse seu primeiro nome, apenas disse que era a “sra. Rainey”, e então começou a me dizer que não tinha visto ninguém sair do beco. – Me desculpe – ela
estava olhando para meu braço. – Estávamos indo na outra direção. Você não deveria estar no hospital?
Provavelmente.
Olhei para seus filhos. Um bebê dormia no carrinho. Duas meninas gêmeas com cerca de três ou quatro anos. Um menino, talvez com seis. Ajoelhei-me ao lado deles.
As gêmeas se afastaram e agarraram as pernas da mãe. Uma delas mordeu o canto do lábio inferior e parecia que estava prestes a chorar. Eu não conseguia esconder
o sangue completamente, mas virei de lado para escondê-lo o máximo que podia.
– Preciso levá-los para casa – a sra. Rainey disse.
– Só um momento. Não vou incomodar seus filhos. Eu prometo – ela olhou para mim inquieta, então para o meu braço, então para o beco de onde saíam mais policiais,
e então para os carros de polícia parando com uma derrapada na rua. Apesar de estar claramente relutante, ela deve ter percebido a importância do meu pedido, porque
finalmente assentiu. – Tudo bem.
– Escutem – eu disse para as crianças. – Vocês viram alguém saindo daquele beco? Faz pouquinho tempo. É muito importante.
Nenhum deles respondeu.
Eu segurei o celular com a foto de Aria Petic que Ralph havia mandado. – Essa mulher passou por aqui?
As crianças apenas me olharam.
Eu lhes mostrei o homem empurrando a cadeira de rodas.
– Ou ele?
Silêncio.
– Vamos – a mãe deles disse. – Algum de vocês os viu sair do meio daqueles dois prédios?
As garotas se agarraram a ela. O garoto apenas olhou para mim desconfiado.
Certo, isso não iria levar a lugar algum. Eu estava me sentindo enjoa do por causa da dor, e só estava incomodando as crianças.
Normalmente, nós teríamos detido testemunhas potenciais por mais tempo, faríamos outro policial acompanhá-las, mas não me agradava que aquelas crianças estivessem
ali numa hora daquelas.
– Eu tenho mesmo que ir – a sra. Rainey disse.
Eu anotei seu endereço e número de telefone para que eu pudesse acompanhar, então dei a ela um dos meus cartões. – Se algum de seus filhos se lembrar de alguma coisa,
de qualquer coisa, me ligue.
Ela aceitou o cartão e eu cambaleei na direção de um banco para me sentar e recuperar o fôlego.
Mas eu não havia dera que três passos quando ouvi a voz dela: – Espere.
Virei-me e vi uma de suas filhas apontando.
Para um táxi.
34
O motorista, que por incrível que pareça tinha o inglês como sua primeira língua, me disse que acabara de deixar um passageiro, mas que não tinha arrumado nenhum
outro naquele lugar por horas.
A sra. Rainey perguntou para a filha novamente e descobriu que ela queria dizer que viu alguém pegar um táxi, não aquele táxi, o que, é claro, fazia sentido, mas
ainda assim, me frustrou.
Outro revés.
As ruas estavam cercadas de policiais. Nenhum outro táxi à vista.
Margaret chegara e andava pela calçada na minha direção.
O dia ficava cada vez melhor.
Chamei o policial com quem conversei alguns minutos antes e lhe disse para arrumar alguns homens para verificar todos os passageiros das companhias de táxi de Washington,
DC que tivessem descido ou pegado táxi naquela rua nos últimos vinte minutos.
Ele olhou para meu braço. – Você está bem, senhor?
– Estou bem. Você está me ouvindo?
Ele não tirou os olhos da manga ensanguentada. – Sim, senhor.
Descrevi os suspeitos e expliquei que não sabíamos se eles estavam se locomovendo juntos ou separados.
– Se encontrarmos o táxi e eles estiverem dentro, não deixem o motorista parar até que consigamos arrumar policiais disfarçados lá esperar ossuspeitos. Entendeu?
– Sim – ele ainda estava olhando para o sangue.
– Vá.
Ele hesitou. – Seu braço está...
– Vá logo!
Ele partiu.
Segui na direção do banco de novo, mas Margaret estava me alcançando. – Então você levou um tiro? – soava mais como uma acusação do que uma pergunta.
– Levei.
– Prendeu alguém?
– Não.
– Atirou em alguém?
– Não.
– Você viu os suspeitos bem o suficiente para identificá-los?
– Não, Margaret – cheguei até o banco. – Não vi.
Um pequeno suspiro.
– Bem, então, sente-se antes que você desmaie.
– Boa ideia. Encontramos Mollie?
– Ainda não.
Eu me sentei no banco e apoiei o braço no colo. Tentei acalmar minha respiração.
Ela pegou o rádio e pediu que um paramédico viesse o mais rápido possível. Então se dirigiu a mim novamente. – Aquela façanha que você realizou na coletiva de imprensa,
oh, aquilo foi... – ela balançou a cabeça em vez de terminar a frase, e então acrescentou: – Você não imagina como o seu trabalho está por um fio agora.
Despedir alguém com o meu tempo de serviço não era fácil, mas Margaret era uma mulher cheia de recursos, e com o deputado do lado dela, não seria uma escolha difícil
para Rodale. – Eu imagino – eu disse.
– Vou escrever uma reprimenda oficial para ser colocada em seu arquivo pessoal.
Isso não estava exatamente no topo da minha lista de preocupações naquele momento. – Tá bom.
– Mas você nos trouxe aqui. Você chegou perto de pegar os suspeitos, e foi ferido por uma ação adversária, então não vou enviar a reprimenda.
Dessa vez.
Eu pisquei.
Quem diria?
– Obrigado.
– Conte-me o que aconteceu.
Ela ouviu com atenção enquanto eu a informei sobre a perseguição e o tiro. – Mollie Fischer deve estar em algum lugar desse hotel – concluí.
– Sim – Margaret disse vagamente. Ela estava olhando para a sra. Rainey e seus filhos, que ainda estavam parados no meio da desordem da atividade policial. – Você
disse que aquelas crianças viram algo?
Além dela, no fim do quarteirão, vi uma ambulância parando na entrada do hotel.
– Apenas alguém entrando em um táxi, eu acho. Não tenho muita certeza disso também. Elas não estavam muito animadas em conversar com um estranho.
– Vou falar com elas.
– Hum, não acho que seja uma boa ideia.
– Sou boa com crianças – ela disse, e antes que eu a pudesse dissuadir, ela já tinha ido até as crianças e se ajoelhado ao lado das meninas gêmeas.
35
– Olá. Meu nome é sra. Weeeeeeellington – Margaret disse seu nome de um jeito longo e cômico. – Esse nome é engraçado, não é?
Uma das garotas concordou.
– Qual é o seu nome? – Margaret perguntou.
– O nome dela é Lizzie – a sra. Rainey falou antes que a menina tivesse a chance de responder.
– Aposto que você tem cinco anos, não tem? – disse Margaret, mantendo os olhos na menina e parecendo impressionada.
Lizzie meneou a cabeça.
– Seis?
Lizzie mostrou quatro dedos.
Margaret ficou de queixo caído, arregalando os olhos. – Não, você deve ter mais que quatro! Você tem sete, certo?
Lizzie balançou a cabeça. Ela estava sorrindo.
– Nós duas temos quatro – a irmã disse.
Dois paramédicos de uns trinta e poucos anos – um homem branco e atarracado e uma pequena mulher persa – saíram da ambulância e começaram a andar em minha direção.
A mulher carregava uma grande bolsa de primeiros socorros, o homem estava empurrando uma maca. Eu não tinha intenção de deitar na maca, mas o kit de primeiros socorros
não era má ideia.
– Uau – Margaret olhava de uma irmã para a outra. – Vocês duas parecem que são parentes.
– Somos gêmeas! – elas gritaram.
Falsa surpresa. – Mesmo?
As duas meninas assentiram.
Para a segunda menina:
– Então, seu nome também é Lizzie?
– Não! – as meninas gritaram juntas.
– Eu sou a Jill – a gêmea de Lizzie respondeu, então apontou para seu irmão. – E ele é o Danny. Ele tem seis anos.
Eu mal podia acreditar no que meus olhos viam. Margaret era muito boa com crianças.
– Vocês são duas mocinhas – Margaret disse. – E muito inteligentes.
Dá pra ver. E é um prazer conhecer você também, Stanley.
Ele olhou curioso para ela.
– É Danny.
– Oh, me desculpe, Mannie.
– Meu nome é Danny! – ele disse impacientemente, mas estava sorrindo.
– Frannie?
– Danny!
Ela bateu na testa com a palma da mão. – Certo. Sim. Oh, me desculpe, Granny.
Todas as três crianças riram. Ele estava com as mãos na cintura. – Danny, Danny, meu nome é Danny!
– Oi, Danny – ela disse. – É um prazer conhecê-lo.
Ele resmungou.
Margaret tinha aquelas crianças na palma das mãos.
Incrível.
Os paramédicos viram onde eu estava sentado e apertaram o passo.
Margaret apontou para o beco. – Contem para mim sobre as pessoas que saíram de lá – ela acenou na minha direção. – Antes desse homem com cara de bobo aparecer.
Eu sou um homem com cara de bobo. Entendi.
– Ele está muito machucado? – Danny perguntou.
Os olhos deles vieram parar na minha camisa ensanguentada, e eu virei para mostrar meu braço bom.
– Oh, não – ela lhes respondeu, então disse para mim: – Faça uma cara engraçada, agente Bowers. Mostre a eles que você não está muito machucado.
Fiz o meu melhor.
– Viram? – Margaret disse.
Fiquei feliz por ela estar curtindo aquilo.
Danny não pareceu acreditar muito, mas as garotas riram e Lizzie disse: – Eles estavam com pressa.
Os paramédicos chegaram e o homem, cujo crachá dizia Neil Blane, disse: – Senhor, precisamos dar uma olhada nesse braço.
Levantei-me desajeitadamente e a paramédica, que se apresentou como Parvaneh Bihmardi e parecia não ter dormido muito bem na noite passada, me viu cambalear. – Espere.
Sente-se de novo.
– Não – balancei a cabeça e falei suavemente: – Longe das crianças.
Neil Blane gesticulou na direção da maca, mas recusei. Ele relutantemente ofereceu o braço para mim; recusei isso também. Eles me seguiram na direção de um muro
baixo de concreto que cercava uma área arborizada. O muro parecia ter um metro de altura, aceitável para que eu me sentasse, e parecia ser fora da linha de visão
da família Rainey.
A caminho de lá, ouvi Margaret perguntar: – Então, quantas pessoas eram? Quantas vocês viram?
Olhei para trás e vi Lizzie erguer dois dedos.
– Um homem e uma mulher?
A garota assentiu.
– Eles estavam carregando alguma coisa?
– A mulher tinha um computador – Danny disse. – O homem tinha uma bolsa preta grande.
Fiz uma pausa.
Margaret perguntou:
– De que cor era o computador?
– Branco.
Se esse fosse o computador desaparecido de Mollie, nós poderíamos rastrear sua localização assim que eles se conectassem e, dependendo do modelo, ativar remotamente
sua webcam para dar uma olhada nos assassinos...
Liguei para Doehring; ele me disse que cuidaria disso, então me apoiei sobre o muro de concreto que circulava as árvores, e Parvaneh pegou uma grande tesoura. –
Certo, vamos tirar essa camisa e ver o que temos aqui.
36
Astrid esperou impacientemente enquanto Brad terminava de arrombar o Honda Accord estacionado na Eisenhower Drive, do outro lado da rodovia do Pentágono.
Ela odiava que as coisas tivessem tomado essa direção, mas tinham, e agora ela teria que lidar com isso.
– Você deveria ter invadido o sistema e colocado o vídeo do beco em repetição – ela disse.
– Eu fiz isso.
– Então como eles...
– Eu não sei.
– Por que você atirou naquele agente?
– Eu estava com medo.
A trava se abriu. Ela era melhor em fazer ligação direta em carros do que ele, então, assim que ele abriu as portas, ela deu partida no motor e passou para o banco
do passageiro para arrumar o cabelo.
– Precisamos voltar pra casa – ele disse.
– Não, preciso voltar para o trabalho ou a coisa não vai ficar boa.
Você sabe disso.
Silêncio.
– Me leve até lá, troque de carro e me encontre mais tarde.
Brad não parecia feliz em ouvir isso, mas ela não ligava.
Ele guiou o carro para a rua. – E quanto a Wellington? – ele disse. – Ela vai estar na cena do crime.
– Amanhã. Faremos isso amanhã, a menos que... – Astrid disse. – A menos que...
– A menos que?
– Vamos ver como as coisas se desenrolam.
Com luvas nas mãos, ela colocou o computador no banco de trás. O FBI o encontraria mais tarde. E o plano funcionaria. Os horários funcionariam.
Tudo se ajeitaria sozinho, contanto que Brad não estragasse mais as coisas.
Neil e Parvaneh trabalharam rápido.
Eles levaram apenas alguns minutos para limpar o ferimento, colocar um pouco de gaze e enfaixar meu braço com um curativo de pressão. Enquanto eles cuidavam do ferimento
à bala, tentei me recompor, pensar em tudo pelo que eu havia passado nas últimas duas horas... o encontro emocionalmente desgastante com Missy Schuel... a revelação
de que a vítima no centro de primatas não era Mollie Fischer... o confronto com o deputado... a coletiva de imprensa... a perseguição pelo hotel... levar um tiro.
Nada tinha dado certo e, para melhorar as coisas, os suspeitos aparentemente haviam escapado.
Respirei fundo e senti que estava começando a relaxar, mas as palavras de Parvaneh acabaram com isso: – Isso pode doer um pouco.
Abri os olhos bem a tempo de vê-la limpar meu antebraço com um pano com álcool e posicionar uma agulha intravenosa ridiculamente grande contra minha pele.
Oh, não.
Eu odeio agulhas.
Ela pressionou.
E a agulha entrou, deixando um pequeno vergão enquanto penetrava meu músculo e furava minha veia. Essa visão me incomodava mais do que o ferimento à bala.
Tive que olhar para outro lado.
– Por causa da sua perda de sangue – ela explicou.
– Entendo – consegui dizer. Pude sentir um puxão na pele quando ela removeu a agulha, deixando o cateter para trás.
Neil pegou o rádio e disse para alguém que estávamos a caminho, então finalizou a transmissão e empurrou a maca para junto de mim. – Precisamos levá-lo para um hospital.
Eu não queria perder nada na cena. Balancei a cabeça. – Vou ficar aqui.
– Isso não vai ser possível.
– Vou cuidar do meu braço depois que as coisas se acalmarem. Eu só preciso de alguns minutos para informar os policiais aqui...
Parvaneh e Neil olharam um para o outro, e então disseram: – Vamos te levar para o Mercy Medical.
– Não – uma voz rude falou e vi Ralph rapidamente se aproximando de nós. Atrás dele, mais viaturas, vans de canais de televisão e ambulâncias estavam parando no
hotel: a polícia metropolitana, o FBI, a polícia do Capitólio.
Tumulto.
– Eu vou levá-lo – Ralph veio em nossa direção. – Vamos, Pat. Precisamos conversar.
– Me desculpe, senhor – Neil disse. – Esse homem foi alvejado, está perdendo sangue e está com uma intravenosa no braço. Não podemos deixá-lo...
Ralph esticou a mão e agarrou o tubo intravenoso...
– Hum, Ralph...
Arrancou-o do meu braço.
Ah, sim.
Aquilo não foi nada bom.
– Pronto – Ralph disse. – Rápido e limpo – o invólucro do cateter de plástico brilhava, molhado com meu sangue, quando ele o colocou sobre a maca e disse para Parvaneh:
– Vou deixar que você cuide disso – ele apertou a fita adesiva que estava segurando a intravenosa no lugar sobre o buraco da agulha.
Parvaneh nos olhava com os olhos arregalados.
– Certo – ele me ajudou a ficar de pé. – Está liberado.
Meu telefone tocou. O toque de Tessa.
Inacreditável.
Eu precisava demais de uma xícara de café. Um pouco de cafeína para me acalmar.
– Escute, Ralph – eu estava em dúvida entre atender ou não o telefone. – Se isso for sobre a coletiva de imprensa...
Tocando.
– Não – ignorando as objeções dos dois paramédicos, ele me levou na direção do carro. – É sobre Richard Basque.
– O quê? Basque?
Ainda tocando.
Vamos, Pat. Tessa precisa de você. Ela já deixou duas mensagens.
– Espere um pouco – disse para Ralph. – É a Tessa.
Quando atendi o telefone, vi o carro dele parado no meio-fio. Não muito longe.
– Sou eu – falei para ela.
– Oi.
– Você está bem? Sua mensagem de antes... fiquei preocupado. – Os agentes Tanner Cassidy e Natasha Farraday, juntamente com outros membros da ERT do FBI, estavam
entrando no hotel.
– Sim, claro – Tessa disse. – Estou bem.
– O que foi? O que está havendo?
– É só que... quando você vem para casa? Você está na aula?
– Não. Apareceu uma coisa.
– Ah, você parece meio... não sei. Sem fôlego.
– Eu estava me exercitando – tentei manter a voz equilibrada e controlada. – Eu fiz alguma coisa? Você está triste com algo que eu...
– Não-não-não-não – ela juntou todos os nãos em uma só palavra. – Nada do tipo. Mas quando você acha que vai voltar para casa?
– Tessa, eu... – uma olhada em Ralph. – A verdade é que eu estou meio ocupado aqui. Mas se você precisar de mim, se for urgente, eu posso estar em casa em cerca
de meia hora.
Ralph balançou a cabeça e murmurou: – Não, você não pode.
Eu murmurei: – Sim, eu posso.
– Não, está... não é nada de mais – Tessa disse. – Mais tarde está bem.
– Me dê... – verifiquei as horas.
15h36.
– Tentarei estar em casa às 19h, tudo bem? – isso me dava cerca de três horas e meia para ir até o hospital, ser consultado, sair e ir para casa, o que seria um
pequeno milagre, mas talvez eu pudesse arrumar um jeito de apressar o pessoal do hospital.
– Sim, claro. Eu estou bem, então não se preocupe nem nada. É só que... eu preciso contar uma coisa pra você.
– Conte agora.
– Isso pode esperar.
– Tudo bem, você pode...
– Pode esperar – ela repetiu.
Eu estava ficando cada vez mais impaciente, mas também mais preocupado. – Tessa, me escute. Você está segura? Você está bem?
– Sim.
– Se você estiver em algum tipo de perigo ou problema agora, me peça para parar de te encher com tantas perguntas. Eu mando a polícia aí em...
– Não, não é isso. Vejo você às 19h? Eu estou bem. Vou ficar bem.
Encerramos a ligação.
Mas as coisas não pareciam bem.
Ralph e eu chegamos ao seu carro, e ele guardou as notícias sobre Basque por um momento. – Ela está bem?
– Não sei.
– Quer que eu peça a Brineesha para dar uma olhada nela?
– Quando ela sai do trabalho?
– Às 16h30.
Do banco, o caminho para nossa casa levaria pelo menos trinta e cinco minutos. Balancei a cabeça. – Não precisa. É muito tarde.
– Ela provavelmente poderia sair mais cedo.
Tive uma ideia.
– Espere um pouco.
Cheyenne.
Ela sabe onde você vive... Tessa confia nela... Se ela decidiu não ir na
fazenda de corpos... Se ela estiver livre...
– Me dê mais um segundo. – Entramos no carro. Acidentalmente, bati o braço machucado e uma rajada de dor me fez estremecer. Eu tive que fechar os olhos e respirar
fundo para me manter de pé.
Calma, calma.
– Você está bem? – Ralph perguntou.
– Sim.
Eu me ajeitei no banco. Não ajudou muito. Ralph saiu pela rua enquanto eu ligava para Cheyenne; descobri que ela desistira do passeio pela fazenda de corpos e passou
o tempo lendo os arquivos do caso e preenchendo a papelada da operação conjunta.
– Escute – eu disse –, está acontecendo uma porção de coisas nesse caso e eu vou informá-la sobre tudo, eu prometo, mas agora preciso te pedir um favor.
– O que é?
– Aconteceu algo com Tessa. Não tenho certeza do que, mas estou preocupado com ela. Ela está em casa. Acho que precisa de alguém lá com ela agora, mas eu preciso
passar no hospital. Você pode ir até lá? Só para...
– No hospital?
– Machuquei um pouco meu braço. Vai ficar tudo bem. Mas se você puder dar uma olhada nela, ajudaria muito. Ela te conhece. Ela confia em você.
– Pat, você não iria para o hospital se seu braço estivesse só um pouco machucado. O que aconteceu?
– Levei um tiro que atravessou meu braço – eu disse. – Sem danos arteriais. Nenhuma fratura aparente.
Cheyenne entendia de armas como eu entendo de café, mas ela não perguntou sobre o calibre, a proximidade do atirador, o ângulo de penetração. Em vez disso, ela apenas
disse: – Oh, Pat, eu sinto muito.
– Eu vou ficar bem, apenas não conte para Tessa. Tudo bem? Não quero que ela fique preocupada.
– Não vou contar para ela. Chego lá assim que puder.
– Obrigado.
– Tem certeza de que está bem?
– Sim.
– Cuide desse braço.
– Cuidarei. Desliguei o telefone.
– Tudo bem – falei para Ralph. Suspirei. – Me conte sobre Basque.
– Desapareceu – ele disse. – E a dra. Renée Lebreau também.
37
– O quê?
– Os dois.
A notícia me levou de volta para o julgamento de Basque.
No outono passado, a professora Lebreau e seus alunos da Michigan State University encontraram as discrepâncias no depoimento da testemunha ocular e nas evidências
de DNA do julgamento de Basque 13 anos atrás. Suas descobertas foram cruciais na decisão da Corte do Sétimo Distrito de dar um novo julgamento a Richard Devin Basque,
e também foram influentes em convencer o júri a inocentá-lo.
– Quando ela foi vista pela última vez?
– Ela não apareceu em sua aula de ética legal cerca de 29 horas atrás.
Sua SUV ainda está no estacionamento. Ela não foi vista desde então.
– E Basque?
– Não temos certeza, mas ele desapareceu do radar faz alguns dias. A polícia de Chicago está procurando por ele, mas como você sabe...
– Ele é um homem livre.
– Não apenas livre – Ralph disse as palavras com um tom sombrio que mostrava que ele também não concordava com o veredicto. – Inocente.
– De acordo com o tribunal.
– Sim. E um homem inocente não tem que avisar à polícia quando vai viajar – suas palavras estavam cheias de raiva.
Pensei novamente no último desejo de Grant Sikora: “Prometa-me que você não vai deixá-lo fazer isso novamente”.
“Eu prometo”, eu dissera.
Um momento de silêncio, então perguntei a Ralph quem estava trabalhando no desaparecimento da professora Lebreau.
– O diretor Rodale mandou Kreger coordenar.
– Acho que não o conheço.
– Um bom homem. Inteligente. Aguenta pressão. Ele está trabalhando com a polícia de East Lansing.
Basque era um dos assassinos mais elusivos que eu já tinha conhecido, e se ele estivesse envolvido no desaparecimento da professora Lebreau, mesmo com a ajuda de
Kreger, me perguntei se uma cidade do tamanho de East Lansing teria os recursos para encontrá-lo.
Você prometeu a Grant Sikora que não deixaria Basque matar novamente... você prometeu...
– Mande-me para lá – eu disse.
Ralph meneou a cabeça.
– Você sabe que eu não posso fazer isso. Você tem suas aulas, esse caso Fischer, toda essa coisa da custódia de Tessa que você precisa resolver, sem contar esse
arranhão no seu braço.
– Meu tiro é um arranhão?
– Nenhum osso está para fora. Não pode ser tão sério.
– Bom critério legal. Escute, arrume um jeito de eu ajudar na busca por Basque. Eu sei mais sobre ele do que qualquer um...
– Com exceção de...?
Finalmente percebi sobre o que era essa conversa toda: o agente do FBI que havia me ajudado a rastrear Basque há treze anos.
– Você – eu disse.
Ele assentiu. – Meu voo parte em uma hora.
Estávamos na Massachusetts Avenue NW. O hospital ficava a dois quarteirões.
– Precisamos tomar cuidado com isso, no entanto – ele disse. – Não pular para as conclusões. Até onde sabemos, a professora saiu de férias improvisadas e Basque
foi pescar por uma semana.
Mas dava para saber que ele não caiu em nada disso.
Eu sei que Ralph já teria pensado nisso, mas senti que precisava ser dito: – Se já faz vinte e nove horas, tem uma boa chance de...
– Sim, de ela estar morta – ele disse. – Ou pior.
Um silêncio tenso preencheu o ar enquanto ambos pensávamos nas coisas que Basque tinha feito com suas vítimas antes de matá-las.
– Ralph – eu disse lentamente –, o que você acha da justiça preventiva?
– Eu fui um Army Ranger,5 cara. A maioria das missões que fazíamos era preventiva. Identificar uma ameaça e eliminá-la antes que ela eliminasse você.
– Ou outra pessoa – eu disse.
– Sim.
E eu tinha a sensação de que estávamos pensando na mesma coisa.
Chegamos ao hospital e estacionamos na frente da porta da emergência.
– Tanto Basque quanto Lebreau desaparecem na mesma semana? – eu disse. – É coincidência demais. Basque está envolvido.
– Eu sei.
Saímos do carro e Ralph me ofereceu um de seus braços hercúleos como apoio, mas recusei. – A coisa que não faz sentido – eu disse – é que a dra. Lebreau foi quem
acabou fornecendo as informações que ajudaram a livrar Basque. Por que ele iria atrás dela?
– Estive pensando na mesma coisa. Não faço ideia – sua voz ficou sombria. – Mas acredite em mim. Vou encontrá-lo. E se ele a machucou... Vamos dizer que a justiça
será rápida.
– E limpa.
– Sim.
Entramos no saguão.
Quando um policial é levado para um hospital com um ferimento à bala, os médicos à disposição são ótimos e estão preparados, então não fiquei surpreso em ver uma
equipe de trauma nos esperando: meia dúzia de cirurgiões e enfermeiras vestidos apropriadamente prontos em torno de uma maca.
Mas aparentemente eles estavam esperando alguma coisa mais emocionante, porque os médicos olharam um para o outro incertos, e um deles perguntou: – Você é o ferido
à bala? – disse, parecendo decepcionado.
– Desculpem, não tem mais risco de morte – Ralph disse. – Da próxima vez, vamos tentar garantir que ele tome um tiro no peito.
– Obrigado, Ralph.
Eles não pareceram gostar dos nossos comentários e, um por um, foram se dispersando. Ralph pediu licença para ir ao aeroporto e uma enfermeira de aparência austera,
carregando uma pilha de papéis, apareceu e gesticulou na direção de uma sala de exames próxima.
38
Tessa precisava tirar da cabeça todo o problema com Paul Lansing, mas ainda faltavam mais de três horas para Patrick aparecer.
Ótimo.
Não estava exatamente no clima de fazer palavras cruzadas ou de escrever poesias. Não hoje.
Talvez possa fazer algo para me desculpar por ter escondido os e-mails dele, por ter agido pelas costas dele, isso seria algo legal.
Então? Limpeza?
Hum... não.
Jantar?
Ai – doeu só de pensar. Ela havia tentado cozinhar algumas vezes, e não foram experiências muito agradáveis.
Certo, então, do que ele mais gosta – além de você – o que é mais importante para ele?
Bem, isso era óbvio.
O trabalho.
E no momento isso significava encontrar quem quer que tenha matado a filha do deputado naquele estranho e totalmente perturbador ataque de chimpanzés.
Ela tentou pensar como Patrick pensaria:
Local e hora.
Por que naquela hora?
Por que naquele local?
O que a escolha daquele local nos diz sobre a familiaridade do assassino com a região, sobre seus padrões de movimento? Sobre sua percepção da área e sua relação
com as vítimas?
Horário: ontem à noite.
Local: o laboratório de pesquisa de primatas.
Ontem à noite, o canal de notícias havia dito que o lugar estava estudando cognição em grandes primatas.
Ela sabia um pouco sobre cognição de primatas, mas talvez...
A internet era uma possibilidade, mas ela tinha uma ideia melhor.
Ela entrou na internet e, usando o número de verificação de seu recém-adquirido cartão de leitora, acessou os arquivos da Biblioteca do Congresso, a maior coleção
do mundo de revistas científicas, e então digitou “Pesquisa de Primatas da Fundação Gunderson”.
Uma enfermeira aferiu minha pressão arterial e meu pulso, então colocou um curativo na marca de agulha da intravenosa. Quando ela saiu da sala de exames, fiquei
dez minutos preenchendo a papelada do hospital enquanto esperava o médico chegar.
Finalmente deixei os formulários de lado, peguei um pouco de papel com a recepcionista e comecei a analisar os detalhes da perseguição do hotel, do tiroteio, dos
locais relacionados com os crimes, esboçando algumas anotações.
Algum tempo depois, percebi que já fazia uma hora que havia falado com Tessa ou verificado o caso, e ainda não havia retornado para o diretor Rodale, que mais cedo
havia me deixado uma mensagem para ligar para ele.
Liguei primeiro para Tessa. Ela me garantiu que estava bem. – A detetive Warren está aqui. – Ela baixou a voz. – Eu não precisava de babá.
– Não foi por isso que pedi a ela para passar aí. Você sabe disso.
Uma pequena pausa.
– Acho que sim.
– O que vocês duas estão fazendo?
– Conversando sobre garotos.
– Não, não estamos – Cheyenne falou ao fundo.
– Garotos?
– Ela acha que você deveria me deixar sair com caras mais velhos.
– Não, não acho – Cheyenne disse.
– Tá bom.
Apesar da relutância em ter alguém verificando como ela estava, Tessa parecia muito mais relaxada do que quando havíamos conversado mais cedo, e fiquei aliviado.
– De qualquer forma – ela disse –, estamos jogando xadrez. Ela é muito melhor que você.
– Bem, isso não é muito difícil.
– Verdade.
Tamborilei os dedos na cadeira. Como eu ainda estava esperando um médico, minhas chances de chegar cedo em casa ficavam cada vez menores, mas eu disse: – Ainda tenho
esperanças de chegar às 19h. Ouvi Cheyenne novamente: – Cheque.
– Certo, até mais. – Tessa soava distraída, e eu a imaginei estudando o tabuleiro.
Ela desligou. Liguei para Doehring.
Conversamos alguns minutos sobre o caso – nenhum sinal ainda de Mollie Fischer, mas eles estavam vasculhando quarto por quarto do hotel – e Farraday encontrou a
cadeira de rodas no quarto 809.
– Em nome de quem estava a reserva?
– Do gerente. É um quarto de cortesia que ele mantém reservado para dignatários estrangeiros em visita a Washington.
Inacreditável.
– Catorze conjuntos de impressões digitais na cadeira, quase todas parciais até agora, DNA de Mollie, de duas faxineiras, algumas digitais ainda não identificadas.
Porém, não houve combinação com ninguém no sistema. E o beco? Bem, esses caras deram um jeito de invadir e alterar a transmissão de vídeo. Por isso não vimos a mulher
entrar. Marianne está furiosa por não ter visto.
E a pergunta que não queria calar – onde estava Mollie?
Lembrei-me de ter lido a respeito de um caso dos anos 90 sobre um casal belga que sequestrava crianças e as mantinha num calabouço especialmente construído. A polícia
procurou pela casa duas vezes e nas duas ouviu crianças chorando, mas supôs que o som vinha de crianças brincando em algum lugar fora dali. Duas garotas morreram
de fome enquanto o marido estava preso, e a esposa, que era professora do ensino fundamental, ficou na casa e ignorou o choro das garotas por duas semanas até que
as duas crianças finalmente morrerem.
– Vasculhem o quarto inteiro – eu disse. – Olhem debaixo da cama, arrastem os móveis, não deixem nada passar.
– Já fizemos isso.
– E um carrinho de faxina? Eles poderiam tê-la colocado num carrinho de lavanderia?
– Nós verificamos. Escute, como está...
– Estou bem. Os freezers do hotel? O telhado? E quanto aos elevadores? Verifique na parte de cima deles... – E então, pensando na segurança de última geração do
hotel e nas renovações ultramodernas, tive um pensamento macabro. – Há alguma máquina de picar documentos no hotel? Alguma grande, de tamanho industrial?
– Não se preocupe. Meus homens estão cuidando disso. Finalmente, quando estávamos encerrando a ligação, perguntei se ele poderia mandar um policial me buscar quando
eu fosse liberado, para me levar até meu carro.
– Você levou um tiro, Pat. Vou pedir para Anderson levá-lo até em casa.
– Não, eu só preciso ir até meu carro. Ligo para você quando tiver alta do hospital.
Desligamos.
Enfim, sob o pretexto de retornar a ligação que ele havia feito para meu celular no começo da tarde – mas, na verdade, esperando descobrir se era ele que tinha dito
a Fischer para esconder da imprensa as informações sobre Mollie –, disquei o número do diretor Rodale.
Sua secretária me disse que ele havia acabado de ir para casa. – Ele também quer falar com você – ela disse.
Isso não era surpresa.
Marcamos uma reunião no escritório dele amanhã ao meio-dia, entre minhas aulas.
Então voltei para minhas anotações e, alguns minutos depois, o médico chegou.
39
Após remover o curativo que os paramédicos fizeram, o dr. Stearn tirou a gaze, cuidadosamente inspecionou os ferimentos de entrada e saída, então pediu um raio X
para ter certeza de que não havia fragmentos de osso ou de bala em meu braço.
O que só me tomou mais tempo.
Logo depois, eu o convenci a me levar para um quarto de paciente em vez de para a sala de exames, para que pudesse assistir ao noticiário na televisão do quarto.
Ele higienizou o ferimento e disse: – Prepare-se – ele estava pegando um bisturi para desbridar a área, um processo que envolve remover o tecido morto que cerca
a área do ferimento.
Tentei me concentrar no noticiário.
Chelsea Traye, repórter do Canal 11, anunciou que estavam esperando uma declaração “a qualquer momento” por parte do FBI em relação a “um suposto tiroteio no porão
do histórico Lincoln Towers Hotel”.
– Suposto, né? – o dr. Stearn disse.
Uma profunda pontada de agulha quando ele anestesiou a área.
– Até que isso passe pelo departamento de assuntos públicos do Bureau, eu não fui oficialmente ferido.
– Que beleza.
Enquanto eu assistia ao noticiário, o dr. Stearn terminou o desbridamento e, o mais delicadamente possível, colocou uma atadura arejada sobre o ferimento. A equipe
de notícias da WXTN estava explicando que de acordo com suas fontes, as autoridades estavam procurando por um homem e uma mulher como possíveis responsáveis pelo
desaparecimento de Mollie Fischer e pela morte de Twana Summie.
Um enfermeiro trazendo uma camisa de médico para mim apareceu na porta. Algo para vestir, pois minha camisa tinha sido manchada com sangue e cortada por Parvaneh.
– Com os cumprimentos do hospital Mercy Medical – ele disse.
– Rosa? – eu disse. – Essas roupas não deveriam ser verdes?
– Isso desencoraja as pessoas a roubarem.
– Nem imagino o porquê – apontei para a cadeira no canto da sala. – Pode colocá-la ali.
Assim que ele saiu, chamei uma enfermeira e lhe entreguei uma nota de vinte dólares. – Você poderia passar na lojinha do hospital e pegar uma camiseta para mim?
Sou um agente federal e consideraria isso um grande serviço para o seu país.
Ela sorriu. – Claro.
O médico havia pegado uma tipoia e a estava ajustando para caber no meu braço. Eu lhe disse que não era necessário; ele disse que era.
O noticiário cortou para a coletiva de imprensa e Margaret apareceu na tela. Aumentei o volume. Apesar de ela estar apenas dando uma explicação superficial, eu tinha
que admitir que a declaração dela foi muito mais cuidadosa do que a minha havia sido mais cedo.
Ela encerrou declarando que um dos “melhores agentes” do Bureau tivera “um pequeno ferimento por ação adversária em uma troca de tiros no porão do Lincoln Towers.”
Algumas horas atrás, eu tinha cara de bobo, agora eu era um dos melhores agentes do FBI.
Talvez Margaret só estivesse querendo ganhar minha simpatia.
– Pequeno ferimento? – o dr. Stearn disse dubiamente, e eu reparei que até agora ele se comunicara comigo apenas com frases de duas palavras.
– Mas dói – eu disse.
No final, Margaret não disse nada que eu já não soubesse, quando o noticiário mudou para uma “análise do especialista” sobre o incidente.
O médico terminou o que fazia no meu braço e me disse para voltar para uma consulta na segunda-feira. Finalmente, ele me deu um analgésico e um antibiótico. – Sem
remédios soporíficos – eu disse. Ele relutou, mas concordou, trocou os remédios e então disse: – Dois diariamente – ele apontou para um dos frascos de comprimidos
e então pegou dois. – Tome esses.
– Para dor – eu disse.
Ele assentiu e então me assustou com três frases completas em seguida. – Tome mais dois antes de dormir. Os próximos dois dias serão difíceis. Vou passar uma receita
para você.
Agradeci e estava me levantando para ir embora quando a enfermeira voltou com uma camiseta rosa-choque de turista com a frase “Viva Washington, DC!”.
– Você tá brincando! – eu disse.
– Era a única GG restante na loja – ela me entregou a camiseta e meu troco. – Não se preocupe, rosa é o novo preto.
– Ah, deve ser mesmo.
O dr. Stearn estava assinando uma folha de papel em sua prancheta.
– Sem dirigir – ele disse.
Certo, de volta com as frases de duas palavras.
– Eu entendo – respondi.
Os dois me ajudaram a vestir a camiseta e a posicionar meu braço na tipoia. Peguei as anotações que eu tinha feito e então saí, afrouxei a tipoia e liguei para Doehring
para perguntar se Anderson estava disponível para me levar até meu carro.
40
Tessa estava ficando frustrada.
Cheyenne tinha mesmo ganhado dela no xadrez.
Duas vezes.
– Onde você aprendeu a jogar? – Tessa lhe perguntou.
– Com meu pai. Sabia que eu cresci num rancho? Bem, ele não gostava muito que assistíssemos a TV, então à noite nós sempre jogávamos; na maioria das vezes, xadrez.
Ele era do ranking nacional quando estava na faculdade. Com o tempo, ele me ensinou algumas estratégias.
Algumas.
Sim, claro.
Tessa se concentrou e analisou o tabuleiro. Fez sua jogada.
18h57
Dirigindo um carro disfarçado, que ele orgulhosamente me contou ser seu carro normal, o oficial Lee Anderson havia me deixado em meu carro fazia uns trinta minutos.
Os remédios ainda não estavam fazendo efeito, e toda vez que eu mexia meu braço ou mudava meu apoio, parecia que alguém estava enfiando uma agulha gigante no meu
braço e a movimentando para cima e para baixo.
Agulhas novamente.
Cara, eu não conseguia tirá-las da minha cabeça.
Para piorar as coisas, o trânsito estava parado. Talvez fosse algum acidente mais adiante.
Mudei meu apoio de lado.
Agulhas.
Pense em alguma outra coisa.
Certo. A notícia de Ralph: Basque e a professora Lebreau desapareceram. Inacreditável.
Por uma fração de segundo, considerei a possibilidade de Basque estar de algum modo envolvido nos crimes aqui em Washington, DC, nessa semana. Um cálculo rápido
me mostrou que a viagem de Michigan seria apertada mas viável.
Mas quando pensei nisso, percebi que os dados não batiam. A compleição do homem não identificado empurrando a cadeira de rodas no Lincoln não batia: Basque tinha
quase minha altura e era forte; aquele homem era mais baixo e tinha uma compleição mediana.
Então...
O que eu poderia fazer daqui para ajudar a encontrá-lo?
De primeira eu não pude pensar em ninguém, mas então...
Ah, sim.
Não eu.
Angela Knight, minha amiga da divisão de crimes cibernéticos. Ela e seu computador, que ela batizara de Lacey, podiam encontrar praticamente qualquer pessoa.
O trânsito estava num anda-e-para, então peguei algumas imagens dos arquivos do caso de Basque no meu celular, liguei para Angela e comecei lhe contando sobre a
placa TEP–ROM do carro. Ela me disse que ficou sabendo que os caras da NSA estavam por trás disso. – Estou atolada aqui como você não imagina.
Considerando o quanto ela estava ocupada, me perguntei se deveria lhe contar o verdadeiro motivo da minha ligação, mas como eu realmente não tinha nada a perder,
prossegui. – Mais uma coisa...
– Pat, eu sei o que você vai pedir, mas não tive mais tempo para procurar sobre sua pista da Patricia E – ela parecia exausta.
– Não, é outra coisa.
– Ah... – uma pausa. – Deixe-me adivinhar: você precisa de informações confidenciais, e você precisa agora, e você não quer preencher nenhuma papelada.
– Você é incrível. Leu minha mente.
– O que posso dizer? Sou adivinha.
– Eu tinha minhas suspeitas – tirei o telefone da orelha e toquei a tela para enviar por e-mail as imagens enquanto andava alguns metros com o carro, segurando o
volante na posição certa com os joelhos.
Um pequeno suspiro. – O que você precisa?
– Preciso que você encontre Richard Devin Basque. Não me importa como você vai fazer isso: uso do cartão de crédito, carteira de motorista, GPS do celular. Invada
o computador da advogada dele. O nome dela é Priscilla Eldridge-Gorman. Posso conseguir o endereço dela para...
– Calma. O que está acontecendo?
Contei a ela sobre o possível sequestro da dra. Lebreau e a hora pra lá de conveniente do desaparecimento de Basque.
– Quem é o agente responsável?
– Kreger está com o caso de Lebreau. Ralph está a caminho agora para ajudar a encontrar Basque.
O trânsito andou um pouco, então parou novamente.
– Então por que não é ele que está me ligando?
– Ele está mantendo isso em segredo – eu disse evasivamente.
– Ah. Entendi. Richard Basque é um homem livre e não, deixe-me ver, como devo dizer isso? – uma leve alfinetada em suas palavras. – “Uma pessoa que interesse ao
caso”, então, fazer uma busca oficial por ele poderia ser considerado assédio.
– Eu não colocaria desse modo.
– Que tal isso, então: Ralph está resolvendo as coisas dentro dos limites da lei.
Ouvi um som. O e-mail com as fotos anexadas que eu acabara de mandar para ela tinha chegado.
Ela notou. – O que é isso?
– Fotos das vítimas dele. Para ajudar a te convencer de que deve me ajudar.
– Vou apagá-las.
– Não.
– Não posso fazer isso, Pat. Ele é um homem livre.
– Essa mulher que desapareceu ontem, foi ela que descobriu a evidência de DNA que ajudou a libertá-lo. É muito provável que ele esteja envolvido de algum modo. A
vida dela está em perigo.
– Se esse pedido de busca não vier de Ralph, vou precisar de autorização da diretora-assistente Wellington.
– Abra as imagens – eu disse. – Veja o que ele fez com suas vítimas.
– Ele foi declarado inocente.
– O júri cometeu um erro.
Uma pequena pausa. Me perguntei se ela estava olhando as fotos. Ela disse: – Essa mulher desaparecida... não é só por isso que você quer encontrá-lo, né?
– Encontrá-la, garantir que ela está bem: essa é nossa principal preocupação.
– Mas não a única. Não para você.
Senti um calafrio na espinha. – Tá bom, tá bom. Eu preciso falar com o sr. Basque.
– Falar.
– Sim.
– É isso? Só falar?
– Angela, você e eu trabalhamos juntos por cinco anos – não era uma resposta para a pergunta dela. – Confie em mim.
– Eu sei por quanto tempo trabalhamos juntos, por isso estou fazendo a pergunta. Estou preocupada que você faça algo imprudente.
– Alguma vez eu já fiz algo imprudente?
– Você tá falando sério?
– Tá bom, mas quero dizer, tirando essas vezes, sejam lá quais forem as que você estiver pensando.
Ouvi um riso baixinho.
Ah, ótimo.
Uma rachadura em sua armadura.
– Me ajude nisso, Angela. Se alguém puder encontrar Basque, essas pessoas são você e Lacey.
Angela tratava seu computador como se fosse uma pessoa de verdade.
Ela dizia que Lacey tinha sentimentos, bons e maus dias, e era autoconsciente. Eu já tinha visto as duas trabalhando juntas por tempo suficiente para cogitar que
Angela podia estar certa.
Uma pausa. – Nós podemos nos meter numa encrenca por isso, você sabe – imaginei se “nós” fazia referência a ela e a mim, ou a ela e a Lacey. – Eu posso perder meu
emprego.
– Suas habilidades são muito negociáveis. Eu não me preocuparia muito.
Um pequeno suspiro.
– Me ajuda a lembrar por que eu sou sua amiga.
– Minha personalidade cativante.
– Sério.
– Provavelmente isso ou a minha beleza incomparável – guiei o carro pela saída de Garrisonville. – Assim que eu desligar, e mando tudo que tenho sobre Basque.
– Pat, se eu encontrá-lo, você tem que me prometer que não vai machucá-lo, que você não vai fazer nada que faça com que eu me arrependa de ter ajudado você.
– Angela...
– Prometa, ou vou falar com Margaret. Me dê sua palavra e eu confio em você.
Considerei minhas opções.
– Pat?
– Eu prometo que não vou machucá-lo – eu disse.
– Então vou encontrá-lo.
Agradeci e encerrei a conversa. Mandei para ela as informações e então passei o resto do caminho para casa pensando em como manteria minha promessa para ela e minha
promessa para Grant Sikora.
E eu não conseguia pensar em nenhuma maneira de cumprir as duas.
41
Em casa, encontrei Tessa e Cheyenne na sala de estar, sentadas uma de frente para a outra, jogando xadrez.
– Xeque – Tessa disse, movendo seu cavalo para a posição H7. Quando ela me viu, seu olhar foi direto para o curativo no braço. – O que aconteceu?
– Foi só um arranhão. Como você está?
– Um arranhão?
Cheyenne olhou para mim com preocupação. – Tudo certo com seu braço?
– Estou bem.
– Mesmo?
– Sim.
– Um arranhão? – Tessa repetiu.
– Estou bem.
Ela avaliou aquilo por um momento. Então seus viram minha nova camiseta. – Uau! Você está todo estiloso hoje.
– Rosa é o novo preto.
– Claro.
Cheyenne momentaneamente voltou a examinar o tabuleiro.
– Tá na moda – garanti para Tessa.
Ela fez uma careta. – Na moda?
– Acredite em mim. Estou por dentro de tudo o que está bombando no momento.
– Por favor, diga que você não falou isso.
Cheyenne deslizou sua torre pelo tabuleiro, derrubou o cavalo de Tessa e disse: – Mate.
Tessa voltou sua atenção ao jogo e seu queixo caiu.
– Sério, Pat – Cheyenne levantou-se e veio na minha direção. – Você está bem?
– Está tudo bem. Estou bem. Agora, chega de perguntas sobre meu braço.
Tessa avaliou o tabuleiro, então soltou um gemido.
– Você estava preparando isso nas últimas cinco jogadas.
– Seis.
Ótimo.
Tessa desmoronou na cadeira.
Cheyenne estava ao meu lado agora, mais perto do que uma mera colega de trabalho ficaria. A proximidade falou por si mesma. – Tem alguma coisa que eu possa fazer
por você? – ela disse. – Eu posso ficar se você quiser, eu só precisaria fazer algumas ligações...
Cara, isso era tentador. – Eu vou ficar bem. Mas obrigado. Mesmo.
Ela não parecia acreditar em mim, mas acabou deixando de lado por enquanto. – Eu trouxe seu laptop de volta da reunião do NCAVC – ela apontou para a cozinha. – Está
sobre a mesa.
– Ótimo. Obrigado.
Um leve desconforto tomou conta da sala e mesmo já tendo dito que ela não precisava ficar, senti um desejo crescente de retirar aquilo. Cheyenne pegou a bolsa.
– Bem, acho que vou indo então.
– Espere – eu disse. – Vocês já comeram? – era uma tentativa desajeitada de arrumar um jeito de lhe dizer que eu não acharia ruim se ela ficasse mais um pouco. –
Você querem jantar?
– Na verdade, eu deveria me encontrar com alguém para o jantar na cidade.
– Ah.
– Com Lien-hua.
– Ah.
– Nós nos demos muito bem hoje à tarde. Parece que temos muito em comum. Ela vai me passar umas informações. – Esperei que ela explicasse mais, mas ela parou repentinamente,
deixando as palavras abertas para interpretação.
Consequências não intencionais.
– Bem, eu te acompanho até a porta – olhei para Tessa. – Ei, você pode pegar o diário de sua mãe?
– Por quê?
– Por favor.
Ela me deu um olhar de desaprovação, mas acabou saindo para o quarto.
Cheyenne e eu atravessamos a sala. – Aconteceu um monte de coisas no caso – eu disse. – Tenho certeza de que Lien-hua vai te deixar atualizada.
– Na verdade, falei com sua chefe pelo telefone há cerca de vinte minutos. Ela me deu um resumo.
– Margaret?
Ela acenou com a cabeça. – Entreguei a papelada da operação conjunta hoje à tarde. Ela disse que como comandante da força-tarefa, quis se apresentar para mim. Ela
me disse para comparecer à aula de manhã e então ir para a reunião da tarde com o resto da equipe.
– Então você não a conhecia antes?
– Não.
Hum.
– Que hora será a reunião? – perguntei.
– Está agendada para as 14h, mas acho que vai depender de como a investigação progredir durante a manhã.
Minha aula começava às 14h. – Não conseguirei ir, mas talvez possamos nos encontrar depois. Para eu me atualizar sobre o caso.
– Parece bom.
Estávamos em frente à porta. – Ei – eu disse –, você tem me ajudado muito. Na noite passada e hoje, vindo me socorrer de novo.
– Não contei para você? É o meu novo hobby.
– Além de tiro ao alvo e dançar quadrilha.
– Uma garota precisa ser prendada – ela deu um sorriso preocupado. – Tem certeza de que seu braço está bem?
– Sim. Escute, Tessa falou alguma coisa sobre o que estava acontecendo com ela hoje à tarde? Alguma coisa que eu precise saber?
Cheyenne meneou a cabeça. – Ela não disse, mas parece que minha presença ajudou.
Hesitei por um momento. – Eu odeio ficar te pedindo favores, mas você mencionou que vai jantar em Washington?
– Sim.
– Você poderia me socorrer de novo?
– Sempre que precisar.
Peguei o cartão de Missy Schuel e anotei seu endereço em uma folha de papel. Então o entreguei para Cheyenne. – Você pode levar o diário para Missy? Ela é uma advogada
de...
– Uma advogada? – Tessa estava de pé no fim do corredor, segurando o diário. – Por que você está dando o diário para uma advogada?
– Vou explicar tudo em alguns minutos.
– Agora seria bom.
– Tessa – tentei soar austero, como um pai. – A detetive Warren precisa ir – estendi a mão. – O diário. Por favor. E então poderemos conversar sobre essas coisas.
Após uma breve consideração, Tessa entregou o diário. Eu o folheei para me certificar de que a carta que Paul Lansing havia escrito para Christie estava lá, então
deslizei um pedaço de papel no lugar para marcar a página e entreguei o diário para Cheyenne.
Tessa observava.
– Certo – Cheyenne disse. – Até logo.
– Obrigado novamente.
Então ela saiu e Tessa e eu ficamos a sós.
– Tudo bem – minha enteada estava com as mãos na cintura. – O que está havendo? Por que você deu a ela o diário da minha mãe?
22
– Em um minuto – eu disse. – Você primeiro. Quero saber por que você estava tão incomodada essa tarde e por que estava tão ansiosa para que eu voltasse para casa.
Ela parecia debater consigo mesma se deveria me pressionar ou não, mas então disse: – Tudo bem, eu tenho algo para contar para você, mas não quero que fique bravo.
– Seus olhos focalizaram meu curativo novamente. Afinal, o que arranhou seu braço?
– Uma bala, e não posso prometer que não vou ficar bravo até saber...
– Você levou um tiro!
– Sim, mas agora não estamos falando sobre mim, estamos falando sobre...
– Quem atirou em você?
– Um dos bandidos. Agora, escute...
– Você está bem? De verdade?
– Tessa – certamente meu tom refletiu minha impaciência crescente. – Eu fiz o máximo que pude para chegar logo em casa porque você estava ansiosa para me contar
alguma coisa. O que é?
Ela olhou para mim por um longo e incerto momento. Então inesperadamente saiu da sala, voltou com o laptop, colocou-o ao meu lado no sofá e inclinou a tela para
que eu pudesse ver melhor.
Seu e-mail estava aberto e ela destacou uma sequência de mensagens.
Quando vi de quem eram, uma pontada dolorida de raiva tomou conta de mim.
– Você está trocando e-mails com ele! – o primeiro e-mail de Paul Lansing foi mandado um dia depois de visitarmos Wyoming. Rolei a lista para baixo e vi que o mais
recente havia sido mandado há menos de 24 horas. – Eu disse especificamente para você não trocar e-mails com ele sem que eu lesse...
– Está doendo?
Voltei para o topo da lista e comecei a analisar as mensagens. – O quê?
– Seu braço. Está doendo?
– Claro que está doendo. Uma bala o atravessou. Eu não acredito que você...
– Eca – ela ficou pálida. Sentou-se. – Preferia que você não tivesse contado essa parte.
A cada e-mail que eu lia, me sentia cada vez mais traído.
– Como você pôde fazer isso? Mandar e-mails para ele pelas minhas costas, traindo minha confiança desse jeito.
– Por que é uma traição mandar e-mails para o meu pai?
– Porque eu não te dei permissão para isso.
– Ele é meu... – ela fez uma pausa; deve ter reconsiderado o que estava prestes a dizer, pois deixou a sentença incompleta, jogadas no ar entre nós.
– Mais alguma coisa? – eu disse. – Alguma outra bomba que queira me jogar?
Ela hesitou por um momento.
– Então?
Ela se inclinou, abriu um navegador de internet no computador e clicou em sua página do Facebook.
Outra mensagem.
Às 14h21 daquela tarde.
Tessa,
Me desculpe por ter ficado bravo com você hoje no museu. Eu só queria ter certeza de que você estava segura. Tentei ligar no telefone que te dei, mas você não atendeu.
(Não se preocupe, eu o encontrei.) Eu preferia não ligar no seu celular, não quero que seu padrasto descubra que nos encontramos. Não quero que ele fique bravo e
desconte em você.
Mas precisamos conversar. Ligue para mim ou me mande um e-mail assim que puder.
Com amor,
Papai
Senti um tremor crescente de raiva. – Você o viu? Por isso que você foi para Washington, DC? Para ver Paul? Por isso você cancelou o almoço comigo?
– Eu...
– Você mentiu para mim.
– Não, eu só...
– Você disse que ia até a Biblioteca do Congresso.
– Eu fui.
Meias verdades.
Farsas.
“Com amor, papai”... Ele assinou a mensagem “Com amor, papai”.
Eu podia sentir meu corpo inteiro ficando tenso, a dor no meu braço aumentando.
Tessa me observava inquieta. – Me desculpe.
Apontei para a tela do computador. – Que história é essa de ele dar um telefone para você?
– Eu o joguei fora. Esperei.
– Não. Eu joguei. Eu juro – ela apontou para a tela. – Ele até diz que o encontrou.
– E exatamente quando você ia me contar sobre esses e-mails?
– Eu tentei essa tarde, mas...
– Você tem trocado e-mails com ele há três semanas!
– Fiquei com medo de você ficar bravo.
Soquei o sofá. – Pois eu estou bravo.
Então levantei e fiquei ameaçadoramente alto perto dela, e ela se afastou.
– Eu precisava descobrir por que ele nunca veio atrás de mim e se ele amava ou não minha mãe, coisas do tipo. E ele não amava – sua voz falhou um pouco. – Ele não
a amava.
Apesar do desespero na voz dela, eu ainda estava furioso. – Ele diz aqui que não quer que eu descubra nada sobre isso; que ele não queria que eu descontasse em você.
Por que ele escreveria isso? Foi isso que você disse para ele?
– Não! Eu juro! Eu disse a ele o quanto você me ama, que você faria qualquer coisa por mim, que você salvou minha vida. Mas ele ficou me fazendo um monte de perguntas
sobre você, e foi aí que eu fui embora.
Sua voz estava alterada pela dor, e eu senti a frágil ponte que estávamos construindo nos últimos 16 meses desabando. Mas eu tinha o direito de estar nervoso. Não
disse nada.
– Por favor. Você precisa acreditar em mim.
Eu queria lhe perguntar por que eu deveria acreditar nela agora. Por quê, visto que ela estava me enganando nas últimas três semanas? E provavelmente eu teria dito
isso se a descoberta do que Paul vinha fazendo não tivesse me acertado em cheio.
Ele estava fazendo pesquisa para seu processo.
Ele estava usando Tessa para ferrar com você.
Algo frio e confuso começou a rastejar dentro de mim. – Você contou para ele onde íamos ficar no verão? Foi assim que os advogados dele descobriram para onde mandar
a carta?
Ela estava quieta. – Que carta?
Hesitei.
– Você acabou de dizer que os advogados dele mandaram uma carta – ela disse. – Que carta?
– Tessa, agora o que importa é...
– Diga!
Respirei fundo, analisei as coisas e finalmente prossegui. – Paul Lansing está tentando reivindicar seus direitos como pai biológico. É provavelmente por isso que
ele...
– Reivindicar seus direitos? – ela levou apenas alguns segundos para ligar os pontos. – Você quer dizer minha guarda? Ele está tentando tomar minha guarda?
– Não se preocupe. Eu já falei com uma advogada...
– Ahn? – agora era a vez dela de se sentir traída. – Sério? E quando você estava pensando em me contar tudo isso?
– Eu só soube da carta ontem à noite, depois que você foi dormir; e então, hoje de manhã, você estava dormindo quando eu saí – uma mudança sísmica havia ocorrido
na conversa. Eu estava um pouco desorientado. – Eu não estava escondendo de você. Eu ia te contar hoje no almoço.
Enquanto eu a observava, eu quase podia ver a raiva que ela estava sentindo por mim evaporando e algo mais sombrio tomando seu lugar. Um tremor de medo. – Isso não
está acontecendo – ela disse. – Isso não pode estar acontecendo.
Suas mãos estavam levemente trêmulas.
Estendi meu braço bom para ela. – Venha aqui.
Ela veio até mim e, então tomando cuidado para evitar tocar meu braço ferido, ela se inclinou contra meu peito. E me abraçou de um jeito que partiu meu coração.
Eu não me sentia bem em falar que as coisas iam ficar bem, que tudo daria certo, porque eu não podia garantir nada daquilo, mas então percebi que ela estava chorando
e eu sabia que tinha que dizer algo. – Shh – cochichei. – Não se preocupe. Eu estou aqui. – Eu nunca fui bom nesse tipo de coisa. – Eu sempre estarei aqui para você.
Você sabe disso.
Após um momento longo e doloroso, ela se afastou para olhar para mim. Uma única lágrima redonda escorreu por sua bochecha. – Eu amo você – ela disse, e suas palavras
foram suaves, profundas e verdadeiras.
Enxuguei sua lágrima. – Eu também amo você, Tessa.
– Você não pode deixar isso acontecer. Você não pode deixar que ele me leve.
Então eu disse o que estava hesitante em falar para ela um momento antes. – Não vou deixar que ele te leve embora. Eu prometo.
E essa era uma promessa que eu jurei para mim mesmo que iria cumprir.
Custe.
O que.
Custar.
43
Meia hora depois, quando as coisas já estavam um pouco mais calmas e Tessa se sentia pelo menos um pouco melhor, ela me pediu para contar a ela como levei o tiro,
mas para não contar as partes nojentas.
Obviamente, eu não podia divulgar detalhes do caso, mas contei o que podia sobre a perseguição no hotel e o disparo no porão.
E daquele estranho jeito que tragédias compartilhadas aproximam as pessoas, minha história sobre o tiro fez com que eu me sentisse mais próximo dela, me garantiu
novamente que podíamos ser vulneráveis na frente um do outro, que estava tudo bem.
Quando finalmente abrimos a geladeira para comer algo, já passava das 20h.
Ela encontrou alguma sobra de comida tailandesa e a levou para o micro-ondas. – Vocês não deveriam ter que esperar por reforços?
– Na teoria, sim – peguei duas latas de refrigerante. – Mas nem sempre é assim que funciona.
– Então, essa foi qual? A terceira vez? Quarta vez que você é atingido?
– Apenas a terceira, mas já faço isso há quinze anos e...
– Talvez você não tomasse tantos tiros se seguisse as regras.
– Esse nunca foi muito meu estilo, Raven.
Uma pausa silenciosa.
– Você podia ter morrido, Patrick.
Honestamente, eu não havia pensado sobre o disparo nesses termos, e suas palavras trouxeram uma seriedade repentina para a conversa. – Acho que era possível.
– Me faz um favor?
– Sim?
– Não deixe que isso aconteça.
Inseguro sobre o que dizer sobre isso, respondi simplesmente: – Vou me esforçar.
Após o jantar, conversamos um bom tempo sobre coisas que nunca havíamos compartilhado antes: os anos que ela passou crescendo em Minnesota, seu primeiro namorado,
meus dias de basquete no colégio, a mulher que eu amei antes de conhecer a mãe dela.
Por fim, como uma sobremesa tardia, abrimos a embalagem de brownies veganos que eu tinha comprado para ela na padaria alguns dias atrás. Eu previa que eles teriam
gosto de giz assado, mas eram surpreendentemente bons.
– Esse advogado que você arrumou – ela disse, com a boca cheia de brownie. – Ele é bom?
– É uma mulher, e acho que ela é. Eu nunca trabalhei com ela antes, mas ela foi altamente recomendada.
– E era ela que queria o diário?
– Isso mesmo.
Nós dois mastigamos por um momento, então ela disse: – Não vá atrás dele, tá bom?
– De quem?
– De Paul – outra mordida. – Deixe isso com a advogada.
Senti uma pontada de decepção por ser o tipo de pessoa para quem ela precisava dizer algo assim.
Tenho certeza de que minha hesitação telegrafou meus pensamentos, e decidi mudar de assunto. – Tenho que fazer algumas ligações – eu lhe disse. – Preciso dizer à
advogada sobre Paul ter entrado em contato com você, e eu também deveria entrar em contato com minha chefe, avisá-la que não tenho nenhum osso quebrado em meu braço,
que estarei bem para dar minhas aulas amanhã.
– Talvez você devesse tirar um dia de folga.
– Eu vou ficar bem.
– Sim – ela disse, e quase parecia que estava desapontada. Ela se levantou. – De todo modo, preciso imprimir algumas coisas, de qualquer jeito. Fiz uma pesquisa
para você.
– Sério?
– Sobre aquela Fundação Gunderson e sobre os primatas. Acho que pode ajudar com seu caso.
Hum. Legal.
– Encaminhe os e-mails de Paul para mim, primeiro – eu disse –, para que eu possa encaminhá-los para a advogada.
Uma pausa. – Tudo bem.
Ela saiu da sala e digitei o número da casa de Missy.
44
Missy Schuel ouviu silenciosamente enquanto eu lhe contava sobre os e-mails de Paul Lansing para Tessa e seu encontro com ela mais cedo naquele dia.
– Quem iniciou a comunicação eletrônica entre eles?
– Não tenho certeza.
– E quanto ao encontro?
– Foi ele.
– Encaminhe os e-mails para mim.
– Estou fazendo isso agora – acessei meu teclado.
– Pode ser considerado intimidação se você entrar em contato com ele, então não o faça. Posso te garantir que não ajudaria em nosso caso.
Aliás, sua amiga me entregou o diário. Obrigada.
– Sim.
– Eu tenho alguns outros casos encaminhados, mas vou ler o máximo possível dele amanhã.
– Ótimo. Obrigado.
– Deixei uma mensagem para os advogados de Lansing; eles ainda não retornaram minhas ligações. Vou tentar novamente de manhã. Com sorte conseguiremos marcar uma
reunião na semana que vem. Eles podem não gostar da ideia, mas acho que deveríamos ir para cima assim que pudermos.
Eu a agradeci novamente e quando encerramos a ligação, vi uma mensagem de texto de Lien-hua perguntando como eu estava: ela ficou sabendo do tiro e estava preocupada.
Considerando tudo que estava na minha cabeça e meus sentimentos confusos em relação a ela, não achava que estava pronto agora para a montanha-russa emocional que
seria conversar com ela. Respondi que estava bem, agradeci por ter dado minha aula hoje e disse que ligaria para ela logo de manhã.
Finalmente, liguei para Margaret e perguntei se Mollie Fischer havia sido encontrada.
– Ainda não.
– Vocês procuraram em todos os quartos do hotel?
– Sim, nós...
– Algum vídeo dela indo embora?
– Não. Não se tem notícias dela, e não há nada nos vídeos. Estamos pensando se os assassinos, de algum modo, conseguiram levá-la para algum carro e saíram do estacionamento
antes que o perímetro fosse cercado. Patrick, eu falei com o médico que tratou seu braço...
– Não.
– Não o quê?
– Os horários não batem. Eu estava bem atrás deles. Eles não tinham como tirá-la dali, especialmente se usaram o táxi.
A menos que só um deles estivesse na sala de armazenamento.
Mas como eles teriam descido oito andares de escada com Mollie?
E quem eram as duas pessoas que os filhos da sra. Rainey viram?
– Nós a encontraremos – Margaret respondeu.
– Mas se ela não deixou o hotel, ela tem que estar dentro dele.
– Estamos cuidando disso – seu tom começou a ficar mais tenso e como eu já tinha discutido esse assunto com Doehring mais cedo, levei a discussão para outra direção.
– Você checou o laptop e a bolsa esportiva que Danny Rainey mencionou?
– Nada foi deixado no táxi que eles usaram. Mas nós encontramos a bala que atravessou seu braço. O laboratório disse que foi uma 9 mm, atirada de uma Walther P99
– ela me contou mais alguns detalhes que os filhos de Rainey compartilharam com ela: o homem e a mulher estavam andando; ela era mais magra que a mãe deles e era
muito bonita. Danny achou que já tinha visto a mulher em algum lugar antes, em um programa de TV. O homem tinha cabelo preto e um monte de cicatrizes no rosto e
era “de tamanho bem normal”.
Cicatrizes.
Hum. Deve ficar mais fácil identificá-lo.
Ela tinha obtido uma porção de boas informações das crianças, que não haviam me dito nada. – Onde você aprendeu a fazer aquilo, aliás?
– Fazer o quê?
– Conversar com crianças daquele jeito. Você parecia uma profissional experiente.
– Eu trabalho com crianças todo fim de semana – ela respondeu. – Ontem você me informou que não viu o homem que estava perseguindo...
– como testemunhas oculares nem sempre se lembram de detalhes específicos por horas ou até dias após um evento traumático, eu achei que sabia aonde ela estava querendo
chegar com isso. – Você pensou mais sobre isso? Você pode dar algum tipo de descrição?
– Eu só tive um vislumbre dele na porta da escada e não consegui ver seu rosto. Mas com base nas imagens do vídeo de segurança dele empurrando Mollie para dentro
do hotel, sabemos que ele é caucasiano, de compleição média, tem aproximadamente 1,80 m ou 1,83 m. Ele usou a mão esquerda para apertar o botão do elevador e para
abrir a porta da escada.
– Então, canhoto.
– Muito provavelmente, sim. E ele favorece a perna direita – minha curiosidade estava me dominando. – Você trabalha com crianças nos fins de semana?
– Sou voluntária num abrigo para mulheres agredidas; eu cuido das crianças para elas. Quando você diz que ele favorece essa perna, você quer dizer que ele coloca
mais peso sobre ela ou menos?
– Menos peso – era como se estivéssemos mantendo duas conversas ao mesmo tempo. – Margaret ajudando em um abrigo, isso é impressionante. Esse é um lado seu que eu
não sabia que existia.
– Agente Bowers, existem muitos lados meus que você nunca viu.
Um comentário como aquele implorava por um contexto diferente, mas quando analisei suas palavras, me ocorreu que Margaret Wellingtonna verdade tinha uma vida fora
do Bureau.
Fascinante.
Finalmente, ela perguntou sobre meu ferimento à bala, e eu lhe garanti que estava bem. – Mais uma coisa – sentei-me na sala de estar. – Foi você que disse ao deputado
Fischer para não soltar a informação sobre sua filha, que isso poderia comprometer a investigação?
– Não.
– E quanto à minha filha? Você contou a ele sobre o caso da custódia?
Um curto silêncio. – Que caso da custódia?
Não senti nenhum toque de mentira na voz dela.
Certo. Então, eu teria que lidar com isso tudo quando me encontrasse com Rodale amanhã. – Esqueça.
– Uma última coisa – Margaret disse formalmente. – Por causa de seu ferimento, estou liberando você de suas responsabilidades como professor pelo resto da semana.
Se você estiver se sentindo apto, pode voltar para a sala de aula quando as aulas da Academia Nacional começarem na segunda-feira.
– Não estou ensinando braço de ferro. Estou ensinando estratégias de investigação geoespacial. Eu vou ficar bem.
– Não estou discutindo isso com você. Há questões de responsabilidade em jogo aqui, pelas quais o Bureau precisa estar consciente e responsável.
– Honestamente, Margaret, não é nada de mais.
– Eu já falei com o agente Vanderveld, e ele aceitou assumir suas aulas.
Não Jake.
Por favor, não Jake.
– Margaret, ele acabou com duas grandes investigações nas quais trabalhou comigo.
– Ele é um membro valoroso do NCAVC e um dos criadores de perfil mais experientes que temos. Ele está qualificado para assumir suas aulas por dois dias – ela tomou
fôlego. – Além do mais, eu me informei: a política do Bureau afirma claramente que qualquer um com um ferimento por arma de fogo causado por ação adversária deve
ser liberado do dever, com remuneração, por pelo menos 48 horas.
– Eu não me lembro dessa regra.
– De quantas regras você lembra?
Ok, isso não foi nada legal.
– Mas e quanto ao caso? – eu disse. – Mollie ainda está desaparecida.
Você não pode esperar que eu me afaste e então...
– Vou mantê-lo informado sobre nosso progresso, mas nas próximas 48 horas, você está oficialmente de licença médica.
Não respondi.
– Você entendeu?
Não disse nada.
– Estamos falando a mesma língua aqui ou não?
– Eu escutei – eu disse evasivamente, e deixei como estava.
Uma pausa, enquanto ela certamente pensava no quanto deveria pressionar, mas finalmente ela continuou: – Não se esqueça, preciso do relatório do seu incidente. Eu
gostaria de tê-lo sobre minha mesa às 9h. Além disso, falei com o hospital. Eles disseram que você precisa completar os formulários que recebeu, que ter preenchido
só as respostas B e D não foi suficiente.
Eu tinha a sensação de que aquilo iria voltar para me assombrar.
– Burocracia. Ótimo. Parece divertido.
– Vejo você em alguns dias. Descanse um pouco. Boa noite, agente Bowers.
– Boa noite, Margaret.
Fim da ligação.
E quando ergui os olhos, vi Tessa parada na porta. – Você escutou tudo? – eu disse.
– Mais ou menos. Quero dizer, a sua parte, pelo menos. Eu pude deduzir o resto.
Ela colocou uma pilha de pastas de papel pardo cheias de papéis impressos sobre a mesa. As pastas tinham sido rotuladas “Metacognição em Primatas”, “Agressão de
Primatas” e “Altruísmo em Grandes Primatas”.
Metacognição em primatas? Altruísmo em grandes primatas?
– Era a diretora-assistente Wellington – meus olhos estavam nas pastas. – Não tenho certeza se você já teve o prazer de conhecê-la.
– Alguém já teve?
Oh. Bela frase.
Essa valia a pena lembrar.
Tessa sentou-se ao meu lado. – Ela é sempre desse jeito?
– Bastante – curioso, folheei a pasta do altruísmo. Tessa imprimira mais de uma dúzia de artigos de revistas científicas sobre altruísmo recíproco, empatia cognitiva,
intencionalidade primata e reciprocidade de parceiro específico entre chimpanzés. Eu peguei a ideia do que as frases se referiam, mas não tinha certeza de como esses
artigos poderiam estar relacionados ao caso.
– A palavra inflexível não chega nem perto, né? – Tessa disse, se referindo a Margaret novamente.
– As palavras que chegariam perto não seriam apropriadas para uma garota de 17 anos.
– Aposto que posso adivinhá-las.
– Aposto que você pode.
Enquanto folheava as impressões, fiquei impressionado com a completude da pesquisa de Tessa. – Você fez um ótimo trabalho aqui. Estou orgulhoso de você.
– Espero que ajude – ela estava arrumando o tabuleiro de xadrez.
Fechei a pasta. – Vou dar uma olhada nisso de manhã quando tiver um pouco mais de tempo.
Quando terminou de arrumar as peças, ela silenciosamente girou o tabuleiro de modo que as peças brancas ficassem na frente dela, e então, sem nenhuma palavra, moveu
o peão do rei para E4 e olhou para mim.
Me posicionei em frente a ela e joguei na E5. Tessa favorecia uma abertura Ruy Lopez, então não fiquei surpreso quando ela contra-atacou com um cavalo na F3.
Mas eu tentei a Defesa de Petrov para ver como ela reagiria, então em vez de colocar o cavalo na C6, joguei-o na F6.
Ela me encarou.
Sorriu de um jeito delicado e confiante.
Enquanto o jogo progredia, o estresse do caso começou a se esvair, a dor no meu braço foi diminuindo, e apesar de Tessa e eu não estarmos conversando, parecia que
estávamos nos abrindo um para o outro de maneiras mais profundas que com palavras.
Eu era apenas um pai passando um tempo com sua filha.
Percebi que eram momentos como esse que Paul Lansing estava tentando tirar de mim.
Então fiz uma jogada, ela comeu meu cavalo e eu percebi que precisaria mudar toda minha estratégia ou acabaria perdendo essa partida antes de ela mal ter começado.
45
Oasis Hotel
Vienna, Virgínia
23h47
Após o desastre no Lincoln, Astrid sugeriu que ela e Brad ficassem em um hotel naquela noite em vez de permanecerem em casa, só para garantir.
– Pelo menos tudo deu certo – Brad disse enquanto ela trancava a porta.
– Mas atirar em um agente do FBI foi precipitado. Descuidado.
– Ok.
– Você entendeu?
– Sim.
Isso foi há uma hora.
Agora, ela estava colocando algo mais confortável para deitar, e ele a observava.
Nos últimos minutos, por alguma razão, eles tinham chegado ao assunto de assassinos em série. – Eles levam lembranças – Brad disse. – Os assassinos em série fazem
isso. Para que possam reviver seus crimes, para que possam ter aquela sensação de poder e controle novamente.
Ela já sabia disso, é claro, mas decidiu fingir que não sabia. – Que tipo de lembranças?
– Joias, roupas íntimas, partes de corpos. Em um número surpreendentemente alto de casos, sapatos.
Assassinos em série.
Como Brad.
Mas não como ela. Ela nunca matou ninguém, não na vida real. Sempre fora ele.
Ela planejou assim desde o começo.
Caso algum dia eles fossem pegos.
Não, ela não era uma assassina. Apenas uma espectadora. – Nós mantemos um tipo diferente de lembrança – ela disse, voltando para a conversa.
Ele olhou para ela com curiosidade.
– No freezer – ela acrescentou.
– No freezer?
– Prisão, nosso pequeno aquário.
Um olhar interrogativo.
– Nunca contei para você? Sobre o aquário?
– Acho que não.
Ela entrou no banheiro para se refrescar. – Você disse uma vez que teve um cachorro, quando era criança.
– Brandi. Ela era uma pastora-de-shetland.
– Eu nunca tive um bicho meu, mas minha irmã teve – ela já tinha contado a ele histórias sobre sua irmã Annie para ele. – Um peixinho dourado chamado Douradinho.
– Annie tinha um peixinho dourado chamado Douradinho.
– O que posso dizer? Sempre fui a mais criativa da família – ela lavou o rosto. – Douradinho vivia em um aquário sobre a penteadeira de nosso quarto; enfim, uma
noite Annie e eu tivemos uma briga. Eu não lembro do motivo – quem deveria ajudar nosso pai com a louça, talvez. Algo do tipo. Mas eu acabei tomando a bronca, e
Annie passou o resto da noite me provocando. Bem, na manhã seguinte, quando ela acordou, Douradinho tinha sumido.
– Você jogou o peixinho dourado dela na privada e deu descarga?
– Não.
Astrid terminou o que estava fazendo no banheiro. – O aquário do Douradinho tinha sumido, e Annie o procurou por toda parte. Era sábado, mas meu pai trabalhava nos
fins de semana, então estávamos em casa sozinhas. Annie era maior que eu, mais forte, e me bateu. Muito. Mas eu não reclamei de nada. Ela esvaziou a lixeira, não
encontrou nenhum vidro, procurou em todos os lugares do lado de fora.
Nenhum sinal do peixe ou do aquário em lugar nenhum.
Ela olhou para ele para ver sua reação.
Ele estava ouvindo com atenção. Ela estava com ele na mão, dava para ver.
– Acho que Annie deve ter procurado por três ou quatro horas naquela manhã. Finalmente, na hora do almoço, achei que já era suficiente. Falei para ela procurar...
– No freezer – ele disse.
Ela sorriu. – Sim. Annie chorou por três dias. Meu pai me bateu por ter feito aquilo, mas cada vez que ele me acertava, eu mal percebia, tudo o que eu conseguia
pensar era em como eu tinha me sentido enquanto Annie estava procurando. A sensação foi... – ela procurou pela palavra certa e não conseguiu achar. – Não foi igual
a nada que eu já tivesse experimentado antes.
– Extraordinário – ele disse. – Foi extraordinário.
– Sim – ela se acomodou ao lado dele na cama. – Tudo que eu fiz foi colocar o aquário no freezer e fechar a porta. Simples assim. E então a água começou a congelar
e eu sabia que lentamente, lentamente, se tornaria um bloco sólido de gelo.
– Isso fez você se sentir poderosa.
– Sim.
– Foi assim que você começou?
– Não foi a única coisa – ela pensou por um momento. – Você faz as coisas e então a vida simplesmente continua, mas você tem um segredo, e de certo modo você quer
que alguém abra o freezer para ver o que você fez, para ver sua obra, mas você não conta para eles porque enquanto eles procuram, enquanto se perguntam, enquanto
se preocupam, você é dono de uma parte deles.
– Como o FBI, agora – ele disse. – Procurando por Mollie, por nós dois. Nós controlamos uma parte deles.
Ela pensou no jogo atual, mas também nos quatro homens na cadeia por causa dela. O peixinho dourado dos jogos anteriores. Ela poderia soltá-los a qualquer hora;
tudo que precisava fazer era contar a verdade para as autoridades. – Sim.
Então, depois de observá-lo por um momento, ela se afastou e sorriu. – Então, como eu me saí?
– Com o quê?
– Com a história. Convenci você?
Um ponto de interrogação em seu rosto. Então, a decepção crescente. – Você inventou tudo?
– Fui bem, não fui?
– Eu não sabia que era mentira.
Então, sim, ele havia acreditado nela. Ele a observava com um olhar ferido, confuso, o mesmo olhar que ele fez no hotel quando ela deletou a foto de Rusty.
– Não fique emburrado – ela acariciou sua bochecha. – Foi uma boa história, não foi?
Após um momento: – Sim. Foi uma boa história.
– Hora de ir pra cama.
– Ok.
O romance que era sua vida começou a passar em sua cabeça.
Ele ficou distante e distraído durante toda a noite, e aquilo a incomodou, especialmente porque foi ele que falhou com ela mais cedo, sendo tão impulsivo, tão desleixado,
atirando no agente do FBI.
Sim, era verdade que ela o enganara, agora duas vezes no mesmo dia, mas isso não devia ter sido um choque para ele. Afi-nal, muito do relacionamento deles foi construído
sobre a areia de meias verdades e mentiras. Desde o início. Desde o DuaLife.
Esse mau humor e essa imprudência não eram aceitáveis. Em uma guinada silenciosa de emoções, ela se viu conside
rando possibilidades que nunca tinha explorado totalmente.
Ela começou a se perguntar se ele não estava se tornando um fardo.
A ideia a fez se sentir desconfortável. Ele era o pai de seu futuro filho e ela o amava, mas agora ela percebeu que se as coisas chegassem a esse ponto, ela precisaria
estar pronta para fechar a porta do freezer nesse pequeno e cicatrizado animalzinho de estimação que descansava em seus braços.
E, para sua surpresa, achou a ideia sedutora.
Talvez até extraordinária.
46
Quinta-feira, 12 de junho 5h15
Meu braço estava me matando.
Não sou um grande fã de remédios, então, na noite passada, apesar de já ter tomado os antibióticos, pulei a segunda dose de remédios que o médico me receitou e,
como resultado, o ferimento à bala doeu e latejou a noite toda, deixando meu sono leve, irregular e esporádico.
Finalmente, quando a luz do dia entrou pela minha janela, desisti de lutar para dormir e saí da cama.
E então tomei os analgésicos idiotas.
Sem exercícios hoje, mas me lavei e, enquanto me vestia, reparei no pingente de São Francisco de Assis que ganhei de Cheyenne repousado sobre minha cômoda, onde
eu o deixara quando nos mudamos para a casa para passar o verão.
Mês passado, quando eu estava me preparando para ir depor no novo julgamento de Richard Basque, ela me deu o pingente, explicando que São Francisco é o santo padroeiro
contra a morte solitária. “Ajuda a me lembrar por que faço o que faço. Vai ser bom para você estar com ele no julgamento. Para se lembrar das mulheres que ele matou.”
Eu sabia que ela era católica, e suas palavras me ressaltaram o quão a sério ela levava sua fé. – Não se preocupe, eu consigo arrumar outro.
Não sou muito religioso ou supersticioso, mas o gesto significou muito para mim, e eu aceitei o pingente.
Agora, quando o peguei, não pude deixar de pensar no que Lien-hua mencionara, de que Mollie Fischer teria se livrado do medalhão que Rusty lhe deu se ela realmente
tivesse terminado com ele.
Então talvez você não devesse guardar o pingente...?
Mas Cheyenne e eu nunca havíamos terminado, nem sido um casal. Na verdade, nós só saímos juntos uma vez, e foi apenas um falso encontro, pois Tessa tinha ido junto.
Falso encontro ou não, escorreguei o pingente para o meu bolso, escolhi uma camiseta larga o suficiente para esconder o curativo do meu braço, ignorei a tipoia e
fui para a cozinha tomar café da manhã.
Margaret deixou claro que não queria que eu trabalhasse no caso hoje, mas de jeito nenhum ela poderia desligar essa parte do meu cérebro por 48 horas.
Além do mais, nós ainda não havíamos encontrado Mollie, e havia uma chance remota de ela ainda estar viva. Então, após comer alguma coisa e coar um pouco de Yirgacheffe
da Etiópia, acessei a internet e entrei nos arquivos do caso para ver o que havia sido adicionado desde a noite passada.
O laboratório do FBI confirmou que a mulher encontrada no instituto de pesquisa de primatas era, de fato, Twana Summie. Sua família foi contatada e, lendo o registro
da autópsia, pensei nas palavras que provavelmente foram ditas a eles:
“Sua condição foi comprovadamente fatal.”
“Chegamos tarde demais para salvá-la.”
Banalidades.
Sem dúvida, os policiais acompanhariam a família e os amigos dela, fazendo as perguntas típicas: você sabe de alguém que poderia querer fazer mal a ela de algum
modo? Ela mencionou se iria encontrar alguma pessoa no dia em que desapareceu? Ela estava agindo de modo estranho antes de desaparecer? Ela conhecia Rusty Mahan
ou Mollie Fischer?
E, claro, eles verificariam sua agenda e seu calendário, checariam suas chamadas telefônicas recentes, procurariam e depois interrogariam as últimas pessoas que
a viram viva.
Durante meus seis anos como detetive de homicídios em Milwaukee, eu tinha feito minha cota dessas perguntas e perseguido esses tipos de pistas, e me lembrava de
como era desanimador entrar em um beco sem saída atrás do outro.
Ainda agora, dadas as ações inescrutáveis dos assassinos dessa semana, trocando a placa do carro, encenando as cenas do crime, usando técnicas elaboradas de despiste,
nos desafiando a decifrar suas pistas e a prever seus próximos passos, eu tinha a sensação de que mais becos sem saída do que o normal estavam no nosso horizonte.
Continuei lendo.
A força-tarefa estava compilando uma lista de outros suspeitos potenciais. Até agora, eles coletaram centenas de nomes de denúncias e de históricos de centenas de
infratores conhecidos que haviam cometido crimes violentos em Washington, DC e nos estados vizinhos. A lista de suspeitos estava aumentando, e não diminuindo, a
cada hora. Na verdade, mais dois nomes apareceram na tela enquanto eu estava lendo o relatório.
A equipe ainda estava procurando por Aria Petic.
Nenhum DNA foi encontrado na luva de látex deixada no estacionamento. Aparentemente, ela nunca foi usada.
Surpreendentemente, a ERT não encontrou nada útil na van com acesso para deficientes, exceto por uma nota fiscal da semana passada de um posto de gasolina que não
tinha nenhuma impressão digital nem evidências de DNA que Mollie, Twana e Rusty estiveram na parte de trás. Eles acompanharam, mas a nota não os levou a lugar algum.
Nenhuma impressão utilizável no botão do elevador que o suspeito apertou; então, evidentemente, ele evitou tocar nele com a ponta do dedo ou tinha limpado o botão.
Beco sem saída atrás de beco sem saída.
O dr. Trower, médico forense do Distrito de Colúmbia, confirmou que Twana morreu pelo ataque dos chimpanzés. As mordidas em seu pescoço fizeram com que ela morresse
de hemorragia.
Porém, de acordo com o médico, havia lacerações em seu rosto que não poderiam ter sido causadas pelo chimpanzés. Ele especulou que, como chimpanzés consomem sangue,
os assassinos infligiram esses ferimentos antes dela morrer para atrair a atenção dos animais. Apesar dessa teoria ainda não ter sido confirmada, parecia uma explicação
plausível para mim.
Até o momento, não havia ligações claras entre Twana Summie e Mollie Fischer, Rusty Mahan, o deputado Fischer ou o centro de pesquisa. E a única ligação que Twana
parecia ter com o Lincoln Towers Hotel era o uso de seu cartão de crédito para pagar pelo quarto: o número do cartão de crédito que de algum modo não aparecia nos
registros do hotel. O que servia de evidência de que um dos assassinos era um hacker habilidoso.
Pensei em Twana por um momento. Era completamente possível que os assassinos a tivessem escolhido simplesmente por causa de suas similaridades físicas com Mollie
Fischer, mas, se isso fosse verdade, eles ainda precisaram encontrá-la e segui-la antes de sequestrá-la. E isso era uma pista de onde eles estiveram no começo da
semana.
E como espaço de consciência se correlaciona com padrões de movimento, também era uma pista de onde eles poderiam estar agora.
Peguei as anotações que eu tinha feito ontem à tarde, enquanto esperava o médico olhar meu braço, e folheei até chegar na lista de locais relacionados com os crimes.
• Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson: habitat dos chimpanzés, estacionamento, sala de pesquisa (para a droga), centro de controle de segurança, outro??
• Lincoln Towers Hotel: quarto 809, o estacionamento, o elevador de serviço, o depósito no nível inferior, outro??
• A van na vaga para deficientes.
• Os pontos de embarque e desembarque do táxi, e o próprio táxi.
• A ponte da Connecticut Street onde o corpo de Rusty foi encontrado.
• Williamson’s Electronic Store – possivelmente.
• As residências, endereços de trabalho e padrões de deslocamento de Rusty Mahan, Mollie Fischer, Twana Summie e Aria Petic.
Apenas uma rápida olhada na lista me fez perceber que eu tinha informações suficientes para um perfil geográfico inicial para começar a afunilar o local mais provável
da base de ação do assassino.
Anotei algumas perguntas:
Qual é o significado desses locais de cena do crime para os assassinos? Por que o centro de primatas? O Lincoln Towers? Qual é a ligação entre os dois? Como a vida
do assassino teria se cruzado com a de Mollie Fischer? De Rusty Mahan? De Twana Summie? Do deputado? Quem era a mulher que fugiu do Lincoln Towers Hotel com o homem
não identificado? Aria Petic? Como os assassinos conseguiram tirar Mollie Fischer do hotel? Eles tiraram?
Olhei para essas duas últimas palavras, pensei novamente no que eu sabia sobre o caso e então escrevi uma última pergunta, uma perturbadora, mas que precisava ser
considerada: Mollie Fischer foi realmente sequestrada?
47
Fiquei olhando para a pergunta. Pensei no que sabíamos até agora: Mollie estava desaparecida; ela não era a vítima que encontramos no centro de pesquisa; ela foi
levada de cadeira de rodas, aparentemente inconsciente, por um homem não identificado, mas até então não havia evidência de que ele tinha causado mal a ela. Até
onde sabíamos, apenas duas pessoas saíram do hotel, e se o suspeito masculino era uma daquelas duas pessoas e Mollie Fischer, em vez de Aria Petic, era a segunda,
estava explicado por que seu corpo não havia sido encontrado.
A situação parecia inacreditável para mim, mas eu já tinha trabalhado em casos anteriores com tantas reviravoltas que eu não queria descartar nenhuma possibilidade.
Ralph estava em Michigan e Margaret ordenou que eu não trabalhasse hoje, então mandei um e-mail para Doehring com minhas ideias e pedi que ele mandasse um policial
para verificar todo mundo que estava registrado no Lincoln Towers Hotel ontem para ver se conseguíamos ligar os pontos entre algum dos hóspedes e Mollie ou Twana.
Também pedi que ele procurasse melhor no passado de Mollie por alguma possível conexão com atividades criminosas, confirmadas ou suspeitas.
Então mergulhei no perfil geográfico.
Mapas cognitivos se diferenciam não apenas por causa dos relacionamentos das pessoas com seus arredores, mas também por causa dos relacionamentos entre as pessoas:
se são casadas, solteiras, divorciadas, assim como idade, gênero, raça, classe social e a disposição atual da cidade onde vivem.
Cada um de nós só é intimamente familiar com uma pequena fração da área total de nossa cidade ou de nossa região rural. E eis a chave: o espaço de consciência de
uma vítima quase sempre se sobrepõe, pelo menos por alguma extensão, ao espaço de consciência do infrator. O que faz sentido, porque suas vidas se cruzaram pelo
menos no momento do crime.
Então, era aí que eu começaria, pelas rotas de deslocamento conhecidas e pelo espaço de consciência das vítimas. E eu poderia determiná-los pela localização de suas
compras mais frequentes com cartão de crédito, suas filiações a clubes, localização GPS de suas ligações telefônicas e assim por diante.
Coloquei o celular com o projetor de holograma sobre a mesa na minha frente, conectei-o com um cabo ao meu laptop, posicionei minha caneca de café ao lado do computador
e comecei a trabalhar.
6h02
A diretora-assistente-executiva do FBI, Margaret Wellington, não dava comida de cachorro enlatada para seu golden retriever de raça pura, Lewis.
De jeito nenhum.
Apenas comida gourmet, e agora, enquanto ela abria a embalagem, ele deve ter ouvido o barulho, pois veio correndo para a cozinha. Balançava o rabo alegremente.
– Bom dia, Lewis – ela afagou seu pescoço e encheu a tigela. Após cheirar a mão dela, Lewis virou-se para a comida.
Ela pegou suas coisas e foi na direção da porta.
Margaret tinha o costume de sair para o trabalho às 5h30, principalmente para evitar o trânsito de Washington, DC, mas também para pegar o máximo de trabalho que
podia antes de Rodale encher seu prato com mais ainda.
Hoje, no entanto, ela estava mais de trinta minutos atrasada. E isso não a deixava feliz, especialmente sabendo de sua agenda lotada para o dia.
Além do caminho até a cidade, ela tinha pelo menos três horas de trabalho para fazer antes da coletiva de imprensa marcada para as 9h.
Impossível, mas ainda assim esperavam que ela fizesse tudo.
Ela não ligava de falar com a imprensa, caía bem para ela, mas ela não gostava de limpar a bagunça dos outros. E, até agora, era nisso que esse caso estava se transformando:
uma completa bagunça.
Primeiro, ela tinha o clamor público pela identificação errônea de Fischer da vítima do homicídio na terça-feira à noite. Os blogueiros de direita tiveram um dia
cheio com aquilo: “Se ele não conhece nem a própria filha, como pode saber o que é melhor para o país?”
Estupidez.
Além de falta de escrúpulos. Tirar vantagem da perda de um familiar somente para ganho político.
Isso a deixava furiosa.
O erro de Fischer pode resultar em um processo contra o Bureau, ainda que o médico forense que falhou em verificar a identidade da jovem fosse funcionário da cidade
e não do FBI. É isso que acontece nessas investigações conjuntas, incompetência e linhas de autoridade confusas. E nesse caso, como Rodale a designou para comandar
as coisas, a batata quente sobrava para ela.
Ela precisava lidar não apenas com a desonra das relações públicas do Bureau, mas também com a perturbada família Summie, com o inabalável deputado e seus comparsas
e uma equipe de investigação que só diminuía.
O agente Hawkins estava em Michigan.
O agente Bowers estava se recuperando.
Ontem à noite, antes de falar com Bowers, ela leu o relatório do hospital sobre seu ferimento à bala e sabia que era mais sério do que ele estava dizendo.
A recuperação dele era necessária para o bem da investigação, assim como das aulas da Academia Nacional que começariam na segunda--feira. Apesar de sua impertinência,
ele era o instrutor mais qualificado do Bureau em mapeamento criminal e análise de localidade, criminologia ambiental e investigação geoespacial, e ela não podia
se dar o luxo de ficar com ele fora de ação e arriscar diminuir a reputação da Academia como a melhor instituição de treinamento de força policial do mundo.
Então, sim, ele precisava de descanso, mas o conhecia bem o suficiente para imaginar que ele não era o tipo de pessoa que ouvia conselhos de médicos. Então, para
o bem dele, ela citou uma falsa política do Bureau sobre agentes feridos em ação terem que tirar licença médica por 48 horas.
E ele realmente parecia ter acreditado.
Enquanto pensava sobre ele, reparou que uma das poucas características que ela tinha em comum com Patrick Bowers era essa: nenhum deles acreditava em coincidências.
Ela serviu em um comitê no inverno passado para um programa do Departamento de Defesa que foi encerrado em fevereiro e, por causa da natureza do projeto que o comitê
supervisionava, ela tinha quase certeza de que não era coincidência os assassinos terem escolhido o instituto Gunderson. Porém, por causa de implicações sociais
e políticas do Projeto Rukh, ela precisava agir com cautela e confirmar suas suspeitas antes de revelá-las para a força-tarefa.
Até o momento, era trabalho dela manter todos esses pratos girando no ar e, apesar de sua experiência e perspicácia administrativa, ela não tinha certeza de que
conseguiria.
Mas enquanto pegava a rodovia e dirigia até o trabalho, ela dizia a si mesma que conseguiria.
48
Demorei mais de duas horas para delimitar uma possível zona de ação onde o assassino devia morar ou trabalhar, e acabei com um raio de dez quadras no bairro comercial
da cidade. Não era tão preciso quanto eu gostaria, mas pelo menos era um ponto de partida para nós enquanto começávamos a avaliar os endereços da casa e do trabalho
das pessoas na crescente lista de suspeitos.
Eu estava mandando os dados via e-mail para Doehring quando ouvi Tessa se mexendo em seu quarto.
Ela normalmente não sai da cama até pelo menos 10h, e ainda não era nem 8h30. Imaginei que o impacto emocional por ter descoberto sobre o caso da custódia havia
tirado um pouco do sono dela.
Como eu não queria que ela acabasse vendo meu trabalho, desliguei o holograma e alguns minutos depois ela entrou na cozinha, ainda com os olhos inchados e de pijama,
mas pelo menos já um pouco consciente.
– Bom dia, Raven – eu disse.
– Bom dia – ela disse. Ela se mexia em câmera lenta. Parecia um zumbi.
– Dormiu mal?
Ela se serviu de uma caneca de café, tomou um gole longo e lento.
– Sim – então gesticulou na direção do meu braço. – Estava preocupada com você.
– Comigo?
– Seu arranhão.
– Ah, obrigado. Está melhorando. Então quer dizer que você tem um lado sensível, afinal.
– Sim, claro – ela olhou para meu telefone, meu laptop, anotações feitas à mão. – Estou vendo que você já está trabalhando duro, desobedecendo sua chefe.
– Pensei em começar cedo.
– Deixe-me adivinhar... – ela bocejou. – Você está tentando remover as conjecturas com os fatos até que apenas a verdade permaneça? Algo assim?
Olhei para ela. – Você acabou de inventar isso?
Ela deu de ombros e passou uma mão cansada pelo cabelo. – Soava como algo que você diria.
– Eu posso querer usar isso em minhas palestras.
– Você deve estar desesperado por algum material – ela esvaziou a caneca e a encheu novamente.
Coloquei meu computador de lado. – Sério, Tessa. Você está bem?
Ela deu de ombros novamente. – Você sabe – outro bocejo. – Preciso me vestir.
Enquanto ela tomava banho, passei algum tempo finalizando a papelada de Margaret e os formulários para o hospital. Logo depois, o chuveiro foi desligado e comecei
a folhear uma parte da pesquisa sobre primatas que Tessa havia imprimido.
Tinha folheado dois artigos quando o programa de videoconferência do meu computador apitou e me avisou que Lien-hua estava on-line.
Após um momento de reflexão, digitei: “Bom dia”.
Esperei.
Não demorou.
“Ligue sua câmera”, ela escreveu. “Para a gente conversar”.
Liguei.
O rosto dela apareceu, um vaso de flores arrumadas artisticamente ao lado dela. Então, ela estava em sua cozinha. Seu cabelo negro ainda estava despenteado, mas
isso não afetava sua beleza.
Lien-hua me avaliou por um momento e então disse: – Eu perguntaria como está seu braço, mas você vai me dizer que está bem, então vou pular essa parte. Como você
está, Pat? De verdade.
– Estou me sentindo como se uma bala tivesse atravessado meu bíceps e só dormi algumas poucas horas.
Meu comentário provocou um sorriso e um pequeno aceno com a cabeça.
– Obrigada. E disseram que você vai ficar bem?
– Não poderei praticar escalada por alguns dias. Fora isso, devo ficar bem.
– Ooh... isso vai ser difícil. Acha que vai conseguir?
– Não tenho certeza. Talvez eu tenha que arrumar algo menos extenuante para fazer. Tipo kickboxing.
– Quando quiser uma aula, é só falar.
Senti a íntima atração que eu nutria por ela voltando. Talvez nunca tivesse passado. – Cuidado, eu posso pegar você.
– Estou ansiosa para ver isso.
Não era fácil conter minha curiosidade sobre o que ela e Cheyenne tinham conversado na noite passada quando foram jantar juntas, mas realmente não era da minha conta
e evitei perguntar sobre isso. – Como foi a fazenda de corpos ontem?
– Perturbadora. Realmente não é o meu negócio.
– Eu sei.
Uma pausa. – Pat, fiquei sabendo que Margaret o colocou em licença médica pelos próximos dois dias.
– É só um boato desagradável.
Ela acenou com a cabeça suavemente.
O silêncio tomou conta da conversa, e eu podia sentir o clima mudando, se aprofundando. Finalmente ela disse:
– Preciso te contar uma coisa.
Esperei.
Ela continuou lentamente. – Quando eu soube que você foi atingido, eu... Pat, tudo entre nós, seja o que for que deu errado, quando eu descobri que você havia se
ferido daquele jeito, tudo pareceu tão insignificante. Tão irrelevante – ela tirou uma mecha rebelde de cabelo de cima dos olhos. – Eu fiquei tão preocupada com
você!
Inconscientemente, reparei que pensamentos sobre Cheyenne estavam rondando dentro de mim, disputando minha atenção. Espantei-os. – Eu devia ter ligado para você
na noite passada...
Lien-hua balançou a mão pelo ar, como se estivesse apagando qualquer erro do passado. – Tudo bem. Eu acabei ligando para Ralph, ele havia acabado de chegar em Michigan.
Ele me disse que você ia sobreviver, a menos que ele o matasse por ficar choramingando.
Eu queria contar para ela que ele tinha arrancado a intravenosa do meu braço e que doía, e que havia uma porção de agulhas e tudo mais, mas percebi que aquilo não
soava muito másculo. – Bem, é muito atencioso da parte dele.
Outra pausa e novamente parecia que o momento se aprofundava, encolhendo o espaço entre nós. – Eu gostaria de te ver – ela disse –, mas vou ficar no posto de comando
na central da polícia a maior parte do dia. Você vai estar na cidade hoje?
– Na verdade, Vanderveld vai assumir minhas aulas. Tenho uma reunião com Rodale ao meio-dia. Então, sim. Estarei em Washington, DC para isso.
– Tem uma reunião marcada para as 14h. Se sua reunião não demorar muito, gostaria de almoçar comigo depois? Posso ficar até 13h30.
– Almoço parece bom. Eu te dou um toque quando estiver pronto para sair do quartel-general.
– Ok – ela me sorriu com os olhos e eles irresistivelmente me levaram para o mundo dela. – Nos falamos mais tarde.
– Até mais tarde.
Quando finalizei a conversa, reparei em Tessa, com sua sobrancelha erguida, esmalte preto recém-aplicado e usando uma minissaia sobre uma calça legging preta, me
observando da porta.
Patrick estava olhando sério para ela.
– O quê? – ela perguntou.
– Você arrumou um péssimo hábito de ouvir minhas conversas.
– Na verdade, sempre tive esse hábito, mas você só está reparando agora – ela entrou na cozinha. – Problemas com garotas, é?
– Não.
– Ahn-ham – ela se sentou na frente dele. – Então, você está confuso sobre as duas? De qual delas você deveria ir atrás.
– Não estou com problema nenhum – ele grunhiu. – Não estou confuso. E você está pensando que é quem? O dr. Phil?
– Negação. Não é um bom sinal.
Ele esperou. Provavelmente sentindo que no fim das contas fugir das perguntas dela seria uma batalha perdida, soltou um pequeno suspiro e admitiu: – Certo, talvez
um pouco confuso. Mês passado Lien-hua terminou comigo e agora, bem... Não sei o que pensar.
– É. E a detetive Warren está aqui.
Ele olhou para ela pálido.
Ah, você tá de brincadeira comigo.
– Introdução a Relacionamentos, Patrick: o que faz uma garota ficar mais interessada do que nunca em um cara?
– Não sei. Eu...
– Se liga! Outra garota interessada no cara.
– Ah. Entendi.
– Então, com qual delas você quer ficar?
Ele pensou por um momento. – Honestamente, não tenho certeza.
– Bem, continue desse jeito que você vai acabar sem nenhuma.
Seu rosto mostrava curiosidade. – Por que você diz isso?
– Nenhuma mulher quer ser deixada sozinha enquanto você está solto por aí procurando alguém melhor.
– Eu não estou deixando ninguém sozinho.
– Você está flertando com as duas.
– Não estou, não.
Uma pausa.
– Se você está dizendo...
– Não é isso que estou fazendo.
– Tá bom.
– É sério.
Ela deu de ombros. – Certo. Entendi.
Ele cruzou os braços. – Pare com isso.
– Parar com o quê?
– De concordar comigo.
– Você não quer que eu concorde com você?
– Toda vez que você concorda comigo, dá pra ver, é só outro jeito de você discordar de mim sem que eu perceba.
– Eu deveria concordar com isso? Ou não?
Ele abriu a boca como se fosse responder, então a fechou.
Ele olhou para o relógio, obviamente tentando arrumar um jeito de escapar da conversa. Então se levantou, pegou as anotações sobre os primatas, seu telefone, uma
prancheta e o laptop e os enfiou em sua bolsa do computador. – Preciso sair, Tessa.
– Para onde?
– Tenho uma reunião com o diretor Rodale.
Ela acenou com a cabeça na direção do computador. – Durante sua conversa você disse que sua reunião era ao meio-dia.
Ainda faltam umas três horas.
– Vou tentar falar com ele um pouco mais cedo.
– Para ter mais tempo para almoçar com a agente Jiang?
Ele pegou a chave do carro. – Estou indo agora.
– Mas e quanto a mim?
– Bem, eu estava pensando que você poderia ficar aqui.
– Sozinha?
Ele olhou para ela. – Você já é crescidinha.
– Paul sabe onde eu moro, e ele está tentando me encontrar, lembra? Conversar comigo sem você por perto. Tem certeza de que quer me deixar aqui sozinha?
Suas palavras pareceram surtir efeito.
– Tudo bem – ele disse finalmente. – Vamos.
Ela pegou a bolsa. – Espero que a agente Jiang goste de comida vegetariana.
49
Astrid tinha nove anos quando aconteceu.
Sua mãe morrera durante o parto e ela era filha única.
Não havia nenhuma irmã Annie, é claro. Ela mentira para Brad sobre isso desde o começo... Seu pai não trabalhava nos fins de semana... O peixinho dourado tinha sido
de Astrid, e foi um menino da vizinhança que colocou Douradinho no freezer, dizendo para ela depois que foi tudo uma brincadeira e que ela não devia fazer tanto
drama por causa daquilo.
Foi Astrid, e não a imaginária Annie, que chorou por três dias quando Douradinho foi encontrado morto.
E claro, seu pai não tinha batido nela, nunca teria encostado a mão nela, ele não era esse tipo de homem.
Mas ela não queria parecer vulnerável ou fraca para Brad, então tinha inventado um segundo passado, uma vida dupla, apenas com verdades suficientes para que as coisas
parecessem críveis.
Apesar de seu pai ter sido bom para ela, mesmo quando criança, Astrid percebia que algo não estava certo. Muitas vezes ela o ouvia chorando quando estava sozinho.
Às vezes de manhã, antes do trabalho, às vezes tarde da noite, às vezes em seu escritório quando ele deveria estar preparando as aulas que dava na faculdade.
Ela finalmente se conformou com a ideia de que talvez ele chorasse porque algo dentro dele estava quebrado.
Era uma explicação que fazia sentido para uma criança.
Foi ela que o encontrou naquela noite de maio.
Ele não havia chorado naquele dia. Apenas olhou para ela com um olhar distante e triste e lhe disse que a amava muito e que sempre a amaria, e perguntou se ela entendia
aquilo, se realmente entendia. E ela respondeu que claro que entendia, e então ele a segurou perto de si de um jeito que a assustou.
– Eu preciso fazer um trabalho hoje à noite – ele explicou para ela. – Depois que você for dormir. Então se você me escutar no escritório, não se preocupe.
– Tudo bem, papai – ela disse.
Então ele a levou para a cama.
E logo depois, quando ela tinha terminado de ler o livro da Nancy Drew que ele lhe dera de aniversário, e tinha acabado de apagar a luz, um barulho alto veio do
escritório e, então, de repente ela escutou a batida de uma cadeira de madeira caindo no chão, que estremeceu a casa inteira.
Ela se sentou na cama. – Papai?
Silêncio, com exceção de um rangido agudo que vinha do escritório. Quase como o som de um balanço se movendo em um dia de vento no parque.
Ela chamou de novo. – Papai? O que aconteceu?
Nenhuma resposta.
Ela pegou seu bicho de pelúcia favorito, um gatinho chamado Malhado. – Papai?
Nenhuma resposta.
Ela saiu da cama e estava com medo de novo, como estava quando ele lhe dissera, com uma certa urgência, o quanto a amava.
– Papai?
Silêncio.
Ela andou até o corredor, mas ele estava escuro e vazio e parecia se esticar eternamente na frente dela, como se tivesse crescido desde a última vez em que ela havia
passado por ele.
O som repetitivo do rangido agora estava ficando mais e mais baixo.
Ela abraçou o Malhado com força.
Foi na direção do escritório.
Seu pai quase nunca trancava a porta porque, como ele gostava de dizer: – Você é mais importante para mim do que o trabalho, querida. Então, sempre que você precisar
de mim, pode entrar. Um pai tem que ter suas prioridades bem definidas, você sabe.
Mas naquela noite estava trancada, e quando ela o chamou, ele não respondeu. Então, ainda bem que ela sabia onde ele escondia a chave: na cozinha, no armário onde
ele guardava as louças mais bonitas, acima da pia.
Ela não demorou muito para encontrar.
Ela voltou para o escritório.
Então, destrancou a porta, apoiou a mão nela e a empurrou.
A porta se abriu lentamente à frente dela.
Ela viu primeiro seus pés, a cerca de trinta centímetros do chão, e então seus olhos percorreram suas pernas, seu corpo, passando por sua cabeça até chegar a corda
que se esticava retesada da viga do teto que tinha parado de estalar agora. Então o corpo de seu pai girou na direção dela.
E ela viu seu rosto.
E gritou.
Largando Malhado, ela disparou pelo corredor o mais rápido que pôde e se jogou debaixo da cama. Ela estava chorando e tremendo e desejou, desejou, desejou não ter
deixado seu gatinho para trás, no corredor. Desejou não ter visto o que viu.
O rosto de seu pai.
Pensamentos terríveis passavam por sua cabeça. Pensamentos medonhos, assustadores e imagens muito ruins nas quais ela não queria pensar.
Seu pai no escritório.
Seu rosto.
A corda esticada.
Mas os pensamentos não iam embora.
Ela queria ajudá-lo, queria, mas não conseguia.
Não conseguia fazer nada.
Só rezar.
Talvez ela pudesse rezar.
Mesmo sem ter certeza de que Deus existia e de que a ouviria, ela rezou e rezou para que seu pai ficasse bem.
Mas nada mudou. Seu pai não veio ficar com ela.
Deus a ignorou. A casa permaneceu em silêncio.
Tão quieta.
Tão vazia.
Tão imóvel.
Até de manhã, quando ela ouviu a cozinheira chegar, e então passou correndo pelo escritório – de algum jeito ela passou pelo escritório, agarrando Malhado no caminho
– e encontrou a cozinheira de pé na cozinha arrumando as coisas para o café da manhã, e contou tudo para ela.
Seu pai deixou um bilhete com apenas sete palavras: “Desculpem-me por não ter sido mais forte”.
Então vieram as famílias adotivas que a levariam para outras casas se ela chorasse toda hora ou se ela se recusasse a ir dormir porque estava muito aterrorizada
com seus sonhos. E por muito tempo ela não conseguiu parar de chorar, de se isolar nas profundezas de seu âmago e de ficar acordada a noite toda sentada na cama,
olhando para a porta. Mas era solitário ficar indo para novas famílias toda hora, então ela aprendeu a atuar como uma boa menina, uma menina que não estava despedaçada
por dentro.
Atuando, atuando, sempre atuando.
A menina boazinha.
Mas agora.
Agora.
Ela não era mais a criancinha assustada que tremia debaixo da cama e que perdeu a fé no Todo-Poderoso em uma noite fria de maio. Agora ela era uma mulher, forte,
confiante e segura – tudo que as pessoas esperavam de alguém em sua posição altamente respeitada e tão cobiçada.
Algo na lembrança daquela noite, quando ela encontrou seu pai, fez com que a raiva e a decepção que ela sentira de seu homem na noite passada fossem sumindo.
Afinal, ele não havia se desviado muito do plano. Sim, ele havia cometido alguns erros, mas eram perdoáveis.
Ela olhou para seu reflexo no espelho. Estava começando a aparecer, ela tinha ganhado um pouco de peso, mas Brad parecia não ter percebido.
Uma criança.
Um bebê crescendo dentro dela.
Ela ainda não tinha sentido o bebê chutar, mas em breve, muito em breve, a prova da vida dela, ou dele, apareceria.
Quanto mais ela pensava no próprio pai e no pai de sua criança, mais ela considerava contar para ele sobre o bebê.
Talvez estivesse na hora.
De acordo com o plano, hoje ela iria trabalhar, Brad pegaria a placa e o carro e então faria uma visita à casa da diretora-assistente-executiva Wellington, e à noite,
após a explosão, ele passaria pela Academia do FBI para deixar uma pequena surpresa. E então esse jogo acabaria. E eles seguiriam em frente.
Então por enquanto.
Aguardar.
Aguardar e observar.
Ficar de olho nele e, apenas se fosse necessário, colocá-lo no freezer e fechar a porta.
Apenas se fosse absolutamente necessário.
9h48
Margaret Wellington não gostava da sensação de que algo passara batido por ela, então, depois da coletiva de imprensa, em vez de ir direto para o posto de comando
da força-tarefa no quartel-general da polícia, ela voltou ao Lincoln Towers para ver se havia algo que os policiais pudessem ter esquecido na busca por Mollie Fischer.
Ela passou 25 minutos refazendo o caminho que Bowers percorrera quando perseguiu os assassinos pelo hotel, procurando qualquer lugar onde eles pudessem ter escondido
um corpo.
Nada.
Agora, ela fazia uma varredura no saguão.
O átrio se estendia por todos os doze andares, com terraços de jardins e uma queda-d’água estreita que saía de uma rocha falsa à esquerda dela.
A água caía em um fluxo de água que serpenteava pelo chão entre uma rede de pontes e passarelas.
Ela ainda acreditava que, de algum jeito, os assassinos tinham conseguido tirar Mollie Fischer do prédio, talvez pelo estacionamento, o que podia explicar a luva
que foi deixada para trás.
Ou talvez eles tivessem encontrado uma outra maneira.
Ou talvez ela estivesse errada e Mollie ainda estava ali, em algum lugar.
Margaret coçou a cabeça.
O quarto 809, no qual a cadeira de rodas fora encontrada, ainda estava isolado, claro, mas o resto do hotel estava aberto. Na noite passada, o agente Cassidy e a
nova transferida de St. Louis, Natasha Farraday, haviam liberado.
Ainda assim, nenhuma notícia sobre o laptop ou sobre a bolsa esportiva que o garoto Rainey tinha visto nas mãos do homem e da mulher que saíram do beco e entraram
no táxi.
E, honestamente, Margaret não tinha mais ideia de onde procurar por Mollie.
Uma perspectiva diferente poderia ser útil, um novo olhar; então, com Hawkins e Bowers fora da jogada por enquanto, ela telefonou para o próximo agente mais qualificado
da equipe.
– Lien-hua falando.
– Aqui é a diretora-assistente-executiva Wellington. Gostaria que você me encontrasse no Lincoln Towers Hotel. Vamos fazer uma caminhada de busca. Juntas.
50
A caminho de Washington, DC, eu consegui adiantar o encontro com o diretor Rodale em uma hora, remarcando para 11h.
– Na verdade – sua secretária me informou –, o diretor está ansioso para vê-lo.
– Ótimo.
Como Tessa e eu tínhamos algum tempo, ela sugeriu um café, e apesar de já termos tomado um pouco de manhã, ela me convenceu.
Enquanto estávamos na cafeteria, liguei para Doehring e ele me disse que não encontrado nada em sua pesquisa sobre o passado de Mollie Fischer e então, novamente,
prossegui com a hipótese provisória de que ela realmente era uma vítima nessa onda de crimes, e não uma infratora.
Depois de sair da cafeteria, enfrentar o trânsito, ir até o quartel--general do FBI, estacionar, passar pela segurança e conseguir o passe de visitante para Tessa,
já eram 11h.
– Você vai ficar bem esperando por mim?
Ela assentiu e sentou-se na recepção do lado de fora da sala de Rodale.
– Vejo você assim que terminar – passei para ela a senha do Wi-Fi de visitantes. Ela colocou seus fones de ouvido, abriu o laptop para ler mais sobre cognição de
primatas e eu bati na porta de Rodale.
– Entre.
Entrei e o encontrei de pé ao lado da janela que tinha vista para o centro de Washington, DC.
O deputado Fischer estava ao lado dele.
Talvez o corpo de Mollie tenha sido encontrado.
Esperei um deles me dar a notícia, qualquer que fosse.
– Pat – Rodale disse –, acredito que já tenha conhecido o deputado Fischer.
Acenei com a cabeça para ele. – Deputado.
– Ouvi falar que você quase pegou os sequestradores de Mollie ontem – ele disse. – Preciso agradecê-lo por ter ido atrás deles desse jeito. Especialmente após nossa...
bem, minha... as palavras que disse a você no meu escritório.
Hoje ele parecia muito mais destruído pelo que havia acontecido, exatamente como um homem cuja filha estava desaparecida. – Eu sei que você estava transtornado.
– Me disseram que você levou um tiro ontem.
– Sim, mas estou bem.
Esperei; nenhuma explicação veio.
Rodale apontou para uma cadeira. – Por favor, Pat, sente-se.
Nenhum dos dois homens se moveu na direção de uma cadeira ou explicou por que o deputado estava ali, e um clima tenso e desconfortável tomou conta da sala. – Passei
a manhã toda sentado – eu disse. – Se vocês não se importarem, acho que vou esticar minhas pernas também.
Um aceno. – Sim. Claro.
– Houve alguma descoberta no caso? – perguntei finalmente.
Rodale balançou a cabeça.
– Não – Fischer disse seriamente.
Então Rodale foi até sua estante e soltou um suspiro cansado. Ele se aposentaria em seis meses, mas já parecia pronto para largar o trabalho essa tarde. – Estou
num dilema aqui, Pat. Eu quero te elogiar por sua bravura de ontem, pelas suas descobertas nesse caso, mas também sinto a obrigação profissional de repreendê-lo
pela natureza imprudente de suas ações.
Eu não tinha muita certeza de como responder. – Posso entender.
– Sem mais coletivas de imprensa impulsivas.
– Combinado.
– Certo – dava para ver que aquilo era só a ponta do iceberg. – Continuando. Tem um aspecto importante desse caso que preciso contar a você, mas preciso que você
mantenha isso na mais estrita confidencialidade.
Olhei para ele, olhei para o deputado, então de volta para Rodale. – Que aspecto?
O deputado Fischer falou. – O Instituto Gunderson. Acredito que sei o motivo pelo qual aquela jovem foi morta lá.
– E qual seria?
– Você se lembra do Projeto Rukh? – Rodale perguntou. – Em San Diego?
– Claro.
Fevereiro passado, Lien-hua, Ralph e eu descobrimos uma conspira
ção biotecnológica que envolvia pesquisa biológica marinha e avanços recentes na neurociência para criar uma arma altamente secreta para o Pentágono. O dispositivo
podia ser usado para danificar, de modo indetectável, partes específicas do córtex frontal de uma pessoa causando danos cerebrais permanentes ou um derrame.
O caso ficaria para sempre na minha memória não apenas por razões profissionais, mas também por pessoais: em San Diego, um jovem tentou abusar sexualmente de Tessa,
e um dos assassinos que estávamos caçando atacou e afogou Lien-hua, e eu quase não consegui reanimá-la.
– Pensei que o Pentágono tinha acabado com tudo isso – eu disse, me referindo ao Projeto Rukh.
– Eles acabaram – o deputado Fischer respondeu. – Mas uma empresa privada conseguiu adquirir a pesquisa neurocientífica que sobrou. Para um projeto não relacionado.
Não relacionado.
Sim, claro.
– A Fundação Gunderson – eu disse.
Os dois homens confirmaram minhas palavras com seu silêncio.
– Então, você está envolvido com a fundação de algum modo, é isso? – eu disse para o deputado. – Tem alguma legislação no Congresso relacionada a...
– Eu contribuí financeiramente com a fundação, no passado. Sim – ele respondeu –, mas isso é algo que eu gostaria que não chegasse ao público dessa vez.
– Obrigado.
Ele parecia confuso. – Pelo quê?
– Por eliminar possibilidades. Eu posso garantir que se você não quer a informação divulgada, tem alguém lá fora que quer. E essa pessoa pode muito bem estar envolvida
no sequestro de sua filha. Então, a pergunta óbvia: quem poderia querer que os fatos sobre suas doações se tornassem públicos?
– Todos os republicanos do Congresso.
Apesar daquilo parecer uma declaração exagerada, se a pesquisa dos primatas fosse de algum modo eticamente controversa, ele poderia muito bem estar certo. Rodale
olhou para o deputado Fischer, que assentiu. Eu não achei nada bom que o diretor do Bureau estivesse acatando pedidos de um deputado.
Rodale disse: – Eu sei que Margaret o afastou desse caso para que você pudesse se recuperar, mas eu gostaria que você continuasse perseguindo as pistas que tem.
Vou falar com ela. Dar um jeito nisso. Se você estiver disposto.
– Eu estou disposto.
Virei-me para Fischer. – Mande para mim uma lista detalhando todas as suas contribuições para a fundação. Encaminhe todos os e-mails enviados ou recebidos. Tudo.
E eu quero seus registros telefônicos.
Ele hesitou.
– Não se engane, deputado. Alguém vai encontrar essa informação. É melhor que a força-tarefa possa vê-las antes da imprensa.
– Pode confiar nele – Rodale disse para Fischer.
Ele parecia desconfortável com a ideia, mas finalmente aceitou.
Então virei-me para o diretor Rodale. – Você me pediu para manter isso na mais estrita confidencialidade. Como eu posso trabalhar com a força-tarefa se não puder
compartilhar essa informação com eles?
– Por enquanto, apenas o pessoal do nível de comando deve saber sobre as contribuições do deputado para o centro. Eu não quero que nada vaze para a imprensa e prejudique
a investigação.
De fato, se essa informação fosse tão importante quanto eu estava sendo induzido a acreditar, a preocupação do deputado fazia sentido, mas algo não parecia encaixar.
Eu ainda não tinha certeza do porquê de esses dois homens terem escolhido compartilhar essa informação comigo, mas imaginei que poderia tocar no assunto com Rodale
depois que o deputado fosse embora e nós ficássemos sozinhos. Acenei com a cabeça e ele disse que me mandaria os arquivos.
Dei a Fischer meu endereço de e-mail, ele pediu desculpas por ter que ir, mas enquanto ele se aprontava para sair, perguntei: – Deputado, quem falou para você sobre
o caso da custódia?
– Caso da custódia?
– Ontem. Você mencionou o caso da custódia envolvendo minha enteada.
Dessa vez, diferente de ontem, ele foi direto: – Meu irmão.
Choque.
Até onde eu sabia, ele tinha apenas um irmão. – O ex-vice-presidente contou a você?
– Sim.
– Como ele sabe sobre um caso de custódia envolvendo minha enteada?
– Ele conhece o pai biológico da sua enteada. Foi tudo o que ele me disse.
Quê?
– Como?
Ele balançou a cabeça. – Honestamente, não sei. Ele não disse.
O deputado parecia estar falando a verdade, e se estava, isso acrescentava toda uma nova camada de complexidade ao que estava acontecendo.
Significava que Lansing tinha amigos em posições muito altas, e isso não me daria vantagem para conseguir manter a custódia de Tessa.
– Mas por quê? – eu perguntei. – Por que ele contou isso pra você?
– Como envolvia um agente do FBI – ele evitava olhar para Rodale –, e eu tinha proposto cortes no orçamento do Bureau, suspeito que ele estava tentando fazer com
que eu... bem...
– O quê? Me ameaçasse?
– Sugerisse cortes em departamentos estratégicos.
Ele não precisava explicar mais nada.
Se livrasse do agente; ajudasse seu amigo a conseguir a custódia da
menina...
– Quando descobri que você estava no caso que envolvia Mollie, me senti dividido, e eu sabia que precisávamos conversar. No final, acabei dizendo coisas que não
devia para você.
Não achei a explicação totalmente satisfatória, mas era um começo.
Precisava pensar um pouco sobre tudo isso.
Ele nos acenou em despedida. – Eu realmente preciso voltar para o Congresso.
Após sua saída, o clima da sala ainda estava tenso. Muita coisa ainda precisava ser dita ali. – Diretor – eu disse –, ontem você disse para o deputado não declarar
as notícias sobre a verdadeira identidade da vítima?
– Uma declaração como aquela deveria vir do escritório de assuntos públicos ou de um dos diretores-assistentes, você sabe disso, Pat. Não vem do pai de uma garota
desaparecida. Ou de um agente do NCAVC. Temos um sistema que serve para a liberação de informações pertinentes, e esse sistema trabalha para o bem de todos.
– Não de Mollie – eu disse. – Não ontem – ele me olhou com severidade, mas não liguei. Continuei. – Pra começo de conversa, por que você me colocou nesse caso? Você
sabe que minha especialidade é infrações em série, mas quando começamos nisso, sabíamos apenas de um homicídio.
– Nós não concordamos em tudo nos últimos anos, mas sempre respeitamos um ao outro – ele fez isso soar como uma resposta, mas eu não conseguia ver como.
– Sim, eu diria que isso é verdade.
– Você não é o tipo de homem que se envolve em políticas, que está sempre procurando um jeito de passar à frente.
Seus comentários estavam me deixando desconfortável. – Eu sou um investigador, não um burocrata, se é isso que você está dizendo.
– Sim. É isso que estou dizendo. E é por isso que quero você.
Mas se ele não quer pessoas trabalhando nesse caso com um olho em
uma promoção, por que ele designou Margaret para comandá-lo?
– Se eu puder ser franco, senhor, nada disso faz sentido. Parece que a política e as agendas pessoais estão sendo privilegiadas em detrimento da busca de uma pessoa
desaparecida.
Bem-vindo a Washington, Pat.
– Você sabe que isso não é verdade.
– Não tenho certeza se sei.
Ele estava com o semblante carregado.
E então eu me dei conta.
– Os cortes do orçamento. É isso? Algo do tipo “encontre minha filha, mantenha meu envolvimento com esse lugar de pesquisa debaixo dos panos e eu não vou usar a
legislação para cortar os fundos do Bureau”.
Uma mão lava a outra?
Rodale olhou para mim friamente. – Vou fingir que você não acabou de dizer isso.
– Não se preocupe com isso – fui na direção da porta. – Vou mantê-lo informado – eu disse. – Sobre nosso progresso.
Tessa percebeu que eu estava irritado quando me encontrei com ela no saguão. – Você tá bem? – ela perguntou.
– Estou sim.
Continuei seguindo para a saída e ela saiu juntando suas coisas e correndo atrás de mim. – A agente Jiang ligou enquanto você estava lá dentro. Ela me disse que
pode nos encontrar no Jacob’s Deli por volta do meio-dia e meia, se você topar. Ela disse que você sabe onde é.
– Infelizmente, vamos ter que cancelar. Preciso ir a outro lugar.
– Aonde?
– Ao Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson.
51
Lincoln Towers Hotel
Quarto 809
Nada.
Margaret Wellington balançou a cabeça.
Mollie Fischer não pode ter simplesmente desaparecido. Onde ela está?
Lien-hua estava de pé ao lado da cama, cuidadosamente estudando o quarto. – Encontramos a cadeira de rodas aqui, mas não há nenhuma outra evidência física?
– Isso mesmo.
– Mas como pode ser? O vídeo do suspeito empurrando Mollie para dentro do hotel mostra que eles entraram às 13h29. E Pat foi atingido pelo tiro logo depois das 15h.
– Isso quer dizer que pelo menos um deles ficou no quarto com uma mulher sequestrada por aproximadamente uma hora e meia – Margaret disse, seguindo o raciocínio
de Lien-hua – e ainda assim conseguiu não deixar nenhuma evidência forense para trás.
– Isso não é muito provável.
– Não é mesmo.
Margaret pensou: Eles encenaram a morte de Mollie... deixaram a
bolsa dela no habitat... deixaram o carro de Mahan na cena do crime... deixaram a luva no estacionamento...
Eles tentaram nos confundir o tempo todo...
Claro.
– Eles usaram outro quarto – ela disse. – Apenas deixaram a cadeira de rodas aqui para nos desorientar.
Lien-hua pensou naquilo por um momento. – De acordo com o relatório de Pat, havia duas faxineiras no corredor quando ele estava perseguindo os suspeitos. Eu imagino...
– Vamos – Margaret disso, indo na direção da porta. – Precisamos falar com essas faxineiras.
Tessa e eu pegamos burritos de feijão num drive-thru para o almoço e seguimos para o centro de primatas.
Convenci-a a ouvir seu iPod por alguns minutos para que eu pudesse fazer uma ligação; então digitei o número de Lien-hua e, falando baixo para que Tessa não me escutasse,
cancelei o almoço. Depois resumi minha reunião com Rodale e Fischer. Lien-hua escutou atenta e, quando terminei minha explicação, ouvi Margaret falando de algum
lugar incrivelmente próximo dela. – O que está havendo? – perguntei.
– Estamos imaginando se os assassinos não mantiveram Mollie em outro quarto...
Ouvi a voz de Margaret novamente, as palavras eram indistinguíveis, mas ela estava obviamente irritada. – Só um segundo – Lien-hua disse. Ela se afastou do telefone
por alguns segundos, então disse: – Você não vai acreditar nisso: Aria Petic não existe.
– Como assim? Temos imagens dela saindo do instituto.
Ela parou de falar comigo mais uma vez para se informar com Mar
garet, então falou de novo. – Margaret acabou de receber uma ligação de Doehring. Aparentemente, o instituto de primatas terceiriza seus serviços de zeladoria. O
nome de Aria aparece nos registros computadorizados, mas é só isso. Ninguém com esse nome trabalha para eles.
– Como é que só estamos descobrindo isso agora?
– Por que você acha que Margaret está tão irritada?
Inacreditável.
– Então – eu estava pensando alto – os assassinos entram no instituto de pesquisa e inserem um nome fictício nos registros de zeladoria para que a mulher que é vista
saindo do prédio não levante suspeitas imediatamente.
Além disso, como uma empregada terceirizada, o guarda da segurança e a tratadora não teriam que saber reconhecê-la se ela fosse detida.
– Mas acontece que ela não foi nem interrogada – Lien-hua disse. – Na confusão, ela apenas foi embora. Escapou por uma das portas laterais quando os paramédicos
chegarem.
Confusão.
Ouvi Margaret chamar Lien-hua, que consequentemente disse: – Preciso ir.
– Escute – eu estava pensando no incidente do afogamento de Lien--hua em San Diego durante o caso do Projeto Rukh. – Lembra como as coisas aconteceram em fevereiro?
Se esses assassinos estiverem envolvidos de algum modo com os conspiradores de San Diego...
– Eu tomarei cuidado – ela disse. – Eu prometo.
– Tenha muito cuidado.
– Terei.
Após encerrarmos a ligação, vi que Tessa estava olhando pela janela do passageiro, ainda ouvindo música. Estávamos a apenas alguns minutos de distância do centro
de pesquisa. – Olhe, universitários – eu disse suavemente, mais baixo do que quando estava falando com Lien-hua, e a cabeça de Tessa virou na minha direção.
Ela percebeu seu erro e rapidamente evitou contato visual.
– Você ouviu minha conversa – eu disse.
Ela tirou os fones de ouvido. – Quê?
– Ah, lógico. Você vai ter que esquecer tudo que acabou de ouvir.
– Eu só ouvi música. – E então: – Caso alguém pergunte.
Ótimo.
Chegamos ao instituto de pesquisa e parei no andar mais baixo do estacionamento.
Apesar de ter certeza de que o habitat de vidro onde o corpo de Twana havia sido encontrado estaria isolado, a Fundação Gunderson por si só não era mais considerada
uma cena de crime ativa. E fiquei agradecido por isso, pois não teria que deixar Tessa esperando no carro.
– Você leu mais sobre esse lugar do que eu – eu disse.
– Você vem comigo. Mas você não pode fazer nenhuma pergunta relacionada ao caso. Você só está procurando informações relativas à pesquisa com primatas.
– Sério? Vai me deixar ajudar?
– Só com o papo dos macacos, não na investigação. Eu quero saber mais sobre a pesquisa de metacognição. E as finanças... pesquisas eticamente controversas... implicações
envolvidas com política...
– Você disse papo dos macacos?
– Vou apresentá-la como minha assistente de pesquisa – abri minha bolsa do computador e peguei uma prancheta. – Talvez você seja uma estagiária ou algo assim – entreguei-a
para ela.
Vestida daquele jeito, com aquela calça legging preta e o esmalte preto, eu não tinha muita certeza de que meu plano iria funcionar, mas ela parecia ter idade suficiente
para ser uma aluna de faculdade se fôssemos mesmo fazer desse jeito.
Ela olhou para a prancheta. – Para que isso?
– Essa é a identificação mais poderosa do mundo. Se você entrar em qualquer lugar com um ar de confiança e uma prancheta, ninguém vai questionar por que está lá.
– Legal – ela parecia impressionada. – Eu posso fazer um ar de confiança – então uma pausa. – Só não fale papo dos macacos de novo enquanto estivermos lá.
– Certo.
Abri a porta do carro.
Mas então me dei conta de um detalhe.
Fechei-a novamente.
– O que foi? – ela perguntou.
– Você tem certeza de que quer fazer isso? Afinal, aqui é um centro de pesquisa. Os animais estarão todos...
– Enjaulados. Sim, eu sei.
Realmente. não havia um jeito sutil de dizer aquilo. – Eu não tenho muita certeza sobre o que a pesquisa deles envolve, mas...
– Testes médicos. Pensei nisso também.
– E tudo bem para você?
Um longo silêncio.
– Quase todos os avanços médicos nos últimos cem anos vieram de testes em animais. E eu nunca ouvi falar de ninguém, nem mesmo um membro da PETA, que tenha negado
tratamento médico para si mesmo por objeção consciente ao fato de a pesquisa ter sido feita em espécies não humanas.
Sua resposta cuidadosamente montada deixou claro que ela realmente havia pensado nisso. – Bem colocado.
– Mas isso não torna a crueldade correta. Não faz com que o sofrimento seja aceitável.
– Não, não faz.
Pelo olhar dela, dava para ver que ela estava lidando com uma torrente de emoções conflitantes.
Finalmente ela falou, e sua voz ardia de solidão e determinação. – Mais alguns testes de câncer e a mamãe poderia estar viva – ela abriu a porta. – Vamos.
52
O diretor do centro de pesquisa, um homem magro de cabelos brancos com uns cinquenta e poucos anos e o nome incomum de Janz Olan, conduziu Tessa e eu até as salas
de pesquisa que ficam atrás dos habitats de vidro.
Como eu suspeitava, o habitat onde o corpo de Twana fora encontrado ainda estava fechado para os primatas e, para o bem de Tessa, fiquei feliz ao ver que o chão,
apesar de não estar mais coberto de palha, tinha sido esfregado e higienizado e não havia mais nenhum sinal visível de sangue. Ainda assim, os olhos de Tessa percorreram
a área quando passamos por ela, e eu não tinha dúvidas de que ela era capaz de deduzir por que o chão havia sido tão bem limpo.
– Então – o sr. Olan disse, olhando para Tessa –, há quanto tempo você é... assistente do agente Bowers?
– Desde que ele começou a pesquisar a política, a cultura e o desenvolvimento moral dos pongídeos.
Imaginei que aquilo queria dizer macacos.
– Oh – ele disse. – Entendo.
– Sr. Olan – gesticulei na direção de uma das salas de exame. – Explique-me mais sobre seu trabalho aqui. O que exatamente você está fazendo com aparelhos de tomografia,
ressonância magnética e magnetoencefalografia?
– Bem, nossa pesquisa é focada em duas áreas principais: neurociência e cognição.
Lembrei-me das palavras de Lien-hua na terça-feira à noite. – E agressão?
– Isso ficaria dentro da neurociência. Estudos de imagens cerebrais revelaram que a amídala cerebelosa e o córtex frontal são as áreas do cérebro mais associadas
ao medo, à agressão e ao comportamento violento.
Especificamente, analisamos a atividade neural dos chimpanzés, os parentes mais próximos dos humanos. Eles também são a única espécie, além da humana, que mata regularmente
membros adultos da mesma espécie.
– Adultos da mesma espécie – Tessa disse, tomando nota.
Uma pausa, então: – Sim. Chimpanzés também formam grupos e declaram guerra contra outras comunidades de chimpanzés. Alguns até usam suas habilidades em criar ferramentas
para fazer porretes que matam com mais eficácia.
Aquilo era espantoso para mim.
E também assustadoramente humano.
– Então, de certo modo, você está estudando a neurologia da violência – eu disse.
Uma pausa. – Esse é um modo de dizer.
Tentei digerir aquilo, imaginando quais implicações essas descobertas poderiam ter no contexto dos comentários do deputado nas últimas semanas sobre os cortes propostos
no orçamento do Bureau em vista de “uma abordagem mais progressiva na contenção do comportamento criminal”.
Todo republicano no congresso gostaria que sua ligação com o centro se tornasse pública...
– Sim, bem – Tessa disse para Olan –, chimpanzés não são tão aparentados, se você aceitar que Ardi era bípede.
Ele respondeu lentamente. – Sim. Se você aceitar que ela era – ele reconheceu finalmente. – Mas fica claro que nas árvores ela se comportava como quadrúpede.
– Quem é Ardi? – perguntei.
– Não importa – Tessa estava respondendo para Olan, não para mim. – Ela prova que não evoluímos de quadrúpedes como chimpanzés e gorilas.
– Quem é Ardi? – repeti, direcionando a pergunta para ambos.
Olan respondeu: – Ela era uma Ardipithecus ramidus fêmea. Seu fóssil foi encontrado na Etiópia em 1994, mas levou quinze anos de estudos antes que a descoberta fosse
revelada ao público em 2009. E alguns cientistas acreditam que ela andava de pé.
– A maioria – Tessa o corrigiu –, não só alguns.
Meneei a cabeça. – Eu ainda não estou muito...
– Ela viveu há 4,4 milhões de anos – Olan disse impacientemente – e se ela fosse bípede, indicaria que nós não evoluímos dos primatas modernos, mas sim separadamente,
a partir de um ancestral comum.
– O que significa – Tessa interrompeu – que não há elo perdido entre nós e os símios modernos, e que postular as origens humanas a partir do comportamento ou da
biologia de primatas modernos não passa de especulação.
Olan olhou para ela. Piscou.
– Bem – ele disse –, como nenhum membro da família do Ardipithecus ramidus ainda está conosco hoje, nós estudamos chimpanzés, cujo DNA é 96% igual ao DNA humano.
Ela parecia pronta para replicar, mas eu a impedi com um pequeno aceno de cabeça. Eu estava mais preocupado com o foco da pesquisa do centro do que em entender como
alguém tinha andado há quatro milhões e meio de anos. – Me conte sobre a segunda área – eu disse para Olan. – A pesquisa de cognição.
– Sim, bem, talvez eu devesse ter especificado que ela se concentra no campo da metacognição.
Dessa vez eu estava familiarizado com o que ele se referia, mas Tessa me cortou. – Teoria da mente – ela disse. – Consciência, empatia, entendimento.
Ele assentiu.
– Sim. Autoconsciência, as raízes da empatia, a habilidade de entender que os outros têm pensamentos, sentimentos, sensações, assim como você.
Chegamos a uma sala de pesquisa totalmente equipada com uma área de cerca de metal que levava para o habitat dos gorilas.
– Você está dizendo que macacos têm essas habilidades? – perguntei.
– Diferentes espécies de primatas exibem graus variados de comportamento altruísta – ele disse, não exatamente respondendo minha pergunta.
Pensei nas partes da pesquisa de Tessa que eu tinha dado uma olhada. – Assim como empatia cognitiva, certo? E reciprocidade específica com parceiro?
– Sim – Olan parecia impressionado por Tessa e eu aparentarmos saber sobre o que ele estava falando e, conforme prosseguia, parecia se esforçar para provar que sabia
mais.
– Chimpanzés se beijam e se abraçam depois de brigar, às vezes pulam na água para salvar outros chimpanzés, apesar de nenhum chimpanzé poder nadar. Houve casos de
gorilas que avisaram tratadores quando jovens gorilas estavam em perigo, mostrando, assim, que eles são tanto cientes da condição de outras criaturas quanto capazes
de identificar um meio possível de ajudá-los. E quanto à inteligência e à resolução de problemas, alguns gorilas apresentaram QI de 90 em testes para humanos, outros
aprenderam mais de 3.500 palavras na linguagem de sinais, até inventaram sinais para se descreverem.
Eu nunca tinha ouvido falar sobre macacos tentando salvar um ao outro ou fazendo testes de QI humano, e fiquei surpreso. E por algum motivo que eu não pude entender,
vagamente perturbado.
– Um macaco até criou um sinal para solução de limpeza de lentes de contato depois de observar sua tratadora lavar e colocar suas lentes.
– Como era? – Tessa perguntou.
– O gorila combinou as palavras olho e água – ele disse.
Isso realmente era impressionante.
Fiz mais algumas perguntas de praxe e Olan parecia ficar mais e mais impaciente a cada uma delas. – Me desculpe – ele disse finalmente –, mas eu estou terrivelmente
ocupado, ainda lidando com o resultado do incidente de terça-feira à noite perante nossa diretoria e nossos doadores. Somos uma organização sem fins lucrativos e
as doações são essenciais para nossa sobrevivência. Tenho certeza de que você entende. Talvez fosse melhor se um de nossos pesquisadores ou tratadores respondesse
as próximas perguntas.
Na verdade, isso não seria má ideia.
Perguntei se poderíamos falar com Sandra Reynolds, a tratadora que encontrou o corpo de Twana e matou os dois chimpanzés que a atacaram, mas Olan me disse que ela
havia tirado o resto da semana de folga. – Para terapia – ele acrescentou em um tom sinistro.
Ele chamou uma mulher com um ar de intelectual, que aparentava ter quase trinta anos e que estava inclinada sobre um teclado de computador numa sala ao lado. – Dra.
Risel, você tem alguns minutos?
Ela nem sequer nos olhou. – Estou no meio da minha bibliografia – pela sua roupa, dava para ver que ela gostava da cor marrom em todos os tons e matizes.
– O dr. Bowers aqui está investigando a tragédia de terça-feira à noite.
– Que bom.
– Ele trabalha para o FBI.
Finalmente, a dra. Risel olhou para a gente; hesitou um momento e então se juntou a nós.
Após as apresentações, o sr. Olan foi para seu escritório e a dra. Risel nos informou que era psicobióloga e estava com um prazo muito apertado para seu artigo,
então esperou, de braços cruzados, que eu dissesse o que queria, mas eu não tinha muita certeza do que era.
Tessa tomou a frente. – Conte-nos sobre a pesquisa de ARE.
– Autorreconhecimento no espelho – a dra. Risel disse, como se Tessa não soubesse o que a sigla significasse.
– Hum, sim.
A dra. Risel olhou distraidamente pela sala por um momento, então suspirou. – Seria mais rápido se eu mostrasse para vocês – ela pegou um conjunto de chaves e partiu
para os habitats dos gorilas.
Astrid pediu para Brad agir com cautela durante o dia.
Sim, ele precisava arrumar tudo para hoje à noite. Mas isso não levaria muito tempo.
Então, ela tinha que mantê-lo sob controle.
Ela pediu que ele a informasse de hora em hora, por telefone, exatamente o que estava fazendo
Ótimo.
Um passo de cada vez, para ter certeza de que ele não estava cometendo algum deslize novamente.
Ela decidiu que essa noite ela contaria para ele sobre o bebê.
Hoje eles respeitariam os horários.
Terminariam o jogo.
E então à noite, na fazenda de corpos, ela lhe contaria para ele sobre a criança.
53
Tessa e eu observamos do outro lado da cerca de metal enquanto a dra. Risel levava uma das macacas do habitat, uma jovem fêmea chamada Belle, para dentro da sala.
Para minha surpresa, a médica ficou com a gorila na área fechada, e quando comentei sobre isso, ela apenas disse: – Gorilas são criaturas gentis. Muito tímidos.
Ela é inofensiva – ela acariciou o pelo da macaca para me mostrar como aquele primata tão musculoso era inofensivo.
– Belle é nossa companheira mais recente – ela explicou. Quanto mais tempo ela passava com a gorila, menos apressada ela parecia para terminar seu artigo. – Ela
nunca fez esse teste antes, então creio que ela não vai nos decepcionar.
– Ela é tão fofa – Tessa disse enquanto olhava para Belle.
Fofa não era exatamente a palavra que eu teria usado.
A dra. Risel pegou um espelho que estava preso a um braço giratório de metal pendurado no teto. Ela posicionou o espelho de modo que Belle pudesse olhar para ele,
o que ela fez.
Belle pareceu ficar imediatamente fascinada pelo seu reflexo e grunhiu suavemente; então se inclinou para a frente, mexeu a cabeça e estudou o macaco do espelho.
Ela levantou um braço, então o soltou pesadamente sobre seu colo, grunhiu de novo, então o levantou mais uma vez, observando a gorila no espelho responder.
– Inicialmente, os chimpanzés olham atrás do espelho – Tessa me explicou em voz baixa –, para tentar encontrar o outro chimpanzé, ou eles se esticam para tentar
tocá-los. Assim fazem os macacos, os babuínos, todos os outros primatas. Mas os chimpanzés podem aprender a se identificar. Orangotangos também – ela hesitou. –
A maioria dos gorilas tem dificuldade com isso.
Enquanto Belle estava observando a si mesma no espelho, a dra. Risel pegou um pequeno recipiente com glacê de baunilha e abriu a tampa.
Belle estava fascinada demais pelo espelho para prestar atenção nela.
– Tudo bem – a dra. Risel disse. – Aqui vamos nós – ela enfiou um dedo no glacê e, então, enquanto falava suavemente com Belle, agitou a outra mão na frente dela
para chamar sua atenção.
A gorila parou de olhar para o espelho e olhou para a doutora. Risel esfregou a mão gentilmente ao lado da cabeça da gorila e então, sorrateiramente, passou o glacê
na testa de Belle.
Mas ela fez isso tão levemente que a gorila sequer percebeu.
Então, Risel inclinou o espelho para que Belle pudesse ver seu reflexo novamente, e dessa vez, quando ela olhou para o gorila em sua frente, Belle emitiu um som
gutural alto, e então ergueu a mão esquerda e estendeu um dedo.
Eu esperava que ela tocasse a marca na testa do gorila do espelho, mas ela não fez isso. Ao contrário, observando como o macaco no espelho se movia, ela esticou
a mão para sua própria testa, tirou o glacê e então o lambeu de seu dedo.
Fascinante.
– Gorilas gostam de glacê – Tessa me disse.
A dra. Risel olhou triunfalmente para nós e então deu um agrado para Belle, um punhado de uvas. Alguns momentos depois, ela a levou de volta para seu habitat.
Foi uma demonstração incrível e levei alguns minutos para processar as implicações.
De algum modo, Belle foi capaz de entender que seus movimentos eram espelhados identicamente pelo macaco que ela podia ver, e desse fato, ela concluiu que o macaco
para o qual ela estava olhando era, na verdade, ela mesma, e que o glacê estaria em sua própria testa e não na cabeça de outro gorila.
Eu estava considerando isso tudo quando a dra. Risel reapareceu.
– Esse é um dos testes mais simples – ela disse. – Mas vocês entendem o que ele quer dizer, não entendem?
Tessa continuou em silêncio do meu lado, com a prancheta na mão, e fui eu que respondi. – Ela compreende que é uma criatura única – eu disse –, separada e distinta
de sua cópia no espelho.
A dra. Risel concordou.
Eu continuei. – Ela exibiu uma das principais características de consciência: Belle é autoconsciente.
A dra. Risel inclinou a cabeça levemente para um lado, então para o outro, como se estivesse medindo a validade do que eu havia acabado de dizer. – Temos que tomar
cuidado para não antropomorfizar demais, mas Belle estava claramente ciente de que ela era o macaco que ela viu e também foi capaz de usar o espelho para localizar
o glacê em sua própria testa.
– Além dos grandes primatas, quantas outras espécies têm essa habilidade de autodiferenciação? – perguntei.
– Apenas elefantes e golfinhos, apesar de haver cada vez mais evidências em porcos também, mas obviamente temos um teste levemente diferente para essas espécies.
Eles não gostam tanto de glacê como os macacos – ela olhou para mim com expectativa, como se eu devesse rir daquilo. Eu apenas sorri.
Tessa permaneceu em silêncio.
Passamos mais alguns minutos falando com a dra. Risel sobre teoria de pesquisa mental, então ela explicou que, por causa da seleção natural, era de se esperar que
todos os comportamentos humanos e estados de consciência aparecessem, pelo menos de forma rudimentar, no reino animal.
– E quanto mais estudamos os animais – ela disse –, mais descobrimos que isso é verdade: emoções, intenções, uso de linguagem, curiosidade, uso de ferramentas. Golfinhos
comunicam-se uns com os outros usando tons diferentes para dizer coisas diferentes e entendem a importância da da ordem sintática das palavras. Alguns tipos de pássaros
experimentam sono REM, vacas lamentam a perda de seus bezerros, formigas e lobos formam comunidades cooperativas com uma ordem social complexa.
Tessa estava tão absorta que percebi que nem a lista de realizações dos animais da dra. Risel parecia animá-la. Olhei para ela, sorri, e ela devolveu um meio sorriso.
Alguma coisa tinha acontecido.
– Chimpanzés podem ser ensinados a usar frações – a dra. Risel continuou, entusiasmada. – Leões-marinhos entendem relações de equivalência e lógica básica. Muitas
espécies de primatas vivem em sociedades complexas e competem, cooperam, enganam e manipulam um ao outro, assim como humanos. Eles têm disputas de poder, classes
privilegiadas, formam alianças, fazem barganhas e criam redes de contatos para se beneficiarem. A maioria dos meus colegas acredita que por causa disso exista política
no mundo animal, pelo menos num estado primitivo.
Pelas minhas pesquisas em criminologia ambiental, eu já sabia que algumas espécies de primatas na África ocidental formavam mapas cognitivos para lembrarem o local
de rochas grandes para quebrarem nozes, compreendendo seu espaço de consciência de modo similar aos humanos.
E claro, estudos recentes mostraram que assassinos em série seguem padrões de movimento predatório de modo similar aos de tubarões--brancos e leões, mas a dra. Risel
não fez uma pausa longa o suficiente para que eu acrescentasse nada disso à conversa. Ela parecia ter esquecido completamente do prazo de seu artigo.
De acordo com ela, o comportamento animal vem sendo estudado há séculos, mas a questão sobre se os grandes primatas são ou não autoconscientes, se têm a habilidade
de pensar em termos abstratos, ou se têm livre-arbítrio ainda são campos relativamente inexplorados.
– A pesquisa neurocientífica e de metacognição dos primatas ainda está engatinhando – ela estava radiante, obviamente orgulhosa de ser uma pioneira nesse campo.
– Imaginem como vamos poder entender bem o funcionamento do cérebro do Homo sapiens e de outros animais em cinquenta anos. Ou em cem anos. Ou em cem mil.
Apesar de estar pouco familiarizado com os avanços da neurociência nos últimos vinte anos, eu sabia que eles haviam sido exponenciais, e não podia nem imaginar o
conhecimento que seria descoberto em centenas ou milhares de anos.
Finalmente, a dra. Risel olhou para o relógio, franziu a testa, rapidamente se desculpou e foi terminar de escrever seu artigo. Quando ela saiu, perguntei a Tessa
se estava tudo bem, mas ela disse que não havia nada com o que se preocupar.
Fiquei quase uma hora investigando o instituto, procurando por qualquer evidência de pesquisa controversa, biotecnológica ou médica, ou qualquer outra coisa que
pudesse ter alguma carga política, mas não encontrei nada. Também inspecionei as entradas e saídas novamente, e as linhas de visão do habitat que estava isolado,
onde Twana havia morrido, para ver se eu conseguia descobrir alguma pista que pudesse nos levar ao paradeiro de Mollie, mas também não consegui nada lá.
Enquanto eu procurava, Tessa ficou sozinha às vezes rabiscando anotações na prancheta, mas na maioria do tempo observando introspectivamente os macacos.
Quando estava pronto para ir embora, já tinha analisado todas as salas, interrogado brevemente três outros pesquisadores, até dei uma olhada em alguns arquivos de
computador que detalhavam procedimentos e resultados de pesquisas, mas não conseguia ver nenhum bom motivo pelo qual outros deputados pudessem achar vantajoso saber
do envolvimento de Fischer com o centro.
Nem encontrei nenhum procedimento que parecia demasiadamente invasivo, cruel ou tendencioso.
A coisa mais próxima de crueldade contra animais deve ter sido o uso da droga 1-fenil-2-aminopropano, mas os registros mostravam que ela só era administrada em quantidade
minúsculas para os primatas durante a pesquisa padrão.
Talvez eu estivesse errado. Talvez a ligação do deputado com esse instituto fosse insignificante para o caso.
A caminho da saída, perguntei a Olan se poderia ver os registros financeiros do instituto e, como suspeitei, ele me disse que eu precisaria de um mandado. De todas
as agências policiais federais, o FBI é uma das que tem acesso a mandados mais rapidamente, mas ainda assim, a essa altura, não tínhamos um bom motivo para conseguirmos
um. Olan foi educado o suficiente ao negar meu pedido, mas não ter podido dar uma olhada neles era desencorajador.
Me ocorreu que em vez de encontrar respostas aqui, eu estava partindo com mais perguntas do que tinha quando cheguei duas horas antes.
Enquanto Tessa e eu rumávamos na direção do elevador para o estacionamento, uma onda de frustração tomou conta de mim.
Pense diferente, Pat. Não fique preso só em um caminho...
As portas do elevador se abriram quase ao mesmo tempo em que meu telefone tocou. Era o toque de Cheyenne; convenci Tessa a ir para o carro, então atendi: – Ei.
– Sou eu.
– Já saiu da reunião?
– Pat, já são mais de 15h.
– Oh.
– Como está seu braço?
– Está bem. Eu te disse para não se preocupar com isso. Como foi a aula?
– Quando eu soube que Vanderveld ia dar a aula, desisti de ir – Jake trabalhou no caso Giovanni com Cheyenne e comigo mês passado, e ela passou a respeitá-lo tanto
quanto eu, então não fiquei surpreso por ela ter arrumado outra coisa para ocupar sua manhã.
– Lien-hua mencionou que os suspeitos podem ter usado outro quarto do hotel – eu disse. – Alguma notícia sobre isso?
– Nada concreto. Algumas coisas: a WXTN está bisbilhotando. Podemos ter um vazamento. E, ah, sim, Margaret acha que pode ter uma ligação entre esses crimes e a tentativa
de assassinato do vice-presidente Fischer há seis anos no Lincoln Towers.
Hum.
O ex-vice-presidente passou a na maior parte do tempo longe dos holofotes desde que deixara o cargo, e nem mesmo eu tinha pensado naquela tentativa de assassinato.
Considerei as possíveis implicações.
O atirador, um ativista a favor da pena de morte chamado Hadron Brady, tentou matar o vice-presidente Fischer quando ele entrava no hotel para fazer um discurso
em um simpósio de direito constitucional que estava acontecendo lá. Eu lembrava que Brady foi ferido fatalmente quando o Serviço Secreto reagiu. Além disso, não
lembrava dos detalhes.
Então talvez não fosse o pai de Mollie Fischer que tinha ligação com esses assassinos. Talvez fosse seu tio.
– Cheyenne, arrume alguns policiais para descobrir mais sobre o atirador e o assunto exato do discurso do vice-presidente Fischer naquele dia. Quero descobrir se
tinha alguma coisa a ver com a metacognição dos primatas.
Uma pausa. – Vou falar com Margaret sobre isso – ela respondeu. – E quanto a você? Ao forjar a morte de Mollie no centro de primatas e ao tendo levá-la para o hotel,
os assassinos ligaram os dois locais. Eu não fazia ideia do que a tentativa de assassinato tinha a ver com esse caso, mas parecia que tinha uma ligação que valia
a pena explorar...
– Pat? – ela me tirou dos meus pensamentos.
– Vou dar uma passada no hotel – eu disse. – Dar mais uma olhada por lá.
– Tudo bem. Falo com você mais tarde.
– Certo.
Meus pensamentos saltaram para a amizade de Paul Lansing com o ex-vice-presidente. Eu não tinha certeza se isso seria relevante para o caso da custódia, mas como
Tessa tinha ido para o carro e eu ainda tinha alguma privacidade, telefonei para nossa advogada, Missy Schuel, e lhe disse o que sabia. Ela tomou nota e explicou
que ainda estava lendo o diário e que tinha deixado mais duas mensagens para os advogados de Lansing. – Ainda tenho esperança de convencê-los a nos encontrar na
semana que vem.
Finalmente, antes de me juntar a Tessa, aproveitei para ver como Ralph estava. Ele me disse que Lebreau trocava de namorado “rápido demais para uma professora”,
então não era fácil eliminar potenciais suspeitos. Além disso, ainda não havia sinal de Lebreau ou Basque, mas ele estava acompanhando duas possíveis testemunhas
oculares: uma que afirmava ter visto o carro de Basque no estacionamento onde a SUV de Lebreau tinha sido encontrada, e outra que disse ter visto um homem com a
descrição de Basque saindo de um posto de gasolina em Lansing, Michigan, uma hora após Lebreau não ter aparecido em sua aula. – Disse que tinha uma mulher no carro
com ele. Mas você sabe como testemunhas oculares são confiáveis.
– Mantenha-me informado.
– Manterei.
Fiquei em dúvida se deveria contar ou não para ele que Angela Knight estava trabalhando nisso de outro ângulo; mas, por enquanto, decidi não mencionar.
Finalizei a ligação, encontrei-me com Tessa no carro e dirigi até o Lincoln Towers Hotel.
Brad checou o e-mail da garota.
Mês passado, quando ele entrou em contato com o dr. Calvin Werjonic, quando tinha pedido para Astrid pesquisar a presença do agente federal na tentativa de assassinato,
ele não fazia a menor ideia de como seu plano daria tão certo.
Mas o destino parecia estar do seu lado. Todos que eram importantes estavam na área metropolitana essa semana.
Apenas um ajuste nos horários de hoje para deixar o clímax o mais excitante possível: o presente especial para a diretora-assistente Wellington teria que esperar
até amanhã à noite. Mas o atraso serviria apenas para deixar o jogo melhor, mais completo.
Sem dúvida, o pessoal do comando da força-tarefa estava ocupado tentando ligar o Lincoln Towers Hotel ao centro de primatas, imerso nas possíveis implicações, na
importância que cada local teria na cabeça dos assassinos. Mas o plano de Brad tinha tantas camadas que as autoridades nunca as desvendariam a tempo.
Astrid pediu para ele ligar de hora em hora e esse não era o momento de desagradá-la.
Ele discou o número dela.
– Você está com o carro? – ela perguntou.
– Sim.
– E a placa?
– Vou ir pegar daqui a pouco.
– Não demore muito.
– Tudo bem.
– Nos falamos mais tarde.
– Sim.
A ligação foi encerrada e ele abriu o vídeo que fez de Mollie Fischer ontem na van e o assistiu em um canto de sua tela enquanto examinava oprograma de e-mail no
outro.
Após ler a maioria de seus e-mails mais recentes, ele procurou pela Academia do FBI no Google. Era incrível o que você podia encontrar na internet, e semana passada
ele achou uma página no site oficial do FBI que mostrava um mapa do terreno da Academia. Agora, ele confirmou que não havia nenhuma mudança, então imprimiu o pequeno
mapa que o Bureau Federal de Investigação tinha publicado para o mundo inteiro ver.
54
15h18
Peguei um par de luvas de látex no carro e conduzi Tessa até o hotel.
Ela me observou colocar as luvas no bolso. – Para que são as luvas?
– Para examinar coisas.
– Uau. Eu nunca teria adivinhado – seu sarcasmo soou amigável e familiar, mas nas entrelinhas eu percebia que algo a incomodava.
– Fique comigo tempo suficiente e você vai aprender um monte de coisas legais.
Ela ficou em silêncio.
– Você está bem? – perguntei.
– Sim.
Andamos até o imenso saguão. – Então, você vai ficar bem me esperando aqui por alguns minutos? Ela assentiu enquanto olhava para os jardins suspensos, para a cachoeira,
os canais de água; percebi que eu nunca a trouxera antes àquele hotel. Ela estava obviamente impressionada.
– Eu só preciso ver se consigo encaixar algumas peças do quebra--cabeça – eu disse. – Não vou demorar.
Ela não respondeu nem reclamou, e eu quase desejei que ela tivesse discutido comigo; pelo menos eu saberia que ela estava se sentindo bem.
– Então estamos bem? Tem certeza de que está bem?
– Sim.
Assim que se sentou, perguntei se ela não queria entrar em contato com seus amigos de Denver, ligar para Pandora ou para Jessie.
Aquilo pareceu aceitável para ela; ela pegou seu computador e clicou no programa de conversa por vídeo.
Eu estava me virando para o balcão da recepção quando ela disse: – Você acha que ela está morta?
Quando a encarei novamente, vi que seus olhos estavam em uma câmera da WXTN filmando uma repórter que estava entrevistando o Sr. Lees, gerente do hotel. Estavam
no outro lado do saguão.
– Você quer dizer...
– A filha do deputado.
Cuidado, Pat.
– Acho que não devemos tirar conclusões precipitadas – eu disse. – Fique aqui e espere por mim, tá bom? Só me dê uns quinze ou vinte minutos. Então vamos embora
– pensei por um segundo. – E eu levo você para casa.
Ela estava se reposicionando para ficar de costas para a equipe de notícias. – Tudo bem.
Eu queria ver se a ex-analista da NSA Marianne Keye-Wallace e seu sistema de computador com reconhecimento “facial, de áudio e de vídeo” poderiam me ajudar a encontrar
a ligação entre o pretenso assassino de seis anos atrás nesse hotel e os assassinos que trouxeram Mollie Fischer ali ontem.
Deixando Tessa para trás e fui na direção do corredor que levava ao centro de controle.
55
Dez minutos depois.
Eu não estava com sorte.
Marianne já começou dizendo que não tinha registros de tanto tempo atrás. – Quando o hotel foi reformado no ano passado, mudamos para um novo sistema de computadores.
Aliás, você está bem? Você não foi atingido ontem?
Bati gentilmente no meu braço esquerdo. – Foi só um arranhão. Então, você está me dizendo que os registros de computador não foram transferidos?
– Não, eles foram transferidos, só que a gerência decidiu manter apenas registros dos últimos cinco anos, e não digo só de imagens de vídeo. Todos os registros de
hóspedes – ela balançou a cabeça. – Bati o pé tentando convencê-los a arquivar tudo, mas eles não me ouviram.
Já trabalhei com muitas agências distintas ao longo dos anos e sabia muito bem que decisões arbitrárias e mal-informadas são tomadas toda hora. Com frequência, nós
nem sabemos por que nós mesmos fazemos o que fazemos, pior ainda seria entender a motivação dos outros. Mais uma razão por que sondar motivos é tão falível.
Explorei algumas outras ideias com Marianne, vendo se o deputado ou o ex-vice-presidente se hospedaram no hotel recentemente ou se alguma outra conferência de direito
constitucional aconteceu nos últimos anos, relacionada àquela em que o vice-presidente estava agendado para falar quando Hadron Brady tentou matá-lo.
Nada.
Ok, então aonde isso nos leva?
– Lien-hua mencionou as faxineiras – eu disse. – Por acaso ela e Margaret falaram sobre isso com você?
– Já cuidei disso. As faxineiras limparam mais de vinte quartos no oitavo andar entre 14h e 16h, sem seguir uma ordem específica, apenas seguindo ordens de seus
superiores. Até onde sei, a diretora-assistente Wellington mandou agentes procurarem por todos os quartos do andar novamente; alguns já estavam ocupados e não encontraram
nada suspeito.
– E quanto à reforma do hotel, não poderia haver algum elevador de objetos? Algum tipo de quarto do pânico, ou algo parecido, no quarto 809?
– A maioria das reformas foram superficiais – ela abriu uma planta do prédio anterior à reforma e uma planta posterior, e as sobrepôs. Nada notável.
Tentei pensar no que mais eu poderia fazer ali mas não consegui achar nada.
Talvez você devesse ir embora, descobrir o que está incomodando Tessa. Ver se Rodale e Fischer encaminharam os arquivos para você.
Passei os olhos pelos monitores de computador uma última vez e vi que o câmera e a repórter tinham terminado de entrevistar o sr. Lees e estavam pegando suas coisas.
Ele estava parado a apenas alguns metros deles. Observando-os.
Espere.
O hotel podia não ter imagens relativas à tentativa de assassinato, mas todos os canais de TV do país tinham feito a cobertura da história, e eu podia apostar que
os produtores da WXTN não tinham jogado fora suas imagens após seis anos.
Corri de volta para o saguão, para alcançar a equipe de notícias antes que deixassem o hotel.
56
O câmera era um cara de uns vinte e poucos anos com cabelo preto bagunçado e grossas costeletas que se apresentou simplesmente como Nick, o que parecia ser o nome
perfeito para ele. Chelsea Traye, a repórter investigativa, era graciosa, de uma beleza de atriz de cinema, e movia-se como se ditasse moda a cada passo. Reconheci
ambos, pois estavam na coletiva de imprensa que eu dei ontem.
Após me apresentar, eu disse: – Quanto demoraria para vocês acessarem os arquivos de vídeo da cobertura que seu canal fez da tentativa de assassinato do vice-presidente
Fischer há seis anos?
Eles trocaram olhares.
– Você é o agente que foi atingido por um tiro – Chelsea observou. – Isso é para o caso Mollie Fischer, não é?
– É para uma investigação em andamento.
– Entendo – ela me mediu, então pediu para Nick nos dar um minuto, e depois de uma pequena pausa, ele colocou sua câmera em um banco próximo e se afastou.
– Se nós o ajudarmos... – ela começou.
– Sem acordos – eu a cortei. – Se você não me ajudar, eu encontro outro canal que ajude, mas isso só vai gastar tempo e não é isso que nenhum de nós quer – eu podia
ver que ela estava tentando preencher mentalmente as lacunas que eu havia deixado em branco, sem dúvida calculando o custo-benefício de me ajudar.
Após um momento, ela disse: – Claro. Podemos conseguir as imagens para você.
– Pela internet?
Ela confirmou com um aceno de cabeça. – Se você tiver uma conexão rápida, caso contrário vai demorar uma eternidade. Devemos ter centenas de horas de filmagens sem
edição.
Eu sabia que Angela Knight, da divisão de crimes cibernéticos do FBI, podia fazer uma metabusca no computador que ela chamava carinhosamente de Lacey, mas se o sistema
de Marianne fosse tão avançado quanto ela me disse ontem, eu poderia cuidar disso agora.
– Vá buscar Nick – eu disse. – E venha comigo.
Tessa havia encerrado sua conversa por vídeo com a amiga Pandora e estava observando as pessoas, fingindo ouvir seu iPod. Ela olhou pelo saguão para a luz do céu,
para as varandas, as filas de centenas de portas por trás das quais os hóspedes se trancavam toda noite.
Enquanto as pessoas passavam pelas portas giratórias na entrada principal, um pensamento lhe veio à mente: para fora da jaula, para dentro do mundo.
No inverno passado, Patrick a levou para Johannesburgo, na África do Sul, enquanto ele apresentava um seminário de três dias no Conselho do Simpósio dos Analistas
Criminais das Áfricas, e ela reparou que em uma das cidades mais violentas do mundo, as classes mais altas vivem em subdivisões muradas patrulhadas por guardas armados,
com suas casas protegidas por cercas elétricas, sistemas de segurança, cães de guarda e janelas e portas com grades.
Quando Patrick perguntou o que ela achou da cidade, ela respondeu: – As pessoas livres vivem atrás de grades e os criminosos podem andar livres.
E após um momento, ele disse: – Acho que é uma descrição muito precisa.
Então lá vamos nós de novo: as pessoas se trancam em seus quartos de hotel, suas celas, enquanto os assassinos dessa semana andam pela cidade. Livres.
Jaulas e liberdade.
Um zoológico com outro nome.
E aquilo a fez pensar novamente no centro de primatas.
Belle e o teste de autorreconhecimento no espelho.
Até Patrick pôde perceber o quanto aquilo a deixou perturbada.
O problema não era tanto a pesquisa que estavam fazendo; aquilo tudo parecia humano o suficiente, em vista de até onde pesquisas com animais vão. O que a perturbava
eram as implicações. Afinal, os pesquisadores não estavam apenas estudando a neurologia da violência, mas também a neurologia da autoconsciência, da moralidade.
Claro, na escola ela aprendeu sobre evolução – especialmente sobre as teorias ultrapassadas de que evoluímos dos gorilas, chimpanzés ou outros primatas quadrúpedes,
e não do Ardipithecus ramidus, mas tanto faz – não se tratava disso ou de a seleção natural ter alguma intervenção divina, ela nunca considerou realmente que havia
uma continuidade de consciência entre humanos e outros animais.
Uma continuidade de moralidade.
Não precisava ser um gênio para perceber que, como disse a dra. Risel, se todos os traços e comportamentos humanos podem ser encontrados em formas rudimentares no
reino animal, então a diferença entre humanos e animais era meramente de grau, e não de tipo.
E essa era a ideia que a incomodava.
Na essência, nada além do tempo e de mutações nos separava de outros animais. Comportamentos que nós consideramos serem morais teriam sido desenvolvidos fundamentalmente
pela seleção natural como o comportamento mais benéfico para a propagação da espécie. E se esse fosse o caso, a moralidade seria simplesmente funcional, determinada
pelos imperativos biológicos de reprodução e sobrevivência.
O que é bom para a espécie é bom.
O que é ruim para a espécie é ruim.
A moralidade era apenas utilitária, e nada mais.
Ela estava olhando para as portas principais dessa jaula humana gigante, lidando com seus sentimentos em relação a tudo isso, quando viu um homem entrar no hotel,
parar e olhar ao redor.
O homem era Paul Lansing.
Seu pai.
57
Ela deslizou rapidamente na cadeira e virou a cabeça para o lado, para que ele não a visse.
O que ele está fazendo aqui?
Ele a estava seguindo. Só podia ser isso!
Ela pegou o celular para ligar para Patrick, mas antes de discar, teve uma ideia.
Paul pensa que Patrick tem problemas de irritação... que ele é violento...
Se Paul a estivesse seguindo, o que era óbvio, então ele certamente teria visto Patrick entrar no hotel com ela. Então ele deveria saber que seu padrasto estava
por perto...
O que Paul está tentando fazer?
Não tinha como saber com certeza, mas ela não confiava nele, e considerando o processo da custódia, ela só conseguia pensar que ele estava ali para, de algum modo,
arruinar suas chances de ficar com Patrick.
Ela olhou ao redor, procurando uma rota de fuga, mas quando ela o fez, Paul de algum jeito viu seu rosto no meio de tantos outros no saguão lotado e foi na direção
dela.
Não, não, não!
Ela guardou o telefone, pegou a bolsa e estava pegando seu laptop para ir embora, mas enquanto isso, ela pensou em um jeito de virar o jogo contra Paul, especialmente
se ele estivesse tentando armar algo para Patrick, se esse fosse seu plano, afinal.
Ela deixou seu laptop aberto.
Pressionou algumas teclas.
Chelsea Traye tinha feito a cobertura do atentado há seis anos, e não demorou muito para ela ajudar Marianne a achar a filmagem certa. Agora ela estava sentada do
meu lado, e Marianne do outro. Nick estava de pé atrás dela, observando a sala, obviamente impressionado.
Marianne estava baixando os vídeos arquivados do canal, enviando-o para seu sistema de reconhecimento de áudio, buscando referências às palavras “Mollie Fischer”,
“Lincoln Towers”, “Gunderson”, “primata”, “metacognição” e uma dúzia de outras palavras-chave que eu a tinha informado.
– Esse programa marca palavras faladas – Marianne nos explicou. – Então pega vinte segundos de áudio antes e depois delas para que você possa ouvir a frase no contexto.
Os arquivos e clipes de vídeo estavam se acumulando em questão de segundos. Fiquei impressionado pela quantidade de material que o canal tinha e percebi que a maioria
das agências de força policial sequer possui capacidade para essa profundidade e extensão de pesquisa.
Eu certamente não ia ter tempo de ouvir todo o áudio naquele momento. – Você pode transcrever os arquivos de áudio em arquivos de texto? – reparei que Nick estava
segurando o celular com a mão direita e digitando com a outra. – Você vai ter que guardar isso aí – eu disse. – Ou vai ter que sair.
Ele parecia embaraçado. – Desculpa.
Ele guardou o telefone no bolso e Marianne disse para mim: – Claro, posso conseguir os arquivos de texto para você.
Ela soltou os dedos sobre o teclado e uma linha de mensagens de texto apareceu na tela diante de mim, com hiperlinks para marcadores nas imagens de vídeo. E eu comecei
a rolar pelas centenas de fragmentos de texto, procurando qualquer coisa que pudesse estar relacionada ao sequestro de Mollie Fischer.
58
– Paul – Tessa disse quando ele se aproximou dela. – O que você está fazendo aqui? – ela tentou manter a voz equilibrada.
– Vim me desculpar.
– Mesmo?
– Sim.
– Como você sabia que eu estava aqui?
– Um dos meus advogados conhece o sr. Lees, o gerente. Ele mencionou que o FBI havia aparecido novamente e...
– Você mente quase tão mal quanto... – ela hesitou – algumas pessoas que conheço.
Ele olhou para ela. – Você acreditaria que eu segui você até aqui desde a sua casa?
Ela balançou a cabeça. – Patrick teria percebido. Ele teria visto seu carro.
Paul falou suavemente. – Poucas pessoas teriam percebido.
Ela olhou para ele curiosa. – O que isso quer dizer?
– Nada.
– Bom, tudo bem, você veio se desculpar. Então se desculpe.
– Precisamos conversar sobre algumas coisas. Posso me sentar?
– Isso não é uma desculpa.
– Me desculpe por ter sido um pouco autoritário no museu.
– Um pouco?
– Por favor? – ele gesticulou na direção da cadeira.
Ela tirou a bolsa e o laptop ainda aberto da cadeira ao seu lado e os colocou na mesinha à frente e olhou para o outro lado como se consentisse. Ele sentou-se e
então ela olhou para ele. – Eu já sei sobre o que você quer falar, a coisa da custódia.
– Patrick contou para você.
– Claro que me contou. Eu sou a filha dele.
Ela escolheu a palavra filha de propósito e esperou Paul ousar corrigi-la, mas ele apenas aceitou e disse: – Eu quero o melhor para você.
– Então me deixe em paz. Deixe-nos em paz. Você nunca foi parte da minha vida antes, e todos nós nos viramos muito bem. Eu não gosto do jeito como você se aproveitou
da minha mãe e eu não gostei de como você me questionou sobre Patrick. E eu não quero você perto de mim. Fim da história.
– Eu entendo o que você está dizendo, mas você lembra da carta? Aquela que mandei para sua mãe quando ela estava planejando te abortar? Eu queria fazer parte da
sua vida. Desde o início.
Ela odiava admitir, mas isso era verdade, a carta deixava bem claro.
– Por quê?
– Por que o quê?
– Você mal conhecia minha mãe. Você me disse que não a amava. Por que você queria fazer parte da minha vida?
– Porque eu sou seu pai – sua voz era suave e sincera.
Ela ficou em silêncio.
– Olhe – ele disse.
– Eu vim aqui para consertar as coisas, para te contar o que eu fazia antes de ir morar em Wyoming.
– Pensei que você tinha vindo aqui pedir desculpas.
– As duas coisas.
– Eu já sei o que você fazia. Você trabalhava para o Departamento de Caça e Pesca de Wyoming.
– Não exatamente.
– Ah, então isso era mentira também?
– Eu trabalhava para o governo.
– Sim? E?
Ele esperou como se achasse que ela entenderia.
