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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CHOQUE / Scott Nicholson
O CHOQUE / Scott Nicholson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Havia três deles.
Ela deixara de chamá-los de “eles” havia uma semana. Até então, era uma distração bem divertida — e só Deus sabia o quanto ela precisava se distrair —, mas eles começaram se misturar: as velhas desbocadas, os recrutas e os gargantas-secas.
Entretanto, Rachel Wheeler não conseguia resistir à tentação de olhar pela janela encardida enquanto esperava, agachada em meio à mixórdia de talco e celofane.

Cotoco.
O da direita, sentado no banco da calçada e cercado por uma montanha de sacolas plásticas protuberantes, não tinha o antebraço esquerdo. O ferimento estava enfaixado com uma toalha imunda presa com fita isolante e manchada de marrom escuro na extremidade rombuda.
O Cotoco esperava um ônibus que nunca chegaria. Rachel não sabia dizer se ele era um sequelado. Provavelmente era mais um sem-teto esquizofrênico, um dos desclassificados que nem notaram que o mundo acabara. Embora macilento, ele não parecia estar motivado a matar — estava, sim, obcecado em matar as moscas que pousavam em seu cotoco de braço.
Ele estava a uns quinze metros e ela poderia facilmente fugir dele — bastaria correr como se sua vida dependesse disso. E não seria lá um grande desafio, já que sua vida dependera disso por dias.
Na rua, a cem metros à frente, o Barbinha capengava de um lado para o outro e muito provavelmente era um sequelado. Sua expressão se ocultava por detrás dos cabelos desgrenhados, mas ele estava arqueado e os punhos estavam cerrados — a raiva parecia se contorcer em torno de alguma estranha energia que o consumia.
Tá bem, Barbinha, você solucionou meu dilema sobre a direção a tomar.
Ela queria chegar às montanhas que ficavam a noroeste, mas não queria arriscar passar pelo Barbinha.
A palavra “destino” parecia estranha em seus pensamentos. Essas abstrações eram risíveis no momento, mas o riso era a única arma contra o medo que minava-lhe a força das pernas — e ela precisaria das pernas.

 

 

 

 

 


Deus, eu Vos peço: que minhas mãos virem cotocos, mas não deixeis que nada aconteça às minhas pernas.

Nesse mundo assustador, nesse Depois, era preciso correr arrastando a culpa, o medo e o peso tenebroso do Antes.

Mesmo que ela quisesse ir para o sul, onde nem a esperança tinha chance, o Correntão tinha outras ideias. Ele estava se movendo em meio à fumaça, entre um sedã Volvo enviesado no cruzamento e um carro de polícia abandonado, com as portas abertas como asas de um pássaro espástico que, ao pousar, empoleirou-se com as duas rodas no meio-fio.

O Correntão carregava uma mochila e vestia uma jaqueta de couro rasgada em pleno verão de agosto, que, em Charlotte, sufoca a garganta e faz suar em bicas. Ele era claramente um dos lunáticos mais funcionais. A corrente em sua mão direita se arrastava no asfalto atrás dele; o tênue cling era a única trilha sonora da cena que outrora compunha o tráfego em horário de pico.

Ela se esgueirou pela janela da drogaria, apertando contra si a mochila. A carga estava protuberante e ela precisaria dos alimentos secos que conseguiu pegar, mas itens supérfluos poderiam ser considerados luxos que a deixariam lenta e suscetível até mesmo à morte.

É isso mesmo? Papel higiênico e absorventes, Ray-Ray? Por que não um creme para hemorroida e Viagra já que você está numa drogaria? Esses preços estão insuperáveis, é melhor estocar.

Ela ponderou se deveria esperar para ver se o Barbinha e o Correntão ainda estavam por lá. Enquanto eles estivessem ocupados, talvez ela conseguisse escapar e entrar numa transversal. Era provável que houvesse um ou dois sequelados à espreita, mas ela não queria ficar lá até anoitecer. A porta dianteira da loja foi arrombada e outros necrófagos devem ter aparecido para essa liquidação imbatível de fim de estoque.

Ainda havia sol, que mal se via através da fumaça que se encaracolava dos prédios altos do centro da cidade. Ela achou que houvesse uma fogueira no estádio de futebol — o vento levava o fedor de carne carbonizada.

O Correntão enrolou sua arma em torno do antebraço até ficar com uma ponta de pouco mais de um metro. Ele a balançava de um lado para o outro, aumentando o impulso até conseguir rodar a corrente em círculos sobre a cabeça. Ele ainda estava a quarenta metros do Barbinha, que ainda cambaleava de lá para cá, claramente inconsciente da tempestade vindoura.

Enquanto a corrente zunia como uma pá de helicóptero, um cão saltou rosnando e latindo de trás do carro de polícia. Era um pastor-alemão — magro, escuro, faminto. O cão foi direto para o Correntão evidentemente movido pelo cheiro de algo que não gostava. O animal, porém, deve ter sentido o percurso da corrente, pois parou e se abaixou, dobrando as patas da frente, como se estivesse posicionado para atacar.

Pega ele!, torcia Rachel em silêncio, supondo que a distração lhe daria uma brecha. Ela apertou as tiras da mochila, testando o peso e calculando o quanto ele afetaria sua velocidade.

Os beiços do cão se contraíam enquanto ele rosnava. A expressão facial do Correntão não mudou. Ele girou a corrente com mais rapidez, quase provocando o cão que o ameaçava. O pastor-alemão deu um pulo para frente e mordeu, mas o Correntão continuava andando a passos largos. O cão, que provavelmente não gostava de ser desafiado, se atirou nos tornozelos do Correntão.

A corrente saiu de sua órbita e desceu com uma velocidade estonteante, golpeando tão subitamente que Rachel até duvidou de seus olhos. Ouviu-se uma pancada de metal contra carne — a corrente açoitou o cão nos quadris. Ele emitiu um ganido agudo de dor e caiu. O Correntão não mudou a expressão vazia e mecânica enquanto preparava a corrente para mais um ataque. O segundo golpe acertou a perna do cão, que se afastou arrastando-se como uma aranha quebrada.

Com o ataque repugnante, Rachel se lembrou de que eles não estavam de brincadeira. Era cão comendo cão. E eles decididamente não estavam brincando. Se fosse para acontecer alguma coisa, melhor que o Correntão comesse o cão e não a ela.

Se o Correntão olhasse para a esquerda, ele a teria visto de relance escondida atrás dos estilhaços do vidro da porta da loja. A curiosidade dela superava ligeiramente o medo; qualquer informação, por mínima que fosse, poderia ser a diferença entre sobreviver e o oposto disso. Ela não sabia ao certo o que era o “oposto”, mas sabia que era pior que a morte.

O Correntão manteve o ritmo, mas desacelerou a corrente acima da cabeça. O Cotoco não se moveu do banco e o Barbinha ainda parecia concentrado em alguma rachadura do asfalto que lhe consumiu toda a atenção durante os últimos sessenta segundos.

Ou Jesus. Jesus na mancha de óleo, o guerreiro do arco-íris, a luz da sabedoria.

Rachel mordeu os lábios para não rir. Não perca o juízo. Só gente doida perde o juízo e a gente sabe o que acontece com gente doida.

Algo se precipitou de alguma prateleira atrás dela, perto do balcão da farmácia.

Ela não verificara os corredores depois de ver o cadáver de uma criança, embora o lugar parecesse morto ao chegar. Só que “morto” passou a ter outro significado.

Ela se retesou, mas não se mexeu — o Correntão era uma ameaça real que superava em peso a ameaça imaginária de um pote caindo no carpete. A sutileza não era o forte dos sequelados, portanto era mínima a chance de um deles se rastejar até ela. Não: um sequelado rolaria para frente como uma máquina infernal, movida pelas desconexões e pelos chiados no cérebro.

O Correntão estava indo na direção do Barbinha, então ela se esgueirou para a esquerda alguns centímetros para ficar atrás de uma estante de cartões comemorativos. Uma mão se esticou para fora da porta ao lado do balcão com os dedos tremelicantes.

Pode ser um sequelado nos últimos instantes de sua combustão interna.

A mão se curvou uma vez, duas, e então ela reconheceu o movimento: era um gesto, um sinal. Um sequelado não acenaria: ele se atiraria, e não atrairia um espectador com um aceno.

Tinha alguém — um humano — caído. E aí vinha a prova de fogo do Depois: os antigos códigos ainda vigoravam? Ela ainda teria de amar o próximo? Ela ainda teria de tratar a todos como filhos de Deus?

Talvez Deus não fosse perceber dessa vez. Talvez ela pudesse se sentar bem ali, perto da porta, e sair correndo e rezando afobadamente.

Melhor pedir perdão que pedir permissão, não é?

Entretanto, perdão provavelmente não era algo que se pedisse a Deus. Não naqueles tempos de Depois. Rachel tentou olhar para longe — ela olhou —, mas a mão fez outro gesto. Era frágil, de dedos finos e nodosos. A mão não era do tipo que enforcaria, que arrastaria alguém aos gritos para a escuridão.

Do lado de fora, a corrente retinia contra o asfalto enquanto o Correntão se exercitava e se preparava.

A mão fez um último gesto, dessa vez com o indicador fazendo chega mais, chega mais, com uma intensidade que só o silêncio conseguiria projetar.

Mesmo assim, ela resistiu ao impulso de ajudar, mesmo com a crença de ajudar-o-próximo martelando dentro dela desde a infância, sentada ao lado da mãe moribunda de câncer numa cama, participando dos Ajudantes Felizes da Irmandade de Wellspring e assistindo a aulas de aconselhamento no campus da universidade da cidade. A pequena Ray-ray sempre se adequou à regra de ouro de levar a vida servindo abnegadamente. Mas isso, era Antes.

Ela, no entanto, tomou outro rumo.

Ela nem tinha mais certeza do que era um rumo — os caminhos de repente se convergiram todos para um território escuro sem direções.

Rachel desviou o olhar da mão para a porta. Provavelmente teria de passar uns vinte metros da calçada antes que o Correntão mudasse a atenção do que quer que fosse para ela, e talvez tivesse ainda que dar um pulo para longe dele. As pernas dela eram jovens, flexíveis e fortes, torneadas por um vício em pedalar. Ela conseguiria escapar dele.

Provavelmente.

— Hãhhh...

Ouvia-se um ofego vindo de trás do balcão. Ela contraiu o pescoço e a mão se tornou um punho, como se tentasse conter as últimas reservas de energia. Ela ouviu de novo um sussurro, fraco e abatido.

— Hãhhh... ajuda...

Ah, Deus, seu desgraçado.

Ela conferiu o Correntão e ele ainda se aproximava do Barbinha, que oscilava em círculos obsessivos. O Cotoco estava sentando no banco como se esperasse para dar milho aos pombos. Era só mais um dia agitado no centro de Charlotte.

Mais um dia de Depois.

— Ajuda. — A voz do dono da mão ganhava volume e ela respondeu sussurrando um “shhhh” enquanto se rastejava para baixo do balcão. A pior coisa que poderia acontecer seria um sequelado aparecer — ele ficaria muito irritado de não ter sido convidado para a festa.

Havia muito tempo — dias, que pareciam anos — que ela decidira rezar mesquinhamente por sobrevivência e liberdade, mas o certo era rezar para ter força o bastante para ajudar o próximo. Ela também prometera sobreviver por causa de Chelsea, para viver todos os anos tirados de sua irmãzinha — tirados por Rachel.

Ela não podia pensar naquilo, senão ficaria paralisada, submetida ao destino. Mereceria a morte. Mereceria porque cada respiração era um ato mesquinho num mundo em que ela destruíra algo belo.

Enquanto Rachel se aproximava, um fedor rançoso e azedo a surpreendeu. Ela se acostumara com o cheiro dos cadáveres, com a doce e pesada fecundidade — no Depois, a podridão se infiltrava tanto que só um odor realmente pungente teria a chance de tangê-lo. Aquilo que estava atrás do balcão tinha conseguido esse feito.

O braço puxava a si mesmo pela abertura e ela rastejava rápido, esfolando os joelhos mesmo que protegidos pela calça jeans que vestia. A mochila dela estava desequilibrada, pendendo sobre o quadril direito, e ela teria de vencer uma corrida de obstáculos de animais empalhados, potes de suplemento nutricional, frascos de sucos e outros artefatos de uma cultura perdida.

Estava mais escuro ali, mas a ausência da luz do sol não era tanta que a fizesse usar a lanterna. Ela não tinha certeza se queria olhar claramente: o cheiro acre sugeria que algo fora virado do avesso.

— Ajuda — murmurou novamente a voz. Rachel respondeu: — Tá bem.

Deus, estou confiando em você, hein! Se estiver me levando pra uma morte horrível e dolorosa, juro que nunca mais falo com você.

Ela chegou ao balcão e sentiu que estava bem escondida para se levantar agachada e se esgueirar pelos últimos dez metros em torno dele. O homem estava curvado em posição fetal e vestia um jaleco branco, sugerindo que talvez fosse o farmacêutico que trabalhava no lugar — quando o trabalho ainda significava alguma coisa e era trocado por um contracheque. Ele parecia um Gandhi de pele clara; era careca, de idade, e usava óculos redondos com armação metálica. O cheiro vinha de uma poça de vômito e as moscas já tinham migrado do cadáver da criança para provar esse novo sabor.

— Você é... um de nós — disse ele.

— Sim — concordou ela, querendo invocar aquela confiança e aquele cuidado expostos naquele livro-texto de aconselhamento. — Você está ferido?

Ele respondeu com um sorriso dolorido e uma mancha de vômito apareceu no canto da boca. — Tá doendo, mas tá tudo bem, obrigado.

— Deixe-me ajudar.

Ela chegou até o pescoço dele para aferir-lhe o pulso, mas ele balançou a cabeça. — Não, não me salve. Por tudo... que é mais sagrado... deixe-me morrer.

Ótimo. Ele quer que eu banque o Dr. Kevorkian. Que pena.

Ela tocou-lhe o pescoço e ele não resistiu. Sua carótida tinha uma pulsação fraca. Era surpreendente que ele ainda conseguisse falar.

— Não me salve — disse com o rosto contorcido numa emoção entre a raiva e a rebeldia.

— Então por que me pediu ajuda?

Ele rolou os olhos em direção à outra mão, a que estava fechada em punho. — Eu não estava pedindo ajuda: estava oferecendo.

Ela se espantou com a resposta. Ele não parecia estar em posição de ajudar nada nem ninguém além dos vermes. A respiração dele ficou mais rasa.

— Tem quantos lá fora? — perguntou ele.

— Dois ou três — respondeu ela. — Tenho dúvida quanto a um deles.

Ele abriu a mão, que continha um frasco laranja de medicamento controlado. — Pentobarbital — disse ele. — O jeito mais fácil de escapar.

Então era ele que estava bancando o Dr. Kevorkian. Ela já vira pentobarbital na seção de animais, onde era usado para dar fim ao sofrimento de animais doentes. Ele deixou o frasco rolar da mão e, com uma leve cutucada, empurrou-o na direção dela.

— Com antiemético —, completou.

— Hein? Que qu’é isso?

— É pra não vomitar antes de fazer efeito. — As palavras dele eram indistintas. — Agora é hora de levar a sério... daquele conselho dos médicos, né? “Cura-te a ti mesmo”...

Ela ficou pensando quantos daqueles ele tinha engolido. Se ele era bom farmacêutico, provavelmente mais que o suficiente — e ele parecia ser experiente. Numa questão dessa magnitude, ele certamente não teria dúvidas quanto às dosagens.

— Não estou pronta pra morrer — confessou ela.

— Nenhum de nós estava — resfolegou ele. Suas pálpebras tremeram.

Ela verificou o pulso dele de novo e mal conseguia detectar o sangue fazendo os últimos lentos circuitos pelo sistema circulatório. A qualquer segundo, ele ficaria inconsciente e o cérebro começaria o lento processo do apagar das luzes no fim da festa.

— Você... quer que eu ore com você? — perguntou ela. Ela não queria perguntar se ele estava salvo para não parecer que o julgava no mais pessoal de todos os momentos.

— Eu estou bem — respondeu. Ele empurrou o frasco na direção dela. — Tome. É meu último pedido.

Ele usava uma aliança e ela ficou curiosa para saber da esposa. Será que ele a “ajudara” a fugir do Depois? Ele a guiara até a próxima incerteza imponderável? Talvez ele a tenha enganado colocando os comprimidos moídos num copo de chá gelado.

Pegue. Deixe-o morrer sentindo-se útil.

— Obrigada. — Ela pegou o frasco; ele sorriu e fechou os olhos. Ela enfiou o frasco num bolso lateral da mochila. Um assovio úmido soou da garganta dele e nada mais se ouviu.

Lá fora, na rua, o Correntão grunhia de forma inumana, indicando que ele estava prestes a satisfazer sua prioridade número um, a atingir sua meta, como todos os seres sob o mais sublime paraíso divino — até mesmo os sequelados.

Ela ficou lá sentada com o farmacêutico suicida mais um minuto até que o pulso dele cessasse e, em seguida, se arrastou de volta para a frente da loja.


CAPÍTULO 2

Sempre subestimaram Marvin, o Marciano.

Campbell Grimes sempre admirou o pequeno alienígena sem rosto da Looney Tunes. Todo mundo adorava o Pernalonga. O coelho era pau para toda obra, mas, como o Piu-Piu, o Frajola e o Gaguinho, Pernalonga não dava conta. Willy Coiote era admirável pela persistência e pelas inovações, mas o pescoçudo Papa-Léguas sempre virava o jogo.

Campbell desprezava o Papa-Léguas porque, para ele, o pássaro do desenho parecia Sonny Stanton, o louvável mestre da irmandade Alfa Tau Ômega na época da universidade. Stanton tinha o péssimo hábito de se esgueirar atrás das pessoas e fazer sua versão anasalada do “bip bip” do Papa-Léguas. O que Campbell não daria por um Exterminador de Babacas da Acme — marca registrada?

Enquanto Willy Coiote era um reles escravo de sua fome, Marvin tinha uma percepção mais refinada da ordem universal. Para a criaturinha formicular com o elmo romano de escovinha em cima, a destruição era uma mera opção estética.

Olhando a extensão morta da interestadual e os veículos silentes que se espalhavam ao longo dela como brinquedos abandonados, Campbell percebeu que era uma boa hora para citar um dos bordões de Marvin:

— Cadê o cabum? — proferiu em voz anasalada de desenho animado.

— O quê? — perguntou Pete, quase não escutando.

— Eu esperava mais de um cabum.

— Um asteroide apocalíptico teria rendido mais bilheteria. O mundo termina sem um barulho, só com a choradeira, né?

— Você é um literato. Pelo jeito não tem muito a acrescentar quanto a esse lance de sobrevivência, não é?

Tomou uma talagada de cerveja quente e tirou do rosto uns cachos do cabelo escuro. — Olha, estou aqui, mas um monte de gente não está. Isso já me garante uma boa pontuação.

— Bom, — observou Campbell — você provavelmente estava usando aquele capacete de zinco na hora do clarão.

Pete deu um outro trago e arremessou a lata no meio do gramado, onde quicou e parou num mar de roupas espalhadas. — Não sou eu quem fica citando Marvin, o Marciano.

— Touché.

Campbell deu um chutinho no descanso da bicicleta e bateu a poeira das luvas na jaqueta de couro. Eles andaram saqueando uma loja de bicicletas: Pete pegou uma bicicleta fora-de-estrada com pneu balão e Campbell escolheu um modelo utilitário com uma cesta de arame, que tinha até uma plaquinha de “Made in America” pregada na cesta. Pete o alfinetara chamando-o de “Sem Intestino”, mas Campbell tinha uma cesta cheia de comida e equipamentos, enquanto Pete estava agarrado ao que quer que tenha cabido em sua mochila.

Naquele momento, a maior parte era cerveja.

O corpo de Campbell formigava com a vibração da bicicleta. Eles percorreram trinta quilômetros nas últimas três horas, meio atrasados pelos grumos do tráfego, que os obrigavam a sair da estrada. Eles passaram a noite num furgão abandonado de um acampamento e tiveram medo de fazer fogo. Era o sexto dia deles longe de Chapel Hill, uma semana desde que tudo parara, e nada lhes deu nenhuma dica que os fizesse compreender que diabos estava acontecendo.

Nenhum sinal de vida inteligente — Campbell pensou com a voz do Marvin, o Marciano — o que não é necessariamente ruim. Não mesmo.

— Quer vasculhar algum desses carros? — perguntou Pete, pontuando a pergunta com um arrotão.

— Minha cesta está cheia.

— De repente tem algo novo. Uma pistola, carne seca, mais cerveja...

— Já tenho uma arma.

Pete apontou para o pistola presa no cinto de Campbell. — Quer tentar achar algo melhor?

— Não preciso. — Campbell tinha uma 38 porque gostava de ver o tambor. Ele achou que seria mais fácil ver quantas balas ainda restam caso chegue realmente a usar a arma. Pete adotou uma Glock e parecia estar muito satisfeito com o claque feito pelo retorno do carregador. As armas foram cortesia de uma loja de rua que tinha sido saqueada, mas parece que a contagem de sobreviventes era tão baixa que o suprimento excedia a demanda.

— E se tiver alguém vivo nos carros? — perguntou Pete.

— É improvável. — Perturbado pela ideia, Campbell olhou mais atentamente para a interestadual.

— Podia ser alguém como nós, um dos sortudos.

— Nada a ver nos chamar de “sortudos”.

— Talvez tivesse sido melhor ficar na universidade. Se alguém descobrir o que aconteceu, seria ótimo para a nossa equipe de pesquisadores.

— E daí se descobrirem? — Campbell ficou aborrecido, quase irado, e ele não gostava disso. Como essa provavelmente era a causa para o que aconteceu com “eles”: os fios derreteram e deu pane nos circuitos do cérebro. Foi quando “eles” se tornaram “eles”.

— Talvez eles descobrissem uma vacina, sei lá.

— Tá achando que é tipo uma gonorreia, Pete? Como fazer os loucos cooperarem? Explodindo-os com seu modulador explosivo espacial?

— Caraca, qual é o tamanho da cobra que entrou na sua bunda?

— Desculpa. — Campbell golpeou o topo do capacete suado entre as pernas. — O fim do mundo... Achei que eu ia dar conta.

Pete avançou de bicicleta alguns centímetros. — Na teoria é sempre mais fácil. Vamos dar uma chance pra aquele caminhão de salgadinho.

O caminhão de petiscos industrializados estava no acostamento, paralelo à estrada, como se o motorista tivesse sido preparado para a súbita perda de energia. Era um modelo antigo e Campbell desconfiou que tivesse direção manual. Os veículos modernos, que dependem de computadores, ficaram trancados ou deram tilte. Hondas, Kias e Fords estavam batidos ou oblíquos em relação à mediana. Um jipão de luxo estava de cabeça para baixo no fundo do aterro com as portas abertas. Uma motocicleta torcida estatelou-se na defesa metálica e o motociclista era uma massa podre de carne embutida em couro a uns seis metros dali.

— Não sei — disse Campbell, sentindo-se exposto e vulnerável, sentimentos causados talvez pela vista perturbadora de uma dúzia de cadáveres.

— Titica.

— A gente tem comida. Talvez fosse melhor só continuar pedalando.

— Ainda está preocupado de encontrarmos bandos errantes de sequelados? Não vamos brigar por isso. Tem muito por aí para todo mundo.

Pete estava deixando a cerveja falar por ele. Ele já tinha tomado meio fardo até então e o calor do outono não era o bastante para fazê-lo suar todo o álcool tão rapidamente. Campbell entendeu o escapismo do amigo, mas pessoalmente preferia o assunto “sobrevivência”.

— Esses biscoitos estão cheios de conservantes — observou. — Eles ainda estarão aqui depois que a gente morrer.

— Rá rá rá. — Campbell fez uma chiste. Pete enfiou a mão num bolso lateral da mochila e pegou um maço de cigarros. — O Ministério da Saúde adverte: o fim do mundo é prejudicial à saúde.

— Não me faça usar o modulador espacial em você.

Pete acendeu um cigarro e vasculhou os veículos vizinhos. Ele exalou uma espiral ascendente de fumaça e desmontou. Em seguida, empurrou a bicicleta por um esportivo preto com uma placa personalizada: “SKIN-DR”.

— Riquinho — disse Pete.

Campbell teve uma sensação ruim acerca do carro, talvez porque a janela parecia embaçada apesar do ar seco. — Sai daí.

— Tá com medo de quê?

Medo.

Essa foi boa. Num momento, ele estava jogando Halo 2 no Xbox; um minuto depois, ele estava sentado no apartamento escuro, duvidando que o outro cara da república tivesse pagado a conta de luz. Ele até bateu na porta do quarto do Tommy, que se abriu totalmente e revelou o colega espalhado na cama com os olhos apáticos fixos em direção ao teto. Campbell não ousara tocá-lo porque parecia haver algo de errado com ele; pegou o celular para discar o número da emergência, mas o aparelho estava tão morto quanto Tommy.

Em seguida, ele saiu e percebeu que Tommy não era o único...

— Saca só, cara — chamou Campbell em seu código mínimo de atenção, um lembrete de que toda decisão tinha suas consequências. Se não fosse nada demais, seria uma escárnio idiota da noção de controle.

Pete inclinou a bicicleta contra a traseira do Lexus e foi até a porta do motorista. Conferiu pela última vez, provavelmente devido à força resistente das morais do Velho Mundo, e escancarou a porta. Ele imediatamente cobriu a boca com a mão sem largar o cigarro entre os dedos.

— Eca! — exclamou com a voz abafada. — Tem um madurinho.

Campbell não se incomodava em olhar. Ele estava ocupado vasculhando o banco de trás, que estava vazio. — O que você esperava?

— Esperava Angelina Jolie num tubinho preto transparente.

— Safado.

— Viva, é claro. Não estou tão desesperado... ainda.

— Você podia ter pegado aquela gordinha lá no acampamento.

— A Cigana Rosa? Um dia desses vou acabar levando um cadáver. — Pete desceu pela lateral no lugar do motorista e puxou uma alavanca. O porta-malas se abriu.

Campbell não conhecia ninguém rico o bastante para comprar um Lexus, por isso ficou curioso para ver o que podia haver no porta-malas. Desde que o Grande Clarão pegou as pessoas com as calças arriadas — às vezes literalmente —, era possível ver um instantâneo da civilização humana no começo do séc. XXI. Um antropólogo cultural poderia ter registrado uma ampla adoração por eletrônicos de plástico e motores a gasolina, mas Marvin, o Marciano, teria resumido assim: “Bem, de volta à velha prancheta de desenho”.

O porta-malas do Lexus estava limpo, acarpetado e vazio, exceto por uma maleta de couro com uma fechadura de combinação. Campbell deu algumas voltas no mostrador serrilhado, mas o fecho não se mexeu. Ele ia fechar o porta-malas, mas percebeu que não havia motivo para tal e ouviu um chapinhar molhado no interior do carro.

Ele torceu para que Pete não estivesse fazendo nada nojento. Seu amigo passara por uma breve fase de profanação no terceiro dia, colocando os cadáveres em poses jocosas. Num desses momentos, ele desenhou um bigode e um cavanhaque numa velhinha que caíra com a coleira do poodle morto ainda presa em torno do frágil pulso.

— Lembrança do fim do mundo — disse Pete, surrupiando uma bolsa.

— Uma coisa. Combina com seu conjuntinho “féxion”. — Na verdade, o vinil brilhante verde-limão contrastava horrivelmente com a camisa xadrez de flanela e com o imundo moletom vermelho.

Pete vasculhou a bolsa e tirou de lá um conjunto de maquiagem. — Acho que vou esfregar esse troço no rosto e ficar parecido com um deles.

— Eles se parecem conosco.

— Não, não parecem. O redor dos olhos é mais vermelho e a pele, mais pálida.

— Que racista, cara.

Pete largou a maquiagem no chão e continuou a saquear. Apareceu então com uma carteira, um iPod, um conjunto de chaves e um pacote plástico de lenços de papel. Em vão, tocou na negra tela de acrílico do iPod. — Morto, como o resto.

— Que bom. Acho que eu não aguentaria sua maratona de Lady Gaga.

Pete tacou o iPod na estrada, que foi escorregando até parar do lado de um SUV azul. — O que tem nessa maleta?

Campbell a pesou com a mão. — Pesada. Parece papel.

— Ou cocaína?

— Ah, tá. Você só quer saber de ficar doidão.

Pete fez um gesto mostrando os arredores. — Tem programa melhor? Além do mais, acho que os sequelados meio que diminuíram o rigor da moral.

— Não tô nem aí pra cocaína, mas você atiçou minha curiosidade. — Uns trinta metros à frente, um furgão de consertos hidráulicos se enroscou num sedã compacto num abraço lascivo de aço e plástico. Campbell via o motorista do sedã debruçado no volante com manchinhas de sangue seco estampadas no para-brisa. O furgão não tinha janelas na traseira, mas Campbell tinha certeza de que encontraria lá todo tipo de ferramenta, provavelmente misturadas e espalhadas pela colisão.

Bastaria enfrentar a morrinha dos cadáveres por um momento, o que ficava mais fácil com o passar dos dias. O fedor era tipo uma segunda pele, algo a ser vestido em vez de inalado. Carrboro estivera pior, assim que o Clarão aconteceu, mas, mesmo fora da cidade, a morte enviara seu doce almíscar para os céus como se marcasse o território que agora dominava. Na falta de governo, lei e civilização, a morte era a única ordem restante.

Pete o seguiu até o furgão ainda mexendo nas coisas da bolsa, nomeando-as enquanto as tirava de lá: — Grampo de cabelo... lixa de unha... carteira com...

Campbell olhou para trás e viu Pete parado no meio do asfalto brilhante, olhando para a bolsa de vinil na mão dele. O súbito silêncio do amigo foi amplificado pela devastação em volta deles.

— Fotos de família, cara — sussurrou Pete.

Campbell não pensara na família o dia todo. O pai Brian, consultor financeiro, um cara que gostava de jogar uma bola e beber uma cerveja, um sólido republicano que votaria nos liberais se estivesse louco no mercado de ações. A mãe Mary, como a maior parte das Marias do mundo: bonita, agradável, católica praticante que fez viagens missionárias por oito países. O irmão caçula Ted, ou Dedo-de-merda, como Campbell gostava de chamá-lo antes de dar aquela espichada e ficar grande o suficiente para bater nele.

A família Grimes morava no lago Janes, nos contrafortes da Carolina do Norte; a casa era um chalé de trezentos metros quadrados com um cais para lanchas — típico dos que frequentavam o círculo de amizades do pai. Campbell tentou visualizar os três lá no lago: o pai, bronzeado, no leme usando viseira e óculos escuros; a mãe empoleirada perto do motor e de olho no Ted, arrastado pela lancha, cortando com os esquis a água marrom-esverdeada.

Mas era outra imagem — deles inchados e apodrecendo em frente à TV de tela panorâmica, com saraivadas de moscas nos olhos — que queimava dentro dele.

— Vamos chegar lá, Pete — disse Campbell com uma convicção que fingia ter.

Pete folheou o álbum de fotos. — Tá, e daí? Você não acha que a família dela está lá com o jantar na mesa, esperando a mamãe ou a maninha entrar pela porta e reclamar do trânsito?

A bebida em Pete o deixava lento e também aumentava o perigo de andar de bicicleta em estradas obstruídas, além de deixá-lo propenso a choradeiras. Campbell não queria ninguém chorando naquela hora. O mundo já tinha se jogado na maior Festa da Miséria de todos os tempos e a pastinha de mariscos decididamente caiu muito mal.

— Vamos só ver isso aqui e ir embora — disse Campbell olhando o horizonte fumacento. — Precisamos achar um lugar pra ficar antes de escurecer.

Campbell torceu para que a porta de trás do furgão estivesse destrancada. Ele não queria abrir a cabine. Pete largou a bolsa e disse: — Ei, você não quer...

... ir lá ver?

Mas ele já estava abrindo a porta e Marvin, o Marciano, estava muito furioso porque um borrão causado por um movimento desajeitado explodiu das sombras.

O impacto atordoou Campbell e todo o ar que estava nos pulmões saiu de uma vez quando caiu chapado no asfalto. A criatura rastejante diante dele cheirava a ozônio, como num curto-circuito, temperado com suor azedo, urina e um aroma primevo que, apesar de não ter nome, é conhecido por presas de todas as espécies.

Ele mal conseguiu ouvir Pete gritar alguma coisa lá longe e as longas cordas de cabelo da criatura chicotearam-lhe o rosco, cegando-o enquanto tentava rolar. Um jorro de agonia atingiu-lhe o ombro e ele deu um pulo. A criatura parecia ter oito braços e todos eles buscavam um pedaço de carne.

Campbell deu um soco para cima e acertou algo macio. Ele achou que viu a mão desaparecer na cara da criatura, como se fosse a abertura preta e vazia no elmo de Marvin, o Marciano. Depois choveu, e a chuva era quente e pesada e um cranc abafado se repetiu enquanto alguém batia um tambor encharcado numa floresta distante.

A criatura se precipitou em cima dele e seu peso se moveu para o lado — Pete estava deitado sobre ele com uma enorme chave de boca no punho direito. A cabeça da chave de boca estava suja de cabelo e sangue coagulado.

Finalmente o grito inane de Pete se aglutinou em palavras. — Que merda, cara! Que merda.

Campbell tocou-lhe o ombro no local em que a sequelada expôs sua carne ao ar. Não era uma mordida profunda, mas um fogo elétrico irradiava dela como uma herpes do inferno.

— Ela me mordeu — queixou-se.

Pete deu um chute na sequelada morta. — Vira homem, cara. Foi uma garota que te atacou.

Campbell levantou de quatro e olhou para a criatura que o atacara. Ela era pequena, quase do tamanho da mãe dele, também de cabelo preto. Por um horrível instante, ele pensou que era a mãe dele — o crânio estava tão afundado que as feições dela estavam irreconhecíveis.

No momento em que conseguiu ficar de pé, ainda que cambaleante, Pete puxou uma toalha limpa e um rolo de fita isolante da traseira do furgão. — É impossível sobreviver a um apocalipse sem fita isolante —, declarou Pete enrolando a toalha contra a ferida de Campbell.

Ele pinçou a ponta protuberante da fita com os dentes e puxou do rolo trinta centímetros de fita. Campbell apertava a toalha com a mão, firmando-a enquanto Pete aplicava os adesivos. Havia sangue gotejando na frente da camisa, mas a maior parte do fluxo foi estancado.

— Acha que eu vou virar um? — indagou Campbell.

— Eles não são zumbis — respondeu Pete — embora essa tenha passado um pouco perto da garganta. Eu vou ficar de olho em você. Se eu notar presas saindo da sua boca, vou te enfiar uma estaca no peito.

— Tá legal — disse Campbell, mas a piadinha sem graça não mereceu nem um esboço de sorriso. A ferida latejava, mas Campbell tinha movimento total do braço. Ele deu uma última olhada na mulher, que parecia ter uns quarenta anos. O batom estava borrado na boca, que ostentava uma ponta da pele de Campbell entre os dentes.

Pete lhe deu um último chute e o corpo dela jazia como um saco de lama. — Um já foi, só falta um milhão.

Campbell não gostava de imaginar um milhão de sequelados se arrastando pela face da Terra, escondendo-se em fendas sombrias esperando uma vítima. Por ora, ele não quis pensar em nada, muito menos se sua mãe estaria por aí pulando em sobreviventes.

Pete vasculhou a traseira do furgão e tirou de lá uma grossa chave de fenda. — Você arriscou a vida para descobrir o que está na maleta, então vamos ter que saber.

Ele arrombou a maleta e bateu nela com a chave de boca ensanguentada para dar ênfase. A tampa se abriu e de dentro saíram muitas notas de dinheiro que, soltas, voaram pela estrada. Pareciam ser pilhas de notas de dez e de vinte dólares.

— Aê, estamos ricos — falou Pete, que chutou a maleta e lançou ao vento mais notas de dinheiro.

— Você não precisa poupar para o futuro. — Campbell deu um tapinha no curativo improvisado. — Seu futuro na medicina será brilhante depois que isso acabar.

— Quem disse que haverá um “depois”? — questionou Pete.

Como Campbell não tinha resposta para isso, ele e Pete pegaram a bicicleta e partiram para o oeste.


CAPÍTULO 3

Rachel não queria esperar o pôr do sol.

Embora o risco de exposição fosse maior na luz esvanecente do dia, ela não aguentava a ideia de um dos sequelados agarrando-a no escuro.

Ou então uma multidão deles se amontoando sobre ela durante o sono.

O Correntão estava longe. O Cotoco caíra do banco e Rachel não saberia dizer se ele fora abatido ou não. Ele não se movia e as moscas se enxameavam.

Talvez ele tenha morrido de infecção, de infarto ou de uma pneumonia súbita. Algo sensatamente sem sentido. Por favor, Deus, que alguém aqui morra de causas naturais.

Depois de algum momento, acrescentou: Exceto eu.

O Barbinha não estava à vista e Rachel julgou que o Correntão estava a persegui-lo, pois isso tiraria os dois da situação. Era uma ideia desejável, mas ideias desejáveis não mudaram na última semana, por isso ela sabia que não eram confiáveis.

Não havia ninguém na rua, pelo menos no que se podia ver colocando a cabeça para fora da porta. As sombras dos postes e das latas de lixo jaziam ao longo da calçada, indicando-lhe as direções. Ouvia-se ruído de metal batendo algumas ruas dali, como um corpo caindo do capô de um carro ou de uma bota atingindo uma caçamba de lixo. Ela se perguntou se um dos afetados tinha pegado uma vítima. Sem gritos, no entanto.

Será que os sobreviventes já estavam além do impulso de gritar?

Será que havia mais sobreviventes?

Ela não gostava de pensar que estava sozinha, o último ser humano do universo, e veio-lhe à mente o frasquinho medicinal do farmacêutico. Lembrou-se também da resignação pálida e irônica estampada no rosto moribundo dele. Era uma solução covarde, o caminho da descrença. Se esse momento chegasse, ela acreditava que, antes, Deus lhe daria permissão.

Mas até lá...

Rachel agarrou a mochila e saiu, passando perto das paredes de tijolo, metal e vidro enquanto caminhava para o fim da rua. Ela prestava uma atenção absurda a cada passo para garantir que as solas de borracha do tênis não arrastassem no concreto. Ela não sabia se os sequelados localizavam as vítimas usando sentidos sobrenaturais de visão, olfato ou audição, mas sabia que o apocalipse era um momento perfeito para restringir suas apostas.

Ela morou em Charlotte por dois anos e não teve muito tempo para conhecer a cidade. O mundo dela ficou em grande parte confinado à zona oeste de Charlotte, onde estagiava como conselheira do Departamento de Serviço Social. Rachel conhecia o anel viário e as saídas para os centros comerciais, as bibliotecas e o subúrbio em que visitara o Mint Museum, e pouca coisa além disso. Atrás dela estavam os altos e reluzentes centros financeiros, outrora movimentados de cambistas e corretores de empréstimos, transformados em setenta ou oitenta andares de criptas e mausoléus. O vidro refletia o brilho vermelho do ocaso nas silentes torres de Babel, algumas delas emitindo colunas onduladas de fumaça.

Ela apressou um pouco o passo, mais confiante porque o Correntão aparentemente não a notou. Charlotte termina em algum lugar, onde começa o mato.

Chegando ao fim do quarteirão, ela viu de relance o interior de um dos carros que atravessava o cruzamento no meio do engarrafamento. Da cabeça de uma mulher, um rabo-de-cavalo oscilava sobre o banco. Atrás dela havia um assento de segurança para crianças. O coração de Rachel, já disparado, descompassou e perdeu uma batida.

E se estiver viva?

Mas aí o diabinho no outro ombro sussurrou: “Estaria chorando. Não pare”.

Talvez ela esteja dormindo, ou assustada, ou...

Morta. “Talvez esteja morta e você passe por lá, dê uma olhada pelo vidro e veja um lindo rostinho azul. Aí você vai gritar e o Correntão vai vir correndo com aquele chicote de metal, pronto pra brincar com você até transformar seu cérebro em salsicha.”

Quer calar essa p... dessa boca?

“Eu sou o diabo. Você não manda em mim. Então você está usando palavras de baixo calão, Rachel. Muito bem. Muito bem mesmo.”

Rachel rezou um pouquinho e se forçou a ir em direção ao carro, olhando para a rua só uma vez. Era a prova de fogo: se ela visse o Correntão, era um sinal de que Deus queria que ela corresse; caso contrário, teria o dever moral de salvar o bebê se pudesse.

Quando pegou a maçaneta da porta de trás do carro, ela não teve certeza se tinha sido motivada pela moral ou pela solidão. Com um bebê para cuidar, ela teria um motivo para pensar nos comprimidos de veneno.

Ela, porém, não abriu a porta. O assento de segurança estava vazio com uma mantinha amarela amontoada em torno dele.

Rachel torceu para que o bebê tivesse sido levado pela avó, brincando no colo ou chorando pelo peito da mãe, em algum lugar seguro e distante, longe da carnificina do centro de Charlotte. Ela não deixou espaço para que o Correntão descobrisse a criança, nem para o que aqueles elos de ferro pudessem fazer na pele macia. Não, essas coisas não aconteciam sob o paraíso divino.

Aliás, se acontecessem, ela não precisava saber. Ela não queria saber delas.

O sol baixava, as sombras se espalhavam e os ruídos distantes ficavam mais cacofônicos, avolumando-se como tambores tribais — de uma tribo enlouquecida por um enorme clarão celestial.

Ela se apressou na direção oeste. O anel viário estava a três quilômetros dali e, além dele, um pinhal que entremeava pequenas comunidades satélites. Por algum motivo, a mata era uma opção mais atraente que o labirinto de becos, prédios e veículos de onde um sequelado podia saltar a qualquer momento. No pinhal, pelo menos a caçada e a fuga pareceriam mais naturais.

Dois cadáveres estavam bem à frente, com um aspecto inchado, sugerindo que estavam lá desde o clarão; ela deu uma guinada para andar mais perto da parede, preferindo um caminho escondido à passagem mais fácil, mas mais exposta à rua. Um carrinho de compras bloqueava o caminho. Dentro dele, quatro sacolas cheias, um par de sapatos de couro rachados no compartimento inferior e, no assento para crianças, um rádio-toca-fitas. Era a vida portátil de um sem-teto, um legado sobre rodinhas tortas.

Levantou a mão tentando evitar o cheiro dos cadáveres, mas não levou a palma ao nariz.

Em vez disso, uma argola de aço abrasadora se fechou em torno de seu antebraço.

Estupefata, ela foi empurrada para uma abertura embolorada na fachada. Ela estivera tão empenhada em ignorar os cadáveres que nem notou o beco estreito.

Agora você vai pagar, Rachel. Agora você vai jogar o jogo do diabo e dançar com uma criatura do inferno.

O pior de tudo era que ela não podia nem gritar. Seu tórax comprimia os pulmões tão firmemente quanto a mão em seu antebraço e mais um puxão dela lhe custaria o restante de seu equilíbrio — em seguida ela estava nos braços da coisa, debatendo-se, chutando, talvez até cuspindo, quando ouviu um grunhido de dor.

— Minha nossa, vai com calma! — disse a coisa.

Será que os sequelados falavam? Ela ainda não ouvira ninguém falar, o que não significada nada. Talvez a linguagem de grunhidos, rosnados e cacarejos estranhos lhes servira bem até então.

Rachel se afastou, mas algo ainda a agarrava e ela viu sua face escura, um olho brilhante e estatelado na luz difusa e, em seguida, o contraste de seus grandes dentes brancos — ela pensou que talvez conseguisse gritar e então...

— Você não é um deles — concluiu ele — senão teria me mordido.

— Claro que não sou — disse ela. — Qualquer idiota pode ver isso.

— A quem está chamando de idiota? Não era eu andando pela rua em plena luz do dia.

— Você não foi... afetado?

— Afetado? É assim que você chama quando quer estourar o crânio de alguém e fazer misérias com os miolos?

Aquele olho sinistro ainda estava fixo e arregalado no rosto ebâneo, olhando dentro da alma dela como se expusesse todos os segredos sujos que ela já nutrira, cada maldade que já fizera. Em seguida, ela olhou para o outro olho dele, que piscava.

— Você acha que sou uma das aberrações? — questionou ele, enquanto ela notava pela primeira vez que ele segurava uma pistola na mão direita com o tambor inclinado perto do ombro como se estivesse pronto para nivelar e atirar a qualquer momento, em qualquer direção.

— Acho que não, senão eu estaria morta.

— É isso aí, estaria mesmo. Você até já pode estar morta.

De relance, ela olhava veementemente para a rua e o pôr do sol que banhava o calçamento como a superfície de um rio, com os carros como barcos revirados pela tempestade e os corpos e o lixo como restos dos naufrágios rumando para um distante mar cinzento. — Acho que estamos todos mortos — concluiu ela.

— Você não tem arma nenhuma?

Ela percebeu o quanto estava vulnerável, a ele e ao resto do mundo. — Tenho medo de armas.

— Tenho mais medo dessas coisas.