É claro que ela sabia que a frase “eu trabalho para o governo” era frequentemente usada como um jeito de evitar admitir que você trabalhava para o FBI, a DEA ou
a CIA. Ou talvez para a ATF. Não era necessário morar em Washington para saber disso.
– O quê? – ela disse. – Você está me dizendo que era um espião ou algo do tipo? Oh, ou talvez um assassino? Um cara das forças especiais do exército? – Então ela
se inclinou para perto e cochichou, com falsa admiração: – Você era dos Comandos em Ação?
Ele não discutiu com ela. E seu silêncio parecia ser um jeito de explicar sua situação.
Chega disso.
– Ou diga logo o que você veio aqui para contar ou vá embora.
– Eu trabalhava para o Serviço Secreto, Tessa.
– Sim, claro.
– É verdade.
– Eu não acredito em você.
– Como eu consegui seguir vocês hoje de manhã sem ser visto? Sem deixar que um agente experiente do FBI percebesse que estava sendo seguido?
Patrick não tinha motivo para achar que estava sendo seguido. Dããã!
– Prove. Mostre uma identificação ou algo assim.
Para sua surpresa, Paul enfiou a mão no bolso e pegou uma carteira similar à de Patrick.
Seu padrasto era tão estrito sobre ela não sair com caras mais velhos que a ensinou como descobrir identidades falsas, e quando ela analisou a credencial de Paul,
mesmo vencida há seis anos, ela parecia verdadeira.
Ele tentou protegê-la quando aquela escultura se espatifou no museu...
Ele conhece pessoas no Capitólio... Costumava viver em Washington...
Patrick não conseguiu achar nenhuma sujeira no passado dele; o Serviço Secreto podia ter feito isso, apagado seus registros...
Ela lhe devolveu a identificação. – Se o que você está dizendo é verdade, minha mãe teria me contado.
– Eu estava no meio do processo de inscrição quando a conheci. Ela sabia que ter uma família, ter responsabilidades, especialmente filhos, não era... Bem, vamos
dizer que quando o governo procura pessoas dispostas a darem suas vidas, eles não querem que você tenha nenhum motivo para hesitar.
– E filhos e namoradas são bons motivos para hesitar, é isso?
– Sim. O Serviço Secreto não dá prioridade para candidatos com muitas responsabilidades.
A vasectomia? Foi por isso que ele fez?
– Então você está dizendo que eu era um risco para sua carreira. Que legal.
Ele ignorou isso. – Eu não tenho certeza do que sua mãe estava pensando, mas eu sempre acreditei que ela foi embora porque queria proteger nós dois.
– Ou talvez ela só não queria ficar perto de você. Você chegou a pensar nisso?
– Sim. Eu pensei.
Ela o encarou. – Como isso me protegeria? Ela te abandonar.
– Familiares de membros do Serviço Secreto frequentemente viram alvo de pessoas que querem comprometer aquele agente.
Ela odiava admitir, mas parte do que ele estava falando parecia fazer sentido. – Por que você está me contando isso agora?
– Eu não queria que existisse nenhum segredo entre nós.
– Sério? Quem é Julia?
– Não existe Julia. Eu visitei o Hirshhorn no dia em que cheguei de viagem, escolhi uma escultura e decidi que sua criadora seria meu motivo para estar na cidade.
– Quando, na verdade, o motivo de você estar aqui é conseguir minha custódia – ela não disse isso como uma pergunta.
– Você faz dezoito anos no outono. Eu não podia esperar até lá, ou seria tarde demais para te conhecer antes que você se mudasse para viver por conta própria.
– Você mentiu para mim.
– Se eu tivesse contado a verdade logo de cara, você teria aceitado me encontrar ontem?
– Eu não sei. Mas pelo menos eu confiaria mais em você do que confio agora – quando falou isso, ela se sentiu ligeiramente hipócrita, afinal, ela enganara Patrick
quase do mesmo jeito. E ele provavelmente se sentiu como ela estava se sentindo agora.
Paul não respondeu.
Apesar de tudo, ela estava começando a acreditar nele.
– Como você se meteu com esculturas, então?
– Fiz algumas aulas em uma faculdade comunitária.
Isso explicaria por que ele não sabia nada de arte e tinha que ler todas
as placas explicativas no museu.
– Então, por que você vive no meio do nada? Você foi demitido do Serviço Secreto, e não estou dizendo que acredito que você era do Serviço Secreto, mas se foi, você
foi demitido ou pediu demissão?
– Minha saída foi um mútuo acordo.
– Explique “acordo mútuo”.
Ele olhou pelo sagão por um momento; então se inclinou para mais perto dela e falou ainda mais baixo do que já estava falando. – Há seis anos, eu estava protegendo
o vice-presidente Fischer quando houve um atentado contra sua vida, aqui, no Lincoln Towers Hotel.
60
Tessa não disse nada.
– Você tinha só onze anos, provavelmente não se lembra disso.
– Não. Eu lembro.
– Mesmo? – ele parecia duvidar.
– Eu tenho uma memória acima da média.
Ela pensou no atentado e lembrou que o atirador não consegui acertar o vice-presidente e foi morto por...
Oh.
– Você atirou no cara? É isso que você está dizendo?
Ele meneou a cabeça. – Não, eu não matei o agressor.
– Bom, então por que sua saída foi um acordo mútuo?
Ele ficou em silêncio. Por vários segundos. – Tessa, quando Hadron Brady começou a atirar, eu me joguei no chão para me proteger. Não atirei de volta; não atirei
meu corpo na linha de fogo para proteger o vice-presidente. Em vez de continuar envergonhando o serviço, eu renunciei, e eles concordaram em me ajudar a desaparecer
para que minhas ações não refletissem negativamente na agência.
Ela avaliou tudo. – Você correu para se esconder?
Ele acenou com a cabeça, mas não disse nada.
Ele é um covarde. Seu pai é um covarde!
Ela disse para si mesma que era natural ele ter ficado com medo quando os tiros foram disparados, mas então ela percebeu que se Patrick estivesse lá, ele poderia
ter ficado com medo, qualquer um poderia, mas ele não teria corrido, fugido, recuado, se escondido. Ele teria resguardado a pessoa que estava protegendo. De qualquer
maneira.
– O que você está pensando? – Paul lhe perguntou.
– Estou pensando que se isso tudo for verdade, você deveria ter me contado na primeira vez que nos vimos, na sua cabana.
– Eu queria esperar a hora certa.
– E por que agora seria a hora certa?
Uma pequena hesitação. – Aparentemente não é.
Ela sentiu um turbilhão de emoções. Nenhuma delas boa. – Acho que não quero mais conversar.
– Sim, tudo bem – ele se levantou. – Vejo você depois. Não vou me encontrar com você sem a permissão de Patrick da próxima vez. Eu prometo.
Ela tinha a sensação de que deveria falar alguma coisa sobre o caso da custódia. Então, o que vai acontecer agora? Você ainda vai continuar com isso? Ou talvez ela
devesse falar que o perdoava por não ter sido franco com ela, mas em vez disso, ela apenas o observou indo embora.
Ele é um covarde. É isso que ele é.
Seu pai é um covarde.
Ela esperou ele sair do hotel antes de pressionar uma tecla para pausar seu programa de conversa em vídeo que ela usou para gravar toda a conversa.
Então ela rolou pela tela.
E clicou em “salvar”.
Acho que eu tinha descoberto alguma coisa.
Nas imagens, além das menções ao quarto 809, o quarto onde foi encontrada a cadeira de rodas havia uma porção de referências ao quarto 814. Não estava claro se Hadron
Brady, o atirador, tinha ficado nele ou simplesmente o usou temporariamente para montar seu rifle, mas quando cruzei as referências daquele quarto com os registros
da faxineira que detalhavam quais quartos foram arrumados ontem à tarde, os horários batiam. As faxineiras o haviam limpado.
Hora e local.
Os dois quartos que os assassinos escolheram eram os mesmos que Brady havia usado.
Antes de contar para Marianne o que eu tinha percebido, agradeci a Nick e Chelsea pela ajuda e pedi que eles me dessem licença; eles reuniram suas coisas a contragosto
e saíram da sala.
– O que foi? – Marianne perguntou.
Apontei para a tela. – Tem alguém hospedado naquele quarto?
Ela procurou. Balançou a cabeça. – Não. Não desde terça-feira.
Então, se os assassinos o usaram, talvez ainda dê para achar as evidências.
Mas então, por que as faxineiras o arrumaram?
Esse caso estava começando a me lembrar um sistema de cavernas: uma série de passagens subterrâneas que você não consegue identificar olhando apenas para a superfície.
Você só encontra as ligações quando realmente desce fundo e começa a explorar o caminho dos túneis.
E o próximo túnel que eu precisava explorar estava acima de mim, no oitavo andar.
Tessa sabia que podia esperar ali, é claro, esperar por Patrick, o tempo que fosse necessário.
Ou ela podia ligar para ele, mas isso não era exatamente o tipo de coisa que você conta para alguém pelo telefone: – Aliás, meu pai deu uma passadinha aqui para
me contar que é um ex-agente covarde do Serviço Secreto. Ah, sim, e ele nos seguiu por toda a manhã. Nos falamos depois. Tchau.
E ligar para Patrick e falar que queria conversar com ele mais tarde, só
o deixaria preocupado.
Não, ela precisava falar com ele pessoalmente.
Um pouco mais cedo, quando ele saiu para vasculhar o hotel, ele tinha ido pelo corredor que saía de trás do balcão da recepção.
Ela pegou suas coisas e foi naquela direção.
60
Saí do elevador e caminhei pelo corredor.
Só havia duas possibilidades: ou Mollie ainda estava no hotel ou não estava. Isso era óbvio.
Passei pelo quarto 804.
Um axioma surgiu na minha cabeça, um que eu já ensinei nos meus seminários centenas de vezes ao longo dos anos: o que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
809.
Ou Mollie estava viva, ou morta.
Ou estava aqui, ou não estava.
812.
Quais outras opções existiam?
Cheguei ao quarto.
Por um momento, pensei nos métodos que os alunos da Academia listaram na quarta-feira para cometer o crime perfeito: tomar precaução para não deixar evidências físicas...
contaminar a cena com o DNA de outras pessoas... se livrar do corpo em lugares abertos, não permitir que o corpo seja encontrado...
Não permitir que o corpo seja encontrado.
Vesti as luvas de látex que havia trazido comigo.
Peguei meu conjunto de abrir fechaduras.
Apesar do que gerentes de hotel dizem, fechaduras de cartão são as mais fáceis de abrir. Os hotéis as utilizam porque são mais baratas, e não porque são mais seguras.
É um dos segredos mais ocultos da indústria hoteleira.
A maioria das pessoas se sente segura em seus quartos de hotel.
Ah, se elas soubessem.
Então, apesar de ter esquecido de pegar um cartão na minha pressa, levei apenas alguns segundos para abrir a porta.
As cortinas das janelas no lado oposto do quarto, estavam fechadas e a luz abafada que conseguia penetrar deixava o quarto com um ar amarelado e pastoso.
Eu sabia que Doehring e sua equipe procuraram por Mollie Fischer em cada quarto do hotel, que a ERT havia analisado o quarto 809, que Margaret tinha mandado agentes
verificarem novamente todos os quartos do oitavo andar que as faxineiras tinham arrumado, mas até onde eu sabia, nenhuma unidade forense havia estado nesse quarto.
Mas as faxineiras estiveram.
Inconscientemente aspirando as evidências.
Limpando-as de cima das cômodas.
Esfregando-as da pia.
Quando você está procurando alguma coisa em um quarto que já foi vasculhado, você precisa considerar as condições em que a primeira busca ocorreu, e então alterar
essas condições para que sua atenção não seja atraída para os mesmos objetos ou áreas analisados na primeira busca.
E como as luzes de um quarto sempre formam sombras nos mesmos lugares, elas são um dos principais fatores determinantes a se alterar.
Então, agora, deixei as luzes apagadas e liguei minha lanterna.
A luz abriu um pequeno feixe através da luz fraca e amarelada do quarto.
Tirei meus sapatos para não deixar partículas de sujeira no carpete. Então entrei, fechei a porta e comecei minha busca por algo que pudesse nos levar até Mollie
Fischer.
60
Ajoelhei-me e apontei minha lanterna para o carpete e, como eu esperava, vi linhas nítidas de fibras esticadas que me disseram que o quarto tinha sido aspirado recentemente.
Nenhuma pegada visível, então aparentemente a faxineira havia aspirado o quarto enquanto recuava para a porta.
Verifiquei o armário, a escrivaninha, as cadeiras. Nada.
Então as gavetas, debaixo da cama, atrás das cortinas.
Nada.
Vasculhei o quarto inteiro, cuidadosamente, metodicamente, procurando em cada área a partir de diferentes pontos de vantagem e vários ângulos até ficar satisfeito.
Apenas mais um lugar para procurar.
Fui até a porta do banheiro.
Estávamos procurando pelo corpo de Mollie, por um cadáver.
Mas esse quarto já foi verificado...
Se Mollie foi morta nesse hotel, e os assassinos não tiveram tempo de transportar o corpo para outro lugar, era óbvio que seu cadáver tinha que estar aqui em algum
lugar.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Empurrei a porta do banheiro e ela se abriu no escuro.
Por causa da posição do banheiro em relação à janela, quase nenhuma luz o iluminava, apenas sombras de diferentes profundidades, diferentes intensidades.
Girei o bocal da lanterna, alargando o feixe, e mirei para dentro.
O banheiro parecia vazio, mas percebi que as cortinas do chuveiro haviam sido puxadas por toda a extensão do suporte prateado, deixando a banheira fora do campo
de visão.
Inconscientemente, inspirei o ar, mas não captei o odor que temia captar.
Fui até a banheira.
Segurei a lanterna com uma mão, agarrei a borda da cortina do chuveiro com a outra.
Cenas de crimes passados passaram pela minha cabeça como um antigo rolo de filme. Imagens de morte, terror e sangue...
Lentamente, deslizei a cortina pelo suporte enquanto iluminava a banheira com a lanterna.
Vazia.
Soltei o ar aliviado, mas marcado pela frustração. Eu realmente esperava encontrar alguma coisa. Havia passagens demais nessa caverna e eu não estava sendo capaz
de conectá-las.
Você deve estar errado sobre esse quarto. Sobre isso tudo.
Suspirei.
Certo.
Terminaria de dar uma olhada e iria embora.
Avalie a cena sistematicamente, começando pela pia.
A pia impecavelmente brilhante e a bancada asseada me disseram que as superfícies tinham sido higienizadas recentemente. O frasco de xampu, o sabonete, a loção pós-barba:
tudo novo.
Toalhas dobradas.
Espelho sem manchas.
A faxineira fez o trabalho completo.
Voltei minha atenção para a cômoda. O puxador brilhava, impecável. Nenhuma mancha.
Nenhuma impressão digital.
O vaso sanitário não tinha nada além de água limpa, mas quando me ajoelhei e olhei atrás da base da cômoda, encontrei uma coisa.
Um pequeno lenço dobrado.
Poderia ter sido deixado para trás pelos assassinos, mas quando aproximei o feixe de luz da lanterna e o inspecionei mais de perto, vi que estava coberto por uma
fina camada de poeira intocada, então certamente eledevia estar no quarto há mais de 24 horas.
Os assassinos podem tê-lo plantado aqui. É o tipo de coisa que eles fariam.
Nós analisaríamos o DNA, mas independentemente do lenço ter sido deixado pelos assassinos ou não, sua presença indicava uma coisa: havia áreas do banheiro que eram
fáceis de ser esquecidas mesmo para uma faxineira meticulosa.
Voltei novamente para a banheira.
Um pouco de sobra de sabão perto da torneira, alguns fios de cabelo presos no ralo. O fio de cabelo não contém DNA, mas os folículos do cabelo possuem, então, se
tivermos as raízes dos...
Mollie estava inconsciente na cadeira de rodas...
Leva algumas horas para drogas chegarem à raiz do cabelo de alguém, e se Mollie estivesse sob efeito de alguma droga por mais de uma hora e esses cabelos fossem
dela, era possível que encontrássemos vestígios da droga.
E, assim, os caras no laboratório poderiam testá-lo, identificá-lo, compará-lo.
Mollie está dentro do hotel, ou não está.
Entrei na banheira e fechei a cortina pelo suporte novamente.
Usando a lanterna, investiguei cuidadosamente a cortina do chuveiro. Uma pequena quantidade de resto de sabão. Algumas manchas de água. Nada mais.
Só quando ajoelhei e olhei para o lado oposto da cortina, entre duas dobras, eu vi.
Um pequeno ponto.
Escuro.
Sangue seco.
O único jeito de reparar nele era de dentro da banheira, um lugar improvável para se ficar fazendo a limpeza, mesmo para uma faxineira experiente.
Pode não ser nada. Pode não estar ligado. Talvez. Talvez.
Liguei para Doehring, contei o que tinha achado e ele disse que mandaria os caras da unidade de perícia para lá imediatamente. Desligamos.
Claro, poderia não ser nada, mas no momento parecia que muitos túneis estavam convergindo para esse quarto para que eu acreditasse nisso.
O sangue.
A falta de DNA no 809.
A proximidade dos dois quartos.
Fechei os olhos e tentei lembrar o que eu tinha visto quando cheguei ao oitavo andar ontem: dois seguranças... duas faxineiras... três crianças de roupa de banho...
Uma ideia, do nada: Poderiam ter sido as crianças da sra. Rainey?
Não, as crianças no hotel eram mais velhas.
Mas eu tinha visto outra coisa.
Um carregador de malas puxando um carrinho de bagagens.
62
Senti um calafrio na espinha.
Liguei para Marianne e perguntei onde os carregadores guardam as bagagens de hóspedes que chegam cedo, ou que precisam guardar as malas no hotel até a hora do checkout.
Ela me disse onde ficava: uma sala num piso inferior, perto do depósito onde eu tinha tomado o tiro. Não contei a Marianne o que eu estava suspeitando, apenas pedi
que ela me encontrar lá, então encerrei a ligação.
E, tentando convencer a mim mesmo que eu estrasse errado em suspeitar daquilo, fui para o porão.
– Aqui estamos – o sr. Lees declarou quando ele e Tessa chegaram ao centro de controle do hotel.
Ela demorou mais do que imaginava para convencê-lo a levá-la até Patrick, mas quando ela finalmente disse como o agente especial Bowers DO FBI ficaria irritado se
descobrisse que o gerente do hotel não estava permitindo que sua filha o visse, o sr. Lees disse a ela gentilmente para segui-lo.
– Acredito que nossa chefe de segurança está com ele agora – ele bateu na porta e, um momento depois, uma mulher esbelta e bem-vestida, de aproximadamente trinta
anos, apareceu.
O sr. Lees disse: – Marianne, essa é Tessa Ellis, enteada do agente Bowers.
– Preciso falar com ele imediatamente – Tessa disse.
– Bom, estou indo me encontrar com ele. Por que você não vem junto?
Cheguei à área de armazenamento de bagagem antes de Marianne e decidi não esperar por ela.
Dispensei todos os carregadores da sala, fiquei sozinho e fechei a porta.
Em contraste com o esplendor e a extravagância do resto do hotel, aquela sala era uma vasta câmara de concreto que cheirava a poeira, mofo e ar viciado. Lâmpadas
industriais fluorescentes. Sem carpete. Sem janelas.
Uma dúzia de carrinhos de bagagem vazios formavam uma fila ao longo da parede leste. Preenchendo o resto da sala, pilhas de malas de diversos formatos e tamanhos.
Com aproximadamente um metro de espaço entre cada pilha, elas haviam sido claramente arrumadas para manter os itens dos diferentes hóspedes separados.
Ontem, eu vi de relance as malas no carrinho de bagagem que o carregador estava puxando pelo corredor e não tinha certeza de qual marca eram. Então agora, enquanto
procurava pelas pilhas, comecei buscando entre as bagagens com as maiores malas. Imaginei que fosse a mais apropriada para...
Então eu a vi.
Do outro lado da sala.
Um conjunto de malas grandes que, quando pensei melhor, parecia ser do mesmo estilo das que vi no carrinho de bagagem.
Estávamos procurando pelo corpo de Mollie.
Pelo corpo inteiro.
Mas talvez não fosse isso que iríamos encontrar.
Atravessei a sala na direção da pilha de malas.
63
A bagagem parecia nova em folha.
Usar malas novas faria sentido se você fosse um assassino que estivesse tentando não deixar evidências físicas que pudessem ajudar a te rastrear. Não apenas DNA,
cabelo ou outras evidências físicas, mas também arranhões ou marcas de raspão que pudessem nos fornecer pistas sobre onde a bagagem esteve.
Eu tinha a sensação de que esses assassinos teriam pensado nisso.
Com meu celular, tirei meia dúzia de fotos da organização das quatro malas.
Então olhei para a maior delas.
Ajoelhei-me ao seu lado.
Quando fiz isso, senti um fraco odor que já tinha sentido em muitas cenas de crimes. E apesar de tentar me tranquilizar pensando que o cheiro deveria estar mais
forte, mais repugnante a esse ponto, eu estava ciente dos métodos usados para resolver esse problema: enrolar o item em plástico... usar produtos químicos...
Meus dedos tremiam levemente enquanto eu separava a mala das outras na pilha e a deitava no chão.
Estava muito pesada e caiu de lado com um baque surdo e perturbador.
Coração disparado, procurei pelo zíper.
Um carregador de malas passou com essas malas por todo mundo...
Passou bem na sua frente.
Cuidadosamente, abri o zíper, tomando cuidado para ele não agarrar no tecido, não prender na minha luva. Ou não prender em qualquer outra coisa.
Por que aqueles dois quartos no oitavo andar?
Qual é a ligação entre esses assassinos e a tentativa de assassinato
há seis anos?
O zíper alcançou o fim de sua trilha.
Coração martelando.
Martelando.
Tirei outra foto com meu telefone.
Então me preparei.
Levantei o tampo da mala.
No mesmo momento em que a porta atrás de mim se abriu.
64
Fechei rapidamente a mala.
Uma rápida olhada confirmou meus piores temores: os assassinos não tinham usado apenas essa mala. Baseado no que vi, suspeitei que eles usaram a maioria das que
estavam nessa pilha.
Tentando disfarçar a torrente de tristeza e ódio que eu sentia, virei-me para ver se era Marianne na porta atrás de mim.
E era.
E Tessa estava com ela.
– O que você está fazendo aqui? – gritei.
Ela estava em silêncio, olhando para além de mim, para a mala ao lado da qual eu estava ajoelhado.
– Tessa, você precisa sair dessa sala. Agora – eu não queria que meu tom tivesse sido tão duro, mas eu não a queria perto daquele lugar.
Marianne colocou uma mão em seu ombro. – Vamos, querida.
O rosto de Tessa ficou corado. Ela era uma menina esperta, entendeu o que estava acontecendo. – É a...?
– Vamos – Marianne a apressou para fora da sala.
Antes de me juntar a elas, rapidamente liguei para Doehring e lhe disse para mandar outra equipe de técnicos forenses. Me senti mal dizer: – Encontrei os restos
mortais de Mollie Fischer.
Após garantir que os carregadores soubessem que não deveriam entrar na sala, me apressei pelo corredor e alcancei Tessa e Marianne perto do elevador no canto sul
do porão. Marianne tocou gentilmente o ombro de Tessa, disse algumas palavras encorajadoras para ela e então nos deixou a sós. Entramos silenciosamente no elevador
e observamos as portas se fecharem. Ficamos um do lado do outro sob uma mortalha de silêncio.
Eu não queria fazer a pergunta para Tessa, mas sabia que precisava, então um pouco antes de chegarmos ao térreo, eu disse: – O que você viu lá?
– Só... – ela hesitou. – Uma mala. Um monte de malas.
O elevador parou.
– Só isso?
As portas se abriram.
– E a expressão no seu rosto.
Experimentei uma profundo sensação de fracasso. Primeiro, por não ter encontrado Mollie viva; depois, por ter deixado Tessa ver o ódio escancarado em meus olhos.
– Venha – eu disse. – Vamos tirar você daqui.
Quando estávamos saindo do hotel, a primeira leva de policiais, incluindo o oficial Tielman, o membro da unidade de perícia que eu havia conhecido no centro de primatas
na terça-feira, já estava entrando correndo pela porta principal.
Enquanto estava sentada à sua mesa no posto de comando, Margaret Wellington teve notícias de que Patrick Bowers havia encontrado o corpo de Mollie Fischer no hotel.
Lentamente, ela repousou seu telefone.
Mais cedo nesse dia, Rodale a notificou de que Bowers estava de volta ao caso. Ela sentiu uma onda de indignação tanto em relação a Bowers quanto a Rodale, e isso
não tinha passado durante a tarde toda.
Mas agora que Bowers havia encontrado Mollie, algo que ela mesma falhou em fazer, ela se sentiu em conflito.
Ela jamais gostou do comportamento teimoso de Bowers ou de seu método não convencional de trabalho, mas ela mal podia acreditar que ele fosse o tipo de homem que
iria atrás de Rodale pelas costas dela daquele jeito. Não só era um desafio direto à sua autoridade como também mostrava desprezo pela cadeia de comando do Bureau
e seu lema: Fidelidade, Bravura, Integridade.
Ela não viu nenhuma dessas três coisas nas ações dele.
E nenhuma na decisão de Rodale de infringir suas ordens e reintegrar Bowers.
Só mais um exemplo da liderança inapta de Rodale no comando do Bureau.
No entanto, apesar de tudo isso, Bowers aparentemente tinha feito seu trabalho, e feito bem.
Então era responsabilidade dela fazer a ligação.
Ela pegou o telefone novamente.
A esposa do deputado Fischer ainda estava voltando da Austrália, então pelo menos ela não teria que traumatizá-la, mas como comandante da força-tarefa, Margaret
precisava ligar para o deputado para pedir que ele identificasse os restos mortais de sua filha. Essa era a segunda vez que lhe pediam isso em uma semana.
Ela respirou fundo e, então, com uma mistura de tristeza e frustração, com si própria e ao Bureau por não terem salvado Mollie Fischer, ela digitou o número.
A caminho de casa, tentei confortar Tessa, mas ela disse que não queria conversar e que seria bom se eu só a deixasse quieta no canto dela.
Durante o ano passado, ela me explicou mais de uma vez que normalmente o melhor jeito de ajudá-la a se sentir melhor era deixando-a em paz, um conselho que parecia
ser contraditório para mim mas que, na verdade, parecia funcionar.
Então, pelo menos por enquanto, deixei que as coisas se acertassem sozinhas e voltei meus pensamentos para o caso.
Agora mesmo, a equipe estaria interrogando os carregadores de malas em busca de uma descrição das pessoas que tiveram malas levadas de seus quartos. Policiais estariam
verificando a mala atrás de impressões digitais, DNA, vestígios de evidências; rastreando a etiqueta de retirada de bagagem para ver se poderiam ligá-la a algum
dos hóspedes que tivesse frequentado o hotel recentemente; examinando o depósito de bagagem e o quarto do hotel com a mancha de sangue.
Ossos do ofício.
Mas com base no que eu já tinha visto até então, os assassinos saberiam de tudo isso nessa semana, teriam previsto tudo.
Lembrei de Sevren Adkins, o assassino da Carolina do Norte que chamava a si mesmo de Ilusionista e que atacara Tessa e tentara matar nós dois. Ele provocava as autoridades
com pistas de futuros crimes e sempre parecia arrumar um jeito de se esconder em plena vista, conseguindo até estar presente em cenas de crime sem levantar suspeitas.
Pouco antes de morrer, ele me desafiou para uma revanche...
– Eu estava procurando você.
As palavras de Tessa desviaram meus pensamentos de Adkins, e levei um momento para retomar minha atenção. – Na sala de bagagens? Um aceno. – Encontrei alguém.
– Alguém?
Ela não respondeu imediatamente. – Paul Lansing.
– O quê?
– Não se preocupe.
– Lansing estava lá? Ele fez alguma coisa com...
– Tá tudo bem. Consegui imagens ótimas.
– Imagens?
Escutei enquanto ela resumiu seu encontro com Lansing, mas mesmo com ela falando, percebi que eu precisaria ver essa filmagem por minha conta, então saí da rodovia
e estacionei em um posto de gasolina. Então ela abriu seu laptop.
E acessou o vídeo.
65
Assisti à conversa gravada três vezes, chocado pelo que Lansing contou a ela, incrédulo que ele havia nos seguido, com raiva de mim mesmo por não ter reparado em
seu carro.
Suas explicações pareciam absurdas.
Mas também, apesar de odiar ter que admitir, talvez não tão absurdas assim.
Na verdade, se o que ele estava dizendo fosse verdade, explicaria muitas coisas, incluindo como o vice-presidente Fischer o conhecia e como tinha ouvido falar sobre
o caso da custódia, por que Christie nunca me contou quem era o pai de Tessa ou informou-o que ele tinha uma filha, e também por que eu não consegui descobrir mais
sobre o passado de Paul Lansing.
É claro, eu precisaria confirmar tudo, mas quanto mais eu pensava nisso, mais eu me via pensando que a história procedia.
Momentaneamente, tive um pensamento perturbador e me senti envergonhado comigo mesmo por ter pensado nisso, mas como investigador eu não conseguia evitar: o pai
de Tessa estava nesse hotel há seis anos quando o atirador tentou assassinar o vice-presidente... Por causa do seu envolvimento, ele provavelmente saberia sobre
os dois quartos no oitavo andar... Ele estava aqui essa semana durante o período dessa onda de crimes... O uso dos dois quartos apontava para uma ligação entre os
crimes...
Poderia ele ter...
Não, não poderia ser.
Diferente do homem que pegamos na filmagem empurrando Mollie para dentro do hotel, Lansing tinha mais de 1,80 m, ombros largos, não favorecia nenhuma perna e não
era canhoto.
Independentemente disso, uma coisa era certa: eu ia dar uma boa olhada no passado de Paul Lansing assim que chegássemos em casa.
Outra passagem.
Outro túnel.
– Se ele tentar entrar em contato com você novamente – eu disse a Tessa –, não fale com nem ou responda seus e-mails. E me avise imediatamente.
– Tá bom.
Após um silêncio extenso, senti a necessidade de mudar um pouco de assunto. – Aliás, bom trabalho com esse vídeo. Você seria uma ótima agente do FBI.
Ela ficou quieta, mas pareceu ter gostado do meu comentário.
– Você sabe ler lábios? – perguntei.
Ela parecia surpresa com minha pergunta e meneou a cabeça.
– Ótimo – peguei meu telefone.
– O que você vai fazer?
Abri a porta. – Duas ligações. Eu já volto.
Após contar para Missy Schuel sobre as reivindicações de Lansing e garantir que lhe enviaria uma cópia do vídeo quando eu chegasse em casa, falei rapidamente com
Lien-hua e ela me informou que o deputado havia sido contatado e estava indo fazer a identificação.
Quando eu lhe contei sobre Lansing e a história do Serviço Secreto, ela se ofereceu para dar uma bisbilhotada para confirmar se ele realmente havia sido um agente.
– Obrigado – eu disse –, mas vou cuidar disso. Escute, é possível que os assassinos não tenham deixado o corpo de Mollie lá só para nos confundir. É possível que
eles tivessem a intenção de voltar para buscá-lo.
– Já pensei nisso. Com tantos policiais presentes na cena e toda a cobertura da imprensa, provavelmente é tarde demais, mas convenci Margaret a nos arrumar três
agentes disfarçados para vigiar as entradas e saídas do hotel.
– Como sempre, você continua me impressionando, agente Jiang.
– Obrigada – uma pausa. – Falando sério, Pat, você fez um bom trabalho.
– Obrigado. Qualquer coisa, me ligue.
– Tudo bem.
Desliguei.
E levei Tessa para casa.
Quatro malas abertas estavam aos pés de Margaret.
A visão dos conteúdos a lembrou de uma vez que um assassino havia deixado o torso de uma de suas vítimas no porta-malas de seu carro.
Apenas para provocá-la.
Um calafrio firme atravessou-a.
Não era uma boa lembrança.
O deputado Fischer insistiu em fazer a identificação aqui em vez de ir até a sala de autópsia do médico forense, e Margaret acabou concordando. Ele pediu para que
as quatro malas estivessem abertas, e agora ele estava olhando para a menor delas, para o rosto de sua filha. E quando fez o mesmo, Margaret percebeu que os olhos
de Mollie ainda estavam abertos.
Ela sentiu uma pontada de raiva. Como demonstração de respeito, é um procedimento padrão para a ERT fechar os olhos das vítimas antes de algum familiar chegar. Ela
olhou para a agente Natasha Farraday, que devia ter cuidado disso, mas obviamente não o fez, então ela mesma se ajoelhou e gentilmente fechou os olhos de Mollie.
O deputado acenou com a cabeça para Margaret em agradecimento pelo gesto. Então, após um longo momento de hesitação, ele olhou para uma das malas à esquerda e apontou
para uma marca de nascença no braço esquerdo de Mollie. – É ela – ele sussurrou. – Sem dúvida.
Apesar de sua aparente certeza, Margaret queria exames de DNA conclusivos antes de tornar pública qualquer informação.
A agente Farraday levou alguns instantes para fazer o teste ali mesmo. Enquanto ela fazia, Margaret não conseguia parar de pensar no corpo no porta-malas de seu
Lexus na Carolina do Norte...
– É ela – a agente Farraday declarou. – É Mollie.
A terceira vítima confirmada desde terça-feira à noite. Nenhum sus
peito, nenhuma pessoa de interesse para o caso.
Margaret esvaziou a sala para que o deputado pudesse ter um tempo a sós com a filha; então, alguns minutos depois, ele saiu e sua comitiva o levou embora do hotel.
Enquanto observava Fischer indo embora, ela pensou novamente na ligação do irmão dele com esse hotel, no atentado contra ele cometido por um ativista a favor da
pena de morte.
Cheyenne lhe pediu para ver se o discurso do vice-presidente Fischer tinha alguma coisa a ver com metacognição de primatas, e ela descobriu que não: era sobre a
Constituição como um documento vivo e as implicações que mudanças do ponto de vista sobre os direitos à vida e à liberdade da Quinta Emenda poderiam ter nos problemas
sociais de hoje.
Direito à vida.
À liberdade.
Conhecer a posição do deputado em relação a esses assuntos poderia ajudar a força-tarefa a identificar potenciais grupos que poderiam ter motivações políticas para
prejudicar sua família, e talvez fornecer uma ligação à tentativa de assassinato há seis anos.
Uma olhada no relógio de seu celular a informou que já eram quase 17h30.
Você está trabalhando há onze horas seguidas, Margaret. Vá para casa.
Mas ela duvidou que conseguiria se desligar completamente do caso. Hoje à noite, após o jantar, ela daria uma olhada melhor no registro de votos do deputado Fischer
e no que poderia estar em risco nesse caso.
Ela saiu para pegar suas coisas em seu escritório e foi para casa dar comida para Lewis.
66
17h34
Assim que Tessa e eu chegamos em casa, encaminhei para Missy Schuel o vídeo que Tessa fez de sua conversa com Paul Lansing, e poucos momentos depois, quando estava
me aprontando para começar a vasculhar o passado de Lansing, Missy me ligou.
– Eu estava em dúvida se deveria ou não te ligar – ela disse –, mas agora, à luz de tudo que aconteceu...
– O que foi?
– Um dos advogados de Lansing finalmente retornou minhas ligações. Tenho uma reunião com eles amanhã à tarde.
– Amanhã? Pensei que você tinha dito que esperava...
– Semana que vem. Sim. Não esperava que eles aceitariam o encontro comigo antes disso. Mas agora estou me perguntando se essa pressa repentina tem algo a ver com
o encontro de Lansing com Tessa hoje à tarde – uma pausa, e então: – É possível que Paul estivesse ciente de que sua conversa estava sendo gravada?
Pensei naquilo. – Pelo jeito que ele agiu no vídeo, não parece.
Após um momento ela disse: – Eu concordo, mas seja o que for, essas coisas nunca funcionam tão rápido assim. Tem alguma coisa acontecendo.
Imediatamente, pensei na ligação de Lansing com o ex-vice-presidente. – Eu vou à reunião – eu disse.
– Acho melhor eu ir sozinha. Pelo menos nessa primeira...
– Missy, eu vou.
– Não é assim que as coisas funcionam.
– Você tem três filhos – respondi. – Você foi à reunião com os advogados depois que seu marido a deixou? Ou você apenas confiou em alguém que você mal conhecia para
te ajudar a manter a custódia de seus filhos?
Uma pequena pausa. – Você tem razão. Mas se formos trabalhar juntos, você vai ter que confiar em mim.
– Eu confio.
É em Lansing que eu não confio, pensei, mas mantive o comentário para mim mesmo.
– Certo – ela disse. – Eu acho melhor você não ir, mas a escolha é sua. A reunião é às 15h30. Meu carro está na oficina, então se você puder me pegar no meu escritório
às 14h30, teremos tempo para discutir os detalhes antes da reunião.
Eu concordei e encerramos a ligação.
Após minha conversa com Missy, fui até a sala de estar para ver como Tessa estava e encontrei-a deitada no sofá lendo uma coletânea de histórias de Sherlock Holmes.
– Pensei que você odiava Doyle e só gostasse de...
– Poe. Sim. Eu odeio – ela não se deu o trabalho de olhar para mim.
– Então você decidiu dar outra chance para Doyle?
– Pandora gosta dele. Ela está sempre me pedindo para ler as histórias de Holmes – finalmente ela olhou para mim. – Mas essa com certeza é a última chance de Doyle.
Conhecendo Tessa como eu conhecia, eu achava que ela se refugiara na leitura, um de seus passatempos favoritos, como um meio de lidar com o dia traumático. Eu costumo
fazer a mesma coisa, me recolher ao que é familiar, quando estou lidando com algo opressivo. – Tessa, você gostaria de conversar sobre...Ela voltou para o livro.
– Não estou pronta.
– Tudo bem.
Tentei descobrir o melhor jeito para equilibrar minhas obrigações como pai e meus deveres como agente do FBI pelo resto da noite, mas no final decidi que até Tessa
estar pronta, eu a deixaria em paz e me concentraria no que eu podia descobrir sobre o passado amorfo de Lansing.
Levei meu laptop para a varanda na parte de trás da casa, longe da vista de Tessa.
Pelas anotações que Christie deixara em seu diário, eu sabia que Lansing não havia mudado seu nome desde que haviam se conhecido, então entrei no Banco de Dados
Digital Federal e o digitei. Angela Knight e eu pesquisamos seu passado logo que descobri que ele era pai de Tessa, mas eu não tinha explorado a possibilidade de
ele ter sido do Serviço Secreto, e aposto que Angela também não.
Para começar, foquei minha busca nas dispensas e transferências do Serviço Secreto.
Rastros eletrônicos assim raramente são conclusivos, mas quando o governo decide apagar sua identidade, os dados raramente são encobertos com perfeição, então, apesar
das inconsistências nas informações, achei evidências de que um dos agentes tinha se mudado para Wyoming pouco depois do atentado. Trabalhei por quase uma hora,
e nesse tempo descobri pistas suficientes, referências e inconsistências para me convencer de que a história de Lansing era verdadeira.
Além disso, descobri que foram realizados procedimentos para remover a identidade de um dos agentes presentes no dia da tentativa de assassinato.
Sim, Lansing era um agente e ele estava lá naquele dia, mas percebi uma grande discrepância entre sua história e a informação que encontrei: parecia que era o agente
que usara força letal contra o atirador que tinha se mudado para o oeste, e não um agente que se escondeu.
O que de certo modo fazia sentido, pois parecia estranho que o vice--presidente Fischer manteria amizade com um agente desacreditado do Serviço Secreto cuja falha
em reagir apropriadamente durante uma troca de tiros poderia ter lhe custado a vida.
Depois de mais alguns minutos de busca pelos arquivos, percebi que não faria mais nenhum avanço ali. Eu teria que perguntar isso para Lansing quando o visse amanhã
na reunião sobre a custódia. Lidaria com isso lá.
Por enquanto eu tinha o que precisava, e havia algumas outras coisas que eu queria checar.
Cliquei no meu e-mail e vi que o diretor Rodale tinha mandado oito arquivos pdf com os artigos de pesquisa que prometera enviar. Além disso, o deputado Fischer mantivera
sua palavra e encaminhou seus registros telefônicos e as contas de suas contribuições financeiras para a Fundação Gunderson.
Antes de ler qualquer um desses arquivos, porém, mandei um e-mail para o deputado expressando minhas sinceras condolências pelo que havia acontecido com sua filha.
Encontrar as palavras certas para dizer numa situação como essa é uma das coisas mais difíceis de fazer, e demorei para encontrar algumas que não soassem como meras
banalidades.
Finalmente, quando terminei, comparei as referências de tempo de suas contribuições com a lista de contas bancárias, extratos de cartão de crédito e registros de
depósitos bancários dos potenciais suspeitos, mas não achei nenhuma relação.
Estudei os próprios registros financeiros, mas, honestamente, eles pareciam limpos o suficiente, apesar de suas doações serem surpreendentemente generosas.
Nada chamava a atenção nos registros telefônicos também, exceto um número excessivamente grande de ligações, recebidas e feitas, do diretor Rodale desde março.
Me dei por satisfeito e então li a pesquisa de Rodale sobre o Projeto Rukh, que consistia principalmente em equações sobre a correlação temporal e espacial de símbolos
hemodinâmicos e eletrofisiológicos em imagens cerebrais, e apesar da maioria ser indecifrável para mim, reconheci que aquela pesquisa estava centrada nos impulsos
neurais que se relacionam a diferentes áreas da cognição.
Metacognição?
Teoria da mente?
Mais cavernas para o caso.
Em fevereiro passado, quando estava trabalhando no caso em San Diego no qual cruzamos com o Projeto Rukh, eu conheci um neuropatologista chamado dr. Osbourne. Ele
me falou sobre esse tipo de pesquisa, e pelo que lia ali descobri que parte do seu trabalho sobreviveu. Eu o teria contatado agora, mas ele tinha morrido em um acidente
de carro em março.
Me perguntei se havia alguma circunstância anormal acerca de sua morte, e enviei um e-mail para o investigador Dunn, um detetive de homicídios em San Diego, para
que ele pesquisasse isso para mim.
Enquanto mandava o e-mail, vi Tessa se aproximando da varanda. Ela inclinou a cabeça para fora da porta para falar comigo. – Tenho planos para o jantar.
Olhei o relógio e percebi que já era quase 19h30. Ela devia estar faminta. – Manda.
– Por favor, não diga “manda”.
– A molecada não fala mais isso?
– Sim. A molecada. Adultos não.
– Saquei. O que teremos para o jantar?
– Comida chinesa. Delivery.
O gosto por comida chinesa era uma das poucas coisas que Tessa e eu tínhamos em comum. – Da hora – eu disse.
Ela olhou incrédula para mim. – Espero que eu tenha ouvido mal.
Eu sorri. – Venha cá.
Ela puxou uma das cadeiras da varanda. – Vai chegar em uns vinte minutos.
– Tudo bem.
Tinha sido um dia difícil, e eu queria confortá-la, mas não fazia ideia de quais seriam as palavras certas a dizer. Falei: – Essa tarde. O centro de primatas, eu
sei que te chateou, e depois teve o hotel, que foi horrível. Acredite, se eu tivesse alguma ideia de que em qualquer um dos lugares...
– Eu sei, eu sei, você não teria me levado. Não se preocupe, eu só... – ela encolheu os ombros novamente. – De qualquer jeito...
– Se você decidir que quer conversar, prometo ouvir e não dizer “manda” o tempo todo.
– Ou da hora.
– Ou da hora.
Depois de um bom tempo, ela finalmente falou, e quando o fez, ficou olhando intensamente para as árvores encobertas pelo crepúsculo em vez de olhar para mim. – Patrick,
você acredita que algumas pessoas nascem completamente más?
Suas palavras me atingiram profundamente, mas não me surpreenderam.
Considerando tudo que havia acontecido nos últimos dias, parecia uma pergunta muito natural a se fazer.
Eu não pude deixar de pensar em psicopatas como Richard Basque, Jeffrey Dahmer, Ted Bundy, Sevren Adkins, Gary Ridgeway e, é claro, os assassinos dessa semana e
seus crimes chocantes e sinistros.
Não é possível trabalhar na polícia, pelo tempo que for, e não surgir essa pergunta sobre a maldade, e ao longo dos anos eu pensei nela frequentemente e, por fim,
formei uma opinião, mesmo que ela não fosse uma resposta completa.
– Acho que penso nisso mais como se todos nós tivéssemos nascido com uma casca de bondade em torno de nós, mas ela está rachada, para todo mundo. Todos nós sabemos
o que é certo, mesmo psicopatas estão cientes de sua falta de compaixão. Acho que todas as pessoas sabem o que é bom, mesmo que, com muita frequência, sejamos atraídos
pelo que não é.
– Pelas rachaduras.
– Sim.
Ela pensou por um momento. – Você está dizendo que temos uma predisposição para o mal?
– Eu não falaria desse jeito. Mas definitivamente temos uma queda por ele. Acho que até poderia dizer que somos mais inclinados a ele.
Ela observou a floresta. – Porque algumas vezes sentimos prazer com o mal.
– Sim – era perturbador admitir. – Às vezes temos.
– E se somos bons, então nós fechamos essas rachaduras? É isso que você está dizendo?
Era aí que as coisas ficavam um pouco complicadas. – Na verdade, não acho que podemos fechá-las, Tessa. Não acho que alguém já tenha conseguido isso. É por isso
que temos que ficar atentos...
– Dr. Werjonic.
– O quê?
– O que ele disse: “A estrada para o impensável não é pavimentada por pequenos desvios do seu coração, mas por incursões experimentais até ele”.
– Sim – isso me lembrou que eu não era o único ainda de luto por sua morte. – Ele costumava dizer isso.
Nós dois ficamos em silêncio.
Eu não tinha muita certeza se concordava com a afirmação de Calvin, mas sabendo que Tessa era familiarizada com Shakespeare, eu disse: – Eu sei que isso meio que
bate de frente com a velha frase “sê fiel a ti mesmo”.
Ela balançou a cabeça suavemente. – Não, é a mesma coisa.
Analisei suas palavras, mas os dois dizeres pareciam contraditórios para mim. – As palavras de Calvin alertam contra incursões para dentro de seu coração, e Shakespeare
promove a ideia. Como elas são a mesma coisa?
Finalmente ela parou de estudar as sombras pelo quintal e olhou para mim. – Em Hamlet, Shakespeare escreveu: “Acima de tudo sê fiel a ti mesmo, disso se segue como
a noite ao dia, que não podes ser falso com ninguém”, ou “que podes, então, ser falso com alguém”. Existe uma certa controvérsia sobre os manuscritos que foram preservados,
quais seriam os oficiais... – ela se pegou fugindo do assunto e retomou sua linha de pensamento. – Enfim, isso é exatamente o que esses caras que você persegue fazem.
Assassinos em série, estupradores, pedófilos, o que for.
– Eles estão sendo fieis a si mesmos – eu disse, descobrindo que concordava com ela. – Com seus corações, seus desejos.
– Sim. Incursões até seus corações, e não desvios deles.
A observação bateu de frente com a sabedoria popular de que as pessoas devem ser verdadeiras consigo mesmas, seguir seus sonhos, os desejos de seus corações, mas
fazia sentido porque, quando as pessoas fazem isso sem restrições, elas acabam cometendo os piores crimes imagináveis.
– Isso é muito incisivo – eu disse. – Então, Shakespeare estava errado em encorajar as pessoas a seguirem seus corações?
– Não – ela estava começando a soar mais e mais como a Tessa sarcástica e irritada, e entendi isso como um sinal de que ela estava começando a se sentir melhor.
Era revigorante. – Considere o contexto. A frase de Hamlet não é um conselho, é sarcasmo.
Na frente de casa, ouvi um carro parando.
– Jantar – ela disse.
Minha carteira estava na mesa da cozinha; fui pegar algum dinheiro. – Certo, mas como isso é sarcasmo? – ela me seguiu para dentro de casa, carregando meu computador
para mim. – Todo mundo cita as palavras de Shakespeare como conselhos. Além do mais, “Siga seu coração! Seja verdadeiro consigo mesmo!” é o tema de todos os filmes
já feitos pela Disney. Como a Disney poderia ter entendido isso ao contrário?
– Você está falando sério?
– Só parcialmente – peguei minha carteira e tirei uma nota de vinte. – Mas ainda não entendi como isso é sarcasmo.
– Polônio diz essas palavras.
Ouvi a batida de uma porta de carro.
– Tessa, tenho que admitir que não conheço Hamlet tão bem quanto você.
– Polônio é um bobo da corte que sempre se mete em encrenca quando segue seu coração, quando ele realmente é fiel a si mesmo.
Quando fez com que ele dissesse a frase, Shakespeare estava deixando subentendido o quão absurdo o conselho é. Shakespeare não era burro.
Ele estava alertando as pessoas a não serem verdadeiras consigo mesmas, e não dizendo a elas para fazerem isso. Ele entendia a natureza humana melhor que praticamente
qualquer outro autor na história. – Então ela acrescentou: – Com exceção, talvez, de Poe.
– Claro.
Não pude deixar de me fazer a pergunta óbvia: se não deveríamos ser fiéis a nós mesmos, ao que deveríamos ser fiéis?
A campainha tocou. Atravessei a sala de estar. – Não tenho tanta certeza sobre toda essa coisa da ironia de Polônio. Eu precisaria dar uma olhada.
– Acredite em mim.
Atendi a porta e encontrei Lien-hua parada na varanda segurando três sacolas cheias de comida chinesa.
– Lien-hua – fiquei lá, parado, segurando a porta aberta, olhando para ela.
Ela sorriu suavemente. – Posso entrar?
– Oh – dei um passo para o lado. – Claro. Desculpa – ela passou por mim e deu uma rápida olhada para Tessa: Mas o que está acontecendo? Ela me deu um sorriso discreto
e conspiratório.
– Olá, agente Jiang – ela disse.
– Oi, Tessa.
Lien-hua colocou a comida na mesa da cozinha.
– Não esperava você – eu estava procurando palavras certas. – Tão cedo.
– Bem, a ERT e o pessoal da unidade de cena do crime estão analisando o quarto do hotel e o depósito de bagagens, então não havia muita coisa eu pudesse fazer. Além
disso, eu precisava de um espaço para me focar no perfil, e mesmo quando você está no meio de um caso...
– Você ainda precisa comer – Tessa disse.
– Isso mesmo – ela respondeu. – Então, quando Tessa fez a gentileza de ligar e me contar o quanto você estava se sentindo mal por termos desmarcado o almoço, mas
que você adoraria que eu viesse me juntar a vocês para o jantar, bem...
– Era uma oferta boa demais para não aceitar – Tessa disse.
– Sim.
– E aqui está você – eu disse.
– Aqui estou.
– Bem, é muito bom. É... Fico feliz por você ter conseguido vir.
– Eu também – ela estava vasculhando os armários, procurando os pratos.
Fui até a geladeira. – Acho que não tem muita coisa para beber. Só suco, leite de soja, refrigerante...
– Água está bom.
– Então, água – levei um copo até a pia e pedi a Tessa para pegar os talheres, mas Lien-hua me repreendeu com um dedo em riste. – Isso é comida chinesa.
– Oh, por favor, pauzinhos não. Você sabe como eu sou péssimo com essas coisas.
Ela sorriu. – A prática leva à perfeição.
67
Após cinco minutos de uso desastrado dos pauzinhos enquanto ela e Tessa usavam os delas com uma destreza irritante, Lien-hua finalmente se inclinou na minha direção.
– Aqui, faça assim.
Ela gentilmente pegou minha mão direita com as dela e colocou os pauzinhos na posição certa entre meus dedos. Seu toque era frio e ao mesmo tempo cheio de fogo.
– Isso é muito útil – eu disse enquanto ela guiava meus dedos e manobrava os pauzinhos para mim. – Talvez eu nunca mais use um garfo.
– Quieto.
Tessa só balançou a cabeça.
Lien-hua não teve pressa para me ensinar o que fazer. Eu não achei ruim. – Viu? – ela disse.
Não. Preciso que você me ensine mais.
– Me lembrei daquela noite em San Diego – eu disse. – Quando você me ensinou o alfabeto da linguagem de sinais.
– Eu me lembro – ela respondeu suavemente. Soltou minha mão e então voltou a comer.
Eu mal consegui encher a boca quando ouvi um carro parar em frente de casa. Olhei para Tessa em dúvida, e ela disse: – Deve ser nossa segunda convidada. Por que
você não atende a porta?
Lien-hua olhou para mim. Piscou. – Outra convidada?
Conhecendo Tessa como eu conhecia, eu tinha a sensação de que sabia quem estava chegando. A caminho da porta, acendi as luzes de fora.
E na luz fraca da noite, vi Cheyenne saindo de seu carro.
Oh, Tessa...
Cheyenne subiu os degraus correndo.
Abri a porta para ela. – Ei – eu disse. – Você está aqui.
– Sim – ela trazia uma torta de maçã de supermercado. – A sobremesa chegou.
68
– Obrigada pelo convite, Pat – Cheyenne disse quando fechei a porta atrás dela.
– Por nada – então falei para minha enteada na cozinha: – Tessa, você foi muito gentil em convidar a detetive Warren para o jantar, também.
– Sem problema – veio a resposta.
– Também? – Cheyenne disse. – Então quem mais está...Lien-hua apareceu na porta da cozinha. – Cheyenne.
– Lien-hua.
As duas se olharam por um momento; então, quase simultaneamente olharam para mim.
– Ótimo – eu disse desconfortavelmente. – Então, bom... hum, que bom que tem bastante comida aqui.
Nenhuma delas falou.
Ah, isso era mesmo maravilhoso.
Cheyenne levou a torta para a cozinha, Lien-hua juntou-se a ela e eu perguntei a Tessa se ela poderia por gentileza vir até o corredor por um instante. Ela relutantemente
me seguiu, e quando estávamos fora do raio de escuta das duas mulheres, eu disse: – O que significa isso?
– Nós faltamos no almoço com a agente Jiang.
– Eu sei, mas por que você convidou as duas para virem aqui hoje? O que você está tentando fazer?
Ela me deu um olhar do tipo “você é tão ignorante”. – Conversamos sobre isso mais cedo. Você precisa decidir por quem está mais interessado. O melhor jeito de fazer
isso era trazer as duas aqui. Desse jeito...
Eu não caí nessa. – Por que você está tão preocupada repentinamente com o fato de eu estar com uma mulher?
Uma pausa longa e incerta, e eu quase me arrependi de tê-la pressionado. Finalmente ela disse com suavidade: – Quando chegamos aqui hoje à noite, havia tanta...
não sei... eu só pensei que seria bom para nós dois se não precisássemos pensar em morte por um tempo.
Não consegui arrumar um argumento para isso.
– Você precisa me informar sobre essas coisas, tá bom? – É mais fácil pedir perdão do que pedir permissão.
– Essa frase não se aplica a garotas adolescentes.
Um pequeno sorriso.
– Vamos – ela saiu pelo corredor. – Você tem convidadas para entreter.
Brad chegou ao postinho de gasolina na estrada isolada que beirava a Quantico Marine Corps Base.
Ele estacionou o carro.
Astrid queria um clímax inesquecível para essa onda de crimes, então ela sugeriu deixar uma pequena surpresa para o FBI em seu próprio quintal. Ela parecia feliz
com a ideia, e considerando onde ela havia deixado o laptop, aquele posto de gasolina era o local perfeito.
Não havia nenhum outro carro na estrada, nenhum no posto de gasolina.
Outro motivo que fez com que ele e Astrid escolhessem esse lugar era o isolamento.
Ele voltou sua atenção para o homem atrás do balcão no posto: hispânico, cerca de 25 anos, entediado, alternando entre enviar mensagens de texto e falar ao telefone.
Então Brad organizou suas coisas e preparou a seringa.
69
Por consenso, nós quatro concordamos em não conversar sobre cadáveres, sangue ou, como Tessa disse, “nada nem remotamente nojento”, e a conversa passou por assuntos
como onde cada um de nós havia crescido, nossos hobbies e histórias vergonhosas da época do colégio.
Território seguro.
Os lugares aonde devemos ir quando precisamos espantar os pensamentos ruins.
No entanto, quanto mais falávamos, mais as três pareciam pular de assunto em assunto, sem nenhuma ligação perceptível entre eles. Eu estava constantemente tentando
alcançá-las enquanto nenhuma delas parecia ter problemas em acompanhar a conversa. Eu finalmente comentei que mulheres fazem isso o tempo todo, mas que homens não
conseguem acompanhar o fluxo da discussão porque o pensamento não é linear.
As três mulheres olharam para mim.
– Machista – Tessa disse, não completamente séria.
– Não, não sou. Você sabe disso. Só estou dizendo...
– Tudo bem, Pat – Cheyenne disse. – Estou feliz por você estar ciente de que existe uma diferença entre homens e mulheres.
Na verdade, estou ciente de várias delas...
– Sim, exatamente – eu disse. – Isso que eu queria dizer.
– E você está certo. Nós somos diferentes. Fisiologicamente, quimicamente, hormonalmente, psicologicamente, emocionalmente. O jeito que pensamos, priorizamos, lembramos,
construímos conhecimento e processamos informação. Tudo diferente.
Ótimo. Um jeito de salvar as coisas.
– Exatamente – eu disse. – Homens e mulheres pensam de modo diferente. Homens são mais lógicos, mulheres são mais...
Lien-hua ergueu uma sobrancelha. – Agora, cuidado.
Tessa apoiou sua atitude. – Eu concordo.
– Só estou dizendo... – pelos olhares em seus rostos, decidi que seria melhor tentar uma jogada diferente. – No entanto, vocês sabem que algumas feministas discutem
que os papéis masculino e feminino são simplesmente construções sociais e não traços psicológicos.
– Então elas estão ignorando a pesquisa – Cheyenne balançou a cabeça. – Mas isso não é surpresa. Em uma das mais trágicas ironias do século XX, as feministas nunca
lutaram para as mulheres serem mais femininas.
– O que você quer dizer?
– Em vez de celebrar o que significa ser mulher, ser feminina, ser uma mulher poderosa, elas lutaram para mulheres agirem e serem tratadas como homens. Por isso
eu as chamo de masculinistas.
– Você chama as feministas de masculinistas? – perguntei.
– Isso mesmo.
Ela deve ter percebido a surpresa em nossos rostos porque ela prosseguiu explicando: – Sim. Masculinistas. Porque em sua luta por mais direitos, elas acabaram desvalorizando
o que significa ser uma mulher e emulando as mesmas coisas que elas mais criticavam nos homens: imperialismo, crise de identidade, propagandismo militarista, competição
desumanizadora, carreirismo.
Lien-hua, Tessa e eu olhamos um para o outro. Tive a sensação de que nenhum de nós tinha certeza do que dizer.
Cheyenne repousou seus pauzinhos. – As mulheres deveriam ter a mesma dignidade, a mesma oportunidade e o mesmo respeito que os homens, mas não deveriam ser tratadas
de modo idêntico: igualdade sem uniformidade. Eu quero ser tratada como uma mulher, e não como uma imitação de homem.
– É isso aí, garota – Tessa disse.
Cheyenne continuou. – Uma mulher nunca deveria ter vergonha de ser feminina. A força vem da convicção, não de agir como um homem. Ser feminina não quer dizer que
você é fraca, só quer dizer que você é orgulhosa de ser mulher.
As três olharam para mim como se estivessem me desafiando a dizer o contrário. Tive a sensação de que se elas fossem homens, já estariam dizendo “Toca aqui, parceiro”,
mas achei que não era uma boa hora para apontar aquilo.
– Feminino é bom – eu disse finalmente.
Cheyenne se levantou.
– Eu já volto, preciso usar o banheiro das meninas – ela sorriu quando disse essas palavras e deu uma calorosa ênfase na palavra meninas. Ela saiu pelo corredor.
Lien-hua e Tessa a observaram saindo dali. Quando ela estava fora do campo de visão, Lien-hua disse: – Ela não é nada sutil, né?
Não, eu pensei.
– Não – Tessa disse.
– Estou feliz por ela estar em nossa equipe – Lien-hua disse no mesmo tom. Então voltou a comer.
Mas percebi que ela evitou fazer contato visual comigo.
70
Depois do jantar e a sobremesa, nos juntamos na sala de estar, e quando Lien-hua comentou sobre o tabuleiro de xadrez, Cheyenne elogiou a habilidade de Tessa. –
Ela é uma jogadora e tanto.
– Não se comparada a você – Tessa disse. – Só se for comparada com Patrick.
– Obrigado – eu disse.
Lien-hua pegou a rainha preta. – Eu aprendi a jogar há anos, mas nunca fui muito boa.
– Tenho certeza de que a detetive Warren podia te ensinar algumas jogadas para melhorar seu jogo – Tessa disse.
– Tenho certeza de que ela poderia – ela repousou a rainha.
Silêncio.
– Então – Cheyenne disse –, seu nome, Lien-hua, é lindo.
– Obrigada. Significa lótus.
– A flor.
– Sim.
Apesar de não haver nenhum antagonismo explícito em suas palavras, eu tive a sensação de que as duas mulheres estavam duelando verbalmente.
Cheyenne olhou pensativamente para a parede do outro lado da sala.
Então, concentrando-se para lembrar as palavras, ela citou: – “As flores são os hieróglifos dos anjos. Amadas por todos os homens pela beleza de seu caráter, embora
poucos sejam capazes de decifrar apenas fragmentos de seu significado.”
– Isso é lindo – Lien-hua disse, claramente impressionada. – De onde é?
– Não tenho muita certeza; é uma citação que eu li uma vez de Lydia M. Child. Não sou uma grande leitora, mas às vezes me deparo com algumas coisas que valem a pena,
e me certifico de que elas não vão me escapar – enquanto dizia palavras, ela olhava para mim, deixando margem para mais de uma interpretação. Então ela olhou para
Lien-hua. – Eu gosto da parte sobre decifrar fragmentos de seu significado.
– Adoraria ter uma cópia disso.
– Mas é claro.
Mas no momento, Cheyenne não tomou a iniciativa de escrever a frase.
Mais duelo. Dessa vez em silêncio.
– Então, falando em lótus – Tessa disse –, o Sutra do Lótus é um ensinamento, um discurso de Buda – ela fez uma pausa quando todos nós demos atenção a ela, e então
acrescentou: – O que nos apresenta os Nagas.
– Nagas? – Cheyenne disse.
– De acordo com a lenda – Tessa explicou –, o Sutra do Lótus foi dado pelo próprio Buda e ficou escondido por quinhentos anos na terra dos Nagas até que os humanos
estivessem finalmente prontos para entendê-lo.
– O que são Nagas? – perguntou Cheyenne.
Com um olhar, Tessa deu preferência a Lien-hua, que respondeu: – Um Naga é uma cobra. A palavra normalmente é traduzida como dragão, mas tradução melhor provavelmente
seria cobra. Normalmente, os Nagas são gentis com os humanos, a menos que sejam provocados. Então, eles podem ser genuinamente cruéis. Eles guardam tesouros e representam
a imortalidade.
– Sim – Tessa disse. – Você não ia querer cruzar com um Naga enquanto ele está guardando um tesouro.
– Vou me lembrar disso – Cheyenne disse.
Com todas aquelas entrelinhas se espalhando pela sala, imaginei como teria sido o jantar entre as duas na noite anterior.
Após um momento, Cheyenne, a católica fervorosa, perguntou para Lien-hua: – Então, você é budista?
– Não. Minha mãe era – Lien-hua fez uma pausa. – Eu não quero soar superficial, mas diria que estou entre as religiões.
Cheyenne esperou que ela continuasse, mas Lien-hua não explicou.
Ela disse: – Bem, é uma jornada.
Quando Christie e eu estávamos namorando, ela costumava me dizer que quando classificamos pessoas por sua fé, todos saem perdendo. – Multiculturalismo não constrói
pontes – ela dizia. – Ele coloca pessoas em caixas – talvez não fosse sempre verdade, mas eu percebia isso acontecendo naquele momento.
Me perguntei se Lien-hua não estaria pensando na mesma coisa, porque ela continuou: – Em fevereiro passado, quando Pat e eu estávamos trabalhando num caso em San
Diego, eu fui atacada e deixada em um tanque vazio, que tinha uns quatro metros de profundidade. Enquanto eu estava inconsciente, um homem que já tinha matado pelo
menos outras oito mulheres, incluindo minha irmã, acorrentou meu tornozelo ao fundo, e quando eu acordei, ele começou a encher o tanque com água.
– Isso é horrível – Cheyenne disse suavemente, sua voz cheia de empatia. – O que aconteceu?
– Bem, eu fiquei aterrorizada, claro, e quando a água estava acima minha cabeça, eu... – Lien-hua hesitou, e acho que todos sabíamos o quanto era difícil para ela
contar essa história. – Tendo crescido em uma casa budista, eu não tinha nem certeza Deus existia, mas eu rezei, e alguém chegou para me salvar – seus olhos encontraram
os meus assim como os de Cheyenne haviam feito um minuto antes. – Eu estou tentando entender o que isso significa.
– Significa – Cheyenne disse – que Deus ainda tem grandes planos para você.
– Espero que você esteja certa.
Então, a conversa se distanciou de Deus, e medo, e serpentes que guardam tesouros e voltou para o território mais doméstico de livros favoritos, filmes e passatempos,
e fiquei agradecido por isso. Mas logo depois, Cheyenne disse que realmente precisava ir. – Tenho aula o dia todo amanhã – ela me disse. – Mas posso ajudar com o
caso à noite. Ligo para você assim que sair. Às 17h.
– Ok – eu disse.
Assim que nos despedimos dela e lhe agradecemos pela visita, ela seguiu na direção da porta.
Fiquei em dúvida entre me oferecer ou não para levá-la até o carro, mas no final acabei decidindo não ir. Cheyenne saiu e me juntei a Lien-hua e Tessa, que estavam
na cozinha cuidando da louça; e das sobras.
Alguns instantes depois ouvi o carro de Cheyenne dando ré até a rua.
E então ela se foi.
71
Brad entrou no posto de gasolina para pegar um refrigerante.
O balconista olhou para ele e, por um momento, seus olhos fitaram o rosto de Brad, suas cicatrizes profundas. O homem, cujo crachá mostrava apenas seu primeiro nome,
Juarez, pareceu um pouco apreensivo, mas então voltou a mascar seu chiclete e mandar uma mensagem de texto para alguém com seu telefone.
Brad pegou o refrigerante e levou-o até o caixa. Colocou-o sobre o balcão. Esperou.
Juarez não se deu o trabalho de olhar para ele até, sem nenhuma pressa, terminar de mandar sua mensagem de texto. Então, sem nem ao menos fazer contato visual com
Brad, ele murmurou com um forte sotaque espanhol: – Só isso?
– Você alguma vez já pensou nas duas coisas das quais a tecnologia tenta nos livrar? – Brad perguntou.
Juarez finalmente olhou para ele. Macava chiclete ruidosamente.
– Quê?
Brad apontou para o telefone do balconista. – Tecnologia. Não importa o campo que você escolher, indústria, ciência, medicina ou entretenimento, os avanços tecnológicos
estão aí para criar mais distrações para ocuparem nosso tempo ou para aliviar nosso desconforto: então, servem para construir uma vida mais plena ou uma vida mais
fácil. Você concorda com isso?
Ele balançou a cabeça e murmurou algo em espanhol. Brad não conhecia bem o idioma, mas reconheceu algumas das palavras. Ele colocou as palmas das mãos sobre o balcão,
ao lado da lata de refrigerante. – Paradoxalmente, você sabe quais são dois aspectos da experiência humana que mais nos proporcionam sabedoria?
Juarez olhou para além dele, olhando para a loja como se estivesse esperando alguém aparecer e explicar a piada para ele. Dessa vez, ao falar com Brad, seu tom era
ácido. – Você gostaria de mais alguma coisa com seu refrigerante, señor... – mais uma vez ele falou com Brad de modo bastante rude em espanhol. Brad esperou, analisando
seus olhos, até ficar satisfeito.
Por fim, Brad viu o meio sorriso desaparecer e um traço de preocupação surgir. – Solidão e adversidade – ele disse suavemente. – Essas são as duas coisas que nos
levam à sabedoria. Silêncio suficiente para facilitar a reflexão sobre o sentido da vida, dor suficiente para nos fazer considerar a brevidade da vida. Silêncio
e sofrimento.
Brad ainda estava com as duas mãos apoiadas sobre o balcão, e o olhar de Juarez oscilava entre as mãos e o rosto de Brad. Ele trocou a perna de apoio.
– E ainda assim, todo avanço tecnológico é mais uma tentativa desesperada de afastar o silêncio ou a dor de nossas vidas. Nossa sociedade está constantemente tentando
se curar das duas coisas de que mais precisamos. Isso parece civilizado para você?
O atendente não respondeu. Mas tinha parado de mascar o chiclete.
Brad empurrou o refrigerante na direção dele. – Isso é tudo.
Juarez prontamente registrou a compra. Brad pagou, então foi até a porta, parou e virou a placa que indicava “aberto” para a palavra “fechado” ficasse virada para
a estrada; então virou-se para o atendente. – Talvez eu queira mais uma coisa. Antes de ir embora.
72
Tessa disse para mim e para Lien-hua que já tinha feito o bastante por um dia e que ia se deitar, mas eu desconfiava que todos nós sabíamos que ela não estava indo
para a cama ainda, então ela nos deixou sozinhos na sala de estar. Alguns minutos depois, Lien-hua disse que gostaria de um pouco de ar fresco, e eu sugeri que fôssemos
para a varanda na parte de trás da casa.
Quando saímos para a noite fria, percebi que a luz da lua era sufi-ciente para que eu enxergasse só até o muro de pedra do quintal onde o veado tinha aparecido ontem
de manhã.
Graça e beleza. Perseguidas pelo medo.
Um pequeno reflexo da luz da cozinha saía pela janela.
Por um certo tempo, Lien-hua e eu falamos sobre o caso, nos concentrando nas possíveis ligações entre os locais dos crimes. – Acho que precisamos falar com o ex-vice-presidente
– ela concluiu.
– Sim – eu disse. – Mas talvez eu não seja a pessoa certa para fazer isso. Aparentemente, ele está do lado de Lansing nessa disputa de custódia.
– Vou falar com Margaret. Nós cuidaremos disso.
Um momento se passou, mas sem nenhum ar de constrangimento. O silêncio entre nós parecia seguro e familiar, quase convidativo.
Finalmente ela disse: – Eu nunca tive a chance de conversar com você sobre a morte de Calvin. Você está lidando bem com isso?
– Ele era um bom amigo. Viveu uma vida plena, mas mesmo se ele não tivesse sido atacado como foi, ele não tinha muito tempo de vida. Ele tinha insuficiência cardíaca
congestiva.
Ela enxergou através da minha resposta. – Isso soa como algo que um advogado mandou você dizer. Como você está? De verdade.
Eu hesitei. – Estou bem. Sinto falta dele, mas as coisas são como são.
– A tristeza tem diferentes estágios, Pat – não havia análise psicológica em sua voz, apenas amizade. Compreensão.
– E eles mudam com o tempo.
– Sim, eles mudam.
Então ficamos em silêncio novamente.
A noite estava tranquila, de grilos e o luar sobre o orvalho.
– No que está pensando? – ela perguntou finalmente.
– Estava pensando nele novamente. Em Calvin. Na última vez em que estivemos juntos antes dele entrar em coma.
Ela esperou que eu continuasse.
– Conversamos sobre justiça, e eu me lembro dele me perguntando: “Até onde alguém vai para ver a justiça ser feita?”. Nunca vou me esquecer dessa pergunta.
Ela a analisou. – Não existe resposta fácil para isso.
– Não, não existe.
Lembrei-me da promessa que fiz para Grant Sikora: que eu não deixaria Richard Basque machucar nenhuma outra mulher, uma promessa que eu provavelmente não deveria
ter feito, mas ainda assim me sentia compelido a cumprir. E lembrei-me da frase de Ralph sobre justiça preventiva: “Identifi-car uma ameaça e eliminá-la antes que
ela elimine você”.
“Ou outra pessoa”, eu acrescentei.
Fui até a beirada da varanda, para longe da luz que vinha da janela da cozinha. – O que você pensa sobre justiça preventiva?
– Não acredito que devemos julgar as pessoas pelo que elas poderiam fazer – ela disse. – Apenas pelo que elas já fizeram.
– E ainda assim, planejar um ataque terrorista é um crime, certo?
Uma breve pausa.
– Sim.
Virei-me para ela. – Assim como conspirar, cometer assassinato, fraude, corromper a moral pública, e assim por diante. Nesses casos, detemos pessoas por suas intenções,
e não por suas ações. Em quase todos os países do mundo, você não precisa ter nenhum...
– Sim, eu sei: nenhum motivo concreto ou específico para efetuar o crime e ainda assim você pode ser condenado por conspiração – suas palavras eram concisas, mas
senti que ela estava mais incomodada com as leis do que comigo por apontá-las. Ela continuou: – Mas só porque uma coisa é ilegal, não quer dizer que ela seja moralmente
errada; só porque algo é legal, não quer dizer que isso seja moralmente correta. Nos anos 1940 era legal matar judeus na Alemanha.
As palavras de Cheyenne na conversa durante o jantar ainda deviam estar na minha cabeça porque me peguei pensando nos países do Oriente Médio onde prestei consultoria
e nas leis islâmicas que tornam ilegal o tratamento de mulheres com a dignidade e o respeito que elas merecem. – Isso é verdade – eu disse. – Só porque algo é ilegal
não quer dizer que seja errado.
– E nos casos que você mencionou – ela disse –, crimes de conspiração ou planejamento de terrorismo, as pessoas são condenadas por seus pensamentos e intenções,
não por suas ações. Mas em diferentes situações, todos nós temos desejos e intenções que são imorais.
Já imaginava aonde aquilo ia dar. – Então se você levar a justiça preventiva às últimas consequências, todos nós acabaríamos na prisão.
– Isso é exagerar as coisas, Pat, mas meu ponto é, nós podemos mudar nossas cabeças. Isso é parte daquilo que nos faz humanos. Chame de justiça preventiva se você
quiser, mas eu não acho que exista nenhuma justiça em prever o que alguém poderia fazer e então puni-lo por isso. Não é nosso trabalho policiar os pensamentos das
pessoas ou aprisioná-las por coisas que não fizeram.
Fiquei em silêncio.
Ela olhou para mim com preocupação. – Isso tudo é sobre o quê?
– É algo em que ando pensando ultimamente.
– Algo sobre o qual você quer conversar?
– Algo sobre o qual eu preciso pensar.
Mesmo sem ter certeza de que isso tiraria Basque e a promessa que fiz para Sikora de minha cabeça, voltei a conversa para o caso e revisei os resultados do meu perfil
geográfico, mas durante todo o tempo, senti que Lien-hua estava ouvindo algo nas entrelinhas do que eu falava; que ela estava lendo meus pensamentos mais íntimos
e... bem... meus motivos mais profundos e verdadeiros.
Brad entrou no carro e ligou o motor.
Ele se certificou de que as imagens da câmera de segurança fossem destruídas e que o jovem que estava trabalhando atrás do balcão não iria compartilhar com ninguém
a conversa que tiveram.
Ele guiou o carro até a estrada e dirigiu por 400 metros quando ouviu a explosão atrás de si; pelo espelho retrovisor, viu a pluma de fogo serpenteando contra o
céu.
Com base na localização rural, na falta de tráfego, na hora da noite e no provável tempo de resposta dos serviços de emergência, ele imaginou que demoraria pelo
menos quinze minutos até que as primeiras unidades de supressão de incêndios chegassem.
Ele fez a ligação anônima para a WXTN, destruiu o telefone celular pré-pago com a roda do carro e descartou os fragmentos estilhaçados na floresta. Então, dirigiu
até um estacionamento ao lado da entrada do parque estadual a 13 km do posto de gasolina que queimava.
Esperar por Astrid.
Quando terminei de resumir o perfil geográfico, perguntei a Lien-hua sobre o perfil psicológico no qual ela vinha trabalhando, e ela se lamentou comigo pela dificuldade
em montar um perfil para múltiplos infratores. Concordei que não conseguia nem imaginar o quão difícil aquilo seria.
– Por acaso ouvi um toque de cinismo?
– Não, de admiração.
Dentro da casa, Tessa apagou a luz da cozinha, deixando a varanda no escuro. A luz da lua que banhava o quintal gentilmente envolveu Lien-hua. Eu lhe disse:
– Entender pessoas e descobrir seus motivos não é algo em que eu sou...
– Muito interessado.
– Muito bom. Eu entendo as pessoas tão bem quanto uso pauzinhos.
Ela me olhou mais de perto. – Se você estivesse fazendo o meu perfil, Pat, o que você diria?
– Ah, eu não sei fazer isso.
– Tente.
– Lien-hua, eu não sou nem treinado e nem qualificado para...
– Divirta-me – sua voz carregava um leve sorriso. – Então poderemos rir disso quando você terminar.
– Vamos rir disso agora, então; economizaremos tempo.
Ela inclinou a cabeça. – Vamos fazer assim: quando você terminar, eu faço o seu perfil.
– Você não vai desistir disso, né?
– Sou uma mulher persistente. Normalmente acabo conseguindo o que quero.
Oh.
Desisti. – Tá bom. Vamos ver... A suspeita é...
– Suspeita?
– Claro.
– Sou suspeita do quê?
Vamos ver... crimes passionais... roubo de corações...
– Só estou tentando soar oficial – então limpei a garganta discretamente. – A suspeita é de descendência asiática, aproximadamente trinta anos, compleição esbelta...
– Obrigada.
– Por nada. Cabelo preto. Atlética. Atraente.
Ela acenou com a cabeça, agradecendo pela última parte. – Você está indo muito bem até agora.
– Obrigado. Serena mas não em exagero, ela tem uma mente profundamente reflexiva, perspicácia mental afiada...
Fiquei em dúvida se deveria ou não continuar, dizer as coisas que realmente estava pensando. Se eu fizesse isso, se eu as dissesse, um limite seria demarcado naquele
momento, não havia dúvidas quanto a isso.
Diga a ela, Pat.
Você vai se arrepender se não disser, se você amarelar.
– Isso é tudo? – ela perguntou
– Não – tomei um pequeno fôlego. – Ela parece a mais forte e a mais frágil, a mais segura e a mais livre das mulheres, quando está nos braços de um homem confiante.
Ela é uma mulher que pode cuidar de si mesma, mas fica lisonjeada quando um homem se entrega a ela, para cuidar dela.
Ela ficou em silêncio ao meu lado sob o luar.
Esperei sua resposta, o coração martelando em meu peito.
– Sua vez – eu disse.
– Caucasiano – sua voz era suave. Como veludo. – Em torno dos 35 anos. Alto. Atlético.
– Bonito – eu sugeri, caso ela precisasse de alguma ideia adicional.
– Hum... Com boa aparência. De um jeito meio desleixado.
– Obrigado.
– Por nada. Ele acredita na justiça, é corajoso o suficiente para procurar pela verdade sem medir as consequências, e leva tiros muitas vezes porque não gosta de
esperar pelo reforço.
– Você andou falando com Tessa.
– Talvez.
Ela fez uma pausa, falando mais lentamente agora. – Ele ama a vida profunda e apaixonadamente, e não faz nada pela metade – ela hesitou, mas então continuou: – Desde
a morte de sua esposa, teve problemas em confiar seus sentimentos a outras pessoas, e isso fez com que ele se afastasse das pessoas que mais se importam com ele.
Ele anseia por intimidade, mas, ainda assim, está perdendo a confiança de que vai encontrá-la novamente.
A verdade de suas palavras me abalou e me motivou. Uma ferida cicatrizando...
– Mesmo assim – ela disse –, seu coração superou a perda de Christie, e ele está apaixonado por outra suspeita, mas está confuso porque não quer tomar o que ela
não está disposta a dar.
Ficamos os dois em silêncio então, o som dos grilos preencheu o espaço que se abriu na noite.
Ele está apaixonado por outra suspeita...
Ele anseia por intimidade...
Mas então seus comentários de terça-feira me vieram à lembrança: “Devemos seguir em frente... As pessoas se veem, elas terminam, elas arrumam um modo de trabalhar
juntas novamente”.
Percebi que estava resistindo e me entregando a ela ao mesmo tempo. – E o que ela está disposta a dar? – perguntei suavemente. – Essa suspeita por quem ele está
apaixonado.
Seus olhos se desviaram dos meus, passeando pelas profundezas da floresta. – Primeiro, uma pergunta.
– Sim?
– Preciso saber – então uma longa pausa. – Você está saindo com ela?
Eu soube imediatamente. – Cheyenne?
– Sim.
– Somos apenas amigos.
Ela esperou por mais.
Nenhuma mulher quer ser deixada sozinha enquanto você está solto
por aí procurando alguém melhor.
– É verdade – não estava sendo falso quando disse isso, mas, por saber o que Cheyenne sentia por mim, senti uma pontada de tristeza. Parecia que não importava o
que eu dissesse para Lien-hua, eu acabaria machucando alguém no final.
Repeti, talvez pelo bem de Lien-hua, talvez pelo meu: – Cheyenne e eu somos apenas amigos.
– Pat, quando uma mulher olha para um homem do jeito que ela olha para você, ela é mais que uma amiga. Ou quer ser mais que isso.
Meu coração estava martelando, não só pela vontade de abraçar Lien-hua e ver aonde o momento nos levaria, mas também pela verdade aterrorizante de suas palavras:
ele está apaixonado... ele anseia por intimidade... ele está confuso...
– Uma vez – eu disse –, nós quase fomos mais que amigos, mas... – havia tanto para dizer, para explicar, mas agora, só uma coisa importava, e me permiti dizê-la.
– Sempre que eu ficava sozinho com ela, eu acabava pensando em você.
Lien-hua olhou para mim na noite suave, o luar brincando em seu cabelo escuro. – Se eu te perguntasse o que você quer, Patrick Bowers, agora, neste exato momento,
o que você diria?
A resposta era simples. Clara. Imediata. – Que eu quero ficar com você – suspirei. – E quanto a você? O que você quer?
Suavemente, ela colocou a mão do lado do meu pescoço, seu polegar acariciando minha bochecha, e por um momento longo e tênue ela me olhou nos olhos, sem esconder
nada.
Então ela se aproximou de mim e respondeu minha pergunta com um beijo.
E eu correspondi.
73
Astrid se juntou a Brad no carro que ele roubara especialmente para essa noite.
– Está pronto?
– Sim – ele disse.
Ela colocou a peruca.
Enfiou o cabelo por baixo dela.
Até onde sabiam, o fuzileiro no portão da Quantico nunca tinha visto Brad, então isso não seria um problema mas era quase certo que o soldado já a tinha visto.
Ele descobrira há muito tempo, que embora as mulheres tenham uma tendência maior para lembrar as características do rosto de um homem, os homens reconhecem as mulheres
nem tanto por suas características faciais, mas sim por seu porte, roupas e cabelo. A maioria das mulheres acaba aprendendo isso: se você mudar a cor do cabelo,
vestir uma roupa muito diferente, perder um pouco de peso, os homens de sua vida, pelo menos aqueles menos próximos, mal a reconhecerão.
Então ela estava confiante que essa noite, mesmo se o guarda já tivesse visto a mulher que ela estava representando, não teria problema. Especialmente porque Astrid
estava usando a carteira de motorista falsa que Brad tinha adquirido e o mesmo modelo de carro que a mulher dirigia. Ele até tinha conseguido pegar emprestado a
placa verdadeira do veículo dela para essa noite.
– Ela não vai perceber que elas sumiram – ele disse para Astrid ontem. – Ninguém perceberia que suas placas foram trocadas. É uma das coisas nas quais a gente não
presta atenção.
– Por que não roubar o carro dela?
– Porque isso ela notaria.
Ela lhe deu permissão para fazer isso.
Ela terminou de arrumar a peruca. – Eu dirijo.
– Ok.
Ele saiu do carro e ela passou para o banco do motorista. Quando ele entrou no carro novamente, ela perguntou: – Você está com ele? Ele está no...
– Sim.
– E o cachorro?
– Já cuidei de tudo.
– E você está com a pá?
– Sim.
Então Astrid guiou o carro para a entrada da Academia do FBI.
Hoje à noite, a grande provocação, a maior emoção de todas: um corpo a mais na fazenda de corpos da Academia do FBI. E assim que ela e seu homem o enterrassem, ela
lhe contaria sobre seu filho.
Predador.
Presa.
Morte e vida.
O clímax do jogo. O ciclo de todas as coisas.
As pessoas veem o que esperam ver.
Com a placa verdadeira e o mesmo modelo de carro, com a carteira de motorista, a peruca e uma roupa parecida, ela não esperava que o guarda representasse algum obstáculo.
Afinal, por que aborrecer dois alunos da Academia Nacional voltando para seu dormitório?
Mas caso o fuzileiro desse trabalho, seu parceiro tinha sua Walther P99 escondida debaixo da jaqueta repousada em seu colo. E mais de um corpo seria deixado na fazenda.
Predador. Presa. Morte e vida.
O filho deles.
O ciclo de todas as coisas.
– Quando chegarmos lá – ela disse –, tenho uma surpresa pra você. Algo que preciso te contar.
Enquanto eu observava Lien-hua indo embora, tentei entender meus sentimentos.
Abraçá-la, beijá-la, trouxe tudo de volta...
A esperança.
O desejo intenso.
A confusão.
Assim como os esforços para fazer as coisas darem certo e a dor aguda que senti quando nos separamos mês passado.
Talvez ela estivesse certa sobre mim, talvez eu não tivesse sido capaz de abrir as partes mais profundas do meu coração desde a morte de Christie e foi isso que
fez com que eu me distanciasse das pessoas que eu amava.
Tudo por causa de um persistente tom de tristeza que ainda se arrastava dentro de mim.
Os faróis de seu carro piscaram através das árvores. A neblina estava começando a tomar a noite e fazia as lanternas traseiras parecerem pinceladas borradas de uma
pintura feita com aquarela.
Embora poucos sejam capazes de decifrar apenas fragmentos de seu significado...
Finalmente o nevoeiro da noite engoliu as luzes do carro e eu voltei para a sala de estar, onde encontrei Tessa sentada no sofá trocando de canal na TV.
Clique.
Clique. Entre os canais.
O livro de Sherlock Holmes e uma cópia de O Médico e o Monstro estavam ao lado dela sobre um travesseiro.
– Você disse boa noite para ela? – ela perguntou.
– Disse.
Clique.
Sentei-me no sofá. – Não sei se devo te agradecer ou ficar bravo por você ter convidado as duas sem me pedir antes.
– Eu escolho a opção em que você me agradece – ela parou no noticiário. Um posto de gasolina nas proximidades havia explodido e as autoridades estavam especulando
se isso tinha sido causado por um vazamento de gasolina de algum tanque de armazenamento subterrâneo.
– A partir de agora, me mantenha informado – eu disse.
– Pode deixar – clique.
Clique. Um jogo de beisebol no final.
– Ajudou? – ela perguntou. – Ter trazido as duas aqui?
Honestamente, parece que tornou as coisas mais simples e mais complicadas ao mesmo tempo, mas eu apenas disse: – Volte.
– Para onde?
– A explosão.
Clique. Clique. Ela encontrou.
Um jovem que estava trabalhando no posto estava desaparecido e temiam que ele estivesse preso na parte de dentro. Canos de gasolina estavam alimentando o fogo e
as equipes de bombeiros estavam com muita dificuldade para apagá-lo.
O posto de gasolina estava localizado em uma estrada que percorria o perímetro externo da Quantico Marine Corps Base.
– Então – ela disse –, mais confuso.
– Sim – minha atenção estava no noticiário.
Hora.
Local.
É aleatório, Pat. Esqueça isso.
Tessa balançou a mão na frente do meu rosto. – Ei. Você ainda está aí?
– Desculpa. O que você estava dizendo?
– Não, você estava: que as coisas estão mais confusas agora que você pegou a agente Jiang.
Pisquei. – Eu não ia dizer isso.
– Você estava pensando nisso.
– Não, eu... você estava nos espionando?
Ela balançou a cabeça.
– Não dessa vez, mas obrigada por confirmar minhas suspeitas.
Odeio quando ela faz isso.
Peguei o controle remoto dela, desliguei a televisão e tentei soar severo e como um pai.
– Vá para a cama, mocinha.
– Sim, pai.
Alguns minutos depois, enquanto estava me aprontando para me deitar, percebi que o pingente de São Francisco de Assis ainda estava no meu bolso.
Tirei-o e hesitei por um momento; então coloquei-o dentro de uma gaveta e a fechei lentamente.
O fuzileiro de guarda no portão da frente da Quantico se inclinou até a janela do carro.
– Boa noite, senhora.
– Olá.
Ele pegou suas carteiras de motorista e iluminou o rosto de Brad. – Senhor.
– Boa noite, sargento.
Astrid o observou parar discretamente quando percebeu as cicatrizes de Brad. Ele desviou o olhar, mas só depois de olhar por um bom tempo.
Ele verificou as carteiras. – De Houston, é?
– Sim – ela disse. – Estamos aqui para a Academia Nacional.
– Estamos hospedados no Dormitório Washington – Brad acrescentou. O fuzileiro não olhou para ele novamente, apenas comparou seus nomes com os nomes de sua lista.
Anotou a placa do carro. – Tenham uma boa noite, srta. Larotte e sr. Collins – ele devolveu as identificações falsas para eles.
– Obrigada – ela disse.
E ele permitiu que passassem.
Nenhum problema. Assim como Astrid tinha previsto.
Brad tinha imprimido um mapa do terreno da Academia naquela tarde. Então agora, enquanto eles se afastavam do posto de entrada, ele o pegou e o analisou à luz de
uma lanterna. – Vire à esquerda – ele disse.
Ele a direcionou passando pelo Laboratório Forense do FBI, pelo Hogan’s Alley, até um terreno de cascalho no fim da estrada.
Ela estacionou ao lado de uma trilha que se embrenhava na floresta cercada de névoa.
A entrada para a fazenda de corpos.
Ela deixou a peruca entre os assentos, pegou uma lanterna e desceu do carro.
74
Astrid ouviu sua história se desenrolando em sua cabeça.
O nevoeiro percorria seu caminho no meio das árvores e se entrelaçava na vegetação rasteira ao lado da trilha.
Por um momento, isso a fez lembrar do conto de fadas em que o nevoeiro circunda o castelo que aprisiona a princesa adormecida, a garota que desconhece todos os príncipes
que fracassaram em encontrá-la; os príncipes cujos corpos estão perdidos no coração profundo e secreto do matagal.
Ela parou para observar um corpo caído com o rosto virado para baixo em um riacho a cerca de seis metros à sua esquerda.
Brad parou de andar. Ficou ao lado dela.
Ele sugeriu que encontrassem o local antes, então voltassem ao carro para pegar tudo de que precisavam, em vez de “arrastar as coisas pela floresta”.
Poderia ser uma perda de tempo, mas Astrid concordou com a ideia. Honestamente, nesse ponto, ela estava pensando mais na notícia que iria compartilhar com ele do
que no jovem que eles enterrariam ali.
O desagradável odor de morte se espalhava pela floresta.
Brad consultou seu mapa.
– Certo. Estou pensando em ir sentido oeste por uns duzentos metros. Nenhuma classe está agendada para visitar aquela área até segunda-feira.
– Como você sabe disso?
– Pesquisa – ele disse simplesmente.
– Deixe-me ver isso.
Ele lhe deu o mapa, e ela o iluminou com a lanterna. Ele ficou ao lado dela. – Não – ela disse –, nós deveríamos fazer isso aqui mesmo.
– Eu estava pensando que seria melhor...
– Não.
Após um momento. – Tudo bem.
– Vamos pegar o...
A picada profunda e aguda do lado de seu pescoço a assustou; a chocou, fez com que ela recuasse para trás. – Mas o que... – a mão instintivamente foi para o pescoço;
encontrou a seringa com a agulha ainda enfiada nele. Ela a teria arrancado, mas estava enfiada fundo e ela já estava começando a se sentir tonta.
Suas mãos caíram para os lados.
Brad estendeu os braços para pegá-la. – Calma.
Ela estava consciente, mas de algum jeito inconsciente, do mapa e da lanterna que ela estava segurando e que giravam no chão. Ela deve ter deixado cair.
Preciso...
Agora suas pernas estavam cedendo e Brad a segurava.
– Não lute, Astrid – ele disse. – Não se preocupe, é o que usamos no guarda na outra noite, o que usei em Mollie. Não vai te matar.
– O que você está... – as palavras pareciam pesadas e grosseiras em sua boca.
Ele estava baixando-a até o chão.
– Shh. Fique calma. Tudo vai ficar bem.
Ela estava deitada agora e ele estava removendo a agulha de
seu pescoço.
– Só relaxe – ela o ouvir falar, ou pensou ter ouvido. Nada mais era certeza.
Perdia a noção do tempo. Ela mexeu a boca, tentou falar, mas não saiu nada. Um conto de fadas. A densa neblina parecia tomar conta dela, tornar-se parte dela.
E a última coisa que ela viu antes do mundo desaparecer foi seu amante tirando uma mecha rebelde de cabelo de seu rosto, ajoelhado ao lado dela sob o luar, dizendo-lhe
suavemente, suavemente, para dormir.
75
Deitei inclinado na cama, com o computador no colo, explorando uma das cavernas ainda não mapeadas desse caso.
Muitos dos artigos de neurociência que Rodale me mandou citavam a pesquisa de Benjamin Libet vencedora do prêmio Nobel, que fez experimentos no fim do século XX
sobre iniciação de ação, intenção, atos volitivos e consciência.
Agora eu estava vasculhando a internet, lendo sobre seu trabalho.
Aparentemente, o dr. Libet queria registrar impulsos neurais inconscientes enquanto os participantes da pesquisa aguardavam e então realizavam tarefas simples como
apertar um botão ou apertar uma bolinha. Por exemplo, ele lhes dizia: “Assim que você estiver ciente de qual botão você deseja apertar, faça-o”.
Descobrindo por meio de um osciloscópio o milissegundo em que os participantes estavam cientes do estímulo para agir, e então comparando isso com a atividade elétrica
cerebral (e levando em conta o tempo que leva para seus músculos responderem), ele comparou o momento da atividade neural inconsciente com aquela da consciência
do participante sobre sua intenção de agir.
E ele descobriu algo surpreendente.
Em praticamente todos os casos, sinapses neurais inconscientes normalmente precediam a escolha consciente, ou ato volitivo, da pessoa em cerca de meio segundo.
Alguns céticos apontaram que o simples ato de estar sendo observado ou de estarem pesquisando em sua cabeça como você vai reagir durante o experimento poderia ser
parcialmente responsável pelas reações neurais pré-cognitivas. No entanto, se você considerasse os valores nominais da descoberta da pesquisa, você seria forçado
a concluir que a mente inconsciente determinou a ação ou, para ser mais direto, uma decisão foi tomada e, então, quinhentos milissegundos depois, o sujeito testado
acreditava que ele estava decidindo.
A mente consciente levava crédito por um curso de ação que o inconsciente já havia determinado.
E é aí que as coisas ficavam interessantes.
Cientistas sabem há muito tempo que alguns reflexos espinais, como o de retirar a mão do fogo, acontecem sem uma decisão ou sem nenhum processo de pensamento racional.
Mas agora, à luz dos experimentos do dr. Libet e das descobertas recentes da neurociência, muitos cientistas estavam aparentemente se convencendo de que tomadas
de decisão complexas também acontecem inconscientemente, como resultado da influência do ambiente sobre o código genético de um indivíduo e pelo contexto da experiência
e das condições de uma pessoa.
Um pensamento desagradável começou a se manifestar dentro de mim.
Essa linha de pensamento – que nossa reação a estímulos é modelada somente por processos naturais: composição genética, química cerebral e sinapses neurais que são
disparadas por certas sugestões ambientais – significaria que, na prática, não somos livres para escolher conscientemente nossas ações. E se não somos livres para
escolher, não temos a liberdade para definir o curso de nossas vidas.
A conclusão inevitável, é claro, era a de que o “livre-arbítrio” é uma ilusão.
Consequentemente, as pessoas não seriam responsáveis moralmente por seus comportamentos, porque, de certo modo, elas estariam simplesmente agindo por instinto. Afinal,
seria injusto considerar alguém responsável por uma coisa sobre a qual não tem controle.
Algumas buscas on-line confirmaram o que eu temia: alguns assassinos já recorreram a neurocientistas para declarar que o comportamento deles estava, em essência,
enraizado em seus cérebros e que, tendo em vista as sugestões ambientais às quais eles foram expostos, eles não tinham escolha além de agir da maneira como agiram.
Assim, eles não podiam ser considerados responsáveis pelo crime.
Porque estavam agindo por instinto...
Um instinto maligno.
E, espantosamente, essa defesa havia sido bem-sucedida em pelo menos meia dúzia de casos de assassinato de pena capital desde outubro do ano passado; e agora que
o precedente existia, sem dúvida isso se tornaria uma defesa cada vez mais popular.
A ciência se encontra com a justiça.
E a justiça perde.
Mas é claro que não era propriamente a ciência que estava lutando contra a justiça, mas sim a reinterpretação de um conjunto específico de experimentos científicos.
Ainda assim, parecia que nesses casos, era tudo o que era preciso.
As implicações que isso poderia ter em investigações criminais e sistemas de justiça pelo mundo eram desconcertantes.
Estupradores, pedófilos, violadores de direitos humanos podiam alegar que eles não eram capazes de evitar suas ações porque estavam geneticamente determinados a
agir do jeito que agiam, dadas as sugestões ambientais presentes na hora do crime. Portanto, eles não poderiam ser considerados responsáveis pela reação natural
do instinto.
Cavernas atrás de cavernas apareciam para mim... a pesquisa de metacognição da Fundação Gunderson... os experimentos de intencionalidade do dr. Libet... as descobertas
neurológicas do Projeto Rukh... o comprometimento do deputado Fischer com “um método mais progressivo de reduzir o comportamento criminoso”...
Por aproximadamente uma hora considerei as relações entre todos os túneis escuros do caso e vi um número de possíveis direções para onde eles poderiam levar, mas
acabei atolado em conjecturas em vez de inclinado sobre conclusões baseadas em evidências sólidas.
Com o tempo, a carga emocional do dia começou a pesar sobre mim.
Senti minha concentração diminuindo e a exaustão me dominando.
Por fim, coloquei o computador de lado e fechei os olhos, mas o sono não veio tão fácil, pois minha mente vagava de sonho em sonho, nos quais via chimpanzés mortos,
bagagens ensanguentadas e uma chuva negra caindo ao meu redor e espirrando como sombras de sangue no chão.
Enquanto, por perto, gorilas quebravam espelhos em pedaços irregulares que refletiam uma realidade estilhaçada e distorcida.
Da qual eu me tornara uma parte bastante íntima.
76
Ela acordou lentamente.
De volta para o mundo. De volta para si mesma.
Ela estava deitada no chão. Era o máximo que ela podia
dizer, deitada de costas. Seus olhos estavam fechados e suas pálpebras pareciam opressivamente pesadas, pesadas demais para se abrirem. Ela tentou se mover, mas
seu corpo não respondia.
Tudo dentro dela, ao redor dela, era um sonho pesado e vago. Ela sentiu o cheiro úmido de pinho de uma floresta, junto ao acre fedor da morte.
A fazenda de corpos.
Ela ouviu um barulho de raspagem próximo dela, seguindo
um certo ritmo. Raspando, parando. Raspando novamente.
Mas todos os cheiros, todos os sons estavam contidos em uma escuridão úmida e quente que envolvia lentamente sua cabeça.
E apesar de seus olhos ainda estarem fechados, ondas sinuosas de cor dançavam à sua frente, flutuavam pelas visões estranhas que todos temos enquanto passamos do
sono para o mundo que acorda.
O tempo passou.
A cada momento, o cheiro imundo da podridão ficava pior. Mais do som de raspagem ao lado dela.
Até que finalmente, e com muito esforço, ela abriu os olhos e foi capaz de inclinar a cabeça na direção do barulho.
E sob o luar diáfano e cheio de neblina, ela viu um homem.
Cavando.
Brad deve ter percebido o movimento quando ela virou a cabeça em sua direção, pois ele parou o que estava fazendo, enfiou a ponta da pá no chão e apoiou um braço
sobre o cabo.
– É bom vê-la acordada – ele disse. – Eu estava preocupado, achando que tinha usado Propotol demais, que seu coração tinha parado. Estou muito feliz por não ter
feito isso. Se você tivesse morrido, teria estragado completamente minha surpresa.
– O quê? – ela murmurou. – Não... – não porque ela não tivesse entendido, mas porque estava começando a entender.
– Vou explicar tudo em alguns minutos – ele ergueu a pá novamente. – Deixe-me terminar aqui primeiro.
Ele cavou mais algumas pás de terra e um cheiro rançoso e penetrante veio do chão.
O fedor de carne podre era insuportável e Astrid sentiu vontade de vomitar, mas por algum motivo, seu corpo não a permitiu. Sua garganta se contraiu, mas ela não
vomitou. E Brad não parecia nem um pouco incomodado pelo cheiro.
Ela não fazia ideia de como isso era possível.
Ele se ajoelhou e começou a alternar entre usar um pequeno ancinho e uma pá de jardinagem para remover terra do buraco.
Os olhos de Astrid estavam começando a se acostumar com a noite, e ela podia ver pelos movimentos dele que o buraco não era profundo.
E ela acreditava que sabia o que estava dentro.
O tempo passava e a fraqueza que a prendia ao chão diminuía gradativamente. Ela podia mexer a cabeça com mais facilidade agora, e ela sentiu sua força gradualmente
retornando para suas pernas e seus braços. Ela podia mexer os dedos e colocar os pés para o lado.
O luar com nevoeiro banhava a floresta em torno dela.
Apesar de não ter força suficiente para se sentar, ou lutar, ou correr, pelo menos ela finalmente era capaz de pensar mais claramente.
– O que você está fazendo? – sua voz soava fraca. Distante. Como se outra pessoa estivesse dizendo as palavras para ela.
– Estou terminando o que comecei logo que encontrei você no DuaLife – ele ainda estava cavando com as ferramentas de jardinagem. – Logo que escolhi você.
– Não – ela murmurou. – Eu escolhi você.
– Sim – ele disse ambiguamente, mas ela sabia que ele não estava realmente concordando com ela. – Por algum tempo fiquei preocupado que você soubesse, que descobrisse
minhas intenções, que adivinhasse o final – ele estava tirando terra do buraco enquanto falava. – Mas parece que você estava distraída demais por sua ganância de
poder.
Ele terminou o trabalho no buraco e colocou a pá e o ancinho de lado.
Ela tentou fazer com que sua voz soasse firme, controlada, autoritária. – Leve-me de volta para casa. Vamos conversar sobre isso em casa.
Ele andou ao redor dela de modo que não mais ficasse entre ela e o buraco. Então ajoelhou-se ao lado dela. – Você sabe o que causa o medo?
Ela estava tentando reunir suas forças para se sentar. – Brad, leve-me para casa.
– Quando uma pessoa se sente ameaçada naquele lugar, aquele lugar físico, emocional ou psicológico...
– Brad...
Ele pousou um dedo nos lábios dela. – Ameaçada naquele lugar onde ela se sente mais segura, ali, naquele momento, o medo nasce. Quanto mais profunda for a sensação
de segurança, mais agudo é o medo.
– Não – ela disse. – É... você não entende...
Suavemente, ele limpou um pouco de terra que deve ter caído na bochecha dela enquanto ele cavava. – Aquele poder, aquela sensação de domínio absoluto sobre a vida
e a morte na qual você ficou tão viciada, vamos ver como você lida com o oposto.
Ele deslizou uma mão debaixo costas dela, a outra sob as pernas, e a levantou.
Ela tentou se livrar dele, mas ainda não havia recuperado força o suficiente. – Eu não... – suas palavras desapareceram. – Eu preciso contar uma coisa para você...
Ele a carregou na direção do buraco. – Sim?
– Estou grávida, Brad. Pare com isso. Agora.
Ele a colocou no chão ao lado do buraco, mas não respondeu, simplesmente esticou os braços e as pernas dela.
– Eu vou dar à luz o seu filho.
O cheiro era terrível, insuportável.
Ela o viu virar para o lado, para a escuridão, e pegar uma mordaça.
– Eu disse que estou grávida!
Ele se inclinou sobre ela. – Astrid, eu sei como isso funciona. A vítima implora, se humilha, diz ao opressor o que vier à cabeça para fazê-lo mudar de ideia, mas
não vai funcionar. Nós dois sabemos que não vai...
– Eu posso provar – o desespero tomou conta de suas palavras. – Leve-me para casa!
Ele parou e pareceu considerar seu pedido.
– É verdade – ela disse. Sem querer, sua voz falhou. – Por favor, por favor.
– Se você estiver contando a verdade, se você realmente estiver grávida, então essa noite vai ser ainda mais especial para mim – ele se curvou sobre ela e esticou
a mordaça. – Dois pelo preço de um – e antes que ela pudesse gritar por socorro, ele forçou a mordaça em sua boca e a prendeu no lugar.
– Bem-vinda ao aquário.
Então ele a rolou de cara para dentro do buraco.
Em cima do cadáver apodrecido.
77
Ela teria gritado se não estivesse amordaçada.
Ela tentou se levantar, lutou para isso, mas ainda estava muito fraca, e ele estava lhe pressionando, o joelho apoiado contra suas costas.
– Astrid, eu gostaria que você conhecesse Riah Everson – ele disse. – Ela tinha 38 anos e era mãe de três. Morreu por um ferimento na cabeça há dois dias, depois
de escorregar em uma boneca que sua filha mais nova deixou no topo da escada.
Sua bochecha estava encostada na pele úmida do rosto do cadáver. Desesperadamente, desesperadamente, ela lutou para se livrar, mas o sedativo ainda estava fazendo
efeito e o peso de Brad a segurava. Duas enormes larvas rastejavam pela pele pútrida da mulher morta, e ela as sentiu se contorcendo momentaneamente contra sua própria
bochecha antes de desaparecerem de vista.
Novamente ela sentiu vontade de vomitar, novamente ela não vomitou.
Ele estava posicionando o braço direito dela, passando algo em torno de sua cintura, mas ele deve ter visto sua garganta se contraindo.
– Foi um pouco difícil resolver essa parte. Com o cheiro, eu sabia que você instintivamente vomitaria, e com essa mor
daça na boca, você sufocaria com o próprio vômito e morreria. E não é exatamente isso o que queremos aqui.
Ela sentiu uma faixa se apertar em volta de sua cintura. Ela tentou, tentou, tentou se livrar, mas ele afivelou bem forte. Prendendo seu pulso a alguma coisa embaixo
dela.
O braço da mulher morta.
Outro grito saiu de sua garganta, mas não foi a lugar algum.
– Não existem muitas drogas que paralisam o reflexo de ânsia de vômito. Eu não tinha certeza de que a dotracaína que eu dei para você funcionaria. Ela deveria durar
16 horas. Esperamos que sim.
Ela virava a cabeça desesperadamente para os lados tentando soltar a mordaça, mas não conseguiu soltá-la, e tendo visto a eficiência do trabalho dele no passado,
ela duvidava que conseguiria soltar a mordaça sem utilizar as mãos.
Ele estava segurando o outro braço dela agora, prendendo-o ao de Riah Everson.
– Eu gostaria de poder levar crédito por essa ideia, mas na verdade os romanos que inventaram. Eles prendiam um cadáver às costas de um condenado e o faziam carregá-lo
por aí até que ele morresse também. Eles não conheciam a infecção naquela época, mas conheciam a morte. Os romanos também eram fãs de crucificação. Eles não deixavam
os culpados escaparem tão facilmente.
Ele estava quase terminando em seu braço esquerdo. Ela tentou soltá-lo. Inutilmente.
– Lembra-se de Paulo, o santo? Conversamos sobre isso na quarta-feira. Ele se referia a essa técnica: “O mal que não desejo. Eu sou um homem desgraçado! Quem irá
me resgatar desse corpo da morte?”. Viu como ele faz? O corpo da morte? É uma jogada de palavras: o pecado vira, por metonímia, o corpo morto que ele está carregando.
Ele apertou a segunda faixa. Afivelou-a.
Então foi mexer em suas pernas.
78
Quando terminou com os tornozelos dela, Brad passou a última faixa sob o pescoço da mulher morta, e então em torno do pescoço de sua amante.
Quando o fez, Astrid, que estava deitada de rosto para baixo, conseguiu distanciar um pouco sua bochecha do cadáver. Brad agarrou um punhado de cabelo e a forçou
para baixo, para manter seu rosto devidamente posicionado enquanto ele afivelava a faixa em volta do pescoço dela com a outra mão.
Ele não queria impedir a respiração de Astrid, por isso foi delicado, cuidadoso, enquanto prendia o pescoço dela ao pescoço do cadáver de Riah Everson.
Então soltou o cabelo dela, levantou-se e pegou seu celular para fazer um vídeo.
Para mais tarde.
Ele se certificou de fazer boas imagens. Milhares de oficiais de polícia um dia assistiriam a essa filmagem nas aulas da Academia do FBI, e ele queria garantir que
eles pudessem dar uma boa olhada no rosto bonito e cheio de terror de Astrid.
Finalmente ele guardou o telefone e pegou a pá. – Só para você saber – ele lançou uma pá de terra sobre as pernas dela. – Não vou colocar terra sobre seu rosto.
Não quero que você sufoque. E não está tão frio essa noite, então não precisa se preocupar com hipotermia. Provavelmente, os animais carniceiros é que vão acabar
te incomodando mais. Eu imagino que muitos deles andem por aqui. Com o grau de decomposição de Riah, não deve demorar para eles chegarem. Temo que até o próximo
fim de semana você se torne uma adição permanente para a fazenda de corpos.
Ele jogou mais terra em volta dos tornozelos e dos pulsos para garantir que ela não conseguiria escapar.
– Aliás – ele disse –, eu nunca tive uma pastora-de-shetland – ele estava arrumando a terra em volta dos pés dela. – Nenhum cachorro, apesar de às vezes eu me divertir
com alguns dos gatos da vizinhança.
Ele percebia que ela estava tentando gritar, e sentiu prazer em reparar como o som que ela fazia era baixo.
Após garantir que ela estava bem presa, ele jogou uma fina camada de terra sobre ela, espalhou o restante e jogou folhas por cima da área para esconder as evidências.
Finalmente levantou-se e analisou seu trabalho.
A cabeça de Astrid ainda estava visível, mas a menos que você soubesse onde procurar, não era algo que dava para perceber. Suas costas subiam e desciam bruscamente
em movimentos curtos e desesperados de respiração. Baseado na velocidade de sua respiração, ele calculou que ela poderia sofrer de hiperventilação, mas ele havia
estudado anatomia humana o sufi-ciente para saber que mesmo se ela desmaiasse, ela certamente recuperaria os sentidos novamente. Pelo menos pelas primeiras dez ou
doze horas. O corpo humano é incrivelmente adaptado à sobrevivência.
Ele começou a juntar suas coisas.
Ela desempenhou bem o papel para o qual ele a escolhera.
Sim.
Ele já havia matado antes de conhecê-la, claro que sim, mas esse tinha sido o jogo mais longo e requintado até agora – todo aquele tempo fazendo papel de submisso,
de controlado, de servil, tudo isso pago pela confiança que ele ganhara dela.
Perigo e jogo.
Sim.
Requintado.
Astrid tentou gritar novamente, mas não era possível. Ela nunca mais emitiria outro som reconhecível, nunca mais diria outra palavra.
Ele se inclinou sobre ela uma última vez. – No começo eu estava pensando em te levar para o porão, para o quarto que eu gastei tanto tempo para reformar, mas então
decidi que seria mais divertido desse jeito – ele passou a mão suavemente pelo cabelo dela. – E foi mais divertido desse jeito, não foi?
Ela tentou se livrar da mão dele. Fracassou.
Enquanto planejava essa noite, ele previu que veria pânico nos olhos dela mas a profundidade do terror e o desespero final que ele agora via em seu rosto iluminado
pela lua eram ainda mais satisfatórios do que ele imaginara.
Uma lágrima escorreu pela lateral do nariz dela, e ele gentilmente a enxugou. – Durma bem, Astrid.
Então ele pegou a pá e os instrumentos de jardinagem e caminhou pelo luar envolto pela neblina até o carro.
Não, esse não era o clímax da história.
As coisas só estavam começando a ficar interessantes.
79
Faltam 14 horas...
Sexta-feira, 13 de junho
7h29
Considerando todas as experiências traumáticas pelas quais Tessa havia passado nos últimos dias, eu sabia que ela precisava dormir, então tomei cuidado para não
acordá-la enquanto fazia um pouco de café.
Fui ao banheiro, tomei meus remédios e verifiquei o ferimento à bala. Meu braço doía, é claro, mas a dor havia mudado de rajadas agudas de fogo para uma sensibilidade
profunda que percorria todo o lado esquerdo do meu corpo. Um borrão de dor denso e contínuo que era impossível ignorar.
O ferimento sangrou durante a noite, e agora o curativo estava ensopado de sangue. Passei um tempo limpando a ferida, coloquei um pouco de antibiótico tópico nos
buracos de entrada e saída da bala, então enrolei o braço com um curativo novo, mas tudo isso só serviu para deixar o ferimento mais sensível e dolorido novamente.
Enquanto tomava café da manhã, tentei não prestar atenção ao meu braço.
Curioso sobre a explosão do posto de gasolina, chequei algumas notícias on-line e descobri que o corpo do jovem que estava trabalhando no posto de gasolina, Juarez
Hernandez, havia sido encontrado atrás do balcão da loja.
Nenhum sinal suspeito.
É o que estavam dizendo.
Outra morte.
Outra dose de tristeza para outra família arrasada.
Enquanto considerava as possíveis implicações da explosão, verifiquei meu e-mail e reparei numa mensagem de Margaret notificando todos os membros da força-tarefa
de uma reunião às 11h no posto de comando. Nossos caminhos não se cruzaram desde que Rodale tinha me colocado de volta no caso, e eu imaginei que ela não estaria
satisfeita com a decisão dele, mas decidi não me preocupar com aquilo a menos que ela tocasse no assunto.
Felizmente, outro instrutor assumiria minhas aulas novamente hoje, e isso me daria a chance de passar a maior parte do dia concentrado no caso, apesar de, reconhecidamente,
eu não estar animado pelo fato do outro instrutor ser Jake Vanderveld.
Após atualizar o banco de dados do nível de comando da força-tarefa com os arquivos que Rodale me mandou e os relatórios financeiros de Fis-cher, eu revi as atualizações
do caso. Lembrei-me de que uma nota fiscal de posto de gasolina fora encontrada na van estacionada no hotel, e quando baixei a foto dela, vi que era do mesmo posto
de gasolina que explodiu.
Sabendo como esses assassinos agiam, suspeitei que eles haviam deixado aquela nota na van de propósito, apenas para nos provocar.
Ou para te dar uma pista do outro crime que estavam planejando.
Um crime futuro.
Eles nos deixaram a nota fiscal do posto de gasolina, então mataram
Juarez... deixaram o carro de Mahan, então o mataram mais tarde, naquela mesma noite... deixaram a bolsa de Mollie, então a mataram no dia seguinte.
Hum...
Lembrei-me novamente de Adkins, o único assassino que enfrentei que seguia esse padrão de deixar pistas para futuras vítimas, mas ele morreu depois de ser perseguido
uma ambulância até um desfiladeiro na Carolina do Norte.
Passei mais de uma hora analisando essa possibilidade, mas não encontrei nada, e às 9h02 eu estava visualizando os registros de DNA de ontem quando meu telefone
tocou.
O identificador mostrou que era Angela Knight.
Quando atendi, ela não perdeu tempo:
– Encontrei Richard Basque.
– O quê? – imediatamente, fui para a varanda na parte de trás da casa para que, se Tessa acordasse, ela não ouvisse minha conversa. – Você o encontrou? Onde?
– Ele está aqui, em Washington, ou pelo menos estava há duas horas.
– Onde ele está agora?
– Não tenho certeza.
Eu estava na varanda agora, fechando a porta atrás de mim. – Como você sabe que ele estava na cidade?
– No começo, quando você me pediu para procurá-lo, fiz o de sempre, você sabe, procurei por GPS, utilização de cartão de crédito, analisei listas de companhias aéreas,
imagens de trânsito. Nada. Até tentei os arquivos de vídeo do satélite do sistema de defesa para ver se tínhamos imagens de seu carro deixando Chicago; eles começaram
a armazenar os vídeos antigos, você sabe...
– Sim, por seis meses. Eu sei – eu estava ansioso para saber como ela o havia encontrado. – Então você achou o carro dele?
– Não, aí é que está. Eu não achei – eu a ouvi bocejar e acabei bocejando também. Poder da sugestão. Ela continuou: – Então eu apelei para a próxima coisa boa que
eu podia usar...
– Vigilância de trânsito.
– Sim – ela parecia desapontada por eu ter adivinhado o que ela ia dizer. – Comecei uma metabusca das imagens em vídeo do trânsito das vinte maiores cidades dos
EUA desde terça-feira. Você não faz ideia do quanto demora para acessar essas informações. A banda larga que a maioria dessas cidades usa é de... – ela bocejou novamente.
– Há quanto tempo você está acordada, Angela?
Ela pensou.
– Não sei direito. Enfim, lá estava ele, andando pela Estação Central do metrô em Washington às 7h31 da manhã de hoje. Eu sei que isso faz mais de uma hora. Desculpe-me
por não ter conseguido falar com você mais cedo.
Eu não achava que ela precisava se desculpar por nada. – Não, você fez muito bem. Tem certeza de que é ele?
– Oitenta e quatro por cento de certeza, segundo Lacey.
Seu computador. A boa e velha Lacey.
– Você já contou para Ralph? – perguntei.
– Achei melhor você. Considerando que foi você quem pediu para eu localizar Basque.
Tentei processar o que ela me disse dentro do contexto geral do caso. – Certo. Alguma coisa sobre Patricia E.?
– Pat, eu estou superatrasada aqui – ela disse, o que não era exatamente uma resposta. – Um pouco antes de ligar para você, fiquei sabendo que a polícia metropolitana
encontrou um carro roubado com o laptop de Mollie Fischer no banco de trás, e adivinha quem vai ter que recuperar os dados?
– Eles encontraram o computador?
Ah, sim. Ótimo.
As coisas estavam acontecendo.
– Sim, e você vai adorar isso: o carro está parado na frente do quartel--general da polícia.
Por que aquilo não me surpreendia?
– Quem o encontrou?
– Lee Anderson – ele era o oficial da polícia metropolitana que havia me dado uma carona do hospital até o meu carro na quarta-feira à tarde.
Aquele que tinha ficado surpreso pela minha opinião sobre motivos logo que nos conhecemos.
– Ligue-me se você descobrir mais alguma coisa, Angela. Obrigado novamente. Você é a melhor.
Outro bocejo. Mais uma vez me peguei repetindo o que ela fez. Eu queria que ela parasse de fazer isso. – Até mais, Pat.
– Ok.
Fim da ligação.
Obviamente, para poder entender os padrões de tráfego a pé, assim como a potencial entrada de pedestres e as rotas de saída do carro, eu precisaria dar uma olhada
no carro e avaliar sua posição em relação às ruas da região, assim como sua distância da entrada para o quartel-general da polícia. No entanto, eu não queria deixar
Tessa sozinha, especialmente depois de Lansing tê-la cercado no hotel ontem. Além disso, mesmo que Basque nunca a tenha ameaçado de jeito nenhum, só de saber que
ele estava na vizinhança eu me sentia desconfortável.
Mas eu não poderia levar Tessa para uma cena de crime secundária que ainda estava sendo examinada.
Resolva isso daqui a pouco.
Prioridades para as coisas prioritárias.
Liguei para o número de Ralph e ele ouviu silenciosamente enquanto eu explicava que Angela Knight havia encontrado Basque.
– Você devia ter me contado ontem que ela estava trabalhando nisso.
– Isso não era exatamente uma coisa oficial – eu disse. – Eu não queria te envolver.
– Você a envolveu.
Uma pausa. – Sim, envolvi.
– Se os advogados de Basque descobrirem isso e voltarem a pegar no nosso pé...
– Eu sei. Não se preocupe. Eu seguro a bomba, mas lembre-se da promessa que fiz a Grant Sikora. Eu preciso deter Basque.
– Nesse momento, o que você precisa é me deixar cuidar dele.
Não era hora de discutir com meu amigo. – Tá certo.
Ano passado, quando Sevren Adkins estava assassinando jovens mulheres no sudeste, foi Ralph que me chamou para ajudar, então expliquei detalhadamente o fato de que
os assassinos pareciam estar deixando pistas para crimes futuros, assim como ele fazia.
Ele ficou quieto. – Nunca encontraram o corpo dele, Pat.
– Ralph, mal encontraram os restos da ambulância.
Ele não respondeu.
– Ninguém poderia ter sobrevivido a uma queda como aquela – mas enquanto dizia isso, lembrei de ter ouvido sobre casos de paraquedistas que sobreviveram a quedas
de milhares de metros quando seus paraque-das não abriram.
– Você deveria manter isso como uma possibilidade em aberto – ele disse.
Parte de mim sabia que ele estava certo, parte de mim não queria imaginar nem de brincadeira que Sevren poderia estar vivo.
Teorize, avalie, elimine as possibilidades.
– Vou pedir para o laboratório analisar novamente todos os DNAs e as impressões digitais – eu disse. – Vamos procurar por qualquer evidência de que ele possa ter
reaparecido em algum lugar desde outubro. E quanto a Basque? Você vai ficar por aí ou vai voltar?
Eu esperava, é claro, que ele me dissesse que ia pegar o próximo voo para Washington, mas em vez disso, ele fez uma longa pausa. – Na noite passada, Kreger descobriu
algumas correspondências que Basque e seu advogado trocaram com a professora Lebreau há alguns anos, quando pediram para reavaliar o caso.
– Eu lembro quando saiu nos jornais – eu disse. – Ela era uma advogada contra a pena de morte.
– Exato. Enfim, estamos considerando tudo isso. Parece que ele andou escrevendo para ela durante todos esses anos. Não temos certeza de que ela respondeu. Se eu
encontrar qualquer prova de que Basque a contatou desde sua soltura, pode ser que tenhamos algo com o que trabalhar. Até lá, ainda não temos nada sólido que o ligue
ao desaparecimento de Lebreau.
– Exceto a sincronia dos desaparecimentos.
– Sim.
– E essas ligações do passado.
– Você e eu sabemos que isso não é suficiente. E se nós o interrogarmos sem nada além de suspeitas e...
– Sim. Eu sei. A imprensa vai ter um prato cheio.
– E os advogados dele também.
Ele pensou por um momento. – Vou fazer o seguinte: vou ficar aqui por enquanto e verificar os contatos de Basque e Lebreau na área de Washington, DC, falar com alguns
amigos dela, ver se tem alguém na capital que eles pudessem ter ido visitar. Enquanto isso, vamos mandar a polícia metropolitana procurar pelo carro de Basque, monitorar
aqueles vídeos de trânsito – ele tomou fôlego. – Como está o arranhão do seu braço?
– Está bem. A propósito, você foi muito rude quando me arrancou aquela intravenosa.
– Vira homem. Quando eu era um Ranger, nós costumávamos...
– Sem histórias de macho, Ralph, por favor. Ficou sabendo que localizamos o corpo de Mollie ontem?
– Sim. No hotel. Está em todos os jornais.
– Anderson encontrou o laptop dela hoje de manhã em um carro estacionado em frente ao quartel-general da polícia.
Quando Ralph ouviu o local, ele xingou baixinho. – Então, você vai dar uma olhada nisso?
– Bem, eu gostaria, mas o pai de Tessa está entrando em contato com ela. Ele sabe onde estamos, então eu não quero que ela fique aqui em casa sozinha, mas, pelo
que sei, eles ainda estão examinando a cena, então não posso levá-la comigo.
Ele pensou por um momento. – Que tal Brineesha? Elas se conhecem, e Brin não está trabalhando hoje. Ela não vai ligar.
Na verdade, a esposa de Ralph seria perfeita.
– Vou falar com ela – eu disse. – Obrigado.
Concordamos em manter um ao outro informado e depois desligamos.
Entrei em contato com Brineesha e combinei tudo: eu levaria Tessa para a casa dela às 10h15, elas iriam ao shopping (oh, Tessa iria adorar isso), então, após minha
reunião, eu as encontraria na praça de alimentação por volta das 14h.
Isso nos daria tempo suficiente para chegar ao escritório de Missy Schuel às 14h30 e eu poderia trocar informações com ela antes da reunião sobre a custódia às 15h30.
Ufa.
Com base na reação de Missy ontem, quando eu lhe disse que iria à reunião sobre a custódia, já podia imaginar o que ela diria quando eu aparecesse com Tessa, mas
isso era sobre o futuro de Tessa, e eu queria que ela estivesse presente.
Tudo isso, mais tarde.
Fiz uma ligação rápida para o posto de comando para colocar o nome de Sevren Adkins em alerta. – Veja se algum sistema o identificou desde o outono passado. Dê busca
no ViCAP, AFIS, CODIS, tudo isso.
– Sim, senhor.
Encerrei a ligação, olhei no meu relógio e vi que já eram 9h16. Normalmente, demora-se uns 45 minutos daqui até a casa de Ralph e Brineesha, mas com o trânsito de
sexta-feira de manhã demoraria mais ainda, e Tessa ainda não tinha acordado.
Ficaria apertado para chegar lá às 10h15. Fui até o quarto dela para acordá-la.
O que poderia muito bem ser a coisa mais desafiadora do meu dia.
80
Tessa resmungou quando eu a acordei.
– Apague a luz – ela envolveu a cabeça com um travesseiro.
– A luz está apagada. Isso é o sol.
– Ah, então apague o sol.
– Tessa, preciso que você levante. É importante.
– Por quê?
– Porque encontraram algo, uma evidência, e eu preciso conferi-la e depois ir para uma reunião.
Ela lamentou. – Eu não quero ficar sentada em salas de espera o dia todo enquanto você se encontra com pessoas. Vou ficar bem aqui. Paul não virá, os advogados dele
nunca deixariam. Só me deixe com uma arma ou algo assim.
– Não vou deixar você com uma arma. Vou deixá-la com a sra. Hawkins.
– Onde?
– Onde o quê?
Finalmente, ela tirou o travesseiro da cabeça e olhou para mim. – Onde você vai me deixar? Na última vez ela me levou para fazer compras.
Uma breve pausa. – Ela falou alguma coisa sobre o shopping, mas é só para...
– Você sabe o que eu acho sobre fazer compras – ela reclamou.
– É o que eu acho de reuniões.
– Pior – a cada momento ela parecia mais lúcida, e dava para ver que estava ficando irritada. – Muito pior.
– Vai ser só por umas três ou quatro horas...
Tessa sorriu. – Que tal isso? Deixe-me na Biblioteca do Congresso. Vou ficar na sala de leitura principal. Celulares não são permitidos lá, então Paul não pode me
ligar. E é a biblioteca mais segura do mundo. É o lugar mais seguro de Washington, com exceção, talvez, do Capitólio e da Casa Branca.
– Não tenho certeza disso.
– Tanto faz – ela ficou deitada apoiada em um dos ombros. – Além do mais, se eu o vir em qualquer lugar, chamo a polícia e digo que ele está me perseguindo e então
ligo para você. Vamos, não me obrigue a ir fazer compras. Aliás, como está seu braço?
– Meu braço está bem, e sair para fazer compras não é assim tão...
Na verdade, quanto mais eu pensava naquilo, mais eu considerava o pedido dela para ir à biblioteca. Ao contrário do shopping, que ficava a pelo menos quinze minutos
de carro do posto de comando, a Biblioteca do Congresso ficava na mesma rua, então eu estaria por perto. E Tessa certamente estaria mais protegida lá do que em público
com Brineesha.
– Tá bom, você pode ir para a Biblioteca do Congresso. Mas precisamos ir logo. Vista-se. Saímos em quinze minutos.
Saí pelo corredor, cancelei com Brineesha e fui pegar minhas anotações e meu laptop.
Os animais carniceiros chegaram em algum momento no meio da noite.
Ratos, ela imaginou, mas do jeito que sua cabeça estava posicionada, não foi possível vê-los claramente para ter certeza.
Eles morderam seus tornozelos, mastigaram a carne perto das faixas que a prendiam. Ela tentou gritar, mas engasgou; nem isso ela podia fazer.
Durante toda a noite, ela lutou sem sucesso para se libertar, mas só conseguiu espalhar um pouco a terra em volta dela, o que podia ter atraído os roedores: por
causa do cheiro podre que era exalado do corpo debaixo dela.
Pelo menos agora, durante a luz do dia, eles a deixaram em paz.
Mas sua força desaparecera, desperdiçada em seus esforços inúteis para se libertar.
Sua coragem tinha morrido, suas lágrimas tinham secado, e agora ela estava deitada contra o cadáver pútrido, exausta.
Com frio.
Derrotada.
Ela se tornou novamente a garotinha frágil, tremendo
debaixo de uma cama em uma noite de maio, rezando para um Deus silencioso.
Ela nunca mais rezara desde aquela noite, não se aventurou a acreditar que Deus estava lá para escutá-la. Mas agora, sem mais nenhum outro recurso, ela rezou.
No entanto, dessa vez ela não estava pedindo pela vida de ninguém, mas por sua própria morte. Para se livrar mais rapidamente do terror que se abatera sobre ela.
Morte.
Para ela e seu filho.
Ainda assim, o Todo-Poderoso lhe ofereceu apenas silêncio
como resposta.
81
Faltam 12 horas...
9h29
Tessa levou menos tempo do que pensei para ficar pronta.
Ela entrou na cozinha para pegar algo para comer e acabou com um prato de sobra da comida chinesa que Lien-hua trouxera na noite passada, e uma fatia da torta de
maçã de Cheyenne.
Dois sabores totalmente diferentes.
Ok, Pat. Nem pense nisso.
– Você pode comer no carro – eu disse. – Não vou encher o saco por isso. Vamos indo.
Ela pegou sua coletânea de histórias de Sherlock Holmes e, antes que eu pudesse lhe perguntar, ela disse: – Sim, eu sei, mas prometi para Dora que terminaria. Estou
quase acabando.
Entramos no carro e seguimos para a rodovia. – Então, já virou fã? – perguntei a ela.
– Do quê? – ela estava comendo a sobremesa primeiro, e sua boca estava cheia de torta de maçã. – Do Holmes?
– Sim.
– Hum – ela engoliu. – Sinceramente, não. Doyle trapaceou.
Ela já tinha me mostrado o contraste entre Doyle e Poe antes, e eu recorri a nossas discussões anteriores: – Você quer dizer, por Holmes se basear descaradamente
no personagem Dupin de Poe?
– Bem, isso e as soluções para seus mistérios – equilibrando o prato de comida no colo, ela abriu o livro. – Certo, então, esse aqui, O Estrela de Prata, o que eu
estava lendo ontem à noite. Holmes o soluciona quando ele percebe... – ela demorou alguns instantes para procurar pelas páginas do livro. – Isso. Aqui: “O curioso
incidente do cão durante a noite... o cão não fez nada durante a noite... esse foi o incidente curioso”.
Reconheci uma das frases mais famosas de Sherlock Holmes. – Claro, o cão não latiu. Holmes percebeu que ele deveria ter latido, e essa era a pista, não o que aconteceu,
mas o que não aconteceu e que deveria ter acontecido; a coisa que você esperaria.
– Certo – ela disse –, bem, teria sido curioso se o cão não latisse, mas até aquele ponto da história, Doyle não diz que o cachorro não latiu. É trapaça deixar o
seu detetive repentinamente saber de algo que seus leitores não sabem. Isso é muito conveniente. Quero dizer, se você vai escrever um mistério, você tem que pelo
menos jogar limpo e incluir fatos suficientes para que leitores espertos possam resolver o caso.
Viramos na estrada municipal em frente à casa. Seis minutos até a interestadual.
– Isso faz sentido – eu disse. – Mas pelo menos o raciocínio de Hol-mes estava correto, quero dizer, o princípio investigativo é verdadeiro.
– E a qual Holmes você estaria se referindo? – ela estava comendo a comida chinesa agora, e sua boca estava cheia. Em vez de pauzinhos, ela estava usando um garfo.
– Você tem preconceito com ele – eu disse – porque você não gosta do autor.
– Não, sério, seu método para resolver crimes é inteiramente baseado em um engano de lógica.
– Um engano de lógica? Sherlock Holmes? Não concordo.
Ela engoliu a comida.
– Doyle faz Holmes dizer, eu não sei, acho que é em O Cão dos Baskervilles ou talvez em O Signo dos Quatro, enfim, ele diz: “Quando você tiver eliminado o impossível,
não importa o que sobrar, mesmo que improvável, deve ser a verdade”. Eu não tenho certeza se é assim ao pé da letra, mas você entendeu, certo?
– Claro, Spock até citou isso no filme Jornada nas Estrelas de 2009.
– Bem, se ele fez isso, estava sendo ilógico também.
– Agora você está dizendo que Spock foi ilógico.
– Sim.
– Heresia.
– Tanto faz.
Ela pegou outra garfada.
Eu avaliei o princípio investigativo. – Tessa, eu tenho que dizer que, dessa vez, acho que você está errada.
Esse raciocínio é perfeitamente lógico.
Ela terminou o resto da comida e colocou o prato de lado. – Vamos dizer que você esteja tentando eliminar o impossível. Como você sabe que o fez?
– Eliminar o impossível?
– Sim.
Olhei para ela com curiosidade e ela explicou: – Só porque algo não foi feito antes não quer dizer que é impossível.
Se você dissesse para Holmes que poderia reanimar o coração de alguém depois de a pessoa estar morta... – ela segurou seu celular. – Ou que ele poderia usar essa
coisa para conversar com qualquer pessoa no mundo a hora que quisesse, ele teria dito que é impossível.
– E era. Naquela época.
Ela me olhou com um ar de aborrecimento. – Obviamente.
– Então o que você está dizendo? Que na teoria é verdade, mas na prática...
– Sim. Considere isso: como você poderia ter certeza de que eliminou todas as possibilidades? Que de algum jeito você considerou cada eventualidade, cada combinação
de fatos, que você previu cada acontecimento imprevisível?
– Bem – relutei em admitir. – A menos que você tenha conhecimento infinito, você não pode.
– Exatamente, então é o seguinte: não há como ter certeza de que você eliminou o impossível. E ter certeza absoluta de que você eliminou todas as possibilidades...
– É o pré-requisito para aplicar o método de Holmes.
– Sim.
– E é ilógico – eu disse, antecipando sua conclusão – basear sua estratégia investigativa em uma metodologia que não pode, em essência, ser praticada no mundo real.
Uma pausa.
– É um jeito bonito de falar isso.
Então tanto o sr. Spock quanto Sherlock Holmes estavam errados porque eles não estavam sendo lógicos o suficiente.
Por essa eu não esperava.
Pelo resto do caminho até a Biblioteca do Congresso, enquanto Tessa lia e murmurava insultos sobre as “habilidades dedutivas especiais” de Holmes, tentei considerar
as possibilidades impossíveis relacionadas a esse caso.
O que eu estava considerando ser impossível e que não era? Como isso estava afetando minha perspectiva? E onde, nessa bagunça de pistas e assassinatos, o cão estava
falhando em latir?
Chegamos.
Deixei Tessa na entrada da biblioteca na Independence Avenue, esperei até que ela entrasse e então parei no estacionamento subterrâneo do quartel-general da polícia;
levando luvas de látex e minha bolsa do computador comigo, saí na direção da rua para dar uma olhada no carro que os assassinos deixaram bem debaixo do nosso nariz.
Brad invadiu a conta do gmail da garota no dia anterior ao que matou Styles e os dois policiais em Maryland, no mês passado.
E esse foi um dos motivos que o levou a propor o plano dessa semana para Astrid.
Por causa do que ele tinha lido nos e-mails da jovem.
Essa noite prometia um mundo de possibilidades, mas, para realizá
-las, ele precisava de um pouco mais de informação.
Invadir sites seguros estava rapidamente se tornando um dos hobbies favoritos de Brad; então, ele clicou no navegador de seu computador e navegou até o site do escritório
de advocacia de Wilby, Chase & Lombrowski.
E começou seu trabalho.
82
Faltam 11 horas...
10h29
O perímetro das duas ruas adjacentes foi isolado. Uma multidão de curiosos se reuniu além da barricada enquanto um bando de policiais com caras entediadas os monitorava
do outro lado linha.
O tenente Doehring e o oficial Tielman, o membro da unidade de cena do crime que eu tinha conhecido na terça-feira à noite, estavam de pé ao lado do Honda Accord
no qual o laptop fora encontrado.
Doehring estava preenchendo uma pilha de papéis em uma prancheta e Tielman estava olhando no porta-malas aberto do carro, mas seu kit de ferramentas forenses não
estava em nenhum lugar por perto. A ERT já devia ter completado seu trabalho.
Quando Doehring me viu, ele gritou: – Como está esse braço?
Meus olhos estavam na multidão. – Furado.
– Ah, você deveria ser um comediante.
– Não de acordo com a minha enteada. – Gesticulei na direção do bloqueio no fim da rua e perguntei a Doehring: – Estamos filmando aquela multidão, certo?
– Claro.
– Vamos ver se encontramos algum suspeito com características corporais e postura compatíveis com Aria Petic ou com o homem não identificado que pegamos na filmagem
empurrando a cadeira de rodas para dentro do Lincoln Towers. – Até onde sabíamos, Aria Petic era um nome fictício, mas dava para ver que Doehring estava entendendo.
– Boa ideia.
– Também compare as características faciais das pessoas aqui com as de Richard Devin Basque – tomei fôlego. – E Sevren Adkins. O Ilusionista.
Ele olhou para mim. – Richard Devin Basque e Sevren Adkins?
– Sim. Acho que Basque pode estar na cidade. Quero saber se ele está naquela multidão. Adkins é um chute longe, mas é algo que preciso confirmar. Depois explico
– então, uma ideia. Por que não? – E a dra. Renée Lebreau. Você deve conseguir uma foto dela, o peso e a altura com o agente Kreger lá em Michigan. Vamos ver se
ela está aqui.
Eu o vi contando os dedos, relembrando todos os cinco nomes. – Eu já volto – ele pegou o rádio e se afastou.
Eu disse para Tielman:
– Conte-me sobre o carro.
– Bem, alguém deu cem dólares em moedas para um mendigo ontem à tarde. Ele tem colocado moedas no parquímetro de hora em hora. Anderson o viu, imaginou que ele não
poderia ser o dono do carro. E então, aqui estamos.
– Alguém deu cem dólares a um mendigo? O que o motivou a ficar colocando moedas...
– A promessa de mais dinheiro, se ele continuasse fazendo isso por 24 horas. E não, o mendigo não pôde nos dar uma descrição do homem que deu as moedas a ele.
Humm...
– Ninguém além de Anderson reparou nisso?
– Aparentemente não.
Eu analisei o veículo.
– Sua equipe encontrou algo de significativo aqui?
– Bem, a etiqueta de retirada de bagagem.
– O quê? – Angela não tinha mencionado isso.
– Sim. Cassidy a encontrou. Farraday fez uma varredura no carro primeiro, deve ter passado sem perceber. Porém, não havia nenhuma impressão digital nela, nem DNA.
Por que assassinos tão cuidadosos deixariam uma etiqueta de retirada de bagagem para trás?
– O que mais?
– Pesquisamos a placa, examinamos os carpetes procurando amostras de terra e nada; Cassidy verificou o volante, as maçanetas das portas e o porta-malas em busca
de DNA e impressões, mas até agora as únicas são da família dos donos, de dois amigos e do antigo dono do carro.
Ele tinha um olhar de satisfação no rosto, como se estivesse orgulhoso de como havia feito seu trabalho. – Os donos estão limpos. Ambos estavam numa exposição de
arte na hora da perseguição no hotel. Quando eles saíram, o carro tinha desaparecido.
– Eles registraram o roubo?
– Sim.
– Nenhum papel de bala no carro? – eu disse. – Chiclete? Canudos, guardanapos, qualquer coisa de onde possamos tirar DNA?
– Eu sou bom no que faço, agente Bowers – sua voz demonstrava frieza.
– Fico feliz em saber disso. – Usando as luvas de látex, entrei no carro, sentei-me no banco do motorista e olhei pelo para-brisa.
Isso foi a última coisa que o motorista viu antes de sair do veículo.
Daqui eu podia ver a câmera de segurança em cima da entrada da frente do prédio da polícia. Esperei e ela girou na minha direção, e então para longe de mim, então
na minha direção novamente, mas pela posição que estava em relação à entrada e pelo ângulo da volta que fazia, supus que o carro não apareceria na imagem.
Perguntei a Tielman sobre isso, e ele confirmou minhas suspeitas: a equipe verificou as imagens, ele me disse, mas não encontrou nada. – Se os assassinos tivessem
estacionado nove metros para frente no quarteirão, nós os pegaríamos – seu tom parecia de elogio pela potencial esperteza do departamento de polícia, e não pela
antecipação do fato pelos assassinos.
Esses caras eram bons.
E era vídeo novamente.
Sempre alguma coisa a ver com vídeo.
Ângulos.
Orientação.
Lembrei-me das câmeras do instituto de pesquisa, da filmagem apagada das 17h às 19h, da transmissão de vídeo para a loja de eletrônicos, das câmeras de trânsito
pegando a placa do Volvo, do vídeo repetindo as imagens do beco vazio. Os assassinos pareciam ser especialistas em virar contra nós as próprias ferramentas que estávamos
usando para encontrá-los.
E ainda assim.
Ainda assim...
O homem que levou Mollie para o hotel na cadeira de rodas foi pego por câmeras duas vezes: entrando no hotel e depois entrando no elevador de serviço.
Ele é bom demais para isso.
Por que ele não usou apenas a entrada do beco ou a...
O cão não latiu.
Ele queria que nós o perseguíssemos pelo hotel.
Pensei nisso.
Por que ele iria querer isso?
Eu não fazia ideia, mas ou os assassinos foram descuidados ou estavam tão à frente de nós a ponto de estarem orquestrando tudo. Seis passos à nossa frente o tempo
todo. Eles pareciam conhecer a caverna e nos mostravam apenas os túneis que queriam que víssemos.
Saí do carro e perguntei a Tielman: – Esse mendigo que estava colocando moedas no parquímetro, ele se lembra de quando o cara deu o dinheiro para ele?
– Em algum momento da tarde de ontem – ele cruzou os braços: Pensei em tudo. Vá em frente, tente achar algo que eu tenha esquecido.
– Sobraram moedas? Se sim...
– Ele usou cerca de metade do dinheiro com bebida – Tielman me interrompeu bruscamente. – Checamos as moedas que sobraram procurando por impressões digitais, mas
não achamos nada no AFIS – ele olhou para além de mim, na direção do quartel-general da polícia. – Vejo você na reunião.
– Bom trabalho.
Após uma pausa. – Obrigado.
Enquanto eu o observava indo embora, reparei que três carros de canais de TV estavam alinhados no fim da rua, e Nick, o câmera que estava no Lincoln Towers Hotel
ontem quando cheguei, estava entrando na van da WXTN.
E quando ele fez isso, tive algumas ideias sobre uma entrada para a caverna que eu ainda não tinha percebido.
83
Peguei meu celular. Demorei apenas alguns instantes para encontrar on--line o número do telefone da WXTN. Digitei-o enquanto entrava no quartel-general da polícia.
A segurança era rígida, mas eu conhecia um dos agentes que operava o detector de metais, e quando mostrei minha credencial e abri minha jaqueta para mostrar minha
arma, ele me deixou entrar.
O posto de comando era no terceiro andar.
Uma secretária da WXTN me colocou na espera e quando eu finalmente fui transferido para o presidente do canal, já tinha percorrido os três lances de escada. – Aqui
é Bryan Tait – ele disse. – Fui informado de que você é do FBI.
Optei por ficar na privacidade da escadaria para nossa conversa. – Estou apenas fazendo uma verificação de fatos. Você tem um câmera trabalhando para você cujo primeiro
nome é Nick; você pode confirmar o sobrenome dele para mim? – eu inventei um nome. – Seria Verhooven?
– Temos uma equipe grande. Não estou familiarizado com todos os nossos empregados. Só um momento – uma pausa enquanto ele procurava pelo nome. – Trichek.
– Pode soletrar para mim?
– T–r–i–c–h–e–k.
– Preciso que você me mande uma cópia do horário de trabalho dele nessa última semana – imaginei que poderia conseguir seu telefone e endereço por conta própria.
Uma pausa.
– Ele fez alguma coisa ilegal?
– Não que eu saiba.
Outra pausa.
– Temo que essa seja uma informação confidencial. Eu teria que falar com o departamento jurídico sobre isso.
– Tudo bem. E enquanto você estiver ao telefone com eles, vou pedir um mandado; vai economizar tempo para nós dois – um pequeno blefe. – Podemos conversar novamente
em quinze minutos. Enquanto isso, espero que não vaze a informação de que a WXTN hesitou em cooperar com as autoridades. Você sabe como essas coisas se espalham
rápido...
Um breve silêncio. – Eu acho que o horário de trabalho do sr. Trichek não seja nada extraordinariamente confidencial.
Eu também não achava.
– Ótimo – passei um endereço de e-mail seguro do Bureau e então disse: – E também os registros de Chelsea Traye. Eu gostaria dos dela também.
Um último momento de hesitação. – Claro.
Eu lhe agradeci, finalizei a ligação e fui na direção do corredor para o posto de comando, tentando não presumir nada.
E falhando nisso.
84
Estações de trabalho foram espalhadas pela sala de conferência. Contei 22 pessoas presentes, seja digitando em computadores, fazendo ligações telefônicas, conversando
em pequenos grupos ou examinando fotos de cenas de crime que foram espalhadas pelas mesas. Reconheci alguns dos policiais e agentes, mas a maioria, não.
Lien-hua e Margaret estavam paradas ao lado de algumas fileiras apressadamente ajeitadas de cadeiras em frente a uma grande tela que projetava um mapa em duas dimensões
da cidade, com os locais dos crimes marcados por pontos vermelhos. Uma mesa de aproximadamente dois metros e meio estava cheia de papéis, copos de café pela metade
e dois laptops logo à esquerda de Margaret.
Meus olhos encontraram os de Lien-hua, e nenhum de nós estava com pressa de olhar em outra direção.
Por um momento, pensei no comentário de Cheyenne na noite passada, de que ela teria aula o dia todo e então me ligaria à noite, e me senti confuso novamente.
Lien-hua.
Cheyenne.
Pat, não faça isso consigo mesmo! Na noite passada você...
Margaret olhou para mim. – Aí está você – suas palavras estavam cheias do seu charme característico, mas senti mais rivalidade do que o normal. – Temos muito o que
fazer – ela gesticulou na direção das cadeiras. – Vamos começar.
Com frequência, agentes encarregados de forças-tarefas como essa comandam reuniões de nível de comando e então pedem que tenentes, detetives, entre outros, informem
todos os demais. No entanto, não era anormal juntar todas as pessoas, e eu sabia que Margaret gostava de economizar tempo e de se certificar que as pessoas estavam
se entendendo, então não fiquei surpreso quando ela foi para o centro da sala e chamou todos a se juntarem para a reunião.
Enquanto os membros da força-tarefa deixavam suas estações de trabalho e começavam a se acomodar nas cadeiras, Lien-hua me olhou furtivamente. – Bom dia, agente
Bowers.
– Bom dia, agente Jiang.
– Como está o braço?
– Doendo. Mas vai ficar bom.
– Sinto muito pela primeira parte, mas fico feliz pela segunda – ela disse, e então: – Gostei da nossa reunião ontem à noite.
Eu pisquei. – Nossa reunião?
– Sim. Na varanda.
– Ah. Sim. Nossa reunião. Talvez hoje à noite possamos nos aprofundar mais. Sobre aquele assunto.
– Hum... Vou me certificar de preparar minhas anotações.
Ah, sim.
Calma, Pat.
Lien-hua se sentou e eu puxei uma cadeira para o lado dela.
Margaret esperou até que todos estivessem sentados e então disse: – Certo, vamos começar.
A porta para o corredor se abriu levemente e o tenente Doehring e o agente Cassidy entraram discretamente e pegaram cadeiras perto de Tielman. Quando olhei para
Doehring, ele balançou a cabeça, respondendo minha pergunta silenciosa sobre a multidão lá fora.
Ninguém que se parecesse com os suspeitos, Basque, Adkins ou Lebreau.
– Agora – Margaret anunciou –, além da etiqueta de retirada de bagagem, o laptop de Mollie foi recuperado dentro do veículo aí na frente, e nossa equipe de crimes
cibernéticos está analisando-o. Já encontraram um vídeo de dois minutos e cinquenta e um segundos da morte de Mahan, gravado depois da meia-noite de terça para quarta-feira.
Eu vi as imagens – ela fez uma pausa, então acrescentou sombriamente: – Ele não morreu bem.
A sala ficou em silêncio.
Apesar de não ser algo que eu quisesse ver, sabia que precisaria assistir a essa filmagem assim que a reunião terminasse. Por enquanto, abri meu laptop para que
pudesse procurar os endereços residenciais de Chelsea Traye e Nick Trichek.
Margaret continuou: – Até agora temos uma lista de suspeitos com 758 nomes. No entanto, nenhuma amostra de DNA ou impressão digital que se referia a algum deles.
Encontrei os endereços: Chelsea morava perto do Aeroporto Nacional Reagan, Nick perto do zoológico. Nenhum dos endereços ficava na zona de ação. Enquanto pensava
em Nick, lembrei-me dele digitando em seu celular com a mão esquerda. O assassino usou a mão esquerda para abrir a porta e apertar o botão do elevador.
Ele tentou usar seu telefone no centro de controle do hotel.
Será que estava fazendo um vídeo?
Novamente, me peguei fazendo suposições demais e tentei deixar os pensamentos de lado.
Margaret demorou um pouco para resumir vários aspectos forenses do caso, e eu já estava familiarizado com a maioria deles, até que finalmente ela acenou na direção
de Lien-hua. – A agente Jiang está trabalhando no perfil psicológico dos assassinos – ela gesticulou na direção da frente da sala. – Por favor.
Margaret se sentou e Lien-hua se levantou. – Obrigada.
Com o controle remoto na mão, ela foi para a frente e se dirigiu ao grupo. – Temos dois suspeitos desconhecidos. Um masculino, um feminino. Ambos caucasianos, idade
incerta, mas com base em uma análise da postura, tamanho do passo e imagens parciais dos rostos nas filmagens que temos, eles provavelmente têm cerca de 30 a 35
anos. Pelo nível de complexidade e sofisticação desses crimes, eu me inclinaria na direção do número maior.
Ela apertou um botão no controle remoto para mudar a imagem da tela para um resumo em pontos de seu perfil dos assassinos. – As ações dos assassinos e seu comportamento
na cena do crime mostram que eles são perpetradores experientes, mas a natureza flagrante de seus atos pode indicar que eles não têm nenhuma condenação criminal
recente em seus registros.
– Que eles não têm? – alguém perguntou.
– Como regra geral, passar tempo preso o torna mais cuidadoso – ela explicou. – Conseguir escapar cometendo crimes o torna mais descuidado.
Verdade.
– Os assassinos estão intimamente familiarizados com a área metropolitana de Washington, DC, incluindo a localização das câmeras de trânsito, e eles estão cientes
da análise forense e se adaptam ao nosso método investigativo. As cenas de crime encenadas e as técnicas estratégicas de desorientação indicam possível treinamento
policial, forense ou militar.
Aquele era um pensamento perturbador. Cliquei na lista de suspeitos e reparei nos nomes de policiais ou militares, atuais ou precedentes, que apareciam.
Seis de 758. Dois ex-policiais, quatro ex-militares.
Ninguém que eu conhecia.
Lien-hua continuou. – Considerando o fator de choque deliberado dos crimes, o ataque dos chimpanzés, a filmagem da morte de Rusty Mahan que foi deixada para encontrarmos,
o desmembramento de Mollie Fischer, todas essas ações apontam para um motivo além de ódio, raiva, ganância ou maldade.
– É um jogo – Anderson disse, cortando-a quase antes dela ter finalizado a frase. – Estão fazendo por diversão. Tirando sarro da gente.
Apesar do meu grande esforço para me manter objetivo, eu tinha a sensação de que ele estava certo.
– Provocando as autoridades – ela disse. – Sim, eu concordo. Até agora não encontramos nenhum sadismo sexual aparente direcionado para as vítimas, mesmo assim existem
tendências sádicas claras nos dois perpetradores. Eles vão monitorar de perto a cobertura dos crimes, possivelmente tentar se inserir na investigação, talvez como
voluntários de denúncia, organizadores de vigílias ou coordenadores de vigilância de comunidades. Um deve ser mais dominante, quase com certeza o homem, mas ambos
são narcisistas e possuem uma imensa autoestima doentia.
– Espere um minuto – um policial na segunda fileira disse. – Você disse imensa autoestima? Não deveria ser baixa autoestima?
– A estima incorpora amor e respeito – ela respondeu –, mas as únicas pessoas a quem esses assassinos estimam, valorizam ou amam são a si próprios. Eles buscam apenas
seu próprio prazer, ligam apenas para seu próprio futuro. Ao contrário da crença popular, quase não se tem notícia de uma pessoa que comete um crime porque tem baixa
autoestima ou porque “não se sente bem o suficiente consigo mesma”. Pessoas que matam, roubam, estupram... ou mesmo que ultrapassam o limite de velocidade... fazem
isso porque colocam seus próprios desejos e necessidades acima das outras pessoas.
Hum. Tem razão.
– Baixa estima pelos outros – o policial disse incisivamente. Lien-hua assentiu, e quando continuou o e-mail de Bryan Tait, presidente da WXTN, chegou na minha caixa
de entrada. As horas de trabalho de Nick e Chelsea coincidiam com os crimes: eles chegaram ao centro de primatas na terça-feira às 19h29 para filmar a reportagem
e às 15h44 de quarta-feira no Lincoln Towers.
Claro que sim, Pat. É o trabalho deles. Fazer reportagens nos locais.
Durante uma investigação, você nunca dever fazer o que eu me peguei fazendo agora: associar um nome com um crime antes de ele estar resolvido. Uma vez que segue
esse caminho, você começa a convenientemente encontrar todo tipo de evidência para provar que está certo. É só a natureza humana.
Ainda assim...
Lien-hua terminou, e Margaret virou-se para mim. Ela tinha um leve brilho nos olhos, e isso nunca é um bom sinal.
– Agente Bowers – ela sabia o quanto eu odiava essas reuniões, e mesmo antes de continuar, eu suspeitava do que ela iria dizer. – Algo a acrescentar? Eu adoraria
conhecer sua perspectiva nesse caso.
Ótimo.
– Ótimo – eu disse, sem graça.
Quando Lien-hua se sentou, tomei seu lugar, coloquei meu celular sobre a mesa ao meu lado e liguei o projetor de hologramas 3D.
85
Faltam 10 horas...
11h29
O holograma pairava sobre a mesa.
Os caminhos da vítimas estavam destacados, cobrindo as ruas da cidade, às vezes se cruzando em lugares onde as rotas de movimentação se sobrepunham.
Enquanto eu resumia o perfil geográfico, inseri a rua onde o laptop de Mollie havia sido encontrado, assim como o local da explosão do posto de gasolina de ontem
à noite. A zona de ação se deslocou para o oeste.
– Você acha que isso está relacionado? – Margaret perguntou, referindo-se ao posto de gasolina.
– A nota fiscal encontrada na van era daquele posto. Os assassinos também deixaram um carro e um laptop roubados em frente ao quartel--general da polícia, e na noite
passada houve uma explosão na estrada municipal que percorre o perímetro da Academia do FBI na Quantico Marine Base. Então temos aqui...
Doehring se inclinou para a frente. – As ruas ou estradas que cercam as duas agências que estão envolvidas nesse caso.
– Sim – eu disse. – Mas essas não são as únicas agências envolvidas nessa investigação. A Polícia do Capitólio, os US Marshals. É muito possível que os assassinos
deixem alguma pista nesses escritórios também.
Margaret designou um policial para notificar os quartéis-generais das outras agências. Ele saiu da sala, e eu continuei: – Eu não acho que nós analisamos suficientemente
as ligações possíveis entre esses crimes e outros crimes do passado. Precisamos ver se existem outras mortes encenadas com desmembramentos relacionados, suicídios
encenados em vídeo, ou... – e essa era a chave – filmagens de trânsito que contenham duas placas diferentes para o mesmo veículo, seja o do suspeito ou o da vítima.
Olhares vazios.
– Placas diferentes? – Tielman perguntou.
– Eu sei que é pouco provável que a polícia mantenha registro desse tipo de informação no ViCAP, mas estamos procurando por padrões. Não sabemos por que os assassinos
trocaram as placas de Rusty Mahan, mas parece que eles queriam que descobríssemos. Eu quero saber se eles já fizeram isso antes.
– Então, uma mensagem? – Anderson disse.
– Possivelmente, mas eu estou mais interessado em localizar os assassinos do que em decifrar seu...
Lien-hua balançou a cabeça discretamente, e eu retrocedi um pouco. – O que eu quero dizer é que é possível que isso seja uma pista falsa. Mas sejam quais forem os
motivos dos assassinos, é possível que numa onda de crimes tão elaborada, eles seguissem padrões estabelecidos ou aprendidos durante crimes anteriores. E se esse
for o caso, ligar os crimes dessa semana com infrações passadas vai nos ajudar a diminuir a lista de suspeitos e a concentrarmos melhor nossos esforços investigativos.
E vamos além de simples condenações anteriores, para explorar padrões criminais similares e comportamentos associados. Qualquer coisa mesmo, ainda que a princípio
pareça insignificante.
Margaret designou Anderson e dois outros policiais para a análise comparativa de casos.
– Finalmente – eu disse –, acho que podemos limitar a área de busca, focar nossos esforços mais eficientemente em eliminar suspeitos.
Toquei no meu telefone e cruzei as referências da zona de ação com a lista de suspeitos. – Apenas 19% das pessoas na lista de suspeitos moram ou trabalham nesse
perímetro de nove quadras. Vamos dar uma olhada mais cuidadosa neles primeiro.
Mas quando olhei para o holograma, comecei a pensar sobre o próprio perfil geográfico, se esse era realmente o método correto a se adotar.
Lembrei-me de uma discussão que tive com Calvin uma vez: “De onde vem sua familiaridade com a região, seu mapa cognitivo de uma área?”, ele me perguntou.
“De seus padrões de movimento, obviamente; seus nós de atividades e as rotas de e para eles.”
“Então, como eles são formados?”
– Agente Bowers? – Margaret me viu perdido em meus pensamentos. – Você estava dizendo?
– Como eles são formados? – eu murmurei.
– Como é?
Os membros da força-tarefa estavam me observando curiosamente. – Eu estava dizendo... – meus olhos voltaram para o holograma. – Acho que posso estar errado.
– Você acha que pode estar errado – Margaret respondeu.
Com meu dedo, tracei uma rua holográfica pelo ar. – Para a maioria das pessoas, a origem de seus padrões de movimento é sua residência. Mas se seu lugar de trabalho
é o centro de suas atividades, então eles provavelmente entenderiam a cidade a partir daquele ponto.
Após uma pausa, Cassidy disse: – Então, um entregador de pizza que chega ao trabalho e então parte dali, viaja até uma parte da cidade e então retorna. Fazendo isso
repetidamente, ele passa a conhecer a disposição das ruas.
– Sim – assenti. – Exatamente.
– E com dois infratores – Lien-hua disse –, o mapa cognitivo do parceiro dominante seria o fator mais determinante na seleção das cenas dos crimes.
– Então – Margaret disse, acompanhando –, devemos nos concentrar em identificar e seguir o mapa cognitivo do infrator dominante.
– Normalmente, sim – respondi, ainda distraído pelos meus pensamentos.
– Normalmente – ela parecia cada vez menos impressionada pelos minhas informações.
Mudei o modo do holograma para que ele mostrasse apenas os locais das cenas dos crimes, e não as rotas de movimentação das vítimas. – Com exceção apenas, talvez,
da ponta da Connecticut Street, esses locais, o centro de primatas, o hotel, o carro em frente ao posto da polícia, o posto de gasolina beirando Quantico... não
foi somente a familiaridade com Washington, DC que levou os infratores a escolhê-los nem a disponibilidade de vítimas que fez com que eles escolhessem Rusty, Mollie
e Twana.
Lien-hua estava acompanhando minha linha de raciocínio.
– É provável que tenham escolhido Mollie por causa de seu pai, Twana pela semelhança com Mollie e Rusty porque era namorado de Mollie.
– Sim.
– E o centro de primatas e o hotel – Margaret acrescentou. – Eles escolheram esses lugares por causa do deputado e do vice-presidente.
Lien-hua concordou com um aceno de cabeça. – E o posto da polícia e Quantico pela relação com a investigação.
– Parece que sim – eu disse. – Então parece que a escolha dos locais não é baseada nos mapas cognitivos da cidade que os assassinos têm, mas sim no tipo de mensagem
que estão tentando mandar. Na metanarrativa com a qual estão trabalhando.
– O motivo deles – Anderson disse.
Eu odiava a ideia de ter que dizer aquela palavra. – A diretriz final deles. Sim.
– E você tem alguma ideia do que pode ser? – Margaret parecia ter se arrependido de ter pedido que eu compartilhasse minhas ideias.
– A reforma da justiça – as palavras apenas saíram.
Todos olharam para mim.
– E você está se referindo exatamente... a quê? – Margaret perguntou.
Balancei a cabeça e desliguei o holograma. – Eu realmente não sei.
Enquanto retornava para o meu assento, me senti derrotado pelas evidências, pelos becos sem saída. Descobrir os motivos dos assassinos poderia ser a chave para resolver
esse caso, afinal.
Por alguns minutos, a equipe explorou o relacionamento entre a família Fischer e os locais dos crimes, mas como não parecíamos estar fazendo avanço algum, Margaret
distribuiu tarefas para garantir que todas as possibilidades investigativas fossem cobertas.
Eu estava perdido nos meus pensamentos.
Tem que haver uma combinação, Pat – mapeamento cognitivo e
metanarrativa. Crimes quase sempre são cometidos dentro do espaço de consciência do infrator. Então os assassinos tinham que estar familiarizados com o hotel e o
centro de primatas para fazer isso tudo.
Margaret concluiu dizendo: – Nos encontramos amanhã de manhã às 10h, a menos que haja alguma mudança no caso; nesse caso, eu os aviso sobre quaisquer alterações
nos horários. Estão dispensados.
Enquanto as pessoas se dispersavam para suas estações de trabalho para começarem a realizar suas tarefas, Margaret me chamou: – Agente Bowers, posso lhe tomar um
minuto, por favor?
Certo, lá vamos nós.
– Claro.
86
Faltam 9 horas...
12h29
Margaret e eu fomos para um canto da sala, e ela mal esperou até ficarmos sozinhos para começar a acabar comigo. – Da próxima vez que você passar por cima de mim
falando com o diretor Rodale... – suas palavras chamuscavam o ar entre nós, mas ela fez uma pausa no meio da ameaça, e eu me aproveitei disso. – Eu não passei por
cima de você, Margaret. Fui falar com Rodale sobre outra coisa, e ele me pediu para trabalhar no caso.
– Ah-ham – não era o jeito de ela concordar comigo.
– Eu não ligo se você acredita em mim ou não – eu disse. – Vamos nos concentrar em pegar esses caras. Podemos discutir isso depois.
Um momento se passou. Eu tinha a sensação de que ela estava tentando me fatiar no meio com os olhos. – Tenho uma pergunta para você – ela disse.
– O que é?
Ela se inclinou para perto e falou numa voz sussurrada: – Quando você estava com o diretor Rodale, você notou algum sinal de que ele pudesse estar sendo excessivamente
influenciado pelo deputado Fischer?
A pergunta veio do nada. A resposta era sim, eu tinha essa impressão, mas não parecia apropriado dizer isso. – Por que você está perguntando isso, Margaret?
Ela não respondeu. Parecia estar imersa em seus pensamentos.
– Isso tem a ver com o Projeto Rukh? – perguntei. – A pesquisa do dr. Libet?
O olhar dela se estreitou quase que imperceptivelmente. – O que você sabe sobre isso? – eu tinha postado a informação de Rodale e Fischer nos arquivos on-line do
caso hoje de manhã, mas percebi que ela ainda não havia tido a chance de verificar.
– Eu sei que ele está sendo utilizado pela Fundação Gunderson, e eu sei que Fischer patrocina o trabalho deles e não quer que vazem informações sobre seu envolvimento.
– Não – ela murmurou. – Ele não quer.
– O que está havendo, Margaret?
– Você descobriu alguma informação sobre aborto?
– Aborto? Não, eu... – isso veio mais do nada ainda. – O que isso tem a ver com todo o resto?
– Direito à vida – ela disse enigmaticamente.
– O quê?
– Era sobre isso que o vice-presidente Fischer ia falar há seis anos quando atiraram nele – ela parecia ter desaparecido em seu mundo privado. – As mudanças de visão
sobre a Quinta Emenda garantem que você não pode ser privado da vida e da liberdade sem processos adequados.
– Mudança de visão?
– Quando a vida começa? No nascimento? Na concepção? Como você define liberdade?
Eu estava ficando mais e mais perdido. – Como isso tudo está ligado com o que está acontecendo aqui nessa semana?
Ela balançou a cabeça. E quando ela falou, não respondeu minha pergunta. – Tem umas coisas que preciso verificar – antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela
acrescentou severamente: – Se você tiver algum problema comigo, fale comigo. Não com Rodale.
– Se eu tiver algum problema com você, vou dar um jeito de você saber. Agora, me diga o que...
Mas, repentinamente e sem mais nenhuma explicação, ela pediu licença e foi embora.
Certo. Isso foi estranho.
E um pouco perturbador.
Assim que ela foi embora, Lien-hua se aproximou de mim. – O que foi isso tudo?
– Boa pergunta – balancei minha cabeça. – Ela começou pegando no meu pé, mas quando mencionei o Projeto Rukh, sua atitude e seu comportamento mudaram.
– De que jeito?
– Ela parecia inquieta.
Não, ela parecia estar com medo.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, então Lien-hua suavemente afirmou o óbvio, mas por alguma razão, me pareceu reconfortante ouvir isso em voz alta: – Esse
caso vai muito mais fundo do que apenas esses quatro homicídios.
Twana Summie, a universitária.
Mollie Fischer, a filha do deputado.
Rusty Mahan, o namorado.
Juarez Hernandez, o atendente do posto de gasolina.
– Sim, vai muito mais fundo – eu disse. – E Margaret sabe de algo e não está compartilhando com o resto da equipe.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Olhei pela sala. – Lien-hua, no que você vai trabalhar agora?
– Claramente, os assassinos tiveram motivos para escolher os mesmos dois quartos do Lincoln Towers usados por Hadron Brady. Acho que a chave para solucionar esse
caso será nos focarmos em... você não vai gostar disso...
Motivos, pensei.
– Razões – eu disse.
Um meio sorriso.
– Quase. Ainda estou cuidando disso. E tem outra coisa: a falta de DNA e impressões digitais em cada uma das cenas, isso realmente me perturba. Todos esses crimes?
Nenhuma evidência física?
– Hum – considerei aquilo. – O cão não latiu.
– O quê?
– Sherlock Holmes. É... bem, a ideia é evitar olhar para o que aconteceu e focalizar no que não aconteceu que deveria ter acontecido, e eles deviam ter deixado DNA.
– Sim.
– Então, como não deixaram nada, os assassinos revelaram algo significativo sobre eles mesmos: eles sabem como não deixar nem mesmo a mais diminuta das evidências
em uma cena de crime.
– Alguém das forças policiais? – ela disse suavemente, repetindo sua observação feita na reunião.
– Ou militares – mostrei para ela os seis nomes que descobri durante a reunião.
– Grandes mentes – ela analisou os nomes. – E quanto a você?
– Vou analisar aquele vídeo da morte de Rusty Mahan – eu disse. – E então acho que vou passar um tempo assistindo aos noticiários.
O bebê chutou.
Pela primeira vez, ela sentiu a criança dentro dela chutar.
– Estou vivo! Não se esqueçam de mim! Deixem-me viver.
Deixem-me viver!
A luta pela sobrevivência.
Sempre.
Sempre.
Para viver.
– Dois pelo preço de um – seu ex-amante disse antes de jogá-la em uma cova rasa sobre um cadáver putrefato.
O bebê chutou novamente.
– Me desculpem por não ter sido mais forte – seu pai escrevera na noite em que desistiu de viver.
Na noite em que deixou a morte vencer.
Ela ouviu uma voz pouco audível:
– Não a deixe vencer! Não a deixe vencer!
E quando ela sentiu a pequena vida dentro dela se mover
novamente, apesar de sua exaustão, apesar da falta de esperança, ela prometeu a sua criança que seria mais forte, que seria forte o suficiente para sobreviver.
E ela começou a brigar contra suas amarras.
87
Vinte minutos depois
Pressionei play.
Era a quarta vez que assistia à filmagem da morte de Rusty Mahan. Em cada uma das vezes tentei me manter centrado, com foco não em sua morte, mas no que o vídeo
poderia nos dizer sobre seus assassinos.
Mas estava achando aquilo quase impossível.
Assistir a sua morte era perturbador demais.
Dessa vez, fiz o máximo que pude para manter os olhos nos ângulos das câmeras e na orientação em relação às imagens de fundo.
Quando terminei, entrei no site da WXTN e assisti novamente às filmagens dos locais dos crimes fornecidas por Nick Trichek e Chelsea Traye, começando pela descoberta
do corpo de Mollie ontem no Lincoln Towers Hotel, e voltei, repassando os homicídios dessa semana até aqueles que eles cobriram nos dois últimos meses, comparando
o trabalho de câmera com a filmagem da morte de Mahan.
E não consegui nada.
Não me surpreendeu que quase todas as filmagens tivessem sido feitas com câmeras estacionárias em vez de com câmeras em movimento, assim como o vídeo da morte de
Rusty.
Em minhas buscas, descobri que Chelsea havia feito uma reportagem especial em abril sobre a pesquisa de primatas da Fundação Gunderson, mas outros três canais de
TV locais também o fizeram no último ano. Ela cobriu a maioria dos grandes crimes na área metropolitana e fez um trabalho controverso recentemente sobre o movimento
para a legalização da prostituição no Distrito de Colúmbia. Fora isso, nada chamou minha atenção.
Quando procurei por algum delito ou infração criminal anteriores, não encontrei nada sobre Chelsea e apenas algumas multas por excesso de velocidade e uma acusação
de três anos atrás por posse de maconha contra Nick.
Nada especial sobre os locais onde Nick e Chelsea viviam ou trabalhavam, nada suspeito sobre o horário de chegada nas cenas dos crimes.
Frustrado, coloquei meu laptop de lado.
Tente refutar suas teorias, não tente confirmá-las ou você ficará cego
pelo desejo de se provar correto!
Eu precisava arejar a cabeça.
Fui até a máquina de salgadinhos no fim do corredor, peguei um pacote com um Snickers, um Cheetos e um pãozinho de canela que devia estar ali desde o tempo da Guerra
Fria, e voltei para minha estação de trabalho.
Vamos, Pat, pense nisso.
Como os crimes dessa semana estão ligados à tentativa de assassinato
do vice-presidente Fischer?
Por que os assassinos escolheram Mollie Fischer?
Remova as conjecturas com os fatos até que apenas a verdade permaneça.
Com o Cheetos na mão, abri a tela das atualizações do arquivo do caso e vi que Anderson, que ficou trabalhando na análise de ligação da ViCAP, havia postado uma
lista de três homicídios no nordeste que poderiam estar potencialmente ligados aos crimes dessa semana.
(1) Um corpo desmembrado em Nova York três meses atrás. O corpo não foi encontrado em malas, mas sim em grandes caixas. Aparentemente, o assassino estava planejando
mandá-las para um ex-empregador.
(2) Em abril, um homem de vinte anos, nativo de Baltimore, foi encontrado em sua banheira com os pulsos cortados, mas havia dúvidas sobre se isso tinha sido um suicídio
ou um homicídio. Seu telefone estava do lado da banheira e foi usado para gravar sua morte.
Hum.
Uma possibilidade.
(3) Um homicídio em Vienna, Virgínia, mês passado. Os assassinos deixaram uma mensagem de texto no laptop da vítima, provocando as autoridades.
Pela sua proximidade com Washington, o crime de Vienna foi coberto por Chelsea Traye e a equipe de notícias da WXTN, e eu tinha acabado de ver as imagens, mas pelo
que eu podia dizer olhando os arquivos dos casos, não havia nenhuma ligação óbvia com os crimes dessa semana.
Considerando-os casos ligados, nenhum dos três parecia especialmente promissor, e nenhum deles tinha nada a ver com placas de carro, o que pode ter sido apenas um
despiste de qualquer modo.
Uma rápida olhada nas horas: 13h22.
Cocei a cabeça. Eu tinha menos de quarenta minutos antes de ir buscar Tessa.
Cada vez mais apreensivo com a reunião de custódia às 15h30, e com uma sensação de decepção pela minha falta de progresso no caso, voltei minha atenção para a tela
de atualizações e vi mais um crime aparecer.
Um homicídio triplo em Maryland, mês passado. Dois policiais foram mortos assim como uma mulher civil, aparentemente como resultado de uma briga doméstica. Anderson
parecia acreditar que a proximidade com Washington, DC, uma cena de crime que parecia encenada e uma possível discrepância entre a hora de chegada do marido na casa
e a hora das mortes dos policiais tornavam esse crime digno de uma análise mais aproximada.
No entanto, Philip Styles, o marido da mulher, havia confessado, provavelmente para evitar a pena de morte, e agora estava na cadeia esperando o julgamento da sentença.
Uma ligação parecia improvável para mim.
Ainda assim, tínhamos quatro crimes separados que poderiam estar ligados aos assassinatos dessa semana. E apesar das minhas impressões iniciais, eu precisava dar
uma olhada melhor neles.
Dei uma mordida no meu Snickers, cliquei no primeiro crime listado para tentar eliminar, em vez de corroborar, sua ligação com a onda de crimes dessa semana.
88
Faltam 8 horas...
13h29
Brad usou sua identificação falsa para entrar no estacionamento do quartel-general da polícia.
– Sou aluno da Academia Nacional – ele explicou para o oficial no portão. – Me pediram para ajudar na força-tarefa do caso Fischer.
O oficial ligou para Quantico e verificou o nome do sr. Collins e a placa do carro na lista de alunos da Academia Nacional. Depois o deixou passar.
Enquanto Brad procurava uma vaga onde estacionar, pensou em seu plano.
P. Qual é a melhor maneira de destruir alguém?
R. Matando a pessoa que ele mais ama.
E, claro, a maioria dos assassinos erra ao assumir que existe apenas um tipo de morte.
Matar alguém psicologicamente, destroçar sua razão de viver e destruir suas esperanças são esforços no mínimo tão satisfatórios quanto cortar sua garganta.
P. Qual é o destino pior que a morte?
R. Querer morrer, mas não poder.
P. Então, o inferno.
R. Sim. Ou ser enterrado vivo.
E, novamente, você poderia ser enterrado vivo de diversas maneiras. Algumas dores são mais sufocantes que a falta de ar.
Ele encontrou uma vaga incrivelmente próxima do carro pelo qual ele estava procurando. Ele saiu do veículo e foi na direção dele.
Depois dessa semana, o mundo saberia quem estava por trás desses crimes.
E Bowers iria atrás dele.
Ele não tinha nenhuma dúvida quanto a isso.
Mas o segredo para derrotar seu inimigo não é permitir que ele concentre todas as energias em você, mas garantir que ele não seja capaz disso.
Tire a vida da pessoa amada de um sujeito e você, de fato, vai sofrer as consequências; ataque-a psicologicamente, e você faz com que ele gaste tempo e energia cuidando
dela em vez de procurá-lo.
Divida suas lealdades, suas prioridades, use seu amor para distraí-lo.
Não o deixe se concentrar de corpo e alma na busca.
Brad abriu a fechadura do carro e deixou a surpresa lá dentro.
Desde a hora em que chegou à Biblioteca do Congresso, três horas antes, Tessa tentava descobrir o que significa ser humano.
E não era tão fácil quanto parecia encontrar a resposta.
E isso realmente a incomodava.
Ela olhou para a pilha de livros de referência em torno dela e para as anotações que digitou em seu computador.
Certo, então primeiro você tem a resposta religiosa: criado à imagem de Deus.
Mas não havia um verdadeiro consenso, mesmo entre religiosos, sobre o que isso quer dizer: criatividade, imaginação, amor, curiosidade, dignidade, liberdade, responsabilidade...
A lista seguia em frente dependendo do autor que você escolhesse e do que ele considerasse distintivo sobre o Homo sapiens. Então, raciocínio circular.
Além disso, ela não demorou para perceber que a Bíblia nunca diz que os humanos são os únicos animais com consciência, inteligência, emoções, política, autoconsciência
ou nem mesmo que são as únicas criaturas com espírito.
A última parte a surpreendeu.
Ela pegou o verso com o qual havia cruzado enquanto lia um tratado da Igreja do século XIX, Eclesiastes capítulo 3, versículos 20 e 21: “Todos vão para o mesmo lugar;
vieram todos do pó, e ao pó todos retornarão. Quem pode dizer se o fôlego do homem sobe às alturas e se o fôlego do animal desce para a terra?”
O fôlego do homem.
O fôlego do animal.
Ela se perguntava se “o animal” seria, tipo, Satã ou algo assim, então ela havia conferido algumas outras traduções; a maioria traduzia as frases como “os espíritos
do homem” e “os espíritos dos animais” ou algo muito parecido.
As pessoas podiam interpretar esses versos do jeito que quisessem, mas ela achou melhor por enquanto os entendê-los do jeito que estavam escritos.
Animais têm espíritos.
Então, colocando de lado toda a questão de “quem tem um espírito/
alma”, de um ponto de vista naturalista, humanos são simplesmente macacos evoluídos que, em algum ponto, adquiriram pensamento abstrato que facilitou o uso da linguagem
e o consequente desenvolvimento das expectativas e dos comportamentos sociais que temos hoje. Então, essencialmente humanos não seriam diferentes em nada dos animais.
Diferentes apenas em grau.
Não em tipo.
Na verdade, na última hora ela descobriu que um número crescente de bioeticistas estava abandonando toda a ideia de “humano”, argumentando que isso é um artifício
baseado no antropocentrismo e na nossa vaidade como espécie. Mas qualquer um poderia ver que assim que ignoramos a exclusividade da humanidade, você tira a base
da responsabilidade moral.
Afinal, chimpanzés não são responsabilizados por matar seus semelhantes mais fracos. Por que deveríamos ser? Especialmente porque, a longo prazo, isso só serviria
para ajudar a seleção natural a criar uma espécie mais vibrante e bem-sucedida.
Mas a maioria dos ateus que ela estava lendo não estava advogando pela morte dos mais fracos.
A maioria.
Ela olhou para as anotações que tinha feito.
Através dos anos, pensadores evolucionistas como Hobbes, Huxley e Freud, que se seguravam, todos, inabalavelmente na seleção natural, inexplicavelmente encorajaram
as pessoas a suprimirem seus instintos naturais, uma visão compartilhada pelo ateu proselitista Richard Dawkins: “Em nossa vida política e social, temos o direito
de jogar fora o darwinismo, de dizer que não queremos viver em um mundo darwinista”.
Certo, mas como, se somos o resultado de nossos genes, podemos “jogar fora” o fato de sermos resultado dos nossos genes?
Isso sim que é ser ilógico.
Não dá para ser dos dois jeitos. Ou estamos determinados a ser o que somos pela seleção natural, ou não. E apenas se não estamos é que podemos agir de modo contrário
aos nossos instintos. Um animal controlado pelo instinto não pode repentinamente decidir se tornar algo que o instinto não o permite ser.
Então, se a seleção natural foi realmente natural e não uma coisa guiada por Deus, o espectro inteiro do comportamento humano seria natural. Instintivo. As coisas
boas e as coisas ruins. Tudo parte de ser um primata altamente evoluído.
Uma espécie sendo verdadeira consigo mesma.
Pessoas sendo verdadeiras com seus corações.
Com as rachaduras.
E toda a ideia da “desumanidade do homem com o homem” seria uma contradição lógica, porque seria impossível para um humano agir de modo não humano, ou desumano.
Arrepiante.
Bestialidade, infanticídio – tudo parte da natureza humana.
Ganância, covardia, escravidão – bem, eles devem ter tido um papel benéfico na sobrevivência ou na reprodução, caso contrário a seleção natural os teria eliminado.
E a partir daí as coisas só pioraram.
O campo inteiro da medicina – a prática de manter os doentes e os geneticamente deficientes (o que quer que isso queira dizer) vivos o máximo possível é, na verdade,
contraprodutiva para a seleção natural e para o avanço das espécies, especialmente considerando a diminuição dos recursos naturais da Terra.
Então, por que fazer isso?
Afinal, a seleção natural requer a morte dos mais fracos para o bem da espécie, então por que lutar contra isso?
O que é bom para a espécie é bom.
O que é ruim para a espécie é ruim.
Deixar vítimas da aids ou crianças famintas na África morrerem seria moral. Assim como realizar eutanásia nos doentes mentais ou terminais. E como garotas adolescentes
são mais propensas a se reproduzirem, a reprodução seletiva e a cópula forçada com garotas adolescentes que exibem características genéticas desejáveis seriam aceitáveis,
até mesmo desejáveis para a espécie.
Estuprar as garotas dotadas para que a espécie possa florescer.
Não precisou de muito para chegar à conclusão de Nietzsche: “Seja quem for o criado no bem e no mal, na verdade ele deve primeiro ser um aniquilador e quebrar valores.
Assim o maior mal pertence ao maior bem: mas isso é criativo”.
Esterilização compulsória para pacientes que sofrem de doenças mentais, no estilo das políticas de Woodrow Wilson. Genocídio. Aborto de crianças com síndrome de
Down ou fibrose cística. Suicídio acompanhado por médicos. Eugenia.
Por que não?
Dadas as afirmações do naturalismo, tudo isso era lógico, é claro, mas mesmo a maioria dos naturalistas mais fervorosos com os quais ela cruzou era reticente em
seguir o caminho da eugenia.
Na verdade, em sua maioria eles eram, ironicamente, fortes defensores da justiça social e de avanços médicos, o que, considerando suas suposições sobre as origens
humanas, não fazia nenhum sentido.
Mas ela, no entanto, dava muito crédito a esses autores, porque mesmo que eles não fossem intelectualmente honestos em suas premissas sobre a natureza humana, eles
eram honestos com seus corações.
Com a casca de bondade.
Porque eles sabiam o que todas as pessoas sabem, o que mesmo Hobbes, Huxley, Freud e Dawkins sabiam: que algumas coisas são certas e algumas são erradas, independentemente
do quão benéficas ou prejudiciais aquelas coisas possam ser para nossa evolução como uma espécie. A compaixão supera a tortura porque a compaixão é boa e a tortura
é ruim. Ponto.
Mas nem todos seriam corajosos o suficiente para serem tão honestos.
Nietzsche por exemplo.
Ou Hitler.
E essa era a questão.
Bastava a pessoa certa argumentar com as pessoas certas.
Ela reparou nas horas.
13h56. Droga.
Patrick viria buscá-la em, tipo, alguns minutos.
Por mais que ela quisesse continuar lendo, ela realmente precisava ir.
Colocou os livros na mesa de devolução e correu para fora.
89
Tessa estava esperando por mim quando parei em frente aos degraus da Biblioteca do Congresso.
– Como foi seu dia? – perguntei quando ela entrou no carro.
– Não encontrei o que estava procurando. E você?
– Não. Ainda não.
– Que tal isso? Nós realmente temos uma coisa em comum.
Mudando de assunto, ela me disse que estava faminta, e como ainda tínhamos alguns minutos antes de irmos para o escritório de Missy Schuel, fui buscar comida.
Até então eu não tinha contado sobre a reunião das 15h30 para Tessa, mas agora expliquei que depois de pegar algo para comer, nós iríamos nos encontrar com a advogada
e então iríamos para uma reunião de custódia com os advogados de Paul Lansing.
Ela ouviu anormalmente silenciosa. Quando terminei e ela finalmente falou, sua voz estava cheia de raiva. – Por que você não me disse isso antes?
Eu previ sua pergunta. – Eu sabia que se dissesse, você ficaria preocupada com isso a manhã inteira. Eu não vi nenhum bom motivo para estragar o seu dia, então esperei.
Acredite em mim, eu não estava fazendo hora com você, só não queria que você ficasse chateada.
Ela estava em silêncio. – Mas você quer mesmo que eu vá junto?
– Sim.
– Por quê?
– Você merece estar presente. É sobre seu futuro que vamos discutir.
Uma pausa. – Sobre o seu também.
Não sabia muito bem como responder àquilo. – Sim. É mesmo.
Demorou um bom tempo até ela responder. – Obrigada – após um momento, ela suspirou. – Essa coisa toda com Paul, eu tenho que dizer, estou meio brava com você.
– Porque eu não te contei?
– Não, em primeiro lugar porque você me levou para vê-lo em Wyoming.
– Calma aí, foi você que quis conhecê-lo. Eu apenas concordei que você tinha o direito de saber quem...
– Eu sei. Mas eu mudei de ideia. Por isso que é sua culpa.
– Você mudou de ideia e por isso é minha culpa.
– Sim. É uma prerrogativa feminina mudar de ideia e então culpar alguém se as coisas não derem certo – seu tom era de uma leveza que me dizia que ela não estava
brava de verdade.
– Eu não acho que o ditado é exatamente assim.
– Essa é a versão do século XXI.
– Você acabou de inventar.
– Talvez.
Um momento depois seu tom ficou sério novamente. – Você é um bom pai, Patrick. Sério. De verdade.
– Não se preocupe. As coisas vão dar certo.
– Não, tipo, o que quer que aconteça... – ela começou, mas eu não queria mais ouvi-la dizer nada.
– Não se preocupe – repeti.
Ela não respondeu.
Fizemos um almoço rápido e fomos na direção do escritório de Missy Schuel.
90
Faltam 7 horas...
14h29
Ela não fazia ideia de quanto tempo ficou lutando contra suas amarras, puxando, puxando, tentando se livrar, mas lentamente, com o tempo, mais e mais terra caiu
de suas costas e se soltou ao redor de seus membros.
E agora, enquanto ela empurrava o braço para o lado o mais forte que podia, o braço de Riah se moveu um pouco para a esquerda.
Ela puxou novamente.
O braço se moveu mais.
Então ela dobrou seu corpo inteiro o máximo que pôde, para
a frente e para trás, de novo e de novo, e então, com um som denso de trituração, o braço apodrecido de Riah Everson foi arrancado do corpo.
Por um momento, ela ficou numa descrença atordoada. Talvez Deus tenha lhe respondido, finalmente. Talvez.
Talvez.
De modo desengonçado e desesperado, ela bateu o membro
do cadáver contra o chão até que a coisa horrível se quebrou no pulso e caiu da faixa de couro.
E seu braço direito estava livre.
Apesar do ângulo não ser favorável, ela agarrou o braço e
tentou jogá-lo para o lado. Ela precisou de três tentativas, mas finalmente conseguiu tirá-lo da cova rasa, dando a seu próprio braço mais espaço para se mover.
Então ela se livrou da mão do cadáver.
Na posição em que fora colocada pelo traidor, não era fácil
remover a mordaça, mas afinal ela conseguiu.
Imediatamente, ela engoliu uma lufada de ar azedo. O efeito da dotracaína havia passado, e ela vomitou enquanto tentava respirar, mas, ainda assim, sem a mordaça
ela sentiu uma rajada de esperança.
Ela passou o braço pela cabeça, procurando a faixa em volta do pescoço.
Chegamos ao escritório de Missy.
Considerando sua hesitação pelo fato de eu participar da reunião de custódia, esperava que ela ficaria relutante em ter Tessa lá também, mas se ela não gostou da
ideia, ela escondeu muito bem. Assim que lhe apresentei Tessa, Missy devolveu o diário. – Nem imagino o quanto isso é especial para você.
– Sim, ele é – Tessa respondeu.
Missy passou um tempo explicando que a leitura do diário a ajudou a formular melhor as coisas que queria enfatizar na reunião de hoje.
– Vou chamar atenção para a natureza breve do relacionamento de Paul Lansing com Christie – ela disse. – Foi um caso de amor curto que durou menos de um mês – ela
acenou com a cabeça na minha direção. – Durante os últimos meses de vida de sua esposa, e desde então, você tem sido o tutor de Tessa. Isso é mais de vinte vezes
o tempo que Paul ficou com a mãe dela.
– É um bom ponto – Tessa olhou para mim e para Missy como se estivesse buscando apoio. – Isso vai ajudar.
– Sim, acho que vai – Missy disse. – E Paul também se correspondeu com sua mãe por muito tempo depois que o relacionamento deles havia terminado, e ainda assim nunca
mencionou ou tentou descobrir se você estava viva, então acredito que podemos mostrar que...
Tessa balançou a cabeça. A segurança havia desaparecido. – Eu já falei sobre isso com ele. Ele vai dizer que pensou que minha mãe tinha continuado com a história
do aborto.
– Talvez, mas vamos mostrar que se ele conseguiu encontrá-la, ele certamente poderia ter encontrado você, ou pelo menos teria descoberto que Christie tinha dado
à luz o bebê. Ela nunca tomou nenhuma atitude para manter isso como segredo para as pessoas, certo? Que você era filha dela.
– Não. Nunca.
Senti um ar de otimismo.
Missy sabia o que fazia.
– Certo – ela olhou em seu relógio e prontamente se levantou. – O escritório deles é do outro lado da cidade. Vamos. Não quero chegar atrasada.
Sentada à sua mesa no posto de comando, Margaret Wellington clicou no site do deputado Fischer para ler sua declaração.
Na noite passada, ela revisou seus registros de votação, mas hoje, à luz do que o agente Bowers lhe dissera – ou pelo menos insinuara por sua falta de resposta –
sobre o deputado estar influenciando Rodale, ela decidiu estudar os votos e as plataformas do homem mais cuidadosamente.
Por viver no mesmo distrito que ele, ela sabia que ele era a favor de diminuir as forças militares e o FBI, reduzir o débito nacional, fortifi-car os direitos de
aborto, criar mais empregos sustentáveis e expandir os benefícios de convênio médico para idosos, mas ela não estava ciente do quão fortemente ele era a favor da
reforma da justiça até que viu seus registros de votos.
Entre outras coisas, Fischer era terminantemente contra a pena de morte.
Isso a fez parar para pensar.
O homem que tentou matar seu irmão era um militante a favor da pena de morte. Depois da tentativa de assassinato, a opinião pública pesou a favor da posição do deputado,
e o diretor Rodale tinha sido um dos que balançaram para mudar de opinião.
Durante o novo julgamento de Richard Basque, Margaret discutiu com Rodale sobre a justiça (ou a falta de justiça) da pena de morte – à qual ele acabou se opondo,
mas que ela apoiava. E, sabendo que ela defendia a redução do número de abortos, ele a desafiou: – Como você pode se declarar contra o aborto e a favor da vida quando
também é a favor da pena de morte?
– Greg, estamos falando sobre pena de morte, e não sobre...
– Eu só estou dizendo, Margaret, que sua posição é inconsistente.
– Francamente, não sei se é apropriado comparar...
– Viu? – ele parecia satisfeito. – Sua posição é insustentável.
– Sou a favor da vida – ela disse –, assim como sou a favor da justiça. Com todo o respeito, Greg, como você pode dizer que é a favor dos dois quando você apoia
que os culpados vivam e os inocentes morram?
Rodale olhou friamente para ela. Sem responder.
Mesmo naquela hora, o fato dele confrontá-la de tal maneira parecia inexplicável para ela. Por que ele estava tão emocionalmente envolvido com o assunto se aquilo
dizia respeito especificamente ao caso de Basque?
A tela do computador a observava e seus pensamentos passaram de Rodale para Fischer.
Ela voltou para suas declarações.
Ele apoiava meios de “aumentar o potencial humano e reduzir o sofrimento desnecessário”, o que incluía seu apoio, juntamente com o da Fundação Científica Nacional,
à nanotecnologia e ao transumanismo – o campo emergente de alteração genética de DNA para tratar cegueira, epilepsia, paralisia, câncer e assim por diante.
Margaret não estava familiarizada com o transumanismo, mas ela não demorou para descobrir na internet que isso era controverso, pois muito dele envolvia não apenas
o aumento da espécie, mas seu avanço – através de implantes neurológicos e terapia genética –, criando humanos com visão, força ou capacidades mentais melhores do
que a raça humana teria desenvolvido por conta própria.
Através da manipulação genética, em breve cientistas seriam capazes de dar às pessoas os reflexos de uma pantera, a força de um gorila ou a visão de um falcão. E
implantando chips em seus cérebros, forneceriam-lhes a habilidade de lembrar praticamente tudo que já aprenderam ou experimentaram. Por causa do objetivo final do
transumanismo de aprimorar a raça humana, ou até transformá-la em uma espécie superior, algumas pessoas a chamavam de eugenia do século XXI.
Neurociência. Nanotecnologia.
Metacognição.
A pesquisa de primatas. Será que a Fundação Gunderson poderia estar fazendo pesquisas de transumanismo? Divisão de genes com animais?
Hum.
Talvez abordar isso de um ângulo diferente.
Ela já tinha ouvido falar que o vice-presidente Fischer não era exatamente o melhor amigo de seu irmão – ressentido de como o deputado se aproveitara de sua influência
política para promover sua própria permanência no Congresso. Ela achou que não seria má ideia bater um papo com o ex-vice-presidente.
Ela precisou fazer algumas ligações, mas acabou descobrindo que ele estava em uma conferência sobre alterações climáticas em Tóquio. Sua equipe lhe disse que ele
retornaria a ligação assim que pudesse, mas ela sabia o que isso queria dizer para um político, então ela teria que esperar sentada.
O deputado estava controlando as cordas de Rodale. Ela não gostava...
Ou talvez fosse o contrário.
Ela fez uma pausa.
Agora, essa era uma ideia interessante.
Sim. Muito interessante.
Ela encontrou Doehring e lhe disse que estava indo para seu escritório no quartel-general do FBI por algumas horas para verificar algumas coisas.
– Não se preocupe, eu cuido das coisas por aqui – ele disse.
– Eu sei que cuida.
Ela deixou o posto de comando com a certeza de que estava em uma trajetória que poderia ou acabar com sua carreira ou possivelmente colocá-la no cargo que ela queria
desde que entrou no Bureau.
91
Faltam 6 horas...
15h29
Brad abriu seu laptop.
Ele sabia que a força-tarefa tinha inevitavelmente encontrado a bomba.
E ele sabia que desde os ataques com antraz há cerca de uma década, o quartel-general do FBI e todos os escritórios regionais passaram a fazer raio X de todas as
correspondências, pacotes, remessas e entregas, assim como passaram a checá-los atrás de traços de componentes biológicos ou químicos.
Porém, o Bureau não fazia raio X ou varredura biológica em evidências que fossem coletadas em cenas de crimes, a menos que a natureza específica de um crime necessitasse
de tal atenção, como avaliar evidências de um incendiário ou da casa de um fabricante de bombas.
Ótimo.
Brad enviou o e-mail que iniciaria o temporizador interno do computador.
Uma propaganda anônima de Viagra.
Em exatamente seis horas, a bomba que ele havia preparado na quarta-feira de manhã, aquela que ele deixou para a força-tarefa encontrar, seria detonada.
Agora ele só precisava esperar.
A explosão ajustaria tudo para o final perfeito do jogo.
Ele colocou seu relógio para vibrar às 21h29, para que ele soubesse, não importa o que estivesse fazendo.
Dr. Calvin Werjonic.
Gregory Rodale.
Annette Larotte.
Um quebra-cabeça com tantas peças interligadas.
E Bowers veria todas as peças perfeitamente encaixadas.
Mas apenas em retrospecto.
Apenas quando fosse tarde demais para salvar a garota.
Escritório de Advocacia de Wilby, Chase & Lombrowski
Sala 17
16h05
– Sinto muito – o advogado principal de Paul Lansing, Keegan Wilby, balançou a cabeça. – Nós simplesmente não podemos permitir que ela participe da reunião.
Wilby tinha um rosto quadrado e uma mecha de cabelo preto na testa como Clark Kent, que servia apenas para fazê-lo parecer com um estudante de ginásio de meia-idade.
Suas roupas me disseram que ele tinha dinheiro; seu sorriso presunçoso me disse que ele sabia disso.
Nós chegamos na hora, há cerca de meia hora, mas incompreensivelmente, Wilby não apareceu até as 15h55, e passou os últimos dez minutos discutindo sobre deixar Tessa
participar da reunião. Ela estava parada ao meu lado, inquieta, mas eu estava com a mão em seu ombro para que ela soubesse que deveria ficar quieta.
Missy disse com firmeza: – Sr. Wilby, diga ao sr. Lansing que isso não está sob discussão. Ela vem ou vamos embora.
Ele suspirou profundamente. – Tudo bem. Vou falar com meu cliente uma última vez – ele falou condescendente, como se Missy fosse uma criança. – Mas não estou garantindo
nada.
Ele saiu.
Os dentes de Tessa estavam cerrados. – Eu me sinto como um móvel que as pessoas estão disputando.
– Eu entendo – Missy disse. – No entanto, o sr. Wilby tem uma certa razão. Seria muito incomum para uma criança, para você, estar presente em uma reunião como essa.
– Sim, bem, incomum serve pra mim.
Cinco minutos depois, Wilby retornou balançando a cabeça. – Sinto muito, meu cliente disse que não quer incomodá-la.
– Ótimo – Tessa caminhou na direção do corredor para a sala de conferência.
– Não, eu quero dizer incomodá-la por você estar na reunião.
– Isso está me incomodando!
– Tessa – eu disse. – Venha aqui.
Ela não se moveu.
Gesticulei para ela se juntar a mim. – Por favor.
Finalmente ela veio, olhando com raiva para Wilby o tempo todo.
– Sinto muito – ele disse a ela naquele tom de voz que as pessoas usam quando realmente não sentem nada. Então ele direcionou suas palavras para todos nós. – Eu
imagino que se vocês insistem que ela esteja presente, teremos que cancelar essa reunião.
– Certo – Missy pegou sua bolsa. – Bom dia, sr. Wilby.
No entanto, eu não tinha tanta certeza. Conversei com ela por um momento e expliquei que eu não gostava da ideia de desistir disso. Eu queria ouvir o que Lansing
tinha a dizer, esclarecer minhas dúvidas sobre seu envolvimento com o Serviço Secreto. Após um curto debate, ela cedeu. – Contanto que seja aceitável para Tessa.
Garanti para Tessa que ela poderia participar de reuniões futuras, mas que esquecesse dessa por enquanto. – Precisamos saber o que está acontecendo aqui. Prometo
que conto tudo para você.
Ela não ficou feliz, mas finalmente concordou. – Quando a reunião acabar, você vai me contar tudo?
– Vou.
Quando Wilby convidou a mim e Missy a segui-lo, ele estava com um olhar de satisfação no rosto que deixava claro que ele achava que o primeiro round era dele.
Um gabinete de madeira com uma dúzia de cubículos ficava do lado de fora da porta da sala de conferência. Wilby tirou seu iPhone do bolso. – Vou ter que pedir a
vocês que deixem seus telefones celulares aqui. Após muitas interrupções no passado, nosso escritório criou uma política. Tenho certeza de que vocês entenderão.
Isso eu não aceitaria, e estava prestes a lhe dizer, mas Missy foi mais rápida. – Meu cliente é um agente federal. Seu telefone contém informações altamente delicadas
e confidenciais, então obviamente ele não pode separar-se dele. E meu telefone contém o número privado dele, então não posso deixar o meu também. Tenho certeza de
que você entenderá.
Eu realmente estava começando a gostar dessa nossa advogada.
– Temo que ela esteja certa – eu disse.
Wilby parecia que ia discutir, mas desistiu e abriu a porta.
Round dois: Missy Schuel.
Assim que entramos na sala, ela me disse suavemente: – Agora lembre-se: deixe que eu fale.
Eu estava colocando meu celular para vibrar.
Ela fez uma pausa.
– Você vai deixar que eu fale?
– Vou tentar.
– Consiga – ela disse, e entramos na sala de conferência. Fechei a porta atrás de nós.
92
Lansing e outros dois advogados estavam nos esperando no lado oposto de uma mesa de metal e vidro. Uma janela virada para o sul oferecia uma luz natural para o clima
institucional da sala. Uma jarra com água estava no meio da mesa com sete copos posicionados ao lado dela. Imaginei que a porta adicional no outro lado da sala levava
para mais escritórios.
Sete copos na mesa.
Talvez estivessem esperando Tessa.
Ou isso, ou outra pessoa.
Missy e eu tomamos nossos assentos de frente para Lansing e seus advogados. Após as apresentações, Wilby nos agradeceu por compareceu, o que pareceu um pouco falso
pois ele havia feito a mesma coisa na recepção logo que chegamos, e já estávamos ali há aproximadamente 45 minutos.
– Certo – Missy gesticulou na minha direção. – Nosso objetivo hoje é descobrir o que o sr. Lansing quer...
– Ele quer a custódia de sua filha biológica – um dos associados de Wilby disse secamente.
Ela olhou para ele com uma curiosidade fria. – Qual é seu nome mesmo?
– Seth Breney.
– Bem, sr. Breney, por favor, evite me interromper e sem dúvida essa reunião será muito mais produtiva para todos nós – não havia dúvida sobre quem estava no controle
daquela sala.
Wilby limpou a garganta. – Primeiramente, meu cliente quer o que é melhor para Tessa.
– É bom saber disso – Missy estava escrevendo algo em sua caderneta com aquela letra de mão.
No silêncio momentâneo que se seguiu à sua declaração, Lansing falou: – Patrick, antes de começarmos aqui, eu gostaria de dizer o quanto sou grato por tudo que fez
por Tessa desde que Christie faleceu.
– É gentil de sua parte dizer isso.
– Sejam quais forem os resultados desse caso de custódia, espero que você concorde em continuar envolvido na vida dela.
Ah, como eu queria responder isso à altura, mas em vez disso mudei de assunto. – Você não correu para se esconder, não foi, Paul?
– Como assim?
– Há seis anos. No hotel.
Observei sua reação.
Apesar das coisas que são mostradas na TV, quando vamos detectar uma fraude, não importa tanto o que o sujeito faz – olhar para um canto ou outro da sala, ajeitar
os óculos ou olhar por cima deles –, mas sim se ele faz algo diferente de quando está dizendo a verdade. Mudanças psicológicas subconscientes perceptíveis sempre
ocorrem, mesmo que sejam diferentes de pessoa para pessoa.
Agora, enquanto Paul me encarava, eu podia ver seu treinamento do Serviço Secreto na frieza de seus olhos, mas ele estava batendo levemente o dedão e o indicador
um contra o outro, o que ele não estava fazendo alguns momentos antes. – Podemos discutir isso depois, Patrick.
– Sim – Wilby concordou enfaticamente.
– Não há hora melhor que o presente – dei de ombros. – Somos todos amigos aqui.
Lansing não disse nada.
– Bom, então... – Wilby disse.
Lansing bateu o dedão no indicador.
É o que pensava.
Fiz uma anotação na caderneta de Missy.
Ela olhou e leu. Assentiu.
– De volta ao assunto a ser discutido – Wilby conferiu sua pilha de anotações, apesar de o que ele disse não parecer tão difícil de se lembrar. – Meu cliente é o
pai biológico de Tessa. Você não contesta isso, certo?
– Vamos querer que outro exame de DNA seja feito por um laboratório de nossa escolha – Missy disse. – Apenas para garantir.
Wilby olhou para Breney, obviamente seu subordinado, que fez uma anotação. O terceiro advogado que estava sentado ao lado deles não disse nada, simplesmente ficou
sentado, parecendo não estar entendendo nada.
Wilby disse: – Quando o agente Bowers e sua enteada apareceram mês passado na casa do meu cliente, eles tinham um diário que continha uma carta que meu cliente escreveu
para Christie Ellis, a mãe da garota.
– Tessa – eu o corrigi. – O nome da garota é Tessa – toda a história de deixar Missy falar não estava dando certo.
– Sim – Wilby disse. – Na carta, meu cliente declara que queria ter um papel ativo na criação da ainda não nomeada criança que Christie estava carregando. Desde
o início, mesmo antes de ela ter nascido, o sr. Lansing voluntariamente se ofereceu para cuidar tanto da mãe quanto da criança, seja emocional ou fisicamente.
– A carta expressa apenas larga intenção – Missy respondeu –, mas nenhuma designação específica. E ele nunca fez nenhum esforço para dar sequência a essas promessas
vagas.
– Quando a mãe de Tessa o deixou, ele a procurou, mas 17 anos atrás, sem internet, não era fácil localizar alguém que não queria ser encontrado. Meu cliente nem
sabia que a garota, Tessa, estava viva.
Missy esperou, uma sobrancelha erguida, e eu podia dizer que seu silêncio era uma maneira de controlar a conversa. – Mais alguma coisa?
Wilby folheou uma pilha de papéis. – Eu tenho aqui uma cópia do horário de trabalho do dr. Bowers é nos primeiros seis meses após a morte de sua esposa.
Senti uma leve acelerada nos meus batimentos.
Como ele conseguiu isso?
Então ele se dirigiu a mim diretamente, como se Missy não estivesse na sala.
– Parece que você passou um bom tempo viajando, dr. Bowers. Dando palestras em conferências de forças policiais e de ciência forense.
– Eu dei algumas palestras, sim.
– Quantos fins de semana você deixou Tessa com seus pais enquanto saía para prestar consultoria em algum caso ou dar uma palestra em uma conferência?
– Isso não tem nada a ver com... – Missy começou.
– Eu viajava uns dois fins de semana por mês – eu disse.
– Catorze fins de semana – Wilby apontou. – Catorze fins de semana em seis meses. Isso é mais do que dois fins de semana por mês.
– O que significa – Missy rebateu – que o dr. Bowers estava em casa por aproximadamente 80% do tempo. E sempre que meu cliente saía, Tessa era muito bem cuidada.
– Eu não estou aqui para discutir sobre a competência dos cuidados que os parentes do dr. Bowers podem fornecer. Esse não é o assunto aqui.
Ok, esse cara estava começando a me irritar.
– Tessa precisa de um lar mais estável e seguro do que um agente na ativa do FBI pode fornecer – Wilby conferiu suas anotações mais uma vez. – De acordo com relatórios
da polícia, em outubro passado ela quase foi assassinada por um assassino em série que o dr. Bowers estava perseguindo na Carolina do Norte.
A raiva estava aumentando.
– Ela estava dentro de um esconderijo seguro do FBI quando ele a atacou.
– E ainda assim, esse homem, Sevren Adkins, foi capaz de...
– Qual é o seu ponto? – Missy disse secamente.
– Meu cliente está preocupado com o bem-estar de sua filha – ele estava olhando diretamente para Missy. – O dr. Bowers tem um histórico de quebra de protocolo do
FBI...
– Isso é um absurdo – ela interrompeu. – Em uma coletiva de imprensa na quarta-feira, a diretora-assistente-executiva do FBI o chamou de um dos melhores agentes
do Bureau.
Wilby juntou as mãos à sua frente sobre a mesa. – Vamos direto ao assunto. Se esse caso acabar indo para o tribunal, nós temos um homem que está disposto a testemunhar
que o agente Bowers fez uma ameaça de morte contra ele.
O quê?
– O agente Bowers nunca ameaçou ninguém de morte – Missy disse.
Wilby estava com aquele olhar novamente, que dizia que ele tinha ganhado um round, mas foi Lansing quem falou. – Ele está aqui agora. Podemos encerrar essa discussão.
Talvez chegar a um...
– Eu não ameacei ninguém – declarei inequivocamente.
Missy leu meus olhos e viu a verdade neles. – Se ele está aqui – ela estava olhando pela sala –, vamos falar com ele.
Vamos acertar isso.
Wilby se levantou e foi até a porta do outro lado da sala. Ele a abriu e disse: – Pode entrar – então se afastou e seu homem apareceu.
Richard Devin Basque.
93
Faltam 5 horas...
16h29
Duas cavernas se juntaram.
Então, é por isso que Basque está em Washington, DC.
Por sua causa.
Por um momento, o assassino canibal olhou pela sala com seu ar de confiança gentil, as profundezas azul-esverdeadas de seus olhos lembrando--me das águas escuras
do Ártico. Enquanto ele se sentava, eu rapidamente analisei como Paul Lansing poderia ter feito a ligação entre mim e Basque.
Quando Tessa e eu visitamos Paul no mês passado, o novo julgamento de Basque acabara de acontecer. Na época, a história de como eu conseguir impedir o atentado contra
sua vida estava em todos os jornais, assim como minha confissão no tribunal de tê-lo socado – espere, tecnicamente, tê-lo agredido fisicamente – durante sua prisão.
Após a soltura de Basque, Lansing poderia facilmente tê-lo contatado e lhe pedido que lhe dissesse ao juiz da vara da família que eu tive um ataque de violência.
E considerando nossa história, eu fazia ideia do quanto Basque ficaria feliz em aceitar o convite. Qual seria a melhor maneira de me fazer pagar por mandá-lo para
a prisão por treze anos do que destruindo minha família?
Mas que história é essa de ameaça de morte?
Missy reconheceu Basque. – Essa reunião está encerrada – ela se levantou.
– Agora escutem um segundo – Wilby disse.
– Não – ela estava a caminho da porta. – Venha, dr. Bowers, estamos indo embora.
– O agente Bowers disse para mim – Basque falou, sua voz sempre calma, ressoante –, no velório do dr. Werjonic no mês passado, que ele tinha intenção de...
Missy se virou. – Intenção do quê? Mês passado o agente Bowers salvou sua vida quando um atirador tentou matá-lo durante seu julgamento. Agora você está dizendo
que ele quer você morto?
– Pergunte a ele – ele virou os olhos para mim. – Ele não vai mentir.
Oh.
A sala ficou em silêncio.
A atenção de todos se voltou para mim.
Não, não, não.
Nada bom.
Eu não disse a Basque que queria matá-lo, mas eu tinha pensado.
Sim, eu tinha.
Justiça preventiva.
Levei um momento para pensar cuidadosamente no que dizer, mas antes que eu pudesse responder, Missy explodiu: – Por acaso você disse que ele não vai mentir? Bem,
você está absolutamente certo. O dr. Bowers não é o tipo de homem que sentaria aqui e mentiria para você. No entanto – ela apontou para Paul –, o sr. Lansing mentiu
para meus clientes sobre seu antigo trabalho. Ele mentiu para Tessa sobre a razão pela qual estava em Washington, DC, mentiu sobre por que mora em Wyoming, mentiu
sobre sua amizade com uma escultora cujo trabalho estaria exposto no museu Hirshhorn e mentiu sobre seu papel em impedir a tentativa de assassinato contra o vice--presidente
Fischer há seis anos. Você está certo, o sr. Bowers não é um mentiroso. Mas, ao lidar com meus clientes, o sr. Lansing mostrou pouquíssimo apreço pela verdade.
Ótimo.
Bela jogada.
Ela olhou as pessoas na sala, uma por uma. – Se o sr. Lansing chegar perto dos meus clientes ou continuar a assediar Tessa com seus e-mails, vamos arrumar uma ordem
de restrição, e considerando o padrão de falsidade e intimidação que ele já cometeu, posso garantir que nenhum juiz negaria esse pedido. Sugiro que você desista
desse processo de custódia ridículo e evite o embaraço de tornar isso público – ela girou nos calcanhares e foi para a porta. – Terminamos aqui.
Wilby se levantou. – O agente Bowers é um homem nervoso e violento que usa de força desnecessária quando apreende suspeitos, e ele ameaça a vida de pessoas inocentes.
Tessa precisa de um pai mais emocionalmente equilibrado que isso.
Eu o ignorei e olhei para Basque. – Richard, onde está a professora Renée Lebreau? Ele não respondeu.
– Ela está aqui em Washington, DC?
Nada.
– Você fez algum mal...
– Isso não é sobre o sr. Basque! – Wilby reclamou comigo.
Olhei para ele, então para Lansing e Basque, e mal consegui segurar minha resposta, mas eu sabia que se dissesse o que estava pensando, não seria do melhor interesse
para Tessa; isso só reforçaria as afirmações de Wilby sobre meu suposto temperamento.
Então, em vez disso, segui Missy até o corredor, e apesar de estar tentado a bater a porta atrás de mim, deixei-a fechar-se suavemente.
No corredor, antes de nos encontrarmos com Tessa, eu disse a Missy: – Bom trabalho.
Ela ficou quieta.
– Você fez um bom trabalho, Missy.
– Eu ouvi.
Quando chegamos à recepção, Tessa se aproximou de nós. – Então? O que aconteceu?
Missy não respondeu e seguiu direto para as portas de saída; eu estava digitando um número no meu celular. – Explico quando estivermos lá fora – eu disse a Tessa.
– O que está acontecendo?
– Por favor, espere com Missy. Eu já volto.
Ela me deu um olhar depreciativo: Eu não acredito! Você está que
brando totalmente a promessa de me contar tudo que aconteceu lá dentro!
Eu estava esperando Doehring atender.
– Está tudo bem – eu disse para ela. – Acho que Paul pode desistir do processo.
– Sério?
– Sim. Agora, lá fora. Eu já vou.
Hesitante, ela obedeceu.
Doehring atendeu e eu lhe pedi para mandar imediatamente um policial disfarçado para seguir Basque quando ele saísse da reunião. – E ligue para Ralph Hawkins – passei
o número para ele. – Diga a ele que sabemos onde Richard Basque está.
Então saí e me juntei a minha enteada e a nossa advogada na calçada.
Missy estava nervosa.
E eu tinha a sensação de que sua raiva não era direcionada apenas às pessoas que estavam do outro lado da mesa.
94
Missy Schuel estava num silêncio mortal até chegarmos ao carro. – O que aconteceu no velório, Patrick, naquele a que Basque se referiu? Você o ameaçou?
– O quê? – Tessa exclamou.
– Eu lhe disse que encontraria evidências suficientes para mandá-lo de volta para a prisão. Ele disse que não achava que eu era capaz de... bem, nesse ponto eu o
interrompi e disse que ele não fazia ideia do que eu era capaz.
– Qual velório? – Tessa perguntou. – Do dr. Werjonic?
– Não fazia ideia do que você era capaz? – Missy disse, os olhos pregados em mim.
– Sim.
– Só isso?
– Só isso.
– Nada mais específico?
Tessa colocou as mãos na cintura. – Alguém pode, por favor, me dizer o que está acontecendo?
– Richard Basque estava na reunião – eu lhe disse. – Paul obviamente está procurando qualquer oportunidade que puder encontrar para usar contra mim. – Então respondi
para Missy: – Não. Nada mais específico.
Aquilo pareceu satisfazê-la pelo menos parcialmente. – Mais alguma coisa? Nenhuma outra surpresa que eu deveria saber?
– Provavelmente – vi um carro sem identificação dirigido pelo oficial Lee Anderson chegar e estacionar do outro lado da rua. – Mas nenhuma que eu possa lembrar agora.
Devia ter passado menos de três minutos desde que liguei para Doehring. Uma resposta incrivelmente rápida. Anderson já devia estar na região.
Olhei para outro lado, para não chamar a atenção para ele. – Vamos – eu disse para Missy. – Vou deixá-la no seu escritório.
Ela estava livre.
Livre.
Ela observava a floresta enquanto a atravessava, alerta a
qualquer movimento.
Ela demorou bastante para afrouxar a faixa em torno de seu pescoço e mais tempo ainda para livrar o outro braço. Mas depois disso, as pernas tinham sido fáceis.
Livre.
Ela chegou ao riacho onde viu o cadáver ontem à noite
logo que entrou na fazenda de corpos com o homem que a deixara para morrer.
Parou ao lado do riacho um pouco acima de onde estava o corpo, tirou as roupas fétidas e infestadas de insetos e se lavou, esfregando, esfregando, esfregando para
tirar o fedor, a sujeira e a podridão de seu corpo.
Ela então enxaguou as roupas e as torceu o máximo que pôde, e banhou os tornozelos na água fria para aliviar a dor da carne cortada onde ela havia sido mordida pelos
animais carniceiros.
O prédio da administração da Academia não estava longe, a menos de um quilômetro do início da trilha. Se ela pudesse pelo menos chegar até o estacionamento, ela
podia roubar um carro, dirigir até um banco, tirar o dinheiro da conta de seu traidor e sumir.
Mas seja esperta.
Ele se virou contra ela, sim, a traiu, mentiu para ela, ten
tou matá-la. Sim, sim, sim. Mas...
Um calafrio terrível percorreu seu corpo quando foi forçada a admitir que ele era mais esperto do que ela, mais esperto do que qualquer policial ou agente do FBI
que ela conhecia. Ele a encontraria, sim, encontraria; era inevitável. E considerando o que ele tinha feito com ela na noite passada – amarrou-a em um cadáver putre
fato –, ela podia sequer imaginar o que ele faria com ela se a pegasse.
Ou o que ele faria com seu bebê.
Mesmo se ele não viesse atrás dela, ele certamente iria
plantar evidências que levariam as autoridades até ela.
Ele tinha meios de falsificar identidades.
Ele era bom com disfarces.
Ele podia cobrir seus rastros melhor que qualquer um que
ela conhecia.
Ele desapareceria e ela acabaria numa prisão para o resto da vida.
E o pior de tudo: eles levariam seu bebê embora.
Para adoção.
Ela já havia passado por isso e não estava disposta a deixar
seu bebê crescer daquele jeito.
Ela vestiu as roupas molhadas.
Era o fim de sua carreira, sim. O fim de sua velha vida,
sim, certo, ela sabia disso, mas pelo bem de seu bebê ela precisava se assegurar de que não seria encontrada. Nunca.
Então ela teve uma ideia.
Havia uma maneira de manter o bebê com ela e também
ficar livre tanto daquele que a traiu quanto do FBI.
Para viver, ela teria que morrer.
Para o resto do mundo.
Mas felizmente, uma coisa na qual ela era boa, a única
habilidade que ela tinha, era culpar pessoas por assassinato.
E dessa vez, ela culparia seu traidor por sua própria morte.
Ela foi na direção do estacionamento, considerando o que seria
necessário para ela fazer sua morte ser tão crível quanto precisava ser.
Predador.
Presa.
Dessa vez, ela teria que ser ambos.
Após deixar Missy em seu escritório, eu precisava de um minuto para pensar, descobrir o que fazer em seguida. Muitas coisas exigindo minha atenção.
Tessa estava chateada.
Basque estava na cidade, aparentemente tentando ajudar Lansing nesse caso da custódia.
A dra. Lebreau ainda estava desaparecida.
Os assassinos ainda estavam livres.
Meu braço doía bastante.
Não havia hora melhor que essa para um café.
Levei Tessa até uma cafeteria pequena no centro de Washington, DC. Ela pediu um latte pequeno com leite de soja; eu pedi um Kenya AA de 600 ml, acabei com ele e
pedi outro antes de ela voltar do banheiro.
Agora estávamos andando por um parque cheio de turistas perto do Capitólio, voltando para o carro, que eu tive de estacionar a umas três quadras de distância.
Sobre nós, os galhos retorcidos das árvores alinhadas à trilha pareciam reter a luz do sol do fim da tarde, deixando apenas recortes do dia chegarem até nós.
Sombra e luz, piscando para mim a cada passo do caminho.
Sem nenhum motivo aparente, Tessa e eu andávamos rápido na dire
ção do carro.
Tantos pensamentos se embaralhando na minha cabeça.
Eu queria ouvir o que Lien-hua podia ter descoberto sobre a falta de evidências de DNA, descobrir o que estava acontecendo com Margaret e sua referência curiosa
sobre aborto, revisar novamente meu perfil geográfico...
Eu tinha desligado o toque do meu celular desde o começo da reunião de custódia, e agora olhei para a tela e percebi que havia uma ligação perdida de Cheyenne.
Ótimo.
Só mais uma coisa para resolver.
Ontem de manhã, Tessa disse que eu estava flertando com as duas, e eu tinha que admitir que ela estava certa.
Então agora, considerando que eu parecia estar conseguindo me acertar com Lien-hua, eu precisava ter certeza de que não flertaria mais com Cheyenne. Sentindo uma
pontada aguda de culpa e não querendo olhar minhas mensagens com medo de encontrar alguma que ela tivesse mandado, guardei o telefone no bolso.
Tomei um gole de café.
Tessa apontou para uma estação de metrô.
– Então, acho que vou para casa.
– Eu levo você. O carro está logo ali, no fim do quarteirão.
– Você já está comigo há umas três horas. Você precisa ficar aqui, voltar para o seu caso.
– Isso pode esperar – eu disse. – Eu não gosto do fato de Basque estar aqui.
– Eu sei disso, mas você mandou um policial disfarçado segui-lo, então...
– Por que você está dizendo que eu mandei um policial segui-lo?
Ela parecia incomodada por ter que se explicar.
– Basque aparece, daí você faz uma ligação urgente antes de sair do escritório do advogado, daí você olha para um cara de bigode que para na frente do prédio em
um sedã. É fácil ver quem é policial. Quem mais, além de assassinos em série e policiais, usa bigode hoje em dia?
– Paquistaneses.
– Sim, claro, e cowboys também, mas aquele cara era um policial.
Desisti da discussão sobre bigodes. – Não vou deixar você sozinha. Eu não confio em Lansing.
– Mas na reunião, a srta. Schuel disse que conseguiria uma ordem de restrição se ele chegasse perto de mim. Ele não ousaria me seguir.
– E como você sabe que ela disse isso?
Tessa virou os olhos. – Ela estava gritando quando disse isso. Olhe, Patrick, eu estou bem.
Eu tenho algumas coisas para fazer em casa. Vou pegar o metrô. Você precisa ficar aqui.
– Acho que não.
Nosso carro ainda estava a cinquenta metros.
Ela me seguia de má vontade.
Andamos.
Da sombra para a luz.
– Vou fazer um trato com você – ela disse.
– Que trato?
– Se você for capaz de me olhar nos olhos e responder uma pergunta, então eu me calo e não discuto. Você pode esquecer esse caso, ir para casa e ficar cuidando de
mim.
Eu não estava gostando dessa história; tomei mais um pouco de café.
– Então?
– Vá em frente – eu disse.
– Você tem que ser honesto.
– Serei honesto. Qual é a pergunta?
– Você tem que prometer.
– Tessa. Tá bom. Eu prometo.
Sombra para luz.
– Olhe nos meus olhos.
Meu Deus.
Paramos de andar, e eu olhei em seus olhos.
– Diga-me que o Bureau tem mais chance de encontrar esses assassinos, de salvar a vida das pessoas, se você não estiver ajudando. Se você puder me dizer isso, então
vou para casa com você e não vou te encher.
– Isso não é justo. Além do mais, não foi nem uma pergunta.
Ela ficou com aquele jeito arrogante de adolescente e me lançou um olhar crítico.
– Tessa, existem muitas pessoas boas trabalhando nesse caso. Não é como...
– Eu posso rearranjar a frase se facilitar pra você.
– Você é mais importante para mim do que...
– Não faça isso.
Meu telefone tocou. O toque de Cheyenne.
Inacreditável.
– Fazer o quê?
– Me usar como uma desculpa.
– Não estou usando você como uma desculpa.
Tocou novamente.
– Eu entendo que você me ame – ela disse. – Mas eles têm mais chance de salvar vidas se você estiver em casa cuidando de mim?
– Por que você está perguntando isso?
Toque do telefone.
– Responda.
– Já vou atender.
– Não, estou falando da minha pergunta.
– A resposta é não...
– Muito bem – ela parecia satisfeita. – Agora, o telefone.
Outro toque.
Irritado, atendi. – Cheyenne. Oi.
– Como você está? Só liguei para ver como as coisas estão. Como vai o caso. Como está seu braço.
– Escute, posso ligar de volta para você?
– Claro – mas ela parecia preocupada. – Está tudo bem?
– Sim.
Tessa disse: – Pergunte o que ela vai fazer hoje à noite.
Balancei minha cabeça para Tessa e falei com Cheyenne: – Só preciso de alguns minutos.
– Pergunte – Tessa disse.
– Cheyenne, você pode esperar um segundo? – segurei o telefone contra o peito. – O que você quer, Tessa?
– Seria besteira ela vir até a cidade para ajudá-lo agora. Com o trânsito de sexta-feira à noite? Por favor. Eu vou levar, tipo, uma hora e meia para chegar em casa
de trem, ela pode trabalhar até lá, sair comigo para jantar e quando voltar você pode conversar com ela sobre o caso. Isso vai te dar mais algumas horas para trabalhar,
eu vou ficar segura, problema resolvido. Todo mundo fica feliz.
Tentei achar alguma falha em seu plano.
– Não – eu disse, teimoso.
– Me empresta seu telefone por um segundo?
– Tessa...
Ela esticou a mão. – Vai, só por um minuto.
– Eu...
Ela inclinou a cabeça e ergueu as sobrancelhas. Uma reprimenda de uma garota adolescente.
Resisti, mas no final acabei desistindo.
Tessa pegou o telefone.
– Detetive Warren, oi, sou eu. Hum, viu, eu vou chegar em casa umas 18h45. Você poderia dar uma passada lá até Patrick chegar? Sim, ele está todo estranho comigo...
eu sei. Sim, não, estamos bem... Veremos, você não vai ganhar de mim mesmo dessa vez... Sim, certo. Ok, você quer falar com ele de novo...?
Ela devolveu o telefone para mim. – Ela quer dizer oi.
Eu disse para Cheyenne: – Me desculpe por isso.
– Não tenho que desculpar você por nada.
– Tessa está tentando bater as asinhas, e só não é uma boa hora.
– Não tem problema, sério. Fiquei na aula o dia todo. Vou passar no estande de tiro, dar uma treinada e depois vou para sua casa e vejo você quando chegar lá. Aí
você pode me atualizar. Além disso, vou ter a chance de praticar meu novo hobby.
– Seu novo hobby?
– Lembra? Ir te salvar?
Oh, não.
– Sim.
Não flerte com ela.
Não flerte com ela.
Não flerte com ela.
– Bem – eu disse. – Obrigado – passei para ela o número do celular de Tessa para facilitar o contato entre elas, e finalizamos a ligação.
Tessa estava terminando seu latte. – Então?
– Todas as adolescentes são assim?
– É possível que eu seja superdotada – ela jogou a alça de sua bolsa por cima do ombro. – Não se preocupe, está tudo certo. Ela não precisa deixarde ser sua amiga
só porque você beijou a agente Jiang. Mas lembre-se...
– Sim, eu sei. Não dê falsas esperanças.
– Exatamente.
Respirei fundo. – Eu quero que você faça o seguinte: me mande uma mensagem de texto a cada quinze minutos até que a detetive Warren chegue. Para que eu saiba que
você está bem.
– Você tá brincando.
– Não estou brincando – ergui um dedo de advertência para evitar uma réplica. Não funcionou.
– Não se deve usar dispositivos móveis no metrô – ela respondeu.
– Se você for presa por isso, garanto que consigo diminuir sua pena.
Ela suspirou em reprovação. – Tanto faz.
– Ligue para mim se acontecer alguma coisa, qualquer coisa.
– Ligarei.
Levei-a até a estação do metrô, esperei que ela embarcasse, então dirigi até o quartel-general da polícia.
Para mapear essa caverna.
95
Faltam 4 horas...
17h29
Margaret tinha saído, Doehring assumira o comando e parecia que a equipe havia feito algum progresso.
Ele me atualizou.
A grande novidade: o agente Cassidy encontrou traços de C-4 militar em algumas fibras do carpete na parte de trás da van.
– Pensei que tinham liberado a van – eu disse.
– Depois que você ligou a explosão do posto de gasolina ontem à noite com a onda de crimes, eles começaram a analisar tudo de novo, do início ao fim.
A ATF tem os melhores cães detectores de explosivos e acelerantes, então suas equipes foram enviadas para o Lincoln Towers Hotel, para o escritório do deputado e
para a Fundação Gunderson.
A ATF.
Mais uma agência acrescentada ao prato.
– Vamos mandá-los para o quartel-general da Polícia do Capitólio também.
– Certo – ele fez uma anotação. – Próximo: você sabe que Fischer tem ligações com a Fundação Gunderson. Bom, alguns dos meus homens deram uma olhada em alguns dos
seus maiores patrocinadores de campanha.
– Deixe-me adivinhar: a Fundação Gunderson?
Ele meneou a cabeça.
– Não, mas descobrimos duas outras organizações no mesmo ramo da neurociência, ambas tentando identificar as partes do cérebro que levam a psicopatologias. E ambas
têm os bolsos bem recheados.
Hum.
Lembrei-me da minha visita ao centro de primatas e da preocupação de Fischer em não ter sua ligação com a Fundação Gunderson exposta ao público.
– As informações estão nos arquivos eletrônicos do caso?
Ele acenou com a cabeça.
– Certo – eu disse. – Vou verificar isso. Fique em cima da história da bomba. Mantenha-me informado.
Ele assentiu, então cruzou a sala para falar com o oficial Tielman, que acabara de chegar.
Verifiquei minhas mensagens de texto: apenas uma. Tessa dizendo que estava bem.
Ótimo.
Posicionei-me em uma mesa próxima da parede, peguei meu laptop e cliquei nos arquivos on-line do caso.
Mas após quinze minutos de becos sem saída, decidi tentar um outro ângulo e naveguei até www.thomas.loc.gov para verificar a lista de legislações pendentes na Câmara
dos Deputados. Levaria uma eternidade para ler as leis, a maioria das quais tinha provavelmente centenas de páginas, mas dois assuntos poderiam me ajudar a diminuir
a lista.
Eu já tinha o primeiro em mente: reforma da justiça.
E Margaret me dera o segundo.
Aborto.
Ela sacou todas as economias de sua conta e estava em um quarto de hotel se limpando, pensando nas implicações de sua decisão de desaparecer.
Tudo que ela precisava para fingir sua morte estava em seu porão, no quarto que o homem em que ela confiou tinha reformado tão cuidadosamente. Todas as ferramentas.
Todos
os produtos químicos. Mas, claro, como ele poderia aparecer na casa a qualquer momento, ela se arriscaria muito indo até lá.
Porém, ela precisava resolver isso essa noite, assim que possível, e o porão era o lugar mais óbvio para fazer isso. Na verdade, com esse tempo curto que ela tinha,
talvez fosse o único lugar no qual ela poderia fazer isso.
Se ela fosse suspeita dessa onda de crimes, os aeroportos certamente vigiariam seu nome, mas se fosse considerada morta, ela ficaria fora da tela do radar. Ela estaria
livre.
Deixando um pouco do seu próprio sangue e cortando um pouco do seu cabelo, ela faria parecer que ela era a presa.
Mas um pouco de sangue e cabelo não seriam suficientes para convencer o FBI.
Para que isso funcionasse, ela precisaria de um corpo. Um que ela pudesse dissolver e que ficasse impossível de ser reconhecido – coloque o corpo na banheira, encha
com água, adicione alguns litros de soda cáustica, transforme a vítima em sabão. Mesmo com um exame de DNA é praticamente impossível identificar quando você usa
bastante soda cáustica.
Se ela pudesse deixar evidências suficientes de que uma mulher foi morta, e evidências suficientes para parecer que a mulher era ela, ela podia pelo menos ganhar
tempo suficiente para sair do país.
Para escapar.
Desaparecer.
Começar uma nova vida e cuidar de seu bebê.
Então, no fim das contas, ela percebeu que, mesmo que vol
tar para casa fosse arriscado, era um risco que ela precisava correr.
No entanto, ela nunca tinha matado ninguém na vida real, apenas arrumado as coisas para que seu amante pudesse colocar suas ideias em prática, e agora, para sua
surpresa, quanto mais ela pensava em tirar a vida de outra mulher, mais a ideia parecia perturbadora.
Mas não havia outra opção. Pelo bem de sua própria liberdade, pelo bem do futuro de seu bebê, alguém teria que morrer.
Uma vida em troca de duas.
E por causa da pesquisa que fez para o trabalho, ela conhecia a pessoa perfeita para ser sua vítima.
Ela trocou de roupa, pegou a chave do carro e saiu do hotel para pegar sua presa.
Margaret encontrou o que estava procurando.
Ela estava em seu escritório no quartel-general do FBI e tinha acabado de analisar memorandos entre escritórios e comunicações eletrônicas para rastrear o lançamento
dos arquivos do Projeto Rukh. Ela descobriu que, realmente, foi o diretor do FBI, Rodale, quem aprovou a transferência da pesquisa do Projeto Rukh para a Fundação
Gunderson – poucos dias antes de começarem as contribuições do deputado Fischer para a Fundação.
Talvez os dois homens não estivessem em desacordo, afinal. Talvez fossem parceiros.
Mas, então, por que Fischer iria propor cortes no orçamento do Bureau?
Independentemente da ligação de Rodale com Fischer, o próximo passo parecia ser óbvio para ela.
Seguir o dinheiro.
Margaret pegou o telefone para fazer algumas ligações.
96
Faltam 3 horas...
18h29
Não encontrei nada específico sobre reforma da justiça, mas descobri duas leis da Câmara com o nome de Fischer que estavam em tramitação pelo Congresso, e ambas
poderiam estar relacionadas ao caso.
A primeira, Projeto de Lei 597, acrescentaria restrições a procedimentos de sentença de pena de morte. “Em resposta ao florescente sentimento mundial sobre os abusos
dos direitos humanos, frequentemente precipitados enquanto aplicando injeções letais.”
A segunda, uma lei que ele estava copatrocinando que aumentaria os fundos federais para testes de bebês in vitro para identificar distúrbios genéticos ou neurológicos:
Projeto de Lei 617. A lei não parecia se relacionar diretamente com aborto, como Margaret insinuou, mas esses tipos de testes in vitro eram normalmente usados por
pais que consideravam o aborto como uma...
Tielman chamou meu nome e olhei para ele.
– Temos outra placa para você – ele anunciou.
Precisei um momento para assimilar o que ele dizia. – Uma placa? Uma placa de carro?
– Sim – ele cruzou a sala na minha direção. – Uma aluna da Academia Nacional voltando para o dormitório. Acontece que a placa do carro dela não é dela. Um sargento
no portão principal, um cara chamado Hastings, percebeu. Faz uns dez, quinze minutos.
– Qual aluna? – perguntei.
Ele olhou para a anotação que estava carregando. – Detetive Annette Larotte – ele me entregou o papel. – A placa está registrada no nome dela, mas ela diz que não
foi ela quem pediu a placa.
A placa: ETI–1RE
Hum.
Rabisquei as letras da placa do carro de Mahan abaixo dela:
ETI–1RE
TEP–ROM
Ou talvez:
TEP–ROM
ETI–1RE
Ignorando os hifens e lidas juntas, as placas diziam: “Te prometi 1re...”
O que seria1re? Prometeu o quê?
Enquanto estava pensando nisso, reparei que Lee Anderson entrou na sala.
– E olha só – Tielman continuou –, são placas do Colorado. De Denver.
– Denver? – Eu só estava parcialmente atento ao que ele dizia.
– Você não é de Denver?
– Sim – murmurei, e então chamei Anderson. – Quem está seguindo Basque?
Ele parecia irritado. – Eu o perdi.
– O quê? Você o perdeu? – deixei Tielman e caminhei na direção de Anderson.
– Estávamos num semáforo – ele murmurou. – Eu estava três carros atrás... talvez ele tenha me visto, eu não sei. Mas ele virou a esquina, e quando eu finalmente
passei pelo semáforo, encontrei seu carro na metade do quarteirão, estacionado perto do meio-fio. Ele não estava em nenhum lugar visível.
– Então tem alguém nesse momento vigiando o veículo, certo?
Caso ele volte.
Anderson ficou em silêncio. – Eu não sabia que isso tinha tanta prioridade.
Dei um soco na mesa ao nosso lado, e a sala imediatamente foi tomada pelo silêncio. – Tinha uma mulher com ele? Alguém mais no carro?
– Não – Anderson parecia defensivo, ressentido por eu estar me importando tanto com isso. – Ele estava sozinho no carro. Não se encontrou com ninguém.
– Antes de você perdê-lo.
Ele respirou profundamente. – Sim, mas ele não é um suspeito do caso, é? – havia um desafio velado em suas palavras, uma tentativa de diminuir seu erro e assim desculpá-lo.
Eu não ia entrar nessa. Não aqui, não na frente de todo mundo.
– Ele é de interesse para o caso – eu respondi, e deixei por isso mesmo.
Uma porta se abriu e Doehring invadiu a sala, vindo em nossa dire
ção. Seus olhos perfuravam como facas. – Anderson!
Decidi deixar Doehring cuidar de Anderson. Quando ele se aproximou, eu disse: – Temos alguém monitorando as imagens do trânsito, certo?
– Angela Knight está cuidando disso – ele estava olhando para Anderson.
– Ela disse se hoje está na central ou em Quantico?
– Quantico. Com alguém chamada Lacey.
Perfeito. – Certo, vamos designar um policial para vigiar o carro de Basque – balancei a cabeça. – Com muita sorte, ele ainda estará lá.
Considerando o hábito dos assassinos de deixar pistas para crimes futuros, pedi para Doehring conseguir custódia de proteção para Annette Larotte até que fizéssemos
algum progresso no caso. Ele concordou, então encurralou Anderson no outro lado da sala para pegar a localização do veículo, e eu liguei para Angela, e lhe disse
para continuar procurando o rosto de Basque nos vídeos de trânsito. – A dra. Lebreau também – acrescentei.
– Mais alguma coisa? – ela parecia exausta. – Estou aqui sentada sem mais nada para fazer, sabe.
– Você pode procurar por Adkins.
– Quem?
Contei a ela sobre Sevren, e ela disse: – Pensei que ele estava morto.
– Ele está.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
– Eu acho.
Olhei para o pedaço de papel que Tielman me entregou com a placa. – Ei, você pode fazer permutações de letras para mim? Ou se você estiver muito ocupada, consegue
me transferir para outro analista que possa fazer?
Uma pausa. – Quantas letras?
– Doze.
– Pat, você tem ideia de quantas combinações existem?
– Muitas.
Alguns segundos depois ela disse: – Quase cinco milhões.
– Não estou pedindo que você faça à mão. Lacey adora esse tipo de coisa.
Silêncio.
– Lá vai... pronta?
Um pequeno suspiro. – Prossiga.
– E–T–1–R-E–T–E–P–R-O–M.
– Você não me disse que eram apenas sete letras diferentes, que três se repetiam e que tinha um algarismo.
Esse tipo de matemática nunca foi minha praia. – O quanto isso muda as coisas?
– Agora caímos para... – ouvi algumas teclas sendo digitadas – Mais ou menos um milhão.
– Ótimo, alguns milhões a menos para se preocupar. Vai ser moleza.
Eu só quero saber que outras palavras essas letras podem formar.
– Bem, sendo assim – ela disse ambiguamente.
– Obrigado, Angela.
Uma pausa. – Claro.
Desliguei e em seguida, liguei para Ralph, que atendeu após uma chamada. – Ei. Eu ia dar um toque pra você – ele disse. – Estou a caminho do aeroporto agora. E tenho
novidades sobre a agenda de endereços da professora Lebreau.
– Você precisa saber de algo antes, Ralph. O policial que estava seguindo Basque o perdeu.
– O quê? – ele aproveitou a oportunidade para proferir algumas das mesmas palavras que eu estava pensando em compartilhar com Lee Anderson alguns minutos atrás.
– Você ainda acha que deveria voltar? – perguntei a Ralph.
– Sim. Se Basque está aí em algum lugar, é onde eu preciso estar. Agora, escute, a agenda de endereços: tem uma pessoa na região de Washington, DC cujo endereço
foi apagado do computador dela há três dias. Nós conseguimos recuperar os dados.
– Quem é?
Uma pausa.
– Gregory Rodale.
Suas palavras me chocaram. – Não brinca.
– Não. Acabei de sair do telefone com ele. Ele disse que se encontraram uma vez numa conferência sobre jurisprudência há anos. Não teve mais notícias dela desde
então.
Isso não me convencia. – Margaret já sabe disso?
– Acabei de falar com ela.
Tentei filtrar todas as informações. – Então, você acha que a professora Lebreau pode ter deixado Michigan por vontade própria? Veio para Washington, DC para ver
Rodale?
– Cara, eu não sei o que pensar. Eu chego no Reagan às 21h02. Aí nós pensamos nisso.
– Me ligue assim que você pousar.
Desligamos.
Rodale?
Eu não fazia ideia do que pensar. Abri os arquivos do caso sobre Bas
que e comecei a procurar por qualquer coisa que pudesse ligá-lo mais intimamente não apenas à Renée Lebreau, mas também ao diretor do FBI, Gregory Rodale.
Margaret mal podia acreditar no que descobrira.
A Fundação Gunderson não tinha fins lucrativos, mas as duas companhias que apoiavam a campanha de Fischer tinham. E Rodale tinha ações em cada uma das companhias,
suficientes para que ele ganhasse dezenas de milhares de dólares se fossem valorizadas em 10%. Se cada ação dobrasse de valor, ele ganharia milhões.
Ele comprou as ações logo após o cancelamento do Projeto Rukh, logo antes de ter permitido que a pesquisa fosse adquirida pela Fundação Gunderson.
Sim, era verdade que os arquivos do Projeto Rukh acabariam sendo liberados por meio de um pedido do Ato de Liberdade da Informação,
mas ele aprovou sua divulgação prematuramente.
E agora, considerando seus investimentos financeiros, Margaret podia ver o porquê.
Mas então por que ele contou para Bowers sobre a ligação com o Projeto Rukh ontem? Por que chamar atenção para isso?
Ela não sabia. Talvez após o ataque a Twana Summie no instituto Gunderson, Rodale percebeu que era tarde demais para manter tudo isso debaixo do pano; que as ligações
no fim apareceriam.
Ela fez uma pausa.
Foi ela que recuperou os arquivos do Projeto Rukh em fevereiro.
Rodale podia ligá-los a você.
Talvez ele soubesse que tudo estava prestes a ir por água abaixo e estava colocando alguém na frente para que ele pudesse sair dessa limpo.
Talvez fosse por isso que ele a colocou no comando desse caso.
Hora de ter uma conversa com seu chefe.
Margaret caminhou pelo corredor até o escritório de Rodale, mas descobriu que ele já tinha ido para casa.
Ela ligou no seu celular.
– Greg, é Margaret.
– Sim? – havia muito barulho no fundo. Talvez ele estivesse em um restaurante.
– Precisamos conversar.
– Alguma novidade no caso Fischer?
–Não. Talvez seja melhor conversarmos pessoalmente. Sobre esse assunto.
Uma pausa. – Sobre o que seria?
– O Projeto Rukh.
Rodale não disse nada. Ela continuou: – Me deparei com os memorandos, e acho seu interesse em nanotecnologia fascinante. Você gostaria de esperar até depois da minha
coletiva de imprensa para conversar?
Um momento depois, ele passou o nome de um pub perto de sua casa para ela. – Às oito em ponto – ele disse.
– Oito em ponto – ela ecoou. – Semansky’s Bar. Na 4th.
Quando desligou o telefone, ela respirou fundo, tanto por ansiedade quanto por hesitação.
As coisas estavam prestes a ficar muito, muito sujas.
Tessa entrou em casa.
Trancou as portas.
Ligou para a detetive Warren.
– Eu já estou indo – ela disse para Tessa. – Quer que eu leve o jantar?
Ainda havia um pouco da sobra da comida chinesa de Lien-hua da noite passada, mas Tessa achou melhor não sugerir isso. – Sim, seria legal.
– Nada de carne nem derivados, certo?
– Certo.
– Vejo você daqui a pouco.
Tessa desligou.
E montou o tabuleiro de xadrez.
Preto contra branco.
As duas cores pelas quais todas as peças, e todas as pessoas, atravessam em algum ponto durante o jogo.
Brad estacionou do outro lado da rua da casa da diretora-assistente Wellington. Baseado em sua pesquisa e suas visitas anteriores à casa, ele sabia o código de seu
sistema de segurança.
Nenhum carro na frente da casa. A janela de sua garagem revelou que estava vazia. Mas, para garantir, ele sacou sua arma e a segurou dentro da jaqueta enquanto atravessava
a rua.
Quando subiu os degraus da varanda, ele ouviu o barulho da coleira de Lewis do outro lado da porta. O golden retriever deu um latido amistoso.
Brad arrombou a fechadura.
Entrou na casa e, enquanto Lewis o observava, localizou o teclado do sistema de segurança na parede.
– Bom menino – ele disse quando fechou a porta atrás de si.
97
Faltam 2 horas...
19h29
Não encontrei ligações para o diretor Rodale nos arquivos de Basque.
Imaginando que Ralph e Margaret investigariam melhor esse túnel, foquei minha atenção de volta nas ligações que já conhecíamos.
Digitei:
Vice–presidente Fischer ligado com Lansing.
Lansing ligado com Basque.
Basque ligado com Lebreau.
Lebreau ligada com Rodale.
Rodale ligado com...?
Enquanto eu tentava decifrar a lista, ouvi passos leves e rápidos. Olhei para a frente para ver Lien-hua caminhando em minha direção. Ela percebeu o cansaço e a
frustração em meu rosto. – Você parece arrasado.
– Bom, pelo menos minha aparência não engana.
– Deu tudo certo na reunião de custódia?
Eu reparei que não havia contado isso para ela ainda.
– Deu. Acho que vai dar tudo certo. Você ficou sabendo de Basque? Que ele estava lá?
– Sim – ela parecia distraída. Algo estava em sua cabeça. – E fique sabendo que Anderson o perdeu.
Evitei comentar e apenas acenei com a cabeça. – Ralph está voltando para cá. Deve chegar um pouco depois das 21h.
Ah, e Rodale conhece Lebreau.
– Ouvi falar disso também. Escute, Pat – ela baixou a voz até falar comigo quase sussurrando. – Talvez eu tenha descoberto por que o cão não latiu.
– Continue.
– Deixe-me pegar meus arquivos. Encontro você no andar de cima, na sala 413.
Fiquei curioso.
Muito curioso.
– Por que no andar de cima?
– Confie em mim. Cinco minutos.
Ela saiu, verifiquei minhas mensagens de texto e confirmei que Tessa estava bem. Enquanto pegava minhas coisas, um dos agentes aumentou o volume de uma televisão
instalada perto do teto, no lado oposto da sala.
– Fontes anônimas – o apresentador estava dizendo – confirmaram que o deputado Fischer tem feito contribuições significativas para a Fundação Gunderson. À luz do
pedido da Fundação por fundos governamentais para pesquisas controversas sobre nanotecnologia, os legisladores republicanos estão chamando a notícia de “surpreendente”
e “reveladora”. Mais informações assim que...
Fundos federais.
Pesquisa de nanotecnologia?
Interessante.
Uma caverna sobre a qual eu não tinha pensado.
Subi as escadas para ouvir o que Lien-hua tinha a dizer.
98
– Natasha Farraday – ela disse para mim.
– O quê? – estávamos em um escritório vazio no quarto andar e ela estava espalhando uma pilha de arquivos pela mesa.
– Acho que deveríamos prestar mais atenção nela.
– Você acha que ela pode ser um dos assassinos? – eu estava chocado. – E o quê? Cassidy é o parceiro dela?
– Só estou dizendo que eles merecem uma olhada mais de perto.
– Explique.
– Lembra que hoje mais cedo eu estava procurando ligações com forças policiais? Comecei pelos seis nomes que você me deu, mas aquilo não me levou a nada.
– E então você iria analisar a falta de evidências de DNA.
– Sim, mas aí estava o problema: como não havíamos encontrado evidências de DNA na cena, estávamos considerando que os assassinos não tinham deixado nenhuma.
Pensei em suas palavras. – Essa suposição me parece ter bastante fundamento.
– Decidi supor o oposto.
– Você supôs que os assassinos deixaram seus DNAs.
Sim. Bom.
Ela pegou os relatórios de análise do laboratório na pilha de papéis.
– Fiz o laboratório analisar novamente as amostras, sabe, caso os assassinos tenham tentado alterar ou falsificar as evidências, mas tudo voltou com os mesmos resultados,
então resolvi dar uma olhada melhor nas evidências que tínhamos, no DNA que estaria presente naturalmente...
– Daqueles que trabalharam nas cenas.
– Sim.
– E isso a levou até Farraday e Cassidy.
Enquanto falava, ela apontava para várias anotações que havia destacado nos relatórios. – Pegue Natasha primeiro. Ela trabalhou em todos os crimes dessa série, foi
a primeira a chegar ao hotel no dia em que você levou o tiro. Foi ela que encontrou a cadeira de rodas no quarto 809, ela que examinou o carro de Mahan e a van para
deficientes, e também foi a agente que supervisionou a manipulação das evidências quando o deputado foi identificar o corpo de Mollie no hotel.
– As malas.
– Sim.
– Então é claro que esperaríamos encontrar o DNA dela em todas as cenas dos crimes.
– Sim. E encontramos.
Tinha que haver mais.
– O que mais?
– A hora que ela chegou dela ao centro de primatas na terça-feira à noite daria a ela tempo suficiente para deixar o instituto passando-se por Aria Petic e então
retornar com as equipes de emergência após a ligação de Sandra Reynolds.
Hum.
Uma ideia se formou em minha cabeça.
Alguns aspectos dos arquivos pessoais do Bureau são confidenciais, mas alguns não são. Abri meu computador, coloquei-o sobre a mesa. – Ainda assim, tudo circunstancial.
– A idade dela bate, ela tem uma compleição similar a de Aria, conhece técnicas forenses, tem uma personalidade submissa e chegou à região de Washington, DC logo
antes da onda de crimes começar.
Novamente, tudo circunstancial, mas sem dúvida, cada fato adicional corroborava a possibilidade de Lien-hua ter descoberto algo.
Imagine, Pat, a emoção de cometer um crime, e então voltar para examiná-lo. Seria incrível, a sensação de poder...
E seria muito difícil montar um caso contra você com base na presença de seu DNA na cena de crime, pois seu DNA estaria presente naturalmente.
– Cassidy encontrou a etiqueta de retirada de bagagem – eu disse –, mas Farraday examinou o carro antes.
– Ela pode tê-la plantado lá.
Balancei a cabeça.
– Mas por que correr esse risco se você for o assassino? Por que não deixou a etiqueta lá quando deixou o laptop?
– Hum – ela disse. – Tem razão.
Digitei no computador, abri os arquivos de Natasha Farraday.
Lien-hua me observava. – Eu chequei, Pat. Ela mora a menos de quinhentos metros a oeste da zona de ação.
Um passo à minha frente.
– Ela se encaixa tanto no perfil psicológico quanto no perfil geográfico.
– Sim.
– Ela foi transferida recentemente... – murmurei. Agora eu estava verificando os arquivos de Cassidy. – E Cassidy é o superior dela, e sua personalidade é mais dominante...
– Eu sei que não é nada sólido – ela admitiu. – Apenas uma série de coincidências.
– Mas coincidências aparentes...
– ... sempre pedem uma inspeção mais detalhada.
– Muito bom – eu disse –, palavra por palavra do meu livro.
– O que posso dizer? Sou uma fã.
Pensei nas evidências novamente.
– O que você fez até agora para tentar refutar o envolvimento de Farraday e Cassidy?
– Bem, claro, essa é a parte difícil. É como um castelo de cartas de baralho. Circunstancial, como você disse. Eu não posso sair mostrando fotos dos meus colegas
para as crianças dos Rainey ou para o motorista de táxi.
Pensei naquilo.
O garoto Rainey disse que o homem que saiu do beco tinha cicatrizes, mas Cassidy não tinha cicatrizes no rosto.
Cicatrizes podem ser falsificadas.
– Será que alguém poderia estar tentando incriminá-los?
Ela balançou a cabeça. – Não vejo como. As designações para as cenas dos crimes vieram ou da expedição, de Margaret ou de Rodale. Os assassinos precisariam conhecer
o protocolo de expedição da ERT e o tempo de resposta.
Quem poderia saber isso?
Eu conheci Natasha Farraday no centro de primatas na terça-feira à noite... então eu a vi no hotel na quarta-feira... então...
Espere.
ETI–1RE.
TEP–ROM.
Te prometi...
Natasha mencionou que lera meus livros...
Ela o questionou sobre o carro de Mahan, sobre como você sabia que era
aquele o veículo que o assassino tinha usado...
Fechei meu computador. Levantei-me.
– O que você está pensando?
– O laboratório em Quantico – eu disse.
Lien-hua balançou a cabeça. – Não temos o suficiente para questioná-los. Nós mal temos...
– Não quero questioná-los. Quero dar uma boa olhada no que trouxeram de volta das cenas dos crimes.
Ela juntou suas coisas rapidamente. – Estou dentro desse prédio desde 10h30. Eu vou com você.
Eu não tinha nenhuma objeção a isso.
– Vamos no meu carro – eu disse. – Tem alguns túneis que quero ajuda para explorar no caminho.
Tessa atendeu a porta.
A detetive Warren estava na varanda, segurando uma sacola de mercado em uma mão e a bolsa do computador na outra. – Oi – ela disse.
Tessa lhe deu passagem. – Entre.
Cheyenne mostrou a sacola enquanto entrava. – Que tal hambúrguer de falafel, homus e tortilhas? Ah, e refrigerante. – Ótimo – Tessa fechou a porta.
Os olhos da detetive encontraram o tabuleiro de xadrez. – Você adora apanhar, Tessa.
– Não dessa vez. Hoje quem vai apanhar é você. Um leve sorriso. – Veremos quem vai apanhar. Vamos comer um pouco e então começamos o jogo.
Margaret entrou no Semansky’s Bar.
Algumas mesas de bilhar. Cheiro de cerveja velha no ar. Música country lenta e arrastada era ouvida nos alto-falantes escondidos no teto. Uma fina camada de fumaça
tomava o ar. Era ilegal fumar em restaurantes em Washington, DC, mas estava claro que os donos do Semansky’s não estavam muito preocupados com isso.
Ela olhou ao redor.
Alguns homens de negócios estavam sentados nas sombras, acariciando suas bebidas. Dois deles olharam para ela quando ela entrou, masdesapareceram em seus pequenos
mundos quando ela os ignorou.
Que buraco.
Nenhum sinal de Rodale.
Nas caixas de som, um cantor country tinha esperanças de recuperar sua esposa.
Ela olhou pelo bar novamente e dessa vez viu Greg sentado sozinho em uma mesa de canto, uma garrafa vazia de cerveja à sua frente. Ela se aproximou dele, e ele a
cumprimentou muito calorosamente: – Margaret.
– Greg – ela sentou-se em frente a ele. – Obrigado por ter vindo.
– Claro.
Uma garçonete magra com cabelo desgrenhado e maquiagem demais apareceu do nada. – Refil? – ela perguntou a ele.
– Quero outra Strasman Dark – ele olhou para Margaret. – Quer beber alguma coisa? – ela se perguntou quantas ele já tinha bebido.
– Não, obrigada.
– Tem certeza? – a garçonete perguntou.
– Tenho certeza. Mas obrigada.
– Obrigada – ela repetiu naquele tom de voz que quer dizer “então por que você está tomando espaço na minha mesa?”
– Traga uma porção de fritas também – Greg acrescentou.
A garçonete sumiu na escuridão. A música pulsava.
– Então – ele disse.
– Então.
– Você queria discutir alguns memorandos – obviamente ele não estava interessado em perder muito tempo.
– Greg, você passou arquivos do Departamento de Defesa para o setor privado antes que eles fossem devidamente revisados, examinados e liberados.
– Não havia nada confidencial na pesquisa, Margaret. O Projeto Rukh tinha sido cancelado. Além disso, o programa originalmente era subcontratado por uma empresa
privada.
– Sob a fiscalização do comitê de supervisão.
Ele aguardou um momento. Não respondeu.
– A decisão foi imprudente e prematura.
Ele dispensou suas preocupações. – Então temos uma diferença de opinião sobre o assunto. O que mais?
– Fale sobre a dra. Renée Lebreau.
– Você andou falando com Ralph Hawkins.
– Como você a conhece?
Ele olhou para os confins sombrios do ambiente. Passou o dedo suavemente sobre a mesa. – Renée e eu nos conhecemos em uma conferência anos atrás, antes de eu ser
apontado como diretor do FBI, antes de ela ser professora – ele disse as palavras como se fossem uma declaração preparada.
– Antes do seu divórcio.
Ele olhou friamente para Margaret. Parou de mexer a mão. – Sim. Antes do meu divórcio.
– Você sugeriu que ela vasculhasse o caso de Richard Basque há dois anos? Foi assim que ela se envolveu?
– Por que você está tocando nesse assunto, Margaret?
– Porque ela desapareceu e Basque está aqui em Washington, DC e eu não acredito em coincidências.
– Agora você está falando como Bowers.
A garçonete reapareceu, colocou na mesa a porção de fritas, a cerveja de Rodale e um copo de água turva para Margaret, então desapareceuentre as sombras novamente.
Greg tomou um gole da cerveja. – Considerando toda a cobertura da mídia e as afirmações de Basque durante todos esses anos de que era inocente, e o fato do caso
envolver Bowers, um dos nossos melhores agentes, sim. Eu revisei os arquivos de Basque.
– E?
– E eu achei que as inconsistências eram suficientes para que um advogado olhasse o caso novamente.
– Não só um advogado, uma professora de direito. Ele tinha uma porção de advogados. Ela é uma das maiores opositoras declaradas à pena de morte do país...
– Eu conheço Lebreau – suas palavras eram duras. – Liguei para ela.
Só isso. Não há nada de antiético nisso. Pelo telefone você mencionou nanotecnologia.
Agora a parte importante. – Você está numa posição de benefício se a Fundação Gunderson fizer alguma descoberta.
– Como assim?
– Ações.
– A Fundação Gunderson é uma organização sem fins lucrativos. Do que você está falando?
– Foi inteligente – ela disse. – Se eles fizerem qualquer descoberta, isso vai impulsionar toda a indústria, fazendo com que os preços de ações de outras empresas
do mercado subam como foguetes. Ainda assim, com a compra dessas ações, nós temos quebra de confiança, conflito de interesses e possivelmente troca de informações
privilegiadas.
Ele tomou um longo gole de sua bebida. – Você veio aqui para me chantagear, Margaret?
– De jeito nenhum, mas existem muitas falhas nisso tudo. Vai vir à tona no final. Estou te dando a oportunidade de evitar tudo isso, de sair limpo antes que aconteça.
– Antes que você faça acontecer.
Ela não respondeu.
Ele colocou sua cerveja na mesa e seu olhar parecia mostrar tanto escárnio quanto derrota. – Você só quer meu emprego, Margaret.
Ele estava certo, e ambos sabiam disso. O diretor do FBI era apontado pelo presidente dos Estados Unidos com a aprovação do senado, mas uma diretora-assistente-executiva
quase que certamente estava na lista caso o diretor renunciasse ou fosse afastado. – Tudo gira em torno disso – ele disse. Então repetiu: – Você quer meu emprego.
– Isso não é tudo que quero.
Ele acenou com a cabeça, como se esperasse aquilo. Ele deixou a cerveja de lado. – O que mais?
– Eu quero o que é melhor para o Bureau, Greg.
Ele esperou como se ela ainda fosse falar mais, mas quando ela não disse nada, ele emendou: – Você não pode provar nada disso.
– Me dê um tempo. Sou muito boa em ligar os pontos.
Ele colocou ketchup nas batatas fritas.
– Então você quer que eu renuncie, é isso?
– Eu quero que você dê uma coletiva de imprensa. Explique seus motivos.
– E então renuncio.
– Faça o que achar correto.
Ele esqueceu das fritas e tomou mais cerveja, e isso pareceu lhe dar mais determinação. – Você citou um regulamento falso para manter Bowers fora desse caso por
48 horas.
– Ele foi atingido por um tiro. Eu estava fazendo isso pelo bem do Bureau. Para o bem dele.
– Pode não ser assim que o Escritório de Responsabilidade Profissional vai enxergar isso. Todos nós sabemos do seu histórico com Bowers; você o persegue há anos.
Eu o coloquei no caso, e mesmo ele estando disposto a continuar trabalhando, e sendo fisicamente capaz, você mentiu para ele, tirou-o do caso e prejudicou a investigação.
Isso poderia ter colocado a vida de inocentes em risco.
– Isso é um absurdo.
A voz dele ficou mais suave, porém mais fria. – Você não acompanhou o caso para garantir que o médico forense identificasse corretamente o corpo encontrado no centro
de primatas na terça-feira à noite. Se você tivesse acompanhado, Mollie ainda poderia estar viva. Há duas horas, a família Summie entrou com um processo contra o
Bureau. Agora isso está sobre seus ombros. E você terá que responder por isso.
Margaret não tinha ouvido falar sobre o processo e não sabia o que dizer.
– Se você quer jogar duro, Margaret, eu sei jogar duro.
– Com todo o respeito, senhor, eu pago para ver.
Um silêncio tenso.
– Você sabe onde ela está? – Margaret perguntou. – Renée Lebreau.
– Não.
– Você sabe por que ela pode ter desaparecido essa semana?
Uma tristeza profunda cruzou seu rosto, e Margaret ficou chocada ao ver como seu comportamento mudou rapidamente. – Basque – ele disse. A tensão na palavra mostrou
a Margaret que Greg não conhecia Renée apenas casualmente. – Eu estava errado sobre ele.
– Então agora você acredita que ele é culpado?
Nenhuma resposta.
– Ela está morta, Greg?
Ele balançou a cabeça.
– Eu não sei. Não a vejo há mais de um ano – Margaret não tinha certeza se acreditava nisso. Ela esperou que ele continuasse.
Rodale segurou a cerveja com as mãos, e ela percebeu que ele parecia pequeno e amedrontado. Mas ela estava atenta. Ela aprendeu há muito tempo que quando as pessoas
sentem medo elas ficam desesperadas. E pessoas desesperadas tomam medidas desesperadas.
Ele tomou fôlego e a olhou nos olhos. – Pense no que falei sobre você e Bowers. Seu último contato com o Escritório de Responsabilidade Profissional acabou com você
enfiada em um escritório-satélite na Carolina do Norte por quanto tempo? Quase cinco anos? Pense no seu futuro, Margaret.
– Ah, estou pensando, Greg – ela se levantou. – Por isso vim aqui essa noite.
Então ela se dirigiu à porta e foi para casa preparar a declaração que daria para a imprensa amanhã de manhã.
99
Lien-hua e eu estávamos na rodovia a caminho de Quantico.
Verifiquei minhas mensagens de texto novamente. Tessa estava em casa, estava bem e eu estava começando a me sentir um pai superprotetor: e não era um sentimento
ruim. Pedi para Lien-hua mandar uma mensagem para Tessa por mim, perguntando o que ela estava fazendo, e ela respondeu: “nd d+ db c/ dw.”
Eu sabia que nd d+ db era gíria de mensagem de texto para “Nada de mais, de boa”.
Imaginei que c/ fosse abreviação de com e dw deveria ser detetive Warren.
Eu queria que fosse fácil assim desvendar esse caso.
Quando Lien-hua guardou o telefone, ela disse: – Então, quais são esses túneis que você gostaria de explorar?
– Psicopatologia e reforma da justiça.
Um momento. – Continue.
– Eis o que eu estive pensando. O deputado tem um relacionamento financeiro com toda essa indústria de pesquisa neurocientífica.
– Isso é Washington, Pat. Favores especiais, lobistas. Política como sempre.
– Exceto que, pelo local do assassinato de Twana, isso se liga ao caso.
Além disso, pessoas só fazem lobby quando têm um objetivo. E quase sempre é dinheiro ou moral, ter grana ou ter razão.
– Isso parece criação de perfil.
– É só uma observação.
– Não, com certeza é criação de perfil. Acho que estou te vencendo pelo cansaço.
– Bem, eu não vou discutir isso, mas é o seguinte: a Fundação Gunderson está pesquisando metacognição primata, neurociência e agressão, a neurologia da violência.
Enquanto isso, Fischer está copatrocinando uma lei que vai fornecer fundos federais para testes in vitro de bebês sobre distúrbios neurológicos e genéticos.
Ela ouviu silenciosamente. – Eu não sabia disso.
– E duas das maiores patrocinadoras de suas campanhas são empresas que realizam esse serviço.
– Elas se beneficiariam muito se a lei fosse aprovada.
– E se elas se beneficiam, ele se beneficia.
Silêncio. – Como você acha que isso se relaciona com os crimes?
– Não tenho certeza, mas no contexto dos arquivos do Projeto Rukh e da pesquisa da Fundação Gunderson, e se cientistas pudessem fazer isso?
Como uma criadora de perfis, Lien-hua era uma das maiores especialistas do Bureau em psicologia criminal. Eu estava ansioso para ouvir a opinião dela sobre isso.
Continuei: – E se fosse realmente possível identificar as condições neurológicas ou genéticas específicas que causam comportamentos violentos ou psicopatologias?
– Nós já conhecemos alguns dos fatores neurológicos – ela disse –, mas o comportamento nunca poderia ser engessado desse jeito, de modo tão conclusivo. Existem coisas
demais que influenciam nossas decisões e condicionam e afetam nosso comportamento. Você sabe disso tão bem quanto eu.
– Criação, socialização, pistas ambientais, diferenças neurológicas, composição genética, desequilíbrios químicos – algumas pessoas até acham que forças espirituais
estão em jogo...
– Sim, mas não podemos culpar genes ruins ou nossos pais ou o diabo por nossos crimes. Cada um de nós é responsável por suas próprias escolhas.
– Não se não tivermos livre-arbítrio.
Uma leve pausa.
– As experiências do dr. Libet.
– Sim.
Ela balançou a cabeça. – Essa tarde eu dei uma olhada nos artigos que você postou nos arquivos eletrônicos. Existe um grande número de fatores precipitantes que
podem ter produzido a atividade neural precognitiva que ele encontrou: expectativa do participante, treinamento mental, orientação de objetivo, ou para impressionar
o pesquisador ou confundir o experimento. Além do mais, existe um campo crescente de pesquisa que parece indicar que não existe algo como o inconsciente.
– Mas, Lien-hua, existem ações que realizamos das quais não temos consciência.
– Sim, mas em vez de uma dualidade entre o consciente e o inconsciente, é mais provável que o cérebro processe informações ao longo de um continuum, e que a intencionalidade
ocorra em pontos diferentes, dependendo dos estímulos envolvidos na complexidade das decisões que são feitas.
Aquilo fazia sentido para mim, parecia quase óbvio. – Certo, mas considere como algumas pessoas estão interpretando as descobertas de Libet. E se você acreditasse
que o livre-arbítrio fosse, na verdade, uma ilusão? Que o instinto supera a intenção consciente. Que estamos presos a agir inequivocamente de certos modos quando
expostos a certos estímulos em certos momentos. Tribunais já decidiram a favor dessa defesa.
Ela ficou quieta.
– Você leu sobre essas decisões? Nos arquivos.
Ela suspirou de um jeito incerto. – Li.
– Então – eu disse –, supondo que interpretamos as descobertas como algumas pessoas interpretaram –, que o comportamento é direta e fixamente provocado por fatores
genéticos e neurológicos –, então, se compreendermos o suficiente sobre o cérebro, poderíamos dizer, por exames genéticos ou neurológicos, quem poderia ser um psicopata
– olhei para ela. – A título de discussão.
– Deixando de lado a epigenética, o fato de que o comportamento e o ambiente podem alterar epigenomas, certo, vamos considerar isso.
– Junte isso com os testes in vitro... – as palavras de Margaret sobre as mudanças da visão da sociedade sobre direito à vida vieram à minha cabeça.
Reforma da justiça.
A política do deputado Fischer: uma abordagem mais progressiva para conter o comportamento criminal.
E as peças se encaixaram em seus lugares.
– Lien-hua, é isso. Testar os ainda não nascidos, descobrir quem vai crescer e exibir comportamento psicopatológico...
– E abortá-los – ela disse suavemente, ecoando minha conclusão.
Motivos.
Isso pode mudar tudo.
– Se livrar dos assassinos em série – ela disse –, antes mesmo deles matarem. Extirpar a criminalidade eliminando potenciais criminosos.
– Justiça preventiva.
A pena de morte. Para crimes que nunca foram cometidos.
– Se você concordar que o aborto é moralmente aceitável – Lien-hua disse sensivelmente, sabendo que era um assunto delicado por causa do quão perto Christie chegou
de abortar Tessa –, e supondo que você concorde com o veredicto que os tribunais começaram a dar, que em alguns casos não somos moralmente responsáveis por nosso
comportamento porque ele é, na falta de um termo melhor, instintivo, então o raciocínio faz perfeito sentido. Diga a uma mãe que seu filho vai crescer para ser outro
Jeffrey Dahmer ou Sevren Adkins, e quem não interromperia a gravidez?
– Mas isso não impediria as psicopatologias – eu disse.
– Não – sua voz era suave, mas tensa. – Não impediria. Pedófilos. Estupradores. Qual é a linha limítrofe? Talvez pessoas que vão crescer para ser maníaco-depressivas,
ou com inclinação para vício em drogas...
– Mas se não existir o livre-arbítrio, não existe linha limítrofe. – Pensei nos países que pressionam as mulheres a abortarem suas filhas, o tipo mais letal de discriminação
sexual do mundo. – Livre-se de qualquer um que aqueles no poder não acharem que será bom para a sociedade.
– Não – Lien-hua balançou a cabeça. – Isso é loucura. Você não pode determinar o que alguém vai fazer, apenas o que eles podem estar inclinados a fazer. Somos livres
para escolher, para agir ou não agir.
– Não se você interpretar as descobertas do dr. Libet como algumas pessoas estão interpretando.
– Os testes neurológicos não podem nunca ser tão conclusivos.
– Eles já foram conclusivos o suficiente para livrar pessoas que cometeram assassinato em primeiro grau. Eu não acho que a diferença seja grande. É a engenharia
social em nome da reforma da justiça, e como líder da minoria, Fischer tem poder suficiente para realmente fazer algo como isso passar pelo congresso.
Uma pausa.
Então ela disse: – As pessoas não deveriam ter direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade? Temos o direito de fazer nossas próprias escolhas. De determinar
nosso futuro.
– Mas e se não formos capazes disso? Se o livre-arbítrio e a responsabilidade moral forem apenas ilusão?
– Então a busca pela felicidade seria uma ilusão também.
– Assim como a liberdade – eu disse.
O comentário causou um silêncio palpável.
Peguei a saída para a Academia.
Mais cedo, quando estava no posto de comando, eu relacionei as ligações avançando no tempo. Agora, com uma renovada sensação de urgência, fiz o caminho inverso mentalmente.
Rodale ligado com Lebreau.
Lebreau ligada com Basque.
Basque ligado com Lansing.
Lansing ligado com o vice-presidente Fischer.
Vice-presidente Fischer ligado com...
– Durante a tentativa de assassinato – eu disse –, dois quartos do oitavo andar foram usados. Sabemos se ambos foram pagos por Hadron Brady?
– Lembra? O hotel não mantém os registros de tanto tempo.
Quem manteria?
Quem manteria os registros...
– Não – eu disse, pensando alto. – Nós não temos registros dos quartos, mas existem registros dos pagamentos.
– Não, Pat, eles não existem mais. Eles...
– Mas ainda assim, existem.
Ela olhou para mim com curiosidade. – O que você está pensando?
– A seiscentos dólares por quarto, a maioria das pessoas não pagaria a estadia em dinheiro.
Então ela entendeu. – Cartões de crédito.
– Sim.
– A-ha – um leve sorriso. – Desde o atentado de 11 de setembro, o governo requisita que todas as companhias de cartão de crédito mantenham registros de todas as
suas transações por dez anos para ajudar a rastrear suspeitos de terrorismo.
– Exatamente. Não poderemos dizer quem ficou em cada quarto, mas podemos descobrir os nomes das pessoas que pagaram por um quarto no Lincoln Towers Hotel em 15 ou
16 de março, seis anos atrás.
– E podemos ver se alguma pessoa da lista de suspeitos usou um cartão para pagar por um quarto – ela concluiu minha linha de raciocínio.
– Sim. Ou alguém chamado Patricia E.
Ela pegou o telefone. – Pat, preciso dizer, a maneira como você liga as coisas às vezes... Não sei, você me lembra o Sherlock Holmes.
– Não diga isso para Tessa. Ela pode acabar concordando com você.
– Viu só?
– Acredite, vindo dela isso não seria um elogio.
– Vamos precisar de mandados.
– Então precisaremos de Margaret – respondi.
100
Falta 1 hora...
20h29
Margaret conseguiu o que precisávamos.
Ela levou menos de cinco minutos para ligar para um juiz e conseguir os mandados necessários para entrarmos em contato com as quatro maiores companhias de cartão
de crédito e começar o processo de acessar os gastos com cartão de crédito nas datas em que estávamos procurando.
Virei na estrada que levava até a Academia. O posto de segurança ficava a quase quinhentos metros dali.
Lien-hua ligou para Angela para pedir que sua equipe começasse com o projeto e descobriu que ela estava no meio da reanálise do laptop de Mollie Fischer – aparentemente,
outro técnico fracassou em rastrear os e-mails enviados e recebidos, e Angela ficou com a tarefa de recuperá-los.
Quando Lien-hua desligou, ela me disse: – Ela parecia meio sobrecarregada.
– Para variar.
Dirigi até o portão. Apenas um carro estava na minha frente.
O sargento Eric Hastings, o jovem fuzileiro que estava trabalhando terça-feira à noite quando eu cheguei com Tessa para o painel de discussão, e também quem tinha
percebido a discrepância na placa de Annette Larotte, estava terminando de verificar a carteira de motorista de um homem numa minivan Toyota à nossa frente.
Quando ele o liberou, segui em frente.
– Boa noite, senhor – ele disse quando se aproximou de minha janela.
– Como vai, sargento – era mais um cumprimento do que uma pergunta.
– Estou bem, senhor.
Ele terminou de verificar nossas credenciais e enquanto Lien-hua e eu as guardávamos, percebi que Hastings parecia levemente decepcionado quando inspecionou o interior
do carro. Imaginei se não era porque minha enteada bonita não estava comigo. O pai dentro de mim não gostou da possibilidade, mas naquele momento me segurei para
não comentar nada. Não era a hora.
Agora não, mas depois. Eric deve ser pelo menos três anos mais velho que ela...
Ele abriu o portão, se despediu e eu segui em frente.
– Estou preocupada – Lien-hua disse. – Com Angela.
Eu ainda estava pensando em Hastings. – Tenho certeza de que ela está bem.
– O escritório dela é no mesmo corredor da sala de evidências.
Era uma dica óbvia, e eu entendi. – Tudo bem. Nós passamos por lá no caminho e vemos como ela está.
Estacionei perto da ala leste do laboratório do FBI, e entramos.
Brad estacionou o carro.
De certo modo, Bowers estava certo sobre motivos – o infrator, nesse caso, tinha mais de um. O jogo não apenas se baseava em vingança, era sobre revelar uma verdade
maior.
Sobre impedir pessoas de brincar de Deus, impedi-las de adulterar a matéria da natureza humana que Ele havia projetado.
Ele saiu do carro.
Brad calculou que levaria uns quinze minutos para caminhar através das árvores até a casa, o que significava que ele chegaria lá exatamente quando o crepúsculo estaria
se aprofundando na noite.
Ótimo. Porque ele precisava que estivesse escuro para o clímax.
Ele mandou a mensagem de texto que faria tudo funcionar e, carregando a terceira e última placa de carro, entrou na floresta.
Angela tem um coração enorme, mas normalmente exibe uma expressão levemente preocupada. Trinta e tantos anos. Levemente acima do peso.
Óculos grossos. Grandes brincos de argola. Olhos gentis mas ansiosos.
Três telas de computador ficavam na mesa à frente dela. A da esquerda estava percorrendo centenas de nomes, provavelmente da busca de cartão de crédito. A tela da
direita estava cheia de pequenos ícones de transmissões ao vivo de vídeo do sistema de trânsito, verificando rostos.
A tela do centro mostrava um spam de propaganda de e-mail.
Pensei nas permutações de letras, mas no momento não perguntei.
Angela nos olhou momentaneamente. Ela parecia mais preocupada que o normal.
– Você está bem? – Lien-hua perguntou.
– Dê uma olhada nisso – ela direcionou nossa atenção para a tela do meio, então deslizou a propaganda para a esquerda para revelar com mais clareza um temporizador
em que eu não havia reparado logo que entramos.
Uma contagem regressiva.
Fim do jogo: 49 minutos e 15 segundos
Fim do jogo: 49 minutos e 14 segundos
Fim do jogo: 49 minutos e 13 segundos
Imediatamente, pensei nos traços de C-4 militar encontrados na parte de trás da van que os assassinos usaram.
– Uma bomba? – eu disse.
– Não sei – Angela respondeu. – O temporizador estava embutido no e-mail que abri.
– Quando a contagem começou? –Lien-hua perguntou.
– A mensagem chegou mais cedo, hoje à tarde, às 15h29.
Fim do jogo: 48 minutos e 53 segundos
Lien-hua olhou para o relógio do computador, fez um cálculo rápido. – Então 21h29. Mas o que acontece então?
– Pode não ser nada – Angela disse.
– Não – Lien-hua respondeu. – É algo.
Uma explosão?
Outro assassinato?
O que é o fim do jogo?
Considerando o C-4 e a explosão que aconteceu no posto de gasolina na noite passada...
Fim do jogo: 48 minutos e 22 segundos
– Poderia o próprio laptop ser um dispositivo explosivo? – eu disse.
Angela balançou a cabeça. – Eu o inspecionei por dentro e por fora hoje de manhã. É só um laptop, nada mais.
– É possível que ele seja um detonador, então? – Lien-hua perguntou. – Ou ele poderia ser usado para iniciar uma sequência de detonação?
Uma leve hesitação. – Ele mandou uma resposta automática para o remetente.
Eu fiquei um pouco surpreso por ela ainda não ter verificado isso. – Abra-a.
A resposta apareceu. Em sua maioria, jargão técnico, mas a linha de assunto incluía um aviso de “retorno ao remetente”. Era só isso.
– Retorno ao remetente – Lien-hua disse reflexivamente. – Se existe uma bomba, poderia ser uma mensagem: “retorno ao remetente”, como em “retorno para Deus”.
Isso parecia fazer sentido, dada a maneira como esses assassinos pensavam.
– Você pode rastrear isso? – perguntei a Angela. – Descobrir de onde a propaganda foi enviada, ou quem recebeu a resposta?
Fim do jogo: 47 minutos e 4 segundos
Ela digitou, então disse: – A propaganda foi enviada para esse computador de um Motorola Droid – ela apontou para as coordenadas de latitude e longitude na tela.
Lien-hua sacou o telefone e ligou para o posto de comando para que mandassem um carro para o local no centro de Washington, DC.
Inclinei-me sobre a mesa de Angela. – Dá para saber para onde a resposta foi? Quem a recebeu?
Angela explicou algo sobre um host de servidor de e-mail e um modem de celular Cybrous 17 enviando partes de código que poderiam ser acessadas de qualquer lugar.
– Talvez seja possível rastreá-lo, mas vai demorar. Uma hora, talvez mais – ela pressionou um botão em seu teclado. – Vou colocar uma equipe nisso.
Uma hora.
Isso é muito tempo...
– Tem certeza de que não há nada explosivo nesse laptop? – perguntei a ela.
– Sim – mas ela parecia mais incerta dessa vez. – Acho que você pode pedir para o esquadrão antibomba verificá-lo, só para garantir.
Lien-hua assentiu, finalizou uma ligação e fez outra. Minha atenção se voltou para os monitores de computador. – Achamos alguma coisa sobre Basque ou Adkins?
– Não. Mas eu terminei aquelas permutações para você – Angela digitou no teclado e o meio da tela mudou para uma aparente infinidade de combinações de letras.
– Acho que você deveria insistir em interpretá-las como: “Te prometi uma” – ela disse. – Lacey analisou as outras combinações de letras que contêm palavras verdadeiras,
mas ela acha que as letras na ordem original fazem mais... – fez uma longa pausa e olhou para a tela, para uma pequena parte da lista que continha praticamente 120.000.000
de conjuntos de letras.
– O que foi?
– Patricia E. – ela murmurou. – Como eu pude ser tão burra?
– Você sabe quem é Patricia E.? Quem é?
Angela abriu a calculadora de permutações de Lacey e digitou o nome PATRICIAE.
Instantaneamente, milhares de combinações de nove letras começaram a rolar pela tela.
Angela digitou no teclado e parou a lista. Rolou para cima algumas linhas. Então apontou.
ARIAPETIC.
– Um anagrama – sussurrei. – Angela, você é um gênio – tentei pensar nas implicações. Calvin descobrira a pista sobre Patricia E. há três semanas, o que significava
que de algum modo ele sabia sobre esses crimes.
Ou o assassino sabia sobre esse bilhete.
Mas como...?
– O esquadrão antibomba está a caminho – Lien-hua disse, guardando o telefone.
– Angela encontrou Aria Petic – eu lhe disse.
– Onde?
– Não onde. Quem – Angela disse. – É Patricia E – ela explicou a ligação, mas estava olhando para o laptop de Mollie desconfortavelmente o tempo todo. – Escute,
se isso é uma bomba, eu não a quero em lugar nenhum perto de Lacey.
Ela tinha razão. Se o laptop fosse um dispositivo explosivo, não fazia sentido deixá-lo no prédio. – Vou levá-lo para o estacionamento – eu disse.
– Não, Pat. Deixo-o aqui – Lien-hua objetou. – O esquadrão anti-bomba vai chegar em alguns minutos.
– Angela já checou o laptop hoje de manhã – eu disse. – Não existe indicações de que seja uma bomba; tudo que temos é esse temporizador.
Além do mais, ele rodou o dia todo e ainda faltam quarenta minutos antes que a contagem regressiva termine. Vou ficar bem.
Coloquei luvas de látex para não deixar mais um conjunto de impressões digitais no laptop. – Ligue para Cassidy e Farraday – eu disse a Lien-hua – e descubra onde
estão. Seria bom... manter contato.
Ela ficou em silêncio, então pegou seu telefone. – Tome cuidado.
– Vou tomar.
– Por favor, não se exploda.
– Não vou.
O dia esmoreceu no horizonte. Uma lasca de luz do sol reluziu por debaixo das nuvens e então desapareceu.
E então era noite.
Brad ficou surpreso com o fato de a detetive Warren estar lá; ele esperava que Tessa estivesse sozinha, mas, na verdade, era perfeito. Ele não poderia ter planejado
um final mais apropriado para o jogo.
Ele se ajoelhou ao lado do para-choque traseiro do carro de Cheyenne e desparafusou a placa.
Ele podia ver as duas através de uma fresta na cortina da sala e ficou tentado a sorrir, a regozijar, mas se segurou e continuou atento. O que ele tinha em mente
era tão requintado, tão devastador, que ninguém estaria preparado para isso.
A revanche que ele pediu a Bowers.
Esperando por oito meses.
E agora a detetive Cheyenne teria um dos papéis mais importantes.
Ele terminou de trocar as placas e voltou para o meio das árvores. Sacou sua Walther P99.
Em seguida mandou a última mensagem de texto para a próxima vítima.
101
Faltam 34 minutos...
20h55
Enquanto eu esperava pelo esquadrão antibomba, liguei para o posto de comando e lhes disse para procurar alguma bomba na van para deficientes, no Honda Accord que
foi deixado na frente do quartel-general da polícia, em todas as cenas de crime relacionadas, na casa do deputado, e para notificar todas as agências que estavam
trabalhando, mesmo que perifericamente, na força-tarefa para ficarem em alerta.
Apesar de todos esses passos, no entanto, considerando a maneira como esses assassinos agiam, se eles realmente tivessem deixado uma bomba em algum lugar, eu não
esperava que seria em um lugar óbvio.
Não.
Desorientação o tempo todo.
Pensei no que disse a Annette na quarta-feira de manhã sobre a quarta premissa da criminologia ambiental: progressão.
A cada crime adicional, os infratores tornam-se mais eficientes, aprendem com seus erros, desenvolvem preferências por atividades e comportamento específicos...
Fim do jogo: 31 minutos e 9 segundos
O esquadrão antibomba chegou e, assim que entreguei o laptop de Mollie, corri para dentro para descobrir se Lien-hua tinha conseguido localizar os agentes Cassidy
e Farraday.
Tessa e a detetive Warren se encaravam, o tabuleiro de xadrez entre elas.
– Você está jogando melhor hoje – a detetive Warren disse.
– Estou tentando pensar como você.
– A-ha.
Tessa gastou tempo avaliando a posição das peças no tabuleiro. – Eu queria perguntar uma coisa pra você.
– Claro. O que é?
Tessa moveu sua rainha. – Você é católica, certo?
A detetive Warren analisou o tabuleiro. – Sou.
– E católicos acreditam que as pessoas nascem más, não é?
– Não é assim tão simples, mas...
– Bem, no pecado, ou algo assim. O pecado original.
A detetive Warren ergueu os olhos do tabuleiro. – Acreditamos que as pessoas nascem com uma natureza decaída, que todos nós precisamos de um salvador – seu tom não
era defensivo e nem de quem dava um sermão, mas ela parecia surpresa pelo rumo que a conversa estava tomando. – Assista ao noticiário por dez minutos e você vai
ver como isso é verdade.
Tessa ficou em silêncio. As palavras de Patrick na noite passada vieram à sua cabeça: “Rachaduras... Não acho que possamos fechá-las... Não acho que alguém já tenha
conseguido...”
A detetive Warren voltou sua atenção para as peças de xadrez. Deslizou uma de suas torres para bloquear a região em que Tessa estava de olho na sua rainha.
– Uma natureza decaída – Tessa disse.
– Sim.
– Então é essa a diferença entre nós e os outros animais? Que somos decaídos e eles não? Que precisamos de um salvador e eles não?
A detetive Warren olhou para Tessa de certo modo suspeito. – Essa conversa não é algum tipo de estratégia para me fazer perder a concentração no jogo, né?
– Talvez.
– A-ha. Bem... Isso é uma coisa que nos diferencia, sim – parecia que ela ia falar mais alguma coisa, mas não falou.
Seres humanos sendo humanos.
Seguindo seus corações.
Tessa movimentou-se.
A detetive Warren contra-atacou.
– E quanto a você, Tessa? O que você acha que nos faz diferentes?
Seus pensamentos voltaram para suas leituras e pesquisas recentes. – Você já leu O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson?
– Já ouvi falar, claro, mas não, creio que nunca o li.
– Bem, não é que o Dr. Jekyll é o cientista louco ou algo do tipo, como ele sempre é retratado. Ele não estava tentando criar um monstro, mas isolar um.
– Isolar um?
– Ele queria separar sua natureza boa da ruim. Mas não deu muito certo.
– O ruim dominou?
– Pois é. E quando ele foi liberado, não tinha mais como ser detido – Tessa moveu um de seus peões. – Enfim, na noite passada Patrick e eu estávamos falando sobre
ser verdadeiro com seu coração e sobre como esses caras, como esses que o Bureau está procurando essa semana, como eles estão sendo verdadeiros com seus corações
quando fazem essas coisas.
– À natureza decaída. Mas...
– Às rachaduras.
– Rachaduras?
– É coisa do Patrick. Enfim, se for verdade que evoluímos de primatas, talvez não sejamos diferentes dos animais em nada...
O toque do telefone celular da detetive Warren a interrompeu, então Tessa concluiu rapidamente. – Quer dizer, como podemos não ser verdadeiros com o que somos?
Como alguma coisa pode agir de uma maneira que é incongruente à sua natureza?
– Incongruente à sua natureza – a detetive Warren pegou o telefone e olhou para a tela. – Segure esse pensamento. É o seu pai.
102
Faltam 25 minutos...
21h04
– Cheyenne – eu estava a caminho da Sala de Evidências 3a. – Algo aconteceu há alguns minutos. Estamos considerando a possibilidade de haver uma bomba programada
para explodir às 21h29.
– Uma bomba? Onde?
– Não sabemos. Está tudo bem aí?
– Estamos só conversando sobre o bem e o mal, Jekyll e Hyde, pecado original. Nada de mais. Conte-me sobre a bomba.
Angela acenou para mim. Entrei em seu escritório e vi que Lacey terminara a análise das despesas de cartão de crédito no Lincoln Towers Hotel na noite em que Hadron
Brady tentou atirar no vice-presidente.
Nenhuma Patricia E.
Nenhuma Aria Petic.
Ninguém da lista de suspeitos.
– Pat? – Cheyenne disse.
– Desculpa. Escute, foram encontrados traços de C-4 na van. Temos um temporizador, uma contagem regressiva que foi enviada por e-mail para o laptop de Mollie. Isso
é tudo.
– Eles estavam lá quando a van foi examinada pela primeira vez?
– O quê?
– Os traços de C-4. Eu li os arquivos, Pat. Aquela van foi examinada na quarta-feira. Talvez a ERT não tenha encontrado os traços da primeira vez porque eles não
estavam lá antes.
Agora tínhamos uma ideia interessante.
Cassidy e Farraday liberaram a van e então a verificaram novamente.
Plantar os traços de explosivos por causa da explosão do posto de gasolina?
Outra pista para um crime futuro?
Rabisquei um bilhete para Angela procurar os nomes de Cassidy e Farraday na lista de cartões de crédito. Ela me olhou incrédula, mas digitou no teclado.
Cheyenne disse: – Tem algo que eu possa fazer daqui?
– Eu ligo se houver; irei para casa assim que puder, mas as coisas ainda estão meio no ar agora.
Ninguém com o nome de Cassidy ou de Farraday pagara por um quarto no hotel nem na noite anterior ao atentado, nem no dia em que ele aconteceu. Apontei para a impressora,
para que Angela soubesse que eu queria uma cópia dos nomes que ela tinha.
– Tudo bem – Cheyenne disse. – Tome cuidado – a mesma coisa que Lien-hua havia dito há alguns minutos.
– Vou tomar. Fique de olho em Tessa, tudo bem? Hoje, não sei, tudo parece fora de equilíbrio.
– Não se preocupe. Ela está segura comigo.
Ela desligou, a impressão foi concluída e eu peguei as folhas. Estudei os nomes.
A... B... C...
Eu nem tinha muita certeza do que estava procurando.
D... E... F...
Apenas um nome que eu reconhecesse. Qualquer um.
G... H... I...
Qualquer coisa fora do normal.
J... K... L...
Parei.
Olhei.
Um nome: Lebreau, Renée.
103
Todo a rede de cavernas por onde eu estava procurando desmoronou.
Lebreau desapareceu às 11h da terça-feira; isso lhe daria tempo sufi-ciente para chegar em Washington antes do assassinato de Twana na terça-feira à noite...
Renée Lebreau tinha ligações com Basque.
Lien-hua apareceu na porta. Eu disse a ela: – O cartão de crédito da professora Lebreau foi usado para pagar por um quarto no Lincoln Towers no dia da tentativa
de assassinato.
– O quê? – ela parecia chocada.
– Eu sei. Não tenho certeza do que isso significa. Você conseguiu encontrar Cassidy e Farraday?
– Falei com Natasha. Ambos já tinham ido para casa. Perguntei se ela podia voltar para avaliar algumas evidências comigo. Ela está a caminho.
Então Lebreau estava no hotel?
– Pelo menos seu cartão de crédito estava. E quanto a Cassidy?
– Não consegui falar com ele. Natasha deve chegar aqui em uns quinze minutos.
Chequei as horas.
21h10.
Dezenove minutos antes do fim do jogo.
Qualquer que ele fosse.
– Viemos aqui para rever as evidências no laboratório – eu disse, indo para o corredor. – Vamos fazer isso antes que ela chegue.
Brad se posicionou-se entre as árvores.
Tudo certo.
As coisas podiam acontecer de várias maneiras essa noite, mas o resultado seria o mesmo. Ele garantiria que duas pessoas morreriam e Bowers seria ferido de um jeito
que jamais cicatrizaria.
Existem muitos tipos de morte. Física, espiritual, emocional, psicológica.
Sim.
E esse seria o jeito mais apropriado de todos.
Tanto para o agente Bowers.
Quanto para sua enteada.
Sala de Evidências 3a.
Todas as evidências coletadas nas cenas dos crimes estavam à nossa frente, seladas e numeradas em sacos de evidências: palha do centro de primatas, as tiras de couro
que o assassino usou, o conteúdo da bolsa de Mollie Fischer, o cartucho da bala que atravessou meu braço, as duas placas de carro. Ao lado delas estavam as malas
ensanguentadas, a cadeira de rodas e o carpete da van.
Vamos, Pat, o que você está deixando passar?
– Precisamos começar do começo – eu disse para Lien-hua, mas eu sabia que não tínhamos tempo, e pela cara dela, ela estava pensando a mesma coisa. Seis técnicos
do laboratório trabalhavam silenciosamente do outro lado da sala, nos dando algum espaço.
– Certo – Lien-hua deslizou os sacos com a palha ensanguentada para o lado para focarmos nossa atenção nele. – Terça-feira: Twana Summie é sequestrada e assassinada,
mas os assassinos fazem parecer que é o corpo de Mollie Fischer.
– Não, vamos começar antes disso, no bilhete.
– Bilhete?
– O bilhete de Calvin que mencionava Patricia E., o anagrama de Aria Petic. Isso não é uma coincidência de jeito nenhum. Ele morreu mês passado. Como Calvin descobriu
isso?
– Ou, por outro lado, como os assassinos descobriram sobre o bilhete?
– Exatamente.
– Quantas pessoas sabem sobre esse bilhete?
– Não tenho certeza. Angela. Ralph. Eu. Algumas outras pessoas.
Cheyenne. Eu não fiz muito alarde sobre isso.
– E como foi mesmo que você o encontrou?
– Calvin começou a suspeitar que Giovanni era responsável pelos assassinatos pelos quais Basque havia sido julgado. Ele estava analisando isso quando foi atacado.
Então, enquanto ele estava em coma, eu encontrei o bilhete nas coisas dele.
– E não temos ideia de como ele descobriu a informação?
Examinei a pilha de evidências e tive uma ideia. Talvez ele não tenha descoberto.
H814b Patricia E.
Sim. É claro!
– E se essa pista sobre Patricia – eu disse – não tiver nada a ver com Giovanni ou Basque?
– Mas por causa do nome Aria Petic, a menção de Patricia E. está claramente ligada a esse caso.
– Não, não, escute – escrevi a pista em um pedaço de papel e apontei para o nome: Patricia E. – Como os assassinos deixaram um anagrama para Patricia E. no centro
de primatas, temos uma ligação com a segunda parte do bilhete. E aqui. H814b. Eles mataram Mollie no quarto 814, para ligar o hotel a Hadron Brady...
Ela bateu na mesa. – Suas iniciais: H.B.
– O que significa que de algum modo os assassinos bolaram isso tudo no mês passado.
Mas por que escrever um anagrama? Por que um código?
– Não. Espere – balancei a cabeça. – Calvin era um homem da ciência. Para ele, tudo girava em torno de clareza, especificidade. Por que o b não é maiúsculo? E por
que acrescentar outra camada de obscuridade a um caso criando essa cifra...
– A menos que ele não tenha descoberto; a menos que isso tenha sido dado para ele.
Minha cabeça girava. – Em ambos os casos, a gênese de tudo parece ser aquela tentativa de assassinato. Lebreau estava lá, Brady estava lá. O vice-presidente Fischer
e...
Eu esperei, incerto se queria usar seu nome.
– Paul Lansing – ela disse.
– Sim – assenti. – Exatamente.
Olhei para ela e deixei meu silêncio falar por mim.
– Pat, isso é loucura – Lien-hua disse incrédula. – Não é possível que ele tenha algo a ver com isso.
Eu não sabia o número de telefone de Lansing, mas imaginei que Lacey poderia encontrá-lo para mim. – Preciso falar com Angela.
Quando corri na direção do escritório dela, Lien-hua me acompanhou. – Pat, você não acha mesmo que Lansing está envolvido, né?
– Não.
– Mas então...
– Só um segundo – eu estava na porta de Angela. – Você pode conseguir os números de telefone de todos os Paul Remmer Lansing de Wyoming? – pedi a ela.
Ela digitava. – Não. Nada.
Seus advogados devem ter o número.
– Consiga para mim o número de Keegan Wilby em Washington, DC.
– Pat, isso é loucura – Lien-hua disse.
– Eu sei.
Angela encontrou o número do celular de Wilby. Eu liguei, mas ele não atendeu. Vamos!
Deixei uma mensagem para ele me ligar assim que pudesse com o número de Lansing.
As cicatrizes. Fim do jogo.
A placa deixada no carro de Larotte estavam registradas em Denver,
onde você vive.
Lien-hua colocou uma mão no meu ombro. – Pat, o que você está pensando?
– Tessa. Preciso ver como ela está. Você fica aqui, espere por Natasha.
– Me liga.
– Ligo.
Então lembrei que Paul tinha mandado um e-mail para Tessa na quarta-feira, pedindo que ela ligasse para ele.
Ela vai ter o número.
Liguei para minha enteada enquanto me lançava pela porta e corria até meu carro.
104
Faltam 10 minutos...
21h19
– Você sabe o número do seu pai? – eu estava saindo da minha vaga no estacionamento. – O número do telefone?
– Não.
– Mas como você não...
– Ele não passou pra mim. Patrick, o que está acontecendo? – sua voz tinha um toque de medo. – Tem uma bomba em algum lugar? – ela deve ter ouvido a conversa de
Cheyenne comigo ao telefone.
– Eu não sei. Escute, se Paul entrar em contato com você, mandar algum e-mail, qualquer coisa, eu quero que você me ligue imediatamente.
Fique em casa e certifique-se de que as portas estão trancadas.
– Você está me assustando.
– Não, não se assuste, apenas fique com a detetive Warren. Estarei em casa em alguns minutos.
– Paul fez alguma coisa?
– Não. Mas ele pode saber quem fez. Não se preocupe – eu disse. – Estarei por aí umas 21h30.
Fim da ligação. Pisei fundo no acelerador e deixei a Academia.
Margaret Wellington estava pensando na ligação de Rodale com Lebreau quando entrou em casa, guardou a bolsa e colocou a chave no prato sobre o balcão, mas enquanto
ainda fazia essas coisas, um sutil e desconfortável calafrio começou a atravessá-la.
Seu cachorro não correu para saudá-la. – Vem, Lewis – sua voz soava solitária, emudecida pela casa vazia.
Nada.
– Venha aqui, menino.
Ele não veio.
– Lewis?
Silêncio.
Uma casa vazia e silenciosa.
Ele teria vindo se pudesse.
Margaret tirou os sapatos para poder se mover pela casa sem fazer barulho.
Sacou a arma.
E foi pelo corredor.
Oito minutos de casa.
Quem poderia ter descoberto sobre o passado de Lansing? Alguém nas forças policiais? Na NSA? Quem conheceria os registros financeiros do deputado e sua ligação com
a Fundação Gunderson?
Quem era Aria Petic?
Teria que ser uma mulher que tivesse informações internas sobre o instituto Gunderson e sobre a tentativa de assassinato contra o vice-presidente, alguém que esteve
em todas as cenas dos crimes, que construiu seu mapa mental de Washington, DC a partir de seu local de trabalho, que tivesse recursos praticamente ilimitados para
pesquisa nas pontas dos dedos, que conheceria o tempo de resposta da ERT...
Ah, sim.
Ela sabia sobre o porão do hotel, que você levou um tiro lá. Ela sabia!
Era isso.
Mas antes eu precisava ter certeza.
Ralph está indo para o Aeroporto Nacional Reagan. Perfeito.
Disquei seu número.
– Ei, cara – ele começou –, nós acabamos de pousar...
– Ralph – eu o interrompi. – Existem duas ligações de emergência sobre um triplo homicídio em Maryland no mês passado. Preciso que você peça para o laboratório fazer
uma análise de voz. Agora. Rápido, antes das 21h29.
– Do que você está falando?
Eu expliquei sobre a voz de quem estávamos procurando, e ele me disse que eu só poderia estar brincando. – Não estou brincando – eu disse. – Escute, a casa dela
é perto da sua. Consiga reforços e um esquadrão antibomba e vá até lá. Se as vozes combinarem...
– Tem certeza disso?
– Não, mas eu não quero correr o risco – fiz a curva na estrada municipal a mais de 110 km/h. – Vá até a casa, consiga a análise e entre em ação se tudo for confirmado.
– E quanto a você?
– Preciso falar com uma testemunha ocular.
Então procurei o telefone da sra. Rainey e liguei para ela. – Você tem um computador?
– Sim.
– Ligue-o. Entre no YouTube. E eu gostaria de falar com seu filho.
Margaret fez uma varredura inicial na casa.
Nenhum sinal de seu cachorro. Nenhum sinal de intrusos. Nada estava fora do lugar.
Alguém o levou!
O que significava que eles estiveram em sua casa.
E isso significava que eles provavelmente não deixaram nenhuma evidência de sua presença.
Ainda carregando sua Glock, ela começou uma busca mais detalhada.
Preste atenção, Margaret.
Pelo bem de Lewis.
Preste atenção.
A assassina era Chelsea Traye, a repórter investigativa da WXTN.
Danny Rainey a reconheceu na cobertura on-line da WXTN. – Mas o cabelo dela é diferente – ele disse. Aquilo não me surpreendeu, pois estava diferente quando ela
foi pega por um segundo no vídeo se passando por Aria Petic. Liguei para Ralph e descobri que a análise de voz também batia, confirmando minha suspeita. – Vá até
a casa! – eu disse a ele.
Fim da ligação.
Mas quem era o parceiro dela? Nick?
Os assassinos deixaram pistas para crimes futuros: eles deixaram a
nota fiscal do posto de gasolina, e então mataram o atendente... deixaram o carro de Mahan, e então o mataram... deixaram a bolsa de Mollie, e então a mataram...
deixaram as placas no carro de Annette...
Quem pensa assim tão para frente?
Meus pensamentos foram de novo para Sevren Adkins.
Mas ele estava morto...
Eles nunca encontraram o corpo, Pat.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Você nunca pode ter certeza de ter eliminado o impossível, lembra?
Ok, elimine essa possibilidade.
Liguei para Cheyenne.
TEP–ROM
ETI–1RE
O tamanho do corpo do suspeito masculino batia com o de Sevren, as cicatrizes faziam sentido, ambos eram canhotos, o suspeito favorecia a perna direita – Lembre-se:
Tessa enfiou uma tesoura na perna de Sevren Adkins quando ele a atacou.
Sevren conhecia explosivos... ele gostava de assistir...
Esperei Cheyenne atender. Por que ela está demorando tanto?
As placas:
TEP–ROM
ETI–1RE
Seis letras.
Cada placa tem seis caracteres.
Placas de Denver.
Cheyenne mora em Denver também.
Seis caracteres...
Ela atendeu.
– Cheyenne – comecei...
É você ou ela. Seu carro ou o dela.
Mas eu não iria parar e checar minha placa.
– Pat? O que foi?
– Seu carro está na frente de casa?
– O quê?
– Lá fora. Seu carro!
Ele deixa pistas que apontam para a próxima vítima.
– Você consegue ver a placa sem ir lá fora? – eu pisava fundo no acelerador.
Um momento se passou enquanto ela cruzava a sala. – Não, eu teria que ir lá fora.
– Não, é...
– Pat, o que está acontecendo?
– O quarto de Tessa. Tente do quarto de Tessa. A linha de visão será mais direta.
Apenas um assassino tinha me desafiado para uma revanche. O mesmo que deixava pistas de crimes futuros. Sevren Adkins.
– Pat...
– Vá, Cheyenne! Leve Tessa com você.
Ouvi-a chamar por Tessa. Então houve uma pausa e uma porta se abriu. A placa vai dizer VAN–CHE.
E se for isso mesmo...
– Certo – então choque. – Mas o quê...?
Eu soletrei antes que ela pudesse me dizer o que era: – V-A–N–C–H–E.
Desespero em sua voz. – Como você sabia?
– Saia da janela!
TEP–ROM ETI–1RE VAN–CHE
TE–PROMETI–UMA–REVANCHE
– Ele está aí! – cantei pneus numa curva da estrada e quase perdi o controle. Uma bomba. Um carro-bomba? – Não chegue perto do seu carro!
– Quem está aqui?
– Sevren Adkins. Vá para o centro da casa, longe das...
– Pat, ele está morto.xyzOuvi Tessa no fundo. – Quem está morto?
O que é óbvio nem sempre...
– Acho que ele está vivo. Acho que ele voltou.
– Mas ele caiu no fundo de um desfiladeiro.
– Ele me prometeu uma revanche, Cheyenne. Ninguém mais sabe disso.
Enquanto eu estava terminando minha frase, ela engasgou; ouvi Tessa gritar.
Uma rajada de medo. – O que foi?
– As luzes – Cheyenne disse. – Se apagaram. Todas elas.
O relógio no carro: 21h26.
Três minutos.
Afundei o pé.
Ligue para a expedição, você tem que ligar para a expedição!
– Vou dar uma olhada – Cheyenne disse.
– Cuidado. Não vá lá fora. E não deixe Tessa sozinha.
Eu ainda estava a uns quatro minutos da casa, mas como ela ficava fora da cidade, o tempo de resposta do departamento do xerife provavelmente demoraria esse mesmo
tanto, mas liguei mesmo assim.
Dessa vez eu realmente queria reforços.
– O que está acontecendo? – Tessa perguntou para a detetive Warren.
Um momento atrás, ela tinha sacado sua arma. – Deite no chão, Tessa.
– O que foi?
– Por favor.
– Me conta.
Uma pausa.
– É Sevren Adkins.
– O quê?!
– Pat acha que ele voltou.
Tessa sentiu um calafrio terrível percorrê-la. – Não pode ser.
O homem que a sequestrou. O homem que a cortou. O homem que
tentou matá-la. Ele está aqui. Ele voltou. Ele voltou para pegá-la. – Mas eu não entendo...
Com uma mão, a detetive Warren guiou Tessa gentilmente, mas com firmeza, até o chão. – Fica abaixada – ela sussurrou, e então partiu na direção da porta da frente.
– E siga-me.
Margaret reparou em algo.
A cadeira de rodinhas em frente à sua mesa do computador não estava posicionada como deveria estar, como ela sempre a deixava, diretamente de frente para o teclado.
Em vez disso, estava virada cerca de quarenta graus à direita, como se alguém tivesse sentado nela e então se virou para levantar, esquecendo de acertar a posição
da cadeira novamente.
Ela examinou a sala. Todo o resto estava no lugar.
Mas não a cadeira.
Para evitar interferir em quaisquer impressões que poderiam estar no teclado, ela apertou com a ponta da unha a barra de espaço para ligar a tela do computador.
Um documento apareceu.
Alguém havia deixado uma mensagem para ela. Apenas as palavras: “Olhe seu porta-malas, Margaret”.
Tessa olhou para fora pelas janelas escuras. Com as luzes apagadas e a lua cheia, ela conseguiu ver parte do quintal, mas apenas vagamente. A parte de dentro da
casa estava ainda mais escura. – Detetive Warren, onde você está?
Uma voz veio de uma sombra a três metros dela. – Estou aqui. Faça silêncio. Shh. Fique abaixada. Seu pai está a caminho.
Cuidadosamente, ainda de meias, Margaret saiu da casa.
Seus pensamentos voltaram para Sevren Adkins, o homem que deixou o torso de uma de suas vítimas em seu porta-malas na Carolina do Norte.
Mas ela tinha certeza de que Adkins estava morto. Um imitador?
Ela estudou a vizinhança. Não viu nada de anormal.
Seu Lexus estava a menos de doze passos de distância. Ela apertou o botão de destravamento sem chave duas vezes, e o carro apitou suavemente duas vezes, enquanto
os quatro faróis acenderam e apagaram.
Com a arma na mão, ela se aproximou do acento do motorista.
Assegurou-se de não haver ninguém debaixo do carro.
Limpo.
Verificou os bancos da frente e de trás. Limpo.
Ela examinou a área mais uma vez e firmou a arma. Então pressionou o botão de abertura do porta-malas, que se abriu suavemente com um clique, mas não o suficiente
para que ela visse dentro.
Margaret preparou-se e alcançou o puxador.
105
Faltam 2 minutos...
21h27
Um DVD estava no porta-malas, com um bilhete ao lado: “Espero que você goste de assistir tanto quanto eu gostei de filmar”. Ela sentiu um surto de medo, olhou ao
redor da vizinhança uma última vez, então levou o DVD para dentro para assisti-lo, pensando apenas no que Adkins, ou seu imitador, poderiam ter feito com Lewis.
Pela janela dos fundos, Tessa viu alguém no quintal.
Apenas um vislumbre de movimento sombrio pela borda do muro de pedra.
– Detetive Warren! Ele está no quintal! – apesar de não ter conseguido ver seu rosto, ela sabia.
É ele. É ele. É Adkins!
Cheyenne ergueu a arma, deslizou para a porta dos fundos, abriu-a e gritou: – Pare e coloque as mãos para o lado!
A figura atirou na direção da casa e correu para se esconder.
Ainda não sabíamos o que aconteceria às 21h29.
Um ataque a Cheyenne? A Tessa? A mim?
Uma bomba?
Até agora só tínhamos evidências de C-4 encontradas na parte de trás da van que os assassinos usaram para transportar suas vítimas.
Isso era tudo. Nada mais.
Mas eles transportaram mais que suas vítimas lá atrás, Pat. Eles
transportaram...
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Não, não é.
Mas às vezes é.
Eles também tinham transportado a cadeira de rodas na parte de trás da van.
E agora ela estava no laboratório do FBI. Peguei meu telefone.
Digitei o número de Angela.
Um segundo tiro, e o batente da porta a apenas alguns centímetros do rosto da detetive Warren se estilhaçou. Tessa gritou, mas Cheyenne mal piscou, apenas abaixou-se
em uma posição de tiro. Estudou o quintal.
Tessa reparou em um leve movimento nas sombras profundas, uma figura avançando cuidadosamente na direção da casa. – Lá! – ela gritou. – Perto do muro!
– Parado! – a detetive Warren mirou.
O homem ergueu a mão e atirou. A janela acima de Tessa arrebentou, fazendo chover vidro sobre ela.
E então, o tempo congelou.
Com estilhaços que cobriam tudo, que paralisavam.
Por uma fração de segundo, Tessa viu o corpo da detetive Warren ficar tenso.
Então ela disparou um tiro.
Outro. Um terceiro.
O gelo do momento se estilhaçou, e Tessa sentiu como se fragmentos do tempo, do som e do medo estivessem caindo por toda parte.
Então, silêncio.
A noite estava quieta.
Seu coração estava martelando, martelando. Ela espiou pela janela.
– Abaixe-se – a detetive Warren avisou.
Mas antes de se abaixar, Tessa viu um homem estirado perto do muro de pedra que contornava as árvores. Ele estava de costas, sua arma a alguns metros da mão direita.
Seu rosto estava virado para o outro lado.
– Você o acertou? – Tessa perguntou. Palavras secas, sem ar.
– Sim – a detetive Warren ainda estava com a arma apontada para ele.
– Tem certeza?
– Sim – para Tessa ela parecia inacreditavelmente calma. – Fique aqui.
– Você não vai lá!
– Preciso ver se ele ainda está vivo.
– Então você pode ter errado?
– Eu não errei – a detetive Warren abriu a porta e, com a arma pronta, braços esticados, saiu para a varanda. – Eu já volto.
Brad pensou nos assassinatos na casa dos Styles no mês passado. Pensou na mulher e nos dois policiais. Pensou em como ele se deitou tão imóvel no carpete, esperando
um deles se aproximar, a escopeta bem ao alcance de sua mão.
Ele pensava nessas coisas agora. Tudo fechando o círculo.
Mas dessa vez com um toque especial.
Seu relógio vibrou no pulso.
Chegou a hora.
106
Acontece agora...
21h29
A bomba no laboratório do FBI explodiu.
Chelsea posicionou a mulher inconsciente na banheira e abriu uma segunda garrafa de soda cáustica.
Tessa olhou pela janela, observando a detetive Warren andar cuidadosamente como um gato na direção do corpo.
Margaret Wellington colocou o DVD em seu computador.
Parei o carro freando.
Apenas segundos atrás eu ouvi tiros atrás da casa.
Pulei do carro. Saquei minha arma.
Corri pelo lado da casa e vi uma mulher.
– Parada! – gritei.
– Sou eu! – a voz de Cheyenne. – Eu o peguei. Aqui.
– Quantos atiradores?
– Não sei.
Olhei a linha das árvores, procurando por movimento. Dei cobertura para Cheyenne. Ela estava se aproximando do muro de pedra que acompanhava o gramado. Um corpo
estava caído no chão. – É Adkins?
– Não vi seu rosto – ela estava a menos de cinco metros do corpo.
– Onde está Tessa?
– Na casa.
– Vou entrar – mas eu só dei dois passos quando Cheyenne engasgou. – Rápido, Pat! É...
Um tiro veio das sombras próximas ao lado da varanda de trás. Ouvi um barulho atrás de mim e soube imediatamente o que era: uma bala acertando um alvo humano.
Pelo canto dos olhos vi Cheyenne se dobrar sobre o muro de pedra.
Não, não, não, não!
A escuridão parecia respirar sobre mim.
Inalando.
Exalando. As sombras ofegando ao meu redor. Corri até ela.
Observei as árvores. A varanda. Nenhum movimento.
Ela foi atingida do lado direito e estava ofegante, sem fôlego. Ela estava com a mão esquerda sobre o ferimento, mas o sangue brilhante e espumoso estava brotando
por entre seus dedos. O pulmão. Ela foi atingida no pulmão.
Ouvi sirenes, mas estavam longe demais para chegar a tempo.
Nenhuma visão do atirador.
Ela vai morrer de hemorragia!
O mais rápido e cuidadosamente que pude, movi-a por três metros até a abertura no muro para que ela não ficasse exposta no campo. Então liguei para a emergência.
Escuridão.
Respiração.
Vá até a casa, Pat. Você tem que encontrar Tessa!
Em questão de segundos eu disse ao atendente o que sabia sobre o ferimento de Cheyenne e expliquei exatamente onde ela estava.
– Vá – Cheyenne tossiu. – Vou ficar bem... só... – sua voz desapareceu.
Ela ainda estava pressionando o ferimento, mas quando coloquei minha mão sobre as dela, percebi que ela não estava aplicando pressão suficiente para parar o sangramento.
Ela está muito fraca. – Você precisa apertar mais forte – eu lhe disse com urgência.
Vá atrás de Tessa, você tem que encontrar Tessa!
Os olhos de Cheyenne tremeram e então se fecharam. Ela ficou mole, inconsciente. – Cheyenne! – dei um tapa em seu rosto, mas isso não a acordou.
Você não pode ficar. Você precisa ir!
Vi um brilho de luz na escada. Uma lanterna se movendo pela sala de estar.
Não!
Tessa ficaria abaixada, não usaria uma lanterna.
Inclinei Cheyenne para o lado, o ferimento contra o chão, para que o peso de seu corpo pelo menos fornecesse um pouco de pressão, talvez retardar o sangramento,
impedir que se acumulasse e enchesse o outro pulmão.
Talvez desse a ela alguns minutos extras até os paramédicos chegarem.
Levantei-me para correr até a casa e finalmente vi o rosto da pessoa em quem Cheyenne atirou.
Paul Lansing.
Não!
Apressadamente, ajoelhei-me ao lado dele, senti seu pulso. Nada. Sem pulso. Sem respiração. Cheyenne acertou os três tiros no meio do peito, e ele estava destruído,
encharcado de sangue.
Ele estava morto.
Um ódio quente e tenso me atravessou.
Sevren preparou tudo isso! Ele o atraiu para cá!
Sirenes estridentes. Distantes, mas ficando mais fortes.
Disparei na direção da casa.
Lanterna na mão, arma apontada, entrei pela varanda de trás. Passei lentamente pela porta. – Tessa?
Nenhuma resposta.
Tentei acender as luzes da sala de estar. Nada. – Tessa!
Eu não rezo com frequência, mas estava rezando, e era tão verdadeiro e sincero quanto possível. Por favor, por favor, que ela esteja bem. Tanto ela quanto Cheyenne.
Por favor!
Então ouvi. Sons abafados vindos do corredor.
Lanterna na mão esquerda, SIG na direita, virei a esquina para o corredor. Tessa estava de pé, amordaçada, do outro lado do corredor, bem em frente ao seu quarto.
Um homem estava escondido no quarto, segurando-a pelo cabelo com a mão direita e apontando uma Walther P99 na cabeça dela com a mão esquerda. Ela tinha um vergão
na testa, sangue escorrendo na bochecha; ele deve ter batido nela com alguma coisa quando a capturou.
Ódio. Espreitando. Rugindo.
Ela tentou gritar. A mordaça a impediu.
– Essa distância é suficiente, Bowers – sua voz era um silvo. Apesar de não poder vê-lo, enxerguei sua imagem mentalmente: cabelo escuro. Compleição média. Olhos
manchados e primais.
– Largue a arma, Sevren!
Dei um passo discretamente, mas ele puxou a cabeça de Tessa para trás e ela se encolheu.
– Eu disse que essa distância é suficiente! – ele gritou. Congelei. De alguma maneira ele estava me observando.
– Vou dizer o que vai acontecer – ele disse. – Você vai jogar sua arma para Tessa. Ela vai pegá-la. E então você vai assistir a sua enteada morrer.
Existem muitos tipos de morte, Sevren pensou. Física, espiritual, emocional, psicológica.
E essa seria a mais apropriada de todas.
107
Sirenes lá fora.
– Está ouvindo? – eu disse. – Acabou. Não tem como escapar daqui. Solte-a.
– Jogue sua arma para ela.
Andei um pouco para a frente, mas ele gritou: – Mais um passo e ela morre!
Como ele me vê?
Estudei o corredor. Nenhum espelho. Nenhuma janela.
Tessa estava com os dentes cerrados. Olhos fechados apertados.
– Vou te dar três segundos – ele disse.
– Sevren...
– Um.
Não largue sua arma, Pat. Ele vai matar vocês dois!
Examinei o corredor, à minha frente, atrás de mim. E vi um celular no chão da sala de estar, atrás de mim, apoiado na parede, filmando.
Ele está com outro telefone no quarto. Ele está assistindo...
– Dois.
Apaguei minha lanterna para que ele não pudesse ver meu movimento, então corri na direção de Tessa, mas Sevren puxou-a para trás, para dentro do quarto. E bateu
a pesada porta de carvalho.
Agarrei a maçaneta, tentei girá-la. Trancada. Atrás da porta, ouvi Tessa lutando, tentando se livrar. Recuei, ergui meu calcanhar e acertei a porta, mas ela aguentou.
A voz de Sevren: – Chute essa porta novamente e eu vou começar a brincar com sua enteada.
Minhas mãos se fecharam em punhos, uma forte em torno do cabo da minha SIG, a outra em volta da minha lanterna. Dentro de mim, um fogo terrível rugia vivo, um que
eu não queria amansar.
Não tem nenhuma outra porta para o quarto...
– Sevren – eu chamei através da porta. Eu podia ouvir movimento, então um barulho raspado que provavelmente eram as cortinas sendo fechadas. Uma pequena luz delicada
se acendeu e tremeu pela fresta debaixo da porta. Ele baixou sua lanterna. – Você não tem como escapar disso – gritei. – Acabou. Está feito.
– Eu quero que você diga para ela – ele disse. – Quem é. Lá fora. Em quem a detetive Warren atirou.
Não.
Enrole.
– Encontramos a bomba, Sevren. Encontramos sua parceira.
– Você está blefando.
– Não estou, não.
– Prove.
– Vocês usaram os tubos de metal da cadeira de rodas. Foi esperto.
Mesmo se os caras do laboratório passassem no raio X, os explosivos não seriam visíveis. Mas chegamos a tempo. – Eu não tinha tanta certeza dessa última parte.
Uma pausa. – E minha parceira?
– Chelsea Traye.
Silêncio.
– Ela fez especiais sobre a tentativa de assassinato e o instituto Gunderson. Então no hotel na quarta-feira ela revelou que o tiroteio foi no porão, mas isso foi
antes que Margaret revelasse o local durante a conferência de imprensa. Ninguém mais sabia onde eu tinha sido atingido. Ter feito as ligações para a emergência em
Maryland da casa dos Styles foi um descuido. Comparamos a voz dela. Está tudo acabado.
Nenhuma resposta.
Continue enrolando, continue enrolando.
– Foi o e-mail de Tessa, não foi? – eu disse. – Você invadiu o e-mail dela. Descobriu sobre seu pai. Então pediu para Chelsea vasculhar o passado de Lansing. Ela
tinha acesso às imagens arquivadas da cobertura da tentativa de assassinato. Você mandou o bilhete para Calvin. Você planejou isso tudo semanas atrás.
Silêncio no quarto.
Longo e escuro.
Então ele falou:
– Eu não vim aqui para matar sua enteada, Patrick. Mas vou matar se você não contar a ela em quem a detetive Warren atirou.
Mas ele acabou de dizer que você vai assistir a morte dela...
– Conte para ela!
Tempo. Ganhe mais tempo.
– Tire a mordaça para que eu possa falar com ela.
Uma breve pausa.
– Patrick! – ela gritou.
– Estou aqui, Tessa.
– Ele está à minha esquerda! Atire na direção da minha voz pela parede... Ai!
Bati na porta. – Não toque nela!
– Conte para ela agora ou vou colocar a mordaça de volta.
As luzes vermelhas e azuis das viaturas que se aproximavam piscaram pelas janelas da sala de estar e tomaram o corredor.
– Tessa – eu disse –, escute...
Ela ama Paul. Ela queria odiá-lo hoje, mas ela o ama.
Tive uma ideia. Uma chance, era só o que eu precisava. Me afastei da porta. – O homem lá fora... – mirei minha arma na madeira ao lado da maçaneta.
Uma chance.
Uma chance.
Nós dizemos banalidades para amenizar o golpe, para aliviar a dor, mas não era o que eu estava prestes a fazer. Para ajudá-la, eu teria de machucá-la. Eu não conseguia
pensar em nenhuma outra opção viável.
Eu tinha que impedir Sevren. Eu tinha que acabar com ele.
– O homem em quem Cheyenne atirou é...
Eu chutaria essa porta mais forte do que já chutei qualquer outra coisa na vida. Bem ao lado da maçaneta. Meta o pé na porta. Localize Sevren. Derrube-o.
Olhei pelo cano da arma. – Tessa, é o seu pai – esperei. Esperei.
Vamos, Tessa. Por favor.
– Paul? – Uma palavra frágil, acabada.
– Ele está morto. Foi atingido três vezes no peito.
– Não.
– Sim, Tessa.
Mais alto. – Não!
– Ele está morto. Seu pai, Paul Lansing, está caído morto no quintal...
Dessa vez ela berrou. – Não!
A palavra cortou a noite como uma faca terrível. No momento em que ela gritou, atirei na madeira ao lado da fechadura, ao mesmo tempo que me impulsionei para a frente
e meti meu pé na porta. Ela se partiu e abriu com tudo.
Em uma fração de segundo, fiz uma varredura no quarto e vi Sevren no canto, de pé atrás de Tessa. Sua lanterna estava no chão, à minha esquerda.
Tessa estava entre nós. Sevren estava com a arma mirada na têmpora dela, a mão dela abaixo da dele segurando o cabo, o dedo dela contra o gatilho.
Oh, não. Por favor, não.
As luzes vermelhas e azuis que giravam lá fora invadiram o quarto através das cortinas fechadas.
Reforço.
Olhei pela mira, mas não tinha como atirar. Sevren segurava a cabeça dela firme na frente da sua própria segurando com força um punhado de cabelo dela com a mão
direita. O pouco que podia ver de seu rosto estava coberto por cicatrizes brutais.
– Tessa – eu disse suavemente, tentando soar calmo. – Não mova seu dedo. Não faça pressão nenhuma.
– É um bom conselho – Sevren disse.
Ela estava com a mandíbula travada, tentando ser forte, mas uma lágrima escorria do olho direito. – Atire nele – ela sussurrou.
Mas ele estava exatamente atrás dela; eu não tinha como atirar. Me movimentei para a frente...
– Já está perto o suficiente – ele disse.
Parei. Sem chance de tiro. Se eu atirasse, corria o risco de não atingi-lo e ainda acertar Tessa.
Ouvi policiais vindo em nossa direção pelo corredor. – Voltem! – gritei. – Ele pegou minha filha – eles pararam. – Tem uma mulher lá fora, perto do muro de pedra,
ela foi atingida. Vão até ela agora!
Nenhum movimento.
– Vamos! – gritei. – Façam isso!
– Fale para eles saírem da casa – Sevren disse.
– Vocês o ouviram, saiam daqui! – finalmente ouvi passos recuando.
Sevren olhou para o telefone apoiado na cama e meus olhos seguiram os dele. As luzes da casa estavam apagadas, mas no piscar das luzes da polícia lá fora, a tela
mostrava o contorno de um policial ainda abaixado no corredor.
– Vá – gritei para ele. – Você, no corredor. Agora.
Finalmente, ele foi.
– E a detetive Warren? – Tessa disse, sua voz tomada pela derrota e pelo medo. – Ela está bem?
– Eu duvido – Sevren disse. – Eu atiro muito bem – então para mim: – Eu disse para abaixar a arma. Ignorei-o e disse para Tessa: – Ela vai ficar bem.
Em vez de pedir novamente para que eu baixasse minha arma, ele deu um pequeno suspiro. – Então, aqui estamos nós – as palavras pareciam se contorcer em sua boca.
– Só nós três. Como na Carolina do Norte.
– Não – Tessa disse com tensa determinação. – Daquela vez você tinha uma tesoura espetada na perna.
Não, Tessa! Não o provoque!
– Tessa – eu disse. – Shh.
– Você deveria agradecer, Patrick – Sevren disse. – Ouvi falar que casos de custódia podem ser caros. A detetive Warren fez você economizar muito tempo e dinheiro
hoje.
– Mate-o! – Tessa gritou.
Ele puxou mais forte o cabelo dela. Ela se contorceu, mas se recusou a gritar, negando-lhe a satisfação de machucá-la.
– Agora, solte sua arma – ele disse para mim. – Lentamente.
Linhas de visão.
Ângulos.
Se eu pudesse me inclinar para a frente, ficar apoiado em um joelho como se eu fosse colocar minha SIG no chão, talvez conseguisse acertar o tiro.
Faça.
– Tudo bem – tirei o dedo do gatilho, segurei a arma frouxamente. – Eu solto. Não a machuque. Podemos conversar sobre isso, mas só deixe-a...
– Não me insulte! – ele rugiu.
Ou ele morreria hoje ou iria para a prisão pelo resto da vida. Ele devia saber disso. Ele não tinha nada a perder se a matasse. E se seu objetivo era me fazer sofrer,
ele tinha tudo a ganhar apertando aquele gatilho.
Nada a perder.
Ele não tem nada a perder.
Parei. Tentei outra ideia. – Pare de se esconder atrás de minha enteada. Se você tivesse metade da coragem que ela tem, você sairia daí e me encararia como um...
– Não vai ser tão fácil assim, Bowers.
– Acabou. Deixe-a ir embora. Leve-me, se é isso que você quer.
– Não! – Tessa gritou.
Ele falou para ela então, suavemente, mas ouvi as palavras: – Teríamos evitado muitos problemas se sua mãe tivesse ido em frente com o aborto.
– Não! – ela fechou os olhos apertados e cruzou o braço direito sobre o peito, abraçando a si mesma.
– Bem, Patrick – Sevren sorriu. – Parece que eu ganhei.
E tudo que aconteceu em seguida aconteceu de uma só vez.
Ele tirou a arma da cabeça de Tessa a virou para trás, na direção de seu próprio rosto; mirei minha SIG e atirei assim que sua arma disparou.
O dedo de Tessa ainda no gatilho.
108
O corpo de Sevren caiu no chão.
Corri até Tessa.
Ela estava ofegante. Adrenalina. Medo.
A arma ainda estava em sua mão; tirei-a dela e a coloquei sobre a cama.
Diferentemente dos filmes, pessoas que são atingidas por um tiro na vida real não voam para trás, elas se desmontam para baixo; e o corpo de Sevren estava caído
bem atrás de Tessa. Um dos ferimentos de entrada estava em seu queixo; minha bala o acertou na testa. As duas balas saíram por trás de seu crânio, deixando um buraco
do tamanho de um punho atrás. Massa cerebral e sangue estavam espalhados horrivelmente pela parede. Enquanto guardava minha SIG e pegava Tessa em meus braços, descobri
que o ricochete deixou o cabelo dela ensopado com o sangue morno de Sevren.
– Não vire – quando a peguei nos meus braços, gentilmente passei a mão contra a parte de trás de sua cabeça e então limpei em minha outra manga. – Está tudo bem.
Estou aqui.
Ela ficou imóvel como pedra. Não disse nada.
Um policial correu pela porta, a arma apontada para nós.
– Acabou! – berrei. – Acabou.
Ele viu a parede atrás de nós. O corpo no chão. Baixou a arma e se inclinou na direção do corpo.
Em um filme de terror, Sevren teria de alguma maneira levantado novamente para atacar, para matar, mas não aqui, não agora; ele nunca levantaria novamente. Nunca
mesmo.
Eu queria tirar Tessa da casa, para o mais longe possível desse quarto. Me apressei com ela pelo corredor.
– Meu pai está morto – as palavras vieram como estilhaços de vidro.
– Eu sinto muito, Tessa – todas as outras palavras me fugiram.
Estávamos atravessando o meio da sala de estar quando ela chamou um dos policiais que entrava pela porta da frente. – A mulher que levou um tiro. Ela está viva?
Ele olhou para outro policial que acabara de chegar. O homem balan
çou a cabeça. – Eu não sei da condição dela, senhora. Eles estão com ela, porém – ele apontou na direção da janela –, em uma ambulância.
Saímos da casa.
Uma ambulância estava se distanciando da casa. Guiei Tessa até a outra.
Esperei que ela fosse começar a tremer, chorar, mas ela não fez nada disso.
– Meu ouvido – ela murmurou. Ela estava balançando a cabeça como se para tirar água do ouvido esquerdo, aquele que estava a centímetros da arma quando ela disparou.
– Não consigo escutar com esse ouvido.
O fato de ela estar focando em algo relativamente insignificante comparado com o que acabara de acontecer mostrava que ela estava em choque.
– Vai ficar tudo bem – eu disse, prometendo algo que estava fora do meu controle. Uma pausa e então continuei: – O jeito que falei para você sobre seu pai. Eu precisava
fazer você gritar, para distrair Sevren. Me desculpe por ter sido tão duro. Você me perdoa?
Ela continuou em silêncio, mas acenou com a cabeça.
– Obrigado – eu disse
A ambulância estava logo à frente. Eu ainda não sabia se Ralph tinha encontrado Chelsea Traye ou se a bomba havia explodido.
– Eu o matei – a voz de Tessa estava distante e fria. Não soava em nada como a garota que eu conhecia. – Eu matei Sevren.
– Não. Isso é o que ele queria que você pensasse. Ele estava tentando atirar em si mesmo e fazer você pensar que foi culpa sua, mas eu atirei nele. A contração muscular
na mão dele fez o dedo apertar o gatilho. Foi isso que fez a arma disparar.
– Eu o matei.
– Não.
Ela balançou a cabeça. – Eu matei – não tinha certeza se ouvi arrependimento ou um senso sombrio de satisfação em suas palavras e não sabia o que dizer, mas essa
certamente não era a hora para discutir. – O que importa agora é que você está a salvo.
Chegamos até a ambulância e dois paramédicos empurraram uma maca até Tessa para ela se sentar. Um dos homens olhou para o vergão na testa dela. – Precisamos levá-la
para o hospital.
Ela estava em silêncio quando se sentou e depois se deitou.
– Vou com ela – eu disse.
Ele assentiu e enquanto ele e seu parceiro empurravam a maca de Tessa até a parte de trás da ambulância, eu lhe perguntei baixinho sobre Cheyenne. Ele me disse que
tinha ouvido que o estado dela era grave, mas era tudo que ele sabia. – Assim que soubermos mais, nós avisaremos.
– E Quantico? A bomba?
– Ela estourou. A Sala de Evidências 3a desintegrou. Algumas pessoas não chegaram a sair daquela ala. Ferimentos leves, mas acho que todos estão bem.
Eu estava feliz por ninguém estar morto ou seriamente ferido, mas se a Sala de Evidências 3a foi destruída, dúzias de casos poderiam ser afetados negativamente.
Imaginei como Lacey tinha se saído, torcendo, pelo bem de Angela, que ela estivesse bem.
– Ah – ele disse –, eles pegaram Chelsea Traye; ela está sob custódia. Estava prestes a matar uma mulher, uma prostituta. O agente Hawkins a impediu.
Bem, era bom finalmente ouvir boas notícias.
Na ambulância, me ajoelhei ao lado de Tessa. As sirenes de polícia do lado de fora haviam parado, mas as luzes piscantes não, e elas giravam e piscavam na janela
ao meu lado, borrando a noite com cores que nunca deveriam estar lá.
Segurei a mão dela. – Você vai ficar bem.
Ela não disse nada, apenas olhou inerte para a lateral da ambulância. Uma única lágrima trágica caiu de seu olho esquerdo.
– Meu pai está morto.
E quando vi a derrota e o ódio em seus olhos, tive um pensamento arrepiante.
Talvez Sevren estivesse certo.
Talvez ele tivesse ganhado, afinal.
109
Oito dias depois
Tessa e eu estávamos ficando no quarto vago no porão de Ralph e Brineesha para que não precisássemos ficar perto da casa onde Sevren Adkins e Paul Lansing haviam
morrido.
Nesse momento, Ralph estava seguindo uma indicação de que Lebreau poderia estar na região de Washington, DC, e Brineesha estava fazendo compras com o filho deles,
Tony. Então Tessa e eu tínhamos a casa para nós.
Olhei meu relógio: 13h22.
Cheyenne tinha deixado o hospital às 13h sairíamos em dez minutos para vê-la.
Tessa estava lá embaixo se aprontando.
Essa seria a primeira vez que elas se veriam depois do tiroteio.
Eu visitei Cheyenne todos os dias, com exceção de dois deles quando eu e Tessa estávamos em Wyoming. Apesar de Cheyenne ter convidado Tessa para ir ao hospital e
de ter enviado meia dúzia de recados dizendo o quanto ela sentia pelo seu pai, minha enteada se recusou a vê-la e, em vez disso, simplesmente pediu que eu dissesse
a Cheyenne para ler O Médico e o Monstro.
Eu supus que essa fosse a maneira de Tessa dizer para Cheyenne que ela era algum tipo de monstro, uma versão feminina de Hyde, e isso parecia rancoroso para mim,
mas Cheyenne prontamente aceitou ler o livro.
– Qualquer coisa que eu puder fazer para ajudar – ela disse. Então, dois dias atrás, após eu ter lido a história para entender o contexto do que estava acontecendo
com Tessa, entreguei o livro para Cheyenne.
Eu precisei de um tempo para encaixar as peças do que havia acontecido naquela noite, e ainda faltavam algumas partes, mas eis o que sabíamos: após ter invadido
o site dos advogados de Lansing e ter conseguido o número do telefone de Paul, Sevren o atraiu para a cena mandando uma porção de mensagens de texto falsas que supostamente
viriam do telefone de Tessa afirmando que ela estava em perigo, que os assassinos daquela semana estavam com ela, e para NÃO ligar para a polícia ou para o pai dela,
mas para, por favor, vir ajudá-la!
Não é fácil mascarar a origem de mensagens de texto, mas Sevren era esperto e fez tudo certo.
Considerando que Paul era um ex-agente do Serviço Secreto, não era surpreendente que ele tivesse vindo armado e pronto para salvar a filha.
Ainda não estava exatamente claro quem havia atirado primeiro: Sevren ou Paul, mas Sevren orquestrou o tiroteio, sem dúvida sabendo que ou Paul mataria Cheyenne,
ou ela o mataria – ou Sevren poderia até ter planejado matar os dois. De todo modo, isso teria acabado comigo e com Tessa. E eu não consigo parar de pensar que se
Cheyenne não estivesse lá, o tiroteio teria sido entre mim e o pai de Tessa.
Após a morte de Paul, o vice-presidente Fischer mandou uma nota pessoal para Tessa expressando suas condolências e explicando que Paul de fato o salvara há seis
anos. Por motivos de segurança, pediram a Paul que ele nunca compartilhasse essa informação, e o vice-presidente pedia a Tessa para não culpar o pai dela por enganá-la,
e pelo que pude ver, ela gostou muito disso.
Apesar das minhas suspeitas iniciais, Paul só queria o melhor para sua filha e lutou para protegê-la sempre que teve oportunidade – primeiro quando ela era um bebê,
e agora quando ela era uma jovem mulher. Saber que ele realmente se importou com ela parecia, mais do que todo o resto, estar ajudando Tessa a lidar com sua morte.
Lien-hua, em seu perfil avaliativo, postulou que Sevren falou a verdade quando declarou que não fora até a casa para matar Tessa. – Ele queria que você contasse
para ela que Paul estava morto como um meio de controlar vocês, de machucar vocês dois – Lien-hua explicou. – Matar Tessa só teria acabado com o sofrimento dela.
Mas no final você o encurralar e ele recorrer ao suicídio, eu não acho que esse fosse seu plano original.
– Qual era seu plano original? – perguntei, apesar de já prever sua resposta.
– Nós provavelmente nunca saberemos.
Se o plano era que eu acabasse com a vida dele, acabou que minha bala o ajudou.
Então.
Agora.
Tessa ainda não tinha voltado do porão. Decidi dar mais cinco minutos para ela.
Enquanto eu esperava, passei o tempo tentando pensar em coisas específicas que eu poderia dizer para encorajá-la, que pudessem ajudar a silenciar um pouco da raiva
que ela estava sentindo de Cheyenne.
Margaret Wellington ainda não tinha superado o que vira no DVD que encontrou no porta-malas de seu carro há oito dias.
Não eram imagens de seu cachorro Lewis sendo massacrado como ela temia; na verdade, após a morte de Sevren, a força-tarefa encontrou Lewis no banco de trás do carro
de Sevren, drogado mas bem.
Felizmente.
Felizmente.
Lewis estava bem.
Mas, ainda assim, as imagens gravadas eram terríveis e perturbadoras.
O DVD continha vídeos das vítimas de Sevren: Twana Summie gritando enquanto dois chimpanzés a atacavam; Mollie Fischer caída inconsciente na parte de trás da van;
Chelsea Traye lutando para escapar de uma cova rasa na fazenda de corpos. E mais quatro vítimas que continuavam não identificadas.
Mas para Margaret, as imagens mais perturbadoras estavam no final do DVD. Não eram imagens de outra vítima, mas dela mesma deitada, dormindo em seu próprio quarto.
O vídeo fora gravado de dentro de seu quarto.
Ele estivera lá, em seu quarto, observando-a. De pé sobre ela enquanto ela dormia.
Ele havia até chegado bem perto, filmando a apenas centímetros de seu rosto, e ela nunca soube, nunca suspeitou de nada.
Isso a chocou profundamente. O homem violou o único lugar em que ela se sentia segura e o manchou com sua presença, fazendo com que ela se sentisse sem poder e vulnerável
– muito provavelmente o que ele mais queria.
Ela parou no estacionamento subterrâneo do outro lado da rua do prédio do Capitólio, pegou a maleta com os documentos que ela iria dar para o deputado Fischer e
saiu do carro.
Mas ela não conseguia parar de pensar no DVD.
Por que ela?
Por que ele entrou em sua casa?
Ela só podia imaginar que era por eles terem um histórico juntos – ela foi a agente responsável pela força-tarefa na Carolina do Norte que o perseguiu quando ele
caiu do desfiladeiro. Ele deixou um corpo em seu porta-malas na época, e agora, através do DVD, ele deixou um porta--malas cheio de corpos figurativos.
Uma maneira perturbada e elaborada de se mostrar.
Por quantas noites ele esteve lá? Parado ao lado de sua cama, obser
vando você dormir?
Ela caminhou pelo corredor do Capitólio, na direção do escritório do líder da minoria do Congresso, e reforçou para si mesma que Sevren estava morto e não iria voltar.
Acabou.
Mas enquanto andava, ela tentou não pensar no único fato sobre o qual ninguém mais estava falando: não havia prova verdadeira de que foi Sevren quem fez aqueles
vídeos dela dormindo em sua cama.
Tessa estava terminando de passar o delineador e pensando no que ela iria dizer para a detetive Warren, quando Patrick bateu na porta do banheiro.
– Raven, sou eu – ele chamou. – Quase pronta?
Ela percebia que ele estava falando alto e por isso ela ficava agradecida. Ela ainda estava com uma certa perda de audição no ouvido esquerdo. Os médicos não tinham
certeza se seria ou não permanente.
Mas essa era a menor de suas preocupações.
– Só um segundo – ela disse.
Aconteceram coisas demais nas últimas duas semanas, coisas demais com as quais lidar – a onda de crimes, o caso da custódia, a morte de seu pai.
No dia seguinte da morte de Paul, Patrick tentou entrar em contato com pessoas que podiam conhecê-lo, mas nem seus advogados tinham uma lista com seus parentes ou
contatos de emergência. No final, Patrick conseguiu que o corpo de Paul fosse mandado de volta para Wyoming, e ele e Tessa foram para lá também. Eles enterraram
seu pai em um pequeno cemitério perto de sua cabana nas montanhas com apenas algumas pessoas da área presentes.
– Tessa? – Patrick a apressava do lado de fora da porta do banheiro.
– Eu disse que estaríamos lá as 14h.
– Sim, já estou indo.
Paul tinha seus defeitos, sim, mas ele a amava e veio para salvá-la. A carta do vice-presidente significou muito para ela.
Seu pai era um herói. Assim como Patrick era: dois homens dispostos a morrer por ela. E um deles morreu.
Por causa disso, a morte de Paul ao menos tinha um significado.
Porém, havia outro problema.
Desde sexta-feira passada, Patrick reafirmou centenas de vezes para ela que a morte de Sevren não era sua culpa. – Ele sabia que não tinha saída e queria que você
pensasse que o matou só para fazer você sofrer. Fui eu que atirei nele. Você não matou ninguém. Entendeu?
Ela ficava agradecida pelo que Patrick estava tentando fazer, e depois de um tempo ela lhe disse que entendia, mas ela sabia de algo que ele não sabia.
Foi ela quem virou a arma para trás, não Sevren Adkins.
Foi ela quem puxou o gatilho.
Ela passou o braço direito por cima do peito, agarrou o cotovelo esquerdo e virou a arma na direção do rosto de Adkins, apertando o gatilho como ela fez.
Sim.
Ela fez.
Ela entrou na rachadura e foi verdadeira com seu coração, e matou o homem que armou tudo para matar seu pai. Ela tirou a vida do homem que estava prestes a matá-la.
E estava feliz por isso.
Ela repousou o delineador, olhou no espelho, e isso a fez lembrar de Belle e do teste de autorreconhecimento no espelho no centro de pesquisa de primatas.
Tessa olhou para seu reflexo. Autorreconhecimento, é?
Você tirou a vida de um homem.
Ela não se reconhecia mais.
Por alguns momentos, ela olhou para seu reflexo; então respirou fundo e se juntou a Patrick para ir ver a mulher que atirou em seu pai.
110
– Então, está tudo aqui? – o deputado Fischer perguntou para Margaret.
– Sim, senhor.
Ele folheou os arquivos que ela lhe deu. – Inacreditável. Tudo documentado?
– Sim.
Ele deu um pequeno sorriso. – Quando eu apresentar isso para o congresso, tenho certeza de que conseguiremos a renúncia de Rodale em uma semana – ele balançou a
cabeça. – Ele estava com essa Lebreau na noite em que Brady tentou matar meu irmão?
– Sim.
– E ela ajudou Brady a armar tudo?
– Para afetar a opinião pública, sim. Faça com que um defensor da pena de morte assassine um vice-presidente popular e você garante que a opinião pública se volte
na sua direção, contra a pena de morte.
Que é o que aconteceu, na verdade.
– Rodale estava envolvido? – o tom de Fischer se tornou sombrio.
– Não consegui achar nenhuma evidência de que ele estivesse, e Lebreau ainda está desaparecida, então não podemos perguntar a ela.
Ele soltou os arquivos e olhou para ela curiosamente. – E como você descobriu isso tudo?
– Verifiquei algumas coisas. Sou muito boa em ligar os pontos.
Ele esperou.
– Não posso revelar minhas fontes no momento, senhor, mas se for necessário, revelarei. Tenho certeza de que você pode respeitar isso. Uma pergunta: você sabe por
que Chelsea Traye e Sevren Adkins direcionaram essa onda de crimes para sua família?
Ele balançou a cabeça. – As duas leis que estou apoiando, imagino. Os assassinos estavam tentando dizer algo.
Não ficou claro para Margaret o que eles queriam dizer. – Então, você vai retirar seu apoio à lei dos testes in vitro? – em sua pesquisa durante a última semana,
ela não encontrou nenhuma prova de que Fischer tinha agido antieticamente. Tinha sido apenas Rodale. Desde o início, ele estava usando Fischer para promover a legislação
e a pesquisa que levaria às descobertas que o tornariam rico.
– Não – ele balançou a cabeça. – Na verdade, estou mais comprometido com isso do que nunca.
– Por causa da morte de sua filha.
– Sim. Qualquer coisa que possamos fazer para impedir outros psicopatas de matarem mais garotas inocentes como Mollie. Vamos aprovar a lei e conseguir os fundos
para a Fundação Gunderson. Eu não ligo mais se as pessoas descobrirem que tenho patrocinado eles. É hora desse assunto vir a público. Desde o começo eu só quis menos
crimes, menos pessoas sofrendo. E você pode ter certeza de que agora vou ver isso acontecendo.
– Mas cortar o número de criminosos abortando mais bebês?
– Se for esse o preço a pagar...
– Exterminar uma vida porque algum dia a pessoa pode se tornar violenta? – ela podia perceber que seu tom havia endurecido. – Isso não faz nenhum sentido, deputado.
Deixe-os nascer. Ensine-os. Ajude-os. Nós temos a habilidade para superar nossos instintos. Para escolher.
– O júri ainda acredita nisso. Vamos ver aonde a pesquisa vai nos levar – ficou claro que ele não queria mais discutir o assunto. – Vou falar bem de você no senado.
Eles precisarão de alguém perspicaz para substituir Rodale. Você seria uma boa diretora, srta. Wellington.
Mas ela ainda estava pensando nas implicações sociais das políticas que ele estava promovendo, ainda perturbada por elas.
Ele a acompanhou até a porta.
– Aliás, você já pensou em concorrer para o congresso?
– Já passou pela minha cabeça.
– Não vou ficar nesse escritório para sempre, sabe?
– Não, não vai.
– Bem, bom dia, srta. Wellington.
– Bom dia, deputado.
Chelsea estava na prisão, mas para evitar a sentença de morte, ela contou para as autoridades sobre todos os peixinhos dourados no freezer. Até agora, o caso deles
estava sendo revisado e suas sentenças, revogadas.
Mas ela não estava preocupada com aquilo. Ela estava pensando em seu bebê.
Uma vez nascida, a criança poderia ficar com ela na prisão talvez no primeiro mês. E todo esse tempo, ela estaria planejando sua fuga, para que ela fosse livre para
criar seu bebê por conta própria.
Livre.
Livre.
Livre.
Só os dois.
Ninguém iria tirar seu bebê dela.
Ela passou a mão na barriga enquanto olhava através das
grades da cela.
– Vou ser forte o suficiente – ela sussurrou. – Eu prometo.
Tessa ainda não me deu a menor indicação do que ia dizer para Cheyenne, e agora que estávamos caminhando pelos degraus em frente a seu apartamento, senti que precisava
tocar no assunto. Antes de tocar a campainha eu disse: – Ela se sente muito mal.
– Eu sei.
– O que você vai dizer para ela?
– Depende.
– Do quê?
Tessa olhou para mim. – Do que ela disser para mim.
– Tessa...
– Ela matou meu pai, Patrick. Eu sei que foi um acidente, mas isso não o faz menos morto.
– Eu sei que você está com raiva, certo? Machucada. Mas você não pode se entregar a tudo isso. Essa é a hora em que você precisa ser verdadeira com algo maior que
seu coração. Seja o que for que nos torna diferentes dos animais, nós podemos reconhecer os erros das pessoas e podemos perdoar. Podemos aprender a amar de novo.
Ela olhou para mim. – Você acabou de inventar isso ou você preparou com antecedência? Fiquei quieto por um momento. – Ok, eu trabalhei nisso um tempinho, mas não
faz com que seja menos verdade. Sevren se foi. Ele só vence se deixarmos o ódio nos engolir.
– Ódio, é? – ela fez uma pausa. – E quanto à promessa que você fez para Grant Sikora? Que você não deixaria Basque matar novamente.
Hora de ouvir seu próprio conselho, Pat.
– Estou começando a achar que não é nosso trabalho punir as pessoas por coisas que não fizeram. A justiça não deveria tentar prever o futuro, apenas julgar o passado.
Mas ele é culpado, Pat. Ele é...
Tessa olhou surpresa para mim.
– O quê?
– É que, não sei, por um minuto agora você pareceu sábio.
– Não vou deixar isso acontecer de novo.
– Não foi tão ruim.
A porta se abriu e Cheyenne nos cumprimentou. Ela parecia bem descansada e com boa saúde, certamente não como alguém que estava na UTI quatro dias atrás.
No entanto, quando deu um passo de lado para que pudéssemos entrar, ela gemeu.
– Pode voltar a se sentar – Tessa lhe disse. – Sério.
– Talvez isso seja uma boa ideia – eu disse.
Mas Cheyenne balançou a cabeça e disse para Tessa: – Vem cá.
Por um momento ninguém se moveu, então Tessa foi na direção dela lentamente.
Cheyenne a pegou em seus braços e a abraçou, e lhe disse de um jeito de cortar o coração que ela sentia muito, muito. De onde eu estava eu não podia ver o rosto
de Tessa, mas seus ombros começaram a tremer suavemente e a ouvi começar a chorar.