Ela analisou o rosto dele, tentando captar sua expressão, mas o olho de vidro a atrapalhava. Com ele, a expressão era de frieza, que não correspondia ao restante de sua expressão. A boca dizia “malvado”; a testa contraída dizia “preocupado”; as sobrancelhas levantadas diziam “comida fácil”, mas o olho funcional confundia toda a configuração porque era castanho escuro e repleto de humanidade.

Ele deu um sorriso enviesado. — Que foi? Tá achando que eu vou te estuprar?

— Não, achei que...

— Ia te matar pra pegar o que tiver na mochila?

Ela a afrouxou nos ombros um pouco. — Pode ficar com ela.

— Não quero suas tralhas.

— O que você quer? Provar que é durão? Mostrar que é macho? Por que você não me deixou em paz andando pela rua?

Ele desapertou a mão que a agarrava pelo antebraço, mas só um pouco. Estava no ponto antes de infligir dor, mas ainda apertado o bastante para evitar que ela se desvencilhasse. — Eu... só quis ter certeza de que você era real.

— Pode ter certeza, eu sou bem real. Talvez eu seja a única coisa real que restou em Charlotte.

O olho de carne piscou. — Você fala engraçado.

— O quê? Ah, então desculpa se eu sou uma branca de classe média que frequentou a escola.

O olho de carne ficou tão frio quanto o de vidro. — Não me venha com essa babaquice.

— Olha, você tá fazendo aquele que se dá bem, o mano da favela que só traça mina branca. — Ela não sabia xingar e se odiava por ter que dizer coisas nesse tom, mas usava a raiva como desculpa.

Ele a soltou e ela sacudiu o braço para voltar-lhe a circulação. — Vai lá — disse ele, rendido, acenando com a arma em direção à rua. — Nojenta.

— Como é?

— Você prefere ficar lá com os monstros assassinos a ter a companhia de um crioulo — acusou ele.

— Não é...

— É o olho, né?

A acusação inadvertidamente a fez encará-lo. Ela ficara olhando, não conseguia evitar olhar aquele orbe de vidro, era como um ímã. Ela ouvira falar de mau olhado, uma crença em muitas culturas de que um olhar mal-intencionado poderia trazer doenças ou infortúnios. Apesar de sua dificuldade em atribuir tais qualidades a uma prótese inerte, ela parecia irradiar um poder inquietante.

Um sol em miniatura lança seu raio brilhante...

— Não, não é...

— Dê nome aos bois e acabe com isso. Não temos tempo pra joguinhos.

— Eu... — ela olhou para o restante da rua enquanto a risada insana ecoava pelas gargantas de concreto.

— Esses desmiolados desgraçados me dão arrepios — confessou ele com o dedo passando apertadamente pelo gatilho. Ele parecia não se dar conta dele.

— Está escurecendo.

— O que você vai fazer? Tem algum plano?

Ela deu de ombros. — Ir para as montanhas a oeste.

— Isso não é plano, é comercial de cerveja.

— Tem algo melhor em mente?

Ele inclinou a cabeça em direção à rua para o que pareciam ser apartamentos em cima de uma loja de perucas. — Me entocar num lugar trancado durante a noite e depois pensar no assunto. É o que venho fazendo há uma semana.

— Isso não é plano, isso é fazer merda enquanto sobrevive.

Ele sorriu pela primeira vez e seu rosto ficou mais cálido. Até o olho de vidro soltou uma faísca. — Até agora, tudo bem.

— Certo — disse ela. — Tenho um pouco de comida, uma lanterna e outras coisas.

— Você é organizada — observou ele. — Eu finjo bem.

Ela esticou a mão com os dedos ainda formigando enquanto o sangue voltava às extremidades. — Rachel Wheeler — apresentou-se. Percebeu então que usar o sobrenome naquelas circunstâncias era esquisito, parecia que eles eram sócios executivos.

Ele pegou a mão dela, gentilmente dessa vez. — DeVontay. DeVontay Jones.

Ele ficou solene novamente, chegou até a esquina e conferiu a área fora do beco. Ele era alto, com pouco mais de um metro e oitenta, e um pouco desengonçado. À luz do sol, ela viu que ele usava calças e casaco de couro, cobrindo um volume considerável de roupas superpostas.

Parece que ele tem medo de ser mordido. Só que nunca vi os sequelados morderem ninguém.

— Está vendo alguma coisa? — perguntou ela num sussurro.

— Nadica — respondeu ele. Ela não conseguia identificar o sotaque dele, mas não era do Sul. E também não parecia ser do interior. Ele parecia ter uns vinte e cinco anos — deve ter se mudado para Charlotte para trabalhar.

Eles não pareciam ter muito em comum.

Exceto por algo que evitou sermos afetados ou mortos.

É.

Exceto por isso.

A única coisa restante que importava.

Ele movimentou a mão livre. — Tudo limpeza. Rápido.

Em seguida, foram para a rua, expostos ao sol moribundo, à noite réptil e ao que quer que produzisse aquele cacarejo ao longe.


CAPÍTULO 4

— É um fogo — definiu Pete.

Campbell não acreditava. Ele insistia que eram luzes elétricas, talvez até automóveis se deslocando além das árvores escuras tremuladas pelo vento. Em seguida, o vento tênue mudou e trouxe um leve rastro de fumaça acre de madeira.

— Que vamos fazer?

— Entrar.

Pete estava bêbado. Logo depois do encontro muito próximo com a sequelada no furgão de consertos hidráulicos, eles chegaram a um caminhão da Budweiser. Pete encheu a mochila de latas e até improvisou alforjes com uma mochila de ferramentas que pegou do furgão. Ele parava a bicicleta a cada três quilômetros para abrir uma das latas quentes e tomá-la na talagada. O ritmo deles diminuiu consideravelmente quando a noite chegou e Campbell quase entrou de cabeça num trailer tombado porque ele achou que tinha visto alguém se mover dentro de um dos carros inertes.

Pete, porém, não o deixou conferir o tal movimento, e disparou: — Você ainda não aprendeu a lição?

Campbell enterrara então a esperança de que talvez houvesse outros como eles, pessoas normais, sobreviventes que eram movidos por um impulso homicida. Com uma fogueira a cem metros de distância no crepúsculo, eles se depararam com uma decisão e o raciocínio de Pete estava três vezes além do limite permitido.

— E se for um bando de sequelados? — perguntou Campbell.

Pete puxou a argola de uma lata, que borrifou uma parte de seu conteúdo na penumbra. — Aí a gente atira neles.

— Você fala como se achasse legal.

— São uns escrotos tentando nos matar, cara. É a sobrevivência da espécie.

— Acho que eles são da nossa espécie. São humanos.

Pete limpou a espuma da boca com a manga. — Nenhum humano pula no outro e arranca um naco de pele com os dentes, exceto talvez o Mike Tyson ou o Joffrey Dahmer.

O fogo estava na floresta além da estrada queimando num leve aclive. Cem metros antes eles passaram por uma ponte sobre um riacho argênteo, que murmurava e gorgolejava como se tudo no mundo estivesse bem. Os sobreviventes — humanos — provavelmente seguiriam seus instintos evolucionários e acampariam perto d’água.

— Talvez fosse melhor a gente continuar.

— E se for como no último acampamento? — Pete estava começando a gaguejar e suas sibilantes começavam a sair chiadas.

— Eu não confio neles.

— Você só está puto porque não deu um trato na Cigana Rosa.

— Eles estavam falando profecias e um monte de bizarrices.

— Talvez eles soubessem de alguma coisa.

Campbell lamentou não ter pegado um binóculo. A escuridão estava chegando ao auge e eles teriam de tomar uma decisão sobre o lugar para dormir. Geralmente, eles se trancavam num carro vazio para passar a noite, mas Campbell sempre se sentia aprisionado e claustrofóbico, e os roncos de Pete afugentavam qualquer chance de descansar. Numa dessas noites, dormiram em campo aberto, revezando-se para vigiar. Campbell acordou subitamente antes da aurora e encontrou Pete ferrado no sono, deixando-os absurdamente vulneráveis.

Talvez, portanto, a ideia de integrar um grupo valeria o risco relativo.

— Tá bem — assentiu Campbell — Vamos dar uma olhada.

Pete apoiou a bicicleta na mureta e sacou a pistola do bolso do casaco. — Armado e carregado, meu amigo.

Campbell sacou o revólver. Como não tinha trava de segurança, Campbell fizera dois testes de fogo no dia em que o acharam na loja de material esportivo. Na última vez que ele disparou uma arma, tinha 12 anos e o avô o tinha levado para caçar esquilos. A ação dupla requeria uma puxada boa do gatilho, ou seja, seria difícil disparar a arma acidentalmente, por outro lado, ele teria de ter muita certeza se quisesse atirar numa pessoa.

Quer dizer, numa COISA. Esses sequelados não são pessoas.

Ele teve um lampejo da lembrança da criatura que o atacou e sentiu um arrepio pela breve ilusão de que poderia ter sido sua mãe.

— Tá com a lanterna? — perguntou Campbell.

— Só tenho duas mãos. — Ou seja, Pete não largaria a cerveja.

Campbell procurou na cesta de arame até encontrar a lanterna, mas não a ligou. A luz arroxeada do crepúsculo revelou nuvens grandes e espalhadas acima, indicando que a lua não teria grande utilidade. Ele olhou para a estrada em direção ao último cume que alcançaram. Algo se moveu por lá, uma distante figura humana que logo se mesclou às sombras dos veículos parados.

Pete deu um trago na cerveja quente e arrotou. — Tá esperando o quê?

Campbell pulou a defesa e começou a descer o declive até a fogueira. O revólver estava pesado e ele deixou o braço dependurado para que o cano apontasse para o chão. Ele usou a lanterna para equilibrar-se enquanto descia. O declive parou numa vala e ele rasgou a calça cargo nas silvas enquanto titubeava pelo enrocamento de granito.

Acima dele, Pete tropeçou e caiu, xingando antes de se lembrar que devia estar em modo silencioso.

— Tudo bem? — sussurrou Campbell.

— Melhor ser gente nossa, senão vou ficar puto —, respondeu sussurrando.

Campbell ligou a lanterna, cobriu-a com o antebraço e iluminou o caminho para Pete, que chutou, tropeçou e cambaleou morro abaixo. O fedor de suor do Pete sobrepujava o fedor de cerveja.

Lindo. Estamos todos virando animais.

Atravessaram a vala e entraram numa moita de arbustos, espinhos e centeio. Os esquivos bruxuleios do fogo apareciam aqui e ali através das brechas nas árvores e, à medida que a escuridão se firmava, a luz tomava um aspecto alaranjado de uma joia forjada de uma fonte misteriosa.

A mão de Campbell suava em torno da coronha do revólver, mesmo com o ar fresco e úmido por causa do riacho vizinho. Ele não sabia para onde apontar a arma e, com medo de quebrar algum graveto, caminhava a passos cuidadosos. Pete, no entanto, nada hesitava. O álcool destilava-lhe uma coragem estúpida e a semiautomática era a azeitona do martíni. Pete logo tomou a liderança, resmungando com aquele hálito.

— Talvez eles tenham carne — supôs ele. — Tá sentindo esse cheiro? Parece churrasco.

Campbell esfregou o ferimento da mordida no ombro. Não. Eu não vou lá. Os sequelados não são canibais nem zumbis. Eles só...

Só O QUÊ?

Depois ele sentiu o cheiro: defumado, picante e delicioso, e visualizou como seria cair num ninho de sequelados, todos em volta do fogo assando uma criança espetada num galho com a banha pingando nas pedras quentes e chiando em vapor gorduroso.

— Ainda tem um monte de carne em lata e charque por aí — observou Campbell. — Anos e anos de suprimento.

A cesta de arame da bicicleta dele tinha latas de atum, de sardinha, de carne e de salmão. Exceto pela parada no “acampamento cigano”, eles comiam comida gelada. A fumaça, porém, não o deixava faminto. Era oleosa e contaminada.

Um pássaro chilreava no alto das árvores. O Clarão eliminou um monte de animais, mas os sobreviventes entre eles pareciam se comportar normalmente. Só os humanos pareciam ter sido afetados em nível neurológico — até então, pelo menos. Todos os seus instintos orientadores, limites territoriais e padrões de migração poderiam ter sofrido alterações em algum grau.

Um galho se quebrou atrás deles, talvez a uns seis metros de distância. Pete deu uma virada e tocou no braço de Campbell com a pistola.

Pelo menos o idiota não atirou em mim. Mas a noite é uma criança.

O farfalhar se aproximou, chuic chuic chuic pelo arbusto seco. Em seguida uma pausa, como se quem quer (ou o que quer) que seja tivesse parado para escutar sua presa.

Campbell se esforçou para escutar, segurando a respiração, mas Pete emitia aquele chiado de fumante do fundo dos pulmões. Ele quis saber se Pete estava pensando a mesma coisa que ele: quem atira primeiro?

Mas e se fosse uma pessoa? Um camarada sobrevivente? Talvez houvesse mais, o bastante para formar um grupo e...

Campbell arrebatou logo a frágil comoção de esperança. Na semana seguinte ao evento, eles só encontraram quatro sobreviventes e uma delas se virou e fugiu quando Campbell a chamou. Os outros três estavam no acampamento cigano improvisado e Campbell pediu a Deus que aquilo não fosse uma amostra do futuro da humanidade.

Chuiiic. Um passo cauteloso no mato.

Pete o cutucou. Campbell se virou, mas Pete era só um volume de ônix contra a noite de tom menos escuro. Em seguida, a boca de Pete estava no ouvido dele, borrifando saliva enquanto sussurrava: — Vai pra esquerda que eu vou pra direita.

Campbell assentiu, tentando não tremer. Um sequelado não seria delicado. Ele se atiraria como um rinoceronte através da savana, usando o que quer que tivesse na mão como arma. Um perigo assim louco e previsível estava se reafirmando de uma forma estranha. Isso, portanto...

Ele chegou para a esquerda, empurrando a lanterna imóvel à frente para experimentar a folhagem. Com o sussurro da passagem de Pete, ele soube que a distância entre eles estava aumentando. Campbell estava por contra própria.

Chuiiic. Outro passo avante.

Ou será que fora o passo de Pete?

Campbell se virou novamente e ficou desorientado. Não conseguia mais ver as tênues línguas de fogo à curta distância e a noite se mesclava com o céu, até que ele não sabia mais a localização da estrada, da floresta nem do riacho. Ele quase se rendeu ao impulso de ligar a lanterna, mas beliscou os dedos até a dor tomar o lugar do pânico.

Não é um sequelado. Não há motivos para um sobrevivente atacar.

A fumaça, no entanto, dizia outra coisa. Ela dizia: “Mmm, tem gosto de frango” e “Aposto que você está louco pra vir jantar” e “Temos o prazer de servi-lo”.

Dane-se. Já assisti a muito filme de terror nos Velhos Tempos.

E daí se os Velhos Tempos eram em julho, talvez.

Ele olhou para as tíbias estrelas e para as pontas esfumaçadas da lua, tentando reorientar-se. As próprias constelações pareciam estranhas, alienígenas, como se uma gigantesca erupção solar tivesse inclinado o eixo do planeta. Talvez o mundo estivesse todo em choque, literal e metaforicamente.

Chuic chuic chuic, os passos estavam mais frequentes e próximos. Ele levantou a pistola e o peso úmido era puxado pela gravidade até a sensação de portar um canhão de batalha.

Ele ouviu o cacarejar insano característico — não na direção dos passos, mas atrás dele, logo atrás dele — e a noite irrompeu num lampejo e um rugido. Os ouvidos de Campbell tiniram com a dor súbita; ele largou a pistola e caiu de joelhos.

— Você tá bem? — perguntou-lhe uma voz áspera acima dele.

— Ahm, tô. — Campbell colocou a lanterna diante de si como se fosse uma adaga que poderia usar para se impalar.

— Que é isso? — perguntou Pete a certa distância, entrechocando-se com os galhos dos arbustos na direção deles.

— Não atire — implorou a voz áspera. — Seu amigo tá legal.

O homem acionou um botão e uma luz azulada de lanterna cegou Campbell, embora o feixe estivesse voltado para o lado. A luz passava por ele e incidia sobre um vulto tênue de cara no mato do chão. Um veludo negro e molhado cobria suas costas e pedaços rasgados de carne se dependuravam por um buraco nas costas da camisa. Campbell teve a impressão de ser uma pessoa educada enquanto passava por ele até ficar sobre o cadáver, até que Pete entrou no alcance da luz.

— Um sequelado — revelou o homem.

— Quem diabos é você? — interrogou Pete. Sua Glock estava apontada para o homem, que deu um olhar divertido.

— O rei de lugar nenhum — respondeu-lhe o homem.

— Merda. — Pete olhou para Campbell, desistindo do alvo. — Tem certeza de que tá bem?

Campbell assentiu, meio constrangido. Ele pegou o revólver e olhou o homem de pé sobre o cadáver. O homem era careca, com pouco mais de um metro e oitenta, vestido de conjunto de ginástica com um colete cargo de caçador por cima. Embora o conjunto estivesse sujo, o homem parecia bem arrumado e em forma apesar da idade.

— Quem era? — Campbell conseguiu perguntar, apontando o revólver para o corpo.

— O quê — respondeu o homem. — O que era. Essas coisas não merecem ser chamadas de “quem”.

Campbell não sabia só de olhar se o corpo era de um sequelado. Ele só sabia que a coisa outrora fora humana. Ainda assim, Campbell não tinha ouvido sua aproximação, e os sequelados não eram conhecidos pela sutileza nem pela furtividade.

— Tem certeza de que era um sequelado? — perguntou Campbell ao homem.

— Não é o primeiro que eu mato.

— Ele estava me seguindo — argumentou Campbell. — Era pra ele ter me atacado.

— Ele estava se arrastando, sim, mas não para você. Ele tava nos observando.

— Espera aí — interrompeu Pete. — Como é que você enxergou no escuro?

O homem pegou algo no bolso de trás do macacão, o que levou a um gesto ameaçador de Pete com a Glock. Ele ignorou o gesto e puxou uns óculos coloridos com uma correia grossa. — Infravermelho — respondeu o homem. — Nada mais que o melhor equipamento de sobrevivência se você quiser sobreviver, não é?

Como é que NÓS não pensamos nisso? Ah, é verdade: Pete estava bêbado como um gambá e meu treinamento de sobrevivência não foi além da sexta série, quando minha mãe me obrigou a sair dos escoteiros.

— Vocês dois estão sozinhos? — indagou o homem, percorrendo o arbusto com a luz da lanterna.

— É — grunhiu Campbell. — Como é que esse aí estava todo sorrateiro? Nunca vi nenhum deles ser furtivo assim.

— Eles estão mudando.

— Mudando? — duvidou Pete. — Tipo, estão desenvolvendo um terceiro olho?

— O jeito de agirem. Venham, podem perguntar ao professor. — O homem se virou e rumou para a floresta.

— Droga, cara. — reclamou Pete para Campbell. — Que dureza.

O homem parou a uns três metros e se virou. — Vocês não são perigosos, não é? Afinal, vocês têm armas.

— Não, senhor — respondeu Campbell.

— Não achei que fossem. Aposto que vocês teriam medo se tivessem que atirar. — Ele continuou em direção ao fogo tremeluzente.

Campbell ligou a lanterna e a apontou para o corpo. Ele imaginou ter ouvido um gargarejar baixo, mas achou que fossem gases intestinais. O cadáver não parecia coisa alguma — nem um vegetariano, nem sequelado. Parecia um tio meio gordinho, um motorista de ônibus, um mecânico de freios ou um policial de folga. Seus trajes eram uma camisa escura de manga curta, calças jeans e sapatos de couro gastos sem meias.

Campbell ficou curioso para saber onde estava o homem quando incidiu a erupção solar. Os sequelados raramente se moviam com alguma intenção real além de dar vazão à sua raiva de qualquer coisa que respire. Se estavam mudando, evoluindo e adaptando-se, ele ainda não vira tal comportamento manifestado. Mas não é que a mulher que o atingira no furgão da hidráulica tinha um quê de inteligência?

— Não queria ver essas coisas em mutação — confessou Campbell. — Já estava quase me acostumando com a ideia de um planeta cheio de assassinos irracionais. Não sei se eu consigo aguentar outra surpresa.

— Então resolve isso com o Sorriso ali.

— E com os amigos dele, pelo jeito.

— Será que eles têm cerveja?

Campbell foi na frente, usando o cadáver para dar impulso. Ele imaginou quantos sequelados ainda havia à espreita na floresta, observando-os à fogueira e esperando uma oportunidade.

Pete cambaleou perto dele, sacudindo-se e praguejando, abrindo picada com a mão livre. — O cara podia nos ter emprestado os óculos dele.

— Acho que ele não é do tipo que gosta de compartilhar. Ele provavelmente diria uma babaquice tipo “Só os especialistas sobrevivem”.

Mais perto da floresta, o ar era mais úmido e fresco. O regato estava além deles, na escuridão, murmurando em distraída alegria. As nuvens se espalharam em imensas madeixas roxas, iluminadas ao fundo pelas auroras psicodélicas que apareciam quando as tempestades solares despertavam. Em algum lugar acima deles, a lua continuava seu curso pelo céu. O mundo continuava a girar, todas as imensas engrenagens do universo pareciam se encaixar nos seus lugares e os mecanismos do tempo funcionavam em perfeita precisão, mas uma grande peça dele se quebrara.

Campbell olhou para trás em direção à estrada e pensou nas bicicletas, mas a noite engolira todos os seus percursos. Só havia então uma nesga de fogo e aquela fumaça pungente, irresistível, e um futuro em que os antigos humanos se humilhavam numa pervertida fome de violência.

— Consegue ver algum deles? — perguntou Pete enquanto entravam no silencioso corredor de árvores.

— Shh. — Pete olhou de esguelha para o fogo crepitante, brincando com a lanterna e se perguntando onde estava o resgate. Chegaram a uma clareira que continha algumas barracas, um cobertor pendurado num fio entre duas árvores e utensílios de cozinha empulhados num toco úmido.

Ninguém à vista.

De repente, uma voz emergiu das sombras ao redor: — Larguem as armas e andem bem devagar.


CAPÍTULO 5

Eles decidiram por um quarto no Motel 6 nos arredores da cidade, logo abaixo da interestadual, mas longe de qualquer área comercial ou bairro residencial. Uma loja de conveniência e uma lanchonete eram os únicos prédios comerciais de beira de estrada projetados para sugar dinheiro dos viajantes rumo ao sul, para Columbia, ou a norte, para Raleigh. Na luz difusa do ocaso, Rachel não conseguia identificar nenhum dos veículos que ela sabia estarem espalhados ao longo da estrada.

Como havia alguns carros em frente à loja de conveniência, eles optaram por começar a explorar ali em vez da lanchonete. O restaurante de fast-food com as janelas escurecidas pareciam absurdamente como um templo abandonado de uma religião cujos confortos não mais serviam às massas. Rachel sentia o cheiro de queijo estragado que o lugar rescendia. Ela, na verdade, esperava que fosse o queijo.

Ela ficou observando a fachada enquanto DeVontay entrou na loja de conveniência em busca de suprimentos. Apertou a lanterna com medo de ligá-la, percebendo que a invisibilidade era a melhor defesa. O silêncio do mundo era opressor e pesado — um novo tipo de gravidade a envolvia numa pele alienígena. Os únicos sons eram das quedas ocasionais do que DeVontay saqueava na loja.

Ele logo surgiu com uma mochila lotada e um saco de salgadinhos aberto na mão. Ele triturava alguns dos salgadinhos de milho enquanto dizia: — Peguei o suficiente pra gente passar a noite.

— Viu alguém?

— Só um ou dois mortos.

— Eles eram sequelados?

— Por que você chama eles assim?

— É assim que a mídia os chamava antes do apagão geral.

DeVontay rumou para o motel e ela o seguiu, olhando para o restaurante. Acabaram-se as corridas nas fronteiras.

— As erupções solares — disse Rachel. — Os astrônomos sabiam que eles iam acontecer. Eles só não sabiam o que aconteceria.

— Eu nunca fui bom em ciências. — DeVontay ofereceu o saco de salgadinhos para ela.

— Você não devia comer essa porcaria.

— Por quê? Vai apodrecer meu cérebro? — Ele ria de se resfolegar.

— Isso aí é cheio de conservante.

— Eu posso acabar precisando de conservação, se as coisas ficarem piores. — Ele sacou a pistola do cinto enquanto se aproximavam do desembarque da entrada principal do motel.

Um Fiat vermelho estava em cima da calçada com as portas da frente abertas. Rachel contornou o carro, mas DeVontay deu uma olhada pela janela. — Não deu.

— Está morto, como o outro carro que a gente tentou há meia hora.

— Por que você tem que ser negativa o tempo todo?

— Talvez porque todo mundo que eu conheça e ame esteja ou morto, ou tentando rachar minha cabeça — respondeu ela.

— É isso que a gente ganha por amar os outros — retrucou DeVontay. — Nunca tive esse problema.

Ele deixou o Fiat e se juntou a ela do lado de fora da porta de correr, onde Rachel observava o saguão nas sombras. O balcão da frente estava sem ninguém. Um vulto escuro se abaixou de repente numa daquelas cadeiras rígidas e formais projetadas para decoração, e não para sentar.

— Tem alguém ali — disse Rachel. — Vamos bater?

DeVontay sacou a pistola do cinto. — Está se mexendo?

— Não dá pra saber.

DeVontay abriu um pouco o espaço em que as duas portas de correr estavam a centímetros uma da outra. — Sem eletricidade essa merda não vai abrir.

— Talvez se você gritar um pouquinho mais alto, os sequelados vão vir aqui abrir pra nós.

— Não tem ninguém aqui. Vivo? De jeito nenhum.

Rachel não queria pensar em todos aqueles corpos espalhados pelo hotel. Havia pelo menos 30 carros no estacionamento — o que representava uma fatia dos Estados Unidos: viajantes de negócio, famílias de férias, aposentados indo visitar os netos.

— A gente podia quebrar o vidro — sugeriu Rachel.

— Com sutileza pra não chamar atenção?

— Não sei se essas coisas conseguem ouvir. Ainda não sabemos muito sobre eles.

— Espere aqui. — DeVontay lhe deu a sacola de salgadinhos, voltou para o Fiat e se inclinou para dentro pelo lado do motorista. Logo depois, o porta-malas se abriu. DeVontay voltou com um macaco e a respectiva alavanca.

— Sorte que tinha uma trava manual, senão eu teria que quebrar pra abrir. Não seria a primeira vez.

— Então, podemos adicionar “ladrão de carros” à suas habilidades de sobrevivência. Ótimo. — Ela colocou um salgadinho na boca e a trituração encheu seus ouvidos de dentro para fora.

— E você me diz isso comendo um salgadinho roubado.

Ela olhou para dentro do pacote e percebeu que a bússola da moral, mesmo a dela, ficou alterada com a chegada das erupções solares. Talvez os mandamentos de Deus precisassem de uma revisão.

Ela devia ter pensado que a catástrofe fora uma punição para os pecadores, só que o apocalipse punira a todos: bons ou maus, brancos ou pretos, fiéis ou infiéis. Ela, no entanto, não podia se preocupar com a situação toda naquele momento. Primeiro, ela teria de sobreviver à noite.

DeVontay encaixou o macaco na parte inferior da fenda entre as portas e acionou a alavanca até ficar justo. As portas resistiram a princípio, mas depois gemeram em protesto até ceder. A alavanca do macaco tremia com o esforço e Rachel duvidou da resistência do vidro. De má vontade, as portas sucumbiram ao esforço, centímetro a centímetro.

DeVontay alargou a abertura até um pouco mais de trinta centímetros, entrou e pegou a pistola. — Damas primeiro.

— Você é um cavalheiro.

— Já te disse: não sou nenhum cavalheiro. Sou só um homem. Agora entra aí e grita se vir algum sequelado.

Ela olhou para o rosto dele, o que era cada vez mais difícil com o cair da noite. O olho de vidro se perdia nas sombras, mas o olho de verdade queimava de impaciência. Ela empurrou a mochila pela abertura e ligou a lanterna, mantendo o feixe direcionado para o piso do saguão.

Rachel entrou e foi imediatamente arrebatada pelo ar corrompido do mausoléu de três andares. Ela jogou o feixe da lanterna sobre o vulto na cadeira e logo desejou não tê-lo feito. Era uma camareira com feições hispânicas e um cabelo preto em coque, talvez fazendo uma última pausa antes de perceber que seu expediente estava prestes a ser finalizado pelo grande relógio de ponto do espaço. Ao lado dela, um carrinho cheio de toalhas, lençóis e material de limpeza.

— Pega aí — disse DeVontay enfiando sua mochila pela fresta. Ela teve de passá-la aos poucos, mas foi difícil dar as costas para o saguão escuro. Assim que conseguiu, DeVontay a seguiu e ela ficou mais confortável ao vê-lo com a pistola apontada para a escuridão.

— Tá sentindo esse cheiro? — perguntou ela.

Ele pegou a lanterna dela e caminhou até o carrinho da camareira, ignorando o corpo. Ele voltou com um borrifador para higienizar as mãos. Espirrou um pouco sobre os dedos e esfregou o produto sobre o lábio superior, no bigode que começava a crescer. Ele deu uma fungada exagerada e passou o frasco para ela.

Ela entendeu e o imitou. O aroma perfumado imediatamente inundou suas fossas nasais e mascarou o cheiro de morte.

— Você é cheio de recursos — observou ela.

— Vi isso numa série de TV — explicou ele.

— Puxa vida.

— Não fique tão surpresa. Nós tínhamos televisão na Filadélfia. Quer dizer, antes de ela fritar.

Lá fora, uma tênue poeira de estrelas sujava a abóbada celeste enquanto as faixas esverdeadas da aurora boreal se ondulavam pintando a escuridão.

— Vamos arrumar um quarto — sugeriu ela.

— Eu podia fazer uma piada com isso, mas é o fim do mundo — disse ele. Ele atravessou o saguão até o balcão, movendo a lanterna a cada ala para se certificar de que estivessem vazias. Passou por trás do balcão e entrou no escritório enquanto Rachel esperava de mochila nas costas. Depois de um momento, ele voltou com um molho de chaves.

— Chaves eletrônicas não funcionam, mas uma dessas deve ser a chave-mestra — observou.

— Rápido. Estou tendo arrepios aqui.

— Vamos pegar o primeiro em que conseguirmos entrar — decidiu ele. — Os melhores quartos geralmente ficam próximos ao balcão. Podem até ter hidromassagem, por tudo de bom que poderemos usufruir.

— Passar o apocalipse no desfrute do luxo — comentou ela. — Imagino até o comercial de televisão.

— Sem contar que não temos mais televisão. — Ele lhe deu a lanterna e ela iluminou o corredor para que ele tentasse abrir a primeira porta.

— E se tiver alguém aí dentro? — Ela quis dizer “alguém morto”, mas não era necessário completar.

Ele ergueu a mão para bater e, em seguida, deu um risinho caprino, piscando contra a luz. A pálpebra sobre o olho de vidro não se fechava totalmente. — Dá pra gente ficar aqui a noite toda se você quiser.

Ela olhou a escuridão do corredor atrás dele, além do alcance do feixe da lanterna. — Ouviu isso?

Ele se virou para o fim do corredor enquanto um ruído de luta ecoou na escadaria de concreto. — Ouviu o quê?

— Isso — sussurrou ela.

— Deve ser o ar-condicionado — concluiu.

— Não temos luz, lembra?

DeVontay não falou nada, mas o rosto dele dizia: “Ah, é” e escolheu uma das chaves do molho e tentou enfiá-la na fechadura da porta. Ela entrou até a metade e travou. Ele a sacudiu três vezes antes de conseguir puxá-la para fora. O ruído ficou mais alto e claramente soava como pés se arrastando em passos no concreto.

— E se for um dos nossos? — sussurrou Rachel.

DeVontay empurrou uma chave diferente na fechadura, mas ela nem entrou. As mãos dele estavam tremendo, fazendo retinir as chaves.

— Me dá a arma pra você ir mais rápido — sussurrou ela.

— Você sabe atirar? — retrucou ele, enfiando a quarta chave no buraco.

— Não, mas vou me sentir mais segura — sussurrou ela.

Antes que respondesse, a chave entrou e ele a girou com um sonoro clic. Ele acionou a maçaneta da porta enquanto Rachel desviou o feixe para o corredor. Um vulto volumoso preencheu a abertura da escada, movendo-se na direção deles.

— Anda, anda logo! — implorou Rachel, batendo nas costas de DeVontay. — Ele tá vindo.

DeVontay abriu a porta, apontando a arma para a outra ponta do corredor enquanto ela passou por ele para entrar no quarto. O ar estava estável, mas não havia cheiro de cadáver.

Obrigada, Deus, pelas pequenas bênçãos.

— Quem é você? — gritou DeVontay para o corredor, mas ele só esperou um segundo antes de entrar e bater a porta, passando a tranca logo em seguida.

— Você sabe atirar? — zombou Rachel, apontando a lanterna para a pistola ao lado dele.

— Espertinha. Eu não fiquei dando gritinhos — ele aumentou a voz em falsete: — Aaaah, socorro, socorro.

— Fica quieto — ordenou ela. — Talvez ele não tenha visto em qual quarto nós entramos.

Eles ouviram o homem batendo nas portas e aproximando-se. Rachel não sabia o grau de esperteza dos sequelados, mas, segundo observou, eles pareciam ter graus variados de astúcia. Talvez as erupções solares tenham fritado o cérebro das pessoas em graus variados. A maioria morreu, alguns fritaram e poucos sortudos foram deixados à própria sorte em meio ao caos.

DeVontay saiu de frente da porta, juntando-se a ela no meio do quarto. Ela deu uma passada de lanterna em volta para ver se o quarto estava mesmo vazio. Era uma suíte com uma pequena copa e uma hidromassagem. DeVontay, pelo jeito, teve sorte.

Logo o sequelado estava esmurrando a porta, dando três golpes fortes com a base dos punhos. Rachel instintivamente apertou DeVontay e desligou a lanterna para evitar que o feixe chamasse atenção. Ela conseguia ouvir DeVontay ofegar na escuridão.

O sequelado passou para a próxima porta do corredor, repetindo as batidas em direção à última porta. Logo o som das batidas ficou mais surdo, como se tivesse chegado até a ala mais distante. Rachel exalou, não percebendo que a tensão fez os pulmões arderem de tanto prender a respiração.

— Essa foi por pouco — disse ela, ligando novamente a lanterna.

— E você conseguiu sua hidromassagem.

Sem pensar, ela abriu a torneira, mas não saiu nada. — Faz séculos que eu não tomo um banho — confessou.

— Daqui a pouco seu cheiro vai ficar pior do que o dos cadáveres.

— Bom, é só você continuar a usar o higienizador no nariz e tudo bem.

Ele deu uma risadinha (de alívio, principalmente) e limpou o suor da testa. Ele largou a mochila no criado mudo e a abriu. Puxou algumas latas e uns sacos de celofane com comida, um maço de velas e um isqueiro. — Economize as pilhas — advertiu ele, acendendo uma vela e encaixando-a pela base no abajur de ferro.

Acendeu outra e se certificou de que as cortinas estivessem bem fechadas. — Acho que aqui estamos tão seguros como em qualquer lugar — observou.

— Você atiraria nele? — perguntou ela. — Se tivesse que atirar, digo.

Ele se virou com a suave luz da vela sobre o rosto. Ele parecia ser jovem, quase adolescente. — Não seria o primeiro.

Ela não sabia dizer se ele estava só se fazendo de machão ou tentando passar-lhe confiança. Ela não o estava pressionando. Nem tinha certeza se queria que ele atirasse. Mesmo que fossem sequelados, ainda eram criaturas de Deus.

Acredita mesmo nisso, Rachel? Eles não podem ser o exército de Satanás? Ou você é um daqueles que acredita nas partes convenientes da Bíblia?

Ela deu de ombros. — Estou exausta — declarou.

— Cama king-size.

— Beleza. — Ela se escarrapachou num dos lados, depois enrolou-se numa bola com o travesseiro colado com a barriga. — Você pode ficar aí.

—Vou comer primeiro — disse ele. — Bons sonhos.

— Desculpa — murmurou ela.

— Hã?

— Esqueci seu salgadinho no saguão.


CAPÍTULO 6

Campbell babava uma mistura de porco e feijão esquentada numa lata sobre a brasa. O fogo era grande e estalava com grande energia, e poderia ter sido o fogo primevo, o primeiro raio a mudar para sempre a raça humana. Ele emitia dedos gigantes de luz que pontilhavam as árvores ao redor, criando uma parede amarela contra a escuridão e o além desconhecido.

Havia quatro no grupo. Donnie, um cara esquelético com chapéu de camuflagem, que os desafiara quando eles entraram no acampamento, tomara sua vez na vigília portando uma espingarda automática bem intimidadora. Uma mulher chamada Pam estava claramente dormindo numa das barracas que despontavam na clareira. Pelo varal amarrado de uma árvore a outra e pela pilha de galhos próxima, o grupo devia ter-se estabelecido lá havia alguns dias.

O homem que enfiou a pistola nas costas de Campbell se chamava Arnoff. Ele pegou as armas deles depois que o Donnie ordenou que eles as largassem. Pete ficou furioso a princípio, mas no momento ele estava afagando uma cerveja e olhando para as chamas como se elas fossem de uma fraternidade estudantil antes de um grande jogo de futebol.

Arnoff se sentou do outro lado da fogueira, de frente para Campbell, limpando ternamente uma espingarda desmontada. — Então vocês vieram desde lá de Chapel Hill?

— Estávamos de bicicleta — disse Campbell.

Arnoff assentiu. — Pode crer. Vi vocês de binóculo.

— É por isso que não atiramos em vocês — disse o careca de rosto fino e óculos pretos enormes que davam a aparência de um inseto. — Não tínhamos visto sequelados exibirem um comportamento tão coordenado.

— Eu teria atirado de qualquer jeito — confessou Arnoff. — Só pra treinar a mira. Mas o professor aqui disse que precisávamos coletar o máximo de informações possível.

— Ele tá brincando — contradisse o careca, embora os olhos de Arnoff não demonstrasse o menor traço de jocosidade.

— Vocês estão juntos há quanto tempo? — perguntou Campbell, querendo mudar de assunto. O estômago dele não ficou muito bem depois do feijão; ele se sentia empanzinado e gasoso.

— Ensino ciências da terra na Wake Forest. É, eu ensinava, quando tinha alunos — disse o professor, procurando cigarros no bolso da camisa. Absurdamente, ele ainda usava uma gravata, como se um símbolo insensato de civilização garantisse que todos os cacos uma hora se juntariam novamente. — Meus colegas de trabalho no departamento estavam bem cientes da aproximação das erupções solares, que geralmente vêm em ciclos. Com certeza era notícia nacional, que, como acontece na maioria das histórias da ciência, foi controlada pra divulgação.

— Verdade, nós vimos no Yahoo! — lembrou-se Pete. — Falavam algo sobre a pior tempestade solar já registrada, lá pela época da Guerra Civil, mas disseram que esta não seria tão forte.

Arnoff estalou uma bala na câmara da espingarda. — Eles nunca entendem direito. Mídia maldita. Deixam o povo tão baratinado que ninguém sabe se vende os estoques ou compra munição.

— A erupção solar de 1859, o Evento Carrington, interrompeu as comunicações por telégrafo e queimou alguns postes — explicou o professor. — O país inteiro via a aurora, que chegou até o México.

— Aquelas luzes estranhas verdes e roxas no céu? — perguntou Pete. — Aquelas que dão a sensação de bad trip de ácido?

— Isso, são causadas por partículas carregadas. Outros eventos de erupções solares e manchas solares causaram quedas no fornecimento de eletricidade, mas nunca se esperava algo como isto.

— Tá falando dos sequelados? — perguntou Campbell.

— Também. De tudo. O Congresso pediu alguns planos de contingência e de pesquisa sobre o despertar dessa imensa erupção solar, mas só em caso de falha de satélite e coisas assim. Todo mundo que apresentasse essas situações de dia do juízo seria classificado como pirado de internet e adepto da teoria da conspiração alienígena.

— Eu entendo o lance do apagão e até o problema nos motores a explosão — disse Arnoff. — É tipo um curto-circuito no mundo inteiro. Só não entendo o que ela causou no cérebro das pessoas que as deixou sequeladas. Claro que entendo menos ainda por que alguns, tipo nós, estão mais ou menos normais.

— Duvido que agora nós consigamos uma resposta — opinou o professor. — Presumindo que o resto do mundo foi afetado como os Estados Unidos, não há como conduzir as pesquisas necessárias.

Arnoff acenou com a mão. — E quem vai a alguma palestra? Saber não vai mudar nada. Fato é que tem um monte de sequelados querendo matar a gente.

— Você disse que eles mudaram — lembrou Campbell. — O que você quis dizer com isso?

— Parece que eles estão se adaptando — respondeu o professor. — Você deve ter notado se teve alguns encontros repetidos. Logo depois das erupções, os sequelados — o rosto franziu quando pronunciou a palavra, como se fosse de mau gosto e cientificamente imprecisa — eram aleatoriamente violentos e atacavam qualquer coisa viva que estivesse por perto. No entanto, nós os vimos em atividade comunitária, como se tivessem se organizado.

— Foi por isso que eu quase atirei em você — explicou Arnoff. — Onde tem um, pode ter mais.

— Que legal — ironizou Pete. — É bonito ver os seres humanos se unindo.

Campbell balançou um pouco a cabeça, tentando sinalizar a Pete para que se calasse. Arnoff era bem instável, mas pelo menos podíamos contar com ele — Campbell não sentira isso desde o começo do apocalipse. Ele deixou a lata de feijão de lado e lambeu a salsicha no garfo.

— Quantos de nós você acha que restaram? — perguntou o professor.

— É difícil estimar. Conheci o Sr. Arnoff entre Winston-Salem e Greensboro, a leste da Interestadual 40. Ele rumou para o litoral, achando que encontraria uma ilhota pra brincar de Robinson Crusoé até que as coisas se acertassem. A uns cinquenta quilômetros daqui nós encontramos a Pamela e o Donnie, escondidos num ônibus escolar. E agora vocês dois. É uma pequena amostra, mas acho que talvez uma pessoa num milhão estava imune aos distúrbios eletromagnéticos.

— Puta-merda! — exclamou Pete. — É tipo ganhar na loteria.

— Ou perder, neste caso — opinou Arnoff — Sempre achei que o mundo estava superpovoado, mas não gosto de estar em desvantagem.

— Era a minha próxima pergunta — disse Campbell. — Só encontramos alguns sobreviventes, mas vimos muito mais sequelados.

Ele lhes contou sobre seu encontro com o sequelado no furgão, e Pete pontuou a história com efeitos sonoros para descrever como espancaram a mulher até morrer. Ele não floreou com muitos detalhes, embora tenha se tornado o herói da história.

— Bom pra você — disse Arnoff. — Eu nunca diria que você faria isso.

— Talvez nós estejamos nos adaptando também — supôs o professor tragando o cigarro. — Talvez a necessidade de matar nos transforme em sequelados. As flutuações magnéticas prolongadas podem estar neste momento esquentando a chaleira do nosso cérebro até a fervura.

Campbell não gostava da ideia de que seus circuitos internos pudessem estar se transformando em algo enganoso.

— Não me venha com essa negatividade toda — advertiu Arnoff, encostando a espingarda num toco. — A situação já é bem ruim. Vamos pensar positivo.

— Irônico: a energia positiva dos íons é uma das causas do nosso problema — afirmou o professor. Ele arremessou a guimba no fogo.

— E aí? Vocês estavam caminhando? — perguntou Pete em palavras meio desarticuladas.

— Eu tinha um cavalo que encontrei num estábulo — respondeu Arnoff. — Ele me jogou no chão quando pisou num buraco e quebrou o tornozelo. E eu quase quebrei o pescoço.

— Deixe-me adivinhar — disse Pete. — Você teve que matá-lo, mas não se sentiu tão mal assim.

Arnoff o encarou e Campbell fez um movimento furtivo de talho na garganta, sinalizando a Pete que pegasse mais leve. — Tem coisas que a gente tem que se livrar — disse Arnoff.

O professor fez uma exibição ao olhar o seu relógio, um modelo meio nerd à corda que sobreviveu ao holocausto dos relógios digitais do planeta. — Está acabando o turno do Donnie.

Arnoff ficou de pé e pegou a espingarda, caminhou até a barraca mais próxima e levantou a abertura, revelando a tela na frente. — Acorda, Pamela, é a sua vez.

— E o que está acontecendo a leste? — perguntou o professor a Campbell em voz baixa para manter a conversa particular.

Campbell deu de ombros. — Muita gente morta. Um monte de sequelados. Carros parados. Nada funciona direito.

— Alguma organização de serviço de emergência?

— Tipo polícia, essas coisas? Nada, eles estavam tão mortos quanto os outros. De vez em quando víamos umas pessoas andando ao longe, mas tínhamos medo ir conferir. Não sabíamos se eram ou não sequelados.

— Talvez tenha sido uma boa ideia. Eu calculo que a proporção entre sequelados e sobreviventes é de dez pra um.

— Não dá pra acreditar que o mundo todo tá assim — desabafou Pete. — É tipo um filme de zumbi do inferno.

— É inútil — Campbell deixou escapar. Ele nunca dera importância ao conceito de “esperança”. Para ele, era um mundo de um cartão de “melhoras” que se dava a um parente com câncer, não uma palavra com que as pessoas normais se preocupassem.