Por um momento hesitei, imaginando se tinha algo que eu pudesse dizer, mas finalmente, juntei-me a elas e abracei as duas, sem dizer nada.
E assim foi muito melhor.
EPÍLOGO
Alguns minutos depois, Tessa deu um passo para trás, enxugou as lágrimas e disse para seu padrasto: – Eu gostaria de ficar a sós com a detetive Warren por um tempo.
– Claro.
– Eu a levo para casa – a detetive Warren se ofereceu.
– Você está bem para dirigir?
– Eu vim dirigindo do hospital até aqui. Estou bem.
– Tudo bem – ele olhou para elas sem jeito por um momento. – Tenham uma boa conversa. Vejo vocês duas mais tarde.
– Sim – Tessa respondeu, e finalmente ele saiu. A detetive Warren convidou Tessa para andar até o Potomac. – Fica a menos de um quilômetro daqui – ela disse.
Tessa reparou em sua edição de O Médico e o Monstro na mesinha de centro. Sobre ele estava um crucifixo. – Você não deveria ficar andando por aí.
– Estou bem – a detetive Warren gesticulou na direção de uma mesa onde estavam um tabuleiro e uma bolsinha de couro onde provavelmente estavam as peças. – Podemos
conversar enquanto jogamos – ela pegou o livro e o conjunto de xadrez. – Estou deitada faz uma semana; preciso me mexer. Vamos caminhar.
Eu estava quase em casa quando meu telefone tocou. Atendi.
Ralph.
– Ei – eu disse.
– Como foi o encontro de Cheyenne com Tessa?
– Elas precisam curar muitas feridas. Mas acho que as coisas vão dar certo.
– Você ainda está na Cheyenne?
– Não. Elas queriam ficar sozinhas.
– Ótimo, porque tenho más notícias. Renée Lebreau está morta. Preciso que você venha aqui, imediatamente.
Tessa podia ver que a detetive Warren ainda estava com dor, então ela diminuiu os passos.
– Você não sabe quantas vezes eu repassei aquela noite em minha cabeça – Cheyenne disse com profundo arrependimento em cada palavra. – Revendo tudo, desejando poder
mudar as coisas.
– Eu também.
Demorou um bom tempo até que uma delas falou novamente. Elas estavam quase chegando no rio. A detetive Warren mostrou o livro. – Acho que sei por que você queria
que eu lesse essa história.
– Por quê?
Ela abriu o livro em uma página marcada e então leu as palavras do Dr. Jekyll:
Aprendi a reconhecer a dualidade meticulosa e primitiva do homem; eu vi que, das duas naturezas que lutaram no campo da minha consciência, mesmo eu podendo muito
bem ser considerado uma coisa ou outra, foi apenas porque eu era radicalmente ambas...
Era a maldição da humanidade que esses feixes incongruentes fossem amarrados juntos – que no útero agonizante da consciência, esses gêmeos polares deveriam lutar
continuamente. Como, então, eles estavam separados?
– Eles não estavam – a detetive Warren disse. – Não separados. Essa é a diferença entre nós e os animais. As incongruências. A “dualidade meticulosa e primitiva”.
Tessa pensou naquilo.
A casca do bem... as rachaduras...
Elas andaram em silêncio por alguns momentos até que chegaram à trilha ao longo do Potomac. A detetive Warren foi até uma mesa de piquenique.
Enquanto montavam o tabuleiro, Tessa estava pensando nos últimos dez dias, e quando ela pegou seu bispo, ela disse suavemente: – Esqueci.
– Esqueceu do quê?
– O jeito como ele se move.
A detetive Warren olhou curiosamente para ela.
– De volta quando tudo aquilo aconteceu, naquela noite, eu estava pensando sobre como mudamos do preto para o branco, assim como as peças de xadrez fazem – ela gesticulou
na direção das peças. – Mas eu me esqueci do bispo.
A detetive Warren demorou apenas alguns segundos para fazer a ligação.
– É a única peça que fica em sua cor o jogo inteiro. Sem incongruências.
Tessa colocou o bispo no quadrado preto ao lado de sua rainha. Lembrando-se de Sevren Adkins, do quão escura, má e maculada era sua alma, Tessa perguntou: – Você
já conheceu alguém assim? Digo, uma pessoa que nunca tenha mudado de cor? Que não tinha uma dualidade?
A detetive Warren refletiu sobre a pergunta por um momento. – Só uma.
Tessa imaginou que ela estivesse falando sobre o assassino de Denver, Giovanni, que era a razão pela qual a diretora-assistente-executiva Wellington permitiu que
ela ingressasse no programa da Academia Nacional – para ajudá-la a se distanciar um pouco de Denver, do caso.
– Giovanni? – Tessa perguntou.
Mas Cheyenne balançou a cabeça.
– Não. Um carpinteiro. De Nazaré – considerando a fé da detetive, a resposta não surpreendeu Tessa. Ela ficou quieta.
– Sim – ela disse finalmente. – Minha mãe o conheceu também. Antes de morrer.
Escuridão e luz.
Para trás e para a frente.
Todos os movimentos do jogo.
Você matou um homem.
A dualidade meticulosa e primitiva.
Tessa olhou para o tabuleiro. As peças brancas à sua frente, as peças pretas à frente da detetive Warren.
– O branco começa – Cheyenne disse, afirmando o que ambas já sabiam. – É sua vez.
Sim, é mesmo.
É sua vez.
Tentando esquecer as rachaduras que vira tão claramente em si mesma, Tessa esticou a mão para o peão do rei para começar o jogo.
Ralph encontrou-me na porta do condomínio onde, aparentemente, a professora Lebreau estava hospedada. Suas palavras estavam endurecidas pela raiva. – Foi Basque.
– Confirmado? – entrei.
– Ah, sim, está confirmado – ele virou a cabeça para o lado, revelando uma grande contusão. A maioria das pessoas estaria de cama em um hospital.
– Você está bem? – Ninguém ganha de Ralph numa briga!
– Eles tinham tacos de beisebol.
– Eles? – pensei novamente no DNA não identificado nas cenas dos crimes há treze anos.
Um cúmplice?
– Eu reconheci Basque – Ralph disse –, mas estava escuro demais para ver o rosto do outro cara – ele balançou a cabeça, obviamente frustrado consigo mesmo por não
ter conseguido pegar os dois agressores com tacos de beisebol. – O segundo cara me pegou pelas costas. Pelo menos consegui quebrar o braço de Basque. Rápido e limpo.
Mas ambos conseguiram fugir.
Então Basque estava de volta e tinha um parceiro.
Perfeito.
Eu estava observando as evidências da luta na sala de estar. Móveis virados. Manchas de sangue. Luminárias quebradas.
Dúzias de cartas escritas à mão estavam espalhadas pelo chão, cada uma delas assinada “Com amor, Richard” e lembrei-me do que Ralph dissera sobre o quão rápido Renée
trocava de namorado. As peças começaram a se encaixar nos lugares certos. – Ele a seduziu? – eu disse. – Da prisão? É isso?
– Sim – Ralph gesticulou na direção das cartas. – Ele escreveu para ela por cerca de um ano. Ela encontrou a evidência para ajudá-lo a se livrar. Então ele se virou
contra ela; aparentemente a conversão convenientemente orquestrada de Basque na prisão não mudou nem um pouco sua verdadeira natureza.
– Sabemos se ela falsificou a evidência de DNA para libertá-lo?
– Acredite, estamos verificando isso.
Imaginei como Rodale se encaixava nisso tudo – se é que se encaixava. Ralph gesticulou na direção da cozinha.
– Renée está lá. Ou pelo menos a maior parte dela está.
Lien-hua surgiu no corredor e fiquei feliz quando Ralph seguiu em frente e nos deixou conversar por um segundo. Ela passou muito tempo com Cheyenne na semana passada,
ajudando-a em sua recuperação, e deixamos nosso relacionamento suspenso durante esse tempo.
– Cheyenne gosta de você – Lien-hua havia me dito. – É óbvio. Mas ela tem muita coisa para curar agora. Não vá machucá-la mais ainda.
Eu não podia discutir com aquilo, mesmo não querendo ficar distante de Lien-hua.
Vai dar certo, eu disse para mim mesmo. Nós só precisamos deixar isso passar. Nos estabelecer. Vai ficar tudo bem.
Agora Lien-hua vinha na minha direção, e atrás dela vi quatro membros da ERT, incluindo Cassidy e Farraday, andando pela cozinha.
Eu não conseguia ver muito, mas a porta da geladeira estava aberta, e Cassidy e dois agentes que eu não conhecia estavam reunidos em torno dela. Ele segurava uma
jarra. De onde eu estava era impossível ver o que tinha dentro, mas a mulher ao lado dele ficou pálida e correu para fora da minha linha de visão. Escutei barulho
de vômito.
Espalhada pelo chão de linóleo vi uma bagunça de sangue.
Lien-hua deve ter visto minha cara de raiva. – Pat, eu sei que você jurou pegá-lo, mas isso não foi culpa sua.
– Eu sei.
– Você não podia ter previsto isso.
Não a menos que eu o tivesse matado em Chicago mês passado.
A estrada para o impensável não é pavimentada por pequenos desvios
do seu coração, mas por incursões experimentais até ele.
Lembrei-me dos meus pensamentos sombrios no velório de Calvin: nós nascemos, lutamos, perduramos, morremos, e não há nada que sobra para mostrar que estivemos aqui.
Do pó ao pó.
Das cinzas às cinzas.
A poesia sombria da existência.
Mas a vida é mais que isso.
Fazemos incursões em nossos corações e procuramos meios de superá-las.
Sentimos dor e sentimos amor, nos machucamos e nos curamos.
Seres humanos sendo humanos.
A luz do sol estava brincando estranhamente no chão de linóleo.
Assuntos de morte se tornam assuntos da vida, e no dia em que eu não acreditar mais nisso, não farei mais um bom trabalho.
Mas por enquanto eu ainda faço.
Aproximei-me da geladeira.
E olhei lá dentro.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meus consultores militares e das forças policiais, tenente--Coronel Todd Huhn, tenente-coronel Greg Hebert e agente-especial Scott Francis; meus editores
e primeiros leitores, Shawn Scullin, Trinity Huhn, Pam Johnson, Wayne Smith, Jen Leep, Kristin Kornoelje e Liesl Huhn; minha agente, Pamela Harty; meus consultores
de armas de fogo, Jim Huhn e George Hill; meus consultores de ética, dr. Bob Wetzel, Jim Kevin e o dr. Marc Roberts.
Obrigado ao deputado dr. Phil Roe pelo tempo dedicado a me dar uma visão interna do Capitólio, e para Randy Vernon pela hospitalidade.
Obrigado também a John e Lisa Bunn da Coffee Company e a Lee e Tricia Smith do Adobe Garden Bed & Breakfast por me darem um lugar para trabalhar, a meus alunos do
Blue Ridge Christian Novelist’s Retreat por me apresentarem o transumanismo, a Becky Malinsky e ao dr. Suda--King do National Zoo por me ajudarem a entender os primatas,
e para Wayne Smith e o agente Curt Crawford por conseguirem meu tour na Academia do FBI e na Quantico Marine Corps Base.
Um agradecimento especial para J.P., Todd, Pam, Liesl e Chris por serem minhas fiéis caixas de ressonância.
Estou em dívida com os livros Geographic Profiling, do dr. Kim Rossmo, e Environmental Criminology, de Paul e Patricia Brantingham, pelas informações teóricas sobre
os fundamentos da investigação geoespacial.
Achei os seguintes recursos úteis na minha pesquisa sobre metacognição primata, assim como as diferentes perspectivas sobre e implicações de teorias relativas à
evolução da moralidade.
Exposição The Think Tank no Smithsonian National Zoological Park.
Primates and Philosophers: How Morality Evolved, de Frans De Waal, editado por Stephen Macedo e Josiah Ober (Princeton: Princeton University Press, 2006). Veja,
especificamente, as páginas 9-10 para referências aos e interferências dos estudos de Richard Dawkins.
Hardwired Behavior: What Neuroscience Reveals about Morality, de Laurence Tancredi (Cambridge: Cambridge University Press, 2007).
A Reason for God, de Timothy Keller (New York: Dutton, 2008).
There Is A God, de Antony Flew (New York: HarperCollins, 2007).
PRÓLOGO
Nos dias de hoje
San Antonio, Texas
22h13
Kirk Tyler virou o monitor do computador para seu prisioneiro.
A imagem do vídeo mostrava uma jovem deixando a área de pessoas autorizadas do Shopping Lone Star. O shopping estava fechado há mais de uma hora. Não havia mais
ninguém por perto.
Noite.
A garota era filha do homem.
Dashiell Collet lutou contra suas amarras, mas a fita adesiva o prendia com segurança à cadeira de metal e ele não iria a lugar algum. O armazém vazio assomava-se
ao seu redor.
– Isso não precisa acabar mal para ela – disse Kirk, apreciando a visão da líder de torcida de dezessete anos desfilando até seu carro. Erin obviamente não estava
ciente que estava sendo seguida, que estava sendo filmada, que sua vida estava por um fio. – Responda minha pergunta.
Dashiell ficou em silêncio.
– Então? – Kirk perguntou.
– Se você tocar nela – os dentes de Dashiell estavam cerrados. – Eu juro por Deus...
– Vamos deixar Deus fora disso – Kirk olhou para a tela. A transmissão de vídeo vinha de uma câmera escondida no botão superior da camisa de seu comparsa, agora
vinte passos atrás da garota. – Eu só quero que você me diga o nome do seu contato no Pentágono. É só isso. Apenas o nome e tudo isso acaba.
– Eu já disse que não sei do que você está falando!
– Você trabalhou na instalação por catorze anos.
– Que instalação?
– Dashiell, por favor. Chega. Quero saber o nome da pessoa responsável pelo projeto.
Dashiell balançou a cabeça com determinação.
– Você cometeu um erro. Sou o homem errado.
Considerando a situação de Dashiell, Kirk surpreendeu-se com a grande determinação da voz do homem. Aparentemente seu treinamento estava lhe servindo bem.
Então, um pouco de persuasão.
O parceiro de Kirk estava usando um fone de ouvido sem fio e Kirk falou com ele:
– Pegue-a.
No monitor, ele pôde ver a distância entre a câmera e Erin diminuindo quando seu comparsa moveu-se delicadamente, silenciosamente, na direção dela.
– Não! – Dashiell gritou.
Erin estava procurando a chave do carro em sua bolsa.
– Isso vai parar – Kirk disse, - Quando você quiser que pare.
Dashiell fazia um esforço heroico para escapar, mas do jeito que estava amarrado, suas tentativas apenas apertavam mais a fita adesiva em torno de seus tornozelos
e pulsos.
– Eu não conheço ninguém no Pentágono! – ele gritou. – Estou dizendo, sou um avaliador de seguro! Só isso!
Erin estendeu a mão para abrir a porta.
Abriu a porta do motorista.
A câmera estava a um metro das costas dela.
E então.
Ela deve ter percebido a pessoa em seu espelho retrovisor lateral, ou sentido o movimento atrás dela, pois virou-se abruptamente e abriu a boca para gritar, mas
o parceiro de Kirk estava sobre ela antes que ela pudesse.
– Eu não conheço ninguém! – Dashiell berrou.
Na transmissão de vídeo, Kirk pôde ver uma mão sobre a boca da garota enquanto ela era atirada bruscamente para dentro do carro. As imagens ficaram borradas e confusas.
– Eu juro!
– Não acredito em você, Dashiell.
– Deixe-a fora disso! Solte-a!
Era difícil dizer o que estava acontecendo no veículo. Um confronto, sim, mas até o momento tudo era um borrão de braços, cores e gritos. Então, a tela mostrou o
lampejo de uma mão estapeando a garota e quando ela gritou com fraqueza por ajuda, Kirk viu seu braço esquerdo sendo agarrado e picado por uma seringa.
– Pare com isso! – Dashiell gritou. – Mande-o parar!
– Diga-me.
Erin desfaleceu no assento.
– Tá bom, eu conto! Mas diga a ele para parar!
Kirk falou no fone:
– Espere.
Um braço posicionou o corpo agora mole da garota no banco do passageiro, passando o cinto de segurança por sua cintura e seu peito. A porta do motorista se fechou
e a imagem do vídeo permaneceu parada, a câmera olhando pacientemente pelo para-brisa para a extensão do estacionamento vazio que cercava o carro.
– Certo, - Kirk disse para Dashiell. – Comece a falar.
– Se eu te contar, você tem que prometer que não vai machucá-la.
Dashiell inconscientemente passava a língua nos lábios, nervoso. Desesperado.
– Eu prometo.
– Jure para mim que esse homem vai soltá-la. Que ele não vai tocar nela. Você tem que...
– Escute, Dashiell, eu juro que se você nos disser o nome, eu solto você e Erin. Você tem minha palavra. Farei com que meu homem a deixe no carro e ela vai acordar
em algumas horas com dor de cabeça, mas tirando isso, ela vai ficar bem – ele sentou-se à mesa e encarou Dashiell, juntou cuidadosamente os dedos inclinando-se para
frente. – Porém, se você não me disser o que eu quero saber, ele vai trazê-la de volta pra cá e eu vou fazer você assistir a tudo enquanto nós dois nos ocupamos
com ela pelo resto da noite.
Dashiell respirava forte, em desafio, mas Kirk podia ver a derrota em seus olhos.
– Contra-almirante Colberg.
– Colberg.
– Sim. Alan Colberg. Ele mora em Alexandria, Virgínia. Trabalha para o Departamento de Defesa. Pode procurar. Agora, diga a ele para deixá-la no carro.
– Só um minuto.
Kirk digitou no teclado de seu laptop, conferiu o nome na lista de potenciais suspeitos que seu empregador havia lhe enviado. Sim, o contra-almirante foi funcionário
do Projeto Sanguine do Pentágono, mas com base no cronograma de trabalho e nas responsabilidades da função de Colberg, o computador mostrou a Kirk que só havia 61
por cento de certeza dele ser a pessoa certa. Não era suficiente.
– Preciso de mais – ele mostrou o telefone. – Prove ou...
– Certo, escute. Colberg ajudou a desenvolver a tecnologia de frequência extremamente baixa nos anos 1980. Ele estava na primeira equipe. A primeira a operar a estação.
– Isso não é uma prova.
– Verifique o passado dele. Ele escreveu um artigo em 1979 sobre ondas de rádio de 3 a 76 Hertz e o uso da ionosfera na tecnologia de transmissão.
Kirk levou alguns minutos para encontrar algo na internet e finalmente conseguiu baixar um PDF do artigo do simpósio escrito pelo então Tenente Alan Colberg.
Não era 100 por cento conclusivo, mas nessa área muito pouco era. Ele confirmaria tudo quando se encontrasse com o almirante.
Bom.
A pessoa que o contratou para esse serviço ficaria contente.
Kirk falou no telefone com o homem que estava com Erin.
– Tudo bem, traga-a de volta e vamos começar.
– O quê? – o sangue fugiu do rosto de Dashiell. – Você disse que a soltaria!
– Sim – Kirk guardou o telefone. – Eu disse.
– Estou lhe dizendo – a voz de Dashiell ficou tomada pelo medo ao descobrir o que estava acontecendo. – É Colberg. Você tem que acreditar...
– Eu acredito em você.
– Mas você jurou que iria...
– Sr. Collet – Kirk interrompeu. – Parte do meu trabalho envolve dizer às pessoas o que for necessário para convencê-los a me dar o que eu quero. Não é nada pessoal
– Kirk sacou sua .45 ACP Tanfoglio Force Compact fabricada na Itália e pressionou a ponta do cano de aço azul contra a coxa esquerda de Dashiell. – Isso é por eu
ter perdido tempo com a sua enrolação.
– Não, você tem que...
Kirk apertou o gatilho e Dashiell Collet gritou.
E gritou ainda mais alto quando Kirk deu outro tiro em sua outra perna.
Levando em conta a posição da arma, Kirk tinha quase certeza que a segunda bala atingiu o fêmur de Dashiell. O sangramento dos dois ferimentos era regular, não jorrava,
então Kirk não achou que as artérias femorais tivessem sido atingidas. Sem tratamento, ele morreria de hemorragia mais cedo ou mais tarde, mas ele sobreviveria pelo
menos por algumas horas. O suficiente para ele assistir.
Kirk colocou a arma sobre a mesa à sua esquerda. Rapidamente o amordaçou.
– Você poderia ter evitado tudo isso se tivesse dito de primeira o que eu queria.
Os olhos de Dashiell ficaram embaçados com a dor dos tiros. Sua cabeça despencou e Kirk temeu que a perda de sangue estivesse afetando--o mais rapidamente do que
ele previu. Ele deu um tapa em seu rosto.
– Olhe para mim!
O homem pareceu retomar o foco.
– Você precisa saber que a morte de Erin e tudo que a precede terá sido sua culpa por ter sido inconveniente comigo pelas últimas três horas.
Apesar de obviamente desorientado, Dashiell forçou suas amarras de novo e estremeceu terrivelmente quando sua perna se tencionou. Ele tentou gritar de dor, mas a
mordaça abafava seus gritos.
Kirk destravou a porta lateral para que seu parceiro pudesse acessar o prédio. Quando voltou para a mesa, sentiu seu telefone vibrar em seu bolso. Apenas uma pessoa
tinha o código de chamada para esse número.
Valkyrie.
Exatamente a pessoa com quem ele precisava falar.
Kirk tocou na tela do telefone, mas antes que ele pudesse falar, a voz disfarçada eletronicamente do outro lado disse:
– Eu estava assistindo a transmissão de vídeo. Vi seu homem pegando a garota.
– Ele trabalha bem – Kirk disse. – Conseguimos o que queríamos. O contato de Dashiell é o contra-almirante Colberg. No Pentágono.
Kirk arrumou os objetos que iria usar com Erin. A fita. As cordas. As algemas.
– Você deveria ter deixado a garota fora disso.
Se havia uma coisa que Kirk Tyler não gostava era ter que se explicar.
– Eu não teria feito isso se não achasse que era a ação mais prudente a se realizar – ele decidiu não mencionar os planos que tinha para a garota.
– A ação mais prudente.
– Sim.
– Foi isso que você pensou?
Uma pausa que fez Kirk se sentir um pouco apreensivo.
– Você deveria ter deixado a garota fora disso – Valkyrie repetiu. Mas dessa vez as palavras eram mais duras. – Isso foi um desleixo.
– Foi eficiente.
– Eficiência significa limitar danos colaterais, diminuir a exposição...
– Você não estava aqui – ele nunca tinha interrompido Valkyrie no meio de uma frase antes, mas não estava no clima para ouvir um sermão. – Não questione minha decisão.
Uma pausa mais longa dessa vez.
– Com base no que vi hoje, decidi arrumar outra pessoa para concluir o serviço.
Kirk apertou o telefone em sua mão.
– Isso não seria inteligente da sua parte.
– Eu te disse quando começamos que haveria consequências se algo fosse mal conduzido. Eu considero essa situação com a garota mal conduzida.
Um alerta passou por sua cabeça.
Ele está observando-o.
Kirk pegou sua Tanfoglio novamente e observou as sombras do armazém.
– Você não vai fazer isso – ele verificou os lugares possíveis onde Valkyrie ou um de seus homens pudesse estar escondido. Não viu nada. – Se você me tirar dessa,
eu vou atrás de você.
– Adeus, Kirk.
E antes de Kirk Tyler responder, o celular que ele segurava ao lado do ouvido explodiu, dilacerando seu antebraço e a maior parte de sua cabeça, espalhando sangue,
cérebro e pedaços de crânio pela mesa. Quando seu corpo caiu desajeitadamente no chão, pequenos pedaços de matéria cinzenta salpicaram o concreto e Dashiell observou
horrorizado, apenas pensando no que aconteceria com Erin e consigo mesmo quando o associado do homem chegasse.
Alexei Chekov estava no meio da cena do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov quando foi contatado por Valkyrie, pedindo a ele para resolver um problema.
– Lembra-se de Kirk Tyler? – a voz disse.
– Sei quem é, apesar de nunca tê-lo conhecido pessoalmente.
O inglês de Alexei era impecável, assim como o russo, o árabe e o italiano. Na primeira vez que Valkyrie entrou em contato com ele, ele percebeu uma estrutura de
frase que sugeria alguém que estudou ou cresceu nos Estados Unidos. Por isso, Alexei escolheu o inglês americano para suas conversas.
– Temo que você não tenha mais essa oportunidade.
– Ele o decepcionou.
– Sim.
Alexei pôs um marca-página no livro e o colocou de lado.
Valkyrie.
Na antiga mitologia nórdica, uma Valquíria era uma deusa que voava sobre os campos de batalha decidindo quem viveria e quem morreria – um trabalho incrivelmente
semelhante ao dele. Os mitos evoluíram com o tempo e transformaram as Valquírias em criaturas belas e angelicais que recompensavam heróis derrotados ao chegarem
no paraíso.
Morte e recompensas. Quem vive e quem morre – a decisão derradeira.
Valkyrie informou Alexei sobre Dashiell Collet e sua filha, e tudo que aconteceu no armazém.
– Não é longe de onde você está – Valkyrie explicou. – Quero que você faça curativos nos ferimentos à bala de Dashiell, cuide do corpo de Tyler e então chame uma
ambulância para o sr. Collet. Eu o quero vivo caso precisemos falar com ele novamente.
O comentário de Valkyrie sobre o armazém não ficar longe mostrou a Alexei que sua própria localização não era tão secreta quanto pensava e ele percebeu que subestimou
Valkyrie, uma pessoa com quem ele nunca tinha se encontrado e sequer conhecia a identidade.
– E quanto à garota?
– Ela vai acordar em uma ou duas horas. Temo que o homem que tentou sequestrá-la não tenha tanta sorte.
Alexei sabia um pouco sobre a precisão calculada do trabalho de Valkyrie e imaginou que o fone de ouvido sem fio do pretenso seques-trador estava programado para
explodir, assim como o telefone de Kirk.
Ele tentou não imaginar o que a garota veria ao lado dela quando acordasse.
Através dos anos, Alexei desenvolveu uma objetividade profissional em relação a essas coisas, mas, ainda assim, imagens como a que Erin veria quando acordasse eram
profundamente perturbadoras e ele viu que simpatizava com ela, pelos pesadelos que certamente a perseguiriam pelo resto da vida. Talvez ele conseguisse chegar lá
antes que ela acordasse para levá-la a algum lugar seguro.
– Você precisa que eu cuide disso também?
– Vou arrumar outra pessoa para fazer isso. Vá apenas para o armazém. Hoje à noite vou arrumar um avião para levá-lo até Alexandria, Virgínia. Quero que tenha uma
conversa com o contra-almirante Alan Colberg. Diga a ele que precisamos dos códigos de acesso da estação. Ele saberá do que você está falando.
– Tudo bem.
– A propósito, providencialmente, Tyler tinha uma Tanfoglio. Eu sei que você perdeu uma na Itália ano passado. Fique com ela. É sua. Pela inconveniência de ter sido
chamado tão tarde.
Mais uma vez, impressionante. Como Valkyrie sabia sobre o incidente na Itália era um mistério para Alexei. Ele tinha a sensação de que Valkyrie mencionou isso apenas
para mostrar a ele que seu passado não era um segredo.
– Eu não uso armas de fogo – ele respondeu. – Não mais.
– Não desde a morte de sua esposa.
Como?
– Sim.
Uma pausa.
– Claro. Entre em contato comigo quando tiver terminado com Colberg.
– Entrarei.
A conversa acabou.
Apesar de Alexei não carregar uma arma de fogo, ele carregava outra coisa.
Ele colocou o objeto cilíndrico no bolso do peito de seu paletó e partiu para o armazém.
Valkyrie não deveria saber sobre a Tanfoglio ou sobre a morte de Tatiana. Isso mostrava a Alexei que Valkyrie vasculhou seu passado e quando as pessoas bisbilhotam
desse jeito, elas inevitavelmente deixam evidências de sua presença.
Saindo pela porta, Alexei fez uma ligação para um de seus contatos no GRU, o diretório de inteligência militar da Rússia, para ver se ele conseguiria descobrir quem
estaria usando o codinome de Valkyrie.
Com vista no trabalho que Alexei precisava fazer no armazém, o tempo de voo até a Virgínia e a diferença de fuso horário, ele previu que o contra--almirante estaria
sentando-se para tomar café quando ele chegasse.
Esperançosamente, Colberg cooperaria e Alexei não teria que fazer uso do objeto que agora carregava em seu bolso.

 


1. Refere-se ao personagem das histórias do Lone Ranger, ou Cavaleiro Solitário, um índio americano parceiro fiel do personagem principal. (N.T.)
2. Aeroporto em Chicago. (N.T.)
3. Uma instalação de pesquisa usada para estudar os diversos efeitos da decomposição humana, normalmente encontrada em institutos de treinamento policial como o
FBI. (N.T.)
4. Violent Criminal Apprehension Program, ou Programa de Apreensão de Crimes Violentos. Unidade do FBI responsável pela análise de crimes violentos ou sexuais. (N.T.)
5. Os Army Rangers são um grupo de elite do exército americano. (N.T.)

Sábado, 17 de maio
Parque Estadual Patuxent River
Sudoeste de Maryland
85 quilômetros a norte de Washington, DC
Primavera, mas ainda frio.
21h42
Os oficiais Craig Walker e Trevor Meyers pararam em frente à casa baixa e com a tinta descascando de Philip e Jeanne Styles, a única casa na estrada municipal vazia que circundava o parque estadual.
Saíram da viatura.
Alguns cães latiram distantes, mas a floresta atrás da casa engolia a maioria dos sons noturnos; então, além dos gritos abafados vindos de dentro da casa, a noite estava silenciosa, úmida e imóvel.
Craig subiu os degraus quebrados do alpendre, Trevor o seguia. Ele tentou distinguir as palavras das pessoas gritando lá dentro. Tentou entender o motivo da discussão.
Após um momento, Trevor limpou a garganta.
– Você não vai bater? – ele havia dito a Craig mais cedo naquele dia que gostava de ser chamado de Trev, entre outras coisas. Que agradável.
– Calma, Tonto1 – mesmo estando na força policial há apenas cinco anos, Craig já havia lidado com mais do que sua cota de maridos bêbados e esposas espancadas. – Chamadas por perturbação domésticas são as piores.
As vozes lá dentro eram altas, mas indistintas.
– Você já foi chamado aqui?
– Não.
Craig quase disse a ele que havia ouvido falar que esse cara, Styles, tinha um histórico de abuso de conjugal, mas então lembrou-se de que Trevor – não, Trev – estava no carro com ele quando ouviram o chamado da expedição.
Mais gritos dentro da casa. Duas vozes: uma masculina e uma feminina.
Craig abriu a porta de tela e bateu na porta de madeira. – Sr. Styles – ele se certificou de ter chamado alto o suficiente para que qualquer pessoa na casa tivesse escutado. – Senhor, abra a porta. É a polícia.
– É ele? – o homem dentro da casa gritou. – É esse o cara que você...
– Pare! – a voz dela era estridente, desesperada, cheia de medo. – Saia de perto de mim!
Craig gritou, mais alto dessa vez. – Sr. Styles, abra a porta!
O homem: – Largue isso, sua...
Craig Walker desabotoou o coldre de couro de sua arma e avisou pela última vez. – Abra a porta ou vamos entrar!
O homem: – Me dê isso.
– Pare!
E então.
O rugido de uma escopeta.
Cortando a noite.
Craig gritou para Trevor cobrir os fundos da casa, para cobrir agora! Mas então as palavras eram apenas névoa e memória e ele só estava ciente da maçaneta em uma mão e da sensação familiar de sua Glock na outra quando abriu a porta e apontou a arma para frente.
Entrou.
Sem lâmpada no teto, uma luminária no canto. Uma lareira fumegante. Um sofá xadrez, uma poltrona verde.
E uma mulher do outro lado da sala, tremendo, agitada. Com uma Stoeger calibre 12 de cano duplo nas mãos.
Craig mirou sua arma nela. – Largue a arma!
Um homem estava caído no chão a dois metros dela, o peito ensopado de sangue, com espasmos esporádicos. Ele tossiu e tentou falar, mas as palavras eram ininteligíveis e úmidas, e Craig sabia o que queriam dizer.
– Senhora! Largue a arma! – Craig nunca havia mirado em uma mulher antes e sentiu as mãos tremerem levemente.
Ela usava um roupão rosa. O rosto manchado de lágrimas. Ela não baixou a arma.
– Ele ia me matar – eram palavras desesperadas, sem fôlego. – Eu sei que dessa vez ele ia. Ele disse que ia me matar.
O homem no chão balbuciou alguma coisa ininteligível e então parou de fazer barulho de repente.
Cadê o Trevor?!
– Coloque a arma no chão, sra. Styles. Agora.
Finalmente, olhando para o homem em quem ela havia atirado, ela começou a baixar a escopeta. – Ele me bateu. Ele ia me matar.
– Tudo bem – Craig disse –, agora coloque a arma no chão.
Ela se curvou e um calafrio a atravessou. – Essa não foi a primeira vez – ela deixou a arma escorregar de suas mãos. Ela caiu com um baque desigual sobre o carpete marrom surrado. – Ele gostava de me bater. Ele disse que ia me matar dessa vez.
Eu sei... – suas palavras pareciam vir de algum lugar distante. Choque.
Dominando-a por inteiro.
– Senhora, precisa se afastar da arma.
– A arma disparou – ela levantou-se lentamente. – Eu não queria machucá-lo, mas ela disparou – ela deu dois passos cambaleantes para trás.
– Tem mais alguém na casa?
Ela balançou a cabeça.
Enquanto ela se afastava, Craig, ainda empunhando a arma, cuidadosamente se aproximou da vítima do tiro para ver se o homem ainda tinha pulso.
Mas assim que se inclinou, a mulher gritou e ele olhou para ela por uma fração de segundo, apenas isso, um minúsculo instante, mas foi o suficiente.
Quando ele olhou de volta para o corpo, o homem havia rolado na direção da escopeta, pegou-a do chão e mirou em seu peito.
E atirou.
O impacto do cartucho mandou Craig cambaleando e tropeçando contra o sofá. Ele tentou levantar a mão para atirar com sua própria arma, mas seu braço não obedecia. A sala escureceu e, por um pequeno momento, ele esteve ciente de todos os seus sonhos e lembranças, que vieram num turbilhão, se misturando, se somando, culminando em arrependimento final por todas as coisas que ele deixaria inacabadas para sempre.
E então, todos os seus pensamentos se dobraram sobre si mesmos, caindo em um último esquecimento profundo, e o oficial Craig Walker se acomodou imóvel e morto sobre o carpete esfarrapado ao lado do sofá xadrez na sala de estar de Philip e Jeanne Styles.
Ela viu o homem por quem havia se apaixonado, o homem com quem ela havia passado de tudo, o homem cujo filho ela estava carregando, puxar o gatilho.
Atirar no policial.
Levantar-se.
Apoiar a arma no quadril.
Então ela ouviu a pancada da porta dos fundos se abrindo e o viu girar e atirar no segundo policial.
Esse policial conseguiu puxar o gatilho e abrir um buraco no chão ao lado do seu pé enquanto caía de um jeito desengonçado contra a parede, e já estava morto quando tocou o chão. Os bagos de chumbo haviam-no acertado no rosto, mas não dava para dizer que um dia aquilo tinha sido um osto. Tudo que sobrou foi um borrão de sangue, dentes e ossos lascados.
Ela desviou o olhar.
Bem para os olhos do homem que havia acabado de assassinar os dois policiais. Ela ainda não havia contado a ele sobre o bebê; por algum motivo, era nisso que ela pensava naquele momento. Na vida minúscula crescendo dentro dela.
O coração dela martelava. As cores de tudo na sala pareciam cortar o ar com uma diferenciação que ela mal podia entender.
Ele não havia se preocupado em baixar a arma, e ela estava apontada para sua barriga. Para o bebê.
– Então? – ele disse suavemente.
Ela tomou fôlego com dificuldade. – Então.
E aí.
Ele baixou a arma.
Ela olhou para a arma por um longo momento, então falou vacilante, com as palavras carregadas de adrenalina: – Foi por pouco. O segundo quase teve tempo de mirar.
– Sim – ele disse. – Quase.
Então o homem, que certamento não era Philip Styles, e que também não havia tomado um tiro no peito, começou a limpar as impressões digitais da coronha, da telha e do gatilho.
E Astrid, o nome que ela havia escolhido para si mesma quando havia começado nesse hobby, arrancou o roupão e o enfiou na bolsa esportiva que ela havia escondido mais cedo no armário da sala.
– Você foi bem – ela disse.
– Obrigado.
Ela estava vestindo apenas sutiã e calcinha agora. E quando ela se curvou, pelo canto dos olhos percebeu seu homem, que chamava a si mesmo de Brad, observando-a.
Mesmo estando com cerca de treze semanas, sua barriga ainda não havia começado a aparecer, e ela havia se mantido em forma; então, aos vinte e nove anos de idade, era bom ainda conseguir distraí-lo quando se trocava. Ela revirou a bolsa sem pressa, então lentamente se levantou e vestiu seu jeans, um moletom e um par de luvas de látex.
Finalmente ele desviou os olhos, na direção da janela. – Quanto tempo você acha que temos?
– Menos de cinco minutos, eu diria – ela gesticulou na direção da cozinha. – Vamos fazer a ligação.
O corpo da verdadeira Jeanne Styles jazia esparramado a esmo em uma poça de sangue escuro no piso de linóleo desgastado perto da geladeira. Quando Astrid andou na direção da bancada onde estava a bolsa de Jeanne, um gato amarelado, ressabiado mas curioso, entrou na cozinha, e Astrid gentilmente acariciou suas costas. O gato arqueou o corpo e ronronou de um jeito familiar e agradável.
– Gato bonzinho – um momento delicado, vivo e caloroso. Maternal em sua ternura.
Ela acariciou a cabeça do gato e depois pegou a bolsa da mulher morta. Vasculhou-a. Encontrou o celular e acionou o viva-voz para que Brad pudesse ouvir. Ligou para a emergência.
Uma voz masculina atendeu, falando automaticamente. – Serviço de emergência. Como posso...Ela interrompeu, sua voz alta, histérica: – Eles estão mortos! Os dois estão mortos! Oh, meu Deus, os policiais. Ele atirou neles, ele...
– Quem? Quem está morto?
– Ele vai me matar. Meu marido! Oh, ele está...
O eco agudo do tiro a interrompeu e ela deixou o telefone se espatifar no chão enquanto Brad dava outro tiro no cadáver de Jeanne Styles.
– Senhora? – sua voz mais atenta agora. Preocupada. – Você está bem? Está ferida?
Na verdade, não. Estou morta, Astrid pensou. Ferida é uma coisa totalmente diferente.
Ela deslizou para trás, para longe da mulher morta, na direção da sala de estar, mas ainda podia ouvir o atendente ao telefone.
– Senhora? – a voz do homem estava tensa, uma sensação de medo crescente em cada palavra. – Você está aí?
Quando saiu para encontrar Brad no cômodo ao lado, ela percebeu que o atendente provavelmente ainda estaria falando com o cadáver da mulher quando os policiais chegassem, ainda perguntando se ela estava bem.
Astrid foi atingida pela trágica e deliciosa ironia daquilo tudo.
Falando com os mortos. Esperando uma resposta.
Machucada é uma coisa totalmente diferente.
O gato, agora menos hesitante, a seguiu.
Brad estava colocando suas próprias roupas. Ele havia colocado as roupas cheias de resíduos de tiro de Philip Styles na beirada da lareira para que ela chamuscasse mas sem ser consumida pelas brasas. Pelo menos não até que a próxima leva de autoridades tivesse chegado.
Dessa vez, ela e Brad não usariam explosivos ou provocariam um incêndio para destruir evidências. Dessa vez, eles deixariam pistas cuidadosamente arranjadas para trás. Pistas que queriam ser encontradas.
Astrid olhou pela janela e viu um par de faróis surgindo no final da longa e sinuosa estrada.
Brad acompanhou seu olhar. – Philip – ele disse nervosamente. – Eu não o esperava tão...
– Precisamos ir embora – ela gesticulou na direção do sofá. – Não esqueça a bolsa.
Brad pegou suas coisas e ela andou até o corredor onde o segundo policial estava caído contra a parede manchada de sangue.
O gato caminhou ao lado dela e se esfregou em sua perna.
Quando Brad passou por ela para sair, Astrid se inclinou ao lado do corpo. Ela esticou a mão para mostrar ao gato que não era uma ameaça. – Venha aqui.
Após hesitar por um momento, o gato marchou na direção dela, confiante, e ela o colocou gentilmente sobre o peito do policial morto. – Pronto.
Ela se levantou e o gato começou a lamber a mancha vermelha que costumava ser o rosto do policial.
– Gato bonzinho.
Ele ronronou.
Ela o acariciou mais uma vez e então se juntou a Brad lá fora.
O ar estava limpo, vivo, revigorante.
Astrid fechou os olhos e ouviu o canto delicado e invisível dos grilos, o ruído suave do tráfego distante, o som emergente de sirenes.
Mais policiais a caminho da casa.
“Então eles fugiram para a noite fria de Maryland enquanto o homem que estava prestes a encontrar os três corpos entrava na casa.”
Ela ouviu as palavras como se estivessem sendo lidas por um ator em uma das audionovelas que ela ouvia enquanto ia para o trabalho. Então Brad falou com ela da borda da floresta. – Eu gostaria que pudéssemos ficar.
Ela abriu os olhos. Os faróis do carro estavam a meio caminho da entrada.
– Só uma vez – Brad continuou. – Para ver quando a polícia chegasse. Para ver a cara deles.
– É muito arriscado.
– Eu sei. Mas só uma vez. Para ver.
Ela ficou em silêncio.
– Só estou dizendo que seria bom – ele soava um pouco derrotado agora, e ela gostava do fato de poder controlá-lo com tanta facilidade, manipular suas emoções como desejasse...
Mas por outro lado, ela tinha que admitir que seria bom poder assistir. – Vou ver se consigo pensar em um jeito – ela lhe disse.
Isso pareceu satisfazê-lo. Ele esperou por ela para que o conduzisse pela trilha.
Ele a seguiu obedientemente através da floresta, na direção do carro que os esperava. Em questão de minutos, os policiais encontrariam Philip Styles na cozinha, inclinado sobre o corpo da esposa. O jovem mecânico seria preso e, com o tempo, julgado e então condenado por três assassinatos que não havia cometido. Mais um crime perfeito.
Enquanto Astrid conduzia Brad pelo interior da floresta, ela pensava em tudo o que eles haviam acabado de realizar.
A polícia encontra o que ela espera encontrar, e como quase setenta e cinco por cento das mulheres assassinadas são mortas por seus maridos ou amantes, os policiais não se dariam ao trabalho de procurar além da infinidade de evidências físicas: duas ligações para a emergência de uma esposa desesperada, as roupas de Philip sujas de sangue rapidamente jogadas no fogo, sua arma – a arma do crime – convenientemente livre de impressões digitais e até mesmo, em um sentido muito real, uma testemunha: o atendente do serviço de emergência que ouviu o último tiro logo após a mulher ter dito que o marido ia matá-la.
Não era uma montanha de evidências, mas era mais do que a polícia consegue na maioria dos crimes. Junto com o histórico de abuso de drogas e violência doméstica de Philip Styles, seria mais do que suficiente.
Não foi por engano que ela e Brad haviam escolhido Maryland para esse crime. O estado ainda tinha pena de morte.
Como Philip nunca teria condição de bancar um advogado competente, seu advogado apontado pelo estado, com trabalho demais e salário de menos, certamente iria encorajá-lo a confessar em vez de ir a julgamento e encarar a agulha, o melhor que ele podia esperar era uma vida sem a possibilidade de uma condicional.
E isso era exatamente o que ela queria, porque, para ela, era ainda mais satisfatório mandá-los para a prisão do que vê-los morrer. Porque assim, o poder que ela tinha sobre eles nunca acabava. Apenas se fortalecia com o tempo.
Pensar.
Pensar que usando um roupão rosa, atirando em uma parede e fazendo duas ligações para a emergência, ela havia orquestrado o fim da vida de Philip.
Dez, vinte, trinta anos, o tempo que ele sobrevivesse.
A sensação de controlar o destino de alguém completa e absolutamente era intoxicante, irresistível.
Excitante.
Ela parou e encarou Brad; depois puxou-o para perto e o beijou profundamente, deixando sua mão caminhar pelas cicatrizes ásperas que cobriam seu pescoço e sua bochecha esquerda. Elas eram profundas e pálidas, e pareciam assustar a maioria das pessoas, mas ela sempre havia agido como se não a incomodassem, e talvez esse fosse um dos motivos pelos quais ele era tão obediente a ela – ele acreditava que ela o aceitava como ele era. Algo que todos os seres humanos desejam.
Dentro de uma hora eles encontrariam um lugar para fazer amor e seria tão bom quanto era toda vez que o jogo acabava, mas essa noite ela não queria esperar. Ela deixou uma mão deslizar pelas costas dele e explorar seu corpo firme e musculoso.
Ele gentilmente se afastou dela. – Temos que sair dessa antes.
Ela entendeu o que ele quis dizer e sorriu. Sair dessa antes. Sim. Brad, o cuidadoso.
Ela o beijou mais uma vez e então o conduziu pela trilha na direção do carro em que havia feito ligação direta mais cedo, quando o pegou emprestado em um estacionamento do metrô de Washington.
Quando chegaram à borda da floresta, ele disse:
– Estive pensando.
– Sim?
– Eu tenho uma ideia para o próximo. Algo que deveríamos tentar.
Eles chegaram ao carro.
– Sério?
– Sim.
Seria bom deixá-lo planejar um; ou pelo menos ouvir o que ele tinha a dizer. – Bem, então sou toda ouvidos.
E, então, o casal apaixonado partiu para encontrar um local furtivo para consumar a noite, e ela ouviu atenciosamente seu parceiro, tanto no crime quanto no amor, traçar sua ideia para a próxima noite perfeita que passariam juntos.
O próximo encontro perfeito.
O jogo número cinco.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/4_O_BISPO.jpg

 


1
Duas semanas depois
Sábado, 31 de maio
Igreja de St. Ambrose
Chicago, Illinois
18h36
O corpo do dr. Calvin Werjonic jazia austero e imóvel em um caixão solitário na frente da igreja. Fiquei na fila, a nove pessoas de distância dele, aguardando minha
vez de prestar a última homenagem a meu amigo.
O ar na igreja tinha gosto de poeira e de cânticos fúnebres.
Tendo passado seis anos como detetive de homicídios e os últimos nove como criminologista do FBI, eu já tinha investigado centenas de homicídios, mas nunca fui capaz
de olhar para os cadáveres com objetividade criminológica. Toda vez que vejo um, penso na fragilidade da vida. Na tênue linha que separa os vivos dos mortos – o
fluxo de um momento, a amplitude de eternidade contida numa única e delicada batida de um coração.
E lembrei-me das vezes que tive de contar para familiares que havíamos encontrado seus entes queridos, mas que “suas condições eram comprovadamente fatais”, que
“havíamos chegado tarde demais para salvá-los”, ou que “havíamos feito tudo que podíamos mas eles não sobreviveram”. Banalidades cuidadosamente ditas para suavizar
o choque.
Banalidades que não funcionavam.
Em diversos programas criminalísticos do horário nobre, quando os investigadores chegam a uma cena de crime e observam o corpo, eles fazem piadas, mexem nele como
se fosse um pedaço de carne. E entram os comerciais.
Mas não é assim que funciona na vida real.
A fila caminhou.
A morte não é banal porque a vida também não é, e no dia em que eu parar de acreditar nisso, não mais farei bem o meu trabalho.
Outra pessoa se afastou do caixão e percebi que dava para ver parte do rosto de Calvin, enrugado e contraído, cansado pelos anos. Sua pele tinha o tom branco artificial
da maquiagem, o que deveria ajudar a fazê-lo parecer vivo novamente, mas servia apenas para deixá-lo parecido com um manequim, uma réplica pálida do homem que eu
havia conhecido.
Aos setenta e dois anos, ele tinha o dobro da minha idade, mas isso não havia impedido nossa amizade. Quando não nos conhecemos, ele era meu professor de criminologia;
logo se tornou meu orientador, e quando concluí meu doutorado em investigação geoespacial, ele era um dos meus amigos mais próximos.
Ele morreu há dois dias, depois de ficar dez dias em coma.
Um coma no qual ele não deveria ter estado.
Apesar de não ter sido o consultor oficial do caso, Calvin havia começado a rastrear independentemente um assassino brutal pelo qual eu estava procurando em Denver.
O homem, que chamava a si mesmo de Giovanni, chegou até Calvin, atacou-o e o drogou. E quando Giovanni foi pego – conseguindo matar dois oficias da SWAT durante
sua apreensão – ele se recusou a nos dizer que droga havia usado.
Apesar de todos os esforços por parte da polícia de Denver e do FBI, não fomos capazes de extrair a informação ou identificar a droga e, como já estava fraco após
lutar contra uma insuficiência cardíaca congestiva, Calvin acabou falecendo.
Sua condição foi comprovadamente fatal.
Havíamos chegado tarde demais para salvá-lo.
Havíamos feito tudo que podíamos, mas ele não sobreviveu.
Banalidades.
Que não funcionam.
Três pessoas à minha frente.
A fila estava andando mais devagar do que eu esperava. Olhei para o meu relógio. Minha enteada de 17 anos, Tessa, estava esperando por mim no carro. Desde o funeral
de sua mãe ano passado, a morte a tem perturbado profundamente, fazendo-a se sentir oprimida. Então, mesmo conhecendo Calvin e com vontade de ter entrado, ela me
disse que não conseguiria. Eu entendi.
Tínhamos menos de uma hora para pegar nosso voo às 19h34 no O’Hare.2 Seria apertado.
Apenas uma pessoa na fila.
Antes de entrar em coma, Calvin havia descoberto uma pista que estava aparentemente relacionada ao caso de Giovanni, mas também tocava no caso mais famoso da minha
carreira: o assassinato e canibalismo de dezesseis mulheres há mais de uma década no meio-oeste. A pista: H814b Patricia E.
A princípio, um psicopata chamado Richard Devin Basque havia sido condenado pelos crimes, mas recentemente foi submetido a um novo julgamento bem aqui em Chicago,
à luz de um novo exame de DNA, e foi considerado inocente. E agora ele estava livre.
Cheguei ao caixão. É um clichê dizer que os mortos parecem estar dormindo. É um jeito de romantizar a morte, uma tentativa de mandar a dor embora. Se você falar
com qualquer policial, médico ou cientista forense, eles não falarão desse modo porque conhecem a verdade.
Os mortos não parecem estar dormindo; eles parecem mortos. Seus corpos se enrijecendo de jeitos estranhos e cheios de sangue. Sua pele pastosa e cinzenta, se desprendendo
do cadáver, ou se prendendo a ele em pedaços apodrecidos e malcheirosos. Às vezes suas peles se contraem e se movem por causa de uma grossa subcamada de insetos
se contorcendo dentro do corpo.
Não há como confundir morte com sono.
E Então vi os lábios eternamente selados de Calvin. Seus olhos silenciosos. A maquiagem que deveria esconder as rugas e as evidências de sua deterioração.
A verdade da vida é tão dura, tão brutal, que fazemos tudo que podemos para ignorá-la: nós nascemos, lutamos, perduramos, morremos, e nada resta para mostrar que
estivemos aqui além de algumas poucas marcas, alguns bens pelos quais as pessoas deixadas para trás brigam entre si, e então todo mundo segue em frente.
Do pó ao pó.
Das cinzas às cinzas.
A sombria poesia da existência.
Apoiei a mão na madeira delicada e fria do caixão.
Mais cedo, eu havia prometido a mim mesmo que não iria chorar, mas ao pensar na vida de Calvin e em tudo que ela significava para tantas pessoas, senti os olhos
ardendo.
Me afastei.
Indo para o saguão, passei pelas outras pessoas de luto, acenei para algumas delas, pousei gentilmente a mão em um cotovelo ou sobre um ombro para confortar os familiares
ou amigos enquanto ia na direção da porta.
Ao passar pela porta, percebi que a luz no saguão havia sido diminuí da e ele parecia vazio, mas ao me aproximar da saída, ouvi um homem chamar meu nome.
Ele estava de pé, meio escondido pelas sombras, parado perto dos degraus bloqueados que levavam à sacada. Seu rosto estava encoberto, mas reconheci a voz e senti
a raiva me invadir quando percebi quem era: o homem que eu havia encontrado há treze anos com o bisturi na mão, inclinado sobre sua última vítima, o homem que um
júri de Chicago havia inocentado mês passado.
Richard Devin Basque.
2
Ele se aproximou de mim.
– Imagino – ele disse – como isso deve ser difícil para você. – Ele usava um paletó cinza escuro e sua boa aparência morena e europeia fazia com que parecesse ter
trinta anos, dez anos a menos que sua verdadeira idade. Um homem poderoso, coberto de músculos, ele parou a menos de um metro de mim. – Eu sei que vocês dois eram
muito próximos. Estou orando por vocês.
Logo antes de seu novo julgamento, ele havia convenientemente “se convertido a Jesus”.
Na hora certa.
Táticas. Jogos.
O ódio invadiu minha tristeza e eu já não sentia mais vontade de chorar. Eu sentia vontade de acertar Basque. Com força.
– É melhor você sair da minha frente – eu disse.
Ele hesitou por um momento e então fez o que eu sugeri.
Durante seu último julgamento, houve um atentado contra sua vida cometido pelo pai de uma das jovens que ele havia massacrado. Consegui impedir o atirador, mas no
processo a arma disparou e o homem foi ferido fatalmente.
Enquanto estava caído, moribundo, ele implorou que eu prometesse que impediria Richard Basque de matar novamente, e eu prometi, esperando que um veredicto de culpado
resolveria o problema, para que eu não tivesse que resolver as coisas com minhas próprias mãos.
Então, Grant Sikora morreu em meus braços.
E menos de duas semanas depois, Basque foi considerado inocente. Só podia imaginar que ele havia aparecido ali naquela noite porque sabia que eu estaria no velório
de Calvin e queria apenas me provocar.
Ele tem todo o direito de estar aqui. Ele é um homem livre.
Senti a raiva queimando dentro de mim e percebi que se ficasse naquele saguão por mais tempo, eu faria alguma coisa da qual me arrependeria pelo resto da vida.
Ou talvez não me arrependesse no fim das contas.
Parti para a porta, então parei.
Uma ideia.
Virei-me.
As sombras pareciam no lugar certo ao redor de Basque.
– Quem é Patricia E.? – perguntei.
– Patricia E.?
– Sim.
Ele desviou o olhar na direção das portas do santuário, de onde duas pessoas estavam saindo. Não parecia que elas haviam nos notado. – Não sei de quem você está
falando.
– Não acredito em você.
Ele deu um sorriso lento e longo que, apesar de sua aparência de galã, parecia reptiliano na luz fraca. – Esse sempre foi o problema entre a gente, não é? Essa falta
de confiança. Você nunca acreditou que eu fosse inocente, você nunca acreditou...
– Quieto.
Ele piscou.
Então me aproximei e baixei minha voz até um cochicho. – Estou de olho em você, Richard. Eu sei que você matou aquelas mulheres. Vou encontrar Patricia e, se ela
não for a chave, vou descobrir o que mais for preciso. Não fique muito à vontade aqui fora. Você vai voltar para sua jaula.
Ele me observou silenciosamente, sem dúvida tentando me abalar. Neguei tal satisfação a ele, e apenas o fitei com um olhar duro.
– A prisão é apenas um estado da mente – ele disse, bancando o despreocupado. – Mas onde o Espírito do Senhor estiver, existe liberdade – vindas dele, tais palavras
soavam como uma zombaria, tanto da liberdade quanto de Deus.
Uma última e fria opção me ocorreu enquanto eu estava ali parado ao lado dele, no canto recluso do saguão.
Agora, agora. Acerte-o. Você pode acabar com isso para sempre.
Apesar de tudo, senti minhas mãos se fechando em punhos.
Basque pareceu ter lido meus pensamentos. – Você pode sentir, não é? – sua língua passou pelo canto de seus lábios. – Eu não costumava achar que você seria capaz
disso, mas agora...
– Você não faz ideia do que sou capaz.
Algo passou pelo rosto dele. Uma centelha de medo. E foi algo bom de se ver.
Alguns segundos, é tudo de que você precisa...
Uma esguelha de luz da porta lateral cortou o saguão.
– Patrick?
Olhei na direção da porta e vi minha enteada Tessa entrar na igreja. – Já está pronto para...
– Volte para o carro – meu tom era mais duro do que uma voz de pai deveria ser.
Então ela reparou em Basque e, da faixa angular de luz, eu podia dizer pelo olhar no rosto dela, que ela o havia reconhecido.
Ela deu um passo para trás.
Gesticulei na direção da rua. – Eu já vou sair. Vá.
Os olhos dela estavam arregalados e inquietos enquanto recuava, deixando a porta bater sozinha, cortando a luz do dia de dentro da igreja.
Basque acenou delicadamente com a cabeça para mim. – A gente se vê, Patrick.
Saia agora, Pat. Vá embora.
– Mal posso esperar.
Encontrei Tessa lá fora, os cabelos pretos na altura dos ombros tremulavam em frente ao seu rosto levados pela brisa. – Era ele?
– Não.
– Era sim.
Levei-a na direção do carro alugado. – Vamos.
– Você mente muito mal.
– Você já disse isso.
Apenas quando cheguei à porta percebi que minhas mãos ainda estavam cerradas, punhos apertados e prontos. Chacoalhei os dedos, flexionei-os, mas Tessa viu.
– Sim – abri a porta do carro. – Era ele.
Entramos no carro, assumi meu lugar ao volante e por um longo momento nenhum de nós falou. Finalmente, liguei o motor.
– Ainda não acabou, né? – Sua voz era suave, frágil, e fez com que ela parecesse muito mais nova do que era.
Tomei fôlego e tentei dizer a coisa certa, algo distinto, mas acabei não dizendo nada.
Ela olhou em minha direção. – Então, o que acontece agora?
– Guardamos luto – eu disse. – Por Calvin – mas não era nisso que eu estava pensando.
Essas foram as últimas palavras que falamos um para o outro pelo resto do caminho até o aeroporto O’Hare.
3
Dez dias depois
Terça-feira, 10 de junho
Rodovia interestadual 95
63 quilômetros a sudoeste de Washington, DC
18h19
Céu agitado. Nada de chuva ainda, mas uma faixa de nuvens de tempestades pairava sobre Washington e não parecia que ia se desviar da gente.
Pelo menos a tempestade romperia a baixa umidade sufocante de junho.
A saída para a Academia do FBI ficava a menos de três quilômetros de distância.
Tessa estava sentada no banco de passageiros e silenciosamente escrevia algumas letras nos quadradinhos de uma palavra cruzada do New York Times, a terceira que
ela fazia no dia.
– Qual é a palavra com oito letras – ela disse – para a habilidade de lembrar eventos e detalhes com precisão extraordinária?
– Hum... – pensei a respeito. – Não sei.
Ela apontou para os quadradinhos que havia acabado de preencher. – Eidética.
– Se você já sabia a resposta, por que me perguntou?
– Eu estava te testando.
– Sério?
– Vendo se você tinha memória eidética.
– Talvez eu estivesse te testando também – eu disse.
– Uh-hum – a placa ao lado da rodovia sinalizava a saída para a Quantico Marine Corps Base. – É logo em frente.
Ela dobrou a palavra cruzada e olhou pelo para-brisa para as nuvens em forma de bigorna, ameaçadoras no céu que escurecia.
O painel de discussão dessa noite era uma função oficial do Bureau, então eu havia pedido a ela para tirar o piercing da sobrancelha e não usar sombra preta. Ela
obedecera, mas só depois de me lançar um olhar adolescente do tipo “você só pode estar brincando”.
– Se algum dia revirar os olhos for um esporte olímpico – eu disse a ela –, você ganhará a medalha de ouro.
– Que esperto – ela murmurou. – Você escreve seu próprio material ou contrata alguém pra isso?
Tinha aberto a boca para responder, mas não consegui pensar em nada inteligente na hora, e isso pareceu agradá-la.
Eu decidira ignorar o esmalte preto, mas pedi que ela se arrumasse um pouco e, em vez de suas típicas meias pretas ou jeans rasgados, ela havia colocado, de má vontade,
uma saia de amarrar e uma camisa de botão de mangas compridas cor de chumbo que escondia a linha de cicatrizes de cinco centímetros em seu braço direito, testemunhas
de sua fase de autoflagelação.
Pulseiras de couro e de fibra de cânhamo circulavam seu braço esquerdo, alguns anéis de metal abraçavam seus dedos.
Paradoxalmente, a garota que não dava a mínima para ser descolada havia conseguido definir seu próprio estilo de vanguarda: boêmia, levemente gótica. De espírito
livre, raciocínio rápido e graciosa de um jeito maliciosamente sarcástico, ela havia se tornado a pessoa mais importante para mim, mais do que qualquer outra no
mundo, agora que minha esposa Christie havia falecido.
Peguei a saída e Tessa olhou para mim. – Você promete que não vamos passar perto do...
– Não se preocupe – eu sabia a que ela estava se referindo. Havía mos falado sobre isso mais cedo. – Não vamos passar nem perto de lá.
Silêncio.
– Eu prometo – tomei um gole do café que ela havia comprado para mim vinte minutos atrás em uma cafeteria estilosa no subúrbio de Washington.
– Tudo bem.
Recentemente, a Academia do FBI havia iniciado uma fazenda de corpos3 do lado leste da propriedade, similar à Tennessee Forensic Anthropology Research Facility em
Knoxville, Tennessee.
Então, agora, em um canto nos fundos do campus, dúzias de cadáveres estavam nos mais diversos estados de decomposição. Alguns em porta-malas, outros em covas rasas,
outros em riachos ou lagoas, outros em florestas sombreadas ou em prados ensolarados, todos dispostos para nos dar uma oportunidade de estudar o funcionamento da
decomposição, a atividade dos insetos e a maneira como a desarticulação iniciada pela decomposição varia de acordo com os diferentes modos de disposição dos corpos.
Um meio prático para avançar no campo da tafonomia forense, a ciência do entendimento sobre como organismos mortos se decompõem com o tempo.
Mesmo que eu que não tenho a intenção de levar Tessa lá, essa tem sido a grande preocupação dela desde que a convidei para assistir ao painel de discussão de hoje
à noite.
Dei um gole no café e dessa vez ela me observou atenciosamente.
– Então?
– O quê?
– O café.
– Não vou fazer isso, Tessa.
– Admita. Eu te peguei dessa vez.
– Eu não tenho que provar nada...
– Você não faz ideia de qual café é esse.
Tomei outro gole.
– Faço sim.
– Agora você está enrolando.
– Vamos ver. Encorpado e suave. Moderado com acidez expansiva. Sabor complexo. Levemente terroso, uma nota de figo seco e uma complexão profunda e aveludada: Sumatra.
Acho que cultivado na sombra, na região de Jagong, ao longo da ponta norte da ilha – tomei outro gole. – Você colocou um pouco de canela para me confundir.
Ela não disse nada.
– E então?
– Você precisa sair mais de casa.
4
Christie e eu nos conhecemos na primavera, casamos no outono e, nove semanas após o casamento, ela descobriu o nódulo no seio. Ela faleceu antes do aniversário de
um ano do dia em que nos conhecemos.
Tessa crescera sem nunca ter conhecido o pai e, lamentavelmente, as coisas entre a gente foram tensas desde o começo. Então, após a morte de Christie, só pioraram.
Com o tempo, porém, Tessa e eu começamos a nos sentir bem na companhia um do outro, até íntimos – até algumas semanas atrás quando ela se deparou com o diário da
mãe e descobriu que seu pai biológico estava vivo e morava nas montanhas do Wyoming.
Seu verdadeiro pai.
No começo, quando ela me pediu para se encontrar com ele, eu hesitei em concordar, mas claro que não podia negar a ela a chance de conhecer o pai.
Então, nós o visitamos e, apesar das minhas reservas, Paul Lansing parecia ser um bom homem. Recluso e privado, mas que trabalhava duro e era honesto. Um escultor,
um carpinteiro, um homem que preferia viver da terra. Paul e Tessa pareciam ter se dado bem, e conhecê-lo serviu apenas para complicar ainda mais as coisas entre
mim e ela.
Algumas pessoas poderiam questionar minha decisão de checar o passado dele, mas, como responsável legal dela, tudo o que eu mais queria no mundo era que Tessa estivesse
segura. Como Calvin costumava dizer: “A verdade não teme um exame minucioso”. Então, se Paul não tinha nada a esconder, ele não tinha pelo que temer.
A ficha de Paul era impecável, talvez impecável até demais, então fiquei um pouco apreensivo sobre ele. Até que soubéssemos mais, decidi permitir que Tessa enviasse
e-mails para ele, contanto que eu os revisasse seus e-mails antes, para garantir que nada pessoal, como um número de telefone, endereço, ou algo sobre meu trabalho,
não fosse parar acidentalmente no meio da mensagem. Tessa não gostou, mas até que eu tivesse certeza de que podia confiar nele, não correria nenhum risco.
Não estava claro para mim que papel ele queria ter na vida dela, mas desde aquela viagem para Wyoming, eu notei uma rachadura se formando na base do meu relacionamento
com Tessa. O passado havia se instalava em nossas vidas e estava se estendendo entre nós.
– Você está feliz em voltar, não está? – ela perguntou, interrompendo meus pensamentos.
Olhei para ela.
– Nessas últimas semanas. Ministrando esse curso de verão – ela apontou para a placa na entrada para Quantico. – Você está feliz por voltar aqui, na Academia.
– Durante o verão; é apenas durante o verão.
– Eu sei.
Uma pausa.
– Por que você diz isso, que estou feliz por voltar?
– É fácil perceber as coisas em você.
Atualmente, vivemos em Denver; nos mudamos de Nova York após a morte da mãe dela. Agora, enquanto eu respondia, optei pelo apelido que eu havia dado a ela carinhosamente
no ano passado. – Sim, Raven, parece que estou voltando para casa.
Ela ficou quieta então, e me perguntei se ela estava pensando em Denver, ou Nova York, ou possivelmente alguma das pequenas cidades de Minnesota onde ela havia morado
quando criança.
– Isso é bom – ela disse com simplicidade.
Tive vontade de lhe perguntar o que a fazia se sentir em casa, mas imaginei que isso poderia estar relacionado de algum modo com o encontro dela com o pai, então
me segurei e ela silenciosamente desdobrou o jornal para terminar sua palavra cruzada enquanto eu encostava atrás da linha de carros, esperando a liberação para
entrar na base.
Washington, DC
Astrid e Brad entraram no escritório de segurança do instituto de pesquisa de primatas que eles haviam escolhido para o jogo daquela noite. O horário da troca de
turno havia conspirado a favor deles. Eles drogaram o guarda da segurança, e então, com exceção dos gorilas e outros macacos, ficaram com o lugar só para eles.
Esse jogo, pelos próximos três dias, seria o jogo mais emocionante e mais satisfatório de todos.
O jogo de Brad.
Astrid já podia sentir a emoção que a noite traria, o glorioso surto de poder preenchendo-a, libertando-a, preparando-a para a paixão que mais tarde eles compartilhariam
um com o outro no quarto.
Brad estava reconectando o roteador do console da câmera de segurança.
– Estou acabando – ele disse suavemente.
– Quanto tempo?
– Cinco minutos, no máximo.
Um dos fuzileiros navais ergueu a mão, sinalizando para pararmos. Entreguei a ele minha credencial pela janela aberta. – Boa noite, sargento Hastings – eu disse.
– É bom vê-lo novamente.
– Dr. Bowers – ele apenas deu uma rápida olhada na minha identificação e verificou a placa do carro. Apesar do olhar severo em seu rosto, senti entusiasmo em sua
voz. – Quanto tempo faz, senhor? Um ano?
O sargento Eric Hastings tinha seus vinte e poucos anos. Olhos cor de mel. Cabelo loiro curto. Provavelmente menos de 6% de gordura corporal.
Era a primeira vez que eu o via nesse verão, e a primeira vez que eu trazia Tessa para uma recepção na Academia. – Quase. E quando você vai começar a me chamar de
Pat, como todo mundo faz?
Um pequeno sorriso. – Bem, de uniforme, nunca, senhor.
Tessa me entregou sua carteira de motorista, tentando não olhar para Eric, mas seus olhos a traíram. Peguei de volta minha credencial com Eric e dei a ele a carteira
de Tessa.
Ele se inclinou para comparar o rosto dela com a foto da carteira e a observou calmamente. – Senhora – ele disse respeitosamente.
– Oi – ela disse. Deu para perceber que ela estava procurando o jeito mais apropriado de se dirigir a ele. – Sargento... senhor.
O exame dele pareceu realçar sua timidez, e ela baixou os olhos. Modéstia. Isso isso a deixou ainda mais bonita que o normal, e de repente fiquei ansioso para seguir
em frente. Finalmente ele entregou a carteira dela de volta para nós. – Bem-vinda a Quantico, senhora.
– É Tessa – ela disse, um pouco alto demais, em resposta.
Tessa sentiu vontade de bater na própria cabeça. Com força.
Tudo bem, primeiro você estava de boca aberta para o cara e então você
fala seu nome para ele logo após ele ter checado sua carteira de motorista? Brilhante, Tessa Bernice Ellis. Simplesmente brilhante.
Quando Patrick seguiu em frente, ela olhou para fora da janela do carro e tentou evitar pensar no sargento bonito e na impressão idiota que ela havia passado.
Não adiantou.
Patrick não gostava que ela saísse com caras mais velhos.
E então ela se pegou pensando no que seu pai pensaria disso. Seu verdadeiro pai.
Ela sabia que não era justo comparar os dois homens daquele jeito, mas desde que havia conhecido Paul, ela se pegava fazendo isso cada vez mais.
E em sua imaginação, Patrick estava se saindo mal na comparação.
Tudo havia se tornado muito confuso.
E ah, e tinha mais isso, outra coisa que ela vinha fazendo que com certeza estragaria as coisas entre ela e Patrick: além dos e-mails sobre os quais ele sabia, ela
estava secretamente, mandando e-mails por conta própria para Paul quase todos os dias.
Ela não fazia isso propositalmente, como uma afronta ao padrasto, era só que havia coisas sobre as quais ela queria perguntar para seu pai, coisas que não se sentia
confortável para perguntar com Patrick olhando por cima do seu ombro. No entanto, os e-mails haviam se tornado um segredinho rebelde que ela estava escondendo da
única pessoa que nunca gostaria de enganar.
Deixei Tessa em paz com seus pensamentos.
Passamos por placas que indicavam o estande de tiro e o trajeto de obstáculos dos fuzileiros navais; depois passamos por um cruzamento que intencionalmente não tinha
placas. Afinal, existem seções da Quan-tico Marine Corps Base que não devem ser indicadas para visitantes.
Passamos pelo extenso e ultramoderno Laboratório de Análise Forense do FBI, o laboratório forense mais avançado do mundo; então veio a conversão para o Hogan’s Alley,
uma cidade vazia de dezesseis acres que o FBI construiu nos anos 1980 com o intuito de treinar agentes a coletar evidências, responder a situações com reféns, realizar
paradas de veículos de criminosos e apreender suspeitos hostis em áreas urbanas. Eu não mencionei para Tessa que a fazenda de corpos ficava na faixa de floresta
atrás dali.
Em vez disso, eu disse: – Aqui estamos. – Parei no estacionamento ao lado do prédio da administração da Academia e então levei-a para dentro.
Do lado seguro do vidro, Astrid assistiu à mulher lutando contra as amarras de couro, enquanto dois chimpanzés começaram a agir.
Os gritos da mulher ficaram mais e mais estridentes, mais e mais desesperados, até culminarem em um último guincho de horror.
A cena ficou muito perturbadora. Astrid percebeu que estava desviando o olhar.
Brad, porém, ainda estava focado na mulher, cujos gritos estavam se afundando em meio a uma série de gorgolejos molhados que foram rapidamente abafados pelos gritos
frenéticos dos chimpanzés trancados com ela na jaula de paredes de vidro.
Astrid olhou para ela novamente.
Ela havia parado de lutar.
Parado de se mexer.
Para ela, estava acabado.
Mas os chimpanzés tinham só começado.
Astrid virou-se e falou para Brad: – Vejo você mais tarde.
– Sim.
– Aproveite o show.
Ela estava se referindo ao jogo, o jogo deles, mas ele não desviou os olhos dos chimpanzés quando respondeu: – Você também.
Ela sentiu que ele estava pensando apenas no que estava acontecendo do outro lado do vidro, então pegou o queixo dele e virou seu rosto para que ele olhasse em seus
olhos. – É hora de ir.
– Ok.
Brad deu uma última olhada na mulher antes de seguir Astrid para fora da ala dos chimpanzés; então cada um deles seguiu por um caminho diferente para se preparar
para o espetáculo da noite. Brad na direção da chuva que caía, e Astrid foi trocar de roupa para sua performance.
5
Para chegar ao auditório da Academia do FBI, era preciso atravessar uma das passarelas iluminadas e com controle de temperatura que ligavam os prédios, carinhosamente
chamadas de “tubos de hamster”. Quando mencionei o apelido para Tessa, antecipei que ela poderia dizer algo como: “Maravilha. As mentes mais brilhantes da polícia
e o melhor que vocês conseguem inventar é ‘tubos de hamster’. Que reconfortante. Me sinto tão mais segura contra as forças do mal”.
Em vez disso, ela apenas murmurou: – Animais enjaulados – e eu não tinha certeza se ela estava se referindo ao pessoal do FBI, ou apenas reafirmando sua visão militante
sobre a proteção dos direitos dos animais. Evitei comentar.
Atualmente, a Academia tinha cerca de 350 agentes de campo em treinamento, a quem nos referimos como novos agentes. Além disso, temos praticamente trezentos funcionários,
muitos dos quais fogem de eventos como esse.
Na segunda-feira seguinte, começaríamos um novo curso de dez semanas da Academia Nacional para comandantes e polícias de elite do mundo inteiro, outras trezentas
pessoas, metade das quais já havia chegado.
O auditório comporta cerca de mil e cem pessoas, mas eu esperava que apenas metade dessa quantidade aparecesse para o painel de discussão dessa noite.
Para o programa, o tenente Cole Doehring, do departamento metropolitano de polícia de Washington e meu amigo, o agente especial Ralph Hawkins, estavam agendados
para palestrar comigo, e uma mesa de dois metros e meio equipada com três microfones estava montada no palco. Três cadeiras foram colocadas atrás da mesa. Um palanque
de madeira estava ao lado delas.
Embora ainda faltasse cerca de quinze minutos para começar, pelo menos cem homens e mulheres já estavam sentados. Tessa reparou neles rapidamente.
– Vou sentar no fundo – ela me deu um sorriso irônico. – Caso eu acabe dormindo.
– Se você dormir – eu disse –, tente não roncar. Você pode acordar outra pessoa.
– Nada mal – ela estava respondendo por sobre o ombro. – Eu daria para essa um 8,5.
Fui até o palco, posicionei-me atrás de um dos microfones e levei alguns minutos para dar uma olhada em minhas anotações. Quando levantei os olhos, percebi a diretora-assistente-ex
ecutiva do FBI, Margaret Wellington, entrar no auditório e, após fazer uma varredura pela sala, fixar seu olhar em mim e marchar na direção do palco.
Ótimo.
Há cinco anos, eu havia reparado em algumas discrepâncias em um relatório relacionado a um dos casos dela. Evidências foram perdidas e fui convocado para uma auditoria
no Escritório de Responsabilidade Profissional do FBI, nosso departamento de assuntos internos. Reportei minhas descobertas e, apesar de ela não ter recebido uma
carta de censura ou mesmo uma reprimenda oficial, ela foi realocada para um escritório-satélite em Asheville, Carolina do Norte. Não exatamente o empurrão na carreira
que ela estava procurando.
Desde então, ela sentia rancor por mim e, como acontece, o destino a favoreceu. Após duas promoções inesperadas nos últimos nove meses, ela agora era minha chefe.
A vida no Bureau.
Vestida elegantemente com um terno feminino sob medida e usando sapatos de salto alto – um jeito não tão sutil de anunciar sua chegada – ela carregava uma pasta
de couro italiano marrom que quase combinava com seu cabelo, que me lembrava fios de piaçava cuidadosamente penteados. – Agente Bowers – ela disse secamente.
– Olá, Margaret.
Ela ergueu a mão com retidão, colocando a pasta sobre a mesa. – Você não consegue se acostumar com o fato de eu ser uma diretora--assistente-executiva, não é?
– Estou digerindo.
Um sorriso que não era um sorriso. – Bom saber – ela centralizou a pasta bem à sua frente. – E portanto, vou pedir que você se dirija a mim apropriadamente. Conquistei
minha posição e mereço ser chamada pelo meu título formal.
– Sabe de uma coisa, Margaret? Eu concordo.
Ela piscou.
– Concorda?
– Claro, por que não? Usar os títulos formais de cada um parece uma boa ideia.
Ele me olhou desconfiada. – Ah... Entendo. Você quer que eu chame você de dr. Bowers, é isso? Ou agente especial Bowers, Ph.D?
Dei de ombros. – Qualquer um serviria para mim.
Eu suspeitava que a ideia de constantemente lembrá-la que alguém havia realizado algo que ela não havia a incomodaria mais ainda do que ser chamada pelo primeiro
nome, e parecia que eu estava certo. Era divertido observar a reação dela.
– Acho – ela admitiu finalmente – que um certo grau de relação casual pode ser aceitável, considerando nosso longo histórico profissional juntos. Mas não na frente
dos novos agentes.
Apesar de eu saber o que ela queria dizer, a frase “relação casual” realmente não soava bem vinda de sua boca, especialmente quando ela acrescentou “não na frente
dos novos agentes”.
– Acho justo – eu disse.
Ela abriu sua pasta. – Eu tive que dar outra tarefa para o agente Hawkins, então ocuparei o lugar dele hoje.
Com base no quanto Margaret acredita em meu método de investigação e considerando a visão do tenente Doehring sobre investigação geoespacial, eu tinha a sensação
de que isso se tornaria mais um debate do que um painel de discussão.
– Entendo – eu disse.
Quando ela removeu alguns dos papéis de sua pasta, fiquei surpreso ao ver uma foto de um golden retriever colada na aba interna. Tentando redirecionar a conversa,
eu apontei: – Que cachorro bonito, Margaret.
– É o Lewis.
– Lewis.
– Sim, Lewis – ela checou seu relógio e, de onde eu estava, dava para ver que faltavam apenas alguns minutos para as 19h. O tenente Doehring ainda não havia chegado.
– Lewis é o meu cachorro de estimação.
– Eu não sabia que você tinha animais de estimação, Margaret.
– Agora você sabe.
Decidi dar uma trégua para ela. – Bom, como eu disse, ele é um cachorro bonito.
Doehring apareceu na porta e seguiu na direção do palco.
Ela fechou a pasta autoritariamente. – Ele é de raça pura.
Claro que era.
Doehring, que sempre me lembrou o personagem Wolverine dos X-Men tirando a barba do mutante, subiu os degraus para se juntar a nós.
Após vinte anos na força policial, ele tinha reputação de conhecer as manhas das ruas, ser durão e extremamente forte, mas também era o pai de duas garotinhas: uma
com sete e outra com quatro anos. E pelo que eu já tinha visto, elas o tinham nas palmas das mãozinhas. Um policial por excelência em todos os sentidos, Doehring
e eu havíamos trabalhado juntos diversas vezes ao longo dos anos e, apesar de nem sempre concordarmos, eu gostava dele. Ele sabia como trabalhar em um caso e como
concluí-lo.
– Pat, fiquei sabendo do Werjonic – ele balançou a cabeça lentamente. – Sinto muito – havia compaixão genuína em sua voz.
– Obrigado.
– Ele era um bom homem.
– Sim, ele era.
Por um momento ele deixou as palavras, a tristeza, pairarem no ar, então cumprimentou Margaret. – Diretora-assistente Wellington.
– Tenente. Obrigada por não se atrasar.
– Pois não.
Compartilhamos um olhar, um quase sorriso, então ele sentou-se. Coloquei meu telefone para vibrar, deslizei-o para dentro do bolso, e Margaret subiu no palanque
para iniciar o seminário.
6
– Boa noite – ela disse. – Sou a diretora-assistente-executiva Margaret Wellington e gostaria de começar agradecendo-os por comparecerem esta noite. Como vocês sabem,
pesquisas emergentes estão remodelando o modo como investigações criminais são estruturadas e conduzidas. Hoje, discutiremos a integração da tecnologia às investigações
criminais no século XXI.
Uma pausa.
– Estamos honrados por ter conosco o tenente Doehring, da Polícia Metropolitana de Washington, DC – ela acenou para ele com a cabeça. – E Patrick Bowers, um dos
criminologistas mais experientes do Bureau.
Tenho certeza de que acharão as ideias dele brilhantes.
Seu comentário sobre minhas ideias brilhantes foi completamente desprovido de sarcasmo, o que, por si só, parecia ser uma forma inovadora de sarcasmo.
– Esta noite promete uma discussão envolvente e provocativa – ela acrescentou mais alguns comentários e declarações de abertura, e então deu espaço para o tenente
Doehring.
Doehring tomou o palanque e começou a descrever como a comunidade policial de Washington, DC estava implementando o uso de telefones celulares equipados com telas
sensíveis ao toque, que também escaneavam impressões digitais para que as impressões de suspeitos pudessem ser processadas pelo sistema de identificação automático
segundos após a apreensão.
Recentemente, a Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, uma pequena ramificação do departamento de defesa para o qual eu presto consultoria em nome do FBI,
havia me dado o protótipo de um novo telefone, ainda em desenvolvimento, que incluía a função que Doehring havia acabado de mencionar, assim como recursos de mapeamento
do satélite de defesa e um projetor de hologramas tridimensionais para mapeamento e análise de cenas de crimes. Coisas impressionantes.
Doehring listou avanços no uso de emissores de micro-ondas para dispersão não letal de multidões, armas desenvolvidas pelos israelenses cujos disparos podem virar
esquinas, meios de visualizar multidões por raios X para determinar se há agressores armados, fotografias ortodigitais tridimensionais para ajudar em análises de
marcas de mordidas, e assim por diante. Todos os dispositivos que já vínhamos usando no Bureau nos últimos anos.
– No entanto – ele disse –, você pode ter todos os dispositivos de alta tecnologia do mundo, mas a menos que se prenda a procedimentos investigativos provados, testados
pelo tempo, eles não serão suficientes. Boas investigações sempre focam em descobrir o motivo, o modo e a oportunidade do perpetrador.
E é aqui que nossas visões começam a divergir.
Eu não procuro por nenhuma dessas coisas.
E eu definitivamente não uso a palavra perpetrador.
Doehring continuou detalhando alguns casos que ficaram “encalhados pela tecnologia” até que “os bons e velhos instintos” resolveram o caso. Percebi seu tom de voz
mudando, tornando-se levemente antagônico. De onde eu estava sentado no palco, dava para ver os rostos dos participantes, e a maioria das pessoas parecia concordar
com ele que o método clássico era o melhor.
Ótimo. Isso tornaria meu trabalho muito mais fácil.
Vinte minutos se passaram, Margaret encorajando o tenente Doehring, ocasionalmente pedindo minha opinião, nunca questionando suas asserções. Fui cuidadoso para manter
meus comentários focados nos pontos válidos de Doehring. Não fazia sentido diminuir sua autoridade na frente dos participantes.
Finalmente ele terminou e Margaret virou-se para mim e simplesmente: – Agente Bowers.
Minha vez de usar o palanque.
– Bem – o microfone chiou e eu me afastei dele, tentando novamente. – Avanços recentes na tecnologia nos permitiram usar inteligência geoespacial, ou GEOINT, a partir
da rede de satélites do departamento de defesa, e aplicá-la na polícia. Analisando os locais relacionados a crimes seriais e estudando horário, locação e progressão
dos crimes, podemos trilhar o caminho inverso para encontrar a localização mais provável da base de ação do infrator, uma região geográfica que tipicamente chamamos
de zona de perigo.
– Um perfil geográfico – Margaret interrompeu, possivelmente com uma leve nota de desprezo, era difícil dizer.
– Isso mesmo – antes de prosseguir para os aspectos técnicos e algoritmos, ou de demonstrar os recursos de holograma geoespacial do meu celular, eu precisava expor
um pouco de fundamento teórico. – A investigação geoespacial se baseia em pesquisas em criminologia espacial, sociologia, teoria de atividade de rotina, análise
das cenas dos crimes e psicologia ambiental, e é baseada em quatro princípios básicos que dizem respeito ao comportamento criminoso.
Rostos inexpressivos na plateia.
Introdução fantástica, Pat. Você está com eles na palma da mão.
Tomei fôlego. – Primeiro, mesmo parecendo óbvio, todos os crimes ocorrem em um lugar específico em uma hora específica; quase todos são cometidos em locais com os
quais o infrator está familiarizado, ou nos percursos entre essas áreas. A compreensão desses aspectos geoespaciais e temporais do crime nos leva a um melhor entendimento
dos padrões de deslocamento do infrator e do mapa cognitivo de seus arredores.
Mesmo perto do fundo da sala, reparei em Tessa bocejando.
Deve ter sido uma piada rápida. Não tinha como eu saber.
– Essencialmente, a distribuição e o horário dos crimes nos mostram como o criminoso entende e interage com seu ambiente – expliquei. – Em segundo lugar, apesar
do conhecimento convencional de que muitos crimes acontecem aleatoriamente, a maioria das pesquisas atuais apoia a conclusão de que as pessoas cometem crimes somente
após uma série de decisões racionais definidas por sugestões ambientais.
Fiz uma pausa e Margaret pediu-me, cordialmente, para esclarecer o processo de tomada de decisão ao qual eu estava me referindo.
– Bem, o passado de um infrator, sua familiaridade com a região, o desejo por reclusão durante o sequestro ou ataque, a ciência de ou disponibilidade de rotas de
fuga, e a falta de força policial visível, tudo isso afeta suas escolhas no que diz respeito à prática do crime. Infratores escolhem a hora e o local de seus crimes
de modo que evitar sua captura.
– Em outras palavras – Margaret interrompeu –, a motivação deles é escapar ilesos?
Oh.
Isso foi esperto.
Com um pequeno comentário, ela havia arrumado um jeito de concordar comigo enquanto trazia à tona minha maior implicância: motivo. Olhei para ela. Ela estava sorrindo
de um jeito que só ela sabia fazer.
– Sim – preocupe-se com isso mais tarde, apenas conclua os quatro pontos por enquanto. – Em terceiro, infratores tentam economizar tempo e dinheiro, fazer a mínima
quantidade de esforço pelo maior benefício possível. Isso influencia as rotas que eles tomam para de...
Uma das oito portas do lado direito do auditório se abriu. Mesmo que a maioria das pessoas não tenha reparado, o movimento chamou minha atenção. Uma mulher entrou.
Rosto naturalmente bonito.
Cabelo ruivo encaracolado. Sorriso recatado. Usava uma camisa polo verde-escura da Academia Nacional.
Olhei de novo para ter certeza.
Não podia ser.
Mas era.
A detetive Cheyenne Warren, de Denver.
Uma camisa da Academia Nacional? Isso não faz sentido. Ela é...
Cheyenne olhou para mim levemente sem graça por ter interrompido, então ergueu as mãos em um pequeno sinal de rendição, balbuciou a palavra “desculpa” e foi para
o assento mais próximo.
Margaret limpou a garganta suavemente, trazendo-me de volta para a discussão. – Agente Bowers? Você estava dizendo? Motivos?
Motivos? Eu estava...?
Lutei para retomar minha linha de pensamento, mas o sorriso de Cheyenne havia, ao menos temporariamente, me tirado do rumo.
Durante o ano passado, eu servi em uma força-tarefa conjunta contra crimes violentos com a polícia de Denver, e Cheyenne e eu trabalhamos juntos em sete casos. Desde
o início, nós dois ficamos atraídos um pelo outro, não havia dúvidas sobre isso, mas primeiro minha tristeza pela morte de Christie e então meu relacionamento com
uma das criadoras de perfil aqui de Quantico haviam nos impedido de sair juntos.
Então, mês passado, quando Lien-hua e eu terminamos, Cheyenne não ficou tímida ao me contar o que sentia por mim. No entanto, no momento em que percebi que sair
com ela seria, pelo menos inicialmente, uma maneira de lidar com o término, e eu não podia suportar a ideia de usá-la para isso, eu me afastei mesmo sabendo que
a machucaria.
Mas isso foi há mais de três semanas.
E agora, ali estava ela.
De volta para a discussão, Pat.
– Sim. Eu...
Algo sobre infratores... espaço e tempo...
Ah, sim.
Eu não tinha certeza se era o meu ponto exato, mas era próximo o suficiente: – Então, apesar de agirem, e em muitos casos, pensarem, de modos anormais ou depravados,
os infratores não são fundamentalmente diferentes do resto de nós. Eles não são monstros. Eles são seres humanos que entendem e interagem com seus ambientes do mesmo
modo que todos os seres humanos fazem. Então...
Cheyenne havia sentado na quinta fileira e agora estava me observando atenciosamente, de caneta na mão. Era difícil não olhar para ela.
– Em quarto...
O celular vibrou em meu bolso. Já havia interrupções demais, então eu ignorei, mas reparei que tanto Margaret quanto o tenente Doehring estavam olhando para baixo,
Margaret para o telefone repousado na mesa ao lado de seu bloco de anotações, Doehring para seu cinto.
O fato de nós três estarmos sendo chamados simultaneamente não podia ser um bom sinal. Doehring sacou seu telefone enquanto Margaret discretamente tocou a tela do
dela. Tirei o meu do bolso, mas continuei com os olhos na plateia. – Como eu estava dizendo, a quarta premissa é...
– Com licença, agente Bowers – Margaret abruptamente abaixou seu telefone e se inclinou na direção do seu microfone. – Eu sinto muito por isso, pessoal, mas temo
que seremos obrigados a encerrar nossa discussão prematuramente hoje.
Li a mensagem de texto no meu telefone: um corpo havia sido encontrado em um instituto de pesquisa de primatas em Washington, DC. A mensagem incluía um endereço
na South Capital Street, mas nenhum outro detalhe.
Mas o que me chamou a atenção foi o nome do remetente: Rodale, o diretor do FBI, que não se envolvia nos casos a menos que estivessem relacionados à segurança nacional
ou que envolvessem uma busca de nível nacional ou cobertura anormalmente extensa da mídia.
Após seu rápido anúncio, Margaret prontamente levantou-se e dirigiu-se para o corredor.
Como ela era a diretora-assistente-executiva, me perguntei se a mensagem dela continha mais detalhes do que a minha. Antes de partir para a cena do crime, eu queria
o máximo de informações possível, então rapidamente reuni minhas coisas e fui atrás dela, antes que ela escapasse.
7
Alcancei Margaret no fim do corredor, perto da entrada do tubo de hamster que levava para o prédio da administração.
– Margaret – chamei. Ela continuou andando. – Espere.
Ela não se virou.
– Diretora-assistente-executiva Wellington.
Ela parou. Olhou por cima do ombro. Mediu-me.
– Um instituto de pesquisas de primatas? – quando juntei-me a ela, reparei em Tessa no outro lado do corredor, forçando o caminho na minha direção pelo meio da multidão
que se formava. – Por que estamos sendo envolvidos nisso? Isso está em propriedade federal?
– Não, agente Bowers, não está – esperei que ela explicasse, e finalmente ela disse: – Um corpo foi encontrado.
– Disso eu sei, Margaret. Mas por que Rodale iria...
– Porque – sua voz estava tanto apressada quanto repleta de urgência. – A vítima é filha do deputado Fischer.
– O quê? – agora ela tinha minha atenção.
– Líder da minoria do congresso. Da Virgínia. Democrata. Primeiro distrito.
– Eu sei quem ele é – eu estava pensando nas implicações. Quantico está localizada no distrito do deputado Fischer, e ele havia defendido recentemente diminuir o
tamanho do FBI em vinte por cento por causa do que ele chamava de “redundância burocrática”, apesar de nunca terespecificado exatamente o que queria dizer com aquilo.
Debates sobre o orçamento no Congresso aconteceram durante todo o fim de semana no Capitólio, e como o irmão de Fischer havia sido vice--presidente na administração
passada, o deputado tinha influência e boas ligações e, até onde eu sabia, estava ganhando apoio por cortar a verba do Bureau. Não é preciso dizer que ele não era
a figura política mais popular na Academia naquele momento.
Ela olhou para o relógio. – Tenho duas ligações para fazer. O diretor Rodale transferiu o agente Hawkins para esse caso, então ele vai te encontrar na cena do crime.
Irei assim que puder.
Normalmente, Margaret controlava coisas desse tipo de trás de sua mesa, mas com o inevitável caos por parte da mídia, eu tinha a sensação de que ela via isso como
uma chance de ganhar alguma influência política ou administrativa estando presente na cena do crime perto das câmeras de televisão.
Ela girou sobre os calcanhares, saiu dali e, um momento depois, Tessa chegou ao meu lado.
Obviamente eu não poderia levá-la comigo para a cena do crime, mas a casa onde ficávamos durante o verão estava localizada na direção oposta, então eu não tinha
tempo para levá-la de volta.
Decidi que poderia deixá-la em uma cafeteria ou em um shopping no caminho. Não era o ideal, pois eu poderia ficar preso nisso por horas, mas no momento nenhuma ideia
melhor surgiu na minha cabeça.
– Vamos – coloquei minha mão gentilmente em seu ombro e a guiei na direção de uma porta lateral para o estacionamento. – É hora de ir embora.
– É ruim, não é?
Não fazia sentido tentar esconder. – Não é bom.
Parecia que ela ia fazer mais perguntas, mas permaneceu em silêncio. Estávamos quase chegando à saída quando ouvi passos atrás de mim. O som de alguém correndo.
Virei-me.
– Pat – Cheyenne correu em nossa direção. – Tem algo que eu possa fazer?
– Eu gostaria que tivesse – eu disse, e falava sério. Ela era uma das melhores detetives que eu já havia conhecido. Por um momento, pensei no programa de operação
conjunta do Bureau que envolvia estudantes da Academia Nacional em casos em andamento, tanto para treiná-los como para aprender com eles, mas uma pilha de papéis
que levariam horas para serem preenchidos ficava em nosso caminho.
Eu queria perguntar a ela como havia conseguido a vaga na Academia Nacional, o que tipicamente envolvia um processo seletivo de seis meses, mas essa conversa podia
esperar. Porém, eu acrescentei: – Estou surpreso em vê-la aqui.
– Eu estou surpresa por estar aqui – ela respondeu ambiguamente.
Nós três chegamos à porta. Eu a abri e Cheyenne acenou para Tessa e disse calorosamente: – Srta. Ellis.
– Detetive Warren – um toque de confusão. – Você não deveria estar em Denver?
– Eu estava para tirar uma licença, mas surgiu uma vaga de última hora na Academia Nacional.
A explicação foi curta, me deixando mais curioso ainda.
Nós três saímos para a noite escura e cheia de nuvens.
Gotas de chuva grandes e redondas se espatifavam no pavimento. Trovões rugiam sobre nossas cabeças. A tempestade havia chegado.
– Tessa – eu disse –, deixe-me conversar com a detetive Warren por um segundo – joguei a chave do carro para ela. – Já te alcanço.
Após olhar para Cheyenne e depois para mim, Tessa seguiu em frente.
– Escute – eu disse –, as coisas estão...
– Eu sei que você precisa ir – Cheyenne me cortou. – Vou explicar tudo depois.
Concordei. – Parece que isso vai ser uma bagunça.
– Sim, fala sério... A filha de Fischer.
– Como você...
Usando o corpo para proteger o telefone da chuva, ela o virou para cima e pude ver a tela. Um vídeo de um repórter de jornal no centro de Washington, DC. Ao lado
do repórter estava a foto de uma mulher atraente de uns vinte e poucos anos. O nome abaixo da foto dizia: Mollie Fischer. – A CNN, a FOX e a CNS News já estão lá.
Transmissão ao vivo pela internet.
– Maravilha.
Um relâmpago deslizou e estalou no céu, e os olhos de Cheyenne viraram na direção dele. – Ela só tinha vinte e dois anos – sua voz era suave e triste e eu não sabia
como reagir. Após um rápido momento, ela gesticulou na direção de Tessa, que estava entrando no carro para sair da chuva que apertava. – Você não vai levá-la com
você, né?
– Vou deixá-la em algum lugar no caminho.
Cheyenne e eu partimos na direção do meu carro. – Eu posso levá-la de volta para casa pra você.
– Não, tudo bem. Nós vamos...
– Pat – Cheyenne colocou a mão no meu antebraço. – Você está presumindo coisas demais. Eu só quero ajudar. Apenas como uma amiga. Juro.
Ela estava certa, eu estava enxergando segundas intenções na oferta dela e me incomodou o fato de ela ter percebido. Me senti um pouco envergonhado, mas ainda assim
levemente lisonjeado por ela conseguir me entender tão facilmente.
Cheyenne removeu a mão e esperou minha resposta.
Deixe-a ajudar.
– Honestamente, se você pudesse levá-la para casa, seria ótimo.
– Ótimo.
Corremos na direção do carro e eu abri a porta do lado do passageiro. – Raven, a detetive Warren vai lhe dar uma carona de volta pra casa.
Com a curiosidade insaciável de Tessa, esperei que ela fosse pedir para ir junto até a cena do crime, o que ela fez. – Você sabe que não posso levá-la – respondi.
– Além do mais, tem um corpo lá e pode ser que você veja...
Ela girou as pernas para fora do carro. – Sim, entendi.
Cheyenne partiu na direção do lado sul do estacionamento. – Meu carro está lá.
– Vejo você em casa, Tessa – eu disse.
– Tá bom.
As duas saíram correndo na direção do carro de Cheyenne. – Ei, obrigado novamente – gritei para Cheyenne.
– Sem problema – ela gritou de volta, com um aceno de mão.
Entrei no meu carro. Liguei o rádio para saber das notícias.
E parti para a cena do assassinato de Mollie Fischer.
8
Brad estava anonimamente no meio da multidão assistindo às telas das televisões.
Apesar da tempestade, quinze pessoas haviam se reunido fora da Williamson’s Electronics Store na Connecticut Avenue, perto da Union Station, no coração do centro
de Washington, DC.
O showroom de televisões de última geração mostrava aparelhos da Sony, LG, Samsung e a próxima geração de televisões de LED orgânico da Bang & Olufsen. Telas finas
como lâminas, de 65 polegadas, 70 polegadas, e maiores. Os sistemas de home theater mais caros do mundo à mostra e virados para a rua.
Por ter observado a loja nas últimas semanas, Brad sabia que não era incomum encontrar meia dúzia de pessoas paradas em frente à vitrine, cobiçando as TVs. Na verdade,
a popularidade da loja foi um dos motivos por ele tê-la escolhido.
Agora, as imagens granuladas exibidas em cada uma das telas pareciam um filme no estilo de A Bruxa de Blair ou Cloverfield: Monstro, mas cada televisão continha
seis diferentes ângulos de câmera, e o marcador de tempo na parte de baixo de cada uma delas deixava claro que a transmissão era ao vivo.
Os vídeos mostravam o interior de um grande edifício, uma passarela entre recintos com paredes de vidro de pelo menos seis metros de altura. Caixas de som localizadas
abaixo da fachada da loja projetavam o som de macacos, babuínos, gorilas e outros primatas, que balançavam em cordas grossas e escalavam os membros escuros de árvores
artificiais, obviamente construídas para aguentar o peso imenso dos símios.
Um turbilhão de agentes do FBI e da polícia de Washington, facilmente identificáveis pelas letras estampadas em suas jaquetas, movia-se para dentro e para fora da
imagem.
Por causa das sombras indistinguíveis e do brilho do vidro, era difícil dizer quantos corpos estavam caídos dentro da jaula mais distante à esquerda. Pelo menos
um. Talvez até três.
Ninguém mais sabia disso, mas as cenas estavam sendo transmitidas apenas para esse local.
Brad ouvia silenciosamente enquanto aqueles ao lado dele tentavam descobrir o que estava acontecendo: – É um tipo de zoológico de gorilas, ou algo assim – alguém
disse.
– Isso é ao vivo? – um homem em um terno Valentino cinza perguntou. – Isso é ao vivo, não é?
– Eles estavam falando sobre isso no jornal – a mulher ao lado dele disse. – Acho que foi a filha de um senador que foi morta.
– Morta?
– Essas são as câmeras de segurança de dentro do prédio.
– Não, foi de um deputado – alguém disse.
– A filha de Fischer. Foi isso que ouvi.
Brad havia colocado um boné do Washington Nationals na cabeça para evitar que seus olhos fossem vistos e usava uma barba falsa desgrenhada. Na verdade, os disfarces
eram uma de suas especialidades.
Ele tinha virado a gola para cima, para se proteger do frio, e estava vestido com as roupas fétidas e esfarrapadas que ele havia roubado de um mendigo que espancara
meia hora antes. Vestido como estava, Brad parecia só mais um vagabundo sem nome e sem rosto.
Invisível.
À vista de todos.
Ele queria poder ficar ali e assistir por horas, mas era hora de ir.
Ele tinha uma noite cheia – mais um assassinato para cometer, C-4 para instalar nos tubos de metal, uma sequência de detonação para configurar.
E algumas outras tarefas.
Ele caminhou quatro quarteirões até a van com acesso para defi
cientes que ele e Astrid estavam usando; a van onde ele havia deixado as próximas duas vítimas amarradas e amordaçadas. Pessoalmente, ele preferiria deixá-las inconscientes,
conforme havia planejado, mas Astrid disse que seria mais divertido se eles estivessem acordados, prevendo o que estava por vir.
Como eles se conheciam, se não tivessem sido vendados, eles se sentiriam consolados. Mas como estavam no final, o impacto seria muito maior assim.
Um morreria esta noite.
O outro passaria a noite com ele e Astrid na casa.
9
Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson
1311 South Capital Street
Washington, DC
20h26
As gotas da chuva batiam contra o para-brisa. Pequenas facas escuras no crepúsculo que se aprofundava.
A fita amarela da polícia cercava o instituto e se contorcia e tremulavam no vento cortante. Quinze viaturas de polícia estavam paradas, anguladas sobre o meio-fio,
com as luzes ainda ligadas. As cores perfuravam a chuva.
O estacionamento subterrâneo do instituto havia sido isolado, por isso estacionei na rua, atrás de uma das viaturas. Meia dúzia de equipes de noticiários e de canais
de TV a cabo já estavam ocupando as ruas vizinhas.
Justamente o que a gente precisava.
Apesar da presença da mídia, a cobertura de notícias no rádio estava péssima. Os repórteres pareciam não concordar se havia um corpo, ou dois, ou talvez três, se
a polícia tinha ou não um suspeito sob custódia, e se o deputado Fischer estava na cidade ou fora do país, em um encontro com soldados no Afeganistão.
Grupos de agentes do FBI, oficiais da Polícia Metropolitana (que tem jurisdição sobre a cidade), oficiais de polícia do Capitólio (que protegem Capitol Hill) e mesmo
US Marshals cercavam a entrada do edifício.
A força policial americana é organizada como um prato de espaguete, em que os fios de macarrão individuais se sobrepõem, escorrem e se entrelaçam o tempo todo. Dependendo
do tipo de crime e de onde ele é cometido, você pode ter oito ou nove entidades policiais federais e estaduais, agências de inteligência, unidades militares, organizações
de defesa e agências de departamentos de justiça, todas tentando realizar a investigação.
E na maioria das vezes sem compartilhar as informações da forma eficiente como deveriam.
Cada uma das forças armadas tem sua própria divisão de investigadores forenses criminais; adicione uma ajuda da ATF, da DEA, da CIA, do FBI, da NSA, do Serviço Investigativo
Criminal de Defesa, do Serviço de US Marshals e do Federal Air Marshals, do Serviço Secreto, do Serviço de Proteção Aduaneira e de Fronteiras dos EUA, do Bureau
de Segurança Diplomática, até do Escritório do Inspetor General do Serviço Postal dos Estados Unidos da América – assim como as forças policiais regionais e estaduais,
departamentos do xerife e as seis agências de investigação confidenciais que não aparecem em nenhum registro do governo...
É alucinante.
Com muita frequência, conduzir uma investigação é como enfiar o garfo na bagunça e girá-lo. Às vezes fico impressionado quando algum crime é resolvido, ou quando
algum ataque terrorista é desmantelado.
Agora, ao constatar a variedade de agências já no local, eu sentia isso acontecendo novamente: o espaguete estava começando a transbordar do prato.
Parece-me que o deputado Fischer pode estar certo quanto a querer cortar a redundância burocrática.
Um agente da polícia metropolitana estava se aproximando do meu carro.
Peguei um par de luvas de látex do kit que eu mantinha em meu porta-luvas, certifiquei-me de estar com meu conjunto para abrir fechaduras, minha lanterna Mini MagLite,
meu telefone com projeção de hologramas
3D; depois peguei meu blusão do FBI e saí na tempestade.
O policial ergueu a mão. – Me desculpe, senhor, mas...
Eu já estava com a credencial na mão. – Patrick Bowers. Estou com o FBI – vesti o blusão.
A chuva respingava pelo pavimento, como óleo preto fritando em uma frigideira escura de concreto.
Ele desviou o olhar de mim para o instituto. – Os outros já estão lá dentro – o vento tentou abafar suas palavras e ele aumentou o tom de voz. – Ficou sabendo? O
perpetrador, ele soltou os chimpanzés nela... eles comeram o rosto dela.
A notícia me deixou enjoado.
Guardei minha carteira.
Aproximei-me do edifício.
Entrei.
Uma imensa área de visitação se estendia entre dezoito áreas enormes cercadas por vidro, nove de cada lado. Todas elas tinham pelo menos seis metros de altura.
Me sacudi para tirar o excesso de água, e raspei a mão de leve no coldre da minha .357 SIG P229. A maioria dos agentes do Bureau estava usando a Glock 23 para facilitar
o trabalho dos fabricantes de armas e a de troca demunição em campo, mas alguns dos agentes mais antigos puderam manter suas SIGs. Eu adorava aquela arma, então
estava grato por ser um desses agentes.
A maioria dos policiais estava reunida no lado oposto da sala cavernosa, e comecei a andar na direção deles, esquadrinhando o caminho o máximo que pude.
Três portas de saída, incluindo uma escadaria que provavelmente levava até o estacionamento.
Um elevador logo à esquerda da escada.
Seis câmeras de vídeo, nenhuma panorâmica, presas nos cantos e nas fendas do teto bem acima de mim. Há alguns instantes, assim que entrei no prédio, eu reparei em
duas câmeras adicionais cobrindo a entrada do estacionamento, e esperei que houvesse cobertura nas saídas de emergência também.
E é claro, atrás dos vidros, dos meus dois lados nos primatas.
“Jaulas” não parecia a palavra certa para descrever as estruturas que os prendiam. Habitats, talvez. Habitats cercados por vidro.
Cada um deles era tão largo e comprido quanto alto, e podia ser acessado através de uma porta na parte de trás das portas deslizantes de aço, do tamanho de um macaco,
que ligavam os habitats.
O barulho e os gritos constantes dos primatas preenchiam o ar.
Cada habitat tinha uma combinação diferente de balanços de corda e grandes redes de lona para os animais descansarem. Alguns tinham balanços de pneus ou barras para
eles se pendurarem, outros tinham cobertores para se esconderem. Tudo era coberto por palha.
Os agentes Ralph Hawkins e Lien-hua Jiang estavam parados próximos a um corredor que levava para outra ala do centro. A sólida massa musculosa de Ralph fazia forte
contraste com a figura magra e esguia de Lien-hua.
Então.
Pelo que sabia, ela estava trabalhando em um caso em Miami e não esperava vê-la aqui essa noite.
Ralph me viu. – Pat – sua voz era grave, mais um rosnado do que qualquer outra coisa. – Por aqui.
Lien-hua e eu ainda não havíamos nos encontrado desde o término do nosso relacionamento. Nos cumprimentamos com um aceno meio tenso, então ela virou os olhos para
um habitat próximo. Parecia ser o que continha o corpo de Mollie, mas minha visão estava obstruída pelos policiais da unidade de perícia.
Mesmo usando jeans, uma camiseta e um blusão, Lien-hua estava elegante como nunca, em seu jeito oriental. Pensativa. Bonita. Inteligente.
Duas mechas de cabelo preto emolduravam seu rosto.
Não foi fácil, mas virei meu olhar para Ralph. – Me conte tudo – pus as luvas de látex. – O que já sabemos?
– Uma vítima: Mollie Fischer, caucasiana, 22 anos. Atacada por dois chimpanzés. A tratadora que a encontrou matou os dois – sua voz estava carregada de uma imensa
raiva. – O assassino amarrou os pulsos da garota no galho da árvore. Ela não teve chance. Ainda não sabemos por que o crime aconteceu aqui. Mollie não tem nenhuma
ligação com esse lugar. Até onde sabemos.
Lien-hua disse: – Os animais foram injetados com 1-fenil-2-aminopropano – havia raiva em sua voz também, mas equilibrada com uma profunda compaixão. – Basicamente,
eles foram drogados para ficarem o mais agressivos possível.
– Certo – eu disse, me preparando. – Vamos dar uma olhada.
10
Entramos no labirinto de corredores que serpenteavam atrás dos habitats e passamos por uma série de salas de pesquisa com paredes de vidro, equipadas com repartições
de tela de arame para manter os pesquisadores seguramente separados dos primatas. A porta de trás em cada habitat dava para uma das salas.
Lien-hua andava ao meu lado. Graciosamente.
Eu podia sentir o peso do silêncio ampliando-se entre nós e tentei pensar em um jeito de quebrar o gelo, mas antes que pudesse pensar nas palavras certas, ela rompeu
o silêncio. – Pat, nosso passado precisa ficar no passado – ela falava suavemente, voz repleta de sua ascendência asiática, e apesar de tentar soar objetiva e desapegada,
dava para sentir que o assunto era difícil para ela. – Esse caso, é aqui que nós estamos. É aqui que precisamos estar.
Ela estava certa, é claro, mas isso não facilitaria as coisas em nada.
– Não podemos fingir que nada aconteceu entre a gente – eu disse, mais pelo meu bem do que pelo dela. – Que nós não éramos...
Apaixonados, eu pensei.
– Íntimos – eu disse.
Uma pequena pausa. – Não estou sugerindo que finjamos, só estou dizendo que devemos seguir em frente – um fino fio de dor escorreu de cada palavra, mas não pude
deixar de lembrar que foi ela quem acabou com tudo, não eu. – As pessoas fazem isso, sabe – ela disse. – As pessoas se veem, elas terminam, elas arrumam um modo
de trabalhar juntas novamente.
Sim. Você está certa. As pessoas fazem isso.
Ela olhou para mim. – Precisamos fazer isso também.
– Eu sei – respondi.
– Muito bem – ela tomou fôlego, então acrescentou: – Estou feliz por você ter voltado para cá, no entanto.
– É bom te ver também.
Lien-hua.
Cheyenne.
Esse verão ia ser complicado.
Ao atravessarmos o corredor, reparei em estações de teste computadorizado, máquinas de ressonância magnética e tomografia nas salas adjacentes. Por causa de um caso
em que trabalhei em San Diego no inverno passado, eu até reconheci duas máquinas de MEG, ou magnetoencefalografia, usadas para estudar campos magnéticos gerados
por atividade neurológica.
Certamente havia um bom dinheiro por trás desse instituto.
Lien-hua reparou que eu estava analisando as salas. – Tivemos uma reunião informativa antes de você chegar – o tom dela era profissional, de um colega de trabalho,
e doía ouvi-la usando-o comigo. – A maioria das pesquisas daqui é focada na cognição dos primatas, mas nessa ala eles também estão estudando a agressividade dos
macacos. A tratadora chegou às 19h para verificar os animais, encontrou o segurança drogado, Mollie morta e os chimpanzés mutilando o corpo dela. Foi isso. É tudo
que sabemos. A polícia metropolitana estáentrevistando-a agora.
– Algum indício de que ela possa estar envolvida? – imaginei que
Lien-hua quisesse que eu imitasse seu tom frio, desapegado, e eu tentei, mas falhei lamentavelmente.
– Até agora, não.
– Como a droga foi identificada tão rapidamente?
– Eles a utilizam nas pesquisas.
Após mais alguns passos, ela disse: – Uma pergunta pessoal. Tudo bem?
– Claro.
– Como você e Tessa estão?
Apesar de não ter contado para Lien-hua sobre Paul Lansing, ela estava ciente dos meus esforços no relacionamento com minha enteada.
No momento, evitei todo o assunto sobre o pai de Tessa. – Ela está bem. Obrigado por perguntar. Na verdade, ela disse que estava ansiosa para te ver nesse verão.
Quer conversar com você sobre algo chamado Nagas.
Um pequeno momento. – Sim. Seria legal.
Mantive a curiosidade para mim mesmo.
Chegamos à porta que dava para o habitat onde Mollie havia sido morta. A porta era larga, mas baixa, e com quase 1,91 m de altura, eu tinha que me abaixar para passar.
Quando entrei, fui atingido pelo forte cheiro de palha e fezes e o aroma enferrujado de sangue.
Morte no ar.
Para chegar até Mollie, eu tinha que passar pelos dois chimpanzés mortos.
Ambos tinham os dentes sujos de sangue e manchas de sangue espalhadas pelos rostos e nas mãos. O maior deles tinha um único ferimento à bala no peito. O outro foi
atingido duas ou três vezes, era difícil dizer, e estava caído mais perto da porta. Um policial estava entrevistando uma civil do sexo feminino com aparência perturbada,
possivelmente a tratadora, mas tentei não fazer suposições.
Ralph estava conversando com os três oficiais da unidade de perícia ao lado do corpo de Mollie. Quando eu e Lien-hua chegamos, eles se afastaram.
E então, Mollie.
Caída aos meus pés.
Eu sabia que chimpanzés são inúmeras vezes mais fortes que humanos e podem se tornar violentos, mas eu não fazia ideia de que eles podiam ser tão selvagens. A maior
parte do rosto de Mollie havia desaparecido, as marcas fundas de mordidas sangrentas seguiam pelo que havia sobrado de suas bochechas, descendo profundamente até
o pescoço.
Com tanta pele e carne faltando no rosto dela, mandíbula se projetava grotescamente na minha direção. Um de seus olhos foi pulverizado, o outro estava faltando.
Senti que estava ficando cada vez mais enjoado e enraivecido.
Ela tinha um único piercing e um brinco no que havia sobrado de cada orelha e usava no pescoço uma corrente de prata que estava enfiada debaixo de seu moletom da
Georgetown. Uma vez cinza-claro, o moletom agora estava escurecido pelo sangue espirrado. Com a mão enluvada, puxei a corrente e encontrei um medalhão com duas iniciais
gravadas: R.M.
Mollie tinha uma estrutura física pequena, pesava talvez cinquenta quilos, usava jeans azuis, sapatos pretos e tinha cabelo loiro, agora emaranhado com sangue e
diversas tiras finas e medonhas de carne que haviam sido arrancadas de seu rosto. Sua perna direita estava obviamente quebrada, o pé virado para o lado, perpendicular
em relação ao resto da perna.
Uma morte selvagem, brutal e terrível.
O conteúdo de sua bolsa estava espalhado ao meu redor pela palha.
Tirando o sangue em seu moletom, suas roupas estavam secas.
As tiras de couro que o assassino usou ainda estavam amarradas apertadas em torno de cada pulso, e a pele ao redor das tiras estava vermelha e em carne viva do que
devem ter sido suas tentativas desesperadas de se soltar. Percebi que duas de suas unhas estavam lascadas, e presas no canto de uma delas, diversos fios de tecido
azul.
Da roupa do assassino?
De um carpete?
Lençóis? Um cobertor?
Os caras do laboratório descobririam.
Mencionei as fibras para a unidade de perícia e eles me disseram que já haviam tomado nota sobre isso. Olhei para cima e vi duas tiras de couro penduradas no galho
da árvore onde ela havia sido presa. Imaginei que os policiais que responderam ao chamado precisaram cortar as tiras para descê-la para o chão. – Quando ela foi
vista viva pela última vez?
– Não temos certeza – Ralph respondeu. – Alguém a viu na estação Clarendon do metrô por volta de 16h essa tarde. É a mais recente que sabemos.
Considerei isso.
16h00.
Agora eram 20h31.
Olhei para as solas pretas do sapato dela. Desgastadas.
Senti a barra da calça dela.
Seca.
Pensei nos sete passos que os oficiais de polícia seguem: preservar a cena do crime, prender o suspeito, dar assistência aos feridos, chamar reforços, reter testemunhas,
identificar o corpo, buscar todas as pistas.
– Quem fez a identificação?
Ralph indicou a bolsa de Mollie. – A tratadora encontrou a carteira de motorista e ligou para a polícia.
Eles trouxeram o deputado aqui imediatamente. Ele a identificou. Sim, eu sei que não é normal fazer isso na cena do crime – ele continuou, – mas havia suspeita de
ser um crime com motivações políticas, que a vida dele poderia estar em perigo, então a polícia do Capitólio o trouxe. Levaram--no para um local seguro logo em seguida.
Pela extensão dos ferimentos que a desfiguraram, imaginei como ele havia feito a identificação. Talvez por alguma marca de nascença. Uma tatuagem.
Ele é pai dela, Pat. Um pai conhece sua filha. Mesmo morta.
Analisei a palha suja de sangue cercando o corpo de Mollie. Um frenesi de violência. – Outros familiares?
– Ela é filha única. A mãe está na Austrália para o casamento de um parente – os oficiais da unidade de cena do crime me olharam silenciosamente. Tive a sensação
de que eles não estavam felizes comigo mexendo no que era responsabilidade deles.
Levantei-me e avaliei a área toda. – Alguma outra coisa como essa? Algum crime parecido sobre o qual saibamos? Ligações com outros homicídios?
– Checamos o ViCAP,4 – Ralph disse. – Pessoas já foram dadas como comida para dobermans, porcos, jacarés, mas nunca para primatas. Pelo menos não que a gente saiba.
Eu podia dar uma olhada melhor nisso depois.
Os peritos fariam uma varredura na sala procurando evidências físicas. Eu não estava aqui para isso. Meu trabalho era reparar nas peças do quebra-cabeça que passam
despercebidas para outras pessoas.
Recapitulei mentalmente o que eu já sabia.
A parada do metrô.
A chuva.
A posição de visibilidade do congressista como líder da minoria do congresso.
Hora. Local. Padrões. Rotas.
Lien-hua estava estudando a posição dos corpos dos chimpanzés. Ralph estava ajoelhado ao lado de Mollie, inspecionando seus ferimentos. Os três oficiais da unidade
de perícia ainda estavam me observando.
– Hora da morte? – perguntei a eles.
– Não faz muito tempo – um deles respondeu. Ele era magro, com olhos azuis, cabelo loiro, e tinha um tique nervoso de esfregar o dedão esquerdo e o indicador um
no outro. A etiqueta costurada ao seu uniforme dizia Oficial Roger Tielman. – A temperatura e a lividez do corpo sugerem de uma a três horas. Provavelmente próximo
das 18h. Talvez se aproximando das 19h.
Não era específico o suficiente para me ajudar a afunilar as coisas.
– Última chamada em seu telefone? – perguntei. – Alguma mensagem de texto?
– Já verificamos as últimas dez chamadas, todas de números pré--programados. Oito mulheres, dois homens.
– Alguma de um R.M.?
Um olhar confuso.
– Alguma das chamadas foi feita por uma pessoa com as iniciais R.M.?
Ele mandou um dos oficiais ao lado dele ir descobrir.
– Há centenas de mensagens de texto do mês passado – Ralph acrescentou. – Os caras da ERT estão cuidando disso. – A Evidence Response Team, ou ERT, é a unidade forense
do FBI.
Peguei meu celular. Digitei alguns números na tela sensível ao toque.
– E quanto às câmeras de segurança do instituto? – perguntei a Tielman. – Alguma coisa?
– Sim. Verificamos – ele parecia quase insultado pela pergunta. – O trecho das 17h às 19h foi apagado.
No meu telefone, naveguei até o Banco de Dados Digital Federal e entrei no site da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica. Eles podem não gravar dados detalhados
de cada cidade dos EUA, mas eu estava contando com o fato de eles acompanharem mudanças meteorológicas aqui na capital do país. Digitei o número da minha identificação
federal e então olhei pelo vidro, para uma das câmeras sobre o corredor central. – As câmeras estavam ligadas quando vocês chegaram?
– Sim.
– E agora elas estão direcionadas para a mesma posição que estavam antes da filmagem ter desaparecido?
Ele pareceu um pouco confuso. – Na mesma posição?
Eu estava ficando frustrado com a necessidade repetitiva de Tielman por esclarecimentos. – As câmeras estão todas paradas; não estão captando a panorâmica.
Eu quero saber se alguém assistiu à filmagem antes das 17h e confirmou se os ângulos para os quais as câmeras estão apontadas são os mesmos de antes da filmagem
ser apagada.
Ele desviou seus olhos de mim para sua parceira, uma mulher hispânica esbelta, e então de volta para mim. – Eu imagino que eram.
– Não imagine – eu disse. – Descubra.
– Por que isso importaria?
– Tudo importa.
– Vá – Ralph disse, acabando com a discussão.
Tielman falou com sua parceira, mandou-a descobrir sobre os ângulos das câmeras. Ele ficou para trás enquanto ela cruzava a pela porta.
Os dados de precipitação da ANOA apareceram na minha tela em uma série condensada de colunas de números, organizadas por coordenadas de longitude e latitude.
Mais alguns toques na tela e eu havia baixado imagens da cidade do satélite de defesa.
Fui até um canto do habitat, empurrei um pouco da palha para o lado para dar espaço ao meu telefone, coloquei-o sobre o concreto e abri o programa de holograma.
Um instante depois, o telefone estava projetando um holograma em 3D do centro de Washington. Ele pairou a um metro do chão, com meio metro de largura e comprimento.
Edifícios brilhantes, ruas reluzentes.
Com esse telefone, eu era capaz de girar o holograma, dar zoom e sobrepor dados para destacar locais específicos e rotas de deslocamento. Apesar de não ter certeza
de que minha ideia funcionaria, transferi as estatísticas e coordenadas de precipitação sobre a cidade, sobrepondo-as contra as imagens em 3D do holograma, assim
como faço com as rotas de deslocamento de vítimas quando estou fazendo um perfil geográfico.
Os níveis de precipitação estavam marcados em camadas de tons em degradê de azul, correspondendo ao nível de precipitação registrado pelos satélites da ANOA. Apesar
de ser difícil discernir as mudanças sutis entre as cores, quando analisei mais de perto, pude reparar por pouco nas diferenças. Comecei a revisar os níveis com
intervalos de quinze minutos, começando às 16h, quando Mollie foi vista pela última vez.
– Isso aqui não é esporte para se ficar assistindo – Ralph rosnou. Suas palavras chamaram minha atenção e, quando me virei, percebi que todos no habitat, exceto
Ralph e Lien-hua, estavam olhando para o holograma.
– Voltem ao trabalho – quando Ralph fala, as pessoas obedecem. Em instantes, todos haviam dado as costas para mim.
Lien-hua se inclinou e passou a mão em um monte de palha suja de sangue.
Continuei a navegar pelos marcadores de tempo até chegar às 19h e achei o que estava procurando.
– Preciso ver o estacionamento – eu disse.
– O que foi? – Ralph perguntou.
Fechei o programa e o holograma desapareceu. Guardei o telefone no bolso. – Troca de turno e a estação de metrô. Encaixa – parti para a saída, mas antes que pudesse
sair, encontrei dois membros da ERT do Bureau passando pela porta.
Primeiro, o agente Tanner Cassidy, um velho amigo meu, apareceu. Estatura mediana, cabelo castanho. De fala suave, meticuloso e dedicado. Ele apresentou a agente
atraente que, apenas um instante depois, apareceu ao lado dele. – Essa é Natasha Farraday. Transferida de St. Louis. Apresentei-me. – Pat Bowers.
Ela apertou minha mão segurando suavemente meus dedos, em vez de tocar na mão inteira. – Prazer em conhecê-lo – com um sorriso encantador e olhos grandes e tímidos,
ela me fez lembrar de Christina Ricci com uns vinte e cinco anos.
– O prazer é meu.
– Agente Cassidy – Lien-hua chamou, com uma voz fria. – Por aqui.
– Eu li seus livros, dr. Bowers – Natasha me disse.
Eu estava prestando atenção na profunda preocupação estampada no rosto de Lien-hua. – Ok.
Cassidy e Tielman se juntaram a ela. Ajoelharam ao seu lado. Cassidy chamou um fotógrafo e pediu um saco para evidências. – Achamos o olho de Mollie aqui.
Um surto de náusea.
– Com licença – eu disse para Natasha, indicando a porta, mas então percebi que ela poderia me ajudar. – Espere. Você pode vir comigo até o estacionamento?
– Claro.
Perguntei a Ralph se ele poderia vir junto e ele me seguiu, mal conseguindo passar pela porta com seus ombros enormes.
– O bom é que isso é construído para gorilas – eu disse.
– Olha lá o que diz...
Pegamos a escada para o estacionamento. Se eu estivesse certo, o carro do assassino ainda estaria lá.
11
Eu estava verificando os veículos.
– O carro de Mollie não está aqui – Ralph disse, com certa impaciência. – Nós já verificamos.
– Não estou procurando o carro dela – eu esperava encontrar apenas um punhado de carros, mas havia mais de trinta ali. – Havia apenas uma equipe mínima de funcionários
aqui hoje; por que tantos veículos?
– Eu já perguntei sobre isso para o segurança – ele soou incomodado; talvez comigo, talvez com a conversa que teve com o guarda. – Como o instituto fornece estacionamento
gratuito para os funcionários, a maioria da equipe deixa os carros aqui e pega o metrô. Pagar um estacionamento perto de seus apartamentos é tão difícil?
Vida urbana. Regalias.
Então esses carros são só dos funcionários... Ótimo. Isso diminui a lista.
Natasha parou ao meu lado, esperando por instruções.
Ralph disse: – Você está procurando o carro de quem?
– O vídeo teria mostrado o carro saindo do estacionamento. Eu estava presumindo que o assassino estivesse ciente disso.
– Eu pensei que você não presumia coisas.
Uma van seria ideal para transportar uma mulher sequestrada. E, ao passo que não vi nenhuma van, vi seis minivans, mas imediatamente podia dizer que não haviam sido
usadas para transportar Mollie. – Vamos chamar isso de hipótese inicial.
Deixei meus olhos percorrerem o estacionamento... eliminando possibilidades... eliminando... – Procure por carros que tenham porta-malas que sejam...
Então eu vi.
– Ali – comecei a correr na direção dele, um Volvo 2009 azul, sedã.
– Como você sabe? – Natasha disse. Ouvi Ralph e ela correndo atrás de mim.
– Água – apontei. – Debaixo dos para-lamas.
Cheguei perto do carro, usei minha lanterna para enxergar o concreto molhado sob o carro e continuei minha explicação: – Começou a chover em Washington às 17h06
e não parou mais.
Mollie está usando roupas de algodão que absorveriam água, mas elas estão secas, então o assassino obrigatoriamente a tirou do carro aqui dentro. Apenas três carros
dos trinta e dois têm água debaixo deles, dois possuem adesivos de acesso mensal neles, um seria do segurança, o outro, da tratadora. Esse aqui não tem adesivo.
Não faz sentido.
Eu ainda estava usando as luvas de látex. Tentei as portas. Trancadas.
Então o porta-malas.
Trancado.
– Não poderia ser o carro de alguma outra pessoa? – Natasha perguntou.
Talvez...
Apontei para o carpete azul do carro. – Ela tinha fibras azuis presas em uma unha quebrada.
Tirei meu conjunto para abrir fechaduras do bolso e olhei pelas janelas do carro, mas não consegui ver nada anormal.
Ao meu lado, Ralph havia pegado o telefone e já estava verificando a placa, da Virgínia: 134–UU7
– Por que o assassino deixaria o veículo aqui? – Natasha perguntou.
Era uma boa pergunta, a pergunta óbvia.
Talvez para evitar ser pego pela câmera...?
Mas mesmo se ele não foi embora dirigindo, as câmeras o teriam fil
mado indo embora a pé. Além do mais, a filmagem foi apagada...
– Não faço ideia – comecei a trabalhar na fechadura do porta-malas, então percebi um movimento e vi o tenente Doehring se aproximando com um policial atarracado
e de bigode, que eu não conhecia, caminhando ao lado dele.
Ralph guardou o telefone no suporte em seu cinto. – O carro está registrado em nome de Rusty Mahan.
– R.M. – eu disse.
– Mahan? – perguntou Doehring. – Eu acabei de sair de uma ligação com o deputado Fischer. Um cara chamado Rusty Mahan é namorado de Mollie. Vinte anos de idade.
Mora no campus da Georgetown.
– Era namorado dela – o outro policial respondeu. – Até ontem. Eles tiveram uma briga feia na mansão do pai dela. Fischer disse que o garoto ficou arrasado.
Eu estava trabalhando na fechadura do porta-malas. – Precisamos encontrá-lo.
– A segurança do campus já está trabalhando nisso – Doehring respondeu. – Mas você vai adorar isso: ele é um estudante de graduação em biologia evolucionária. Trabalhou
aqui como estagiário no semestre passado.
– Então ele poderia ter acesso ao edifício – o policial corpulento disse. Olhei para seu distintivo: Lee Anderson. Ele continuou: – O carro o coloca na cena do crime,
e como ele acabou de terminar um relacionamento com a vit, temos um motivo – ele soava como se houvesse acabado de resolver o caso.
– Certo, então – eu ainda estava trabalhando na fechadura. – Parece que está tudo resolvido.
– Não o provoque – Doehring disse para Anderson.
– Com o quê?
– Motivo – ele respondeu. – E não diga vits, executores, perpetrador.
Você vai se arrepender.
Definitivamente, não era hora de ter aquela conversa.
– Estamos procurando por pistas – eu disse. – Motivo não é uma pista. Na melhor das hipóteses é uma evidência circunstancial, e ainda assim é discutível.
– Como assim, motivo não é uma pista? – Anderson perguntou ceticamente.
– Lá vamos nós – Ralph grunhiu.
A fechadura estava me dando trabalho, e isso estava me irritando.
Eu não estava com humor para isso. – Não há como provar que uma pessoa teve um motivo específico em um momento específico, e não há motivo nem para tentar: nosso
sistema de justiça não exige uma demonstração de motivo para conseguir uma condenação por qualquer crime previsto na lei. Júris gostam disso, mas é uma enganação
porque tentar descobrir motivos é um jogo de adivinhação que você nunca sabe se ganhou. Investigadores deveriam lidar com fatos, e não com conjecturas.
Pronto.
A fechadura abriu.
Abri o porta-malas.
Todos os três homens e Natasha se inclinaram para olharem dentro dele.
Carpete azul.
E uma série de marcas escuras de pancadas na parte de metal do lado do passageiro. – Ela estava consciente quando a transportaram – não percebi que havia dito as
palavras em voz alta até ver Natasha me olhando curiosamente. Apontei para as marcas. – Da mesma cor que as solas do sapato dela. Ela estava chutando. E forte.
– Ela ficou aqui dentro por um tempo – Doehring estava olhando para as marcas. – Lutou bastante.
Hora, local.
Hora.
Peguei meu celular e liguei para Lien-hua. – Alguma novidade sobre as câmeras de segurança?
– Os mesmo ângulos, Pat – ela disse. – Quem quer que tenha apagado a filmagem, ele não as redirecionou. Por que você queria saber disso, afinal?
– O assassino apagou a filmagem, portanto ele obviamente conhecia o sistema, mas então ele teria que deixar o prédio após fazer isso, e as câmeras estariam ligadas
quando ele fosse embora. Eu queria ver ser ele redirecionou os ângulos de alguma delas para que pudesse sair sem ser detectado. Se ele tivesse feito isso, saberíamos
qual porta usou para deixar a cena, ou se saiu pelo estacionamento.
Um momento de reflexão se passou enquanto ela processava o que eu havia dito. – Boa ideia. Outra coisa: alguém com um celular capturou imagens de uma loja de eletrônicos
que estava transmitindo um sinal ao vivo das câmeras de segurança daqui de dentro do instituto de pesquisa. Eles mandaram a gravação para a CNS News. Estamos em
todos os canais.
Oh. Péssimo.
Ela me passou o nome e o endereço da loja.
– Precisamos comparar uma lista de funcionários da loja com pessoas que possam trabalhar no instituto de pesquisa. Também verifique contas de cartão de crédito,
encontre os clientes mais recentes e mais frequentes.
Essas não eram tarefas para Lien-hua, ela sabia disso, eu sabia disso, mas ela entendia o jeito que eu trabalhava e se certificaria de que as coisas seriam feitas.
Nunca houve nenhum ciúme profissional entre nós.
Nenhuma rivalidade. Nós nos complementávamos.
Ou pelo menos era assim antes.
Me afastei do telefone. – Doehring, veja se Mahan tinha alguma ligação com a Williamson’s Eletronics Store que fica na Connecticut.
Doehring acenou com a cabeça e pegou seu walkie-talkie.
Voltei para minha conversa ao telefone com Lien-hua. – Venha aqui embaixo assim que você puder. Precisamos conversar.
Após desligar, percebi que Natasha havia ligado para mais dois agentes da ERT e os três haviam começado a analisar o carro. Quando Doehring finalizou sua transmissão,
Ralph começou a informá-lo sobre as coisas que já sabíamos e eu fui até a entrada do estacionamento e olhei para a noite, organizando meus pensamentos enquanto esperava
por Lien-hua.
Se Mahan fosse o assassino, por que ter todo o trabalho de trazê-la aqui? Por que deixar seu carro na cena do crime? Por que deixar a bolsa dela com tudo dentro
no habitat...
A chuva caía no telhado. Batidas finas e constantes de água.
O estádio dos Nationals, ali perto, se erguia como uma imensa fera negra manchando a linha do horizonte.
No fim do quarteirão, as luzes dos semáforos se moviam em sua dança lenta e metódica de três passos, passando de verde para amarelo e depois para vermelho.
Chuva cortante. As luzes piscantes de veículos de emergência. As ruas escuras de Washington, DC.
Hora da morte: entre 18h e 19h.
Verde.
Ela foi vista pela última vez na estação Clarendon do metrô...
Pelo menos isso nos dava um local com o qual trabalhar. Tentar seguir os padrões de movimentação dela.
Amarelo.
Lien-hua chegou e eu percebi o cheiro delicado de sua presença. Tão familiar para mim, mas também, agora, tão mais distante do que estava um mês atrás.
Vermelho.
– Pat. Estou aqui.
Em instantes contei a ela sobre o carro e Rusty Mahan, então eu disse: – Eu sei que você não gosta de fazer isso assim, na hora. Mas vocêpoderia me dar um perfil
preliminar? Sejam quais forem suas primeiras impressões, só isso.
– Eu não confio em primeiras impressões, você sabe disso. Eu confio numa avaliação crítica.
– Sim, eu sei – eu disse. – Eu também.
– Eu sei o que você acha de perfis, Pat. Estou surpresa por você ter me pedido para...
– Por favor – não era só a natureza sinistra desse crime; eu não estava conseguindo envolver o contexto do que tínhamos aqui. – O que você está pensando?
Finalmente Lien-hua fechou os olhos. Entrou no mundo de empatia e compreensão dos criadores de perfil, o mundo que nunca fez muito sentido para mim, onde eu nunca
pisei. Levantando um dedo cuidadoso, ela traçou seus pensamentos pelo ar enquanto falava.
– O sequestro, a sofisticação em reencaminhar a transmissão de vídeo, drogar o guarda, usar os chimpanzés, juntos com a habilidade de entrar aqui, me dizem que ele
tem experiência, possui alto nível de educação e organização. De 30 a 35 anos. Com passado em programação de computadores. Talvez um hacker. A demografia e a pele
de Mollie me sugerem um infrator caucasiano.
Até então eu concordava com ela.
– Porém, seria difícil para alguém trabalhando sozinho sequestrar uma mulher sem ser percebido, subjugá-la, acessar o prédio, drogar os chimpanzés e o guarda, transportá-la
até a jaula dos chimpanzés...
– Ele teve ajuda.
Um aceno. – Considerando a posição do deputado Fischer, pode ter sido uma tentativa de atingi-lo, algum tipo de afirmação política.
Eu discordei. – A motivação política me parece fraca. Não tem nenhum bilhete, nenhuma ameaça, nenhuma exigência. E um grupo de assassinos capaz de realizar um crime
tão elaborado poderia certamente ir atrás do próprio deputado se quisesse. Por que não apenas matá-lo?
Ela abriu os olhos. – Isso manda uma mensagem mais forte.
Quando pensei nisso, tive que concordar, apesar de não ter ideia de que mensagem seria. – Mas – ela acrescentou – você está certo; precisamos de mais informações.
Um momento depois, Doehring se juntou a nós.
– Não foi o namorado – Lien-hua continuou. – Sua idade não bate com isso e o crime é muito elaborado para ser bolado em vinte e quatro horas. Além disso, Mollie
não terminou com ele. Eles devem ter discutido, mas foi só isso.
– Como você sabe disso? – ele perguntou a ela.
– Mollie ainda estava usando o medalhão com as iniciais de Rusty.
Se ela tivesse terminado, não estaria usando – Lien-hua desviou os olhos de mim, olhando na direção de Doehring. – Eu sou mulher. Acredite em mim. Ela teria tirado.
Suas palavras faziam sentido, mas eu me peguei imaginando se ela ainda tinha algum dos presentes que eu havia dado a ela. Era doloroso imaginá-la jogando tudo fora.
Enterrei o pensamento.
– E também, a natureza sádica do crime apontam para um, e não me importo que você não goste do termo, Pat, motivo diferente que não ciúme ou raiva por causa do término
de um relacionamento.
Ela deve estar certa sobre isso também, provavelmente estava, mas esse é o problema em analisar alguém psicologicamente: você nunca tem certeza.
Ela concluiu: – Precisamos encontrar Mahan e conversar com ele não como um possível suspeito, mas em busca de informação sobre quem mais poderia querer fazer mal
para Mollie ou sua família.
– Por que alguém enviaria um sinal de vídeo para uma loja de televisão? – Doehring perguntou.
– Assim como os assassinos que voltam para a cena do crime para observar – ela respondeu –, esse foi o jeito dele, ou deles, de estar presente e ao mesmo tempo estar
a salvo.
– Eles sabiam do procedimento, que fotografamos aqueles que se juntam na cena do crime.
Ou o assassino pode ter aprendido isso assistindo a praticamente qualquer episódio de CSI ou Law & Order.
Percebi que a chuva estava finalmente parando. Uma sutil variação no clima.
– Nós sabemos se tem alguma câmera de segurança na loja? – perguntei para Doehring. – Que esteja virada para a rua? Para a multidão lá fora?
– Estão checando.
Semáforos.
Vermelho.
Verde.
Repassei os fatos mentalmente. Tentei organizá-los um a um, mas me peguei unindo coisas baseado em suposições sem fundamento em vez de me guiar pelas evidências.
Amarelo.
Deixei minhas especulações de lado e voltei para o andar térreo para dar outra olhada no corpo de Mollie Fischer.
12
Passei mais duas horas na cena do crime e até a hora em que me arrumei para ir embora, nem a segurança do campus de Georgetown nem a polícia metropolitana de Washington
havia conseguido localizar Rusty Mahan.
Descobrimos que as câmeras de segurança na loja de eletrônicos haviam sido desligadas, dificultando o trabalho de rastrear quem estava presente lá: tudo que tínhamos
para trabalhar era o curto vídeo de celular da CNS News, que não mostrava nenhum rosto, e o mais cedo que o Laboratório do FBI poderia analisar o vídeo seria amanhã
de manhã.
O pessoal da ERT no centro de primatas havia identificado dúzias de impressões digitais nas portas do instituto e no carro de Mahan, mas nenhuma delas estava registrada
no sistema de identificação de digitais.
Uma série de becos sem saída.
Todas as evidências circunstanciais apontam para Mahan, mas quando todas as evidências apontam para um lado, normalmente é uma boa ideia começar a procurar pelo
outro; caso contrário você acaba acidentalmente confirmando suas suposições em vez de tentar refutá-las vigorosamente.
Margaret chegara há dez minutos, muito mais tarde do que eu esperava, especialmente considerando o que ela havia acabado de me dizer na Academia sobre ter que fazer
duas ligações rápidas antes de ir. Eu ouvi enquanto Ralph e Lien-hua a informavam sobre o que já sabíamos.
Margaret ordenou que entregassem os relatórios até as 21h em ponto; depois ela virou-se para mim. – Vá para casa, agente Bowers. Eu não quero que a qualidade de
suas aulas seja afetada porque você não dormiu o suficiente. Nós cuidaremos das coisas por aqui e o informaremos amanhã sobre o que descobrirmos.
Não era preocupação pelos alunos que eu percebia na voz dela, mas, em vez disso, um descarte sutil, como se ela achasse que eu havia cumprido meu papel e agora estava
me dispensando.
– Venha aqui um segundo – gesticulei na direção de um canto do estacionamento, atrás de uma SUV próxima. – Preciso te perguntar algumas coisas.
Quando estávamos a sós, ela colocou as mãos na cintura. – Sim?
– Primeiro, por que estou nesse caso? Ao que tudo indica, esse é um homicídio isolado. Minha especialidade é analisar infrações em série interligadas, não...
– O diretor Rodale fez a atribuição, não eu. E só estou especulando isso, mas acho que é por causa da sua experiência de campo trabalhando em casos com alta exposição
na mídia, e não por ser na sua área de experiência. Que mais?
– Certo. A detetive Warren, de Denver. Existe um processo de seis meses de inscrição para entrar na Academia Nacional. Como ela foi aceita se acabou de se inscrever?
– Ela é muito qualificada – senti alguma coisa em seu tom de voz.
Dissimulação. – Você deveria saber disso, pois já trabalhou com ela.
– É claro que eu sei disso, mas ninguém sabe que as férias estão chegando e se inscreve para uma turma na Academia Nacional. Alguém teve que mexer os pauzinhos para
colocá-la lá dentro, e esse alguém seria...
– Eu.
– Sim.
– O delegado em Denver estava preocupado com a carga emocional do caso Giovanni. Ele quis afastá-la da cidade por um tempo – um sorriso malicioso. – Eu pensei que
você ficaria feliz em vê-la. Pelo que sei, vocês dois têm um relacionamento íntimo de trabalho.
Olhei para ela.
– Não esconda coisas de mim, Margaret.
– E não questione minhas decisões, Patrick. Vou pedir que o agente Hawkins passe o informe às 11h30 amanhã. Isso dará a você tempo sufi-ciente para chegar até o
NCAVC quando terminar sua aula – o National Center for the Analysis of Violent Crime é a seção do FBI onde Ralph, Lien-hua e eu trabalhamos. O prédio fica a doze
minutos de carro da Academia em Quantico. – Boa noite.
Ela deu um passo.
– Espere – eu disse.
Ela parou. Me fulminou com o olhar.
– Se Rodale quer que eu me envolva nisso, estou dentro. Mas não interfira. Deixe-me fazer meu trabalho.
– É exatamente por isso que estou aqui: para garantir que todos façam seus trabalhos.
Ela foi embora.
Pensei sobre o caso e sobre Cheyenne.
Pode chamar de TOC, mas não gosto de perguntas sem respostas, então mesmo sentindo que estava sendo vagamente desleal com Cheyenne, decidi verificar qualquer ligação
prévia que ela pudesse ter com a diretora-assistente-executiva Margaret Wellington.
Enquanto me dirigia ao meu carro, desviei-me da loucura das equipes de TV a cabo do lado de fora do prédio.
Desde que chegou em casa cerca de três horas atrás, Tessa estava tentando ler Boulders Dancing in the Tip of My Tongue, uma coleção de poemas de Alexi Marenchivek,
poeta russo pouco conhecido nos Estados Unidos, mas alguém que entendia os paradoxos da vida: tanto suas tragédias quanto suas glórias.
Tessa não sabia russo, apenas latim e francês, então estava limitada a ler uma tradução em inglês, o que meio que a irritava.
Por fim, ela deixou o livro de lado. Sua amiga Pandora andava a enchendo para ler algo de Sherlock Holmes, o que não era o barato dela, mas Tessa estava com esperanças
de ler algo de Robert Louis Stevenson, que, ao contrário de tantos escritores de “clássicos”, realmente sabia escrever.
Ela optou por Stevenson em vez de Doyle e pegou O Médico e o Monstro.
A cada cinco minutos ela checava se havia algum e-mail de Paul. Ele sempre mandava seus e-mails às 21h, mas por algum motivo essa noite ele estava atrasado e aquilo
a deixou um pouco preocupada. Ela havia mandado um e-mail para ele há cerca de uma hora, mas ele ainda não tinha respondido.
Ela abriu o livro na página marcada e leu a descrição de Stevenson para uma noite com neblina em Londres.
A neblina ainda descansava na ala sobre a cidade submersa, onde as lâmpadas brilhavam como carbúnculos; e através do silêncio abafado dessas nuvens caídas, a procissão
da vida da cidade continuava passando pelas grandes artérias com o som de uma poderosa asa.
Bom.
Muito bom.
Tessa verificou o e-mail novamente.
Nada.
Ela continuou lendo, mas dez minutos depois, distraída por seus pensamentos, deixou o livro sobre o sofá e tentou ver TV. Reprises de American Idol.
Karaokê com esteroides.
Acho que não.
Clique.
Algum filme de faroeste. Clique.
Uma reprise de Seinfeld, comerciais, comerciais, um dos filmes da série Star Wars. Mais comerciais. Ela estava prestes a desligar aquela coisa idiota quando encontrou
uma história em um canal de notícias a cabo com imagens de um zoológico ou algo do tipo em Washington, DC onde a filha de um deputado aparentemente havia sido atacada.
Ela parou.
A repórter, uma mulher perfeitamente esculpida com o cabelo perfeitamente arrumado falando com uma voz perfeitamente artificial, estava explicando que o deputado
não fora encontrado para comentar. – Mas confirmamos que isso é uma investigação conjunta e que o FBI já está trabalhando com a força policial local. Bob...
O FBI, é?
– Obrigado, Chelsea – a imagem cortou para o âncora. Então, ele começou a entrevistar o “analista especialista em crime” do canal, que aparentemente não tinha nenhuma
informação adicional mas não iria deixar que aquilo o impedisse de dar uma interpretação detalhada dos fatos não confirmados relacionados ao caso.
Palpites sobre uma conjectura baseada em boatos.
Os noticiários de hoje.
Nas imagens capturadas “apenas alguns momentos atrás”, exibidas por trás do ombro esquerdo do âncora Bob, Tessa reparou em um homem ao fundo andando na direção de
um carro. Ele estava usando uma jaqueta do FBI e poderia ser apenas outro agente anônimo, mas ela reconheceu o jeito como ele andava. E ela conhecia o carro.
Patrick.
Certo.
Isso é informação.
Ela esperou por mais detalhes do âncora, mas a mesma filmagem ficava sendo repetida e Bob continuava repetindo a mesma informação com as palavras levemente diferentes
a cada vez, incluindo um anúncio que fazia antes de cada comercial para parecer que havia novas notícias sobre o caso.
Finalmente, quando ele convidou as pessoas a mandarem e-mail para ele com suas opiniões dizendo se isso foi um ato de terrorismo doméstico ou não, prometendo ler
as mensagens no ar, ela não aguentou mais. A verdadeira cobertura jornalística tinha sofrido uma morte rápida e definitiva na era de mensagens instantâneas e com
um limite máximo de 140 caracteres.
Ela desligou a TV.
Checou seu e-mail.
Nada.
Pegou um pacote de salgadinho na cozinha, caiu no sofá novamente e recapitulou aquela noite.
A detetive Warren a deixou em casa pouco minutos depois das 20h, com a tempestade se agitando em volta delas.
Elas conversaram sobre coisas superficiais pelo caminho: o que Tessa queria fazer durante o verão (visitar o Smithsonian, a Biblioteca do Congresso, talvez o museu
da NSA, o Museu da Espionagem, coisas do tipo), se ela tinha um namorado (nada), se já estava pensando na faculdade (sim, talvez a Brown ou a USC; talvez a Duke)
e o que queria estudar (essa era fácil: graduação dupla em inglês e ecologia).
Quando chegaram em casa, a detetive Warren se ofereceu para ficar com ela, mas Tessa lhe disse para não se preocupar. – Vou ficar bem. Sério. Mas obrigada pela carona.
– Tudo bem. Tranque as portas – e mesmo não estando nem perto de ter idade suficiente para ser mãe de Tessa, ela soou maternal.
– Vou trancar.
– Boa noite.
Tessa hesitou antes de sair do carro. – Você não está aqui só para assistir um punhado de aulas, né? – ela não esperou uma resposta. – Eu sei o que você sente por
Patrick. Deu para perceber. Em Denver.
Uma longa pausa. – Bons homens são difíceis de se encontrar – nesse ponto, a detetive soava mais como uma irmã do que uma mãe. Papo de amigas.
– Então você veio pra cá pra reconquistá-lo?
– Eu nunca o conquistei, Tessa.
– E quanto ao seu ex-marido? Vocês dois não...
– Tessa.
Ela parou, esperando ouvir que aquilo não era da conta dela, mas a detetive Warren teve uma reação diferente. – Estamos nos dando bem novamente, e isso é uma coisa
boa. Mas nunca mais seremos próximos como éramos. Aquilo acabou.
Era difícil saber como responder.
Na verdade, Tessa a respeitava por sua franqueza e por ir atrás daquilo que realmente importava para ela, e por tudo que ela havia dito, Cheyenne e Patrick realmente
seriam um bom casal. – Ele gosta de você também – ela disse finalmente, apesar de não ter certeza se deveria. – Patrick gosta.
A detetive Warren ficou quieta.
– É melhor eu ir. Boa noite, Tessa.
– Boa noite.
– E tranque essas portas, tá?
– Certo.
Então Tessa se apressou sob a chuva, protegendo com o corpo as cartas que havia apanhado a caminho da casa.
Então lá dentro.
Porta fechada.
Trancada.
Desde que havia sido atacada e quase morta por um assassino em série a quem Patrick estava rastreando em outubro passado, ela havia aprendido a ser muito cautelosa.
Verificou a porta dos fundos, confirmou que estava trancada.
Certo.
Está tudo bem.
Mas agora, três horas depois, Patrick ainda não tinha chegado em casa. Ela sabia que ele ainda não havia superado Lien-hua, mas se as coisas não fse resolvessem
entre eles, ela achava que ele deveria muito bem ficar com a detetive Warren.
No entanto, era óbvio que ele gostava das duas, e, honestamente, ela também. Seria muito mais simples se uma delas fosse uma idiota, mas a detetive Warren, a cowgirl
sincera, e a agente Jiang, a bela introspectiva, eram ambas mulheres incríveis.
Tessa checou seu laptop novamente e dessa vez viu o ícone do e-mail piscando.
Com um pequeno arrepio de culpa, que sentimos ao fazer algo pelas costas de alguém, ela clicou para ler a mensagem.
Tessa,
Oi! Você não vai acreditar nisso. Estou em Washington! Apenas pelos próximos dois dias. Uma amiga minha tem algumas esculturas que serão exibidas no Museu Hirshhorn.
Eu tenho o meio do dia livre amanhã e adoraria te ver. A gente poderia se encontrar por volta das 10h30. Estou pensando em perto do Capitólio, talvez. Eu conheço
algumas pessoas e acho que consigo um passeio turístico para você.
Me avise.
Com amor,
Paul
Oh.
Inacreditável.
Nada bom.
Nada bom mesmo.
Ela releu a mensagem.
Amanhã!
Por que ele não te avisou sobre isso antes? Por que ele...
Um par de faróis virou a rua e começou a vir pelo longo e sinuoso caminho que dava na casa.
Oh, não.
Patrick.
Tessa não conseguia pensar em nenhuma maneira de contar para ele o que estava acontecendo. Não, não, não, não agora. Ele suspeitava de Paul desde o começo, e se
descobrisse que ela estava trocando e-mails com Paul assim, pelas costas dele, ficaria furioso.
Além do mais, mesmo que ele desse permissão a ela para se encontrar com Paul, de jeito nenhum ele ficaria feliz com isso.
De jeito nenhum no mundo.
Chega de e-mails. Tem coisas sobre as quais você precisa conversar com
Paul. Vá encontrá-lo, consiga suas respostas, então resolva tudo com Patrick amanhã à noite.
Ela digitou sua resposta para Paul.
A porta da garagem se abriu.
Patrick estava em casa.
13
Ouvi Tessa vasculhando os armários da cozinha. – É você? – eu falei.
– Como a resposta para essa pergunta poderia ser não?
Parei.
Faz sentido.
Ela apareceu, atravessou a sala e se jogou no sofá.
– Teve uma boa noite? – perguntei.
Ela deu de ombros. – E você? Foi muito ruim? Lá, no lugar dos macacos.
Deixei meus olhos perguntarem como ela sabia onde eu estava, e ela apontou o dedo para a televisão. – Eu vi você na TV.
– Perfeito.
– Está em todos os noticiários.
Suspirei. – Sim. Bom, a mídia vai ter bastante trabalho dessa vez.
Ela havia empilhado as cartas na mesa de centro ao lado de seu laptop, eu peguei o monte e comecei a olhá-las enquanto conversávamos: a última edição da Sports Illustrated
e da Soldier of Fortune, ambas endereçadas para
Freeman Runnels, o homem que nos deixou ficar em sua casa no verão... – Você agradeceu à detetive Warren pela carona?
– Patrick, eu não tenho cinco anos.
– Eu sei disso – um punhado de panfletos de venda, algumas ofertas de cartão de crédito, tudo para os Runnels.
– Então, não me trate como se eu tivesse. Eu sei quando dizer por favor e obrigada.
Olhei para Tessa e vi que ela me fitava com irritação.
– Eu só estava me certificando de que você foi educada – eu disse.
– Eu sou a rainha da educação.
Pisquei. – Você é a rainha da educação?
Uma sobrancelha erguida. – Cuidado.
– Só estou dizendo.
Ela deixou o livro sobre o sofá e se levantou. – Preciso ir pra cama.
– Você está se sentindo bem?
– Sim, claro – seu tom se suavizou. – Só estou, sabe, cansada. Eu acho.
Vou ter um dia cheio amanhã.
Voltei para as correspondências. – Pensei que você fosse passear por aqui. Certo? – dificilmente alguém saberia que estávamos ali, então fiquei surpreso ao ver uma
carta com aparência oficial endereçada para mim de um escritório de advocacia em Washington, DC.
– Sim, quer dizer, eu estava pensando em pegar o trem até a cidade.
Talvez ver se consigo uma carteirinha de leitora na Biblioteca do Congresso. Ouvi falar que eles são muito legais quando o pedido é feito por estudantes. Tudo bem?
A Biblioteca do Congresso é a maior biblioteca do mundo. Um paraíso para os bibliófilos. Eu sabia que era um ponto de interesse obrigatório para ela durante o verão.
Ela falou comigo mais cedo sobre arrumar uma carteirinha de leitora para ter acesso à sala de leitura principal, então seu pedido não era surpresa.
Conforme abria a carta, percebi que não havia nenhum bom motivo para não deixá-la ir, exceto que eu realmente não gostava da ideia de ela perambular sozinha pelo
Distrito de Colúmbia.
Fique tranquilo. Ela já tem dezessete anos.
– Claro, tudo bem. Vou dar aula quase o dia inteiro amanhã – então uma ideia. – Estarei em aula das 8h às 11h e depois das 14h às 17h. Tenho uma reunião no intervalo,
mas devo ter tempo suficiente para ir até Washington, DC almoçar e voltar para a Academia. O que você diz?
Vamos almoçar juntos?
Você nunca vai conseguir, Pat. Não com a reunião... só a viagem já demoraria...
– Almoço – uma breve pausa. – Sim.
Ótimo.
Eu daria um jeito de chegar a Washington, DC a tempo.
Após um momento de embaraço, ela foi para o quarto, mas fui atrás dela. – Tem certeza de que está se sentindo bem?
Ela não virou. – Sim.
– Eu amo você – eu disse.
Ela abriu a porta do quarto. – Eu também.
Ela entrou e fechou a porta.
Sim, definitivamente converse com ela amanhã.
Escorreguei o conteúdo do envelope para minha mão e verifiquei as páginas.
Senti um nó na garganta.
A carta era de um escritório de advocacia que representava Paul Lansing.
Ele estava me levando para o tribunal para ficar com a custódia de sua filha.
14
Eu só estava em Washington,DC há algumas semanas, não é tempo suficiente para conhecer algum advogado, mas Ralph viveu aqui na última década.
Liguei para ele, e ele atendeu após duas chamadas. – Sim? – sua voz estava baixa.
– Ainda está no centro de primatas?
– Não. Estou em casa. Tony está dormindo – Tony era o filho de onze anos de Ralph. Um garoto que Tessa chamava de “idiota comedor de Cheetos, jogador de futebol
e videogame”.
– Desculpa ligar tão tarde.
– O que foi?
– Acho que preciso de um advogado.
Uma pausa. Tive a sensação de que ele estava reposicionando o telefone. – Pra que você precisa de um advogado?
Contei a ele sobre a carta do escritório de advocacia de Lansing.
– É o seguinte: eu sou o responsável legal por ela, então não acho que terei algum prob...
– Esse cara é pai dela, Pat.
– Eu sei, mas ele nunca assumiu esse papel.
– Ele queria assumir?
Uma lembrança desconfortável se retorceu dentro de mim.
Mês passado, Tessa encontrou uma antiga carta que Christie guardara na qual Paul implorava a ela que não abortasse sua filha. Ele prometeu ajudá-la a criar o bebê,
mas Christie não queria que ele fosse parte da vida delas e foi embora. E então criou Tessa sozinha.
– Esse não é o ponto, Ralph.
– O tribunal sempre favorece os parentes de sangue. Você sabe disso.
E ela ainda é menor de idade – sua voz havia se suavizado, e eu não achei que a simpatia dele nesse momento era um bom sinal. – Você vai precisar de um advogado
– ele disse. – Um muito bom.
Não era o que eu queria ouvir. – Você conhece algum?
– A maioria dos que eu conheço não trabalha com divórcios, guardas de filhos, nada dessas coisas. São todos de direito criminal – ele pensou por um momento. – Espere
um segundo. Deixe-me falar com Brineesha – escutei-o trocar algumas palavras indecifráveis com sua esposa e então voltar para o telefone. – Brineesha está dizendo
oi.
– Oi de volta.
– Direi a ela. Enfim, pode ser que ela conheça alguém para te indicar.
Uma de suas amigas do trabalho, Tracy, acho que acabou de passar por um divórcio, uma briga enorme por custódia, essa coisa toda. Seja quem for o advogado de Tracy,
parecia ser muito bom. Brin disse que vai perguntar o nome dele amanhã de manhã, assim que chegar ao banco.
Pelo menos era um começo. – Agradeça a ela.
– Ei, não se preocupe com isso, tá bom? Vai dar tudo certo – sua segurança parecia surtir o efeito oposto em mim.
– Sim.
– Vejo você às 11h30 amanhã. No meu escritório.
– Tudo bem.
Astrid conduziu Brad pelos degraus até o porão.
Onde eles estavam mantendo a mulher.
– Como foi para você? – ela lhe perguntou. – Hoje, eu digo. Poder assistir.
– Foi tudo como eu esperava que fosse.
Ela assistiu a tudo também, de um ponto privilegiado e exclusivo. – A transmissão do vídeo para aquela loja foi uma ótima ideia – ela disse.
– Obrigado.
– Você fez a filmagem que eu pedi? Depois?
Ele mostrou o telefone.
– Bom – ela pegou o telefone dele. Guardou-o no bolso.
Ela tinha que admitir, o plano de Brad era de longe o mais devastador e descarado de todos até então. Algumas falhas ela corrigiria nos próximos dois dias, mas,
no geral, ele havia feito um trabalho satisfatório, até admirável, e ela estava muito orgulhosa dele. Mais duas pessoas morreriam e o FBI nunca suspeitaria dela
ou de Brad.
– Como você aprendeu a reencaminhar o vídeo daquele jeito para a loja de televisão?
– Pesquisa.
– Pesquisa?
– Um emprego que tive antes do meu acidente.
Ela parou por aí e sentiu que era desconfortável para ele continuar. Ele nunca contou como conseguiu suas cicatrizes, mas desde que os dois haviam se conhecido,
ficou evidente para ela que era uma lembrança dolorosa.
Ela decidiu não insistir no assunto naquele momento.
Eles chegaram ao fim da escada e foram para o quarto que Brad tinha reformado recentemente.
Mês passado, ele lhe perguntou se eles poderiam transferir um pouco do trabalho deles para a casa. Ela não gostou da ideia no começo, mas ele foi persistente e,
quando ela percebeu que seria mais difícil se locomover depois que o bebê nascesse, ela deu a permissão.
Ele passou as últimas semanas trabalhando no quarto. Ela lhe deu carta branca e no final ficou surpresa pela dedicação que ele teve em projetá-lo para que servisse
a uma variedade de propósitos perturbadores. Ele até fez o quarto à prova de som e adicionou um ralo no chão para facilitar a limpeza.
Para ela, a excitação vinha da sensação de controle, não de inflingir dor física. Brad, por outro lado, havia recentemente ficado mais e mais fascinado com o aspecto
secundário de seu hobby.
Suas escolhas para a montagem do quarto refletiam isso.
Ela abriu a porta.
Brad ficou silenciosamente ao seu lado enquanto ela conferia se a mulher estava seguramente acomodada para a noite.
Quando Astrid terminou, ela trancou a porta atrás deles e levou Brad para o andar de cima.
Saber que a mulher estava lá embaixo, indefesa, presa e com medo servia para aumentar a emoção, e quando Astrid alcançou a porta do quarto, ela deslizou sedutoramente
para a frente de seu homem. – Pronto?
– Esperei por isso o dia todo.
E enquanto a prisioneira no porão gritava inutilmente por ajuda, no andar de cima, no quarto, os jogos da meia-noite começavam.
15
Quarta-feira, 11 de junho
491 Riley Road
Stafford, Virgínia
5h03
Acordei irritado, pensando na carta dos advogados de Paul Lansing.
E também no caso Mollie Fischer, poucos passos atrás na corrida pela minha atenção.
E na morte de Calvin.
E em Basque, é claro, o fantasma de carne e osso de um tempo na minha vida que pensei ter deixado para trás, à espreita, sempre à espreita, lá no fundo.
– Prometa que você não vai deixá-lo fazer isso novamente – Grant Sikora havia me implorado enquanto morria.
– Eu prometo – eu havia dito.
Meus pensamentos remoíam tudo isso, avaliando o que estava em jogo em cada caso, imaginando novamente como os advogados de Lansing poderiam saber nosso endereço,
ponderando, analisando. Todos os problemas pareciam cabos se esticando dentro de mim, puxando meus pensamentos em direções opostas.
Coisas demais com as quais lidar. O resumo da minha vida.
Mesmo sabendo que Brineesha ainda não teria chegado ao trabalho, chequei minhas mensagens para ver se, por acaso, ela teria me ligado com o nome e o número do advogado.
Mas não havia nada.
Olhei meu e-mail. Nada importante.
Como eu não precisava sair para a Academia até cerca de 7h30, me troquei, fiz um pouco de exercício – uma corrida de trinta minutos, vinte barras em um galho de
árvore no canto da propriedade e, então, abdominais até mal poder me sentar.
Mas isso não esvaziou minha cabeça.
Uma ducha.
Café da manhã.
Engoli um pouco de aveia e uma banana, peguei uma xícara do café Lavado Fino da Venezuela e meu laptop e fui para a varanda na parte de trás da casa.
Apesar de ainda nem ser 6h30, a manhã estava cheia de aromas do verão: grama recém-cortada, sol quente e o céu de um azul intenso. O ligeiro cheiro de peixe de um
lago próximo.
Pássaros cantavam nas árvores.
O vapor do meu café ondulava, rarefeito, saindo da xícara fumegante, e então se desvanecia, no sopro suave do vento, desaparecendo no momento.
Fiquei lá sentado, apenas existindo na quietude, no delicado alvorecer do dia. Eu nunca fui uma pessoa de meditar, mas sempre fui atraído pela clareza que a solidão
traz.
Um pequeno toque de calmaria no meio da minha vida tempestuosa.
Uma chance para pensar.
Quando a DEA transferiu seu treinamento básico de agentes para Quantico alguns anos atrás, um de seus instrutores de análise de cena do crime, e amigo meu, chamado
Freeman Runnels comprara essa casa. Na verdade, é mais uma cabana: de elaboração rústica, portas grossas de carvalho, móveis feitos à mão, de cerejeira.
Porém, nesse verão, ele estava em missão no Panamá e quando soube que eu iria dar aulas por três meses na Academia, ele gentilmente se ofereceu para abrigar Tessa
e eu aqui. – Só coloque água nas plantas – ele havia dito, e nós concordamos.
O terreno de dez acres era quase todo arborizado, exceto por uma faixa de grama atrás da casa. Um antigo muro de pedra, na altura da cintura, se estendia pela borda
das árvores que ficavam a cerca de trinta metros da varanda.
Tessa não é exatamente do tipo que gosta de atividades ao ar livre, mas ela valoriza sua privacidade, e quando ela viu a propriedade e descobriu que uma estação
da Virginia Railway Express ficava a apenas quinze minutos de caminhada, ela disse: – Acho que isso está bom – que na língua de Tessa queria dizer: – Legal. Vou
poder ir para Washington, DC sempre que quiser.
Acessei os arquivos on-line do caso para ver se tínhamos alguma novidade sobre o homicídio de Mollie Fischer.
O registro completo da polícia ainda não tinha sido postado, nenhum depoimento da tratadora ou do segurança e, apesar de me incomodar, isso não me surpreendia. Oficiais
da força policial são notoriamente lentos ao preencherem papéis de burocracia. É aquela parte do trabalho da qual ninguém parece gostar. Incluindo eu.
No entanto, fiquei satisfeito pelas fotos da cena do crime terem sido postadas.
Noventa e quatro delas.
Rolei pelas imagens.
Nenhuma foto de Mollie viva, apenas dela morta.
Primeiro, pendurada pelos pulsos, então deitada sobre a palha. Fotos de seus ferimentos, das amarras, dos chimpanzés mortos, das portas de entrada e saída. Seis
fotos separadas do olho que Lien-hua havia encontrado caído na palha, uma órbita injetada de sangue com uma íris azul-clara e uma parte do nervo óptico arrancado
de onde o órgão havia sido puxado...
Um pequeno movimento perto de uma rachadura no muro de pedra chamou minha atenção.
As folhas se separaram e um veado-de-cauda-branca entrou delicadamente no terreno.
Quando eu era adolescente em Wisconsin, meu pai me apresentou à religião não oficial do estado: caça ao veado. E pelo que conseguia me lembrar dos ciclos de crescimento
dos veados, percebi que aquele tinha talvez dois ou três anos de idade.
Ele perambulou pelo quintal, silencioso como uma batida de coração, mordiscando a grama até que algo o assustou e ele congelou, a cabeça erguida, as orelhas eretas.
Talvez ele tenha sentido meu cheiro.
Fiquei sentado imóvel, observando.
Ele ficou parado por apenas um momento, então, seja o que for que o deixou agitado deve ter parecido ameaçador demais, e ele repentinamente partiu, disparando para
o lado oposto do quintal, a cauda balançando, até que desapareceu nas sombras da manhã, no meio das árvores, logo após o final do muro.
Um momento de tranquilidade, de graça, deposto pelo medo. A tensa corrida pela sobrevivência. A vida fugindo da morte.
Sempre fugindo.
Sempre sendo perseguida.
Olhei para as fotos novamente.
Uma corrida que todos nós perdemos.
Como Calvin perdeu.
Como Mollie Fischer.
Como tantas vítimas que tinha visto ao longo dos anos.
Seus olhos mortos e fixos. Seus lábios silenciosos e cinzentos.
Suas famílias destruídas, aflitas.
Pensei naquelas banalidades que não funcionam enquanto observava o vapor fino e fantasmagórico do meu café se ondular e então sumir no ar matinal, então fechei as
fotos macabras da cena do crime.
Meus pensamentos voltaram para Basque.
Desde que fora solto, ele estava no centro do turbilhão da mídia. Sua condenação inicial, o novo julgamento subsequente e o veredicto de inocente pareciam uma história
boa demais para a imprensa deixar escapar, e como ele ainda estava sob os olhos vigilantes da mídia, eu duvidada que ele faria algo descaradamente ilegal, pelo menos
num futuro próximo.
Então eu fui cuidadoso e meticuloso em vez de apressado e desleixado na minha pesquisa acerca da pista que Calvin deixou: H814b Patricia E.
Mas até agora havia falhado em encontrá-la.
Se ela fosse mesmo uma pessoa.
Se ela fosse mesmo uma testemunha.
Ou uma vítima.
Ou se estivesse viva.
Peguei minhas anotações.
No começo, eu trabalhei com a ideia de que o bilhete era algum tipo de jogo de palavras, mas nenhuma combinação parecia fazer sentido.
A sequência não tinha dígitos suficientes para ser um número de telefone.
Não era um endereço, pelo menos não nos Estados Unidos. Não era um número decimal de Dewey.
Após esgotar minhas ideias, entrei em contato com Angela Knight, uma das melhores analistas de crimes cibernéticos do Bureau, e que tem uma queda por análise criptográfica.
Tínhamos tentado pesquisas envolvendo todas as combinações de Patricia em que pudemos pensar: Patty, Patsy, Tricia, Trisha, Trish; e claro, meu próprio nome, só
para garantir: Pat, Patrick, Rick, Eric, Ricci, Erica.
E assim por diante.
Não descobrimos nada.
Fizemos buscas em todos os dados coletados nas cenas dos crimes de Giovanni e Basque por possíveis relações com o nome ou com a sequên-cia de letras e números. Nada
sólido.
Angela sugeriu que poderia ser uma senha para algum arquivo do computador de Calvin, ou para site que ele talvez tivesse visitado, mas quando fizemos uma análise
digital de dados em seus três computadores e comparamos as letras e os números com todos os sites que ele tinha visitado, com os endereços em sua agenda, e com números
gravados em seu celular, não conseguimos resultado nenhum.
Vasculhei meus arquivos, procurando por algo que pudéssemos ter esquecido, até às 7h30.
Nada.
Esfreguei a cabeça.
Voltei para dentro de casa.
Enquanto juntava minhas coisas para partir para minha aula na Academia, percebi que tinha uma mensagem de voz de Ralph: “Ei, cara, Brin foi para o trabalho mais
cedo, encontrou a amiga, acabou de ligar. Missy Schuel. Esse é o nome dela. Da advogada. Não tenho um telefone, mas ela tem um escritório na 11th St. NW. Vejo você
às 11h30”.
Procurei o número, liguei para ela, deixei meu nome e meu telefone assim como um breve resumo da minha situação, então pedi que ela me ligasse assim que possível.
Então enfiei a carta dos advogados de Lansing na minha bolsa do computador para poder consultá-la e responder a qualquer pergunta que ela pudesse fazer.
Finalmente, antes de me dirigir à aula, deixei um bilhete para Tessa: “Me liga. Vamos combinar uma hora e um lugar para nos encontrarmos para o almoço”. Pensei em
acrescentar: “Temos que conversar sobre uma coisa, como o seu pai tentando te levar embora”.
Mas esse não é o tipo de coisa que se diz a alguém em um bilhete.
Com a bolsa do computador na mão, fui para a Academia.
16
Astrid e Brad se conheceram pelo DuaLife, um site onde você cria avatares, ou identidades on-line, e vive outra vida como qualquer um que você escolher. Casa, se
você quiser. Tem filhos, se divorcia, começa de novo. O que você quiser. Você pode ser um homem ou uma mulher, heterossexual ou gay, jovem ou velho.
Uma prostituta.
Um banqueiro.
Uma sacerdotisa.
Ou um assassino em série.
Ou uma vítima.
Ela havia encontrado Brad em um dos continentes mais novos, um que foi projetado para suprir os gostos exclusivos de adultos.
Mas não foi sexo virtual que os uniu.
Ela estava experimentando na época, explorando maneiras de controlar e manipular pessoas, e acabou decidindo ser a primeira mulher assassina em série do continente.
É claro, como os usuários do site tinham investido tanto tempo, e em alguns casos, dinheiro, na criação de suas vidas virtuais, você não pode simplesmente matar
os outros avatares sem pedir permissão ou negociar com seus criadores.
Então, contando com o fato de que, mesmo no DuaLife, as pessoas gostariam de ter seus quinze minutos de fama, Astrid havia postado um aviso dizendo que estava procurando
por voluntários que queriam ser atraídos, subjugados e então assassinados.
E ela estava certa sobre as pessoas quererem seu lugar ao sol. Dois homens e uma mulher responderam quase que imediatamente.
Aqueles foram seus primeiros jogos.
Mas eram só virtuais.
Apenas imaginários.
E, além disso, nenhuma daquelas três primeiras vítimas fora tão cativante como relacionamento ou intelectualmente e, como uma mulher que possuía um QI de 142, Astrid
começou a desejar alguém um pouco mais intrigante para matar. Então, em uma de suas conversas on-line com vítimas em potencial, ela conheceu Brad.
O avatar de Brad era um oncologista de 28 anos. Um mórmon fundamentalista que nunca havia casado, ele gostava de caminhadas, golfe, futebol americano e leituras
sobre filosofia.
É claro, na vida real ele poderia ser uma mãe solteira budista de 45 anos que gostava de filmes clássicos e judô.
Ou qualquer outra coisa.
Isso era parte da diversão. Uma vida completamente nova vivida em sua imaginação.
Apesar de ser possível que na vida real ele fosse uma mulher, em seus e-mails iniciais, Brad havia respondido às perguntas dela de um jeito inquestionavelmente masculino.
Ele também parecia exibir as qualidades que ela estava procurando em um homem na vida real.
Algum tempo depois de tê-lo conhecido on-line, ela começou a imaginar como seria jogar esses jogos de vida e morte e destino com pessoas de verdade.
Ela o convidara para seu apartamento no DuaLife e o estava embebedando para que pudesse subjugá-lo mais facilmente antes de matá-lo, mas foi então que ela começou
a ter outros pensamentos.
– Por que você quer morrer nas minhas mãos? – ela lhe perguntou. – Por que você quer que eu te mate?
– Porque você é uma mulher.
– Uma mulher? – na tela de seu computador, ela viu que ele tinha terminado sua vodca. Ela serviu outra para ele.
Ele tomou um gole. – Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche escreveu: “Um homem de verdade quer duas coisas: perigo e diversão. Portanto, ele quer a mulher como o
brinquedo mais perigoso”.
– Então, para um homem, uma mulher é um brinquedo?
– Sim – ele terminou a bebida. – E quanto mais perigosa, mais desejável ela é. Quanto maior o perigo, maior o prazer.
– Mas seria eu que brincaria com você.
– Sim – ele digitou.
Quando ele não explicou, ela respondeu: – Pensei que você acreditava em Deus, e ainda assim você lê Nietzsche? O homem que disse que “Deus está morto”?
– Você pode encontrar flores mesmo em um campo de ervas daninhas.
Então.
Bom.
Talvez fosse a hora de ver se Brad seria o escolhido para ser o parceiro dela. Ela digitou: – Quanta diversão e quanto perigo você pode aguentar? E, após uma pausa,
ele respondeu: – Quanto você tem para oferecer?
Oh, sim.
– Acho que é hora de nos conhecermos – ela digitou. – Pessoalmente.
E assim fizeram.
E o sexo veio em seguida. E também o amor. E agora, apesar de ela ainda não ter lhe contado, também um filho.
Uma nova família nascida de seu encontro no DuaLife.
Quando se conheceram, eles preferiram continuar usando seus nomes do DuaLife em vez de usar seus nomes verdadeiros. Um jeito de estender a fantasia. De manter a
ilusão viva.
DuaLife.
Vida real.
Tornando-se uma única coisa.
Não demorou para os dois aprenderem a arte da morte e então, a arte de culpar outros pelos seus crimes.
Ela descobriu que, assim como seu avatar, o Brad da vida real acreditava em Deus, e ainda assim, apesar de suas convicções religiosas, ele parecia surpreendentemente
disposto a tirar a vida de outro ser humano sempre que ela lhe pedia isso.
Agora, deitada na cama com ele, ela deslizou a mão até sua barriga, onde o filho deles estava crescendo. Uma segunda batida de coração dentro dela. O filho da paixão
e do desejo deles.
Uma nova vida. Para ser ensinada e modelada. Assim como o homem dela.
Ele se mexeu.
– Você está sonolento essa manhã – ela disse.
– Matei duas pessoas na noite passada. Isso deixa qualquer um morto.
– Ha – ela sorriu. – Deus não diz que matar é errado?
– Ninguém age em completo acordo com suas convicções – ele ainda parecia estar meio dormindo. – Confesso que essa é uma área que preciso trabalhar.
Ela passou os dedos pelo cabelo dele. – Isso parece a fala de algum filme da TV. Isso não é suficiente para um motivo. Não para você. Tem mais do que isso, não tem?
– São Paulo escreveu: “Aquilo que faço, eu não compreendo. Pois eu não faço o bem que desejo, mas o mal que não desejo, isso eu faço. Sou um homem desgraçado! Quem
irá me resgatar desse corpo de morte?”. A guerra interna é o fardo de todos que acreditam.
Ela percorreu com o dedo a marca de suas cicatrizes. – Brad, Brad, Brad, você é meu pequeno enigma, não é?
Uma breve hesitação, talvez um toque de intimidação. – Você conhece alguém que não seja?
– Que não seja?
– Um enigma.
– Bem, se você estiver certo sobre Deus, querido, eu imagino que você vai para o inferno pelas coisas que tem feito.
Ele ficou quieto.
– Alguma frase sobre isso? Sobre o enigma do inferno?
Ele pensou.
Ela sorriu. – Te peguei dessa vez.
– François de Fénelon.
– Quem é François de Fénelon?
– Foi um padre no século XVII. Ele observou que você pode ver Deus em todas as coisas, mas nunca tão claramente quanto quando você sofre. Talvez o inferno, onde
as pessoas sofrem mais intensamente, seja o lugar onde elas começam a vê-lo mais claramente.
Ela riu do absurdo de usar um padre para justificar uma jornada para o inferno a fim de encontrar Deus. Só Brad podia arrumar uma história dessas. – Bom – ela disse
–, se Deus existir...
– Não tem “se”.
– Se ele existe – e pelo seu tom de voz ela o deixou perceber que o assunto não estava em discussão – e se as pessoas ficam mais cientes dele no inferno, então eu
acho que nós dois seremos os maiores especialistas em Deus algum dia.
– Espero que sejamos.
Após mais alguns minutos deixando que ele a abraçasse, ela levantou, e disse que ele poderia dormir mais se quisesse, que ela iria deixar tudo pronto.
– Obrigado.
– Vejo você às 14h.
– Sim.
– Você vai cuidar do vídeo do beco? – ela perguntou.
– A câmera de segurança vai estar repetindo imagens antigas quando você chegar.
– E a porta?
– Vou deixá-la encostada.
Ela abriu o laptop que pertencia à mulher no porão, baixou o vídeo que Brad havia feito na noite anterior com seu celular, então colocou o computador na van.
Entrou em seu carro.
E partiu para o trabalho.
17
Academia do FBI
Sala 317
7h46
Morte.
Essa era a programação de hoje.
Vídeos de assassinato de manhã e depois uma visita à fazenda de corpos à tarde.
Ao longo dos anos, o Bureau havia coletado milhares de DVDs e fitas de vídeo de cenas de crimes, de coleções secretas de assassinos e vídeos de certos sites que
aprendemos a monitorar.
Temos a maior coleção do mundo de vídeos com humanos morrendo pelas mãos de outros humanos.
Perturbador.
Mas, infelizmente, necessário.
Mostramos esses vídeos para os novos agentes e alunos da Academia Nacional para que possam entender a verdadeira natureza de quem perseguimos. Fazemos os agentes
e oficiais das forças policias assistirem a pessoas de verdade morrendo em dolorosa câmera lenta, rebobinamos, pausamos e passamos de novo.
Então assim eles saberão.
Saberão de verdade.
Algumas vítimas imploram, outras subornam. Homens fazem ameaças que sabem com certeza que serão incapazes de cumprir. Mulheres tentam fazer trocas, oferecendo seus
corpos e prometendo não contar para ninguém.
Às vezes me pergunto quantas mulheres conseguiram trocar sexo pela sobrevivência. Eu só vi os vídeos daquelas que falharam.
Em minhas aulas, já vi mesmo os policiais mais durões, os investigadores mais experientes de todo o mundo, ficarem destruídos quando veem esses vídeos.
Quase sempre, independentemente de a vítima ser complacente ou de lutar contra, de estar rezando ou implorando, existe aquele momento em que ela percebe o que está
para acontecer. Você vê a noção do inevitável passar por seus rostos.
A verdade inegável que passamos nossas vidas refutando finalmente vem à tona: a morte está chegando.
O fim é aqui, daqui a alguns instantes.
Aquele olhar, quando ela tem aquela revelação aterrorizante, é a parte mais desoladora de todas. A corrida acabou. A vida perdeu.
Liguei o projetor para exibir o primeiro vídeo de hoje: um homem em São Francisco que fez com garotos pré-adolescentes coisas das quais pesadelos são feitos.
Para mim, os piores vídeos para assistir são aqueles em as que pessoas rezam, porque na maioria dos casos você vê que elas realmente acreditam que Deus vai ouvi-las,
vai interferir, vai salvá-las. Mas nos vídeos que temos aqui na Academia, Ele invariavelmente escolhia não se envolver.
Eu frequentemente me pergunto se Seu silêncio é prova de que Ele não está lá. Essa é a resposta fácil, é claro. A resposta intelectualmente simples, mas, ainda assim,
é tentador se recolher no ceticismo quando você vê tal sofrimento respondido com silêncio.
Às vezes eu invejo pessoas que encontram um jeito de viver em negação silenciosa sobre o que nós, como uma espécie, somos capazes de fazer uns com os outros. Seria
tão mais fácil viver com esse tipo de ingenuidade, fechando os olhos para as lágrimas do mundo, pensando que tudo tem um fim no estilo Disney, com uma luz no fim
do túnel, um pôr do sol para onde cavalgar.
Alguns meses atrás, quando falava com Lien-hua sobre isso, ela me disse para não focar tanto na negatividade.
– Eu não consigo fingir que o mundo não é o que é – eu disse.
– Como assim?
– Que essas coisas que eu vejo não acontecem, que a vida é melhor que isso.
Uma pequena pausa. – Mas você consegue parar de fingir que ele é pior? Levei um bom tempo para responder. – Vou tentar – eu disse.
E continuo tentando.
Liguei o projetor, apertei o botão de play do DVD, mas a primeira cena, uma em que o assassino deu zoom nos olhos amedrontados do garoto que olhava para a câmera,
hoje só aquela imagem era demais para mim.
Eu não conseguia fazer aquilo. Eu precisava olhar para outra coisa que não sofrimento, pelo menos naquele momento.
Então, desliguei o projetor.
Plano B.
Astrid sabia que Brad tinha dinheiro; ele nunca manteve isso em segredo, mas não explicara de onde ele veio, e ela nunca havia perguntado.
Ela suspeitava que ele havia roubado ou extorquido até que o viu trabalhando no sistema de computadores no instituto de pesquisa ontem. Então ela começou a imaginar
se ele não tinha ganhado aquele dinheiro todo como programador.
Bem, o que importava não era de onde o dinheiro vinha, mas o que eles poderiam fazer com ele se precisassem.
Desaparecer.
Ou, se precisasse, ela podia fazer isso por conta própria.
Sim, ela sabia a senha da conta bancária dele. Ela encontrou o número anotado em um de seus extratos dois meses atrás. E essa informação secreta era uma coisa doce
e sutil.
Agora, enquanto entrava no estacionamento no trabalho, ela pensou no que aconteceria com a mulher às 15h, quando o jogo rumasse para o clímax.
Tessa havia combinado de encontrar Paul Lansing nos degraus da Biblioteca do Congresso às 10h30 em ponto. E agora, enquanto entrava no trem que a levaria para a
cidade, ela se sentiu, de algum modo, fugindo.
Ela disse para si mesma que assim que conseguisse algumas respostas para as perguntas que não se sentiu confortável em fazer com Patrick por perto, ela explicaria
tudo para ele e as coisas voltariam ao normal entre eles.
Através dos e-mails de Paul pelas últimas semanas, ela havia descoberto onde ele cresceu: em St. Paul, Minnesota. Seus passatempos: escultura (muito legal), caça
(com certeza nada legal), caminhada, carpintaria e jardinagem orgânica (assim é melhor). Seu aniversário: 9 de setembro. E assim sucessivamente.
E sucessivamente.
Mas as coisas importantes eram muito mais profundas.
Essas eram as coisas que ela queria saber.
As portas do trem se fecharam, e ela se sentou.
Ela escolheu uma camiseta que deixava suas cicatrizes no braço visíveis, as cicatrizes que ela havia feito em si mesma quando se cortava. Um homem olhava fixamente
para ela agora, os olhos se demoraram em seu braço, e então nas palavras paradoxais em sua camiseta: “Anarquia é que manda!”
Ela lidou com a curiosidade dele com um olhar firme, fixando os olhos nele até ele olhar para outro lado.
Tessa guardara as perguntas mais importantes para um encontro cara a cara com seu pai: quanto tempo você namorou minha mãe antes de dormir com ela? Você a amava?
Por que você vive sozinho nas montanhas? Do que você está fugindo?
Parecia mais do que estranho para ela que um homem que vivia sem um telefone ou água encanada, um cara que enviava e-mails para ela de um laptop velho emprestado,
tivesse repentinamente decidido pegar um avião e voar até a capital da nação apenas para ver algumas esculturas que um de seus amigos havia feito. Ela teria que
lhe perguntar sobre isso também.
Ele disse que não sabia que Christie tinha chegado a ter a criança, que pensava que ela tivera o aborto que planejara. Isso foi o que ele disse, mas Tessa não acreditou
nele. Ela encontrou os cartões-postais que ele tinha mandado para sua mãe apenas alguns anos atrás. Se ele mantinha contato com sua mãe, como poderia não saber sobre
ela?
E então, talvez a pergunta mais importante de todas: por que você nunca veio me ver depois que vocês se separaram?
E então tinha Patrick.
Ela tentou pensar em um jeito de cancelar o almoço com ele educadamente, sem levantar suspeitas. E sem mentir. Isso ela já tinha feito o suficiente.
Com um tranco, o trem partiu para levar Tessa Bernice Ellis até seu pai.
A aula havia começado fazia cinco minutos.
Havia uma variedade de seminários acontecendo ao mesmo tempo essa manhã, e apesar de oficialmente o curso da Academia Nacional não começar até segunda-feira, os
alunos que já tivessem chegado eram convidados a participar das palestras dessa semana que eles achassem que seriam mais úteis para eles.
Esperava que Cheyenne participasse da minha aula para que eu pudesse agradecê-la por levar Tessa para casa na noite passada. Pelo menos esse era o motivo que eu
disse para mim mesmo. Mas quando a aula começou e ela não estava na sala, percebi que isso provavelmente era uma coisa boa, pois ela tem um jeito especial de monopolizar
minha atenção, e eu já tinha coisa demais na cabeça.
Então, sem vídeos hoje. Apenas discussão.
Iniciei os trabalhos dizendo aos meus alunos que entender o processo pelo qual um infrator planeja e executa seu crime é vital para eliminar suspeitos.
– Com licença – uma mulher na primeira fila disse, com dois dedos apontados para cima. Eu a conhecera no começo da semana: Annette Larotte, uma aluna da Academia
Nacional de Houston. Uma detetive de homicídios. Alta: 1,80 m. Morena. Olhos profundos e reflexivos.
– Sim?
– O que era o número quatro? De ontem à noite.
– Número quatro?
– No painel de discussão você disse que havia quatro premissas subjacentes à investigação geoespacial. Mas você só teve tempo de listar três antes da discussão ser
interrompida. O que é o número quatro?
Eu revisei rapidamente as três primeiras: – Número um: hora e local. A maioria dos crimes acontece no espaço de conhecimento do infrator. Dois: decisões racionais
levam ao ato criminoso. Três: princípio do esforço mínimo.
Quando fiz uma pausa para tomar fôlego, Annette concluiu meu pensamento por mim: – Infratores tentam economizar tempo e dinheiro assim como todo mundo.
Eu assenti. – Exatamente. Então eis o número quatro: progressão. A cada crime sucessivo, os infratores se tornam mais eficientes e experientes, aprendem com seus
erros, desenvolvem gostos e preferências por determinadas atividades em detrimento de outras. Eles também aprendem com outras pessoas, colaboradores criminosos,
pesquisa, observações, e quando fazem isso, duas coisas acontecem: eles se tornam mais competentes e, consequentemente, confiantes demais, o que pode levar a descuidos.
Algumas pessoas fizeram anotações, Annette assentiu, me agradecendo, e eu continuei: – Então, para começarmos hoje, digam-me: quais são os segredos para cometer
um assassinato perfeito?
Os alunos começaram apontando o óbvio:
Tomar precauções para evitar a produção de evidências físicas. Contaminar a cena com células, fluidos corporais ou DNA de outras pessoas para confundir os investigadores.
Livrar-se do corpo em lugares ao ar livre, onde a atividade de insetos, animais carniceiros e o clima vai ajudar a dispersar e destruir evidências físicas – ou,
melhor ainda, não permitir que o corpo seja encontrado. Nunca mate alguém com quem você tenha um relacionamento próximo; em vez disso, escolha alguém cujo desaparecimento
passará despercebido (fugitivos, transeuntes, vagabundos, caroneiros, prostitutas, etc.). Ideias rudimentares e óbvias.
Eu sabia que os alunos na minha sala podiam fazer melhor, e eu os desafiei a irem mais longe.
E eles não me decepcionaram:
5. Como as autoridades começam procurando pelas pessoas que mais provavelmente estavam presentes na hora e no lugar do assassinato, é inteligente quebrar seus hábitos
não intuitivamente em vez de mantê-los quando você comete o crime.
6. Mate sozinho porque assim que você arruma um cúmplice, vocêfica com uma ponta solta.
7. Se possível, artificialmente, microscopicamente, falsifique a evidência de DNA que você deixar. Desde dois anos atrás, quando pesquisadores israelenses descobriram
como era fácil fazer isso – que até estudantes de primeiro ano da faculdade de biologia podiam fazer – isso tem se tornado mais e mais comum entre criminosos refinados,
e mesmo com os avanços tecnológicos do Bureau no último ano, ainda é frustrantemente difícil de detectar.
8. Não mate próximo de seus lugares de atividade (casa, trabalho, áreas de recreação preferidas e empresas comerciais) ou nas rotas de movimentação entre elas.
– Ótimo – eu disse, construindo a ideia. – Muito bom. As pesquisas mais recentes indicam que a proximidade de uma série de crimes pode ser um indicador ainda mais
preciso de ligação entre crimes do que o modus operandi ou outra particularidade.
Então, um homem na terceira fila deu uma sugestão, um detetive de Bangkok, membro da Polícia Real Tailandesa: – Simplifique.
A porta no fundo da sala se abriu e Cheyenne sorrateiramente deslizou para a sala e sentou-se na fileira dos fundos.
O detetive Nantakarn continuou: – Quanto mais único for o crime, mais atenção você vai chamar entre os investigadores. E mais flechas apontarão para você.
Eu assenti.
Annette sugeriu o uso de meios indetectáveis de morte, e por causa da famosa afirmação forense de que sempre que você sai de uma sala você leva algo com você e deixa
algo para trás, a classe debateu se isso era possível ou não. No entanto, eu já tinha trabalhado em casos onde o princípio não se confirmara, então deixei a sugestão
permanecer.
– Mais alguma coisa?
Cheyenne levantou sua mão, e eu acenei para ela.
– Não construir um álibi tão detalhado. Só uma pessoa com algo para esconder se lembraria de detalhes sobre sua localização bem o suficiente para apresentar um álibi
tão sólido. Quanto mais perfeito o álibi, mais suspeita ele deveria levantar.
– Ótimo.
Com Cheyenne nós teríamos outro enfoque no assassinato de Mollie
Fischer. Outro ótimo enfoque... Não seria problema liberá-la para ser parte do programa de operação conjunta.
Uma rápida olhada no relógio.
9h44.
Eu tinha um intervalo marcado às 10h.
Sim. Eu lhe perguntaria então se ela gostaria de se juntar à nossa equipe.
Eu estava confiante de que ela aceitaria.
Nós dois trabalharíamos juntos novamente.
18
9h57
– Hora de acordar.
Brad chacoalhou gentilmente a mulher que, após ser deixada sozinha no porão escuro como breu por praticamente dez horas, sem dúvida já tinha perdido a noção do tempo.
Ela gemeu.
– Vamos, acorde – ele acendeu uma lâmpada de aquecimento e ela se encolheu, protegendo-se da luz forte e repentina.
Sorriu para ela. Ele tinha algumas coisas para lhe contar, alguns conselhos sobre como se preparar para sua morte em menos de cinco horas. – Pensei que pudéssemos
conversar por alguns minutos – ele disse. – Agora que estamos sozinhos.
No intervalo, Cheyenne saiu para o corredor antes que eu pudesse alcançá-la, e correr atrás dela me pareceu muito adolescente; então, em vez disso, mexi nas minhas
anotações por alguns minutos, esperando que ela voltasse, e depois decidi verificar minhas mensagens.
Missy Schuel não retornara minha ligação.
Tentei ligar para ela novamente, mas só deu caixa postal.
Após avaliar as coisas, decidi que se não tivesse resposta da srta. Schuel até meio-dia, eu procuraria por alguém um pouco mais atencioso com clientes em potencial.
Eu tinha, no entanto, uma mensagem de voz, de Tessa, fugindo de nosso almoço: – Parece que as coisas podem demorar um pouco mais do que eu esperava. Tudo bem se
só nos encontrarmos à noite? Isso seria ótimo. Te vejo mais tarde.
Breve. Direto ao ponto.
Tudo bem.
Fiquei um pouco desapontado, mas não frustrado. Isso livrava o meio do meu dia, e sem uma viagem até a cidade eu não precisaria sair correndo da minha reunião com
Ralph às 11h30. Talvez pudéssemos até fazer algum progresso no caso Fischer.
Os alunos estavam retornando para a sala.
Um pouco antes do fim do intervalo, Cheyenne voltou, seguida de perto por Annette. Elas sentaram-se no fundo, e como estávamos para recomeçar, imaginei que seria
melhor esperar até o fim da aula para falar com Cheyenne. Até lá, voltaríamos a discutir os meios de escapar ileso de um assassinato.
Tessa encontrou Paul Lansing esperando por ela nos degraus do lado oeste do edifício Jefferson da Biblioteca do Congresso.
Por algum motivo, quando ela o viu, pensou em como Patrick o descreveria: caucasiano. Mais de trinta e cinco anos. Cabelo castanho. Barba. 1,85 m. Noventa quilos.
Jeans azul, botas de caminhada, camisa xadrez com as mangas dobradas até os cotovelos.
E então, mesmo se condenando por fazer isso, pensou em como ela o descreveria: O lenhador visita a cidade.
– Tessa – ele chamou. Estava sorrindo. Ele caminhou na direção dela e lhe deu um meio abraço, então um beijo na bochecha, e mesmo sendo seu pai, ele nunca a havia
beijado antes e isso foi um pouco desconfortável.
– Oi – ela deu um meio abraço e então se afastou. – Como foi seu voo?
– Longo. Peguei na noite passada, às 22h. Duas escalas. Não tem nenhum voo direto de Riverton, Wyoming, para Washington, DC.
– Não, acho que não.
Tudo isso só para ver uma escultura que sua amiga fez?
Ela se perguntou que tipo de amiga seria essa.
Mas então uma compreensão que deveria ter sido óbvia desde o começo: Dããã, Tessa. Ele veio ver você, não o escultor. Não precisa ser um gênio.
Ele ainda estava sorrindo. – E você? Veio passar o verão aqui?
– Sim.
– Onde vocês estão ficando?
– No interior, em uma casa perto da Academia. Um aceno com a cabeça.
– Muito bom.
Então.
A vez dela. – E você vai ficar na cidade por alguns dias, então?
– Eu vou embora sábado – ele disse.
– Tá.
Uma pausa. – Então – ele disse.
– Então.
Ela esperou.
A vez dele.
– Ah! – os olhos dele brilharam. – Eu trouxe algo para você – ele pegou a pochete que havia deixado sobre um degrau antes de ela chegar.
– Não precisava...
– Não, não. Eu sei – ele estava procurando dentro da pochete como uma criança em uma caixa de cereal. – Aqui.
Ele lhe deu um BlackBerry.
– Um telefone?
– Para que a gente possa manter contato – ele bateu levemente sobre seu bolso. – Comprei um para mim também.
– Eu já tenho um celular – ela não queria ser rude, mas pelo que sabia, Paul não era rico e talvez ele pudesse devolvê-lo e pegar seu dinheiro de volta.
– Sim, eu sei. Mas desse jeito...
Patrick não vai ter como descobrir sobre as ligações.
– ...nós podemos conversar a hora que quisermos.
– Nós já podemos fazer isso.
Ela podia sentir a animação dele diminuindo lentamente. – Tem aquela coisa de GPS do Google, então, se nós nos separarmos, podemos encontrar um ao outro.
Certo, isso era muito idiota. – Você pode me ligar no meu telefone normal.
Ele parecia derrotado, sabotado pelo óbvio. – Sim, claro – um filhotinho do tamanho de um homem que parou de abanar o rabo. – Eu devia ter pensado nisso.
Oh, não.
Ele estendeu a mão. – Tudo bem, vou ver se consigo...
Continue, Tessa...
– Na verdade, sabe de uma coisa? Esse aqui é bem melhor do que o telefone que tenho – aceitar o presente pareceu outra sutil traição com Patrick, mas ela não queria
começar com o pé esquerdo com seu pai. – Sério, foi legal. Obrigada.
Ele esperou que ela guardasse o BlackBerry na bolsa, então gesticulou na direção do Capitólio. – Então, está a fim de um passeio?
– Escute, eu estava meio que pensando: como você conhece alguém que trabalha aqui, sendo que você vive, tipo, no meio do nada há seis anos?
– É meu comparsa.
Por uma fração de segundo, ela pensou que ele tivesse dito “é uma farsa”, mas então se conteve.
Qual é o seu problema? Relaxe!
– Eu vivi aqui por um período – ele acrescentou. – Há muito tempo.
– Ah, legal.
Ele olhou curiosamente para ela. – Tem alguma coisa errada?
– Não. Desculpa. Hum... – ela apontou para o edifício Madison da Biblioteca do Congresso. – Já que estamos aqui, quero pegar uma carteirinha de leitora primeiro.
Então talvez possamos fazer esse passeio ou ver as esculturas da sua amiga – ela não gostava muito de esculturas porque a maioria delas era superficial ou confusa,
mas ela sabia que era importante para seu pai. – Imagino que sejam legais.
– Então, uma carteirinha de leitora – ele estendeu a mão para indicar que ela deveria ir na frente, e ela começou a descer os degraus com ele ao lado dela, mas levemente
atrás.
– Estou muito feliz que você tenha conseguido vir hoje – ele disse. Ela percebia que ele estava se esforçando para ser amigável, mas ela não levava isso a mal. Levaria
tempo para eles se darem bem. Levou quase um ano para ela e Patrick se sentirem confortáveis um com o outro. – Desde que você e seu padrasto apareceram na minha...
– Patrick.
– Como?
– O nome dele é Patrick.
Mas assim que disse as palavras, ela se deu conta de que seu comentá
rio provavelmente soou rude. – Quero dizer, talvez se você pudesse chamá-lo de Patrick em vez de “seu padrasto”, seria legal. Eu o chamo de Patrick.
– Sim, claro. Eu não fiz por mal.
– Eu sei.
Eles atravessaram a Independence Avenue.
– Bem, desde que vocês dois apareceram na minha cabana, eu não consegui mais parar de pensar em você.
– Tudo bem.
– Temos tanto o que conversar.
– Sim.
Paul Lansing colocou uma mão no ombro dela. Um gesto amigável. Só isso.
Algo que um pai faria.
Por sua filha.
Mas quando um grupo de homens de negócios se aproximou deles, ela gentilmente se afastou para que os homens pudessem passar entre eles.
– Cheyenne, espere um pouco.
A aula havia acabado, e ela estava a caminho da porta com o resto dos alunos. Quando me ouviu chamá-la, parou e olhou para mim. Ela normalmente não usava maquiagem,
mas percebi que estava usando batom hoje. – Sim?
– Obrigado novamente por ter levado Tessa para casa ontem à noite.
– Sem problema.
Meus pensamentos oscilavam entre ela e Lien-hua, me incomodando de um jeito que não exatamente me incomodava. – Escute, na noite passada você me perguntou se tinha
algo que poderia fazer em relação a esse caso. Você estava falando sério?
– É claro.
– Bem, eu acho que consigo colocá-la no programa de operação conjunta; é onde os alunos da Academia Nacional...
– Claro. Consultam casos em conjunto com o NCAVC.
– Você sabe sobre...
– Está explicado no processo de inscrição, Pat. Não é segredo de estado.
– Ah. Certo.
– E sim, eu adoraria trabalhar com você.
Reparei na escolha de palavras que ela fez: “com você”, e não “no caso”.
Trabalhar comigo.
– Mas eu tenho aula na maior parte do tempo nesse verão – ela disse. – Quase todos os dias.
– Podemos nos encontrar à noite.
Uma breve pausa e, com isso, um sorriso. – Parece viável.
– Ótimo. Então, na verdade estou a caminho do NCAVC agora para uma reunião. Se você não estiver fazendo nada, por que não vem junto? Podemos dar um jeito na papelada
e eu mostro o lugar para você.
Ela hesitou. – Seria ótimo, mas o problema é que... – ela apontou o dedo na direção do refeitório. – Eu não tomei café da manhã. Preciso comer alguma coisa, ou não
vou aguentar até à tarde.
– Nós comemos algo no caminho. Por minha conta. Por ter me ajudado levando Tessa para casa.
– Pat, você não me deve nada – suas palavras ficaram tensas. Eu devo tê-la ofendido. – Eu já disse antes. Eu só queria ajudar.
– Tudo bem, então. Por sua conta.
Com meu comentário, o clima da conversa se atenuou, e ela esbo
çou um leve sorriso maroto. – E por que eu faria isso?
Pensei por um momento e tomei uma decisão. – Em troca de eu não perguntar o porquê de você realmente estar aqui nesse verão.
– Bem, então, no seu carro ou no meu?
– No meu.
Passamos pelo tubo de hamster. – E onde exatamente você está pensando? – ela perguntou. – Para almoçar.
– Cabana do Hambúrguer do Billy Bongo. Fica bem no caminho.
– Cabana do Hambúrguer do Billy Bongo? Você tá brincando.
– Não. O fast food mais rápido da cidade.
Ela balançou a cabeça. – Você e seus cheeseburgers – foi isso o que ela disse, mas nas entrelinhas suas palavras eram uma mensagem sutil: Eu conheço você. O que
você gosta. Nós temos uma história juntos.
– Bem, eu nunca como hambúrgueres em casa. Uma das desvantagens de viver com uma adolescente membro da PETA. Eu tenho que sair escondido para comer um sempre que
posso.
– Então agora eu sei do seu segredinho sujo.
– Todo mundo precisa de alguns desses.
E seguimos nosso rumo.
Tudo bem, alguma coisa não estava certa.
Quando o funcionário da Biblioteca do Congresso pediu para ver as carteiras de motorista do casal na frente deles, Paul cochichou para Tessa que precisava fazer
uma ligação rápida e que voltaria em um minuto e a encontraria perto da porta. – Você vai ficar bem? – ele perguntou.
– Sim, claro.
– Bom. Certo, eu já volto.
E, assim que ele se afastou, Tessa sentiu uma pontada pequena e silenciosa dentro de si, bem na parte onde ela mais precisava se sentir segura. Ela não conhecia
esse homem muito bem. Patrick suspeitava dele. Ela não deveria estar ali, na cidade, sozinha com ele.
Fique calma.
Ele é seu pai.
Ela se lembrou de que sua mãe confiara o suficiente para dormir com ele. E se sua mãe podia confiar nele, ela também podia.
Tessa andou na fila, pegou sua carteira e entregou sua identificação para o homem.
19
O prédio do NCAVC era, na verdade, um velho armazém que ainda tinha uma placa na frente com os dizeres Tarry Suprimentos para Cortadores de Grama. Cartazes de cortadores
de grama ainda ocupavam o saguão da frente e a recepcionista ainda atendia ao telefone dizendo: “Tarry Suprimentos para Cortadores de Grama, como podemos ajudá-lo?”
Não fazia sentido alardear sobre o quartel-general do grupo investigativo do FBI dedicado a estudar e resolver os crimes mais violentos da nação, assim como a localização
do ViCAP e dos escritórios dos quinze maiores criadores de perfil comportamental do mundo.
Cheyenne e eu passamos pela segurança, eu peguei a papelada da operação conjunta no balcão da frente, assinei os formulários de recomendação e lhe disse: – Você
vai precisar preencher o resto. Não se preocupe, Ralph vai mandá-los direto – entreguei a pilha de papéis a ela. – Tente não ficar com tendinite depois de escrever.
Ela sentiu o peso da pilha nas mãos. – Vou tentar não machucar as costas primeiro.
Ralph estava ao telefone quando entramos em seu escritório. Ele deu uma rápida olhada em Cheyenne, e me dei conta de que mesmo ele tendo me visitado em Denver, os
dois nunca tinham se encontrado. Gesticulei para ele que ela estava comigo, então apontei para os formulários da operação conjunta na mão dela e ele acenou para
irmos para a sala de conferência.
Entrei na sala com ela.
E encontrei Lien-hua sentada à mesa, folheando uma pasta de arquivo.
Oh.
Ela ergueu os olhos quando entramos. Seus olhos foram direto para Cheyenne.
A frase “consequências não intencionais” veio à minha cabeça.
– Lien-hua – eu disse. – Essa é a detetive Warren. De Denver.
– De Denver – Lien-hua disse.
– Trabalhamos juntos algumas vezes.
– Sete – Cheyenne disse.
– Entendi – Lien-hua levantou-se e estendeu a mão para Cheyenne. – Lien-hua Jiang.
Cheyenne apertou a mão amigavelmente. – Cheyenne Warren. Então você deve ser a criadora de perfil de quem Patrick fala tanto.
– Sério?
Ela sorriu calorosamente para Lien-hua. – Só coisas boas, eu garanto.
Parecia que Lien-hua estava prestes a responder, mas antes que ela pudesse, Cheyenne acrescentou: – Pat e eu acabamos de almoçar juntos, e ele se ofereceu para me
mostrar a repartição – ela mostrou os papéis da operação conjunta. – E parece que vou ajudar no caso.
– Bem-vinda à equipe, então – Lien-hua disse em um tom que era impossível decifrar. – Detetive.
– Obrigada, estou feliz por ter a chance de trabalhar com você.
As duas mulheres começaram a conversar do meu lado, como se eu nem estivesse na sala.
– E onde você foram? – Lien-hua perguntou.
– Ah, nós acabamos de chegar.
– Não, para almoçar.
– Na Cabana do Hambúrguer do Billy Bongo.
Por algum motivo, senti que precisava me defender. – Fica bem no caminho.
– Claro – Lien-hua piscou para Cheyenne. – Deixe-me adivinhar: ele pediu o cheeseburger clássico extremo máximo, batatas fritas e uma cherry coke média?
Cheyenne olhou para Lien-hua curiosamente. – Acertou na primeira tentativa.
– O lobo perde o pelo mas não perde o vício – Lien-hua disse.
Certo. Uma situação oficialmente desconfortável.
Ouvi passos pesados do lado de fora da sala e fiquei aliviado quando Ralph abriu a porta e se juntou a nós. Ele lançou uma pilha de pastas velhas de papel pardo
sobre a mesa e parecia que estava prestes a começar a tratar do caso, mas tirou um momento para se apresentar a Cheyenne e, com base nas minhas recomendações, imediatamente
assinou seus formulários. – Termine-os e os entregue amanhã – ele murmurou, mas eu podia ver que alguma coisa estava definitivamente pesando em sua cabeça.
– Obrigada – ela disse.
– Então é o seguinte – seu tom era áspero e duro. – Era Doehring ao telefone. Eles acabaram de encontrar Rusty Mahan. Morto. Enforcou-se em algum momento na noite
passada. Deixou uma mensagem confessando o assassinato de Mollie.
Um silêncio elegíaco dominou a sala. Lien-hua sentou-se lentamente em uma das cadeiras ao redor da mesa da sala de conferência. – Onde ele foi encontrado?
– Debaixo da ponte da Connecticut Avenue, perto da margem do rio.
Ele estava escondido pelas árvores. Nunca o teriam encontrado se o telefone no bolso dele não tivesse começado a tocar. Alguém que corria por ali ouviu e encontrou
o corpo.
– A mensagem foi digitada ou escrita à mão? – perguntei.
– Digitada. Em seu telefone.
– Foi possível identificar quem ligou?
– Não – ele balançou a cabeça. – Eu sei que é tudo muito conveniente, mas Doehring não concorda. O garoto tinha motivo, meios e oportunidade. Você conhece Doehring.
E o melhor: ele está planejando ir a público com essas informações ao meio-dia.
Ele olhou para o relógio na parede.
11h35.
– Apenas vinte e cinco minutos antes de tudo explodir – Lien-hua disse.
Ralph acenou para nos sentarmos.
– É isso que temos que impedir.
Cheyenne escolheu a cadeira entre mim e Lien-hua.
– Atualização rápida – Ralph disse. – Margaret está em Washington, DC chefiando a força-tarefa conjunta. Definimos o posto de comando na central da polícia metropolitana,
no terceiro andar. Até agora temos o FBI, a polícia metropolitana, a polícia do Capitólio e os US Marshals – ele balançou a cabeça. – Provavelmente vão chamar a
droga dos escoteiros antes de tudo acabar.
Ele respirou fundo, então abriu uma das pastas. – Certo. Vamos lá. Eis o que sabemos até agora.
A mulher não estava cooperando.
Ok. Chega disso.
Brad forçou uma mordaça em sua boca.
Prendeu com força.
Olhou em seu relógio.
11h39.
– Você tem até as 15h dessa tarde para viver: três horas e vinte e um minutos para você refletir sobre a eternidade – ele tomou fôlego. – Eu esperava que isso não
precisasse acabar assim. Se você estivesse mais disposta, as coisas teriam acontecido de um jeito diferente.
Ela tentou gritar, mas a mordaça abafou o som.
– Eu vou voltar.
Então ele a deixou novamente, deitada sozinha no escuro. Foi verifi
car a fiação e o temporizador do dispositivo explosivo que havia criado. Um objeto único. Uma obra de arte.
Uma surpresa requintada para o agente especial Patrick Bowers.
20
Ralph passou cinco minutos nos informando e principalmente revisando informações que eu já havia lido nos arquivos on-line do caso.
Eu estava ansioso para saber o que mais havíamos descoberto desde que deixei a cena do crime na noite passada, mas tentei não parecer tão impaciente como estava.
– Aliás – ele disse –, não há sinal do laptop de Mollie Fischer. Esperávamos que ele nos ajudasse de algum jeito.
Quando ele mencionou o laptop de Mollie, percebi que Cheyenne precisaria de mais do que só o resumo apressado de Ralph, então abri meu computador, cliquei nos arquivos
on-line do caso e virei a tela para que ela pudesse ver. – Para você entender melhor enquanto falamos.
– Obrigada – ela tocou no mousepad e começou a navegar pelos arquivos.
– Onde está Doehring? – Lien-hua perguntou.
– No posto de comando. A equipe dele voltou ao centro de primatas para entrevistar os funcionários – Ralph pegou uma caderneta. – Certo, vamos repassar a linha do
tempo. O que nós sabemos?
– Talvez – Lien-hua disse – o segredo agora não seja focar no que já sabemos, mas sim no que ainda não sabemos – ela ressaltava os pontos com os dedos, um de cada
vez, enquanto os listava: – Não sabemos se Rusty dirigiu seu carro até a cena, se acessou o instituto, se estava na frente da loja, se escreveu a nota de suicídio,
ou se cometeu suicídio. Nem ao menos temos certeza de que ele e Mollie terminaram o relacionamento.
– Então, basicamente, nada – Cheyenne observou, seus olhos ainda colados na tela do laptop. – Estaca zero.
– Certo, vamos pensar nisso – levantei-me. Comecei a andar. – Vamos supor que alguém esteja tentando incriminar Rusty. Considerando os aspectos técnicos e táticos
desse crime, deixar o carro dele na cena do crime não parece um jeito estranho de entregá-lo? Levando em conta a confissão digitada, a ligação telefônica programada
na hora certa, bem quando um corredor ia passar perto do corpo de Mahan...
– Muito óbvio – Ralph disse. – Amador.
– Sim. E por que deixar a bolsa de Mollie com ela no habitat dos chimpanzés?
– Mas se alguém não estava tentando incriminar Mahan – Cheyenne disse –, então deve ter sido ele. Todas as evidências circunstanciais o apontam como o assassino.
– Isso é verdade – Lien-hua assentiu. – Mas Rusty quase com certeza não é o assassino, então...
– Estaca zero – Ralph disse.
Apesar de minha especialidade ser crimes em série com meia dúzia ou mais de cenas de crime, primárias ou secundárias, a chave para todas as investigações é começar
do zero com a hora e o local, e era aí que precisávamos procurar mais cuidadosamente agora. – A filmagem da câmera de segurança do centro de pesquisa foi apagada
das 17h às 19h, certo?
Acenos positivos de cabeça.
– E a morte de Mollie parece ter acontecido entre 18h e 19h... – eu estava pensando alto agora, reavaliando uma ideia com a qual eu tinha flertado, mas nunca explorado.
– E ainda assim, os assassinos, vamos dizer que é no plural agora, saíram da cena do crime em algum momento, provavelmente após a morte dela, mas possivelmente antes.
Nos dois casos, eles não foram pegos saindo do prédio na filmagem... então, a menos que houvesse algum modo de desviar das câmeras ou pré-programar o sistema de
segurança para começar a filmar novamente depois que eles fossem embora...
– Eles ficaram lá dentro – Lien-hua se adiantou. – Então saíram depois de ligar as câmeras novamente.
Uma fagulha.
Uma possibilidade.
– E eles teriam sido pegos na filmagem indo embora em algum momento depois das 19h – Ralph disse.
– Vamos tentar isso – eu disse. – Se revisarmos as filmagens a partir das 19h, devemos conseguir identificar todos que entraram ou saíram do prédio após a ligação
da tratadora para a emergência: todo o pessoal das forças policiais, paramédicos, todo mundo.
– Sim – Lien-hua disse. – Então, se encontrarmos imagens de alguém que saiu do prédio...
– Mas nenhuma imagem dessa pessoa entrando – Ralph interrompeu –, temos nosso infiltrado.
– Ou infiltrada – Cheyenne disse.
Assenti.
– Está certo.
A lógica disso era simples, mas, reconhecidamente, havia furos. Pode ser que houvesse um jeito que não conhecíamos de evitar as câmeras, mas era um caminho a ser
percorrido. Um lugar para começar.
Ralph rabiscou em sua caderneta. – Vou colocar alguns agentes nisso o mais rápido possível.
– Sabemos mais alguma coisa sobre Sandra Reynolds, a tratadora? – Cheyenne estava estudando a tela do computador. – A mulher que atirou nos chimpanzés. Ela estava
presente quando os policiais chegaram.
– Ela parece limpa – Ralph disse. – Doehring e seu pessoal entrevistaram-na extensivamente. Veremos se eles vão conseguir alguma coisa dela nessa manhã.
– E o guarda de segurança?
– Fizemos um exame toxicológico para verificar se ele estava mentindo sobre estar desacordado, mas ele ainda tinha tranquilizantes em seu sistema. Eu diria que ele
está limpo também. Nenhum deles viu mais ninguém lá.
Ralph parecia convencido. Decidi prosseguir. – E Mollie estava morta quando os policiais chegaram? Eles confirmaram isso?
– Ah, sim – ele disse, com a voz sombria. – Não havia dúvida sobre isso.
Um momento de silêncio desconfortável tomou a sala.
As peças não estavam se encaixando.
Cheyenne desviou os olhos do laptop e olhou para mim. – Estou pensando: e se os chimpanzés não a mataram?
– O que você quer dizer?
– Quero dizer, é possível que ela já estivesse morta antes que os chimpanzés a atacassem? – ela apontou para uma foto da cena do crime que mostrava o chão coberto
de palha do habitat que ela havia aberto no computador. – Tem sangue na palha, mas não está tão espalhado quanto você imaginaria, considerando os ferimentos na veia
jugular, no pescoço dela, e uma vez que o coração dela parou de bater, ela teria parado de sangrar.
– Gravidade – Ralph acenou. – Poças de sangue nas partes mais baixas do corpo.
– Sim – ela disse.
Olhei para Ralph. – A autópsia já foi concluída?
Uma olhada no relógio. – Está em andamento.
– Vamos ver se o médico forense pode definir com certeza o mecanismo de morte.
Mais anotações.
Muito o que fazer.
Ele se levantou.
– Na verdade, vou colocar isso tudo em prática. Acho que temos perguntas suficientes para segurar o anúncio de Doehring. Eu já volto.
Assim que ele saiu, Cheyenne discretamente perguntou para Lien-hua onde ficava o banheiro feminino.
– Vou mostrar para você – ela respondeu, e as duas saíram para o corredor.
Aproveitei a oportunidade para ligar meu laptop à porta USB do monitor na parede para que todos pudéssemos ver as imagens quando os três voltassem.
Então comecei a passar pelas fotos da cena do crime, me focando no conteúdo da bolsa de Mollie, tentando encontrar qualquer coisa que não seencaixasse na teoria
de que Mahan era inocente.
– É incrível – Tessa sussurrou quando ela e Paul se aproximaram da escultura.
Próximo deles, uma mãe tentava conduzir dois jovens garotos na direção da escada, mas mesmo com aquele irritante draminha acontecendo, a escultura ainda prendia
a atenção de Tessa.
Era uma escultura de técnica mista com um metro de altura de uma garota com as mãos envoltas na cintura de um garoto. De algum modo, o escultor havia capturado o
momento de um jeito que fazia parecer que a garota se agarrava ao garoto e o empurrava ao mesmo tempo.
Mesmo hesitante sobre toda a ideia do museu de arte, após ver essa escultura Tessa tinha esperança de que isso não seria uma completa perda de tempo. Sem um invólucro
de vidro em torno das esculturas, você podia chegar muito perto, e ela deu um passo à frente e a inspecionou com admiração.
Aqui você tinha a tensão de uma vida capturada em arame e resina plástica: segurando e empurrando para longe; queremos estar próximos mas separados, ser independentes
mas necessários, livres mas presos pelo amor. Um resumo da natureza humana.
– Estou feliz que tenha gostado – Paul parecia satisfeito, quase orgulhoso.
– Sim. É muito legal.
Pelo canto dos olhos, Tessa reparou que a mulher virou as costas para um dos garotos. Sem sua supervisão, o garoto aparentemente sentiu-se livre para se aproximar
de uma escultura de cerâmica sobre um pequeno suporte de madeira.
– Essa é uma das peças que sua amiga fez? – Tessa disse, mas seus olhos estavam no garotinho que tentava alcançar a escultura.
– Julia? Não. As dela são...
Ela podia ver o desastre escrito naquela situação e chamou a mulher para avisá-la: – Ei, seu filho!
Mas a mulher virou-se para Tessa em vez de olhar para o garoto. Tessa apontou para ele assim que ele tocou na escultura...
A peça de cerâmica se estatelou no chão.
E, naquele instante, Paul virou-se rapidamente, de costas para Tessa, protegendo-a contra a direção de onde veio o barulho, mas claro que não havia nada contra o
qual protegê-la.
Então um alarme começou a soar e dois funcionários foram correndo até a família. A mãe já estava repreendendo seu filho, e agora Paul estava conduzindo Tessa para
o outro lado do salão de exposição.
– Nossa, o que foi aquilo? – ela perguntou a ele. – Você foi muito absurdamente rápido. Você já foi policial ou algo do tipo?
– Não – ele disse simplesmente. – Vamos, temos que ir até o quarto andar.
Faria sentido se ele fosse. A mamãe sempre gostou do tipo policial.
– Sério, você...
– Não – e ele a guiou até a escada rolante na frente dele.
21
11h58
Não encontrei nada digno de nota enquanto haviam saído; quando nós quatro nos reunimos, Ralph anunciou: – Certo, Doehring disse que não vai liberar nenhuma informação
para a imprensa por enquanto, mas o deputado vai. Ele agendou uma coletiva de imprensa para as 13h. E ponto final. Então, a menos que tenhamos algo a mais até lá,
ele vai dizer à imprensa que o assassino de sua filha foi Rusty Mahan.
– Precisamos controlá-lo – eu disse. – Isso pode dificultar seriamente a investigação.
– Liguei para Margaret para perguntar sobre isso, mas Rodale parece estar por trás do deputado.
– Isso é inacreditável – Lien-hua disse. – O que está acontecendo aqui?
Política, como sempre.
Ele balançou a cabeça. – Eu não sei – ele disse rispidamente. – Mas não cheira bem para mim também.
Esqueça a imprensa, concentre-se nas evidências.
Fechei os olhos e revisei a disposição das ruas que cercavam o instituto de pesquisa, seguindo mentalmente a rota que eu havia tomado para chegar lá, formando um
mapa tridimensional em minha cabeça. Mas minha memória não estava nem perto de ser tão precisa quanto uma imagem de satélite seria, então abri os olhos, peguei meu
telefone e projetei o holograma 3D de Washington, DC sobre a mesa.
Nós quatro nos juntamos ao redor dele e o estudamos.
Passei o dedo pela tela do telefone para dar um zoom na South Capitol Street, onde o centro de pesquisa ficava; então girei a imagem, estudando as linhas de visão
da saída do estacionamento, das outras saídas do prédio em relação à rua... os semáforos... o estádio imenso.
Espere.
Uma ideia.
No laptop, cliquei no site da polícia metropolitana de Washington, DC. Digitei meu número de identificação federal.
Ah, sim.
Uma pequena animação. As coisas ficando claras.
– O que foi? – Ralph perguntou.
– Câmeras – murmurei.
– A filmagem foi apagada – eu podia perceber pela sua voz que ele estava ficando cada vez mais impaciente. – Nós já pensamos nisso tudo. Precisamos...
– Não. Câmeras de trânsito – senti os pensamentos fluindo. O caso começando a entrar no meu sistema do jeito que deveria, do jeito que eu gostava. – Podemos não
ter imagens do assassino chegando ao centro de pesquisa, mas podemos ter um vídeo dele se aproximando. Se encontrarmos o carro de Mahan a caminho do instituto, talvez
possamos ver o motorista.
– Confirmar com certeza se foi Mahan ou não – ele estava me acompanhando agora, passo a passo.
– Exatamente.
Levei menos de um minuto para entrar, acessar o banco de dados das câmeras de trânsito de Washington, DC e encontrar os arquivos de vídeo.
Mollie foi vista pela última vez deixando a estação Clarendon do metrô.
Escolhi os semáforos de duas quadras a norte do instituto, por ser em uma rota mais direta para a área da cidade onde ela foi vista pela última vez.
E, a partir das 16h, a hora em que Mollie foi vista viva pela última vez, começamos a analisar as imagens, passando-as de oito vezes mais rápido, procurando pelo
Volvo 2009 de Rusty Mahan.
Brad carregou a sacola esportiva com tudo o que ele e Astrid precisariam para a van. Colocou-a lá dentro.
De acordo com o plano, Astrid o encontraria no hotel às 14h, mas ele gostava da ideia de ficar um tempo sozinho com a mulher no quarto antes que Astrid chegasse.
Sair agora lhe daria mais tempo.
Ele colocou munição em sua arma, uma Walther P99, guardou-a no coldre e então voltou para o andar de baixo; agarrou a mulher pelos cabelos e, enquanto ela se contorcia
desesperadamente para fugir, arrastou-a na direção da escada.
Não demorou muito para Tessa perceber que a escultura do garoto e da garota era a exceção, e não a regra.
A maioria das esculturas era completamente idiota: esforçavam-se demais para dizer muito, ou eram tão esotéricas que falhavam em passar qualquer mensagem. No último
caso, a equipe do museu havia colocado pequenas placas ao lado das esculturas descrevendo por que o artista as fez, o que estava acontecendo em sua vida e o que
a escultura deveria significar.
Eram muito úteis.
Mas o fato é que, arte verdadeira, arte real, não precisa de explicação. Não existe um epílogo no final de um romance dizendo a você o que a história significa.
Nem comentários no fim de uma sinfonia explicando o que o compositor estava tentando comunicar com aquelas notas específi-cas. Nenhuma nota de rodapé esclarecendo
o significado de poemas – pelo menos nenhuma que valha a pena ler. A arte ou se sustenta por si mesma, ou não se sustenta. Assim que é necessário ser explicada,
ela deixa de ser arte.
Ela não disse nada disso para Paul, no entanto. Provavelmente não era a conversa ideal entre pai e filha, pois ela sem dúvida acabaria tirando sarro dessa coisa
toda de “escultor recluso” que ele tinha, e ela não queria fazer isso.
Eles ainda estavam no segundo andar, e a viagem até o andar da exposição de Julia estava sendo terrivelmente lenta, pois Paul ficava um bom tempo admirando cada
escultura.
Finalmente, quando ele parou para ler a placa ao lado de uma escultura de bronze de duas maçãs cinza com perucas vermelhas se beijando, Tessa disse: – Então, você
nunca se casou?
– Não.
– Por que não?
– Acho que nunca encontrei a mulher certa na hora certa.
– Então minha mãe era a mulher errada ou apareceu na hora errada? Ele olhou para ela. – Eu era o homem errado. Eu acho.
Não era a resposta que ela esperava. Ela digeriu as palavras dele.
Ele a conduziu até uma caixa grande dos correios, enclausurada em vidro. Uma espada lhe atravessava, como se fosse Excalibur perfurando uma pedra.
Outra placa explicativa.
Ah, que beleza.
– Então, nenhum outro filho?
– Não.
– Que você saiba.
O sorriso estampado em seu rosto assim que eles se encontraram nos degraus da Biblioteca do Congresso desaparecera lentamente no decorrer da manhã, e agora ele a
olhava de um jeito curioso. Talvez com um toque de hostilidade.
– Quero dizer, você deixou bem claro que não sabia sobre mim – ela explicou. – Mas aqui estou. Então, o que estou dizendo é: você quer dizer que não tem outros filhos
sobre os quais você saiba.
– Não tenho nenhum outro.
Ele soava determinado, mas ela não acreditava que nos últimos dezessete anos ele não tinha dormido com nenhuma outra mulher.
– Como você sabe?
– Eu não tenho nenhum outro filho, Tessa – algo frio e incerto havia se arrastado para o espaço entre eles.
Ela repetiu, falando mais lentamente dessa vez. – Como você sabe?
– Eu fiz vasectomia, Tessa.
Foi muito direto, não é o tipo de coisa que um pai conta para sua filha adolescente. Claro, ela havia pressionado, mas ainda assim...
– Vamos – ele apontou para o elevador. – Vou te mostrar as esculturas de Julia.
– Tá bom – ela disse. – E você pode me contar mais sobre ela no caminho.
22
Nada
Nenhum Volvo.
Mas tínhamos imagens do carro do guarda passando pelo cruzamento às 17h53 e do GM Volt da tratadora, Sandra Reynolds, às 19h02.
Anotei os horários mentalmente. No entanto, a tempestade, o trânsito, qualquer série de fatores pode ter afetado seus horários de chegada.
Tente os semáforos ao sul do instituto.
Seria um caminho mais sinuoso da estação do metrô onde Mollie fora vista pela última vez, talvez indicando que seus sequestradores deixaram a cidade e então voltaram
com ela. E se for esse o caso, quando eu desenhar o perfil geográfico, dependendo do local da zona de perigo, isso pode ser significante.
Para casa? Eles a levaram para seu local de residência?
Perguntas, perguntas.
Eu precisava de fatos.
Segundos após eu ter começado o segundo vídeo, Ralph apontou o dedo para a tela. – Peguei.
Às 17h32, o Volvo 2009 de Rusty Mahan passou pelo cruzamento.
Eles chegaram e então esperaram a troca de turno?
Talvez.
Pausei a imagem, voltei para o momento em que o carro surgia na tela.
Apertei play.
– É isso – Lien-hua disse, mas havia um tom de decepção em sua voz. – Mas não dá para ver o motorista, tem muito reflexo por causa da chuva.
– Passe novamente – Cheyenne disse.
Passei duas vezes e em velocidades diferentes, mas o reflexo obscurecia o rosto do motorista.
Ralph pegou seu celular. – Os caras do laboratório podem tirar um pouco disso...
– Não – murmurei. Eu estava olhando para a imagem. – Isso não está certo.
– O quê?
– Olhem – dei zoom na placa. – É uma placa diferente. O Volvo no estacionamento tinha a placa 134–UU7; esse é TEP–ROM.
Ralph baixou o telefone. – Mas é o mesmo carro.
– Vamos tirar a prova – pressionei o botão play novamente.
Lien-hua foi checar a segunda placa enquanto Cheyenne, Ralph e eu revisamos a filmagem até o ponto em que os veículos de emergência passaram pelo cruzamento às 19h14,
a caminho da cena do crime.
Nenhum outro Volvo sedã.
– Ok – Lien-hua disse –, ambas as placas estão registradas no nome de Rusty Mahan.
– Duas placas para o mesmo carro? – Cheyenne virou o teclado em sua direção para que pudesse digitar, abrindo os arquivos do caso. – Você precisaria de alguém dentro
do departamento de trânsito para conseguir algo assim.
Ralph balançou a cabeça. – Não. Uma carteira de motorista, um endereço e algum dinheiro bastam para você conseguir placas.
– Identidade falsa? – Lien-hua perguntou.
– Custa uns sessenta dólares por aí.
Balancei a cabeça. – Eu entendo a troca de placas para evitar apreensão, mas por que trocá-las se você vai deixar o carro na cena do crime? Especialmente se você
usar placas registradas no mesmo nome.
O caso parecia estar se desviando para uma direção completamente diferente.
– Certo, vamos pensar sobre isso – Lien-hua disse. – TEP–ROM. Isso significa alguma coisa para alguém?
– TEP é Propagação Transequatorial – Cheyenne disse. – Tem a ver com propagação de ondas. ROM tem algo a ver com memória de computador.
– Read-only memory, ou memória somente de leitura – Lien-hua disse.
Cheyenne digitou no teclado.
– PROM pode ser memória somente de leitura programável.
Ralph interrompeu: – Lien-hua, você disse que o cara poderia ser um hacker?
– Sim. Mas e quanto ao TE no começo?
Estávamos afundando rapidamente no pântano das conjecturas.
Ele balançou a cabeça.
– Espere um minuto – eu disse. – Em vez de nos preocuparmos com o tipo de mensagem oculta que as placas podem conter, vamos encontrar o atendente do departamento
de trânsito que arquivou os papéis de registro e ver se conseguimos uma descrição da pessoa que fez o pedido. Ver se foi Mahan ou não. Podemos pedir para Angela
Knight ou para os criptógrafos da NSA trabalharem na história da placa para nós.
Sem oposição.
– Certo, abra o vídeo novamente, Cheyenne – falei para os três. – Mais alguma coisa? Algo que estamos esquecendo?
Ela passou a filmagem de novo.
O semáforo.
Vermelho. Amarelo.
– As câmeras do instituto, – eu murmurei – a loja de eletrônicos... os assassinos sabem sobre vídeo.
Verde.
– Espere – eu disse. – Volte e passe de novo.
E finalmente eu vi.
Não acreditava que não tinha visto antes.
– Aqui, aqui, aqui. Assista de novo. As luzes do semáforo – me inclinei para perto de Cheyenne. Apertei play. Senti o cheiro delicado e doce de seu perfume. Tentei
ignorar.
Enquanto o vídeo passava, eu podia ver no olhar de cada um que nenhum dos meus colegas tinha a mínima ideia do que eu estava falando.
Voltei o vídeo com o cursor e apertei play uma última vez. – O semáforo. Reparem quando ele muda.
Nós todos vimos o carro se aproximando, a luz ficar verde, o veículo desacelerar, passar pelo cruzamento e acelerar.
– Ele desacelera – Lien-hua disse – conforme se aproxima do semáforo.
– Sim, conforme se aproxima – eu disse. – Mas fica verde quando ele ainda está a pelo menos trinta metros de distância. Então, por que ele desaceleraria em uma rua
vazia enquanto se aproximava de um semáforo que já estava verde?
– Poderia ser praticamente qualquer coisa – Ralph falou com dureza, e estava claro que ele não achava que isso tivesse algum significado. – Ele podia estar distraído,
ao telefone, mexendo no rádio... – uma extensão de silêncio reflexivo, então ele murmurou a mesma coisa que eu havia pensado. – Ou ele queria ser pego na câmera.
– É isso que estou imaginando – eu disse. – Tudo até agora foi arranjado para nos fazer olhar em uma direção enquanto perdemos os fatos óbvios em outra. Eles mudaram
as placas e parece que queriam que percebêssemos, mas não imediatamente.
– Quem poderia imaginar que verificaríamos as câmeras de trânsito? – Lien-hua perguntou.
– Alguém que pensa como Pat – Cheyenne disse.
– Mas por quê? – Ralph perguntou. – Por que alguém...
Meu telefone tocou e meu identificador de chamadas mostrou que era Missy Schuel, a advogada.
A hora não podia ser pior. Eu odiava ter que sair de tal conversa, mas essa era uma ligação que eu não podia me dar o luxo de perder.
Tocou novamente.
– Segurem esse pensamento – eu disse aos meus amigos. – Eu já volto.
Deslizei para o corredor e atendi o celular.
23
– Pat Bowers falando.
– Dr. Bowers, é Missy Schuel. Recebi sua mensagem. Desculpe-me não ter retornado mais cedo, minha filha passou mal hoje de manhã e tive que buscá-la na creche.
De todas as desculpas por não ter retornado uma ligação, cuidar de um filho doente teria que encabeçar o topo da lista, mas me parecia estranho um advogado compartilhar
isso com um potencial cliente.
– Ela está bem?
– Sim. Obrigada por perguntar. Ela está com uma amiga – uma breve pausa, supostamente para passar a conversa de assuntos pessoais para profissionais. – Normalmente,
não consigo conversar com novos clientes em tão pouco tempo, mas tive um cancelamento às 12h50. Posso me encontrar com você por talvez cinquenta minutos. É meu único
horário até o dia 17.
Olhei para o meu relógio.
12h20.
Sem chance.
Eu sabia que o escritório de Missy Schuel ficava no centro de Washington, DC a pelo menos trinta minutos de carro do NCAVC, então mesmo que eu partisse imediatamente
e fosse correndo para lá, eu mal conseguiria, e considerando o quanto Missy e eu precisávamos conversar, eu não conseguia pensar em nenhum modo de voltar para Quantico
a tempo da minha aula às 14h. – Não tem mais nada? Tem certeza?
– Dr. Bowers, posso encontrar-me com você às 12h50 – nenhuma irritação em sua voz, apenas formalidade profissional. – Caso contrário, ficarei feliz em passar para
você os nomes e números de outros advogados que eu recomendo. O que você prefere?
– Eles são tão bons quanto você?
– Não – uma avaliação franca e simples que me impressionou.
Pensei na lista de Ralph com todas as agências envolvidas nessa investiga
ção, todas as pessoas que estavam no caso. Eles podem sobreviver por algumas horas sem você, Pat. Não estrague tudo. Faça o que é melhor para Tessa.
– Estarei aí às 12h50.
– Certo. Meu escritório fica localizado na 1213 11th St. NW. Estacione na loja de bebidas do outro lado da rua. Eles não ligam.
– Loja de bebidas?
– Eu não tenho estacionamento aqui no meu escritório, então digo aos meus clientes para usar o deles. Só não demore por lá ou vão pensar que você está lá para comprar
drogas.
Minha confiança na srta. Schuel estava começando a vacilar.
– Tudo bem.
– Vejo você em breve, agente Bowers.
– Espere. Eu disse a você que era doutor; não disse nada sobre ser um agente.
– Eu pesquisei sobre você. Não gosto de surpresas – e isso foi tudo.
Encerramos a ligação e corri de volta para a sala de conferência. Juntei minhas coisas, deixando meu laptop para a equipe usar. – Preciso ir.
Lien-hua olhou preocupada para mim. – Você está bem?
– Sim. Gesticulei na direção do corredor. – Posso falar com você um minuto? – Assim que saímos, percebi que Cheyenne nos observava com curiosidade, mas quando ela
me viu olhando para ela, se concentrou no monitor do computador novamente.
Quando Lien-hua e eu estávamos sozinhos no corredor, eu disse: – Você poderia me fazer um favor? Você vai voltar para a Academia?
Uma pausa. – Posso.
– Você daria minha aula das 14h? – eu podia ouvir minha voz urgente, apressada. – Apenas meia hora, talvez. Nós íamos dar uma passada na fazenda de corpos.
– Pat, o que está acontecendo?
Vamos, bote para fora. Daí, vá embora.
– É o pai de Tessa. Nós o encontramos mês passado, e ele está tentando tirá-la de mim. Ele está me processando pela custódia dela. Preciso me encontrar com uma advogada
e não pode ser outra hora.
Pronto. Bem direto.
– Eu dou sua aula inteira. Vá.
– Obrigado, fico devendo... oh, não. Cheyenne. Ela veio de carona comigo. Ela vai precisar de uma carona de volta para a Academia.
– Não se preocupe. Eu a levo.
– Certeza?
– Se nós vamos trabalhar juntas, precisaremos nos conhecer.
Consequências não intencionais.
Sem pensar, apertei suavemente seu ombro. – Obrigado – tocá-la foi familiar e estranho ao mesmo tempo. Tons diferentes do passado.
Eu estava prestes a tirar minha mão, mas ela pôs a sua sobre a minha e seus dedos envolveram os meus, ainda que delicadamente, mas envolveram. – Você não precisa
me agradecer. Agora, vá.
Então, o momento desapareceu. Ela voltou para a sala de conferência e eu corri para o estacionamento, meus pensamentos se adiantando para meu encontro com Missy
Schuel.
24
Então, de acordo com o pai de Tessa, Julia Rasmussen era alguém que ele havia conhecido quando morou em Washington, DC seis anos atrás. Aparentemente, foi ela que
o introduziu às esculturas.
Ela era uma escultora.
Que legal.
– Você vai se encontrar com ela enquanto estiver aqui na cidade? – Tessa perguntou.
Ele demorou para responder. – Amanhã. Sim – ele gesticulou na direção de uma escultura a cerca de seis metros de distância. – Bem, aqui estamos.
Tessa olhou para a figura na direção da qual Paul estava andando: 1,20 m de altura, feita de um tipo de resina plástica. Os pés da escultura eram nadadeiras que
lentamente se transformavam em pernas musculosas e peludas e então se moldavam em um torso e um pescoço nus e, então, no rosto de uma garota com um sorriso tragicamente
triste, mas com olhos otimistas.
E tinha uma placa explicativa. Claro.
Paul estava radiante.
– Incrível, não é?
Julia, hum?
A escultora.
– É... interessante.
– O que diz para você?
– Honestamente?
– Sim. Claro.
– Diz que ela não conseguia decidir o que fazer: um sapo, um gorila ou a Shirley Temple.
Ele olhou para ela de forma estranha.
– Desculpa, eu quero dizer... Tá certo, que tal isso: é a história da vida nesse planeta, de peixe para primata para homem, movendo-se inexoravelmente para a felicidade.
Mas nossa raça ainda não a alcançou; ainda estamos presos à nossa natureza animal, e por isso o rosto dela está tão abatido. Ela está cheia de esperanças, otimista,
mas ainda precisa alcançar a iluminação.
Ele piscou. Olhou para a placa. Olhou novamente para Tessa.
– Não, eu não tinha visto antes – ela disse.
– Isso é extraordinário.
– Sim, mas não é honesta.
– Não é honesta?
– A escultura. Sobre a vida. Ela supõe que a seleção natural sempre se move na direção da felicidade, impondo juízo de valor, o que é ilógico. E quem pode dizer
que animais não são mais felizes do que nós? Não são muitos deles que cometem suicídio. Além do mais, muitas pessoas pensam que somos modelados pela mão de Deus,
e não por um simples processo natural. Minha mãe acreditava nisso. Eu também acredito.
Uma pausa. – Você tinha pensado nisso antes.
– Sim – ela considerou contar a ele que Patrick lhe dissera mais de uma vez que a verdade não teme um exame minucioso. Mas se segurou.
– Você acredita em Deus, Paul?
Ele demorou para responder. – Não tenho certeza.
– Julia acredita?
– Tessa, isso...
– Não é da minha conta?
Ele olhou para ela mais de perto. – Não, eu não acho que Julia acredite em Deus.
Tessa sentiu no ar: constrangimento, constrangimento, constrangimento.
– Então – ele apontou para uma escultura próxima: um vaso sanitário cercado de pele de animal falsa e enquadrado dentro de um triângulo verde gigante. – E quanto
a esse? Vamos ver se você consegue acertar duas seguidas.
Oh, por favor não diga que Julia, a escultora, fez essa coisa também.
Tessa olhou o nome na placa.
Ótimo.
– Então?
– Vamos, Paul. Eu só quero conversar. Eu realmente não curto muito essa coisa toda de interpretação de esculturas.
– Você acertou a última.
– Sorte.
– Não acredito em você.
Ela segurou um suspiro.
– É um vaso sanitário em um triângulo gigante. Podemos continuar? Por favor?
– Vamos, você pode fazer melhor que isso. Consegue me dizer o que significa?
Certo.
Chega disso.
– Eu não sou artista, mas acho que o importante na arte não é signifi-car, mas sim acrescentar. Se ela não fizer isso, se ela precisa de uma placa para explicar,
não é arte. É como a natureza: o que um pássaro quer dizer com sua música? O que uma flor quer dizer quando desabrocha? Quer dizer beleza. Qualquer explicação além
dessa é supérflua.
Ele ficou olhando para ela.
– Olhe, o que você fez antes de se mudar para Wyoming e se tornar um recluso?
– Trabalhei para o governo. Já falei isso para você antes. Como você sabe tanto sobre...
– Sim. O departamento de caça e pesca.
– Está certa.
– Por que você está lá, no meio do nada? Está fugindo de alguma coisa?
– Eu precisava de um lugar para ficar sozinho para trabalhar nas minhas esculturas; já falamos sobre tudo isso quando você e seu padrasto foram até a minha cabana.
Você estudou arte ou...
– Patrick. Quando Patrick e eu fomos até sua cabana. Por favor, use o nome dele.
Um olhar duro. – Não estou certo do que você está tentando fazer aqui. Você está brava comigo?
– Não.
– Vamos tentar mudar isso de um interrogatório para uma conversa, tudo bem?
Ela sentiu uma pontada aguda de raiva. – Não estou te interrogando.
– Que tal se revezarmos? Você me faz uma pergunta, daí eu faço outra para você – ele gesticulou na direção de algumas poltronas de couro perto da janela, mas ela
não se mexeu.
– Por quanto tempo você e minha mãe ficaram juntos? – ela disse.
– Três semanas.
– E vocês...
Um sorriso.
– É minha vez, Tessa.
Ela não disse nada.
– Você ama Patrick?
– Eu o amo. Sim. E quanto à minha mãe? Você a amava? Uma pausa. – Nós saímos por três semanas, Tessa.
– E?
Ele não respondeu.
– Então – ela disse – você dormiu com ela mesmo sem amá-la?
– Nós dormimos juntos. Sim. Três ou quatro vezes.
– Três ou quatro? Você não se lembra?
– Minha vez de perguntar. Ele já fez alguma coisa para machucar você?
– Quem?
– Patrick.
– Para me machucar? Do que está falando?
Ele apontou para o braço dela, para suas cicatrizes. – Ele fez isso em você?
– Como você pode pensar nisso? Eu mesma fiz isso. Você não consegue se lembrar de quantas vezes dormiu com a minha mãe? Com quantas outras mulheres você estava dormindo
ao mesmo tempo para que perdesse até a conta?
– Não havia nenhuma outra – então, de volta para as cicatrizes. – Algumas delas parecem recentes. Por que ele não te impediu?
Ela olhou friamente para ele. – Acho que não quero mais saber dessa conversa – ela colocou a alça da bolsa sobre o ombro. – E já tive o suficiente de arte por um
dia. Estou indo embora.
Ele tentou alcançar seu braço para impedi-la, mas ela o fulminou com o olhar. – Nem tente.
Ele parou um pouco antes de tocá-la.
– Eu me preocupo com você – ele recuou a mão. – Eu quero que você fique segura. Durante o julgamento de Basque no mês passado, seu padrasto, Patrick, admitiu tê-lo
agredido fisicamente, ter quebrado a mandíbula de Basque quando o prendeu.
– O cara estava tentando matá-lo.
– Não foi exatamente assim que a imprensa colocou...
– Patrick nunca me machucaria. Nunca.
Um rápido silêncio.
– Fico feliz por saber disso.
Ela estreitou os olhos. – Por que todas essas perguntas sobre Patrick?
– Você é minha filha. Eu só quero garantir que esteja num ambiente seguro. Você é importante para...
– Ah, é? Bom, então me responda isso: se eu sou tão importante para você, por que você nunca foi me ver? E por favor não me diga que é porque você pensou que minha
mãe ia me abortar. Você sabia onde ela estava. Você escreveu para ela quinze anos depois. Eu achei o cartão--postal! Você sabia sobre mim.
Ela o observava atentamente. Seu rosto. Sua linguagem corporal.
– Honestamente, eu sempre pensei que sua mãe tinha feito o aborto.
– Sim, claro.
– Estou te dizendo a verdade. Eu não sabia que você tinha nascido, Tessa. Eu não tinha como saber. Antes de sua mãe se mudar, ela deixou bem claro que não me queria
na vida dela – uma pausa. – Mas agora estamos aqui; estamos juntos, e eu só estou tentando me certificar de que esse homem que está cuidando de você...
– Patrick! O nome dele é Patrick! E ele é mais do que só o cara que cuida de mim, tá bom?
– Tá bom.
Mostre a ele, Tessa. Prove.
Ela puxou a manga esquerda, revelando a tatuagem de corvo que tinha feito para esconder a cicatriz que Sevren Adkins fizera nela quando cortou sua artéria braquial
e a deixou para morrer sangrando.
– Patrick salvou minha vida ano passado quando um assassino em série me atacou. Ele arriscou sua vida. Ele quase foi morto fazendo isso.
– Um assassino em série?
– Isso mesmo.
Ele estava olhando cuidadosamente para a tatuagem. E para a cicatriz.
– Eu não sabia disso.
Ela soltou a manga. – Sim, então, agora você sabe.
– Sinto muito por você ter se machucado assim. Eu nunca teria deixado alguém...
– Eu não aguento mais isso – ela virou-se para ir embora.
– Tessa, não saia andando quando estou falando com você.
Ela virou-se de volta. Cara a cara com ele. – Patrick faria qualquer coisa por mim, e enquanto você estava lá na sua cabana de Unabomber brincando com papel machê,
ele estava ocupado sendo um pai para mim. Não me mande mais e-mails. Acho que sei tudo que preciso saber.
– Ainda tem muita coisa para nós conversarmos. Eu vou...
– A conversa acabou, Paul.
– Eu já falei para você. Nos meus e-mails. Você não precisa me chamar de Paul. Eu sou seu pai. Você pode me chamar de pai.
Inacreditável.
– Patrick é meu pai. Você é só o homem que engravidou minha mãe.
Ela saiu andando, mas assim que entrou no elevador, deu mais uma olhada e viu que ele saíra de onde estava, de pé, parado. Ele ainda a observava com os olhos claros
e inabaláveis.
Isso a assustou.
As portas do elevador se fecharam.
Ele usou sua mãe. Ele não a amava.
Ele a usou...
Ela sentiu uma rajada quente de ódio e um aperto pela decepção. Ele
não amava mamãe. Como ele poderia em algum momento ter amado você?
E assim que chegou ao térreo, ela fugiu para o banheiro para pensar.
Para se esconder. E, mesmo sem querer, para chorar.
25
A mulher na parte de trás da van agora estava calada e imóvel.
Mais cedo, quando Brad a transferiu do porão para o veículo, ela lutou mais do que ele gostaria, mas ele a fez parar.
Agora, complacente de novo, ela estava deitada perto da cadeira de rodas que ele usaria para levá-la até o quarto onde ela morreria no oitavo andar do recém-reformado
Lincoln Towers Hotel, mais conhecido como o lugar onde, há seis anos, um pretenso assassino tentou matar o vice-presidente.
Ele e Astrid reservaram um quarto no hotel mês passado e, aumentando o volume da televisão, testaram quanto do som era perceptível no corredor. Eles descobriram
que, mesmo o quarto não sendo tão à prova de som quanto aquele em seu porão, com a televisão ligada para abafar os gritos da mulher, tudo daria certo.
Como uma doce ironia, a mulher morreria em um quarto que o cadáver do centro de primatas estava pagando – a uma generosa quantia de 598 dólares por noite. E ninguém
descobriria isso até que fosse tarde demais.
Ele saiu da rodovia.
12h41.
O hotel não estava longe.
Que os jogos comecem.
26
Eu estava a menos de cinco minutos do escritório de Missy Schuel, e na ansiedade pelo nosso encontro, meus pensamentos giravam em torno de Tessa e seu pai.
Nós o conhecemos em Wyoming no fim do mês passado.
O ar nas montanhas estava tomado pela chuva naquele dia, e os picos ao redor a cabana dele foram engolidos por uma grossa neblina cinzenta.
Um céu fatigado com chuviscos.
Assim que saiu do carro, Tessa tirou uma mecha de cabelo da frente dos olhos. Por algum motivo, eu me lembrava disso. Um pequeno gesto.
Congelado no tempo. – Eu quero fazer isso sozinha.
– Isso não vai ser possível.
– Estou falando sério.
– Eu também. Tessa, eu não vou deixá-la sozinha com ele. Não até eu saber mais sobre ele.
– Ele é meu pai.
Apesar de saber que as palavras eram verdadeiras, elas atingiram uma parte do meu coração que eu não sabia que existia até a morte de Christie, quando Tessa se tornou
a pessoa mais importante da minha vida. – Sim, ele é – eu disse. – Mas se você for entrar lá, eu vou com você.
Uma pausa. – Tá bom.
Então, juntos, nos aproximamos da cabana. A névoa serpenteando ao nosso redor. A lama grossa sob nossos pés.
Eu não tinha certeza de como Paul reagiria ao se deparar com a gente aparecendo assim, sem avisar. Nós não ligamos para avisar que estávamos indo; afinal, ele não
possuía um telefone. Nem uma conta no banco. Ou histórico de crédito. No papel, esse homem não existia.
E essa foi uma das razões pela qual eu não ia deixar Tessa sozinha com ele. Ele deixara a sociedade para trás, e eu queria saber o porquê.
Quando ele atendeu à porta, decidi que mencionar que eu era um agente federal talvez não fosse o melhor jeito de começar com o pé direito. – Meu nome é Patrick Bowers
– eu disse. – Você é Paul Lansing?
Seus olhos passearam entre mim e Tessa. – Sou.
Eu estava prestes a explicar o propósito de nossa visita, mas antes que eu pudesse, Tessa mostrou o diário, abriu em uma página com um bilhete que um homem chamado
Paul havia escrito para sua mãe há dezessete anos pedindo a ela para não fazer um aborto. – Você escreveu isso?
Ele olhou para a página e sua expressão mudou de curiosidade para uma certa suspeita. – Quem são vocês?
– Meu nome é Tessa Bernice Ellis. Minha mãe era Christie Rose Ellis.
Há dezessete anos, você dormiu com ela e ela queria me abortar, mas você implorou a ela para que não o fizesse. Eu sou sua filha.
Esperei que Paul falasse, dissesse alguma coisa, qualquer coisa. Mas ele apenas estudou Tessa por um momento infinitamente longo, e, finalmente, sussurrou: – Então,
ela não fez... – nem Tessa nem eu nos movemos. – Eu sempre pensei...
Então, uma delicada lágrima se formou em seu olho e ele nos convidou para entrar.
Naquele momento, percebi que ele amara Tessa pelos últimos dezessete anos mesmo sem saber que ela estava viva.
Já no quarteirão do escritório de Missy, o toque do meu telefone me arrancou dos meus pensamentos sobre aquele dia cinzento em Wyoming. Atendi.
Ralph: – Onde você está, cara?
– Washington, DC.
– Ótimo. O deputado Fischer quer ver você.
– Do que você está falando?
– Ele pediu para falar com você. Acho que é sobre Mahan.
– Eu? Por quê?
– Não falou. Eu sei que não faz sentido, mas preciso que você...
– Escute, estou a caminho do escritório da advogada que Brin comentou. Fale para Margaret lidar com...
– Eu sei que você precisa fazer isso, mas essas coisas levam semanas.
Você tem tempo. Fischer tem uma coletiva de imprensa em menos de quinze minutos.
Entrei no estacionamento da loja de bebidas do outro lado da rua do escritório de Missy Schuel. – Ralph, isso não faz sentido. Tem muitas pessoas que podem falar
com Fischer. Mande Doehring.
– Você pode impedi-lo de...
– Que tal uma ligação? Por que eu não só ligo pra ele?
– Ele pediu para te ver – sua voz estava começando a ficar agitada. – Eu não preciso te dizer que agora não é hora de deixá-lo irritado com o Bureau.
– Espere – eu estava perdendo minha paciência também. – Estou falando com Ralph ou com Margaret?
Um momento de silêncio.
– O encontro com a advogada pode esperar – o tom de Ralph era frio. – Você tem dez minutos para estar no escritório do líder da minoria do congresso para que então
Fischer possa conversar com você antes de se encontrar com a imprensa, e não quero que você se atrase.
– Prepare-se para ficar decepcionado.
– Pat, a prioridade agora tem que ser...
– Minha filha – eu disse, e encerrei a ligação.
Então, coloquei o celular no modo silencioso, peguei minha bolsa com a carta dos advogados de Lansing e desci do carro.
Segui na direção do outro lado da rua, até o prédio de Missy.
Tessa estava lavando o rosto, mas seu rímel preto estava muito borrado e ela ainda estava com uma aparência terrível.
Como aquele homem pode ser mesmo seu pai? Não é possível!
Ela sentiu vontade de bater em alguma coisa, bater nele, e é claro, de se cortar novamente. Tentar se cortar para espantar a dor.
Seus olhos foram parar nas cicatrizes em seu braço.
Ela estava tentando seriamente deixar para trás aquele capítulo de sua vida, nem carregava mais uma navalha ou um estilete com ela. Mas ela podia arranjar uma. Ela
poderia comprar...
Não faça isso, Tessa. De novo, não.
Ela terminou o que fazia na pia, secou o rosto e saiu do banheiro.
Ela precisava conversar com Patrick.
Agora.
Contar tudo a ele, pedir desculpas.
Ah, ótimo. Muito bem.
O telefone. O Blackberry que Paul lhe dava com seu programa GPS do Google para que ele pudesse encontrá-la.
Ela o pegou e deixou nele uma mensagem nada ambígua sobre o que ele podia fazer com seu telefone de presente; então o jogou na lata do lixo ao lado da porta da frente
quando saiu do museu. Vá em frente, procure, encontre e leia.
Curta essa, pai.
Ela pegou seu próprio celular. Ligou para Patrick.
Nenhuma resposta.
Vamos, atenda, atenda.
Nada.
Droga.
Ela deixou uma mensagem, tentando não parecer que estava completamente prestes a se descontrolar, mas não foi fácil.
Volte para casa.
De volta para casa. Apenas saia daqui.
Na esquina da rua, ela viu uma placa indicando os locais das estações de metrô da cidade; encontrou a mais próxima que pudesse levá-la ao trem de volta para Virgínia
e partiu na direção dela.
A área da recepção de Missy Schuel era um espaço pequeno e amontoado de uma sala contendo uma escrivaninha com altas pilhas de papel, faturas e cadernetas cheias
de anotações ilegíveis. Nenhuma recepcionista. Uma TV velha ficava no canto da sala, com o som desligado, mostrando um palanque vazio com uma bandeira ao lado. O
texto na parte inferior da tela dizia que a conferência de imprensa do deputado Fischer começaria em instantes.
Eu havia lidado com crimes o suficiente na área de Washington, DC para reconhecer a sala do corpo de imprensa do lado de fora do escritório do líder da minoria do
congresso.
O lugar para onde Ralph me mandara ir.
Uma porta à minha esquerda tinha um post-it colado nela: “Estou aqui”.
Um post-it.
Maravilha.
Brineesha disse que ela é boa. Pelo menos dê uma chance a ela.
Bati.
– Entre, dr. Bowers.
Entrei.
27
12h48
Um escritório simples.
Manuais de direito lotavam as prateleiras, uma pequena janela na parede do lado leste fazia frente para outro prédio a menos de cinco metros de distância. Um laptop
estava no centro de sua mesa flanqueado por um pequeno relógio digital e uma foto de três crianças sorridentes: um menino e duas meninas, todos pareciam ter dez
anos de idade ou menos. Um escaninho arrumado, quase vazio.
Missy Schuel não era nem robusta, nem esbelta, nem bonita e nem desinteressante. Cerca de quarenta e poucos anos, cabelo preto com um leve toque grisalho. Ela me
lembrou mais uma diretora de escola fundamental do que em uma advogada de divórcios durona.
Ela se levantou e apertou minha mão. – Dr. Bowers, é um prazer conhecê-lo.
– Pode me chamar de Pat.
– Missy.
Antes de perguntar sobre minha situação com Lansing, ela começou uma explicação de sua própria história: ela era uma mãe de três crianças que recentemente voltara
a trabalhar após seu marido deixá-la no verão passado; ele era um bom homem, ela disse, e não havia sido por causa de outra mulher e ela não ficou ressentida com
ele.
Mais uma vez, uma proximidade estranha.
E apesar de eu achar difícil de acreditar, ela realmente não parecia amarga em relação a seu ex-marido, apenas magoada com ele. Tive a sensação de que ela estava
arrasada pelo fato de o homem para quem ela havia dado sua vida ter decidido que preferia ficar sozinho a ficar com ela. Um choque que, e eu só podia imaginar, deveria
custar uma vida inteira para uma pessoa se recuperar.
Ainda assim, por mais simpático que eu fosse em relação à sua situação, eu só queria começar a resolver a minha, e acho que ela podia ver isso. – Eu só divido isso
com você – ela explicou – para que saiba que sou uma mãe solteira também e que entendo os tipos de conflitos e problemas com os quais vocês lidam. Cada caso é pessoal
para mim.
– Fico feliz em saber.
Imediatamente discutimos o quanto ela cobrava e, em contraste com a vizinhança de seu escritório, não era barato, mas aceitei seus termos. Então ela me disse que
só poderia conversar até as 13h20, vinte minutos a menos do que eu havia pensado, e ambos nos sentamos. Ela posicionou uma caderneta à sua frente. – Não vou mentir
para você, agente Bowers. Essas coisas, esses casos de custódia, eles podem ser... – ela parecia estar procurando a palavra certa.
– Delicados – eu disse.
Um aceno de cabeça. – Sim. E dolorosos. E confusos. Especialmente para as crianças.
Senti uma mistura de ansiedade, talvez até culpa, embora eu não conseguisse pensar em nada que eu tivesse feito para me sentir culpado. – Estou ciente disso.
Ela ergueu um lápis incrivelmente apontado, segurou-o, a ponta contra a primeira linha da caderneta. – Certo. Pela mensagem de voz que você me deixou hoje de manhã,
entendo que o pai biológico de sua enteada está tentando tomar a guarda dela.
– Sim.
Entreguei-lhe a carta dos advogados de Paul Lansing.
Ela a analisou. Colocou-a de lado.
– Me conte a história toda. Quando você conheceu Tessa?
Meu celular vibrou no meu bolso e eu o ignorei.
– Cerca de três meses antes de me casar com a mãe dela.
– Três meses.
– Sim. Christie e eu fomos noivos por um tempo curto – disse a ela as datas.
Ela escreveu.
O telefone continuou a vibrar e eu continuei a ignorá-lo.
Meu novo hábito.
Eu meio que gostava disso.
Ela olhou na direção do meu bolso. Deve ter percebido o barulho do telefone vibrando. – E seu casamento durou quanto tempo?
– Christie morreu quatro meses após nos casarmos.
Missy fez uma pausa. – Eu sinto muito – a simpatia em sua voz parecia honesta e sincera, e eu comecei a confiar meu caso a Missy Schuel.
– Obrigado.
Meu telefone parou.
– Continue – eu disse.
– Posso perguntar... se você só conhecia Tessa por um período curto de tempo quando a mãe dela faleceu, por que você não entrou em contato com outro parente para
que eles cuidassem de Tessa após a morte de Christie?
– Os pais de Christie morreram quando Tessa era muito nova. Christie não tinha irmãos. E eu não tinha como descobrir quem era ou onde estava seu pai biológico.
– Então não havia parentes próximos?
– Não que eu soubesse. Antes de morrer, Christie me pediu para cuidar de Tessa – eu estava recebendo outra ligação, mas eu não queria que nada me distraísse, então
tirei um momento para desabilitar a função de vibração no meu telefone.
– Então você tem a custódia? A guarda legal?
– Sim.
– Bom.
Um raio de otimismo. As coisas ficariam bem, afinal.
Mas não foi isso que o rosto de Missy me disse quando ela me pediu mais informações. Contei a história de como, após a morte de Christie, eu mudei com Tessa de Nova
York para Denver na esperança de colocar alguma distância entre nós e nossa tristeza. No começo, penamos para nos darmos bem, mas como meus horários de trabalho
requeriam sete ou oito dias de viagem por mês, na maioria das vezes durante os fins de semana, ambos conseguíamos ter espaço suficiente para ficarmos tranquilos.
– E onde ela fica durante esse tempo? Quando você viaja.
– Com meus pais.
Mencionei as épocas difíceis de Tessa com a autoflagelação e então concluí contando a Missy sobre o fim de semana em outubro passado quando nosso relacionamento
começou a melhorar. A dor nos uniu.
– Ela foi sequestrada por um assassino em série. Ele a cortou e a largou para morrer.
– Isso é horrível.
– Sim, mas cheguei até ela a tempo. Depois disso, eu não sei... talvez ambos percebemos o quanto nós sempre nos amamos, o quanto precisamos um do outro, mas nunca
havíamos entendido como demonstrar isso.
– Ela tem cicatrizes?
– Perdão?
– Você disse que ele a cortou. Ela tem cicatrizes?
A pergunta parecia um pouco invasiva. – Sim. Ela tem uma cicatriz no braço esquerdo. Tem uma tatuagem a cobrindo, mas ainda é visível.
Missy fez algumas anotações em sua caderneta. Eu não gostava que ela escrevesse em um tipo de letra de mão que era impossível de ler de cabeça para baixo. – E Paul
Lansing – ela disse –, o que sabemos sobre o relacionamento dele com Christie?
– Nas poucas vezes que perguntei a ela sobre quem era o pai de Tessa, ela apenas me disse que ele não fazia mais parte da vida delas.
Missy estava com a cabeça baixa, olhando para o papel, mas agora ergueu os olhos, me deu uma olhada lenta e medida. Senti que não acreditou em mim.
– Não forcei o assunto com ela. Todos temos coisas que são muito dolorosas ou embaraçosas para compartilhar. Coisas que precisamos deixar para trás.
– Certo.
– Tessa só encontrou o diário com o nome de Paul recentemente, algumas semanas atrás.
Ela inclinou a cabeça. – Diário?
– Sim, de Christie. De quando ela estava na faculdade. De acordo com o que escreveu, ela teve um relacionamento rápido com Paul, e isso foi tudo.
– E ele escolheu afirmar seus direitos como pai de Tessa na época?
Hesitei.
Missy me observava. Lendo meu rosto, meu silêncio.
– Conte-me.
– Quando Christie descobriu que estava grávida, ela decidiu fazer um aborto. Ele escreveu para ela, Paul escreveu, implorando que ela não fizesse isso. Ela guardou
essa carta no diário. Após ela ter decidido ganhar Tessa, não há mais menção nenhuma sobre ele no diário. Mas não foi a carta que a persuadiu. Foi...
Missy soltou seu lápis.
– Vou precisar ver essa carta. O diário também.
Apesar de ser só um desejo, eu esperava conseguir manter esses dois itens fora disso. De jeito nenhum a carta de Paul ou o diário ajudariam nosso caso. – Tudo bem.
– E após o falecimento de Christie, você não correu atrás para adotar Tessa legalmente?
– Eu tinha a custódia. Nunca passou pela minha cabeça adotá-la – quanto mais conversávamos, mais me faltava o chão, como se tudo que eu tivesse pensado ser sólido
na minha vida estivesse afundando, mudando.
Um pequeno fôlego.
– Conte-me um pouco mais sobre sua enteada.
Brad estava estacionado na vaga para deficientes ao lado do Lincoln Towers Hotel.
Ele se arrastou para a parte de trás da van, segurou firmemente o braço da mulher e injetou a agulha em sua veia. Pressionou o êmbolo.
A droga que ele estava usando faria efeito rápido. Não demoraria até que ela ficasse inconsciente.
Ele removeu a agulha, recostou-se e observou sua respiração ficando cada vez mais lenta.
Enquanto suas pálpebras caíam.
Enquanto seu corpo ficava mole.
Ela estava caída desamparada ao lado dele.
Ele tirou o telefone do bolso e gravou alguns vídeos. Não era oficialmente parte do plano. Esse vídeo era só por diversão. Para seu uso pessoal.
Então ele pegou o computador da mulher para invadir o sistema de segurança do hotel e colocar em repetição as imagens do vídeo da câmera de segurança que ficava
no beco, na parte de trás do hotel.
28
13h15
Missy Schuel colocou o lápis sobre a mesa.
– Você mencionou que nos primeiros oito meses após a morte de Christie, que vocês dois, você e Tessa, brigavam bastante.
– Sim. As coisas eram um pouco complicadas entre a gente no começo, mas, como eu disse, nós não nos conhecíamos bem, nós dois estávamos magoados – nosso tempo estava
quase acabando, e eu não achava que havíamos feito muito progresso. Ainda tinha muito a ser dito.
– Certo – Missy deixou escapar um suspiro cuidadoso. – Isso é o que eu diria se eu fosse advogada de Paul Lansing: após a morte trágica da mãe dela, você tirou a
garota de onde ela nasceu, se mudou para o outro lado do país, e lá, em Denver, exerceu um emprego que o fazia estar fora todos os fins de semana, forçando ela a
ficar com seus pais, a quem ela mal conhecia. Você a colocou em perigo permitindo-a ter uma vida que nenhuma adolescente sofrendo com a perda da mãe deveria experimentar.
Na verdade, como resultado direto de uma de suas investigações, ela foi sequestrada, sofreu constrangimento psicológico inimaginável e quase foi morta.
Quando Missy colocou as coisas daquele modo, eu não podia imaginar nenhum juiz ficando do meu lado. – Ela estava em um esconderijo do FBI quando foi pega – as palavras
pareciam débeis. Sem mérito. – Eu fiz tudo que pude para garantir que ela estivesse segura.
– Temo que isso não tenha importância. O fato de esse assassino ter conseguido encontrá-la e atacá-la, isso é tudo que o juiz vai ouvir, especialmente se ele vir
aquela cicatriz, e você pode ter certeza de que os advogados de Lansing farão com que isso aconteça.
Reposicionei-me no meu assento. – Então, para onde vamos agora?
Em vez de responder minha pergunta, ela fez uma por conta dela: – Nós temos certeza de que Paul Lansing é o pai biológico de Tessa?
– Fizemos um exame de DNA. Está confirmado. Ele é pai dela.
Ela deslizou a caderneta para o lado.
– Vou ser honesta com você: esse diário, essa carta, eles me perturbam.
– Não foi a carta que convenceu Christie a ter o bebê.
– Eu entendo, mas os advogados dele vão argumentar que foi, e nós não podemos provar que essas palavras não a influenciaram, pelo menos de algum modo – disse após
uma pausa. – Podemos?
– Não – eu odiava ter que admitir. – Não podemos.
Ao longo dos anos dos anos, eu trabalhei o suficiente com o sistema judicial para saber onde isso tudo ia chegar. – Ele tem um caso ganho – não disse isso como uma
pergunta.
– Um caso fácil – ela corrigiu, mas então hesitou por um longo tempo antes de continuar, e eu tinha a sensação de que ela estava tentando encontrar um jeito de conferir
um toque positivo às coisas. – Tessa prefere ficar com você a ficar com Paul, correto?
Sua pergunta foi ácida, não por causa do seu tom, mas porque eu não tinha certeza sobre a resposta. – Isso importa?
– Para uma menina da idade dela, sim, importa.
– Acho que sim.
Um aceno de cabeça. – E você é o responsável legal por ela. Você foi o único cuidador e provedor dela por mais de um ano. Isso conta muito. Conta mesmo.
Ela fez uma pausa.
Havia mais.
– Mas?
– Mas Lansing aparentemente desejava estar envolvido na criação dela, e a mãe dela negou isso a ele. Se realmente ele é pai biológico dela e tomou atitudes legais
durante a gravidez de Christie para estabelecer seus direitos paternos, ele pode... bom, ele pode ganhar alguma simpatia do juiz. Mas me escute, eu sou boa no que
faço e prometo fazer o meu melhor para ajudar você a manter a custódia única de sua filha.
– Enteada.
– Não, sua filha – ela disse simplesmente, deixando-me interpretar aquilo como eu quisesse.
Ela olhou para o relógio sobre a mesa; meus olhos seguiram os dela.
13h18.
– Preciso ir – ela disse. – Nos falamos em breve.
Nós dois nos levantamos. – Consiga para mim esse diário e a carta. Hoje – ela rabiscou um endereço na parte de trás de um cartão de visita. – Se você não conseguir
trazê-lo aqui antes das 18h, deixe-o em minha casa – ela me entregou o cartão. – E vou entrar em contato com os advogados de Paul Lansing. Quero me encontrar com
eles o quanto antes.
Eu hesitei. – Por que o quanto antes?
– As pessoas só se escondem quando estão com medo ou quando têm algo a esconder. Não queremos que pareça que estamos enrolando ou arrastando os pés. Se formos adiante
rapidamente e com confiança, isso vai mostrar a verdade ao juiz: que temos um caso sólido e nada a temer.
Gostei do jeito como ela pensava. – Vou consegui-los para você.
– Uma última coisa. Paul Lansing sabe que você tem a carta dele e o diário de Christie?
Deixei escapar um pequeno suspiro. – Nós mostramos para ele quando nos encontramos em Wyoming, na primeira vez que o vimos.
Ela manteve o rosto sem expressão. Apontou para seu cartão. – Ligue no meu celular se você pensar em mais alguma coisa que possa ser útil. Qualquer coisa mesmo.
Sem segredos. Lembre-se...
– Você não gosta de surpresas.
– Vejo você em breve.
Ao sair do escritório, olhei para a tela da televisão no canto da área da recepção sem recepcionista. O deputado estava saindo do palanque.
Aumentei o volume bem a tempo de ouvir a correspondente dizer: – Bob, para reiterar, o deputado Fischer acabou de anunciar que Rusty Mahan, o suspeito primário do
caso, foi encontrado morto, aparentemente por suicídio. Ainda não sabemos mais detalhes, mas faremos a cobertura do caso de perto para acompanhar o desenrolar dos
fatos.
Ótimo.
Enquanto a repórter continuou resumindo a coletiva de imprensa de Fischer, uma foto sorridente de sua filha pairava no canto superior esquerdo da tela e eu percebi
que, tirando a olhada rápida no celular de Cheyenne antes de sair da Academia para ir até a cena do crime, eu ainda não tinha visto o rosto de Mollie.
Eu a observava atentamente, agora. Ela tinha um fino contorno na parte inferior do rosto, olhos verdes, uma covinha atraente. Peguei-me sobrepondo suas características
sobre os restos destruídos e horríveis que eu tinha visto na noite anterior, e rapidamente espantei a imagem da cabeça... compleição leve, um par de brincos em cada
orelha, um nariz pequeno e delicado...
Um calafrio me atravessou.
Não pode ser!
Peguei meu telefone e liguei para Ralph. Ele atendeu imediatamente, com a voz ríspida: – Pat, você está muito...
– Escute – eu disse. – Mollie Fischer usava lentes de contato?
– O quê?
A foto desapareceu da tela da televisão.
– Lentes de contato. Ela usava lentes de contato?
– O que você...
– Verifique, Ralph. Os arquivos do caso!
Uma longa pausa acompanhada pelo clique de teclas.
– Não – ele disse. – Nem óculos. O que está havendo? – o calor da raiva que eu tinha sentido em sua voz momentos atrás tinha desaparecido. Senti que estávamos em
sintonia novamente.
– Não é ela.
– O quê?
– A mulher que encontramos no instituto de primatas não é Mollie Fischer. A mulher morta tinha apenas um furo em cada orelha, Mollie tem dois; e a íris encontrada
na cena do crime era azul. Em sua foto na imprensa, os olhos de Mollie são verdes, e como ela não usava lentes de contato...
– Mas ela foi identificada positivamente pelo próprio pai – ele murmurou, e não dava para dizer se ele estava discordando de mim ou simplesmente pensando alto.
– O rosto dela estava desfigurado – eu estava correndo pela porta.
É claro que ela foi identificada positivamente, todo o resto apontava para ela. Os assassinos a vestiram com as roupas de Mollie, deixaram com ela a carteira de
motorista de Mollie, bolsa, anel, colar, telefone. A profundidade da fraude pela qual fomos enganados era desconcertante.
Mollie Fischer ainda podia estar viva.
Cheguei correndo à calçada.
Mollie estava desaparecida há quase vinte e uma horas, e a cada minuto nossas chances de encontrá-la diminuíam; Ralph sabia disso tudo, eu não precisava dizer a
ele. – Ligue para o deputado – eu disse. – Diga a ele para anunciar isso agora, nessa coletiva de imprensa. Se Mollie estiver viva...
– Sim, eu sei. O público pode ajudar. Vá para o Capitólio, Pat. Se ele não quiser me ouvir, você pode falar com ele pessoalmente.
– Estou perto. Chego lá em menos de cinco minutos.
– Vou tentar conseguir a identificação da mulher morta – ele disse.
Fim da ligação.
Disparei para o meu carro.
Brad fechou o computador. Pronto.
A mulher estava inconsciente; apenas seu peito estava se movendo, subindo e descendo. Continuamente. A cada respiração suave.
Por um momento, Brad sentiu uma emoção, a mesma excitação que sentia quando estava sozinho com Astrid depois de cada jogo. Ele hesitou por um momento, então beijou
a mulher na bochecha, mas isso foi tudo. Ele não a tocou, não de um jeito íntimo. Afinal, ele era um cavalheiro e nunca levaria vantagem em cima de uma dama inconsciente.
Não, ele não a tocaria, não assim. Não fazia parte do plano. Em vez disso, ele a abraçou gentilmente por um momento, então a reposicionou na cadeira de rodas e a
desceu da van com o elevador para deficientes.
Então ele a empurrou por uma entrada lateral para dentro do hotel.
Irrompi pela porta da sala do corpo de imprensa do lado de fora do escritório do líder da minoria do congresso.
A coletiva de imprensa tinha terminado, mas a sala ainda estava cheia de repórteres esperando encontrar membros do congresso para comentários e, quando entrei, todas
as cabeças viraram-se na minha direção.
Por que fingir a morte de Mollie?
Por que na noite passada?
Por que lá?
E quem é a mulher que encontramos no centro de primatas?
Eu já havia mostrado minha credencial em três pontos de segurança anteriores e agora fiz o mesmo para o policial do Capitólio ao lado da porta. – Onde está o deputado
Fischer?
Com um olhar ligeiramente curioso, ele apontou para o escritório do líder da minoria do congresso.
Entrei.
Quatro pessoas na sala, três homens e uma mulher. O deputado foi o único que reconheci: entre cinquenta e sessenta anos, levemente acima do peso, mas ele lidava
bem com isso. Óculos com armação de arame, um terno muito bem costurado, cabelo castanho assiduamente penteado.
Todos olharam para mim, obviamente não acostumados a serem interrompidos assim.
– Sou Patrick Bowers – eu disse – do FBI.
– Você é Bowers? – o deputado Fischer disse.
– Sim.
– Foi você que percebeu? Que a mulher morta não é Mollie?
– Há apenas alguns minutos, senhor. Sim. E preciso dizer a você...
– Nos deem um minuto – ele me interrompeu, então olhou para as pessoas na sala que, obedientemente e sem dar uma palavra, pegaram suas coisas e saíram porta afora.
Fischer atravessou a sala e fechou a porta atrás dele.
– Deputado Fischer, eu...
– Minha filha ainda está viva?
– Infelizmente, a essa altura, não temos como saber. Vim aqui para...
– E quem é a garota que foi morta? A que foi encontrada.
– Não creio que ela já tenha sido identificada. Escute, temos uma ótima oportunidade aqui. A imprensa já está do lado de fora daquela porta. Tudo que você tem a
fazer é voltar lá e contar a verdade para eles.
– Eu acabei de passar por idiota – ele estava sacudindo a cabeça.
– Desculpe?
Ele apontou para a porta. – Lá fora. Agora. Eu disse a eles que Mollie estava morta e que o assassino cometeu suicídio na noite passada.
– Podemos consertar isso se você...
– Dr. Bowers, você não entende? Fui eu que identifiquei o corpo. Eles vão dizer que eu não conheço nem minha própria filha.
Eu mal podia acreditar que estava ouvindo aquilo.
Talvez ele estivesse em choque.
– Com o devido respeito, deputado, existe uma chance muito real de sua filha ainda estar viva; você precisa parar de se preocupar com o que as pessoas podem pensar
de você e começar a se concentrar no melhor jeito de ajudá-la.
Ele ficou quieto. – Não vamos nos apressar aqui.
– O quê? Você tem alguma ideia do que...
– Acabei de conversar com seus superiores no Bureau, logo antes de você entrar. Eles me disseram que você apareceria.
Isso era coisa da Margaret.
Ou de Rodale.
Mas por que qualquer um deles...
– E – Fischer continuou – eles me garantiram que esperar uma hora mais estratégica para fazer esse pronunciamento vai nos dar uma vantagem para encontrar Mollie
o mais rápido possível.
– Uma hora mais estratégica? Com quem você falou?
Ele ignorou as perguntas. – Além do mais, nós nem sabemos com certeza se Mollie foi seques-trada. Ela pode só ter fugido com alguns amigos.
Isso era ridículo.
– Escute. As pessoas que mataram a mulher no instituto de primatas encontraram alguém que tinha a mesma altura e o peso de Mollie. Eles a vestiram com as roupas
da sua filha, colocaram o colar de Mollie nela e então a mataram de uma das maneiras mais perturbadoras que já vi. Sua filha não fugiu. Rusty Mahan não se matou,
isso é um plano elaborado...
– Para fazer o quê?
– Não sei.
– Por que minha filha?
– Eu também não sei, mas...
– Bem, o que você sabe, agente Bowers? – sua voz ficou estranhamente diplomática, cultivada por anos de cuidadosa postura política, e considerando as circunstâncias,
seu desprendimento emocional era incompreensível para mim. – Você tem certeza de que revelar essa informação vai ser o melhor para a minha filha?
– Eis o que eu sei: se sua filha ainda estiver viva, ela está em grave perigo, e quanto mais cedo conseguirmos que o público comece a procurar por ela e a ligar
com pistas, maior é a chance que temos de...
– Você é o quê, agente Bowers? Um doutor? Um criminologista?
Está certo?
Senti uma onda de raiva. – Eu sou o cara que encontra e prende assassinos como esse. Eu faço isso melhor do que qualquer um. E manipular os fatos e enganar o público
em vez de permitir que ele colabore não é o jeito de se fazer isso.
O Bureau só libera declarações cuidadosamente preparadas para a imprensa, claro que eu sabia disso, mas a esse ponto eu não ligava. Apesar de ser possível que Mollie
já estivesse morta, ela poderia estar viva, e o tempo era essencial. – Se você não for lá dar fazer essa declaração – eu disse –, eu irei.
Ele me olhou. – Eu sei que você está envolvido em uma briga pela guarda de sua enteada.
– O que você acabou de dizer?
– Tenho certeza de que você odiaria perder seu emprego no Bureau por ter feito algo por impulso. Estar desempregado pode comprometer suas chances de mantê-la.
Dei um passo em sua direção. – Você está me ameaçando?
Como ele sabe sobre o caso da custódia?
– Não. Apenas oferecendo um conselho. De pai para pai.
– Se você fosse um pai de verdade, faria o que fosse preciso para proteger sua filha. Deputado.
Faça, Pat.
Vá.
Saí de seu escritório; ele me chamou mas eu o ignorei.
Na sala do corpo de imprensa, me aproximei do palanque, fui até o microfone e após ter a atenção de todos, eu disse: – Sou o agente especial Bowers, do FBI, e tenho
uma declaração a fazer.
E, então, contei para todo mundo que Mollie Fischer não era a mulher que havíamos encontrado no Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson.
29
Fui seco, rápido, direto ao ponto.
A coletiva de imprensa acabou em minutos e as consequências foram rápidas e certeiras.
Um grupo de repórteres correu na minha direção para comentários adicionais, mas abri caminho através deles até a área restrita. Só então eles correram para escrever
seus artigos, reportar suas informações, filmar suas reportagens ao vivo.
Olhei para meu telefone.
Quatro ligações perdidas.
Duas desde o início da minha coletiva de imprensa improvisada.
Que beleza.
Uma de Margaret, uma do diretor Rodale do FBI. Além disso, Tessa tinha me ligado duas vezes enquanto meu toque estava no silencioso durante minha conversa com Missy
Schuel.
Ela me deixou duas mensagens de voz.
“Patrick, hum, eu sei que você tem aula ou coisa do tipo, mas eu...
Bem, eu estava pensando se a gente poderia conversar, talvez. Se você tiver um intervalo ou algo assim. Estou indo para casa... Então, de qualquer maneira, ligue-me
quando tiver uma chance.”
E a segunda: “Só vendo se você ainda estava na sua reunião. Só isso.
Tudo bem, falo com você mais tarde”.
Nas entrelinhas, ouvi uma urgência que me deixou preocupado. Tentei ligar para o número dela, mas estava sem sinal e me dei conta que se ela estava a caminho de
casa, devia estar em um metrô, onde o celular não funcionaria.
Tente novamente daqui a pouco. Por enquanto, saia daqui. Vá para o posto de comando no quartel-general da polícia.
Habilitei o toque, guardei o telefone no bolso e estava indo para os túneis que levavam ao estacionamento subterrâneo onde havia deixado meu carro quando encontrei
o tenente Doehring passando pelo corredor, procurando por mim.
Ele correu em minha direção. – Isso foi corajoso.
– Obrigado.
– Foi a coisa certa também. Apesar do que a Wellington vai dizer.
Lembrei-me das palavras do deputado: “Você tem certeza de que reve
lar dessa informação vai ser o melhor para a minha filha?”
– Sim, bem, veremos.
– Eu não devia ter suposto que Mahan estava envolvido – sua voz estava afiada, com uma raiva que ele dirigia a si mesmo. – Eu queimei a largada.
– Nada disso importa. Só precisamos...
– Encontrar esses psicopatas.
– Sim. Vamos para o posto de comando.
Ele apontou para porta de saída. – Meu carro está por aqui.
– Ele está próximo?
– Logo ali fora – eu podia me preocupar com meu carro depois. Fomos na direção que ele apontou. – Me informe – eu disse. – O que nós sabemos?
– Meus policiais acabaram de interrogar os funcionários do centro de primatas – ele soava exasperado. – Tratadores, pesquisadores, guardiães, administradores, estagiários,
todos que não estejam de férias.
– E?
– Nada sólido. Não consigo ver nenhuma ligação entre eles e o crime.
Confiei que ele tivesse feito tudo. – E a perícia?
– Os chimpanzés conseguiram destruir ou contaminar praticamente todas as evidências que poderíamos ter conseguido no habitat. Também, não havia nenhuma impressão
digital incriminatória nas tiras de couro e no conteúdo da bolsa de Mollie. Está tudo limpo. Nada ainda sobre a corda usada para enforcar Mahan.
É claro.
Chegamos à porta e saímos do prédio.
– Tem que haver algo. Sabemos onde o sequestro de Mahan aconteceu? Onde o carro dele pode ter ficado estacionado antes de aparecer no estacionamento?
Então chegamos à viatura de Doehring. Ambos entramos.
– Não tenho certeza – ele disse.
Eu não precisei lhe dizer para fazer uma ligação e descobrir. Ele estava com o rádio em uma mão e tentando dar a partida no carro com a outra.
Lembrei-me da minha discussão em aula, mais cedo naquele dia, sobre planejar o assassinato perfeito. Até agora, esses assassinos estavam fazendo tudo direitinho.
Exceto por uma coisa: se nossa hipótese sobre haver múltiplos infratores estivesse correta, isso significava que havia pelo menos um cúmplice. E isso significava
que havia uma ponta solta.
As ruas de Washington, DC estavam cheias, mas nos lançamos no trânsito e fomos na direção do quartel-general da polícia metropolitana.
14h12
Astrid finalmente chegou ao hotel. Usava uma peruca e óculos escuros – um pequeno disfarce. Ela estava um pouco apressada e um pouco frustrada: a força-tarefa descobriu
muito mais rápido do que ela esperava.
Mas isso não mudaria as coisas. Todo o resto ainda estava funcionando.
Ela olhou dentro da van e viu que Brad tinha esquecido a bolsa esportiva e o laptop da mulher. Ela suspirou, pegou-os e então entrou no hotel pela porta do beco
onde Brad se certificou de ter colocado a imagem da câmera em repetição. Pelo menos ele se lembrou de deixar a porta encostada para ela.
Ela foi até a escada.
Por causa do progresso do FBI, ele adiantariam os horários.
Mollie morreria às 14h45 em vez de 15h. Só para garantir.
– O laboratório removeu o reflexo do vídeo de ontem à noite? – perguntei para Doehring. – Das imagens do Volvo.
– A maioria, mas pelo que fiquei sabendo, não foi suficiente para identificarmos o motorista.
Vamos, Pat. O que você está esquecendo aqui? O que está passando batido?
O motorista do Volvo desacelerou quando se aproximou do semáforo...
Ele trocou a placa para que você percebesse... Para que você percebesse...
Liguei para Ralph. – Alguma identificação sobre a mulher?
– Não. Temos uma lista de possibilidades; a polícia metropolitana está cuidando disso.
– Os agentes encontraram alguma filmagem de alguma pessoa não identificada saindo do instituto ontem à noite?
– Eles vão terminar isso em cerca de dez minutos.
– Eles deviam ter terminado há uma hora! – estourei.
– Ele vieram com uma bobagem de que tinha muitas pessoas lá – seu tom era mais duro que o meu havia sido. – Muitos rostos parciais, que tinham que analisar comprimento
de passo, postura, altura, peso, essas coisas.
– Só diga a eles para se apressarem.
– Oh, acredite em mim, eles sabem.
Fim da ligação.
Doehring ligou o giroflex e as sirenes. Lentamente, os carros começaram a se afastar para os lados o máximo que podiam para nos deixar passar, mas com o congestionamento
nas duas pistas, não fazia muita diferença.
Considerei os locais que conhecíamos até agora... a loja de eletrônicos... o instituto de pesquisa de primatas... a estação de metrô onde Mollie fora vista ontem
à tarde... a ponte da Connecticut Avenue onde Rusty fora encontrado...
Os assassinos se aproximaram do centro de primatas pelo sul, menos de noventa minutos após Mollie ter sido vista pela última vez.
Oh.
Óbvio!
Eu mal podia acreditar que não tinha percebido.
Digitei no meu telefone e abri os vídeos do carro de Mahan se aproximando do instituto.
Doehring olhou para mim. – No que você está pensando?
– O Volvo teria passado por mais de um semáforo.
Astrid abriu a porta do quarto do hotel e viu Mollie Fischer sentada na cama, tremendo de medo, as mãos amarradas nas costas, as pernas presas juntas. O sangue escorria
do lado esquerdo de sua testa por algo que Brad deve ter feito com ela. Agora, ele limpava o sangue, mesmo que em alguns minutos nada disso importasse.
Os dois olharam para ela. Ela entrou no quarto, fechou a porta atrás de si e passou a tranca.
E a voz dentro dela, aquela que Astrid percebeu que estava começando a soar mais e mais como seu pai, narrou:
A maioria das pessoas não grita quando morre; elas passam pela porta com um leve suspiro ou uma respiração suave, ou um último gemido fraco.
Alguém pode pensar que o ato culminante da vida seria mais dramático, mais emocionante, mas aquele momento final não chega nem perto de ser tão fascinante como nos
filmes. Com muita frequência, é lamentavelmente desapontador. “Passagem” é, na verdade, uma boa frase para descrevê-lo. Deslizamos para o mar eterno, e as ondulações
de nossas vidas rapidamente enfraquecem, se acomodam e desaparecem.
E em breve, muito em breve, somos esquecidos.
Astrid olhou para a mulher e pensou em morte – aquelas que testemunhou, aquelas que ajudou a planejar –, pensou na dor e na insignificância da vida que a precede.
Às vezes a morte começa anos antes da passagem.
Assim como papai.
Brad terminou de limpar a testa da mulher e ligou a televisão. Passou pelos canais até encontrar uma perseguição de carro que parecia barulhenta o suficiente para
ocultar quaisquer sons que Mollie pudesse emitir quando eles removessem a mordaça.
Astrid não gostava da ideia de Brad provocar danos físicos desnecessários, mas a complacência de Mollie era importante, então ela ameaçou: – Em instantes nós vamos
remover essa mordaça. E se você fizer qualquer barulho, meu amigo vai te bater até você ficar inconsciente, e então fará coisas com você que eu posso garantir que
você não vai gostar. Você entende o que estou dizendo?
Um pequeno aceno aterrorizado.
Poder.
Poder sobre a esperança.
Astrid gesticulou para Brad soltar a mordaça.
Não!
Eu estava com esperanças de refazer o caminho do Volvo desde o fim até o começo, mas não consegui nada. Admito que estava voando pelas imagens rápido demais para
ter certeza absoluta, mas não fui capaz de localizar o Volvo em nenhum outro semáforo, e havia diversas rotas que ele podia ter usado para evitar as câmeras de trânsito
da cidade se ele soubesse onde elas ficavam.
Se a gente soubesse a identidade da desconhecida do centro de pesquisa...
Horário, horário, horário.
Estávamos quase na central da polícia, mas eu não queria esperar. Usando o rádio da viatura de Doehring, chamei o posto de comando, identifiquei-me e falei com um
dos policiais. – A lista de pessoas desaparecidas que vocês estavam analisando. Vocês checaram suas ligações telefônicas recentes, uso de cartão de créditos, e-mails?
– Claro, senhor.
– Mande-os para mim.
Astrid estudou atuação quando estava na faculdade e agora estava aproveitando seu papel.
Ela abriu o laptop de Mollie, acessou a conexão sem fio do hotel e então posicionou a tela de modo que Mollie pudesse vê-la. – Vou te dar um presente que só foi
oferecido a pouquíssimas pessoas.
– Você vai me deixar ir embora? – a voz de Mollie estava trêmula. Ela era um rato olhando nos olhos de uma cobra.
Predador.
Presa.
– A última coisa que você vai ver.
A dúvida cruzou o rosto de Mollie, e Astrid lhe disse: – O que você quer que seja? Vou pegar qualquer imagem no mundo, qualquer uma que você quiser.
Sim.
Controle.
– Não – a voz de Mollie estava trêmula. – Por favor.
Presa.
Astrid olhou para ela por um momento, então deixou seu olhar deslizar na direção de Brad.
Ele falou suavemente, com uma voz tranquilizante. – Mollie, eu preciso te contar uma coisa – ele gesticulou na direção de Astrid. – Minha amiga é uma mulher persistente.
Mais cedo ou mais tarde, ela vai fazer você escolher, mas será menos problemático para todo mundo se você escolher algo agora. O que você quiser. Qualquer imagem,
qualquer vídeo. Apenas escolha algo.
A atuação dele era quase tão boa quanto a dela. Mollie engoliu seco. – Eu não sei.
Brad tomou o teclado e entrou em um site de busca da internet. – Pense em algo que te acalme. Pode ajudar. Uma praia, talvez? Ou um prado nas montanhas, um pôr do
sol? Diga algo para ela.
– Por favor – ela balançou a cabeça. – Pare.
Brad disse: – Não importa o que for.
Predador. Presa.
Controle sobre a esperança.
– Seu tempo acabou – Astrid disse.
– Não, não, não – Mollie gritou. – Rusty. Tá bom, Rusty, por favor.
E quando a mulher pediu para ver o rosto do jovem que ela amava, o homem que já era um cadáver, Astrid sentiu uma doce excitação, o mesmo frisson de prazer sombrio
que ela havia sentido mês passado quando o atendente da emergência ficou perguntando para o cadáver de Jeanne Styles se ela estava bem.
“Você está ferida?”
Não, ferida é uma coisa totalmente diferente.
Rusty estivera na van com ela, amarrado, amordaçado, vendado, na noite passada. Mas Mollie nem chegou a saber.
Presa.
– Certo – Astrid gesticulou na direção do computador da mulher. – Você tem uma foto dele? – o horário estava apertado, mas ela não estava a fim de pular essa parte
do jogo.
Um aceno de cabeça.
– Onde?
– Em “minhas fotos” – Mollie soava assustava, desesperada quando acenou com a cabeça na direção do computador. – No iPhoto.
Astrid gesticulou para Brad e ele abriu o diretório do computador para encontrar os arquivos.
Twana Summie.
Ela era uma universitária do norte da Virgínia que frequentava a Gallaudet e não era vista desde terça-feira de manhã; seu cartão de crédito havia sido usado para
reservar duas noites – a noite passada e a de hoje – no Lincoln Towers Hotel.
Então: uma universitária reservando duas noites em um hotel que cobra uma diária de seiscentos dólares por um quarto? Em um hotel tão perto de sua faculdade?
– Volte – eu disse para Doehring. – Vamos para o Lincoln Towers Hotel – ficava no centro. Perto.
– Você descobriu algo?
– Talvez – quando lhe contei o que havia descobrira, ele deu meia--volta com o carro e eu puxei os registros de Twana no departamento de trânsito para ver o quanto
ela compartilhava de características físicas com Mollie para ser a vítima que encontramos no Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson.
Astrid encontrou as fotos de Rusty e Mollie e quando ela abriu uma do jovem casal na praia, Mollie acenou com a cabeça, fechou os olhos e acenou novamente.
Era uma foto singular. Um cais com um veleiro no fundo. Um horizonte levemente nublado e o oceano azul atrás deles – sol, mar e o céu recortado. O braço de Rusty
estava em volta dos ombros dela, e ela estava recostada com ternura em seu peito.
– É bonita.
– Eu faço qualquer coisa. Por favor, não...
– Shh – Brad repousou uma mão sobre o ombro da mulher. Um gesto de carinho. – Fique calma. Tudo vai ficar bem.
Astrid olhou para ele com amor, com desejo.
Ela deixou seu dedo passear pela foto de Rusty. – Ele é muito bonito. Você fez uma boa escolha. Morrer olhando para ele. – Então falou para Brad: – Aumente o volume
da televisão.
Sim.
Apesar de Twana ser levemente mais alta que Mollie, ela tinha a mesma constituição física e cor de cabelo.
– É isso.
O círculo estava se fechando.
O cartão de crédito de Twana foi utilizado para reservar um quarto no hotel
hoje à noite, seus sequestradores podem estar lá... se eles trouxeram Mollie...
Muitos “ses”.
O hotel ficava a duas quadras de distância.
Liguei para lá para descobrir em qual quarto Twana Summie estava.
E eles me deixaram na espera.
Astrid usou o cursor para selecionar a foto de Mollie e Rusty na praia, apertou delete e então esvaziou a lixeira para que a foto desaparecesse para sempre. – Como
eu fui?
O medo de Mollie diminuiu brevemente, tornando-se confusão. – O quê?
– Te convenci?
– Você vai me deixar ir embora? – um vislumbre de esperança em sua voz. – Você não vai me machucar?
– Não. Eu quis dizer se você achou que eu ia deixar você olhar para a foto enquanto estivesse morrendo.
Astrid percebeu que Brad parecia tão surpreso quanto a mulher.
– O que é isso? – Brad perguntou.
– Te enganei também? – Astrid sentiu um toque de satisfação.
– Me enganou?
– Fazendo você acreditar que eu a deixaria olhar para algo prazeroso enquanto você a matasse – ela falou com ele como se Mollie não estivesse lá. Como se ela já
estivesse morta.
Mollie implorou: – Não, não... – o terror aumentando em seus olhos.
Brad parecia se sentir traído, e aquilo incomodava Astrid. Qual era o problema dele? Era tudo parte do jogo. – Não faça bico.
– Não era esse o plano.
– Pensei que seria mais divertido desse jeito. E é, não é? É mais divertido – ela manteve os olhos cravados nos dele até que finalmente ele desviou o olhar.
– Sim – ele disse silenciosamente. – É mais divertido.
– Por que você acha que te mandei fazer o vídeo de Rusty ontem à noite?
Brad ficou quieto.
– Vídeo de Rusty? – a mulher disse. – O que vocês fizeram com ele?
Astrid imaginava o que aconteceria quando ela mostrasse para Mollie a filmagem do namorado dela lutando para respirar na ponta da corda.
Ela pegou a mordaça e virou-se para ela.
– Vou te mostrar.
Doehring e eu entramos correndo pelas portas do Lincoln Towers Hotel.
Adrian Lees, o gerente, esperava por nós.
Cerca de 45 anos. Magro. Terno feito sob medida. Um pequeno cavanhaque, bem aparado. – Sou o CEO – ele disse. – Aqui do Lincoln Towers. Verificamos o sistema – ele
fazia pausas em intervalos estranhos quando falava, entrecortando sua frase em trechos pequenos e esquisitos. – Ninguém com o nome de Twana Summie reservou um quarto
aqui.
O quê?
– Nenhuma cobrança de cartão de crédito?
Ele balançou a cabeça.
Mas isso não é possível...
– Leve-nos para o centro de controle – eu disse.
Seu rosto estava corado. – Está tudo bem?
– Não – Doehring rosnou. – Para o centro de controle! Agora!
Lees se moveu na direção do corredor atrás da bancada de registro. – Por aqui.
Após minha surpresa inicial por não haver nenhum quarto reservado no nome de Twana, percebi que a falha, a inconsistência, era uma pista de que estávamos no caminho
certo, mas ainda não tínhamos como saber se nossos suspeitos estavam no local. Assim que pudéssemos confirmar...
Meu telefone tocou.
Ralph.
– Sim? – eu atendi. Eu estava correndo pelo corredor, seguindo Lees.
– Os vídeos. Acabei de ter notícias.
– Diga.
– Uma faxineira chamada Aria Petic. Não há imagens dela entrando no prédio, seja antes das 17h ou após as 19h, mas ela foi embora imediatamente após os paramédicos
chegarem. Estamos procurando por ela.
– Temos o rosto dela na gravação?
– Apenas uma parcial. Na maior parte, escurecida.
Pelo menos poderíamos conhecer o ritmo do caminhar dela, seus passos, altura aproximada. – Mande.
Fim da ligação.
Vamos jogar.
30
Astrid passou o vídeo de dois minutos e cinquenta e um segundos que mostrava a morte de Rusty. Primeiro a preparação, então imagens dele balançando debaixo da ponte,
agarrando inutilmente a corda presa ao seu pescoço; e a voz do pai dela, seu falecido pai, dizia:
A cada segundo que passava, o jovem se mexia cada vez menos. Ficava menos desesperado. Mais submisso ao inevitável. O desfecho final de seu pequeno mundinho.
Mollie não tentava mais gritar e agora estava assistindo ao vídeo com olhos arregalados, aterrorizados e destruídos.
Predador.
Presa.
O jogo.
Astrid pressionou a barra de espaço para pausar o vídeo e então disse para Brad: – Certo. Vamos mandar aquela mensagem para o FBI.
Ele foi até a bolsa esportiva para pegar os itens de que precisaria.
A caminho do centro de controle, perguntei a Doehring se ele tinha interrogado alguém que se chamava Aria Petic, e ele checou mentalmente sua lista de nomes. – Não,
acho que não.
Chegamos, e imediatamente percebi que o hotel tinha um sistema de vigilância melhor que a maioria dos escritórios do FBI. Seis funcionários monitoravam uma rede
de telas de vídeo que se estendiam pela parede, os olhos de cada um deles mudavam de uma tela para a outra quando as imagens se alteravam para mostrar ângulos diferentes
e corredores do hotel.
Eram vinte e oito telas.
De última geração.
Adrian Lees nos apresentou para sua chefe de segurança. – Essa é Marianne Keye-Wallace. Já trabalhou para a NSA. Ela vai ajudá-los. Com o que vocês precisarem. Loira
platinada. Olhos firmes e cuidadosos. Ela não podia ter mais de trinta, mas posições de segurança com alta tecnologia dependem mais de cérebros e de adaptabilidade
do que de força ou experiência.
Sem esperar que falássemos nossos nomes, ela disse a Lees: – Ligaremos para você se precisarmos – então ela prontamente sentou-se ao lado de um computador que estava
virado para nós. – Contem tudo.
– Tem alguma hóspede aqui chamada Aria Petic, Twana Summie ou Mollie Fischer? – eu disse.
Os dedos de Marianne eram leves e compridos no teclado. Lees ficou lá por um momento e então desapareceu. – Não – ela disse. – O que estamos procurando aqui?
Demoraria muito para explicar. Peguei o vídeo de Aria Petic que Ralph havia acabado de me mandar. – Você tem reconhecimento facial no seu sistema de vídeo de segurança?
– Claro. Facial, de áudio e de vídeo.
Dei o telefone para ela.
– Carregue essa imagem. Preciso saber se essa mulher está neste hotel.
A cadeira de rodas dobrada estava apoiada na parede ao lado da porta do quarto, a bolsa esportiva próxima dela. As malas que Astrid levara para o hotel na noite
anterior estavam ao lado.
Brad estava ocupado com Mollie.
Astrid fez a ligação para o balcão de atendimento do hotel.
Nenhuma filmagem de Aria Petic.
– Só pode ser brincadeira – Doehring socou a parede.
– O que mais? – Marianne perguntou, os dedos posicionados no teclado.
Vamos, vamos, vamos.
– Estamos procurando por... – eu comecei, mas meus pensamentos me distraíram.
A chave é Mollie. Tudo gira em torno dela.
– Sim? – Marianne perguntou.
– Entre na internet. Baixe uma foto de imprensa de Mollie Fischer.
Ela levou segundos.
– Faça uma busca. Se ela estiver aqui, quero saber em qual quarto ela está. Pegue qualquer vídeo dela entrando ou saindo do hotel a partir das 19h de ontem à noite.
– Pensei em começarmos ali e trabalharmos de trás para a frente, se necessário até as 16h, quando ela foi vista pela última vez.
Alguns minutos depois, Marianne encontrou imagens de Mollie em uma cadeira de rodas, sendo empurrada para dentro do hotel por um homem não identificado que usava
um boné que escondia completamente seu rosto da câmera, o que me dizia que ele conhecia o ângulo da câmera antes mesmo de se aproximar do prédio.
Vá por esse caminho. Se ele sabe onde as câmeras estão, ele provavelmente já esteve aqui antes, analisando o local.
Mais tarde, mais tarde, mais tarde.
Porque, até agora, também tínhamos imagens deles entrando em um elevador de serviço dentro do hotel. – Onde eles saem do elevador? – perguntei. – Em que andar?
– Não tem como saber. Só temos câmeras de segurança cobrindo os elevadores sociais em cada andar; os elevadores de serviço, não.
– Eles saíram do prédio? – Doehring disse.
– Deixe-me descobrir – Marianne deslizou os dedos no teclado.
Ela fez outra busca de reconhecimento facial, então balançou a cabeça. – A menos que tenham arrumado um jeito de não passar pelas câmeras, eles ainda estão aqui
dentro.
Mas isso era suficiente para Doehring. Ele já estava chamando reforços pelo rádio para delimitar um perímetro em torno do hotel; em menos de cinco minutos, teríamos
a área segura.
– Peça para a segurança trancar todas as portas de saída – eu disse a ela. – O suspeito transportou Mollie até o hotel em uma cadeira de rodas, então procure por
um veículo com acesso a deficientes lá fora. E volte para a filmagem dele entrando no elevador. Tive uma ideia.
22
O vídeo mostrava que após entrar no elevador, o homem estendeu a mão para apertar um dos botões de andar antes que as portas se fechassem e os dois sumissem.
– Volte.
Ela voltou o vídeo.
– Pause.
A imagem congelou.
Apontei.
– Ali. Qual botão ele está apertando? Qual andar?
– Espere – Marianne deslizou o cursor, aplicou zoom, então xingou. – Não dá para dizer. O ângulo está errado.
– Transfira isso para o meu telefone.
Ela conectou meu celular ao sistema, digitou no teclado e segundos depois me devolveu o telefone, com a imagem congelada na tela.
– Ele pode ter trocado de roupa, mas distribua essa imagem para a segurança – eu disse. – Vamos ver se conseguimos uma identificação. E ligue para todos os quartos,
deixe uma mensagem gravada de que a segurança está procurando por uma cadeira de rodas que sumiu. Vamos ver quem vai tentar sair escondido. E ninguém deixa esse
hotel – parti na direção da porta. – Onde fica o elevador de serviço que ele usou?
– Saia pela porta à esquerda, no final do corredor, passe pela área de serviço. O elevador fica à sua direita.
Doehring e eu partimos.
Tudo havia sido planejado.
Mollie não seria um problema para eles.
Astrid olhou no seu relógio.
– Precisamos ir – ela disse para Brad, que estava cuidando do quarto.
– Estou quase pronto.
Chegamos aos elevadores.
Analisei o vídeo em meu telefone, a altura da mão do homem em rela
ção aos números dos andares... o ângulo da câmera no corredor... então fiquei no mesmo lugar onde ele esteve, levantei minha mão ao mesmo nível que ele e passei
o vídeo novamente.
Era possível que o suspeito tivesse pressionado um segundo botão após as portas do elevador se fecharem, mas tínhamos que começar de algum lugar.
Doehring e eu analisamos o vídeo. – O que você acha? – eu disse. – Oitavo ou nono andar?
Ele balançou a cabeça. – Não sei.
– Mande seguranças para os dois andares, para que façam uma varredura dos quartos. Você fica com o nono, eu com o oitavo – corri até a escada no fim do corredor.
Astrid e Brad estavam prestes a deixar o quarto quando o telefone tocou.
Ambos olharam para ele.
Outro toque.
Então, embora suaves, eles ouviram toques de telefone simultâneos nos quartos próximos.
– Eles sabem – Brad disse. – De algum jeito eles descobriram.
Ela balançou a cabeça. – Isso é impossível. Você cuidou das câmeras, certo?
– Sim.
Mas conforme os telefones continuavam tocando, Astrid sentiu, pela primeira vez desde que começaram seus jogos, uma pequena pontada nervosa de ansiedade. Ela hesitou
por um momento. Então, usando uma luva, pegou o telefone do quarto e escutou a mensagem. Desligou. – Precisamos ir embora.
Brad não disse nada. Foi até a porta, olhou pelo olho mágico e então abriu a porta. Verificou o corredor. – Está livre.
Ela pegou o laptop.
– Cuidado – ele disse. – Não vai...
– Derrubá-lo. Eu sei – ela gesticulou na direção da porta, onde as coisas deles estavam. – Pegue tudo.
Ele pegou.
Saíram para o corredor.
Oitavo andar.
As pernas doíam da corrida pela escada.
Com minha .357 SIG P229 na mão, abri a porta para o corredor.
Duas faxineiras, algumas crianças em trajes de banho correndo pelo corredor para seus quartos, um carregador de malas puxando um carrinho de bagagem, dois seguranças
batendo nas portas.
Eles chegaram aqui rápido. Ótimo.
Ótimo.
Nenhum sinal do suspeito.
Mostrei minha credencial.
– Alguma coisa? – perguntei para os guardas.
– Não – um deles respondeu.
– Ninguém sai desse andar. Entendido?
– Entendido.
Disparei pelo corredor e depois por um corredor adjacente a leste.
E assim que virei a esquina, vi um homem parar na porta da escada no outro lado do corredor, a cerca de 35 metros de mim. Ele usava a mesma roupa do homem visto
no vídeo de segurança empurrando a cadeira de rodas.
– Pare! – eu gritei. – FBI!
Ele olhou por cima do ombro, com o rosto escurecido pelo boné. Ele esticou a mão na direção do cinto.
Uma arma.
Ele vai pegar uma arma!
Levantei minha SIG. – Mãos para o alto!
Ele hesitou.
– Agora!
Mas uma porta se abriu entre nós, e um casal de idosos saiu do quarto. – Abaixem-se! – gritei.
Ele ficaram apavorados e hesitaram. O homem na frente da porta da escada se abaixou e desapareceu.
– Voltem para seu quarto! – gritei para o casal e disparei pelo corredor enquanto pegava meu celular e ligava para Doehring. – Mande alguém para as escadas do lado
sudeste. Primeiro andar. Agora!
Passei pelo casal apavorado.
Os segundos voavam.
Voavam.
Para a porta da escada.
Me preparei.
Abri a porta.
Passos abaixo de mim.
Com a arma engatilhada, dobrei a curva do corredor, observei a área e vi alguém descendo a escada bem abaixo de mim. – Pare!
Tentei distinguir se havia dois conjuntos de passos ou apenas um.
Dois, eu pensei, mas não tinha certeza.
Um suspeito ou dois?
Conselho do meu treinamento: sempre espere a maior ameaça.
Dois.
Rapidamente verifiquei o patamar acima de mim por algum cúmplice.
Ninguém.
Então voei escada abaixo, pulando três degraus de cada vez.
Astrid e Brad chegaram ao primeiro andar.
Brad estava com sua Walther P99 em uma mão e com a outra empurrou a porta cuidadosamente.
Nenhum policial.
Duas portas diante dela. Ela apontou para a placa do estacionamento subterrâneo, bem em frente, à esquerda.
– Espere – Brad disse. Seus olhos estavam no imenso elevador de carga. – Tenho uma ideia.
Térreo.
Irrompi pela porta.
Ninguém.
Mas as portas de um elevador de carga no final do corredor estavam se fechando. – Pare!
Avancei correndo, meu coração martelando por causa da corrida e por descer oito andares de escada.
E pela adrenalina.
E pela caçada.
Quando as alcancei, as portas se fecharam. Pressionei o botão. Me endireitei. Ergui minha arma.
Elas se abriram.
Vazias.
Corri para o estacionamento.
Fiz uma varredura pela extensão de concreto e carros.
Vi uma luva de látex no chão a cerca de cinco metros de distância, bem à minha direita.
32
Não vi nenhum movimento na área do estacionamento. Não ouvi passos.
Não, não, não!
A porta atrás de mim abriu com uma pancada. Eu me virei, mirando, e vi Doehring chegando correndo. Imediatamente baixei minha arma e voltei minha atenção para o
estacionamento novamente.
– Mollie – eu disse. – Ela está segura?
Ele balançou a cabeça. – Ainda não a encontramos – ele estava sem fôlego. Seus olhos encontraram a luva de látex. – O cara está aqui?
– Eu não sei. Vá pela esquerda. Eu vou...
Espere um minuto.
O elevador de carga, Pat... eles abriram as portas do elevador para
atrasá-lo... Na noite passada, Aria esperou na cena do crime... só foi embora depois que o pessoal da emergência chegou...
Depois.
Depois.
Espere a maior ameaça.
Dois, não um.
Doehring percebeu minha hesitação. – O que foi?
– Fique aqui na porta. Certifique-se de que ninguém volte por aqui.
Feche esse estacionamento e peça para a segurança checar cada carro.
Incluindo porta-malas.
– E quanto a você?
– Eu tive uma ideia.
Corri de volta para dentro e observei o corredor: o elevador, o corredor por onde eu tinha vindo, e vi uma porta na qual não havia reparado antes porque meus olhos
estavam no elevador.
Um placa dizia: Acesso Restrito. Apenas Pessoal Autorizado.
Ah, sim.
Seria isso mesmo.
Astrid e Brad estavam caminhando por um quarto enorme, escuro e bagunçado, seu caminho iluminado apenas por uma placa de saída quinze metros à frente deles. – A
luva – ela disse. – Foi uma boa ideia
– Espero que sim – Brad parecia inseguro. Inquieto. – Esse cara é esperto. Esse agente. De algum modo, nos encontrou.
Fui tateando ao longo da parede, encontrei um interruptor e acionei-o.
Uma linha de lâmpadas fluorescentes piscou, uma de cada vez, em uma linha longa e metódica. – Não tem saída – gritei, e esperava que fosse verdade.zNão vi ninguém
na enorme sala.
Pare, pare, pare.
Desacelere-os.
– O hotel está cercado – segui em frente cautelosamente. – Apareçam agora com as mãos para cima!
O depósito era cavernoso, se estendendo quase no comprimento do hotel, e estava cheio de cadeiras empilhadas, mesas, camas, móveis para TV e espelhos: os móveis
que sobraram depois da reforma recente.
Literalmente, centenas de lugares para se esconder. Mas um caminho livre levava direto para o meio.
Dei outro passo silencioso.
Ouvi um barulho de alguma coisa raspando à minha frente, à esquerda, e virei minha arma naquela direção.
Então um tiro.
Impacto.
A bala acertou meu braço esquerdo enquanto o som reverberava, ecoava, como um trovão dentro da sala. A força me fez cambalear, quase me jogou no chão, mas consegui
rolar para trás de um antigo móvel para TV com quatro espelhos apoiados antes de cair no chão de concreto.
Astrid estava de pé ao lado da saída quando Brad atirou no agente do FBI.
– O que você está fazendo? – ela perguntou, sua voz baixa, acusadora.
– Mandando uma mensagem para ele.
Ele correu pelo corredor para se juntar a ela.
– Você não vai mais jogar desse jeito – ela agarrou sua mão e o puxou para fora; ouviu os sons das sirenes. – Você vai estragar tudo.
– Não, eu...
– Quieto.
O beco se esticava para as duas direções.
Direita ou esquerda?
Uma decisão. Ela a tomou.
Eles correram.
Sangue por toda parte.
Parecia que alguém tinha acertado uma marreta no meu bíceps esquerdo, e com a dor era quase impossível pensar.
Fechei bem os olhos e tentei me concentrar na cena.
A cena.
A cena.
Um momento atrás, eu havia escutado a porta de saída no lado oposto da sala se fechar com uma batida.
Cara, isso dói.
Três possibilidades: os dois suspeitos deixaram o prédio, um ainda estava aqui, ou os dois ainda estavam aqui dentro e apenas abriram a porta para me enganar.
A dor intensa se espalhava pelo ombro, pelo pescoço, e então estourou como numa explosão de vidro em minha cabeça.
Concentre-se, Pat.
Concentre-se!
Eu passei a arma para a mão esquerda e instintivamente pressionava a mão direita contra o ferimento para estancar o sangramento, mas agora eu a retirei, e uma olhada
rápida me disse que a bala havia entrado e saído do meu braço – atravessou-o por completo.
Estava sangrando muito, mas não jorrando, então duvidei que houvesse algum dano arterial, e não vi nem senti nenhuma fratura óbvia, então isso era um bom sinal,
mas o sangue e a dor me impossibilitavam de achar isso uma boa.
Eu precisava da arma na minha mão direita, e isso queria dizer que eu precisava encontrar outro jeito de fazer pressão no ferimento para estancar o sangramento.
Arranquei o cinto e me preparei, pois a dor estava prestes a ficar muito pior.
Rangendo os dentes, enrolei o cinto em torno do ferimento e passei a ponta pela fivela. Eu não precisava de um torniquete, mas apertando-o com força, eu teria um
curativo de pressão rudimentar.
Faça isso, Pat.
Vamos, vamos!
Cerrei os dentes e puxei a ponta do cinto.
Vi estrelas. Perdi o fôlego.
Foco.
Foco!
Prendi o cinto. Meu braço queimava novamente. Dor vertiginosa.
Com os olhos fechados, me inclinei contra o móvel.
Tentei recuperar o fôlego.
A porta de saída.
Não os deixe escapar.
Antes de fazer qualquer coisa, eu precisava saber onde os suspeitos estavam, então inclinei um dos espelhos próximos para ver pelo corredor entre os móveis.
Ninguém.
Estrategicamente, eles tinham a vantagem. Eles estavam em dois, pelo menos um estava armado. Eles poderiam estar em qualquer lugar.
Peguei meu telefone. Liguei para Doehring e sussurrei, rouco, sem fôlego: – O perímetro. Está cercado?
– Deveria estar.
Deveria.
Os suspeitos já poderiam ter desaparecido.
– O lado sul do prédio – eu lutava para não demonstrar dor na minha voz. – Mande policiais lá agora. Os suspeitos estão armados. Proceda com extrema cautela, pode
ser apenas uma pessoa; não tenho certeza.
Fim da ligação.
Você foi atingido. Eles estão armados.
Eu deveria esperar. Realmente deveria...
Dane-se.
Levantei-me e empunhei minha arma, então contornei o móvel e, tentando mover meu braço esquerdo o mínimo possível, fui na direção da porta de saída, de olho em qualquer
movimento enquanto corria pela sala.
Não vi nada.
Ninguém.
Cheguei até a saída. Joguei meu corpo contra a barra de pressão e a porta se abriu.
Uma rápida olhada.
Apenas um beco, uma caçamba de lixo.
Nenhum suspeito fugindo.
Ninguém.
Olhei dentro e em volta da caçamba.
Nada.
Ambas as ruas ficavam a cerca de quarenta metros de distância, e eu não fazia ideia de qual direção os suspeitos haviam tomado.
Sirenes, mas nenhum policial à vista.
Será que os suspeitos se separaram? Foram em direções diferentes?
Fazia sentido eles se separarem, mas obviamente eu só podia verificar uma rua de cada vez. Escolhi ir para a direita e corri para lá.
Na esquina, eis o que vi: uma corredora de rabo de cavalo, o trânsito típico de Washington, uma mulher em frente à faixa de pedestres empurrando um carrinho de bebê,
três crianças pequenas atrás dela. Do outro lado do cruzamento, quatro homens de negócios estavam olhando para o outro lado, esperando o semáforo mudar.
Ninguém se encaixava na compleição de Aria ou do homem não identificado. Ninguém que levantasse suspeitas ou que agisse de maneira suspeita.
Não!
A outra rua. Eles foram para o outro lado do beco.
Com todo o tempo passado desde que eles saíram do prédio, eu duvidava que faria alguma diferença verificar a outra rua, mas precisava ser meticuloso. Parti na sua
direção.
Mas apenas segundos depois, dois policiais corpulentos saíram pela porta do estacionamento subterrâneo para o beco. – Sou o agente Bowers, FBI – apontei para um
dos homens. – Verifique a outra rua – então para o outro. – Volte pela porta e vigie a saída.
Eles ainda podem estar dentro.
Os policiais obedeceram.
Mais sirenes.
As ruas estavam sendo bloqueadas.
Tarde demais. É tarde demais!
A cada batida de meu coração, meu braço latejava. Minha visão ficou embaçada.
Me apoiei na parede.
Outro policial saiu pela porta e pedi que ele chamasse a expedição e pedisse para pararem o trânsito e para mandarem os policiais deterem e interrogarem todo mundo
nas ruas dos dois lados do beco.
– Você está bem, senhor? – ele perguntou.
– Vá.
Quando ele partiu, reparei que a mulher com as crianças pequenas estava olhando para mim. Estava pálida. Ela engoliu em seco e então orientou as crianças a segui-la
na direção da faixa de pedestres.
O sangue.
O sangue em seu braço.
Espere.
Ela não estava virada para o beco quando corri até a rua, mas havia uma boa chance de uma de suas crianças ter visto alguma coisa.
Guardei minha arma e, pressionando a mão direita contra o ferimento para esconder o sangue o máximo possível, me aproximei da mulher. – Com licença, senhora. Preciso
fazer algumas perguntas para você.
33
Ela não me disse seu primeiro nome, apenas disse que era a “sra. Rainey”, e então começou a me dizer que não tinha visto ninguém sair do beco. – Me desculpe – ela
estava olhando para meu braço. – Estávamos indo na outra direção. Você não deveria estar no hospital?
Provavelmente.
Olhei para seus filhos. Um bebê dormia no carrinho. Duas meninas gêmeas com cerca de três ou quatro anos. Um menino, talvez com seis. Ajoelhei-me ao lado deles.
As gêmeas se afastaram e agarraram as pernas da mãe. Uma delas mordeu o canto do lábio inferior e parecia que estava prestes a chorar. Eu não conseguia esconder
o sangue completamente, mas virei de lado para escondê-lo o máximo que podia.
– Preciso levá-los para casa – a sra. Rainey disse.
– Só um momento. Não vou incomodar seus filhos. Eu prometo – ela olhou para mim inquieta, então para o meu braço, então para o beco de onde saíam mais policiais,
e então para os carros de polícia parando com uma derrapada na rua. Apesar de estar claramente relutante, ela deve ter percebido a importância do meu pedido, porque
finalmente assentiu. – Tudo bem.
– Escutem – eu disse para as crianças. – Vocês viram alguém saindo daquele beco? Faz pouquinho tempo. É muito importante.
Nenhum deles respondeu.
Eu segurei o celular com a foto de Aria Petic que Ralph havia mandado. – Essa mulher passou por aqui?
As crianças apenas me olharam.
Eu lhes mostrei o homem empurrando a cadeira de rodas.
– Ou ele?
Silêncio.
– Vamos – a mãe deles disse. – Algum de vocês os viu sair do meio daqueles dois prédios?
As garotas se agarraram a ela. O garoto apenas olhou para mim desconfiado.
Certo, isso não iria levar a lugar algum. Eu estava me sentindo enjoa do por causa da dor, e só estava incomodando as crianças.
Normalmente, nós teríamos detido testemunhas potenciais por mais tempo, faríamos outro policial acompanhá-las, mas não me agradava que aquelas crianças estivessem
ali numa hora daquelas.
– Eu tenho mesmo que ir – a sra. Rainey disse.
Eu anotei seu endereço e número de telefone para que eu pudesse acompanhar, então dei a ela um dos meus cartões. – Se algum de seus filhos se lembrar de alguma coisa,
de qualquer coisa, me ligue.
Ela aceitou o cartão e eu cambaleei na direção de um banco para me sentar e recuperar o fôlego.
Mas eu não havia dera que três passos quando ouvi a voz dela: – Espere.
Virei-me e vi uma de suas filhas apontando.
Para um táxi.
34
O motorista, que por incrível que pareça tinha o inglês como sua primeira língua, me disse que acabara de deixar um passageiro, mas que não tinha arrumado nenhum
outro naquele lugar por horas.
A sra. Rainey perguntou para a filha novamente e descobriu que ela queria dizer que viu alguém pegar um táxi, não aquele táxi, o que, é claro, fazia sentido, mas
ainda assim, me frustrou.
Outro revés.
As ruas estavam cercadas de policiais. Nenhum outro táxi à vista.
Margaret chegara e andava pela calçada na minha direção.
O dia ficava cada vez melhor.
Chamei o policial com quem conversei alguns minutos antes e lhe disse para arrumar alguns homens para verificar todos os passageiros das companhias de táxi de Washington,
DC que tivessem descido ou pegado táxi naquela rua nos últimos vinte minutos.
Ele olhou para meu braço. – Você está bem, senhor?
– Estou bem. Você está me ouvindo?
Ele não tirou os olhos da manga ensanguentada. – Sim, senhor.
Descrevi os suspeitos e expliquei que não sabíamos se eles estavam se locomovendo juntos ou separados.
– Se encontrarmos o táxi e eles estiverem dentro, não deixem o motorista parar até que consigamos arrumar policiais disfarçados lá esperar ossuspeitos. Entendeu?
– Sim – ele ainda estava olhando para o sangue.
– Vá.
Ele hesitou. – Seu braço está...
– Vá logo!
Ele partiu.
Segui na direção do banco de novo, mas Margaret estava me alcançando. – Então você levou um tiro? – soava mais como uma acusação do que uma pergunta.
– Levei.
– Prendeu alguém?
– Não.
– Atirou em alguém?
– Não.
– Você viu os suspeitos bem o suficiente para identificá-los?
– Não, Margaret – cheguei até o banco. – Não vi.
Um pequeno suspiro.
– Bem, então, sente-se antes que você desmaie.
– Boa ideia. Encontramos Mollie?
– Ainda não.
Eu me sentei no banco e apoiei o braço no colo. Tentei acalmar minha respiração.
Ela pegou o rádio e pediu que um paramédico viesse o mais rápido possível. Então se dirigiu a mim novamente. – Aquela façanha que você realizou na coletiva de imprensa,
oh, aquilo foi... – ela balançou a cabeça em vez de terminar a frase, e então acrescentou: – Você não imagina como o seu trabalho está por um fio agora.
Despedir alguém com o meu tempo de serviço não era fácil, mas Margaret era uma mulher cheia de recursos, e com o deputado do lado dela, não seria uma escolha difícil
para Rodale. – Eu imagino – eu disse.
– Vou escrever uma reprimenda oficial para ser colocada em seu arquivo pessoal.
Isso não estava exatamente no topo da minha lista de preocupações naquele momento. – Tá bom.
– Mas você nos trouxe aqui. Você chegou perto de pegar os suspeitos, e foi ferido por uma ação adversária, então não vou enviar a reprimenda.
Dessa vez.
Eu pisquei.
Quem diria?
– Obrigado.
– Conte-me o que aconteceu.
Ela ouviu com atenção enquanto eu a informei sobre a perseguição e o tiro. – Mollie Fischer deve estar em algum lugar desse hotel – concluí.
– Sim – Margaret disse vagamente. Ela estava olhando para a sra. Rainey e seus filhos, que ainda estavam parados no meio da desordem da atividade policial. – Você
disse que aquelas crianças viram algo?
Além dela, no fim do quarteirão, vi uma ambulância parando na entrada do hotel.
– Apenas alguém entrando em um táxi, eu acho. Não tenho muita certeza disso também. Elas não estavam muito animadas em conversar com um estranho.
– Vou falar com elas.
– Hum, não acho que seja uma boa ideia.
– Sou boa com crianças – ela disse, e antes que eu a pudesse dissuadir, ela já tinha ido até as crianças e se ajoelhado ao lado das meninas gêmeas.
35
– Olá. Meu nome é sra. Weeeeeeellington – Margaret disse seu nome de um jeito longo e cômico. – Esse nome é engraçado, não é?
Uma das garotas concordou.
– Qual é o seu nome? – Margaret perguntou.
– O nome dela é Lizzie – a sra. Rainey falou antes que a menina tivesse a chance de responder.
– Aposto que você tem cinco anos, não tem? – disse Margaret, mantendo os olhos na menina e parecendo impressionada.
Lizzie meneou a cabeça.
– Seis?
Lizzie mostrou quatro dedos.
Margaret ficou de queixo caído, arregalando os olhos. – Não, você deve ter mais que quatro! Você tem sete, certo?
Lizzie balançou a cabeça. Ela estava sorrindo.
– Nós duas temos quatro – a irmã disse.
Dois paramédicos de uns trinta e poucos anos – um homem branco e atarracado e uma pequena mulher persa – saíram da ambulância e começaram a andar em minha direção.
A mulher carregava uma grande bolsa de primeiros socorros, o homem estava empurrando uma maca. Eu não tinha intenção de deitar na maca, mas o kit de primeiros socorros
não era má ideia.
– Uau – Margaret olhava de uma irmã para a outra. – Vocês duas parecem que são parentes.
– Somos gêmeas! – elas gritaram.
Falsa surpresa. – Mesmo?
As duas meninas assentiram.
Para a segunda menina:
– Então, seu nome também é Lizzie?
– Não! – as meninas gritaram juntas.
– Eu sou a Jill – a gêmea de Lizzie respondeu, então apontou para seu irmão. – E ele é o Danny. Ele tem seis anos.
Eu mal podia acreditar no que meus olhos viam. Margaret era muito boa com crianças.
– Vocês são duas mocinhas – Margaret disse. – E muito inteligentes.
Dá pra ver. E é um prazer conhecer você também, Stanley.
Ele olhou curioso para ela.
– É Danny.
– Oh, me desculpe, Mannie.
– Meu nome é Danny! – ele disse impacientemente, mas estava sorrindo.
– Frannie?
– Danny!
Ela bateu na testa com a palma da mão. – Certo. Sim. Oh, me desculpe, Granny.
Todas as três crianças riram. Ele estava com as mãos na cintura. – Danny, Danny, meu nome é Danny!
– Oi, Danny – ela disse. – É um prazer conhecê-lo.
Ele resmungou.
Margaret tinha aquelas crianças na palma das mãos.
Incrível.
Os paramédicos viram onde eu estava sentado e apertaram o passo.
Margaret apontou para o beco. – Contem para mim sobre as pessoas que saíram de lá – ela acenou na minha direção. – Antes desse homem com cara de bobo aparecer.
Eu sou um homem com cara de bobo. Entendi.
– Ele está muito machucado? – Danny perguntou.
Os olhos deles vieram parar na minha camisa ensanguentada, e eu virei para mostrar meu braço bom.
– Oh, não – ela lhes respondeu, então disse para mim: – Faça uma cara engraçada, agente Bowers. Mostre a eles que você não está muito machucado.
Fiz o meu melhor.
– Viram? – Margaret disse.
Fiquei feliz por ela estar curtindo aquilo.
Danny não pareceu acreditar muito, mas as garotas riram e Lizzie disse: – Eles estavam com pressa.
Os paramédicos chegaram e o homem, cujo crachá dizia Neil Blane, disse: – Senhor, precisamos dar uma olhada nesse braço.
Levantei-me desajeitadamente e a paramédica, que se apresentou como Parvaneh Bihmardi e parecia não ter dormido muito bem na noite passada, me viu cambalear. – Espere.
Sente-se de novo.
– Não – balancei a cabeça e falei suavemente: – Longe das crianças.
Neil Blane gesticulou na direção da maca, mas recusei. Ele relutantemente ofereceu o braço para mim; recusei isso também. Eles me seguiram na direção de um muro
baixo de concreto que cercava uma área arborizada. O muro parecia ter um metro de altura, aceitável para que eu me sentasse, e parecia ser fora da linha de visão
da família Rainey.
A caminho de lá, ouvi Margaret perguntar: – Então, quantas pessoas eram? Quantas vocês viram?
Olhei para trás e vi Lizzie erguer dois dedos.
– Um homem e uma mulher?
A garota assentiu.
– Eles estavam carregando alguma coisa?
– A mulher tinha um computador – Danny disse. – O homem tinha uma bolsa preta grande.
Fiz uma pausa.
Margaret perguntou:
– De que cor era o computador?
– Branco.
Se esse fosse o computador desaparecido de Mollie, nós poderíamos rastrear sua localização assim que eles se conectassem e, dependendo do modelo, ativar remotamente
sua webcam para dar uma olhada nos assassinos...
Liguei para Doehring; ele me disse que cuidaria disso, então me apoiei sobre o muro de concreto que circulava as árvores, e Parvaneh pegou uma grande tesoura. –
Certo, vamos tirar essa camisa e ver o que temos aqui.
36
Astrid esperou impacientemente enquanto Brad terminava de arrombar o Honda Accord estacionado na Eisenhower Drive, do outro lado da rodovia do Pentágono.
Ela odiava que as coisas tivessem tomado essa direção, mas tinham, e agora ela teria que lidar com isso.
– Você deveria ter invadido o sistema e colocado o vídeo do beco em repetição – ela disse.
– Eu fiz isso.
– Então como eles...
– Eu não sei.
– Por que você atirou naquele agente?
– Eu estava com medo.
A trava se abriu. Ela era melhor em fazer ligação direta em carros do que ele, então, assim que ele abriu as portas, ela deu partida no motor e passou para o banco
do passageiro para arrumar o cabelo.
– Precisamos voltar pra casa – ele disse.
– Não, preciso voltar para o trabalho ou a coisa não vai ficar boa.
Você sabe disso.
Silêncio.
– Me leve até lá, troque de carro e me encontre mais tarde.
Brad não parecia feliz em ouvir isso, mas ela não ligava.
Ele guiou o carro para a rua. – E quanto a Wellington? – ele disse. – Ela vai estar na cena do crime.
– Amanhã. Faremos isso amanhã, a menos que... – Astrid disse. – A menos que...
– A menos que?
– Vamos ver como as coisas se desenrolam.
Com luvas nas mãos, ela colocou o computador no banco de trás. O FBI o encontraria mais tarde. E o plano funcionaria. Os horários funcionariam.
Tudo se ajeitaria sozinho, contanto que Brad não estragasse mais as coisas.
Neil e Parvaneh trabalharam rápido.
Eles levaram apenas alguns minutos para limpar o ferimento, colocar um pouco de gaze e enfaixar meu braço com um curativo de pressão. Enquanto eles cuidavam do ferimento
à bala, tentei me recompor, pensar em tudo pelo que eu havia passado nas últimas duas horas... o encontro emocionalmente desgastante com Missy Schuel... a revelação
de que a vítima no centro de primatas não era Mollie Fischer... o confronto com o deputado... a coletiva de imprensa... a perseguição pelo hotel... levar um tiro.
Nada tinha dado certo e, para melhorar as coisas, os suspeitos aparentemente haviam escapado.
Respirei fundo e senti que estava começando a relaxar, mas as palavras de Parvaneh acabaram com isso: – Isso pode doer um pouco.
Abri os olhos bem a tempo de vê-la limpar meu antebraço com um pano com álcool e posicionar uma agulha intravenosa ridiculamente grande contra minha pele.
Oh, não.
Eu odeio agulhas.
Ela pressionou.
E a agulha entrou, deixando um pequeno vergão enquanto penetrava meu músculo e furava minha veia. Essa visão me incomodava mais do que o ferimento à bala.
Tive que olhar para outro lado.
– Por causa da sua perda de sangue – ela explicou.
– Entendo – consegui dizer. Pude sentir um puxão na pele quando ela removeu a agulha, deixando o cateter para trás.
Neil pegou o rádio e disse para alguém que estávamos a caminho, então finalizou a transmissão e empurrou a maca para junto de mim. – Precisamos levá-lo para um hospital.
Eu não queria perder nada na cena. Balancei a cabeça. – Vou ficar aqui.
– Isso não vai ser possível.
– Vou cuidar do meu braço depois que as coisas se acalmarem. Eu só preciso de alguns minutos para informar os policiais aqui...
Parvaneh e Neil olharam um para o outro, e então disseram: – Vamos te levar para o Mercy Medical.
– Não – uma voz rude falou e vi Ralph rapidamente se aproximando de nós. Atrás dele, mais viaturas, vans de canais de televisão e ambulâncias estavam parando no
hotel: a polícia metropolitana, o FBI, a polícia do Capitólio.
Tumulto.
– Eu vou levá-lo – Ralph veio em nossa direção. – Vamos, Pat. Precisamos conversar.
– Me desculpe, senhor – Neil disse. – Esse homem foi alvejado, está perdendo sangue e está com uma intravenosa no braço. Não podemos deixá-lo...
Ralph esticou a mão e agarrou o tubo intravenoso...
– Hum, Ralph...
Arrancou-o do meu braço.
Ah, sim.
Aquilo não foi nada bom.
– Pronto – Ralph disse. – Rápido e limpo – o invólucro do cateter de plástico brilhava, molhado com meu sangue, quando ele o colocou sobre a maca e disse para Parvaneh:
– Vou deixar que você cuide disso – ele apertou a fita adesiva que estava segurando a intravenosa no lugar sobre o buraco da agulha.
Parvaneh nos olhava com os olhos arregalados.
– Certo – ele me ajudou a ficar de pé. – Está liberado.
Meu telefone tocou. O toque de Tessa.
Inacreditável.
Eu precisava demais de uma xícara de café. Um pouco de cafeína para me acalmar.
– Escute, Ralph – eu estava em dúvida entre atender ou não o telefone. – Se isso for sobre a coletiva de imprensa...
Tocando.
– Não – ignorando as objeções dos dois paramédicos, ele me levou na direção do carro. – É sobre Richard Basque.
– O quê? Basque?
Ainda tocando.
Vamos, Pat. Tessa precisa de você. Ela já deixou duas mensagens.
– Espere um pouco – disse para Ralph. – É a Tessa.
Quando atendi o telefone, vi o carro dele parado no meio-fio. Não muito longe.
– Sou eu – falei para ela.
– Oi.
– Você está bem? Sua mensagem de antes... fiquei preocupado. – Os agentes Tanner Cassidy e Natasha Farraday, juntamente com outros membros da ERT do FBI, estavam
entrando no hotel.
– Sim, claro – Tessa disse. – Estou bem.
– O que foi? O que está havendo?
– É só que... quando você vem para casa? Você está na aula?
– Não. Apareceu uma coisa.
– Ah, você parece meio... não sei. Sem fôlego.
– Eu estava me exercitando – tentei manter a voz equilibrada e controlada. – Eu fiz alguma coisa? Você está triste com algo que eu...
– Não-não-não-não – ela juntou todos os nãos em uma só palavra. – Nada do tipo. Mas quando você acha que vai voltar para casa?
– Tessa, eu... – uma olhada em Ralph. – A verdade é que eu estou meio ocupado aqui. Mas se você precisar de mim, se for urgente, eu posso estar em casa em cerca
de meia hora.
Ralph balançou a cabeça e murmurou: – Não, você não pode.
Eu murmurei: – Sim, eu posso.
– Não, está... não é nada de mais – Tessa disse. – Mais tarde está bem.
– Me dê... – verifiquei as horas.
15h36.
– Tentarei estar em casa às 19h, tudo bem? – isso me dava cerca de três horas e meia para ir até o hospital, ser consultado, sair e ir para casa, o que seria um
pequeno milagre, mas talvez eu pudesse arrumar um jeito de apressar o pessoal do hospital.
– Sim, claro. Eu estou bem, então não se preocupe nem nada. É só que... eu preciso contar uma coisa pra você.
– Conte agora.
– Isso pode esperar.
– Tudo bem, você pode...
– Pode esperar – ela repetiu.
Eu estava ficando cada vez mais impaciente, mas também mais preocupado. – Tessa, me escute. Você está segura? Você está bem?
– Sim.
– Se você estiver em algum tipo de perigo ou problema agora, me peça para parar de te encher com tantas perguntas. Eu mando a polícia aí em...
– Não, não é isso. Vejo você às 19h? Eu estou bem. Vou ficar bem.
Encerramos a ligação.
Mas as coisas não pareciam bem.
Ralph e eu chegamos ao seu carro, e ele guardou as notícias sobre Basque por um momento. – Ela está bem?
– Não sei.
– Quer que eu peça a Brineesha para dar uma olhada nela?
– Quando ela sai do trabalho?
– Às 16h30.
Do banco, o caminho para nossa casa levaria pelo menos trinta e cinco minutos. Balancei a cabeça. – Não precisa. É muito tarde.
– Ela provavelmente poderia sair mais cedo.
Tive uma ideia.
– Espere um pouco.
Cheyenne.
Ela sabe onde você vive... Tessa confia nela... Se ela decidiu não ir na
fazenda de corpos... Se ela estiver livre...
– Me dê mais um segundo. – Entramos no carro. Acidentalmente, bati o braço machucado e uma rajada de dor me fez estremecer. Eu tive que fechar os olhos e respirar
fundo para me manter de pé.
Calma, calma.
– Você está bem? – Ralph perguntou.
– Sim.
Eu me ajeitei no banco. Não ajudou muito. Ralph saiu pela rua enquanto eu ligava para Cheyenne; descobri que ela desistira do passeio pela fazenda de corpos e passou
o tempo lendo os arquivos do caso e preenchendo a papelada da operação conjunta.
– Escute – eu disse –, está acontecendo uma porção de coisas nesse caso e eu vou informá-la sobre tudo, eu prometo, mas agora preciso te pedir um favor.
– O que é?
– Aconteceu algo com Tessa. Não tenho certeza do que, mas estou preocupado com ela. Ela está em casa. Acho que precisa de alguém lá com ela agora, mas eu preciso
passar no hospital. Você pode ir até lá? Só para...
– No hospital?
– Machuquei um pouco meu braço. Vai ficar tudo bem. Mas se você puder dar uma olhada nela, ajudaria muito. Ela te conhece. Ela confia em você.
– Pat, você não iria para o hospital se seu braço estivesse só um pouco machucado. O que aconteceu?
– Levei um tiro que atravessou meu braço – eu disse. – Sem danos arteriais. Nenhuma fratura aparente.
Cheyenne entendia de armas como eu entendo de café, mas ela não perguntou sobre o calibre, a proximidade do atirador, o ângulo de penetração. Em vez disso, ela apenas
disse: – Oh, Pat, eu sinto muito.
– Eu vou ficar bem, apenas não conte para Tessa. Tudo bem? Não quero que ela fique preocupada.
– Não vou contar para ela. Chego lá assim que puder.
– Obrigado.
– Tem certeza de que está bem?
– Sim.
– Cuide desse braço.
– Cuidarei. Desliguei o telefone.
– Tudo bem – falei para Ralph. Suspirei. – Me conte sobre Basque.
– Desapareceu – ele disse. – E a dra. Renée Lebreau também.
37
– O quê?
– Os dois.
A notícia me levou de volta para o julgamento de Basque.
No outono passado, a professora Lebreau e seus alunos da Michigan State University encontraram as discrepâncias no depoimento da testemunha ocular e nas evidências
de DNA do julgamento de Basque 13 anos atrás. Suas descobertas foram cruciais na decisão da Corte do Sétimo Distrito de dar um novo julgamento a Richard Devin Basque,
e também foram influentes em convencer o júri a inocentá-lo.
– Quando ela foi vista pela última vez?
– Ela não apareceu em sua aula de ética legal cerca de 29 horas atrás.
Sua SUV ainda está no estacionamento. Ela não foi vista desde então.
– E Basque?
– Não temos certeza, mas ele desapareceu do radar faz alguns dias. A polícia de Chicago está procurando por ele, mas como você sabe...
– Ele é um homem livre.
– Não apenas livre – Ralph disse as palavras com um tom sombrio que mostrava que ele também não concordava com o veredicto. – Inocente.
– De acordo com o tribunal.
– Sim. E um homem inocente não tem que avisar à polícia quando vai viajar – suas palavras estavam cheias de raiva.
Pensei novamente no último desejo de Grant Sikora: “Prometa-me que você não vai deixá-lo fazer isso novamente”.
“Eu prometo”, eu dissera.
Um momento de silêncio, então perguntei a Ralph quem estava trabalhando no desaparecimento da professora Lebreau.
– O diretor Rodale mandou Kreger coordenar.
– Acho que não o conheço.
– Um bom homem. Inteligente. Aguenta pressão. Ele está trabalhando com a polícia de East Lansing.
Basque era um dos assassinos mais elusivos que eu já tinha conhecido, e se ele estivesse envolvido no desaparecimento da professora Lebreau, mesmo com a ajuda de
Kreger, me perguntei se uma cidade do tamanho de East Lansing teria os recursos para encontrá-lo.
Você prometeu a Grant Sikora que não deixaria Basque matar novamente... você prometeu...
– Mande-me para lá – eu disse.
Ralph meneou a cabeça.
– Você sabe que eu não posso fazer isso. Você tem suas aulas, esse caso Fischer, toda essa coisa da custódia de Tessa que você precisa resolver, sem contar esse
arranhão no seu braço.
– Meu tiro é um arranhão?
– Nenhum osso está para fora. Não pode ser tão sério.
– Bom critério legal. Escute, arrume um jeito de eu ajudar na busca por Basque. Eu sei mais sobre ele do que qualquer um...
– Com exceção de...?
Finalmente percebi sobre o que era essa conversa toda: o agente do FBI que havia me ajudado a rastrear Basque há treze anos.
– Você – eu disse.
Ele assentiu. – Meu voo parte em uma hora.
Estávamos na Massachusetts Avenue NW. O hospital ficava a dois quarteirões.
– Precisamos tomar cuidado com isso, no entanto – ele disse. – Não pular para as conclusões. Até onde sabemos, a professora saiu de férias improvisadas e Basque
foi pescar por uma semana.
Mas dava para saber que ele não caiu em nada disso.
Eu sei que Ralph já teria pensado nisso, mas senti que precisava ser dito: – Se já faz vinte e nove horas, tem uma boa chance de...
– Sim, de ela estar morta – ele disse. – Ou pior.
Um silêncio tenso preencheu o ar enquanto ambos pensávamos nas coisas que Basque tinha feito com suas vítimas antes de matá-las.
– Ralph – eu disse lentamente –, o que você acha da justiça preventiva?
– Eu fui um Army Ranger,5 cara. A maioria das missões que fazíamos era preventiva. Identificar uma ameaça e eliminá-la antes que ela eliminasse você.
– Ou outra pessoa – eu disse.
– Sim.
E eu tinha a sensação de que estávamos pensando na mesma coisa.
Chegamos ao hospital e estacionamos na frente da porta da emergência.
– Tanto Basque quanto Lebreau desaparecem na mesma semana? – eu disse. – É coincidência demais. Basque está envolvido.
– Eu sei.
Saímos do carro e Ralph me ofereceu um de seus braços hercúleos como apoio, mas recusei. – A coisa que não faz sentido – eu disse – é que a dra. Lebreau foi quem
acabou fornecendo as informações que ajudaram a livrar Basque. Por que ele iria atrás dela?
– Estive pensando na mesma coisa. Não faço ideia – sua voz ficou sombria. – Mas acredite em mim. Vou encontrá-lo. E se ele a machucou... Vamos dizer que a justiça
será rápida.
– E limpa.
– Sim.
Entramos no saguão.
Quando um policial é levado para um hospital com um ferimento à bala, os médicos à disposição são ótimos e estão preparados, então não fiquei surpreso em ver uma
equipe de trauma nos esperando: meia dúzia de cirurgiões e enfermeiras vestidos apropriadamente prontos em torno de uma maca.
Mas aparentemente eles estavam esperando alguma coisa mais emocionante, porque os médicos olharam um para o outro incertos, e um deles perguntou: – Você é o ferido
à bala? – disse, parecendo decepcionado.
– Desculpem, não tem mais risco de morte – Ralph disse. – Da próxima vez, vamos tentar garantir que ele tome um tiro no peito.
– Obrigado, Ralph.
Eles não pareceram gostar dos nossos comentários e, um por um, foram se dispersando. Ralph pediu licença para ir ao aeroporto e uma enfermeira de aparência austera,
carregando uma pilha de papéis, apareceu e gesticulou na direção de uma sala de exames próxima.
38
Tessa precisava tirar da cabeça todo o problema com Paul Lansing, mas ainda faltavam mais de três horas para Patrick aparecer.
Ótimo.
Não estava exatamente no clima de fazer palavras cruzadas ou de escrever poesias. Não hoje.
Talvez possa fazer algo para me desculpar por ter escondido os e-mails dele, por ter agido pelas costas dele, isso seria algo legal.
Então? Limpeza?
Hum... não.
Jantar?
Ai – doeu só de pensar. Ela havia tentado cozinhar algumas vezes, e não foram experiências muito agradáveis.
Certo, então, do que ele mais gosta – além de você – o que é mais importante para ele?
Bem, isso era óbvio.
O trabalho.
E no momento isso significava encontrar quem quer que tenha matado a filha do deputado naquele estranho e totalmente perturbador ataque de chimpanzés.
Ela tentou pensar como Patrick pensaria:
Local e hora.
Por que naquela hora?
Por que naquele local?
O que a escolha daquele local nos diz sobre a familiaridade do assassino com a região, sobre seus padrões de movimento? Sobre sua percepção da área e sua relação
com as vítimas?
Horário: ontem à noite.
Local: o laboratório de pesquisa de primatas.
Ontem à noite, o canal de notícias havia dito que o lugar estava estudando cognição em grandes primatas.
Ela sabia um pouco sobre cognição de primatas, mas talvez...
A internet era uma possibilidade, mas ela tinha uma ideia melhor.
Ela entrou na internet e, usando o número de verificação de seu recém-adquirido cartão de leitora, acessou os arquivos da Biblioteca do Congresso, a maior coleção
do mundo de revistas científicas, e então digitou “Pesquisa de Primatas da Fundação Gunderson”.
Uma enfermeira aferiu minha pressão arterial e meu pulso, então colocou um curativo na marca de agulha da intravenosa. Quando ela saiu da sala de exames, fiquei
dez minutos preenchendo a papelada do hospital enquanto esperava o médico chegar.
Finalmente deixei os formulários de lado, peguei um pouco de papel com a recepcionista e comecei a analisar os detalhes da perseguição do hotel, do tiroteio, dos
locais relacionados com os crimes, esboçando algumas anotações.
Algum tempo depois, percebi que já fazia uma hora que havia falado com Tessa ou verificado o caso, e ainda não havia retornado para o diretor Rodale, que mais cedo
havia me deixado uma mensagem para ligar para ele.
Liguei primeiro para Tessa. Ela me garantiu que estava bem. – A detetive Warren está aqui. – Ela baixou a voz. – Eu não precisava de babá.
– Não foi por isso que pedi a ela para passar aí. Você sabe disso.
Uma pequena pausa.
– Acho que sim.
– O que vocês duas estão fazendo?