— Temos comida e suprimentos — disse o professor, mantendo a voz no mesmo tom de palestrante. — Se nossa água engarrafada acabar, podemos filtrar a água do córrego e fervê-la. É nosso segundo dia aqui e podemos facilmente ficar por uma semana antes de fazer uma busca por comida numa das cidades vizinhas.

— Não vejo vantagem em ficar aqui — rosnou Arnoff de sua posição na barraca. — Quanto tempo mais até os sequelados localizarem nosso acampamento?

— Quem decide isso é o grupo — respondeu o professor.

Campbell teve uma sensação de que as opiniões ali estavam divididas pela primeira vez; sentia a tensão entre o professor e Arnoff, cujos olhos eram como besouros escuros e úmidos. Campbell também ficou imaginando se Pete e ele passaram a ser parte do grupo.

Segurança em números, a menos que os números comecem a atirar uns nos outros.

Arnoff avançou para dentro do bosque no perímetro escuro do acampamento. Campbell não podia dizer se ele estava sondando ou fazendo xixi.

— E a energia? — perguntou Pete. — Essas pilhas não vão durar pra sempre.

— Pode ser ela mesmo que vá nos matar — respondeu o professor. — O sol é o maior reator termonuclear em nosso canto do universo.

— Todo esse papo de energia ecológica, esse lance de turbinas eólicas e painéis solares, essas coisas — disse Campbell. Ele conhecia um cara chamado Terrence Flowers, um riponga que sempre elaborava planos de sistemas sustentáveis inovadores. Com certeza Terrence contribuiria, a menos que ele tenha se tornado um sequelado.

— A maioria desses dispositivos têm componentes eletrônicos nos sistemas de conversão, por isso são inúteis agora. Acho que, se substituíssemos as peças danificadas, eles ainda poderiam funcionar, mas não dá pra encomendar peças on-line e esperar a entrega do correio, né? O problema é até maior que isso. Em breve, a gente pode estar de cara com quatrocentas Chernobyls.

— Como assim?? — espantou-se Pete, estalando outra cerveja com um silvo insolente.

— Tem mais de quatrocentas usinas nucleares no mundo. Elas usam água bombeada por bombas elétricas para resfriar os núcleos dos reatores e as hastes de combustível. Sem eletricidade, não vai demorar até que eles derretam.

— Espere — interviu Pete. — De jeito nenhum. O governo não iria deixar isso acontecer.

— Ah, as usinas nucleares têm sistemas de segurança. — As chamas lançavam sombras no rosto impassível do professor, dando às suas palavras um peso ainda mais sinistro. — Geradores a diesel e outros sistemas dependentes de eletricidade. Mas se as tempestades geomagnéticas os atingiram também...

— Como aquela usina japonesa no tsunami — disse Campbell.

— Isso. — O professor jogou a guimba e ela fez um arco meteórico até o meio do fogo. — O núcleo superaqueceu porque os sistemas de segurança falharam. A usina foi construída para resistir a um tsunami, e ela resistiu. O problema foi que os sistemas de segurança não foram.

— Santo Deus — disse Pete. — Então agora a gente vai ter que se preocupar também com lagartos mutantes gigantes? Como se os sequelados não fossem o suficiente.

— Não se preocupem — disse o professor. — Nós estaremos mortos antes de ter a chance de ver alguma mutação por radiação.

— Assustando as crianças de novo, professor? — irrompeu uma voz feminina da abertura da barraca. A aba virou para trás e uma cabeleira desgrenhada pulou para fora. A juba se levantou e o emaranhado revelou um rosto desgastado mas atraente, uma mulher de meia idade sem o benefício da maquiagem, mas com um brilho esperto nos olhos verdes.

Enquanto Pamela se levantava vestida com um robe atoalhado enrolada numa colcha, Campbell ficou imediatamente cativado. Ela não era bonita, não segundo os padrões modernos de edição de imagem, mas projetava um encanto provocante. Ela era um pouco mais nova que a mãe de Campbell, magra mas de estrutura forte. Até Pete a notou, despertando de seu estupor alcoólico para sorrir para ela.

— Eu prefiro lidar com fatos, Pamela — declarou o professor, com os lábios franzidos num beicinho. — Nós vamos acabar vivendo com a radiação de quatrocentas Chernobyls. Ninguém sabe o efeito desse tipo de exposição à radiação de diversas fontes. Não existe um modelo de computador pra isso.

— Sinto muito, esqueci meu tablet na minha outra calça — disse Pamela, fazendo Pete resfolegar na cerveja.

Campbell entendia vagamente os perigos da radiação, mas eles pareciam uma ameaça distante, como fumo passivo ou conservantes nos alimentos. Pamela ostentava seu carisma, o que fez o professor se aborrecer um pouco no seu toco ao pé do fogo.

O professor apalpou a roupa em busca dos cigarros. — Só estou dizendo que...

Eles foram poupados da palestra por um relatório explosivo de uma arma em algum lugar noite adentro. Pete, surpreendido, deu um pulo para trás e derramou a cerveja, e o professor pegou a espingarda que se inclinava atrás dele.

— Donnie! — gritou Pamela, indo em direção ao disparo.

— Fique aqui — ordenou o professor, não que Campbell tivesse a intenção de vagar pelo escuro, especialmente com o Arnoff por aí armado e perigoso.

Depois que o professor e Pamela desapareceram nas sombras, Pete questionou: — E se os sequelados vierem quando não tiver ninguém aqui?

— Talvez fosse melhor a gente se dividir. Podemos voltar pra estrada e pegar as bicicletas pra sair daqui antes que eles voltem.

— Mas e depois? Essa gente pode ser a nossa melhor opção. Pelo menos eles têm armas.

Campbell não conseguia oferecer uma alternativa melhor. Arnoff o deixou apreensivo, mas pelo menos o grupo estabelecera uma ordem básica, e Campbell descobriu que a ordem fazia falta. Ele gostava de relógio, dever de casa, responsabilidade, agenda. Talvez essas coisas fossem inúteis no novo mundo, mas ele podia encontrar substitutos se pertencesse a um grupo com um objetivo comum.

Afinal, nenhum objetivo comum era tão atraente quanto a sobrevivência.

— Tá bem — assentiu Campbell. — Vamos esperar uns dias.

Pete abriu outra cerveja e, dessa vez, Campbell se serviu também. Minutos depois, Arnoff, o professor e Pamela voltaram. Pareceu que Donnie se assustou com um cão selvagem. Pamela pegou colchas para Pete e Campbell, que se encasularam ao lado do fogo. Campbell já estava cochilando quando viu o Arnoff entrar na barraca da Pamela.

Ele torceu para que Donnie não fosse do tipo ciumento. Ele não queria acordar com o som de outro disparo de arma de fogo.


CAPÍTULO 7

Quando Rachel acordou, ela pensou que estava na casa da avó em Puget Sound. Quando era menina, ela dormia no quarto de hóspedes de frente para o mar. No inverno e na primavera, o céu do Pacífico costumava ser enevoado com um cinza que penetrava em cada abertura. Nenhuma intensidade de luz elétrica conseguia vencer aquele cinza lúgubre.

Rachel lutou com os travesseiros para chegar ao abajur de cabeceira, mas a mesinha estava no lugar errado. A única brecha na escuridão era uma gorda linha cinzenta que parecia estar encolhendo. Ela não conseguira se desvencilhar da gravidade rápido o suficiente para se arrastar em direção a ela e teve certeza de que a greta se fecharia antes que conseguisse alcançá-la. Em seguida, ela ficou envolta pela escuridão e a avó nunca ouvira seus gritos.

Uma mão lhe agarrou o cotovelo e ela tentou desvencilhar-se.

— Calma aí, loirinha — disse o homem cuja voz parecia areia no mel.

Ela viu um olho úmido captando a luz, um espelho em miniatura de um cinza desvanecente. Ela viu em retrospecto as erupções solares, o caos subsequente, a morte súbita de bilhões de pessoas e um mundo em que vovó nunca mais se cercaria de animais empalhados para confortá-la.

— Já é amanhã? — perguntou ela.

— É agora, e é tudo o que eu sei — respondeu DeVontay. — Você fala enquanto dorme, sabia?

A mãe dela dissera algo sobre o assunto, mas, quando se dorme sozinho, isso não é algo com que se preocupar. — O que eu disse?

— Balbuciou alguma coisa, parecia um nome... “Chelsea”. Amiga sua? Irmã?

Ela se sentou e viu que dormira de roupa. DeVontay se afastou na cama, com os olhos engolidos pela escuridão. Um momento depois, ela ouviu o ruído do isqueiro e uma das velas ganhou vida. Ela tinha um leve perfume de lilás.

Quando ela se ajoelhou ao lado da cama para as orações matinais, ele não comentou.

— Nosso amiguinho voltou? — perguntou ela, sentando-se e alisando algumas das rugas das roupas antes de perceber o quanto isso era absurdo.

— O irmãozinho tá fazendo as rondas. De porta em porta, a noite toda.

Ela tentou ler o rosto dele à luz de velas para ver se ele ficara acordado a noite toda, velando-a como um horripilante Robert Pattinson num dos filmes da saga Crepúsculo. Ela se forçou a não lamuriar, já que, depois de quase duas semanas de Depois, ela temia o torpor mais que a tensão. — O que você acha que ele tá procurando?

Carregando a pistola, DeVontay atravessou o quarto até a linha grossa de penumbra, que passara a um tom mostarda entre as cortinas. Ele deu uma olhada para fora. — Vai saber. Deve ser um hóspede que estava se registrando quando o clarão aconteceu e ele nunca mais saiu.

— E se a mulher dele estiver atrás dessas portas, apodrecendo deitada na cama? — Ela se apercebeu de que estavam rodeados de gente morta, não só no Motel 6, mas por toda a área metropolitana de Charlotte e provavelmente no mundo todo. O odor tênue mas pútrido de decomposição a perturbava e ela se arrastou pelo quarto até o frasquinho de higienizador de mãos ao lado dos salgadinhos noturnos do DeVontay. O frasco estava meio vazio, em meio a embalagens de charque, celofane amassado, uma garrafa vazia de refrigerante e um sachê de analgésico efervescente.

É isso que acontece quando se vai às compras com um homem.

— Não tô vendo nada lá fora. — DeVontay abriu as cortinas para entrar mais luz no quarto.

— E aí?

— Não podemos ficar aqui.

— É seguro.

— E qual é o seu plano? Ficar aqui até o serviço de quarto trazer o café-da-manhã?

— Aonde você estava indo antes? — Ela tinha de ir fazer xixi, mas ficou com vergonha de dizer.

— Pra fora da cidade, longe de tudo.

— Digo, antes disso. Você sabe... antes.

— Não estava indo a lugar nenhum. Eu já tava aqui. Tava com um trabalho bom numa empresa de construção de telhado. Quando a gente tem um emprego, não precisa ir embora.

A silhueta dele preenchia a janela, os ombros largos mas finos eram graciosos como os de um atleta. O cabelo era cortado curto, com costeletas finas em cada bochecha. Aquele olho fixo e coberto conferia-lhe um aspecto ameaçador. Rachel se perguntou se ela se sentaria voluntariamente do lado dele num ônibus. — Acho que nós temos um novo trabalho — observou ela.

— Que negócio é esse de “nós”? Vamos conversar sobre isso.

Essas palavras a chocaram. Ela sobrevivera sozinha por dias e dias, correndo, escondendo-se, aprendendo as regras do Depois, mas se sentia enfraquecida e com as opções ficando mais escassas. — Estamos vivos. Somos humanos. Não podemos deixar eles vencerem.

Ele olhou para fora da janela e falou de costas para ela. — E se eu decidir que você está me atrasando? E o que mais você teria a oferecer além de um par de olhos extras? Você nem tem arma.

— Posso encontrar uma — retrucou ela, odiando o desespero em sua voz.

Ele foi até a copa e abriu o frigobar. — Droga. Acho que vamos comer besteira de novo.

Ela estava com muita vontade de fazer xixi e se contorcia. O banheiro estava com a porta fechada e ela não se lembrava de o terem verificado. E se tivesse um sequelado lá dentro? Ou um cadáver?

— Tá legal — desafiou Rachel. — Vai nessa. Pega suas coisas e vai embora.

Ele a encarou, com seu olho funcional cheio de surpresa. — Que diabos você tá dizendo? Achei que você era daquelas meninas boazinhas.

— A “merda” não vai tomar o santo nome em vão. Você está pensando em “maldição” e eu não vou te chamar de um maldito babaca, mesmo que você seja.

Os lábios dele se franziram numa carranca de contemplação e o silêncio entre eles se adensou. Em algum lugar no andar de cima, eles ouviram o sequelado do lugar batendo numa porta. DeVontay sorriu, mostrando os dentes largos. — Beleza, então você tem um fogo aí dentro. Talvez a gente possa trabalhar em equipe até encontrarmos algo melhor.

Ela nem imaginara “melhor”. Mal conseguia pensar em “bom”.

— Dito isso, e agora? — perguntou ela.

— Talvez fosse bom ir lá na cobertura e dar uma olhada.

— E se o cara te pegar?

DeVontay acenou com a arma: — Aí eu tenho a resposta.

Rachel não queria ficar sozinha, mas não queria que DeVontay soubesse disso. — Vamos arrumar as coisas e cair fora. A gente pode subir a estrada e ter uma visão melhor. Não quero arriscar ir pelo poço da escada. Além do mais, não sabemos quantas coisas dessas tem por aí. Os outros podem não ser tão barulhentos quanto nosso amiguinho.

Ele assentiu, aparentemente levando a parceria a sério. — Isso. E se estiver tranquilo na estrada, eu vou pro norte assim que der.

— Certo, você arruma as coisas e eu... ahm, vou resolver outro assunto aqui. — Ela não queria pedir-lhe para verificar o banheiro. Ela estava envergonhada o bastante.

Engraçado: é o fim do mundo e a gente ainda acha motivo pra se envergonhar.

Rachel sentiu aquele olho a rastreá-la pelo quarto. Ele riu. — Vai fazer a maquiagem?

Ela o olhou com reprovação, girou a maçaneta com força e deu uma olhada dentro do banheiro. Estava escuro, mas pelo menos nada pulou em cima dela.

— Quer uma luz? — perguntou DeVontay.

— Não, só vou deixar a porta aberta um pouquinho.

— Eu já usei, desculpa o cheiro. Economizei a descarga pra você.

— Obrigada pela informação. — Lá dentro, enquanto os olhos se ajustavam, ela bateu com o pé para encontrar o vaso sanitário. Enquanto ela tirava as calças, ficou atenta aos barulhos do hotel. As batidas vinham de alguns andares acima e estavam fixas num lugar. Ela ficou aliviada agora que o sequelado parou de fazer as rondas. Talvez o cara tenha encontrado o quarto dele.

Em seguida, ela ouviu algo mais baixo que aquele som, fino, agudo, quase ferindo o silêncio anormal. Primeiro ela pensou que DeVontay estava assobiando, mas o som vinha da esquerda — o quarto do outro lado da suíte deles.

— Tá ouvindo isso? — sussurrou ela, surpresa com o eco nas paredes ladrilhadas do banheiro.

— Falou alguma coisa?

— É música.

— Não pode ser. O clarão queimou os todos os eletrônicos. Você não viu no jornal?

Ela não ressaltou a contradição. Em vez disso, ouviu mais atentamente enquanto se limpava. As notas tiniam com uma frieza metálica, ainda que variadas em tom e ritmo. Depois de subir o zíper, ela tateou a estante perto da pia até encontrar os copos descartáveis. Ela tirou a embalagem plástica e colocou a boca do copo contra a parede e o ouvido contra o fundo do copo.

Ela não se virou quando a porta se abriu atrás dela e DeVontay interveio. — Que você tá fazendo?

— Pssst. — Quando Rachel tinha nove anos, antes do divórcio, o pai lhe dera uma caixinha de música com uma versão “barbieficada” da Cinderela em cima. Girando a chave de latão, ela fazia a Cinderela rodar e rodar sem perder um sapatinho. A caixa de música produzia o mesmo tipo de tonalidade metálica que ela ouvia.

— Tem alguém lá — alertou ela.

— Não tem ninguém lá. Eles teriam nos ouvido e diriam alguma coisa.

— Talvez estejam com medo.

— E talvez seja um sequelado.

Rachel pensou em bater na parede e gritar, mas, se a pessoa ficasse assustada, não adiantaria nada. — Precisamos abrir a porta pra ver.

— O cacete que a gente vai abrir — refutou contrariado DeVontay com o olho bom se estreitando. — Nós já temos um plano e salvar o mundo não faz parte dele.

— Então tá — desafiou ela, passando por ele, sem se importar com a descarga. — Me dá essa arma e espera aqui, seu cagão.

— Cagão? Ninguém mais me chama de “cagão”.

— Foi mal, mas eu não conheço gíria de mano, da quebrada, ou sei lá que jargão de periferia você quer ser chamado. Mas eu não vou a lugar nenhum até ver o que tem naquele quarto.

Rachel ficou surpresa com a própria revolta, mas ela entendeu. Ela se sentira tão inútil vendo todo mundo morrer no clarão — ou ficar sequelado, ou cometer suicídio — e finalmente tinha uma chance de ser útil.

DeVontay exalou um longo suspiro. — Tá bom, pô. A gente arruma as coisas, vê o quarto e cai fora.

Seus olhares se cruzaram e eles se encararam por dez segundos completos sem hesitar. — Fechou.

Enquanto ele arrumava as coisas, ele resmungava enquanto respirava. Rachel pegou a mochila dela, verificando antes se estava lá o frasco de pentobarbital que o farmacêutico lhe dera. Não, ela não se renderia, não enquanto alguém precisasse de ajuda.

DeVontay sacou a arma e puxou o pino de segurança antes de abrir a porta. Rachel se aproximou por trás. Já no saguão, eles ouviam o sequelado batendo no andar de cima.

O quarto ao lado era o 202 e, a julgar pelo espaçamento das portas, parecia ser também uma suíte. Eles pausaram diante da porta laminada, ouviram, mas a música parara. Rachel cutucou DeVontay e ele passou a chave-mestra na fechadura.

A fechadura estalou, emitindo a própria música, e o bater no andar de cima parou.

— Merda — sussurrou DeVontay.

Rachel o empurrou para dentro do quarto. As cortinas estavam abertas, com a luz cinza passando até o carpete. Os cobertores estavam amontoados numa das camas e o ar era pestilento de podridão. Havia um menino de uns dez anos ajoelhado no chão, com uma boneca agarrada ao peito. A boneca estava despida e o garoto girava para frente e para trás um manípulo que se projetava das costas da boneca.

Olhou para cima e os viu com seus olhos castanhos e o rosto pesaroso de culpa. — Estragou.

Rachel ajoelhou e colocou as mãos sobre os ombros dele, tentando não chorar. DeVontay puxou o cobertor para confirmar o que o nariz deles já desconfiava.

— É a sua mãe? — Rachel perguntou delicadamente, com medo que o menino visse as lágrimas dela e começasse um berreiro.

— Ela não acordou mais — relatou o garoto.

— Melhor a gente sair daqui — advertiu DeVontay. — O cara no andar de cima não vai esperar o elevador.

— Vamos — pediu Rachel, pegando a mão do garoto e empurrando-o para o corredor.

O garoto deu uma última olhada para o vulto na cama, para um passado que não fazia mais sentido para nenhum deles, e deixou-a guiá-lo para o Depois.


CAPÍTULO 8

Marina estava chorando.

Não berrava, pois isso o perturbaria. Eles estavam a salvo, ele estava bem certo de que estavam, tão a salvo quanto qualquer um naqueles dias. Ainda assim os queixumes e o choramingo de Marina o perturbavam. Ele, no entanto, não demonstraria — não com Rosa prestes a se descontrolar.

Jorge Jiminez deixou o rosto se endurecer como uma máscara, a mesma expressão de quando o patrão, o Sr. Wilcox, lhe mandava espalhar esterco de lhama nos canteiros de flores. Jorge gostava das lhamas, mesmo que às vezes elas cuspissem na cara dele. Ele gostava muito mais delas que do Sr. Wilcox.

Ele gostava mais até do cocô delas que do Sr. Wilcox.

Mas o gringo estava morto e também as dezesseis lhamas. Jorge estava do lado de fora quando o clarão aconteceu, com o chapéu de aba larga bem sobre os olhos. As lhamas caíram quase instantaneamente, e também Barkley, o border collie que sempre amolava os animais. As galinhas mal pararam de ciscar e bicar. Jorge achou que era um tipo estranho de arma, embora ele não conseguisse imaginar como uma arma podia matar tantos animais de uma só vez sem fazer um ruído sequer.

Mas seus pensamentos se voltaram imediatamente para Rosa e Marina, e ele largou a pá e olhou cuidadosamente o pequeno trailer nos fundos da propriedade, que estava espremido atrás dos pinheiros de forma que ele não fosse visto da casa do Sr. Wilcox. A esposa e a filha não notaram o clarão. Rosa estava remendando o joelho de um par de calças e Marina estava esparramada pelo chão, colorindo seu enorme livro de princesas.

Isso a uma semana atrás.

Eles se mudaram para a casa do Sr. Wilcox dois dias antes e, embora Jorge instintivamente tivesse sentido que era mais seguro, ele nem sabia ao certo qual era o perigo. Afinal, todos pareciam estar mortos.

— Talvez fosse melhor a gente ir à cidade pra ver — sugeriu Rosa. Ela estava sentada na fina mesa de carvalho, desconfortável, com um copo d’água na mão como se tivesse medo de deixar manchas no acabamento.

— Eu já disse, o caminhão não quer dar a partida — explicou o homem como que a uma criança. — Nem o carro, nem a motocicleta. Tá tudo morto.

Ele não quis dizer a última palavra com tanta raiva. Ele nem queria dizer essa palavra. Era uma palavra de mau agouro em tempos como aqueles.

— E se a gente for andando?

— Dá pra chegar num dia. Marina não consegue andar essa lonjura, a gente ia ter que se revezar pra carregar ela.

— Eu consigo andar essa lonjura, sim — interrompeu Marina com a voz estridente. — Não sou nenhum neném.

O inglês dela era muito bom, melhor que o de Rosa e quase tão bom quanto o dele. Jorge estudara na escola da comunidade porque sabia que nunca mais veria Baja, na Califórnia. Mesmo que as minas de prata de La Paz pagassem 200 pesos por dia, os Estados Unidos ofereciam a prosperidade de que um homem precisava para criar a família. Como muitos de seus conterrâneos imigrantes, ele planejara trabalhar um ou dois anos e voltar, mas sempre tem uma conta pra ser paga antes, ou uma papelada, ou algum empecilho legal.

Por sorte, o Sr. Wilcox ofereceu um emprego o ano todo. Na primavera, tinha jardinagem; no verão, os empregados cortavam a grama das várias subdivisões separadas por portões construídas pelo patrão; no outono, eles cortavam feno e preparavam a colheita de árvores de Natal. No inverno, o Sr. Wilcox distribuía uma lista de reparos pela propriedade, cuja descrição Jorge ouviu um dia do patrão como “quarenta hectares de paraíso montanhoso do leste do Tennessee”. O ano todo tinha a tarefa de espalhar esterco: esterco de galinha, esterco de lhama, esterco de porco, esterco de cavalo e, uma vez em que a fossa séptica entupiu, esterco de gente.

Naquela semana, não houve adubação — a não ser pelas inúmeras covas.

— Não, você não é neném — concordou ele com Marina.

— Talvez fosse bom a gente ir até a casa do vizinho — sugeriu Rosa, olhando pela janela.

O vizinho mais próximo estava a meia hora de caminhada, até para uma menina de nove anos. Jorge não tinha medo da distância. Ele tinha medo do que fosse encontrar quando chegasse.

Talvez eles descobrissem mais pessoas como o Sr. Wilcox, cujo rosto ficara lívido e olhos estatelados, como se o clarão os tivessem cegado para sempre. Ou mais como a família Detoro no trailer próximo do deles, com Alejandro e Sergio mortos no chão e a mãe Nima morta no sofá. Jorge encontrou Fernando Detoro no celeiro, caído sobre o capô aberto no motor do trator com as mãos pretas de graxa. Jorge pensou que talvez Rosa e Marina tenham sobrevivido porque estavam dentro de casa e que, por isso, tiveram sorte, mas a mesma situação não protegeu a família Detoro.

— Acho que não devíamos nos arriscar — argumentou ele. — Temos tudo de que precisamos aqui.

— Mas não sabemos...

— Sí. Não sabemos. Então vamos ficar.

Na presença de Marina, eles só conversavam em espanhol quando estavam juntos, mas Jorge queria uma filha americana. Ela já teria problemas demais só por causa do tom de pele, embora seus lisos cabelos negros e seus olhos ônix com certeza deixassem as mais pálidas garotas com inveja. Não que houvesse tantas garotas mais brancas por perto para se preocupar.

Jorge cruzou a sala de estar e abriu as grossas cortinas de veludo. Para um solteiro, o Sr. Wilcox exagerara um tanto na decoração da casa. O gramado da frente estava ficando alto e Jorge tinha que tirar a morrinha para apará-lo.

Nada se mexia lá fora, exceto alguns corvos que se empoleiravam na cerca branca. Os corvos adoraram essa nova situação. Muitos detritos com que se alimentar.

Jorge se sentou no sofá e ficou olhando a enorme tevê de tela plana. Era de um tamanho absurdo, como muitos móveis da casa do Sr. Wilcox. A tela apagada se tornara um escárnio de todas as coisas que foram outrora ali reproduzidas.

— Acho que vou tentar o trator de novo — disse ele. — Se alguma coisa ainda funciona, é o trator.

Rosa não entendeu essa lógica absurda. Embora eles tivessem sido criados numa cultura patriarcal, Jorge a incentivava a expressar-se. Ele valorizava a sabedoria dela. Naquele momento, entretanto, ela estava assustada e o medo sempre embota a sabedoria.

— Vamos ficar sozinhas — observou Rosa. Marina olhou por cima do desenho.

Jorge olhou para a despensa da cozinha onde havia uma espingarda carregada encostada na estante de vinhos, temperos e enlatados. — Sozinhas, não.

— Volta rápido, papai — pediu Marina.

— Prometo, tomatilla — disse ele usando o apelido dela: “tomatinha”. — Você obedeça à mamãe, tá?

Marina sorriu, assentiu e voltou a desenhar. Jorge ficou pensando se algum dia ela voltaria à escola ou se teria a vida americana normal que ele lhe desejara.

Ele puxou a maçaneta e parou em frente à porta. Ele não sabia se devia ou não ter medo. Ele não sabia o suficiente para ter medo.

Jorge não queria pegar uma das armas do armário porque Marina se assustaria. Ele apertou o cinto da calça como se se preparasse para semear o campo. O facão estava pendurado no cinto como sempre.

— Tranque quando eu sair — orientou ele a Rosa antes de passar para fora.

O dia estava claro, o sol deixava tudo mais intenso devido a todo o período que ele passara dentro de casa. Ele ficou no pórtico, olhando entre as colunas brancas. Os pássaros palravam nas árvores, mas os chilreados e assovios se espalhavam pela vegetação adjacente, sinistramente esparsos para agosto.

Então nem todos os pássaros morreram.

As árvores estavam paradas e os pastos vazios. O milho balançava ligeiramente no jardim, com os cabelos começando a ficar dourados. O que quer que tivesse matado pessoas e animais não parecia ter afetado a vegetação.

Jorge passou do pórtico e passou pelo SUV prateado do Sr. Wilcox. O veículo provavelmente custaria dois anos de salário do Jorge, mas era inútil. Jorge encontrou as chaves nas calças do Sr. Wilcox quando vasculhou o corpo do homem, mas a SUV estava tão morta quanto o patrão. Jorge até trocou a bateria com o trator, mas o motor não ligava.

Jorge não era um mecânico tão habilidoso como Fernando Detoro, mas estava convencido de que o que matou Fernando também silenciou os motores.

Ele deu uma olhada na estrada e continuou a caminhada até o celeiro. O Sr. Wilcox recebia visitas da cidade, homens gordos de gravata que nunca pisaram numa fazenda. Rosa disse que eram banqueiros e advogados que usavam o dinheiro do Sr. Wilcox para fazer mais dinheiro sem trabalho. Jorge quis que Marina tivesse oportunidades na vida. Ele economizara dinheiro num pote sob o trailer. Era para a faculdade dela.

Se é que ela vai voltar pra escola um dia.

Ele entrou no celeiro de dois andares. Jorge mentira para Rosa. Não havia esperança de que o trator fosse dar a partida. O motor estava em pedaços: o radiador removido, os cabos de vela e as mangueiras dispostos sobre um pano cheio de graxa.

— Willard? — chamou ele.

No dia das mortes, Willard White estava misturando produtos químicos para borrifar nos arbustos. Willard era o único cujo corpo ainda não aparecera e Jorge queria ter certeza de que a família estava sozinha na fazenda. Ele também não queria que Marina cruzasse com um cadáver em decomposição.

Talvez Willard esteja com tanto medo quanto eu. Talvez ele esteja escondido.

Willard era do lugar, um gringo, mesmo que fosse desleixado e fedido. Ele também falava muito, por isso Jorge não conseguia imaginá-lo escondido tantos dias. Willard adorava tagarelar sobre a “Bernice, a vadia da minha esposa”, o “governo mardito”, o “mardito sol nos ói”, as “costa doendo”, o “Wilcox filho duma égua”, o “cardo-santo duma égua tomando conta do pasto” e a longa litania das constantes misérias da vida.

Jorge verificou as baias do estábulo, onde uma fileira de cavalos relinchava perturbadoramente. O Sr. Wilcox gostava de mostrar os cavalos dele, mesmo que nunca os tenha montado. Os cavalos eram uma extravagância: consumiam um pasto valioso e não forneciam nenhum alimento em troca, ao contrário das vacas e galinhas. Jorge, porém, gostava dos cavalos porque eles o tratavam como um semelhante, ao contrário dos homens.

Ele passou a mão no nariz de cada um e lhes prometeu dar de comer. Ao contrário das lhamas, eles sobreviveram à doença do sol.

Jorge entrou num depósito entulhado, onde Willard gostava de passar os intervalos e tomar um trago da sua aguardente. As latas de lixo metálicas cheias de grão adoçado estavam num canto. Os arreios se dependuravam numa das paredes e uma fileira de selas ficavam empoleiradas em três cavaletes. Uma das tarefas do Jorge era montar os cavalos uma vez por semana para mantê-los treinados e em forma, mas o equipamento de couro estava arruinado.

A pá que Jorge usara para enterrar as pessoas estava pendurada na parede, perto de machados, traçadores, marretas, correntes, arreios de animais, polias, correias de ventiladores, laçadas de cordéis e todas as outras ferramentas necessárias para se tocar uma fazenda. Jorge não tinha certeza, mas os sacos de produtos químicos e os borrifadores pareciam intocados.

Tu-dum.

Algo caíra do palheiro acima.

A brusquidão do som fez com que Jorge parasse de chamar. Se fosse o Willard, o homem teria ouvido e responderia. O celeiro era amplo e aberto, e o som era bem conduzido sob as telhas onduladas de zinco.

Jorge ficou totalmente imóvel, com o coração quase saindo do peito.

Não precisa ter medo. Tá todo mundo morto.

Outro som pesado veio de cima, como se alguém estivesse largando sacos de forragem.

Jorge saiu da sala de ferramentas cuidadosamente, sem ranger a porta. Foi para as escadas do palheiro e subiu segurando o facão. Ciscos de poeira giravam pelas janelas abertas como insetinhos. Sua subida assustou uma galinha, que cacarejou e explodiu debaixo dos degraus numa névoa de penas. Ela devia ter feito ninho ali. Jorge não confiaria naqueles ovos, não com tudo morrendo assim.

No topo da escada, uma rústica porta de tábuas. Quando ele a alcançou, Jorge não levantou o ferrolho enferrujado preso por um prego dobrado. Em vez disso, ele se curvou e observou por uma rachadura nas tábuas.

Willard White apareceu no meio do palheiro, ziguezagueando e balbuciando como era comum acontecer quando tomava sua carraspana.

Willard não estava resmungando nem cantando como faria se estivesse bêbado. Não, ele realmente não estava falando, o que era o primeiro sinal de que havia algo de errado — Willard não conseguia calar a boca.

Enquanto Jorge o espionava pela rachadura, Willard cambaleava entre os fardos de feno, os barris plásticos de água e os sacos de farelo de milho, como se procurasse sua garrafa. Ele tropeçou numa pilha solta de feno e caiu de cara no chão com um tum macio que estremeceu as tábuas do piso. Era o som que Jorge ouvira. Willard deve ter caído duas vezes antes disso.

Apesar da inquietude, uma onda de alívio passou por Jorge.

Talvez seja uma bebedeira diferente. Pelo menos ele tá vivo. Não estamos sós.

Jorge levantou o ferrolho e abriu a porta.

— Sr. White? — chamou Jorge.

Willard não se mexia.

Talvez ele esteja doente. Talvez ele tava sozinho, com medo, e mandou ver na birita.

Jorge entrou no palheiro, com uma das palmas assentadas sobre o cabo do facão. Ele não tinha certeza se alguém podia ficar bêbado por três dias.

— Aconteceu uma tragédia, Sr. White — disse Jorge, com a voz mais alta que o normal. Ele queria que o homem acordasse, mesmo que isso significasse que o Willard estaria no comando, porque o Sr. Wilcox fazia questão de colocar os mexicanos no lugar deles. Ou seja: se levasse Willard White para a casa, ele se tornaria o novo Sr. Wilcox.

A luz do sol estava branda sobre o feno, criando um colchão dourado em torno de Willard. As janelas eram cobertas com tela, permitindo que a brisa entrasse e remexesse o palhiço. O silêncio da fazenda era anormal e até a desvairada galinha se aquietara.

— O Sr. Wilcox, todo mundo... está morto — disse Jorge, então a três metros de Willard. O homem parecia não estar respirando, e aí Jorge sentiu medo de novo. Se as pessoas ainda estavam morrendo pelo que aconteceu, Marina e Rosa estavam em perigo.

Na hora, ele sentiu muita vontade de voltar para a casa.

No entanto, ele tinha que saber.

Ele se ajoelhou perto do homem, fungando. Não havia cheiro de bebida no Willard, embora as roupas dele estivessem sujas e o cheiro fosse bem forte.

Jorge tocou-lhe o ombro e sussurrou: — Sr. White?

O homem se virou de repente e pegou Jorge pelo pulso com seus dedos nodosos e calejados. Com um grito, Jorge tentou cair para trás, mas Willard o agarrava com uma força impressionante. Os olhos abertos brilhavam com as pupilas praticamente ocupando toda a órbita, e o branco restante dos olhos estriados de vermelho.

A boca de Willard se mexeu e Jorge viu uma enorme cavidade num dos molares amarelos. — Iã... iã...

— O quê? — perguntou Jorge, tentando soltar o braço.

Willard resfolegou e tirou a outra mão das profundezas do feno. Nela, um martelo de pena hemisférica. Deve ter sido o que atingiu as tábuas do piso.

— Você também tá com medo — disse Jorge.

Willard estava sorrindo, embora a boca contorcida estivesse aberta demais. — Iã... iã...

— Deixa eu te ajudar — pediu Jorge.

Willard agitou o martelo enquanto puxava Jorge para si. Bem na hora, Jorge desviou. O martelo acertou-lhe o braço, causando uma dor gelada que lhe percorreu o corpo.

— Sr. White? — Jorge se virou, mas Willard continuava a apertar o pulso dele, cortando-lhe a circulação.

Willard ainda ostentava um sorriso, mas não havia humor em seus olhos brilhantes. O homem não piscava e todos os ciscos de palha estavam colados em seus olhos. Willard levantou o martelo de novo, incapaz de executar outro golpe porque ainda estava deitado.

O martelo passou perto da cabeça de Jorge, o suficiente para que sentisse o deslocamento de ar, e desembainhou o facão com a mão livre. Willard estava preparando o martelo para outro golpe quando Jorge o acertou.

O antebraço de Willard não era tão flexível quanto as mudas que Jorge plantava no pinheiral. A lâmina do facão entrou na carne e atingiu o osso com um som úmido e dilacerante. O sangue jorrou do ferimento e atingiu o rosto de Jorge, mas Willard não largava seu pulso.

E o pior: Willard ainda estava tinha aquele sorriso, como se o corte fosse uma brincadeira entre colegas de trabalho para matar o tempo. — Iã... iã... — balbuciava o homem sem exprimir dor nem emoção.

Foi quando Willard preparou o martelo para outro golpe que Jorge, com raiva e espanto, o cortou de novo. Dessa vez o osso esmigalhado cedeu. O cotoco de Willard esguichava jatos de sangue no ritmo de seu pulso e o lavrador se sentou e o observou com uma curiosidade desinteressada.

Jorge caiu para trás depois que o corpo de Willard deixou de servir de ancoramento. O braço dele era pesado. Ele ficou imaginando o que aconteceria se tivesse sido atingido pelo martelo, mas, quando olhou para baixo, viu a mão decepada do Willard ainda presa em seu pulso.

Horrorizado, Jorge tentou fazer o membro amputado soltá-lo, mas ele não cedeu. Jorge prendeu o facão ensanguentado em sua axila e começou a debulhar os dedos. Um deles se mexeu, serpenteando como se tivesse vontade própria.

Por fim, ele conseguiu se livrar da mão e a atirou contra as tábuas.

Enquanto corria para a porta, Jorge deu uma última olhada para Willard White. O homem ficou de pé e começou a cambalear de novo, como se Jorge nunca estivera lá. O sangue pingava do ferimento, mas o rosto dele não mostrava sinais de choque. Deixou cair o martelo e fez o tum característico.

— Sr. White? — chamou Jorge, desesperado para ver o menor traço de emoção humana no rosto meio barbudo.

Willard se virou em direção à porta. — Iã... iã...

A mão aracnoide ainda se mexia. Jorge deu um passo à frente e meteu a bota nela, fazendo-a escorregar pelo piso até Willard, que a pegou, olhou para ela e a enfiou na extremidade do braço como uma criança tentando consertar uma boneca quebrada.

Jorge bateu a porta, colocou o ferrolho no lugar e respirou fundo. Ele encontrou um fio de enfardadeira e laçou o ferrolho por segurança. Willard White podia facilmente remover a grade das janelas se quisesse, mas Jorge nunca vira nenhum sinal de inteligência restante no rosto do homem.

Jorge desceu rápido as escadas, pensando se deveria tirar a camisa para que Marina não visse as manchas de sangue. Ele não conseguia chegar com uma mentira convincente e ainda estava incerto sobre a verdade.

Ele só sabia que não queria deixar a mulher e a filha sozinhas se existissem homens como Willard White.

Se é que ele era humano...

Na casa, havia armas e munição e, mesmo que Jorge não soubesse o que estava acontecendo, ele conseguiria defender sua família. Ele pegou o facão, mas estava muito agitado para embainhá-lo.

Depois da penumbra do celeiro, a luz do sol cegava. Apertou os olhos e rumou para casa.

Ele parou depois de um passo.

Dois homens ficaram entre ele e o pórtico frontal, com o rosto tão inexpressivo quanto o de Willard e os olhos isentos de emoção, mas brilhando com incontrolável energia.


CAPÍTULO 9

— Hola — disse Jorge.

O homem da esquerda estava vestido como um dos amigos banqueiros do Sr. Wilcox, embora seu terno estivesse amarrotado, as mangas rasgadas e a gravata torcida para o lado. Era baixinho, gordo e careca, com mãos grossas e pálidas e dedos como lagartas. Era alguém que nunca fizera trabalho braçal.

O outro homem estava perto dos degraus do pórtico. Apesar do calor, ele vestia um sobretudo marrom com manchas escuras na frente.

Sangue?

O homem de sobretudo era alto e magro, com barba curta e rosto pustulento. Ele parecia familiar, com cabelos lambidos para trás, boné verde de basebol e sobrancelhas grossas, mas Jorge tinha certeza de que não era nenhum dos colonos. Talvez ele fosse do pessoal da construção.

Nenhum dos homens respondeu ao seu cumprimento. Jorge levantou o facão, que estava pendurado ao longo da coxa direita. Ele não tinha certeza se eles estavam tão doentes quanto Willard White. Eles não pareciam perigosos, mas a quietude deles o perturbava.

Ele apontou o facão para o banqueiro e balançou a lâmina em direção à rodovia, indicando a direção que deveriam seguir.

Não tem carro nenhum. Há quanto eles estão aí?

Talvez o homem tivesse vindo a pé da cidade, mas isso levaria um dia. Jorge não conseguia imaginar o homem roliço andando toda a estrada de cascalho, muito menos os quinze quilômetros até a cidade. Não com aqueles sapatos caros de couro.

— Você — chamou Jorge o homem de sobretudo. — Sai daí.

O homem se virou e começou a subir os degraus. O banqueiro finalmente piscou, o primeiro movimento facial desde que Jorge saiu do celeiro.

Jorge visualizava Marina dentro da casa e Rosa assustada com os barulhos do lado de fora sem conseguir disfarçar sua inquietude. — Pare — disse ele com medo de gritar.

O homem de sobretudo o ignorou e atravessou o pórtico até a porta da frente, com as pesadas botas martelando as tábuas do assoalho. Ao contrário de Willard, o homem de sobretudo se movia com um propósito, embora seu andar fosse desengonçado e desequilibrado.

Ele está tentando entrar.

Ignorando o banqueiro, que outrora receberia o mesmo respeito polido que o Sr. Wilcox, Jorge correu para o pórtico. Se ele se movesse rápido o bastante, o homem de sobretudo não chegaria à porta.

No entanto, enquanto Jorge levantava o facão e se preparava para se precipitar sobre os degraus, ele sentiu um movimento à esquerda. O banqueiro se aproximou com uma rapidez que desafiava seu tamanho e se bateu contra Jorge num abraço envolvente, derrubando-se com ele no chão. O facão voou dos dedos de Jorge.

Jorge rolou, arrastando-se no gramado para apoiar-se. O banqueiro agarrou a coxa dele e Jorge chutou para trás, acertando o ombro do homem. O esforço enrubescia o rosto do homem, que ostentava um sorriso macabro.

— Seu blanco culito — resmungou Jorge num esforço de não levantar a voz.

O “bunda branca” se agarrou em Jorge, rasgando seu caro paletó. Jorge chutou e foi para trás como uma aranha. O agressor não o soltou.

O homem de sobretudo chegou à porta e pegou a maçaneta.

Enquanto o banqueiro padecia do mesmo mal que contaminou Willard, o homem de sobretudo agia com intenção e inteligência. Jorge o considerou o mais perigoso dos dois, mas primeiro ele teria de lidar com o banqueiro.

Jorge usou um truque que aprendera lutando com os porcos. O Sr. Wilcox castrava os leitões que não estavam destinados à reprodução. Jorge se ressentia desse ato sanguinário e violento, mas naquele momento ele ficou grato pela experiência.

Tratar o banqueiro como um porco.

O banqueiro não tinha a força de um leitão. Jorge passou as pernas na parte de cima do peito do banqueiro, apertando-as como uma tesoura. O banqueiro urrou e empurrou o conjunto, ralando as costas de Jorge, mas o movimento o aproximou do facão.

O homem de sobretudo esmurrou a porta da frente.

Se você fizer a Marina chorar, eu vou te castrar.

E foi quando Jorge o reconheceu: era o ferrador que aparecia uma vez por mês para aparar os cascos dos animais e substituir-lhes as ferraduras. O banqueiro tivera a oportunidade de entrar na casa, talvez tomar uma limonada ou uma bebida na adega, mas o ferreiro nunca teria entrado. Os trabalhadores nunca entravam na casa do Wilcox.

O facão estava a um metro e meio de distância e o banqueiro impedia Jorge de conseguir se projetar. Jorge espremeu o homem com mais força entre os joelhos. Suas coxas tremiam de medo, raiva e esforço.

O ferrador bateu na porta com os dois punhos, fazendo o barulho de um cavalo galopando sobre uma ponte de madeira.

Jorge ouviu um grito dentro da casa.

Deve ser a Rosa. Marina é mais calma — ela nunca quebraria a promessa de ser boazinha.

Ele quase sentiu raiva de Rosa tanto quanto sentia dos dois homens. Marina seria americana, controlaria mais as emoções.

O grito, porém, deu-lhe forças. Ele agarrou a cabeça do banqueiro e meteu-lhe o rosto contra o chão. No impacto, um leve bã de surpresa saiu da boca do homem. Ele mal notava a dor.

A cabeça do banqueiro se levantou. Aqueles olhos secos olhavam direto para Jorge e para os campos além.

A cabeça rosada do homem o enraiveceu. O banqueiro se tornou o símbolo de todas as vezes que ele tivera de tirar o chapéu, assentir e suar nos escritórios de imigração, franzir e sorrir de má vontade no celeiro quando Jorge ia pegar suprimentos da fazenda. O banqueiro era o bacon num mundo em que Jorge só podia comprar toicinho salgado.

Jorge socou o homem, fazendo balançar uma das orelhas borrachudas. Ele preparou um segundo golpe, mas o banqueiro se arrastou para frente quando as pernas de Jorge se afrouxaram.

O banqueiro ficou por cima dele como um amante, com um fedor de suor almiscarado com notas de colônia chique. Jorge golpeou novamente, mas o ombro do homem impediu o impacto total do soco.

— Sai fora — grunhiu Jorge para o homem.

O banqueiro se contorceu sobre o peito de Jorge, mas o peso impedia que Jorge o jogasse para o lado. Logo depois, ele estava bafejava o rosto de Jorge com um fedor de curral.

Ele tá sorrindo. Como se isso fosse futebol americano.

Jorge dobrou o pescoço até conseguir ver o ferrador à porta. O homem parara de bater e estava procurando algo num dos bolsos do sobretudo. Ele tirou um torquês pequeno usado para aparar os cascos dos bichos. Jorge empurrou o banqueiro enquanto o ferrador metia a ferramenta na porta e começava a torcê-la, fazendo ranger o metal.

O banqueiro foi para cima de novo, com a testa brilhante no queixo de Jorge, que teve de lutar contra o ímpeto de morder a carne rosada.

Em vez disso, usou o impulso para deslizar-se com ele mais uns trinta centímetros até que os dedos conseguissem encostar no facão.

Ele meneou a lâmina no ar, sem conseguir um arco completo. A lateral da lâmina golpeou as costas do banqueiro com uma pancada seca. O banqueiro, que parecia não compreender o perigo da lâmina, ignorou-a e continuou a apertar Jorge como que para sufocá-lo.

Jorge conseguiu um espaço melhor e golpeou de novo — dessa vez o facão cravou o paletó caro e acertou a carne. O sangue jorrou do ferimento.

O banqueiro, confuso, contorcia o rosto. Jorge abriu mais um talho nas costas do homem.

O banqueiro afrouxou a posição o bastante para Jorge chutá-lo e rolar até ajoelhar-se, bem na hora em que viu o ferrador abrir a porta dianteira.

Ele conseguiu entrar...

O coração de Jorge disparou de medo. Ele usou a adrenalina para se atirar em direção ao pórtico, com o sangue pingando do facão. Ele estava desequilibrado, o brilho do sol o cegava e o ranger da porta soou tão alto como o grito de um bicho.

Ele não conseguiria alcançá-lo a tempo. O ferrador entrou na casa com a ferramenta tiritando ao lado.

Ele esperou o grito de Rosa. Pulou os degraus e levantou o facão.

Antes de Jorge entrar, porém, um sonoro padum retumbou pelo vão. Jorge entrou e sentiu o cheiro acre de disparo de arma de fogo.

O ferrador estava de rosto para o chão com um florão vermelho nas costas do sobretudo. Rosa estava parada no balcão da cozinha e ostentava a espingarda nos braços finos.

Uma espiral azulada de fumaça saía do cano da arma como se, em vez de matar um homem, ela tivesse acabado de queimar a torrada.

Não é um homem. É um troço. Um porco.

— E Marina? — perguntou Jorge.

— No armário.

Era onde estavam as armas. Jorge visualizou Rosa colocando Marina lá dentro e pegando a arma. Talvez ele não conhecesse tão bem a esposa.

— Quem era? — indagou Rosa.

— O ferrador.

— Tá morto?

Jorge cutucou o corpo com a bota. Jazia no piso como um saco de batata podre. — Sí.

— Quem são essas pessoas?

— Alguma coisa mudou. — Jorge deixou o facão ensanguentado sobre o balcão de granito, atravessou a cozinha e abriu a porta da despensa. Marina estava sentada com as costas arqueadas numa caixa de vinhos com as mãos sobre as orelhas e o cabelo pendendo sobre o rosto.

Ele se ajoelhou e passou os dedos nos cabelos dela até que ela olhou para ele.

— O bandido já foi? — perguntou ela. A voz dela não tremia nem choramingava: estava só cautelosa, como se tivesse feito algo de errado e não soubesse o que é.

— Sim, tomatilla, ele foi embora.

— Não é que nem na televisão, né? Que o bandido volta depois que a gente acha que ele já foi embora?

Jorge a abraçou, olhando de novo para a cozinha. Dali ele conseguia ver o pé do ferrador. — Não, não é que nem na televisão.

Mas ele se esquecera do banqueiro. Jorge desferira vários golpes violentos com o facão, mas provavelmente não o suficiente para matá-lo. — Fique aí, está bem? Un momento.

Ele estava se confundindo, misturando palavras em espanhol. Marina nunca se tornaria americana se ele não se controlasse. Ela assentiu e até conseguiu esboçar um sorriso. Ele passou por trás dela e pegou o rifle de caça com a mira grande. Ele não sabia que calibre era, mas o cartucho que ele colocou no cano era quase da grossura do mindinho.

Isso, é só sorrir na cara do perigo e você se adaptará. Porque os Estados Unidos são um lugar perigoso.

Ele fechou a porta da despensa e Rosa estava aguardando de espingarda no colo. Os olhos dela estavam abertos e úmidos de pavor, mas a mandíbula estava firme.

— O outro está morto? — perguntou ela sussurrando para que Marina não ouvisse, embora fosse possível que o som do disparo tivesse ecoado para além dos ladrilhos da cozinha.

— Tenho que ver.

— Eu vi pela janela. E quando ele chegou pelo pórtico...

— Você fez bem. Espera um pouco que eu vou ver o outro, o banqueiro.

— Isso vai dar algum problema pra gente? A gente ter matado esses gringos?

Jorge não lhe contou do Willard. — Não sei para quem daria problema. O Sr. Wilcox tá morto. Quem vai ligar pra polícia?

O telefone não funciona.

Jorge se posicionou perto da janela grande, abrindo a cortina com a ponta do cano do rifle. O banqueiro estava de quatro, rastejando-se para longe do pórtico. O paletó dele estava rasgado e a gravata se arrastava no chão. Jorge ponderou se deveria atirar no homem. Será que ele sentia dor ou estava inerte às sensações? A raiva que Jorge sentira da ameaça à sua família esvanecera e o deixara cansado e confuso.

— Que vamos fazer agora? — perguntou Rosa atrás dele.

— Podemos ficar — respondeu ele, desconfortável com a própria indecisão. Ele sempre foi o patriarca. Naquele momento, sua esposa era protetora, matadora, enquanto ele deixava escapar, ainda que rastejando, o homem que o atacara e ameaçara sua família.

— E se tiver outros? O Sr. Wilcox tinha muitos amigos.

— Ele não tinha amigo nenhum. Era um bando de gente que só queria o dinheiro dele.

E agora temos tudo o que ele tinha.

Jorge olhou para a TV gigante afixada na parede da sala de estar com as sombras dos galhos das árvores de fora projetadas na superfície preta. A estante alta de vidro tinha patos, peixes e tartarugas de madeira entalhada, além de elefantes de marfim dos quais o Sr. Wilcox sempre se gabava por serem ilegais. Acima da lareira de mármore havia uma pintura de negros ceifando trigo com segas.

No andar de cima, na cômoda ao lado do cadáver pálido e inchado do Sr. Wilcox, Jorge encontrara oito mil dólares numa caixa de charutos. Ele receara pegar o dinheiro, certo de que os ricos tinham como rastrear o dinheiro.

Tudo o que o Sr. Wilcox tinha agora é inútil, fora essas armas e a comida na despensa.

Jorge olhou para o cadáver do ferrador em resfriamento e a poça de sangue que já se coagulava em torno dele.

E cavalos.

— Apronte a Marina — pediu Jorge.

— Já?

— Encha umas mochilas de comida pra gente ir comendo no caminho.

— Então nós vamos sair daqui?

— Pode chegar mais gente. Não quero esperar.

Jorge sentiu uma onda de força enquanto controlava a situação. Ele ainda era masculino. Mas ficou com o rifle, mesmo com o facão embainhado. Trancou a porta da frente atrás dele e viu o quanto o banqueiro tinha conseguido se mover. Ele estava quase chegando na estradinha, com as moscas já a circundá-lo em nuvens negras.

Já já os urubus vêm jantar.

Jorge analisou o céu, pensando se sua família seria afetada, se ficaria como eles.

Essas preocupações, porém, o enfraqueceriam, e Marina e Rosa precisavam da força dele. Além do mais, ele tinha um rifle. Pensou de novo no dinheiro do Sr. Wilcox e todos os confortos inúteis da vida do patrão. Ele não era um homem muito religioso, apesar da criação católica, mas talvez os humildes realmente tivessem herdado a Terra.

Era uma explicação possível de por que os três não foram afetados pela doença do sol.

Rumou para o estábulo, então, para selar os cavalos.


CAPÍTULO 10

— Em que estrada nós estamos? — perguntou DeVontay olhando para o mapa amarrotado.

Eles se sentaram à sombra de um grande carvalho, com cuidado para não tocar no venenoso sumagre já ficando vermelho vivo no final do verão. O garoto rapidamente ficou cansado e perguntou uma vez pela mãe. Eles, porém, continuaram seu caminho, determinados a fugir dos centros populacionais onde os encontros com os sequelados eram possivelmente mais frequentes.

— É a I-77 — respondeu Rachel apontando para a estrada de quatro pistas abaixo deles. Eles andaram paralelamente à estrada, ficando na vegetação mesmo que o percurso ali fosse mais difícil. Rachel não confiava em veículos, principalmente porque muitos deles tinham vidros escurecidos. No topo do aclive, eles conseguiam ver o movimento em qualquer direção.

DeVontay olhou de soslaio através da copa da árvore no sol nascente. — Que caminho nós tomamos?

— O sol nasce a leste — respondeu Rachel. — Eu já fui bandeirante.

DeVontay franziu a testa com uma expressão quase cômica por causa do olho de vidro. — Eu devia ter te deixado no hotel.

O garoto se apertou e tremeu ao lado de Rachel, e ela, balançando a cabeça, lançou a DeVontay um olhar furioso.

Nós somos os pais dele agora. Temos de fingir que está tudo bem, como os pais costumam fazer.

Falhei com a Chelsea, mas não vou falhar com este garoto.

Os cabelos loiros e as sardas do garoto sugeriam uma compleição que sofreria facilmente queimaduras de sol. Na parada matinal numa loja de conveniência, ela encontrara um protetor solar para ele e o fizera usar um boné. Ela também escolhera as ofertas mais saudáveis que conseguiu, como o suco de maçã que, por sorte, não estava estragado. DeVontay pegou o mapa, um pacote de isqueiros e meia caixa de tortinhas de chocolate e manteiga de amendoim.

Rachel pegou uma garrafa d’água na mochila e a ofereceu ao garoto, que ainda abraçava a boneca nua contra o peito. — Aqui, querido. Você deve estar com sede.

O garoto balançou a cabeça. Ele falara menos de dez palavras o dia todo. Rachel considerou se ele estaria em choque. Ela não estudara muito sobre saúde básica, mas sabia que as pessoas tendiam a morrer de choque antes de morrer de causas horríveis.

Ela colocou a água perto do tênis do garoto e lhe ofereceu uma barrinha de cereais. Ele balançou a cabeça.

— Você tem que falar com a boca — disse DeVontay. Ele abriu a embalagem de uma das tortinhas e ofereceu-a ao garoto. O garoto estava salivando visivelmente e lambeu os beiços.

— Tudo bem. — Rachel lhe deu um sorriso animador, esperando que o garoto não tivesse uma onda com tanto açúcar enquanto estivessem andando.

O garoto deixou a boneca cair no colo e pegou o doce, que estava macio por causa do calor. Quando ele mordeu, DeVontay observou: — Derrete na boca e não na mão.

— Essa descrição é de confeito de chocolate — corrigiu ela.

— Sei lá. É o mesmo princípio.

— Não, não é. Os confeitos têm uma casquinha dura e lambuzam os dedos de corante artificial em vez de chocolate.

— Você discute sobre tudo, não é?

— Não, só quando você tá errado. Opa, peraí, mas você tá sempre errado.

Os olhos azuis do garoto ficavam de lá para cá, de um para outro. Ele se voltara um pouco para o mundo, saindo do inferno particular na cabeça dele.

— Toma — disse ela oferecendo-lhe outra tortinha de chocolate. Ela ficou com o doce na mão até o chocolate escorrer. Em seguida, abocanhou o doce. Estava tão doce que doeu no dente.

Ela mostrou a palma da mão para os dois. — Estão vendo? Uma lambança.

— Parece cocô — disse DeVontay.

Rachel fez um número analisando a palma da mão como se fizesse uma observação científica. — Hmm. Você tá certo, parece mesmo.

Ela lambeu a palma da mão, sujando os lábios de chocolate propositalmente. — Mmm. Tem gosto de cocô também!

DeVontay riu e o garoto acompanhou. — Eca! — exclamou o garoto com uma voz prazerosa.

— Opa, olha isso — disse DeVontay. Ele enfiou os dedos na pele abaixo do olho esquerdo e tocou na órbita de vidro, rolando-a um pouco para fazer com que o olho ficasse olhando para a extrema esquerda.

Ei, não assuste o garoto. Estamos fazendo com que ele volte ao normal, e não fazê-lo pensar que você é um sequelado.

O garoto olhou com intenso interesse. DeVontay sorriu, levantou a pele abaixo da sobrancelha e tirou o olho, rolando-o entre os dedos. Ele o segurava como se fosse uma bola de gude: — Ele tá olhando pra você, moleque.

— Deixa eu segurar? — pediu o garoto.

— Claro. Mas só se você me deixar segurar sua boneca um minuto.

O garoto assentiu e eles fizeram a permuta. Era a primeira vez que Rachel via o garoto sem a boneca desde que eles o resgataram. Ela decidiu aproveitar para fazê-lo falar. — Qual o seu nome?

— Stephen.

— Que nome legal.

O garoto deu de ombros, pois estava concentrado no olho de vidro. Ele virou o olho, que refletiu a luz. — Como você perdeu o olho? — perguntou ele a DeVontay com os lábios apertados numa linha solene.

— Fazendo bagunça. Coisa de moleque.

— Minha mãe diz que, se a gente brincar com varetas, acaba furando o olho.

— Ela é bem inteligente — comentou DeVontay.

Rachel notou que ele usou o presente. Ele tem um bom instinto. Talvez ele tenha mais experiência social do que deixa transparecer.

DeVontay acariciou o cabelo encarapinhado da boneca. — Qual o nome dela?

— Molly.

— É um nome bonito — disse Rachel.

— E dói? — perguntou o garoto passando o olho de vidro de volta para DeVontay.

— Não mais. A gente se acostuma. Mas demorou um pouco.

Rachel notou também que ele suavizou a gramática das ruas que costumava usar e encobriu a agressividade que mostrara até então. — É como agora, este Depois, é algo com que teremos de nos acostumar — disse ela a Stephen.

O garoto tocou no logotipo no boné. — Tipo não ter futebol este ano.

— Provavelmente não teremos — disse DeVontay. — De qualquer maneira, esse time aí não ganharia nada. Eles seriam derrotados pelo favorito desta temporada.

Enquanto DeVontay recolocava o olho, Rachel esquadrinhou a estrada abaixo. Toda essa gente apodrecendo no calor de agosto.

— Minha mãe disse que só as pessoas más mudaram — disse Stephen.

— Muita gente morreu, Stephen — explicou Rachel. — Ninguém é perfeito, mas a maioria das pessoas é boa.

— Então por que a mamãe morreu? É porque ela é má?

DeVontay deu uma olhada para Rachel do tipo: “Essa é com você”. Ele devolveu a boneca ao garoto, que na mesma hora a apertou contra o peito, aparentemente voltando ao seu estado semicatatônico. Rachel sabia que essa podia ser a chance de trazer o garoto de volta.

— Sua mãe não era má — disse Rachel. — Deus só precisava de mais um anjo no céu para arrumar as coisas para quando a gente chegar lá.

Droga. Talvez não fosse a melhor opção. Mas eles não falaram disso no aconselhamento.

— Então por que algumas pessoas morreram e outras continuam vivas fazendo ruindade? Elas não são más?

— Não dá pra saber, querido. É por isso que precisamos ficar longe de todo mundo até descobrirmos o que está acontecendo.

— Então vamos ser nós três pra sempre?

— Nós vamos encontrar outros igual a nós.

— Pessoas boas?

Rachel não sabia por que ela sobrevivera. Ela sempre se sentira especial, mas não de um jeito arrogante. Ainda nova, sempre sentiu que Deus a fez com um propósito e somente uma pessoa como ela no mundo todo, e também que deveria ser Rachel a vida toda. Ela sentia isso mesmo antes de a mãe a levar para a missa ou de o pai resmungava seu discurso que anos mais tarde ela identificou como ateísmo.

Ela nem tinha certeza se algum dia aceitou o ateísmo dele, pois não compreendia um mundo sem uma finalidade e uma ordem. Depois da morte de Chelsea, o pai eliminara qualquer traço de fé, insistindo que nenhuma piedade divina permitiria tal tragédia. Que será que o pai diria sobre aquele apocalipse?

— Sim — confirmou Rachel, percebendo que o silêncio se arrastara demais, preenchido pelo pio dos pássaros e o farfalhar suave das folhas acima. — Pessoas boas.

— Você sabe onde elas estão?

Estudando o mapa novamente para evitar participar da conversa, DeVontay apontou para noroeste e disse: — Sim, rapazinho. É pra lá.

— O Mi’ssippi é pra lá? — perguntou Stephen. — Meu pai tá no Mi’ssippi.

Rachel se pegou assentindo. Mentiras brandas não a tornavam uma pessoa má, não é? — Isso, o Mississippi é pra lá.

— Espero que o papai esteja bem. Não quero que ele seja uma das pessoas malvadas.

Os olhos de Stephen se encheram d’água e Rachel foi até ele para abraçá-lo. Ele pendeu nos braços dela e ela lhe acariciou as costas. — Com um filho como você, tenho certeza de que ele é bom. Vamos encontrar ele pra você.

Ela imaginou uma versão mais velha e corpulenta do Stephen, um corpo inchado numa cama, ou na calçada, ou assando dentro de um carro. Depois, ela o visualizou cambaleando ao longo da rua, procurando alguém para atacar. Imediatamente, ela rejeitou a visão.

Por favor, Deus, dai-me forças. Mostre-me Vosso propósito e ajudai-me a ser parte da Vossa vontade, mesmo que eu não a compreenda.

DeVontay dobrou o mapa ao contrário, deixando-o ondulado e com as quinas desiguais. Ele o meteu na mochila e também o que restou da comida. Tirou a pistola, certificando-se de que Stephen não estava olhando, e disse: — Melhor a gente começar a andar até o Mi’ssippi, tá bem?

Rachel passou a mão no cabelo de Stephen tirando-o do rosto sardento e beijou-lhe a testa. — Você é um bom garoto. E não acho que pessoas más consigam machucar pessoas boas, você acha?

Ele balançou a cabeça dizendo que não, batendo na bochecha dela com a aba do boné. Ela sorriu e o ajudou a levantar-se. DeVontay andou para trás para a sombra até ficar atrás da árvore. Ele balançou a cabeça em direção à estrada.

Rachel viu quatro deles, vindo pelo asfalto entre as filas amontoadas de carros. As roupas deles não pareciam rasgadas e eles não titubeavam nem tremiam, mas ela sabia que eram sequelados. Havia algo de diferente neles. Talvez fosse a forma com que examinavam cada veículo por que passavam, como se procurassem qualquer movimento que pudessem aquietar para sempre.

Eles estavam a cerca de trezentos metros de distância e era improvável que notassem alguém no aclive acima deles. De acordo com as observações de Rachel, os sequelados tinham uma percepção prejudicada, como se só conseguissem processar as informações mais próximas. Talvez o foco deles na destruição fosse tão avassalador que não conseguissem ter uma percepção mais abrangente do mundo.

Talvez essa fosse a definição de “mau”: mera destruição egoísta.

— Você precisa ficar bem quieto, Stephen — disse ela calmamente, em tom de voz normal. — Você consegue?

Ele abriu a boca e se apercebeu, assentindo em seguida. Ele olhou para DeVontay e viu a arma.

— Nós vamos pro Mississippi agora — disse ela.

— Vou ficar bem — sussurrou Stephen.

— Por aqui — orientou DeVontay, acenando para eles a vegetação arbustiva que pontuava o aclive. Rachel cutucou Stephen na direção de DeVontay e pegou as mochilas. Na estrada abaixo, um dos sequelados bateu com uma barra de ferro contra o capô de um carro. A batida brutal foi uma intrusão na serenidade pastoral de momentos antes e Rachel se lembrou de que o Depois não era nenhum paraíso.

Era uma terra na qual vagavam os maus.

Quando três dos quatro sequelados sumiram de vista atrás da carroceria de um caminhão, Rachel passou rápido para os arbustos para se juntar a DeVontay e Stephen. Um vidro se quebrou mais abaixo, seguido por um estranho grito inumano que poderia ser de alegria.

Eles se apressaram sem falar nada; DeVontay bateu os galhos e arbustos com o braço que segurava a arma; Stephen se acocorou baixo para que a aba do boné escondesse-lhe o rosto, e Rachel não parava de olhar para trás. Eles ainda estavam se movendo quase em paralelo à interestadual, embora mais distantes e com vegetação entre eles e a estrada. O frio da manhã deu lugar a um intenso calor que vaporizava o orvalho e o ar trazia em si a promessa de um forno.

Depois de dez minutos, eles não conseguiam mais ouvir o vandalismo desenfreado e DeVontay desacelerou um pouco, colocou a arma no cinto e pegou Stephen. Ele deve ter notado os círculos negros de exaustão sob os olhos do garoto.

— Eu sei que você é grandinho pra caminhar, mas quero que descanse pra me contar histórias pra dormir — disse DeVontay.

— Você vai atirar nas pessoas más? — perguntou Stephen, deixando a boneca aninhar-se entre eles. Deve ter sido desconfortável para DeVontay, mas ele não disse nada.

— Nenhuma pessoa má vai te pegar enquanto a gente estiver junto, beleza, rapazinho?

— Tá bem.

Rachel despiu Stephen da mochila para ajudar a aliviar a carga de DeVontay. Isso fez com que a boneca caísse no chão e Stephen, alarmado, deu um balido. Ela rapidamente a apanhou antes que ele gritasse e alertasse os sequelados. Eles continuaram pela vegetação, que raleava consideravelmente e, de quando em vez, permitia que se visse a rodovia congestionada.

Depois de alguns minutos, Stephen adormeceu e DeVontay desacelerou o passo para diminuir o balanço da sua andadura.

— Você viu o que eu vi? — perguntou Rachel.

— Acho que sim. Mas pode dizer só pra garantir que não é minha imaginação.

— O sequelados estão andando em grupo. Eles não tavam fazendo isso antes.

— Talvez seja aleatório. Vai que eles trombaram um no outro e disseram: “Aê, véi, cola aê e vamo’ junto quebrá tudo? Formô?”

— Não sei... Não tô gostando disso.

— E eu não tô gostando nada disso. Já tava ruim antes desses manés andarem em bando.

Ele voltou a manifestar aquela personalidade das ruas. Ela não o culpava. Talvez fosse um mecanismo útil de sobrevivência — e eles precisavam de todos os mecanismos que conseguissem encontrar.

— Você foi muito bem agora há pouco — elogiou ela. — Com o Stephen.

— Então de vez em quando eu sou bonzinho — retrucou ele. — Não se acostume.


CAPÍTULO 11

Campbell estava sonhando com Gina Bellinari, a primeira garota que ele beijou. No sonho, eles estavam atrás das arquibancadas no estádio de futebol da escola Idlewild, e deve ter sido num dia letivo porque ele ouvia os garotos correndo e rindo enquanto treinavam. Gina dizia que as pessoas notariam a ausência deles e que ela não suportaria passar pela sala do diretor novamente, e Campbell, conhecendo a reputação dela, sabia que um beijinho não seria nada demais. No entanto, quando a foi beijar novamente, com os lábios franzidos como se ele estivesse prestes a chupar uma bala azedinha, ela lhe chutou o queixo com vontade.

“Putz”, disse ele sabendo que era mala, ou seja, que não perderia a oportunidade, já que Gina podia escolher qualquer garoto hétero da escola, exceto os artistas e os alunos meio nerds que provavelmente continuariam virgens até depois da formatura.

“Vamos sair daqui agora”, ordenou Gina com uma voz áspera, rachada e masculina — e ela não parecia nada contente com o fato de ter sido beijada.

Campbell abriu os olhos e viu Arnoff ali do lado, vestido de sobretudo com estampa de camuflagem. O encontro com Gina cedeu lugar a um pesadelo em que todos os valentões de queixo quadrado do colegial que esfregavam suas bandeiras na cara dele e se pavoneavam dizendo aos quatro ventos palavras como “honra” e “dever”. Mas aí não se tratava de um farsante do colegial: era um homem feito, embora as bochechas estivessem barbeadas e rosadas como as de um adolescente.

Em seguida, Campbell se lembrou do acampamento e das tempestades solares e dos seis bilhões de pessoas mortas no mundo — e das costas que o matavam de dor por estar dormindo no chão. — Inferno — grunhiu.

— Isso aí, igual a ontem — disse Arnoff caminhando em direção ao fogo, onde o professor zelava um pote de café.

Campbell tirou o cobertor grosso e o fedor das roupas amarrotadas rastejou sobre ele. Ele não trocara de roupa desde que saíram de Chapel Hill e só tomou banho uma vez, esfregando indiferentemente suas axilas na água do regato. Se os sequelados não o pegassem, talvez ele fosse devorado por algum fungo carnívoro.

Ele olhou de relance a barraca de Pamela. Donnie estava ajudando Pamela a desmontá-la. Ele era magrelo e tinha problemas nos dentes, como um ex-presidiário que fora privado de higiene adequada. O cabelo preto e ensebado era penteado para trás e ele vestia uma jaqueta de sarja sem manga, exibindo os braços cobertos de tatuagens grosseiras. No colegial, Campbell o chamaria de caipira, mas nunca na cara dele.

— Não esquece de sacudir pra tirar as folhas — disse Pamela para Donnie. Ao menos Pamela dedicara o mínimo de tempo para escovar os cachos ruivos e, se o palpite de Campbell estivesse certo, também para passar base e rímel. À luz da fogueira, ele dera uns trinta anos para ela, mas o intenso sol matinal acrescentara-lhe uns bons dez aos ao rosto.

— Um pouco de sujeira não mata ninguém — disse Donnie.

— Não disse que mataria; disse que eu não quero sujeira.

— A barraca é minha também.

— Não mexe com quem tá quieto.

— Mexo com o que eu quiser, onde eu quiser.

— Os pombinhos querem parar com isso? — latiu Arnoff. — Vou fazer um reconhecimento da área e quero todo mundo pronto pra rodar quando eu voltar.

Rodar? Em quê? Bicicletas? Bela coluna armada a sua, Rambo.

Campbell se arrastou para fora do cobertor e deu uma olhada no acampamento. Era mais ordinário à luz do dia do que parecia ser à noite, com roupas imundas tremulando de um cordel descaído amarrado entre uma árvore e outra. Meio metro atrás do professor havia um murundu de latas, sacos plásticos e borra de café. Pete provavelmente rolou para longe do fogo durante a noite e estava todo enrolado na borda da clareira.

Campbell se levantou e espreguiçou. Pamela olhou na direção dele com um sorriso malicioso e disse: — Isso é o melhor que a Geração Y tem a oferecer?

Donnie franziu o cenho sem deixar passar a chance de implicar. — Peso morto. Não tenho ideia do que Arnoff acha que tá fazendo.

— Tá te irritando, Donnie. Além disso, talvez salvando sua vida.

Campbell assentiu para o professor, que se concentrava em fazer o café perfeito nas circunstâncias mais adversas, como se o apocalipse fosse um laboratório rústico de química. O homem de óculos estava empoleirado como se tivesse passado a noite toda olhando as chamas. Em circunstâncias normais, Campbell nunca seria encontrado morto em tal companhia. Normal, no entanto, era uma lembrança longínqua.

Duas semanas? Ainda não se passaram nem duas semanas?

Enquanto Donnie e Pamela enfronhavam a barraca num saco de náilon, Campbell acordou Pete, cercado em seu saco de dormir por meia dúzia de latas de cerveja amassadas. Pete piscou os olhos turvos e disse: — Argh. Acho que eu virei um sequelado: parece que alguém rachou minha cabeça igual um ovo e deu um choque lá dentro.

— Estamos sem tempo para você curtir sua ressaca. O sargento Rock mandou a gente ir embora.

— Não somos obrigados a ficar com esses palhaços. Estávamos nos saindo bem só nós dois.

— Você acha? Seu plano A se resumiria em achar o caminhão de cerveja mais próximo.

Pete se sentou, limpou as remelas dos olhos, pegou seu capuz de lã e o enterrou até a sobrancelha. — Dá um tempo. Pelo menos eu não tô pensando em cair na casa dos meus pais e dormir no porão até conseguir me virar.

— Cara, isso se chama “esperança”. Quando tá tudo afundando na merda, ela tá lá pra gente se segurar.

Pete olhou em volta, deu uma olhada na caixa de cerveja e pegou uma lata quente, fazendo-a jorrar espuma ao abri-la. — Isso aqui é a única coisa em que eu me vou segurar.

— Ei — chamou Pamela. — Baladeiros de plantão, vocês vêm conosco?

— Quanto mais gente, melhor — disse Campbell para Pete.

— “Gente”? Olha o professor. Você quer sua vida nas mãos dele?

O professor verteu o fluido negro e espesso do pote de café numa caneca de latão e a soprou. — Pelo menos não vai comer seu fígado se ficar preso na neve com ele — argumentou Campbell. — E parece que o sargento Rock sabe manejar uma arma, ao contrário de você.

— Tá, então por que ele não nos devolveu nossas armas? Acho que não é hora de ser tão controlador a esse ponto. Afinal, tem muita merda por aí que foge ao controle de todo mundo.

Donnie passou por eles com uma mochila, um rifle e a barraca ensacada sobre o ombro. — E aí? Qual de vocês dois é o filhinho da mamãe?

— Como é? — perguntou Pete.

— ‘Pera lá, caras como vocês? Tá brincando? Vocês tão andando aí de mãozinha dada. Preciso de um filhinho da mamãe pra carregar essa barraca pra mim.

— Vai se ferrar — disse Pete, ainda sentado e enrolado no cobertor.

Com a ferocidade de um carcaju, Donnie largou o saco com a barraca e voou em Pete. O saco pegou na cerveja que ele segurava e forçou o ar a sair dos pulmões dele com um humpf.

Pete se levantou e cambaleou por um momento, ainda meio zonzo de ressaca, mas com raiva nos olhos. Campbell teve de segurá-lo, mas Donnie estava indiferente.

— Olha os namorados se abraçando — escarneceu Donnie com um sorriso de dentes podres. — Não é uma gracinha?

— Para com isso, Donnie — repreendeu Pamela. — Arnoff não vai gostar de ver você mexendo com os hóspedes depois do que aconteceu da última vez.

Última vez? Campbell não gostou do que ouviu.

— Olha, Donnie — disse Campbell aproveitando a chance e chamando-o pelo nome, sem saber como ele reagiria. — Basicamente o que sobrou da raça humana está aqui. Se formos brigar uns com os outros, não tem diferença entre nós e os sequelados.

— Que se danem eles — disse Donnie. — Eu tenho munição suficiente pra dar um jeito em todos eles.

— Não sabemos quantos deles existem por aí — lembrou o professor, tomando seu café como se estivesse expondo suas teorias para o barista do lugar. Era a primeira vez que ele interagia com alguém naquela manhã. Talvez ele precisasse de cafeína antes de conseguir enfrentar os horrores da vida moderna.

— É por isso que Arnoff quer todo mundo junto — explicou Pamela.

— Arnoff isso, Arnoff aquilo — disse Donnie. — A gente tava indo bem até que você elegeu ele como o imperador do mundo.

O ar esfumaçado foi cortado por um disparo de arma de fogo.

Arnoff apareceu dos arbustos. — Que bom que eu não era um sequelado, né? Senão tava todo mundo morto.

— Pô, Arnoff, assim você assusta as crianças — disse Pamela.

— É pra eles ficarem assustados mesmo. Por que vocês ainda não arrumaram suas coisas?

Pete e Donnie se entreolharam por um instante; em seguida, Donnie apanhou a barraca do chão. O professor jogou o café no fogo e disse: — Como foi a missão de reconhecimento?

— Parece estar tudo bem pra oeste, então vamos pra lá.

— Ontem você queria ir pra leste, em direção ao litoral — disse Donnie.

— Mudei de ideia. Todo mundo muda de ideia de vez em quando.

— E às vezes o sol faz isso por todo mundo — completou o professor.

— E nossas bicicletas? — perguntou Campbell, presumindo que Pete ficaria com o grupo. Campbell certamente ficaria, pelo menos até então.

— A gente anda num grupo unido — respondeu Arnoff. — Mas não seria nada mau ter sangue novo pra fazer ir na frente em reconhecimento.

Donnie sorriu maliciosamente. — Ouviram isso, meninos? Sangue novo.

— Deixa de ser escroto, Donnie — disse Pamela vestindo sua mochila. Campbell imaginou se ela teria uma arma de fogo enfiada ali num dos bolsos volumosos do casaco de algodão fino. Até o professor tinha um rifle encostado numa árvore perto do seu monte de equipamentos.

— Você vai nos dar as nossas armas agora? — perguntou Campbell a Arnoff.

— Arrumem suas coisas. Depois a gente vê isso.

Campbell ajudou Pete a enrolar o cobertor. Quando Pete foi pegar outra cerveja, Campbell chutou a caixa para longe. — Assim você vai nos matar.

— Se esses bichos não nos matarem antes... Você não acha que eles são meio desorganizados?

— Todo mundo tá meio desorganizado. Acabamos de chegar ao apocalipse. O que você esperava?

— Tá, mas a gente imagina que eles se comportariam como um grupo. Em vez disso, eles estão se matando.

— Tensão. Estamos numa zona de guerra agora.

— Vamos fazer do seu jeito por um dia ou dois, mas, se isso for o melhor que eles têm a oferecer, vou pegar minha magrela e vazar. — Pete vestiu a mochila e foi para a clareira.

— Que você acha que tá fazendo? — gritou Arnoff.

— Vou pegar a bicicleta.

Arnoff apontou seu rifle a noventa graus à esquerda de Pete. — Caso vocês queiram saber a direção correta a tomar.

Pete deu um aceno insolente e entrou na mata seguido por Campbell. Quando chegaram ao lugar onde Arnoff atirara no sequelado, o cadáver tinha sumido. Só havia uma área de grama amassada e uma mancha marrom-ferrugem.

— O que você acha que aconteceu? — perguntou Pete.

— Acho que alguém enterrou.

— Tá maluco? Você acha que o Arnoff perderia a oportunidade de colocar a gente pra cavar uma cova? Além do mais, por que ele se incomodaria? Eles sabiam que iam levantar acampamento. Que diferença faria só mais um corpo?

— Ou talvez ele não estivesse morto, mas só ferido.

Pete ficou olhando para as árvores em volta. — Não tô gostando disso.

— Que isso. Vamos pegar nossas bicicletas antes que os outros peguem.

Enquanto saíam da mata e subiam o aclive rochoso até a proteção metálica acima, Pete disse: — Pelo menos o professor parece ter uma cabeça boa. Talvez ele nos ensine alguma coisa.

— Ele só tem teorias — refutou Campbell.

— Já é mais do que nós temos. — Pete começou a escalar as pedras, mas só subiu meio metro e parou.

— Qu’é que foi?

— Tá sentindo esse cheiro?

— Só tô sentindo teu cê-cê.

— Sério, cara. É fumaça

— A fogueira?

— Não. É cheiro de plástico e lixo queimando, não madeira.

— Talvez o professor tenha botado fogo no lixo. “Não deixar rastro”, essas coisas.

Pete continuou a escalar e, quando chegaram na proteção metálica, Campbell já estava sem fôlego. Ele podia imaginar como Pete se sentia com a cerveja da noite anterior saindo pelos poros. A manhã já estava abafada.

— Olha — disse Pete apontando para o leste.

Várias colunas imensas de fumaça se encapelavam ao longe, reluzindo com o calor. — Que diabos é aquilo? — perguntou Campbell.

— Deve ser Greensboro — respondeu Arnoff.

Os dois viraram surpresos e viram Arnoff empoleirado na carroceria de uma picape, perscrutando o horizonte com um binóculo. Eles não o ouviram chegar por detrás.

Droga. E se fosse um sequelado?

— Que está acontecendo? — perguntou Pete.

— É o motivo de eu ter decidido ir pra oeste. Parece que as cidades ficaram pros sequelados.

— Como assim? — perguntou Campbell com o estômago apertado de medo. — Achei que eles eram máquinas de matar estúpidas.

— Foi como eu disse: eles estão mudando. — Arnoff abaixou o binóculo e colocou um par de óculos de aviador. — E até a gente saber por que eles estão mudando, ou o que estão se tornando, vamos manter distância.

Os outros chegaram ao pé do aclive e Donnie estava ajudando Pamela a caminhar. O professor subiu com a graça teimosa de uma cabra — sinal de que estava em forma. Arnoff observou Donnie como uma águia mira um camundongo.

— Muito bem, soldado — disse Arnoff para Pete. — Quer ser vanguarda?

— Não sei o que isso quer dizer.

— Pega as magrelas de vocês e vai na frente uns dois quilômetros, até o topo da próxima elevação. A gente vai atrás de vocês. Se vocês virem um sequelado, voltem pra nos alertar.

— Tenho uma ideia melhor. Por que você não me devolve a arma e, se eu vir alguma coisa, atiro pra cima?

Nada mau. Campbell se impressionou com a astúcia do amigo.

Arnoff assentiu brevemente. — Boa ideia.

Meteu a mão num dos bolsos da calça cargo camuflada e puxou a pistola do Pete. Pete empurrou a bicicleta até a lateral da carroceria da caminhonete e a pegou. Campbell não conseguia deixar de pensar que Arnoff estava abrindo mão da autoridade, uma posição que só o fim do mundo poderia ter-lhe concedido.

Todos descobrimos o nosso pior.

Não, “pior” não.

Porque todos presumimos que as coisas melhorariam.

Enquanto a turma de Arnoff se reunia no asfalto, Pete montou em sua bicicleta de dez marchas e pedalou entre os veículos parados, com sua silhueta ficando cada vez menor. Logo depois de um caminhão de lixo enviesado, guinou e sumiu.


CAPÍTULO 12

Jorge dera a Marina algumas aulas de montaria, mas era a primeira vez de Rosa num cavalo. Ele passou a maior parte da primeira hora só acalmando-a para não assustar nem os outros cavalos, nem Marina. Tennessee Stud, o cavalo de Rosa, era um garanhão mais velho e troncudo, mais resistente do que veloz. Ela só teria de segurar as rédeas e Stud faria o restante.

No entanto, até isso parecia demais para ela, deslizando de um lado para o outro sobre a sela.

— É só se ajustar ao movimento dele — ensinou Jorge. — Não briga com ele.

— Não tô brigando com ele — refutou Rosa.

— Seus dedos estão até brancos.

— Vai ver eu tô virando gringa.

— É que você tá agarrando com muita força.

Jorge montava uma égua vivaz chamada Sadie, mas era dócil e obediente. O maior problema de Sadie era quando dava nela aquela vontade de liberar energia e explodir em galope. Jorge sentia a força dela sob o corpo, como um vagão carregado de dinamite só esperando um fósforo.

Marina montava um pônei malhado que o Sr. Wilcox mantinha para os netos montarem. Jorge costumava selar o malhado uma vez a cada três meses e algumas das crianças faziam um circuito em volta do curral, passando pelo celeiro, e depois iam comer bolo, sorvete e jogar videogame. Marina se deu melhor com as artes equestres que a mãe, pendulando para frente e para trás em sincronia com a andadura do pônei.

Jorge as conduziu ao longo das trilhas que cortavam a fazenda de Wilcox. Jorge pensou em ir para o leste porque o pessoal geralmente embarcava as árvores de Natal para outros lugares do estado, pessoas ricas de Raleigh, Charlotte e Outer Banks, lugares onde as pessoas não plantavam árvores. Jorge queria evitar as estradas porque não confiava nos gringos — não queria que roubassem seus cavalos.

Além do mais, ele não sabia o que tinha acontecido com Willard e com os outros. Ele não sabia se todos tinham se tornado assassinos de olhos estatelados. Ele não deixaria nenhuma incerteza prejudicar a família.

— Que será que tá acontecendo no México? — indagou Rosa.

Jorge não queria falar sobre o assunto na frente de Marina. Antes que ele respondesse, no entanto, Marina respondeu: — Você vai atirar nas pessoas loucas?

— É errado atirar nos outros — disse Jorge.

O rifle que ele pegara na casa do Sr. Wilcox estava enfiado num colchonete amarrado atrás da sela, com a coronha para fora. O facão dele pendia embainhado do cinto. Ele estava pronto, se necessário fosse. Com Willard e o banqueiro, porém, ele só conseguira lutar depois de atacado.

Rosa salvara Marina. Jorge só chegou para amortalhar o ferrador na cozinha com um lençol.

— A gente pode voltar pra buscar meus lápis de cera? — pediu Marina.

— Em breve — respondeu Jorge. — Antes vamos ver se está tudo tranquilo.

Rosa lançou-lhe um olhar preocupado enquanto lutava para manter o equilíbrio em Tennessee Stud. — Onde vai dar esta trilha?

— Lá na estrada.

A estrada Blue Ridge fazia parte da floresta nacional, dizia o Sr. Wilcox. Os Estados Unidos separaram umas das terras mais lindas para o povo, embora o Sr. Wilcox dissesse que o governo tinha espoliado demais a população. A estrada ficava na fronteira com a Carolina do Norte.

“Os turistas do norte é que estacionam lá”, diria o Sr. Wilcox. “Mas eles fazem a gente pagar por isso.”

Chegaram ao começo da parte de trás do monte Jefferson, uma subida de floresta densa entremeada de granito. Eles estavam a uns quinze quilômetros da casa do Wilcox e as costas de Jorge começavam a doer. Ele imaginou a dor que Rosa devia estar sentindo por causa da postura rígida, mas Marina estava quase cochilando.

— Marina? — chamou-a preocupado.

Por favor, Senhor, que ela não esteja doente.

Ela ficou ereta na sela, puxando as rédeas. O pônei malhado parou e os outros cavalos o seguiram.

— Sí, padre? — disse ela.

Ele não gostava que ela falasse espanhol, mas deixou passar. — Você tá bem?

— Tô meio cansada.

Rosa levou a mão até a boca, mas o olhar era de temor. Jorge não sabia se os Detoros ficaram doentes antes de morrer nem se a síndrome do sol abateu Willard e os outros antes de se tornarem assassinos.

— Vamos descansar um pouco. — Jorge apeou da égua, amarrou-a numa árvore e ajudou Marina a desmontar. Rosa hesitou, desconfortável de ter de colocar o peso num dos estribos.

Jorge deixou Rosa se inclinar sobre os ombros dele para que conseguisse guiá-la até o chão. Ela sussurrou: — Ela tá pálida.

Jorge não achava, mas era difícil dizer com o sol mosqueando o térreo da floresta. Ele sempre se orgulhara de que ela não fosse tão morena quanto os pais. Nenhum dos médicos da clínica jamais demonstrou alguma preocupação com Marina, apesar das consultas de rotina quase sempre durarem menos de cinco minutos.

A água na casa do Wilcox era fornecida por uma bomba que ficara sem eletricidade. A única água disponível era a da caixa dos vasos sanitários, além da quarta que ficara numa panela sobre o fogão. Com ela, Rosa envasara um pote de conserva e Jorge embalou vários refrescos e uma garrafa de suco de uva que encontrara na despensa.

Uma água minava dentre duas lajes de granito cinza e Jorge a considerou potável. A água nos vales estavam contaminadas, mas, naquela altitude, muito poucas pessoas construíram casas ou estradas e os agrotóxicos usados nas árvores de Natal não chegariam tão longe.

Rosa pressionou o punho contra a testa de Marina para sentir sua temperatura. Ela nada disse, mas franziu os lábios. Jorge trouxe água num cantil que encontrou no equipamento de acampar do Sr. Wilcox e a deu a Marina.

— Os cavalos não vão beber água?

— Eles bebem quando a gente passar por um riacho — respondeu Jorge. — Essa montanha mina água de um monte de lugar.

— Eu gostei de cavalgar — disse ela a Rosa. — Posso ficar com o pônei se o Sr. Wilcox não voltar?

— Vamos ver — respondeu Jorge. Marina sabia sobre os mortos, mas estava mantendo a fantasia que Jorge inventou, na qual o Sr. Wilcox tinha levado os Detoros a uma exposição agropecuária.

— Não é certo ficar com o que não é nosso — afirmou Rosa. — Dá azar.

— Espera aqui — disse Jorge. — Vou dar uma olhada.

Mais à frente as trilhas se separavam: uma ia até o pico e a outra descia para o vale. As árvores eram finas em meio ao solo rochoso, e Jorge passou em meio aos mirtilos e loureiros. O céu se abriu e ele ficou sobre uma projeção musgosa, quase tonto pela densidade opressora da floresta.

A faixa de estrada se estirava abaixo, serpenteando pela base da próxima montanha e só visível em certos trechos. Ele contou três veículos parados na estrada e um reboque estacionado no acostamento gramado. Nada se movia.