– Conversando sobre garotos.
– Não, não estamos – Cheyenne falou ao fundo.
– Garotos?
– Ela acha que você deveria me deixar sair com caras mais velhos.
– Não, não acho – Cheyenne disse.
– Tá bom.
Apesar da relutância em ter alguém verificando como ela estava, Tessa parecia muito mais relaxada do que quando havíamos conversado mais cedo, e fiquei aliviado.
– De qualquer forma – ela disse –, estamos jogando xadrez. Ela é muito melhor que você.
– Bem, isso não é muito difícil.
– Verdade.
Tamborilei os dedos na cadeira. Como eu ainda estava esperando um médico, minhas chances de chegar cedo em casa ficavam cada vez menores, mas eu disse: – Ainda tenho
esperanças de chegar às 19h. Ouvi Cheyenne novamente: – Cheque.
– Certo, até mais. – Tessa soava distraída, e eu a imaginei estudando o tabuleiro.
Ela desligou. Liguei para Doehring.
Conversamos alguns minutos sobre o caso – nenhum sinal ainda de Mollie Fischer, mas eles estavam vasculhando quarto por quarto do hotel – e Farraday encontrou a
cadeira de rodas no quarto 809.
– Em nome de quem estava a reserva?
– Do gerente. É um quarto de cortesia que ele mantém reservado para dignatários estrangeiros em visita a Washington.
Inacreditável.
– Catorze conjuntos de impressões digitais na cadeira, quase todas parciais até agora, DNA de Mollie, de duas faxineiras, algumas digitais ainda não identificadas.
Porém, não houve combinação com ninguém no sistema. E o beco? Bem, esses caras deram um jeito de invadir e alterar a transmissão de vídeo. Por isso não vimos a mulher
entrar. Marianne está furiosa por não ter visto.
E a pergunta que não queria calar – onde estava Mollie?
Lembrei-me de ter lido a respeito de um caso dos anos 90 sobre um casal belga que sequestrava crianças e as mantinha num calabouço especialmente construído. A polícia
procurou pela casa duas vezes e nas duas ouviu crianças chorando, mas supôs que o som vinha de crianças brincando em algum lugar fora dali. Duas garotas morreram
de fome enquanto o marido estava preso, e a esposa, que era professora do ensino fundamental, ficou na casa e ignorou o choro das garotas por duas semanas até que
as duas crianças finalmente morrerem.
– Vasculhem o quarto inteiro – eu disse. – Olhem debaixo da cama, arrastem os móveis, não deixem nada passar.
– Já fizemos isso.
– E um carrinho de faxina? Eles poderiam tê-la colocado num carrinho de lavanderia?
– Nós verificamos. Escute, como está...
– Estou bem. Os freezers do hotel? O telhado? E quanto aos elevadores? Verifique na parte de cima deles... – E então, pensando na segurança de última geração do
hotel e nas renovações ultramodernas, tive um pensamento macabro. – Há alguma máquina de picar documentos no hotel? Alguma grande, de tamanho industrial?
– Não se preocupe. Meus homens estão cuidando disso. Finalmente, quando estávamos encerrando a ligação, perguntei se ele poderia mandar um policial me buscar quando
eu fosse liberado, para me levar até meu carro.
– Você levou um tiro, Pat. Vou pedir para Anderson levá-lo até em casa.
– Não, eu só preciso ir até meu carro. Ligo para você quando tiver alta do hospital.
Desligamos.
Enfim, sob o pretexto de retornar a ligação que ele havia feito para meu celular no começo da tarde – mas, na verdade, esperando descobrir se era ele que tinha dito
a Fischer para esconder da imprensa as informações sobre Mollie –, disquei o número do diretor Rodale.
Sua secretária me disse que ele havia acabado de ir para casa. – Ele também quer falar com você – ela disse.
Isso não era surpresa.
Marcamos uma reunião no escritório dele amanhã ao meio-dia, entre minhas aulas.
Então voltei para minhas anotações e, alguns minutos depois, o médico chegou.
39
Após remover o curativo que os paramédicos fizeram, o dr. Stearn tirou a gaze, cuidadosamente inspecionou os ferimentos de entrada e saída, então pediu um raio X
para ter certeza de que não havia fragmentos de osso ou de bala em meu braço.
O que só me tomou mais tempo.
Logo depois, eu o convenci a me levar para um quarto de paciente em vez de para a sala de exames, para que pudesse assistir ao noticiário na televisão do quarto.
Ele higienizou o ferimento e disse: – Prepare-se – ele estava pegando um bisturi para desbridar a área, um processo que envolve remover o tecido morto que cerca
a área do ferimento.
Tentei me concentrar no noticiário.
Chelsea Traye, repórter do Canal 11, anunciou que estavam esperando uma declaração “a qualquer momento” por parte do FBI em relação a “um suposto tiroteio no porão
do histórico Lincoln Towers Hotel”.
– Suposto, né? – o dr. Stearn disse.
Uma profunda pontada de agulha quando ele anestesiou a área.
– Até que isso passe pelo departamento de assuntos públicos do Bureau, eu não fui oficialmente ferido.
– Que beleza.
Enquanto eu assistia ao noticiário, o dr. Stearn terminou o desbridamento e, o mais delicadamente possível, colocou uma atadura arejada sobre o ferimento. A equipe
de notícias da WXTN estava explicando que de acordo com suas fontes, as autoridades estavam procurando por um homem e uma mulher como possíveis responsáveis pelo
desaparecimento de Mollie Fischer e pela morte de Twana Summie.
Um enfermeiro trazendo uma camisa de médico para mim apareceu na porta. Algo para vestir, pois minha camisa tinha sido manchada com sangue e cortada por Parvaneh.
– Com os cumprimentos do hospital Mercy Medical – ele disse.
– Rosa? – eu disse. – Essas roupas não deveriam ser verdes?
– Isso desencoraja as pessoas a roubarem.
– Nem imagino o porquê – apontei para a cadeira no canto da sala. – Pode colocá-la ali.
Assim que ele saiu, chamei uma enfermeira e lhe entreguei uma nota de vinte dólares. – Você poderia passar na lojinha do hospital e pegar uma camiseta para mim?
Sou um agente federal e consideraria isso um grande serviço para o seu país.
Ela sorriu. – Claro.
O médico havia pegado uma tipoia e a estava ajustando para caber no meu braço. Eu lhe disse que não era necessário; ele disse que era.
O noticiário cortou para a coletiva de imprensa e Margaret apareceu na tela. Aumentei o volume. Apesar de ela estar apenas dando uma explicação superficial, eu tinha
que admitir que a declaração dela foi muito mais cuidadosa do que a minha havia sido mais cedo.
Ela encerrou declarando que um dos “melhores agentes” do Bureau tivera “um pequeno ferimento por ação adversária em uma troca de tiros no porão do Lincoln Towers.”
Algumas horas atrás, eu tinha cara de bobo, agora eu era um dos melhores agentes do FBI.
Talvez Margaret só estivesse querendo ganhar minha simpatia.
– Pequeno ferimento? – o dr. Stearn disse dubiamente, e eu reparei que até agora ele se comunicara comigo apenas com frases de duas palavras.
– Mas dói – eu disse.
No final, Margaret não disse nada que eu já não soubesse, quando o noticiário mudou para uma “análise do especialista” sobre o incidente.
O médico terminou o que fazia no meu braço e me disse para voltar para uma consulta na segunda-feira. Finalmente, ele me deu um analgésico e um antibiótico. – Sem
remédios soporíficos – eu disse. Ele relutou, mas concordou, trocou os remédios e então disse: – Dois diariamente – ele apontou para um dos frascos de comprimidos
e então pegou dois. – Tome esses.
– Para dor – eu disse.
Ele assentiu e então me assustou com três frases completas em seguida. – Tome mais dois antes de dormir. Os próximos dois dias serão difíceis. Vou passar uma receita
para você.
Agradeci e estava me levantando para ir embora quando a enfermeira voltou com uma camiseta rosa-choque de turista com a frase “Viva Washington, DC!”.
– Você tá brincando! – eu disse.
– Era a única GG restante na loja – ela me entregou a camiseta e meu troco. – Não se preocupe, rosa é o novo preto.
– Ah, deve ser mesmo.
O dr. Stearn estava assinando uma folha de papel em sua prancheta.
– Sem dirigir – ele disse.
Certo, de volta com as frases de duas palavras.
– Eu entendo – respondi.
Os dois me ajudaram a vestir a camiseta e a posicionar meu braço na tipoia. Peguei as anotações que eu tinha feito e então saí, afrouxei a tipoia e liguei para Doehring
para perguntar se Anderson estava disponível para me levar até meu carro.
40
Tessa estava ficando frustrada.
Cheyenne tinha mesmo ganhado dela no xadrez.
Duas vezes.
– Onde você aprendeu a jogar? – Tessa lhe perguntou.
– Com meu pai. Sabia que eu cresci num rancho? Bem, ele não gostava muito que assistíssemos a TV, então à noite nós sempre jogávamos; na maioria das vezes, xadrez.
Ele era do ranking nacional quando estava na faculdade. Com o tempo, ele me ensinou algumas estratégias.
Algumas.
Sim, claro.
Tessa se concentrou e analisou o tabuleiro. Fez sua jogada.
18h57
Dirigindo um carro disfarçado, que ele orgulhosamente me contou ser seu carro normal, o oficial Lee Anderson havia me deixado em meu carro fazia uns trinta minutos.
Os remédios ainda não estavam fazendo efeito, e toda vez que eu mexia meu braço ou mudava meu apoio, parecia que alguém estava enfiando uma agulha gigante no meu
braço e a movimentando para cima e para baixo.
Agulhas novamente.
Cara, eu não conseguia tirá-las da minha cabeça.
Para piorar as coisas, o trânsito estava parado. Talvez fosse algum acidente mais adiante.
Mudei meu apoio de lado.
Agulhas.
Pense em alguma outra coisa.
Certo. A notícia de Ralph: Basque e a professora Lebreau desapareceram. Inacreditável.
Por uma fração de segundo, considerei a possibilidade de Basque estar de algum modo envolvido nos crimes aqui em Washington, DC, nessa semana. Um cálculo rápido
me mostrou que a viagem de Michigan seria apertada mas viável.
Mas quando pensei nisso, percebi que os dados não batiam. A compleição do homem não identificado empurrando a cadeira de rodas no Lincoln não batia: Basque tinha
quase minha altura e era forte; aquele homem era mais baixo e tinha uma compleição mediana.
Então...
O que eu poderia fazer daqui para ajudar a encontrá-lo?
De primeira eu não pude pensar em ninguém, mas então...
Ah, sim.
Não eu.
Angela Knight, minha amiga da divisão de crimes cibernéticos. Ela e seu computador, que ela batizara de Lacey, podiam encontrar praticamente qualquer pessoa.
O trânsito estava num anda-e-para, então peguei algumas imagens dos arquivos do caso de Basque no meu celular, liguei para Angela e comecei lhe contando sobre a
placa TEP–ROM do carro. Ela me disse que ficou sabendo que os caras da NSA estavam por trás disso. – Estou atolada aqui como você não imagina.
Considerando o quanto ela estava ocupada, me perguntei se deveria lhe contar o verdadeiro motivo da minha ligação, mas como eu realmente não tinha nada a perder,
prossegui. – Mais uma coisa...
– Pat, eu sei o que você vai pedir, mas não tive mais tempo para procurar sobre sua pista da Patricia E – ela parecia exausta.
– Não, é outra coisa.
– Ah... – uma pausa. – Deixe-me adivinhar: você precisa de informações confidenciais, e você precisa agora, e você não quer preencher nenhuma papelada.
– Você é incrível. Leu minha mente.
– O que posso dizer? Sou adivinha.
– Eu tinha minhas suspeitas – tirei o telefone da orelha e toquei a tela para enviar por e-mail as imagens enquanto andava alguns metros com o carro, segurando o
volante na posição certa com os joelhos.
Um pequeno suspiro. – O que você precisa?
– Preciso que você encontre Richard Devin Basque. Não me importa como você vai fazer isso: uso do cartão de crédito, carteira de motorista, GPS do celular. Invada
o computador da advogada dele. O nome dela é Priscilla Eldridge-Gorman. Posso conseguir o endereço dela para...
– Calma. O que está acontecendo?
Contei a ela sobre o possível sequestro da dra. Lebreau e a hora pra lá de conveniente do desaparecimento de Basque.
– Quem é o agente responsável?
– Kreger está com o caso de Lebreau. Ralph está a caminho agora para ajudar a encontrar Basque.
O trânsito andou um pouco, então parou novamente.
– Então por que não é ele que está me ligando?
– Ele está mantendo isso em segredo – eu disse evasivamente.
– Ah. Entendi. Richard Basque é um homem livre e não, deixe-me ver, como devo dizer isso? – uma leve alfinetada em suas palavras. – “Uma pessoa que interesse ao
caso”, então, fazer uma busca oficial por ele poderia ser considerado assédio.
– Eu não colocaria desse modo.
– Que tal isso, então: Ralph está resolvendo as coisas dentro dos limites da lei.
Ouvi um som. O e-mail com as fotos anexadas que eu acabara de mandar para ela tinha chegado.
Ela notou. – O que é isso?
– Fotos das vítimas dele. Para ajudar a te convencer de que deve me ajudar.
– Vou apagá-las.
– Não.
– Não posso fazer isso, Pat. Ele é um homem livre.
– Essa mulher que desapareceu ontem, foi ela que descobriu a evidência de DNA que ajudou a libertá-lo. É muito provável que ele esteja envolvido de algum modo. A
vida dela está em perigo.
– Se esse pedido de busca não vier de Ralph, vou precisar de autorização da diretora-assistente Wellington.
– Abra as imagens – eu disse. – Veja o que ele fez com suas vítimas.
– Ele foi declarado inocente.
– O júri cometeu um erro.
Uma pequena pausa. Me perguntei se ela estava olhando as fotos. Ela disse: – Essa mulher desaparecida... não é só por isso que você quer encontrá-lo, né?
– Encontrá-la, garantir que ela está bem: essa é nossa principal preocupação.
– Mas não a única. Não para você.
Senti um calafrio na espinha. – Tá bom, tá bom. Eu preciso falar com o sr. Basque.
– Falar.
– Sim.
– É isso? Só falar?
– Angela, você e eu trabalhamos juntos por cinco anos – não era uma resposta para a pergunta dela. – Confie em mim.
– Eu sei por quanto tempo trabalhamos juntos, por isso estou fazendo a pergunta. Estou preocupada que você faça algo imprudente.
– Alguma vez eu já fiz algo imprudente?
– Você tá falando sério?
– Tá bom, mas quero dizer, tirando essas vezes, sejam lá quais forem as que você estiver pensando.
Ouvi um riso baixinho.
Ah, ótimo.
Uma rachadura em sua armadura.
– Me ajude nisso, Angela. Se alguém puder encontrar Basque, essas pessoas são você e Lacey.
Angela tratava seu computador como se fosse uma pessoa de verdade.
Ela dizia que Lacey tinha sentimentos, bons e maus dias, e era autoconsciente. Eu já tinha visto as duas trabalhando juntas por tempo suficiente para cogitar que
Angela podia estar certa.
Uma pausa. – Nós podemos nos meter numa encrenca por isso, você sabe – imaginei se “nós” fazia referência a ela e a mim, ou a ela e a Lacey. – Eu posso perder meu
emprego.
– Suas habilidades são muito negociáveis. Eu não me preocuparia muito.
Um pequeno suspiro.
– Me ajuda a lembrar por que eu sou sua amiga.
– Minha personalidade cativante.
– Sério.
– Provavelmente isso ou a minha beleza incomparável – guiei o carro pela saída de Garrisonville. – Assim que eu desligar, e mando tudo que tenho sobre Basque.
– Pat, se eu encontrá-lo, você tem que me prometer que não vai machucá-lo, que você não vai fazer nada que faça com que eu me arrependa de ter ajudado você.
– Angela...
– Prometa, ou vou falar com Margaret. Me dê sua palavra e eu confio em você.
Considerei minhas opções.
– Pat?
– Eu prometo que não vou machucá-lo – eu disse.
– Então vou encontrá-lo.
Agradeci e encerrei a conversa. Mandei para ela as informações e então passei o resto do caminho para casa pensando em como manteria minha promessa para ela e minha
promessa para Grant Sikora.
E eu não conseguia pensar em nenhuma maneira de cumprir as duas.
41
Em casa, encontrei Tessa e Cheyenne na sala de estar, sentadas uma de frente para a outra, jogando xadrez.
– Xeque – Tessa disse, movendo seu cavalo para a posição H7. Quando ela me viu, seu olhar foi direto para o curativo no braço. – O que aconteceu?
– Foi só um arranhão. Como você está?
– Um arranhão?
Cheyenne olhou para mim com preocupação. – Tudo certo com seu braço?
– Estou bem.
– Mesmo?
– Sim.
– Um arranhão? – Tessa repetiu.
– Estou bem.
Ela avaliou aquilo por um momento. Então seus viram minha nova camiseta. – Uau! Você está todo estiloso hoje.
– Rosa é o novo preto.
– Claro.
Cheyenne momentaneamente voltou a examinar o tabuleiro.
– Tá na moda – garanti para Tessa.
Ela fez uma careta. – Na moda?
– Acredite em mim. Estou por dentro de tudo o que está bombando no momento.
– Por favor, diga que você não falou isso.
Cheyenne deslizou sua torre pelo tabuleiro, derrubou o cavalo de Tessa e disse: – Mate.
Tessa voltou sua atenção ao jogo e seu queixo caiu.
– Sério, Pat – Cheyenne levantou-se e veio na minha direção. – Você está bem?
– Está tudo bem. Estou bem. Agora, chega de perguntas sobre meu braço.
Tessa avaliou o tabuleiro, então soltou um gemido.
– Você estava preparando isso nas últimas cinco jogadas.
– Seis.
Ótimo.
Tessa desmoronou na cadeira.
Cheyenne estava ao meu lado agora, mais perto do que uma mera colega de trabalho ficaria. A proximidade falou por si mesma. – Tem alguma coisa que eu possa fazer
por você? – ela disse. – Eu posso ficar se você quiser, eu só precisaria fazer algumas ligações...
Cara, isso era tentador. – Eu vou ficar bem. Mas obrigado. Mesmo.
Ela não parecia acreditar em mim, mas acabou deixando de lado por enquanto. – Eu trouxe seu laptop de volta da reunião do NCAVC – ela apontou para a cozinha. – Está
sobre a mesa.
– Ótimo. Obrigado.
Um leve desconforto tomou conta da sala e mesmo já tendo dito que ela não precisava ficar, senti um desejo crescente de retirar aquilo. Cheyenne pegou a bolsa.
– Bem, acho que vou indo então.
– Espere – eu disse. – Vocês já comeram? – era uma tentativa desajeitada de arrumar um jeito de lhe dizer que eu não acharia ruim se ela ficasse mais um pouco. –
Você querem jantar?
– Na verdade, eu deveria me encontrar com alguém para o jantar na cidade.
– Ah.
– Com Lien-hua.
– Ah.
– Nós nos demos muito bem hoje à tarde. Parece que temos muito em comum. Ela vai me passar umas informações. – Esperei que ela explicasse mais, mas ela parou repentinamente,
deixando as palavras abertas para interpretação.
Consequências não intencionais.
– Bem, eu te acompanho até a porta – olhei para Tessa. – Ei, você pode pegar o diário de sua mãe?
– Por quê?
– Por favor.
Ela me deu um olhar de desaprovação, mas acabou saindo para o quarto.
Cheyenne e eu atravessamos a sala. – Aconteceu um monte de coisas no caso – eu disse. – Tenho certeza de que Lien-hua vai te deixar atualizada.
– Na verdade, falei com sua chefe pelo telefone há cerca de vinte minutos. Ela me deu um resumo.
– Margaret?
Ela acenou com a cabeça. – Entreguei a papelada da operação conjunta hoje à tarde. Ela disse que como comandante da força-tarefa, quis se apresentar para mim. Ela
me disse para comparecer à aula de manhã e então ir para a reunião da tarde com o resto da equipe.
– Então você não a conhecia antes?
– Não.
Hum.
– Que hora será a reunião? – perguntei.
– Está agendada para as 14h, mas acho que vai depender de como a investigação progredir durante a manhã.
Minha aula começava às 14h. – Não conseguirei ir, mas talvez possamos nos encontrar depois. Para eu me atualizar sobre o caso.
– Parece bom.
Estávamos em frente à porta. – Ei – eu disse –, você tem me ajudado muito. Na noite passada e hoje, vindo me socorrer de novo.
– Não contei para você? É o meu novo hobby.
– Além de tiro ao alvo e dançar quadrilha.
– Uma garota precisa ser prendada – ela deu um sorriso preocupado. – Tem certeza de que seu braço está bem?
– Sim. Escute, Tessa falou alguma coisa sobre o que estava acontecendo com ela hoje à tarde? Alguma coisa que eu precise saber?
Cheyenne meneou a cabeça. – Ela não disse, mas parece que minha presença ajudou.
Hesitei por um momento. – Eu odeio ficar te pedindo favores, mas você mencionou que vai jantar em Washington?
– Sim.
– Você poderia me socorrer de novo?
– Sempre que precisar.
Peguei o cartão de Missy Schuel e anotei seu endereço em uma folha de papel. Então o entreguei para Cheyenne. – Você pode levar o diário para Missy? Ela é uma advogada
de...
– Uma advogada? – Tessa estava de pé no fim do corredor, segurando o diário. – Por que você está dando o diário para uma advogada?
– Vou explicar tudo em alguns minutos.
– Agora seria bom.
– Tessa – tentei soar austero, como um pai. – A detetive Warren precisa ir – estendi a mão. – O diário. Por favor. E então poderemos conversar sobre essas coisas.
Após uma breve consideração, Tessa entregou o diário. Eu o folheei para me certificar de que a carta que Paul Lansing havia escrito para Christie estava lá, então
deslizei um pedaço de papel no lugar para marcar a página e entreguei o diário para Cheyenne.
Tessa observava.
– Certo – Cheyenne disse. – Até logo.
– Obrigado novamente.
Então ela saiu e Tessa e eu ficamos a sós.
– Tudo bem – minha enteada estava com as mãos na cintura. – O que está havendo? Por que você deu a ela o diário da minha mãe?
22
– Em um minuto – eu disse. – Você primeiro. Quero saber por que você estava tão incomodada essa tarde e por que estava tão ansiosa para que eu voltasse para casa.
Ela parecia debater consigo mesma se deveria me pressionar ou não, mas então disse: – Tudo bem, eu tenho algo para contar para você, mas não quero que fique bravo.
– Seus olhos focalizaram meu curativo novamente. Afinal, o que arranhou seu braço?
– Uma bala, e não posso prometer que não vou ficar bravo até saber...
– Você levou um tiro!
– Sim, mas agora não estamos falando sobre mim, estamos falando sobre...
– Quem atirou em você?
– Um dos bandidos. Agora, escute...
– Você está bem? De verdade?
– Tessa – certamente meu tom refletiu minha impaciência crescente. – Eu fiz o máximo que pude para chegar logo em casa porque você estava ansiosa para me contar
alguma coisa. O que é?
Ela olhou para mim por um longo e incerto momento. Então inesperadamente saiu da sala, voltou com o laptop, colocou-o ao meu lado no sofá e inclinou a tela para
que eu pudesse ver melhor.
Seu e-mail estava aberto e ela destacou uma sequência de mensagens.
Quando vi de quem eram, uma pontada dolorida de raiva tomou conta de mim.
– Você está trocando e-mails com ele! – o primeiro e-mail de Paul Lansing foi mandado um dia depois de visitarmos Wyoming. Rolei a lista para baixo e vi que o mais
recente havia sido mandado há menos de 24 horas. – Eu disse especificamente para você não trocar e-mails com ele sem que eu lesse...
– Está doendo?
Voltei para o topo da lista e comecei a analisar as mensagens. – O quê?
– Seu braço. Está doendo?
– Claro que está doendo. Uma bala o atravessou. Eu não acredito que você...
– Eca – ela ficou pálida. Sentou-se. – Preferia que você não tivesse contado essa parte.
A cada e-mail que eu lia, me sentia cada vez mais traído.
– Como você pôde fazer isso? Mandar e-mails para ele pelas minhas costas, traindo minha confiança desse jeito.
– Por que é uma traição mandar e-mails para o meu pai?
– Porque eu não te dei permissão para isso.
– Ele é meu... – ela fez uma pausa; deve ter reconsiderado o que estava prestes a dizer, pois deixou a sentença incompleta, jogadas no ar entre nós.
– Mais alguma coisa? – eu disse. – Alguma outra bomba que queira me jogar?
Ela hesitou por um momento.
– Então?
Ela se inclinou, abriu um navegador de internet no computador e clicou em sua página do Facebook.
Outra mensagem.
Às 14h21 daquela tarde.
Tessa,
Me desculpe por ter ficado bravo com você hoje no museu. Eu só queria ter certeza de que você estava segura. Tentei ligar no telefone que te dei, mas você não atendeu.
(Não se preocupe, eu o encontrei.) Eu preferia não ligar no seu celular, não quero que seu padrasto descubra que nos encontramos. Não quero que ele fique bravo e
desconte em você.
Mas precisamos conversar. Ligue para mim ou me mande um e-mail assim que puder.
Com amor,
Papai
Senti um tremor crescente de raiva. – Você o viu? Por isso que você foi para Washington, DC? Para ver Paul? Por isso você cancelou o almoço comigo?
– Eu...
– Você mentiu para mim.
– Não, eu só...
– Você disse que ia até a Biblioteca do Congresso.
– Eu fui.
Meias verdades.
Farsas.
“Com amor, papai”... Ele assinou a mensagem “Com amor, papai”.
Eu podia sentir meu corpo inteiro ficando tenso, a dor no meu braço aumentando.
Tessa me observava inquieta. – Me desculpe.
Apontei para a tela do computador. – Que história é essa de ele dar um telefone para você?
– Eu o joguei fora. Esperei.
– Não. Eu joguei. Eu juro – ela apontou para a tela. – Ele até diz que o encontrou.
– E exatamente quando você ia me contar sobre esses e-mails?
– Eu tentei essa tarde, mas...
– Você tem trocado e-mails com ele há três semanas!
– Fiquei com medo de você ficar bravo.
Soquei o sofá. – Pois eu estou bravo.
Então levantei e fiquei ameaçadoramente alto perto dela, e ela se afastou.
– Eu precisava descobrir por que ele nunca veio atrás de mim e se ele amava ou não minha mãe, coisas do tipo. E ele não amava – sua voz falhou um pouco. – Ele não
a amava.
Apesar do desespero na voz dela, eu ainda estava furioso. – Ele diz aqui que não quer que eu descubra nada sobre isso; que ele não queria que eu descontasse em você.
Por que ele escreveria isso? Foi isso que você disse para ele?
– Não! Eu juro! Eu disse a ele o quanto você me ama, que você faria qualquer coisa por mim, que você salvou minha vida. Mas ele ficou me fazendo um monte de perguntas
sobre você, e foi aí que eu fui embora.
Sua voz estava alterada pela dor, e eu senti a frágil ponte que estávamos construindo nos últimos 16 meses desabando. Mas eu tinha o direito de estar nervoso. Não
disse nada.
– Por favor. Você precisa acreditar em mim.
Eu queria lhe perguntar por que eu deveria acreditar nela agora. Por quê, visto que ela estava me enganando nas últimas três semanas? E provavelmente eu teria dito
isso se a descoberta do que Paul vinha fazendo não tivesse me acertado em cheio.
Ele estava fazendo pesquisa para seu processo.
Ele estava usando Tessa para ferrar com você.
Algo frio e confuso começou a rastejar dentro de mim. – Você contou para ele onde íamos ficar no verão? Foi assim que os advogados dele descobriram para onde mandar
a carta?
Ela estava quieta. – Que carta?
Hesitei.
– Você acabou de dizer que os advogados dele mandaram uma carta – ela disse. – Que carta?
– Tessa, agora o que importa é...
– Diga!
Respirei fundo, analisei as coisas e finalmente prossegui. – Paul Lansing está tentando reivindicar seus direitos como pai biológico. É provavelmente por isso que
ele...
– Reivindicar seus direitos? – ela levou apenas alguns segundos para ligar os pontos. – Você quer dizer minha guarda? Ele está tentando tomar minha guarda?
– Não se preocupe. Eu já falei com uma advogada...
– Ahn? – agora era a vez dela de se sentir traída. – Sério? E quando você estava pensando em me contar tudo isso?
– Eu só soube da carta ontem à noite, depois que você foi dormir; e então, hoje de manhã, você estava dormindo quando eu saí – uma mudança sísmica havia ocorrido
na conversa. Eu estava um pouco desorientado. – Eu não estava escondendo de você. Eu ia te contar hoje no almoço.
Enquanto eu a observava, eu quase podia ver a raiva que ela estava sentindo por mim evaporando e algo mais sombrio tomando seu lugar. Um tremor de medo. – Isso não
está acontecendo – ela disse. – Isso não pode estar acontecendo.
Suas mãos estavam levemente trêmulas.
Estendi meu braço bom para ela. – Venha aqui.
Ela veio até mim e, então tomando cuidado para evitar tocar meu braço ferido, ela se inclinou contra meu peito. E me abraçou de um jeito que partiu meu coração.
Eu não me sentia bem em falar que as coisas iam ficar bem, que tudo daria certo, porque eu não podia garantir nada daquilo, mas então percebi que ela estava chorando
e eu sabia que tinha que dizer algo. – Shh – cochichei. – Não se preocupe. Eu estou aqui. – Eu nunca fui bom nesse tipo de coisa. – Eu sempre estarei aqui para você.
Você sabe disso.
Após um momento longo e doloroso, ela se afastou para olhar para mim. Uma única lágrima redonda escorreu por sua bochecha. – Eu amo você – ela disse, e suas palavras
foram suaves, profundas e verdadeiras.
Enxuguei sua lágrima. – Eu também amo você, Tessa.
– Você não pode deixar isso acontecer. Você não pode deixar que ele me leve.
Então eu disse o que estava hesitante em falar para ela um momento antes. – Não vou deixar que ele te leve embora. Eu prometo.
E essa era uma promessa que eu jurei para mim mesmo que iria cumprir.
Custe.
O que.
Custar.
43
Meia hora depois, quando as coisas já estavam um pouco mais calmas e Tessa se sentia pelo menos um pouco melhor, ela me pediu para contar a ela como levei o tiro,
mas para não contar as partes nojentas.
Obviamente, eu não podia divulgar detalhes do caso, mas contei o que podia sobre a perseguição no hotel e o disparo no porão.
E daquele estranho jeito que tragédias compartilhadas aproximam as pessoas, minha história sobre o tiro fez com que eu me sentisse mais próximo dela, me garantiu
novamente que podíamos ser vulneráveis na frente um do outro, que estava tudo bem.
Quando finalmente abrimos a geladeira para comer algo, já passava das 20h.
Ela encontrou alguma sobra de comida tailandesa e a levou para o micro-ondas. – Vocês não deveriam ter que esperar por reforços?
– Na teoria, sim – peguei duas latas de refrigerante. – Mas nem sempre é assim que funciona.
– Então, essa foi qual? A terceira vez? Quarta vez que você é atingido?
– Apenas a terceira, mas já faço isso há quinze anos e...
– Talvez você não tomasse tantos tiros se seguisse as regras.
– Esse nunca foi muito meu estilo, Raven.
Uma pausa silenciosa.
– Você podia ter morrido, Patrick.
Honestamente, eu não havia pensado sobre o disparo nesses termos, e suas palavras trouxeram uma seriedade repentina para a conversa. – Acho que era possível.
– Me faz um favor?
– Sim?
– Não deixe que isso aconteça.
Inseguro sobre o que dizer sobre isso, respondi simplesmente: – Vou me esforçar.
Após o jantar, conversamos um bom tempo sobre coisas que nunca havíamos compartilhado antes: os anos que ela passou crescendo em Minnesota, seu primeiro namorado,
meus dias de basquete no colégio, a mulher que eu amei antes de conhecer a mãe dela.
Por fim, como uma sobremesa tardia, abrimos a embalagem de brownies veganos que eu tinha comprado para ela na padaria alguns dias atrás. Eu previa que eles teriam
gosto de giz assado, mas eram surpreendentemente bons.
– Esse advogado que você arrumou – ela disse, com a boca cheia de brownie. – Ele é bom?
– É uma mulher, e acho que ela é. Eu nunca trabalhei com ela antes, mas ela foi altamente recomendada.
– E era ela que queria o diário?
– Isso mesmo.
Nós dois mastigamos por um momento, então ela disse: – Não vá atrás dele, tá bom?
– De quem?
– De Paul – outra mordida. – Deixe isso com a advogada.
Senti uma pontada de decepção por ser o tipo de pessoa para quem ela precisava dizer algo assim.
Tenho certeza de que minha hesitação telegrafou meus pensamentos, e decidi mudar de assunto. – Tenho que fazer algumas ligações – eu lhe disse. – Preciso dizer à
advogada sobre Paul ter entrado em contato com você, e eu também deveria entrar em contato com minha chefe, avisá-la que não tenho nenhum osso quebrado em meu braço,
que estarei bem para dar minhas aulas amanhã.
– Talvez você devesse tirar um dia de folga.
– Eu vou ficar bem.
– Sim – ela disse, e quase parecia que estava desapontada. Ela se levantou. – De todo modo, preciso imprimir algumas coisas, de qualquer jeito. Fiz uma pesquisa
para você.
– Sério?
– Sobre aquela Fundação Gunderson e sobre os primatas. Acho que pode ajudar com seu caso.
Hum. Legal.
– Encaminhe os e-mails de Paul para mim, primeiro – eu disse –, para que eu possa encaminhá-los para a advogada.
Uma pausa. – Tudo bem.
Ela saiu da sala e digitei o número da casa de Missy.
44
Missy Schuel ouviu silenciosamente enquanto eu lhe contava sobre os e-mails de Paul Lansing para Tessa e seu encontro com ela mais cedo naquele dia.
– Quem iniciou a comunicação eletrônica entre eles?
– Não tenho certeza.
– E quanto ao encontro?
– Foi ele.
– Encaminhe os e-mails para mim.
– Estou fazendo isso agora – acessei meu teclado.
– Pode ser considerado intimidação se você entrar em contato com ele, então não o faça. Posso te garantir que não ajudaria em nosso caso.
Aliás, sua amiga me entregou o diário. Obrigada.
– Sim.
– Eu tenho alguns outros casos encaminhados, mas vou ler o máximo possível dele amanhã.
– Ótimo. Obrigado.
– Deixei uma mensagem para os advogados de Lansing; eles ainda não retornaram minhas ligações. Vou tentar novamente de manhã. Com sorte conseguiremos marcar uma
reunião na semana que vem. Eles podem não gostar da ideia, mas acho que deveríamos ir para cima assim que pudermos.
Eu a agradeci novamente e quando encerramos a ligação, vi uma mensagem de texto de Lien-hua perguntando como eu estava: ela ficou sabendo do tiro e estava preocupada.
Considerando tudo que estava na minha cabeça e meus sentimentos confusos em relação a ela, não achava que estava pronto agora para a montanha-russa emocional que
seria conversar com ela. Respondi que estava bem, agradeci por ter dado minha aula hoje e disse que ligaria para ela logo de manhã.
Finalmente, liguei para Margaret e perguntei se Mollie Fischer havia sido encontrada.
– Ainda não.
– Vocês procuraram em todos os quartos do hotel?
– Sim, nós...
– Algum vídeo dela indo embora?
– Não. Não se tem notícias dela, e não há nada nos vídeos. Estamos pensando se os assassinos, de algum modo, conseguiram levá-la para algum carro e saíram do estacionamento
antes que o perímetro fosse cercado. Patrick, eu falei com o médico que tratou seu braço...
– Não.
– Não o quê?
– Os horários não batem. Eu estava bem atrás deles. Eles não tinham como tirá-la dali, especialmente se usaram o táxi.
A menos que só um deles estivesse na sala de armazenamento.
Mas como eles teriam descido oito andares de escada com Mollie?
E quem eram as duas pessoas que os filhos da sra. Rainey viram?
– Nós a encontraremos – Margaret respondeu.
– Mas se ela não deixou o hotel, ela tem que estar dentro dele.
– Estamos cuidando disso – seu tom começou a ficar mais tenso e como eu já tinha discutido esse assunto com Doehring mais cedo, levei a discussão para outra direção.
– Você checou o laptop e a bolsa esportiva que Danny Rainey mencionou?
– Nada foi deixado no táxi que eles usaram. Mas nós encontramos a bala que atravessou seu braço. O laboratório disse que foi uma 9 mm, atirada de uma Walther P99
– ela me contou mais alguns detalhes que os filhos de Rainey compartilharam com ela: o homem e a mulher estavam andando; ela era mais magra que a mãe deles e era
muito bonita. Danny achou que já tinha visto a mulher em algum lugar antes, em um programa de TV. O homem tinha cabelo preto e um monte de cicatrizes no rosto e
era “de tamanho bem normal”.
Cicatrizes.
Hum. Deve ficar mais fácil identificá-lo.
Ela tinha obtido uma porção de boas informações das crianças, que não haviam me dito nada. – Onde você aprendeu a fazer aquilo, aliás?
– Fazer o quê?
– Conversar com crianças daquele jeito. Você parecia uma profissional experiente.
– Eu trabalho com crianças todo fim de semana – ela respondeu. – Ontem você me informou que não viu o homem que estava perseguindo...
– como testemunhas oculares nem sempre se lembram de detalhes específicos por horas ou até dias após um evento traumático, eu achei que sabia aonde ela estava querendo
chegar com isso. – Você pensou mais sobre isso? Você pode dar algum tipo de descrição?
– Eu só tive um vislumbre dele na porta da escada e não consegui ver seu rosto. Mas com base nas imagens do vídeo de segurança dele empurrando Mollie para dentro
do hotel, sabemos que ele é caucasiano, de compleição média, tem aproximadamente 1,80 m ou 1,83 m. Ele usou a mão esquerda para apertar o botão do elevador e para
abrir a porta da escada.
– Então, canhoto.
– Muito provavelmente, sim. E ele favorece a perna direita – minha curiosidade estava me dominando. – Você trabalha com crianças nos fins de semana?
– Sou voluntária num abrigo para mulheres agredidas; eu cuido das crianças para elas. Quando você diz que ele favorece essa perna, você quer dizer que ele coloca
mais peso sobre ela ou menos?
– Menos peso – era como se estivéssemos mantendo duas conversas ao mesmo tempo. – Margaret ajudando em um abrigo, isso é impressionante. Esse é um lado seu que eu
não sabia que existia.
– Agente Bowers, existem muitos lados meus que você nunca viu.
Um comentário como aquele implorava por um contexto diferente, mas quando analisei suas palavras, me ocorreu que Margaret Wellingtonna verdade tinha uma vida fora
do Bureau.
Fascinante.
Finalmente, ela perguntou sobre meu ferimento à bala, e eu lhe garanti que estava bem. – Mais uma coisa – sentei-me na sala de estar. – Foi você que disse ao deputado
Fischer para não soltar a informação sobre sua filha, que isso poderia comprometer a investigação?
– Não.
– E quanto à minha filha? Você contou a ele sobre o caso da custódia?
Um curto silêncio. – Que caso da custódia?
Não senti nenhum toque de mentira na voz dela.
Certo. Então, eu teria que lidar com isso tudo quando me encontrasse com Rodale amanhã. – Esqueça.
– Uma última coisa – Margaret disse formalmente. – Por causa de seu ferimento, estou liberando você de suas responsabilidades como professor pelo resto da semana.
Se você estiver se sentindo apto, pode voltar para a sala de aula quando as aulas da Academia Nacional começarem na segunda-feira.
– Não estou ensinando braço de ferro. Estou ensinando estratégias de investigação geoespacial. Eu vou ficar bem.
– Não estou discutindo isso com você. Há questões de responsabilidade em jogo aqui, pelas quais o Bureau precisa estar consciente e responsável.
– Honestamente, Margaret, não é nada de mais.
– Eu já falei com o agente Vanderveld, e ele aceitou assumir suas aulas.
Não Jake.
Por favor, não Jake.
– Margaret, ele acabou com duas grandes investigações nas quais trabalhou comigo.
– Ele é um membro valoroso do NCAVC e um dos criadores de perfil mais experientes que temos. Ele está qualificado para assumir suas aulas por dois dias – ela tomou
fôlego. – Além do mais, eu me informei: a política do Bureau afirma claramente que qualquer um com um ferimento por arma de fogo causado por ação adversária deve
ser liberado do dever, com remuneração, por pelo menos 48 horas.
– Eu não me lembro dessa regra.
– De quantas regras você lembra?
Ok, isso não foi nada legal.
– Mas e quanto ao caso? – eu disse. – Mollie ainda está desaparecida.
Você não pode esperar que eu me afaste e então...
– Vou mantê-lo informado sobre nosso progresso, mas nas próximas 48 horas, você está oficialmente de licença médica.
Não respondi.
– Você entendeu?
Não disse nada.
– Estamos falando a mesma língua aqui ou não?
– Eu escutei – eu disse evasivamente, e deixei como estava.
Uma pausa, enquanto ela certamente pensava no quanto deveria pressionar, mas finalmente ela continuou: – Não se esqueça, preciso do relatório do seu incidente. Eu
gostaria de tê-lo sobre minha mesa às 9h. Além disso, falei com o hospital. Eles disseram que você precisa completar os formulários que recebeu, que ter preenchido
só as respostas B e D não foi suficiente.
Eu tinha a sensação de que aquilo iria voltar para me assombrar.
– Burocracia. Ótimo. Parece divertido.
– Vejo você em alguns dias. Descanse um pouco. Boa noite, agente Bowers.
– Boa noite, Margaret.
Fim da ligação.
E quando ergui os olhos, vi Tessa parada na porta. – Você escutou tudo? – eu disse.
– Mais ou menos. Quero dizer, a sua parte, pelo menos. Eu pude deduzir o resto.
Ela colocou uma pilha de pastas de papel pardo cheias de papéis impressos sobre a mesa. As pastas tinham sido rotuladas “Metacognição em Primatas”, “Agressão de
Primatas” e “Altruísmo em Grandes Primatas”.
Metacognição em primatas? Altruísmo em grandes primatas?
– Era a diretora-assistente Wellington – meus olhos estavam nas pastas. – Não tenho certeza se você já teve o prazer de conhecê-la.
– Alguém já teve?
Oh. Bela frase.
Essa valia a pena lembrar.
Tessa sentou-se ao meu lado. – Ela é sempre desse jeito?
– Bastante – curioso, folheei a pasta do altruísmo. Tessa imprimira mais de uma dúzia de artigos de revistas científicas sobre altruísmo recíproco, empatia cognitiva,
intencionalidade primata e reciprocidade de parceiro específico entre chimpanzés. Eu peguei a ideia do que as frases se referiam, mas não tinha certeza de como esses
artigos poderiam estar relacionados ao caso.
– A palavra inflexível não chega nem perto, né? – Tessa disse, se referindo a Margaret novamente.
– As palavras que chegariam perto não seriam apropriadas para uma garota de 17 anos.
– Aposto que posso adivinhá-las.
– Aposto que você pode.
Enquanto folheava as impressões, fiquei impressionado com a completude da pesquisa de Tessa. – Você fez um ótimo trabalho aqui. Estou orgulhoso de você.
– Espero que ajude – ela estava arrumando o tabuleiro de xadrez.
Fechei a pasta. – Vou dar uma olhada nisso de manhã quando tiver um pouco mais de tempo.
Quando terminou de arrumar as peças, ela silenciosamente girou o tabuleiro de modo que as peças brancas ficassem na frente dela, e então, sem nenhuma palavra, moveu
o peão do rei para E4 e olhou para mim.
Me posicionei em frente a ela e joguei na E5. Tessa favorecia uma abertura Ruy Lopez, então não fiquei surpreso quando ela contra-atacou com um cavalo na F3.
Mas eu tentei a Defesa de Petrov para ver como ela reagiria, então em vez de colocar o cavalo na C6, joguei-o na F6.
Ela me encarou.
Sorriu de um jeito delicado e confiante.
Enquanto o jogo progredia, o estresse do caso começou a se esvair, a dor no meu braço foi diminuindo, e apesar de Tessa e eu não estarmos conversando, parecia que
estávamos nos abrindo um para o outro de maneiras mais profundas que com palavras.
Eu era apenas um pai passando um tempo com sua filha.
Percebi que eram momentos como esse que Paul Lansing estava tentando tirar de mim.
Então fiz uma jogada, ela comeu meu cavalo e eu percebi que precisaria mudar toda minha estratégia ou acabaria perdendo essa partida antes de ela mal ter começado.
45
Oasis Hotel
Vienna, Virgínia
23h47
Após o desastre no Lincoln, Astrid sugeriu que ela e Brad ficassem em um hotel naquela noite em vez de permanecerem em casa, só para garantir.
– Pelo menos tudo deu certo – Brad disse enquanto ela trancava a porta.
– Mas atirar em um agente do FBI foi precipitado. Descuidado.
– Ok.
– Você entendeu?
– Sim.
Isso foi há uma hora.
Agora, ela estava colocando algo mais confortável para deitar, e ele a observava.
Nos últimos minutos, por alguma razão, eles tinham chegado ao assunto de assassinos em série. – Eles levam lembranças – Brad disse. – Os assassinos em série fazem
isso. Para que possam reviver seus crimes, para que possam ter aquela sensação de poder e controle novamente.
Ela já sabia disso, é claro, mas decidiu fingir que não sabia. – Que tipo de lembranças?
– Joias, roupas íntimas, partes de corpos. Em um número surpreendentemente alto de casos, sapatos.
Assassinos em série.
Como Brad.
Mas não como ela. Ela nunca matou ninguém, não na vida real. Sempre fora ele.
Ela planejou assim desde o começo.
Caso algum dia eles fossem pegos.
Não, ela não era uma assassina. Apenas uma espectadora. – Nós mantemos um tipo diferente de lembrança – ela disse, voltando para a conversa.
Ele olhou para ela com curiosidade.
– No freezer – ela acrescentou.
– No freezer?
– Prisão, nosso pequeno aquário.
Um olhar interrogativo.
– Nunca contei para você? Sobre o aquário?
– Acho que não.
Ela entrou no banheiro para se refrescar. – Você disse uma vez que teve um cachorro, quando era criança.
– Brandi. Ela era uma pastora-de-shetland.
– Eu nunca tive um bicho meu, mas minha irmã teve – ela já tinha contado a ele histórias sobre sua irmã Annie para ele. – Um peixinho dourado chamado Douradinho.
– Annie tinha um peixinho dourado chamado Douradinho.
– O que posso dizer? Sempre fui a mais criativa da família – ela lavou o rosto. – Douradinho vivia em um aquário sobre a penteadeira de nosso quarto; enfim, uma
noite Annie e eu tivemos uma briga. Eu não lembro do motivo – quem deveria ajudar nosso pai com a louça, talvez. Algo do tipo. Mas eu acabei tomando a bronca, e
Annie passou o resto da noite me provocando. Bem, na manhã seguinte, quando ela acordou, Douradinho tinha sumido.
– Você jogou o peixinho dourado dela na privada e deu descarga?
– Não.
Astrid terminou o que estava fazendo no banheiro. – O aquário do Douradinho tinha sumido, e Annie o procurou por toda parte. Era sábado, mas meu pai trabalhava nos
fins de semana, então estávamos em casa sozinhas. Annie era maior que eu, mais forte, e me bateu. Muito. Mas eu não reclamei de nada. Ela esvaziou a lixeira, não
encontrou nenhum vidro, procurou em todos os lugares do lado de fora.
Nenhum sinal do peixe ou do aquário em lugar nenhum.
Ela olhou para ele para ver sua reação.
Ele estava ouvindo com atenção. Ela estava com ele na mão, dava para ver.
– Acho que Annie deve ter procurado por três ou quatro horas naquela manhã. Finalmente, na hora do almoço, achei que já era suficiente. Falei para ela procurar...
– No freezer – ele disse.
Ela sorriu. – Sim. Annie chorou por três dias. Meu pai me bateu por ter feito aquilo, mas cada vez que ele me acertava, eu mal percebia, tudo o que eu conseguia
pensar era em como eu tinha me sentido enquanto Annie estava procurando. A sensação foi... – ela procurou pela palavra certa e não conseguiu achar. – Não foi igual
a nada que eu já tivesse experimentado antes.
– Extraordinário – ele disse. – Foi extraordinário.
– Sim – ela se acomodou ao lado dele na cama. – Tudo que eu fiz foi colocar o aquário no freezer e fechar a porta. Simples assim. E então a água começou a congelar
e eu sabia que lentamente, lentamente, se tornaria um bloco sólido de gelo.
– Isso fez você se sentir poderosa.
– Sim.
– Foi assim que você começou?
– Não foi a única coisa – ela pensou por um momento. – Você faz as coisas e então a vida simplesmente continua, mas você tem um segredo, e de certo modo você quer
que alguém abra o freezer para ver o que você fez, para ver sua obra, mas você não conta para eles porque enquanto eles procuram, enquanto se perguntam, enquanto
se preocupam, você é dono de uma parte deles.
– Como o FBI, agora – ele disse. – Procurando por Mollie, por nós dois. Nós controlamos uma parte deles.
Ela pensou no jogo atual, mas também nos quatro homens na cadeia por causa dela. O peixinho dourado dos jogos anteriores. Ela poderia soltá-los a qualquer hora;
tudo que precisava fazer era contar a verdade para as autoridades. – Sim.
Então, depois de observá-lo por um momento, ela se afastou e sorriu. – Então, como eu me saí?
– Com o quê?
– Com a história. Convenci você?
Um ponto de interrogação em seu rosto. Então, a decepção crescente. – Você inventou tudo?
– Fui bem, não fui?
– Eu não sabia que era mentira.
Então, sim, ele havia acreditado nela. Ele a observava com um olhar ferido, confuso, o mesmo olhar que ele fez no hotel quando ela deletou a foto de Rusty.
– Não fique emburrado – ela acariciou sua bochecha. – Foi uma boa história, não foi?
Após um momento: – Sim. Foi uma boa história.
– Hora de ir pra cama.
– Ok.
O romance que era sua vida começou a passar em sua cabeça.
Ele ficou distante e distraído durante toda a noite, e aquilo a incomodou, especialmente porque foi ele que falhou com ela mais cedo, sendo tão impulsivo, tão desleixado,
atirando no agente do FBI.
Sim, era verdade que ela o enganara, agora duas vezes no mesmo dia, mas isso não devia ter sido um choque para ele. Afi-nal, muito do relacionamento deles foi construído
sobre a areia de meias verdades e mentiras. Desde o início. Desde o DuaLife.
Esse mau humor e essa imprudência não eram aceitáveis. Em uma guinada silenciosa de emoções, ela se viu conside
rando possibilidades que nunca tinha explorado totalmente.
Ela começou a se perguntar se ele não estava se tornando um fardo.
A ideia a fez se sentir desconfortável. Ele era o pai de seu futuro filho e ela o amava, mas agora ela percebeu que se as coisas chegassem a esse ponto, ela precisaria
estar pronta para fechar a porta do freezer nesse pequeno e cicatrizado animalzinho de estimação que descansava em seus braços.
E, para sua surpresa, achou a ideia sedutora.
Talvez até extraordinária.
46
Quinta-feira, 12 de junho 5h15
Meu braço estava me matando.
Não sou um grande fã de remédios, então, na noite passada, apesar de já ter tomado os antibióticos, pulei a segunda dose de remédios que o médico me receitou e,
como resultado, o ferimento à bala doeu e latejou a noite toda, deixando meu sono leve, irregular e esporádico.
Finalmente, quando a luz do dia entrou pela minha janela, desisti de lutar para dormir e saí da cama.
E então tomei os analgésicos idiotas.
Sem exercícios hoje, mas me lavei e, enquanto me vestia, reparei no pingente de São Francisco de Assis que ganhei de Cheyenne repousado sobre minha cômoda, onde
eu o deixara quando nos mudamos para a casa para passar o verão.
Mês passado, quando eu estava me preparando para ir depor no novo julgamento de Richard Basque, ela me deu o pingente, explicando que São Francisco é o santo padroeiro
contra a morte solitária. “Ajuda a me lembrar por que faço o que faço. Vai ser bom para você estar com ele no julgamento. Para se lembrar das mulheres que ele matou.”
Eu sabia que ela era católica, e suas palavras me ressaltaram o quão a sério ela levava sua fé. – Não se preocupe, eu consigo arrumar outro.
Não sou muito religioso ou supersticioso, mas o gesto significou muito para mim, e eu aceitei o pingente.
Agora, quando o peguei, não pude deixar de pensar no que Lien-hua mencionara, de que Mollie Fischer teria se livrado do medalhão que Rusty lhe deu se ela realmente
tivesse terminado com ele.
Então talvez você não devesse guardar o pingente...?
Mas Cheyenne e eu nunca havíamos terminado, nem sido um casal. Na verdade, nós só saímos juntos uma vez, e foi apenas um falso encontro, pois Tessa tinha ido junto.
Falso encontro ou não, escorreguei o pingente para o meu bolso, escolhi uma camiseta larga o suficiente para esconder o curativo do meu braço, ignorei a tipoia e
fui para a cozinha tomar café da manhã.
Margaret deixou claro que não queria que eu trabalhasse no caso hoje, mas de jeito nenhum ela poderia desligar essa parte do meu cérebro por 48 horas.
Além do mais, nós ainda não havíamos encontrado Mollie, e havia uma chance remota de ela ainda estar viva. Então, após comer alguma coisa e coar um pouco de Yirgacheffe
da Etiópia, acessei a internet e entrei nos arquivos do caso para ver o que havia sido adicionado desde a noite passada.
O laboratório do FBI confirmou que a mulher encontrada no instituto de pesquisa de primatas era, de fato, Twana Summie. Sua família foi contatada e, lendo o registro
da autópsia, pensei nas palavras que provavelmente foram ditas a eles:
“Sua condição foi comprovadamente fatal.”
“Chegamos tarde demais para salvá-la.”
Banalidades.
Sem dúvida, os policiais acompanhariam a família e os amigos dela, fazendo as perguntas típicas: você sabe de alguém que poderia querer fazer mal a ela de algum
modo? Ela mencionou se iria encontrar alguma pessoa no dia em que desapareceu? Ela estava agindo de modo estranho antes de desaparecer? Ela conhecia Rusty Mahan
ou Mollie Fischer?
E, claro, eles verificariam sua agenda e seu calendário, checariam suas chamadas telefônicas recentes, procurariam e depois interrogariam as últimas pessoas que
a viram viva.
Durante meus seis anos como detetive de homicídios em Milwaukee, eu tinha feito minha cota dessas perguntas e perseguido esses tipos de pistas, e me lembrava de
como era desanimador entrar em um beco sem saída atrás do outro.
Ainda agora, dadas as ações inescrutáveis dos assassinos dessa semana, trocando a placa do carro, encenando as cenas do crime, usando técnicas elaboradas de despiste,
nos desafiando a decifrar suas pistas e a prever seus próximos passos, eu tinha a sensação de que mais becos sem saída do que o normal estavam no nosso horizonte.
Continuei lendo.
A força-tarefa estava compilando uma lista de outros suspeitos potenciais. Até agora, eles coletaram centenas de nomes de denúncias e de históricos de centenas de
infratores conhecidos que haviam cometido crimes violentos em Washington, DC e nos estados vizinhos. A lista de suspeitos estava aumentando, e não diminuindo, a
cada hora. Na verdade, mais dois nomes apareceram na tela enquanto eu estava lendo o relatório.
A equipe ainda estava procurando por Aria Petic.
Nenhum DNA foi encontrado na luva de látex deixada no estacionamento. Aparentemente, ela nunca foi usada.
Surpreendentemente, a ERT não encontrou nada útil na van com acesso para deficientes, exceto por uma nota fiscal da semana passada de um posto de gasolina que não
tinha nenhuma impressão digital nem evidências de DNA que Mollie, Twana e Rusty estiveram na parte de trás. Eles acompanharam, mas a nota não os levou a lugar algum.
Nenhuma impressão utilizável no botão do elevador que o suspeito apertou; então, evidentemente, ele evitou tocar nele com a ponta do dedo ou tinha limpado o botão.
Beco sem saída atrás de beco sem saída.
O dr. Trower, médico forense do Distrito de Colúmbia, confirmou que Twana morreu pelo ataque dos chimpanzés. As mordidas em seu pescoço fizeram com que ela morresse
de hemorragia.
Porém, de acordo com o médico, havia lacerações em seu rosto que não poderiam ter sido causadas pelo chimpanzés. Ele especulou que, como chimpanzés consomem sangue,
os assassinos infligiram esses ferimentos antes dela morrer para atrair a atenção dos animais. Apesar dessa teoria ainda não ter sido confirmada, parecia uma explicação
plausível para mim.
Até o momento, não havia ligações claras entre Twana Summie e Mollie Fischer, Rusty Mahan, o deputado Fischer ou o centro de pesquisa. E a única ligação que Twana
parecia ter com o Lincoln Towers Hotel era o uso de seu cartão de crédito para pagar pelo quarto: o número do cartão de crédito que de algum modo não aparecia nos
registros do hotel. O que servia de evidência de que um dos assassinos era um hacker habilidoso.
Pensei em Twana por um momento. Era completamente possível que os assassinos a tivessem escolhido simplesmente por causa de suas similaridades físicas com Mollie
Fischer, mas, se isso fosse verdade, eles ainda precisaram encontrá-la e segui-la antes de sequestrá-la. E isso era uma pista de onde eles estiveram no começo da
semana.
E como espaço de consciência se correlaciona com padrões de movimento, também era uma pista de onde eles poderiam estar agora.
Peguei as anotações que eu tinha feito ontem à tarde, enquanto esperava o médico olhar meu braço, e folheei até chegar na lista de locais relacionados com os crimes.
• Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson: habitat dos chimpanzés, estacionamento, sala de pesquisa (para a droga), centro de controle de segurança, outro??
• Lincoln Towers Hotel: quarto 809, o estacionamento, o elevador de serviço, o depósito no nível inferior, outro??
• A van na vaga para deficientes.
• Os pontos de embarque e desembarque do táxi, e o próprio táxi.
• A ponte da Connecticut Street onde o corpo de Rusty foi encontrado.
• Williamson’s Electronic Store – possivelmente.
• As residências, endereços de trabalho e padrões de deslocamento de Rusty Mahan, Mollie Fischer, Twana Summie e Aria Petic.
Apenas uma rápida olhada na lista me fez perceber que eu tinha informações suficientes para um perfil geográfico inicial para começar a afunilar o local mais provável
da base de ação do assassino.
Anotei algumas perguntas:
Qual é o significado desses locais de cena do crime para os assassinos? Por que o centro de primatas? O Lincoln Towers? Qual é a ligação entre os dois? Como a vida
do assassino teria se cruzado com a de Mollie Fischer? De Rusty Mahan? De Twana Summie? Do deputado? Quem era a mulher que fugiu do Lincoln Towers Hotel com o homem
não identificado? Aria Petic? Como os assassinos conseguiram tirar Mollie Fischer do hotel? Eles tiraram?
Olhei para essas duas últimas palavras, pensei novamente no que eu sabia sobre o caso e então escrevi uma última pergunta, uma perturbadora, mas que precisava ser
considerada: Mollie Fischer foi realmente sequestrada?
47
Fiquei olhando para a pergunta. Pensei no que sabíamos até agora: Mollie estava desaparecida; ela não era a vítima que encontramos no centro de pesquisa; ela foi
levada de cadeira de rodas, aparentemente inconsciente, por um homem não identificado, mas até então não havia evidência de que ele tinha causado mal a ela. Até
onde sabíamos, apenas duas pessoas saíram do hotel, e se o suspeito masculino era uma daquelas duas pessoas e Mollie Fischer, em vez de Aria Petic, era a segunda,
estava explicado por que seu corpo não havia sido encontrado.
A situação parecia inacreditável para mim, mas eu já tinha trabalhado em casos anteriores com tantas reviravoltas que eu não queria descartar nenhuma possibilidade.
Ralph estava em Michigan e Margaret ordenou que eu não trabalhasse hoje, então mandei um e-mail para Doehring com minhas ideias e pedi que ele mandasse um policial
para verificar todo mundo que estava registrado no Lincoln Towers Hotel ontem para ver se conseguíamos ligar os pontos entre algum dos hóspedes e Mollie ou Twana.
Também pedi que ele procurasse melhor no passado de Mollie por alguma possível conexão com atividades criminosas, confirmadas ou suspeitas.
Então mergulhei no perfil geográfico.
Mapas cognitivos se diferenciam não apenas por causa dos relacionamentos das pessoas com seus arredores, mas também por causa dos relacionamentos entre as pessoas:
se são casadas, solteiras, divorciadas, assim como idade, gênero, raça, classe social e a disposição atual da cidade onde vivem.
Cada um de nós só é intimamente familiar com uma pequena fração da área total de nossa cidade ou de nossa região rural. E eis a chave: o espaço de consciência de
uma vítima quase sempre se sobrepõe, pelo menos por alguma extensão, ao espaço de consciência do infrator. O que faz sentido, porque suas vidas se cruzaram pelo
menos no momento do crime.
Então, era aí que eu começaria, pelas rotas de deslocamento conhecidas e pelo espaço de consciência das vítimas. E eu poderia determiná-los pela localização de suas
compras mais frequentes com cartão de crédito, suas filiações a clubes, localização GPS de suas ligações telefônicas e assim por diante.
Coloquei o celular com o projetor de holograma sobre a mesa na minha frente, conectei-o com um cabo ao meu laptop, posicionei minha caneca de café ao lado do computador
e comecei a trabalhar.
6h02
A diretora-assistente-executiva do FBI, Margaret Wellington, não dava comida de cachorro enlatada para seu golden retriever de raça pura, Lewis.
De jeito nenhum.
Apenas comida gourmet, e agora, enquanto ela abria a embalagem, ele deve ter ouvido o barulho, pois veio correndo para a cozinha. Balançava o rabo alegremente.
– Bom dia, Lewis – ela afagou seu pescoço e encheu a tigela. Após cheirar a mão dela, Lewis virou-se para a comida.
Ela pegou suas coisas e foi na direção da porta.
Margaret tinha o costume de sair para o trabalho às 5h30, principalmente para evitar o trânsito de Washington, DC, mas também para pegar o máximo de trabalho que
podia antes de Rodale encher seu prato com mais ainda.
Hoje, no entanto, ela estava mais de trinta minutos atrasada. E isso não a deixava feliz, especialmente sabendo de sua agenda lotada para o dia.
Além do caminho até a cidade, ela tinha pelo menos três horas de trabalho para fazer antes da coletiva de imprensa marcada para as 9h.
Impossível, mas ainda assim esperavam que ela fizesse tudo.
Ela não ligava de falar com a imprensa, caía bem para ela, mas ela não gostava de limpar a bagunça dos outros. E, até agora, era nisso que esse caso estava se transformando:
uma completa bagunça.
Primeiro, ela tinha o clamor público pela identificação errônea de Fischer da vítima do homicídio na terça-feira à noite. Os blogueiros de direita tiveram um dia
cheio com aquilo: “Se ele não conhece nem a própria filha, como pode saber o que é melhor para o país?”
Estupidez.
Além de falta de escrúpulos. Tirar vantagem da perda de um familiar somente para ganho político.
Isso a deixava furiosa.
O erro de Fischer pode resultar em um processo contra o Bureau, ainda que o médico forense que falhou em verificar a identidade da jovem fosse funcionário da cidade
e não do FBI. É isso que acontece nessas investigações conjuntas, incompetência e linhas de autoridade confusas. E nesse caso, como Rodale a designou para comandar
as coisas, a batata quente sobrava para ela.
Ela precisava lidar não apenas com a desonra das relações públicas do Bureau, mas também com a perturbada família Summie, com o inabalável deputado e seus comparsas
e uma equipe de investigação que só diminuía.
O agente Hawkins estava em Michigan.
O agente Bowers estava se recuperando.
Ontem à noite, antes de falar com Bowers, ela leu o relatório do hospital sobre seu ferimento à bala e sabia que era mais sério do que ele estava dizendo.
A recuperação dele era necessária para o bem da investigação, assim como das aulas da Academia Nacional que começariam na segunda--feira. Apesar de sua impertinência,
ele era o instrutor mais qualificado do Bureau em mapeamento criminal e análise de localidade, criminologia ambiental e investigação geoespacial, e ela não podia
se dar o luxo de ficar com ele fora de ação e arriscar diminuir a reputação da Academia como a melhor instituição de treinamento de força policial do mundo.
Então, sim, ele precisava de descanso, mas o conhecia bem o suficiente para imaginar que ele não era o tipo de pessoa que ouvia conselhos de médicos. Então, para
o bem dele, ela citou uma falsa política do Bureau sobre agentes feridos em ação terem que tirar licença médica por 48 horas.
E ele realmente parecia ter acreditado.
Enquanto pensava sobre ele, reparou que uma das poucas características que ela tinha em comum com Patrick Bowers era essa: nenhum deles acreditava em coincidências.
Ela serviu em um comitê no inverno passado para um programa do Departamento de Defesa que foi encerrado em fevereiro e, por causa da natureza do projeto que o comitê
supervisionava, ela tinha quase certeza de que não era coincidência os assassinos terem escolhido o instituto Gunderson. Porém, por causa de implicações sociais
e políticas do Projeto Rukh, ela precisava agir com cautela e confirmar suas suspeitas antes de revelá-las para a força-tarefa.
Até o momento, era trabalho dela manter todos esses pratos girando no ar e, apesar de sua experiência e perspicácia administrativa, ela não tinha certeza de que
conseguiria.
Mas enquanto pegava a rodovia e dirigia até o trabalho, ela dizia a si mesma que conseguiria.
48
Demorei mais de duas horas para delimitar uma possível zona de ação onde o assassino devia morar ou trabalhar, e acabei com um raio de dez quadras no bairro comercial
da cidade. Não era tão preciso quanto eu gostaria, mas pelo menos era um ponto de partida para nós enquanto começávamos a avaliar os endereços da casa e do trabalho
das pessoas na crescente lista de suspeitos.
Eu estava mandando os dados via e-mail para Doehring quando ouvi Tessa se mexendo em seu quarto.
Ela normalmente não sai da cama até pelo menos 10h, e ainda não era nem 8h30. Imaginei que o impacto emocional por ter descoberto sobre o caso da custódia havia
tirado um pouco do sono dela.
Como eu não queria que ela acabasse vendo meu trabalho, desliguei o holograma e alguns minutos depois ela entrou na cozinha, ainda com os olhos inchados e de pijama,
mas pelo menos já um pouco consciente.
– Bom dia, Raven – eu disse.
– Bom dia – ela disse. Ela se mexia em câmera lenta. Parecia um zumbi.
– Dormiu mal?
Ela se serviu de uma caneca de café, tomou um gole longo e lento.
– Sim – então gesticulou na direção do meu braço. – Estava preocupada com você.
– Comigo?
– Seu arranhão.
– Ah, obrigado. Está melhorando. Então quer dizer que você tem um lado sensível, afinal.
– Sim, claro – ela olhou para meu telefone, meu laptop, anotações feitas à mão. – Estou vendo que você já está trabalhando duro, desobedecendo sua chefe.
– Pensei em começar cedo.
– Deixe-me adivinhar... – ela bocejou. – Você está tentando remover as conjecturas com os fatos até que apenas a verdade permaneça? Algo assim?
Olhei para ela. – Você acabou de inventar isso?
Ela deu de ombros e passou uma mão cansada pelo cabelo. – Soava como algo que você diria.
– Eu posso querer usar isso em minhas palestras.
– Você deve estar desesperado por algum material – ela esvaziou a caneca e a encheu novamente.
Coloquei meu computador de lado. – Sério, Tessa. Você está bem?
Ela deu de ombros novamente. – Você sabe – outro bocejo. – Preciso me vestir.
Enquanto ela tomava banho, passei algum tempo finalizando a papelada de Margaret e os formulários para o hospital. Logo depois, o chuveiro foi desligado e comecei
a folhear uma parte da pesquisa sobre primatas que Tessa havia imprimido.
Tinha folheado dois artigos quando o programa de videoconferência do meu computador apitou e me avisou que Lien-hua estava on-line.
Após um momento de reflexão, digitei: “Bom dia”.
Esperei.
Não demorou.
“Ligue sua câmera”, ela escreveu. “Para a gente conversar”.
Liguei.
O rosto dela apareceu, um vaso de flores arrumadas artisticamente ao lado dela. Então, ela estava em sua cozinha. Seu cabelo negro ainda estava despenteado, mas
isso não afetava sua beleza.
Lien-hua me avaliou por um momento e então disse: – Eu perguntaria como está seu braço, mas você vai me dizer que está bem, então vou pular essa parte. Como você
está, Pat? De verdade.
– Estou me sentindo como se uma bala tivesse atravessado meu bíceps e só dormi algumas poucas horas.
Meu comentário provocou um sorriso e um pequeno aceno com a cabeça.
– Obrigada. E disseram que você vai ficar bem?
– Não poderei praticar escalada por alguns dias. Fora isso, devo ficar bem.
– Ooh... isso vai ser difícil. Acha que vai conseguir?
– Não tenho certeza. Talvez eu tenha que arrumar algo menos extenuante para fazer. Tipo kickboxing.
– Quando quiser uma aula, é só falar.
Senti a íntima atração que eu nutria por ela voltando. Talvez nunca tivesse passado. – Cuidado, eu posso pegar você.
– Estou ansiosa para ver isso.
Não era fácil conter minha curiosidade sobre o que ela e Cheyenne tinham conversado na noite passada quando foram jantar juntas, mas realmente não era da minha conta
e evitei perguntar sobre isso. – Como foi a fazenda de corpos ontem?
– Perturbadora. Realmente não é o meu negócio.
– Eu sei.
Uma pausa. – Pat, fiquei sabendo que Margaret o colocou em licença médica pelos próximos dois dias.
– É só um boato desagradável.
Ela acenou com a cabeça suavemente.
O silêncio tomou conta da conversa, e eu podia sentir o clima mudando, se aprofundando. Finalmente ela disse:
– Preciso te contar uma coisa.
Esperei.
Ela continuou lentamente. – Quando eu soube que você foi atingido, eu... Pat, tudo entre nós, seja o que for que deu errado, quando eu descobri que você havia se
ferido daquele jeito, tudo pareceu tão insignificante. Tão irrelevante – ela tirou uma mecha rebelde de cabelo de cima dos olhos. – Eu fiquei tão preocupada com
você!
Inconscientemente, reparei que pensamentos sobre Cheyenne estavam rondando dentro de mim, disputando minha atenção. Espantei-os. – Eu devia ter ligado para você
na noite passada...
Lien-hua balançou a mão pelo ar, como se estivesse apagando qualquer erro do passado. – Tudo bem. Eu acabei ligando para Ralph, ele havia acabado de chegar em Michigan.
Ele me disse que você ia sobreviver, a menos que ele o matasse por ficar choramingando.
Eu queria contar para ela que ele tinha arrancado a intravenosa do meu braço e que doía, e que havia uma porção de agulhas e tudo mais, mas percebi que aquilo não
soava muito másculo. – Bem, é muito atencioso da parte dele.
Outra pausa e novamente parecia que o momento se aprofundava, encolhendo o espaço entre nós. – Eu gostaria de te ver – ela disse –, mas vou ficar no posto de comando
na central da polícia a maior parte do dia. Você vai estar na cidade hoje?
– Na verdade, Vanderveld vai assumir minhas aulas. Tenho uma reunião com Rodale ao meio-dia. Então, sim. Estarei em Washington, DC para isso.
– Tem uma reunião marcada para as 14h. Se sua reunião não demorar muito, gostaria de almoçar comigo depois? Posso ficar até 13h30.
– Almoço parece bom. Eu te dou um toque quando estiver pronto para sair do quartel-general.
– Ok – ela me sorriu com os olhos e eles irresistivelmente me levaram para o mundo dela. – Nos falamos mais tarde.
– Até mais tarde.
Quando finalizei a conversa, reparei em Tessa, com sua sobrancelha erguida, esmalte preto recém-aplicado e usando uma minissaia sobre uma calça legging preta, me
observando da porta.
Patrick estava olhando sério para ela.
– O quê? – ela perguntou.
– Você arrumou um péssimo hábito de ouvir minhas conversas.
– Na verdade, sempre tive esse hábito, mas você só está reparando agora – ela entrou na cozinha. – Problemas com garotas, é?
– Não.
– Ahn-ham – ela se sentou na frente dele. – Então, você está confuso sobre as duas? De qual delas você deveria ir atrás.
– Não estou com problema nenhum – ele grunhiu. – Não estou confuso. E você está pensando que é quem? O dr. Phil?
– Negação. Não é um bom sinal.
Ele esperou. Provavelmente sentindo que no fim das contas fugir das perguntas dela seria uma batalha perdida, soltou um pequeno suspiro e admitiu: – Certo, talvez
um pouco confuso. Mês passado Lien-hua terminou comigo e agora, bem... Não sei o que pensar.
– É. E a detetive Warren está aqui.
Ele olhou para ela pálido.
Ah, você tá de brincadeira comigo.
– Introdução a Relacionamentos, Patrick: o que faz uma garota ficar mais interessada do que nunca em um cara?
– Não sei. Eu...
– Se liga! Outra garota interessada no cara.
– Ah. Entendi.
– Então, com qual delas você quer ficar?
Ele pensou por um momento. – Honestamente, não tenho certeza.
– Bem, continue desse jeito que você vai acabar sem nenhuma.
Seu rosto mostrava curiosidade. – Por que você diz isso?
– Nenhuma mulher quer ser deixada sozinha enquanto você está solto por aí procurando alguém melhor.
– Eu não estou deixando ninguém sozinho.
– Você está flertando com as duas.
– Não estou, não.
Uma pausa.
– Se você está dizendo...
– Não é isso que estou fazendo.
– Tá bom.
– É sério.
Ela deu de ombros. – Certo. Entendi.
Ele cruzou os braços. – Pare com isso.
– Parar com o quê?
– De concordar comigo.
– Você não quer que eu concorde com você?
– Toda vez que você concorda comigo, dá pra ver, é só outro jeito de você discordar de mim sem que eu perceba.
– Eu deveria concordar com isso? Ou não?
Ele abriu a boca como se fosse responder, então a fechou.
Ele olhou para o relógio, obviamente tentando arrumar um jeito de escapar da conversa. Então se levantou, pegou as anotações sobre os primatas, seu telefone, uma
prancheta e o laptop e os enfiou em sua bolsa do computador. – Preciso sair, Tessa.
– Para onde?
– Tenho uma reunião com o diretor Rodale.
Ela acenou com a cabeça na direção do computador. – Durante sua conversa você disse que sua reunião era ao meio-dia.
Ainda faltam umas três horas.
– Vou tentar falar com ele um pouco mais cedo.
– Para ter mais tempo para almoçar com a agente Jiang?
Ele pegou a chave do carro. – Estou indo agora.
– Mas e quanto a mim?
– Bem, eu estava pensando que você poderia ficar aqui.
– Sozinha?
Ele olhou para ela. – Você já é crescidinha.
– Paul sabe onde eu moro, e ele está tentando me encontrar, lembra? Conversar comigo sem você por perto. Tem certeza de que quer me deixar aqui sozinha?
Suas palavras pareceram surtir efeito.
– Tudo bem – ele disse finalmente. – Vamos.
Ela pegou a bolsa. – Espero que a agente Jiang goste de comida vegetariana.
49
Astrid tinha nove anos quando aconteceu.
Sua mãe morrera durante o parto e ela era filha única.
Não havia nenhuma irmã Annie, é claro. Ela mentira para Brad sobre isso desde o começo... Seu pai não trabalhava nos fins de semana... O peixinho dourado tinha sido
de Astrid, e foi um menino da vizinhança que colocou Douradinho no freezer, dizendo para ela depois que foi tudo uma brincadeira e que ela não devia fazer tanto
drama por causa daquilo.
Foi Astrid, e não a imaginária Annie, que chorou por três dias quando Douradinho foi encontrado morto.
E claro, seu pai não tinha batido nela, nunca teria encostado a mão nela, ele não era esse tipo de homem.
Mas ela não queria parecer vulnerável ou fraca para Brad, então tinha inventado um segundo passado, uma vida dupla, apenas com verdades suficientes para que as coisas
parecessem críveis.
Apesar de seu pai ter sido bom para ela, mesmo quando criança, Astrid percebia que algo não estava certo. Muitas vezes ela o ouvia chorando quando estava sozinho.
Às vezes de manhã, antes do trabalho, às vezes tarde da noite, às vezes em seu escritório quando ele deveria estar preparando as aulas que dava na faculdade.
Ela finalmente se conformou com a ideia de que talvez ele chorasse porque algo dentro dele estava quebrado.
Era uma explicação que fazia sentido para uma criança.
Foi ela que o encontrou naquela noite de maio.
Ele não havia chorado naquele dia. Apenas olhou para ela com um olhar distante e triste e lhe disse que a amava muito e que sempre a amaria, e perguntou se ela entendia
aquilo, se realmente entendia. E ela respondeu que claro que entendia, e então ele a segurou perto de si de um jeito que a assustou.
– Eu preciso fazer um trabalho hoje à noite – ele explicou para ela. – Depois que você for dormir. Então se você me escutar no escritório, não se preocupe.
– Tudo bem, papai – ela disse.
Então ele a levou para a cama.
E logo depois, quando ela tinha terminado de ler o livro da Nancy Drew que ele lhe dera de aniversário, e tinha acabado de apagar a luz, um barulho alto veio do
escritório e, então, de repente ela escutou a batida de uma cadeira de madeira caindo no chão, que estremeceu a casa inteira.
Ela se sentou na cama. – Papai?
Silêncio, com exceção de um rangido agudo que vinha do escritório. Quase como o som de um balanço se movendo em um dia de vento no parque.
Ela chamou de novo. – Papai? O que aconteceu?
Nenhuma resposta.
Ela pegou seu bicho de pelúcia favorito, um gatinho chamado Malhado. – Papai?
Nenhuma resposta.
Ela saiu da cama e estava com medo de novo, como estava quando ele lhe dissera, com uma certa urgência, o quanto a amava.
– Papai?
Silêncio.
Ela andou até o corredor, mas ele estava escuro e vazio e parecia se esticar eternamente na frente dela, como se tivesse crescido desde a última vez em que ela havia
passado por ele.
O som repetitivo do rangido agora estava ficando mais e mais baixo.
Ela abraçou o Malhado com força.
Foi na direção do escritório.
Seu pai quase nunca trancava a porta porque, como ele gostava de dizer: – Você é mais importante para mim do que o trabalho, querida. Então, sempre que você precisar
de mim, pode entrar. Um pai tem que ter suas prioridades bem definidas, você sabe.
Mas naquela noite estava trancada, e quando ela o chamou, ele não respondeu. Então, ainda bem que ela sabia onde ele escondia a chave: na cozinha, no armário onde
ele guardava as louças mais bonitas, acima da pia.
Ela não demorou muito para encontrar.
Ela voltou para o escritório.
Então, destrancou a porta, apoiou a mão nela e a empurrou.
A porta se abriu lentamente à frente dela.
Ela viu primeiro seus pés, a cerca de trinta centímetros do chão, e então seus olhos percorreram suas pernas, seu corpo, passando por sua cabeça até chegar a corda
que se esticava retesada da viga do teto que tinha parado de estalar agora. Então o corpo de seu pai girou na direção dela.
E ela viu seu rosto.
E gritou.
Largando Malhado, ela disparou pelo corredor o mais rápido que pôde e se jogou debaixo da cama. Ela estava chorando e tremendo e desejou, desejou, desejou não ter
deixado seu gatinho para trás, no corredor. Desejou não ter visto o que viu.
O rosto de seu pai.
Pensamentos terríveis passavam por sua cabeça. Pensamentos medonhos, assustadores e imagens muito ruins nas quais ela não queria pensar.
Seu pai no escritório.
Seu rosto.
A corda esticada.
Mas os pensamentos não iam embora.
Ela queria ajudá-lo, queria, mas não conseguia.
Não conseguia fazer nada.
Só rezar.
Talvez ela pudesse rezar.
Mesmo sem ter certeza de que Deus existia e de que a ouviria, ela rezou e rezou para que seu pai ficasse bem.
Mas nada mudou. Seu pai não veio ficar com ela.
Deus a ignorou. A casa permaneceu em silêncio.
Tão quieta.
Tão vazia.
Tão imóvel.
Até de manhã, quando ela ouviu a cozinheira chegar, e então passou correndo pelo escritório – de algum jeito ela passou pelo escritório, agarrando Malhado no caminho
– e encontrou a cozinheira de pé na cozinha arrumando as coisas para o café da manhã, e contou tudo para ela.
Seu pai deixou um bilhete com apenas sete palavras: “Desculpem-me por não ter sido mais forte”.
Então vieram as famílias adotivas que a levariam para outras casas se ela chorasse toda hora ou se ela se recusasse a ir dormir porque estava muito aterrorizada
com seus sonhos. E por muito tempo ela não conseguiu parar de chorar, de se isolar nas profundezas de seu âmago e de ficar acordada a noite toda sentada na cama,
olhando para a porta. Mas era solitário ficar indo para novas famílias toda hora, então ela aprendeu a atuar como uma boa menina, uma menina que não estava despedaçada
por dentro.
Atuando, atuando, sempre atuando.
A menina boazinha.
Mas agora.
Agora.
Ela não era mais a criancinha assustada que tremia debaixo da cama e que perdeu a fé no Todo-Poderoso em uma noite fria de maio. Agora ela era uma mulher, forte,
confiante e segura – tudo que as pessoas esperavam de alguém em sua posição altamente respeitada e tão cobiçada.
Algo na lembrança daquela noite, quando ela encontrou seu pai, fez com que a raiva e a decepção que ela sentira de seu homem na noite passada fossem sumindo.
Afinal, ele não havia se desviado muito do plano. Sim, ele havia cometido alguns erros, mas eram perdoáveis.
Ela olhou para seu reflexo no espelho. Estava começando a aparecer, ela tinha ganhado um pouco de peso, mas Brad parecia não ter percebido.
Uma criança.
Um bebê crescendo dentro dela.
Ela ainda não tinha sentido o bebê chutar, mas em breve, muito em breve, a prova da vida dela, ou dele, apareceria.
Quanto mais ela pensava no próprio pai e no pai de sua criança, mais ela considerava contar para ele sobre o bebê.
Talvez estivesse na hora.
De acordo com o plano, hoje ela iria trabalhar, Brad pegaria a placa e o carro e então faria uma visita à casa da diretora-assistente-executiva Wellington, e à noite,
após a explosão, ele passaria pela Academia do FBI para deixar uma pequena surpresa. E então esse jogo acabaria. E eles seguiriam em frente.
Então por enquanto.
Aguardar.
Aguardar e observar.
Ficar de olho nele e, apenas se fosse necessário, colocá-lo no freezer e fechar a porta.
Apenas se fosse absolutamente necessário.
9h48
Margaret Wellington não gostava da sensação de que algo passara batido por ela, então, depois da coletiva de imprensa, em vez de ir direto para o posto de comando
da força-tarefa no quartel-general da polícia, ela voltou ao Lincoln Towers para ver se havia algo que os policiais pudessem ter esquecido na busca por Mollie Fischer.
Ela passou 25 minutos refazendo o caminho que Bowers percorrera quando perseguiu os assassinos pelo hotel, procurando qualquer lugar onde eles pudessem ter escondido
um corpo.
Nada.
Agora, ela fazia uma varredura no saguão.
O átrio se estendia por todos os doze andares, com terraços de jardins e uma queda-d’água estreita que saía de uma rocha falsa à esquerda dela.
A água caía em um fluxo de água que serpenteava pelo chão entre uma rede de pontes e passarelas.
Ela ainda acreditava que, de algum jeito, os assassinos tinham conseguido tirar Mollie Fischer do prédio, talvez pelo estacionamento, o que podia explicar a luva
que foi deixada para trás.
Ou talvez eles tivessem encontrado uma outra maneira.
Ou talvez ela estivesse errada e Mollie ainda estava ali, em algum lugar.
Margaret coçou a cabeça.
O quarto 809, no qual a cadeira de rodas fora encontrada, ainda estava isolado, claro, mas o resto do hotel estava aberto. Na noite passada, o agente Cassidy e a
nova transferida de St. Louis, Natasha Farraday, haviam liberado.
Ainda assim, nenhuma notícia sobre o laptop ou sobre a bolsa esportiva que o garoto Rainey tinha visto nas mãos do homem e da mulher que saíram do beco e entraram
no táxi.
E, honestamente, Margaret não tinha mais ideia de onde procurar por Mollie.
Uma perspectiva diferente poderia ser útil, um novo olhar; então, com Hawkins e Bowers fora da jogada por enquanto, ela telefonou para o próximo agente mais qualificado
da equipe.
– Lien-hua falando.
– Aqui é a diretora-assistente-executiva Wellington. Gostaria que você me encontrasse no Lincoln Towers Hotel. Vamos fazer uma caminhada de busca. Juntas.
50
A caminho de Washington, DC, eu consegui adiantar o encontro com o diretor Rodale em uma hora, remarcando para 11h.
– Na verdade – sua secretária me informou –, o diretor está ansioso para vê-lo.
– Ótimo.
Como Tessa e eu tínhamos algum tempo, ela sugeriu um café, e apesar de já termos tomado um pouco de manhã, ela me convenceu.
Enquanto estávamos na cafeteria, liguei para Doehring e ele me disse que não encontrado nada em sua pesquisa sobre o passado de Mollie Fischer e então, novamente,
prossegui com a hipótese provisória de que ela realmente era uma vítima nessa onda de crimes, e não uma infratora.
Depois de sair da cafeteria, enfrentar o trânsito, ir até o quartel--general do FBI, estacionar, passar pela segurança e conseguir o passe de visitante para Tessa,
já eram 11h.
– Você vai ficar bem esperando por mim?
Ela assentiu e sentou-se na recepção do lado de fora da sala de Rodale.
– Vejo você assim que terminar – passei para ela a senha do Wi-Fi de visitantes. Ela colocou seus fones de ouvido, abriu o laptop para ler mais sobre cognição de
primatas e eu bati na porta de Rodale.
– Entre.
Entrei e o encontrei de pé ao lado da janela que tinha vista para o centro de Washington, DC.
O deputado Fischer estava ao lado dele.
Talvez o corpo de Mollie tenha sido encontrado.
Esperei um deles me dar a notícia, qualquer que fosse.
– Pat – Rodale disse –, acredito que já tenha conhecido o deputado Fischer.
Acenei com a cabeça para ele. – Deputado.
– Ouvi falar que você quase pegou os sequestradores de Mollie ontem – ele disse. – Preciso agradecê-lo por ter ido atrás deles desse jeito. Especialmente após nossa...
bem, minha... as palavras que disse a você no meu escritório.
Hoje ele parecia muito mais destruído pelo que havia acontecido, exatamente como um homem cuja filha estava desaparecida. – Eu sei que você estava transtornado.
– Me disseram que você levou um tiro ontem.
– Sim, mas estou bem.
Esperei; nenhuma explicação veio.
Rodale apontou para uma cadeira. – Por favor, Pat, sente-se.
Nenhum dos dois homens se moveu na direção de uma cadeira ou explicou por que o deputado estava ali, e um clima tenso e desconfortável tomou conta da sala. – Passei
a manhã toda sentado – eu disse. – Se vocês não se importarem, acho que vou esticar minhas pernas também.
Um aceno. – Sim. Claro.
– Houve alguma descoberta no caso? – perguntei finalmente.
Rodale balançou a cabeça.
– Não – Fischer disse seriamente.
Então Rodale foi até sua estante e soltou um suspiro cansado. Ele se aposentaria em seis meses, mas já parecia pronto para largar o trabalho essa tarde. – Estou
num dilema aqui, Pat. Eu quero te elogiar por sua bravura de ontem, pelas suas descobertas nesse caso, mas também sinto a obrigação profissional de repreendê-lo
pela natureza imprudente de suas ações.
Eu não tinha muita certeza de como responder. – Posso entender.
– Sem mais coletivas de imprensa impulsivas.
– Combinado.
– Certo – dava para ver que aquilo era só a ponta do iceberg. – Continuando. Tem um aspecto importante desse caso que preciso contar a você, mas preciso que você
mantenha isso na mais estrita confidencialidade.
Olhei para ele, olhei para o deputado, então de volta para Rodale. – Que aspecto?
O deputado Fischer falou. – O Instituto Gunderson. Acredito que sei o motivo pelo qual aquela jovem foi morta lá.
– E qual seria?
– Você se lembra do Projeto Rukh? – Rodale perguntou. – Em San Diego?
– Claro.
Fevereiro passado, Lien-hua, Ralph e eu descobrimos uma conspira
ção biotecnológica que envolvia pesquisa biológica marinha e avanços recentes na neurociência para criar uma arma altamente secreta para o Pentágono. O dispositivo
podia ser usado para danificar, de modo indetectável, partes específicas do córtex frontal de uma pessoa causando danos cerebrais permanentes ou um derrame.
O caso ficaria para sempre na minha memória não apenas por razões profissionais, mas também por pessoais: em San Diego, um jovem tentou abusar sexualmente de Tessa,
e um dos assassinos que estávamos caçando atacou e afogou Lien-hua, e eu quase não consegui reanimá-la.
– Pensei que o Pentágono tinha acabado com tudo isso – eu disse, me referindo ao Projeto Rukh.
– Eles acabaram – o deputado Fischer respondeu. – Mas uma empresa privada conseguiu adquirir a pesquisa neurocientífica que sobrou. Para um projeto não relacionado.
Não relacionado.
Sim, claro.
– A Fundação Gunderson – eu disse.
Os dois homens confirmaram minhas palavras com seu silêncio.
– Então, você está envolvido com a fundação de algum modo, é isso? – eu disse para o deputado. – Tem alguma legislação no Congresso relacionada a...
– Eu contribuí financeiramente com a fundação, no passado. Sim – ele respondeu –, mas isso é algo que eu gostaria que não chegasse ao público dessa vez.
– Obrigado.
Ele parecia confuso. – Pelo quê?
– Por eliminar possibilidades. Eu posso garantir que se você não quer a informação divulgada, tem alguém lá fora que quer. E essa pessoa pode muito bem estar envolvida
no sequestro de sua filha. Então, a pergunta óbvia: quem poderia querer que os fatos sobre suas doações se tornassem públicos?
– Todos os republicanos do Congresso.
Apesar daquilo parecer uma declaração exagerada, se a pesquisa dos primatas fosse de algum modo eticamente controversa, ele poderia muito bem estar certo. Rodale
olhou para o deputado Fischer, que assentiu. Eu não achei nada bom que o diretor do Bureau estivesse acatando pedidos de um deputado.
Rodale disse: – Eu sei que Margaret o afastou desse caso para que você pudesse se recuperar, mas eu gostaria que você continuasse perseguindo as pistas que tem.
Vou falar com ela. Dar um jeito nisso. Se você estiver disposto.
– Eu estou disposto.
Virei-me para Fischer. – Mande para mim uma lista detalhando todas as suas contribuições para a fundação. Encaminhe todos os e-mails enviados ou recebidos. Tudo.
E eu quero seus registros telefônicos.
Ele hesitou.
– Não se engane, deputado. Alguém vai encontrar essa informação. É melhor que a força-tarefa possa vê-las antes da imprensa.
– Pode confiar nele – Rodale disse para Fischer.
Ele parecia desconfortável com a ideia, mas finalmente aceitou.
Então virei-me para o diretor Rodale. – Você me pediu para manter isso na mais estrita confidencialidade. Como eu posso trabalhar com a força-tarefa se não puder
compartilhar essa informação com eles?
– Por enquanto, apenas o pessoal do nível de comando deve saber sobre as contribuições do deputado para o centro. Eu não quero que nada vaze para a imprensa e prejudique
a investigação.
De fato, se essa informação fosse tão importante quanto eu estava sendo induzido a acreditar, a preocupação do deputado fazia sentido, mas algo não parecia encaixar.
Eu ainda não tinha certeza do porquê de esses dois homens terem escolhido compartilhar essa informação comigo, mas imaginei que poderia tocar no assunto com Rodale
depois que o deputado fosse embora e nós ficássemos sozinhos. Acenei com a cabeça e ele disse que me mandaria os arquivos.
Dei a Fischer meu endereço de e-mail, ele pediu desculpas por ter que ir, mas enquanto ele se aprontava para sair, perguntei: – Deputado, quem falou para você sobre
o caso da custódia?
– Caso da custódia?
– Ontem. Você mencionou o caso da custódia envolvendo minha enteada.
Dessa vez, diferente de ontem, ele foi direto: – Meu irmão.
Choque.
Até onde eu sabia, ele tinha apenas um irmão. – O ex-vice-presidente contou a você?
– Sim.
– Como ele sabe sobre um caso de custódia envolvendo minha enteada?
– Ele conhece o pai biológico da sua enteada. Foi tudo o que ele me disse.
Quê?
– Como?
Ele balançou a cabeça. – Honestamente, não sei. Ele não disse.
O deputado parecia estar falando a verdade, e se estava, isso acrescentava toda uma nova camada de complexidade ao que estava acontecendo.
Significava que Lansing tinha amigos em posições muito altas, e isso não me daria vantagem para conseguir manter a custódia de Tessa.
– Mas por quê? – eu perguntei. – Por que ele contou isso pra você?
– Como envolvia um agente do FBI – ele evitava olhar para Rodale –, e eu tinha proposto cortes no orçamento do Bureau, suspeito que ele estava tentando fazer com
que eu... bem...
– O quê? Me ameaçasse?
– Sugerisse cortes em departamentos estratégicos.
Ele não precisava explicar mais nada.
Se livrasse do agente; ajudasse seu amigo a conseguir a custódia da
menina...
– Quando descobri que você estava no caso que envolvia Mollie, me senti dividido, e eu sabia que precisávamos conversar. No final, acabei dizendo coisas que não
devia para você.
Não achei a explicação totalmente satisfatória, mas era um começo.
Precisava pensar um pouco sobre tudo isso.
Ele nos acenou em despedida. – Eu realmente preciso voltar para o Congresso.
Após sua saída, o clima da sala ainda estava tenso. Muita coisa ainda precisava ser dita ali. – Diretor – eu disse –, ontem você disse para o deputado não declarar
as notícias sobre a verdadeira identidade da vítima?
– Uma declaração como aquela deveria vir do escritório de assuntos públicos ou de um dos diretores-assistentes, você sabe disso, Pat. Não vem do pai de uma garota
desaparecida. Ou de um agente do NCAVC. Temos um sistema que serve para a liberação de informações pertinentes, e esse sistema trabalha para o bem de todos.
– Não de Mollie – eu disse. – Não ontem – ele me olhou com severidade, mas não liguei. Continuei. – Pra começo de conversa, por que você me colocou nesse caso? Você
sabe que minha especialidade é infrações em série, mas quando começamos nisso, sabíamos apenas de um homicídio.
– Nós não concordamos em tudo nos últimos anos, mas sempre respeitamos um ao outro – ele fez isso soar como uma resposta, mas eu não conseguia ver como.
– Sim, eu diria que isso é verdade.
– Você não é o tipo de homem que se envolve em políticas, que está sempre procurando um jeito de passar à frente.
Seus comentários estavam me deixando desconfortável. – Eu sou um investigador, não um burocrata, se é isso que você está dizendo.
– Sim. É isso que estou dizendo. E é por isso que quero você.
Mas se ele não quer pessoas trabalhando nesse caso com um olho em
uma promoção, por que ele designou Margaret para comandá-lo?
– Se eu puder ser franco, senhor, nada disso faz sentido. Parece que a política e as agendas pessoais estão sendo privilegiadas em detrimento da busca de uma pessoa
desaparecida.
Bem-vindo a Washington, Pat.
– Você sabe que isso não é verdade.
– Não tenho certeza se sei.
Ele estava com o semblante carregado.
E então eu me dei conta.
– Os cortes do orçamento. É isso? Algo do tipo “encontre minha filha, mantenha meu envolvimento com esse lugar de pesquisa debaixo dos panos e eu não vou usar a
legislação para cortar os fundos do Bureau”.
Uma mão lava a outra?
Rodale olhou para mim friamente. – Vou fingir que você não acabou de dizer isso.
– Não se preocupe com isso – fui na direção da porta. – Vou mantê-lo informado – eu disse. – Sobre nosso progresso.
Tessa percebeu que eu estava irritado quando me encontrei com ela no saguão. – Você tá bem? – ela perguntou.
– Estou sim.
Continuei seguindo para a saída e ela saiu juntando suas coisas e correndo atrás de mim. – A agente Jiang ligou enquanto você estava lá dentro. Ela me disse que
pode nos encontrar no Jacob’s Deli por volta do meio-dia e meia, se você topar. Ela disse que você sabe onde é.
– Infelizmente, vamos ter que cancelar. Preciso ir a outro lugar.
– Aonde?
– Ao Centro de Pesquisa de Primatas Fundação Gunderson.
51
Lincoln Towers Hotel
Quarto 809
Nada.
Margaret Wellington balançou a cabeça.
Mollie Fischer não pode ter simplesmente desaparecido. Onde ela está?
Lien-hua estava de pé ao lado da cama, cuidadosamente estudando o quarto. – Encontramos a cadeira de rodas aqui, mas não há nenhuma outra evidência física?
– Isso mesmo.
– Mas como pode ser? O vídeo do suspeito empurrando Mollie para dentro do hotel mostra que eles entraram às 13h29. E Pat foi atingido pelo tiro logo depois das 15h.
– Isso quer dizer que pelo menos um deles ficou no quarto com uma mulher sequestrada por aproximadamente uma hora e meia – Margaret disse, seguindo o raciocínio
de Lien-hua – e ainda assim conseguiu não deixar nenhuma evidência forense para trás.
– Isso não é muito provável.
– Não é mesmo.
Margaret pensou: Eles encenaram a morte de Mollie... deixaram a
bolsa dela no habitat... deixaram o carro de Mahan na cena do crime... deixaram a luva no estacionamento...
Eles tentaram nos confundir o tempo todo...
Claro.
– Eles usaram outro quarto – ela disse. – Apenas deixaram a cadeira de rodas aqui para nos desorientar.
Lien-hua pensou naquilo por um momento. – De acordo com o relatório de Pat, havia duas faxineiras no corredor quando ele estava perseguindo os suspeitos. Eu imagino...
– Vamos – Margaret disso, indo na direção da porta. – Precisamos falar com essas faxineiras.
Tessa e eu pegamos burritos de feijão num drive-thru para o almoço e seguimos para o centro de primatas.
Convenci-a a ouvir seu iPod por alguns minutos para que eu pudesse fazer uma ligação; então digitei o número de Lien-hua e, falando baixo para que Tessa não me escutasse,
cancelei o almoço. Depois resumi minha reunião com Rodale e Fischer. Lien-hua escutou atenta e, quando terminei minha explicação, ouvi Margaret falando de algum
lugar incrivelmente próximo dela. – O que está havendo? – perguntei.
– Estamos imaginando se os assassinos não mantiveram Mollie em outro quarto...
Ouvi a voz de Margaret novamente, as palavras eram indistinguíveis, mas ela estava obviamente irritada. – Só um segundo – Lien-hua disse. Ela se afastou do telefone
por alguns segundos, então disse: – Você não vai acreditar nisso: Aria Petic não existe.
– Como assim? Temos imagens dela saindo do instituto.
Ela parou de falar comigo mais uma vez para se informar com Mar
garet, então falou de novo. – Margaret acabou de receber uma ligação de Doehring. Aparentemente, o instituto de primatas terceiriza seus serviços de zeladoria. O
nome de Aria aparece nos registros computadorizados, mas é só isso. Ninguém com esse nome trabalha para eles.
– Como é que só estamos descobrindo isso agora?
– Por que você acha que Margaret está tão irritada?
Inacreditável.
– Então – eu estava pensando alto – os assassinos entram no instituto de pesquisa e inserem um nome fictício nos registros de zeladoria para que a mulher que é vista
saindo do prédio não levante suspeitas imediatamente.
Além disso, como uma empregada terceirizada, o guarda da segurança e a tratadora não teriam que saber reconhecê-la se ela fosse detida.
– Mas acontece que ela não foi nem interrogada – Lien-hua disse. – Na confusão, ela apenas foi embora. Escapou por uma das portas laterais quando os paramédicos
chegarem.
Confusão.
Ouvi Margaret chamar Lien-hua, que consequentemente disse: – Preciso ir.
– Escute – eu estava pensando no incidente do afogamento de Lien--hua em San Diego durante o caso do Projeto Rukh. – Lembra como as coisas aconteceram em fevereiro?
Se esses assassinos estiverem envolvidos de algum modo com os conspiradores de San Diego...
– Eu tomarei cuidado – ela disse. – Eu prometo.
– Tenha muito cuidado.
– Terei.
Após encerrarmos a ligação, vi que Tessa estava olhando pela janela do passageiro, ainda ouvindo música. Estávamos a apenas alguns minutos de distância do centro
de pesquisa. – Olhe, universitários – eu disse suavemente, mais baixo do que quando estava falando com Lien-hua, e a cabeça de Tessa virou na minha direção.
Ela percebeu seu erro e rapidamente evitou contato visual.
– Você ouviu minha conversa – eu disse.
Ela tirou os fones de ouvido. – Quê?
– Ah, lógico. Você vai ter que esquecer tudo que acabou de ouvir.
– Eu só ouvi música. – E então: – Caso alguém pergunte.
Ótimo.
Chegamos ao instituto de pesquisa e parei no andar mais baixo do estacionamento.
Apesar de ter certeza de que o habitat de vidro onde o corpo de Twana havia sido encontrado estaria isolado, a Fundação Gunderson por si só não era mais considerada
uma cena de crime ativa. E fiquei agradecido por isso, pois não teria que deixar Tessa esperando no carro.
– Você leu mais sobre esse lugar do que eu – eu disse.
– Você vem comigo. Mas você não pode fazer nenhuma pergunta relacionada ao caso. Você só está procurando informações relativas à pesquisa com primatas.
– Sério? Vai me deixar ajudar?
– Só com o papo dos macacos, não na investigação. Eu quero saber mais sobre a pesquisa de metacognição. E as finanças... pesquisas eticamente controversas... implicações
envolvidas com política...
– Você disse papo dos macacos?
– Vou apresentá-la como minha assistente de pesquisa – abri minha bolsa do computador e peguei uma prancheta. – Talvez você seja uma estagiária ou algo assim – entreguei-a
para ela.
Vestida daquele jeito, com aquela calça legging preta e o esmalte preto, eu não tinha muita certeza de que meu plano iria funcionar, mas ela parecia ter idade suficiente
para ser uma aluna de faculdade se fôssemos mesmo fazer desse jeito.
Ela olhou para a prancheta. – Para que isso?
– Essa é a identificação mais poderosa do mundo. Se você entrar em qualquer lugar com um ar de confiança e uma prancheta, ninguém vai questionar por que está lá.
– Legal – ela parecia impressionada. – Eu posso fazer um ar de confiança – então uma pausa. – Só não fale papo dos macacos de novo enquanto estivermos lá.
– Certo.
Abri a porta do carro.
Mas então me dei conta de um detalhe.
Fechei-a novamente.
– O que foi? – ela perguntou.
– Você tem certeza de que quer fazer isso? Afinal, aqui é um centro de pesquisa. Os animais estarão todos...
– Enjaulados. Sim, eu sei.
Realmente. não havia um jeito sutil de dizer aquilo. – Eu não tenho muita certeza sobre o que a pesquisa deles envolve, mas...
– Testes médicos. Pensei nisso também.
– E tudo bem para você?
Um longo silêncio.
– Quase todos os avanços médicos nos últimos cem anos vieram de testes em animais. E eu nunca ouvi falar de ninguém, nem mesmo um membro da PETA, que tenha negado
tratamento médico para si mesmo por objeção consciente ao fato de a pesquisa ter sido feita em espécies não humanas.
Sua resposta cuidadosamente montada deixou claro que ela realmente havia pensado nisso. – Bem colocado.
– Mas isso não torna a crueldade correta. Não faz com que o sofrimento seja aceitável.
– Não, não faz.
Pelo olhar dela, dava para ver que ela estava lidando com uma torrente de emoções conflitantes.
Finalmente ela falou, e sua voz ardia de solidão e determinação. – Mais alguns testes de câncer e a mamãe poderia estar viva – ela abriu a porta. – Vamos.
52
O diretor do centro de pesquisa, um homem magro de cabelos brancos com uns cinquenta e poucos anos e o nome incomum de Janz Olan, conduziu Tessa e eu até as salas
de pesquisa que ficam atrás dos habitats de vidro.
Como eu suspeitava, o habitat onde o corpo de Twana fora encontrado ainda estava fechado para os primatas e, para o bem de Tessa, fiquei feliz ao ver que o chão,
apesar de não estar mais coberto de palha, tinha sido esfregado e higienizado e não havia mais nenhum sinal visível de sangue. Ainda assim, os olhos de Tessa percorreram
a área quando passamos por ela, e eu não tinha dúvidas de que ela era capaz de deduzir por que o chão havia sido tão bem limpo.
– Então – o sr. Olan disse, olhando para Tessa –, há quanto tempo você é... assistente do agente Bowers?
– Desde que ele começou a pesquisar a política, a cultura e o desenvolvimento moral dos pongídeos.
Imaginei que aquilo queria dizer macacos.
– Oh – ele disse. – Entendo.
– Sr. Olan – gesticulei na direção de uma das salas de exame. – Explique-me mais sobre seu trabalho aqui. O que exatamente você está fazendo com aparelhos de tomografia,
ressonância magnética e magnetoencefalografia?
– Bem, nossa pesquisa é focada em duas áreas principais: neurociência e cognição.
Lembrei-me das palavras de Lien-hua na terça-feira à noite. – E agressão?
– Isso ficaria dentro da neurociência. Estudos de imagens cerebrais revelaram que a amídala cerebelosa e o córtex frontal são as áreas do cérebro mais associadas
ao medo, à agressão e ao comportamento violento.
Especificamente, analisamos a atividade neural dos chimpanzés, os parentes mais próximos dos humanos. Eles também são a única espécie, além da humana, que mata regularmente
membros adultos da mesma espécie.
– Adultos da mesma espécie – Tessa disse, tomando nota.
Uma pausa, então: – Sim. Chimpanzés também formam grupos e declaram guerra contra outras comunidades de chimpanzés. Alguns até usam suas habilidades em criar ferramentas
para fazer porretes que matam com mais eficácia.
Aquilo era espantoso para mim.
E também assustadoramente humano.
– Então, de certo modo, você está estudando a neurologia da violência – eu disse.
Uma pausa. – Esse é um modo de dizer.
Tentei digerir aquilo, imaginando quais implicações essas descobertas poderiam ter no contexto dos comentários do deputado nas últimas semanas sobre os cortes propostos
no orçamento do Bureau em vista de “uma abordagem mais progressiva na contenção do comportamento criminal”.
Todo republicano no congresso gostaria que sua ligação com o centro se tornasse pública...
– Sim, bem – Tessa disse para Olan –, chimpanzés não são tão aparentados, se você aceitar que Ardi era bípede.
Ele respondeu lentamente. – Sim. Se você aceitar que ela era – ele reconheceu finalmente. – Mas fica claro que nas árvores ela se comportava como quadrúpede.
– Quem é Ardi? – perguntei.
– Não importa – Tessa estava respondendo para Olan, não para mim. – Ela prova que não evoluímos de quadrúpedes como chimpanzés e gorilas.
– Quem é Ardi? – repeti, direcionando a pergunta para ambos.
Olan respondeu: – Ela era uma Ardipithecus ramidus fêmea. Seu fóssil foi encontrado na Etiópia em 1994, mas levou quinze anos de estudos antes que a descoberta fosse
revelada ao público em 2009. E alguns cientistas acreditam que ela andava de pé.
– A maioria – Tessa o corrigiu –, não só alguns.
Meneei a cabeça. – Eu ainda não estou muito...
– Ela viveu há 4,4 milhões de anos – Olan disse impacientemente – e se ela fosse bípede, indicaria que nós não evoluímos dos primatas modernos, mas sim separadamente,
a partir de um ancestral comum.
– O que significa – Tessa interrompeu – que não há elo perdido entre nós e os símios modernos, e que postular as origens humanas a partir do comportamento ou da
biologia de primatas modernos não passa de especulação.
Olan olhou para ela. Piscou.
– Bem – ele disse –, como nenhum membro da família do Ardipithecus ramidus ainda está conosco hoje, nós estudamos chimpanzés, cujo DNA é 96% igual ao DNA humano.
Ela parecia pronta para replicar, mas eu a impedi com um pequeno aceno de cabeça. Eu estava mais preocupado com o foco da pesquisa do centro do que em entender como
alguém tinha andado há quatro milhões e meio de anos. – Me conte sobre a segunda área – eu disse para Olan. – A pesquisa de cognição.
– Sim, bem, talvez eu devesse ter especificado que ela se concentra no campo da metacognição.
Dessa vez eu estava familiarizado com o que ele se referia, mas Tessa me cortou. – Teoria da mente – ela disse. – Consciência, empatia, entendimento.
Ele assentiu.
– Sim. Autoconsciência, as raízes da empatia, a habilidade de entender que os outros têm pensamentos, sentimentos, sensações, assim como você.
Chegamos a uma sala de pesquisa totalmente equipada com uma área de cerca de metal que levava para o habitat dos gorilas.
– Você está dizendo que macacos têm essas habilidades? – perguntei.
– Diferentes espécies de primatas exibem graus variados de comportamento altruísta – ele disse, não exatamente respondendo minha pergunta.
Pensei nas partes da pesquisa de Tessa que eu tinha dado uma olhada. – Assim como empatia cognitiva, certo? E reciprocidade específica com parceiro?
– Sim – Olan parecia impressionado por Tessa e eu aparentarmos saber sobre o que ele estava falando e, conforme prosseguia, parecia se esforçar para provar que sabia
mais.
– Chimpanzés se beijam e se abraçam depois de brigar, às vezes pulam na água para salvar outros chimpanzés, apesar de nenhum chimpanzé poder nadar. Houve casos de
gorilas que avisaram tratadores quando jovens gorilas estavam em perigo, mostrando, assim, que eles são tanto cientes da condição de outras criaturas quanto capazes
de identificar um meio possível de ajudá-los. E quanto à inteligência e à resolução de problemas, alguns gorilas apresentaram QI de 90 em testes para humanos, outros
aprenderam mais de 3.500 palavras na linguagem de sinais, até inventaram sinais para se descreverem.
Eu nunca tinha ouvido falar sobre macacos tentando salvar um ao outro ou fazendo testes de QI humano, e fiquei surpreso. E por algum motivo que eu não pude entender,
vagamente perturbado.
– Um macaco até criou um sinal para solução de limpeza de lentes de contato depois de observar sua tratadora lavar e colocar suas lentes.
– Como era? – Tessa perguntou.
– O gorila combinou as palavras olho e água – ele disse.
Isso realmente era impressionante.
Fiz mais algumas perguntas de praxe e Olan parecia ficar mais e mais impaciente a cada uma delas. – Me desculpe – ele disse finalmente –, mas eu estou terrivelmente
ocupado, ainda lidando com o resultado do incidente de terça-feira à noite perante nossa diretoria e nossos doadores. Somos uma organização sem fins lucrativos e
as doações são essenciais para nossa sobrevivência. Tenho certeza de que você entende. Talvez fosse melhor se um de nossos pesquisadores ou tratadores respondesse
as próximas perguntas.
Na verdade, isso não seria má ideia.
Perguntei se poderíamos falar com Sandra Reynolds, a tratadora que encontrou o corpo de Twana e matou os dois chimpanzés que a atacaram, mas Olan me disse que ela
havia tirado o resto da semana de folga. – Para terapia – ele acrescentou em um tom sinistro.
Ele chamou uma mulher com um ar de intelectual, que aparentava ter quase trinta anos e que estava inclinada sobre um teclado de computador numa sala ao lado. – Dra.
Risel, você tem alguns minutos?
Ela nem sequer nos olhou. – Estou no meio da minha bibliografia – pela sua roupa, dava para ver que ela gostava da cor marrom em todos os tons e matizes.
– O dr. Bowers aqui está investigando a tragédia de terça-feira à noite.
– Que bom.
– Ele trabalha para o FBI.
Finalmente, a dra. Risel olhou para a gente; hesitou um momento e então se juntou a nós.
Após as apresentações, o sr. Olan foi para seu escritório e a dra. Risel nos informou que era psicobióloga e estava com um prazo muito apertado para seu artigo,
então esperou, de braços cruzados, que eu dissesse o que queria, mas eu não tinha muita certeza do que era.
Tessa tomou a frente. – Conte-nos sobre a pesquisa de ARE.
– Autorreconhecimento no espelho – a dra. Risel disse, como se Tessa não soubesse o que a sigla significasse.
– Hum, sim.
A dra. Risel olhou distraidamente pela sala por um momento, então suspirou. – Seria mais rápido se eu mostrasse para vocês – ela pegou um conjunto de chaves e partiu
para os habitats dos gorilas.
Astrid pediu para Brad agir com cautela durante o dia.
Sim, ele precisava arrumar tudo para hoje à noite. Mas isso não levaria muito tempo.
Então, ela tinha que mantê-lo sob controle.
Ela pediu que ele a informasse de hora em hora, por telefone, exatamente o que estava fazendo
Ótimo.
Um passo de cada vez, para ter certeza de que ele não estava cometendo algum deslize novamente.
Ela decidiu que essa noite ela contaria para ele sobre o bebê.
Hoje eles respeitariam os horários.
Terminariam o jogo.
E então à noite, na fazenda de corpos, ela lhe contaria para ele sobre a criança.
53
Tessa e eu observamos do outro lado da cerca de metal enquanto a dra. Risel levava uma das macacas do habitat, uma jovem fêmea chamada Belle, para dentro da sala.
Para minha surpresa, a médica ficou com a gorila na área fechada, e quando comentei sobre isso, ela apenas disse: – Gorilas são criaturas gentis. Muito tímidos.
Ela é inofensiva – ela acariciou o pelo da macaca para me mostrar como aquele primata tão musculoso era inofensivo.
– Belle é nossa companheira mais recente – ela explicou. Quanto mais tempo ela passava com a gorila, menos apressada ela parecia para terminar seu artigo. – Ela
nunca fez esse teste antes, então creio que ela não vai nos decepcionar.
– Ela é tão fofa – Tessa disse enquanto olhava para Belle.
Fofa não era exatamente a palavra que eu teria usado.
A dra. Risel pegou um espelho que estava preso a um braço giratório de metal pendurado no teto. Ela posicionou o espelho de modo que Belle pudesse olhar para ele,
o que ela fez.
Belle pareceu ficar imediatamente fascinada pelo seu reflexo e grunhiu suavemente; então se inclinou para a frente, mexeu a cabeça e estudou o macaco do espelho.
Ela levantou um braço, então o soltou pesadamente sobre seu colo, grunhiu de novo, então o levantou mais uma vez, observando a gorila no espelho responder.
– Inicialmente, os chimpanzés olham atrás do espelho – Tessa me explicou em voz baixa –, para tentar encontrar o outro chimpanzé, ou eles se esticam para tentar
tocá-los. Assim fazem os macacos, os babuínos, todos os outros primatas. Mas os chimpanzés podem aprender a se identificar. Orangotangos também – ela hesitou. –
A maioria dos gorilas tem dificuldade com isso.
Enquanto Belle estava observando a si mesma no espelho, a dra. Risel pegou um pequeno recipiente com glacê de baunilha e abriu a tampa.
Belle estava fascinada demais pelo espelho para prestar atenção nela.
– Tudo bem – a dra. Risel disse. – Aqui vamos nós – ela enfiou um dedo no glacê e, então, enquanto falava suavemente com Belle, agitou a outra mão na frente dela
para chamar sua atenção.
A gorila parou de olhar para o espelho e olhou para a doutora. Risel esfregou a mão gentilmente ao lado da cabeça da gorila e então, sorrateiramente, passou o glacê
na testa de Belle.
Mas ela fez isso tão levemente que a gorila sequer percebeu.
Então, Risel inclinou o espelho para que Belle pudesse ver seu reflexo novamente, e dessa vez, quando ela olhou para o gorila em sua frente, Belle emitiu um som
gutural alto, e então ergueu a mão esquerda e estendeu um dedo.
Eu esperava que ela tocasse a marca na testa do gorila do espelho, mas ela não fez isso. Ao contrário, observando como o macaco no espelho se movia, ela esticou
a mão para sua própria testa, tirou o glacê e então o lambeu de seu dedo.
Fascinante.
– Gorilas gostam de glacê – Tessa me disse.
A dra. Risel olhou triunfalmente para nós e então deu um agrado para Belle, um punhado de uvas. Alguns momentos depois, ela a levou de volta para seu habitat.
Foi uma demonstração incrível e levei alguns minutos para processar as implicações.
De algum modo, Belle foi capaz de entender que seus movimentos eram espelhados identicamente pelo macaco que ela podia ver, e desse fato, ela concluiu que o macaco
para o qual ela estava olhando era, na verdade, ela mesma, e que o glacê estaria em sua própria testa e não na cabeça de outro gorila.
Eu estava considerando isso tudo quando a dra. Risel reapareceu.
– Esse é um dos testes mais simples – ela disse. – Mas vocês entendem o que ele quer dizer, não entendem?
Tessa continuou em silêncio do meu lado, com a prancheta na mão, e fui eu que respondi. – Ela compreende que é uma criatura única – eu disse –, separada e distinta
de sua cópia no espelho.
A dra. Risel concordou.
Eu continuei. – Ela exibiu uma das principais características de consciência: Belle é autoconsciente.
A dra. Risel inclinou a cabeça levemente para um lado, então para o outro, como se estivesse medindo a validade do que eu havia acabado de dizer. – Temos que tomar
cuidado para não antropomorfizar demais, mas Belle estava claramente ciente de que ela era o macaco que ela viu e também foi capaz de usar o espelho para localizar
o glacê em sua própria testa.
– Além dos grandes primatas, quantas outras espécies têm essa habilidade de autodiferenciação? – perguntei.
– Apenas elefantes e golfinhos, apesar de haver cada vez mais evidências em porcos também, mas obviamente temos um teste levemente diferente para essas espécies.
Eles não gostam tanto de glacê como os macacos – ela olhou para mim com expectativa, como se eu devesse rir daquilo. Eu apenas sorri.
Tessa permaneceu em silêncio.
Passamos mais alguns minutos falando com a dra. Risel sobre teoria de pesquisa mental, então ela explicou que, por causa da seleção natural, era de se esperar que
todos os comportamentos humanos e estados de consciência aparecessem, pelo menos de forma rudimentar, no reino animal.
– E quanto mais estudamos os animais – ela disse –, mais descobrimos que isso é verdade: emoções, intenções, uso de linguagem, curiosidade, uso de ferramentas. Golfinhos
comunicam-se uns com os outros usando tons diferentes para dizer coisas diferentes e entendem a importância da da ordem sintática das palavras. Alguns tipos de pássaros
experimentam sono REM, vacas lamentam a perda de seus bezerros, formigas e lobos formam comunidades cooperativas com uma ordem social complexa.
Tessa estava tão absorta que percebi que nem a lista de realizações dos animais da dra. Risel parecia animá-la. Olhei para ela, sorri, e ela devolveu um meio sorriso.
Alguma coisa tinha acontecido.
– Chimpanzés podem ser ensinados a usar frações – a dra. Risel continuou, entusiasmada. – Leões-marinhos entendem relações de equivalência e lógica básica. Muitas
espécies de primatas vivem em sociedades complexas e competem, cooperam, enganam e manipulam um ao outro, assim como humanos. Eles têm disputas de poder, classes
privilegiadas, formam alianças, fazem barganhas e criam redes de contatos para se beneficiarem. A maioria dos meus colegas acredita que por causa disso exista política
no mundo animal, pelo menos num estado primitivo.
Pelas minhas pesquisas em criminologia ambiental, eu já sabia que algumas espécies de primatas na África ocidental formavam mapas cognitivos para lembrarem o local
de rochas grandes para quebrarem nozes, compreendendo seu espaço de consciência de modo similar aos humanos.
E claro, estudos recentes mostraram que assassinos em série seguem padrões de movimento predatório de modo similar aos de tubarões--brancos e leões, mas a dra. Risel
não fez uma pausa longa o suficiente para que eu acrescentasse nada disso à conversa. Ela parecia ter esquecido completamente do prazo de seu artigo.
De acordo com ela, o comportamento animal vem sendo estudado há séculos, mas a questão sobre se os grandes primatas são ou não autoconscientes, se têm a habilidade
de pensar em termos abstratos, ou se têm livre-arbítrio ainda são campos relativamente inexplorados.
– A pesquisa neurocientífica e de metacognição dos primatas ainda está engatinhando – ela estava radiante, obviamente orgulhosa de ser uma pioneira nesse campo.
– Imaginem como vamos poder entender bem o funcionamento do cérebro do Homo sapiens e de outros animais em cinquenta anos. Ou em cem anos. Ou em cem mil.
Apesar de estar pouco familiarizado com os avanços da neurociência nos últimos vinte anos, eu sabia que eles haviam sido exponenciais, e não podia nem imaginar o
conhecimento que seria descoberto em centenas ou milhares de anos.
Finalmente, a dra. Risel olhou para o relógio, franziu a testa, rapidamente se desculpou e foi terminar de escrever seu artigo. Quando ela saiu, perguntei a Tessa
se estava tudo bem, mas ela disse que não havia nada com o que se preocupar.
Fiquei quase uma hora investigando o instituto, procurando por qualquer evidência de pesquisa controversa, biotecnológica ou médica, ou qualquer outra coisa que
pudesse ter alguma carga política, mas não encontrei nada. Também inspecionei as entradas e saídas novamente, e as linhas de visão do habitat que estava isolado,
onde Twana havia morrido, para ver se eu conseguia descobrir alguma pista que pudesse nos levar ao paradeiro de Mollie, mas também não consegui nada lá.
Enquanto eu procurava, Tessa ficou sozinha às vezes rabiscando anotações na prancheta, mas na maioria do tempo observando introspectivamente os macacos.
Quando estava pronto para ir embora, já tinha analisado todas as salas, interrogado brevemente três outros pesquisadores, até dei uma olhada em alguns arquivos de
computador que detalhavam procedimentos e resultados de pesquisas, mas não conseguia ver nenhum bom motivo pelo qual outros deputados pudessem achar vantajoso saber
do envolvimento de Fischer com o centro.
Nem encontrei nenhum procedimento que parecia demasiadamente invasivo, cruel ou tendencioso.
A coisa mais próxima de crueldade contra animais deve ter sido o uso da droga 1-fenil-2-aminopropano, mas os registros mostravam que ela só era administrada em quantidade
minúsculas para os primatas durante a pesquisa padrão.
Talvez eu estivesse errado. Talvez a ligação do deputado com esse instituto fosse insignificante para o caso.
A caminho da saída, perguntei a Olan se poderia ver os registros financeiros do instituto e, como suspeitei, ele me disse que eu precisaria de um mandado. De todas
as agências policiais federais, o FBI é uma das que tem acesso a mandados mais rapidamente, mas ainda assim, a essa altura, não tínhamos um bom motivo para conseguirmos
um. Olan foi educado o suficiente ao negar meu pedido, mas não ter podido dar uma olhada neles era desencorajador.
Me ocorreu que em vez de encontrar respostas aqui, eu estava partindo com mais perguntas do que tinha quando cheguei duas horas antes.
Enquanto Tessa e eu rumávamos na direção do elevador para o estacionamento, uma onda de frustração tomou conta de mim.
Pense diferente, Pat. Não fique preso só em um caminho...
As portas do elevador se abriram quase ao mesmo tempo em que meu telefone tocou. Era o toque de Cheyenne; convenci Tessa a ir para o carro, então atendi: – Ei.
– Sou eu.
– Já saiu da reunião?
– Pat, já são mais de 15h.
– Oh.
– Como está seu braço?
– Está bem. Eu te disse para não se preocupar com isso. Como foi a aula?
– Quando eu soube que Vanderveld ia dar a aula, desisti de ir – Jake trabalhou no caso Giovanni com Cheyenne e comigo mês passado, e ela passou a respeitá-lo tanto
quanto eu, então não fiquei surpreso por ela ter arrumado outra coisa para ocupar sua manhã.
– Lien-hua mencionou que os suspeitos podem ter usado outro quarto do hotel – eu disse. – Alguma notícia sobre isso?
– Nada concreto. Algumas coisas: a WXTN está bisbilhotando. Podemos ter um vazamento. E, ah, sim, Margaret acha que pode ter uma ligação entre esses crimes e a tentativa
de assassinato do vice-presidente Fischer há seis anos no Lincoln Towers.
Hum.
O ex-vice-presidente passou a na maior parte do tempo longe dos holofotes desde que deixara o cargo, e nem mesmo eu tinha pensado naquela tentativa de assassinato.
Considerei as possíveis implicações.
O atirador, um ativista a favor da pena de morte chamado Hadron Brady, tentou matar o vice-presidente Fischer quando ele entrava no hotel para fazer um discurso
em um simpósio de direito constitucional que estava acontecendo lá. Eu lembrava que Brady foi ferido fatalmente quando o Serviço Secreto reagiu. Além disso, não
lembrava dos detalhes.
Então talvez não fosse o pai de Mollie Fischer que tinha ligação com esses assassinos. Talvez fosse seu tio.
– Cheyenne, arrume alguns policiais para descobrir mais sobre o atirador e o assunto exato do discurso do vice-presidente Fischer naquele dia. Quero descobrir se
tinha alguma coisa a ver com a metacognição dos primatas.
Uma pausa. – Vou falar com Margaret sobre isso – ela respondeu. – E quanto a você? Ao forjar a morte de Mollie no centro de primatas e ao tendo levá-la para o hotel,
os assassinos ligaram os dois locais. Eu não fazia ideia do que a tentativa de assassinato tinha a ver com esse caso, mas parecia que tinha uma ligação que valia
a pena explorar...
– Pat? – ela me tirou dos meus pensamentos.
– Vou dar uma passada no hotel – eu disse. – Dar mais uma olhada por lá.
– Tudo bem. Falo com você mais tarde.
– Certo.
Meus pensamentos saltaram para a amizade de Paul Lansing com o ex-vice-presidente. Eu não tinha certeza se isso seria relevante para o caso da custódia, mas como
Tessa tinha ido para o carro e eu ainda tinha alguma privacidade, telefonei para nossa advogada, Missy Schuel, e lhe disse o que sabia. Ela tomou nota e explicou
que ainda estava lendo o diário e que tinha deixado mais duas mensagens para os advogados de Lansing. – Ainda tenho esperança de convencê-los a nos encontrar na
semana que vem.
Finalmente, antes de me juntar a Tessa, aproveitei para ver como Ralph estava. Ele me disse que Lebreau trocava de namorado “rápido demais para uma professora”,
então não era fácil eliminar potenciais suspeitos. Além disso, ainda não havia sinal de Lebreau ou Basque, mas ele estava acompanhando duas possíveis testemunhas
oculares: uma que afirmava ter visto o carro de Basque no estacionamento onde a SUV de Lebreau tinha sido encontrada, e outra que disse ter visto um homem com a
descrição de Basque saindo de um posto de gasolina em Lansing, Michigan, uma hora após Lebreau não ter aparecido em sua aula. – Disse que tinha uma mulher no carro
com ele. Mas você sabe como testemunhas oculares são confiáveis.
– Mantenha-me informado.
– Manterei.
Fiquei em dúvida se deveria contar ou não para ele que Angela Knight estava trabalhando nisso de outro ângulo; mas, por enquanto, decidi não mencionar.
Finalizei a ligação, encontrei-me com Tessa no carro e dirigi até o Lincoln Towers Hotel.
Brad checou o e-mail da garota.
Mês passado, quando ele entrou em contato com o dr. Calvin Werjonic, quando tinha pedido para Astrid pesquisar a presença do agente federal na tentativa de assassinato,
ele não fazia a menor ideia de como seu plano daria tão certo.
Mas o destino parecia estar do seu lado. Todos que eram importantes estavam na área metropolitana essa semana.
Apenas um ajuste nos horários de hoje para deixar o clímax o mais excitante possível: o presente especial para a diretora-assistente Wellington teria que esperar
até amanhã à noite. Mas o atraso serviria apenas para deixar o jogo melhor, mais completo.
Sem dúvida, o pessoal do comando da força-tarefa estava ocupado tentando ligar o Lincoln Towers Hotel ao centro de primatas, imerso nas possíveis implicações, na
importância que cada local teria na cabeça dos assassinos. Mas o plano de Brad tinha tantas camadas que as autoridades nunca as desvendariam a tempo.
Astrid pediu para ele ligar de hora em hora e esse não era o momento de desagradá-la.
Ele discou o número dela.
– Você está com o carro? – ela perguntou.
– Sim.
– E a placa?
– Vou ir pegar daqui a pouco.
– Não demore muito.
– Tudo bem.
– Nos falamos mais tarde.
– Sim.
A ligação foi encerrada e ele abriu o vídeo que fez de Mollie Fischer ontem na van e o assistiu em um canto de sua tela enquanto examinava oprograma de e-mail no
outro.
Após ler a maioria de seus e-mails mais recentes, ele procurou pela Academia do FBI no Google. Era incrível o que você podia encontrar na internet, e semana passada
ele achou uma página no site oficial do FBI que mostrava um mapa do terreno da Academia. Agora, ele confirmou que não havia nenhuma mudança, então imprimiu o pequeno
mapa que o Bureau Federal de Investigação tinha publicado para o mundo inteiro ver.
54
15h18
Peguei um par de luvas de látex no carro e conduzi Tessa até o hotel.
Ela me observou colocar as luvas no bolso. – Para que são as luvas?
– Para examinar coisas.
– Uau. Eu nunca teria adivinhado – seu sarcasmo soou amigável e familiar, mas nas entrelinhas eu percebia que algo a incomodava.
– Fique comigo tempo suficiente e você vai aprender um monte de coisas legais.
Ela ficou em silêncio.
– Você está bem? – perguntei.
– Sim.
Andamos até o imenso saguão. – Então, você vai ficar bem me esperando aqui por alguns minutos? Ela assentiu enquanto olhava para os jardins suspensos, para a cachoeira,
os canais de água; percebi que eu nunca a trouxera antes àquele hotel. Ela estava obviamente impressionada.
– Eu só preciso ver se consigo encaixar algumas peças do quebra--cabeça – eu disse. – Não vou demorar.
Ela não respondeu nem reclamou, e eu quase desejei que ela tivesse discutido comigo; pelo menos eu saberia que ela estava se sentindo bem.
– Então estamos bem? Tem certeza de que está bem?
– Sim.
Assim que se sentou, perguntei se ela não queria entrar em contato com seus amigos de Denver, ligar para Pandora ou para Jessie.
Aquilo pareceu aceitável para ela; ela pegou seu computador e clicou no programa de conversa por vídeo.
Eu estava me virando para o balcão da recepção quando ela disse: – Você acha que ela está morta?
Quando a encarei novamente, vi que seus olhos estavam em uma câmera da WXTN filmando uma repórter que estava entrevistando o Sr. Lees, gerente do hotel. Estavam
no outro lado do saguão.
– Você quer dizer...
– A filha do deputado.
Cuidado, Pat.
– Acho que não devemos tirar conclusões precipitadas – eu disse. – Fique aqui e espere por mim, tá bom? Só me dê uns quinze ou vinte minutos. Então vamos embora
– pensei por um segundo. – E eu levo você para casa.
Ela estava se reposicionando para ficar de costas para a equipe de notícias. – Tudo bem.
Eu queria ver se a ex-analista da NSA Marianne Keye-Wallace e seu sistema de computador com reconhecimento “facial, de áudio e de vídeo” poderiam me ajudar a encontrar
a ligação entre o pretenso assassino de seis anos atrás nesse hotel e os assassinos que trouxeram Mollie Fischer ali ontem.
Deixando Tessa para trás e fui na direção do corredor que levava ao centro de controle.
55
Dez minutos depois.
Eu não estava com sorte.
Marianne já começou dizendo que não tinha registros de tanto tempo atrás. – Quando o hotel foi reformado no ano passado, mudamos para um novo sistema de computadores.
Aliás, você está bem? Você não foi atingido ontem?
Bati gentilmente no meu braço esquerdo. – Foi só um arranhão. Então, você está me dizendo que os registros de computador não foram transferidos?
– Não, eles foram transferidos, só que a gerência decidiu manter apenas registros dos últimos cinco anos, e não digo só de imagens de vídeo. Todos os registros de
hóspedes – ela balançou a cabeça. – Bati o pé tentando convencê-los a arquivar tudo, mas eles não me ouviram.
Já trabalhei com muitas agências distintas ao longo dos anos e sabia muito bem que decisões arbitrárias e mal-informadas são tomadas toda hora. Com frequência, nós
nem sabemos por que nós mesmos fazemos o que fazemos, pior ainda seria entender a motivação dos outros. Mais uma razão por que sondar motivos é tão falível.
Explorei algumas outras ideias com Marianne, vendo se o deputado ou o ex-vice-presidente se hospedaram no hotel recentemente ou se alguma outra conferência de direito
constitucional aconteceu nos últimos anos, relacionada àquela em que o vice-presidente estava agendado para falar quando Hadron Brady tentou matá-lo.
Nada.
Ok, então aonde isso nos leva?
– Lien-hua mencionou as faxineiras – eu disse. – Por acaso ela e Margaret falaram sobre isso com você?
– Já cuidei disso. As faxineiras limparam mais de vinte quartos no oitavo andar entre 14h e 16h, sem seguir uma ordem específica, apenas seguindo ordens de seus
superiores. Até onde sei, a diretora-assistente Wellington mandou agentes procurarem por todos os quartos do andar novamente; alguns já estavam ocupados e não encontraram
nada suspeito.
– E quanto à reforma do hotel, não poderia haver algum elevador de objetos? Algum tipo de quarto do pânico, ou algo parecido, no quarto 809?
– A maioria das reformas foram superficiais – ela abriu uma planta do prédio anterior à reforma e uma planta posterior, e as sobrepôs. Nada notável.
Tentei pensar no que mais eu poderia fazer ali mas não consegui achar nada.
Talvez você devesse ir embora, descobrir o que está incomodando Tessa. Ver se Rodale e Fischer encaminharam os arquivos para você.
Passei os olhos pelos monitores de computador uma última vez e vi que o câmera e a repórter tinham terminado de entrevistar o sr. Lees e estavam pegando suas coisas.
Ele estava parado a apenas alguns metros deles. Observando-os.
Espere.
O hotel podia não ter imagens relativas à tentativa de assassinato, mas todos os canais de TV do país tinham feito a cobertura da história, e eu podia apostar que
os produtores da WXTN não tinham jogado fora suas imagens após seis anos.
Corri de volta para o saguão, para alcançar a equipe de notícias antes que deixassem o hotel.
56
O câmera era um cara de uns vinte e poucos anos com cabelo preto bagunçado e grossas costeletas que se apresentou simplesmente como Nick, o que parecia ser o nome
perfeito para ele. Chelsea Traye, a repórter investigativa, era graciosa, de uma beleza de atriz de cinema, e movia-se como se ditasse moda a cada passo. Reconheci
ambos, pois estavam na coletiva de imprensa que eu dei ontem.
Após me apresentar, eu disse: – Quanto demoraria para vocês acessarem os arquivos de vídeo da cobertura que seu canal fez da tentativa de assassinato do vice-presidente
Fischer há seis anos?
Eles trocaram olhares.
– Você é o agente que foi atingido por um tiro – Chelsea observou. – Isso é para o caso Mollie Fischer, não é?
– É para uma investigação em andamento.
– Entendo – ela me mediu, então pediu para Nick nos dar um minuto, e depois de uma pequena pausa, ele colocou sua câmera em um banco próximo e se afastou.
– Se nós o ajudarmos... – ela começou.
– Sem acordos – eu a cortei. – Se você não me ajudar, eu encontro outro canal que ajude, mas isso só vai gastar tempo e não é isso que nenhum de nós quer – eu podia
ver que ela estava tentando preencher mentalmente as lacunas que eu havia deixado em branco, sem dúvida calculando o custo-benefício de me ajudar.
Após um momento, ela disse: – Claro. Podemos conseguir as imagens para você.
– Pela internet?
Ela confirmou com um aceno de cabeça. – Se você tiver uma conexão rápida, caso contrário vai demorar uma eternidade. Devemos ter centenas de horas de filmagens sem
edição.
Eu sabia que Angela Knight, da divisão de crimes cibernéticos do FBI, podia fazer uma metabusca no computador que ela chamava carinhosamente de Lacey, mas se o sistema
de Marianne fosse tão avançado quanto ela me disse ontem, eu poderia cuidar disso agora.
– Vá buscar Nick – eu disse. – E venha comigo.
Tessa havia encerrado sua conversa por vídeo com a amiga Pandora e estava observando as pessoas, fingindo ouvir seu iPod. Ela olhou pelo saguão para a luz do céu,
para as varandas, as filas de centenas de portas por trás das quais os hóspedes se trancavam toda noite.
Enquanto as pessoas passavam pelas portas giratórias na entrada principal, um pensamento lhe veio à mente: para fora da jaula, para dentro do mundo.
No inverno passado, Patrick a levou para Johannesburgo, na África do Sul, enquanto ele apresentava um seminário de três dias no Conselho do Simpósio dos Analistas
Criminais das Áfricas, e ela reparou que em uma das cidades mais violentas do mundo, as classes mais altas vivem em subdivisões muradas patrulhadas por guardas armados,
com suas casas protegidas por cercas elétricas, sistemas de segurança, cães de guarda e janelas e portas com grades.
Quando Patrick perguntou o que ela achou da cidade, ela respondeu: – As pessoas livres vivem atrás de grades e os criminosos podem andar livres.
E após um momento, ele disse: – Acho que é uma descrição muito precisa.
Então lá vamos nós de novo: as pessoas se trancam em seus quartos de hotel, suas celas, enquanto os assassinos dessa semana andam pela cidade. Livres.
Jaulas e liberdade.
Um zoológico com outro nome.
E aquilo a fez pensar novamente no centro de primatas.
Belle e o teste de autorreconhecimento no espelho.
Até Patrick pôde perceber o quanto aquilo a deixou perturbada.
O problema não era tanto a pesquisa que estavam fazendo; aquilo tudo parecia humano o suficiente, em vista de até onde pesquisas com animais vão. O que a perturbava
eram as implicações. Afinal, os pesquisadores não estavam apenas estudando a neurologia da violência, mas também a neurologia da autoconsciência, da moralidade.
Claro, na escola ela aprendeu sobre evolução – especialmente sobre as teorias ultrapassadas de que evoluímos dos gorilas, chimpanzés ou outros primatas quadrúpedes,
e não do Ardipithecus ramidus, mas tanto faz – não se tratava disso ou de a seleção natural ter alguma intervenção divina, ela nunca considerou realmente que havia
uma continuidade de consciência entre humanos e outros animais.
Uma continuidade de moralidade.
Não precisava ser um gênio para perceber que, como disse a dra. Risel, se todos os traços e comportamentos humanos podem ser encontrados em formas rudimentares no
reino animal, então a diferença entre humanos e animais era meramente de grau, e não de tipo.
E essa era a ideia que a incomodava.
Na essência, nada além do tempo e de mutações nos separava de outros animais. Comportamentos que nós consideramos serem morais teriam sido desenvolvidos fundamentalmente
pela seleção natural como o comportamento mais benéfico para a propagação da espécie. E se esse fosse o caso, a moralidade seria simplesmente funcional, determinada
pelos imperativos biológicos de reprodução e sobrevivência.
O que é bom para a espécie é bom.
O que é ruim para a espécie é ruim.
A moralidade era apenas utilitária, e nada mais.
Ela estava olhando para as portas principais dessa jaula humana gigante, lidando com seus sentimentos em relação a tudo isso, quando viu um homem entrar no hotel,
parar e olhar ao redor.
O homem era Paul Lansing.
Seu pai.
57
Ela deslizou rapidamente na cadeira e virou a cabeça para o lado, para que ele não a visse.
O que ele está fazendo aqui?
Ele a estava seguindo. Só podia ser isso!
Ela pegou o celular para ligar para Patrick, mas antes de discar, teve uma ideia.
Paul pensa que Patrick tem problemas de irritação... que ele é violento...
Se Paul a estivesse seguindo, o que era óbvio, então ele certamente teria visto Patrick entrar no hotel com ela. Então ele deveria saber que seu padrasto estava
por perto...
O que Paul está tentando fazer?
Não tinha como saber com certeza, mas ela não confiava nele, e considerando o processo da custódia, ela só conseguia pensar que ele estava ali para, de algum modo,
arruinar suas chances de ficar com Patrick.
Ela olhou ao redor, procurando uma rota de fuga, mas quando ela o fez, Paul de algum jeito viu seu rosto no meio de tantos outros no saguão lotado e foi na direção
dela.
Não, não, não!
Ela guardou o telefone, pegou a bolsa e estava pegando seu laptop para ir embora, mas enquanto isso, ela pensou em um jeito de virar o jogo contra Paul, especialmente
se ele estivesse tentando armar algo para Patrick, se esse fosse seu plano, afinal.
Ela deixou seu laptop aberto.
Pressionou algumas teclas.
Chelsea Traye tinha feito a cobertura do atentado há seis anos, e não demorou muito para ela ajudar Marianne a achar a filmagem certa. Agora ela estava sentada do
meu lado, e Marianne do outro. Nick estava de pé atrás dela, observando a sala, obviamente impressionado.
Marianne estava baixando os vídeos arquivados do canal, enviando-o para seu sistema de reconhecimento de áudio, buscando referências às palavras “Mollie Fischer”,
“Lincoln Towers”, “Gunderson”, “primata”, “metacognição” e uma dúzia de outras palavras-chave que eu a tinha informado.
– Esse programa marca palavras faladas – Marianne nos explicou. – Então pega vinte segundos de áudio antes e depois delas para que você possa ouvir a frase no contexto.
Os arquivos e clipes de vídeo estavam se acumulando em questão de segundos. Fiquei impressionado pela quantidade de material que o canal tinha e percebi que a maioria
das agências de força policial sequer possui capacidade para essa profundidade e extensão de pesquisa.
Eu certamente não ia ter tempo de ouvir todo o áudio naquele momento. – Você pode transcrever os arquivos de áudio em arquivos de texto? – reparei que Nick estava
segurando o celular com a mão direita e digitando com a outra. – Você vai ter que guardar isso aí – eu disse. – Ou vai ter que sair.
Ele parecia embaraçado. – Desculpa.
Ele guardou o telefone no bolso e Marianne disse para mim: – Claro, posso conseguir os arquivos de texto para você.
Ela soltou os dedos sobre o teclado e uma linha de mensagens de texto apareceu na tela diante de mim, com hiperlinks para marcadores nas imagens de vídeo. E eu comecei
a rolar pelas centenas de fragmentos de texto, procurando qualquer coisa que pudesse estar relacionada ao sequestro de Mollie Fischer.
58
– Paul – Tessa disse quando ele se aproximou dela. – O que você está fazendo aqui? – ela tentou manter a voz equilibrada.
– Vim me desculpar.
– Mesmo?
– Sim.
– Como você sabia que eu estava aqui?
– Um dos meus advogados conhece o sr. Lees, o gerente. Ele mencionou que o FBI havia aparecido novamente e...
– Você mente quase tão mal quanto... – ela hesitou – algumas pessoas que conheço.
Ele olhou para ela. – Você acreditaria que eu segui você até aqui desde a sua casa?
Ela balançou a cabeça. – Patrick teria percebido. Ele teria visto seu carro.
Paul falou suavemente. – Poucas pessoas teriam percebido.
Ela olhou para ele curiosa. – O que isso quer dizer?
– Nada.
– Bom, tudo bem, você veio se desculpar. Então se desculpe.
– Precisamos conversar sobre algumas coisas. Posso me sentar?
– Isso não é uma desculpa.
– Me desculpe por ter sido um pouco autoritário no museu.
– Um pouco?
– Por favor? – ele gesticulou na direção da cadeira.
Ela tirou a bolsa e o laptop ainda aberto da cadeira ao seu lado e os colocou na mesinha à frente e olhou para o outro lado como se consentisse. Ele sentou-se e
então ela olhou para ele. – Eu já sei sobre o que você quer falar, a coisa da custódia.
– Patrick contou para você.
– Claro que me contou. Eu sou a filha dele.
Ela escolheu a palavra filha de propósito e esperou Paul ousar corrigi-la, mas ele apenas aceitou e disse: – Eu quero o melhor para você.
– Então me deixe em paz. Deixe-nos em paz. Você nunca foi parte da minha vida antes, e todos nós nos viramos muito bem. Eu não gosto do jeito como você se aproveitou
da minha mãe e eu não gostei de como você me questionou sobre Patrick. E eu não quero você perto de mim. Fim da história.
– Eu entendo o que você está dizendo, mas você lembra da carta? Aquela que mandei para sua mãe quando ela estava planejando te abortar? Eu queria fazer parte da
sua vida. Desde o início.
Ela odiava admitir, mas isso era verdade, a carta deixava bem claro.
– Por quê?
– Por que o quê?
– Você mal conhecia minha mãe. Você me disse que não a amava. Por que você queria fazer parte da minha vida?
– Porque eu sou seu pai – sua voz era suave e sincera.
Ela ficou em silêncio.
– Olhe – ele disse.
– Eu vim aqui para consertar as coisas, para te contar o que eu fazia antes de ir morar em Wyoming.
– Pensei que você tinha vindo aqui pedir desculpas.
– As duas coisas.
– Eu já sei o que você fazia. Você trabalhava para o Departamento de Caça e Pesca de Wyoming.
– Não exatamente.
– Ah, então isso era mentira também?
– Eu trabalhava para o governo.
– Sim? E?
Ele esperou como se achasse que ela entenderia.
É claro que ela sabia que a frase “eu trabalho para o governo” era frequentemente usada como um jeito de evitar admitir que você trabalhava para o FBI, a DEA ou
a CIA. Ou talvez para a ATF. Não era necessário morar em Washington para saber disso.
– O quê? – ela disse. – Você está me dizendo que era um espião ou algo do tipo? Oh, ou talvez um assassino? Um cara das forças especiais do exército? – Então ela
se inclinou para perto e cochichou, com falsa admiração: – Você era dos Comandos em Ação?
Ele não discutiu com ela. E seu silêncio parecia ser um jeito de explicar sua situação.
Chega disso.
– Ou diga logo o que você veio aqui para contar ou vá embora.
– Eu trabalhava para o Serviço Secreto, Tessa.
– Sim, claro.
– É verdade.
– Eu não acredito em você.
– Como eu consegui seguir vocês hoje de manhã sem ser visto? Sem deixar que um agente experiente do FBI percebesse que estava sendo seguido?
Patrick não tinha motivo para achar que estava sendo seguido. Dããã!
– Prove. Mostre uma identificação ou algo assim.
Para sua surpresa, Paul enfiou a mão no bolso e pegou uma carteira similar à de Patrick.
Seu padrasto era tão estrito sobre ela não sair com caras mais velhos que a ensinou como descobrir identidades falsas, e quando ela analisou a credencial de Paul,
mesmo vencida há seis anos, ela parecia verdadeira.
Ele tentou protegê-la quando aquela escultura se espatifou no museu...
Ele conhece pessoas no Capitólio... Costumava viver em Washington...
Patrick não conseguiu achar nenhuma sujeira no passado dele; o Serviço Secreto podia ter feito isso, apagado seus registros...
Ela lhe devolveu a identificação. – Se o que você está dizendo é verdade, minha mãe teria me contado.
– Eu estava no meio do processo de inscrição quando a conheci. Ela sabia que ter uma família, ter responsabilidades, especialmente filhos, não era... Bem, vamos
dizer que quando o governo procura pessoas dispostas a darem suas vidas, eles não querem que você tenha nenhum motivo para hesitar.
– E filhos e namoradas são bons motivos para hesitar, é isso?
– Sim. O Serviço Secreto não dá prioridade para candidatos com muitas responsabilidades.
A vasectomia? Foi por isso que ele fez?
– Então você está dizendo que eu era um risco para sua carreira. Que legal.
Ele ignorou isso. – Eu não tenho certeza do que sua mãe estava pensando, mas eu sempre acreditei que ela foi embora porque queria proteger nós dois.
– Ou talvez ela só não queria ficar perto de você. Você chegou a pensar nisso?
– Sim. Eu pensei.
Ela o encarou. – Como isso me protegeria? Ela te abandonar.
– Familiares de membros do Serviço Secreto frequentemente viram alvo de pessoas que querem comprometer aquele agente.
Ela odiava admitir, mas parte do que ele estava falando parecia fazer sentido. – Por que você está me contando isso agora?
– Eu não queria que existisse nenhum segredo entre nós.
– Sério? Quem é Julia?
– Não existe Julia. Eu visitei o Hirshhorn no dia em que cheguei de viagem, escolhi uma escultura e decidi que sua criadora seria meu motivo para estar na cidade.
– Quando, na verdade, o motivo de você estar aqui é conseguir minha custódia – ela não disse isso como uma pergunta.
– Você faz dezoito anos no outono. Eu não podia esperar até lá, ou seria tarde demais para te conhecer antes que você se mudasse para viver por conta própria.
– Você mentiu para mim.
– Se eu tivesse contado a verdade logo de cara, você teria aceitado me encontrar ontem?
– Eu não sei. Mas pelo menos eu confiaria mais em você do que confio agora – quando falou isso, ela se sentiu ligeiramente hipócrita, afinal, ela enganara Patrick
quase do mesmo jeito. E ele provavelmente se sentiu como ela estava se sentindo agora.
Paul não respondeu.
Apesar de tudo, ela estava começando a acreditar nele.
– Como você se meteu com esculturas, então?
– Fiz algumas aulas em uma faculdade comunitária.
Isso explicaria por que ele não sabia nada de arte e tinha que ler todas
as placas explicativas no museu.
– Então, por que você vive no meio do nada? Você foi demitido do Serviço Secreto, e não estou dizendo que acredito que você era do Serviço Secreto, mas se foi, você
foi demitido ou pediu demissão?
– Minha saída foi um mútuo acordo.
– Explique “acordo mútuo”.
Ele olhou pelo sagão por um momento; então se inclinou para mais perto dela e falou ainda mais baixo do que já estava falando. – Há seis anos, eu estava protegendo
o vice-presidente Fischer quando houve um atentado contra sua vida, aqui, no Lincoln Towers Hotel.
60
Tessa não disse nada.
– Você tinha só onze anos, provavelmente não se lembra disso.
– Não. Eu lembro.
– Mesmo? – ele parecia duvidar.
– Eu tenho uma memória acima da média.
Ela pensou no atentado e lembrou que o atirador não consegui acertar o vice-presidente e foi morto por...
Oh.
– Você atirou no cara? É isso que você está dizendo?
Ele meneou a cabeça. – Não, eu não matei o agressor.
– Bom, então por que sua saída foi um acordo mútuo?
Ele ficou em silêncio. Por vários segundos. – Tessa, quando Hadron Brady começou a atirar, eu me joguei no chão para me proteger. Não atirei de volta; não atirei
meu corpo na linha de fogo para proteger o vice-presidente. Em vez de continuar envergonhando o serviço, eu renunciei, e eles concordaram em me ajudar a desaparecer
para que minhas ações não refletissem negativamente na agência.
Ela avaliou tudo. – Você correu para se esconder?
Ele acenou com a cabeça, mas não disse nada.
Ele é um covarde. Seu pai é um covarde!
Ela disse para si mesma que era natural ele ter ficado com medo quando os tiros foram disparados, mas então ela percebeu que se Patrick estivesse lá, ele poderia
ter ficado com medo, qualquer um poderia, mas ele não teria corrido, fugido, recuado, se escondido. Ele teria resguardado a pessoa que estava protegendo. De qualquer
maneira.
– O que você está pensando? – Paul lhe perguntou.
– Estou pensando que se isso tudo for verdade, você deveria ter me contado na primeira vez que nos vimos, na sua cabana.
– Eu queria esperar a hora certa.
– E por que agora seria a hora certa?
Uma pequena hesitação. – Aparentemente não é.
Ela sentiu um turbilhão de emoções. Nenhuma delas boa. – Acho que não quero mais conversar.
– Sim, tudo bem – ele se levantou. – Vejo você depois. Não vou me encontrar com você sem a permissão de Patrick da próxima vez. Eu prometo.
Ela tinha a sensação de que deveria falar alguma coisa sobre o caso da custódia. Então, o que vai acontecer agora? Você ainda vai continuar com isso? Ou talvez ela
devesse falar que o perdoava por não ter sido franco com ela, mas em vez disso, ela apenas o observou indo embora.
Ele é um covarde. É isso que ele é.
Seu pai é um covarde.
Ela esperou ele sair do hotel antes de pressionar uma tecla para pausar seu programa de conversa em vídeo que ela usou para gravar toda a conversa.
Então ela rolou pela tela.
E clicou em “salvar”.
Acho que eu tinha descoberto alguma coisa.
Nas imagens, além das menções ao quarto 809, o quarto onde foi encontrada a cadeira de rodas havia uma porção de referências ao quarto 814. Não estava claro se Hadron
Brady, o atirador, tinha ficado nele ou simplesmente o usou temporariamente para montar seu rifle, mas quando cruzei as referências daquele quarto com os registros
da faxineira que detalhavam quais quartos foram arrumados ontem à tarde, os horários batiam. As faxineiras o haviam limpado.
Hora e local.
Os dois quartos que os assassinos escolheram eram os mesmos que Brady havia usado.
Antes de contar para Marianne o que eu tinha percebido, agradeci a Nick e Chelsea pela ajuda e pedi que eles me dessem licença; eles reuniram suas coisas a contragosto
e saíram da sala.
– O que foi? – Marianne perguntou.
Apontei para a tela. – Tem alguém hospedado naquele quarto?
Ela procurou. Balançou a cabeça. – Não. Não desde terça-feira.
Então, se os assassinos o usaram, talvez ainda dê para achar as evidências.
Mas então, por que as faxineiras o arrumaram?
Esse caso estava começando a me lembrar um sistema de cavernas: uma série de passagens subterrâneas que você não consegue identificar olhando apenas para a superfície.
Você só encontra as ligações quando realmente desce fundo e começa a explorar o caminho dos túneis.
E o próximo túnel que eu precisava explorar estava acima de mim, no oitavo andar.
Tessa sabia que podia esperar ali, é claro, esperar por Patrick, o tempo que fosse necessário.
Ou ela podia ligar para ele, mas isso não era exatamente o tipo de coisa que você conta para alguém pelo telefone: – Aliás, meu pai deu uma passadinha aqui para
me contar que é um ex-agente covarde do Serviço Secreto. Ah, sim, e ele nos seguiu por toda a manhã. Nos falamos depois. Tchau.
E ligar para Patrick e falar que queria conversar com ele mais tarde, só
o deixaria preocupado.
Não, ela precisava falar com ele pessoalmente.
Um pouco mais cedo, quando ele saiu para vasculhar o hotel, ele tinha ido pelo corredor que saía de trás do balcão da recepção.
Ela pegou suas coisas e foi naquela direção.
60
Saí do elevador e caminhei pelo corredor.
Só havia duas possibilidades: ou Mollie ainda estava no hotel ou não estava. Isso era óbvio.
Passei pelo quarto 804.
Um axioma surgiu na minha cabeça, um que eu já ensinei nos meus seminários centenas de vezes ao longo dos anos: o que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
809.
Ou Mollie estava viva, ou morta.
Ou estava aqui, ou não estava.
812.
Quais outras opções existiam?
Cheguei ao quarto.
Por um momento, pensei nos métodos que os alunos da Academia listaram na quarta-feira para cometer o crime perfeito: tomar precaução para não deixar evidências físicas...
contaminar a cena com o DNA de outras pessoas... se livrar do corpo em lugares abertos, não permitir que o corpo seja encontrado...
Não permitir que o corpo seja encontrado.
Vesti as luvas de látex que havia trazido comigo.
Peguei meu conjunto de abrir fechaduras.
Apesar do que gerentes de hotel dizem, fechaduras de cartão são as mais fáceis de abrir. Os hotéis as utilizam porque são mais baratas, e não porque são mais seguras.
É um dos segredos mais ocultos da indústria hoteleira.
A maioria das pessoas se sente segura em seus quartos de hotel.
Ah, se elas soubessem.
Então, apesar de ter esquecido de pegar um cartão na minha pressa, levei apenas alguns segundos para abrir a porta.
As cortinas das janelas no lado oposto do quarto, estavam fechadas e a luz abafada que conseguia penetrar deixava o quarto com um ar amarelado e pastoso.
Eu sabia que Doehring e sua equipe procuraram por Mollie Fischer em cada quarto do hotel, que a ERT havia analisado o quarto 809, que Margaret tinha mandado agentes
verificarem novamente todos os quartos do oitavo andar que as faxineiras tinham arrumado, mas até onde eu sabia, nenhuma unidade forense havia estado nesse quarto.
Mas as faxineiras estiveram.
Inconscientemente aspirando as evidências.
Limpando-as de cima das cômodas.
Esfregando-as da pia.
Quando você está procurando alguma coisa em um quarto que já foi vasculhado, você precisa considerar as condições em que a primeira busca ocorreu, e então alterar
essas condições para que sua atenção não seja atraída para os mesmos objetos ou áreas analisados na primeira busca.
E como as luzes de um quarto sempre formam sombras nos mesmos lugares, elas são um dos principais fatores determinantes a se alterar.
Então, agora, deixei as luzes apagadas e liguei minha lanterna.
A luz abriu um pequeno feixe através da luz fraca e amarelada do quarto.
Tirei meus sapatos para não deixar partículas de sujeira no carpete. Então entrei, fechei a porta e comecei minha busca por algo que pudesse nos levar até Mollie
Fischer.
60
Ajoelhei-me e apontei minha lanterna para o carpete e, como eu esperava, vi linhas nítidas de fibras esticadas que me disseram que o quarto tinha sido aspirado recentemente.
Nenhuma pegada visível, então aparentemente a faxineira havia aspirado o quarto enquanto recuava para a porta.
Verifiquei o armário, a escrivaninha, as cadeiras. Nada.
Então as gavetas, debaixo da cama, atrás das cortinas.
Nada.
Vasculhei o quarto inteiro, cuidadosamente, metodicamente, procurando em cada área a partir de diferentes pontos de vantagem e vários ângulos até ficar satisfeito.
Apenas mais um lugar para procurar.
Fui até a porta do banheiro.
Estávamos procurando pelo corpo de Mollie, por um cadáver.
Mas esse quarto já foi verificado...
Se Mollie foi morta nesse hotel, e os assassinos não tiveram tempo de transportar o corpo para outro lugar, era óbvio que seu cadáver tinha que estar aqui em algum
lugar.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Empurrei a porta do banheiro e ela se abriu no escuro.
Por causa da posição do banheiro em relação à janela, quase nenhuma luz o iluminava, apenas sombras de diferentes profundidades, diferentes intensidades.
Girei o bocal da lanterna, alargando o feixe, e mirei para dentro.
O banheiro parecia vazio, mas percebi que as cortinas do chuveiro haviam sido puxadas por toda a extensão do suporte prateado, deixando a banheira fora do campo
de visão.
Inconscientemente, inspirei o ar, mas não captei o odor que temia captar.
Fui até a banheira.
Segurei a lanterna com uma mão, agarrei a borda da cortina do chuveiro com a outra.
Cenas de crimes passados passaram pela minha cabeça como um antigo rolo de filme. Imagens de morte, terror e sangue...
Lentamente, deslizei a cortina pelo suporte enquanto iluminava a banheira com a lanterna.
Vazia.
Soltei o ar aliviado, mas marcado pela frustração. Eu realmente esperava encontrar alguma coisa. Havia passagens demais nessa caverna e eu não estava sendo capaz
de conectá-las.
Você deve estar errado sobre esse quarto. Sobre isso tudo.
Suspirei.
Certo.
Terminaria de dar uma olhada e iria embora.
Avalie a cena sistematicamente, começando pela pia.
A pia impecavelmente brilhante e a bancada asseada me disseram que as superfícies tinham sido higienizadas recentemente. O frasco de xampu, o sabonete, a loção pós-barba:
tudo novo.
Toalhas dobradas.
Espelho sem manchas.
A faxineira fez o trabalho completo.
Voltei minha atenção para a cômoda. O puxador brilhava, impecável. Nenhuma mancha.
Nenhuma impressão digital.
O vaso sanitário não tinha nada além de água limpa, mas quando me ajoelhei e olhei atrás da base da cômoda, encontrei uma coisa.
Um pequeno lenço dobrado.
Poderia ter sido deixado para trás pelos assassinos, mas quando aproximei o feixe de luz da lanterna e o inspecionei mais de perto, vi que estava coberto por uma
fina camada de poeira intocada, então certamente eledevia estar no quarto há mais de 24 horas.
Os assassinos podem tê-lo plantado aqui. É o tipo de coisa que eles fariam.
Nós analisaríamos o DNA, mas independentemente do lenço ter sido deixado pelos assassinos ou não, sua presença indicava uma coisa: havia áreas do banheiro que eram
fáceis de ser esquecidas mesmo para uma faxineira meticulosa.
Voltei novamente para a banheira.
Um pouco de sobra de sabão perto da torneira, alguns fios de cabelo presos no ralo. O fio de cabelo não contém DNA, mas os folículos do cabelo possuem, então, se
tivermos as raízes dos...
Mollie estava inconsciente na cadeira de rodas...
Leva algumas horas para drogas chegarem à raiz do cabelo de alguém, e se Mollie estivesse sob efeito de alguma droga por mais de uma hora e esses cabelos fossem
dela, era possível que encontrássemos vestígios da droga.
E, assim, os caras no laboratório poderiam testá-lo, identificá-lo, compará-lo.
Mollie está dentro do hotel, ou não está.
Entrei na banheira e fechei a cortina pelo suporte novamente.
Usando a lanterna, investiguei cuidadosamente a cortina do chuveiro. Uma pequena quantidade de resto de sabão. Algumas manchas de água. Nada mais.
Só quando ajoelhei e olhei para o lado oposto da cortina, entre duas dobras, eu vi.
Um pequeno ponto.
Escuro.
Sangue seco.
O único jeito de reparar nele era de dentro da banheira, um lugar improvável para se ficar fazendo a limpeza, mesmo para uma faxineira experiente.
Pode não ser nada. Pode não estar ligado. Talvez. Talvez.
Liguei para Doehring, contei o que tinha achado e ele disse que mandaria os caras da unidade de perícia para lá imediatamente. Desligamos.
Claro, poderia não ser nada, mas no momento parecia que muitos túneis estavam convergindo para esse quarto para que eu acreditasse nisso.
O sangue.
A falta de DNA no 809.
A proximidade dos dois quartos.
Fechei os olhos e tentei lembrar o que eu tinha visto quando cheguei ao oitavo andar ontem: dois seguranças... duas faxineiras... três crianças de roupa de banho...
Uma ideia, do nada: Poderiam ter sido as crianças da sra. Rainey?
Não, as crianças no hotel eram mais velhas.
Mas eu tinha visto outra coisa.
Um carregador de malas puxando um carrinho de bagagens.
62
Senti um calafrio na espinha.
Liguei para Marianne e perguntei onde os carregadores guardam as bagagens de hóspedes que chegam cedo, ou que precisam guardar as malas no hotel até a hora do checkout.
Ela me disse onde ficava: uma sala num piso inferior, perto do depósito onde eu tinha tomado o tiro. Não contei a Marianne o que eu estava suspeitando, apenas pedi
que ela me encontrar lá, então encerrei a ligação.
E, tentando convencer a mim mesmo que eu estrasse errado em suspeitar daquilo, fui para o porão.
– Aqui estamos – o sr. Lees declarou quando ele e Tessa chegaram ao centro de controle do hotel.
Ela demorou mais do que imaginava para convencê-lo a levá-la até Patrick, mas quando ela finalmente disse como o agente especial Bowers DO FBI ficaria irritado se
descobrisse que o gerente do hotel não estava permitindo que sua filha o visse, o sr. Lees disse a ela gentilmente para segui-lo.
– Acredito que nossa chefe de segurança está com ele agora – ele bateu na porta e, um momento depois, uma mulher esbelta e bem-vestida, de aproximadamente trinta
anos, apareceu.
O sr. Lees disse: – Marianne, essa é Tessa Ellis, enteada do agente Bowers.
– Preciso falar com ele imediatamente – Tessa disse.
– Bom, estou indo me encontrar com ele. Por que você não vem junto?
Cheguei à área de armazenamento de bagagem antes de Marianne e decidi não esperar por ela.
Dispensei todos os carregadores da sala, fiquei sozinho e fechei a porta.
Em contraste com o esplendor e a extravagância do resto do hotel, aquela sala era uma vasta câmara de concreto que cheirava a poeira, mofo e ar viciado. Lâmpadas
industriais fluorescentes. Sem carpete. Sem janelas.
Uma dúzia de carrinhos de bagagem vazios formavam uma fila ao longo da parede leste. Preenchendo o resto da sala, pilhas de malas de diversos formatos e tamanhos.
Com aproximadamente um metro de espaço entre cada pilha, elas haviam sido claramente arrumadas para manter os itens dos diferentes hóspedes separados.
Ontem, eu vi de relance as malas no carrinho de bagagem que o carregador estava puxando pelo corredor e não tinha certeza de qual marca eram. Então agora, enquanto
procurava pelas pilhas, comecei buscando entre as bagagens com as maiores malas. Imaginei que fosse a mais apropriada para...
Então eu a vi.
Do outro lado da sala.
Um conjunto de malas grandes que, quando pensei melhor, parecia ser do mesmo estilo das que vi no carrinho de bagagem.
Estávamos procurando pelo corpo de Mollie.
Pelo corpo inteiro.
Mas talvez não fosse isso que iríamos encontrar.
Atravessei a sala na direção da pilha de malas.
63
A bagagem parecia nova em folha.
Usar malas novas faria sentido se você fosse um assassino que estivesse tentando não deixar evidências físicas que pudessem ajudar a te rastrear. Não apenas DNA,
cabelo ou outras evidências físicas, mas também arranhões ou marcas de raspão que pudessem nos fornecer pistas sobre onde a bagagem esteve.
Eu tinha a sensação de que esses assassinos teriam pensado nisso.
Com meu celular, tirei meia dúzia de fotos da organização das quatro malas.
Então olhei para a maior delas.
Ajoelhei-me ao seu lado.
Quando fiz isso, senti um fraco odor que já tinha sentido em muitas cenas de crimes. E apesar de tentar me tranquilizar pensando que o cheiro deveria estar mais
forte, mais repugnante a esse ponto, eu estava ciente dos métodos usados para resolver esse problema: enrolar o item em plástico... usar produtos químicos...
Meus dedos tremiam levemente enquanto eu separava a mala das outras na pilha e a deitava no chão.
Estava muito pesada e caiu de lado com um baque surdo e perturbador.
Coração disparado, procurei pelo zíper.
Um carregador de malas passou com essas malas por todo mundo...
Passou bem na sua frente.
Cuidadosamente, abri o zíper, tomando cuidado para ele não agarrar no tecido, não prender na minha luva. Ou não prender em qualquer outra coisa.
Por que aqueles dois quartos no oitavo andar?
Qual é a ligação entre esses assassinos e a tentativa de assassinato
há seis anos?
O zíper alcançou o fim de sua trilha.
Coração martelando.
Martelando.
Tirei outra foto com meu telefone.
Então me preparei.
Levantei o tampo da mala.
No mesmo momento em que a porta atrás de mim se abriu.
64
Fechei rapidamente a mala.
Uma rápida olhada confirmou meus piores temores: os assassinos não tinham usado apenas essa mala. Baseado no que vi, suspeitei que eles usaram a maioria das que
estavam nessa pilha.
Tentando disfarçar a torrente de tristeza e ódio que eu sentia, virei-me para ver se era Marianne na porta atrás de mim.
E era.
E Tessa estava com ela.
– O que você está fazendo aqui? – gritei.
Ela estava em silêncio, olhando para além de mim, para a mala ao lado da qual eu estava ajoelhado.
– Tessa, você precisa sair dessa sala. Agora – eu não queria que meu tom tivesse sido tão duro, mas eu não a queria perto daquele lugar.
Marianne colocou uma mão em seu ombro. – Vamos, querida.
O rosto de Tessa ficou corado. Ela era uma menina esperta, entendeu o que estava acontecendo. – É a...?
– Vamos – Marianne a apressou para fora da sala.
Antes de me juntar a elas, rapidamente liguei para Doehring e lhe disse para mandar outra equipe de técnicos forenses. Me senti mal dizer: – Encontrei os restos
mortais de Mollie Fischer.
Após garantir que os carregadores soubessem que não deveriam entrar na sala, me apressei pelo corredor e alcancei Tessa e Marianne perto do elevador no canto sul
do porão. Marianne tocou gentilmente o ombro de Tessa, disse algumas palavras encorajadoras para ela e então nos deixou a sós. Entramos silenciosamente no elevador
e observamos as portas se fecharem. Ficamos um do lado do outro sob uma mortalha de silêncio.
Eu não queria fazer a pergunta para Tessa, mas sabia que precisava, então um pouco antes de chegarmos ao térreo, eu disse: – O que você viu lá?
– Só... – ela hesitou. – Uma mala. Um monte de malas.
O elevador parou.
– Só isso?
As portas se abriram.
– E a expressão no seu rosto.
Experimentei uma profundo sensação de fracasso. Primeiro, por não ter encontrado Mollie viva; depois, por ter deixado Tessa ver o ódio escancarado em meus olhos.
– Venha – eu disse. – Vamos tirar você daqui.
Quando estávamos saindo do hotel, a primeira leva de policiais, incluindo o oficial Tielman, o membro da unidade de perícia que eu havia conhecido no centro de primatas
na terça-feira, já estava entrando correndo pela porta principal.
Enquanto estava sentada à sua mesa no posto de comando, Margaret Wellington teve notícias de que Patrick Bowers havia encontrado o corpo de Mollie Fischer no hotel.
Lentamente, ela repousou seu telefone.
Mais cedo nesse dia, Rodale a notificou de que Bowers estava de volta ao caso. Ela sentiu uma onda de indignação tanto em relação a Bowers quanto a Rodale, e isso
não tinha passado durante a tarde toda.
Mas agora que Bowers havia encontrado Mollie, algo que ela mesma falhou em fazer, ela se sentiu em conflito.
Ela jamais gostou do comportamento teimoso de Bowers ou de seu método não convencional de trabalho, mas ela mal podia acreditar que ele fosse o tipo de homem que
iria atrás de Rodale pelas costas dela daquele jeito. Não só era um desafio direto à sua autoridade como também mostrava desprezo pela cadeia de comando do Bureau
e seu lema: Fidelidade, Bravura, Integridade.
Ela não viu nenhuma dessas três coisas nas ações dele.
E nenhuma na decisão de Rodale de infringir suas ordens e reintegrar Bowers.
Só mais um exemplo da liderança inapta de Rodale no comando do Bureau.
No entanto, apesar de tudo isso, Bowers aparentemente tinha feito seu trabalho, e feito bem.
Então era responsabilidade dela fazer a ligação.
Ela pegou o telefone novamente.
A esposa do deputado Fischer ainda estava voltando da Austrália, então pelo menos ela não teria que traumatizá-la, mas como comandante da força-tarefa, Margaret
precisava ligar para o deputado para pedir que ele identificasse os restos mortais de sua filha. Essa era a segunda vez que lhe pediam isso em uma semana.
Ela respirou fundo e, então, com uma mistura de tristeza e frustração, com si própria e ao Bureau por não terem salvado Mollie Fischer, ela digitou o número.
A caminho de casa, tentei confortar Tessa, mas ela disse que não queria conversar e que seria bom se eu só a deixasse quieta no canto dela.
Durante o ano passado, ela me explicou mais de uma vez que normalmente o melhor jeito de ajudá-la a se sentir melhor era deixando-a em paz, um conselho que parecia
ser contraditório para mim mas que, na verdade, parecia funcionar.
Então, pelo menos por enquanto, deixei que as coisas se acertassem sozinhas e voltei meus pensamentos para o caso.
Agora mesmo, a equipe estaria interrogando os carregadores de malas em busca de uma descrição das pessoas que tiveram malas levadas de seus quartos. Policiais estariam
verificando a mala atrás de impressões digitais, DNA, vestígios de evidências; rastreando a etiqueta de retirada de bagagem para ver se poderiam ligá-la a algum
dos hóspedes que tivesse frequentado o hotel recentemente; examinando o depósito de bagagem e o quarto do hotel com a mancha de sangue.
Ossos do ofício.
Mas com base no que eu já tinha visto até então, os assassinos saberiam de tudo isso nessa semana, teriam previsto tudo.
Lembrei de Sevren Adkins, o assassino da Carolina do Norte que chamava a si mesmo de Ilusionista e que atacara Tessa e tentara matar nós dois. Ele provocava as autoridades
com pistas de futuros crimes e sempre parecia arrumar um jeito de se esconder em plena vista, conseguindo até estar presente em cenas de crime sem levantar suspeitas.
Pouco antes de morrer, ele me desafiou para uma revanche...
– Eu estava procurando você.
As palavras de Tessa desviaram meus pensamentos de Adkins, e levei um momento para retomar minha atenção. – Na sala de bagagens? Um aceno. – Encontrei alguém.
– Alguém?
Ela não respondeu imediatamente. – Paul Lansing.
– O quê?
– Não se preocupe.
– Lansing estava lá? Ele fez alguma coisa com...
– Tá tudo bem. Consegui imagens ótimas.
– Imagens?
Escutei enquanto ela resumiu seu encontro com Lansing, mas mesmo com ela falando, percebi que eu precisaria ver essa filmagem por minha conta, então saí da rodovia
e estacionei em um posto de gasolina. Então ela abriu seu laptop.
E acessou o vídeo.
65
Assisti à conversa gravada três vezes, chocado pelo que Lansing contou a ela, incrédulo que ele havia nos seguido, com raiva de mim mesmo por não ter reparado em
seu carro.
Suas explicações pareciam absurdas.
Mas também, apesar de odiar ter que admitir, talvez não tão absurdas assim.
Na verdade, se o que ele estava dizendo fosse verdade, explicaria muitas coisas, incluindo como o vice-presidente Fischer o conhecia e como tinha ouvido falar sobre
o caso da custódia, por que Christie nunca me contou quem era o pai de Tessa ou informou-o que ele tinha uma filha, e também por que eu não consegui descobrir mais
sobre o passado de Paul Lansing.
É claro, eu precisaria confirmar tudo, mas quanto mais eu pensava nisso, mais eu me via pensando que a história procedia.
Momentaneamente, tive um pensamento perturbador e me senti envergonhado comigo mesmo por ter pensado nisso, mas como investigador eu não conseguia evitar: o pai
de Tessa estava nesse hotel há seis anos quando o atirador tentou assassinar o vice-presidente... Por causa do seu envolvimento, ele provavelmente saberia sobre
os dois quartos no oitavo andar... Ele estava aqui essa semana durante o período dessa onda de crimes... O uso dos dois quartos apontava para uma ligação entre os
crimes...