Jorge estava tranquilo; sabia que a estrada era pouco movimentada porque era fechada para o tráfego comercial. O Sr. Wilcox ralhou uma vez dizendo que os turistas podiam usar a estrada como quisessem, mas que os caminhões com os pinheiros de Natal tinham que se desviar uns trinta quilômetros até chegar à interestadual. Havia o risco de ir em direção a mais gente de olho esbugalhado, mas a passagem seria bem mais fácil pela estrada.

Será que importa fazer o percurso mais fácil se a gente não sabe o que está acontecendo?

Jorge estimou que levaria uma meia hora para descer até a estrada, o que lhes daria tempo para se preparar para possíveis confrontos. Jorge estava relutante por ter deixado para trás a espingarda, em grande parte porque Rosa teria de carregá-la e Marina a veria. Ele se perguntou se a tensão estava desarranjando a barriga da filhinha.

Ele preferia que fosse isso à enfermidade do sol.

Jorge emergiu dos arbustos, pensando em como desceria com Marina pela montanha se ela estivesse doente, quão longe conseguiriam percorrer depois do ocaso e onde passariam a noite.

Talvez fosse bom ficar no reboque se não tiver nenhum...

Ele quase trombou com o homem de pé no final da trilha. Jorge não o vira porque o homem vestia um macacão todo verde com um capuz apertado margeando-lhe o rosto. Um par de óculos de proteção davam-lhe um ar de inseto e a barba grisalha meio desgrenhada saía por debaixo de uma máscara de tecido. O homem estava imóvel, desarmado e de luva nas mãos.

Jorge olhou pelo homem, certificando-se de que Marina e Rosa estavam depois da curva e fora do campo de visão dele. Ele se sentiu tolo de não ter trazido o rifle consigo. Ele não queria alarmar Marina. Mas ele tinha o facão e passou a mão no cabo da lâmina.

O homem parecia desarmado, mas sua imobilidade era ainda mais perturbadora que um arroubo de violência. Jorge se lembrou do comportamento agitado de Willard, do banqueiro e do ferrador e ele aceitara a violência como um sintoma da doença do sol. Se o homem estivesse doente — e Jorge não conseguia identificar o estado dos olhos do homem —, talvez a doença tivesse diferentes sintomas.

Isso o fez pensar em Marina. Ela podia estar mudando por causa da doença e a impossibilidade de lutar contra essa alteração o revoltou.

— Oi — disse Jorge, abrindo as pernas e inconscientemente assumindo uma posição de tensão para a ação.

Trinta centímetros à frente, o homem de olhos frios e redondos não reagiu. O único movimento era o da máscara de tecido, encolhendo e estufando ligeiramente com a respiração do homem. Um volume oval no tecido revelava a boca debaixo dela.

Jorge esperou alguns segundos, ouvindo os pássaros nas árvores, o farfalhar do loureiro e o murmúrio distante de um riacho que descia o leito pedregoso de Blue Ridge.

Ele desembainhou o facão.

O homem não se moveu.

Se ele estivesse doente, já teria me atacado.

Willard e o banqueiro não pareciam se dar conta do perigo do facão e, portanto, não o temiam. Mesmo depois de cortados, não desviavam do gume. Talvez não sentissem dor ou não se apercebessem do perigo — ou simplesmente não tivessem medo da morte.

— Eu tô indo pra lá — informou Jorge apontando a lâmina para a trilha atrás do homem.

O homem murmurou, mas as palavras foram abafadas pela máscara.

Jorge deu um passo adiante, deixando o facão balançar solto na mão. — Sabemos que esta terra não é nossa — disse ele. — Estamos de saída.

O homem falou mais alto e com palavras mais claras: — Está legalizado?

— Como é?

— Tem green card? Sua situação está regular?

Jorge achava que o homem não fora afetado, o que não significava que não fosse perigoso. — Sim, tenho um visto agrícola dos Estados Unidos.

— Onde você trabalha?

— Trabalho pro Sr. Wilcox em Titusville.

— O da plantação de árvore? Ele ainda está vivo?

Jorge não sabia o quanto deveria falar. Talvez o homem não soubesse de todas as mortes. Talvez ele fosse acusar Jorge de alguma coisa e Jorge queria evitar confrontos, o que foi um dos motivos para que pegassem a trilha.

Ele pensou em dar a volta no homem e sair correndo trilha abaixo, para longe de Rosa e Marina, na esperança de que o homem o seguisse. Mas ele não sabia se o homem tinha armas escondidas naquele macacão. Decidiu dizer a verdade.

— O Sr. Wilcox tá morto. Tem mais cinco trabalhadores mortos e dois amigos dele que estavam de visita.

O homem não mudou de posição; a máscara se movia para dentro e para fora enquanto ele processava a informação. — Tá doente?

Jorge balançou a cabeça. — Não sinto nada de diferente.

— Pelo jeito que você segura o facão, parece que sabe manejá-lo.

— Eu capino a fazenda de árvore.

— Aposto que sim.

Jorge apertou os olhos, tentando perceber os olhos do homem por trás dos óculos de proteção. — Não sou perigoso.

— Não esperava nada diferente disso — disse o homem. O sotaque dele era do pessoal das montanhas, com as vogais puxadas, e às vezes era difícil de entender. O povo dali não falava como os gringos da televisão.

Jorge passou para a trilha, evitando o homem. Um dos cavalos resfolegou e o homem de macacão se virou.

— E tem mais quantos ali? — interrogou o homem.

— Ninguém. É meu cavalo.

Dois cavalos relincharam, expondo a mentira. Jorge continuou andando, deixando o facão pender de seu quadril até que o homem o chamou pelas costas: — Eu pararia se fosse você, senão uma bala vai fazê-lo parar.

Se o homem estivesse doente, provavelmente não usaria uma arma nem falaria frases claras. Ou seja: era gente como Jorge e a família — o que também significava que estava com medo e confuso, portanto era perigoso. Jorge não podia arriscar uma corrida.

Ele encarou o homem, intimidado pelas lentes escuras. A mão enluvada segurava uma pistola fina prateada. Mesmo se Jorge desse uma carreira, teria sorte de levantar o facão antes de ser baleado pelo homem.

— Nós não somos perigosos.

— Nós? Tá mudando o enredo agora?

— Por favor, señor. Minha filha não está bem.

— Sua filha?

— É. Minha mulher tá com ela. Paramos pra descansar na travessia da montanha. A gente ia pra estrada.

— Sua mulher tá doente também?

— Não, o senhor não tá entendendo. Minha filha não tem essa doença do sol...

— Doença do sol? É assim que você chama? Não ouviu falar dos sequelados?

— Sequela? Não, não sei de nada disso, não, senhor. A gente só sabe que o sol matou um monte de gente.

Jorge ficou surpreso de estar quase às lágrimas. Força. A Rosa e a Marina precisam de mim.

O homem abaixou um pouco a pistola e a direcionou para os joelhos de Jorge. — E a sua filha? Qual a idade dela?

— Nove.

— Droga. — O homem botou a pistola num dos bolsos. — Tudo bem, vamos lá pegá-la.


CAPÍTULO 13

Eles andaram talvez uns cinco quilômetros saindo da estrada e Stephen ainda estava curvado sobre os ombros de DeVontay, parecendo meio sonolento. Eles ficaram relutantes em perder de vista a interestadual, mas também não queriam ficar a céu aberto. Desceram da colina para um subúrbio residencial, com carros silenciosos nas ruas com o ar ameaçador do vidro fumê das janelas.

A comunidade dormitório fora de Charlotte parecia mais que sonolenta. Parecia morta.

— Tá cansado? — perguntou Rachel a DeVontay.

— Muito não — respondeu ele, embora ela imaginasse que os músculos dele já estivessem gritando.

— Por que não descansamos um minuto?

— Quero andar um pouco mais pra ficar longe dos sequelados lá atrás.

— Acho que eles não ligam. Duvido que estejam muito interessados na gente.

— Ah, eles tão interessados em rachar a nossa cabeça. Você viu eles.

O disparo ecoou de uma das casas à frente, estilhaçando o vidro e reverberando pelo vale. Stephen se agitou nos braços de DeVontay, gemeu um pouco e apertou a boneca contra uma das bochechas enquanto DeVontay se acocorava.

Rachel correu até uma cerca branca encardida e perscrutou a rua à frente. A princípio, não viram nenhum movimento. Em seguida, ela viu um homem no jardim de uma casa de rancho de tijolos. O homem estava ligeiramente arqueado, se movendo em direção à janela quebrada da casa com o típico andar embaralhado.

Sequelado. Mas os sequelados não usam armas.

— Que foi? — sussurrou DeVontay por detrás dela.

— Encrenca.

— Sabia. O disparo deu toda a deixa.

— Alguém deve estar acuado na casa de tijolos — disse ela levantando a cabeça para que conseguisse espiar sem se expor. — Tô vendo um sequelado.

— Que qu’é um sequelado? — perguntou Stephen com uma voz sonolenta.

— Nada, não, rapazinho — disse DeVontay.

— É igual ao homem do hotel que ficava batendo nas portas?

— É tipo isso.

O sequelado cambaleou em direção à janela quebrada com uma ferramenta na mão. Parecia um ancinho com o cabo quebrado. O sequelado a arrastava atrás de si como um jardineiro com trauma de guerra. Ele parecia ter uns quarenta anos e vestia uma camisa xadrez e calças jeans. Duas semanas antes, ele provavelmente estava na churrasqueira, conversando com os amigos sobre futebol.

— Ele não é bonzinho, não — concluiu Stephen.

— Não — concordou Rachel, aliviada por ver o garoto menos catatônico que antes. — Provavelmente não.

— Espera aqui — disse DeVontay. — Vou dar uma olhada.

Rachel agarrou o antebraço dele enquanto ele se esgueirava pelos fundos da casa. — Você vai nos deixar aqui desarmados e indefesos?

DeVontay olhou para ela e balançou a cabeça. — Você e o rapazinho vão ficar bem. Você se virou bem antes de me encontrar, né?

É, mas eu só tinha que me preocupar comigo mesma.

— Tá bem, mas não demora muito — pediu ela.

DeVontay olhou como se quisesse lhe oferecer a arma, mas sem dizer essa palavra na frente de Stephen. Rachel acenou para ele, observando o sequelado jardineiro escalar a janela estilhaçada. DeVontay passou por uma cerca viva de azaleias e sumiu de vista quando Rachel viu os outros sequelados.

Dois sequelados saíram da garagem aberta, andando em fila. Um deles era uma senhora de robe floral, com os cabelos brancos esvoaçando na brisa. Um chinelo felpudo rosa cobria-lhe o pé direito; o outro pé estava nu, coberto de grossas veias azuis. Ela se arrastava como uma fugitiva de um asilo para idosos com Alzheimer.

O outro sequelado era um jovem com um corte de cabelo feminino e braços finos, usando uma camisa listrada. Ele lembrava o astro juvenil Justin Bieber, mas com uma mandíbula menos masculina. Rachel os apelidou de Miss Daisy e Biba. De algum modo, isso os tornava menos ameaçadores.

— Eles vão pegar o DeVontay? — perguntou Stephen abraçado com a boneca sob o queixo.

— Não, o DeVontay é esperto.

— Eles vão pegar a gente?

— Não, eles não vão nos pegar também.

— Se eles pegassem a gente, eles iam comer a nossa tripa igual na TV?

— Não, eles não comem gente.

Mas quanto ao Biba eu não garanto nada. Ele tá babando um pouco.

— O DeVontay vai levar um tiro? — perguntou Stephen.

— Ele vai ficar escondido até saber o que tá acontecendo. É bem provável que tenha uma pessoa normal presa dentro da casa e só as pessoas normais sabem atirar.

— Achei que arma era ruim.

— As armas são perigosas, mas às vezes a gente precisa usar. E os sequelados não atiram... quer dizer...

— Que qu’é um sequelado? —

Rachel olhou sobre a cerquinha branca de novo. Miss Daisy estava mancando dando dois passos à esquerda para cada passo à frente. O Biba a ultrapassara e foi em direção à janela, atropelando o cadáver. Rachel aventou a possibilidade de deixar Stephen em choque diante da necessidade de informação.

Ele precisa saber as regras do Depois. Agora arma é bom. E sequelado é ruim.

Ela sacudiu uma das estacas até afrouxá-la e a puxou para trás, abrindo um espaço na cerca. — Dá só uma olhada.

Stephen colocou o rosto na abertura e segurou a boneca para que ela também conseguisse olhar. — Tá vendo, Molly? As pessoas más são assim.

Pela janela quebrada saiu um grito de dentro da casa. Era uma voz masculina: — Volta.

Em seguida, Rachel escutou DeVontay gritar: — Ei, a gente tá aqui pra ajudar...

O tiro ecoou pela casa, estremecendo as janelas. O coração de Rachel se apertou dentro do peito como um punho cercado de arame farpado.

DeVontay?

Ela estava envergonhada de que seu primeiro pensamento tenha sido egoísta, de que tinha ficado sozinha para cuidar de Stephen. Afastou o pensamento e ponderou se deveria entrar na casa. O Biba estava subindo na janela, chutando a parede com as pernas enquanto tentava arrastar o corpo para dentro da casa.

Rachel olhou em volta. Havia um barracão de ferramentas atrás da casa vizinha com a porta aberta. — Vem — disse ela pegando Stephen pela mão e passando-o pela cerca de forsítia em direção ao barracão.

— Tô com medo — disse Stephen, e Rachel percebeu que ele estava falando com a boneca, e não com ela.

Eles passaram pelo gramado isolado; Rachel torceu para que a comoção na casa não tivesse atraído mais sequelados. Depois de se certificar de que estivesse desocupado, Rachel jogou a mochila dentro do barracão. O local estava entulhado de ferramentas de jardinagem e carpintaria, uma escada, um carrinho de mão e engradados de leite cheios de fios, tomadas e ferragens. Acomodados numa série de prateleiras estavam latas de tinta, sacos de terra e de pesticida e pacotes plásticos de herbicida. Através da luz de uma janela encardida, Rachel viu algo que poderia ser útil.

Ela pegou a lata de inseticida e colocou na mão de Stephen. — Se alguém chegar perto, você espirra isso nos olhos da pessoa, tá bem?

— Você vai me deixar aqui?

— É só por um segundo. Mas eu vou trancar a porta.

— Você vai voltar? — Stephen olhou freneticamente ao redor, provavelmente comparando o barracão com o quarto em que estivera preso com o cadáver da mãe.

Rachel se ajoelhou diante dele, pegou-o pelos ombros e olhou diretamente nos olhos dele. — Stephen, você acredita em Deus?

Ele assentiu. — A mamãe ia na igreja comigo.

— Deus vai olhar por você. É só rezar e você não vai estar sozinho.

— Mas foi Deus que fez os sequelados, não foi?

— Deus é o criador de tudo.

— Por quê? Por que ele não faz só pessoas boas?

— Eu já volto. Prometo.

Rachel olhou a parede. A marreta era pesada demais e o cabo da enxada era comprido e pesado demais. Encostada na bancada havia uma tesoura de podar com uma das lâminas curvas como o bico de uma águia.

Será que eu teria coragem de rachar a cabeça de alguém?

Eles não eram mais pessoas. Mas seria possível ter certeza disso? Será que os sequelados tinham alma? Mesmo que não tivessem, isso dava o direito de matá-los?

Ela fechou a porta, sorrindo para o Stephen, que estampava a preocupação no rosto de cachorrinho abandonado. Ela odiou ter de deixá-lo sozinho, mas até saber o que acontecera com DeVontay, não conseguiria escolher um curso de ação que pudesse expô-los ao perigo.

Até a hora em que ela chegasse à cerca de novo, o Biba desaparecera — provavelmente já estava dentro da casa. Miss Daisy estava fazendo seu passinho de quadrilha peculiar, batendo o ombro magro contra a porta de tela como se tivesse alguma lembrança das entradas, mas sem um destino específico em mente.

Rachel viu se havia outros sequelados na rua, lembrando-se do comportamento em grupo dos que tinha visto na interestadual. Aparentemente, ninguém reagira ao barulho, ou ao menos não havia mais ninguém nas redondezas. Ela decidiu ir por trás da casa e seguir o caminho de DeVontay.

Cerrou os punhos tão fortemente que os dedos doíam. Rastejou ao longo da cerca até chegar ao quintal. Havia um balanço numa caixa de areia cercada de brinquedos de plástico, além de duas latas de lixo viradas perto da cerca. Rachel supôs que haveria crianças mortas dentro da casa, talvez debruçadas sobre a mesa ou deitadas na cama em meio a orações e histórias para dormir.

Encontrou um portão destrancado, provavelmente o mesmo que DeVontay usou, e passou para o quintal. Quatro degraus de madeira levavam a um pórtico com tela e ela não conseguia ver nada por entre a malha. Ela parou para ver se escutava alguma coisa, mas o único som vinha das batidas de ombro da Miss Daisy.

Ela hesitou, visualizando Stephen no barracão sombrio, mas a cena foi substituída pela imagem fugaz dele deitado no chão sobre uma poça de sangue.

Furiosa consigo mesma, e recusando-se a reconhecer o próprio medo, correu pelo quintal e subiu os degraus. Ela abriu a porta e passou para dentro da casa, sentindo-se tola por não portar nenhuma arma. Logo à frente estava a cozinha com a porta aberta. Ela entrou na casa e teve poucos segundos para registrar a bagunça — um jantar prestes a ficar pronto, com cebolas fatiadas sobre uma tábua de corte e espaguete esparramado sobre o fogão — até que o homem a agarrou.


CAPÍTULO 14

Eles andaram cerca de três quilômetros ao longo da rodovia com Arnoff bancando o sargento instrutor e apressando o grupo, quando passaram pela bicicleta de Pete.

Ela estava jogada sobre o asfalto sem nenhum sinal da mochila de Pete. A bicicleta se integrava ao ambiente em meio aos veículos, abandonada e esquecida como todos eles. Campbell, depois de empurrar a bicicleta desde aquela manhã, encostou-a num sedã Nissan azul. Ele olhou pela janela do motorista e viu um homem grisalho com a cabeça virada para trás e a boca aberta. Ao morrer, a dentadura escorregou e ficou dependurada ao longo do lábio inferior inchado.

— Não parece haver nenhum sinal de violência — observou Arnoff.

— Você não devia ter mandado ele ir na frente — disse Pamela. Ela se abanava com uma bandana e a maquiagem escorria pelo rosto.

— Precisamos de um batedor.

— Precisamos é ficar juntos.

— Pssst, cala a boca, Pamela — disse Donnie. Ele enfiou na boca um naco de tabaco para mascar e o amassou duas vezes com os dentes. Em seguida, empurrou o bolo para frente da mandíbula com a língua.

— Ele deve ter abandonado a bicicleta e continuado a pé — supôs o professor.

— Não, Pete é preguiçoso demais pra isso — refutou Campbell. — Se tivesse alguma coisa errada com a bicicleta, ele teria sentado na caçamba daquela picape e esperado.

— Não tô vendo sangue — disse Donnie. — Então ele provavelmente não foi atacado por um sequelado.

Arnoff pegou a bicicleta e a quicou. — Os pneus estão cheios, parece que está funcionando.

Donnie andou uns seis metros na estrada com o rifle pendurado no ombro. — Nada na estrada.

Campbell colocou as mãos em concha ao redor da boca e gritou: —Pete!

— Cala a boca agora — latiu Arnoff — Quer chamar a atenção de todos os sequelados da região?

— Ele é meu amigo.

— Parece que ele fugiu e não te levou. Vai que ele decidiu que seria melhor continuar sozinho?

— Nesse caso, você fez uma asneira estratégica — observou o professor — porque, se era pra ele ir na frente como uma ovelha sacrificial, você perdeu um recurso sem obter nada em troca.

— “Ovelha sacrificial”? Como assim? — perguntou Campbell.

— É o canário na mina de carvão — explicou o professor. — Um boi de piranha. Uma isca.

— Ele estava ciente — disse Arnoff. — Ele sabia dos riscos.

— Você é louco — indignou-se Campbell. — A gente não tá num filme de guerra nem numa partida de xadrez. É um dos sobreviventes. Ele é um de nós.

— Fica frio, soldado — disse Arnoff. — Teu amigo deve estar sentado debaixo duma árvore, tirando um cochilo. Como o professor disse: não parece que ele foi atacado pelos sequelados. Além do mais, ele teria se trancado num desses carros se estivesse em perigo.

Campbell esmurrou a lateral do Nissan. O corpo lá dentro se deslocou um pouco e a dentadura caiu no colo do cadáver.

— Não vai se machucar — advertiu Pamela, rolando os olhos em direção a Arnoff. — Você pode precisar desse punho fechado mais tarde.

Donnie abriu a porta de trás de uma van próxima e o fedor rolou por cima dele como uma onda sólida. Um enxame de moscas saiu fervendo de lá, com as asas iridescentes sob o sol. Campbell enfiou a cara na dobra do braço, usando a manga da camisa como filtro de ar. Não foi de muita ajuda.

Campbell não chegara perto o bastante para contar, mas parecia haver meia dúzia de pessoas da idade dele apinhadas na traseira da van. Eles deviam estar em viagem. O rosto de uma garota estava virado para ele e, embora a carne dela estivesse podre e manchada, ele podia dizer que ela fora atraente. Seus lindos cabelos loiros ainda não tinham perdido o brilho.

Que desperdício.

Donnie chegou à massa de corpos curvados e puxou um bong roxo. — Acho que esses ripongas estavam indo pra uma festa bem específica — disse ele mantendo a posição diante da morrinha. — Eles nem podiam imaginar que o cérebro deles ia fritar com outra coisa.

— Para de mexer aí — disse Arnoff. — Você vai acabar pegando uma doença.

— Pouco provável — explicou o professor. — Se os corpos tivessem doenças infecciosas, os agentes geralmente morreriam com o hospedeiro. Alguns patógenos, como o HIV, podem sobreviver até duas semanas, mas é preciso uma transferência direta de fluidos corporais. Os surtos de cólera depois de desastres naturais geralmente acontecem por causa da água contaminada. O maior risco para nós é a gastroenterite.

— Tipo a caganeira? — perguntou Donnie limpando o bong na calça e olhando o recipiente à procura de alguma maconha.

— Mesmo assim, eu não colocaria isso na boca — advertiu o professor.

— O Donnie coloca qualquer coisa na boca — disse Pamela.

— Já botei muita coisa tua na boca...

— Cala a boca. — Arnoff correu à frente e deu um tapa no bong, tirando-o das mãos de Donnie. — Se não for estritamente necessário pra nossa sobrevivência, tá fora de cogitação. Já estamos carregando muito peso morto.

Campbell não gostou do olhar de Donnie e Arnoff para ele. — Não sei por que você recrutou Pete e eu. A gente tava indo bem só nós dois. E se a gente continuasse juntos, talvez ele ainda estivesse vivo.

Assim que pronunciou essas palavras, Campbell percebeu que era esse o seu pensamento: Pete estava morto. Ele, porém, não acreditava totalmente nisso. Apesar de toda a morte em torno deles, Pete parecia uma constante em torno da qual a loucura do mundo orbitava. As cidades podiam queimar, as montanhas derreter em torrões de lava, todas as árvores podiam secar, mas Pete estaria ali rindo estupidamente e bebendo uma cerveja quente.

Campbell puxou a bicicleta que estava encostada no Nissan e montou nela enquanto a empurrava para frente. Ele quase bateu na porta aberta da van e Donnie pulou para trás para evitar ser atingido pelo guidão. Campbell recuperou o equilíbrio e forcou os pedais.

— Aonde diabos você tá indo? — Arnoff gritou detrás dele, mas Campbell estava determinado a manobrar pelos veículos parados — um caminhão de lixo aqui, um SUV com os airbags inflados ali, uma motocicleta caída na lateral com um motorista de casaco de couro apodrecendo ao sol. Ele quase esperava ouvir um disparo — o Arnoff não ia ser louco, né? — e percebeu que provavelmente já estaria morto antes do ruído chegar aos ouvidos.

Ele forçou a perna para ganhar impulso para a próxima subida. Ouviu à distância o grupinho de Arnoff discutindo, pontuado pela risada feminina e espalhafatosa de Pamela.

Então quando a sociedade se desfaz, todos viramos psicopatas. Acho que já dava pra prever.

Campbell chegou ao topo da subida resfolegante e uma cãibra lhe afligia a coxa direita. A mochila dele parecia ter o dobro do peso, embora só houvesse ali uns cinco quilos de garrafas d’água, um cobertor e umas latas de comida. Ele não sabia o quanto se distanciaria, mas já estava grato pelos poucos minutos longe do grupo. Em breve, ele pedalaria de volta, e resmungou algo sobre a ironia de ter virado o novo batedor do Arnoff.

Abaixo dele, a interestadual se esticava em duas fitas de cinza salpicado, um tapete sobre o qual os veículos se amontoavam. Um trator de reboque estava tombado de um lado, com a cabine roçando uma perua destroçada. Campbell se maravilhava com o caos e a calamidade que perdera durante as erupções solares que mudaram o mundo para sempre. Para ele, aquele momento fora marcado pela irritação que sentiu quando a tela da tevê se apagou. Enquanto isso, o resto do mundo estava no curto-circuito mais horrendo e mais perene que pudesse existir.

À esquerda, uns duzentos metros fora do asfalto, uma cicatriz gigante nas árvores marcava o trajeto de um avião caído. Fragmentos de metal puído se espalhavam pelo chão e uma imensa asa se projetava angulosa para o céu como um colossal relógio de sol. O nariz e grande parte da fuselagem rasgaram uma fileira de casas, deixando os telhados descaídos e esfacelados, margeando o rasgão. Manchas coloridas se espalhavam aqui e ali nos destroços.

Bagagem. E gente.

Campbell desceu a colina com a mão nos freios e costurando entre carros, caminhões e furgões. Nesse trecho, os veículos estavam em fila reta, com algumas colisões nas traseiras, como se o tráfego estivesse se movendo lentamente quando o grande apagador eletromagnético acabou com todos os motores. O fedor dos corpos apodrecidos pairava no ar, com o efeito estufa das janelas acelerando a putrefação. Campbell se esforçou para evitar olhar para dentro dos veículos, mas a curiosidade o sugava cada vez mais.

Parte disso era que havia a tíbia esperança de ver um sobrevivente ferido e impedido de fugir. Outra parte vinha para perceber a dimensão do apocalipse.

Se o professor estiver certo e se for algo mundial, então somos os últimos seres humanos da Terra.

E que diabos eu fiz pra merecer isso? Por que eu estou de pé, respirando, ao mesmo tempo que essa pobre senhora de cabelo azulado no volante da BMW virou comida de verme?

Ele desviou de um estepe na estrada e desacelerou a bicicleta. Ferramentas, roupas e latas de óleo estavam espalhadas pela estrada, e os porta-malas de alguns carros estavam escancarados. A porta de trás de um caminhão estava aberta, com os caixotes plásticos de pão espalhados a partir da abertura. Um bando de corvos voava sobre os destroços. O bater das asas negras era o único som no que seria a confusão da hora do rush.

Em um sedã Toyota, o cadáver de um homem pendia para fora do assento do motorista. A porta do passageiro também estava aberta e uma mulher morta se estirava no asfalto a poucos metros dali.

Alguém mexeu nesses corpos.

Campbell parou a bicicleta e desmontou dela, olhando para os carros ao redor. As portas estavam abertas em uns dez deles, com os corpos aparentemente revolvidos de suas posições originais. A maioria deles de vítimas que morreram no local, desfalecendo em meio ao que estivessem fazendo. Muitos veículos colidiram, embora a perda de potência tenha minimizado grande parte do dano. Um motorista podia se curvar sobre o volante ou dobrar para trás no banco, mas aqueles cadáveres foram afastados para abrir caminho... para quê?

Um sobrevivente — talvez um grupo deles — pode ter remexido nos veículos em busca de comida e suprimentos. Fazia sentido. Campbell fizera o mesmo, exceto que ele não tocara nos corpos. As pessoas que realizaram tal busca foram desrespeitosos, quase ao ponto da obscenidade. O desconforto dele fora confirmado quando vira a blusa de uma jovem rasgada ao meio, com os pálidos seios expostos ao sol.

Sequelados?

Não, os sequelados que ele encontrara não se incomodariam em profanar ninguém porque só buscavam a destruição do que estivesse vivo. Para um sequelado, os mortos não eram diferentes de uma árvore ou um carro. Eles eram inconvenientes e obstáculos, nada mais. Só um humano — e um que não tenha sido afetado pelas cataclísmicas erupções solares — teria um comportamento como esse.

Um arrepio passou pela nuca de Campbell, mesmo com o sol matutino alto e claro no céu do verão. Ele estava na bicicleta, louco para retornar à tribo de Arnoff, quando viu uma mochila azul no asfalto ao lado de um assento para crianças vazio no chão. Pete tinha uma mochila igual àquela.

Campbell correu até ela e abriu o zíper de um dos bolsos. Enfiou a mão e pegou uma barra de chocolate recheado. A mochila cheirava a cerveja, chocolate e suor seco. Era de Pete, claro.

Por que ele teria largado a mochila aqui?

Talvez Pete não tivesse jogado a mochila no asfalto. Talvez alguém a tivesse jogado por ele.


CAPÍTULO 15

Rachel não tinha certeza se desmaiara ou se fora desacordada por um golpe.

Os primeiros vestígios de cor cinza não causaram dor, só confusão. Ela se lembrava de ter entrado na casa para procurar DeVontay...

Stephen. Quanto tempo eu fique aqui? — o que quer que eu seja.

Ela esfregou os olhos e percebeu que não era sua visão que estava embaçada. As janelas do cômodo estavam recobertas com lençóis, bloqueando grande parte da luz. Ela estava sentada numa cadeira de madeira. Formas esfumaçadas a circundavam em intervalos.

— Você é uma de nós? — perguntou um homem.

Rachel se virou em sua direção, incerta se a pergunta era para ela. Ele estava perto da janela, que mal lhe definia a silhueta. Ele era alto e espadaúdo e parecia desviar o olhar para a janela e voltar.

— Quem é “nós”? — — perguntou Rachel. Ela tentou se levantar e percebeu que estava atada à cadeira. Não fazia sentido porque ela não se sentia presa por nenhuma corda. Ela retorceu as mãos. Elas estavam tão dormentes que ela mal podia sentir onde terminavam.

Devo estar sentada aqui há algum tempo. Encantadores esses caras, realmente.

— Se você é uma de nós, sabe quem somos — respondeu o homem.

Ela o apelidou de Capitão, mesmo sabendo com certeza que ele não era um sequelado. Ela se concentrou nos contornos dos homens. Ela conseguiu definir quatro, mas talvez houvesse mais atrás dela. Pelo menos dois deles portavam rifles.

Nenhum deles se parecia com DeVontay.

— Nós ouvimos um tiro — disse ela. — Pensamos que era alguém precisando de ajuda.

— “Nós”?

— DeVontay e eu.

— O escuro — disse ele.

Escuro? Bom, podia ser pior. Ele podia ter usado aquela palavra.

Ela levantou a voz. — DeVontay, você tá aí?

Um gemido abafado veio de algum lugar dentro da casa. O Capitão saiu de seu posto na janela e atravessou o cômodo. A luz adicional ajudou a definir as formas e os contornos. Rachel notou uma mesinha de computador, com o retângulo tênue da janela refletido em miniatura na tela apagada. Havia papéis soltos empilhados e estantes bagunçadas cheias de livros, jogos de tabuleiro e gatos de cerâmica. No canto, havia uma bicicleta ergométrica com um blusão pendurado na ponta do guidão.

Rachel virou a cabeça, sentindo o sangue voltar a circular nos dedos. Ela não os via, mas sentia que havia algumas pessoas de pé atrás dela. O ar do cômodo estava parado, com um cheiro de suor misturado com poeira. Alguém cheirava a tabaco e o nauseabundo miasma de podridão estava por trás de todos os outros cheiros — o novo aroma-base do planeta.

Uma mão agarrou-lhe o ombro, não forte o bastante para machucar, mas também sem suavidade. — Você não sabe o que está acontecendo, não é? — perguntou o Capitão.

Ela balançou a cabeça. — Só estávamos tentando ajudar. Vimos os sequelados vindo para a casa...

— Sequelados?

— É. Os loucos. Os que foram afetados pelas tempestades solares.

— Todos fomos afetados.

Ela não podia discordar disso e tivera a sensação de que o Capitão não estava a fim de interrogatórios. — É, mas eles tentam esmagar a nossa cabeça.

— Você deve ter notado que conosco é a mesma coisa, se é que você é uma de nós. Moralmente, o nosso caso é pior porque estamos cientes de nossas ações violentas.

Opa. Esse cara ficou no sol tempo demais.

— Você está ciente de que está fazendo um discurso sobre moral para uma mulher amarrada numa cadeira?

— Amordaço ela agora? — perguntou um dos vultos à esquerda. — Como fizemos com o outro?

Então DeVontay está vivo.

— Não —respondeu o Capitão. — Precisamos descobrir se ela está querendo.

Querendo? Esses caras não são estupradores, senão teriam feito o que tivessem de fazer enquanto eu estava desacordada. E não que eu vá resistir a isso tudo agora.

— Como eu disse, ouvimos um tiro e vimos uns sequelados vindo pra casa — explicou ela, fazendo o máximo para ficar calma apesar da vontade de gritar. — Percebemos que havia alguém em perigo e viemos ajudar.

— E esses... sequelados, como você chama... o que você acha que os faz atacar?

— Não sei. Há várias teorias. O sol fritou os miolos deles. Eles sofreram mutação pela radiação. O pulso eletromagnético escangalhou a fiação deles.

— Já cogitou que talvez eles sejam iluminados?

— Não. Nunca pensei em nada disso. Tá difícil sobreviver.

— Você acredita num Deus todo-poderoso?

— O que é isto? A inquisição? E depois? Sessão de tortura? — Ela lutava contra as amarras. Sentia um arrepio nos braços e nas pernas, um formigamento crepitante de fogo. Ela balançou para frente e para trás, testando a resistência da cadeira. Era um modelo daqueles de saguão de hotel barato, com pernas bambas e as tabuinhas marcando atrás das coxas.

— Você não tem ideia de quem nós somos.

Ela deu a volta com a cabeça, tomando o perímetro do cômodo para ver o máximo que conseguia. Três camaradas do Capitão mudaram de posição, e um deles ocupou o posto na janela. Rachel não sabia dizer se era um homem ou uma mulher até ouvir a voz da pessoa.

— Movimento na rua — alertou a mulher. O tom dela não era tão militar, mas foi bem seco.

Ou esses caras passaram tempo demais juntos, ou tinha alguma coisa acontecendo antes do sol ficar biruta. Antes do Depois

— É um dos iluminados? — perguntou o Capitão.

— Parece que sim. — A mulher passou o cano de uma arma pela janela velada.

— Todo mundo quieto — ordenou o Capitão. — Nós não queremos feri-lo.

— Deixa eu ver se entendi — disse Rachel. — Você pulou em mim, me amarrou, e deixa essas coisas andarem soltas por aí?

— Viva e deixe viver — disse o Capitão. — São os filhos do sol.

— Os anos sessenta já eram — disse Rachel. — Caso não tenha notado, somos só o que restou. E nós devíamos estar nos ajudando. Estamos do lado dos humanos. Não é?

— Estamos aqui para servir — respondeu o Capitão.

A mulher na janela levantou a mão. — Tem mais alguém lá fora.

— Iluminado? — perguntou o Capitão.

— Não sei dizer. Parece um garoto, talvez uns dez anos.

Rachel sentiu o coração gelar dentro do peito. Stephen!

— Hora do teste — disse o Capitão. — Temos de saber se ela merece.

A maçaneta rangeu com um ruído agudo atrás dela e as formas nas sombras se moveram para lá. A mulher de sentinela chegou e o contorno de um braço magro apareceu contra a luz do dia atrás do lençol. Em seguida, a cortina provisória exibiu um rasgo e a luz do sol penetrou no cômodo. Rachel apertou os olhos contra a súbita claridade amarelada e, quando recuperou a visão, a sala estava vazia. Ouviu ecos de passos pelo corredor e o Capitão dizendo: — Ela é toda sua.

Rachel acompanhou o som de pequenos passos até ficar totalmente virada para a porta. Sua primeira impressão estava correta. O cômodo era um escritório em casa ou algo assim, com estantes de livros forradas de livros de bolso, pilhas de papéis empilhados entre eles e um descuido de quem adorava informações mais que artefatos. Um globo giratório e uma luminária pesada de carvalho estavam num pequeno gabinete perto da porta, com estatuetas e fotografias atrás do vidro dos armários. O piso era pavimentado de madeira prensada, mas o corredor atrás da porta era acarpetado. Ela se contorceu contra as cordas, atritando os punhos enquanto olhava pelo cômodo procurando algo afiado com que pudesse cortar as amarras.

Talvez haja um abridor de cartas ou uma tesoura na escrivaninha.

Rachel tentou não pensar em Stephen vagando pelo jardim, perdido a procurá-la, ou os sequelados circulantes que poderiam tê-lo matado. Ela não suportaria mais uma morte. Bilhões haviam morrido e ela ficara desamparada, Deus a abandonara na hora em que mais precisava, como Ele fez com Jesus quando a carne de suas palmas se rasgavam entre os cravos de metal e os pulmões cediam à sufocação.

Ou quando a água fria puxara a irmãzinha Chelsea para as profundezas de seu coração azul.

Não gosto desse tema. Deus nunca está presente quando mais se precisa dEle.

Ela agarrou as bordas do assento e levantou apertando os dedos dos pés. A cadeira deslizou para frente uns dez centímetros e ela repetiu o movimento duas, três vezes, ganhando mais distância a cada galeio. Ela estava tão obstinada — a mesa de metal com o computador em cima — que nem notou a pessoa à porta até que um abajur caiu no chão.

Rachel girou a cabeça. O Biba foi até ela e, apesar de vazios, os olhos sob a franja castanha de alguma forma estavam fixos nela, imóveis. Ele se movia com aquele andar relaxado e desatento, curvando-se ao chão para pegar o abajur. Pareceu que ele testava o peso do objeto com um balançar da base de madeira, como se avaliasse o potencial daquilo como arma. Satisfeito, deu um puxão no quebra-luz até soltá-lo.

Rachel se inclinou para frente, para longe dele, mas esqueceu que os pés estavam atados. Quando ela sentiu que ia cair, guinou para que a cadeira se endireitasse. O cotovelo dela bateu contra o chão, mas a cadeira, meio frouxa, não aguentou. Ela tentou rolar, mas as costas da cadeira ainda estavam presas nela, pendurada pelas cordas envolta do pulso.

O Biba ia titubeante para cima dela com o abajur levantado. A boca dele estava escancarada, como se estivesse pronta para desferir a primeira nota de uma música pop, mas o som foi de um estranho e profundo cacarejo. Ele mandou o abajur na cabeça dela, com a lâmpada cinza-claro abrindo caminho.

Rachel mal teve tempo de se jogar para a esquerda antes que a lâmpada se espatifasse no chão, jogando cacos de vidro no seu rosto. O Biba levantou o abajur de novo, mas a lâmpada agora era uma fileira de dentes de vidro. Nessa hora, o Biba se atirou para cima dela, como se quisesse pregá-la no chão.

Ela tirou vantagem do bote e mandou a perna no queixo dele. Desequilibrado, ele tombou no chão, fazendo novamente o cacarejar com o abajur balançando nas mãos. O cotovelo de Rachel ardia enquanto ela tentava se ajoelhar, sacudindo-se violentamente na tentativa de se livrar do restante da cadeira. Ela conseguiu soltar um dos calcanhares e conseguiu ficar de pé.

Ainda estirado no chão, o Biba tentou pegar a perna dela. Ela gingou para não ser pega e pulou para frente de novo, acertando o punho dele com o calcanhar do tênis. Ele murmurou em seu monótono e inesperado estrelato pop, embora não esboçasse nem reação de dor. Agora era a ira que o compelia da forma habitual com que todos os sequelados esmagavam, surravam e abatiam qualquer criatura viva que não fosse como eles.

Rachel recuou até a mesa e abriu a gaveta de cima. De olho no Biba se arrastando em direção a ela, começou a vasculhar o monte de papéis, cartões de visita e disquetes, procurando algo afiado e pontudo. Ela ouviu um queixume de frustração e percebeu que ele fora emitido de sua própria garganta, o que a deixou furiosa consigo mesma. Só os infiéis cediam ao desespero.

Sobre a mesa, havia um pote de cerâmica cheio de lápis, canetas e selos. Um grosso cabo de plástico se projetava dessa coleção; sentindo a aproximação do sequelado, ela o pegou. O objeto era uma chave de fenda, cuja ponta reluzia seu brilho metálico.

Ela levantou a chave de fenda como uma faca, pronta para cravá-la no rosto inexpressivo do sequelado. Antes, porém, que conseguisse espetar a testa franjada, ela olhou nos olhos dele e viu um traço do ser humano que ele fora outrora.

O filho de alguém, o irmão de alguém. Talvez o cantor predileto de alguém.

Seus olhos castanhos cintilavam de douradas fagulhas maníacas. Ela hesitou, segurando a chave de fenda a dois palmos do rosto dele.

Em seguida, ele avançou nela, que caiu na mesa, derrubando o computador no chão.

Eu devia tê-lo matado quando tive a oportunidade. Talvez eu já tenha matado o suficiente.

Ela chutou o que restou da cadeira, soltou a corda do pé e correu para a porta com o Biba em seu encalço. Antes que ela conseguisse escapar, o Capitão chegou na sala, bloqueando a passagem e batendo as mãos numa palma. — Pare — gritou ele.

Rachel achou que ele estivesse falando com ela, mas de jeito nenhum pararia de correr até ter certeza de que o Biba fosse um vulto de tamanho progressivamente menor no espelho da vida. Quando o capitão repetiu o comando, ela percebeu que o estava dirigindo ao sequelado na hora em que ela estava na porta.

Ela passou pelo Capitão e chegou à segurança relativa da sala, virando-se para ver o quão perto ficou de ser pega pelo sequelado. O Capitão entrou na sala, levantou um braço e apontou um revólver. — Pare agora!

O sequelado pausou tempo o suficiente para tirar os olhos de Rachel e fixá-lo no Capitão. Rachel entrou na sala, mesmo depois de o sequelado ter-se esquecido dela. Havia um alvo mais próximo. O sequelado se atirou num ataque, pouco antes de entrar no alcance dos braços do Capitão.

— Não ultrapasse essa linha — comandou o Capitão.

Ele acha que consegue se comunicar com essa coisa. É mais doido do que eu pensei.

O Biba olhou para a arma como se tivesse um lampejo da capacidade de dano do objeto, rosnou e pulou de braços estendidos. O disparo ressoou e ecoou pela sala e o cheiro de pólvora preencheu o espaço. A cabeça do sequelado explodiu como um melão inchado, borrifando o escritório com manchas vermelhas e acinzentadas.

— Eu mandei parar — explicou o Capitão, com a voz firme como antes.

Rachel olhou do sequelado para o Capitão, assimilando essa nova descoberta do Depois. — Você esperava que essa coisa te ouvisse?

— Agora eles devem ter aprendido que a violência não é a resposta — disse o capitão puxando a chave de fenda da mão dela. — Parece que essa lição também era pra você.

— Mas você e seus capangas pularam em cima de mim e me amarraram À cadeira. Isso não conta como violência?

— Você mereceu — respondeu ele. — Ele não te matou.

O sequelado Biba tremia no centro do cômodo, como se a destruição fosse a fonte de sua paixão e sua graça. Afora a furiosa intenção de matar, ele era só um adolescente, indefeso, perdido num mundo que mudou para todos. Todos.

— Legal, então eu mereci — contestou ela. — E o Stephen?

— Quem é esse? Seu amigo de cor?

— Não. O garotinho que estava lá na rua.

— Ah, ele. Acho... que ele não mereceu.


CAPÍTULO 16

A gente teria passado de cavalo por isso e não notaria nada.

Jorge aninhou Marina no colo e abria caminho pelos galhos grossos dos rododendros. Era praticamente uma trilha de animais serpenteando pela vegetação densa, mas o homem de verde andava com a naturalidade de um cabrito. O homem pausava de vez em quando e olhava para ter certeza de que eles o estavam seguindo, embora não tivesse tirado sua máscara de pano.

Rosa fazia todo o esforço possível para que os galhos não arranhassem Marina. Jorge tinha cortes nas bochechas e nas costas das mãos, mas protegeria a filha do sofrimento por maior que ele fosse.

Ela está tão leve. Como um sonho.

Jorge não gostava da ideia porque isso a fazia parecer mais frágil e vulnerável, por isso ele voltava a concentrar seus pensamentos no homem de macacão. Por que ele os ajudava? Se estivesse mesmo com medo de uma doença, ele os teria deixado passar na estrada e não se meteria.

O homem até deixava Jorge carregar o rifle, embora tivesse insistido para deixar os cavalos amarrados perto da estrada. Jorge não tinha certeza, mas suspeitava que o homem temia que eles transmitissem alguma doença.

— Como ela está? — perguntou Rosa com o cenho enrugado. Ele nunca vira essas rugas nela antes e achou que talvez o sol tivesse mudado a todos.

Alguns mudaram mais que outros. Sim, Willard ficaria feliz de trocar umas poucas rugas a mais pela sua mão e o Sr. Wilcox abriria mão de seus “quarenta hectares” por mais um dia longe da cova.

— Ela tá bem — respondeu Jorge. A mentira era mais fácil quando dita para confortar alguém. Jorge, porém, ainda não estava assim tão longe de sua moral ao ponto de acreditar nas próprias mentiras. Marina estava pálida e suarenta, mas sentia que a pele dela estava fria quando ele encostava a bochecha nela.

A trilha se dividia em dois conjuntos de sulcos que marcavam outra picada no mato — mas poderia bem ser a mesma trilha de onde saíram. Jorge estivera tão obcecado em proteger Marina que não prestara atenção à rota, embora suspeitasse de que estivessem pelejando mato adentro por pelo menos vinte minutos.

— Cuidado aí no chão — alertou o homem de macacão verde apontando para o solo perto dos pés de Rosa. Era um fio de metal esticado a uns quinze centímetros do chão. Jorge pensou em todos aqueles filmes americanos a que assistira com fios que acionavam armadilhas de estacas pontudas ou dispositivos explosivos.

O homem deve ter percebido pelo rosto de Jorge: — Não precisa se preocupar. É só um fio de sinal, não de armadilha. Eu só mato se não tiver outra saída.

Jorge pensou nos corpos lá na fazenda. A maioria das pessoas nunca soube a linha que tinham que atravessar antes que pudessem matar, mas era fina e quase invisível. E o mais terrível de tudo: podia ser acionada por um mero acidente.

O sol não foi acidente. Ele tava lá, o sol de sempre, sem nenhuma consciência dos homens embaixo dele.

Rosa passou com cuidado sobre o fio e olhava com medo enquanto Jorge também o atravessava. O homem de macacão meteu as mãos enluvadas num emaranhado de trepadeiras: — Carvalho envenenado — disse ele, que pegou um pedaço de corda escondido que pendia de algum lugar nas árvores acima. Ele jogou o peso contra ela e, com um ranger de alguma roldana acima, a vegetação que bloqueava o caminho se abriu. O portão de metal estava tão bem escondido que, se Jorge tivesse virado a cabeça por alguns segundos, não saberia localizá-lo se o portão estivesse novamente fechado.

O homem os conduziu pelo portão, olhou lentamente a estrada e a floresta vizinha e entrou antes que ele se fechasse. Eles estavam num complexo que se mesclava com as árvores e os rochedos, construído com tamanha engenhosidade que Jorge duvidou que um avião a baixa altitude conseguisse detectá-lo — se é que ainda havia aviões que voassem. Ele não vira nenhum avião desde as tempestades solares.

Rosa agarrou-lhe o braço e sentiu a testa de Marina. — A febre piorou.

— Leve-a para a casa — ordenou o homem de macacão, movendo os galhos baixos de um grande bordo. Havia uma estrutura construída ali, ladeada por feixes de casca de árvore para que se fundisse com o entorno. Pequenas janelas em fendas pontuavam a construção. Alguns barracões menores de teto enferrujado estavam numa área mais limpa que abrigava um jardim e um cercado com cabras e galinhas ciscando o chão.

O homem subiu na frente por uma série de degraus de madeira encravados entre dois galhos. A mais de dois metros do chão, abriu a porta grossa de madeira e se dirigiu a Jorge: — Você consegue carregá-la? Passe-a pra cá se não conseguir.

Jorge não queria mãos enluvadas tocando na filha. — Eu consigo.

— Fique à vontade — disse ele entrando na casa de árvore.

Rosa sussurrou: — Podemos confiar nele?

— Ele podia ter nos matado na trilha ou deixado a gente passar — argumentou Jorge. — Fora que ele me deixou com a arma.

— Por que esse gringo tá ajudando a gente?

— Nem todos os gringos são como o Sr. Wilcox. Alguns ainda são seres humanos.

— Não tô gostando disso.

— E a gente tem outra escolha? A Marina tem que descansar, se recuperar. E se ela tiver essa doença do sol...

Nenhum dos dois queria completar o pensamento. Antes que Rosa pudesse responder, o homem enfiou a cabeça pela porta. Ele tirara a máscara, mas a boca continuava coberta por uma grossa barba e um bigode. — Vocês vêm ou vão ficar aí?

Jorge deu a Rosa a mochila e o rifle, equilibrou Marina no ombro esquerdo e subiu os degraus. O interior da casa de árvore era surpreendentemente espaçoso e iluminado, com as janelas dispostas para absorver o máximo de luz do sol. O homem tirou as luvas e as colocou numa estante, que também continha um conjunto de ferramentas de mão, duas pistolas, um binóculo e uma lamparina a óleo.

— Põe ela pra cá — disse o homem mexendo numa pilha de cobertores no chão. Por um momento, Jorge pensou que o homem fosse estender a mão e não sabia se deveria apertá-la em cumprimento. Em vez disso, o homem voltou sua atenção para um velho rádio e uma mesa rústica e começou a mexer nos controles.

Rosa passou a mão nos cobertores, cheirando-os com desconfiança, enquanto Jorge colocava Marina entre eles. As pálpebras dela tremiam e entreabriam, e Jorge fez o que pôde para sorrir para ela, mas o rosto dele parecia talhado a faca na madeira. — Hola, tomatilla, como você está?

— Onde a gente tá? — perguntou ela com uma voz tão tênue que Jorge teve de se inclinar para ouvir as palavras.

— Num lugar seguro — respondeu Rosa, tomando imediatamente o lugar de cuidadora.

— Você vai ter que atirar em mais alguém?

— Não, aqui não tem nenhum doente. Eles ficaram lá na fazenda do Sr. Wilcox.

— Mas eu tô doente também. Eu vou ficar que nem eles?

Rosa olhou para Jorge, que se abaixou e beijou a testa da filha. — Não, você só tá com um pouquinho de febre. A gente vai descansar um pouco e depois vai embora.

— Vai embora pra onde?

— Deixa, pequeña tomatilla, você não precisa se preocupar com isso.

— Cadê meu pônei?

— Tá comendo grama verdinha. Ele também tá descansando enquanto você se recupera.

— Tem água na despensa — disse o homem de macacão, e Jorge caminhou até um cobertor de lã suspenso por um fio. Ele colocou o cobertor para o lado e viu um pequeno armário com estantes cheias de comida, parte dela em lata, alguns potes de vidro e alguns sacos de estopa abarrotados nas prateleiras superiores. A despensa era fria e úmida, com uma pia ao fundo, água límpida saindo de um cano.

Jorge encontrou um pote de vidro translúcido perto da pia e o encheu de água fria. Olhando pela janela acima da pia, viu o cano de metal que se articulava no percurso para as rochas no aclive acima da casa, permitindo que a gravidade conduzisse a água direto de uma fonte.

Esse homem já estava se preparando pra alguma coisa como a tempestade solar.

Depois de levar a água a Rosa, sentou-se à mesa com o homem. O homem mal o olhava: ficava ajustando o rádio, que era uma miscelânea de tubos, fios e botões de plástico conectados a uma série de baterias de carro.

— Quero lhe agradecer — disse Jorge.

— Eu devia ter deixado você cuidar da sua vida — retrucou o homem. — Detesto gente intrometida.

— Minha filha...

— Melhor ficar de olho nela. Essas artimanhas do sol podem não ter terminado. São coisas que vêm em ondas.

Jorge nem considerara que o pior ainda estaria por vir, que mesmo então eles poderiam estar sendo expostos a algum tipo estranho de radiação que matara a maioria das pessoas em volta deles e os transformou em matadores desmiolados. O que ele faria se Marina mostrasse um comportamento violento? E se ela ficasse igual ao Willard, um cavalo manco que precisasse ser abatido?

Não existe isso de matar por pena. Existe matar.

Rosa deu um pouco d’água a Marina e Jorge se sentiu confortável de ver que Marina bebia a água. O suor na testa dela secara e a compleição retornara um pouco à sua cor amendoada normal.

— Foram muitas tempestades solares? — perguntou Jorge. Ele tinha pouco conhecimento de ciências: frequentou a escola vocacional para aprender solda, um ofício que não lhe garantira um emprego em sua terra natal.

— É difícil dizer sem equipamentos astronômicos — respondeu o velho. — Claro, o que causou tudo isso foi o primeiro pulso, quando os campos magnéticos ficaram todos embaralhados. Mas, se o que estavam dizendo for verdade, podemos ter sido atingidos por tempestades durante uma semana toda em ondas seguidas de radiação. Pelo que sabemos, pode até estar acontecendo agora. E não é algo que dê pra ver.

Jorge pensou em todo o tempo que ele passou nos campos durante essas últimas semanas e se perguntou sobre esses raios e correntes invisíveis que talvez o tivessem atravessado e pior: se sua ignorância fizera com que sua família ficasse exposta ao perigo. Deu uma olhada para a filha agasalhada numa colcha grossa.

— Vocês tavam preparados pra este desastre? — perguntou Jorge.

O homem fez um gesto com a mão, ainda mexendo no rádio. — Este ou outro qualquer. Alguma coisa aconteceria mais cedo ou mais tarde. Pessoalmente, eu apostava em guerra nuclear, considerando todos os idiotas de Washington.

Jorge ouvira falar de sobrevivencialistas, sempre representados por figuras bem armadas, embarricadas em casamatas e provocando agentes federais para que os viesse pegá-los. Mas esse homem não parecia revoltado nem provocador. Não, ele estava quase feliz que o mundo tivesse se transformado para pior.

— Eu sou o Jorge; minha esposa se chama Rosa e minha filha Marina. — Jorge abriu a mão caso o homem quisesse apertá-la, mas ele manteve a atenção no rádio.

— Podem me chamar de Franklin.

— Estamos em território de parque nacional — observou Jorge cautelosamente. — Achei que ninguém pudesse morar aqui.

— Se é nacional, é do povo, correto? — retrucou Franklin. — Eu pago meus impostos. Pelo menos pagava até que me liguei e vi que cada centavo que eu enviava pra Receita Federal acabaria nos matando. O governo estava comprometido em nos matar de fome ou jogar bombas na nossa cabeça.

Os alto-falantes do rádio emitiram um guincho baixinho e o homem mexeu nos fios de cobre conectados à antena fina. Ele conectou um fone de ouvido com microfone e o ligou com um clique. — Na escuta? — perguntou o homem.

Jorge achou aquilo esquisito. Se alguém estivesse ouvindo em outro rádio, seria pouco provável que não estivesse na escuta. O homem girou o botão, liberando uma boa dose de estática, quase como a TV do Wilcox. Ele falou no microfone mais algumas vezes e depois desistiu.

— Muita interferência atmosférica — concluiu Franklin.

— Você acha que tem mais gente por aí?

O homem apertou as sobrancelhas grossas. — Gente como nós?

Jorge assentiu e olhou para Rosa. Parecia que o homem não se importava se eles eram latinos, só se eles não eram assassinos loucos. — Como nós.

— Ah, é difícil dizer — respondeu o homem. — Mas você pode ter certeza de que o governo americano tem um punhado de buracos escondidos perto do D.C.

— A capital — disse Jorge, para assegurar ao homem de que tinha frequentado aulas de civismo.

— Eu não me surpreenderia se esses calhordas soubessem de tudo com meses de antecedência e esperaram até terem certeza de que estavam a salvo, vivendo no luxo. Provavelmente já existe um governo ativo tentando descobrir como cobrar impostos dos sobreviventes.

— Você ouviu isso no rádio?

Franklin não respondeu, concentrado em girar botões e ouvir atentamente ao chiado emitido pelos alto-falantes. Rosa chegou e pegou a mão de Jorge, apertando-a enquanto eles vigiavam o sono da filha.

— A febre dela tá passando — disse Rosa.

— Que bom — comentou Jorge. — A gente deve ir embora logo.

— É melhor não se apressarem — interveio o homem. — Do jeito que esses sequelados estão agindo, vocês não teriam chance contra um bando deles.

— A gente não quer atrapalhar o senhor — disse Jorge.

— Eu tenho bastante comida e água, tenho os painéis solares e a turbina eólica. É o mais próximo da vida moderna que vocês vão ver por aí, pelo menos desse lado de Washington. Além do mais, seria bom ter gente por perto pra ajudar a deixar tudo pronto.

— Tudo pronto? — perguntou Rosa. — Tudo pronto pra quê?

— Tomara que a gente nem venha a descobrir. Eu aprendi a me preparar pro pior, pra pior das situações, e pra pior das piores. Agora a gente está enfrentando só a “pior”. Logo, logo os sobreviventes vão pular uns na garganta dos outros assim que perceberem que os recursos estão acabando, e, se alguém perceber que eu tenho eletricidade aqui, rádio, água, comida etc., vão querer vir pra cá.

— Por que seu equipamento ainda funciona? — perguntou Jorge enquanto o homem torcia os dedos para acionar os botões.

— Armazenei tudo numa gaiola de Faraday — respondeu Franklin, levantando o polegar e apontando para algum lugar fora da cabine. — Metal blindado, protege contra correntes eletromagnéticas.

— Tem mais gente com esse equipamento?

— Até tem — respondeu o homem. — Os espertos. Mas, como vocês já devem ter percebido, não tem muita gente esperta neste planeta.

O rádio começou a crepitar e, de repente, emitiu uma voz masculina. Tinha um sotaque inglês ou australiano e as palavras chegavam cortadas: “... alguém aí? ... agora é a hora de... aproximadamente uma em cada trezentas pessoas sobreviveram... estamos precisando... situação grave”.

O sinal de rádio se estreitou num guincho agudo e a voz do homem surgiu de novo naquele tom emergencial: “Situação grave... repito, situação grave...”.

Em seguida sumiu, como um fantasma na bruma, emitindo uma última mensagem antes de ser engolida pelo sibilar infinito:

“Situação grave...”.


CAPÍTULO 17

Dois dos capangas do Capitão jogaram Rachel num cômodo escuro e bateram a porta.

Não foram nada gentis — ela acabou ralando o cotovelo no carpete. Ela supôs que estivesse num quarto, embora não houvesse quadrado cinza que sugerisse a presença de uma janela. Ela se arrastou para frente com cuidado, tateando o espaço com uma das mãos estendida.

Ela encostou em algo esponjoso e recuou, horrorizada pela possibilidade de aquilo ser um corpo.

— Até que enfim — disse DeVontay.

Ela se sentou ajoelhada olhando em direção à voz dele, mas incapaz de vê-lo. — Mas é você que tá bancando o herói. Você tá bem?

— Tô. Eles me deram uma dura, mas acho que tão só brincando com a gente. Parece que eles têm um lance meio skinhead, mas não tenho certeza.

— O líder deles, o Capitão...

— Capitão? Quem diabos é Capitão? Tá achando que isso daqui é filme do Batman?

— Eu tinha que dar um apelido pra ele — explicou ela. — É um recurso psicológico, eles ficam menos ameaçadores. Humor macabro, acho.

— Tá, humor macabro é bom até você não ter mais fôlego pra rir. Falando nisso, você podia me desamarrar.

Ela tateou até encontrar o pé da cama de madeira e apalpou o grosso emaranhado de nós contra a pele dele. — Parece o nó com que eles me amarraram. Acho que consigo desamarrar isso num minuto.

— Prometo não sair daqui. Eles te... machucaram? — perguntou ele com uma voz baixa enquanto ela se esforçava.

Rachel entendeu o que significava aquela pausa: “Eles te estupraram?”, mas ela relevou. — O Capitão jogou um sequelado em cima de mim, sei lá, meio que me testando. O cara parece que tem um cérebro meio frito também.

— Quando eu escutei aquele disparo...

Uma das unhas dela se quebrou enquanto tentava desfazer um nó. — Você não vai se ver livre de mim assim tão fácil, pelo menos até você e Stephen chegarem no Mi’ssippi.

— E onde ele está?

— Eu o deixei num esconderijo, mas os capangas do Capitão o encontraram e o soltaram lá fora com os sequelados. Acho que esse pessoal acha que todo mundo tem que passar num teste de sobrevivência pra provar que é merecedor.

— Merda. E o garoto tá bem?

— Vamos pensar assim: pelo menos, eu ainda não o ouvir gritar.

Rachel não queria pensar no pior. Fé exige esperança, e esperança exige ação, a começar pelos desgraçados dos nós. — Eu queria conseguir enxergar — disse ela. — Talvez eu ache alguma coisa pra iluminar.

— O isqueiro — lembrou-se DeVontay. — No meu bolso.

— Eles não te revistaram?

— Nada. Eles estão se lixando pra mim. Eu sou só um crioulo caolho.

Isso não fazia sentido, mas ela não o questionou. Ela tateou o quadril dele até encontrar o cinto, passando a mão pelo tecido das calças. Encontrou a entrada do bolso e hesitou.

— Vai nessa, guria — disse ele. — Não tem aí que vá morder tua mão.

— É que...

— Eu não vou contar pra ninguém se você não contar.

Isso a fez sorrir apesar da gravidade da situação. Ela meteu a mão na abertura, que passou pelo que parecia ser um monte de notas de dinheiro, uns troços flexíveis e borrachudos — que ela supôs serem bastões de carne seca — e um chaveiro. Em seguida, seus dedos tocaram as curvas suaves de um isqueiro Bic e tentaram soltá-lo do chaveiro enquanto o tiravam de lá.

Com o acionar do polegar, a área em volta ficou iluminada com um fraco brilho alaranjado. A chama se refletiu nos dois olhos de DeVontay — no de carne e no de vidro. O lábio dele tinha um pequeno corte e uma das bochechas estava inchada. Ela tocou levemente no ferimento e ele afastou o rosto.

— Eu não vou contar pra ninguém se você não contar — disse ela jocosamente, imitando seu sotaque da Filadélfia.

— Tá tudo bem. Solta esses nós aí e vamos dar o fora daqui.

Ela passou o isqueiro aceso e viu que o quarto estava vazio, com uma cama desfeita, uma cômoda empoeirada com as gavetas abertas e um armário aberto com um único casaco dependurado. Havia roupas espalhadas pelo chão, como se o quarto tivesse sido revistado. Sua impressão de um quarto sem janelas foi confirmado.

— Não parece lá uma boa ferramenta — avaliou Rachel. Ela balançou as chaves. — Acho que vou ter de usar isto.

Ela segurou a luz de cima com uma das mãos enquanto enfiou a chave mais comprida no nó. — Quem fez esse nó deve ter sido escoteiro — foi trabalho bem feito, o nó não afrouxava. Ela começou a serrar com o lado serrilhado da chave, produzindo uma neve de náilon esfiapado que se espalhou pelo chão.

— Por que você tá levando essas chaves, hein? — perguntou ele. Os dedos dela começaram a sangrar e o pulso dela doía, mas não desistiu.

— Tenho porta pra abrir.

Ela apagou o isqueiro para esfriá-lo. A chama deixou impressões nas retinas de Rachel, gordas e dançantes centelhas na escuridão súbita.

— Tem alguma ideia de como sair daqui? — perguntou ela. O primeiro feixe de corda cedeu enquanto ela desfiava o restante do nó e ele flexionava impacientemente o antebraço.

— A arma tá na minha mochila, só não sei onde ela tá — respondeu DeVontay. — Depois de eles pularem em mim, eu apaguei por um tempo. Eu não consegui gravar a disposição dos cômodos da casa.

— A porta tem uma tranca só pro lado de dentro. Eles não conseguem trancar por fora.

— Tá, aí a gente consegue sair. E se eles ainda estiverem brincando de sobrevivente? Não pode ter uns dez sequelados aí no corredor?

— Daria pra ouvir eles se batendo nas paredes.

— Talvez. E talvez aquele cara — o vigilante lá, o Capitão — esteja nos esperando armado.

— Bom, mas é a única saída. — A corda danificada desatou em seus dedos e DeVontay soltou os pulsos. Balançou as mãos para restaurar a circulação enquanto olhava o cômodo. Ele sorriu maliciosamente com os olhos vidrados no armário.

— Você só não procurou no lugar certo.

Levantou-se esfregando as mãos e ela o acompanhou com o isqueiro. Ele afastou o casaco solitário do cabide e olhou para o teto. — Me empresta o isqueiro aqui.

Rachel levou o isqueiro até ele, pensando que ele perdera a sanidade. Stephen estava em algum lugar por lá à mercê de assassinos desalmados e DeVontay brincando de esconde-esconde?

— A-rá! — exclamou ele. — Aquele quadradinho é um acesso pro sótão. Eu já trabalhei numa firma que fazia isolamento de telhado. Nunca suei tanto num emprego.

— Tá beleza. Aí a gente sobe; e depois? Espera o fim do mundo lá em cima?

— Que engraçado, rá-rá-rá. Vem, eu te subo. Você nunca vai conseguir me levantar.

— Tá brincando? Você pesa, sei lá, uns cem quilos?

— Noventa e dois e meio. Não como tanta carne seca assim.

Ele se aprumou e juntou as mãos embaixo. Rachel hesitou, soltou o acionamento de gás do isqueiro e colocou um dos pés nas mãos dele. Algo bateu na porta.

— Droga — exclamou DeVontay. — Anda logo.

Ele a impulsionou para cima e ela colocou a mão na parede para se firmar, tateando para ver se encontrava a entrada pelo forro. Ela achou o acesso e empurrou, sentindo-o deslizar para fora com um atrito. Rachel sentiu o ar mais quente da abertura e encontrou as vigas do telhado. Dependurou-se um pouco para testar a resistência e a firmeza.

— Mais alto — sussurrou ela, e DeVontay flexionou os braços para erguê-la. Ela colocou um dos pés na haste do armário enquanto passava para o forro. O pó quase a fez espirrar e o isolamento do forro provocou coceiras na pele quase que imediatamente. Ela rolou com cuidado para manter o peso nivelado entre as vigas do teto e reacendeu o isqueiro.

— Como eu faço pra te puxar agora? — perguntou ela.

DeVontay olhou para cima e balançou a cabeça. — Não vai ser preciso.

— Eu não vou te deixar aí.

— Não tem outro jeito. Você nunca viu nos filmes de terror? A mocinha branca sempre sobrevive.

— Deixa de ser babaca.

— E nem perca seu tempo: o Stephen tá em perigo por aí.

Ela o olhou por um momento, ponderando modos de ajudá-lo. Ele, no entanto, era pesado demais e a haste do armário não aguentaria. — A cômoda — disse ela. — Põe ela aqui e sobe nela.

— Tá, mas...

Algo bateu na porta de novo, dessa vez com mais força. Com um gesto, DeVontay sugeriu que ela escapasse. Ela apagou o isqueiro e viu as aberturas de ventilação em cada aresta da casa. A mais próxima estava a seis metros dali. Ela se esgueirou e foi para frente, bateu a cabeça uma vez e foi juntando a poeira de fibra de vidro do isolamento no cotovelo e nos vãos dos dedos. Quando ela chegou às venezianas da ventilação, espiou as redondezas da propriedade.

Um sequelado cambaleava pela rua, mas longe o bastante para não representar uma ameaça. Ele não mostrava nenhuma agitação daqueles arroubos violentos dos sequelados, o que significava que Stephen estava escondido em algum lugar com segurança.

Ou então ele já deve estar morto.

A ideia a enfureceu; ela se apoiou nas nádegas e levantou as pernas, apontando a planta do pé para as tabuinhas de madeira. Ela chutou para frente e algumas das ripas se romperam. Ela chutou de novo e produziu uma abertura maior. Afastou os cavacos, empoleirou-se na abertura e perscrutou a paisagem em volta.

Nenhum movimento. Até o sequelado no final da rua virara em algum lugar e se perdera numa das casas vizinhas. Ouviu atrás de si ruídos de luta e DeVontay, que gritou alguma coisa.

A próxima palavra que gritou, no entanto, foi alta e clara: — Vai!

Rachel se dependurou para diminuir ao máximo a queda até o chão, que estava a cerca pouco mais de três metros. Nada mal, mas um tornozelo torcido seria péssimo naquela hora.

— Que sorte a minha, hein — disse ela. — Roseiras.

As roseiras se perfilavam pela borda da lateral da casa, o que obrigaria Rachel a pular para frente durante a queda em vez de simplesmente se soltar até o chão. Colocou o isqueiro no bolso.

Isso não vai dar certo.

Rachel resistiu ao impulso de gritar “Jerônimo!” enquanto voava até o chão. Ela teve a presença de espírito de rolar ao cair, absorvendo a maior parte do impacto na perna esquerda antes de dar uma cambalhota na grama. Recuperou o equilíbrio, meio ralada, e olhou em volta para ver se alguém a vira. Ela não sabia se tinha mais medo dos sequelados ou dos capangas do Capitão.

Correu o máximo que pôde com as pernas doloridas enquanto buscava esconderijo nos arbustos de azaleia do vizinho.

Bom, e agora? Posso desistir do DeVontay e do Stephen e correr — afinal, tenho mais chances sozinha. Eles são só peso morto, né?

Ela olhou para o céu com uma menção de pedir orientação, mas se deu conta de que as orações nunca respondiam um simples “sim” ou “não”.

Deus tinha um motivo para presenteá-la com vida longa — e com certeza não era mera sobrevivência.

Ela tinha uma missão.


CAPÍTULO 18

Campbell ainda estava vasculhando as árvores na lateral da estrada quando a tribo de Arnoff o alcançou.

Campbell saiu do mato e viu Arnoff cutucando a mochila de Pete com a ponta do rifle. Pamela, Donnie e o professor ficaram um pouco para trás conferindo os veículos na rodovia. — Parece que teu colega deu no pé — disse Arnoff.

— Alguém o pegou — discordou Campbell.

— Ah, tá — ironizou Donnie. — Os sequelados.

— Não foram os sequelados. Não tem sangue.

Arnoff se ajoelhou e puxou uma das cervejas quentes da mochila de Pete. — Bom, ele não fugiu, senão teria levado isso aqui.

— E o que você acha que aconteceu? — perguntou Pamela enquanto procurava um cigarro no bolso da blusa estampada com motivos florais. Ela estava suando de calor e o vento trazia no bafo o cheiro dos incêndios de cidades distantes. Campbell quis saber o que o professor tinha a dizer sobre os quatrocentos reatores nucleares que acabariam derretendo, mas não tinha certeza se viveria o suficiente para se preocupar com a radiação contaminante.

— Transtorno do estresse pós-traumático, tensão psicológica — analisou o professor. — Ele deve ter fugido, deve estar andando a esmo por aí.

— Virou um sequelado, é isso? — arriscou Arnoff.

— Não há vestígios de efeitos latentes. Os especialistas previram que o evento solar seria um fenômeno único.

— Bom, uma puta tarada deve ter amarrado ele na traseira de uma dessas vans aí — disse Donnie, rindo maliciosamente para Pamela. — Você sabe como são as mulheres.

— Cala essa boca ou eu calo ela pra você. — Ela olhou pra trás, deu uma longa baforada no cigarro, mas parecia entediada pela própria ameaça.

Campbell sentiu nas entranhas a frustração, mas lutou para se manter calmo. Ele não conhecia essa gente. Eles eram companhias circunstanciais — em circunstâncias desanimadoras.

O fim do mundo força estranhas amizades.

Arnoff foi até um caminhão-tanque. Campbell tinha os olhos semicerrados por causa do brilho cromado que refletia a luz do sol. Arnoff colocou o rifle no ombro e subiu uma escadinha de metal na traseira do tanque. De cima do enorme cilindro, ele usou o binóculo para vasculhar a região.

— Os sequelados vão encontrar ele — disse Donnie verificando o carregador da pistola automática. — É hora de segurar o facho, e não de bancar o medalhista das paraolimpíadas.

— Cala essa sua boca — ordenou Pamela se sentando no capô de um Mercedes verde. Havia um homem debruçado sobre o volante, com o corpo inchado de putrefação apertado entre o casaco e a gravata. Campbell estava grato porque as janelas do carro estavam totalmente fechadas. Provavelmente o motorista viajava com o ar-condicionado ligado, talvez com uma banda de rock dos anos 1970 tocando no aparelho de som enquanto ganhava dinheiro com o trabalho suado de outras pessoas — só que a vida tinha outros planos para ele.

Planos decisivos.

— Está vendo alguma coisa? — perguntou o professor com um grito para Arnoff.

Arnoff baixou o binóculo e balançou a cabeça. — Nada de sequelado, nada de sobrevivente, nada de Pete.

— É uma pena que não dê pra gente ligar um carro. Aqui tem gasolina pra atravessar o país umas cem vezes.

— Ô cabeção — disse Donnie balançando a cabeça em direção a um carro dois-volumes. — Por que você não faz uma ligação direta nesse aí?

— Já expliquei: os veículos modernos têm ignição eletrônica, sistemas operacionais computadorizados, bateria com corrente alternada e...

— ... blá, blá, blá — completou Donnie — Ficou tudo sequelado. Já sei disso. Mas a onda de radiação já terminou, né? Não dá pra gente reformar um desses?

— É possível — respondeu o professor. — Mas vamos precisar de peças recém-produzidas, ou seja: peças fabricadas, porque todos os circuitos existentes fritaram. E, pra produzir as peças necessárias, é preciso equipamento de alta tecnologia e eletricidade. Ardil 22.

— É tipo precisar de um peixe pra fazer isca pra pescar outro peixe, né? — simplificou Donnie.

— Tipo isso, sim — concordou o professor.

Campbell não pensara tão longe. Às vezes, durante a noite, antes de dormir, ele fantasiara um mundo em reconstrução, cada um cuidando de si e dos outros como se o objetivo do evento fosse restaurar uma cultura de comunidade. No entanto, sempre que pensava nisso, imaginava que o governo ou alguém de alguma parte não afetada da Terra chegaria para recuperar todos os serviços essenciais. Mas e se eles estivessem sozinhos? E se tivessem que se salvar eles mesmos?

E se a civilização tivesse se resumido a porções isoladas, como a tribo de Arnoff?

Aí a gente tá ferrado.

— Sequelado, posição dez horas — alertou Arnoff largando o binóculo, que pendeu de um cordãozinho em torno do pescoço. Levantou o rifle e olhou pela alça de mira.

Donnie pulou do capô do Mercedes e correu em direção ao tanque. — Guarda um pra mim. Não mato um sequelado faz três dias e tô na fissura já.

— Não vou atirar — afirmou Arnoff. — Estou observando.

Campbell foi até onde estavam Pamela e o professor. O cheiro da fumaça de tabaco sobrepujava o fedor dos cadáveres e dos incêndios distantes.

— O que você acha disso tudo? — perguntou Campbell ao professor. Ele quase perguntou o nome dele, mas o grupo parecia funcionar melhor com o anonimato. Àquela altura, de nada valiam os nomes.

— Nossa situação delicada enquanto sobreviventes ou os efeitos da tempestade solar?

Pamela mordiscou o lábio: — Adoro quando você fala difícil.

— Um pouco dos dois — respondeu Campbell. — É difícil separar um do outro, não é?

Donnie subiu também pela escada do tanque e chegou até Arnoff, que ainda estava observando pela mira telescópica do rifle.

— Não sabemos ao certo quais são os efeitos de longo prazo no meio ambiente — explicou o professor — mas, em curto prazo, no nível humano, perdemos nossa infraestrutura. Perdemos todos os sistemas que nos ligavam a comida, segurança, proteção e convivência. E, como disse antes, os problemas causados pelo homem, como radiação e outros poluentes, são um ingrediente a mais.

— Não parece nada bom — opinou Pamela. — Nunca pensei no que viria a ser “longo prazo”.

— É claro que podemos nos adaptar — afirmou Campbell, embora o argumento soasse bem vazio a si mesmo. — Somos inteligentes, perseverantes, adaptáveis...

— Olha a nossa esperteza — interrompeu Pamela apontando para o topo do caminhão-tanque. Donnie abrira uma pequena escotilha de acesso e estava urinando na abertura.

O professor balançou a cabeça pelo irônico entretenimento. — Acho que os sequelados estão em melhor condição de se adaptar. Pelo que observei, eles não têm nenhuma bagagem moral e dez vezes mais instinto.

— Você tem alguma teoria que explique essa violência deles? — perguntou Campbell enquanto olhava lentamente as laterais da rodovia. Arnoff e Donnie estavam tão afetados pela presença distante do sequelado que não veriam outros que abordassem do mato em volta. Se Pete estava errando por espaços abertos, Campbell queria ser o primeiro a vê-lo e impedir que ele fosse baleado pelo dedo solto do Donnie.

— A terapia eletroconvulsiva é usada no tratamento da depressão — raciocinou o professor. — Todo mundo pensa naquele filme do Jack Nicholson Um estranho no ninho, em que fritam o cérebro dos problemáticos, mas a terapia tem benefícios clínicos. No entanto, o tratamento também pode causar uma grave mudança de personalidade, perda de memória e problemas cognitivos. As provas sugerem que os campos eletromagnéticos em nível cataclísmico poderiam causar diversos resultados dependendo do indivíduo.

— Então eu tive sorte, hein? — disse Pamela.

O professor enfiou a mão na mochila e tirou uma garrafa plástica com água. — De alguma forma, nós nos saímos melhor — concordou ele enquanto virava a aba do boné e dava um grande gole. — Poucos de nós para consumir os recursos finitos que temos à disposição.

— Como assim, “finitos”? — perguntou Campbell. — Tá, não dá pra construir carros, mas podemos voltar a uma sociedade agrária.

— Com que conhecimento? — argumentou o professor. — Como vamos coletar as sementes e saber que plantas comer? Como saberemos o momento certo do plantio? Como vamos construir moinhos de água para moer os grãos e fazer farinha? Não vai ter Google nem internet pra conseguir essas informações.

— Profe, você é um pé no saco — disse Pamela.

— Não acho positivo alimentarmos fantasias elaboradas. Uma avaliação realista da situação vai nos dar mais chances de sobrevivência.

Campbell foi forçado a concordar. — Eu diria que a primeira tarefa depois de encontrar o Pete, é claro, seria localizar outras pessoas para aumentar o grupo.

— Talvez não seja prudente — discordou o professor. — Olhe os problemas que já temos com um grupo pequeno como o nosso. Agora pense em dez, doze machos alfa armados e desesperados no mesmo lugar e na mesma hora. Acho que os sequelados vão parecer pacifistas perto disso.

— Não entendi direito o que você falou — interpelou Pamela — mas, se você tá dizendo que não é legal colocar um monte de Arnoffs e Donnies juntos, aí eu tenho que concordar contigo.

Os dois estavam em cima do tanque como estátuas. Arnoff estava ereto, com ombros para trás, segurando o cano do rifle enquanto apontava para o alvo. Donnie estava curvado, mas também de arma na mão, apontando na mesma direção de Arnoff.

— Se eles atirarem, todos os sequelados num raio de dois quilômetros vão vir pra saber o que está acontecendo — disse o professor. — Parece que eles reagem a estímulos como ruídos altos e movimentos súbitos.

— Eles não são tão estúpidos assim — duvidou Campbell.

— Você não conhece o Donnie — disse Pamela. — De repente ele faz porque acha legal.

Um abafado tapém soou para o oeste. Arnoff na mesma hora apontou o rifle nessa direção.

— Um tiro — declarou Campbell. — Outros sobreviventes.

Campbell foi para a estrada em direção ao tanque, mas o professor lhe agarrou o braço. — Lembre-se do que eu disse: maior pode não ser melhor. É uma das lições mais importantes da Era Tecnológica.

Campbell se soltou e caminhou, imaginando como seria o outro grupo. Será que Pete se juntara a eles? Será que tinham suprimentos adequados ou transportes melhores que bicicletas e cavalos? Será que tinham mulheres jovens o bastante para procriar a raça?

Pensando em sexo numa hora dessas. Putz.

Ouviu-se outro disparo à distância. Arnoff caminhou pelo tanque até a escada e desceu. Pamela e o professor pegaram as mochilas e foram até eles, mas Campbell subiu na bicicleta determinado a solucionar o mistério.

— Aonde diabos você tá indo? — arguiu Arnoff.

— Sou o batedor, não sou? Tô fazendo meu trabalho.

— Tá na cara que você quer ficar com os vencedores. Parece que a situação lá tá cabeluda.

— Mais cabeluda que bunda de gorila — completou Donnie de cima do tanque.

— Como você poderia saber? — perguntou Pamela.

— Porque eu dormi com você, por acaso?

Campbell se cansara do ramerrame. — Meu amigo tá por aí, quero encontrá-lo.

— Sua responsabilidade é com a tribo — advertiu Arnoff.

Campbell olhou para o professor. — O que você tem a dizer a respeito?

O professor balançou a cabeça. — Sobrevivência do mais adaptado.

Ouviu-se mais um tiro. Donnie se assustou e pulou do tanque para a cabine do caminhão para ter uma visão melhor. Se Donnie fosse o pináculo da adaptação humana, Campbell não tinha certeza se queria ficar por ali. A evolução fez um xixi bem fedido e levou no jato toda sobra de esperança.

— Acho que alguns de nós têm um conceito diferente de o que é ser humano. Campbell pedalou então na direção dos disparos.


CAPÍTULO 19

Rachel passou pelas sombras dos arbustos, tentando passar despercebida enquanto procurava Stephen. Ela estava relutante de ter de sair da casa em que DeVontay era mantido em cativeiro, mas avaliou que, desarmada e sozinha como estava, um ataque frontal não seria positivo. Em vez disso, decidiu verificar no barracão em que deixara Stephen. Viu que a porta estava aberta e que a lata de Stephen estava caída no chão.

Os capangas do Capitão deixaram para trás a mochila dela — que ela prontamente vestiu. As ferramentas de jardinagem a provocavam como se dissessem: “Então a violência não é a solução, né? Então qual o problema?”.

Fé nas ações.

Mesmo que o preço seja o inferno.

Rachel pegou a tesoura de podar. Como o parafuso que prendia as duas alças estava quebrado, ela experimentou usar uma das lâminas. Ela gostou do equilíbrio da nova arma e também do gancho curto de metal na ponta. Não era pesada para se carregar e preferiu essas características às do machado duplo e da foice de mão.

Ouviu um disparo mais à frente na rua, a uns duzentos metros dali. Talvez os capangas estivessem caçando sequelados por esporte, embora pudessem atirar em cachorros, janelas de carros ou até em outros sobreviventes. Rachel teve a sensação de que o Capitão impunha um protocolo quase militar para manter o controle do seu pelotãozinho esquisito.

De volta à rua, onde tinha uma visão melhor, Rachel se agachou atrás de um carro e considerou as opções. Se Stephen estivesse à solta, não teria ido muito longe.

Presumindo que ele esteja vivo.

Rachel estava prestes a tentar a sorte e atravessar correndo a rua, até que ouviu um grito e um palavrão. Ela espiou por cima do capô do carro e viu duas pessoas de roupas camufladas arrastando um homem de cabelo castanho que relutava em ficar detido.

— Droga, eu sou do bem — disse o homem. Ele tinha uns vinte e poucos anos, cabelo suado e vestia uma camiseta encardida.

O capanga da esquerda, uma mulher de semblante macilento, colocou a mão esquelética no cabo de uma faca que usava no cinto enquanto torcia os lábios e resmungava: — Cala a boca senão eu te estripo que nem um peixe.

O homem se arqueou e o capanga da direita o pegou pelo braço com as duas mãos e o endireitou. A dupla o arrastava em direção à casa que o Capitão provavelmente usava como quartel-general e onde DeVontay ainda estava confinado. Pelos bordos-japoneses do gramado da frente, Rachel viu a janela estilhaçada e as pernas do corpo de Miss Daisy penduradas pelo caixilho da janela.

— Vocês têm cerveja? — perguntou o cativo. A magrela deu-lhe um soco nas costelas, fazendo-o soltar um uivo fraco de dor.

O homem puxou os cotovelos para fora, fazendo com que o capanga à direita afrouxasse a mão. O homem aproveitou a abertura e começou a se soltar, mas a mulher esticou a perna para frente com a graça da prática, fazendo-o tropeçar e cair direto no asfalto.

Ela gargalhou enquanto se curvava para puxar o homem da rua. — Somos treinados na arte da dor.

O outro soldado botou a sola da bota na coxa do homem caído, fazendo Rachel hesitar. Eles estavam batendo nele como lutadores de luta-livre de espetáculo, encurralando-o no corner com o árbitro de costas vendo tudo. Rachel agarrou a alça da meia tesoura e apertou com força, mas sem esperanças, afinal, os soldados tinham armas semiautomáticas num coldre nas costas.

Os dois capangas puniam o homem com tanta veemência que nem notaram o movimento nas laterais da rua. No canto de um dos lotes havia um jardim cheio de plantas com duas fileiras de cerca tangendo um varal entre dois postes de madeira. Os arbustos se remexeram e do meio das fileiras surgiu um vulto. De cara, Rachel achou que fosse outro soldado dada a leveza dos movimentos, mas o vulto vestia uma jaqueta suja e calça de moletom em vez de trajes camuflados.

Sequelado.

Mas ela mal teve tempo de pensar se devia gritar em alerta quando outro sequelado saiu do jardim — uma mulher de meia idade de tailleur, com a meia-calça esburacada e o cabelo curto todo emaranhado. Rachel inconscientemente a apelidou de “Bridget Jones”, exceto pelo fato de que essa executiva carregava um espeto pesado e pontudo em vez de um diário. O mato farfalhou atrás dela — outro sequelado a seguia: um homem atarracado sem camisa de aparência asiática.

O que mais desconcertou Rachel foi o fato de eles andarem em conjunto, silenciosa e intencionalmente. Na cidade, os sequelados eram descerebrados, cambaleantes, quase como os zumbis que apareciam nos filmes e livros sem a voracidade por carne humana. Esses, no entanto, eram predadores astutos, esgueirando-se nas sombras para desferir sua marca de destruição.

O homem no chão viu os sequelados e empurrou a si mesmo de costas no calçamento, tentando firmar os pés. No entanto, os soldados não o deixaram escapar. A mulher pulou de joelhada no peito dele enquanto outro soldado a auxiliou. — O Capitão vai adorar este aqui — disse ele.

Rachel circulou o carro para se aproximar. O sequelado mais próximo apressou o passo ao atravessar a grama perto da rua. Três semanas antes, ele devia ser um vendedor de seguros fazendo a caminhada matinal, mas ali era uma máquina assassina, e não um guerreiro da malhação.

— Me larga, seus idiotas — disse o jovem no asfalto. — Tem sequelado aqui.

A sádica mulher gargalhou de novo e Rachel ponderou se ela de alguma forma fora afetada também — talvez os sequelados estivessem evoluindo e os sobreviventes humanos estivessem se degradando até que todos convergissem num grande e violento mal entendido sem palavras.

O sequelado de moletom chegou mais perto num piscar de olhos, pulando nas costas do soldado e emitindo um grunhido dos pulmões. Os quatro caíram para frente amontoados enquanto os dois outros sequelados chegavam.

A soldado rolou para longe e tentou soltar a arma do ombro, mas Bridget Jones estava sobre ela como um tubarão numa foquinha. Bridget Jones agitou seu espeto e acertou a soldado no queixo, emitindo um som de batida que Rachel conseguiu escutar.

O sequelado sem camisa se juntou ao primeiro para atacar o soldado; enquanto isso, o cativo conseguiu se soltar do amontoado. Rachel viu o medo e a determinação nos olhos dele.

É um sobrevivente.

Rachel ficou diante dele atrás do carro e levantou sua arma improvisada. O cara deve ter pensado que ela era uma sequelada: atrapalhou-se nos passos e começou a correr rua abaixo, até que Rachel gritou: — Por aqui!

O cara correu na direção dela e Rachel passou por ele dirigindo-se para os sequelados. Mesmo que os soldados fossem parte do grupo que tentara matá-la, Rachel impediria que fossem pegos.

Quando se chega a esse ponto, estamos do mesmo lado. Ou quase.

A soldado se recuperara e puxou a faca pelo cabo. A lâmina brilhou ao sol num átimo e ela a enfiou na barriga da Bridget Jones. A sequelada emitiu um grunhido úmido, mas continuou a atacar, mesmo com um florão vermelho espalhado na blusa social.

Rachel bateu no asfalto com a ponta de metal curvada da meia tesoura. — Vem cá pra você ver — gritou ela.

Os dois sequelados atracados ao soldado se viraram para Rachel rosnando, com os olhos fervendo com a frieza de uma ira oculta.

Aí eles fizeram algo bem estranho.

Olharam entre si como se se comunicassem telepaticamente e o sequelado sem camisa apertou ainda mais a garganta do soldado, que tentava inutilmente pegar o rifle. O outro, o da malhação, se destacou deles e correu em direção a Rachel.

Ela mal teve tempo de registrar a súbita mudança na tática quando o sequelado chegara até ela. Puxou a meia tesoura de onde estava, perto dos quadris, na tentativa receosa de tirar sangue. A parte de madeira da alça balançou o braço do sequelado como se golpeasse uma borracha e o sequelado a agarrou.

Ela sentiu aquele hálito de queijo fundido enquanto ele fechava as mãos em torno do pescoço dela. Mais de perto, os olhos dele queimavam com uma malevolência líquida, como a lava rolante de algum vulcão oculto. Ela chutou-lhe a canela, mas ele não reagiu à dor.

Rachel nunca tivera nenhum treinamento de autodefesa. Além de jogar um pouco de futebol com os garotos vizinhos em Seattle, ela aprendera a maioria dos golpes e movimentos dos filmes que assistira. Ela descobriu, porém, que não era tão fácil quando o assassino não estava seguindo nenhum roteiro.