Poderia ele ter...
Não, não poderia ser.
Diferente do homem que pegamos na filmagem empurrando Mollie para dentro do hotel, Lansing tinha mais de 1,80 m, ombros largos, não favorecia nenhuma perna e não
era canhoto.
Independentemente disso, uma coisa era certa: eu ia dar uma boa olhada no passado de Paul Lansing assim que chegássemos em casa.
Outra passagem.
Outro túnel.
– Se ele tentar entrar em contato com você novamente – eu disse a Tessa –, não fale com nem ou responda seus e-mails. E me avise imediatamente.
– Tá bom.
Após um silêncio extenso, senti a necessidade de mudar um pouco de assunto. – Aliás, bom trabalho com esse vídeo. Você seria uma ótima agente do FBI.
Ela ficou quieta, mas pareceu ter gostado do meu comentário.
– Você sabe ler lábios? – perguntei.
Ela parecia surpresa com minha pergunta e meneou a cabeça.
– Ótimo – peguei meu telefone.
– O que você vai fazer?
Abri a porta. – Duas ligações. Eu já volto.
Após contar para Missy Schuel sobre as reivindicações de Lansing e garantir que lhe enviaria uma cópia do vídeo quando eu chegasse em casa, falei rapidamente com
Lien-hua e ela me informou que o deputado havia sido contatado e estava indo fazer a identificação.
Quando eu lhe contei sobre Lansing e a história do Serviço Secreto, ela se ofereceu para dar uma bisbilhotada para confirmar se ele realmente havia sido um agente.
– Obrigado – eu disse –, mas vou cuidar disso. Escute, é possível que os assassinos não tenham deixado o corpo de Mollie lá só para nos confundir. É possível que
eles tivessem a intenção de voltar para buscá-lo.
– Já pensei nisso. Com tantos policiais presentes na cena e toda a cobertura da imprensa, provavelmente é tarde demais, mas convenci Margaret a nos arrumar três
agentes disfarçados para vigiar as entradas e saídas do hotel.
– Como sempre, você continua me impressionando, agente Jiang.
– Obrigada – uma pausa. – Falando sério, Pat, você fez um bom trabalho.
– Obrigado. Qualquer coisa, me ligue.
– Tudo bem.
Desliguei.
E levei Tessa para casa.
Quatro malas abertas estavam aos pés de Margaret.
A visão dos conteúdos a lembrou de uma vez que um assassino havia deixado o torso de uma de suas vítimas no porta-malas de seu carro.
Apenas para provocá-la.
Um calafrio firme atravessou-a.
Não era uma boa lembrança.
O deputado Fischer insistiu em fazer a identificação aqui em vez de ir até a sala de autópsia do médico forense, e Margaret acabou concordando. Ele pediu para que
as quatro malas estivessem abertas, e agora ele estava olhando para a menor delas, para o rosto de sua filha. E quando fez o mesmo, Margaret percebeu que os olhos
de Mollie ainda estavam abertos.
Ela sentiu uma pontada de raiva. Como demonstração de respeito, é um procedimento padrão para a ERT fechar os olhos das vítimas antes de algum familiar chegar. Ela
olhou para a agente Natasha Farraday, que devia ter cuidado disso, mas obviamente não o fez, então ela mesma se ajoelhou e gentilmente fechou os olhos de Mollie.
O deputado acenou com a cabeça para Margaret em agradecimento pelo gesto. Então, após um longo momento de hesitação, ele olhou para uma das malas à esquerda e apontou
para uma marca de nascença no braço esquerdo de Mollie. – É ela – ele sussurrou. – Sem dúvida.
Apesar de sua aparente certeza, Margaret queria exames de DNA conclusivos antes de tornar pública qualquer informação.
A agente Farraday levou alguns instantes para fazer o teste ali mesmo. Enquanto ela fazia, Margaret não conseguia parar de pensar no corpo no porta-malas de seu
Lexus na Carolina do Norte...
– É ela – a agente Farraday declarou. – É Mollie.
A terceira vítima confirmada desde terça-feira à noite. Nenhum sus
peito, nenhuma pessoa de interesse para o caso.
Margaret esvaziou a sala para que o deputado pudesse ter um tempo a sós com a filha; então, alguns minutos depois, ele saiu e sua comitiva o levou embora do hotel.
Enquanto observava Fischer indo embora, ela pensou novamente na ligação do irmão dele com esse hotel, no atentado contra ele cometido por um ativista a favor da
pena de morte.
Cheyenne lhe pediu para ver se o discurso do vice-presidente Fischer tinha alguma coisa a ver com metacognição de primatas, e ela descobriu que não: era sobre a
Constituição como um documento vivo e as implicações que mudanças do ponto de vista sobre os direitos à vida e à liberdade da Quinta Emenda poderiam ter nos problemas
sociais de hoje.
Direito à vida.
À liberdade.
Conhecer a posição do deputado em relação a esses assuntos poderia ajudar a força-tarefa a identificar potenciais grupos que poderiam ter motivações políticas para
prejudicar sua família, e talvez fornecer uma ligação à tentativa de assassinato há seis anos.
Uma olhada no relógio de seu celular a informou que já eram quase 17h30.
Você está trabalhando há onze horas seguidas, Margaret. Vá para casa.
Mas ela duvidou que conseguiria se desligar completamente do caso. Hoje à noite, após o jantar, ela daria uma olhada melhor no registro de votos do deputado Fischer
e no que poderia estar em risco nesse caso.
Ela saiu para pegar suas coisas em seu escritório e foi para casa dar comida para Lewis.
66
17h34
Assim que Tessa e eu chegamos em casa, encaminhei para Missy Schuel o vídeo que Tessa fez de sua conversa com Paul Lansing, e poucos momentos depois, quando estava
me aprontando para começar a vasculhar o passado de Lansing, Missy me ligou.
– Eu estava em dúvida se deveria ou não te ligar – ela disse –, mas agora, à luz de tudo que aconteceu...
– O que foi?
– Um dos advogados de Lansing finalmente retornou minhas ligações. Tenho uma reunião com eles amanhã à tarde.
– Amanhã? Pensei que você tinha dito que esperava...
– Semana que vem. Sim. Não esperava que eles aceitariam o encontro comigo antes disso. Mas agora estou me perguntando se essa pressa repentina tem algo a ver com
o encontro de Lansing com Tessa hoje à tarde – uma pausa, e então: – É possível que Paul estivesse ciente de que sua conversa estava sendo gravada?
Pensei naquilo. – Pelo jeito que ele agiu no vídeo, não parece.
Após um momento ela disse: – Eu concordo, mas seja o que for, essas coisas nunca funcionam tão rápido assim. Tem alguma coisa acontecendo.
Imediatamente, pensei na ligação de Lansing com o ex-vice-presidente. – Eu vou à reunião – eu disse.
– Acho melhor eu ir sozinha. Pelo menos nessa primeira...
– Missy, eu vou.
– Não é assim que as coisas funcionam.
– Você tem três filhos – respondi. – Você foi à reunião com os advogados depois que seu marido a deixou? Ou você apenas confiou em alguém que você mal conhecia para
te ajudar a manter a custódia de seus filhos?
Uma pequena pausa. – Você tem razão. Mas se formos trabalhar juntos, você vai ter que confiar em mim.
– Eu confio.
É em Lansing que eu não confio, pensei, mas mantive o comentário para mim mesmo.
– Certo – ela disse. – Eu acho melhor você não ir, mas a escolha é sua. A reunião é às 15h30. Meu carro está na oficina, então se você puder me pegar no meu escritório
às 14h30, teremos tempo para discutir os detalhes antes da reunião.
Eu concordei e encerramos a ligação.
Após minha conversa com Missy, fui até a sala de estar para ver como Tessa estava e encontrei-a deitada no sofá lendo uma coletânea de histórias de Sherlock Holmes.
– Pensei que você odiava Doyle e só gostasse de...
– Poe. Sim. Eu odeio – ela não se deu o trabalho de olhar para mim.
– Então você decidiu dar outra chance para Doyle?
– Pandora gosta dele. Ela está sempre me pedindo para ler as histórias de Holmes – finalmente ela olhou para mim. – Mas essa com certeza é a última chance de Doyle.
Conhecendo Tessa como eu conhecia, eu achava que ela se refugiara na leitura, um de seus passatempos favoritos, como um meio de lidar com o dia traumático. Eu costumo
fazer a mesma coisa, me recolher ao que é familiar, quando estou lidando com algo opressivo. – Tessa, você gostaria de conversar sobre...Ela voltou para o livro.
– Não estou pronta.
– Tudo bem.
Tentei descobrir o melhor jeito para equilibrar minhas obrigações como pai e meus deveres como agente do FBI pelo resto da noite, mas no final decidi que até Tessa
estar pronta, eu a deixaria em paz e me concentraria no que eu podia descobrir sobre o passado amorfo de Lansing.
Levei meu laptop para a varanda na parte de trás da casa, longe da vista de Tessa.
Pelas anotações que Christie deixara em seu diário, eu sabia que Lansing não havia mudado seu nome desde que haviam se conhecido, então entrei no Banco de Dados
Digital Federal e o digitei. Angela Knight e eu pesquisamos seu passado logo que descobri que ele era pai de Tessa, mas eu não tinha explorado a possibilidade de
ele ter sido do Serviço Secreto, e aposto que Angela também não.
Para começar, foquei minha busca nas dispensas e transferências do Serviço Secreto.
Rastros eletrônicos assim raramente são conclusivos, mas quando o governo decide apagar sua identidade, os dados raramente são encobertos com perfeição, então, apesar
das inconsistências nas informações, achei evidências de que um dos agentes tinha se mudado para Wyoming pouco depois do atentado. Trabalhei por quase uma hora,
e nesse tempo descobri pistas suficientes, referências e inconsistências para me convencer de que a história de Lansing era verdadeira.
Além disso, descobri que foram realizados procedimentos para remover a identidade de um dos agentes presentes no dia da tentativa de assassinato.
Sim, Lansing era um agente e ele estava lá naquele dia, mas percebi uma grande discrepância entre sua história e a informação que encontrei: parecia que era o agente
que usara força letal contra o atirador que tinha se mudado para o oeste, e não um agente que se escondeu.
O que de certo modo fazia sentido, pois parecia estranho que o vice--presidente Fischer manteria amizade com um agente desacreditado do Serviço Secreto cuja falha
em reagir apropriadamente durante uma troca de tiros poderia ter lhe custado a vida.
Depois de mais alguns minutos de busca pelos arquivos, percebi que não faria mais nenhum avanço ali. Eu teria que perguntar isso para Lansing quando o visse amanhã
na reunião sobre a custódia. Lidaria com isso lá.
Por enquanto eu tinha o que precisava, e havia algumas outras coisas que eu queria checar.
Cliquei no meu e-mail e vi que o diretor Rodale tinha mandado oito arquivos pdf com os artigos de pesquisa que prometera enviar. Além disso, o deputado Fischer mantivera
sua palavra e encaminhou seus registros telefônicos e as contas de suas contribuições financeiras para a Fundação Gunderson.
Antes de ler qualquer um desses arquivos, porém, mandei um e-mail para o deputado expressando minhas sinceras condolências pelo que havia acontecido com sua filha.
Encontrar as palavras certas para dizer numa situação como essa é uma das coisas mais difíceis de fazer, e demorei para encontrar algumas que não soassem como meras
banalidades.
Finalmente, quando terminei, comparei as referências de tempo de suas contribuições com a lista de contas bancárias, extratos de cartão de crédito e registros de
depósitos bancários dos potenciais suspeitos, mas não achei nenhuma relação.
Estudei os próprios registros financeiros, mas, honestamente, eles pareciam limpos o suficiente, apesar de suas doações serem surpreendentemente generosas.
Nada chamava a atenção nos registros telefônicos também, exceto um número excessivamente grande de ligações, recebidas e feitas, do diretor Rodale desde março.
Me dei por satisfeito e então li a pesquisa de Rodale sobre o Projeto Rukh, que consistia principalmente em equações sobre a correlação temporal e espacial de símbolos
hemodinâmicos e eletrofisiológicos em imagens cerebrais, e apesar da maioria ser indecifrável para mim, reconheci que aquela pesquisa estava centrada nos impulsos
neurais que se relacionam a diferentes áreas da cognição.
Metacognição?
Teoria da mente?
Mais cavernas para o caso.
Em fevereiro passado, quando estava trabalhando no caso em San Diego no qual cruzamos com o Projeto Rukh, eu conheci um neuropatologista chamado dr. Osbourne. Ele
me falou sobre esse tipo de pesquisa, e pelo que lia ali descobri que parte do seu trabalho sobreviveu. Eu o teria contatado agora, mas ele tinha morrido em um acidente
de carro em março.
Me perguntei se havia alguma circunstância anormal acerca de sua morte, e enviei um e-mail para o investigador Dunn, um detetive de homicídios em San Diego, para
que ele pesquisasse isso para mim.
Enquanto mandava o e-mail, vi Tessa se aproximando da varanda. Ela inclinou a cabeça para fora da porta para falar comigo. – Tenho planos para o jantar.
Olhei o relógio e percebi que já era quase 19h30. Ela devia estar faminta. – Manda.
– Por favor, não diga “manda”.
– A molecada não fala mais isso?
– Sim. A molecada. Adultos não.
– Saquei. O que teremos para o jantar?
– Comida chinesa. Delivery.
O gosto por comida chinesa era uma das poucas coisas que Tessa e eu tínhamos em comum. – Da hora – eu disse.
Ela olhou incrédula para mim. – Espero que eu tenha ouvido mal.
Eu sorri. – Venha cá.
Ela puxou uma das cadeiras da varanda. – Vai chegar em uns vinte minutos.
– Tudo bem.
Tinha sido um dia difícil, e eu queria confortá-la, mas não fazia ideia de quais seriam as palavras certas a dizer. Falei: – Essa tarde. O centro de primatas, eu
sei que te chateou, e depois teve o hotel, que foi horrível. Acredite, se eu tivesse alguma ideia de que em qualquer um dos lugares...
– Eu sei, eu sei, você não teria me levado. Não se preocupe, eu só... – ela encolheu os ombros novamente. – De qualquer jeito...
– Se você decidir que quer conversar, prometo ouvir e não dizer “manda” o tempo todo.
– Ou da hora.
– Ou da hora.
Depois de um bom tempo, ela finalmente falou, e quando o fez, ficou olhando intensamente para as árvores encobertas pelo crepúsculo em vez de olhar para mim. – Patrick,
você acredita que algumas pessoas nascem completamente más?
Suas palavras me atingiram profundamente, mas não me surpreenderam.
Considerando tudo que havia acontecido nos últimos dias, parecia uma pergunta muito natural a se fazer.
Eu não pude deixar de pensar em psicopatas como Richard Basque, Jeffrey Dahmer, Ted Bundy, Sevren Adkins, Gary Ridgeway e, é claro, os assassinos dessa semana e
seus crimes chocantes e sinistros.
Não é possível trabalhar na polícia, pelo tempo que for, e não surgir essa pergunta sobre a maldade, e ao longo dos anos eu pensei nela frequentemente e, por fim,
formei uma opinião, mesmo que ela não fosse uma resposta completa.
– Acho que penso nisso mais como se todos nós tivéssemos nascido com uma casca de bondade em torno de nós, mas ela está rachada, para todo mundo. Todos nós sabemos
o que é certo, mesmo psicopatas estão cientes de sua falta de compaixão. Acho que todas as pessoas sabem o que é bom, mesmo que, com muita frequência, sejamos atraídos
pelo que não é.
– Pelas rachaduras.
– Sim.
Ela pensou por um momento. – Você está dizendo que temos uma predisposição para o mal?
– Eu não falaria desse jeito. Mas definitivamente temos uma queda por ele. Acho que até poderia dizer que somos mais inclinados a ele.
Ela observou a floresta. – Porque algumas vezes sentimos prazer com o mal.
– Sim – era perturbador admitir. – Às vezes temos.
– E se somos bons, então nós fechamos essas rachaduras? É isso que você está dizendo?
Era aí que as coisas ficavam um pouco complicadas. – Na verdade, não acho que podemos fechá-las, Tessa. Não acho que alguém já tenha conseguido isso. É por isso
que temos que ficar atentos...
– Dr. Werjonic.
– O quê?
– O que ele disse: “A estrada para o impensável não é pavimentada por pequenos desvios do seu coração, mas por incursões experimentais até ele”.
– Sim – isso me lembrou que eu não era o único ainda de luto por sua morte. – Ele costumava dizer isso.
Nós dois ficamos em silêncio.
Eu não tinha muita certeza se concordava com a afirmação de Calvin, mas sabendo que Tessa era familiarizada com Shakespeare, eu disse: – Eu sei que isso meio que
bate de frente com a velha frase “sê fiel a ti mesmo”.
Ela balançou a cabeça suavemente. – Não, é a mesma coisa.
Analisei suas palavras, mas os dois dizeres pareciam contraditórios para mim. – As palavras de Calvin alertam contra incursões para dentro de seu coração, e Shakespeare
promove a ideia. Como elas são a mesma coisa?
Finalmente ela parou de estudar as sombras pelo quintal e olhou para mim. – Em Hamlet, Shakespeare escreveu: “Acima de tudo sê fiel a ti mesmo, disso se segue como
a noite ao dia, que não podes ser falso com ninguém”, ou “que podes, então, ser falso com alguém”. Existe uma certa controvérsia sobre os manuscritos que foram preservados,
quais seriam os oficiais... – ela se pegou fugindo do assunto e retomou sua linha de pensamento. – Enfim, isso é exatamente o que esses caras que você persegue fazem.
Assassinos em série, estupradores, pedófilos, o que for.
– Eles estão sendo fieis a si mesmos – eu disse, descobrindo que concordava com ela. – Com seus corações, seus desejos.
– Sim. Incursões até seus corações, e não desvios deles.
A observação bateu de frente com a sabedoria popular de que as pessoas devem ser verdadeiras consigo mesmas, seguir seus sonhos, os desejos de seus corações, mas
fazia sentido porque, quando as pessoas fazem isso sem restrições, elas acabam cometendo os piores crimes imagináveis.
– Isso é muito incisivo – eu disse. – Então, Shakespeare estava errado em encorajar as pessoas a seguirem seus corações?
– Não – ela estava começando a soar mais e mais como a Tessa sarcástica e irritada, e entendi isso como um sinal de que ela estava começando a se sentir melhor.
Era revigorante. – Considere o contexto. A frase de Hamlet não é um conselho, é sarcasmo.
Na frente de casa, ouvi um carro parando.
– Jantar – ela disse.
Minha carteira estava na mesa da cozinha; fui pegar algum dinheiro. – Certo, mas como isso é sarcasmo? – ela me seguiu para dentro de casa, carregando meu computador
para mim. – Todo mundo cita as palavras de Shakespeare como conselhos. Além do mais, “Siga seu coração! Seja verdadeiro consigo mesmo!” é o tema de todos os filmes
já feitos pela Disney. Como a Disney poderia ter entendido isso ao contrário?
– Você está falando sério?
– Só parcialmente – peguei minha carteira e tirei uma nota de vinte. – Mas ainda não entendi como isso é sarcasmo.
– Polônio diz essas palavras.
Ouvi a batida de uma porta de carro.
– Tessa, tenho que admitir que não conheço Hamlet tão bem quanto você.
– Polônio é um bobo da corte que sempre se mete em encrenca quando segue seu coração, quando ele realmente é fiel a si mesmo.
Quando fez com que ele dissesse a frase, Shakespeare estava deixando subentendido o quão absurdo o conselho é. Shakespeare não era burro.
Ele estava alertando as pessoas a não serem verdadeiras consigo mesmas, e não dizendo a elas para fazerem isso. Ele entendia a natureza humana melhor que praticamente
qualquer outro autor na história. – Então ela acrescentou: – Com exceção, talvez, de Poe.
– Claro.
Não pude deixar de me fazer a pergunta óbvia: se não deveríamos ser fiéis a nós mesmos, ao que deveríamos ser fiéis?
A campainha tocou. Atravessei a sala de estar. – Não tenho tanta certeza sobre toda essa coisa da ironia de Polônio. Eu precisaria dar uma olhada.
– Acredite em mim.
Atendi a porta e encontrei Lien-hua parada na varanda segurando três sacolas cheias de comida chinesa.
– Lien-hua – fiquei lá, parado, segurando a porta aberta, olhando para ela.
Ela sorriu suavemente. – Posso entrar?
– Oh – dei um passo para o lado. – Claro. Desculpa – ela passou por mim e deu uma rápida olhada para Tessa: Mas o que está acontecendo? Ela me deu um sorriso discreto
e conspiratório.
– Olá, agente Jiang – ela disse.
– Oi, Tessa.
Lien-hua colocou a comida na mesa da cozinha.
– Não esperava você – eu estava procurando palavras certas. – Tão cedo.
– Bem, a ERT e o pessoal da unidade de cena do crime estão analisando o quarto do hotel e o depósito de bagagens, então não havia muita coisa eu pudesse fazer. Além
disso, eu precisava de um espaço para me focar no perfil, e mesmo quando você está no meio de um caso...
– Você ainda precisa comer – Tessa disse.
– Isso mesmo – ela respondeu. – Então, quando Tessa fez a gentileza de ligar e me contar o quanto você estava se sentindo mal por termos desmarcado o almoço, mas
que você adoraria que eu viesse me juntar a vocês para o jantar, bem...
– Era uma oferta boa demais para não aceitar – Tessa disse.
– Sim.
– E aqui está você – eu disse.
– Aqui estou.
– Bem, é muito bom. É... Fico feliz por você ter conseguido vir.
– Eu também – ela estava vasculhando os armários, procurando os pratos.
Fui até a geladeira. – Acho que não tem muita coisa para beber. Só suco, leite de soja, refrigerante...
– Água está bom.
– Então, água – levei um copo até a pia e pedi a Tessa para pegar os talheres, mas Lien-hua me repreendeu com um dedo em riste. – Isso é comida chinesa.
– Oh, por favor, pauzinhos não. Você sabe como eu sou péssimo com essas coisas.
Ela sorriu. – A prática leva à perfeição.
67
Após cinco minutos de uso desastrado dos pauzinhos enquanto ela e Tessa usavam os delas com uma destreza irritante, Lien-hua finalmente se inclinou na minha direção.
– Aqui, faça assim.
Ela gentilmente pegou minha mão direita com as dela e colocou os pauzinhos na posição certa entre meus dedos. Seu toque era frio e ao mesmo tempo cheio de fogo.
– Isso é muito útil – eu disse enquanto ela guiava meus dedos e manobrava os pauzinhos para mim. – Talvez eu nunca mais use um garfo.
– Quieto.
Tessa só balançou a cabeça.
Lien-hua não teve pressa para me ensinar o que fazer. Eu não achei ruim. – Viu? – ela disse.
Não. Preciso que você me ensine mais.
– Me lembrei daquela noite em San Diego – eu disse. – Quando você me ensinou o alfabeto da linguagem de sinais.
– Eu me lembro – ela respondeu suavemente. Soltou minha mão e então voltou a comer.
Eu mal consegui encher a boca quando ouvi um carro parar em frente de casa. Olhei para Tessa em dúvida, e ela disse: – Deve ser nossa segunda convidada. Por que
você não atende a porta?
Lien-hua olhou para mim. Piscou. – Outra convidada?
Conhecendo Tessa como eu conhecia, eu tinha a sensação de que sabia quem estava chegando. A caminho da porta, acendi as luzes de fora.
E na luz fraca da noite, vi Cheyenne saindo de seu carro.
Oh, Tessa...
Cheyenne subiu os degraus correndo.
Abri a porta para ela. – Ei – eu disse. – Você está aqui.
– Sim – ela trazia uma torta de maçã de supermercado. – A sobremesa chegou.
68
– Obrigada pelo convite, Pat – Cheyenne disse quando fechei a porta atrás dela.
– Por nada – então falei para minha enteada na cozinha: – Tessa, você foi muito gentil em convidar a detetive Warren para o jantar, também.
– Sem problema – veio a resposta.
– Também? – Cheyenne disse. – Então quem mais está...Lien-hua apareceu na porta da cozinha. – Cheyenne.
– Lien-hua.
As duas se olharam por um momento; então, quase simultaneamente olharam para mim.
– Ótimo – eu disse desconfortavelmente. – Então, bom... hum, que bom que tem bastante comida aqui.
Nenhuma delas falou.
Ah, isso era mesmo maravilhoso.
Cheyenne levou a torta para a cozinha, Lien-hua juntou-se a ela e eu perguntei a Tessa se ela poderia por gentileza vir até o corredor por um instante. Ela relutantemente
me seguiu, e quando estávamos fora do raio de escuta das duas mulheres, eu disse: – O que significa isso?
– Nós faltamos no almoço com a agente Jiang.
– Eu sei, mas por que você convidou as duas para virem aqui hoje? O que você está tentando fazer?
Ela me deu um olhar do tipo “você é tão ignorante”. – Conversamos sobre isso mais cedo. Você precisa decidir por quem está mais interessado. O melhor jeito de fazer
isso era trazer as duas aqui. Desse jeito...
Eu não caí nessa. – Por que você está tão preocupada repentinamente com o fato de eu estar com uma mulher?
Uma pausa longa e incerta, e eu quase me arrependi de tê-la pressionado. Finalmente ela disse com suavidade: – Quando chegamos aqui hoje à noite, havia tanta...
não sei... eu só pensei que seria bom para nós dois se não precisássemos pensar em morte por um tempo.
Não consegui arrumar um argumento para isso.
– Você precisa me informar sobre essas coisas, tá bom? – É mais fácil pedir perdão do que pedir permissão.
– Essa frase não se aplica a garotas adolescentes.
Um pequeno sorriso.
– Vamos – ela saiu pelo corredor. – Você tem convidadas para entreter.
Brad chegou ao postinho de gasolina na estrada isolada que beirava a Quantico Marine Corps Base.
Ele estacionou o carro.
Astrid queria um clímax inesquecível para essa onda de crimes, então ela sugeriu deixar uma pequena surpresa para o FBI em seu próprio quintal. Ela parecia feliz
com a ideia, e considerando onde ela havia deixado o laptop, aquele posto de gasolina era o local perfeito.
Não havia nenhum outro carro na estrada, nenhum no posto de gasolina.
Outro motivo que fez com que ele e Astrid escolhessem esse lugar era o isolamento.
Ele voltou sua atenção para o homem atrás do balcão no posto: hispânico, cerca de 25 anos, entediado, alternando entre enviar mensagens de texto e falar ao telefone.
Então Brad organizou suas coisas e preparou a seringa.
69
Por consenso, nós quatro concordamos em não conversar sobre cadáveres, sangue ou, como Tessa disse, “nada nem remotamente nojento”, e a conversa passou por assuntos
como onde cada um de nós havia crescido, nossos hobbies e histórias vergonhosas da época do colégio.
Território seguro.
Os lugares aonde devemos ir quando precisamos espantar os pensamentos ruins.
No entanto, quanto mais falávamos, mais as três pareciam pular de assunto em assunto, sem nenhuma ligação perceptível entre eles. Eu estava constantemente tentando
alcançá-las enquanto nenhuma delas parecia ter problemas em acompanhar a conversa. Eu finalmente comentei que mulheres fazem isso o tempo todo, mas que homens não
conseguem acompanhar o fluxo da discussão porque o pensamento não é linear.
As três mulheres olharam para mim.
– Machista – Tessa disse, não completamente séria.
– Não, não sou. Você sabe disso. Só estou dizendo...
– Tudo bem, Pat – Cheyenne disse. – Estou feliz por você estar ciente de que existe uma diferença entre homens e mulheres.
Na verdade, estou ciente de várias delas...
– Sim, exatamente – eu disse. – Isso que eu queria dizer.
– E você está certo. Nós somos diferentes. Fisiologicamente, quimicamente, hormonalmente, psicologicamente, emocionalmente. O jeito que pensamos, priorizamos, lembramos,
construímos conhecimento e processamos informação. Tudo diferente.
Ótimo. Um jeito de salvar as coisas.
– Exatamente – eu disse. – Homens e mulheres pensam de modo diferente. Homens são mais lógicos, mulheres são mais...
Lien-hua ergueu uma sobrancelha. – Agora, cuidado.
Tessa apoiou sua atitude. – Eu concordo.
– Só estou dizendo... – pelos olhares em seus rostos, decidi que seria melhor tentar uma jogada diferente. – No entanto, vocês sabem que algumas feministas discutem
que os papéis masculino e feminino são simplesmente construções sociais e não traços psicológicos.
– Então elas estão ignorando a pesquisa – Cheyenne balançou a cabeça. – Mas isso não é surpresa. Em uma das mais trágicas ironias do século XX, as feministas nunca
lutaram para as mulheres serem mais femininas.
– O que você quer dizer?
– Em vez de celebrar o que significa ser mulher, ser feminina, ser uma mulher poderosa, elas lutaram para mulheres agirem e serem tratadas como homens. Por isso
eu as chamo de masculinistas.
– Você chama as feministas de masculinistas? – perguntei.
– Isso mesmo.
Ela deve ter percebido a surpresa em nossos rostos porque ela prosseguiu explicando: – Sim. Masculinistas. Porque em sua luta por mais direitos, elas acabaram desvalorizando
o que significa ser uma mulher e emulando as mesmas coisas que elas mais criticavam nos homens: imperialismo, crise de identidade, propagandismo militarista, competição
desumanizadora, carreirismo.
Lien-hua, Tessa e eu olhamos um para o outro. Tive a sensação de que nenhum de nós tinha certeza do que dizer.
Cheyenne repousou seus pauzinhos. – As mulheres deveriam ter a mesma dignidade, a mesma oportunidade e o mesmo respeito que os homens, mas não deveriam ser tratadas
de modo idêntico: igualdade sem uniformidade. Eu quero ser tratada como uma mulher, e não como uma imitação de homem.
– É isso aí, garota – Tessa disse.
Cheyenne continuou. – Uma mulher nunca deveria ter vergonha de ser feminina. A força vem da convicção, não de agir como um homem. Ser feminina não quer dizer que
você é fraca, só quer dizer que você é orgulhosa de ser mulher.
As três olharam para mim como se estivessem me desafiando a dizer o contrário. Tive a sensação de que se elas fossem homens, já estariam dizendo “Toca aqui, parceiro”,
mas achei que não era uma boa hora para apontar aquilo.
– Feminino é bom – eu disse finalmente.
Cheyenne se levantou.
– Eu já volto, preciso usar o banheiro das meninas – ela sorriu quando disse essas palavras e deu uma calorosa ênfase na palavra meninas. Ela saiu pelo corredor.
Lien-hua e Tessa a observaram saindo dali. Quando ela estava fora do campo de visão, Lien-hua disse: – Ela não é nada sutil, né?
Não, eu pensei.
– Não – Tessa disse.
– Estou feliz por ela estar em nossa equipe – Lien-hua disse no mesmo tom. Então voltou a comer.
Mas percebi que ela evitou fazer contato visual comigo.
70
Depois do jantar e a sobremesa, nos juntamos na sala de estar, e quando Lien-hua comentou sobre o tabuleiro de xadrez, Cheyenne elogiou a habilidade de Tessa. –
Ela é uma jogadora e tanto.
– Não se comparada a você – Tessa disse. – Só se for comparada com Patrick.
– Obrigado – eu disse.
Lien-hua pegou a rainha preta. – Eu aprendi a jogar há anos, mas nunca fui muito boa.
– Tenho certeza de que a detetive Warren podia te ensinar algumas jogadas para melhorar seu jogo – Tessa disse.
– Tenho certeza de que ela poderia – ela repousou a rainha.
Silêncio.
– Então – Cheyenne disse –, seu nome, Lien-hua, é lindo.
– Obrigada. Significa lótus.
– A flor.
– Sim.
Apesar de não haver nenhum antagonismo explícito em suas palavras, eu tive a sensação de que as duas mulheres estavam duelando verbalmente.
Cheyenne olhou pensativamente para a parede do outro lado da sala.
Então, concentrando-se para lembrar as palavras, ela citou: – “As flores são os hieróglifos dos anjos. Amadas por todos os homens pela beleza de seu caráter, embora
poucos sejam capazes de decifrar apenas fragmentos de seu significado.”
– Isso é lindo – Lien-hua disse, claramente impressionada. – De onde é?
– Não tenho muita certeza; é uma citação que eu li uma vez de Lydia M. Child. Não sou uma grande leitora, mas às vezes me deparo com algumas coisas que valem a pena,
e me certifico de que elas não vão me escapar – enquanto dizia palavras, ela olhava para mim, deixando margem para mais de uma interpretação. Então ela olhou para
Lien-hua. – Eu gosto da parte sobre decifrar fragmentos de seu significado.
– Adoraria ter uma cópia disso.
– Mas é claro.
Mas no momento, Cheyenne não tomou a iniciativa de escrever a frase.
Mais duelo. Dessa vez em silêncio.
– Então, falando em lótus – Tessa disse –, o Sutra do Lótus é um ensinamento, um discurso de Buda – ela fez uma pausa quando todos nós demos atenção a ela, e então
acrescentou: – O que nos apresenta os Nagas.
– Nagas? – Cheyenne disse.
– De acordo com a lenda – Tessa explicou –, o Sutra do Lótus foi dado pelo próprio Buda e ficou escondido por quinhentos anos na terra dos Nagas até que os humanos
estivessem finalmente prontos para entendê-lo.
– O que são Nagas? – perguntou Cheyenne.
Com um olhar, Tessa deu preferência a Lien-hua, que respondeu: – Um Naga é uma cobra. A palavra normalmente é traduzida como dragão, mas tradução melhor provavelmente
seria cobra. Normalmente, os Nagas são gentis com os humanos, a menos que sejam provocados. Então, eles podem ser genuinamente cruéis. Eles guardam tesouros e representam
a imortalidade.
– Sim – Tessa disse. – Você não ia querer cruzar com um Naga enquanto ele está guardando um tesouro.
– Vou me lembrar disso – Cheyenne disse.
Com todas aquelas entrelinhas se espalhando pela sala, imaginei como teria sido o jantar entre as duas na noite anterior.
Após um momento, Cheyenne, a católica fervorosa, perguntou para Lien-hua: – Então, você é budista?
– Não. Minha mãe era – Lien-hua fez uma pausa. – Eu não quero soar superficial, mas diria que estou entre as religiões.
Cheyenne esperou que ela continuasse, mas Lien-hua não explicou.
Ela disse: – Bem, é uma jornada.
Quando Christie e eu estávamos namorando, ela costumava me dizer que quando classificamos pessoas por sua fé, todos saem perdendo. – Multiculturalismo não constrói
pontes – ela dizia. – Ele coloca pessoas em caixas – talvez não fosse sempre verdade, mas eu percebia isso acontecendo naquele momento.
Me perguntei se Lien-hua não estaria pensando na mesma coisa, porque ela continuou: – Em fevereiro passado, quando Pat e eu estávamos trabalhando num caso em San
Diego, eu fui atacada e deixada em um tanque vazio, que tinha uns quatro metros de profundidade. Enquanto eu estava inconsciente, um homem que já tinha matado pelo
menos outras oito mulheres, incluindo minha irmã, acorrentou meu tornozelo ao fundo, e quando eu acordei, ele começou a encher o tanque com água.
– Isso é horrível – Cheyenne disse suavemente, sua voz cheia de empatia. – O que aconteceu?
– Bem, eu fiquei aterrorizada, claro, e quando a água estava acima minha cabeça, eu... – Lien-hua hesitou, e acho que todos sabíamos o quanto era difícil para ela
contar essa história. – Tendo crescido em uma casa budista, eu não tinha nem certeza Deus existia, mas eu rezei, e alguém chegou para me salvar – seus olhos encontraram
os meus assim como os de Cheyenne haviam feito um minuto antes. – Eu estou tentando entender o que isso significa.
– Significa – Cheyenne disse – que Deus ainda tem grandes planos para você.
– Espero que você esteja certa.
Então, a conversa se distanciou de Deus, e medo, e serpentes que guardam tesouros e voltou para o território mais doméstico de livros favoritos, filmes e passatempos,
e fiquei agradecido por isso. Mas logo depois, Cheyenne disse que realmente precisava ir. – Tenho aula o dia todo amanhã – ela me disse. – Mas posso ajudar com o
caso à noite. Ligo para você assim que sair. Às 17h.
– Ok – eu disse.
Assim que nos despedimos dela e lhe agradecemos pela visita, ela seguiu na direção da porta.
Fiquei em dúvida entre me oferecer ou não para levá-la até o carro, mas no final acabei decidindo não ir. Cheyenne saiu e me juntei a Lien-hua e Tessa, que estavam
na cozinha cuidando da louça; e das sobras.
Alguns instantes depois ouvi o carro de Cheyenne dando ré até a rua.
E então ela se foi.
71
Brad entrou no posto de gasolina para pegar um refrigerante.
O balconista olhou para ele e, por um momento, seus olhos fitaram o rosto de Brad, suas cicatrizes profundas. O homem, cujo crachá mostrava apenas seu primeiro nome,
Juarez, pareceu um pouco apreensivo, mas então voltou a mascar seu chiclete e mandar uma mensagem de texto para alguém com seu telefone.
Brad pegou o refrigerante e levou-o até o caixa. Colocou-o sobre o balcão. Esperou.
Juarez não se deu o trabalho de olhar para ele até, sem nenhuma pressa, terminar de mandar sua mensagem de texto. Então, sem nem ao menos fazer contato visual com
Brad, ele murmurou com um forte sotaque espanhol: – Só isso?
– Você alguma vez já pensou nas duas coisas das quais a tecnologia tenta nos livrar? – Brad perguntou.
Juarez finalmente olhou para ele. Macava chiclete ruidosamente.
– Quê?
Brad apontou para o telefone do balconista. – Tecnologia. Não importa o campo que você escolher, indústria, ciência, medicina ou entretenimento, os avanços tecnológicos
estão aí para criar mais distrações para ocuparem nosso tempo ou para aliviar nosso desconforto: então, servem para construir uma vida mais plena ou uma vida mais
fácil. Você concorda com isso?
Ele balançou a cabeça e murmurou algo em espanhol. Brad não conhecia bem o idioma, mas reconheceu algumas das palavras. Ele colocou as palmas das mãos sobre o balcão,
ao lado da lata de refrigerante. – Paradoxalmente, você sabe quais são dois aspectos da experiência humana que mais nos proporcionam sabedoria?
Juarez olhou para além dele, olhando para a loja como se estivesse esperando alguém aparecer e explicar a piada para ele. Dessa vez, ao falar com Brad, seu tom era
ácido. – Você gostaria de mais alguma coisa com seu refrigerante, señor... – mais uma vez ele falou com Brad de modo bastante rude em espanhol. Brad esperou, analisando
seus olhos, até ficar satisfeito.
Por fim, Brad viu o meio sorriso desaparecer e um traço de preocupação surgir. – Solidão e adversidade – ele disse suavemente. – Essas são as duas coisas que nos
levam à sabedoria. Silêncio suficiente para facilitar a reflexão sobre o sentido da vida, dor suficiente para nos fazer considerar a brevidade da vida. Silêncio
e sofrimento.
Brad ainda estava com as duas mãos apoiadas sobre o balcão, e o olhar de Juarez oscilava entre as mãos e o rosto de Brad. Ele trocou a perna de apoio.
– E ainda assim, todo avanço tecnológico é mais uma tentativa desesperada de afastar o silêncio ou a dor de nossas vidas. Nossa sociedade está constantemente tentando
se curar das duas coisas de que mais precisamos. Isso parece civilizado para você?
O atendente não respondeu. Mas tinha parado de mascar o chiclete.
Brad empurrou o refrigerante na direção dele. – Isso é tudo.
Juarez prontamente registrou a compra. Brad pagou, então foi até a porta, parou e virou a placa que indicava “aberto” para a palavra “fechado” ficasse virada para
a estrada; então virou-se para o atendente. – Talvez eu queira mais uma coisa. Antes de ir embora.
72
Tessa disse para mim e para Lien-hua que já tinha feito o bastante por um dia e que ia se deitar, mas eu desconfiava que todos nós sabíamos que ela não estava indo
para a cama ainda, então ela nos deixou sozinhos na sala de estar. Alguns minutos depois, Lien-hua disse que gostaria de um pouco de ar fresco, e eu sugeri que fôssemos
para a varanda na parte de trás da casa.
Quando saímos para a noite fria, percebi que a luz da lua era sufi-ciente para que eu enxergasse só até o muro de pedra do quintal onde o veado tinha aparecido ontem
de manhã.
Graça e beleza. Perseguidas pelo medo.
Um pequeno reflexo da luz da cozinha saía pela janela.
Por um certo tempo, Lien-hua e eu falamos sobre o caso, nos concentrando nas possíveis ligações entre os locais dos crimes. – Acho que precisamos falar com o ex-vice-presidente
– ela concluiu.
– Sim – eu disse. – Mas talvez eu não seja a pessoa certa para fazer isso. Aparentemente, ele está do lado de Lansing nessa disputa de custódia.
– Vou falar com Margaret. Nós cuidaremos disso.
Um momento se passou, mas sem nenhum ar de constrangimento. O silêncio entre nós parecia seguro e familiar, quase convidativo.
Finalmente ela disse: – Eu nunca tive a chance de conversar com você sobre a morte de Calvin. Você está lidando bem com isso?
– Ele era um bom amigo. Viveu uma vida plena, mas mesmo se ele não tivesse sido atacado como foi, ele não tinha muito tempo de vida. Ele tinha insuficiência cardíaca
congestiva.
Ela enxergou através da minha resposta. – Isso soa como algo que um advogado mandou você dizer. Como você está? De verdade.
Eu hesitei. – Estou bem. Sinto falta dele, mas as coisas são como são.
– A tristeza tem diferentes estágios, Pat – não havia análise psicológica em sua voz, apenas amizade. Compreensão.
– E eles mudam com o tempo.
– Sim, eles mudam.
Então ficamos em silêncio novamente.
A noite estava tranquila, de grilos e o luar sobre o orvalho.
– No que está pensando? – ela perguntou finalmente.
– Estava pensando nele novamente. Em Calvin. Na última vez em que estivemos juntos antes dele entrar em coma.
Ela esperou que eu continuasse.
– Conversamos sobre justiça, e eu me lembro dele me perguntando: “Até onde alguém vai para ver a justiça ser feita?”. Nunca vou me esquecer dessa pergunta.
Ela a analisou. – Não existe resposta fácil para isso.
– Não, não existe.
Lembrei-me da promessa que fiz para Grant Sikora: que eu não deixaria Richard Basque machucar nenhuma outra mulher, uma promessa que eu provavelmente não deveria
ter feito, mas ainda assim me sentia compelido a cumprir. E lembrei-me da frase de Ralph sobre justiça preventiva: “Identifi-car uma ameaça e eliminá-la antes que
ela elimine você”.
“Ou outra pessoa”, eu acrescentei.
Fui até a beirada da varanda, para longe da luz que vinha da janela da cozinha. – O que você pensa sobre justiça preventiva?
– Não acredito que devemos julgar as pessoas pelo que elas poderiam fazer – ela disse. – Apenas pelo que elas já fizeram.
– E ainda assim, planejar um ataque terrorista é um crime, certo?
Uma breve pausa.
– Sim.
Virei-me para ela. – Assim como conspirar, cometer assassinato, fraude, corromper a moral pública, e assim por diante. Nesses casos, detemos pessoas por suas intenções,
e não por suas ações. Em quase todos os países do mundo, você não precisa ter nenhum...
– Sim, eu sei: nenhum motivo concreto ou específico para efetuar o crime e ainda assim você pode ser condenado por conspiração – suas palavras eram concisas, mas
senti que ela estava mais incomodada com as leis do que comigo por apontá-las. Ela continuou: – Mas só porque uma coisa é ilegal, não quer dizer que ela seja moralmente
errada; só porque algo é legal, não quer dizer que isso seja moralmente correta. Nos anos 1940 era legal matar judeus na Alemanha.
As palavras de Cheyenne na conversa durante o jantar ainda deviam estar na minha cabeça porque me peguei pensando nos países do Oriente Médio onde prestei consultoria
e nas leis islâmicas que tornam ilegal o tratamento de mulheres com a dignidade e o respeito que elas merecem. – Isso é verdade – eu disse. – Só porque algo é ilegal
não quer dizer que seja errado.
– E nos casos que você mencionou – ela disse –, crimes de conspiração ou planejamento de terrorismo, as pessoas são condenadas por seus pensamentos e intenções,
não por suas ações. Mas em diferentes situações, todos nós temos desejos e intenções que são imorais.
Já imaginava aonde aquilo ia dar. – Então se você levar a justiça preventiva às últimas consequências, todos nós acabaríamos na prisão.
– Isso é exagerar as coisas, Pat, mas meu ponto é, nós podemos mudar nossas cabeças. Isso é parte daquilo que nos faz humanos. Chame de justiça preventiva se você
quiser, mas eu não acho que exista nenhuma justiça em prever o que alguém poderia fazer e então puni-lo por isso. Não é nosso trabalho policiar os pensamentos das
pessoas ou aprisioná-las por coisas que não fizeram.
Fiquei em silêncio.
Ela olhou para mim com preocupação. – Isso tudo é sobre o quê?
– É algo em que ando pensando ultimamente.
– Algo sobre o qual você quer conversar?
– Algo sobre o qual eu preciso pensar.
Mesmo sem ter certeza de que isso tiraria Basque e a promessa que fiz para Sikora de minha cabeça, voltei a conversa para o caso e revisei os resultados do meu perfil
geográfico, mas durante todo o tempo, senti que Lien-hua estava ouvindo algo nas entrelinhas do que eu falava; que ela estava lendo meus pensamentos mais íntimos
e... bem... meus motivos mais profundos e verdadeiros.
Brad entrou no carro e ligou o motor.
Ele se certificou de que as imagens da câmera de segurança fossem destruídas e que o jovem que estava trabalhando atrás do balcão não iria compartilhar com ninguém
a conversa que tiveram.
Ele guiou o carro até a estrada e dirigiu por 400 metros quando ouviu a explosão atrás de si; pelo espelho retrovisor, viu a pluma de fogo serpenteando contra o
céu.
Com base na localização rural, na falta de tráfego, na hora da noite e no provável tempo de resposta dos serviços de emergência, ele imaginou que demoraria pelo
menos quinze minutos até que as primeiras unidades de supressão de incêndios chegassem.
Ele fez a ligação anônima para a WXTN, destruiu o telefone celular pré-pago com a roda do carro e descartou os fragmentos estilhaçados na floresta. Então, dirigiu
até um estacionamento ao lado da entrada do parque estadual a 13 km do posto de gasolina que queimava.
Esperar por Astrid.
Quando terminei de resumir o perfil geográfico, perguntei a Lien-hua sobre o perfil psicológico no qual ela vinha trabalhando, e ela se lamentou comigo pela dificuldade
em montar um perfil para múltiplos infratores. Concordei que não conseguia nem imaginar o quão difícil aquilo seria.
– Por acaso ouvi um toque de cinismo?
– Não, de admiração.
Dentro da casa, Tessa apagou a luz da cozinha, deixando a varanda no escuro. A luz da lua que banhava o quintal gentilmente envolveu Lien-hua. Eu lhe disse:
– Entender pessoas e descobrir seus motivos não é algo em que eu sou...
– Muito interessado.
– Muito bom. Eu entendo as pessoas tão bem quanto uso pauzinhos.
Ela me olhou mais de perto. – Se você estivesse fazendo o meu perfil, Pat, o que você diria?
– Ah, eu não sei fazer isso.
– Tente.
– Lien-hua, eu não sou nem treinado e nem qualificado para...
– Divirta-me – sua voz carregava um leve sorriso. – Então poderemos rir disso quando você terminar.
– Vamos rir disso agora, então; economizaremos tempo.
Ela inclinou a cabeça. – Vamos fazer assim: quando você terminar, eu faço o seu perfil.
– Você não vai desistir disso, né?
– Sou uma mulher persistente. Normalmente acabo conseguindo o que quero.
Oh.
Desisti. – Tá bom. Vamos ver... A suspeita é...
– Suspeita?
– Claro.
– Sou suspeita do quê?
Vamos ver... crimes passionais... roubo de corações...
– Só estou tentando soar oficial – então limpei a garganta discretamente. – A suspeita é de descendência asiática, aproximadamente trinta anos, compleição esbelta...
– Obrigada.
– Por nada. Cabelo preto. Atlética. Atraente.
Ela acenou com a cabeça, agradecendo pela última parte. – Você está indo muito bem até agora.
– Obrigado. Serena mas não em exagero, ela tem uma mente profundamente reflexiva, perspicácia mental afiada...
Fiquei em dúvida se deveria ou não continuar, dizer as coisas que realmente estava pensando. Se eu fizesse isso, se eu as dissesse, um limite seria demarcado naquele
momento, não havia dúvidas quanto a isso.
Diga a ela, Pat.
Você vai se arrepender se não disser, se você amarelar.
– Isso é tudo? – ela perguntou
– Não – tomei um pequeno fôlego. – Ela parece a mais forte e a mais frágil, a mais segura e a mais livre das mulheres, quando está nos braços de um homem confiante.
Ela é uma mulher que pode cuidar de si mesma, mas fica lisonjeada quando um homem se entrega a ela, para cuidar dela.
Ela ficou em silêncio ao meu lado sob o luar.
Esperei sua resposta, o coração martelando em meu peito.
– Sua vez – eu disse.
– Caucasiano – sua voz era suave. Como veludo. – Em torno dos 35 anos. Alto. Atlético.
– Bonito – eu sugeri, caso ela precisasse de alguma ideia adicional.
– Hum... Com boa aparência. De um jeito meio desleixado.
– Obrigado.
– Por nada. Ele acredita na justiça, é corajoso o suficiente para procurar pela verdade sem medir as consequências, e leva tiros muitas vezes porque não gosta de
esperar pelo reforço.
– Você andou falando com Tessa.
– Talvez.
Ela fez uma pausa, falando mais lentamente agora. – Ele ama a vida profunda e apaixonadamente, e não faz nada pela metade – ela hesitou, mas então continuou: – Desde
a morte de sua esposa, teve problemas em confiar seus sentimentos a outras pessoas, e isso fez com que ele se afastasse das pessoas que mais se importam com ele.
Ele anseia por intimidade, mas, ainda assim, está perdendo a confiança de que vai encontrá-la novamente.
A verdade de suas palavras me abalou e me motivou. Uma ferida cicatrizando...
– Mesmo assim – ela disse –, seu coração superou a perda de Christie, e ele está apaixonado por outra suspeita, mas está confuso porque não quer tomar o que ela
não está disposta a dar.
Ficamos os dois em silêncio então, o som dos grilos preencheu o espaço que se abriu na noite.
Ele está apaixonado por outra suspeita...
Ele anseia por intimidade...
Mas então seus comentários de terça-feira me vieram à lembrança: “Devemos seguir em frente... As pessoas se veem, elas terminam, elas arrumam um modo de trabalhar
juntas novamente”.
Percebi que estava resistindo e me entregando a ela ao mesmo tempo. – E o que ela está disposta a dar? – perguntei suavemente. – Essa suspeita por quem ele está
apaixonado.
Seus olhos se desviaram dos meus, passeando pelas profundezas da floresta. – Primeiro, uma pergunta.
– Sim?
– Preciso saber – então uma longa pausa. – Você está saindo com ela?
Eu soube imediatamente. – Cheyenne?
– Sim.
– Somos apenas amigos.
Ela esperou por mais.
Nenhuma mulher quer ser deixada sozinha enquanto você está solto
por aí procurando alguém melhor.
– É verdade – não estava sendo falso quando disse isso, mas, por saber o que Cheyenne sentia por mim, senti uma pontada de tristeza. Parecia que não importava o
que eu dissesse para Lien-hua, eu acabaria machucando alguém no final.
Repeti, talvez pelo bem de Lien-hua, talvez pelo meu: – Cheyenne e eu somos apenas amigos.
– Pat, quando uma mulher olha para um homem do jeito que ela olha para você, ela é mais que uma amiga. Ou quer ser mais que isso.
Meu coração estava martelando, não só pela vontade de abraçar Lien-hua e ver aonde o momento nos levaria, mas também pela verdade aterrorizante de suas palavras:
ele está apaixonado... ele anseia por intimidade... ele está confuso...
– Uma vez – eu disse –, nós quase fomos mais que amigos, mas... – havia tanto para dizer, para explicar, mas agora, só uma coisa importava, e me permiti dizê-la.
– Sempre que eu ficava sozinho com ela, eu acabava pensando em você.
Lien-hua olhou para mim na noite suave, o luar brincando em seu cabelo escuro. – Se eu te perguntasse o que você quer, Patrick Bowers, agora, neste exato momento,
o que você diria?
A resposta era simples. Clara. Imediata. – Que eu quero ficar com você – suspirei. – E quanto a você? O que você quer?
Suavemente, ela colocou a mão do lado do meu pescoço, seu polegar acariciando minha bochecha, e por um momento longo e tênue ela me olhou nos olhos, sem esconder
nada.
Então ela se aproximou de mim e respondeu minha pergunta com um beijo.
E eu correspondi.
73
Astrid se juntou a Brad no carro que ele roubara especialmente para essa noite.
– Está pronto?
– Sim – ele disse.
Ela colocou a peruca.
Enfiou o cabelo por baixo dela.
Até onde sabiam, o fuzileiro no portão da Quantico nunca tinha visto Brad, então isso não seria um problema mas era quase certo que o soldado já a tinha visto.
Ele descobrira há muito tempo, que embora as mulheres tenham uma tendência maior para lembrar as características do rosto de um homem, os homens reconhecem as mulheres
nem tanto por suas características faciais, mas sim por seu porte, roupas e cabelo. A maioria das mulheres acaba aprendendo isso: se você mudar a cor do cabelo,
vestir uma roupa muito diferente, perder um pouco de peso, os homens de sua vida, pelo menos aqueles menos próximos, mal a reconhecerão.
Então ela estava confiante que essa noite, mesmo se o guarda já tivesse visto a mulher que ela estava representando, não teria problema. Especialmente porque Astrid
estava usando a carteira de motorista falsa que Brad tinha adquirido e o mesmo modelo de carro que a mulher dirigia. Ele até tinha conseguido pegar emprestado a
placa verdadeira do veículo dela para essa noite.
– Ela não vai perceber que elas sumiram – ele disse para Astrid ontem. – Ninguém perceberia que suas placas foram trocadas. É uma das coisas nas quais a gente não
presta atenção.
– Por que não roubar o carro dela?
– Porque isso ela notaria.
Ela lhe deu permissão para fazer isso.
Ela terminou de arrumar a peruca. – Eu dirijo.
– Ok.
Ele saiu do carro e ela passou para o banco do motorista. Quando ele entrou no carro novamente, ela perguntou: – Você está com ele? Ele está no...
– Sim.
– E o cachorro?
– Já cuidei de tudo.
– E você está com a pá?
– Sim.
Então Astrid guiou o carro para a entrada da Academia do FBI.
Hoje à noite, a grande provocação, a maior emoção de todas: um corpo a mais na fazenda de corpos da Academia do FBI. E assim que ela e seu homem o enterrassem, ela
lhe contaria sobre seu filho.
Predador.
Presa.
Morte e vida.
O clímax do jogo. O ciclo de todas as coisas.
As pessoas veem o que esperam ver.
Com a placa verdadeira e o mesmo modelo de carro, com a carteira de motorista, a peruca e uma roupa parecida, ela não esperava que o guarda representasse algum obstáculo.
Afinal, por que aborrecer dois alunos da Academia Nacional voltando para seu dormitório?
Mas caso o fuzileiro desse trabalho, seu parceiro tinha sua Walther P99 escondida debaixo da jaqueta repousada em seu colo. E mais de um corpo seria deixado na fazenda.
Predador. Presa. Morte e vida.
O filho deles.
O ciclo de todas as coisas.
– Quando chegarmos lá – ela disse –, tenho uma surpresa pra você. Algo que preciso te contar.
Enquanto eu observava Lien-hua indo embora, tentei entender meus sentimentos.
Abraçá-la, beijá-la, trouxe tudo de volta...
A esperança.
O desejo intenso.
A confusão.
Assim como os esforços para fazer as coisas darem certo e a dor aguda que senti quando nos separamos mês passado.
Talvez ela estivesse certa sobre mim, talvez eu não tivesse sido capaz de abrir as partes mais profundas do meu coração desde a morte de Christie e foi isso que
fez com que eu me distanciasse das pessoas que eu amava.
Tudo por causa de um persistente tom de tristeza que ainda se arrastava dentro de mim.
Os faróis de seu carro piscaram através das árvores. A neblina estava começando a tomar a noite e fazia as lanternas traseiras parecerem pinceladas borradas de uma
pintura feita com aquarela.
Embora poucos sejam capazes de decifrar apenas fragmentos de seu significado...
Finalmente o nevoeiro da noite engoliu as luzes do carro e eu voltei para a sala de estar, onde encontrei Tessa sentada no sofá trocando de canal na TV.
Clique.
Clique. Entre os canais.
O livro de Sherlock Holmes e uma cópia de O Médico e o Monstro estavam ao lado dela sobre um travesseiro.
– Você disse boa noite para ela? – ela perguntou.
– Disse.
Clique.
Sentei-me no sofá. – Não sei se devo te agradecer ou ficar bravo por você ter convidado as duas sem me pedir antes.
– Eu escolho a opção em que você me agradece – ela parou no noticiário. Um posto de gasolina nas proximidades havia explodido e as autoridades estavam especulando
se isso tinha sido causado por um vazamento de gasolina de algum tanque de armazenamento subterrâneo.
– A partir de agora, me mantenha informado – eu disse.
– Pode deixar – clique.
Clique. Um jogo de beisebol no final.
– Ajudou? – ela perguntou. – Ter trazido as duas aqui?
Honestamente, parece que tornou as coisas mais simples e mais complicadas ao mesmo tempo, mas eu apenas disse: – Volte.
– Para onde?
– A explosão.
Clique. Clique. Ela encontrou.
Um jovem que estava trabalhando no posto estava desaparecido e temiam que ele estivesse preso na parte de dentro. Canos de gasolina estavam alimentando o fogo e
as equipes de bombeiros estavam com muita dificuldade para apagá-lo.
O posto de gasolina estava localizado em uma estrada que percorria o perímetro externo da Quantico Marine Corps Base.
– Então – ela disse –, mais confuso.
– Sim – minha atenção estava no noticiário.
Hora.
Local.
É aleatório, Pat. Esqueça isso.
Tessa balançou a mão na frente do meu rosto. – Ei. Você ainda está aí?
– Desculpa. O que você estava dizendo?
– Não, você estava: que as coisas estão mais confusas agora que você pegou a agente Jiang.
Pisquei. – Eu não ia dizer isso.
– Você estava pensando nisso.
– Não, eu... você estava nos espionando?
Ela balançou a cabeça.
– Não dessa vez, mas obrigada por confirmar minhas suspeitas.
Odeio quando ela faz isso.
Peguei o controle remoto dela, desliguei a televisão e tentei soar severo e como um pai.
– Vá para a cama, mocinha.
– Sim, pai.
Alguns minutos depois, enquanto estava me aprontando para me deitar, percebi que o pingente de São Francisco de Assis ainda estava no meu bolso.
Tirei-o e hesitei por um momento; então coloquei-o dentro de uma gaveta e a fechei lentamente.
O fuzileiro de guarda no portão da frente da Quantico se inclinou até a janela do carro.
– Boa noite, senhora.
– Olá.
Ele pegou suas carteiras de motorista e iluminou o rosto de Brad. – Senhor.
– Boa noite, sargento.
Astrid o observou parar discretamente quando percebeu as cicatrizes de Brad. Ele desviou o olhar, mas só depois de olhar por um bom tempo.
Ele verificou as carteiras. – De Houston, é?
– Sim – ela disse. – Estamos aqui para a Academia Nacional.
– Estamos hospedados no Dormitório Washington – Brad acrescentou. O fuzileiro não olhou para ele novamente, apenas comparou seus nomes com os nomes de sua lista.
Anotou a placa do carro. – Tenham uma boa noite, srta. Larotte e sr. Collins – ele devolveu as identificações falsas para eles.
– Obrigada – ela disse.
E ele permitiu que passassem.
Nenhum problema. Assim como Astrid tinha previsto.
Brad tinha imprimido um mapa do terreno da Academia naquela tarde. Então agora, enquanto eles se afastavam do posto de entrada, ele o pegou e o analisou à luz de
uma lanterna. – Vire à esquerda – ele disse.
Ele a direcionou passando pelo Laboratório Forense do FBI, pelo Hogan’s Alley, até um terreno de cascalho no fim da estrada.
Ela estacionou ao lado de uma trilha que se embrenhava na floresta cercada de névoa.
A entrada para a fazenda de corpos.
Ela deixou a peruca entre os assentos, pegou uma lanterna e desceu do carro.
74
Astrid ouviu sua história se desenrolando em sua cabeça.
O nevoeiro percorria seu caminho no meio das árvores e se entrelaçava na vegetação rasteira ao lado da trilha.
Por um momento, isso a fez lembrar do conto de fadas em que o nevoeiro circunda o castelo que aprisiona a princesa adormecida, a garota que desconhece todos os príncipes
que fracassaram em encontrá-la; os príncipes cujos corpos estão perdidos no coração profundo e secreto do matagal.
Ela parou para observar um corpo caído com o rosto virado para baixo em um riacho a cerca de seis metros à sua esquerda.
Brad parou de andar. Ficou ao lado dela.
Ele sugeriu que encontrassem o local antes, então voltassem ao carro para pegar tudo de que precisavam, em vez de “arrastar as coisas pela floresta”.
Poderia ser uma perda de tempo, mas Astrid concordou com a ideia. Honestamente, nesse ponto, ela estava pensando mais na notícia que iria compartilhar com ele do
que no jovem que eles enterrariam ali.
O desagradável odor de morte se espalhava pela floresta.
Brad consultou seu mapa.
– Certo. Estou pensando em ir sentido oeste por uns duzentos metros. Nenhuma classe está agendada para visitar aquela área até segunda-feira.
– Como você sabe disso?
– Pesquisa – ele disse simplesmente.
– Deixe-me ver isso.
Ele lhe deu o mapa, e ela o iluminou com a lanterna. Ele ficou ao lado dela. – Não – ela disse –, nós deveríamos fazer isso aqui mesmo.
– Eu estava pensando que seria melhor...
– Não.
Após um momento. – Tudo bem.
– Vamos pegar o...
A picada profunda e aguda do lado de seu pescoço a assustou; a chocou, fez com que ela recuasse para trás. – Mas o que... – a mão instintivamente foi para o pescoço;
encontrou a seringa com a agulha ainda enfiada nele. Ela a teria arrancado, mas estava enfiada fundo e ela já estava começando a se sentir tonta.
Suas mãos caíram para os lados.
Brad estendeu os braços para pegá-la. – Calma.
Ela estava consciente, mas de algum jeito inconsciente, do mapa e da lanterna que ela estava segurando e que giravam no chão. Ela deve ter deixado cair.
Preciso...
Agora suas pernas estavam cedendo e Brad a segurava.
– Não lute, Astrid – ele disse. – Não se preocupe, é o que usamos no guarda na outra noite, o que usei em Mollie. Não vai te matar.
– O que você está... – as palavras pareciam pesadas e grosseiras em sua boca.
Ele estava baixando-a até o chão.
– Shh. Fique calma. Tudo vai ficar bem.
Ela estava deitada agora e ele estava removendo a agulha de
seu pescoço.
– Só relaxe – ela o ouvir falar, ou pensou ter ouvido. Nada mais era certeza.
Perdia a noção do tempo. Ela mexeu a boca, tentou falar, mas não saiu nada. Um conto de fadas. A densa neblina parecia tomar conta dela, tornar-se parte dela.
E a última coisa que ela viu antes do mundo desaparecer foi seu amante tirando uma mecha rebelde de cabelo de seu rosto, ajoelhado ao lado dela sob o luar, dizendo-lhe
suavemente, suavemente, para dormir.
75
Deitei inclinado na cama, com o computador no colo, explorando uma das cavernas ainda não mapeadas desse caso.
Muitos dos artigos de neurociência que Rodale me mandou citavam a pesquisa de Benjamin Libet vencedora do prêmio Nobel, que fez experimentos no fim do século XX
sobre iniciação de ação, intenção, atos volitivos e consciência.
Agora eu estava vasculhando a internet, lendo sobre seu trabalho.
Aparentemente, o dr. Libet queria registrar impulsos neurais inconscientes enquanto os participantes da pesquisa aguardavam e então realizavam tarefas simples como
apertar um botão ou apertar uma bolinha. Por exemplo, ele lhes dizia: “Assim que você estiver ciente de qual botão você deseja apertar, faça-o”.
Descobrindo por meio de um osciloscópio o milissegundo em que os participantes estavam cientes do estímulo para agir, e então comparando isso com a atividade elétrica
cerebral (e levando em conta o tempo que leva para seus músculos responderem), ele comparou o momento da atividade neural inconsciente com aquela da consciência
do participante sobre sua intenção de agir.
E ele descobriu algo surpreendente.
Em praticamente todos os casos, sinapses neurais inconscientes normalmente precediam a escolha consciente, ou ato volitivo, da pessoa em cerca de meio segundo.
Alguns céticos apontaram que o simples ato de estar sendo observado ou de estarem pesquisando em sua cabeça como você vai reagir durante o experimento poderia ser
parcialmente responsável pelas reações neurais pré-cognitivas. No entanto, se você considerasse os valores nominais da descoberta da pesquisa, você seria forçado
a concluir que a mente inconsciente determinou a ação ou, para ser mais direto, uma decisão foi tomada e, então, quinhentos milissegundos depois, o sujeito testado
acreditava que ele estava decidindo.
A mente consciente levava crédito por um curso de ação que o inconsciente já havia determinado.
E é aí que as coisas ficavam interessantes.
Cientistas sabem há muito tempo que alguns reflexos espinais, como o de retirar a mão do fogo, acontecem sem uma decisão ou sem nenhum processo de pensamento racional.
Mas agora, à luz dos experimentos do dr. Libet e das descobertas recentes da neurociência, muitos cientistas estavam aparentemente se convencendo de que tomadas
de decisão complexas também acontecem inconscientemente, como resultado da influência do ambiente sobre o código genético de um indivíduo e pelo contexto da experiência
e das condições de uma pessoa.
Um pensamento desagradável começou a se manifestar dentro de mim.
Essa linha de pensamento – que nossa reação a estímulos é modelada somente por processos naturais: composição genética, química cerebral e sinapses neurais que são
disparadas por certas sugestões ambientais – significaria que, na prática, não somos livres para escolher conscientemente nossas ações. E se não somos livres para
escolher, não temos a liberdade para definir o curso de nossas vidas.
A conclusão inevitável, é claro, era a de que o “livre-arbítrio” é uma ilusão.
Consequentemente, as pessoas não seriam responsáveis moralmente por seus comportamentos, porque, de certo modo, elas estariam simplesmente agindo por instinto. Afinal,
seria injusto considerar alguém responsável por uma coisa sobre a qual não tem controle.
Algumas buscas on-line confirmaram o que eu temia: alguns assassinos já recorreram a neurocientistas para declarar que o comportamento deles estava, em essência,
enraizado em seus cérebros e que, tendo em vista as sugestões ambientais às quais eles foram expostos, eles não tinham escolha além de agir da maneira como agiram.
Assim, eles não podiam ser considerados responsáveis pelo crime.
Porque estavam agindo por instinto...
Um instinto maligno.
E, espantosamente, essa defesa havia sido bem-sucedida em pelo menos meia dúzia de casos de assassinato de pena capital desde outubro do ano passado; e agora que
o precedente existia, sem dúvida isso se tornaria uma defesa cada vez mais popular.
A ciência se encontra com a justiça.
E a justiça perde.
Mas é claro que não era propriamente a ciência que estava lutando contra a justiça, mas sim a reinterpretação de um conjunto específico de experimentos científicos.
Ainda assim, parecia que nesses casos, era tudo o que era preciso.
As implicações que isso poderia ter em investigações criminais e sistemas de justiça pelo mundo eram desconcertantes.
Estupradores, pedófilos, violadores de direitos humanos podiam alegar que eles não eram capazes de evitar suas ações porque estavam geneticamente determinados a
agir do jeito que agiam, dadas as sugestões ambientais presentes na hora do crime. Portanto, eles não poderiam ser considerados responsáveis pela reação natural
do instinto.
Cavernas atrás de cavernas apareciam para mim... a pesquisa de metacognição da Fundação Gunderson... os experimentos de intencionalidade do dr. Libet... as descobertas
neurológicas do Projeto Rukh... o comprometimento do deputado Fischer com “um método mais progressivo de reduzir o comportamento criminoso”...
Por aproximadamente uma hora considerei as relações entre todos os túneis escuros do caso e vi um número de possíveis direções para onde eles poderiam levar, mas
acabei atolado em conjecturas em vez de inclinado sobre conclusões baseadas em evidências sólidas.
Com o tempo, a carga emocional do dia começou a pesar sobre mim.
Senti minha concentração diminuindo e a exaustão me dominando.
Por fim, coloquei o computador de lado e fechei os olhos, mas o sono não veio tão fácil, pois minha mente vagava de sonho em sonho, nos quais via chimpanzés mortos,
bagagens ensanguentadas e uma chuva negra caindo ao meu redor e espirrando como sombras de sangue no chão.
Enquanto, por perto, gorilas quebravam espelhos em pedaços irregulares que refletiam uma realidade estilhaçada e distorcida.
Da qual eu me tornara uma parte bastante íntima.
76
Ela acordou lentamente.
De volta para o mundo. De volta para si mesma.
Ela estava deitada no chão. Era o máximo que ela podia
dizer, deitada de costas. Seus olhos estavam fechados e suas pálpebras pareciam opressivamente pesadas, pesadas demais para se abrirem. Ela tentou se mover, mas
seu corpo não respondia.
Tudo dentro dela, ao redor dela, era um sonho pesado e vago. Ela sentiu o cheiro úmido de pinho de uma floresta, junto ao acre fedor da morte.
A fazenda de corpos.
Ela ouviu um barulho de raspagem próximo dela, seguindo
um certo ritmo. Raspando, parando. Raspando novamente.
Mas todos os cheiros, todos os sons estavam contidos em uma escuridão úmida e quente que envolvia lentamente sua cabeça.
E apesar de seus olhos ainda estarem fechados, ondas sinuosas de cor dançavam à sua frente, flutuavam pelas visões estranhas que todos temos enquanto passamos do
sono para o mundo que acorda.
O tempo passou.
A cada momento, o cheiro imundo da podridão ficava pior. Mais do som de raspagem ao lado dela.
Até que finalmente, e com muito esforço, ela abriu os olhos e foi capaz de inclinar a cabeça na direção do barulho.
E sob o luar diáfano e cheio de neblina, ela viu um homem.
Cavando.
Brad deve ter percebido o movimento quando ela virou a cabeça em sua direção, pois ele parou o que estava fazendo, enfiou a ponta da pá no chão e apoiou um braço
sobre o cabo.
– É bom vê-la acordada – ele disse. – Eu estava preocupado, achando que tinha usado Propotol demais, que seu coração tinha parado. Estou muito feliz por não ter
feito isso. Se você tivesse morrido, teria estragado completamente minha surpresa.
– O quê? – ela murmurou. – Não... – não porque ela não tivesse entendido, mas porque estava começando a entender.
– Vou explicar tudo em alguns minutos – ele ergueu a pá novamente. – Deixe-me terminar aqui primeiro.
Ele cavou mais algumas pás de terra e um cheiro rançoso e penetrante veio do chão.
O fedor de carne podre era insuportável e Astrid sentiu vontade de vomitar, mas por algum motivo, seu corpo não a permitiu. Sua garganta se contraiu, mas ela não
vomitou. E Brad não parecia nem um pouco incomodado pelo cheiro.
Ela não fazia ideia de como isso era possível.
Ele se ajoelhou e começou a alternar entre usar um pequeno ancinho e uma pá de jardinagem para remover terra do buraco.
Os olhos de Astrid estavam começando a se acostumar com a noite, e ela podia ver pelos movimentos dele que o buraco não era profundo.
E ela acreditava que sabia o que estava dentro.
O tempo passava e a fraqueza que a prendia ao chão diminuía gradativamente. Ela podia mexer a cabeça com mais facilidade agora, e ela sentiu sua força gradualmente
retornando para suas pernas e seus braços. Ela podia mexer os dedos e colocar os pés para o lado.
O luar com nevoeiro banhava a floresta em torno dela.
Apesar de não ter força suficiente para se sentar, ou lutar, ou correr, pelo menos ela finalmente era capaz de pensar mais claramente.
– O que você está fazendo? – sua voz soava fraca. Distante. Como se outra pessoa estivesse dizendo as palavras para ela.
– Estou terminando o que comecei logo que encontrei você no DuaLife – ele ainda estava cavando com as ferramentas de jardinagem. – Logo que escolhi você.
– Não – ela murmurou. – Eu escolhi você.
– Sim – ele disse ambiguamente, mas ela sabia que ele não estava realmente concordando com ela. – Por algum tempo fiquei preocupado que você soubesse, que descobrisse
minhas intenções, que adivinhasse o final – ele estava tirando terra do buraco enquanto falava. – Mas parece que você estava distraída demais por sua ganância de
poder.
Ele terminou o trabalho no buraco e colocou a pá e o ancinho de lado.
Ela tentou fazer com que sua voz soasse firme, controlada, autoritária. – Leve-me de volta para casa. Vamos conversar sobre isso em casa.
Ele andou ao redor dela de modo que não mais ficasse entre ela e o buraco. Então ajoelhou-se ao lado dela. – Você sabe o que causa o medo?
Ela estava tentando reunir suas forças para se sentar. – Brad, leve-me para casa.
– Quando uma pessoa se sente ameaçada naquele lugar, aquele lugar físico, emocional ou psicológico...
– Brad...
Ele pousou um dedo nos lábios dela. – Ameaçada naquele lugar onde ela se sente mais segura, ali, naquele momento, o medo nasce. Quanto mais profunda for a sensação
de segurança, mais agudo é o medo.
– Não – ela disse. – É... você não entende...
Suavemente, ele limpou um pouco de terra que deve ter caído na bochecha dela enquanto ele cavava. – Aquele poder, aquela sensação de domínio absoluto sobre a vida
e a morte na qual você ficou tão viciada, vamos ver como você lida com o oposto.
Ele deslizou uma mão debaixo costas dela, a outra sob as pernas, e a levantou.
Ela tentou se livrar dele, mas ainda não havia recuperado força o suficiente. – Eu não... – suas palavras desapareceram. – Eu preciso contar uma coisa para você...
Ele a carregou na direção do buraco. – Sim?
– Estou grávida, Brad. Pare com isso. Agora.
Ele a colocou no chão ao lado do buraco, mas não respondeu, simplesmente esticou os braços e as pernas dela.
– Eu vou dar à luz o seu filho.
O cheiro era terrível, insuportável.
Ela o viu virar para o lado, para a escuridão, e pegar uma mordaça.
– Eu disse que estou grávida!
Ele se inclinou sobre ela. – Astrid, eu sei como isso funciona. A vítima implora, se humilha, diz ao opressor o que vier à cabeça para fazê-lo mudar de ideia, mas
não vai funcionar. Nós dois sabemos que não vai...
– Eu posso provar – o desespero tomou conta de suas palavras. – Leve-me para casa!
Ele parou e pareceu considerar seu pedido.
– É verdade – ela disse. Sem querer, sua voz falhou. – Por favor, por favor.
– Se você estiver contando a verdade, se você realmente estiver grávida, então essa noite vai ser ainda mais especial para mim – ele se curvou sobre ela e esticou
a mordaça. – Dois pelo preço de um – e antes que ela pudesse gritar por socorro, ele forçou a mordaça em sua boca e a prendeu no lugar.
– Bem-vinda ao aquário.
Então ele a rolou de cara para dentro do buraco.
Em cima do cadáver apodrecido.
77
Ela teria gritado se não estivesse amordaçada.
Ela tentou se levantar, lutou para isso, mas ainda estava muito fraca, e ele estava lhe pressionando, o joelho apoiado contra suas costas.
– Astrid, eu gostaria que você conhecesse Riah Everson – ele disse. – Ela tinha 38 anos e era mãe de três. Morreu por um ferimento na cabeça há dois dias, depois
de escorregar em uma boneca que sua filha mais nova deixou no topo da escada.
Sua bochecha estava encostada na pele úmida do rosto do cadáver. Desesperadamente, desesperadamente, ela lutou para se livrar, mas o sedativo ainda estava fazendo
efeito e o peso de Brad a segurava. Duas enormes larvas rastejavam pela pele pútrida da mulher morta, e ela as sentiu se contorcendo momentaneamente contra sua própria
bochecha antes de desaparecerem de vista.
Novamente ela sentiu vontade de vomitar, novamente ela não vomitou.
Ele estava posicionando o braço direito dela, passando algo em torno de sua cintura, mas ele deve ter visto sua garganta se contraindo.
– Foi um pouco difícil resolver essa parte. Com o cheiro, eu sabia que você instintivamente vomitaria, e com essa mor
daça na boca, você sufocaria com o próprio vômito e morreria. E não é exatamente isso o que queremos aqui.
Ela sentiu uma faixa se apertar em volta de sua cintura. Ela tentou, tentou, tentou se livrar, mas ele afivelou bem forte. Prendendo seu pulso a alguma coisa embaixo
dela.
O braço da mulher morta.
Outro grito saiu de sua garganta, mas não foi a lugar algum.
– Não existem muitas drogas que paralisam o reflexo de ânsia de vômito. Eu não tinha certeza de que a dotracaína que eu dei para você funcionaria. Ela deveria durar
16 horas. Esperamos que sim.
Ela virava a cabeça desesperadamente para os lados tentando soltar a mordaça, mas não conseguiu soltá-la, e tendo visto a eficiência do trabalho dele no passado,
ela duvidava que conseguiria soltar a mordaça sem utilizar as mãos.
Ele estava segurando o outro braço dela agora, prendendo-o ao de Riah Everson.
– Eu gostaria de poder levar crédito por essa ideia, mas na verdade os romanos que inventaram. Eles prendiam um cadáver às costas de um condenado e o faziam carregá-lo
por aí até que ele morresse também. Eles não conheciam a infecção naquela época, mas conheciam a morte. Os romanos também eram fãs de crucificação. Eles não deixavam
os culpados escaparem tão facilmente.
Ele estava quase terminando em seu braço esquerdo. Ela tentou soltá-lo. Inutilmente.
– Lembra-se de Paulo, o santo? Conversamos sobre isso na quarta-feira. Ele se referia a essa técnica: “O mal que não desejo. Eu sou um homem desgraçado! Quem irá
me resgatar desse corpo da morte?”. Viu como ele faz? O corpo da morte? É uma jogada de palavras: o pecado vira, por metonímia, o corpo morto que ele está carregando.
Ele apertou a segunda faixa. Afivelou-a.
Então foi mexer em suas pernas.
78
Quando terminou com os tornozelos dela, Brad passou a última faixa sob o pescoço da mulher morta, e então em torno do pescoço de sua amante.
Quando o fez, Astrid, que estava deitada de rosto para baixo, conseguiu distanciar um pouco sua bochecha do cadáver. Brad agarrou um punhado de cabelo e a forçou
para baixo, para manter seu rosto devidamente posicionado enquanto ele afivelava a faixa em volta do pescoço dela com a outra mão.
Ele não queria impedir a respiração de Astrid, por isso foi delicado, cuidadoso, enquanto prendia o pescoço dela ao pescoço do cadáver de Riah Everson.
Então soltou o cabelo dela, levantou-se e pegou seu celular para fazer um vídeo.
Para mais tarde.
Ele se certificou de fazer boas imagens. Milhares de oficiais de polícia um dia assistiriam a essa filmagem nas aulas da Academia do FBI, e ele queria garantir que
eles pudessem dar uma boa olhada no rosto bonito e cheio de terror de Astrid.
Finalmente ele guardou o telefone e pegou a pá. – Só para você saber – ele lançou uma pá de terra sobre as pernas dela. – Não vou colocar terra sobre seu rosto.
Não quero que você sufoque. E não está tão frio essa noite, então não precisa se preocupar com hipotermia. Provavelmente, os animais carniceiros é que vão acabar
te incomodando mais. Eu imagino que muitos deles andem por aqui. Com o grau de decomposição de Riah, não deve demorar para eles chegarem. Temo que até o próximo
fim de semana você se torne uma adição permanente para a fazenda de corpos.
Ele jogou mais terra em volta dos tornozelos e dos pulsos para garantir que ela não conseguiria escapar.
– Aliás – ele disse –, eu nunca tive uma pastora-de-shetland – ele estava arrumando a terra em volta dos pés dela. – Nenhum cachorro, apesar de às vezes eu me divertir
com alguns dos gatos da vizinhança.
Ele percebia que ela estava tentando gritar, e sentiu prazer em reparar como o som que ela fazia era baixo.
Após garantir que ela estava bem presa, ele jogou uma fina camada de terra sobre ela, espalhou o restante e jogou folhas por cima da área para esconder as evidências.
Finalmente levantou-se e analisou seu trabalho.
A cabeça de Astrid ainda estava visível, mas a menos que você soubesse onde procurar, não era algo que dava para perceber. Suas costas subiam e desciam bruscamente
em movimentos curtos e desesperados de respiração. Baseado na velocidade de sua respiração, ele calculou que ela poderia sofrer de hiperventilação, mas ele havia
estudado anatomia humana o sufi-ciente para saber que mesmo se ela desmaiasse, ela certamente recuperaria os sentidos novamente. Pelo menos pelas primeiras dez ou
doze horas. O corpo humano é incrivelmente adaptado à sobrevivência.
Ele começou a juntar suas coisas.
Ela desempenhou bem o papel para o qual ele a escolhera.
Sim.
Ele já havia matado antes de conhecê-la, claro que sim, mas esse tinha sido o jogo mais longo e requintado até agora – todo aquele tempo fazendo papel de submisso,
de controlado, de servil, tudo isso pago pela confiança que ele ganhara dela.
Perigo e jogo.
Sim.
Requintado.
Astrid tentou gritar novamente, mas não era possível. Ela nunca mais emitiria outro som reconhecível, nunca mais diria outra palavra.
Ele se inclinou sobre ela uma última vez. – No começo eu estava pensando em te levar para o porão, para o quarto que eu gastei tanto tempo para reformar, mas então
decidi que seria mais divertido desse jeito – ele passou a mão suavemente pelo cabelo dela. – E foi mais divertido desse jeito, não foi?
Ela tentou se livrar da mão dele. Fracassou.
Enquanto planejava essa noite, ele previu que veria pânico nos olhos dela mas a profundidade do terror e o desespero final que ele agora via em seu rosto iluminado
pela lua eram ainda mais satisfatórios do que ele imaginara.
Uma lágrima escorreu pela lateral do nariz dela, e ele gentilmente a enxugou. – Durma bem, Astrid.
Então ele pegou a pá e os instrumentos de jardinagem e caminhou pelo luar envolto pela neblina até o carro.
Não, esse não era o clímax da história.
As coisas só estavam começando a ficar interessantes.
79
Faltam 14 horas...
Sexta-feira, 13 de junho
7h29
Considerando todas as experiências traumáticas pelas quais Tessa havia passado nos últimos dias, eu sabia que ela precisava dormir, então tomei cuidado para não
acordá-la enquanto fazia um pouco de café.
Fui ao banheiro, tomei meus remédios e verifiquei o ferimento à bala. Meu braço doía, é claro, mas a dor havia mudado de rajadas agudas de fogo para uma sensibilidade
profunda que percorria todo o lado esquerdo do meu corpo. Um borrão de dor denso e contínuo que era impossível ignorar.
O ferimento sangrou durante a noite, e agora o curativo estava ensopado de sangue. Passei um tempo limpando a ferida, coloquei um pouco de antibiótico tópico nos
buracos de entrada e saída da bala, então enrolei o braço com um curativo novo, mas tudo isso só serviu para deixar o ferimento mais sensível e dolorido novamente.
Enquanto tomava café da manhã, tentei não prestar atenção ao meu braço.
Curioso sobre a explosão do posto de gasolina, chequei algumas notícias on-line e descobri que o corpo do jovem que estava trabalhando no posto de gasolina, Juarez
Hernandez, havia sido encontrado atrás do balcão da loja.
Nenhum sinal suspeito.
É o que estavam dizendo.
Outra morte.
Outra dose de tristeza para outra família arrasada.
Enquanto considerava as possíveis implicações da explosão, verifiquei meu e-mail e reparei numa mensagem de Margaret notificando todos os membros da força-tarefa
de uma reunião às 11h no posto de comando. Nossos caminhos não se cruzaram desde que Rodale tinha me colocado de volta no caso, e eu imaginei que ela não estaria
satisfeita com a decisão dele, mas decidi não me preocupar com aquilo a menos que ela tocasse no assunto.
Felizmente, outro instrutor assumiria minhas aulas novamente hoje, e isso me daria a chance de passar a maior parte do dia concentrado no caso, apesar de, reconhecidamente,
eu não estar animado pelo fato do outro instrutor ser Jake Vanderveld.
Após atualizar o banco de dados do nível de comando da força-tarefa com os arquivos que Rodale me mandou e os relatórios financeiros de Fis-cher, eu revi as atualizações
do caso. Lembrei-me de que uma nota fiscal de posto de gasolina fora encontrada na van estacionada no hotel, e quando baixei a foto dela, vi que era do mesmo posto
de gasolina que explodiu.
Sabendo como esses assassinos agiam, suspeitei que eles haviam deixado aquela nota na van de propósito, apenas para nos provocar.
Ou para te dar uma pista do outro crime que estavam planejando.
Um crime futuro.
Eles nos deixaram a nota fiscal do posto de gasolina, então mataram
Juarez... deixaram o carro de Mahan, então o mataram mais tarde, naquela mesma noite... deixaram a bolsa de Mollie, então a mataram no dia seguinte.
Hum...
Lembrei-me novamente de Adkins, o único assassino que enfrentei que seguia esse padrão de deixar pistas para futuras vítimas, mas ele morreu depois de ser perseguido
uma ambulância até um desfiladeiro na Carolina do Norte.
Passei mais de uma hora analisando essa possibilidade, mas não encontrei nada, e às 9h02 eu estava visualizando os registros de DNA de ontem quando meu telefone
tocou.
O identificador mostrou que era Angela Knight.
Quando atendi, ela não perdeu tempo:
– Encontrei Richard Basque.
– O quê? – imediatamente, fui para a varanda na parte de trás da casa para que, se Tessa acordasse, ela não ouvisse minha conversa. – Você o encontrou? Onde?
– Ele está aqui, em Washington, ou pelo menos estava há duas horas.
– Onde ele está agora?
– Não tenho certeza.
Eu estava na varanda agora, fechando a porta atrás de mim. – Como você sabe que ele estava na cidade?
– No começo, quando você me pediu para procurá-lo, fiz o de sempre, você sabe, procurei por GPS, utilização de cartão de crédito, analisei listas de companhias aéreas,
imagens de trânsito. Nada. Até tentei os arquivos de vídeo do satélite do sistema de defesa para ver se tínhamos imagens de seu carro deixando Chicago; eles começaram
a armazenar os vídeos antigos, você sabe...
– Sim, por seis meses. Eu sei – eu estava ansioso para saber como ela o havia encontrado. – Então você achou o carro dele?
– Não, aí é que está. Eu não achei – eu a ouvi bocejar e acabei bocejando também. Poder da sugestão. Ela continuou: – Então eu apelei para a próxima coisa boa que
eu podia usar...
– Vigilância de trânsito.
– Sim – ela parecia desapontada por eu ter adivinhado o que ela ia dizer. – Comecei uma metabusca das imagens em vídeo do trânsito das vinte maiores cidades dos
EUA desde terça-feira. Você não faz ideia do quanto demora para acessar essas informações. A banda larga que a maioria dessas cidades usa é de... – ela bocejou novamente.
– Há quanto tempo você está acordada, Angela?
Ela pensou.
– Não sei direito. Enfim, lá estava ele, andando pela Estação Central do metrô em Washington às 7h31 da manhã de hoje. Eu sei que isso faz mais de uma hora. Desculpe-me
por não ter conseguido falar com você mais cedo.
Eu não achava que ela precisava se desculpar por nada. – Não, você fez muito bem. Tem certeza de que é ele?
– Oitenta e quatro por cento de certeza, segundo Lacey.
Seu computador. A boa e velha Lacey.
– Você já contou para Ralph? – perguntei.
– Achei melhor você. Considerando que foi você quem pediu para eu localizar Basque.
Tentei processar o que ela me disse dentro do contexto geral do caso. – Certo. Alguma coisa sobre Patricia E.?
– Pat, eu estou superatrasada aqui – ela disse, o que não era exatamente uma resposta. – Um pouco antes de ligar para você, fiquei sabendo que a polícia metropolitana
encontrou um carro roubado com o laptop de Mollie Fischer no banco de trás, e adivinha quem vai ter que recuperar os dados?
– Eles encontraram o computador?
Ah, sim. Ótimo.
As coisas estavam acontecendo.
– Sim, e você vai adorar isso: o carro está parado na frente do quartel--general da polícia.
Por que aquilo não me surpreendia?
– Quem o encontrou?
– Lee Anderson – ele era o oficial da polícia metropolitana que havia me dado uma carona do hospital até o meu carro na quarta-feira à tarde.
Aquele que tinha ficado surpreso pela minha opinião sobre motivos logo que nos conhecemos.
– Ligue-me se você descobrir mais alguma coisa, Angela. Obrigado novamente. Você é a melhor.
Outro bocejo. Mais uma vez me peguei repetindo o que ela fez. Eu queria que ela parasse de fazer isso. – Até mais, Pat.
– Ok.
Fim da ligação.
Obviamente, para poder entender os padrões de tráfego a pé, assim como a potencial entrada de pedestres e as rotas de saída do carro, eu precisaria dar uma olhada
no carro e avaliar sua posição em relação às ruas da região, assim como sua distância da entrada para o quartel-general da polícia. No entanto, eu não queria deixar
Tessa sozinha, especialmente depois de Lansing tê-la cercado no hotel ontem. Além disso, mesmo que Basque nunca a tenha ameaçado de jeito nenhum, só de saber que
ele estava na vizinhança eu me sentia desconfortável.
Mas eu não poderia levar Tessa para uma cena de crime secundária que ainda estava sendo examinada.
Resolva isso daqui a pouco.
Prioridades para as coisas prioritárias.
Liguei para o número de Ralph e ele ouviu silenciosamente enquanto eu explicava que Angela Knight havia encontrado Basque.
– Você devia ter me contado ontem que ela estava trabalhando nisso.
– Isso não era exatamente uma coisa oficial – eu disse. – Eu não queria te envolver.
– Você a envolveu.
Uma pausa. – Sim, envolvi.
– Se os advogados de Basque descobrirem isso e voltarem a pegar no nosso pé...
– Eu sei. Não se preocupe. Eu seguro a bomba, mas lembre-se da promessa que fiz a Grant Sikora. Eu preciso deter Basque.
– Nesse momento, o que você precisa é me deixar cuidar dele.
Não era hora de discutir com meu amigo. – Tá certo.
Ano passado, quando Sevren Adkins estava assassinando jovens mulheres no sudeste, foi Ralph que me chamou para ajudar, então expliquei detalhadamente o fato de que
os assassinos pareciam estar deixando pistas para crimes futuros, assim como ele fazia.
Ele ficou quieto. – Nunca encontraram o corpo dele, Pat.
– Ralph, mal encontraram os restos da ambulância.
Ele não respondeu.
– Ninguém poderia ter sobrevivido a uma queda como aquela – mas enquanto dizia isso, lembrei de ter ouvido sobre casos de paraquedistas que sobreviveram a quedas
de milhares de metros quando seus paraque-das não abriram.
– Você deveria manter isso como uma possibilidade em aberto – ele disse.
Parte de mim sabia que ele estava certo, parte de mim não queria imaginar nem de brincadeira que Sevren poderia estar vivo.
Teorize, avalie, elimine as possibilidades.
– Vou pedir para o laboratório analisar novamente todos os DNAs e as impressões digitais – eu disse. – Vamos procurar por qualquer evidência de que ele possa ter
reaparecido em algum lugar desde outubro. E quanto a Basque? Você vai ficar por aí ou vai voltar?
Eu esperava, é claro, que ele me dissesse que ia pegar o próximo voo para Washington, mas em vez disso, ele fez uma longa pausa. – Na noite passada, Kreger descobriu
algumas correspondências que Basque e seu advogado trocaram com a professora Lebreau há alguns anos, quando pediram para reavaliar o caso.
– Eu lembro quando saiu nos jornais – eu disse. – Ela era uma advogada contra a pena de morte.
– Exato. Enfim, estamos considerando tudo isso. Parece que ele andou escrevendo para ela durante todos esses anos. Não temos certeza de que ela respondeu. Se eu
encontrar qualquer prova de que Basque a contatou desde sua soltura, pode ser que tenhamos algo com o que trabalhar. Até lá, ainda não temos nada sólido que o ligue
ao desaparecimento de Lebreau.
– Exceto a sincronia dos desaparecimentos.
– Sim.
– E essas ligações do passado.
– Você e eu sabemos que isso não é suficiente. E se nós o interrogarmos sem nada além de suspeitas e...
– Sim. Eu sei. A imprensa vai ter um prato cheio.
– E os advogados dele também.
Ele pensou por um momento. – Vou fazer o seguinte: vou ficar aqui por enquanto e verificar os contatos de Basque e Lebreau na área de Washington, DC, falar com alguns
amigos dela, ver se tem alguém na capital que eles pudessem ter ido visitar. Enquanto isso, vamos mandar a polícia metropolitana procurar pelo carro de Basque, monitorar
aqueles vídeos de trânsito – ele tomou fôlego. – Como está o arranhão do seu braço?
– Está bem. A propósito, você foi muito rude quando me arrancou aquela intravenosa.
– Vira homem. Quando eu era um Ranger, nós costumávamos...
– Sem histórias de macho, Ralph, por favor. Ficou sabendo que localizamos o corpo de Mollie ontem?
– Sim. No hotel. Está em todos os jornais.
– Anderson encontrou o laptop dela hoje de manhã em um carro estacionado em frente ao quartel-general da polícia.
Quando Ralph ouviu o local, ele xingou baixinho. – Então, você vai dar uma olhada nisso?
– Bem, eu gostaria, mas o pai de Tessa está entrando em contato com ela. Ele sabe onde estamos, então eu não quero que ela fique aqui em casa sozinha, mas, pelo
que sei, eles ainda estão examinando a cena, então não posso levá-la comigo.
Ele pensou por um momento. – Que tal Brineesha? Elas se conhecem, e Brin não está trabalhando hoje. Ela não vai ligar.
Na verdade, a esposa de Ralph seria perfeita.
– Vou falar com ela – eu disse. – Obrigado.
Concordamos em manter um ao outro informado e depois desligamos.
Entrei em contato com Brineesha e combinei tudo: eu levaria Tessa para a casa dela às 10h15, elas iriam ao shopping (oh, Tessa iria adorar isso), então, após minha
reunião, eu as encontraria na praça de alimentação por volta das 14h.
Isso nos daria tempo suficiente para chegar ao escritório de Missy Schuel às 14h30 e eu poderia trocar informações com ela antes da reunião sobre a custódia às 15h30.
Ufa.
Com base na reação de Missy ontem, quando eu lhe disse que iria à reunião sobre a custódia, já podia imaginar o que ela diria quando eu aparecesse com Tessa, mas
isso era sobre o futuro de Tessa, e eu queria que ela estivesse presente.
Tudo isso, mais tarde.
Fiz uma ligação rápida para o posto de comando para colocar o nome de Sevren Adkins em alerta. – Veja se algum sistema o identificou desde o outono passado. Dê busca
no ViCAP, AFIS, CODIS, tudo isso.
– Sim, senhor.
Encerrei a ligação, olhei no meu relógio e vi que já eram 9h16. Normalmente, demora-se uns 45 minutos daqui até a casa de Ralph e Brineesha, mas com o trânsito de
sexta-feira de manhã demoraria mais ainda, e Tessa ainda não tinha acordado.
Ficaria apertado para chegar lá às 10h15. Fui até o quarto dela para acordá-la.
O que poderia muito bem ser a coisa mais desafiadora do meu dia.
80
Tessa resmungou quando eu a acordei.
– Apague a luz – ela envolveu a cabeça com um travesseiro.
– A luz está apagada. Isso é o sol.
– Ah, então apague o sol.
– Tessa, preciso que você levante. É importante.
– Por quê?
– Porque encontraram algo, uma evidência, e eu preciso conferi-la e depois ir para uma reunião.
Ela lamentou. – Eu não quero ficar sentada em salas de espera o dia todo enquanto você se encontra com pessoas. Vou ficar bem aqui. Paul não virá, os advogados dele
nunca deixariam. Só me deixe com uma arma ou algo assim.
– Não vou deixar você com uma arma. Vou deixá-la com a sra. Hawkins.
– Onde?
– Onde o quê?
Finalmente, ela tirou o travesseiro da cabeça e olhou para mim. – Onde você vai me deixar? Na última vez ela me levou para fazer compras.
Uma breve pausa. – Ela falou alguma coisa sobre o shopping, mas é só para...
– Você sabe o que eu acho sobre fazer compras – ela reclamou.
– É o que eu acho de reuniões.
– Pior – a cada momento ela parecia mais lúcida, e dava para ver que estava ficando irritada. – Muito pior.
– Vai ser só por umas três ou quatro horas...
Tessa sorriu. – Que tal isso? Deixe-me na Biblioteca do Congresso. Vou ficar na sala de leitura principal. Celulares não são permitidos lá, então Paul não pode me
ligar. E é a biblioteca mais segura do mundo. É o lugar mais seguro de Washington, com exceção, talvez, do Capitólio e da Casa Branca.
– Não tenho certeza disso.
– Tanto faz – ela ficou deitada apoiada em um dos ombros. – Além do mais, se eu o vir em qualquer lugar, chamo a polícia e digo que ele está me perseguindo e então
ligo para você. Vamos, não me obrigue a ir fazer compras. Aliás, como está seu braço?
– Meu braço está bem, e sair para fazer compras não é assim tão...
Na verdade, quanto mais eu pensava naquilo, mais eu considerava o pedido dela para ir à biblioteca. Ao contrário do shopping, que ficava a pelo menos quinze minutos
de carro do posto de comando, a Biblioteca do Congresso ficava na mesma rua, então eu estaria por perto. E Tessa certamente estaria mais protegida lá do que em público
com Brineesha.
– Tá bom, você pode ir para a Biblioteca do Congresso. Mas precisamos ir logo. Vista-se. Saímos em quinze minutos.
Saí pelo corredor, cancelei com Brineesha e fui pegar minhas anotações e meu laptop.
Os animais carniceiros chegaram em algum momento no meio da noite.
Ratos, ela imaginou, mas do jeito que sua cabeça estava posicionada, não foi possível vê-los claramente para ter certeza.
Eles morderam seus tornozelos, mastigaram a carne perto das faixas que a prendiam. Ela tentou gritar, mas engasgou; nem isso ela podia fazer.
Durante toda a noite, ela lutou sem sucesso para se libertar, mas só conseguiu espalhar um pouco a terra em volta dela, o que podia ter atraído os roedores: por
causa do cheiro podre que era exalado do corpo debaixo dela.
Pelo menos agora, durante a luz do dia, eles a deixaram em paz.
Mas sua força desaparecera, desperdiçada em seus esforços inúteis para se libertar.
Sua coragem tinha morrido, suas lágrimas tinham secado, e agora ela estava deitada contra o cadáver pútrido, exausta.
Com frio.
Derrotada.
Ela se tornou novamente a garotinha frágil, tremendo
debaixo de uma cama em uma noite de maio, rezando para um Deus silencioso.
Ela nunca mais rezara desde aquela noite, não se aventurou a acreditar que Deus estava lá para escutá-la. Mas agora, sem mais nenhum outro recurso, ela rezou.
No entanto, dessa vez ela não estava pedindo pela vida de ninguém, mas por sua própria morte. Para se livrar mais rapidamente do terror que se abatera sobre ela.
Morte.
Para ela e seu filho.
Ainda assim, o Todo-Poderoso lhe ofereceu apenas silêncio
como resposta.
81
Faltam 12 horas...
9h29
Tessa levou menos tempo do que pensei para ficar pronta.
Ela entrou na cozinha para pegar algo para comer e acabou com um prato de sobra da comida chinesa que Lien-hua trouxera na noite passada, e uma fatia da torta de
maçã de Cheyenne.
Dois sabores totalmente diferentes.
Ok, Pat. Nem pense nisso.
– Você pode comer no carro – eu disse. – Não vou encher o saco por isso. Vamos indo.
Ela pegou sua coletânea de histórias de Sherlock Holmes e, antes que eu pudesse lhe perguntar, ela disse: – Sim, eu sei, mas prometi para Dora que terminaria. Estou
quase acabando.
Entramos no carro e seguimos para a rodovia. – Então, já virou fã? – perguntei a ela.
– Do quê? – ela estava comendo a sobremesa primeiro, e sua boca estava cheia de torta de maçã. – Do Holmes?
– Sim.
– Hum – ela engoliu. – Sinceramente, não. Doyle trapaceou.
Ela já tinha me mostrado o contraste entre Doyle e Poe antes, e eu recorri a nossas discussões anteriores: – Você quer dizer, por Holmes se basear descaradamente
no personagem Dupin de Poe?
– Bem, isso e as soluções para seus mistérios – equilibrando o prato de comida no colo, ela abriu o livro. – Certo, então, esse aqui, O Estrela de Prata, o que eu
estava lendo ontem à noite. Holmes o soluciona quando ele percebe... – ela demorou alguns instantes para procurar pelas páginas do livro. – Isso. Aqui: “O curioso
incidente do cão durante a noite... o cão não fez nada durante a noite... esse foi o incidente curioso”.
Reconheci uma das frases mais famosas de Sherlock Holmes. – Claro, o cão não latiu. Holmes percebeu que ele deveria ter latido, e essa era a pista, não o que aconteceu,
mas o que não aconteceu e que deveria ter acontecido; a coisa que você esperaria.
– Certo – ela disse –, bem, teria sido curioso se o cão não latisse, mas até aquele ponto da história, Doyle não diz que o cachorro não latiu. É trapaça deixar o
seu detetive repentinamente saber de algo que seus leitores não sabem. Isso é muito conveniente. Quero dizer, se você vai escrever um mistério, você tem que pelo
menos jogar limpo e incluir fatos suficientes para que leitores espertos possam resolver o caso.
Viramos na estrada municipal em frente à casa. Seis minutos até a interestadual.
– Isso faz sentido – eu disse. – Mas pelo menos o raciocínio de Hol-mes estava correto, quero dizer, o princípio investigativo é verdadeiro.
– E a qual Holmes você estaria se referindo? – ela estava comendo a comida chinesa agora, e sua boca estava cheia. Em vez de pauzinhos, ela estava usando um garfo.
– Você tem preconceito com ele – eu disse – porque você não gosta do autor.
– Não, sério, seu método para resolver crimes é inteiramente baseado em um engano de lógica.
– Um engano de lógica? Sherlock Holmes? Não concordo.
Ela engoliu a comida.
– Doyle faz Holmes dizer, eu não sei, acho que é em O Cão dos Baskervilles ou talvez em O Signo dos Quatro, enfim, ele diz: “Quando você tiver eliminado o impossível,
não importa o que sobrar, mesmo que improvável, deve ser a verdade”. Eu não tenho certeza se é assim ao pé da letra, mas você entendeu, certo?
– Claro, Spock até citou isso no filme Jornada nas Estrelas de 2009.
– Bem, se ele fez isso, estava sendo ilógico também.
– Agora você está dizendo que Spock foi ilógico.
– Sim.
– Heresia.
– Tanto faz.
Ela pegou outra garfada.
Eu avaliei o princípio investigativo. – Tessa, eu tenho que dizer que, dessa vez, acho que você está errada.
Esse raciocínio é perfeitamente lógico.
Ela terminou o resto da comida e colocou o prato de lado. – Vamos dizer que você esteja tentando eliminar o impossível. Como você sabe que o fez?
– Eliminar o impossível?
– Sim.
Olhei para ela com curiosidade e ela explicou: – Só porque algo não foi feito antes não quer dizer que é impossível.
Se você dissesse para Holmes que poderia reanimar o coração de alguém depois de a pessoa estar morta... – ela segurou seu celular. – Ou que ele poderia usar essa
coisa para conversar com qualquer pessoa no mundo a hora que quisesse, ele teria dito que é impossível.
– E era. Naquela época.
Ela me olhou com um ar de aborrecimento. – Obviamente.
– Então o que você está dizendo? Que na teoria é verdade, mas na prática...
– Sim. Considere isso: como você poderia ter certeza de que eliminou todas as possibilidades? Que de algum jeito você considerou cada eventualidade, cada combinação
de fatos, que você previu cada acontecimento imprevisível?
– Bem – relutei em admitir. – A menos que você tenha conhecimento infinito, você não pode.
– Exatamente, então é o seguinte: não há como ter certeza de que você eliminou o impossível. E ter certeza absoluta de que você eliminou todas as possibilidades...
– É o pré-requisito para aplicar o método de Holmes.
– Sim.
– E é ilógico – eu disse, antecipando sua conclusão – basear sua estratégia investigativa em uma metodologia que não pode, em essência, ser praticada no mundo real.
Uma pausa.
– É um jeito bonito de falar isso.
Então tanto o sr. Spock quanto Sherlock Holmes estavam errados porque eles não estavam sendo lógicos o suficiente.
Por essa eu não esperava.
Pelo resto do caminho até a Biblioteca do Congresso, enquanto Tessa lia e murmurava insultos sobre as “habilidades dedutivas especiais” de Holmes, tentei considerar
as possibilidades impossíveis relacionadas a esse caso.
O que eu estava considerando ser impossível e que não era? Como isso estava afetando minha perspectiva? E onde, nessa bagunça de pistas e assassinatos, o cão estava
falhando em latir?
Chegamos.
Deixei Tessa na entrada da biblioteca na Independence Avenue, esperei até que ela entrasse e então parei no estacionamento subterrâneo do quartel-general da polícia;
levando luvas de látex e minha bolsa do computador comigo, saí na direção da rua para dar uma olhada no carro que os assassinos deixaram bem debaixo do nosso nariz.
Brad invadiu a conta do gmail da garota no dia anterior ao que matou Styles e os dois policiais em Maryland, no mês passado.
E esse foi um dos motivos que o levou a propor o plano dessa semana para Astrid.
Por causa do que ele tinha lido nos e-mails da jovem.
Essa noite prometia um mundo de possibilidades, mas, para realizá
-las, ele precisava de um pouco mais de informação.
Invadir sites seguros estava rapidamente se tornando um dos hobbies favoritos de Brad; então, ele clicou no navegador de seu computador e navegou até o site do escritório
de advocacia de Wilby, Chase & Lombrowski.
E começou seu trabalho.
82
Faltam 11 horas...
10h29
O perímetro das duas ruas adjacentes foi isolado. Uma multidão de curiosos se reuniu além da barricada enquanto um bando de policiais com caras entediadas os monitorava
do outro lado linha.
O tenente Doehring e o oficial Tielman, o membro da unidade de cena do crime que eu tinha conhecido na terça-feira à noite, estavam de pé ao lado do Honda Accord
no qual o laptop fora encontrado.
Doehring estava preenchendo uma pilha de papéis em uma prancheta e Tielman estava olhando no porta-malas aberto do carro, mas seu kit de ferramentas forenses não
estava em nenhum lugar por perto. A ERT já devia ter completado seu trabalho.
Quando Doehring me viu, ele gritou: – Como está esse braço?
Meus olhos estavam na multidão. – Furado.
– Ah, você deveria ser um comediante.
– Não de acordo com a minha enteada. – Gesticulei na direção do bloqueio no fim da rua e perguntei a Doehring: – Estamos filmando aquela multidão, certo?
– Claro.
– Vamos ver se encontramos algum suspeito com características corporais e postura compatíveis com Aria Petic ou com o homem não identificado que pegamos na filmagem
empurrando a cadeira de rodas para dentro do Lincoln Towers. – Até onde sabíamos, Aria Petic era um nome fictício, mas dava para ver que Doehring estava entendendo.
– Boa ideia.
– Também compare as características faciais das pessoas aqui com as de Richard Devin Basque – tomei fôlego. – E Sevren Adkins. O Ilusionista.
Ele olhou para mim. – Richard Devin Basque e Sevren Adkins?
– Sim. Acho que Basque pode estar na cidade. Quero saber se ele está naquela multidão. Adkins é um chute longe, mas é algo que preciso confirmar. Depois explico
– então, uma ideia. Por que não? – E a dra. Renée Lebreau. Você deve conseguir uma foto dela, o peso e a altura com o agente Kreger lá em Michigan. Vamos ver se
ela está aqui.
Eu o vi contando os dedos, relembrando todos os cinco nomes. – Eu já volto – ele pegou o rádio e se afastou.
Eu disse para Tielman:
– Conte-me sobre o carro.
– Bem, alguém deu cem dólares em moedas para um mendigo ontem à tarde. Ele tem colocado moedas no parquímetro de hora em hora. Anderson o viu, imaginou que ele não
poderia ser o dono do carro. E então, aqui estamos.
– Alguém deu cem dólares a um mendigo? O que o motivou a ficar colocando moedas...
– A promessa de mais dinheiro, se ele continuasse fazendo isso por 24 horas. E não, o mendigo não pôde nos dar uma descrição do homem que deu as moedas a ele.
Humm...
– Ninguém além de Anderson reparou nisso?
– Aparentemente não.
Eu analisei o veículo.
– Sua equipe encontrou algo de significativo aqui?
– Bem, a etiqueta de retirada de bagagem.
– O quê? – Angela não tinha mencionado isso.
– Sim. Cassidy a encontrou. Farraday fez uma varredura no carro primeiro, deve ter passado sem perceber. Porém, não havia nenhuma impressão digital nela, nem DNA.
Por que assassinos tão cuidadosos deixariam uma etiqueta de retirada de bagagem para trás?
– O que mais?
– Pesquisamos a placa, examinamos os carpetes procurando amostras de terra e nada; Cassidy verificou o volante, as maçanetas das portas e o porta-malas em busca
de DNA e impressões, mas até agora as únicas são da família dos donos, de dois amigos e do antigo dono do carro.
Ele tinha um olhar de satisfação no rosto, como se estivesse orgulhoso de como havia feito seu trabalho. – Os donos estão limpos. Ambos estavam numa exposição de
arte na hora da perseguição no hotel. Quando eles saíram, o carro tinha desaparecido.
– Eles registraram o roubo?
– Sim.
– Nenhum papel de bala no carro? – eu disse. – Chiclete? Canudos, guardanapos, qualquer coisa de onde possamos tirar DNA?
– Eu sou bom no que faço, agente Bowers – sua voz demonstrava frieza.
– Fico feliz em saber disso. – Usando as luvas de látex, entrei no carro, sentei-me no banco do motorista e olhei pelo para-brisa.
Isso foi a última coisa que o motorista viu antes de sair do veículo.
Daqui eu podia ver a câmera de segurança em cima da entrada da frente do prédio da polícia. Esperei e ela girou na minha direção, e então para longe de mim, então
na minha direção novamente, mas pela posição que estava em relação à entrada e pelo ângulo da volta que fazia, supus que o carro não apareceria na imagem.
Perguntei a Tielman sobre isso, e ele confirmou minhas suspeitas: a equipe verificou as imagens, ele me disse, mas não encontrou nada. – Se os assassinos tivessem
estacionado nove metros para frente no quarteirão, nós os pegaríamos – seu tom parecia de elogio pela potencial esperteza do departamento de polícia, e não pela
antecipação do fato pelos assassinos.
Esses caras eram bons.
E era vídeo novamente.
Sempre alguma coisa a ver com vídeo.
Ângulos.
Orientação.
Lembrei-me das câmeras do instituto de pesquisa, da filmagem apagada das 17h às 19h, da transmissão de vídeo para a loja de eletrônicos, das câmeras de trânsito
pegando a placa do Volvo, do vídeo repetindo as imagens do beco vazio. Os assassinos pareciam ser especialistas em virar contra nós as próprias ferramentas que estávamos
usando para encontrá-los.
E ainda assim.
Ainda assim...
O homem que levou Mollie para o hotel na cadeira de rodas foi pego por câmeras duas vezes: entrando no hotel e depois entrando no elevador de serviço.
Ele é bom demais para isso.
Por que ele não usou apenas a entrada do beco ou a...
O cão não latiu.
Ele queria que nós o perseguíssemos pelo hotel.
Pensei nisso.
Por que ele iria querer isso?
Eu não fazia ideia, mas ou os assassinos foram descuidados ou estavam tão à frente de nós a ponto de estarem orquestrando tudo. Seis passos à nossa frente o tempo
todo. Eles pareciam conhecer a caverna e nos mostravam apenas os túneis que queriam que víssemos.
Saí do carro e perguntei a Tielman: – Esse mendigo que estava colocando moedas no parquímetro, ele se lembra de quando o cara deu o dinheiro para ele?
– Em algum momento da tarde de ontem – ele cruzou os braços: Pensei em tudo. Vá em frente, tente achar algo que eu tenha esquecido.
– Sobraram moedas? Se sim...
– Ele usou cerca de metade do dinheiro com bebida – Tielman me interrompeu bruscamente. – Checamos as moedas que sobraram procurando por impressões digitais, mas
não achamos nada no AFIS – ele olhou para além de mim, na direção do quartel-general da polícia. – Vejo você na reunião.
– Bom trabalho.
Após uma pausa. – Obrigado.
Enquanto eu o observava indo embora, reparei que três carros de canais de TV estavam alinhados no fim da rua, e Nick, o câmera que estava no Lincoln Towers Hotel
ontem quando cheguei, estava entrando na van da WXTN.
E quando ele fez isso, tive algumas ideias sobre uma entrada para a caverna que eu ainda não tinha percebido.
83
Peguei meu celular. Demorei apenas alguns instantes para encontrar on--line o número do telefone da WXTN. Digitei-o enquanto entrava no quartel-general da polícia.
A segurança era rígida, mas eu conhecia um dos agentes que operava o detector de metais, e quando mostrei minha credencial e abri minha jaqueta para mostrar minha
arma, ele me deixou entrar.
O posto de comando era no terceiro andar.
Uma secretária da WXTN me colocou na espera e quando eu finalmente fui transferido para o presidente do canal, já tinha percorrido os três lances de escada. – Aqui
é Bryan Tait – ele disse. – Fui informado de que você é do FBI.
Optei por ficar na privacidade da escadaria para nossa conversa. – Estou apenas fazendo uma verificação de fatos. Você tem um câmera trabalhando para você cujo primeiro
nome é Nick; você pode confirmar o sobrenome dele para mim? – eu inventei um nome. – Seria Verhooven?
– Temos uma equipe grande. Não estou familiarizado com todos os nossos empregados. Só um momento – uma pausa enquanto ele procurava pelo nome. – Trichek.
– Pode soletrar para mim?
– T–r–i–c–h–e–k.
– Preciso que você me mande uma cópia do horário de trabalho dele nessa última semana – imaginei que poderia conseguir seu telefone e endereço por conta própria.
Uma pausa.
– Ele fez alguma coisa ilegal?
– Não que eu saiba.
Outra pausa.
– Temo que essa seja uma informação confidencial. Eu teria que falar com o departamento jurídico sobre isso.
– Tudo bem. E enquanto você estiver ao telefone com eles, vou pedir um mandado; vai economizar tempo para nós dois – um pequeno blefe. – Podemos conversar novamente
em quinze minutos. Enquanto isso, espero que não vaze a informação de que a WXTN hesitou em cooperar com as autoridades. Você sabe como essas coisas se espalham
rápido...
Um breve silêncio. – Eu acho que o horário de trabalho do sr. Trichek não seja nada extraordinariamente confidencial.
Eu também não achava.
– Ótimo – passei um endereço de e-mail seguro do Bureau e então disse: – E também os registros de Chelsea Traye. Eu gostaria dos dela também.
Um último momento de hesitação. – Claro.
Eu lhe agradeci, finalizei a ligação e fui na direção do corredor para o posto de comando, tentando não presumir nada.
E falhando nisso.
84
Estações de trabalho foram espalhadas pela sala de conferência. Contei 22 pessoas presentes, seja digitando em computadores, fazendo ligações telefônicas, conversando
em pequenos grupos ou examinando fotos de cenas de crime que foram espalhadas pelas mesas. Reconheci alguns dos policiais e agentes, mas a maioria, não.
Lien-hua e Margaret estavam paradas ao lado de algumas fileiras apressadamente ajeitadas de cadeiras em frente a uma grande tela que projetava um mapa em duas dimensões
da cidade, com os locais dos crimes marcados por pontos vermelhos. Uma mesa de aproximadamente dois metros e meio estava cheia de papéis, copos de café pela metade
e dois laptops logo à esquerda de Margaret.
Meus olhos encontraram os de Lien-hua, e nenhum de nós estava com pressa de olhar em outra direção.
Por um momento, pensei no comentário de Cheyenne na noite passada, de que ela teria aula o dia todo e então me ligaria à noite, e me senti confuso novamente.
Lien-hua.
Cheyenne.
Pat, não faça isso consigo mesmo! Na noite passada você...
Margaret olhou para mim. – Aí está você – suas palavras estavam cheias do seu charme característico, mas senti mais rivalidade do que o normal. – Temos muito o que
fazer – ela gesticulou na direção das cadeiras. – Vamos começar.
Com frequência, agentes encarregados de forças-tarefas como essa comandam reuniões de nível de comando e então pedem que tenentes, detetives, entre outros, informem
todos os demais. No entanto, não era anormal juntar todas as pessoas, e eu sabia que Margaret gostava de economizar tempo e de se certificar que as pessoas estavam
se entendendo, então não fiquei surpreso quando ela foi para o centro da sala e chamou todos a se juntarem para a reunião.
Enquanto os membros da força-tarefa deixavam suas estações de trabalho e começavam a se acomodar nas cadeiras, Lien-hua me olhou furtivamente. – Bom dia, agente
Bowers.
– Bom dia, agente Jiang.
– Como está o braço?
– Doendo. Mas vai ficar bom.
– Sinto muito pela primeira parte, mas fico feliz pela segunda – ela disse, e então: – Gostei da nossa reunião ontem à noite.
Eu pisquei. – Nossa reunião?
– Sim. Na varanda.
– Ah. Sim. Nossa reunião. Talvez hoje à noite possamos nos aprofundar mais. Sobre aquele assunto.
– Hum... Vou me certificar de preparar minhas anotações.
Ah, sim.
Calma, Pat.
Lien-hua se sentou e eu puxei uma cadeira para o lado dela.
Margaret esperou até que todos estivessem sentados e então disse: – Certo, vamos começar.
A porta para o corredor se abriu levemente e o tenente Doehring e o agente Cassidy entraram discretamente e pegaram cadeiras perto de Tielman. Quando olhei para
Doehring, ele balançou a cabeça, respondendo minha pergunta silenciosa sobre a multidão lá fora.
Ninguém que se parecesse com os suspeitos, Basque, Adkins ou Lebreau.
– Agora – Margaret anunciou –, além da etiqueta de retirada de bagagem, o laptop de Mollie foi recuperado dentro do veículo aí na frente, e nossa equipe de crimes
cibernéticos está analisando-o. Já encontraram um vídeo de dois minutos e cinquenta e um segundos da morte de Mahan, gravado depois da meia-noite de terça para quarta-feira.
Eu vi as imagens – ela fez uma pausa, então acrescentou sombriamente: – Ele não morreu bem.
A sala ficou em silêncio.
Apesar de não ser algo que eu quisesse ver, sabia que precisaria assistir a essa filmagem assim que a reunião terminasse. Por enquanto, abri meu laptop para que
pudesse procurar os endereços residenciais de Chelsea Traye e Nick Trichek.
Margaret continuou: – Até agora temos uma lista de suspeitos com 758 nomes. No entanto, nenhuma amostra de DNA ou impressão digital que se referia a algum deles.
Encontrei os endereços: Chelsea morava perto do Aeroporto Nacional Reagan, Nick perto do zoológico. Nenhum dos endereços ficava na zona de ação. Enquanto pensava
em Nick, lembrei-me dele digitando em seu celular com a mão esquerda. O assassino usou a mão esquerda para abrir a porta e apertar o botão do elevador.
Ele tentou usar seu telefone no centro de controle do hotel.
Será que estava fazendo um vídeo?
Novamente, me peguei fazendo suposições demais e tentei deixar os pensamentos de lado.
Margaret demorou um pouco para resumir vários aspectos forenses do caso, e eu já estava familiarizado com a maioria deles, até que finalmente ela acenou na direção
de Lien-hua. – A agente Jiang está trabalhando no perfil psicológico dos assassinos – ela gesticulou na direção da frente da sala. – Por favor.
Margaret se sentou e Lien-hua se levantou. – Obrigada.
Com o controle remoto na mão, ela foi para a frente e se dirigiu ao grupo. – Temos dois suspeitos desconhecidos. Um masculino, um feminino. Ambos caucasianos, idade
incerta, mas com base em uma análise da postura, tamanho do passo e imagens parciais dos rostos nas filmagens que temos, eles provavelmente têm cerca de 30 a 35
anos. Pelo nível de complexidade e sofisticação desses crimes, eu me inclinaria na direção do número maior.
Ela apertou um botão no controle remoto para mudar a imagem da tela para um resumo em pontos de seu perfil dos assassinos. – As ações dos assassinos e seu comportamento
na cena do crime mostram que eles são perpetradores experientes, mas a natureza flagrante de seus atos pode indicar que eles não têm nenhuma condenação criminal
recente em seus registros.
– Que eles não têm? – alguém perguntou.
– Como regra geral, passar tempo preso o torna mais cuidadoso – ela explicou. – Conseguir escapar cometendo crimes o torna mais descuidado.
Verdade.
– Os assassinos estão intimamente familiarizados com a área metropolitana de Washington, DC, incluindo a localização das câmeras de trânsito, e eles estão cientes
da análise forense e se adaptam ao nosso método investigativo. As cenas de crime encenadas e as técnicas estratégicas de desorientação indicam possível treinamento
policial, forense ou militar.
Aquele era um pensamento perturbador. Cliquei na lista de suspeitos e reparei nos nomes de policiais ou militares, atuais ou precedentes, que apareciam.
Seis de 758. Dois ex-policiais, quatro ex-militares.
Ninguém que eu conhecia.
Lien-hua continuou. – Considerando o fator de choque deliberado dos crimes, o ataque dos chimpanzés, a filmagem da morte de Rusty Mahan que foi deixada para encontrarmos,
o desmembramento de Mollie Fischer, todas essas ações apontam para um motivo além de ódio, raiva, ganância ou maldade.
– É um jogo – Anderson disse, cortando-a quase antes dela ter finalizado a frase. – Estão fazendo por diversão. Tirando sarro da gente.
Apesar do meu grande esforço para me manter objetivo, eu tinha a sensação de que ele estava certo.
– Provocando as autoridades – ela disse. – Sim, eu concordo. Até agora não encontramos nenhum sadismo sexual aparente direcionado para as vítimas, mesmo assim existem
tendências sádicas claras nos dois perpetradores. Eles vão monitorar de perto a cobertura dos crimes, possivelmente tentar se inserir na investigação, talvez como
voluntários de denúncia, organizadores de vigílias ou coordenadores de vigilância de comunidades. Um deve ser mais dominante, quase com certeza o homem, mas ambos
são narcisistas e possuem uma imensa autoestima doentia.
– Espere um minuto – um policial na segunda fileira disse. – Você disse imensa autoestima? Não deveria ser baixa autoestima?
– A estima incorpora amor e respeito – ela respondeu –, mas as únicas pessoas a quem esses assassinos estimam, valorizam ou amam são a si próprios. Eles buscam apenas
seu próprio prazer, ligam apenas para seu próprio futuro. Ao contrário da crença popular, quase não se tem notícia de uma pessoa que comete um crime porque tem baixa
autoestima ou porque “não se sente bem o suficiente consigo mesma”. Pessoas que matam, roubam, estupram... ou mesmo que ultrapassam o limite de velocidade... fazem
isso porque colocam seus próprios desejos e necessidades acima das outras pessoas.
Hum. Tem razão.
– Baixa estima pelos outros – o policial disse incisivamente. Lien-hua assentiu, e quando continuou o e-mail de Bryan Tait, presidente da WXTN, chegou na minha caixa
de entrada. As horas de trabalho de Nick e Chelsea coincidiam com os crimes: eles chegaram ao centro de primatas na terça-feira às 19h29 para filmar a reportagem
e às 15h44 de quarta-feira no Lincoln Towers.
Claro que sim, Pat. É o trabalho deles. Fazer reportagens nos locais.
Durante uma investigação, você nunca dever fazer o que eu me peguei fazendo agora: associar um nome com um crime antes de ele estar resolvido. Uma vez que segue
esse caminho, você começa a convenientemente encontrar todo tipo de evidência para provar que está certo. É só a natureza humana.
Ainda assim...
Lien-hua terminou, e Margaret virou-se para mim. Ela tinha um leve brilho nos olhos, e isso nunca é um bom sinal.
– Agente Bowers – ela sabia o quanto eu odiava essas reuniões, e mesmo antes de continuar, eu suspeitava do que ela iria dizer. – Algo a acrescentar? Eu adoraria
conhecer sua perspectiva nesse caso.
Ótimo.
– Ótimo – eu disse, sem graça.
Quando Lien-hua se sentou, tomei seu lugar, coloquei meu celular sobre a mesa ao meu lado e liguei o projetor de hologramas 3D.
85
Faltam 10 horas...
11h29
O holograma pairava sobre a mesa.
Os caminhos da vítimas estavam destacados, cobrindo as ruas da cidade, às vezes se cruzando em lugares onde as rotas de movimentação se sobrepunham.
Enquanto eu resumia o perfil geográfico, inseri a rua onde o laptop de Mollie havia sido encontrado, assim como o local da explosão do posto de gasolina de ontem
à noite. A zona de ação se deslocou para o oeste.
– Você acha que isso está relacionado? – Margaret perguntou, referindo-se ao posto de gasolina.
– A nota fiscal encontrada na van era daquele posto. Os assassinos também deixaram um carro e um laptop roubados em frente ao quartel--general da polícia, e na noite
passada houve uma explosão na estrada municipal que percorre o perímetro da Academia do FBI na Quantico Marine Base. Então temos aqui...
Doehring se inclinou para a frente. – As ruas ou estradas que cercam as duas agências que estão envolvidas nesse caso.
– Sim – eu disse. – Mas essas não são as únicas agências envolvidas nessa investigação. A Polícia do Capitólio, os US Marshals. É muito possível que os assassinos
deixem alguma pista nesses escritórios também.
Margaret designou um policial para notificar os quartéis-generais das outras agências. Ele saiu da sala, e eu continuei: – Eu não acho que nós analisamos suficientemente
as ligações possíveis entre esses crimes e outros crimes do passado. Precisamos ver se existem outras mortes encenadas com desmembramentos relacionados, suicídios
encenados em vídeo, ou... – e essa era a chave – filmagens de trânsito que contenham duas placas diferentes para o mesmo veículo, seja o do suspeito ou o da vítima.
Olhares vazios.
– Placas diferentes? – Tielman perguntou.
– Eu sei que é pouco provável que a polícia mantenha registro desse tipo de informação no ViCAP, mas estamos procurando por padrões. Não sabemos por que os assassinos
trocaram as placas de Rusty Mahan, mas parece que eles queriam que descobríssemos. Eu quero saber se eles já fizeram isso antes.
– Então, uma mensagem? – Anderson disse.
– Possivelmente, mas eu estou mais interessado em localizar os assassinos do que em decifrar seu...
Lien-hua balançou a cabeça discretamente, e eu retrocedi um pouco. – O que eu quero dizer é que é possível que isso seja uma pista falsa. Mas sejam quais forem os
motivos dos assassinos, é possível que numa onda de crimes tão elaborada, eles seguissem padrões estabelecidos ou aprendidos durante crimes anteriores. E se esse
for o caso, ligar os crimes dessa semana com infrações passadas vai nos ajudar a diminuir a lista de suspeitos e a concentrarmos melhor nossos esforços investigativos.
E vamos além de simples condenações anteriores, para explorar padrões criminais similares e comportamentos associados. Qualquer coisa mesmo, ainda que a princípio
pareça insignificante.
Margaret designou Anderson e dois outros policiais para a análise comparativa de casos.
– Finalmente – eu disse –, acho que podemos limitar a área de busca, focar nossos esforços mais eficientemente em eliminar suspeitos.
Toquei no meu telefone e cruzei as referências da zona de ação com a lista de suspeitos. – Apenas 19% das pessoas na lista de suspeitos moram ou trabalham nesse
perímetro de nove quadras. Vamos dar uma olhada mais cuidadosa neles primeiro.
Mas quando olhei para o holograma, comecei a pensar sobre o próprio perfil geográfico, se esse era realmente o método correto a se adotar.
Lembrei-me de uma discussão que tive com Calvin uma vez: “De onde vem sua familiaridade com a região, seu mapa cognitivo de uma área?”, ele me perguntou.
“De seus padrões de movimento, obviamente; seus nós de atividades e as rotas de e para eles.”
“Então, como eles são formados?”
– Agente Bowers? – Margaret me viu perdido em meus pensamentos. – Você estava dizendo?
– Como eles são formados? – eu murmurei.
– Como é?
Os membros da força-tarefa estavam me observando curiosamente. – Eu estava dizendo... – meus olhos voltaram para o holograma. – Acho que posso estar errado.
– Você acha que pode estar errado – Margaret respondeu.
Com meu dedo, tracei uma rua holográfica pelo ar. – Para a maioria das pessoas, a origem de seus padrões de movimento é sua residência. Mas se seu lugar de trabalho
é o centro de suas atividades, então eles provavelmente entenderiam a cidade a partir daquele ponto.
Após uma pausa, Cassidy disse: – Então, um entregador de pizza que chega ao trabalho e então parte dali, viaja até uma parte da cidade e então retorna. Fazendo isso
repetidamente, ele passa a conhecer a disposição das ruas.
– Sim – assenti. – Exatamente.
– E com dois infratores – Lien-hua disse –, o mapa cognitivo do parceiro dominante seria o fator mais determinante na seleção das cenas dos crimes.
– Então – Margaret disse, acompanhando –, devemos nos concentrar em identificar e seguir o mapa cognitivo do infrator dominante.
– Normalmente, sim – respondi, ainda distraído pelos meus pensamentos.
– Normalmente – ela parecia cada vez menos impressionada pelos minhas informações.
Mudei o modo do holograma para que ele mostrasse apenas os locais das cenas dos crimes, e não as rotas de movimentação das vítimas. – Com exceção apenas, talvez,
da ponta da Connecticut Street, esses locais, o centro de primatas, o hotel, o carro em frente ao posto da polícia, o posto de gasolina beirando Quantico... não
foi somente a familiaridade com Washington, DC que levou os infratores a escolhê-los nem a disponibilidade de vítimas que fez com que eles escolhessem Rusty, Mollie
e Twana.
Lien-hua estava acompanhando minha linha de raciocínio.
– É provável que tenham escolhido Mollie por causa de seu pai, Twana pela semelhança com Mollie e Rusty porque era namorado de Mollie.
– Sim.
– E o centro de primatas e o hotel – Margaret acrescentou. – Eles escolheram esses lugares por causa do deputado e do vice-presidente.
Lien-hua concordou com um aceno de cabeça. – E o posto da polícia e Quantico pela relação com a investigação.
– Parece que sim – eu disse. – Então parece que a escolha dos locais não é baseada nos mapas cognitivos da cidade que os assassinos têm, mas sim no tipo de mensagem
que estão tentando mandar. Na metanarrativa com a qual estão trabalhando.
– O motivo deles – Anderson disse.
Eu odiava a ideia de ter que dizer aquela palavra. – A diretriz final deles. Sim.
– E você tem alguma ideia do que pode ser? – Margaret parecia ter se arrependido de ter pedido que eu compartilhasse minhas ideias.
– A reforma da justiça – as palavras apenas saíram.
Todos olharam para mim.
– E você está se referindo exatamente... a quê? – Margaret perguntou.
Balancei a cabeça e desliguei o holograma. – Eu realmente não sei.
Enquanto retornava para o meu assento, me senti derrotado pelas evidências, pelos becos sem saída. Descobrir os motivos dos assassinos poderia ser a chave para resolver
esse caso, afinal.
Por alguns minutos, a equipe explorou o relacionamento entre a família Fischer e os locais dos crimes, mas como não parecíamos estar fazendo avanço algum, Margaret
distribuiu tarefas para garantir que todas as possibilidades investigativas fossem cobertas.
Eu estava perdido nos meus pensamentos.
Tem que haver uma combinação, Pat – mapeamento cognitivo e
metanarrativa. Crimes quase sempre são cometidos dentro do espaço de consciência do infrator. Então os assassinos tinham que estar familiarizados com o hotel e o
centro de primatas para fazer isso tudo.
Margaret concluiu dizendo: – Nos encontramos amanhã de manhã às 10h, a menos que haja alguma mudança no caso; nesse caso, eu os aviso sobre quaisquer alterações
nos horários. Estão dispensados.
Enquanto as pessoas se dispersavam para suas estações de trabalho para começarem a realizar suas tarefas, Margaret me chamou: – Agente Bowers, posso lhe tomar um
minuto, por favor?
Certo, lá vamos nós.
– Claro.
86
Faltam 9 horas...
12h29
Margaret e eu fomos para um canto da sala, e ela mal esperou até ficarmos sozinhos para começar a acabar comigo. – Da próxima vez que você passar por cima de mim
falando com o diretor Rodale... – suas palavras chamuscavam o ar entre nós, mas ela fez uma pausa no meio da ameaça, e eu me aproveitei disso. – Eu não passei por
cima de você, Margaret. Fui falar com Rodale sobre outra coisa, e ele me pediu para trabalhar no caso.
– Ah-ham – não era o jeito de ela concordar comigo.
– Eu não ligo se você acredita em mim ou não – eu disse. – Vamos nos concentrar em pegar esses caras. Podemos discutir isso depois.
Um momento se passou. Eu tinha a sensação de que ela estava tentando me fatiar no meio com os olhos. – Tenho uma pergunta para você – ela disse.
– O que é?
Ela se inclinou para perto e falou numa voz sussurrada: – Quando você estava com o diretor Rodale, você notou algum sinal de que ele pudesse estar sendo excessivamente
influenciado pelo deputado Fischer?
A pergunta veio do nada. A resposta era sim, eu tinha essa impressão, mas não parecia apropriado dizer isso. – Por que você está perguntando isso, Margaret?
Ela não respondeu. Parecia estar imersa em seus pensamentos.
– Isso tem a ver com o Projeto Rukh? – perguntei. – A pesquisa do dr. Libet?
O olhar dela se estreitou quase que imperceptivelmente. – O que você sabe sobre isso? – eu tinha postado a informação de Rodale e Fischer nos arquivos on-line do
caso hoje de manhã, mas percebi que ela ainda não havia tido a chance de verificar.
– Eu sei que ele está sendo utilizado pela Fundação Gunderson, e eu sei que Fischer patrocina o trabalho deles e não quer que vazem informações sobre seu envolvimento.
– Não – ela murmurou. – Ele não quer.
– O que está havendo, Margaret?
– Você descobriu alguma informação sobre aborto?
– Aborto? Não, eu... – isso veio mais do nada ainda. – O que isso tem a ver com todo o resto?
– Direito à vida – ela disse enigmaticamente.
– O quê?
– Era sobre isso que o vice-presidente Fischer ia falar há seis anos quando atiraram nele – ela parecia ter desaparecido em seu mundo privado. – As mudanças de visão
sobre a Quinta Emenda garantem que você não pode ser privado da vida e da liberdade sem processos adequados.
– Mudança de visão?
– Quando a vida começa? No nascimento? Na concepção? Como você define liberdade?
Eu estava ficando mais e mais perdido. – Como isso tudo está ligado com o que está acontecendo aqui nessa semana?
Ela balançou a cabeça. E quando ela falou, não respondeu minha pergunta. – Tem umas coisas que preciso verificar – antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela
acrescentou severamente: – Se você tiver algum problema comigo, fale comigo. Não com Rodale.
– Se eu tiver algum problema com você, vou dar um jeito de você saber. Agora, me diga o que...
Mas, repentinamente e sem mais nenhuma explicação, ela pediu licença e foi embora.
Certo. Isso foi estranho.
E um pouco perturbador.
Assim que ela foi embora, Lien-hua se aproximou de mim. – O que foi isso tudo?
– Boa pergunta – balancei minha cabeça. – Ela começou pegando no meu pé, mas quando mencionei o Projeto Rukh, sua atitude e seu comportamento mudaram.
– De que jeito?
– Ela parecia inquieta.
Não, ela parecia estar com medo.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, então Lien-hua suavemente afirmou o óbvio, mas por alguma razão, me pareceu reconfortante ouvir isso em voz alta: – Esse
caso vai muito mais fundo do que apenas esses quatro homicídios.
Twana Summie, a universitária.
Mollie Fischer, a filha do deputado.
Rusty Mahan, o namorado.
Juarez Hernandez, o atendente do posto de gasolina.
– Sim, vai muito mais fundo – eu disse. – E Margaret sabe de algo e não está compartilhando com o resto da equipe.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Olhei pela sala. – Lien-hua, no que você vai trabalhar agora?
– Claramente, os assassinos tiveram motivos para escolher os mesmos dois quartos do Lincoln Towers usados por Hadron Brady. Acho que a chave para solucionar esse
caso será nos focarmos em... você não vai gostar disso...
Motivos, pensei.
– Razões – eu disse.
Um meio sorriso.
– Quase. Ainda estou cuidando disso. E tem outra coisa: a falta de DNA e impressões digitais em cada uma das cenas, isso realmente me perturba. Todos esses crimes?
Nenhuma evidência física?
– Hum – considerei aquilo. – O cão não latiu.
– O quê?
– Sherlock Holmes. É... bem, a ideia é evitar olhar para o que aconteceu e focalizar no que não aconteceu que deveria ter acontecido, e eles deviam ter deixado DNA.
– Sim.
– Então, como não deixaram nada, os assassinos revelaram algo significativo sobre eles mesmos: eles sabem como não deixar nem mesmo a mais diminuta das evidências
em uma cena de crime.
– Alguém das forças policiais? – ela disse suavemente, repetindo sua observação feita na reunião.
– Ou militares – mostrei para ela os seis nomes que descobri durante a reunião.
– Grandes mentes – ela analisou os nomes. – E quanto a você?
– Vou analisar aquele vídeo da morte de Rusty Mahan – eu disse. – E então acho que vou passar um tempo assistindo aos noticiários.
O bebê chutou.
Pela primeira vez, ela sentiu a criança dentro dela chutar.
– Estou vivo! Não se esqueçam de mim! Deixem-me viver.
Deixem-me viver!
A luta pela sobrevivência.
Sempre.
Sempre.
Para viver.
– Dois pelo preço de um – seu ex-amante disse antes de jogá-la em uma cova rasa sobre um cadáver putrefato.
O bebê chutou novamente.
– Me desculpem por não ter sido mais forte – seu pai escrevera na noite em que desistiu de viver.
Na noite em que deixou a morte vencer.
Ela ouviu uma voz pouco audível:
– Não a deixe vencer! Não a deixe vencer!
E quando ela sentiu a pequena vida dentro dela se mover
novamente, apesar de sua exaustão, apesar da falta de esperança, ela prometeu a sua criança que seria mais forte, que seria forte o suficiente para sobreviver.
E ela começou a brigar contra suas amarras.
87
Vinte minutos depois
Pressionei play.
Era a quarta vez que assistia à filmagem da morte de Rusty Mahan. Em cada uma das vezes tentei me manter centrado, com foco não em sua morte, mas no que o vídeo
poderia nos dizer sobre seus assassinos.
Mas estava achando aquilo quase impossível.
Assistir a sua morte era perturbador demais.
Dessa vez, fiz o máximo que pude para manter os olhos nos ângulos das câmeras e na orientação em relação às imagens de fundo.
Quando terminei, entrei no site da WXTN e assisti novamente às filmagens dos locais dos crimes fornecidas por Nick Trichek e Chelsea Traye, começando pela descoberta
do corpo de Mollie ontem no Lincoln Towers Hotel, e voltei, repassando os homicídios dessa semana até aqueles que eles cobriram nos dois últimos meses, comparando
o trabalho de câmera com a filmagem da morte de Mahan.
E não consegui nada.
Não me surpreendeu que quase todas as filmagens tivessem sido feitas com câmeras estacionárias em vez de com câmeras em movimento, assim como o vídeo da morte de
Rusty.
Em minhas buscas, descobri que Chelsea havia feito uma reportagem especial em abril sobre a pesquisa de primatas da Fundação Gunderson, mas outros três canais de
TV locais também o fizeram no último ano. Ela cobriu a maioria dos grandes crimes na área metropolitana e fez um trabalho controverso recentemente sobre o movimento
para a legalização da prostituição no Distrito de Colúmbia. Fora isso, nada chamou minha atenção.
Quando procurei por algum delito ou infração criminal anteriores, não encontrei nada sobre Chelsea e apenas algumas multas por excesso de velocidade e uma acusação
de três anos atrás por posse de maconha contra Nick.
Nada especial sobre os locais onde Nick e Chelsea viviam ou trabalhavam, nada suspeito sobre o horário de chegada nas cenas dos crimes.
Frustrado, coloquei meu laptop de lado.
Tente refutar suas teorias, não tente confirmá-las ou você ficará cego
pelo desejo de se provar correto!
Eu precisava arejar a cabeça.
Fui até a máquina de salgadinhos no fim do corredor, peguei um pacote com um Snickers, um Cheetos e um pãozinho de canela que devia estar ali desde o tempo da Guerra
Fria, e voltei para minha estação de trabalho.
Vamos, Pat, pense nisso.
Como os crimes dessa semana estão ligados à tentativa de assassinato
do vice-presidente Fischer?
Por que os assassinos escolheram Mollie Fischer?
Remova as conjecturas com os fatos até que apenas a verdade permaneça.
Com o Cheetos na mão, abri a tela das atualizações do arquivo do caso e vi que Anderson, que ficou trabalhando na análise de ligação da ViCAP, havia postado uma
lista de três homicídios no nordeste que poderiam estar potencialmente ligados aos crimes dessa semana.
(1) Um corpo desmembrado em Nova York três meses atrás. O corpo não foi encontrado em malas, mas sim em grandes caixas. Aparentemente, o assassino estava planejando
mandá-las para um ex-empregador.
(2) Em abril, um homem de vinte anos, nativo de Baltimore, foi encontrado em sua banheira com os pulsos cortados, mas havia dúvidas sobre se isso tinha sido um suicídio
ou um homicídio. Seu telefone estava do lado da banheira e foi usado para gravar sua morte.
Hum.
Uma possibilidade.
(3) Um homicídio em Vienna, Virgínia, mês passado. Os assassinos deixaram uma mensagem de texto no laptop da vítima, provocando as autoridades.
Pela sua proximidade com Washington, o crime de Vienna foi coberto por Chelsea Traye e a equipe de notícias da WXTN, e eu tinha acabado de ver as imagens, mas pelo
que eu podia dizer olhando os arquivos dos casos, não havia nenhuma ligação óbvia com os crimes dessa semana.
Considerando-os casos ligados, nenhum dos três parecia especialmente promissor, e nenhum deles tinha nada a ver com placas de carro, o que pode ter sido apenas um
despiste de qualquer modo.
Uma rápida olhada nas horas: 13h22.
Cocei a cabeça. Eu tinha menos de quarenta minutos antes de ir buscar Tessa.
Cada vez mais apreensivo com a reunião de custódia às 15h30, e com uma sensação de decepção pela minha falta de progresso no caso, voltei minha atenção para a tela
de atualizações e vi mais um crime aparecer.
Um homicídio triplo em Maryland, mês passado. Dois policiais foram mortos assim como uma mulher civil, aparentemente como resultado de uma briga doméstica. Anderson
parecia acreditar que a proximidade com Washington, DC, uma cena de crime que parecia encenada e uma possível discrepância entre a hora de chegada do marido na casa
e a hora das mortes dos policiais tornavam esse crime digno de uma análise mais aproximada.
No entanto, Philip Styles, o marido da mulher, havia confessado, provavelmente para evitar a pena de morte, e agora estava na cadeia esperando o julgamento da sentença.
Uma ligação parecia improvável para mim.
Ainda assim, tínhamos quatro crimes separados que poderiam estar ligados aos assassinatos dessa semana. E apesar das minhas impressões iniciais, eu precisava dar
uma olhada melhor neles.
Dei uma mordida no meu Snickers, cliquei no primeiro crime listado para tentar eliminar, em vez de corroborar, sua ligação com a onda de crimes dessa semana.
88
Faltam 8 horas...
13h29
Brad usou sua identificação falsa para entrar no estacionamento do quartel-general da polícia.
– Sou aluno da Academia Nacional – ele explicou para o oficial no portão. – Me pediram para ajudar na força-tarefa do caso Fischer.
O oficial ligou para Quantico e verificou o nome do sr. Collins e a placa do carro na lista de alunos da Academia Nacional. Depois o deixou passar.
Enquanto Brad procurava uma vaga onde estacionar, pensou em seu plano.
P. Qual é a melhor maneira de destruir alguém?
R. Matando a pessoa que ele mais ama.
E, claro, a maioria dos assassinos erra ao assumir que existe apenas um tipo de morte.
Matar alguém psicologicamente, destroçar sua razão de viver e destruir suas esperanças são esforços no mínimo tão satisfatórios quanto cortar sua garganta.
P. Qual é o destino pior que a morte?
R. Querer morrer, mas não poder.
P. Então, o inferno.
R. Sim. Ou ser enterrado vivo.
E, novamente, você poderia ser enterrado vivo de diversas maneiras. Algumas dores são mais sufocantes que a falta de ar.
Ele encontrou uma vaga incrivelmente próxima do carro pelo qual ele estava procurando. Ele saiu do veículo e foi na direção dele.
Depois dessa semana, o mundo saberia quem estava por trás desses crimes.
E Bowers iria atrás dele.
Ele não tinha nenhuma dúvida quanto a isso.
Mas o segredo para derrotar seu inimigo não é permitir que ele concentre todas as energias em você, mas garantir que ele não seja capaz disso.
Tire a vida da pessoa amada de um sujeito e você, de fato, vai sofrer as consequências; ataque-a psicologicamente, e você faz com que ele gaste tempo e energia cuidando
dela em vez de procurá-lo.
Divida suas lealdades, suas prioridades, use seu amor para distraí-lo.
Não o deixe se concentrar de corpo e alma na busca.
Brad abriu a fechadura do carro e deixou a surpresa lá dentro.
Desde a hora em que chegou à Biblioteca do Congresso, três horas antes, Tessa tentava descobrir o que significa ser humano.
E não era tão fácil quanto parecia encontrar a resposta.
E isso realmente a incomodava.
Ela olhou para a pilha de livros de referência em torno dela e para as anotações que digitou em seu computador.
Certo, então primeiro você tem a resposta religiosa: criado à imagem de Deus.
Mas não havia um verdadeiro consenso, mesmo entre religiosos, sobre o que isso quer dizer: criatividade, imaginação, amor, curiosidade, dignidade, liberdade, responsabilidade...
A lista seguia em frente dependendo do autor que você escolhesse e do que ele considerasse distintivo sobre o Homo sapiens. Então, raciocínio circular.
Além disso, ela não demorou para perceber que a Bíblia nunca diz que os humanos são os únicos animais com consciência, inteligência, emoções, política, autoconsciência
ou nem mesmo que são as únicas criaturas com espírito.
A última parte a surpreendeu.
Ela pegou o verso com o qual havia cruzado enquanto lia um tratado da Igreja do século XIX, Eclesiastes capítulo 3, versículos 20 e 21: “Todos vão para o mesmo lugar;
vieram todos do pó, e ao pó todos retornarão. Quem pode dizer se o fôlego do homem sobe às alturas e se o fôlego do animal desce para a terra?”
O fôlego do homem.
O fôlego do animal.
Ela se perguntava se “o animal” seria, tipo, Satã ou algo assim, então ela havia conferido algumas outras traduções; a maioria traduzia as frases como “os espíritos
do homem” e “os espíritos dos animais” ou algo muito parecido.
As pessoas podiam interpretar esses versos do jeito que quisessem, mas ela achou melhor por enquanto os entendê-los do jeito que estavam escritos.
Animais têm espíritos.
Então, colocando de lado toda a questão de “quem tem um espírito/
alma”, de um ponto de vista naturalista, humanos são simplesmente macacos evoluídos que, em algum ponto, adquiriram pensamento abstrato que facilitou o uso da linguagem
e o consequente desenvolvimento das expectativas e dos comportamentos sociais que temos hoje. Então, essencialmente humanos não seriam diferentes em nada dos animais.
Diferentes apenas em grau.
Não em tipo.
Na verdade, na última hora ela descobriu que um número crescente de bioeticistas estava abandonando toda a ideia de “humano”, argumentando que isso é um artifício
baseado no antropocentrismo e na nossa vaidade como espécie. Mas qualquer um poderia ver que assim que ignoramos a exclusividade da humanidade, você tira a base
da responsabilidade moral.
Afinal, chimpanzés não são responsabilizados por matar seus semelhantes mais fracos. Por que deveríamos ser? Especialmente porque, a longo prazo, isso só serviria
para ajudar a seleção natural a criar uma espécie mais vibrante e bem-sucedida.
Mas a maioria dos ateus que ela estava lendo não estava advogando pela morte dos mais fracos.
A maioria.
Ela olhou para as anotações que tinha feito.
Através dos anos, pensadores evolucionistas como Hobbes, Huxley e Freud, que se seguravam, todos, inabalavelmente na seleção natural, inexplicavelmente encorajaram
as pessoas a suprimirem seus instintos naturais, uma visão compartilhada pelo ateu proselitista Richard Dawkins: “Em nossa vida política e social, temos o direito
de jogar fora o darwinismo, de dizer que não queremos viver em um mundo darwinista”.
Certo, mas como, se somos o resultado de nossos genes, podemos “jogar fora” o fato de sermos resultado dos nossos genes?
Isso sim que é ser ilógico.
Não dá para ser dos dois jeitos. Ou estamos determinados a ser o que somos pela seleção natural, ou não. E apenas se não estamos é que podemos agir de modo contrário
aos nossos instintos. Um animal controlado pelo instinto não pode repentinamente decidir se tornar algo que o instinto não o permite ser.
Então, se a seleção natural foi realmente natural e não uma coisa guiada por Deus, o espectro inteiro do comportamento humano seria natural. Instintivo. As coisas
boas e as coisas ruins. Tudo parte de ser um primata altamente evoluído.
Uma espécie sendo verdadeira consigo mesma.
Pessoas sendo verdadeiras com seus corações.
Com as rachaduras.
E toda a ideia da “desumanidade do homem com o homem” seria uma contradição lógica, porque seria impossível para um humano agir de modo não humano, ou desumano.
Arrepiante.
Bestialidade, infanticídio – tudo parte da natureza humana.
Ganância, covardia, escravidão – bem, eles devem ter tido um papel benéfico na sobrevivência ou na reprodução, caso contrário a seleção natural os teria eliminado.
E a partir daí as coisas só pioraram.
O campo inteiro da medicina – a prática de manter os doentes e os geneticamente deficientes (o que quer que isso queira dizer) vivos o máximo possível é, na verdade,
contraprodutiva para a seleção natural e para o avanço das espécies, especialmente considerando a diminuição dos recursos naturais da Terra.
Então, por que fazer isso?
Afinal, a seleção natural requer a morte dos mais fracos para o bem da espécie, então por que lutar contra isso?
O que é bom para a espécie é bom.
O que é ruim para a espécie é ruim.
Deixar vítimas da aids ou crianças famintas na África morrerem seria moral. Assim como realizar eutanásia nos doentes mentais ou terminais. E como garotas adolescentes
são mais propensas a se reproduzirem, a reprodução seletiva e a cópula forçada com garotas adolescentes que exibem características genéticas desejáveis seriam aceitáveis,
até mesmo desejáveis para a espécie.
Estuprar as garotas dotadas para que a espécie possa florescer.
Não precisou de muito para chegar à conclusão de Nietzsche: “Seja quem for o criado no bem e no mal, na verdade ele deve primeiro ser um aniquilador e quebrar valores.
Assim o maior mal pertence ao maior bem: mas isso é criativo”.
Esterilização compulsória para pacientes que sofrem de doenças mentais, no estilo das políticas de Woodrow Wilson. Genocídio. Aborto de crianças com síndrome de
Down ou fibrose cística. Suicídio acompanhado por médicos. Eugenia.
Por que não?
Dadas as afirmações do naturalismo, tudo isso era lógico, é claro, mas mesmo a maioria dos naturalistas mais fervorosos com os quais ela cruzou era reticente em
seguir o caminho da eugenia.
Na verdade, em sua maioria eles eram, ironicamente, fortes defensores da justiça social e de avanços médicos, o que, considerando suas suposições sobre as origens
humanas, não fazia nenhum sentido.
Mas ela, no entanto, dava muito crédito a esses autores, porque mesmo que eles não fossem intelectualmente honestos em suas premissas sobre a natureza humana, eles
eram honestos com seus corações.
Com a casca de bondade.
Porque eles sabiam o que todas as pessoas sabem, o que mesmo Hobbes, Huxley, Freud e Dawkins sabiam: que algumas coisas são certas e algumas são erradas, independentemente
do quão benéficas ou prejudiciais aquelas coisas possam ser para nossa evolução como uma espécie. A compaixão supera a tortura porque a compaixão é boa e a tortura
é ruim. Ponto.
Mas nem todos seriam corajosos o suficiente para serem tão honestos.
Nietzsche por exemplo.
Ou Hitler.
E essa era a questão.
Bastava a pessoa certa argumentar com as pessoas certas.
Ela reparou nas horas.
13h56. Droga.
Patrick viria buscá-la em, tipo, alguns minutos.
Por mais que ela quisesse continuar lendo, ela realmente precisava ir.
Colocou os livros na mesa de devolução e correu para fora.
89
Tessa estava esperando por mim quando parei em frente aos degraus da Biblioteca do Congresso.
– Como foi seu dia? – perguntei quando ela entrou no carro.
– Não encontrei o que estava procurando. E você?
– Não. Ainda não.
– Que tal isso? Nós realmente temos uma coisa em comum.
Mudando de assunto, ela me disse que estava faminta, e como ainda tínhamos alguns minutos antes de irmos para o escritório de Missy Schuel, fui buscar comida.
Até então eu não tinha contado sobre a reunião das 15h30 para Tessa, mas agora expliquei que depois de pegar algo para comer, nós iríamos nos encontrar com a advogada
e então iríamos para uma reunião de custódia com os advogados de Paul Lansing.
Ela ouviu anormalmente silenciosa. Quando terminei e ela finalmente falou, sua voz estava cheia de raiva. – Por que você não me disse isso antes?
Eu previ sua pergunta. – Eu sabia que se dissesse, você ficaria preocupada com isso a manhã inteira. Eu não vi nenhum bom motivo para estragar o seu dia, então esperei.
Acredite em mim, eu não estava fazendo hora com você, só não queria que você ficasse chateada.
Ela estava em silêncio. – Mas você quer mesmo que eu vá junto?
– Sim.
– Por quê?
– Você merece estar presente. É sobre seu futuro que vamos discutir.
Uma pausa. – Sobre o seu também.
Não sabia muito bem como responder àquilo. – Sim. É mesmo.
Demorou um bom tempo até ela responder. – Obrigada – após um momento, ela suspirou. – Essa coisa toda com Paul, eu tenho que dizer, estou meio brava com você.
– Porque eu não te contei?
– Não, em primeiro lugar porque você me levou para vê-lo em Wyoming.
– Calma aí, foi você que quis conhecê-lo. Eu apenas concordei que você tinha o direito de saber quem...
– Eu sei. Mas eu mudei de ideia. Por isso que é sua culpa.
– Você mudou de ideia e por isso é minha culpa.
– Sim. É uma prerrogativa feminina mudar de ideia e então culpar alguém se as coisas não derem certo – seu tom era de uma leveza que me dizia que ela não estava
brava de verdade.
– Eu não acho que o ditado é exatamente assim.
– Essa é a versão do século XXI.
– Você acabou de inventar.
– Talvez.
Um momento depois seu tom ficou sério novamente. – Você é um bom pai, Patrick. Sério. De verdade.
– Não se preocupe. As coisas vão dar certo.
– Não, tipo, o que quer que aconteça... – ela começou, mas eu não queria mais ouvi-la dizer nada.
– Não se preocupe – repeti.
Ela não respondeu.
Fizemos um almoço rápido e fomos na direção do escritório de Missy Schuel.
90
Faltam 7 horas...
14h29
Ela não fazia ideia de quanto tempo ficou lutando contra suas amarras, puxando, puxando, tentando se livrar, mas lentamente, com o tempo, mais e mais terra caiu
de suas costas e se soltou ao redor de seus membros.
E agora, enquanto ela empurrava o braço para o lado o mais forte que podia, o braço de Riah se moveu um pouco para a esquerda.
Ela puxou novamente.
O braço se moveu mais.
Então ela dobrou seu corpo inteiro o máximo que pôde, para
a frente e para trás, de novo e de novo, e então, com um som denso de trituração, o braço apodrecido de Riah Everson foi arrancado do corpo.
Por um momento, ela ficou numa descrença atordoada. Talvez Deus tenha lhe respondido, finalmente. Talvez.
Talvez.
De modo desengonçado e desesperado, ela bateu o membro
do cadáver contra o chão até que a coisa horrível se quebrou no pulso e caiu da faixa de couro.
E seu braço direito estava livre.
Apesar do ângulo não ser favorável, ela agarrou o braço e
tentou jogá-lo para o lado. Ela precisou de três tentativas, mas finalmente conseguiu tirá-lo da cova rasa, dando a seu próprio braço mais espaço para se mover.
Então ela se livrou da mão do cadáver.
Na posição em que fora colocada pelo traidor, não era fácil
remover a mordaça, mas afinal ela conseguiu.
Imediatamente, ela engoliu uma lufada de ar azedo. O efeito da dotracaína havia passado, e ela vomitou enquanto tentava respirar, mas, ainda assim, sem a mordaça
ela sentiu uma rajada de esperança.
Ela passou o braço pela cabeça, procurando a faixa em volta do pescoço.
Chegamos ao escritório de Missy.
Considerando sua hesitação pelo fato de eu participar da reunião de custódia, esperava que ela ficaria relutante em ter Tessa lá também, mas se ela não gostou da
ideia, ela escondeu muito bem. Assim que lhe apresentei Tessa, Missy devolveu o diário. – Nem imagino o quanto isso é especial para você.
– Sim, ele é – Tessa respondeu.
Missy passou um tempo explicando que a leitura do diário a ajudou a formular melhor as coisas que queria enfatizar na reunião de hoje.
– Vou chamar atenção para a natureza breve do relacionamento de Paul Lansing com Christie – ela disse. – Foi um caso de amor curto que durou menos de um mês – ela
acenou com a cabeça na minha direção. – Durante os últimos meses de vida de sua esposa, e desde então, você tem sido o tutor de Tessa. Isso é mais de vinte vezes
o tempo que Paul ficou com a mãe dela.
– É um bom ponto – Tessa olhou para mim e para Missy como se estivesse buscando apoio. – Isso vai ajudar.
– Sim, acho que vai – Missy disse. – E Paul também se correspondeu com sua mãe por muito tempo depois que o relacionamento deles havia terminado, e ainda assim nunca
mencionou ou tentou descobrir se você estava viva, então acredito que podemos mostrar que...
Tessa balançou a cabeça. A segurança havia desaparecido. – Eu já falei sobre isso com ele. Ele vai dizer que pensou que minha mãe tinha continuado com a história
do aborto.
– Talvez, mas vamos mostrar que se ele conseguiu encontrá-la, ele certamente poderia ter encontrado você, ou pelo menos teria descoberto que Christie tinha dado
à luz o bebê. Ela nunca tomou nenhuma atitude para manter isso como segredo para as pessoas, certo? Que você era filha dela.
– Não. Nunca.
Senti um ar de otimismo.
Missy sabia o que fazia.
– Certo – ela olhou em seu relógio e prontamente se levantou. – O escritório deles é do outro lado da cidade. Vamos. Não quero chegar atrasada.
Sentada à sua mesa no posto de comando, Margaret Wellington clicou no site do deputado Fischer para ler sua declaração.
Na noite passada, ela revisou seus registros de votação, mas hoje, à luz do que o agente Bowers lhe dissera – ou pelo menos insinuara por sua falta de resposta –
sobre o deputado estar influenciando Rodale, ela decidiu estudar os votos e as plataformas do homem mais cuidadosamente.
Por viver no mesmo distrito que ele, ela sabia que ele era a favor de diminuir as forças militares e o FBI, reduzir o débito nacional, fortifi-car os direitos de
aborto, criar mais empregos sustentáveis e expandir os benefícios de convênio médico para idosos, mas ela não estava ciente do quão fortemente ele era a favor da
reforma da justiça até que viu seus registros de votos.
Entre outras coisas, Fischer era terminantemente contra a pena de morte.
Isso a fez parar para pensar.
O homem que tentou matar seu irmão era um militante a favor da pena de morte. Depois da tentativa de assassinato, a opinião pública pesou a favor da posição do deputado,
e o diretor Rodale tinha sido um dos que balançaram para mudar de opinião.
Durante o novo julgamento de Richard Basque, Margaret discutiu com Rodale sobre a justiça (ou a falta de justiça) da pena de morte – à qual ele acabou se opondo,
mas que ela apoiava. E, sabendo que ela defendia a redução do número de abortos, ele a desafiou: – Como você pode se declarar contra o aborto e a favor da vida quando
também é a favor da pena de morte?
– Greg, estamos falando sobre pena de morte, e não sobre...
– Eu só estou dizendo, Margaret, que sua posição é inconsistente.
– Francamente, não sei se é apropriado comparar...
– Viu? – ele parecia satisfeito. – Sua posição é insustentável.
– Sou a favor da vida – ela disse –, assim como sou a favor da justiça. Com todo o respeito, Greg, como você pode dizer que é a favor dos dois quando você apoia
que os culpados vivam e os inocentes morram?
Rodale olhou friamente para ela. Sem responder.
Mesmo naquela hora, o fato dele confrontá-la de tal maneira parecia inexplicável para ela. Por que ele estava tão emocionalmente envolvido com o assunto se aquilo
dizia respeito especificamente ao caso de Basque?
A tela do computador a observava e seus pensamentos passaram de Rodale para Fischer.
Ela voltou para suas declarações.
Ele apoiava meios de “aumentar o potencial humano e reduzir o sofrimento desnecessário”, o que incluía seu apoio, juntamente com o da Fundação Científica Nacional,
à nanotecnologia e ao transumanismo – o campo emergente de alteração genética de DNA para tratar cegueira, epilepsia, paralisia, câncer e assim por diante.
Margaret não estava familiarizada com o transumanismo, mas ela não demorou para descobrir na internet que isso era controverso, pois muito dele envolvia não apenas
o aumento da espécie, mas seu avanço – através de implantes neurológicos e terapia genética –, criando humanos com visão, força ou capacidades mentais melhores do
que a raça humana teria desenvolvido por conta própria.
Através da manipulação genética, em breve cientistas seriam capazes de dar às pessoas os reflexos de uma pantera, a força de um gorila ou a visão de um falcão. E
implantando chips em seus cérebros, forneceriam-lhes a habilidade de lembrar praticamente tudo que já aprenderam ou experimentaram. Por causa do objetivo final do
transumanismo de aprimorar a raça humana, ou até transformá-la em uma espécie superior, algumas pessoas a chamavam de eugenia do século XXI.
Neurociência. Nanotecnologia.
Metacognição.
A pesquisa de primatas. Será que a Fundação Gunderson poderia estar fazendo pesquisas de transumanismo? Divisão de genes com animais?
Hum.
Talvez abordar isso de um ângulo diferente.
Ela já tinha ouvido falar que o vice-presidente Fischer não era exatamente o melhor amigo de seu irmão – ressentido de como o deputado se aproveitara de sua influência
política para promover sua própria permanência no Congresso. Ela achou que não seria má ideia bater um papo com o ex-vice-presidente.
Ela precisou fazer algumas ligações, mas acabou descobrindo que ele estava em uma conferência sobre alterações climáticas em Tóquio. Sua equipe lhe disse que ele
retornaria a ligação assim que pudesse, mas ela sabia o que isso queria dizer para um político, então ela teria que esperar sentada.
O deputado estava controlando as cordas de Rodale. Ela não gostava...
Ou talvez fosse o contrário.
Ela fez uma pausa.
Agora, essa era uma ideia interessante.
Sim. Muito interessante.
Ela encontrou Doehring e lhe disse que estava indo para seu escritório no quartel-general do FBI por algumas horas para verificar algumas coisas.
– Não se preocupe, eu cuido das coisas por aqui – ele disse.
– Eu sei que cuida.
Ela deixou o posto de comando com a certeza de que estava em uma trajetória que poderia ou acabar com sua carreira ou possivelmente colocá-la no cargo que ela queria
desde que entrou no Bureau.
91
Faltam 6 horas...
15h29
Brad abriu seu laptop.
Ele sabia que a força-tarefa tinha inevitavelmente encontrado a bomba.
E ele sabia que desde os ataques com antraz há cerca de uma década, o quartel-general do FBI e todos os escritórios regionais passaram a fazer raio X de todas as
correspondências, pacotes, remessas e entregas, assim como passaram a checá-los atrás de traços de componentes biológicos ou químicos.
Porém, o Bureau não fazia raio X ou varredura biológica em evidências que fossem coletadas em cenas de crimes, a menos que a natureza específica de um crime necessitasse
de tal atenção, como avaliar evidências de um incendiário ou da casa de um fabricante de bombas.
Ótimo.
Brad enviou o e-mail que iniciaria o temporizador interno do computador.
Uma propaganda anônima de Viagra.
Em exatamente seis horas, a bomba que ele havia preparado na quarta-feira de manhã, aquela que ele deixou para a força-tarefa encontrar, seria detonada.
Agora ele só precisava esperar.
A explosão ajustaria tudo para o final perfeito do jogo.
Ele colocou seu relógio para vibrar às 21h29, para que ele soubesse, não importa o que estivesse fazendo.
Dr. Calvin Werjonic.
Gregory Rodale.
Annette Larotte.
Um quebra-cabeça com tantas peças interligadas.
E Bowers veria todas as peças perfeitamente encaixadas.
Mas apenas em retrospecto.
Apenas quando fosse tarde demais para salvar a garota.
Escritório de Advocacia de Wilby, Chase & Lombrowski
Sala 17
16h05
– Sinto muito – o advogado principal de Paul Lansing, Keegan Wilby, balançou a cabeça. – Nós simplesmente não podemos permitir que ela participe da reunião.
Wilby tinha um rosto quadrado e uma mecha de cabelo preto na testa como Clark Kent, que servia apenas para fazê-lo parecer com um estudante de ginásio de meia-idade.
Suas roupas me disseram que ele tinha dinheiro; seu sorriso presunçoso me disse que ele sabia disso.
Nós chegamos na hora, há cerca de meia hora, mas incompreensivelmente, Wilby não apareceu até as 15h55, e passou os últimos dez minutos discutindo sobre deixar Tessa
participar da reunião. Ela estava parada ao meu lado, inquieta, mas eu estava com a mão em seu ombro para que ela soubesse que deveria ficar quieta.
Missy disse com firmeza: – Sr. Wilby, diga ao sr. Lansing que isso não está sob discussão. Ela vem ou vamos embora.
Ele suspirou profundamente. – Tudo bem. Vou falar com meu cliente uma última vez – ele falou condescendente, como se Missy fosse uma criança. – Mas não estou garantindo
nada.
Ele saiu.
Os dentes de Tessa estavam cerrados. – Eu me sinto como um móvel que as pessoas estão disputando.
– Eu entendo – Missy disse. – No entanto, o sr. Wilby tem uma certa razão. Seria muito incomum para uma criança, para você, estar presente em uma reunião como essa.
– Sim, bem, incomum serve pra mim.
Cinco minutos depois, Wilby retornou balançando a cabeça. – Sinto muito, meu cliente disse que não quer incomodá-la.
– Ótimo – Tessa caminhou na direção do corredor para a sala de conferência.
– Não, eu quero dizer incomodá-la por você estar na reunião.
– Isso está me incomodando!
– Tessa – eu disse. – Venha aqui.
Ela não se moveu.
Gesticulei para ela se juntar a mim. – Por favor.
Finalmente ela veio, olhando com raiva para Wilby o tempo todo.
– Sinto muito – ele disse a ela naquele tom de voz que as pessoas usam quando realmente não sentem nada. Então ele direcionou suas palavras para todos nós. – Eu
imagino que se vocês insistem que ela esteja presente, teremos que cancelar essa reunião.
– Certo – Missy pegou sua bolsa. – Bom dia, sr. Wilby.
No entanto, eu não tinha tanta certeza. Conversei com ela por um momento e expliquei que eu não gostava da ideia de desistir disso. Eu queria ouvir o que Lansing
tinha a dizer, esclarecer minhas dúvidas sobre seu envolvimento com o Serviço Secreto. Após um curto debate, ela cedeu. – Contanto que seja aceitável para Tessa.
Garanti para Tessa que ela poderia participar de reuniões futuras, mas que esquecesse dessa por enquanto. – Precisamos saber o que está acontecendo aqui. Prometo
que conto tudo para você.
Ela não ficou feliz, mas finalmente concordou. – Quando a reunião acabar, você vai me contar tudo?
– Vou.
Quando Wilby convidou a mim e Missy a segui-lo, ele estava com um olhar de satisfação no rosto que deixava claro que ele achava que o primeiro round era dele.
Um gabinete de madeira com uma dúzia de cubículos ficava do lado de fora da porta da sala de conferência. Wilby tirou seu iPhone do bolso. – Vou ter que pedir a
vocês que deixem seus telefones celulares aqui. Após muitas interrupções no passado, nosso escritório criou uma política. Tenho certeza de que vocês entenderão.
Isso eu não aceitaria, e estava prestes a lhe dizer, mas Missy foi mais rápida. – Meu cliente é um agente federal. Seu telefone contém informações altamente delicadas
e confidenciais, então obviamente ele não pode separar-se dele. E meu telefone contém o número privado dele, então não posso deixar o meu também. Tenho certeza de
que você entenderá.
Eu realmente estava começando a gostar dessa nossa advogada.
– Temo que ela esteja certa – eu disse.
Wilby parecia que ia discutir, mas desistiu e abriu a porta.
Round dois: Missy Schuel.
Assim que entramos na sala, ela me disse suavemente: – Agora lembre-se: deixe que eu fale.
Eu estava colocando meu celular para vibrar.
Ela fez uma pausa.
– Você vai deixar que eu fale?
– Vou tentar.
– Consiga – ela disse, e entramos na sala de conferência. Fechei a porta atrás de nós.
92
Lansing e outros dois advogados estavam nos esperando no lado oposto de uma mesa de metal e vidro. Uma janela virada para o sul oferecia uma luz natural para o clima
institucional da sala. Uma jarra com água estava no meio da mesa com sete copos posicionados ao lado dela. Imaginei que a porta adicional no outro lado da sala levava
para mais escritórios.
Sete copos na mesa.
Talvez estivessem esperando Tessa.
Ou isso, ou outra pessoa.
Missy e eu tomamos nossos assentos de frente para Lansing e seus advogados. Após as apresentações, Wilby nos agradeceu por compareceu, o que pareceu um pouco falso
pois ele havia feito a mesma coisa na recepção logo que chegamos, e já estávamos ali há aproximadamente 45 minutos.
– Certo – Missy gesticulou na minha direção. – Nosso objetivo hoje é descobrir o que o sr. Lansing quer...
– Ele quer a custódia de sua filha biológica – um dos associados de Wilby disse secamente.
Ela olhou para ele com uma curiosidade fria. – Qual é seu nome mesmo?
– Seth Breney.
– Bem, sr. Breney, por favor, evite me interromper e sem dúvida essa reunião será muito mais produtiva para todos nós – não havia dúvida sobre quem estava no controle
daquela sala.
Wilby limpou a garganta. – Primeiramente, meu cliente quer o que é melhor para Tessa.
– É bom saber disso – Missy estava escrevendo algo em sua caderneta com aquela letra de mão.
No silêncio momentâneo que se seguiu à sua declaração, Lansing falou: – Patrick, antes de começarmos aqui, eu gostaria de dizer o quanto sou grato por tudo que fez
por Tessa desde que Christie faleceu.
– É gentil de sua parte dizer isso.
– Sejam quais forem os resultados desse caso de custódia, espero que você concorde em continuar envolvido na vida dela.
Ah, como eu queria responder isso à altura, mas em vez disso mudei de assunto. – Você não correu para se esconder, não foi, Paul?
– Como assim?
– Há seis anos. No hotel.
Observei sua reação.
Apesar das coisas que são mostradas na TV, quando vamos detectar uma fraude, não importa tanto o que o sujeito faz – olhar para um canto ou outro da sala, ajeitar
os óculos ou olhar por cima deles –, mas sim se ele faz algo diferente de quando está dizendo a verdade. Mudanças psicológicas subconscientes perceptíveis sempre
ocorrem, mesmo que sejam diferentes de pessoa para pessoa.
Agora, enquanto Paul me encarava, eu podia ver seu treinamento do Serviço Secreto na frieza de seus olhos, mas ele estava batendo levemente o dedão e o indicador
um contra o outro, o que ele não estava fazendo alguns momentos antes. – Podemos discutir isso depois, Patrick.
– Sim – Wilby concordou enfaticamente.
– Não há hora melhor que o presente – dei de ombros. – Somos todos amigos aqui.
Lansing não disse nada.
– Bom, então... – Wilby disse.
Lansing bateu o dedão no indicador.
É o que pensava.
Fiz uma anotação na caderneta de Missy.
Ela olhou e leu. Assentiu.
– De volta ao assunto a ser discutido – Wilby conferiu sua pilha de anotações, apesar de o que ele disse não parecer tão difícil de se lembrar. – Meu cliente é o
pai biológico de Tessa. Você não contesta isso, certo?
– Vamos querer que outro exame de DNA seja feito por um laboratório de nossa escolha – Missy disse. – Apenas para garantir.
Wilby olhou para Breney, obviamente seu subordinado, que fez uma anotação. O terceiro advogado que estava sentado ao lado deles não disse nada, simplesmente ficou
sentado, parecendo não estar entendendo nada.
Wilby disse: – Quando o agente Bowers e sua enteada apareceram mês passado na casa do meu cliente, eles tinham um diário que continha uma carta que meu cliente escreveu
para Christie Ellis, a mãe da garota.