A garganta doía apertada pela pressão dos dedos que lhe constringiam o sangue que fluía para a cabeça. A vista turvava enquanto o sequelado a levantava do piso, puxando-a para ele. Os braços dela ficaram pesados e a mão deixou cair a meia tesoura.

Ela ouviu um homem gritar: “pra trás!” e em seguida o sequelado levou um golpe na cabeça e começou a tremer. O aperto fatal afrouxou o bastante para que Rachel tomasse um fôlego a plenos pulmões e recuperasse o equilíbrio.

O canal que escapara dos soldados mandou um soco no sequelado, mas o sequelado se desvencilhou como se tivesse aprendido a esquivar-se. Enquanto sua atenção era divergida, Rachel sussurrou uma oração de perdão e levantou a alça da meia tesoura.

A ponta de metal entrou fundo na base do crânio do sequelado, abrindo uma fenda na carne e revelando um vergão vermelho de músculo e cartilagem. O sangue escorreu do ferimento.

Então eles sangram como nós.

— Acerta ele de novo — disse o homem, dançando em frente aos braços estivados do sequelado.

Rachel pensou nos ferimentos que ela estaria ostentando como um colar; levantou a alça de madeira acima da cabeça com as duas mãos e fez o ferimento anterior se estender até o topo do crânio do sequelado, como um Sansão bíblico com filisteus mortos até o joelho depois do massacre com a queixada de um jumento.

O som de rachado sobressaiu aos grunhidos e gritos enquanto os outros dois sequelados castigavam os soldados. O sequelado contundido cambaleou por um momento e voltou-se para Rachel. O fogo nos olhos dele cederam a um olhar de dolorida confusão e Rachel achou que talvez o golpe tivesse recuperado alguma conexão no cérebro dele e talvez assim ele tivesse recuperado parte da humanidade.

— Melhor acertar ele de novo — disse o homem. — Não brinca com esses monstros, não.

— Não matarás — retrucou Rachel.

O homem olhou para ela e balançou a cabeça. Atrás dele, a soldado mandou a faca na sequelada Bridget Jones uma segunda vez, abrindo-lhe outro talho no tronco. A blusa de algodão ficou estufada com um pouco de intestino, mas o sequelado nem notou. Ela acertou o rosto da soldado com seu pequeno punho, quebrando-lhe o nariz e arrancando-lhe um dente.

— Vamos sair daqui — disse o homem agarrando a mão de Rachel e puxando-a em direção ao jardim de uma casa vizinha. O gesto lembrou muito o de DeVontay e ela se soltou dele.

— Tenho que ficar — disse ela. — Tem amigos meus aqui.

O rosto do homem franziu de ressentimento. Ele pegou a arma dela e a empurrou. — “Não matarás” serve pra você, mas não pra mim.

O homem golpeou a têmpora do sequelado com a lâmina, dessa vez o cara desabou como um corredor depois de uma maratona. Ouviu-se um tiro e o ombro do sequelado sem camisa explodiu com um florão de sangue e carne, mas mesmo assim continuou a atacar.

— Não tô vendo amigo nenhum aqui — argumentou o homem. — Vamos.

— Por aqui — disse Rachel apontando para a casa onde DeVontay ainda estava cativo.

— Tá bem — concordou o homem. Ele tinha um cheiro rançoso de cerveja velha e a vermelhidão dos olhos sugeriam ausência de sono ou abuso de álcool.

Rachel começou a correr com o homem logo atrás dela, segurando a macabra e ensanguentada lâmina de tesoura. Quando chegaram ao matagal paisagístico, Rachel avançou pelo meio e foi para o pátio lateral, onde poderia se esconder atrás de cerca de madeira alta. Abaixaram-se atrás dela assim que ouviram outro tiro, e depois outro.

— Você é nova por aqui? — perguntou o homem, cuja sobrancelha gotejava de suor.

— Desde o Depois — respondeu ela.

— Depois?

Ela deu de ombros e levantou as mãos num gestou abrangente. — Essa coisa de fim do mundo. Obrigada por me salvar. Meu nome é Rachel.

— Sou o Pete — disse o homem, entre uma e outra respiração ofegante. — É só uma sugestão: eu enterraria para sempre os Dez Mandamentos. Pelo menos cinco deles não se valem mais.

— Fui criada assim. Não é algo que a gente consiga desligar como um interruptor.

— É, talvez. Eu não saberia nada disso. Uma manhã de domingo na igreja católica me mostrou o suficiente dos horrores do inferno pra vida toda.

— Como eles te encontraram?

— Eu estava andando de bicicleta pela estrada, parei pra ver um carro e esses heróis desconhecidos pularam em mim e disseram que o Capitão queria me ver.

— O Capitão? É, eu o conheci. — Então o Capitão tinha um pelotão. Ela meteu a mão na mochila e encontrou o frasquinho de pentobarbital que o farmacêutico lhe dera. Os dedos dela continuaram a procurar até encontrarem uma garrafa d’água, puxaram-na e a passaram para Pete.

Ele torceu a tampa e a atirou no mato antes de dar uma enorme golada. — Esses caras... que eles querem?

— Não sei dizer — respondeu ela. — Mas acho que ficaram presos numa casamata tempo demais e começaram a ter ideias estranhas. O Capitão acha que pode controlar os sequelados se eles conseguirem reconhecer uma hierarquia de comando.

— É, eu então sou totalmente civil. E qual é o plano?

— Por acaso você viu um garotinho por aí? Ele tem uns dez anos, cabelo despenteado, talvez esteja carregando uma boneca.

— Acho que não.

— Bom, esse era o meu plano.

— Não é muito melhor que o meu. Eu ia procurar um bar e botar umas moedas na máquina de caraoquê pra cantar música de corno até a hora de fechar.


CAPÍTULO 20

— Nabos — disse Franklin.

Jorge quase respondeu em espanhol, mas lembrou-se da promessa. — O quê?

Franklin puxou um maço de talos folhosos do chão, revelando a raiz arredondada e amarelada. — Nabo é a comida perfeita pro sobrevivente. Cresce praticamente o ano todo, dá pra armazenar as raízes no inverno e tem as vitaminas necessárias.

A horta onde estava plantado ficava num dos cantos do complexo. Com o trabalho na fazenda Wilcox, Jorge tinha uma compreensão das curtas estações de crescimento e do clima úmido das serra Blue Ridge. Ele, portanto, gostou do local da horta, que recebia luz do sol o dia todo enquanto que a maior parte do acampamento do Franklin ficava protegida sob as árvores.

— Você planejou bem — comentou Jorge.

— Não. É que eu estou por aqui há tanto tempo que comecei a perceber algumas coisas. — Ele torceu as folhas amareladas mais externas do talo e as jogou no cabriteiro, onde uma cabra de chifres curtos a mascou entre os maxilares.

As folhas marrons de abobrinhas e abóboras outonais cobriam uma ponta da horta e os feijoeiros se contorciam ao longo de uma treliça de varetas. O milho já estava produzindo espigas por cujos cabelos voejavam abelhas. Um denso pomar de macieiras e pereiras pequenas mas copiosas ficava no outro lado da pequena casa, quase cobrindo de sombras um furgão sem rodas. O teto do furgão estava coberto de painéis solares e Franklin abrira a porta traseira para mostrar a Jorge a série de baterias que armazenavam a energia produzida.

— Um troço assim precisa de... — Jorge tentava achar a palavra certa, arrastando a enxada entre os canteiros para amontoar terra fresca em torno dos nabos. — Visão.

— Nada — disse Franklin. — Dava pra prever o que aconteceria, é só não estar vendado. Eu fiz parte da Rede de Preparação. Nós ensinávamos as pessoas a ficarem prontas, mas não adiantou muito. Os humanos são uma raça engraçada, Jorge. Tenho certeza de que são engraçados lá no México tanto quanto aqui.

Jorge pouco pensara nos seus irmãos e irmãs na Baixa Califórnia, ou na mãe em sua casinha apinhada. Ele não sabia se lhes desejava uma morte rápida e misericordiosa ou se naquele momento estavam correndo dos que Franklin chamava de “sequelados”.

— Se isso aconteceu com o mundo todo, como disse o homem no rádio, acho que não é tão engraçado — opinou Jorge encostando a enxada e olhando para as montanhas da serra ao longe. Os picos mais próximos estavam cobertos do verde escuro do fim do verão, mas o horizonte mostrava nuvens rasgadas de fúria.

— São as cidades queimando — explicou Franklin. — Aproveite o ar fresco enquanto pode.

— Os sequelados botam fogo nas coisas?

— Pra te dizer a verdade, não sei se são os sequelados ou se é o governo. Eu não ficaria surpreso se soubesse que eles estavam prontos para qualquer oportunidade que aparecesse, seja um asteroide gigante que colidisse com a terra, um ataque terrorista nuclear ou um deslocamento nos campos eletromagnéticos da Terra. Uma situação ruim pra uns pode ser oportunidade pra outros.

Embora Jorge tivesse pouco interesse em política, ele não entendia como o governo dos EUA se beneficiaria destruindo o próprio território. Por mais de uma vez, Jorge achou que Franklin passara muitos anos sozinho, sem nada mais em vista além de sonhos loucos, paranoia e obsessão.

Rosa os chamou do pórtico da casa. Marina estava atrás dela, enrolada num cobertor. Ela ainda parecia pálida e o cabelo estava úmido de suor, mas conseguiu acenar levemente antes que Rosa a levasse de volta para a sombra.

Jorge decidiu perguntar algo que o incomodava. — Sr. Wheeler, tá na cara que o senhor é do tipo que gosta de ficar sozinho sem depender de ninguém. Então por que ajudou a gente?

Franklin colocou os nabos numa cesta de madeira sobre alguns tomates e repolhos roxos. — Eu já morei por lá — respondeu Franklin, acenando vagamente para a montanha. — Igual a todo mundo. Trabalhava com desenho industrial pra deixar gente rica mais rica ainda, achei uma esposa bacana e me estabeleci. Nunca confiei no governo e acabei arranjando problemas pra mim por causa das coisas que eu escrevia na internet. Quando eles falam de “terra da liberdade”, é pura besteira. A gente só tem a liberdade que eles dão.

E por que sua família não tá aqui? E por que acolheu a minha? Jorge, no entanto, preferiu só escutar. Voltou novamente a atenção pras ervas daninhas que estavam nascendo no canteiro de cenouras. Além do mais, aquilo estava parecendo um preparativo para um discurso ainda maior.

Franklin parou de trabalhar e se ajoelhou na terra escura, com o olhar fixo onde o passado ficava além do alcance da visão: — O governo começou a me vigiar, só porque eu alertava as pessoas da merda que estava prestes a bater no ventilador. Depois do Onze de Setembro, a Segurança Nacional passou a ser a força mais poderosa de Washington porque os dedos magrinhos dela chegavam em todos os bolsos, em todos os fundos de campanha e em todos os projetos de lei do Congresso. A última coisa que o governo quer é que a verdade seja divulgada. Já acharam que eu fosse defensor da supremacia branca, muçulmano radical, neonazista, comunista, até espião sueco — se é que dá pra imaginar algum motivo pelo qual os suecos precisam dos nossos segredos.

— O senhor foi preso?

— Eles queriam me calar. Mesmo com todas essas leis novas que permitiam botar qualquer um na cadeia sem julgamento, eles sabiam que, se me prendessem, acabariam gerando publicidade e mais pessoas acessariam os meus sites. Eu ter vindo pra um esconderijo foi benéfico pros dois lados. Tudo bem me tornar um mártir, mas que seja pelo motivo certo, e esse motivo ainda não apareceu. — Franklin acenou os dedos calosos e nodosos para o mundo além. — E agora parece que a causa certa chegou, só que não tem mais internet.

Jorge continuava cauteloso: — Então você quer que nós ajudemos a falar sobre o abrigo de sobrevivência? O senhor vai nos ajudar pra nós ajudarmos o senhor?

— Claro que não — respondeu Franklin. — É tarde demais pra isso. Eu nem vou ajudar vocês. É que eu não podia deixar a garotinha morrer.

Jorge percebeu que o homem tinha uma nesga de compaixão por trás da fachada circunspecta e antissocial. — Somos gratos e prometemos trabalhar bastante enquanto estivermos aqui. Nós vamos embora quando o senhor quiser.

Franklin parecia não escutar. — Minha neta Chelsea tinha a idade da Marina quando se afogou.

Analisando suas próprias preocupações, Jorge se compadeceu do homem. — Sinto muito pelo senhor.

— Eu estava trabalhando no acampamento naquela época. Eu tinha uma rede de fornecedores desses painéis solares, turbinas eólicas, tanques d’água, essas coisas. Acho que o governo estava de olho em mim. Eu não sabia se o que estava voando em cima de mim era gavião e corvo ou aeronaves de vigilância. Eles têm aparelhos do tamanho de um inseto. Quer dizer, tinham.

Jorge pegou uma lagarta verde-limão de uma folha de couve e a analisou por um momento antes de esmagá-la entre os dedos. — Se eles sabiam, por que deixaram o senhor vir pra cá?

— É como eu disse: aqui eu ficava longe dos holofotes. Eu planejava trazer minha família pra cá, mas aí minha mulher já tinha me abandonado e meus filhos e netos me achavam um velho maluco. As únicas que não achavam eram minhas netas Rachel e Chelsea. A Rachel é toda cristã, age segundo os preceitos de Cristo. Ela não obedece a esses pastores políticos que ficam dizendo ao povo como se comportar. Você é religioso?

Jorge aprendera que, nos Estados Unidos, sempre se deve dizer que é batista, principalmente no Sul, mas ali não havia por que mentir para Franklin. — Fomos criados na igreja católica, mas faz tempo que a gente não vai à missa.

— Não faz mal nenhum acreditar em algo maior que a gente. É só ter certeza de que é algo que vem do céu, e não dos homens, porque os homens não são mais do que a gente. Os homens não são maiores que a vida. Os homens têm uma vida limitada e odeiam admitir isso.

Jorge tentava perceber o que isso significava quando Franklin voltou à sua história, aparentemente usada para expressar reflexões aleatórias e, com a mesma rapidez, descartá-las. — Rachel era a única que não me achava um sobrevivencialista doido. Ela dizia que Deus precisava acabar com o mundo para renová-lo, transformá-lo num lugar melhor, assim como Jesus precisou morrer na cruz para salvar a todos. Acho que isso conforta um pouco, já que esses pastores apocalípticos usam o medo pra ganhar dinheiro. Mesmo até republicou alguns dos meus antigos sites com nomes diferentes.

— Ela também teve problemas? — O sol já estava mais baixo no céu, projetando sombras por todo o complexo.

— Ela mal começara quando Chelsea morreu. Franklin engoliu a seco o amargor da lembrança. — As duas estavam no lago e Rachel só saiu de perto um minuto pra ir no banheiro atrás do matinho. Quando ela voltou, Chelsea já estava emborcada na água.

Jorge queria demonstrar suas condolências, mas decidiu que o silêncio seria mais respeitoso e mais adequado. Os costumes são diferentes nos Estados Unidos, mas não falar nada funciona em qualquer idioma.

— E era um metro de profundidade. Mas ela era boa nadadora. Eles fizeram isso pra enviar uma mensagem.

Eles? Será que o homem pensa que o governo afogou a neta?

Franklin deu uma batidinha na terra, levantou esfregando as mãos e pegou a cesta. — Bom, foi assim que eu cheguei aqui. Sua mulher cozinha bem? Minha comida é daquela que dá pra comer, mas é simples.

— Ela cozinhava pro Sr. Wilcox nos fins de semana.

— Bom, a comida não é daquelas de gente rica, mas é limpa, não tem veneno, pode provar. Bom, vamos comer como se fosse então a Última Ceia.

Jorge seguiu Franklin de volta para casa, pensando se seria melhor ir embora antes que o anfitrião achasse que deviam fazê-lo.


CAPÍTULO 21

— Mas que droga.

Campbell guinou a bicicleta, que por pouco não pegou no garoto. O pneu dianteiro acertou o meio-fio e a bicicleta tombou, lançando Campbell pela calçada até o mato ao longo da lateral da rua.

Campbell pedalou em direção aos disparos, pensando ser o local mais provável para encontrar o Pete, e a primeira saída da estrada passava por um posto de gasolina até um bairro de classe média. Ele desacelerou, esperando não ser atingido por tiros nem atacado, mas mentalmente se preparara para qualquer possibilidade, exceto a que acabara de ocorrer.

O cotovelo estava ralado e os joelhos esfolados, mas nenhum osso parecia ter se quebrado. Seu primeiro pensamento foi que o garoto pudesse ser um sequelado, o que explicaria por que estava correndo pela rua em direção à bicicleta.

No entanto, o garoto simplesmente ficou lá parado, olhando para Campbell com uma boneca pendurada numa das mãos.

Decididamente não é um sequelado, senão ele já estaria em cima de mim.

Campbell se sentou com a camisa molhada pela água que havia numa garrafa que se quebrou dentro da mochila. — Oi — disse Campbell com sua voz mais amigável, como se estivessem se cruzando num parquinho, e não no meio do apocalipse.

O garoto nada disse, só agarrou a boneca. Ele parecia ter uns dez anos, idade em que a maioria dos garotos estaria carregando luvas de beisebol, tocadores de MP3 e videogames portáteis em vez de bonecas. Ele, no entanto, provavelmente vira horrores que nem o jogo mais violento teria conseguido mostrar.

— Você mora por aqui? — perguntou Campbell, mesmo que a rua parecesse tão morta quanto todas as outras pelas quais passara nas últimas semanas.

Só havia poucas semanas desde as erupções solares? Parecia que o mundo já estava todo coberto por uma camada enorme de poeira.

A cabeça do garoto se mexeu um pouco, o que Campbell considerou um sinal de negativa. Campbell analisou as casas que margeavam os dois lados da rua, carros largados ali e acolá ao longo do meio fio e pelas ruas — mais um bairro pego de surpresa pela catástrofe. Havia carne humana apodrecendo e se deteriorando atrás de cada porta fechada.

Campbell abriu a mochila e pegou uma barra de cereais. Desembrulhou-a e ofereceu-a ao garoto. Sentiu-se numa paródia do estereótipo do perverso, ganhando a confiança de um garoto com guloseimas. — Tá com fome?

O garoto mexeu a cabeça de novo com olhos olhando cautelosamente por baixo da aba do boné de time de futebol.

— Que que cê acha da gente sair da rua? — perguntou Campbell. — Deve ter gente do mal por aí.

O lábio inferior do garoto tremeu. — Gente do mal?

Ah. Então você tá sabendo dos sequelados. E de alguma forma conseguiu sobreviver.

— Vem cá, vamos sair da rua — disse Campbell. — Será que você consegue me ajudar a arrumar a bicicleta?

O aro dianteiro estava irremediavelmente torcido, mas Campbell fingia verificar a condição da bicicleta. O garoto deu alguns passos em direção a Campbell, que deu uma mordida na barra de cereais e começou a mastigar.

— Ai, droga, esqueci que era sua — comentou Campbell com a boca cheia de aveia caramelada. — Pode ficar com a outra metade. Eu não tenho piolho, não, tá?

O garoto quase sorriu. Chegou mais perto, afrouxou um pouco a boneca encardida, envolvida numa bandana improvisada com um trapo de algodão em torno da cintura para fazer-lhe um vestido. Campbell assentiu com a cabeça. — Essa boneca tá com um visu irado.

— Ela não é de verdade.

— Mas você fez bem em protegê-la dos caras do mal — disse Campbell verificando se havia alguma movimentação na rua. — Você deve ser um super-herói.

O garoto balançou a cabeça com um pouco mais de vigor. — Não, sou um garoto.

— Eu também. Vem, vamos sair da rua.

— Foi a Rachel que fez esse vestido — explicou o garoto assim que Campbell o conduziu até uma garagem coberta, que pelo menos dava a impressão de estarem protegidos. Dentro havia um Cadillac dos anos 1990, com o cromado bem brilhante e polido como um espelho.

— Rachel? É sua irmã?

— Não, ela me trouxe pra cá depois que minha mãe morreu, mas depois foi embora. A gente tava indo pro Mi’ssippi encontrar o meu pai.

Putz, que vaca desalmada. — É, eu perdi um amigo também. Vim pra cá procurar ele. O nome dele é Pete.

— Meu nome é Stephen.

— Que nome bonito. Se eu tiver um filho um dia, acho que vai se chamar Stephen. Campbell deu uma olhada no Cadillac e viu se estava ou não ocupado. As chaves estavam tentadoramente na ignição. — Você viu mais alguém por aí?

— Depois que a Rachel foi embora, um cara de roupa do exército me deixou sair do barracão onde ela me escondeu. Ele disse que eu era isca de sequelado e me mandou correr. Aí eu fiz isso. Não parei até encontrar você.

Então o Stephen sabe o que é “sequelado”. Esses garotos crescem tão rápido nos dias de hoje. — E esse cara de uniforme do exército? Ele era como a gente? Quer dizer, ele não era sequelado?

— Acho que tinha mais gente igual a ele numa casa de tijolo em que o DeVontay entrou.

— DeVontay?

— É o amigo da Rachel.

— Você me mostra essa casa?

Stephen balançou a cabeça, apertando a boneca. — Não quero que o sequelado me pegue.

— Prometo que não vou te largar como a Rachel fez. — Campbell pensou se ele não estaria fazendo a mesma coisa que Arnoff fizera com ele e com Pete, forçando-o a servir-lhe.

— Se eu te mostrar, você me leva pro Mi’ssippi?

— Claro, Stephen. Faço qualquer coisa.

— Então tá bom. Mas você tem que levar a Molly também. — Stephen segurou a boneca como se testasse o compromisso com Campbell.

— Claro, vamos todos. Até o DeVontay se ele ainda estiver lá. — Campbell procurou uma arma na garagem. Na bicicleta, ele se sentia relativamente seguro, pois podia escapar dos sequelados, mesmo que eles parecessem ser mais rápidos e melhor coordenados naquele momento. Para andar a pé, seria melhor encontrar um modo de defender-se.

A garagem, porém, nada oferecia de minimamente letal. O dono do Cadillac era tão metódico quanto sugeria a condição do carro. Havia lá antigas edições de revistas automotivas em organizadores de plástico em estantes de metal. As ferramentas elétricas estavam dispostas em sequência numa bancada de madeira, com os fios cuidadosamente enrolados em torno do cabo de cada uma delas. Havia frascos de óleo de motor, de fluido para limpadores de para-brisa e de anticongelante no canto da estante, e também uma lata de gasolina. Campbell balançou a lata e ela soou.

Ótimo. Agora é só jogar isto na cabeça do sequelado, acender um fósforo e sair correndo. Pra andar no mundo dos sequelados é assim: uma tocha humana de cada vez.

Campbell pôs no chão a lata de gasolina e se lembrou de que Arnoff falou sobre o fascínio que o fogo causava nos sequelados. Talvez houvesse algo nos circuitos fritos deles que adorava a simplicidade da destruição, ou talvez um desejo muito arraigado de purificação que havia nos fantasmas de suas personalidades humanas. De qualquer forma, ele encontrara uma forma de distrair os sequelados até decidir o que fazer depois.

Vocês gostam de brincar de vaga-lume, né? Então vou começar com vocês.

Ele girou a tampa da lata de gasolina e a derramou em toda a bancada. Os vapores da gasolina lhe irritaram os olhos e fizeram-no marear. Passou um rastro de gasolina sobre o Cadillac, imaginando se ele iria ou não explodir como nos filmes.

— Você já comeu linguiça de churrasco, Stephen?

— Não, mas meu pai gosta de churrasco.

— Tá, então vamos fazer o maior churrasco de quintal do mundo. — Campbell se distanciou em alguns metros, pensando se havia ou não respingado gasolina na própria roupa. Ele achou que não impressionaria muito o Stephen se se imolasse acidentalmente.

Ele pegou uma das revistas do arquivo. A capa tinha um carro todo personalizado que se parecia com um Camaro 1969. Campbell arrancou algumas páginas da revista, puxou um isqueiro do bolso e acendeu a ponta da tocha improvisada.

— Beleza, vamo’ lá — disse a Stephen lançando a tocha no rastro molhado de gasolina, que naquele momento já encharcava o concreto. O combustível imediatamente se converteu numa chama grossa e brilhante que se espalhou nos dois sentidos, mas os dois já estavam fora da garagem quando o fogo chegou ao Cadillac.

Campbell guiou Stephen pelo quintal da casa, pensando se o dono do Cadillac estava em casa tirando o maior dos cochilos. Talvez fosse bom verificar. Não seria certo tacar fogo no carro alheio sem pedir, mesmo que o bebedor de gasolina seja só outro dinossauro nesse momento.

— Vamos seguir pela rua daqui, depois dar a volta na casa por trás — explicou Campbell com a fogueira crepitando atrás deles como uma fumaça grossa turvando o céu. — Você acha que sabe que casa é?

— Sei — respondeu Stephen soltando sua mão da de Campbell. — Não sou nenhum neném.

— Bom, mas é que eu tô com um pouco de medo.

— Mas você é um super-herói.

— É, mas agora eu tô na minha identidade secreta.

— Tá vendo aquela torre? É pra lá.

Campbell viu pelas árvores uma grande caixa d’água emoldurada pelas nuvens cinza-chumbo espalhadas no céu. O nome da cidade estava disposto letra a letra na circunferência, mas, como a primeira parte estava oculta, Campbell só podia adivinhar onde diabos ficava “-iston”.

Eles pularam a cerca, que ficava na altura da cintura — Campbell primeiro passou Stephen e, antes dele, a boneca. A fileira de casas ficava de frente para outras casas parecidas, e os vãos na paisagem e nos cercados revelavam outra rua, como se o bairro fosse mais um daqueles subúrbios homogêneos, com bandeiras americanas e o cadáver ocasional em decúbito ventral na grama.

Campbell viu um movimento das portas de correr de vidro e duvidou se devia verificar se havia outros sobreviventes humanos. Mas a janela se quebrou e um sequelado saiu cambaleando — um homem seminu segurando um taco de beisebol de alumínio. Campbell puxou Stephen para escondê-lo numa sebe de buxo e cobriu a boca do garoto para que ele não gritasse. O sequelado passou a uns seis metros deles em direção à garagem que ardia em chamas.

— Gente do mal — sussurrou Stephen depois que o sequelado sumiu.

— É.

Eles continuaram a travessia dos jardins. Chegaram até um cachorro morto amarrado numa corrente. Havia moscas zumbindo sobre o corpo inchado e o fedor era pungente.

— Porque a Rachel deixou você lá? — perguntou Campbell desviando a atenção de Stephen da cena grotesca de morte, lembrete do que está fadado a acontecer com cada um.

— Ela entrou na casa do pessoal do exército pra pegar o DeVontay.

— E por que o DeVontay entrou na casa?

— Ele achou que eles eram gente igual a nós. Gente do bem.

Campbell devaneou sobre a sabedoria adquirida ao encontrar outros sobreviventes. Até então ele tivera muito azar e se perguntava se os humanos sob tribulação poderiam trabalhar juntos em prol do bem comum.

Nada como um bom e velho apocalipse para mandar essa besteirada de paz, amor e compreensão pra lua.

— Ali é o barracão em que ela me colocou — apontou Stephen depois de atravessarem outro jardim, que continha uma horta não cuidada. — Ela prometeu que voltava. Mas o homem do exército chegou e me disse pra correr ou morrer.

A porta do barracão estava aberta e Campbell olhou atentamente o local desejando ter uma arma consigo.

— Alguém esteve aí depois que eu saí — observou Stephen. — Jogaram as ferramentas todas no chão.

— Talvez a Rachel tenha voltado.

— Ou os homens do exército.

Eles ouviram um tiro à esquerda, vindo da rua. Campbell ficou de barriga no chão e se arrastou até ver a luta. Uma mulher de uniforme militar estava rechaçando um sequelado e dois corpos estavam amontoados aos pés deles.

— Melhor eu ajudá-la — disse Campbell. — Fica aí.

Stephen agarrou a camisa dele enquanto ele tentava ficar de pé. — Não. Foi ela que disse que os sequelados iam me pegar.

— Mas ela é uma de nós.

— Se você ajudar ela, talvez ela me jogue pros sequelados de novo.

Antes de Campbell tomar uma decisão, a soldado resolveu o dilema enfiando uma faca no abdome do sequelado e rasgou-lhe a pele com um movimento ascendente de prata e sangue. Os xingamentos vociferados pela soldado provavelmente chamariam a atenção de outros sequelados da vizinhança.

O garoto ficou paralisado enquanto a soldado decepava o sequelado morto e limpava a faca na perna das calças camufladas. O rosto dele não mostrava choque nem surpresa. Campbell ficou pensando se era assim que as crianças reagiam à violência da guerra — uma exposição repetida que dava lugar ao torpor.

Bem-vindo à nova normalidade.

— Onde fica a casa? — perguntou Campbell.

— Dep-pois da esquina, eu acho.

— Tá, melhor ficar longe da rua.

Até eles conseguirem se arrastar de volta à relativa reclusão dos jardins, a soldado se recuperara e pegara o rifle. Campbell não queria estar por perto quando os sequelados viessem e as balas começassem a pipocar.

Ele estava prestes a correr quando uma voz feminina chamou: — Stephen!


CAPÍTULO 22

Rachel abraçou Stephen quase sem acreditar que ele estivesse vivo.

Acho que eu Vos devo mais uma prece atendida, Senhor.

Abaixaram-se e entraram na casa vizinha, cuja porta estava destrancada. Uma olhadela foi o bastante para perceber que estava vazia. Os antigos ocupantes pareciam estar fazendo as malas para ir a algum lugar logo depois de ouvir as notícias sobre os estranhos fenômenos. Pete verificou a geladeira, mas encontrou só comida mofada e uma garrafa de refrigerante de limão — há muito esgotada — enquanto Rachel descobria um abridor de latas manual e serviu a Stephen uma lata de canja. Eles se juntaram na penumbra da cozinha e Pete fez rescender um cheiro de sardinha, que ele comeu com a mão.

— Você deve ser a Rachel — disse o homem que pelo jeito tinha resgatado o garoto.

— Sou — respondeu ela. — E quem é você?

— É o Campbell, amigo meu — respondeu Pete. Ele socou o braço de Campbell. — Acho que você não vai se ver livre de mim assim tão fácil. Cadê o Arnoff e a gangue dele?

— Estão lá na estrada, procurando a Terceira Guerra Mundial.

— Eles estão com sorte, então. Parece que tem uma milícia de fuzileiros por aqui, ou algo assim. Eles pularam em cima de mim na estrada e me capturaram, e... sei lá por quê.

Rachel olhou pelos ombros de Stephen e disse: — Isca de sequelado.

Campbell olhou para ela. — E de quem foi a grande ideia de abandonar o garoto? Onde você tava com a cabeça?

Rachel agarrou com força a meia tesoura e a levantou para que Campbell visse o sangue na ponta de metal. Ela se forçou a respirar fundo para conter uma onda de raiva. — Estávamos indo bem até que você chegou com sua cavalaria de um homem só.

Pete deu uma risada apreensiva. — Ei, galera, a gente tá no mesmo time, né?

Campbell deu de ombros e olhou para o chão. — Desculpe. Acho que tá todo mundo nervoso.

— Ela me salvou — declarou Pete para Campbell. — Se não fosse ela, eu estaria morto aí na rua.

Rachel ignorou a loa e continuou a ajustar o vestido de Molly. Devolveu a boneca a Stephen, que a embalou como a uma bola de futebol.

— Você machucou alguém? — perguntou Stephen apontando para a tesoura ensanguentada.

— Não — respondeu ela. — Era só um sequelado.

Ah, então você deu o último passo. Nem todas as criaturas vivas são iguais aos olhos de Deus, e parece que Jesus não morreu pelo pecado de todos.

— Ela foi cruel com esse troço aí — comentou Pete imitando exageradamente o movimento que ela fizera com a arma.

— Eu vou me lembrar disso na próxima vez em que arrancar a cabeça de alguém. Campbell olhou pela cortina as casas vizinhas. — Esta área está tão morta quanto parece?

— Tá — respondeu Rachel. — Vimos uns sequelados quando estávamos vindo. — Ela apontou para a coluna de fumaça que pairava sobre os telhados e as árvores. — Tem alguma coisa pegando fogo.

— Eu banquei o incendiário para fazer um chamariz — explicou Campbell.

— Parece que você fez um bom trabalho. A fumaça tá ficando grossa.

— Vamo’ vazar — propôs Pete. — Aqui não tem cerveja.

— Por mim, tudo bem — concordou Campbell. — Aposto que a gente pode pedir umas bicicletas para os nobres cidadãos do lugar.

Rachel não estava certa se devia confiar nos instintos anuviados pela culpa. Ela levaria Stephen e iria para o norte para encontrar o lendário complexo do avô na estrada Blue Ridge, mesmo com esses caras na cola dela. DeVontay provavelmente estava morto àquela altura, jogado aos sequelados como uma versão pervertida do costume romano de jogar cristãos aos leões. Ela até podia ver o Capitão curvando os lábios em amarga ironia e fazendo o gesto do polegar para baixo.

— Não vou embora sem o DeVontay — clausulou Rachel.

— Ele prometeu me levar pro meu pai — disse Stephen.

— Tem gente prometendo o mundo por aí — escarneceu Campbell.

— A gente cuida disso — disse Rachel aborrecida com o comportamento venha-a-nós-o-vosso-reino de Campbell. — Vocês dois podem continuar aí com o que estavam fazendo.

— Estávamos esperando os sequelados nos esquartejarem pedaço por pedaço — disse Pete. — Pode crer. Só matando tempo.

— Tá bem — assentiu Campbell. — Detesto ver alguém atirando pérolas aos porcos. Qu’é que a gente faz?

Rachel não tinha certeza se a ajuda seria bem-vinda. O plano dela era voltar à casa, esperar anoitecer, entrar escondida e libertar DeVontay. Ela tinha de admitir que não era lá um grande plano porque não sabia onde colocar Stephen durante a ação.

— Eles têm armas e nós não — observou Rachel.

— Droga — disse Pete. — Você acha mesmo que eles atirariam em nós?

— O líder é meio instável, isso pra dizer o mínimo. Parece que eles se aquartelaram nessa casamata quando a maior parte do pelotão se transformou em sequelado.

— Ele não tem culpa de ser meio atacado — contemporizou Campbell. — Acho que as erupções nos afetaram mais do que conseguimos perceber. Eu tava conversando com um cientista e...

— Credo, Campbell — cortou Pete. — Esse cara não era nem professor contratado, eu não botaria muita fé no que ele falou, não.

— Quantas pessoas tinha o grupo desse tal Arnoff? — Rachel quis saber se havia mais sobrevivente do que ela supôs haver. Talvez a maioria deles estivesse escondida, procurando janelas de porão quebradas e esperando a Segunda Onda.

— Mais quatro — respondeu Campbell. — Eles podem ter ido nessa direção, mas acho que eu não faria muito por eles, não.

— Bom, não dá pra ficarmos parados aqui esperando os sequelados sofrerem mutação e se transformarem em outra coisa.

— Ou nós nos transformarmos — acrescentou Campbell.

— Não gostei disso aí, não — disse Pete.

— Transformar em quê? — perguntou Stephen. Rachel quis cobrir os ouvidos dele. E os olhos também. E poupar-lhe o nariz do cheiro de queimado e de carne podre.

— Então — disse Pete — ataque frontal, missão suicida. Eu tô dentro. Pô, a gente vai ter que enfrentar isso de um jeito ou de outro.

— Tenho uma ideia, mas é arriscada — disse Campbell.

— Espero que tenha bebida na jogada — desejou Pete. — Já estou ficando sóbrio e não quero essa realidade toda.

Rachel acariciou os cabelos de Stephen. Eram grossos como os de Chelsea, com cachinhos. Ela não queria perder mais ninguém na vida se pudesse evitar.

— Tá bem — cedeu Rachel. — Do que se trata?

— Bom, é bem fácil começar um incêndio — disse Campbell. — Não é, Stephen?

O garoto assentiu com a cabeça: — E os sequelados gostam.

— E os sequelados gostam. Aí a gente cria uma distração, como fazem nos filmes de guerra; aí, quando todo mundo estiver correndo na confusão, a gente entra e pega seu amigo.

— E se a gente chamuscar o DeVontay durante a ação? — perguntou Rachel.

— Eu não disse que o plano era bom. Você tinha em mente algo melhor?

Rachel estudou os olhos de Campbell por trás dos óculos grossos de aro preto. As pupilas dele estavam dilatadas de tensão, com um brilho cinza-azulado do mar no inverno. O cabelo dele estava desalinhado e sujo, o queixo era meio pequeno para o rosto e os ombros sugeriam que ele levantava o celular, mas nenhum peso. Era o tipo de cara para quem ela não olharia de novo num café ou numa livraria, mas ali, no Depois, ele tinha uma masculinidade e uma nobreza estranhas.

Ou talvez ele estivesse mudando o que era antes — uma vítima da sutil interferência do sol.

Talvez VOCÊ esteja mudando.

Não. Ela ainda se achava uma boa cristã. Essa pequena demonstração de violência contra um sequelado se justificava. O Deus do Velho Testamento não era beligerante e vingativo antes de Jesus trazer a paz para o mundo? Se você virar a outra face nesse novo mundo triste, provavelmente ganharia uma dentada.

— Acho que não podemos mais esperar príncipes para nos salvar — decidiu-se Rachel finalmente. — Se é isso que o exército virou quando as cordinhas de marionete arrebentaram, talvez meu avô estivesse certo.

— Certo sobre o quê? — perguntou Campbell.

— Ele sempre dizia: “Quando a casa cai, o que sobra em pé é inimigo”.

Pete balançou a cabeça. — Que parada pesada. Espero que não tenha ninguém andando por aí com uma machadinha.

— Tenho certeza de que ele foi um dos que sobreviveram, presumindo que não tenha se transformado — disse Rachel. — Ele estava pronto pro que ia acontecer.

— Pronto pra isto? — perguntou Campbell. — Até os cientistas foram pego de calças na mão. Eles achavam que ia levar mais uns cinco bilhões de anos até o sol virar uma gigante vermelha e explodir tudo numa bola de gás.

Pete se inclinou, empinou o traseiro e soltou um pum bem sonoro. — Aí a bola de gás pra você — disse ele.

Stephen deu uma risadinha, e, mesmo desaprovando esse tipo de humor, Rachel ficou aliviada de ver que o garoto se recuperava do seu trauma mais recente.

— Tá bem — assentiu Campbell. — O sol está se pondo. Melhor fazer o plano depois de escurecer.

— Venham comigo — disse Rachel pegando Stephen pela mão. Ela conferiu a janela da frente para se certificar de que não havia ninguém, embora pretendesse usar a porta dos fundos.

Ah, meu bom Deus. É sério isso?

— Pessoal — disse ela. — Acho que vocês têm que ver isso.

Eles se amontoaram atrás dela com o bafo de Pete empesteando o ar. Do lado de fora, o crepúsculo estava esfumaçado e lúgubre, com os bordos e carvalhos do lugar dando-lhe um ar outonal. Nesgas de aurora boreal cruzavam a atmosfera como grandes espectros verde-limão. As sombras da noite se esticavam pelos jardins e pelas janelas das casas, dando-lhes um aspecto sinistro que sugeria a presença de terríveis segredos. Mas era a atividade da rua que chamara sua atenção.

Duas pessoas estavam cuidando de um dos sequelados caídos. Rachel não tinha certeza, mas achava que o cadáver era do que ela tinha acertado com a tesoura de podar.

— Soldados — disse Pete. — Que diabos estão fazendo com um sequelado morto? Não consigo imaginar eles perdendo tempo fazendo um velório.

— Não são soldados — observou Rachel. Mesmo na pouca luz, ela viu que um dos vultos vestia uma camiseta clara, e não camuflagem, e o que pareciam ser uma bermuda cargo e sandálias. O outro vestia um robe de banho, com a cordinha dependurada e uma cabeleira que podia ser tanto masculina quanto feminina. Os dois se abaixaram e levantaram o corpo até que ficasse em posição de assento.

— Ah, não, será que eles vão comer o corpo? Não me diga que esses monstros de olho vidrado tão virando zumbis!

— Pssst. — Rachel olhou duro para ele e assentiu com a cabeça para Stephen, cujos olhos se arregalaram enquanto agarrava a boneca.

— Ele tá só brincando — disse Campbell para o garoto. — É que ele lê muito gibi.

— Eu gosto de gibi — disse o garoto. — O que gosto mais é o do Homem-Aranha.

— Legal — disse Pete, tentando encobrir a mancada. — Eu tinha umas revistas na mochila, mas acho que perdi quando os soldados me atacaram.

— Você tem sorte — disse Campbell indo até a mochila dele no sofá. — Eu achei mesmo que você ia querer elas de volta. Eu resgatei pra você.

Pete ficou tentando distrair Stephen do que poderia ser uma descoberta repugnante. Ele bateu de leve no ombro de Stephen e disse: — Primeira aparição do Duende Verde, mocinho. Tá novinha.

— Nem tão novinha agora — disse Campbell. — Mas dá pra ler com a lanterna. Põe a luz dela bem em cima da revista pra ninguém ver a gente.

— Que legal! — exclamou Stephen como qualquer garoto normal faria, e não um que tivesse passado pela destruição em massa de sua raça e pela transformação do mundo num deserto hostil. O coração de Rachel apertou um pouco, mas ela não se permitiria derramar uma lágrima sequer. Ela chorou quando Chelsea morreu e qualquer tribulação depois disso teria de abrir um reservatório totalmente novo e ainda não revelado.

Rachel e Campbell colocaram o nariz na janela com os ombros se tocando e a respiração embaçando o vidro. Os dois vultos levantaram o sequelado e o seguraram com dificuldade entre eles, mais como um par de marinheiros carregando um companheiro bêbado.

— Acha que eles vão enterrá-lo? — perguntou Rachel.

— Não seria a primeira vez que veria isso. Mas devo admitir: tenho mais tempo de fuga que de observação.

— Eles estão se movendo como humanos. Bom equilíbrio, postura, os movimentos concentrados em outra coisa que não seja destruição.

— É. Mas, se são sobreviventes, o que querem com um sequelado morto?

Rachel não conseguia pensar em tantas possibilidades, inclusive na hipótese canibalista do Pete, mas isso não fazia sentido porque ainda havia muita comida por lá. Menos provável seria para experiências científicas, dada a ruptura de todos os sistemas acadêmicos, e, afora esses, ela não podia concluir nenhum outro uso para um cadáver. — Talvez eles estejam limpando a rua.

— Para parecer que não tem mais sequelados por aí? Caçando para algum tipo de prêmio da comunidade?

— Não: para atrair mais sequelados. Talvez eles tenham uma função de vigilantes.

Por descuido, Pete passou o feixe da lanterna pela sala ao virar uma página enquanto lia para Stephen. Rachel o repreendeu, com medo de que a luz atraísse curiosos do exterior como mariposas obcecadas.

Em vez disso, os dois na rua continuavam a arrastar o cadáver, indo em direção ao incêndio que Campbell deflagrou. O fogo se espalhava e tingia de vermelho o lusco-fusco, com a fumaça se projetando até as nesgas violeta do céu numa tempestade infernal. A pessoa de robe soltou o cadáver e o robe se abriu, revelando a carne mosqueada.

— Eu acho que são sequelados — opinou Rachel.

— Não tem sentido — disse Campbell. — Os sequelados são máquinas de morte e violência.

— Talvez tenhamos simplificado o evento fingindo entendê-los. — Rachel não gostou da resposta, mas seria pior que a realidade das últimas semanas?

O homem de camiseta se virou e olhou diretamente para Rachel, ou pelo menos assim ela sentira. Mesmo a trinta metros de distância, o aspecto encoberto do olhar revelava ser de um sequelado. Ele não era gordo nem magro, cabelo cortado reco e sapato dockside. Poderia bem ser um cara lavando a calçada com uma mangueira de jardim e uma cerveja na mão esperando o horário dos jogos de futebol à tarde.

Rachel se abaixou um pouco, puxando Campbell para baixo, e disse: — Galera, abaixa um pouco, eles tão olhando pra cá.

Eles se agacharam no escuro por um minuto, deixando de fundo somente o crepitar distante do incêndio. Rachel esperou uma batida na porta, talvez um corpo se atirando pela janela. Ela desejou não ter deixado a tesoura de podar na cozinha.

Ela se cansou da tensão e foi para o canto da cortina para ver os dois sequelados carregando o camarada morto do outro lado da rua. Rachel estava surpresa de tê-lo pensado, mas eles tinham escoltado o companheiro morto com uma ternura que contrastava diretamente com toda a violência que testemunhara.

— Acho que vou segui-los — disse Campbell — pra saber o que tá acontecendo.

— Não — disse Rachel. — Como isso vai ajudar a gente? Agora a gente tem que salvar o DeVontay e sair daqui antes que seu incêndio queime a gente vivo.

— Todos podemos ser super-heróis! — exclamou Stephen, claramente tão absorvido pela história que turvara a linha que separava a ficção da realidade. Rachel quase o invejou.

— Isso aí, moleque — concordou Pete. — Uma supermega-arma vai mudar tudo.

Como que pontuando as palavras de Pete, um ruído ressoou do lado de fora e chamou a atenção de Rachel. Primeiro ela achou que fosse madeira estalando no calor do fogo, mas o sequelado de camiseta clara estava esparramado na rua em cima do cadáver que estava ajudando a carregar. Uma mancha escura se espalhou pelas costas da camiseta.