– Tessa – eu o corrigi. – O nome da garota é Tessa – toda a história de deixar Missy falar não estava dando certo.
– Sim – Wilby disse. – Na carta, meu cliente declara que queria ter um papel ativo na criação da ainda não nomeada criança que Christie estava carregando. Desde
o início, mesmo antes de ela ter nascido, o sr. Lansing voluntariamente se ofereceu para cuidar tanto da mãe quanto da criança, seja emocional ou fisicamente.
– A carta expressa apenas larga intenção – Missy respondeu –, mas nenhuma designação específica. E ele nunca fez nenhum esforço para dar sequência a essas promessas
vagas.
– Quando a mãe de Tessa o deixou, ele a procurou, mas 17 anos atrás, sem internet, não era fácil localizar alguém que não queria ser encontrado. Meu cliente nem
sabia que a garota, Tessa, estava viva.
Missy esperou, uma sobrancelha erguida, e eu podia dizer que seu silêncio era uma maneira de controlar a conversa. – Mais alguma coisa?
Wilby folheou uma pilha de papéis. – Eu tenho aqui uma cópia do horário de trabalho do dr. Bowers é nos primeiros seis meses após a morte de sua esposa.
Senti uma leve acelerada nos meus batimentos.
Como ele conseguiu isso?
Então ele se dirigiu a mim diretamente, como se Missy não estivesse na sala.
– Parece que você passou um bom tempo viajando, dr. Bowers. Dando palestras em conferências de forças policiais e de ciência forense.
– Eu dei algumas palestras, sim.
– Quantos fins de semana você deixou Tessa com seus pais enquanto saía para prestar consultoria em algum caso ou dar uma palestra em uma conferência?
– Isso não tem nada a ver com... – Missy começou.
– Eu viajava uns dois fins de semana por mês – eu disse.
– Catorze fins de semana – Wilby apontou. – Catorze fins de semana em seis meses. Isso é mais do que dois fins de semana por mês.
– O que significa – Missy rebateu – que o dr. Bowers estava em casa por aproximadamente 80% do tempo. E sempre que meu cliente saía, Tessa era muito bem cuidada.
– Eu não estou aqui para discutir sobre a competência dos cuidados que os parentes do dr. Bowers podem fornecer. Esse não é o assunto aqui.
Ok, esse cara estava começando a me irritar.
– Tessa precisa de um lar mais estável e seguro do que um agente na ativa do FBI pode fornecer – Wilby conferiu suas anotações mais uma vez. – De acordo com relatórios
da polícia, em outubro passado ela quase foi assassinada por um assassino em série que o dr. Bowers estava perseguindo na Carolina do Norte.
A raiva estava aumentando.
– Ela estava dentro de um esconderijo seguro do FBI quando ele a atacou.
– E ainda assim, esse homem, Sevren Adkins, foi capaz de...
– Qual é o seu ponto? – Missy disse secamente.
– Meu cliente está preocupado com o bem-estar de sua filha – ele estava olhando diretamente para Missy. – O dr. Bowers tem um histórico de quebra de protocolo do
FBI...
– Isso é um absurdo – ela interrompeu. – Em uma coletiva de imprensa na quarta-feira, a diretora-assistente-executiva do FBI o chamou de um dos melhores agentes
do Bureau.
Wilby juntou as mãos à sua frente sobre a mesa. – Vamos direto ao assunto. Se esse caso acabar indo para o tribunal, nós temos um homem que está disposto a testemunhar
que o agente Bowers fez uma ameaça de morte contra ele.
O quê?
– O agente Bowers nunca ameaçou ninguém de morte – Missy disse.
Wilby estava com aquele olhar novamente, que dizia que ele tinha ganhado um round, mas foi Lansing quem falou. – Ele está aqui agora. Podemos encerrar essa discussão.
Talvez chegar a um...
– Eu não ameacei ninguém – declarei inequivocamente.
Missy leu meus olhos e viu a verdade neles. – Se ele está aqui – ela estava olhando pela sala –, vamos falar com ele.
Vamos acertar isso.
Wilby se levantou e foi até a porta do outro lado da sala. Ele a abriu e disse: – Pode entrar – então se afastou e seu homem apareceu.
Richard Devin Basque.
93
Faltam 5 horas...
16h29
Duas cavernas se juntaram.
Então, é por isso que Basque está em Washington, DC.
Por sua causa.
Por um momento, o assassino canibal olhou pela sala com seu ar de confiança gentil, as profundezas azul-esverdeadas de seus olhos lembrando--me das águas escuras
do Ártico. Enquanto ele se sentava, eu rapidamente analisei como Paul Lansing poderia ter feito a ligação entre mim e Basque.
Quando Tessa e eu visitamos Paul no mês passado, o novo julgamento de Basque acabara de acontecer. Na época, a história de como eu conseguir impedir o atentado contra
sua vida estava em todos os jornais, assim como minha confissão no tribunal de tê-lo socado – espere, tecnicamente, tê-lo agredido fisicamente – durante sua prisão.
Após a soltura de Basque, Lansing poderia facilmente tê-lo contatado e lhe pedido que lhe dissesse ao juiz da vara da família que eu tive um ataque de violência.
E considerando nossa história, eu fazia ideia do quanto Basque ficaria feliz em aceitar o convite. Qual seria a melhor maneira de me fazer pagar por mandá-lo para
a prisão por treze anos do que destruindo minha família?
Mas que história é essa de ameaça de morte?
Missy reconheceu Basque. – Essa reunião está encerrada – ela se levantou.
– Agora escutem um segundo – Wilby disse.
– Não – ela estava a caminho da porta. – Venha, dr. Bowers, estamos indo embora.
– O agente Bowers disse para mim – Basque falou, sua voz sempre calma, ressoante –, no velório do dr. Werjonic no mês passado, que ele tinha intenção de...
Missy se virou. – Intenção do quê? Mês passado o agente Bowers salvou sua vida quando um atirador tentou matá-lo durante seu julgamento. Agora você está dizendo
que ele quer você morto?
– Pergunte a ele – ele virou os olhos para mim. – Ele não vai mentir.
Oh.
A sala ficou em silêncio.
A atenção de todos se voltou para mim.
Não, não, não.
Nada bom.
Eu não disse a Basque que queria matá-lo, mas eu tinha pensado.
Sim, eu tinha.
Justiça preventiva.
Levei um momento para pensar cuidadosamente no que dizer, mas antes que eu pudesse responder, Missy explodiu: – Por acaso você disse que ele não vai mentir? Bem,
você está absolutamente certo. O dr. Bowers não é o tipo de homem que sentaria aqui e mentiria para você. No entanto – ela apontou para Paul –, o sr. Lansing mentiu
para meus clientes sobre seu antigo trabalho. Ele mentiu para Tessa sobre a razão pela qual estava em Washington, DC, mentiu sobre por que mora em Wyoming, mentiu
sobre sua amizade com uma escultora cujo trabalho estaria exposto no museu Hirshhorn e mentiu sobre seu papel em impedir a tentativa de assassinato contra o vice--presidente
Fischer há seis anos. Você está certo, o sr. Bowers não é um mentiroso. Mas, ao lidar com meus clientes, o sr. Lansing mostrou pouquíssimo apreço pela verdade.
Ótimo.
Bela jogada.
Ela olhou as pessoas na sala, uma por uma. – Se o sr. Lansing chegar perto dos meus clientes ou continuar a assediar Tessa com seus e-mails, vamos arrumar uma ordem
de restrição, e considerando o padrão de falsidade e intimidação que ele já cometeu, posso garantir que nenhum juiz negaria esse pedido. Sugiro que você desista
desse processo de custódia ridículo e evite o embaraço de tornar isso público – ela girou nos calcanhares e foi para a porta. – Terminamos aqui.
Wilby se levantou. – O agente Bowers é um homem nervoso e violento que usa de força desnecessária quando apreende suspeitos, e ele ameaça a vida de pessoas inocentes.
Tessa precisa de um pai mais emocionalmente equilibrado que isso.
Eu o ignorei e olhei para Basque. – Richard, onde está a professora Renée Lebreau? Ele não respondeu.
– Ela está aqui em Washington, DC?
Nada.
– Você fez algum mal...
– Isso não é sobre o sr. Basque! – Wilby reclamou comigo.
Olhei para ele, então para Lansing e Basque, e mal consegui segurar minha resposta, mas eu sabia que se dissesse o que estava pensando, não seria do melhor interesse
para Tessa; isso só reforçaria as afirmações de Wilby sobre meu suposto temperamento.
Então, em vez disso, segui Missy até o corredor, e apesar de estar tentado a bater a porta atrás de mim, deixei-a fechar-se suavemente.
No corredor, antes de nos encontrarmos com Tessa, eu disse a Missy: – Bom trabalho.
Ela ficou quieta.
– Você fez um bom trabalho, Missy.
– Eu ouvi.
Quando chegamos à recepção, Tessa se aproximou de nós. – Então? O que aconteceu?
Missy não respondeu e seguiu direto para as portas de saída; eu estava digitando um número no meu celular. – Explico quando estivermos lá fora – eu disse a Tessa.
– O que está acontecendo?
– Por favor, espere com Missy. Eu já volto.
Ela me deu um olhar depreciativo: Eu não acredito! Você está que
brando totalmente a promessa de me contar tudo que aconteceu lá dentro!
Eu estava esperando Doehring atender.
– Está tudo bem – eu disse para ela. – Acho que Paul pode desistir do processo.
– Sério?
– Sim. Agora, lá fora. Eu já vou.
Hesitante, ela obedeceu.
Doehring atendeu e eu lhe pedi para mandar imediatamente um policial disfarçado para seguir Basque quando ele saísse da reunião. – E ligue para Ralph Hawkins – passei
o número para ele. – Diga a ele que sabemos onde Richard Basque está.
Então saí e me juntei a minha enteada e a nossa advogada na calçada.
Missy estava nervosa.
E eu tinha a sensação de que sua raiva não era direcionada apenas às pessoas que estavam do outro lado da mesa.
94
Missy Schuel estava num silêncio mortal até chegarmos ao carro. – O que aconteceu no velório, Patrick, naquele a que Basque se referiu? Você o ameaçou?
– O quê? – Tessa exclamou.
– Eu lhe disse que encontraria evidências suficientes para mandá-lo de volta para a prisão. Ele disse que não achava que eu era capaz de... bem, nesse ponto eu o
interrompi e disse que ele não fazia ideia do que eu era capaz.
– Qual velório? – Tessa perguntou. – Do dr. Werjonic?
– Não fazia ideia do que você era capaz? – Missy disse, os olhos pregados em mim.
– Sim.
– Só isso?
– Só isso.
– Nada mais específico?
Tessa colocou as mãos na cintura. – Alguém pode, por favor, me dizer o que está acontecendo?
– Richard Basque estava na reunião – eu lhe disse. – Paul obviamente está procurando qualquer oportunidade que puder encontrar para usar contra mim. – Então respondi
para Missy: – Não. Nada mais específico.
Aquilo pareceu satisfazê-la pelo menos parcialmente. – Mais alguma coisa? Nenhuma outra surpresa que eu deveria saber?
– Provavelmente – vi um carro sem identificação dirigido pelo oficial Lee Anderson chegar e estacionar do outro lado da rua. – Mas nenhuma que eu possa lembrar agora.
Devia ter passado menos de três minutos desde que liguei para Doehring. Uma resposta incrivelmente rápida. Anderson já devia estar na região.
Olhei para outro lado, para não chamar a atenção para ele. – Vamos – eu disse para Missy. – Vou deixá-la no seu escritório.
Ela estava livre.
Livre.
Ela observava a floresta enquanto a atravessava, alerta a
qualquer movimento.
Ela demorou bastante para afrouxar a faixa em torno de seu pescoço e mais tempo ainda para livrar o outro braço. Mas depois disso, as pernas tinham sido fáceis.
Livre.
Ela chegou ao riacho onde viu o cadáver ontem à noite
logo que entrou na fazenda de corpos com o homem que a deixara para morrer.
Parou ao lado do riacho um pouco acima de onde estava o corpo, tirou as roupas fétidas e infestadas de insetos e se lavou, esfregando, esfregando, esfregando para
tirar o fedor, a sujeira e a podridão de seu corpo.
Ela então enxaguou as roupas e as torceu o máximo que pôde, e banhou os tornozelos na água fria para aliviar a dor da carne cortada onde ela havia sido mordida pelos
animais carniceiros.
O prédio da administração da Academia não estava longe, a menos de um quilômetro do início da trilha. Se ela pudesse pelo menos chegar até o estacionamento, ela
podia roubar um carro, dirigir até um banco, tirar o dinheiro da conta de seu traidor e sumir.
Mas seja esperta.
Ele se virou contra ela, sim, a traiu, mentiu para ela, ten
tou matá-la. Sim, sim, sim. Mas...
Um calafrio terrível percorreu seu corpo quando foi forçada a admitir que ele era mais esperto do que ela, mais esperto do que qualquer policial ou agente do FBI
que ela conhecia. Ele a encontraria, sim, encontraria; era inevitável. E considerando o que ele tinha feito com ela na noite passada – amarrou-a em um cadáver putre
fato –, ela podia sequer imaginar o que ele faria com ela se a pegasse.
Ou o que ele faria com seu bebê.
Mesmo se ele não viesse atrás dela, ele certamente iria
plantar evidências que levariam as autoridades até ela.
Ele tinha meios de falsificar identidades.
Ele era bom com disfarces.
Ele podia cobrir seus rastros melhor que qualquer um que
ela conhecia.
Ele desapareceria e ela acabaria numa prisão para o resto da vida.
E o pior de tudo: eles levariam seu bebê embora.
Para adoção.
Ela já havia passado por isso e não estava disposta a deixar
seu bebê crescer daquele jeito.
Ela vestiu as roupas molhadas.
Era o fim de sua carreira, sim. O fim de sua velha vida,
sim, certo, ela sabia disso, mas pelo bem de seu bebê ela precisava se assegurar de que não seria encontrada. Nunca.
Então ela teve uma ideia.
Havia uma maneira de manter o bebê com ela e também
ficar livre tanto daquele que a traiu quanto do FBI.
Para viver, ela teria que morrer.
Para o resto do mundo.
Mas felizmente, uma coisa na qual ela era boa, a única
habilidade que ela tinha, era culpar pessoas por assassinato.
E dessa vez, ela culparia seu traidor por sua própria morte.
Ela foi na direção do estacionamento, considerando o que seria
necessário para ela fazer sua morte ser tão crível quanto precisava ser.
Predador.
Presa.
Dessa vez, ela teria que ser ambos.
Após deixar Missy em seu escritório, eu precisava de um minuto para pensar, descobrir o que fazer em seguida. Muitas coisas exigindo minha atenção.
Tessa estava chateada.
Basque estava na cidade, aparentemente tentando ajudar Lansing nesse caso da custódia.
A dra. Lebreau ainda estava desaparecida.
Os assassinos ainda estavam livres.
Meu braço doía bastante.
Não havia hora melhor que essa para um café.
Levei Tessa até uma cafeteria pequena no centro de Washington, DC. Ela pediu um latte pequeno com leite de soja; eu pedi um Kenya AA de 600 ml, acabei com ele e
pedi outro antes de ela voltar do banheiro.
Agora estávamos andando por um parque cheio de turistas perto do Capitólio, voltando para o carro, que eu tive de estacionar a umas três quadras de distância.
Sobre nós, os galhos retorcidos das árvores alinhadas à trilha pareciam reter a luz do sol do fim da tarde, deixando apenas recortes do dia chegarem até nós.
Sombra e luz, piscando para mim a cada passo do caminho.
Sem nenhum motivo aparente, Tessa e eu andávamos rápido na dire
ção do carro.
Tantos pensamentos se embaralhando na minha cabeça.
Eu queria ouvir o que Lien-hua podia ter descoberto sobre a falta de evidências de DNA, descobrir o que estava acontecendo com Margaret e sua referência curiosa
sobre aborto, revisar novamente meu perfil geográfico...
Eu tinha desligado o toque do meu celular desde o começo da reunião de custódia, e agora olhei para a tela e percebi que havia uma ligação perdida de Cheyenne.
Ótimo.
Só mais uma coisa para resolver.
Ontem de manhã, Tessa disse que eu estava flertando com as duas, e eu tinha que admitir que ela estava certa.
Então agora, considerando que eu parecia estar conseguindo me acertar com Lien-hua, eu precisava ter certeza de que não flertaria mais com Cheyenne. Sentindo uma
pontada aguda de culpa e não querendo olhar minhas mensagens com medo de encontrar alguma que ela tivesse mandado, guardei o telefone no bolso.
Tomei um gole de café.
Tessa apontou para uma estação de metrô.
– Então, acho que vou para casa.
– Eu levo você. O carro está logo ali, no fim do quarteirão.
– Você já está comigo há umas três horas. Você precisa ficar aqui, voltar para o seu caso.
– Isso pode esperar – eu disse. – Eu não gosto do fato de Basque estar aqui.
– Eu sei disso, mas você mandou um policial disfarçado segui-lo, então...
– Por que você está dizendo que eu mandei um policial segui-lo?
Ela parecia incomodada por ter que se explicar.
– Basque aparece, daí você faz uma ligação urgente antes de sair do escritório do advogado, daí você olha para um cara de bigode que para na frente do prédio em
um sedã. É fácil ver quem é policial. Quem mais, além de assassinos em série e policiais, usa bigode hoje em dia?
– Paquistaneses.
– Sim, claro, e cowboys também, mas aquele cara era um policial.
Desisti da discussão sobre bigodes. – Não vou deixar você sozinha. Eu não confio em Lansing.
– Mas na reunião, a srta. Schuel disse que conseguiria uma ordem de restrição se ele chegasse perto de mim. Ele não ousaria me seguir.
– E como você sabe que ela disse isso?
Tessa virou os olhos. – Ela estava gritando quando disse isso. Olhe, Patrick, eu estou bem.
Eu tenho algumas coisas para fazer em casa. Vou pegar o metrô. Você precisa ficar aqui.
– Acho que não.
Nosso carro ainda estava a cinquenta metros.
Ela me seguia de má vontade.
Andamos.
Da sombra para a luz.
– Vou fazer um trato com você – ela disse.
– Que trato?
– Se você for capaz de me olhar nos olhos e responder uma pergunta, então eu me calo e não discuto. Você pode esquecer esse caso, ir para casa e ficar cuidando de
mim.
Eu não estava gostando dessa história; tomei mais um pouco de café.
– Então?
– Vá em frente – eu disse.
– Você tem que ser honesto.
– Serei honesto. Qual é a pergunta?
– Você tem que prometer.
– Tessa. Tá bom. Eu prometo.
Sombra para luz.
– Olhe nos meus olhos.
Meu Deus.
Paramos de andar, e eu olhei em seus olhos.
– Diga-me que o Bureau tem mais chance de encontrar esses assassinos, de salvar a vida das pessoas, se você não estiver ajudando. Se você puder me dizer isso, então
vou para casa com você e não vou te encher.
– Isso não é justo. Além do mais, não foi nem uma pergunta.
Ela ficou com aquele jeito arrogante de adolescente e me lançou um olhar crítico.
– Tessa, existem muitas pessoas boas trabalhando nesse caso. Não é como...
– Eu posso rearranjar a frase se facilitar pra você.
– Você é mais importante para mim do que...
– Não faça isso.
Meu telefone tocou. O toque de Cheyenne.
Inacreditável.
– Fazer o quê?
– Me usar como uma desculpa.
– Não estou usando você como uma desculpa.
Tocou novamente.
– Eu entendo que você me ame – ela disse. – Mas eles têm mais chance de salvar vidas se você estiver em casa cuidando de mim?
– Por que você está perguntando isso?
Toque do telefone.
– Responda.
– Já vou atender.
– Não, estou falando da minha pergunta.
– A resposta é não...
– Muito bem – ela parecia satisfeita. – Agora, o telefone.
Outro toque.
Irritado, atendi. – Cheyenne. Oi.
– Como você está? Só liguei para ver como as coisas estão. Como vai o caso. Como está seu braço.
– Escute, posso ligar de volta para você?
– Claro – mas ela parecia preocupada. – Está tudo bem?
– Sim.
Tessa disse: – Pergunte o que ela vai fazer hoje à noite.
Balancei minha cabeça para Tessa e falei com Cheyenne: – Só preciso de alguns minutos.
– Pergunte – Tessa disse.
– Cheyenne, você pode esperar um segundo? – segurei o telefone contra o peito. – O que você quer, Tessa?
– Seria besteira ela vir até a cidade para ajudá-lo agora. Com o trânsito de sexta-feira à noite? Por favor. Eu vou levar, tipo, uma hora e meia para chegar em casa
de trem, ela pode trabalhar até lá, sair comigo para jantar e quando voltar você pode conversar com ela sobre o caso. Isso vai te dar mais algumas horas para trabalhar,
eu vou ficar segura, problema resolvido. Todo mundo fica feliz.
Tentei achar alguma falha em seu plano.
– Não – eu disse, teimoso.
– Me empresta seu telefone por um segundo?
– Tessa...
Ela esticou a mão. – Vai, só por um minuto.
– Eu...
Ela inclinou a cabeça e ergueu as sobrancelhas. Uma reprimenda de uma garota adolescente.
Resisti, mas no final acabei desistindo.
Tessa pegou o telefone.
– Detetive Warren, oi, sou eu. Hum, viu, eu vou chegar em casa umas 18h45. Você poderia dar uma passada lá até Patrick chegar? Sim, ele está todo estranho comigo...
eu sei. Sim, não, estamos bem... Veremos, você não vai ganhar de mim mesmo dessa vez... Sim, certo. Ok, você quer falar com ele de novo...?
Ela devolveu o telefone para mim. – Ela quer dizer oi.
Eu disse para Cheyenne: – Me desculpe por isso.
– Não tenho que desculpar você por nada.
– Tessa está tentando bater as asinhas, e só não é uma boa hora.
– Não tem problema, sério. Fiquei na aula o dia todo. Vou passar no estande de tiro, dar uma treinada e depois vou para sua casa e vejo você quando chegar lá. Aí
você pode me atualizar. Além disso, vou ter a chance de praticar meu novo hobby.
– Seu novo hobby?
– Lembra? Ir te salvar?
Oh, não.
– Sim.
Não flerte com ela.
Não flerte com ela.
Não flerte com ela.
– Bem – eu disse. – Obrigado – passei para ela o número do celular de Tessa para facilitar o contato entre elas, e finalizamos a ligação.
Tessa estava terminando seu latte. – Então?
– Todas as adolescentes são assim?
– É possível que eu seja superdotada – ela jogou a alça de sua bolsa por cima do ombro. – Não se preocupe, está tudo certo. Ela não precisa deixarde ser sua amiga
só porque você beijou a agente Jiang. Mas lembre-se...
– Sim, eu sei. Não dê falsas esperanças.
– Exatamente.
Respirei fundo. – Eu quero que você faça o seguinte: me mande uma mensagem de texto a cada quinze minutos até que a detetive Warren chegue. Para que eu saiba que
você está bem.
– Você tá brincando.
– Não estou brincando – ergui um dedo de advertência para evitar uma réplica. Não funcionou.
– Não se deve usar dispositivos móveis no metrô – ela respondeu.
– Se você for presa por isso, garanto que consigo diminuir sua pena.
Ela suspirou em reprovação. – Tanto faz.
– Ligue para mim se acontecer alguma coisa, qualquer coisa.
– Ligarei.
Levei-a até a estação do metrô, esperei que ela embarcasse, então dirigi até o quartel-general da polícia.
Para mapear essa caverna.
95
Faltam 4 horas...
17h29
Margaret tinha saído, Doehring assumira o comando e parecia que a equipe havia feito algum progresso.
Ele me atualizou.
A grande novidade: o agente Cassidy encontrou traços de C-4 militar em algumas fibras do carpete na parte de trás da van.
– Pensei que tinham liberado a van – eu disse.
– Depois que você ligou a explosão do posto de gasolina ontem à noite com a onda de crimes, eles começaram a analisar tudo de novo, do início ao fim.
A ATF tem os melhores cães detectores de explosivos e acelerantes, então suas equipes foram enviadas para o Lincoln Towers Hotel, para o escritório do deputado e
para a Fundação Gunderson.
A ATF.
Mais uma agência acrescentada ao prato.
– Vamos mandá-los para o quartel-general da Polícia do Capitólio também.
– Certo – ele fez uma anotação. – Próximo: você sabe que Fischer tem ligações com a Fundação Gunderson. Bom, alguns dos meus homens deram uma olhada em alguns dos
seus maiores patrocinadores de campanha.
– Deixe-me adivinhar: a Fundação Gunderson?
Ele meneou a cabeça.
– Não, mas descobrimos duas outras organizações no mesmo ramo da neurociência, ambas tentando identificar as partes do cérebro que levam a psicopatologias. E ambas
têm os bolsos bem recheados.
Hum.
Lembrei-me da minha visita ao centro de primatas e da preocupação de Fischer em não ter sua ligação com a Fundação Gunderson exposta ao público.
– As informações estão nos arquivos eletrônicos do caso?
Ele acenou com a cabeça.
– Certo – eu disse. – Vou verificar isso. Fique em cima da história da bomba. Mantenha-me informado.
Ele assentiu, então cruzou a sala para falar com o oficial Tielman, que acabara de chegar.
Verifiquei minhas mensagens de texto: apenas uma. Tessa dizendo que estava bem.
Ótimo.
Posicionei-me em uma mesa próxima da parede, peguei meu laptop e cliquei nos arquivos on-line do caso.
Mas após quinze minutos de becos sem saída, decidi tentar um outro ângulo e naveguei até www.thomas.loc.gov para verificar a lista de legislações pendentes na Câmara
dos Deputados. Levaria uma eternidade para ler as leis, a maioria das quais tinha provavelmente centenas de páginas, mas dois assuntos poderiam me ajudar a diminuir
a lista.
Eu já tinha o primeiro em mente: reforma da justiça.
E Margaret me dera o segundo.
Aborto.
Ela sacou todas as economias de sua conta e estava em um quarto de hotel se limpando, pensando nas implicações de sua decisão de desaparecer.
Tudo que ela precisava para fingir sua morte estava em seu porão, no quarto que o homem em que ela confiou tinha reformado tão cuidadosamente. Todas as ferramentas.
Todos
os produtos químicos. Mas, claro, como ele poderia aparecer na casa a qualquer momento, ela se arriscaria muito indo até lá.
Porém, ela precisava resolver isso essa noite, assim que possível, e o porão era o lugar mais óbvio para fazer isso. Na verdade, com esse tempo curto que ela tinha,
talvez fosse o único lugar no qual ela poderia fazer isso.
Se ela fosse suspeita dessa onda de crimes, os aeroportos certamente vigiariam seu nome, mas se fosse considerada morta, ela ficaria fora da tela do radar. Ela estaria
livre.
Deixando um pouco do seu próprio sangue e cortando um pouco do seu cabelo, ela faria parecer que ela era a presa.
Mas um pouco de sangue e cabelo não seriam suficientes para convencer o FBI.
Para que isso funcionasse, ela precisaria de um corpo. Um que ela pudesse dissolver e que ficasse impossível de ser reconhecido – coloque o corpo na banheira, encha
com água, adicione alguns litros de soda cáustica, transforme a vítima em sabão. Mesmo com um exame de DNA é praticamente impossível identificar quando você usa
bastante soda cáustica.
Se ela pudesse deixar evidências suficientes de que uma mulher foi morta, e evidências suficientes para parecer que a mulher era ela, ela podia pelo menos ganhar
tempo suficiente para sair do país.
Para escapar.
Desaparecer.
Começar uma nova vida e cuidar de seu bebê.
Então, no fim das contas, ela percebeu que, mesmo que vol
tar para casa fosse arriscado, era um risco que ela precisava correr.
No entanto, ela nunca tinha matado ninguém na vida real, apenas arrumado as coisas para que seu amante pudesse colocar suas ideias em prática, e agora, para sua
surpresa, quanto mais ela pensava em tirar a vida de outra mulher, mais a ideia parecia perturbadora.
Mas não havia outra opção. Pelo bem de sua própria liberdade, pelo bem do futuro de seu bebê, alguém teria que morrer.
Uma vida em troca de duas.
E por causa da pesquisa que fez para o trabalho, ela conhecia a pessoa perfeita para ser sua vítima.
Ela trocou de roupa, pegou a chave do carro e saiu do hotel para pegar sua presa.
Margaret encontrou o que estava procurando.
Ela estava em seu escritório no quartel-general do FBI e tinha acabado de analisar memorandos entre escritórios e comunicações eletrônicas para rastrear o lançamento
dos arquivos do Projeto Rukh. Ela descobriu que, realmente, foi o diretor do FBI, Rodale, quem aprovou a transferência da pesquisa do Projeto Rukh para a Fundação
Gunderson – poucos dias antes de começarem as contribuições do deputado Fischer para a Fundação.
Talvez os dois homens não estivessem em desacordo, afinal. Talvez fossem parceiros.
Mas, então, por que Fischer iria propor cortes no orçamento do Bureau?
Independentemente da ligação de Rodale com Fischer, o próximo passo parecia ser óbvio para ela.
Seguir o dinheiro.
Margaret pegou o telefone para fazer algumas ligações.
96
Faltam 3 horas...
18h29
Não encontrei nada específico sobre reforma da justiça, mas descobri duas leis da Câmara com o nome de Fischer que estavam em tramitação pelo Congresso, e ambas
poderiam estar relacionadas ao caso.
A primeira, Projeto de Lei 597, acrescentaria restrições a procedimentos de sentença de pena de morte. “Em resposta ao florescente sentimento mundial sobre os abusos
dos direitos humanos, frequentemente precipitados enquanto aplicando injeções letais.”
A segunda, uma lei que ele estava copatrocinando que aumentaria os fundos federais para testes de bebês in vitro para identificar distúrbios genéticos ou neurológicos:
Projeto de Lei 617. A lei não parecia se relacionar diretamente com aborto, como Margaret insinuou, mas esses tipos de testes in vitro eram normalmente usados por
pais que consideravam o aborto como uma...
Tielman chamou meu nome e olhei para ele.
– Temos outra placa para você – ele anunciou.
Precisei um momento para assimilar o que ele dizia. – Uma placa? Uma placa de carro?
– Sim – ele cruzou a sala na minha direção. – Uma aluna da Academia Nacional voltando para o dormitório. Acontece que a placa do carro dela não é dela. Um sargento
no portão principal, um cara chamado Hastings, percebeu. Faz uns dez, quinze minutos.
– Qual aluna? – perguntei.
Ele olhou para a anotação que estava carregando. – Detetive Annette Larotte – ele me entregou o papel. – A placa está registrada no nome dela, mas ela diz que não
foi ela quem pediu a placa.
A placa: ETI–1RE
Hum.
Rabisquei as letras da placa do carro de Mahan abaixo dela:
ETI–1RE
TEP–ROM
Ou talvez:
TEP–ROM
ETI–1RE
Ignorando os hifens e lidas juntas, as placas diziam: “Te prometi 1re...”
O que seria1re? Prometeu o quê?
Enquanto estava pensando nisso, reparei que Lee Anderson entrou na sala.
– E olha só – Tielman continuou –, são placas do Colorado. De Denver.
– Denver? – Eu só estava parcialmente atento ao que ele dizia.
– Você não é de Denver?
– Sim – murmurei, e então chamei Anderson. – Quem está seguindo Basque?
Ele parecia irritado. – Eu o perdi.
– O quê? Você o perdeu? – deixei Tielman e caminhei na direção de Anderson.
– Estávamos num semáforo – ele murmurou. – Eu estava três carros atrás... talvez ele tenha me visto, eu não sei. Mas ele virou a esquina, e quando eu finalmente
passei pelo semáforo, encontrei seu carro na metade do quarteirão, estacionado perto do meio-fio. Ele não estava em nenhum lugar visível.
– Então tem alguém nesse momento vigiando o veículo, certo?
Caso ele volte.
Anderson ficou em silêncio. – Eu não sabia que isso tinha tanta prioridade.
Dei um soco na mesa ao nosso lado, e a sala imediatamente foi tomada pelo silêncio. – Tinha uma mulher com ele? Alguém mais no carro?
– Não – Anderson parecia defensivo, ressentido por eu estar me importando tanto com isso. – Ele estava sozinho no carro. Não se encontrou com ninguém.
– Antes de você perdê-lo.
Ele respirou profundamente. – Sim, mas ele não é um suspeito do caso, é? – havia um desafio velado em suas palavras, uma tentativa de diminuir seu erro e assim desculpá-lo.
Eu não ia entrar nessa. Não aqui, não na frente de todo mundo.
– Ele é de interesse para o caso – eu respondi, e deixei por isso mesmo.
Uma porta se abriu e Doehring invadiu a sala, vindo em nossa dire
ção. Seus olhos perfuravam como facas. – Anderson!
Decidi deixar Doehring cuidar de Anderson. Quando ele se aproximou, eu disse: – Temos alguém monitorando as imagens do trânsito, certo?
– Angela Knight está cuidando disso – ele estava olhando para Anderson.
– Ela disse se hoje está na central ou em Quantico?
– Quantico. Com alguém chamada Lacey.
Perfeito. – Certo, vamos designar um policial para vigiar o carro de Basque – balancei a cabeça. – Com muita sorte, ele ainda estará lá.
Considerando o hábito dos assassinos de deixar pistas para crimes futuros, pedi para Doehring conseguir custódia de proteção para Annette Larotte até que fizéssemos
algum progresso no caso. Ele concordou, então encurralou Anderson no outro lado da sala para pegar a localização do veículo, e eu liguei para Angela, e lhe disse
para continuar procurando o rosto de Basque nos vídeos de trânsito. – A dra. Lebreau também – acrescentei.
– Mais alguma coisa? – ela parecia exausta. – Estou aqui sentada sem mais nada para fazer, sabe.
– Você pode procurar por Adkins.
– Quem?
Contei a ela sobre Sevren, e ela disse: – Pensei que ele estava morto.
– Ele está.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
– Eu acho.
Olhei para o pedaço de papel que Tielman me entregou com a placa. – Ei, você pode fazer permutações de letras para mim? Ou se você estiver muito ocupada, consegue
me transferir para outro analista que possa fazer?
Uma pausa. – Quantas letras?
– Doze.
– Pat, você tem ideia de quantas combinações existem?
– Muitas.
Alguns segundos depois ela disse: – Quase cinco milhões.
– Não estou pedindo que você faça à mão. Lacey adora esse tipo de coisa.
Silêncio.
– Lá vai... pronta?
Um pequeno suspiro. – Prossiga.
– E–T–1–R-E–T–E–P–R-O–M.
– Você não me disse que eram apenas sete letras diferentes, que três se repetiam e que tinha um algarismo.
Esse tipo de matemática nunca foi minha praia. – O quanto isso muda as coisas?
– Agora caímos para... – ouvi algumas teclas sendo digitadas – Mais ou menos um milhão.
– Ótimo, alguns milhões a menos para se preocupar. Vai ser moleza.
Eu só quero saber que outras palavras essas letras podem formar.
– Bem, sendo assim – ela disse ambiguamente.
– Obrigado, Angela.
Uma pausa. – Claro.
Desliguei e em seguida, liguei para Ralph, que atendeu após uma chamada. – Ei. Eu ia dar um toque pra você – ele disse. – Estou a caminho do aeroporto agora. E tenho
novidades sobre a agenda de endereços da professora Lebreau.
– Você precisa saber de algo antes, Ralph. O policial que estava seguindo Basque o perdeu.
– O quê? – ele aproveitou a oportunidade para proferir algumas das mesmas palavras que eu estava pensando em compartilhar com Lee Anderson alguns minutos atrás.
– Você ainda acha que deveria voltar? – perguntei a Ralph.
– Sim. Se Basque está aí em algum lugar, é onde eu preciso estar. Agora, escute, a agenda de endereços: tem uma pessoa na região de Washington, DC cujo endereço
foi apagado do computador dela há três dias. Nós conseguimos recuperar os dados.
– Quem é?
Uma pausa.
– Gregory Rodale.
Suas palavras me chocaram. – Não brinca.
– Não. Acabei de sair do telefone com ele. Ele disse que se encontraram uma vez numa conferência sobre jurisprudência há anos. Não teve mais notícias dela desde
então.
Isso não me convencia. – Margaret já sabe disso?
– Acabei de falar com ela.
Tentei filtrar todas as informações. – Então, você acha que a professora Lebreau pode ter deixado Michigan por vontade própria? Veio para Washington, DC para ver
Rodale?
– Cara, eu não sei o que pensar. Eu chego no Reagan às 21h02. Aí nós pensamos nisso.
– Me ligue assim que você pousar.
Desligamos.
Rodale?
Eu não fazia ideia do que pensar. Abri os arquivos do caso sobre Bas
que e comecei a procurar por qualquer coisa que pudesse ligá-lo mais intimamente não apenas à Renée Lebreau, mas também ao diretor do FBI, Gregory Rodale.
Margaret mal podia acreditar no que descobrira.
A Fundação Gunderson não tinha fins lucrativos, mas as duas companhias que apoiavam a campanha de Fischer tinham. E Rodale tinha ações em cada uma das companhias,
suficientes para que ele ganhasse dezenas de milhares de dólares se fossem valorizadas em 10%. Se cada ação dobrasse de valor, ele ganharia milhões.
Ele comprou as ações logo após o cancelamento do Projeto Rukh, logo antes de ter permitido que a pesquisa fosse adquirida pela Fundação Gunderson.
Sim, era verdade que os arquivos do Projeto Rukh acabariam sendo liberados por meio de um pedido do Ato de Liberdade da Informação,
mas ele aprovou sua divulgação prematuramente.
E agora, considerando seus investimentos financeiros, Margaret podia ver o porquê.
Mas então por que ele contou para Bowers sobre a ligação com o Projeto Rukh ontem? Por que chamar atenção para isso?
Ela não sabia. Talvez após o ataque a Twana Summie no instituto Gunderson, Rodale percebeu que era tarde demais para manter tudo isso debaixo do pano; que as ligações
no fim apareceriam.
Ela fez uma pausa.
Foi ela que recuperou os arquivos do Projeto Rukh em fevereiro.
Rodale podia ligá-los a você.
Talvez ele soubesse que tudo estava prestes a ir por água abaixo e estava colocando alguém na frente para que ele pudesse sair dessa limpo.
Talvez fosse por isso que ele a colocou no comando desse caso.
Hora de ter uma conversa com seu chefe.
Margaret caminhou pelo corredor até o escritório de Rodale, mas descobriu que ele já tinha ido para casa.
Ela ligou no seu celular.
– Greg, é Margaret.
– Sim? – havia muito barulho no fundo. Talvez ele estivesse em um restaurante.
– Precisamos conversar.
– Alguma novidade no caso Fischer?
–Não. Talvez seja melhor conversarmos pessoalmente. Sobre esse assunto.
Uma pausa. – Sobre o que seria?
– O Projeto Rukh.
Rodale não disse nada. Ela continuou: – Me deparei com os memorandos, e acho seu interesse em nanotecnologia fascinante. Você gostaria de esperar até depois da minha
coletiva de imprensa para conversar?
Um momento depois, ele passou o nome de um pub perto de sua casa para ela. – Às oito em ponto – ele disse.
– Oito em ponto – ela ecoou. – Semansky’s Bar. Na 4th.
Quando desligou o telefone, ela respirou fundo, tanto por ansiedade quanto por hesitação.
As coisas estavam prestes a ficar muito, muito sujas.
Tessa entrou em casa.
Trancou as portas.
Ligou para a detetive Warren.
– Eu já estou indo – ela disse para Tessa. – Quer que eu leve o jantar?
Ainda havia um pouco da sobra da comida chinesa de Lien-hua da noite passada, mas Tessa achou melhor não sugerir isso. – Sim, seria legal.
– Nada de carne nem derivados, certo?
– Certo.
– Vejo você daqui a pouco.
Tessa desligou.
E montou o tabuleiro de xadrez.
Preto contra branco.
As duas cores pelas quais todas as peças, e todas as pessoas, atravessam em algum ponto durante o jogo.
Brad estacionou do outro lado da rua da casa da diretora-assistente Wellington. Baseado em sua pesquisa e suas visitas anteriores à casa, ele sabia o código de seu
sistema de segurança.
Nenhum carro na frente da casa. A janela de sua garagem revelou que estava vazia. Mas, para garantir, ele sacou sua arma e a segurou dentro da jaqueta enquanto atravessava
a rua.
Quando subiu os degraus da varanda, ele ouviu o barulho da coleira de Lewis do outro lado da porta. O golden retriever deu um latido amistoso.
Brad arrombou a fechadura.
Entrou na casa e, enquanto Lewis o observava, localizou o teclado do sistema de segurança na parede.
– Bom menino – ele disse quando fechou a porta atrás de si.
97
Faltam 2 horas...
19h29
Não encontrei ligações para o diretor Rodale nos arquivos de Basque.
Imaginando que Ralph e Margaret investigariam melhor esse túnel, foquei minha atenção de volta nas ligações que já conhecíamos.
Digitei:
Vice–presidente Fischer ligado com Lansing.
Lansing ligado com Basque.
Basque ligado com Lebreau.
Lebreau ligada com Rodale.
Rodale ligado com...?
Enquanto eu tentava decifrar a lista, ouvi passos leves e rápidos. Olhei para a frente para ver Lien-hua caminhando em minha direção. Ela percebeu o cansaço e a
frustração em meu rosto. – Você parece arrasado.
– Bom, pelo menos minha aparência não engana.
– Deu tudo certo na reunião de custódia?
Eu reparei que não havia contado isso para ela ainda.
– Deu. Acho que vai dar tudo certo. Você ficou sabendo de Basque? Que ele estava lá?
– Sim – ela parecia distraída. Algo estava em sua cabeça. – E fique sabendo que Anderson o perdeu.
Evitei comentar e apenas acenei com a cabeça. – Ralph está voltando para cá. Deve chegar um pouco depois das 21h.
Ah, e Rodale conhece Lebreau.
– Ouvi falar disso também. Escute, Pat – ela baixou a voz até falar comigo quase sussurrando. – Talvez eu tenha descoberto por que o cão não latiu.
– Continue.
– Deixe-me pegar meus arquivos. Encontro você no andar de cima, na sala 413.
Fiquei curioso.
Muito curioso.
– Por que no andar de cima?
– Confie em mim. Cinco minutos.
Ela saiu, verifiquei minhas mensagens de texto e confirmei que Tessa estava bem. Enquanto pegava minhas coisas, um dos agentes aumentou o volume de uma televisão
instalada perto do teto, no lado oposto da sala.
– Fontes anônimas – o apresentador estava dizendo – confirmaram que o deputado Fischer tem feito contribuições significativas para a Fundação Gunderson. À luz do
pedido da Fundação por fundos governamentais para pesquisas controversas sobre nanotecnologia, os legisladores republicanos estão chamando a notícia de “surpreendente”
e “reveladora”. Mais informações assim que...
Fundos federais.
Pesquisa de nanotecnologia?
Interessante.
Uma caverna sobre a qual eu não tinha pensado.
Subi as escadas para ouvir o que Lien-hua tinha a dizer.
98
– Natasha Farraday – ela disse para mim.
– O quê? – estávamos em um escritório vazio no quarto andar e ela estava espalhando uma pilha de arquivos pela mesa.
– Acho que deveríamos prestar mais atenção nela.
– Você acha que ela pode ser um dos assassinos? – eu estava chocado. – E o quê? Cassidy é o parceiro dela?
– Só estou dizendo que eles merecem uma olhada mais de perto.
– Explique.
– Lembra que hoje mais cedo eu estava procurando ligações com forças policiais? Comecei pelos seis nomes que você me deu, mas aquilo não me levou a nada.
– E então você iria analisar a falta de evidências de DNA.
– Sim, mas aí estava o problema: como não havíamos encontrado evidências de DNA na cena, estávamos considerando que os assassinos não tinham deixado nenhuma.
Pensei em suas palavras. – Essa suposição me parece ter bastante fundamento.
– Decidi supor o oposto.
– Você supôs que os assassinos deixaram seus DNAs.
Sim. Bom.
Ela pegou os relatórios de análise do laboratório na pilha de papéis.
– Fiz o laboratório analisar novamente as amostras, sabe, caso os assassinos tenham tentado alterar ou falsificar as evidências, mas tudo voltou com os mesmos resultados,
então resolvi dar uma olhada melhor nas evidências que tínhamos, no DNA que estaria presente naturalmente...
– Daqueles que trabalharam nas cenas.
– Sim.
– E isso a levou até Farraday e Cassidy.
Enquanto falava, ela apontava para várias anotações que havia destacado nos relatórios. – Pegue Natasha primeiro. Ela trabalhou em todos os crimes dessa série, foi
a primeira a chegar ao hotel no dia em que você levou o tiro. Foi ela que encontrou a cadeira de rodas no quarto 809, ela que examinou o carro de Mahan e a van para
deficientes, e também foi a agente que supervisionou a manipulação das evidências quando o deputado foi identificar o corpo de Mollie no hotel.
– As malas.
– Sim.
– Então é claro que esperaríamos encontrar o DNA dela em todas as cenas dos crimes.
– Sim. E encontramos.
Tinha que haver mais.
– O que mais?
– A hora que ela chegou dela ao centro de primatas na terça-feira à noite daria a ela tempo suficiente para deixar o instituto passando-se por Aria Petic e então
retornar com as equipes de emergência após a ligação de Sandra Reynolds.
Hum.
Uma ideia se formou em minha cabeça.
Alguns aspectos dos arquivos pessoais do Bureau são confidenciais, mas alguns não são. Abri meu computador, coloquei-o sobre a mesa. – Ainda assim, tudo circunstancial.
– A idade dela bate, ela tem uma compleição similar a de Aria, conhece técnicas forenses, tem uma personalidade submissa e chegou à região de Washington, DC logo
antes da onda de crimes começar.
Novamente, tudo circunstancial, mas sem dúvida, cada fato adicional corroborava a possibilidade de Lien-hua ter descoberto algo.
Imagine, Pat, a emoção de cometer um crime, e então voltar para examiná-lo. Seria incrível, a sensação de poder...
E seria muito difícil montar um caso contra você com base na presença de seu DNA na cena de crime, pois seu DNA estaria presente naturalmente.
– Cassidy encontrou a etiqueta de retirada de bagagem – eu disse –, mas Farraday examinou o carro antes.
– Ela pode tê-la plantado lá.
Balancei a cabeça.
– Mas por que correr esse risco se você for o assassino? Por que não deixou a etiqueta lá quando deixou o laptop?
– Hum – ela disse. – Tem razão.
Digitei no computador, abri os arquivos de Natasha Farraday.
Lien-hua me observava. – Eu chequei, Pat. Ela mora a menos de quinhentos metros a oeste da zona de ação.
Um passo à minha frente.
– Ela se encaixa tanto no perfil psicológico quanto no perfil geográfico.
– Sim.
– Ela foi transferida recentemente... – murmurei. Agora eu estava verificando os arquivos de Cassidy. – E Cassidy é o superior dela, e sua personalidade é mais dominante...
– Eu sei que não é nada sólido – ela admitiu. – Apenas uma série de coincidências.
– Mas coincidências aparentes...
– ... sempre pedem uma inspeção mais detalhada.
– Muito bom – eu disse –, palavra por palavra do meu livro.
– O que posso dizer? Sou uma fã.
Pensei nas evidências novamente.
– O que você fez até agora para tentar refutar o envolvimento de Farraday e Cassidy?
– Bem, claro, essa é a parte difícil. É como um castelo de cartas de baralho. Circunstancial, como você disse. Eu não posso sair mostrando fotos dos meus colegas
para as crianças dos Rainey ou para o motorista de táxi.
Pensei naquilo.
O garoto Rainey disse que o homem que saiu do beco tinha cicatrizes, mas Cassidy não tinha cicatrizes no rosto.
Cicatrizes podem ser falsificadas.
– Será que alguém poderia estar tentando incriminá-los?
Ela balançou a cabeça. – Não vejo como. As designações para as cenas dos crimes vieram ou da expedição, de Margaret ou de Rodale. Os assassinos precisariam conhecer
o protocolo de expedição da ERT e o tempo de resposta.
Quem poderia saber isso?
Eu conheci Natasha Farraday no centro de primatas na terça-feira à noite... então eu a vi no hotel na quarta-feira... então...
Espere.
ETI–1RE.
TEP–ROM.
Te prometi...
Natasha mencionou que lera meus livros...
Ela o questionou sobre o carro de Mahan, sobre como você sabia que era
aquele o veículo que o assassino tinha usado...
Fechei meu computador. Levantei-me.
– O que você está pensando?
– O laboratório em Quantico – eu disse.
Lien-hua balançou a cabeça. – Não temos o suficiente para questioná-los. Nós mal temos...
– Não quero questioná-los. Quero dar uma boa olhada no que trouxeram de volta das cenas dos crimes.
Ela juntou suas coisas rapidamente. – Estou dentro desse prédio desde 10h30. Eu vou com você.
Eu não tinha nenhuma objeção a isso.
– Vamos no meu carro – eu disse. – Tem alguns túneis que quero ajuda para explorar no caminho.
Tessa atendeu a porta.
A detetive Warren estava na varanda, segurando uma sacola de mercado em uma mão e a bolsa do computador na outra. – Oi – ela disse.
Tessa lhe deu passagem. – Entre.
Cheyenne mostrou a sacola enquanto entrava. – Que tal hambúrguer de falafel, homus e tortilhas? Ah, e refrigerante. – Ótimo – Tessa fechou a porta.
Os olhos da detetive encontraram o tabuleiro de xadrez. – Você adora apanhar, Tessa.
– Não dessa vez. Hoje quem vai apanhar é você. Um leve sorriso. – Veremos quem vai apanhar. Vamos comer um pouco e então começamos o jogo.
Margaret entrou no Semansky’s Bar.
Algumas mesas de bilhar. Cheiro de cerveja velha no ar. Música country lenta e arrastada era ouvida nos alto-falantes escondidos no teto. Uma fina camada de fumaça
tomava o ar. Era ilegal fumar em restaurantes em Washington, DC, mas estava claro que os donos do Semansky’s não estavam muito preocupados com isso.
Ela olhou ao redor.
Alguns homens de negócios estavam sentados nas sombras, acariciando suas bebidas. Dois deles olharam para ela quando ela entrou, masdesapareceram em seus pequenos
mundos quando ela os ignorou.
Que buraco.
Nenhum sinal de Rodale.
Nas caixas de som, um cantor country tinha esperanças de recuperar sua esposa.
Ela olhou pelo bar novamente e dessa vez viu Greg sentado sozinho em uma mesa de canto, uma garrafa vazia de cerveja à sua frente. Ela se aproximou dele, e ele a
cumprimentou muito calorosamente: – Margaret.
– Greg – ela sentou-se em frente a ele. – Obrigado por ter vindo.
– Claro.
Uma garçonete magra com cabelo desgrenhado e maquiagem demais apareceu do nada. – Refil? – ela perguntou a ele.
– Quero outra Strasman Dark – ele olhou para Margaret. – Quer beber alguma coisa? – ela se perguntou quantas ele já tinha bebido.
– Não, obrigada.
– Tem certeza? – a garçonete perguntou.
– Tenho certeza. Mas obrigada.
– Obrigada – ela repetiu naquele tom de voz que quer dizer “então por que você está tomando espaço na minha mesa?”
– Traga uma porção de fritas também – Greg acrescentou.
A garçonete sumiu na escuridão. A música pulsava.
– Então – ele disse.
– Então.
– Você queria discutir alguns memorandos – obviamente ele não estava interessado em perder muito tempo.
– Greg, você passou arquivos do Departamento de Defesa para o setor privado antes que eles fossem devidamente revisados, examinados e liberados.
– Não havia nada confidencial na pesquisa, Margaret. O Projeto Rukh tinha sido cancelado. Além disso, o programa originalmente era subcontratado por uma empresa
privada.
– Sob a fiscalização do comitê de supervisão.
Ele aguardou um momento. Não respondeu.
– A decisão foi imprudente e prematura.
Ele dispensou suas preocupações. – Então temos uma diferença de opinião sobre o assunto. O que mais?
– Fale sobre a dra. Renée Lebreau.
– Você andou falando com Ralph Hawkins.
– Como você a conhece?
Ele olhou para os confins sombrios do ambiente. Passou o dedo suavemente sobre a mesa. – Renée e eu nos conhecemos em uma conferência anos atrás, antes de eu ser
apontado como diretor do FBI, antes de ela ser professora – ele disse as palavras como se fossem uma declaração preparada.
– Antes do seu divórcio.
Ele olhou friamente para Margaret. Parou de mexer a mão. – Sim. Antes do meu divórcio.
– Você sugeriu que ela vasculhasse o caso de Richard Basque há dois anos? Foi assim que ela se envolveu?
– Por que você está tocando nesse assunto, Margaret?
– Porque ela desapareceu e Basque está aqui em Washington, DC e eu não acredito em coincidências.
– Agora você está falando como Bowers.
A garçonete reapareceu, colocou na mesa a porção de fritas, a cerveja de Rodale e um copo de água turva para Margaret, então desapareceuentre as sombras novamente.
Greg tomou um gole da cerveja. – Considerando toda a cobertura da mídia e as afirmações de Basque durante todos esses anos de que era inocente, e o fato do caso
envolver Bowers, um dos nossos melhores agentes, sim. Eu revisei os arquivos de Basque.
– E?
– E eu achei que as inconsistências eram suficientes para que um advogado olhasse o caso novamente.
– Não só um advogado, uma professora de direito. Ele tinha uma porção de advogados. Ela é uma das maiores opositoras declaradas à pena de morte do país...
– Eu conheço Lebreau – suas palavras eram duras. – Liguei para ela.
Só isso. Não há nada de antiético nisso. Pelo telefone você mencionou nanotecnologia.
Agora a parte importante. – Você está numa posição de benefício se a Fundação Gunderson fizer alguma descoberta.
– Como assim?
– Ações.
– A Fundação Gunderson é uma organização sem fins lucrativos. Do que você está falando?
– Foi inteligente – ela disse. – Se eles fizerem qualquer descoberta, isso vai impulsionar toda a indústria, fazendo com que os preços de ações de outras empresas
do mercado subam como foguetes. Ainda assim, com a compra dessas ações, nós temos quebra de confiança, conflito de interesses e possivelmente troca de informações
privilegiadas.
Ele tomou um longo gole de sua bebida. – Você veio aqui para me chantagear, Margaret?
– De jeito nenhum, mas existem muitas falhas nisso tudo. Vai vir à tona no final. Estou te dando a oportunidade de evitar tudo isso, de sair limpo antes que aconteça.
– Antes que você faça acontecer.
Ela não respondeu.
Ele colocou sua cerveja na mesa e seu olhar parecia mostrar tanto escárnio quanto derrota. – Você só quer meu emprego, Margaret.
Ele estava certo, e ambos sabiam disso. O diretor do FBI era apontado pelo presidente dos Estados Unidos com a aprovação do senado, mas uma diretora-assistente-executiva
quase que certamente estava na lista caso o diretor renunciasse ou fosse afastado. – Tudo gira em torno disso – ele disse. Então repetiu: – Você quer meu emprego.
– Isso não é tudo que quero.
Ele acenou com a cabeça, como se esperasse aquilo. Ele deixou a cerveja de lado. – O que mais?
– Eu quero o que é melhor para o Bureau, Greg.
Ele esperou como se ela ainda fosse falar mais, mas quando ela não disse nada, ele emendou: – Você não pode provar nada disso.
– Me dê um tempo. Sou muito boa em ligar os pontos.
Ele colocou ketchup nas batatas fritas.
– Então você quer que eu renuncie, é isso?
– Eu quero que você dê uma coletiva de imprensa. Explique seus motivos.
– E então renuncio.
– Faça o que achar correto.
Ele esqueceu das fritas e tomou mais cerveja, e isso pareceu lhe dar mais determinação. – Você citou um regulamento falso para manter Bowers fora desse caso por
48 horas.
– Ele foi atingido por um tiro. Eu estava fazendo isso pelo bem do Bureau. Para o bem dele.
– Pode não ser assim que o Escritório de Responsabilidade Profissional vai enxergar isso. Todos nós sabemos do seu histórico com Bowers; você o persegue há anos.
Eu o coloquei no caso, e mesmo ele estando disposto a continuar trabalhando, e sendo fisicamente capaz, você mentiu para ele, tirou-o do caso e prejudicou a investigação.
Isso poderia ter colocado a vida de inocentes em risco.
– Isso é um absurdo.
A voz dele ficou mais suave, porém mais fria. – Você não acompanhou o caso para garantir que o médico forense identificasse corretamente o corpo encontrado no centro
de primatas na terça-feira à noite. Se você tivesse acompanhado, Mollie ainda poderia estar viva. Há duas horas, a família Summie entrou com um processo contra o
Bureau. Agora isso está sobre seus ombros. E você terá que responder por isso.
Margaret não tinha ouvido falar sobre o processo e não sabia o que dizer.
– Se você quer jogar duro, Margaret, eu sei jogar duro.
– Com todo o respeito, senhor, eu pago para ver.
Um silêncio tenso.
– Você sabe onde ela está? – Margaret perguntou. – Renée Lebreau.
– Não.
– Você sabe por que ela pode ter desaparecido essa semana?
Uma tristeza profunda cruzou seu rosto, e Margaret ficou chocada ao ver como seu comportamento mudou rapidamente. – Basque – ele disse. A tensão na palavra mostrou
a Margaret que Greg não conhecia Renée apenas casualmente. – Eu estava errado sobre ele.
– Então agora você acredita que ele é culpado?
Nenhuma resposta.
– Ela está morta, Greg?
Ele balançou a cabeça.
– Eu não sei. Não a vejo há mais de um ano – Margaret não tinha certeza se acreditava nisso. Ela esperou que ele continuasse.
Rodale segurou a cerveja com as mãos, e ela percebeu que ele parecia pequeno e amedrontado. Mas ela estava atenta. Ela aprendeu há muito tempo que quando as pessoas
sentem medo elas ficam desesperadas. E pessoas desesperadas tomam medidas desesperadas.
Ele tomou fôlego e a olhou nos olhos. – Pense no que falei sobre você e Bowers. Seu último contato com o Escritório de Responsabilidade Profissional acabou com você
enfiada em um escritório-satélite na Carolina do Norte por quanto tempo? Quase cinco anos? Pense no seu futuro, Margaret.
– Ah, estou pensando, Greg – ela se levantou. – Por isso vim aqui essa noite.
Então ela se dirigiu à porta e foi para casa preparar a declaração que daria para a imprensa amanhã de manhã.
99
Lien-hua e eu estávamos na rodovia a caminho de Quantico.
Verifiquei minhas mensagens de texto novamente. Tessa estava em casa, estava bem e eu estava começando a me sentir um pai superprotetor: e não era um sentimento
ruim. Pedi para Lien-hua mandar uma mensagem para Tessa por mim, perguntando o que ela estava fazendo, e ela respondeu: “nd d+ db c/ dw.”
Eu sabia que nd d+ db era gíria de mensagem de texto para “Nada de mais, de boa”.
Imaginei que c/ fosse abreviação de com e dw deveria ser detetive Warren.
Eu queria que fosse fácil assim desvendar esse caso.
Quando Lien-hua guardou o telefone, ela disse: – Então, quais são esses túneis que você gostaria de explorar?
– Psicopatologia e reforma da justiça.
Um momento. – Continue.
– Eis o que eu estive pensando. O deputado tem um relacionamento financeiro com toda essa indústria de pesquisa neurocientífica.
– Isso é Washington, Pat. Favores especiais, lobistas. Política como sempre.
– Exceto que, pelo local do assassinato de Twana, isso se liga ao caso.
Além disso, pessoas só fazem lobby quando têm um objetivo. E quase sempre é dinheiro ou moral, ter grana ou ter razão.
– Isso parece criação de perfil.
– É só uma observação.
– Não, com certeza é criação de perfil. Acho que estou te vencendo pelo cansaço.
– Bem, eu não vou discutir isso, mas é o seguinte: a Fundação Gunderson está pesquisando metacognição primata, neurociência e agressão, a neurologia da violência.
Enquanto isso, Fischer está copatrocinando uma lei que vai fornecer fundos federais para testes in vitro de bebês sobre distúrbios neurológicos e genéticos.
Ela ouviu silenciosamente. – Eu não sabia disso.
– E duas das maiores patrocinadoras de suas campanhas são empresas que realizam esse serviço.
– Elas se beneficiariam muito se a lei fosse aprovada.
– E se elas se beneficiam, ele se beneficia.
Silêncio. – Como você acha que isso se relaciona com os crimes?
– Não tenho certeza, mas no contexto dos arquivos do Projeto Rukh e da pesquisa da Fundação Gunderson, e se cientistas pudessem fazer isso?
Como uma criadora de perfis, Lien-hua era uma das maiores especialistas do Bureau em psicologia criminal. Eu estava ansioso para ouvir a opinião dela sobre isso.
Continuei: – E se fosse realmente possível identificar as condições neurológicas ou genéticas específicas que causam comportamentos violentos ou psicopatologias?
– Nós já conhecemos alguns dos fatores neurológicos – ela disse –, mas o comportamento nunca poderia ser engessado desse jeito, de modo tão conclusivo. Existem coisas
demais que influenciam nossas decisões e condicionam e afetam nosso comportamento. Você sabe disso tão bem quanto eu.
– Criação, socialização, pistas ambientais, diferenças neurológicas, composição genética, desequilíbrios químicos – algumas pessoas até acham que forças espirituais
estão em jogo...
– Sim, mas não podemos culpar genes ruins ou nossos pais ou o diabo por nossos crimes. Cada um de nós é responsável por suas próprias escolhas.
– Não se não tivermos livre-arbítrio.
Uma leve pausa.
– As experiências do dr. Libet.
– Sim.
Ela balançou a cabeça. – Essa tarde eu dei uma olhada nos artigos que você postou nos arquivos eletrônicos. Existe um grande número de fatores precipitantes que
podem ter produzido a atividade neural precognitiva que ele encontrou: expectativa do participante, treinamento mental, orientação de objetivo, ou para impressionar
o pesquisador ou confundir o experimento. Além do mais, existe um campo crescente de pesquisa que parece indicar que não existe algo como o inconsciente.
– Mas, Lien-hua, existem ações que realizamos das quais não temos consciência.
– Sim, mas em vez de uma dualidade entre o consciente e o inconsciente, é mais provável que o cérebro processe informações ao longo de um continuum, e que a intencionalidade
ocorra em pontos diferentes, dependendo dos estímulos envolvidos na complexidade das decisões que são feitas.
Aquilo fazia sentido para mim, parecia quase óbvio. – Certo, mas considere como algumas pessoas estão interpretando as descobertas de Libet. E se você acreditasse
que o livre-arbítrio fosse, na verdade, uma ilusão? Que o instinto supera a intenção consciente. Que estamos presos a agir inequivocamente de certos modos quando
expostos a certos estímulos em certos momentos. Tribunais já decidiram a favor dessa defesa.
Ela ficou quieta.
– Você leu sobre essas decisões? Nos arquivos.
Ela suspirou de um jeito incerto. – Li.
– Então – eu disse –, supondo que interpretamos as descobertas como algumas pessoas interpretaram –, que o comportamento é direta e fixamente provocado por fatores
genéticos e neurológicos –, então, se compreendermos o suficiente sobre o cérebro, poderíamos dizer, por exames genéticos ou neurológicos, quem poderia ser um psicopata
– olhei para ela. – A título de discussão.
– Deixando de lado a epigenética, o fato de que o comportamento e o ambiente podem alterar epigenomas, certo, vamos considerar isso.
– Junte isso com os testes in vitro... – as palavras de Margaret sobre as mudanças da visão da sociedade sobre direito à vida vieram à minha cabeça.
Reforma da justiça.
A política do deputado Fischer: uma abordagem mais progressiva para conter o comportamento criminal.
E as peças se encaixaram em seus lugares.
– Lien-hua, é isso. Testar os ainda não nascidos, descobrir quem vai crescer e exibir comportamento psicopatológico...
– E abortá-los – ela disse suavemente, ecoando minha conclusão.
Motivos.
Isso pode mudar tudo.
– Se livrar dos assassinos em série – ela disse –, antes mesmo deles matarem. Extirpar a criminalidade eliminando potenciais criminosos.
– Justiça preventiva.
A pena de morte. Para crimes que nunca foram cometidos.
– Se você concordar que o aborto é moralmente aceitável – Lien-hua disse sensivelmente, sabendo que era um assunto delicado por causa do quão perto Christie chegou
de abortar Tessa –, e supondo que você concorde com o veredicto que os tribunais começaram a dar, que em alguns casos não somos moralmente responsáveis por nosso
comportamento porque ele é, na falta de um termo melhor, instintivo, então o raciocínio faz perfeito sentido. Diga a uma mãe que seu filho vai crescer para ser outro
Jeffrey Dahmer ou Sevren Adkins, e quem não interromperia a gravidez?
– Mas isso não impediria as psicopatologias – eu disse.
– Não – sua voz era suave, mas tensa. – Não impediria. Pedófilos. Estupradores. Qual é a linha limítrofe? Talvez pessoas que vão crescer para ser maníaco-depressivas,
ou com inclinação para vício em drogas...
– Mas se não existir o livre-arbítrio, não existe linha limítrofe. – Pensei nos países que pressionam as mulheres a abortarem suas filhas, o tipo mais letal de discriminação
sexual do mundo. – Livre-se de qualquer um que aqueles no poder não acharem que será bom para a sociedade.
– Não – Lien-hua balançou a cabeça. – Isso é loucura. Você não pode determinar o que alguém vai fazer, apenas o que eles podem estar inclinados a fazer. Somos livres
para escolher, para agir ou não agir.
– Não se você interpretar as descobertas do dr. Libet como algumas pessoas estão interpretando.
– Os testes neurológicos não podem nunca ser tão conclusivos.
– Eles já foram conclusivos o suficiente para livrar pessoas que cometeram assassinato em primeiro grau. Eu não acho que a diferença seja grande. É a engenharia
social em nome da reforma da justiça, e como líder da minoria, Fischer tem poder suficiente para realmente fazer algo como isso passar pelo congresso.
Uma pausa.
Então ela disse: – As pessoas não deveriam ter direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade? Temos o direito de fazer nossas próprias escolhas. De determinar
nosso futuro.
– Mas e se não formos capazes disso? Se o livre-arbítrio e a responsabilidade moral forem apenas ilusão?
– Então a busca pela felicidade seria uma ilusão também.
– Assim como a liberdade – eu disse.
O comentário causou um silêncio palpável.
Peguei a saída para a Academia.
Mais cedo, quando estava no posto de comando, eu relacionei as ligações avançando no tempo. Agora, com uma renovada sensação de urgência, fiz o caminho inverso mentalmente.
Rodale ligado com Lebreau.
Lebreau ligada com Basque.
Basque ligado com Lansing.
Lansing ligado com o vice-presidente Fischer.
Vice-presidente Fischer ligado com...
– Durante a tentativa de assassinato – eu disse –, dois quartos do oitavo andar foram usados. Sabemos se ambos foram pagos por Hadron Brady?
– Lembra? O hotel não mantém os registros de tanto tempo.
Quem manteria?
Quem manteria os registros...
– Não – eu disse, pensando alto. – Nós não temos registros dos quartos, mas existem registros dos pagamentos.
– Não, Pat, eles não existem mais. Eles...
– Mas ainda assim, existem.
Ela olhou para mim com curiosidade. – O que você está pensando?
– A seiscentos dólares por quarto, a maioria das pessoas não pagaria a estadia em dinheiro.
Então ela entendeu. – Cartões de crédito.
– Sim.
– A-ha – um leve sorriso. – Desde o atentado de 11 de setembro, o governo requisita que todas as companhias de cartão de crédito mantenham registros de todas as
suas transações por dez anos para ajudar a rastrear suspeitos de terrorismo.
– Exatamente. Não poderemos dizer quem ficou em cada quarto, mas podemos descobrir os nomes das pessoas que pagaram por um quarto no Lincoln Towers Hotel em 15 ou
16 de março, seis anos atrás.
– E podemos ver se alguma pessoa da lista de suspeitos usou um cartão para pagar por um quarto – ela concluiu minha linha de raciocínio.
– Sim. Ou alguém chamado Patricia E.
Ela pegou o telefone. – Pat, preciso dizer, a maneira como você liga as coisas às vezes... Não sei, você me lembra o Sherlock Holmes.
– Não diga isso para Tessa. Ela pode acabar concordando com você.
– Viu só?
– Acredite, vindo dela isso não seria um elogio.
– Vamos precisar de mandados.
– Então precisaremos de Margaret – respondi.
100
Falta 1 hora...
20h29
Margaret conseguiu o que precisávamos.
Ela levou menos de cinco minutos para ligar para um juiz e conseguir os mandados necessários para entrarmos em contato com as quatro maiores companhias de cartão
de crédito e começar o processo de acessar os gastos com cartão de crédito nas datas em que estávamos procurando.
Virei na estrada que levava até a Academia. O posto de segurança ficava a quase quinhentos metros dali.
Lien-hua ligou para Angela para pedir que sua equipe começasse com o projeto e descobriu que ela estava no meio da reanálise do laptop de Mollie Fischer – aparentemente,
outro técnico fracassou em rastrear os e-mails enviados e recebidos, e Angela ficou com a tarefa de recuperá-los.
Quando Lien-hua desligou, ela me disse: – Ela parecia meio sobrecarregada.
– Para variar.
Dirigi até o portão. Apenas um carro estava na minha frente.
O sargento Eric Hastings, o jovem fuzileiro que estava trabalhando terça-feira à noite quando eu cheguei com Tessa para o painel de discussão, e também quem tinha
percebido a discrepância na placa de Annette Larotte, estava terminando de verificar a carteira de motorista de um homem numa minivan Toyota à nossa frente.
Quando ele o liberou, segui em frente.
– Boa noite, senhor – ele disse quando se aproximou de minha janela.
– Como vai, sargento – era mais um cumprimento do que uma pergunta.
– Estou bem, senhor.
Ele terminou de verificar nossas credenciais e enquanto Lien-hua e eu as guardávamos, percebi que Hastings parecia levemente decepcionado quando inspecionou o interior
do carro. Imaginei se não era porque minha enteada bonita não estava comigo. O pai dentro de mim não gostou da possibilidade, mas naquele momento me segurei para
não comentar nada. Não era a hora.
Agora não, mas depois. Eric deve ser pelo menos três anos mais velho que ela...
Ele abriu o portão, se despediu e eu segui em frente.
– Estou preocupada – Lien-hua disse. – Com Angela.
Eu ainda estava pensando em Hastings. – Tenho certeza de que ela está bem.
– O escritório dela é no mesmo corredor da sala de evidências.
Era uma dica óbvia, e eu entendi. – Tudo bem. Nós passamos por lá no caminho e vemos como ela está.
Estacionei perto da ala leste do laboratório do FBI, e entramos.
Brad estacionou o carro.
De certo modo, Bowers estava certo sobre motivos – o infrator, nesse caso, tinha mais de um. O jogo não apenas se baseava em vingança, era sobre revelar uma verdade
maior.
Sobre impedir pessoas de brincar de Deus, impedi-las de adulterar a matéria da natureza humana que Ele havia projetado.
Ele saiu do carro.
Brad calculou que levaria uns quinze minutos para caminhar através das árvores até a casa, o que significava que ele chegaria lá exatamente quando o crepúsculo estaria
se aprofundando na noite.
Ótimo. Porque ele precisava que estivesse escuro para o clímax.
Ele mandou a mensagem de texto que faria tudo funcionar e, carregando a terceira e última placa de carro, entrou na floresta.
Angela tem um coração enorme, mas normalmente exibe uma expressão levemente preocupada. Trinta e tantos anos. Levemente acima do peso.
Óculos grossos. Grandes brincos de argola. Olhos gentis mas ansiosos.
Três telas de computador ficavam na mesa à frente dela. A da esquerda estava percorrendo centenas de nomes, provavelmente da busca de cartão de crédito. A tela da
direita estava cheia de pequenos ícones de transmissões ao vivo de vídeo do sistema de trânsito, verificando rostos.
A tela do centro mostrava um spam de propaganda de e-mail.
Pensei nas permutações de letras, mas no momento não perguntei.
Angela nos olhou momentaneamente. Ela parecia mais preocupada que o normal.
– Você está bem? – Lien-hua perguntou.
– Dê uma olhada nisso – ela direcionou nossa atenção para a tela do meio, então deslizou a propaganda para a esquerda para revelar com mais clareza um temporizador
em que eu não havia reparado logo que entramos.
Uma contagem regressiva.
Fim do jogo: 49 minutos e 15 segundos
Fim do jogo: 49 minutos e 14 segundos
Fim do jogo: 49 minutos e 13 segundos
Imediatamente, pensei nos traços de C-4 militar encontrados na parte de trás da van que os assassinos usaram.
– Uma bomba? – eu disse.
– Não sei – Angela respondeu. – O temporizador estava embutido no e-mail que abri.
– Quando a contagem começou? –Lien-hua perguntou.
– A mensagem chegou mais cedo, hoje à tarde, às 15h29.
Fim do jogo: 48 minutos e 53 segundos
Lien-hua olhou para o relógio do computador, fez um cálculo rápido. – Então 21h29. Mas o que acontece então?
– Pode não ser nada – Angela disse.
– Não – Lien-hua respondeu. – É algo.
Uma explosão?
Outro assassinato?
O que é o fim do jogo?
Considerando o C-4 e a explosão que aconteceu no posto de gasolina na noite passada...
Fim do jogo: 48 minutos e 22 segundos
– Poderia o próprio laptop ser um dispositivo explosivo? – eu disse.
Angela balançou a cabeça. – Eu o inspecionei por dentro e por fora hoje de manhã. É só um laptop, nada mais.
– É possível que ele seja um detonador, então? – Lien-hua perguntou. – Ou ele poderia ser usado para iniciar uma sequência de detonação?
Uma leve hesitação. – Ele mandou uma resposta automática para o remetente.
Eu fiquei um pouco surpreso por ela ainda não ter verificado isso. – Abra-a.
A resposta apareceu. Em sua maioria, jargão técnico, mas a linha de assunto incluía um aviso de “retorno ao remetente”. Era só isso.
– Retorno ao remetente – Lien-hua disse reflexivamente. – Se existe uma bomba, poderia ser uma mensagem: “retorno ao remetente”, como em “retorno para Deus”.
Isso parecia fazer sentido, dada a maneira como esses assassinos pensavam.
– Você pode rastrear isso? – perguntei a Angela. – Descobrir de onde a propaganda foi enviada, ou quem recebeu a resposta?
Fim do jogo: 47 minutos e 4 segundos
Ela digitou, então disse: – A propaganda foi enviada para esse computador de um Motorola Droid – ela apontou para as coordenadas de latitude e longitude na tela.
Lien-hua sacou o telefone e ligou para o posto de comando para que mandassem um carro para o local no centro de Washington, DC.
Inclinei-me sobre a mesa de Angela. – Dá para saber para onde a resposta foi? Quem a recebeu?
Angela explicou algo sobre um host de servidor de e-mail e um modem de celular Cybrous 17 enviando partes de código que poderiam ser acessadas de qualquer lugar.
– Talvez seja possível rastreá-lo, mas vai demorar. Uma hora, talvez mais – ela pressionou um botão em seu teclado. – Vou colocar uma equipe nisso.
Uma hora.
Isso é muito tempo...
– Tem certeza de que não há nada explosivo nesse laptop? – perguntei a ela.
– Sim – mas ela parecia mais incerta dessa vez. – Acho que você pode pedir para o esquadrão antibomba verificá-lo, só para garantir.
Lien-hua assentiu, finalizou uma ligação e fez outra. Minha atenção se voltou para os monitores de computador. – Achamos alguma coisa sobre Basque ou Adkins?
– Não. Mas eu terminei aquelas permutações para você – Angela digitou no teclado e o meio da tela mudou para uma aparente infinidade de combinações de letras.
– Acho que você deveria insistir em interpretá-las como: “Te prometi uma” – ela disse. – Lacey analisou as outras combinações de letras que contêm palavras verdadeiras,
mas ela acha que as letras na ordem original fazem mais... – fez uma longa pausa e olhou para a tela, para uma pequena parte da lista que continha praticamente 120.000.000
de conjuntos de letras.
– O que foi?
– Patricia E. – ela murmurou. – Como eu pude ser tão burra?
– Você sabe quem é Patricia E.? Quem é?
Angela abriu a calculadora de permutações de Lacey e digitou o nome PATRICIAE.
Instantaneamente, milhares de combinações de nove letras começaram a rolar pela tela.
Angela digitou no teclado e parou a lista. Rolou para cima algumas linhas. Então apontou.
ARIAPETIC.
– Um anagrama – sussurrei. – Angela, você é um gênio – tentei pensar nas implicações. Calvin descobrira a pista sobre Patricia E. há três semanas, o que significava
que de algum modo ele sabia sobre esses crimes.
Ou o assassino sabia sobre esse bilhete.
Mas como...?
– O esquadrão antibomba está a caminho – Lien-hua disse, guardando o telefone.
– Angela encontrou Aria Petic – eu lhe disse.
– Onde?
– Não onde. Quem – Angela disse. – É Patricia E – ela explicou a ligação, mas estava olhando para o laptop de Mollie desconfortavelmente o tempo todo. – Escute,
se isso é uma bomba, eu não a quero em lugar nenhum perto de Lacey.
Ela tinha razão. Se o laptop fosse um dispositivo explosivo, não fazia sentido deixá-lo no prédio. – Vou levá-lo para o estacionamento – eu disse.
– Não, Pat. Deixo-o aqui – Lien-hua objetou. – O esquadrão anti-bomba vai chegar em alguns minutos.
– Angela já checou o laptop hoje de manhã – eu disse. – Não existe indicações de que seja uma bomba; tudo que temos é esse temporizador.
Além do mais, ele rodou o dia todo e ainda faltam quarenta minutos antes que a contagem regressiva termine. Vou ficar bem.
Coloquei luvas de látex para não deixar mais um conjunto de impressões digitais no laptop. – Ligue para Cassidy e Farraday – eu disse a Lien-hua – e descubra onde
estão. Seria bom... manter contato.
Ela ficou em silêncio, então pegou seu telefone. – Tome cuidado.
– Vou tomar.
– Por favor, não se exploda.
– Não vou.
O dia esmoreceu no horizonte. Uma lasca de luz do sol reluziu por debaixo das nuvens e então desapareceu.
E então era noite.
Brad ficou surpreso com o fato de a detetive Warren estar lá; ele esperava que Tessa estivesse sozinha, mas, na verdade, era perfeito. Ele não poderia ter planejado
um final mais apropriado para o jogo.
Ele se ajoelhou ao lado do para-choque traseiro do carro de Cheyenne e desparafusou a placa.
Ele podia ver as duas através de uma fresta na cortina da sala e ficou tentado a sorrir, a regozijar, mas se segurou e continuou atento. O que ele tinha em mente
era tão requintado, tão devastador, que ninguém estaria preparado para isso.
A revanche que ele pediu a Bowers.
Esperando por oito meses.
E agora a detetive Cheyenne teria um dos papéis mais importantes.
Ele terminou de trocar as placas e voltou para o meio das árvores. Sacou sua Walther P99.
Em seguida mandou a última mensagem de texto para a próxima vítima.
101
Faltam 34 minutos...
20h55
Enquanto eu esperava pelo esquadrão antibomba, liguei para o posto de comando e lhes disse para procurar alguma bomba na van para deficientes, no Honda Accord que
foi deixado na frente do quartel-general da polícia, em todas as cenas de crime relacionadas, na casa do deputado, e para notificar todas as agências que estavam
trabalhando, mesmo que perifericamente, na força-tarefa para ficarem em alerta.
Apesar de todos esses passos, no entanto, considerando a maneira como esses assassinos agiam, se eles realmente tivessem deixado uma bomba em algum lugar, eu não
esperava que seria em um lugar óbvio.
Não.
Desorientação o tempo todo.
Pensei no que disse a Annette na quarta-feira de manhã sobre a quarta premissa da criminologia ambiental: progressão.
A cada crime adicional, os infratores tornam-se mais eficientes, aprendem com seus erros, desenvolvem preferências por atividades e comportamento específicos...
Fim do jogo: 31 minutos e 9 segundos
O esquadrão antibomba chegou e, assim que entreguei o laptop de Mollie, corri para dentro para descobrir se Lien-hua tinha conseguido localizar os agentes Cassidy
e Farraday.
Tessa e a detetive Warren se encaravam, o tabuleiro de xadrez entre elas.
– Você está jogando melhor hoje – a detetive Warren disse.
– Estou tentando pensar como você.
– A-ha.
Tessa gastou tempo avaliando a posição das peças no tabuleiro. – Eu queria perguntar uma coisa pra você.
– Claro. O que é?
Tessa moveu sua rainha. – Você é católica, certo?
A detetive Warren analisou o tabuleiro. – Sou.
– E católicos acreditam que as pessoas nascem más, não é?
– Não é assim tão simples, mas...
– Bem, no pecado, ou algo assim. O pecado original.
A detetive Warren ergueu os olhos do tabuleiro. – Acreditamos que as pessoas nascem com uma natureza decaída, que todos nós precisamos de um salvador – seu tom não
era defensivo e nem de quem dava um sermão, mas ela parecia surpresa pelo rumo que a conversa estava tomando. – Assista ao noticiário por dez minutos e você vai
ver como isso é verdade.
Tessa ficou em silêncio. As palavras de Patrick na noite passada vieram à sua cabeça: “Rachaduras... Não acho que possamos fechá-las... Não acho que alguém já tenha
conseguido...”
A detetive Warren voltou sua atenção para as peças de xadrez. Deslizou uma de suas torres para bloquear a região em que Tessa estava de olho na sua rainha.
– Uma natureza decaída – Tessa disse.
– Sim.
– Então é essa a diferença entre nós e os outros animais? Que somos decaídos e eles não? Que precisamos de um salvador e eles não?
A detetive Warren olhou para Tessa de certo modo suspeito. – Essa conversa não é algum tipo de estratégia para me fazer perder a concentração no jogo, né?
– Talvez.
– A-ha. Bem... Isso é uma coisa que nos diferencia, sim – parecia que ela ia falar mais alguma coisa, mas não falou.
Seres humanos sendo humanos.
Seguindo seus corações.
Tessa movimentou-se.
A detetive Warren contra-atacou.
– E quanto a você, Tessa? O que você acha que nos faz diferentes?
Seus pensamentos voltaram para suas leituras e pesquisas recentes. – Você já leu O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson?
– Já ouvi falar, claro, mas não, creio que nunca o li.
– Bem, não é que o Dr. Jekyll é o cientista louco ou algo do tipo, como ele sempre é retratado. Ele não estava tentando criar um monstro, mas isolar um.
– Isolar um?
– Ele queria separar sua natureza boa da ruim. Mas não deu muito certo.
– O ruim dominou?
– Pois é. E quando ele foi liberado, não tinha mais como ser detido – Tessa moveu um de seus peões. – Enfim, na noite passada Patrick e eu estávamos falando sobre
ser verdadeiro com seu coração e sobre como esses caras, como esses que o Bureau está procurando essa semana, como eles estão sendo verdadeiros com seus corações
quando fazem essas coisas.
– À natureza decaída. Mas...
– Às rachaduras.
– Rachaduras?
– É coisa do Patrick. Enfim, se for verdade que evoluímos de primatas, talvez não sejamos diferentes dos animais em nada...
O toque do telefone celular da detetive Warren a interrompeu, então Tessa concluiu rapidamente. – Quer dizer, como podemos não ser verdadeiros com o que somos?
Como alguma coisa pode agir de uma maneira que é incongruente à sua natureza?
– Incongruente à sua natureza – a detetive Warren pegou o telefone e olhou para a tela. – Segure esse pensamento. É o seu pai.
102
Faltam 25 minutos...
21h04
– Cheyenne – eu estava a caminho da Sala de Evidências 3a. – Algo aconteceu há alguns minutos. Estamos considerando a possibilidade de haver uma bomba programada
para explodir às 21h29.
– Uma bomba? Onde?
– Não sabemos. Está tudo bem aí?
– Estamos só conversando sobre o bem e o mal, Jekyll e Hyde, pecado original. Nada de mais. Conte-me sobre a bomba.
Angela acenou para mim. Entrei em seu escritório e vi que Lacey terminara a análise das despesas de cartão de crédito no Lincoln Towers Hotel na noite em que Hadron
Brady tentou atirar no vice-presidente.
Nenhuma Patricia E.
Nenhuma Aria Petic.
Ninguém da lista de suspeitos.
– Pat? – Cheyenne disse.
– Desculpa. Escute, foram encontrados traços de C-4 na van. Temos um temporizador, uma contagem regressiva que foi enviada por e-mail para o laptop de Mollie. Isso
é tudo.
– Eles estavam lá quando a van foi examinada pela primeira vez?
– O quê?
– Os traços de C-4. Eu li os arquivos, Pat. Aquela van foi examinada na quarta-feira. Talvez a ERT não tenha encontrado os traços da primeira vez porque eles não
estavam lá antes.
Agora tínhamos uma ideia interessante.
Cassidy e Farraday liberaram a van e então a verificaram novamente.
Plantar os traços de explosivos por causa da explosão do posto de gasolina?
Outra pista para um crime futuro?
Rabisquei um bilhete para Angela procurar os nomes de Cassidy e Farraday na lista de cartões de crédito. Ela me olhou incrédula, mas digitou no teclado.
Cheyenne disse: – Tem algo que eu possa fazer daqui?
– Eu ligo se houver; irei para casa assim que puder, mas as coisas ainda estão meio no ar agora.
Ninguém com o nome de Cassidy ou de Farraday pagara por um quarto no hotel nem na noite anterior ao atentado, nem no dia em que ele aconteceu. Apontei para a impressora,
para que Angela soubesse que eu queria uma cópia dos nomes que ela tinha.
– Tudo bem – Cheyenne disse. – Tome cuidado – a mesma coisa que Lien-hua havia dito há alguns minutos.
– Vou tomar. Fique de olho em Tessa, tudo bem? Hoje, não sei, tudo parece fora de equilíbrio.
– Não se preocupe. Ela está segura comigo.
Ela desligou, a impressão foi concluída e eu peguei as folhas. Estudei os nomes.
A... B... C...
Eu nem tinha muita certeza do que estava procurando.
D... E... F...
Apenas um nome que eu reconhecesse. Qualquer um.
G... H... I...
Qualquer coisa fora do normal.
J... K... L...
Parei.
Olhei.
Um nome: Lebreau, Renée.
103
Todo a rede de cavernas por onde eu estava procurando desmoronou.
Lebreau desapareceu às 11h da terça-feira; isso lhe daria tempo sufi-ciente para chegar em Washington antes do assassinato de Twana na terça-feira à noite...
Renée Lebreau tinha ligações com Basque.
Lien-hua apareceu na porta. Eu disse a ela: – O cartão de crédito da professora Lebreau foi usado para pagar por um quarto no Lincoln Towers no dia da tentativa
de assassinato.
– O quê? – ela parecia chocada.
– Eu sei. Não tenho certeza do que isso significa. Você conseguiu encontrar Cassidy e Farraday?
– Falei com Natasha. Ambos já tinham ido para casa. Perguntei se ela podia voltar para avaliar algumas evidências comigo. Ela está a caminho.
Então Lebreau estava no hotel?
– Pelo menos seu cartão de crédito estava. E quanto a Cassidy?
– Não consegui falar com ele. Natasha deve chegar aqui em uns quinze minutos.
Chequei as horas.
21h10.
Dezenove minutos antes do fim do jogo.
Qualquer que ele fosse.
– Viemos aqui para rever as evidências no laboratório – eu disse, indo para o corredor. – Vamos fazer isso antes que ela chegue.
Brad se posicionou-se entre as árvores.
Tudo certo.
As coisas podiam acontecer de várias maneiras essa noite, mas o resultado seria o mesmo. Ele garantiria que duas pessoas morreriam e Bowers seria ferido de um jeito
que jamais cicatrizaria.
Existem muitos tipos de morte. Física, espiritual, emocional, psicológica.
Sim.
E esse seria o jeito mais apropriado de todos.
Tanto para o agente Bowers.
Quanto para sua enteada.
Sala de Evidências 3a.
Todas as evidências coletadas nas cenas dos crimes estavam à nossa frente, seladas e numeradas em sacos de evidências: palha do centro de primatas, as tiras de couro
que o assassino usou, o conteúdo da bolsa de Mollie Fischer, o cartucho da bala que atravessou meu braço, as duas placas de carro. Ao lado delas estavam as malas
ensanguentadas, a cadeira de rodas e o carpete da van.
Vamos, Pat, o que você está deixando passar?
– Precisamos começar do começo – eu disse para Lien-hua, mas eu sabia que não tínhamos tempo, e pela cara dela, ela estava pensando a mesma coisa. Seis técnicos
do laboratório trabalhavam silenciosamente do outro lado da sala, nos dando algum espaço.
– Certo – Lien-hua deslizou os sacos com a palha ensanguentada para o lado para focarmos nossa atenção nele. – Terça-feira: Twana Summie é sequestrada e assassinada,
mas os assassinos fazem parecer que é o corpo de Mollie Fischer.
– Não, vamos começar antes disso, no bilhete.
– Bilhete?
– O bilhete de Calvin que mencionava Patricia E., o anagrama de Aria Petic. Isso não é uma coincidência de jeito nenhum. Ele morreu mês passado. Como Calvin descobriu
isso?
– Ou, por outro lado, como os assassinos descobriram sobre o bilhete?
– Exatamente.
– Quantas pessoas sabem sobre esse bilhete?
– Não tenho certeza. Angela. Ralph. Eu. Algumas outras pessoas.
Cheyenne. Eu não fiz muito alarde sobre isso.
– E como foi mesmo que você o encontrou?
– Calvin começou a suspeitar que Giovanni era responsável pelos assassinatos pelos quais Basque havia sido julgado. Ele estava analisando isso quando foi atacado.
Então, enquanto ele estava em coma, eu encontrei o bilhete nas coisas dele.
– E não temos ideia de como ele descobriu a informação?
Examinei a pilha de evidências e tive uma ideia. Talvez ele não tenha descoberto.
H814b Patricia E.
Sim. É claro!
– E se essa pista sobre Patricia – eu disse – não tiver nada a ver com Giovanni ou Basque?
– Mas por causa do nome Aria Petic, a menção de Patricia E. está claramente ligada a esse caso.
– Não, não, escute – escrevi a pista em um pedaço de papel e apontei para o nome: Patricia E. – Como os assassinos deixaram um anagrama para Patricia E. no centro
de primatas, temos uma ligação com a segunda parte do bilhete. E aqui. H814b. Eles mataram Mollie no quarto 814, para ligar o hotel a Hadron Brady...
Ela bateu na mesa. – Suas iniciais: H.B.
– O que significa que de algum modo os assassinos bolaram isso tudo no mês passado.
Mas por que escrever um anagrama? Por que um código?
– Não. Espere – balancei a cabeça. – Calvin era um homem da ciência. Para ele, tudo girava em torno de clareza, especificidade. Por que o b não é maiúsculo? E por
que acrescentar outra camada de obscuridade a um caso criando essa cifra...
– A menos que ele não tenha descoberto; a menos que isso tenha sido dado para ele.
Minha cabeça girava. – Em ambos os casos, a gênese de tudo parece ser aquela tentativa de assassinato. Lebreau estava lá, Brady estava lá. O vice-presidente Fischer
e...
Eu esperei, incerto se queria usar seu nome.
– Paul Lansing – ela disse.
– Sim – assenti. – Exatamente.
Olhei para ela e deixei meu silêncio falar por mim.
– Pat, isso é loucura – Lien-hua disse incrédula. – Não é possível que ele tenha algo a ver com isso.
Eu não sabia o número de telefone de Lansing, mas imaginei que Lacey poderia encontrá-lo para mim. – Preciso falar com Angela.
Quando corri na direção do escritório dela, Lien-hua me acompanhou. – Pat, você não acha mesmo que Lansing está envolvido, né?
– Não.
– Mas então...
– Só um segundo – eu estava na porta de Angela. – Você pode conseguir os números de telefone de todos os Paul Remmer Lansing de Wyoming? – pedi a ela.
Ela digitava. – Não. Nada.
Seus advogados devem ter o número.
– Consiga para mim o número de Keegan Wilby em Washington, DC.
– Pat, isso é loucura – Lien-hua disse.
– Eu sei.
Angela encontrou o número do celular de Wilby. Eu liguei, mas ele não atendeu. Vamos!
Deixei uma mensagem para ele me ligar assim que pudesse com o número de Lansing.
As cicatrizes. Fim do jogo.
A placa deixada no carro de Larotte estavam registradas em Denver,
onde você vive.
Lien-hua colocou uma mão no meu ombro. – Pat, o que você está pensando?
– Tessa. Preciso ver como ela está. Você fica aqui, espere por Natasha.
– Me liga.
– Ligo.
Então lembrei que Paul tinha mandado um e-mail para Tessa na quarta-feira, pedindo que ela ligasse para ele.
Ela vai ter o número.
Liguei para minha enteada enquanto me lançava pela porta e corria até meu carro.
104
Faltam 10 minutos...
21h19
– Você sabe o número do seu pai? – eu estava saindo da minha vaga no estacionamento. – O número do telefone?
– Não.
– Mas como você não...
– Ele não passou pra mim. Patrick, o que está acontecendo? – sua voz tinha um toque de medo. – Tem uma bomba em algum lugar? – ela deve ter ouvido a conversa de
Cheyenne comigo ao telefone.
– Eu não sei. Escute, se Paul entrar em contato com você, mandar algum e-mail, qualquer coisa, eu quero que você me ligue imediatamente.
Fique em casa e certifique-se de que as portas estão trancadas.
– Você está me assustando.
– Não, não se assuste, apenas fique com a detetive Warren. Estarei em casa em alguns minutos.
– Paul fez alguma coisa?
– Não. Mas ele pode saber quem fez. Não se preocupe – eu disse. – Estarei por aí umas 21h30.
Fim da ligação. Pisei fundo no acelerador e deixei a Academia.
Margaret Wellington estava pensando na ligação de Rodale com Lebreau quando entrou em casa, guardou a bolsa e colocou a chave no prato sobre o balcão, mas enquanto
ainda fazia essas coisas, um sutil e desconfortável calafrio começou a atravessá-la.
Seu cachorro não correu para saudá-la. – Vem, Lewis – sua voz soava solitária, emudecida pela casa vazia.
Nada.
– Venha aqui, menino.
Ele não veio.
– Lewis?
Silêncio.
Uma casa vazia e silenciosa.
Ele teria vindo se pudesse.
Margaret tirou os sapatos para poder se mover pela casa sem fazer barulho.
Sacou a arma.
E foi pelo corredor.
Oito minutos de casa.
Quem poderia ter descoberto sobre o passado de Lansing? Alguém nas forças policiais? Na NSA? Quem conheceria os registros financeiros do deputado e sua ligação com
a Fundação Gunderson?
Quem era Aria Petic?
Teria que ser uma mulher que tivesse informações internas sobre o instituto Gunderson e sobre a tentativa de assassinato contra o vice-presidente, alguém que esteve
em todas as cenas dos crimes, que construiu seu mapa mental de Washington, DC a partir de seu local de trabalho, que tivesse recursos praticamente ilimitados para
pesquisa nas pontas dos dedos, que conheceria o tempo de resposta da ERT...
Ah, sim.
Ela sabia sobre o porão do hotel, que você levou um tiro lá. Ela sabia!
Era isso.
Mas antes eu precisava ter certeza.
Ralph está indo para o Aeroporto Nacional Reagan. Perfeito.
Disquei seu número.
– Ei, cara – ele começou –, nós acabamos de pousar...
– Ralph – eu o interrompi. – Existem duas ligações de emergência sobre um triplo homicídio em Maryland no mês passado. Preciso que você peça para o laboratório fazer
uma análise de voz. Agora. Rápido, antes das 21h29.
– Do que você está falando?
Eu expliquei sobre a voz de quem estávamos procurando, e ele me disse que eu só poderia estar brincando. – Não estou brincando – eu disse. – Escute, a casa dela
é perto da sua. Consiga reforços e um esquadrão antibomba e vá até lá. Se as vozes combinarem...
– Tem certeza disso?
– Não, mas eu não quero correr o risco – fiz a curva na estrada municipal a mais de 110 km/h. – Vá até a casa, consiga a análise e entre em ação se tudo for confirmado.
– E quanto a você?
– Preciso falar com uma testemunha ocular.
Então procurei o telefone da sra. Rainey e liguei para ela. – Você tem um computador?
– Sim.
– Ligue-o. Entre no YouTube. E eu gostaria de falar com seu filho.
Margaret fez uma varredura inicial na casa.
Nenhum sinal de seu cachorro. Nenhum sinal de intrusos. Nada estava fora do lugar.
Alguém o levou!
O que significava que eles estiveram em sua casa.
E isso significava que eles provavelmente não deixaram nenhuma evidência de sua presença.
Ainda carregando sua Glock, ela começou uma busca mais detalhada.
Preste atenção, Margaret.
Pelo bem de Lewis.
Preste atenção.
A assassina era Chelsea Traye, a repórter investigativa da WXTN.
Danny Rainey a reconheceu na cobertura on-line da WXTN. – Mas o cabelo dela é diferente – ele disse. Aquilo não me surpreendeu, pois estava diferente quando ela
foi pega por um segundo no vídeo se passando por Aria Petic. Liguei para Ralph e descobri que a análise de voz também batia, confirmando minha suspeita. – Vá até
a casa! – eu disse a ele.
Fim da ligação.
Mas quem era o parceiro dela? Nick?
Os assassinos deixaram pistas para crimes futuros: eles deixaram a
nota fiscal do posto de gasolina, e então mataram o atendente... deixaram o carro de Mahan, e então o mataram... deixaram a bolsa de Mollie, e então a mataram...
deixaram as placas no carro de Annette...
Quem pensa assim tão para frente?
Meus pensamentos foram de novo para Sevren Adkins.
Mas ele estava morto...
Eles nunca encontraram o corpo, Pat.
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Você nunca pode ter certeza de ter eliminado o impossível, lembra?
Ok, elimine essa possibilidade.
Liguei para Cheyenne.
TEP–ROM
ETI–1RE
O tamanho do corpo do suspeito masculino batia com o de Sevren, as cicatrizes faziam sentido, ambos eram canhotos, o suspeito favorecia a perna direita – Lembre-se:
Tessa enfiou uma tesoura na perna de Sevren Adkins quando ele a atacou.
Sevren conhecia explosivos... ele gostava de assistir...
Esperei Cheyenne atender. Por que ela está demorando tanto?
As placas:
TEP–ROM
ETI–1RE
Seis letras.
Cada placa tem seis caracteres.
Placas de Denver.
Cheyenne mora em Denver também.
Seis caracteres...
Ela atendeu.
– Cheyenne – comecei...
É você ou ela. Seu carro ou o dela.
Mas eu não iria parar e checar minha placa.
– Pat? O que foi?
– Seu carro está na frente de casa?
– O quê?
– Lá fora. Seu carro!
Ele deixa pistas que apontam para a próxima vítima.
– Você consegue ver a placa sem ir lá fora? – eu pisava fundo no acelerador.
Um momento se passou enquanto ela cruzava a sala. – Não, eu teria que ir lá fora.
– Não, é...
– Pat, o que está acontecendo?
– O quarto de Tessa. Tente do quarto de Tessa. A linha de visão será mais direta.
Apenas um assassino tinha me desafiado para uma revanche. O mesmo que deixava pistas de crimes futuros. Sevren Adkins.
– Pat...
– Vá, Cheyenne! Leve Tessa com você.
Ouvi-a chamar por Tessa. Então houve uma pausa e uma porta se abriu. A placa vai dizer VAN–CHE.
E se for isso mesmo...
– Certo – então choque. – Mas o quê...?
Eu soletrei antes que ela pudesse me dizer o que era: – V-A–N–C–H–E.
Desespero em sua voz. – Como você sabia?
– Saia da janela!
TEP–ROM ETI–1RE VAN–CHE
TE–PROMETI–UMA–REVANCHE
– Ele está aí! – cantei pneus numa curva da estrada e quase perdi o controle. Uma bomba. Um carro-bomba? – Não chegue perto do seu carro!
– Quem está aqui?
– Sevren Adkins. Vá para o centro da casa, longe das...
– Pat, ele está morto.xyzOuvi Tessa no fundo. – Quem está morto?
O que é óbvio nem sempre...
– Acho que ele está vivo. Acho que ele voltou.
– Mas ele caiu no fundo de um desfiladeiro.
– Ele me prometeu uma revanche, Cheyenne. Ninguém mais sabe disso.
Enquanto eu estava terminando minha frase, ela engasgou; ouvi Tessa gritar.
Uma rajada de medo. – O que foi?
– As luzes – Cheyenne disse. – Se apagaram. Todas elas.
O relógio no carro: 21h26.
Três minutos.
Afundei o pé.
Ligue para a expedição, você tem que ligar para a expedição!
– Vou dar uma olhada – Cheyenne disse.
– Cuidado. Não vá lá fora. E não deixe Tessa sozinha.
Eu ainda estava a uns quatro minutos da casa, mas como ela ficava fora da cidade, o tempo de resposta do departamento do xerife provavelmente demoraria esse mesmo
tanto, mas liguei mesmo assim.
Dessa vez eu realmente queria reforços.
– O que está acontecendo? – Tessa perguntou para a detetive Warren.
Um momento atrás, ela tinha sacado sua arma. – Deite no chão, Tessa.
– O que foi?
– Por favor.
– Me conta.
Uma pausa.
– É Sevren Adkins.
– O quê?!
– Pat acha que ele voltou.
Tessa sentiu um calafrio terrível percorrê-la. – Não pode ser.
O homem que a sequestrou. O homem que a cortou. O homem que
tentou matá-la. Ele está aqui. Ele voltou. Ele voltou para pegá-la. – Mas eu não entendo...
Com uma mão, a detetive Warren guiou Tessa gentilmente, mas com firmeza, até o chão. – Fica abaixada – ela sussurrou, e então partiu na direção da porta da frente.
– E siga-me.
Margaret reparou em algo.
A cadeira de rodinhas em frente à sua mesa do computador não estava posicionada como deveria estar, como ela sempre a deixava, diretamente de frente para o teclado.
Em vez disso, estava virada cerca de quarenta graus à direita, como se alguém tivesse sentado nela e então se virou para levantar, esquecendo de acertar a posição
da cadeira novamente.
Ela examinou a sala. Todo o resto estava no lugar.
Mas não a cadeira.
Para evitar interferir em quaisquer impressões que poderiam estar no teclado, ela apertou com a ponta da unha a barra de espaço para ligar a tela do computador.
Um documento apareceu.
Alguém havia deixado uma mensagem para ela. Apenas as palavras: “Olhe seu porta-malas, Margaret”.
Tessa olhou para fora pelas janelas escuras. Com as luzes apagadas e a lua cheia, ela conseguiu ver parte do quintal, mas apenas vagamente. A parte de dentro da
casa estava ainda mais escura. – Detetive Warren, onde você está?
Uma voz veio de uma sombra a três metros dela. – Estou aqui. Faça silêncio. Shh. Fique abaixada. Seu pai está a caminho.
Cuidadosamente, ainda de meias, Margaret saiu da casa.
Seus pensamentos voltaram para Sevren Adkins, o homem que deixou o torso de uma de suas vítimas em seu porta-malas na Carolina do Norte.
Mas ela tinha certeza de que Adkins estava morto. Um imitador?
Ela estudou a vizinhança. Não viu nada de anormal.
Seu Lexus estava a menos de doze passos de distância. Ela apertou o botão de destravamento sem chave duas vezes, e o carro apitou suavemente duas vezes, enquanto
os quatro faróis acenderam e apagaram.
Com a arma na mão, ela se aproximou do acento do motorista.
Assegurou-se de não haver ninguém debaixo do carro.
Limpo.
Verificou os bancos da frente e de trás. Limpo.
Ela examinou a área mais uma vez e firmou a arma. Então pressionou o botão de abertura do porta-malas, que se abriu suavemente com um clique, mas não o suficiente
para que ela visse dentro.
Margaret preparou-se e alcançou o puxador.
105
Faltam 2 minutos...
21h27
Um DVD estava no porta-malas, com um bilhete ao lado: “Espero que você goste de assistir tanto quanto eu gostei de filmar”. Ela sentiu um surto de medo, olhou ao
redor da vizinhança uma última vez, então levou o DVD para dentro para assisti-lo, pensando apenas no que Adkins, ou seu imitador, poderiam ter feito com Lewis.
Pela janela dos fundos, Tessa viu alguém no quintal.
Apenas um vislumbre de movimento sombrio pela borda do muro de pedra.
– Detetive Warren! Ele está no quintal! – apesar de não ter conseguido ver seu rosto, ela sabia.
É ele. É ele. É Adkins!
Cheyenne ergueu a arma, deslizou para a porta dos fundos, abriu-a e gritou: – Pare e coloque as mãos para o lado!
A figura atirou na direção da casa e correu para se esconder.
Ainda não sabíamos o que aconteceria às 21h29.
Um ataque a Cheyenne? A Tessa? A mim?
Uma bomba?
Até agora só tínhamos evidências de C-4 encontradas na parte de trás da van que os assassinos usaram para transportar suas vítimas.
Isso era tudo. Nada mais.
Mas eles transportaram mais que suas vítimas lá atrás, Pat. Eles
transportaram...
O que é óbvio nem sempre é verdadeiro.
Não, não é.
Mas às vezes é.
Eles também tinham transportado a cadeira de rodas na parte de trás da van.
E agora ela estava no laboratório do FBI. Peguei meu telefone.
Digitei o número de Angela.
Um segundo tiro, e o batente da porta a apenas alguns centímetros do rosto da detetive Warren se estilhaçou. Tessa gritou, mas Cheyenne mal piscou, apenas abaixou-se
em uma posição de tiro. Estudou o quintal.
Tessa reparou em um leve movimento nas sombras profundas, uma figura avançando cuidadosamente na direção da casa. – Lá! – ela gritou. – Perto do muro!
– Parado! – a detetive Warren mirou.
O homem ergueu a mão e atirou. A janela acima de Tessa arrebentou, fazendo chover vidro sobre ela.
E então, o tempo congelou.
Com estilhaços que cobriam tudo, que paralisavam.
Por uma fração de segundo, Tessa viu o corpo da detetive Warren ficar tenso.
Então ela disparou um tiro.
Outro. Um terceiro.
O gelo do momento se estilhaçou, e Tessa sentiu como se fragmentos do tempo, do som e do medo estivessem caindo por toda parte.
Então, silêncio.
A noite estava quieta.
Seu coração estava martelando, martelando. Ela espiou pela janela.
– Abaixe-se – a detetive Warren avisou.
Mas antes de se abaixar, Tessa viu um homem estirado perto do muro de pedra que contornava as árvores. Ele estava de costas, sua arma a alguns metros da mão direita.
Seu rosto estava virado para o outro lado.
– Você o acertou? – Tessa perguntou. Palavras secas, sem ar.
– Sim – a detetive Warren ainda estava com a arma apontada para ele.
– Tem certeza?
– Sim – para Tessa ela parecia inacreditavelmente calma. – Fique aqui.
– Você não vai lá!
– Preciso ver se ele ainda está vivo.
– Então você pode ter errado?
– Eu não errei – a detetive Warren abriu a porta e, com a arma pronta, braços esticados, saiu para a varanda. – Eu já volto.
Brad pensou nos assassinatos na casa dos Styles no mês passado. Pensou na mulher e nos dois policiais. Pensou em como ele se deitou tão imóvel no carpete, esperando
um deles se aproximar, a escopeta bem ao alcance de sua mão.
Ele pensava nessas coisas agora. Tudo fechando o círculo.
Mas dessa vez com um toque especial.
Seu relógio vibrou no pulso.
Chegou a hora.
106
Acontece agora...
21h29
A bomba no laboratório do FBI explodiu.
Chelsea posicionou a mulher inconsciente na banheira e abriu uma segunda garrafa de soda cáustica.
Tessa olhou pela janela, observando a detetive Warren andar cuidadosamente como um gato na direção do corpo.
Margaret Wellington colocou o DVD em seu computador.
Parei o carro freando.
Apenas segundos atrás eu ouvi tiros atrás da casa.
Pulei do carro. Saquei minha arma.
Corri pelo lado da casa e vi uma mulher.
– Parada! – gritei.
– Sou eu! – a voz de Cheyenne. – Eu o peguei. Aqui.
– Quantos atiradores?
– Não sei.
Olhei a linha das árvores, procurando por movimento. Dei cobertura para Cheyenne. Ela estava se aproximando do muro de pedra que acompanhava o gramado. Um corpo
estava caído no chão. – É Adkins?
– Não vi seu rosto – ela estava a menos de cinco metros do corpo.
– Onde está Tessa?
– Na casa.
– Vou entrar – mas eu só dei dois passos quando Cheyenne engasgou. – Rápido, Pat! É...
Um tiro veio das sombras próximas ao lado da varanda de trás. Ouvi um barulho atrás de mim e soube imediatamente o que era: uma bala acertando um alvo humano.
Pelo canto dos olhos vi Cheyenne se dobrar sobre o muro de pedra.
Não, não, não, não!
A escuridão parecia respirar sobre mim.
Inalando.
Exalando. As sombras ofegando ao meu redor. Corri até ela.
Observei as árvores. A varanda. Nenhum movimento.
Ela foi atingida do lado direito e estava ofegante, sem fôlego. Ela estava com a mão esquerda sobre o ferimento, mas o sangue brilhante e espumoso estava brotando
por entre seus dedos. O pulmão. Ela foi atingida no pulmão.
Ouvi sirenes, mas estavam longe demais para chegar a tempo.
Nenhuma visão do atirador.
Ela vai morrer de hemorragia!
O mais rápido e cuidadosamente que pude, movi-a por três metros até a abertura no muro para que ela não ficasse exposta no campo. Então liguei para a emergência.
Escuridão.
Respiração.
Vá até a casa, Pat. Você tem que encontrar Tessa!
Em questão de segundos eu disse ao atendente o que sabia sobre o ferimento de Cheyenne e expliquei exatamente onde ela estava.
– Vá – Cheyenne tossiu. – Vou ficar bem... só... – sua voz desapareceu.
Ela ainda estava pressionando o ferimento, mas quando coloquei minha mão sobre as dela, percebi que ela não estava aplicando pressão suficiente para parar o sangramento.
Ela está muito fraca. – Você precisa apertar mais forte – eu lhe disse com urgência.
Vá atrás de Tessa, você tem que encontrar Tessa!
Os olhos de Cheyenne tremeram e então se fecharam. Ela ficou mole, inconsciente. – Cheyenne! – dei um tapa em seu rosto, mas isso não a acordou.
Você não pode ficar. Você precisa ir!
Vi um brilho de luz na escada. Uma lanterna se movendo pela sala de estar.
Não!
Tessa ficaria abaixada, não usaria uma lanterna.
Inclinei Cheyenne para o lado, o ferimento contra o chão, para que o peso de seu corpo pelo menos fornecesse um pouco de pressão, talvez retardar o sangramento,
impedir que se acumulasse e enchesse o outro pulmão.
Talvez desse a ela alguns minutos extras até os paramédicos chegarem.
Levantei-me para correr até a casa e finalmente vi o rosto da pessoa em quem Cheyenne atirou.
Paul Lansing.
Não!
Apressadamente, ajoelhei-me ao lado dele, senti seu pulso. Nada. Sem pulso. Sem respiração. Cheyenne acertou os três tiros no meio do peito, e ele estava destruído,
encharcado de sangue.
Ele estava morto.
Um ódio quente e tenso me atravessou.
Sevren preparou tudo isso! Ele o atraiu para cá!
Sirenes estridentes. Distantes, mas ficando mais fortes.
Disparei na direção da casa.
Lanterna na mão, arma apontada, entrei pela varanda de trás. Passei lentamente pela porta. – Tessa?
Nenhuma resposta.
Tentei acender as luzes da sala de estar. Nada. – Tessa!
Eu não rezo com frequência, mas estava rezando, e era tão verdadeiro e sincero quanto possível. Por favor, por favor, que ela esteja bem. Tanto ela quanto Cheyenne.
Por favor!
Então ouvi. Sons abafados vindos do corredor.
Lanterna na mão esquerda, SIG na direita, virei a esquina para o corredor. Tessa estava de pé, amordaçada, do outro lado do corredor, bem em frente ao seu quarto.
Um homem estava escondido no quarto, segurando-a pelo cabelo com a mão direita e apontando uma Walther P99 na cabeça dela com a mão esquerda. Ela tinha um vergão
na testa, sangue escorrendo na bochecha; ele deve ter batido nela com alguma coisa quando a capturou.
Ódio. Espreitando. Rugindo.
Ela tentou gritar. A mordaça a impediu.
– Essa distância é suficiente, Bowers – sua voz era um silvo. Apesar de não poder vê-lo, enxerguei sua imagem mentalmente: cabelo escuro. Compleição média. Olhos
manchados e primais.
– Largue a arma, Sevren!
Dei um passo discretamente, mas ele puxou a cabeça de Tessa para trás e ela se encolheu.
– Eu disse que essa distância é suficiente! – ele gritou. Congelei. De alguma maneira ele estava me observando.
– Vou dizer o que vai acontecer – ele disse. – Você vai jogar sua arma para Tessa. Ela vai pegá-la. E então você vai assistir a sua enteada morrer.
Existem muitos tipos de morte, Sevren pensou. Física, espiritual, emocional, psicológica.
E essa seria a mais apropriada de todas.
107
Sirenes lá fora.
– Está ouvindo? – eu disse. – Acabou. Não tem como escapar daqui. Solte-a.
– Jogue sua arma para ela.
Andei um pouco para a frente, mas ele gritou: – Mais um passo e ela morre!
Como ele me vê?
Estudei o corredor. Nenhum espelho. Nenhuma janela.
Tessa estava com os dentes cerrados. Olhos fechados apertados.
– Vou te dar três segundos – ele disse.
– Sevren...
– Um.
Não largue sua arma, Pat. Ele vai matar vocês dois!
Examinei o corredor, à minha frente, atrás de mim. E vi um celular no chão da sala de estar, atrás de mim, apoiado na parede, filmando.
Ele está com outro telefone no quarto. Ele está assistindo...
– Dois.
Apaguei minha lanterna para que ele não pudesse ver meu movimento, então corri na direção de Tessa, mas Sevren puxou-a para trás, para dentro do quarto. E bateu
a pesada porta de carvalho.
Agarrei a maçaneta, tentei girá-la. Trancada. Atrás da porta, ouvi Tessa lutando, tentando se livrar. Recuei, ergui meu calcanhar e acertei a porta, mas ela aguentou.
A voz de Sevren: – Chute essa porta novamente e eu vou começar a brincar com sua enteada.
Minhas mãos se fecharam em punhos, uma forte em torno do cabo da minha SIG, a outra em volta da minha lanterna. Dentro de mim, um fogo terrível rugia vivo, um que
eu não queria amansar.
Não tem nenhuma outra porta para o quarto...
– Sevren – eu chamei através da porta. Eu podia ouvir movimento, então um barulho raspado que provavelmente eram as cortinas sendo fechadas. Uma pequena luz delicada
se acendeu e tremeu pela fresta debaixo da porta. Ele baixou sua lanterna. – Você não tem como escapar disso – gritei. – Acabou. Está feito.
– Eu quero que você diga para ela – ele disse. – Quem é. Lá fora. Em quem a detetive Warren atirou.
Não.
Enrole.
– Encontramos a bomba, Sevren. Encontramos sua parceira.
– Você está blefando.
– Não estou, não.
– Prove.
– Vocês usaram os tubos de metal da cadeira de rodas. Foi esperto.
Mesmo se os caras do laboratório passassem no raio X, os explosivos não seriam visíveis. Mas chegamos a tempo. – Eu não tinha tanta certeza dessa última parte.
Uma pausa. – E minha parceira?
– Chelsea Traye.
Silêncio.
– Ela fez especiais sobre a tentativa de assassinato e o instituto Gunderson. Então no hotel na quarta-feira ela revelou que o tiroteio foi no porão, mas isso foi
antes que Margaret revelasse o local durante a conferência de imprensa. Ninguém mais sabia onde eu tinha sido atingido. Ter feito as ligações para a emergência em
Maryland da casa dos Styles foi um descuido. Comparamos a voz dela. Está tudo acabado.
Nenhuma resposta.
Continue enrolando, continue enrolando.
– Foi o e-mail de Tessa, não foi? – eu disse. – Você invadiu o e-mail dela. Descobriu sobre seu pai. Então pediu para Chelsea vasculhar o passado de Lansing. Ela
tinha acesso às imagens arquivadas da cobertura da tentativa de assassinato. Você mandou o bilhete para Calvin. Você planejou isso tudo semanas atrás.
Silêncio no quarto.
Longo e escuro.
Então ele falou:
– Eu não vim aqui para matar sua enteada, Patrick. Mas vou matar se você não contar a ela em quem a detetive Warren atirou.
Mas ele acabou de dizer que você vai assistir a morte dela...
– Conte para ela!
Tempo. Ganhe mais tempo.
– Tire a mordaça para que eu possa falar com ela.
Uma breve pausa.
– Patrick! – ela gritou.
– Estou aqui, Tessa.
– Ele está à minha esquerda! Atire na direção da minha voz pela parede... Ai!
Bati na porta. – Não toque nela!
– Conte para ela agora ou vou colocar a mordaça de volta.
As luzes vermelhas e azuis das viaturas que se aproximavam piscaram pelas janelas da sala de estar e tomaram o corredor.
– Tessa – eu disse –, escute...
Ela ama Paul. Ela queria odiá-lo hoje, mas ela o ama.
Tive uma ideia. Uma chance, era só o que eu precisava. Me afastei da porta. – O homem lá fora... – mirei minha arma na madeira ao lado da maçaneta.
Uma chance.
Uma chance.
Nós dizemos banalidades para amenizar o golpe, para aliviar a dor, mas não era o que eu estava prestes a fazer. Para ajudá-la, eu teria de machucá-la. Eu não conseguia
pensar em nenhuma outra opção viável.
Eu tinha que impedir Sevren. Eu tinha que acabar com ele.
– O homem em quem Cheyenne atirou é...
Eu chutaria essa porta mais forte do que já chutei qualquer outra coisa na vida. Bem ao lado da maçaneta. Meta o pé na porta. Localize Sevren. Derrube-o.
Olhei pelo cano da arma. – Tessa, é o seu pai – esperei. Esperei.
Vamos, Tessa. Por favor.
– Paul? – Uma palavra frágil, acabada.
– Ele está morto. Foi atingido três vezes no peito.
– Não.
– Sim, Tessa.
Mais alto. – Não!
– Ele está morto. Seu pai, Paul Lansing, está caído morto no quintal...
Dessa vez ela berrou. – Não!
A palavra cortou a noite como uma faca terrível. No momento em que ela gritou, atirei na madeira ao lado da fechadura, ao mesmo tempo que me impulsionei para a frente
e meti meu pé na porta. Ela se partiu e abriu com tudo.
Em uma fração de segundo, fiz uma varredura no quarto e vi Sevren no canto, de pé atrás de Tessa. Sua lanterna estava no chão, à minha esquerda.
Tessa estava entre nós. Sevren estava com a arma mirada na têmpora dela, a mão dela abaixo da dele segurando o cabo, o dedo dela contra o gatilho.
Oh, não. Por favor, não.
As luzes vermelhas e azuis que giravam lá fora invadiram o quarto através das cortinas fechadas.
Reforço.
Olhei pela mira, mas não tinha como atirar. Sevren segurava a cabeça dela firme na frente da sua própria segurando com força um punhado de cabelo dela com a mão
direita. O pouco que podia ver de seu rosto estava coberto por cicatrizes brutais.
– Tessa – eu disse suavemente, tentando soar calmo. – Não mova seu dedo. Não faça pressão nenhuma.
– É um bom conselho – Sevren disse.
Ela estava com a mandíbula travada, tentando ser forte, mas uma lágrima escorria do olho direito. – Atire nele – ela sussurrou.
Mas ele estava exatamente atrás dela; eu não tinha como atirar. Me movimentei para a frente...
– Já está perto o suficiente – ele disse.
Parei. Sem chance de tiro. Se eu atirasse, corria o risco de não atingi-lo e ainda acertar Tessa.
Ouvi policiais vindo em nossa direção pelo corredor. – Voltem! – gritei. – Ele pegou minha filha – eles pararam. – Tem uma mulher lá fora, perto do muro de pedra,
ela foi atingida. Vão até ela agora!
Nenhum movimento.
– Vamos! – gritei. – Façam isso!
– Fale para eles saírem da casa – Sevren disse.
– Vocês o ouviram, saiam daqui! – finalmente ouvi passos recuando.
Sevren olhou para o telefone apoiado na cama e meus olhos seguiram os dele. As luzes da casa estavam apagadas, mas no piscar das luzes da polícia lá fora, a tela
mostrava o contorno de um policial ainda abaixado no corredor.
– Vá – gritei para ele. – Você, no corredor. Agora.
Finalmente, ele foi.
– E a detetive Warren? – Tessa disse, sua voz tomada pela derrota e pelo medo. – Ela está bem?
– Eu duvido – Sevren disse. – Eu atiro muito bem – então para mim: – Eu disse para abaixar a arma. Ignorei-o e disse para Tessa: – Ela vai ficar bem.
Em vez de pedir novamente para que eu baixasse minha arma, ele deu um pequeno suspiro. – Então, aqui estamos nós – as palavras pareciam se contorcer em sua boca.
– Só nós três. Como na Carolina do Norte.
– Não – Tessa disse com tensa determinação. – Daquela vez você tinha uma tesoura espetada na perna.
Não, Tessa! Não o provoque!
– Tessa – eu disse. – Shh.
– Você deveria agradecer, Patrick – Sevren disse. – Ouvi falar que casos de custódia podem ser caros. A detetive Warren fez você economizar muito tempo e dinheiro
hoje.
– Mate-o! – Tessa gritou.
Ele puxou mais forte o cabelo dela. Ela se contorceu, mas se recusou a gritar, negando-lhe a satisfação de machucá-la.
– Agora, solte sua arma – ele disse para mim. – Lentamente.
Linhas de visão.
Ângulos.
Se eu pudesse me inclinar para a frente, ficar apoiado em um joelho como se eu fosse colocar minha SIG no chão, talvez conseguisse acertar o tiro.
Faça.
– Tudo bem – tirei o dedo do gatilho, segurei a arma frouxamente. – Eu solto. Não a machuque. Podemos conversar sobre isso, mas só deixe-a...
– Não me insulte! – ele rugiu.
Ou ele morreria hoje ou iria para a prisão pelo resto da vida. Ele devia saber disso. Ele não tinha nada a perder se a matasse. E se seu objetivo era me fazer sofrer,
ele tinha tudo a ganhar apertando aquele gatilho.
Nada a perder.
Ele não tem nada a perder.
Parei. Tentei outra ideia. – Pare de se esconder atrás de minha enteada. Se você tivesse metade da coragem que ela tem, você sairia daí e me encararia como um...
– Não vai ser tão fácil assim, Bowers.
– Acabou. Deixe-a ir embora. Leve-me, se é isso que você quer.
– Não! – Tessa gritou.
Ele falou para ela então, suavemente, mas ouvi as palavras: – Teríamos evitado muitos problemas se sua mãe tivesse ido em frente com o aborto.
– Não! – ela fechou os olhos apertados e cruzou o braço direito sobre o peito, abraçando a si mesma.
– Bem, Patrick – Sevren sorriu. – Parece que eu ganhei.
E tudo que aconteceu em seguida aconteceu de uma só vez.
Ele tirou a arma da cabeça de Tessa a virou para trás, na direção de seu próprio rosto; mirei minha SIG e atirei assim que sua arma disparou.
O dedo de Tessa ainda no gatilho.
108
O corpo de Sevren caiu no chão.
Corri até Tessa.
Ela estava ofegante. Adrenalina. Medo.
A arma ainda estava em sua mão; tirei-a dela e a coloquei sobre a cama.
Diferentemente dos filmes, pessoas que são atingidas por um tiro na vida real não voam para trás, elas se desmontam para baixo; e o corpo de Sevren estava caído
bem atrás de Tessa. Um dos ferimentos de entrada estava em seu queixo; minha bala o acertou na testa. As duas balas saíram por trás de seu crânio, deixando um buraco
do tamanho de um punho atrás. Massa cerebral e sangue estavam espalhados horrivelmente pela parede. Enquanto guardava minha SIG e pegava Tessa em meus braços, descobri
que o ricochete deixou o cabelo dela ensopado com o sangue morno de Sevren.
– Não vire – quando a peguei nos meus braços, gentilmente passei a mão contra a parte de trás de sua cabeça e então limpei em minha outra manga. – Está tudo bem.
Estou aqui.
Ela ficou imóvel como pedra. Não disse nada.
Um policial correu pela porta, a arma apontada para nós.
– Acabou! – berrei. – Acabou.
Ele viu a parede atrás de nós. O corpo no chão. Baixou a arma e se inclinou na direção do corpo.
Em um filme de terror, Sevren teria de alguma maneira levantado novamente para atacar, para matar, mas não aqui, não agora; ele nunca levantaria novamente. Nunca
mesmo.
Eu queria tirar Tessa da casa, para o mais longe possível desse quarto. Me apressei com ela pelo corredor.
– Meu pai está morto – as palavras vieram como estilhaços de vidro.
– Eu sinto muito, Tessa – todas as outras palavras me fugiram.
Estávamos atravessando o meio da sala de estar quando ela chamou um dos policiais que entrava pela porta da frente. – A mulher que levou um tiro. Ela está viva?
Ele olhou para outro policial que acabara de chegar. O homem balan
çou a cabeça. – Eu não sei da condição dela, senhora. Eles estão com ela, porém – ele apontou na direção da janela –, em uma ambulância.
Saímos da casa.
Uma ambulância estava se distanciando da casa. Guiei Tessa até a outra.
Esperei que ela fosse começar a tremer, chorar, mas ela não fez nada disso.
– Meu ouvido – ela murmurou. Ela estava balançando a cabeça como se para tirar água do ouvido esquerdo, aquele que estava a centímetros da arma quando ela disparou.
– Não consigo escutar com esse ouvido.
O fato de ela estar focando em algo relativamente insignificante comparado com o que acabara de acontecer mostrava que ela estava em choque.
– Vai ficar tudo bem – eu disse, prometendo algo que estava fora do meu controle. Uma pausa e então continuei: – O jeito que falei para você sobre seu pai. Eu precisava
fazer você gritar, para distrair Sevren. Me desculpe por ter sido tão duro. Você me perdoa?
Ela continuou em silêncio, mas acenou com a cabeça.
– Obrigado – eu disse
A ambulância estava logo à frente. Eu ainda não sabia se Ralph tinha encontrado Chelsea Traye ou se a bomba havia explodido.
– Eu o matei – a voz de Tessa estava distante e fria. Não soava em nada como a garota que eu conhecia. – Eu matei Sevren.
– Não. Isso é o que ele queria que você pensasse. Ele estava tentando atirar em si mesmo e fazer você pensar que foi culpa sua, mas eu atirei nele. A contração muscular
na mão dele fez o dedo apertar o gatilho. Foi isso que fez a arma disparar.
– Eu o matei.
– Não.
Ela balançou a cabeça. – Eu matei – não tinha certeza se ouvi arrependimento ou um senso sombrio de satisfação em suas palavras e não sabia o que dizer, mas essa
certamente não era a hora para discutir. – O que importa agora é que você está a salvo.
Chegamos até a ambulância e dois paramédicos empurraram uma maca até Tessa para ela se sentar. Um dos homens olhou para o vergão na testa dela. – Precisamos levá-la
para o hospital.
Ela estava em silêncio quando se sentou e depois se deitou.
– Vou com ela – eu disse.
Ele assentiu e enquanto ele e seu parceiro empurravam a maca de Tessa até a parte de trás da ambulância, eu lhe perguntei baixinho sobre Cheyenne. Ele me disse que
tinha ouvido que o estado dela era grave, mas era tudo que ele sabia. – Assim que soubermos mais, nós avisaremos.
– E Quantico? A bomba?
– Ela estourou. A Sala de Evidências 3a desintegrou. Algumas pessoas não chegaram a sair daquela ala. Ferimentos leves, mas acho que todos estão bem.
Eu estava feliz por ninguém estar morto ou seriamente ferido, mas se a Sala de Evidências 3a foi destruída, dúzias de casos poderiam ser afetados negativamente.
Imaginei como Lacey tinha se saído, torcendo, pelo bem de Angela, que ela estivesse bem.
– Ah – ele disse –, eles pegaram Chelsea Traye; ela está sob custódia. Estava prestes a matar uma mulher, uma prostituta. O agente Hawkins a impediu.
Bem, era bom finalmente ouvir boas notícias.
Na ambulância, me ajoelhei ao lado de Tessa. As sirenes de polícia do lado de fora haviam parado, mas as luzes piscantes não, e elas giravam e piscavam na janela
ao meu lado, borrando a noite com cores que nunca deveriam estar lá.
Segurei a mão dela. – Você vai ficar bem.
Ela não disse nada, apenas olhou inerte para a lateral da ambulância. Uma única lágrima trágica caiu de seu olho esquerdo.
– Meu pai está morto.
E quando vi a derrota e o ódio em seus olhos, tive um pensamento arrepiante.
Talvez Sevren estivesse certo.
Talvez ele tivesse ganhado, afinal.
109
Oito dias depois
Tessa e eu estávamos ficando no quarto vago no porão de Ralph e Brineesha para que não precisássemos ficar perto da casa onde Sevren Adkins e Paul Lansing haviam
morrido.
Nesse momento, Ralph estava seguindo uma indicação de que Lebreau poderia estar na região de Washington, DC, e Brineesha estava fazendo compras com o filho deles,
Tony. Então Tessa e eu tínhamos a casa para nós.
Olhei meu relógio: 13h22.
Cheyenne tinha deixado o hospital às 13h sairíamos em dez minutos para vê-la.
Tessa estava lá embaixo se aprontando.
Essa seria a primeira vez que elas se veriam depois do tiroteio.
Eu visitei Cheyenne todos os dias, com exceção de dois deles quando eu e Tessa estávamos em Wyoming. Apesar de Cheyenne ter convidado Tessa para ir ao hospital e
de ter enviado meia dúzia de recados dizendo o quanto ela sentia pelo seu pai, minha enteada se recusou a vê-la e, em vez disso, simplesmente pediu que eu dissesse
a Cheyenne para ler O Médico e o Monstro.
Eu supus que essa fosse a maneira de Tessa dizer para Cheyenne que ela era algum tipo de monstro, uma versão feminina de Hyde, e isso parecia rancoroso para mim,
mas Cheyenne prontamente aceitou ler o livro.
– Qualquer coisa que eu puder fazer para ajudar – ela disse. Então, dois dias atrás, após eu ter lido a história para entender o contexto do que estava acontecendo
com Tessa, entreguei o livro para Cheyenne.
Eu precisei de um tempo para encaixar as peças do que havia acontecido naquela noite, e ainda faltavam algumas partes, mas eis o que sabíamos: após ter invadido
o site dos advogados de Lansing e ter conseguido o número do telefone de Paul, Sevren o atraiu para a cena mandando uma porção de mensagens de texto falsas que supostamente
viriam do telefone de Tessa afirmando que ela estava em perigo, que os assassinos daquela semana estavam com ela, e para NÃO ligar para a polícia ou para o pai dela,
mas para, por favor, vir ajudá-la!
Não é fácil mascarar a origem de mensagens de texto, mas Sevren era esperto e fez tudo certo.
Considerando que Paul era um ex-agente do Serviço Secreto, não era surpreendente que ele tivesse vindo armado e pronto para salvar a filha.
Ainda não estava exatamente claro quem havia atirado primeiro: Sevren ou Paul, mas Sevren orquestrou o tiroteio, sem dúvida sabendo que ou Paul mataria Cheyenne,
ou ela o mataria – ou Sevren poderia até ter planejado matar os dois. De todo modo, isso teria acabado comigo e com Tessa. E eu não consigo parar de pensar que se
Cheyenne não estivesse lá, o tiroteio teria sido entre mim e o pai de Tessa.
Após a morte de Paul, o vice-presidente Fischer mandou uma nota pessoal para Tessa expressando suas condolências e explicando que Paul de fato o salvara há seis
anos. Por motivos de segurança, pediram a Paul que ele nunca compartilhasse essa informação, e o vice-presidente pedia a Tessa para não culpar o pai dela por enganá-la,
e pelo que pude ver, ela gostou muito disso.
Apesar das minhas suspeitas iniciais, Paul só queria o melhor para sua filha e lutou para protegê-la sempre que teve oportunidade – primeiro quando ela era um bebê,
e agora quando ela era uma jovem mulher. Saber que ele realmente se importou com ela parecia, mais do que todo o resto, estar ajudando Tessa a lidar com sua morte.
Lien-hua, em seu perfil avaliativo, postulou que Sevren falou a verdade quando declarou que não fora até a casa para matar Tessa. – Ele queria que você contasse
para ela que Paul estava morto como um meio de controlar vocês, de machucar vocês dois – Lien-hua explicou. – Matar Tessa só teria acabado com o sofrimento dela.
Mas no final você o encurralar e ele recorrer ao suicídio, eu não acho que esse fosse seu plano original.
– Qual era seu plano original? – perguntei, apesar de já prever sua resposta.
– Nós provavelmente nunca saberemos.
Se o plano era que eu acabasse com a vida dele, acabou que minha bala o ajudou.
Então.
Agora.
Tessa ainda não tinha voltado do porão. Decidi dar mais cinco minutos para ela.
Enquanto eu esperava, passei o tempo tentando pensar em coisas específicas que eu poderia dizer para encorajá-la, que pudessem ajudar a silenciar um pouco da raiva
que ela estava sentindo de Cheyenne.
Margaret Wellington ainda não tinha superado o que vira no DVD que encontrou no porta-malas de seu carro há oito dias.
Não eram imagens de seu cachorro Lewis sendo massacrado como ela temia; na verdade, após a morte de Sevren, a força-tarefa encontrou Lewis no banco de trás do carro
de Sevren, drogado mas bem.
Felizmente.
Felizmente.
Lewis estava bem.
Mas, ainda assim, as imagens gravadas eram terríveis e perturbadoras.
O DVD continha vídeos das vítimas de Sevren: Twana Summie gritando enquanto dois chimpanzés a atacavam; Mollie Fischer caída inconsciente na parte de trás da van;
Chelsea Traye lutando para escapar de uma cova rasa na fazenda de corpos. E mais quatro vítimas que continuavam não identificadas.
Mas para Margaret, as imagens mais perturbadoras estavam no final do DVD. Não eram imagens de outra vítima, mas dela mesma deitada, dormindo em seu próprio quarto.
O vídeo fora gravado de dentro de seu quarto.
Ele estivera lá, em seu quarto, observando-a. De pé sobre ela enquanto ela dormia.
Ele havia até chegado bem perto, filmando a apenas centímetros de seu rosto, e ela nunca soube, nunca suspeitou de nada.
Isso a chocou profundamente. O homem violou o único lugar em que ela se sentia segura e o manchou com sua presença, fazendo com que ela se sentisse sem poder e vulnerável
– muito provavelmente o que ele mais queria.
Ela parou no estacionamento subterrâneo do outro lado da rua do prédio do Capitólio, pegou a maleta com os documentos que ela iria dar para o deputado Fischer e
saiu do carro.
Mas ela não conseguia parar de pensar no DVD.
Por que ela?
Por que ele entrou em sua casa?
Ela só podia imaginar que era por eles terem um histórico juntos – ela foi a agente responsável pela força-tarefa na Carolina do Norte que o perseguiu quando ele
caiu do desfiladeiro. Ele deixou um corpo em seu porta-malas na época, e agora, através do DVD, ele deixou um porta--malas cheio de corpos figurativos.
Uma maneira perturbada e elaborada de se mostrar.
Por quantas noites ele esteve lá? Parado ao lado de sua cama, obser
vando você dormir?
Ela caminhou pelo corredor do Capitólio, na direção do escritório do líder da minoria do Congresso, e reforçou para si mesma que Sevren estava morto e não iria voltar.
Acabou.
Mas enquanto andava, ela tentou não pensar no único fato sobre o qual ninguém mais estava falando: não havia prova verdadeira de que foi Sevren quem fez aqueles
vídeos dela dormindo em sua cama.
Tessa estava terminando de passar o delineador e pensando no que ela iria dizer para a detetive Warren, quando Patrick bateu na porta do banheiro.
– Raven, sou eu – ele chamou. – Quase pronta?
Ela percebia que ele estava falando alto e por isso ela ficava agradecida. Ela ainda estava com uma certa perda de audição no ouvido esquerdo. Os médicos não tinham
certeza se seria ou não permanente.
Mas essa era a menor de suas preocupações.
– Só um segundo – ela disse.
Aconteceram coisas demais nas últimas duas semanas, coisas demais com as quais lidar – a onda de crimes, o caso da custódia, a morte de seu pai.
No dia seguinte da morte de Paul, Patrick tentou entrar em contato com pessoas que podiam conhecê-lo, mas nem seus advogados tinham uma lista com seus parentes ou
contatos de emergência. No final, Patrick conseguiu que o corpo de Paul fosse mandado de volta para Wyoming, e ele e Tessa foram para lá também. Eles enterraram
seu pai em um pequeno cemitério perto de sua cabana nas montanhas com apenas algumas pessoas da área presentes.
– Tessa? – Patrick a apressava do lado de fora da porta do banheiro.
– Eu disse que estaríamos lá as 14h.
– Sim, já estou indo.
Paul tinha seus defeitos, sim, mas ele a amava e veio para salvá-la. A carta do vice-presidente significou muito para ela.
Seu pai era um herói. Assim como Patrick era: dois homens dispostos a morrer por ela. E um deles morreu.
Por causa disso, a morte de Paul ao menos tinha um significado.
Porém, havia outro problema.
Desde sexta-feira passada, Patrick reafirmou centenas de vezes para ela que a morte de Sevren não era sua culpa. – Ele sabia que não tinha saída e queria que você
pensasse que o matou só para fazer você sofrer. Fui eu que atirei nele. Você não matou ninguém. Entendeu?
Ela ficava agradecida pelo que Patrick estava tentando fazer, e depois de um tempo ela lhe disse que entendia, mas ela sabia de algo que ele não sabia.
Foi ela quem virou a arma para trás, não Sevren Adkins.
Foi ela quem puxou o gatilho.
Ela passou o braço direito por cima do peito, agarrou o cotovelo esquerdo e virou a arma na direção do rosto de Adkins, apertando o gatilho como ela fez.
Sim.
Ela fez.
Ela entrou na rachadura e foi verdadeira com seu coração, e matou o homem que armou tudo para matar seu pai. Ela tirou a vida do homem que estava prestes a matá-la.
E estava feliz por isso.
Ela repousou o delineador, olhou no espelho, e isso a fez lembrar de Belle e do teste de autorreconhecimento no espelho no centro de pesquisa de primatas.
Tessa olhou para seu reflexo. Autorreconhecimento, é?
Você tirou a vida de um homem.
Ela não se reconhecia mais.
Por alguns momentos, ela olhou para seu reflexo; então respirou fundo e se juntou a Patrick para ir ver a mulher que atirou em seu pai.
110
– Então, está tudo aqui? – o deputado Fischer perguntou para Margaret.
– Sim, senhor.
Ele folheou os arquivos que ela lhe deu. – Inacreditável. Tudo documentado?
– Sim.
Ele deu um pequeno sorriso. – Quando eu apresentar isso para o congresso, tenho certeza de que conseguiremos a renúncia de Rodale em uma semana – ele balançou a
cabeça. – Ele estava com essa Lebreau na noite em que Brady tentou matar meu irmão?
– Sim.
– E ela ajudou Brady a armar tudo?
– Para afetar a opinião pública, sim. Faça com que um defensor da pena de morte assassine um vice-presidente popular e você garante que a opinião pública se volte
na sua direção, contra a pena de morte.
Que é o que aconteceu, na verdade.
– Rodale estava envolvido? – o tom de Fischer se tornou sombrio.
– Não consegui achar nenhuma evidência de que ele estivesse, e Lebreau ainda está desaparecida, então não podemos perguntar a ela.
Ele soltou os arquivos e olhou para ela curiosamente. – E como você descobriu isso tudo?
– Verifiquei algumas coisas. Sou muito boa em ligar os pontos.
Ele esperou.
– Não posso revelar minhas fontes no momento, senhor, mas se for necessário, revelarei. Tenho certeza de que você pode respeitar isso. Uma pergunta: você sabe por
que Chelsea Traye e Sevren Adkins direcionaram essa onda de crimes para sua família?
Ele balançou a cabeça. – As duas leis que estou apoiando, imagino. Os assassinos estavam tentando dizer algo.
Não ficou claro para Margaret o que eles queriam dizer. – Então, você vai retirar seu apoio à lei dos testes in vitro? – em sua pesquisa durante a última semana,
ela não encontrou nenhuma prova de que Fischer tinha agido antieticamente. Tinha sido apenas Rodale. Desde o início, ele estava usando Fischer para promover a legislação
e a pesquisa que levaria às descobertas que o tornariam rico.
– Não – ele balançou a cabeça. – Na verdade, estou mais comprometido com isso do que nunca.
– Por causa da morte de sua filha.
– Sim. Qualquer coisa que possamos fazer para impedir outros psicopatas de matarem mais garotas inocentes como Mollie. Vamos aprovar a lei e conseguir os fundos
para a Fundação Gunderson. Eu não ligo mais se as pessoas descobrirem que tenho patrocinado eles. É hora desse assunto vir a público. Desde o começo eu só quis menos
crimes, menos pessoas sofrendo. E você pode ter certeza de que agora vou ver isso acontecendo.
– Mas cortar o número de criminosos abortando mais bebês?
– Se for esse o preço a pagar...
– Exterminar uma vida porque algum dia a pessoa pode se tornar violenta? – ela podia perceber que seu tom havia endurecido. – Isso não faz nenhum sentido, deputado.
Deixe-os nascer. Ensine-os. Ajude-os. Nós temos a habilidade para superar nossos instintos. Para escolher.
– O júri ainda acredita nisso. Vamos ver aonde a pesquisa vai nos levar – ficou claro que ele não queria mais discutir o assunto. – Vou falar bem de você no senado.
Eles precisarão de alguém perspicaz para substituir Rodale. Você seria uma boa diretora, srta. Wellington.
Mas ela ainda estava pensando nas implicações sociais das políticas que ele estava promovendo, ainda perturbada por elas.
Ele a acompanhou até a porta.
– Aliás, você já pensou em concorrer para o congresso?
– Já passou pela minha cabeça.
– Não vou ficar nesse escritório para sempre, sabe?
– Não, não vai.
– Bem, bom dia, srta. Wellington.
– Bom dia, deputado.
Chelsea estava na prisão, mas para evitar a sentença de morte, ela contou para as autoridades sobre todos os peixinhos dourados no freezer. Até agora, o caso deles
estava sendo revisado e suas sentenças, revogadas.
Mas ela não estava preocupada com aquilo. Ela estava pensando em seu bebê.
Uma vez nascida, a criança poderia ficar com ela na prisão talvez no primeiro mês. E todo esse tempo, ela estaria planejando sua fuga, para que ela fosse livre para
criar seu bebê por conta própria.
Livre.
Livre.
Livre.
Só os dois.
Ninguém iria tirar seu bebê dela.
Ela passou a mão na barriga enquanto olhava através das
grades da cela.
– Vou ser forte o suficiente – ela sussurrou. – Eu prometo.
Tessa ainda não me deu a menor indicação do que ia dizer para Cheyenne, e agora que estávamos caminhando pelos degraus em frente a seu apartamento, senti que precisava
tocar no assunto. Antes de tocar a campainha eu disse: – Ela se sente muito mal.
– Eu sei.
– O que você vai dizer para ela?
– Depende.
– Do quê?
Tessa olhou para mim. – Do que ela disser para mim.
– Tessa...
– Ela matou meu pai, Patrick. Eu sei que foi um acidente, mas isso não o faz menos morto.
– Eu sei que você está com raiva, certo? Machucada. Mas você não pode se entregar a tudo isso. Essa é a hora em que você precisa ser verdadeira com algo maior que
seu coração. Seja o que for que nos torna diferentes dos animais, nós podemos reconhecer os erros das pessoas e podemos perdoar. Podemos aprender a amar de novo.
Ela olhou para mim. – Você acabou de inventar isso ou você preparou com antecedência? Fiquei quieto por um momento. – Ok, eu trabalhei nisso um tempinho, mas não
faz com que seja menos verdade. Sevren se foi. Ele só vence se deixarmos o ódio nos engolir.
– Ódio, é? – ela fez uma pausa. – E quanto à promessa que você fez para Grant Sikora? Que você não deixaria Basque matar novamente.
Hora de ouvir seu próprio conselho, Pat.
– Estou começando a achar que não é nosso trabalho punir as pessoas por coisas que não fizeram. A justiça não deveria tentar prever o futuro, apenas julgar o passado.
Mas ele é culpado, Pat. Ele é...
Tessa olhou surpresa para mim.
– O quê?
– É que, não sei, por um minuto agora você pareceu sábio.
– Não vou deixar isso acontecer de novo.
– Não foi tão ruim.
A porta se abriu e Cheyenne nos cumprimentou. Ela parecia bem descansada e com boa saúde, certamente não como alguém que estava na UTI quatro dias atrás.
No entanto, quando deu um passo de lado para que pudéssemos entrar, ela gemeu.
– Pode voltar a se sentar – Tessa lhe disse. – Sério.
– Talvez isso seja uma boa ideia – eu disse.
Mas Cheyenne balançou a cabeça e disse para Tessa: – Vem cá.
Por um momento ninguém se moveu, então Tessa foi na direção dela lentamente.
Cheyenne a pegou em seus braços e a abraçou, e lhe disse de um jeito de cortar o coração que ela sentia muito, muito. De onde eu estava eu não podia ver o rosto
de Tessa, mas seus ombros começaram a tremer suavemente e a ouvi começar a chorar.
Por um momento hesitei, imaginando se tinha algo que eu pudesse dizer, mas finalmente, juntei-me a elas e abracei as duas, sem dizer nada.
E assim foi muito melhor.
EPÍLOGO
Alguns minutos depois, Tessa deu um passo para trás, enxugou as lágrimas e disse para seu padrasto: – Eu gostaria de ficar a sós com a detetive Warren por um tempo.
– Claro.
– Eu a levo para casa – a detetive Warren se ofereceu.
– Você está bem para dirigir?
– Eu vim dirigindo do hospital até aqui. Estou bem.
– Tudo bem – ele olhou para elas sem jeito por um momento. – Tenham uma boa conversa. Vejo vocês duas mais tarde.
– Sim – Tessa respondeu, e finalmente ele saiu. A detetive Warren convidou Tessa para andar até o Potomac. – Fica a menos de um quilômetro daqui – ela disse.
Tessa reparou em sua edição de O Médico e o Monstro na mesinha de centro. Sobre ele estava um crucifixo. – Você não deveria ficar andando por aí.
– Estou bem – a detetive Warren gesticulou na direção de uma mesa onde estavam um tabuleiro e uma bolsinha de couro onde provavelmente estavam as peças. – Podemos
conversar enquanto jogamos – ela pegou o livro e o conjunto de xadrez. – Estou deitada faz uma semana; preciso me mexer. Vamos caminhar.
Eu estava quase em casa quando meu telefone tocou. Atendi.
Ralph.
– Ei – eu disse.
– Como foi o encontro de Cheyenne com Tessa?
– Elas precisam curar muitas feridas. Mas acho que as coisas vão dar certo.
– Você ainda está na Cheyenne?
– Não. Elas queriam ficar sozinhas.
– Ótimo, porque tenho más notícias. Renée Lebreau está morta. Preciso que você venha aqui, imediatamente.
Tessa podia ver que a detetive Warren ainda estava com dor, então ela diminuiu os passos.
– Você não sabe quantas vezes eu repassei aquela noite em minha cabeça – Cheyenne disse com profundo arrependimento em cada palavra. – Revendo tudo, desejando poder
mudar as coisas.
– Eu também.
Demorou um bom tempo até que uma delas falou novamente. Elas estavam quase chegando no rio. A detetive Warren mostrou o livro. – Acho que sei por que você queria
que eu lesse essa história.
– Por quê?
Ela abriu o livro em uma página marcada e então leu as palavras do Dr. Jekyll:
Aprendi a reconhecer a dualidade meticulosa e primitiva do homem; eu vi que, das duas naturezas que lutaram no campo da minha consciência, mesmo eu podendo muito
bem ser considerado uma coisa ou outra, foi apenas porque eu era radicalmente ambas...
Era a maldição da humanidade que esses feixes incongruentes fossem amarrados juntos – que no útero agonizante da consciência, esses gêmeos polares deveriam lutar
continuamente. Como, então, eles estavam separados?
– Eles não estavam – a detetive Warren disse. – Não separados. Essa é a diferença entre nós e os animais. As incongruências. A “dualidade meticulosa e primitiva”.
Tessa pensou naquilo.
A casca do bem... as rachaduras...
Elas andaram em silêncio por alguns momentos até que chegaram à trilha ao longo do Potomac. A detetive Warren foi até uma mesa de piquenique.
Enquanto montavam o tabuleiro, Tessa estava pensando nos últimos dez dias, e quando ela pegou seu bispo, ela disse suavemente: – Esqueci.
– Esqueceu do quê?
– O jeito como ele se move.
A detetive Warren olhou curiosamente para ela.
– De volta quando tudo aquilo aconteceu, naquela noite, eu estava pensando sobre como mudamos do preto para o branco, assim como as peças de xadrez fazem – ela gesticulou
na direção das peças. – Mas eu me esqueci do bispo.
A detetive Warren demorou apenas alguns segundos para fazer a ligação.
– É a única peça que fica em sua cor o jogo inteiro. Sem incongruências.
Tessa colocou o bispo no quadrado preto ao lado de sua rainha. Lembrando-se de Sevren Adkins, do quão escura, má e maculada era sua alma, Tessa perguntou: – Você
já conheceu alguém assim? Digo, uma pessoa que nunca tenha mudado de cor? Que não tinha uma dualidade?
A detetive Warren refletiu sobre a pergunta por um momento. – Só uma.
Tessa imaginou que ela estivesse falando sobre o assassino de Denver, Giovanni, que era a razão pela qual a diretora-assistente-executiva Wellington permitiu que
ela ingressasse no programa da Academia Nacional – para ajudá-la a se distanciar um pouco de Denver, do caso.
– Giovanni? – Tessa perguntou.
Mas Cheyenne balançou a cabeça.
– Não. Um carpinteiro. De Nazaré – considerando a fé da detetive, a resposta não surpreendeu Tessa. Ela ficou quieta.
– Sim – ela disse finalmente. – Minha mãe o conheceu também. Antes de morrer.
Escuridão e luz.
Para trás e para a frente.
Todos os movimentos do jogo.
Você matou um homem.
A dualidade meticulosa e primitiva.
Tessa olhou para o tabuleiro. As peças brancas à sua frente, as peças pretas à frente da detetive Warren.
– O branco começa – Cheyenne disse, afirmando o que ambas já sabiam. – É sua vez.
Sim, é mesmo.
É sua vez.
Tentando esquecer as rachaduras que vira tão claramente em si mesma, Tessa esticou a mão para o peão do rei para começar o jogo.
Ralph encontrou-me na porta do condomínio onde, aparentemente, a professora Lebreau estava hospedada. Suas palavras estavam endurecidas pela raiva. – Foi Basque.
– Confirmado? – entrei.
– Ah, sim, está confirmado – ele virou a cabeça para o lado, revelando uma grande contusão. A maioria das pessoas estaria de cama em um hospital.
– Você está bem? – Ninguém ganha de Ralph numa briga!
– Eles tinham tacos de beisebol.
– Eles? – pensei novamente no DNA não identificado nas cenas dos crimes há treze anos.
Um cúmplice?
– Eu reconheci Basque – Ralph disse –, mas estava escuro demais para ver o rosto do outro cara – ele balançou a cabeça, obviamente frustrado consigo mesmo por não
ter conseguido pegar os dois agressores com tacos de beisebol. – O segundo cara me pegou pelas costas. Pelo menos consegui quebrar o braço de Basque. Rápido e limpo.
Mas ambos conseguiram fugir.
Então Basque estava de volta e tinha um parceiro.
Perfeito.
Eu estava observando as evidências da luta na sala de estar. Móveis virados. Manchas de sangue. Luminárias quebradas.
Dúzias de cartas escritas à mão estavam espalhadas pelo chão, cada uma delas assinada “Com amor, Richard” e lembrei-me do que Ralph dissera sobre o quão rápido Renée
trocava de namorado. As peças começaram a se encaixar nos lugares certos. – Ele a seduziu? – eu disse. – Da prisão? É isso?
– Sim – Ralph gesticulou na direção das cartas. – Ele escreveu para ela por cerca de um ano. Ela encontrou a evidência para ajudá-lo a se livrar. Então ele se virou
contra ela; aparentemente a conversão convenientemente orquestrada de Basque na prisão não mudou nem um pouco sua verdadeira natureza.
– Sabemos se ela falsificou a evidência de DNA para libertá-lo?
– Acredite, estamos verificando isso.
Imaginei como Rodale se encaixava nisso tudo – se é que se encaixava. Ralph gesticulou na direção da cozinha.
– Renée está lá. Ou pelo menos a maior parte dela está.
Lien-hua surgiu no corredor e fiquei feliz quando Ralph seguiu em frente e nos deixou conversar por um segundo. Ela passou muito tempo com Cheyenne na semana passada,
ajudando-a em sua recuperação, e deixamos nosso relacionamento suspenso durante esse tempo.
– Cheyenne gosta de você – Lien-hua havia me dito. – É óbvio. Mas ela tem muita coisa para curar agora. Não vá machucá-la mais ainda.
Eu não podia discutir com aquilo, mesmo não querendo ficar distante de Lien-hua.
Vai dar certo, eu disse para mim mesmo. Nós só precisamos deixar isso passar. Nos estabelecer. Vai ficar tudo bem.
Agora Lien-hua vinha na minha direção, e atrás dela vi quatro membros da ERT, incluindo Cassidy e Farraday, andando pela cozinha.
Eu não conseguia ver muito, mas a porta da geladeira estava aberta, e Cassidy e dois agentes que eu não conhecia estavam reunidos em torno dela. Ele segurava uma
jarra. De onde eu estava era impossível ver o que tinha dentro, mas a mulher ao lado dele ficou pálida e correu para fora da minha linha de visão. Escutei barulho
de vômito.
Espalhada pelo chão de linóleo vi uma bagunça de sangue.
Lien-hua deve ter visto minha cara de raiva. – Pat, eu sei que você jurou pegá-lo, mas isso não foi culpa sua.
– Eu sei.
– Você não podia ter previsto isso.
Não a menos que eu o tivesse matado em Chicago mês passado.
A estrada para o impensável não é pavimentada por pequenos desvios
do seu coração, mas por incursões experimentais até ele.
Lembrei-me dos meus pensamentos sombrios no velório de Calvin: nós nascemos, lutamos, perduramos, morremos, e não há nada que sobra para mostrar que estivemos aqui.
Do pó ao pó.
Das cinzas às cinzas.
A poesia sombria da existência.
Mas a vida é mais que isso.
Fazemos incursões em nossos corações e procuramos meios de superá-las.
Sentimos dor e sentimos amor, nos machucamos e nos curamos.
Seres humanos sendo humanos.
A luz do sol estava brincando estranhamente no chão de linóleo.
Assuntos de morte se tornam assuntos da vida, e no dia em que eu não acreditar mais nisso, não farei mais um bom trabalho.
Mas por enquanto eu ainda faço.
Aproximei-me da geladeira.
E olhei lá dentro.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meus consultores militares e das forças policiais, tenente--Coronel Todd Huhn, tenente-coronel Greg Hebert e agente-especial Scott Francis; meus editores
e primeiros leitores, Shawn Scullin, Trinity Huhn, Pam Johnson, Wayne Smith, Jen Leep, Kristin Kornoelje e Liesl Huhn; minha agente, Pamela Harty; meus consultores
de armas de fogo, Jim Huhn e George Hill; meus consultores de ética, dr. Bob Wetzel, Jim Kevin e o dr. Marc Roberts.
Obrigado ao deputado dr. Phil Roe pelo tempo dedicado a me dar uma visão interna do Capitólio, e para Randy Vernon pela hospitalidade.
Obrigado também a John e Lisa Bunn da Coffee Company e a Lee e Tricia Smith do Adobe Garden Bed & Breakfast por me darem um lugar para trabalhar, a meus alunos do
Blue Ridge Christian Novelist’s Retreat por me apresentarem o transumanismo, a Becky Malinsky e ao dr. Suda--King do National Zoo por me ajudarem a entender os primatas,
e para Wayne Smith e o agente Curt Crawford por conseguirem meu tour na Academia do FBI e na Quantico Marine Corps Base.
Um agradecimento especial para J.P., Todd, Pam, Liesl e Chris por serem minhas fiéis caixas de ressonância.
Estou em dívida com os livros Geographic Profiling, do dr. Kim Rossmo, e Environmental Criminology, de Paul e Patricia Brantingham, pelas informações teóricas sobre
os fundamentos da investigação geoespacial.
Achei os seguintes recursos úteis na minha pesquisa sobre metacognição primata, assim como as diferentes perspectivas sobre e implicações de teorias relativas à
evolução da moralidade.
Exposição The Think Tank no Smithsonian National Zoological Park.
Primates and Philosophers: How Morality Evolved, de Frans De Waal, editado por Stephen Macedo e Josiah Ober (Princeton: Princeton University Press, 2006). Veja,
especificamente, as páginas 9-10 para referências aos e interferências dos estudos de Richard Dawkins.
Hardwired Behavior: What Neuroscience Reveals about Morality, de Laurence Tancredi (Cambridge: Cambridge University Press, 2007).
A Reason for God, de Timothy Keller (New York: Dutton, 2008).
There Is A God, de Antony Flew (New York: HarperCollins, 2007).
PRÓLOGO
Nos dias de hoje
San Antonio, Texas
22h13
Kirk Tyler virou o monitor do computador para seu prisioneiro.
A imagem do vídeo mostrava uma jovem deixando a área de pessoas autorizadas do Shopping Lone Star. O shopping estava fechado há mais de uma hora. Não havia mais
ninguém por perto.
Noite.
A garota era filha do homem.
Dashiell Collet lutou contra suas amarras, mas a fita adesiva o prendia com segurança à cadeira de metal e ele não iria a lugar algum. O armazém vazio assomava-se
ao seu redor.
– Isso não precisa acabar mal para ela – disse Kirk, apreciando a visão da líder de torcida de dezessete anos desfilando até seu carro. Erin obviamente não estava
ciente que estava sendo seguida, que estava sendo filmada, que sua vida estava por um fio. – Responda minha pergunta.
Dashiell ficou em silêncio.
– Então? – Kirk perguntou.
– Se você tocar nela – os dentes de Dashiell estavam cerrados. – Eu juro por Deus...
– Vamos deixar Deus fora disso – Kirk olhou para a tela. A transmissão de vídeo vinha de uma câmera escondida no botão superior da camisa de seu comparsa, agora
vinte passos atrás da garota. – Eu só quero que você me diga o nome do seu contato no Pentágono. É só isso. Apenas o nome e tudo isso acaba.
– Eu já disse que não sei do que você está falando!
– Você trabalhou na instalação por catorze anos.
– Que instalação?
– Dashiell, por favor. Chega. Quero saber o nome da pessoa responsável pelo projeto.
Dashiell balançou a cabeça com determinação.
– Você cometeu um erro. Sou o homem errado.
Considerando a situação de Dashiell, Kirk surpreendeu-se com a grande determinação da voz do homem. Aparentemente seu treinamento estava lhe servindo bem.
Então, um pouco de persuasão.
O parceiro de Kirk estava usando um fone de ouvido sem fio e Kirk falou com ele:
– Pegue-a.
No monitor, ele pôde ver a distância entre a câmera e Erin diminuindo quando seu comparsa moveu-se delicadamente, silenciosamente, na direção dela.
– Não! – Dashiell gritou.
Erin estava procurando a chave do carro em sua bolsa.
– Isso vai parar – Kirk disse, - Quando você quiser que pare.
Dashiell fazia um esforço heroico para escapar, mas do jeito que estava amarrado, suas tentativas apenas apertavam mais a fita adesiva em torno de seus tornozelos
e pulsos.
– Eu não conheço ninguém no Pentágono! – ele gritou. – Estou dizendo, sou um avaliador de seguro! Só isso!
Erin estendeu a mão para abrir a porta.
Abriu a porta do motorista.
A câmera estava a um metro das costas dela.
E então.
Ela deve ter percebido a pessoa em seu espelho retrovisor lateral, ou sentido o movimento atrás dela, pois virou-se abruptamente e abriu a boca para gritar, mas
o parceiro de Kirk estava sobre ela antes que ela pudesse.
– Eu não conheço ninguém! – Dashiell berrou.
Na transmissão de vídeo, Kirk pôde ver uma mão sobre a boca da garota enquanto ela era atirada bruscamente para dentro do carro. As imagens ficaram borradas e confusas.
– Eu juro!
– Não acredito em você, Dashiell.
– Deixe-a fora disso! Solte-a!
Era difícil dizer o que estava acontecendo no veículo. Um confronto, sim, mas até o momento tudo era um borrão de braços, cores e gritos. Então, a tela mostrou o
lampejo de uma mão estapeando a garota e quando ela gritou com fraqueza por ajuda, Kirk viu seu braço esquerdo sendo agarrado e picado por uma seringa.
– Pare com isso! – Dashiell gritou. – Mande-o parar!
– Diga-me.
Erin desfaleceu no assento.
– Tá bom, eu conto! Mas diga a ele para parar!
Kirk falou no fone:
– Espere.
Um braço posicionou o corpo agora mole da garota no banco do passageiro, passando o cinto de segurança por sua cintura e seu peito. A porta do motorista se fechou
e a imagem do vídeo permaneceu parada, a câmera olhando pacientemente pelo para-brisa para a extensão do estacionamento vazio que cercava o carro.
– Certo, - Kirk disse para Dashiell. – Comece a falar.
– Se eu te contar, você tem que prometer que não vai machucá-la.
Dashiell inconscientemente passava a língua nos lábios, nervoso. Desesperado.
– Eu prometo.
– Jure para mim que esse homem vai soltá-la. Que ele não vai tocar nela. Você tem que...
– Escute, Dashiell, eu juro que se você nos disser o nome, eu solto você e Erin. Você tem minha palavra. Farei com que meu homem a deixe no carro e ela vai acordar
em algumas horas com dor de cabeça, mas tirando isso, ela vai ficar bem – ele sentou-se à mesa e encarou Dashiell, juntou cuidadosamente os dedos inclinando-se para
frente. – Porém, se você não me disser o que eu quero saber, ele vai trazê-la de volta pra cá e eu vou fazer você assistir a tudo enquanto nós dois nos ocupamos
com ela pelo resto da noite.
Dashiell respirava forte, em desafio, mas Kirk podia ver a derrota em seus olhos.
– Contra-almirante Colberg.
– Colberg.
– Sim. Alan Colberg. Ele mora em Alexandria, Virgínia. Trabalha para o Departamento de Defesa. Pode procurar. Agora, diga a ele para deixá-la no carro.
– Só um minuto.
Kirk digitou no teclado de seu laptop, conferiu o nome na lista de potenciais suspeitos que seu empregador havia lhe enviado. Sim, o contra-almirante foi funcionário
do Projeto Sanguine do Pentágono, mas com base no cronograma de trabalho e nas responsabilidades da função de Colberg, o computador mostrou a Kirk que só havia 61
por cento de certeza dele ser a pessoa certa. Não era suficiente.
– Preciso de mais – ele mostrou o telefone. – Prove ou...
– Certo, escute. Colberg ajudou a desenvolver a tecnologia de frequência extremamente baixa nos anos 1980. Ele estava na primeira equipe. A primeira a operar a estação.
– Isso não é uma prova.
– Verifique o passado dele. Ele escreveu um artigo em 1979 sobre ondas de rádio de 3 a 76 Hertz e o uso da ionosfera na tecnologia de transmissão.
Kirk levou alguns minutos para encontrar algo na internet e finalmente conseguiu baixar um PDF do artigo do simpósio escrito pelo então Tenente Alan Colberg.
Não era 100 por cento conclusivo, mas nessa área muito pouco era. Ele confirmaria tudo quando se encontrasse com o almirante.
Bom.
A pessoa que o contratou para esse serviço ficaria contente.
Kirk falou no telefone com o homem que estava com Erin.
– Tudo bem, traga-a de volta e vamos começar.
– O quê? – o sangue fugiu do rosto de Dashiell. – Você disse que a soltaria!
– Sim – Kirk guardou o telefone. – Eu disse.
– Estou lhe dizendo – a voz de Dashiell ficou tomada pelo medo ao descobrir o que estava acontecendo. – É Colberg. Você tem que acreditar...
– Eu acredito em você.
– Mas você jurou que iria...
– Sr. Collet – Kirk interrompeu. – Parte do meu trabalho envolve dizer às pessoas o que for necessário para convencê-los a me dar o que eu quero. Não é nada pessoal
– Kirk sacou sua .45 ACP Tanfoglio Force Compact fabricada na Itália e pressionou a ponta do cano de aço azul contra a coxa esquerda de Dashiell. – Isso é por eu
ter perdido tempo com a sua enrolação.
– Não, você tem que...
Kirk apertou o gatilho e Dashiell Collet gritou.
E gritou ainda mais alto quando Kirk deu outro tiro em sua outra perna.
Levando em conta a posição da arma, Kirk tinha quase certeza que a segunda bala atingiu o fêmur de Dashiell. O sangramento dos dois ferimentos era regular, não jorrava,
então Kirk não achou que as artérias femorais tivessem sido atingidas. Sem tratamento, ele morreria de hemorragia mais cedo ou mais tarde, mas ele sobreviveria pelo
menos por algumas horas. O suficiente para ele assistir.
Kirk colocou a arma sobre a mesa à sua esquerda. Rapidamente o amordaçou.
– Você poderia ter evitado tudo isso se tivesse dito de primeira o que eu queria.
Os olhos de Dashiell ficaram embaçados com a dor dos tiros. Sua cabeça despencou e Kirk temeu que a perda de sangue estivesse afetando--o mais rapidamente do que
ele previu. Ele deu um tapa em seu rosto.
– Olhe para mim!
O homem pareceu retomar o foco.
– Você precisa saber que a morte de Erin e tudo que a precede terá sido sua culpa por ter sido inconveniente comigo pelas últimas três horas.
Apesar de obviamente desorientado, Dashiell forçou suas amarras de novo e estremeceu terrivelmente quando sua perna se tencionou. Ele tentou gritar de dor, mas a
mordaça abafava seus gritos.
Kirk destravou a porta lateral para que seu parceiro pudesse acessar o prédio. Quando voltou para a mesa, sentiu seu telefone vibrar em seu bolso. Apenas uma pessoa
tinha o código de chamada para esse número.
Valkyrie.
Exatamente a pessoa com quem ele precisava falar.
Kirk tocou na tela do telefone, mas antes que ele pudesse falar, a voz disfarçada eletronicamente do outro lado disse:
– Eu estava assistindo a transmissão de vídeo. Vi seu homem pegando a garota.
– Ele trabalha bem – Kirk disse. – Conseguimos o que queríamos. O contato de Dashiell é o contra-almirante Colberg. No Pentágono.
Kirk arrumou os objetos que iria usar com Erin. A fita. As cordas. As algemas.
– Você deveria ter deixado a garota fora disso.
Se havia uma coisa que Kirk Tyler não gostava era ter que se explicar.
– Eu não teria feito isso se não achasse que era a ação mais prudente a se realizar – ele decidiu não mencionar os planos que tinha para a garota.
– A ação mais prudente.
– Sim.
– Foi isso que você pensou?
Uma pausa que fez Kirk se sentir um pouco apreensivo.
– Você deveria ter deixado a garota fora disso – Valkyrie repetiu. Mas dessa vez as palavras eram mais duras. – Isso foi um desleixo.
– Foi eficiente.
– Eficiência significa limitar danos colaterais, diminuir a exposição...
– Você não estava aqui – ele nunca tinha interrompido Valkyrie no meio de uma frase antes, mas não estava no clima para ouvir um sermão. – Não questione minha decisão.
Uma pausa mais longa dessa vez.
– Com base no que vi hoje, decidi arrumar outra pessoa para concluir o serviço.
Kirk apertou o telefone em sua mão.
– Isso não seria inteligente da sua parte.
– Eu te disse quando começamos que haveria consequências se algo fosse mal conduzido. Eu considero essa situação com a garota mal conduzida.
Um alerta passou por sua cabeça.
Ele está observando-o.
Kirk pegou sua Tanfoglio novamente e observou as sombras do armazém.
– Você não vai fazer isso – ele verificou os lugares possíveis onde Valkyrie ou um de seus homens pudesse estar escondido. Não viu nada. – Se você me tirar dessa,
eu vou atrás de você.
– Adeus, Kirk.
E antes de Kirk Tyler responder, o celular que ele segurava ao lado do ouvido explodiu, dilacerando seu antebraço e a maior parte de sua cabeça, espalhando sangue,
cérebro e pedaços de crânio pela mesa. Quando seu corpo caiu desajeitadamente no chão, pequenos pedaços de matéria cinzenta salpicaram o concreto e Dashiell observou
horrorizado, apenas pensando no que aconteceria com Erin e consigo mesmo quando o associado do homem chegasse.
Alexei Chekov estava no meio da cena do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov quando foi contatado por Valkyrie, pedindo a ele para resolver um problema.
– Lembra-se de Kirk Tyler? – a voz disse.
– Sei quem é, apesar de nunca tê-lo conhecido pessoalmente.
O inglês de Alexei era impecável, assim como o russo, o árabe e o italiano. Na primeira vez que Valkyrie entrou em contato com ele, ele percebeu uma estrutura de
frase que sugeria alguém que estudou ou cresceu nos Estados Unidos. Por isso, Alexei escolheu o inglês americano para suas conversas.
– Temo que você não tenha mais essa oportunidade.
– Ele o decepcionou.
– Sim.
Alexei pôs um marca-página no livro e o colocou de lado.
Valkyrie.
Na antiga mitologia nórdica, uma Valquíria era uma deusa que voava sobre os campos de batalha decidindo quem viveria e quem morreria – um trabalho incrivelmente
semelhante ao dele. Os mitos evoluíram com o tempo e transformaram as Valquírias em criaturas belas e angelicais que recompensavam heróis derrotados ao chegarem
no paraíso.
Morte e recompensas. Quem vive e quem morre – a decisão derradeira.
Valkyrie informou Alexei sobre Dashiell Collet e sua filha, e tudo que aconteceu no armazém.
– Não é longe de onde você está – Valkyrie explicou. – Quero que você faça curativos nos ferimentos à bala de Dashiell, cuide do corpo de Tyler e então chame uma
ambulância para o sr. Collet. Eu o quero vivo caso precisemos falar com ele novamente.
O comentário de Valkyrie sobre o armazém não ficar longe mostrou a Alexei que sua própria localização não era tão secreta quanto pensava e ele percebeu que subestimou
Valkyrie, uma pessoa com quem ele nunca tinha se encontrado e sequer conhecia a identidade.
– E quanto à garota?
– Ela vai acordar em uma ou duas horas. Temo que o homem que tentou sequestrá-la não tenha tanta sorte.
Alexei sabia um pouco sobre a precisão calculada do trabalho de Valkyrie e imaginou que o fone de ouvido sem fio do pretenso seques-trador estava programado para
explodir, assim como o telefone de Kirk.
Ele tentou não imaginar o que a garota veria ao lado dela quando acordasse.
Através dos anos, Alexei desenvolveu uma objetividade profissional em relação a essas coisas, mas, ainda assim, imagens como a que Erin veria quando acordasse eram
profundamente perturbadoras e ele viu que simpatizava com ela, pelos pesadelos que certamente a perseguiriam pelo resto da vida. Talvez ele conseguisse chegar lá
antes que ela acordasse para levá-la a algum lugar seguro.
– Você precisa que eu cuide disso também?
– Vou arrumar outra pessoa para fazer isso. Vá apenas para o armazém. Hoje à noite vou arrumar um avião para levá-lo até Alexandria, Virgínia. Quero que tenha uma
conversa com o contra-almirante Alan Colberg. Diga a ele que precisamos dos códigos de acesso da estação. Ele saberá do que você está falando.
– Tudo bem.
– A propósito, providencialmente, Tyler tinha uma Tanfoglio. Eu sei que você perdeu uma na Itália ano passado. Fique com ela. É sua. Pela inconveniência de ter sido
chamado tão tarde.
Mais uma vez, impressionante. Como Valkyrie sabia sobre o incidente na Itália era um mistério para Alexei. Ele tinha a sensação de que Valkyrie mencionou isso apenas
para mostrar a ele que seu passado não era um segredo.
– Eu não uso armas de fogo – ele respondeu. – Não mais.
– Não desde a morte de sua esposa.
Como?
– Sim.
Uma pausa.
– Claro. Entre em contato comigo quando tiver terminado com Colberg.
– Entrarei.
A conversa acabou.
Apesar de Alexei não carregar uma arma de fogo, ele carregava outra coisa.
Ele colocou o objeto cilíndrico no bolso do peito de seu paletó e partiu para o armazém.
Valkyrie não deveria saber sobre a Tanfoglio ou sobre a morte de Tatiana. Isso mostrava a Alexei que Valkyrie vasculhou seu passado e quando as pessoas bisbilhotam
desse jeito, elas inevitavelmente deixam evidências de sua presença.
Saindo pela porta, Alexei fez uma ligação para um de seus contatos no GRU, o diretório de inteligência militar da Rússia, para ver se ele conseguiria descobrir quem
estaria usando o codinome de Valkyrie.
Com vista no trabalho que Alexei precisava fazer no armazém, o tempo de voo até a Virgínia e a diferença de fuso horário, ele previu que o contra--almirante estaria
sentando-se para tomar café quando ele chegasse.
Esperançosamente, Colberg cooperaria e Alexei não teria que fazer uso do objeto que agora carregava em seu bolso.

 

 

 


1. Refere-se ao personagem das histórias do Lone Ranger, ou Cavaleiro Solitário, um índio americano parceiro fiel do personagem principal. (N.T.)
2. Aeroporto em Chicago. (N.T.)
3. Uma instalação de pesquisa usada para estudar os diversos efeitos da decomposição humana, normalmente encontrada em institutos de treinamento policial como o
FBI. (N.T.)
4. Violent Criminal Apprehension Program, ou Programa de Apreensão de Crimes Violentos. Unidade do FBI responsável pela análise de crimes violentos ou sexuais. (N.T.)
5. Os Army Rangers são um grupo de elite do exército americano. (N.T.)

 

 

                                                   Steven James         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

                                                  

O melhor da literatura para todos os gostos e idades