Tiro de arma de fogo.

E ouviu-se mais um disparo. O último sequelado se abaixou e entrou na escuridão da fumaça e fugiu da rua por um jardim lateral.

— Aposto que foi o pelotão do Capitão — supôs Rachel.

— Ou o grupo do Arnoff — arriscou Campbell.

Pete se juntou a eles na janela. — Legal. Vamos nos agrupar.

— Neste momento — confessou Campbell — não sei dizer quem é sequelado e quem é humano. E eu é que não vou levar um tiro pra descobrir.

— Ele tá certo — disse Rachel para Pete. — Mas vocês podem fazer o que quiserem. Eu vou resgatar o DeVontay. — Ela chamou Stephen na escuridão da sala de estar. — Pega tuas coisas e vai me encontrar na porta dos fundos.


CAPÍTULO 23

À primeira vista, a sede do rancho parecia uma casa abandonada.

Rachel abriu a folhagem cerosa do rododendro que margeava o jardim. As janelas estavam escuras, embora o brilho distante do fogo estivesse refletido nas janelas. O incêndio de Campbell se espalhara, emoldurando o céu a leste com um vermelho-alaranjado furioso. As chamas chicoteavam acima das copas das árvores, lançando feixes de luz pelo terreno. Era forte o cheiro de fumaça e a respiração era difícil, mas Rachel não conseguia parar de pensar em todos os corpos cremados cujas cinzas flutuantes penetravam-lhe os pulmões.

— Caramba, Campbell — disse Pete, agachado atrás dela na propriedade ao lado do jardim do rancho. — Você fez uma fogueira e tanto. Fez sua parte pra deixar o passado de vez, hein?

— Talvez esses caras já estejam fazendo isso — disse ele.

— Não — disse Rachel. — Não acho que eles estejam interessados em sobrevivência. Eles estão mais interessados na guerra.

— Guerra contra quem? — perguntou Campbell. — Acho que essa já tá meio que perdida.

— Você não sabe o que é ser soldado. Eles preferem um momento de glória a levar na cara.

Stephen apertou a mão dela, curvado como um novelo debaixo da folhagem dos arbustos. — Não entra lá.

— Eu não vou embora sem o DeVontay. Se eu não voltar em quinze minutos, os rapazes vão te levar até o teu pai. Não é?

— Ahm... Claro — disse Pete. — A gente estava mesmo indo pr’aqueles lados.

— Então tá. — disse Rachel. — Vou botar fogo perto da garagem. Assim todo mundo vai ter uma chance de escapar em tempo hábil.

— Tem algum combustível? — perguntou Campbell.

— Antes de escurecer, eu vi carvão de churrasco no quintal. Ao lado do carvão tinha uma lata de fluido de isqueiro.

— Churrasco de novo — disse Stephen.

Rachel deu uma risadinha, embora o som da reafirmação soasse mais como alguém engasgando com osso de galinha. — Preciso de papel também.

Depois de um momento, algo grande estourou e explodiu dentro do fogo distante com o vushh de um avião na decolagem. Pete disse: — Droga. Bom, foi muito pro potencial de investimento. — Ele abriu a bolsa e deu uma pilha de revistinhas para ela. — Tchau, Aranha. Foi bom enquanto você esteve comigo.

— É por uma boa causa — confortou Campbell.

— Sacrifício é pra otário — disse Pete — mas isso é melhor que isso me renda uns pontos lá no céu.

— Eu dou uma força nisso aí — disse Rachel esperando não ter soado muito santimonial. Ela rezara fervorosamente nos últimos sessenta minutos, mas manteve a oração confidencial.

Bom, é você e Deus. Porque você não está nisso sozinha.

Ela se certificou de que o isqueiro estivesse no bolso e, em seguida, abriu caminho pelo rododendro. — Eu vou com você — disse Campbell.

— Aí vai ser mais fácil de eles nos virem — disse ela. — Além do mais, você precisa cuidar do Stephen.

Ela sentiu uma pegada forte no antebraço. Virou-se e viu as labaredas crepitando nos óculos de Campbell e, atrás delas, os olhos dele brilhando. — Se você entrar aí, eu tenho que ir com você — disse ele.

A ira ardeu dentro dela tão quente quanto o fogo. — Agora não é hora pra botar em prática nenhum código masculino pós-apocalíptico. Caso não tenha notado, a maioria dos códigos já era. Portanto, não dê uma de macho, porque eu cheguei até aqui sem vocês.

Stephen estremeceu e ofegou um pouco, e Rachel se arrependeu imediatamente do rompante. Ela acariciou o cabelo de Stephen e sussurrou: — Tá tudo bem. Vou buscar o DeVontay e já volto. Prometo.

Pete bufou de descrença, mas Campbell ficou em silêncio. Rachel pegou as revistinhas com uma das mãos e a meia tesoura de podar com a outra. A natureza burlesca de sua posição a pegou de jeito. Se ela visse alguém nessa situação num vídeo viral do YouTube, dublaria a estrela do vídeo como supernerd, fadada a uma vida celibatária de memes de gatos.

Meu nome é Joana d’Arc. Com sorte, sem a parte de “queimada na fogueira”.

Uma nesga de luz passou por dentro da casa do rancho, talvez emitida pelo feixe de uma lanterna. Ao mesmo tempo, uma lufada de vento afastou o fogo distante numa massa inchada de calor, iluminando as colunas torcidas de fumaça que se erguiam aos céus.

Rachel pensou ter ouvido a voz de alguém pela janela estilhaçada. O corpo fora removido da soleira, embora houvesse um grande amontoado nas sombras do canteiro de flores próximo ao limite do pórtico.

— Beleza, desejem-nos sorte — disse Rachel preparando-se para uma carreira pelo gramado. Como estava escuro, ela estava bem certa de que não seria avistada, mas não confiava na pequena equipe classe A do Capitão América. Eles podem estar um pouco nervosos porque um de seu pelotão foi morto pelos sequelados.

— Você não precisa de sorte — retrucou Pete. — Você precisa é de um trago.

— Boa sorte — disse Campbell, apertando-lhe o braço para encorajá-la. — Se algo acontecer, vamos fazer uma distração pra você fugir.

— Código de masculinidade? — perguntou ela.

— Nada — respondeu ele. — Só a boa e velha estratégia de superar os inimigos pela esperteza.

— Espera — interviu Stephen. — Eu achei que os seque... esse troço aí... fossem do mal.

— E o seu trabalho vai ser cuidar da Molly — disse-lhe Rachel. — Certo, se tudo acontecer conforme o planejado, te encontro aqui com o DeVontay.

— Nada acontece conforme o planejado — disse Campbell. — Senão não estaríamos no Depois.

— É — murmurou ela entre uma respiração e outra. Em seguida, desbravou os arbustos e correu abaixada de olho na casa com a meia tesoura em riste como uma lança de justa.

O estranho brilho no horizonte estendeu-se como num ocaso perpétuo e Rachel temera ficar exposta demais ao tentar chegar à casa sem ser vista. No entanto, sua rápida carreira pelo jardim a levou até o fim da casa de que escapara, onde se ajoelhara. Acima dela estava o escuro retângulo de acesso do qual ela conseguira escapar — a falta de janelas nesse lado da casa a deixou confiante.

A grelha de churrasco cheirava a gordura velha e tinha cinzas em torno dos pés enferrujados. A lata de fluido de isqueiro estava quase cheia e ela esguichou o líquido na lateral da madeira, fazendo rescender um cheiro de solvente que substituiu o cheiro de queimado em suas narinas. Depois de encharcar a madeira, ela encostou a arma no exterior da casa e pegou o isqueiro no bolso.

À distância, ela ouvia mais estouros e estalos do fogo que se aproximava e, novamente, perguntou-se por que o Capitão não mudara de área sua unidade. Novamente, também, perguntou-se se DeVontay ainda estaria lá dentro.

Ele vai estar.

Porque ele TEM que estar lá.

E ela ponderou sobre o quanto sua necessidade foi alimentada por culpar-se pelo que aconteceu a Chelsea. Ela não tinha certeza de suas motivações, mas era mais fácil acreditar que era nobre e íntegra. Ela, porém, lembrou-se das palavras de Pete: “Sacrifício é pra otário”.

Ela não perderia. Não dessa vez.

Rachel acendeu o isqueiro e abriu uma das revistinhas com um folhear de páginas. Tocou fogo num dos cantos e uma pequena labareda começou a subir pelo papel, ricamente colorida pelos pigmentos da impressão. Ela passou a tocha por sobre as placas úmidas e o fogo tomou um gole revigorante do combustível e pegou nas paredes do lugar.

Rachel tão estava paralisada e hipnotizada pela chama e pelo jeito com que ela parecia pairar sobre o combustível que se esquecera do que estava ao redor. De repente, ouviu um grito da rua e instantaneamente se abaixou atrás da churrasqueira, esperando que o volume a escondesse.

Será Stephen e os rapazes? O que eles estariam fazendo no meio da rua?

Em seguida, o pac pac pac dos disparos de uma semiautomática. Uma bala raspou a lateral de madeira a uns três metros acima da cabeça dela. No entanto, achou que não era o alvo do disparo.

Ela levantou a cabeça o bastante para enxergar um vulto humano correndo pela rua. A saraivada de balas salpicou as árvores enquanto que o vulto desaparecia entre dois carros estacionados numa via transversal. Não estava certa se fora um sequelado ou alguém correndo dos atiradores, mas ouviu uma gargalhada rasgada do lado da rua que ela não conseguia ver.

— Eita, ocê viu aquele desgramado correndo como se tivesse formiga na bunda? — gritou um homem com sotaque do interior.

— Poupa suas balas, Donnie — disse outra voz, mais baixa, mais calma e com mais autoridade.

Não parecia ser o Capitão, embora o tom arrogante de comando fosse semelhante ao dele. Até então, as chamas já lambiam a extremidade da casa, espalhando-se para além da mancha de fluido. Uma grossa faixa de fumaça subiu e se mesclou com a névoa da cerração acima.

Rachel se arrastou pela quina da casa, batendo na frente dela a meia tesoura de podar. A porta de tela estava aberta, meio desencaixada da dobradiça. Mesmo que ela pudesse estar visível da rua, imaginou se devia se esgueirar pela janela quebrada. Dependendo do número de capangas do Capitão em serviço, ela duvidou que conseguiria se desvencilhar deles até o quarto dos fundos onde DeVontay estava preso.

Decidiu que seria melhor esperar até que o fogo entrasse na casa forçando-os a debandar. Provavelmente eles não perderiam tempo libertando DeVontay.

Presumindo que ele esteja vivo.

Bem, ela podia lidar com os fatos reais da situação ou apoiar-se na fé. A fé sempre estava presente para ela, recobrindo-a com sua teia de sacarina, protegendo-a e refreando-a. Jesus, em suas horas mais sombrias na cruz, perguntou por que Deus o abandonara, e Deus não respondeu. Naquela hora, ela também não esperava nenhuma resposta.

Ela quase decidiu que a casa estava de fato desocupada e estava prestes a se esgueirar pela porta dos fundos quando uma explosão abafada soou pela janela aberta. Alguém estava disparando uma arma de fogo no lado de dentro.

Gritos — gritos humanos — na rua precederam disparos em resposta.

Meu Senhor, eles estão atirando uns nos outros. Os últimos seres humanos vivos estão tentando se matar.

Talvez ela não devesse estar surpresa. Afinal, matar era uma função humana.

O fogo lambeu a lateral da parede, chegando até o beiral e às tábuas do telhado. Uma fumaça preta subiu enquanto a madeira estalava e estourava de calor. A porta dos fundos se abriu e o Capitão América saiu correndo com o rosto suado e brilhante no brilho avermelhado da noite iluminada pelo fogo. Dois soldados o seguiram e os três correram para o fundo da propriedade. Rachel ficou aliviada de ver que eles estavam correndo na direção oposta do esconderijo de Stephen, Pete e Campbell. Uma soldado, a mesma que lutou contra o sequelado na rua, saiu mancando da casa e correu atrás deles na escuridão.

— Brünig — gritou ela. — Johnson. Navarro. Esperem.

Ela mal chegou à cerca viva dos fundos quando o ombro dela estourou num jorro de fluido escuro. O tiro soou um microssegundo depois, ainda reverberando entre as casas enquanto ela se estirou gemendo e sangrando no gramado falhado.

— Droga — gritou Campbell do esconderijo nos rododendros. Depois, gritou mais alto: — Arnoff! Para de atirar!

Rachel percebeu que o grupo que atirava nos soldados devia ser os companheiros de viagem de Campbell e Pete. Ela ficou abaixada e se arrastou em direção à porta dos fundos. Antes havia mais três soldados, mas talvez o Capitão os tivera enviado numa missão de reconhecimento, ou talvez tivessem sido mortos pelos sequelados.

Talvez estivessem empilhados dentro da casa, executados pelo comandante louco, vítimas de psicose por enclausuramento.

Ela não tinha tempo a perder. — Vou entrar — gritou para Campbell e entrou pela porta dos fundos com a meia tesoura na mão pronta para a ação. O interior da casa estava escuro, a fumaça era fina e seca, com um pouco de luz entrando pelas janelas.

— DeVontay — gritou ela, passando abaixada pelo corredor até bater a canela num móvel oculto pela escuridão. Em volta dela, a carcaça da casa chiava e sibilava com as chamas que se espalhavam. Ela não tinha muito tempo.

O corredor estava quase totalmente escuro, mas Rachel se lembrou do caminho reto até o quarto dos fundos que serviu de cativeiro para ela e DeVontay. Ela bateu o ombro contra a porta fechada e girou a maçaneta, lamentando não ter trazido uma lanterna.

Ela sentiu movimento no quarto — talvez eles não tenham amarrado DeVontay na cama de novo, o que seria bom, pois ela precisava de cada segundo. O fogo passou para o telhado, consumindo as telhas e o rejunte asfáltico com um rugido grosso de pura alegria.

Rachel gritou o nome dele de novo, competindo com a fome do fogo. As chamas chegaram às janelas e iluminaram a casa de fora para dentro, lançando feixes de vermelho vivo atrás dela. Diante dela, um vulto — uma sombra negra de forma humana contra o brilho do fogo.

— DeVontay, cadê você? — gritou ela precipitando-se adiante a procurá-lo.

A mão pegou o pulso dela e a puxou para frente e ela sentiu um bafo fétido que cortou a fumaça pungente.

— Rachel? — gritou DeVontay lá de fora.


CAPÍTULO 24

— Eles estão atirando em tudo que se mexe — disse Pete.

Campbell cobria os ouvidos de Stephen para que ele não ouvisse os pipocos dos tiros e o rosnado do fogo. A escuridão cedera espaço à meia-luz.

— Eu sabia que uma hora ou outra o Donnie ia atirar — disse ele. — Eu esperava estar a quilômetros de distância quando isso acontecesse.

— Ela tá lá há tempo demais — avaliou Pete. — A casa toda vai cair a qualquer momento.

Stephen deu um grito de desespero com a notícia. Em devaneios, Campbell quis dar uma cotovelada na barriga de Pete para calar-lhe a boca, mas Pete estava recuando mais para dentro dos arbustos como se a vegetação os protegesse das balas. Campbell viu um homem no telhado de uma casa próxima, apontando um rifle para a rua. Ele não tinha certeza, mas achou que fosse um dos soldados camuflados.

— I-rá — exclamou Donnie com seu sotaque sulista.

O soldado fez duas sequências de disparos na direção da voz de Donnie e, como resposta, conseguiu uma saraivada. O soldado paralisou, delineado por um momento pelo horizonte infernal; em seguida, soltou os braços e deixou cair o rifle. Ele caiu, rolou pela inclinação do telhado e sumiu de vista.

— Valeu por estarmos no mesmo time — disse Pete. — Melhor a gente sair daqui.

— Nós dissemos a Rachel que a esperaríamos.

— Raaaa-chel — gritou Stephen em lamento.

— Psst — exclamou Campbell. — A gente vai pegar ela. — Virou-se para a escuridão atrás dele: — Pete?

Pete, porém, se fora, desaparecera nas sombras entre as casas. Campbell xingou entre uma respiração e outra. Ele não ousaria deixar Stephen sozinho, não depois do trauma que o afligira. No entanto, não podia ficar lá enquanto houvesse pessoas morrendo — não sobrou muita gente, seria um desperdício.

— Vamos lá, menino Stevie — disse ele pegando o braço da criança e arrastando-o para frente.

Saíram dos arbustos de rododendro e se expuseram à luz bruxuleante da casa flamejante. Ela crepitava e estalava como um vulcão, sugando oxigênio da carcaça de madeira para alimentar a fúria vermelho-alaranjada do teto. Ninguém sobreviveria muito naquele inferno.

Campbell puxou Stephen atrás dele enquanto corriam em direção à casa. Ele viu um homem entrar pela porta dos fundos quando Stephen gritou: — DeVontay!

— É o teu amigo? — perguntou Campbell.

Stephen assentiu com a cabeça, colocou a boneca sob o queixo e apertou-a com força. Campbell percebeu que DeVontay tinha uma chance melhor de alcançar Rachel. Ele, no entanto, não sofrera nenhum dilema ou culpa até um rosto familiar se mostrar no brilho do fogo.

— Muito bem, muito bem — disse Arnoff. — Acho que sua missão de batedor se transformou num inferno.

No casaco de caça de Arnoff havia uma mancha de algo molhado e escuro. O rifle dele apontava para cima, com a outra ponta descansando na dobra interna do braço e os olhos brilhando por causa de uma estranha febre.

— Encontrei o Pete — disse Campbell.

— Nós contra eles — disse Arnoff olhando para o garoto. — Você é um de nós ou um deles?

Campbell deixou o garoto atrás de si, usando a si mesmo como escudo contra a evidente loucura de Arnoff. — Encontrei outros sobreviventes também.

— Alguns desses sobreviventes atiraram na gente.

— Eles... são militares. Eles estavam eliminando os sequelados.

— Bom, eles tavam fazendo um bom trabalho — comentou Arnoff. — A gente viu uns cinquenta sequelados lá no incêndio. Eles se sentem atraídos, igual mariposa. O Donnie e eu matamos uns, mas alguns deles desapareceram no escuro.

— Cadê a Pamela e o professor?

Arnoff apontou com o dedão para trás. — Ficaram por aí lá atrás. Eles devem estar conosco em breve.

Atrás de Arnoff, Campbell viu DeVontay arrastar Rachel da casa, com a fumaça ebuliente atrás deles enquanto a parte do telhado se dobrava como uma caixa de papelão molhada. Mas eles não estavam sozinhos: alguma coisa agarrou Rachel com os membros entrelaçados em torno dela enquanto DeVontay batia no atacante.

— R... Ra... Ra...! — gaguejou Stephen.

Arnoff se virou na direção em que o garoto olhava e viu a luta a quinze metros dali. Sem dizer uma palavra, ele levantou a arma e olhou pelo cano. Campbell pulou na direção dele, gritando de raiva, mas a arma ressoou com um estampido percussivo e a luz amarela piscou na ponta do cano.

Os três vultos rolaram para o terreno em frente ao pórtico. Campbell se jogou no gramado, esquecendo-se de Stephen e de seu pânico. Alguém se levantou ao lado dos degraus, cujas sombras se mesclavam entre as árvores baixas e as flores. Arnoff atirou de novo e o vulto voou para trás com a força do projétil.

— Para de atirar, não me ouviu? — gritou Campbell, esperando uma bala nas costas pelo transtorno.

Arnoff gargalhou alto em perfeita harmonia com o fogo que se avolumava loucamente. Outra forma se arrastou pelo terreno e Campbell reconheceu o cabelo longo e escuro de Rachel. O coração dele deu um pulo de alívio e ele estava enjoado de ansiedade e de carência egoísta.

— Cê tá bem? — perguntou ele ajoelhando-se na relva úmida e puxando-a em sua direção.

Ela olhou para ele com os olhos embaçados e vermelhos enquanto tossia e arfava. — Stephen? — conseguiu perguntar ofegante.

— Tá bem aqui — respondeu Campbell, apontando para onde o garoto estava, perto de Arnoff.

DeVontay se levantou do lado do pórtico, limpando o rosto com a manga rasgada. Sua pele escura brilhava de suor. — Cuidado aí na hora de atirar — disse ele para Arnoff.

— Se preocupa não. Eu reconheço um sequelado de longe.

— De noite, todos os gatos são pardos.

— Sem comentários — disse Arnoff enquanto olhava os telhados em volta. Stephen correu pelas falhas do gramado enquanto Campbell ajudava Rachel a se levantar, e, de tanto entusiasmo, o garoto deixou a boneca para abraçá-la. DeVontay se juntou a eles e colocou um braço protetor sobre o ombro de Rachel, emitindo um raio de ciúme que queimou no peito de Campbell.

— Você veio pra me resgatar — disse DeVontay a ela.

— Eu disse que viria — lembrou ela. — Dando uma de São Tomé?

— Sou assim mesmo: desconfiado — respondeu ele. — Já me deixaram pra trás no passado.

Campbell olhou para o sequelado, que tinha um ponto vermelho escuro no meio da testa, marcando o local de impacto do projétil. Em repouso, o rosto redondo se parecia com o de um professor de matemática ou um consultor financeiro, quarentão, pálido, com papo embaixo do queixo. Para Campbell, o cadáver se parecia com o tio Frederick de D.C., um lobista que fazia piadinhas que não eram nem engraçadas, nem inteligentes, e que sempre parecia acabar como o último pedaço de frango frito nas reuniões de família. Esse sequelado deve ter sido o tio de alguém.

Campbell se voltou para Arnoff. — Tem certeza de que esse cara era sequelado?

Arnoff deu de ombros. — As possibilidades superavam os cinquenta por cento.

Rachel e DeVontay lançaram um olhar de dúvida a Campbell, que respondeu: — Chegamos até aqui, então vamos nos juntar aos vencedores.

Eles se afastaram da casa enquanto as chamas consumiam-lhe o miolo, emitindo ondas de calor que atingiam a pele de Campbell. O fogo tentou se espalhar pelo gramado, mas, como a umidade o impedia, teve então de se contentar com a madeira, o plástico e os tecidos que já estavam em seu domínio.

Campbell olhou até onde alcançava a luz do incêndio. — Pete?

— Teu amigo fugiu de novo? — perguntou Arnoff. — Talvez ele não seja assim tão amigo teu.

— Ele não teve culpa de ter sido prisioneiro de guerra — respondeu Campbell.

— Melhor a gente sair de perto da casa antes que os sequelados cheguem pra festa — disse Arnoff.

Rachel puxou Stephen para perto dela. — Estamos gratos pela sua ajuda, mas temos outros planos.

Arnoff apoiou a coronha do rifle no quadril e o inclinou para fora em quarenta e cinco graus. — Mocinha, não sei o que você andou fumando esse tempo todo, mas, como Campbell disse, melhor ficar com os vencedores.

— Desculpa, cara — disse DeVontay. — A gente prometeu que levaria o garoto pro Mi’ssippi. Talvez nossas chances sejam melhores sem um cara dedo-solto pronto pra atirar e dar uma de caubói.

Antes que Campbell conseguisse ficar entre os dois, Arnoff deu um passo agressivo à frente. — Olha lá, garoto — disse Arnoff. — Agora que tá escuro, você tá começando a parecer um sequelado. Alguém pode cometer um erro.

— Deixa disso, Arnoff — disse Campbell prestes a colocar a mão no ombro dele antes de decidir não fazê-lo. Arnoff estava tenso como uma naja e seus olhos castanhos pareciam frios como os de um réptil. — Vamos encontrar Donnie e os outros.

Arnoff franziu a testa e cuspiu na grama. — Pelo menos um de nós tem um pouco de noção.

Campbell não tinha mais certeza sobre suas lealdades. Pete era seu chapa e eles passaram por muita coisa juntos, mas provavelmente levaria a alguma situação em que os dois morreriam. Arnoff, Donnie e os outros tinham poder de fogo a seu favor e também uma estrutura social estabelecida que oferecia uma ilusão de civilização. Rachel, DeVontay e Stephen pareciam mais uma unidade familiar que um bando de sobreviventes em ajuda mútua.

O rosto de Rachel, embora sujo de fuligem preta, brilhava radiante de benevolência com uma luz tão forte quanto a do fogo em volta deles. Campbell sabia que essa impressão era uma projeção, uma esperança de que havia algo mais no Depois que a próxima respiração. Ele precisava de um motivo para viver. E ela era a primeira mulher que encontrara cuja idade era mais próxima da dele.

Alguém tem que se reproduzir, não é?

— Cuidado com os soldados — aconselhou Rachel. — Eles são bem treinados, estão bem armados e são meio psicóticos.

Ela foi para a rua escorada em DeVontay e com Stephen logo atrás deles. A casa desmoronou numa pilha de madeira chamuscada, silvando em seu núcleo azulado, uma ironia da malevolência liberada pelo sol distante.

— Talvez seja bom darmos uma arma pra eles — sugeriu Campbell a Arnoff.

— Não fica nessa de salvar o mundo — disse Arnoff. — Ele não tem futuro.

— Então qual é o plano? Andar por aí abatendo sequelados até ficar sem munição?

Arnoff verificou o cano do rifle, tirou alguns cartuchos do bolso e deslizou-os no tubo. — Se você for de casa em casa, deve encontrar munição suficiente pra matar todos os sequelados do planeta umas cem vezes, graças à Segunda Emenda.

— Não tenho certeza se a Declaração de Direitos ainda tá valendo — disse Campbell.

— Talvez não. Tô até vendo um monte de sequelados no Supremo Tribunal neste exato momento. Quer saber? Nem vai dar pra saber a diferença. — Arnoff olhou os telhados e o perímetro dos jardins em volta. Agora que o fogo se consumira e queimava lentamente, o bairro ficara quieto de novo, embora o holocausto a leste estivesse se espalhando.

Eles ouviram Donnie à distância, dando aqueles gritos caipiras de rebeldia seguidos de disparos da semiautomática. Arnoff riu maliciosamente. — Temporada de caça — disse ele indo em direção à saraivada.

— Eu te encontro num minuto — disse Campbell. — Depois que eu encontrar o Pete.

Arnoff nem se virou. — Compaixão é coisa do passado, cara. Pontinhos no céu não vão adiantar nada no final.

Campbell cerrou os punhos de raiva. Ele ouviu o eco do opressor “Entra na linha!” que o pai costumava dizer. Será mesmo que Campbell sempre fugia das responsabilidades e rejeitava a autoridade? O mundo sempre foi governado por babacas. Talvez não fosse tão ruim assim ver esse poder ruir pelo efeito de alguns colossais espasmos do sol.

Campbell saiu do brilho vermelho já moribundo da casa, abriu a mochila para pegar uma lanterna e entrou nos arbustos em que viu Pete pela última vez.


CAPÍTULO 25

— Tem aquela carne seca aí? — perguntou Rachel a DeVontay.

Ele sorriu, exibindo dentes e olhos como a única parte visível do rosto na escuridão. — Eu sabia que um dia você ia querer coisa boa pra comer.

Eles passariam a noite num motel de beira de estrada e caminhariam longe o bastante para que as chamas em expansão não os alcançasse antes da alvorada. As janelinhas do motel eram altas para dificultar o acesso de pessoas e da luz do sol. O balcão de admissão estava abandonado, embora os carros estacionados ao lado dos diversos quartos dessem a ilusão de que tudo estava como antes no Parkview Travel Plaza.

Embora faltasse ainda uma hora para amanhecer, Rachel se sentiu melhor depois do breve sono. DeVontay cochilara de costas contra a porta, com a pistola entre as pernas e o carpete empoeirado. Stephen subira no beliche de solteiro com Rachel e dormira instantaneamente — e anda roncou como uma serra elétrica.

Rachel tirou-lhe da bochecha um cacho de cabelo. — Tadinho. Ele passou por cada uma.

DeVontay deu a ela uns bastões de carne seca e uma garrafa d’água da mochila e também um saco de biscoitos de queijo. Ela sempre ficou irritada com gente que come na cama. Considerava o ato como um sinal de preguiça e fracasso pessoal. Nesse momento, em retrospectiva, viu o quanto essa visão limitada era tola.

Pensou também em que outros pontos de vista podem vir a mudar nesses dias e semanas vindouros. Ela abaixou a cabeça e disse: — Senhor, obrigada pelo alimento que estamos prestes a receber para nutrir nosso corpo. Que tenhamos força para agir segundo a Vossa vontade. Amém.

A oração foi tão automática que ela não percebeu que a disse em voz alta até que DeVontay acrescentou: — Amém. Depois de um momento, ele disse: — Você é mesmo uma papa-hóstia, né?

— Não tem nada de papa nem de hóstia — respondeu ela partindo um dos biscoitos com o dente. — Só acho que precisamos de toda ajuda disponível.

— É, legal. Minha mãe cantava no coro da igreja. Ela era menonita. Eu tinha que ir ao culto quando era criança, mas nunca me liguei. Era regra demais pro meu gosto.

— Esse... Depois... em que a gente vive não faz você desejar a paz no Senhor?

— Bom, depende de como cada um vê isso. Talvez Deus esteja nos salvando, ou pode ter sido Ele quem causou tudo isso.

— Minha fé não foi abalada — disse Rachel um pouco forçadamente. Orgulho é pecado, mas negar o testemunho era um tipo diferente de arrogância. Ou talvez ela estivesse tentando convencer a si mesma.

— Tá, beleza — disse DeVontay pegando mais biscoitos da mochila e rasgando o plástico. — Você acha que essas Revelações estão acontecendo? Tipo as sete bestas do apocalipse, essa baboseira toda.

— Eu não levo o livro do Apocalipse tão literalmente — disse ela. — Não acho que a batalha final se dará na Terra Sagrada nem que o Anticristo já está entre nós.

— Mas tem alguma coisa sobre o mundo terminar com um fogo vindo do céu, né?

— Depois de aberto o sétimo selo, uma enorme estrela cai do céu e um terço do mar vira sangue. Mas aí vêm também terremotos, gafanhotos e águas envenenadas. Eu não vejo nada disso; você vê?

— Então é possível que não seja mesmo o fim do mundo? É, deve ser só um aquecimento.

Rachel não tinha certeza se ele estava ou não de gozação. O primeiro rubor do alvorecer tomou conta da escuridão na janela e Rachel se deu conta da mobília ordinária do quarto. No entanto, os lençóis das camas pareciam limpos e, devido às circunstâncias, ela não podia reclamar. O banheiro não fedia — pelo menos aquelas águas em particular não foram envenenadas pela grande meretriz da Babilônia.

Ela deu um tapinha no braço de Stephen, que estava enrolado com a Molly. — Só sei que não estará nada acabado enquanto houver um ser humano vivo — disse ela. — Estamos aqui para cuidarmos uns dos outros o melhor que pudermos, para que o próximo passo seja o certo e para permanecer a serviço da vontade de Deus. Não é pra compreender. Nosso dever é estar em compromisso.

— Então você não vê tudo isso como um lance do bem contra o mal?

— Os sequelados são maus só porque sua natureza é destrutiva? Talvez eles estejam servindo a Deus exatamente como nós.

— Tudo tem um motivo pra acontecer, né? Parece desculpa de gente que tomou as decisões erradas na vida.

— E Deus nos deu o livre arbítrio pra que tenhamos a chance de escolher a bonança, a graça e a salvação.

DeVontay se levantou segurando a pistola e espiou pela janela alta. Satisfeito, ele virou para ela com o rosto perfeitamente visível no alvorecer. Ele parecia zangado, com a pele esticada nos maxilares e o cenho franzido. — Só que a gente não teve opção, né? Acordamos de repente direto no inferno.

— Não — respondeu ela. — Estamos vivos. — Ela tocou no ombro de Stephen. — Ainda temos um motivo pra viver.

— Jura? Então dá uma olhada aqui.

Com cuidado para não levantar Stephen, cujos roncos se aquietaram, ela saiu da cama e se juntou a DeVontay na janela. Do lado de fora, ela viu as coisas ocultas pela escuridão da noite anterior. Era uma área comercial de uso misto, com alguns prédios de apartamento separados por varejo e uso industrial leve — uma loja de material hidráulico, um lote cercado com vigas de madeira e pilhas de serragem e um brechó com roupas de criança na janela.

Mas era a atividade da rua que chamara sua atenção. Pessoas — sequelados — andando pela rua. Embora quase não dessem conta uns dos outros, todos, com pelo menos quinze metros entre si, rumavam na mesma direção. Moviam-se sem a lentidão descoordenada de dias atrás, também não pareciam ter uma intenção específica nem impulso destruidor.

— Esquisito — disse ela. A cena era ainda mais surreal pelo silêncio que faziam. Se não fosse por seus olhos paralisados e arregalados, ela teria pensado que eram sobreviventes. Nessa hora ainda, ela pensou se talvez sequelados e sobreviventes estivessem compartilhando a mesma rua em relativa harmonia, talvez aceitando um ao outro.

— Que bizarro. Aonde eles tão indo?

Rachel olhou para o ângulo das sombras que se projetavam das laterais dos prédios e dos poucos carros na rua. — Estão indo para o leste. Em direção ao incêndio.

— Então talvez eles não estejam no inferno, mas indo em direção a ele.

— Parece que há mais deles.

— Esses filhos da mãe não voltam dos mortos, né?

Rachel quase fez uma piada, mas DeVontay claramente estava à beira de explodir. — Sei lá que instinto é esse que está fazendo eles andarem a céu aberto. Talvez houvesse um monte deles dentro dos prédios.

— Matando gente, talvez. Não se esqueça do que eles já fizeram.

— Bom, talvez eles tenham mudado.

— Ah, tá. Dai glória a Deus, eles viram a luz. Talvez não sejam mais assassinos desmiolados. Vamos lá pra fora e fazer um agito pra ver se eles dançam.

DeVontay levantou tanto a voz que Stephen soltou um grito lamurioso e confuso. — Mamãe?

Rachel lançou para DeVontay um olhar peçonhento e voltou correndo para a cama. Ela pegou o garoto nos braços e o abraçou com força com o lençol a envolver os ombros dele. Balançando-o para frente e para trás, ela sussurrou: — Pronto, querido. Está tudo bem.

DeVontay começou a enfiar as coisas na mochila como se estivesse se preparando para ir embora. Por fim, Stephen se dera conta do lugar em que estavam. — On-onde a gente tá?

— A norte de Charlotte — respondeu ela

Ele limpou os olhos com o punho cerrado. — É perto do Mi’ssippi?

— Estamos mais perto que ontem — respondeu ela.

— Melhor esperar — ponderou DeVontay acompanhando o movimento da rua pelas cortinas bege.

— Não é seguro viajar à noite — disse Rachel. — Parece que eles não dormem.

— Eles também não comem nada. Eles devem cair depois de um tempo.

Rachel não gostava de ter essas conversas na frente do Stephen, mas não havia outro jeito. — Bom, vamos encarar. A verdade é que não sabemos nada. Logo depois do Clarão, eles matava tudo o que viam, destruição aleatória, movimentação desorientada... Agora eles estão fazendo as coisas com um propósito, como se estivessem se acostumando com essa nova vida.

DeVontay puxou um pouco as cortinas. — Você chama isso de vida? É como se alguém tivesse aberto a cabeça deles que nem uma abóbora e recheado com algodão-doce envenenado.

— Algodão-doce? — disse Stephen se levantando na cama e tentando ver pela janela.

Rachel o puxou de volta para a cama e lhe deu um pacote de biscoitos. — Toma, pra ficar fortinho. A gente ainda vai andar muito.

— Por que andar é melhor que ficar por aqui? — perguntou DeVontay. — A gente pode dar uma saidinha, pegar umas coisas numa loja e esperar até tudo ficar mais calmo.

— Não temos nem ideia do que esperar. Você acha que os caras do exército vão aparecer pra nos salvar? Nós já vimos como eles gostam de agir.

— Então a gente devia encontrar os caras da noite passada, o Campbell e o resto, e ficar em grupo pra ter mais chance de lutar contra eles.

— Os sequelados estão em maior número. Acho que não temos a menor noção de quantos ainda têm por aí. Eles eram violentos sozinhos, agindo individualmente, a gente só via um ou dois de cada vez; agora estão se juntando, começaram a agir como um grupo.

— Aula de psicologia agora? É guerra. Além do mais, a gente nem sabe o que eles tão pensando. Eles podem ser umas marionetes acionadas por algum mecanismo invisível.

— Eu gosto de marionete — opinou Stephen entusiasmado, esfarelando os biscoitos com a boca. Em seguida, seu rosto se fechou. — Mas eu não gosto de sequelado.

Rachel olhou para DeVontay, que ignorou sua ira. — Mas os sequelados podem nem ser o único problema. Tem o Capitão e o pelotão-relâmpago. E se eles não forem um caso isolado? E se essas milícias estiverem por aí armados até os dentes e seguindo as próprias regras? Eles vão matar a gente como matariam um sequelado.

— Mais um motivo pra gente ficar aqui. Esses idiotas vão atirar em qualquer coisa que se mexa.

— Não — objetou Rachel sem saber como dizer o que pensava de forma a não assustar Stephen. Mas talvez a fantasia de encontrar o pai fosse o bastante para mantê-lo firme por enquanto. — O fogo está se espalhando. Imagina todas essas toxinas em Charlotte. Quando essa cidade queimar, vai ser morte certa.

— Então nossas opções são morte por asfixia, por tiro ou por decapitação pelos sequelados — analisou DeVontay.

— O que não dá pra fazer é continuar aqui e rezar — concluiu Rachel.

— Ah, então nossa papa-hóstia tá perdendo a fé?

— A fé sem ação está morta — respondeu Rachel odiando-se por reduzir uma complexa passagem do Livro de Tiago numa frase de padaria. — É lutar o bom combate.

— Como estripar os sequelados com essa meia tesoura?

— Foi autodefesa — retrucou ela.

Stephen saiu da cama tossindo biscoito pelo chão.

— Stephen? — disse Rachel. — Você esqueceu alguma coisa?

— Não. A Molly tá aqui comigo — disse ele virando o rosto da boneca para ela.

Ela franziu a sobrancelha e olhou para o plástico do biscoito. — E o lixo vai para o lixo.

Enquanto Stephen se abaixava para pegar a embalagem, DeVontay disse a ela: — O apocalipse com você é bem mais divertido.

— Tá bem — disse Rachel. — Hora de partir.

— Pra onde? — disse DeVontay sentando-se na cama.

— Mi’ssippi! — exclamou Stephen.

— Stevie, você tá ansioso demais pra sair — disse-lhe DeVontay. — Tem um monte de bala voando por aí.

— A situação vai melhorar quando a gente sair da cidade — disse Rachel. — Menos gente, menos sequelados, menos tiros.

— De volta à natureza, então?

Rachel estava de sentinela à janela. As ruas do lado de fora do motel estavam quietas. Ela não via nenhum sequelado havia uma hora ou mais. Ouviam-se rajadas de tiros distantes ocasionalmente, mas Rachel não achava que o Capitão América e seus capangas estivessem nesse lado da cidade. Para uma coisa, a caça não era tão boa.

— Estamos indo para o monte Rogers. — Rachel sorriu para Stephen. — Fica no caminho.

— E o que tem lá? — perguntou DeVontay.

— Alguém que estava preparado pra isto.

— De repente você teve uma vidência, é isso? — perguntou DeVontay. — O sol despertou superpoderes agora?

— Meu avô tem um complexo lá. Ele é daquele tipo que as pessoas chamam de “sobrevivencialista maluco”. Ele se interessou pela vida autossuficiente durante a febre do Ano Dois Mil, quando as pessoas acharam que os computadores ficariam doidos e atirariam a civilização numa nova Idade da Pedra.

DeVontay franziu a testa. — Bom, a gente viu como foi que isso aconteceu.

— Sim, o vovô Wheeler achava que a civilização tinha ficado complexa demais, que os sistemas modernos acabariam em pane por um motivo ou por outro. Como um motor que tem muitas peças e fica sem óleo. Ele também achava que os governos do mundo estavam servindo à vontade dos endinheirados. Chegou um ponto em que ele teve que viver fora do sistema.

— E ele fez bem. — DeVontay cutucou Stephen. — Pega suas coisas, mocinho. A gente vai fazer uma caminhada.

Rachel colocou os suprimentos na mochila, redescobrindo o frasco com as pílulas de suicídio que o farmacêutico lhe dera. Por que ela já não se livrara dele?

DeVontay puxou a pistola, abriu um pouco a porta e examinou a rua lá fora. — A hora é essa, mas também podia ser outra. A menos que você queira fazer a cama.


CAPÍTULO 26

Jorge sonhou com enormes dragões de escamas verdes reluzindo ao sol enquanto voavam sobre uma terra em chamas. Dezenas deles sopravam labaredas na terra lá de cima. Sua boca sem lábios entreaberta cuspia fagulhas e vapor e os gritos irritantes eram como folhas grossas de vidro deslizando sobre metal áspero.

Ele acordou suado e desnorteado. Os dragões sumiram-lhe da mente, mas os gritos continuaram.

Ele apalpou os cobertores finos até encontrar o corpo quente de Rosa e rolou até o catre onde Marina dormia. Conferiu-lhe a temperatura na testa e ficou contente por estar relativamente fresca.

A porta da frente da cabine se abriu de repente, deixando entrar a luz do alvorecer. A silhueta de Franklin Wheeler estava na abertura com uma espingarda na mão e a outra puxava para cima sua roupa de baixo imunda.

— Desgraçado, deixa minhas galinhas em paz — gritou o velho.

Jorge se levantou da cama improvisada e correu para fora. Franklin estava no jardim levantando a espingarda para o céu enquanto as galinhas corriam para se proteger no jardim e nas árvores. Enquanto Franklin apontava, Jorge apertou os olhos por causa da luz do sol e viu um gavião de asas abertas numa exibição de majestade aerodinâmica. O peito dele era mosqueado e as penas da cauda eram vermelhas; tinha um bico afiado apontado para a brisa matutina.

A arma fez um estampido e mandou chumbo, que se espalhou pelas copas das árvores. O gavião bambeou e titubeou com penas voando-lhe do corpo. As asas se curvaram contra o peito e a ave de rapina caiu como uma pedra na floresta além do complexo.

— Peguei o desgraçado — disse Franklin acionando a ejeção da espingarda, que soltou o cartucho vazio e fumegante de plástico vermelho na terra.

— Um bútio-de-cauda-vermelha — identificou Jorge. Essas aves eram comuns nas florestas de montanha. São territoriais e inteligentes e têm a visão aguçada para caçar pequenos roedores e pássaros. A propriedade do Sr. Wilcox era frequentada por casais nidificantes e, embora a fazenda não tivesse galinhas, Jorge de vez em quando via os gaviões mergulharem e capturarem um coelho nos campos de árvores.

— Tá tudo bem? — Rosa chamou da porta com Marina enrolada num cobertor atrás dela.

— Só matando um predador — disse Franklin sem perceber que essas palavras podiam ter duplo sentido.

— Tudo bem — disse Jorge acenando para que voltassem para a casa.

As galinhas ainda estavam alvoroçadas, embora a maioria delas tivesse conseguido encontrar abrigo no mato, onde se abaixaram cacarejando e batendo as asas. Uma, no entanto, estava sobre uma protuberância na tina metálica de irrigação com uma perna amarela levantada para o ar de forma bizarra.

Franklin colocou a arma sobre o ombro e foi até a ave morta. — Que bom que esta é branca. Eu tenho três iguais a ela, por isso nem dei nomes nem nada.

A cabeça da galinha fora separada do corpo com pequenas projeções de carne penduradas da abertura. Jorge procurou em volta, mas não viu a cabeça. O gavião não a estava carregando — ele provavelmente planejou comer a ave no local até que a refeição fora interrompida. As moscas já estavam sobre a carcaça.

— Pode pegar a pá? — pediu Franklin enquanto olhava para o céu como se esperasse outro gavião em busca de sobremesa.

— Por quê? — devolveu Jorge.

— Para enterrá-la. Vamos colocar ela no jardim pros nutrientes voltarem pro solo.

— Mas ela ainda tá boa — disse Jorge. — Es sabroso. Gostoso.

Franklin balançou a cabeça. — A vida aqui não tem matança. As galinhas me dão ovo em troca de abrigo e comida.

— Mas ela já tá morta — argumentou Jorge. — Você não matou ela.

O rosto de Franklin contorceu enquanto olhava a galinha. Ele balançou a cabeça. — Não sei se eu conseguiria comer isso. É quase como comer alguém da família.

— A Rosa cozinha ela muito bem — disse Jorge, sabendo que a gramática estava fora do padrão, mas esperou que Franklin não percebesse.

— Eu... eu não vou conseguir depenar e limpar o bicho — confessou Franklin.

— É só me dar uma faca amolada e o trabalho tá feito.

Franklin assentiu: — Acho que é melhor não desperdiçar mesmo. É como você disse: morto é morto.

A admiração de Jorge pelo homem dera um salto positivo. Todas as defesas, os armazéns de comida e os painéis de energia solar não significariam nada se Franklin não estivesse preparado para usar todos os recursos disponíveis. Mas Jorge também sentiu uma onda de orgulho. Ele e a família tinham algo com que contribuir ali. Eles podiam fazer parte dessa sociedade, dessa cultura, por pequena que fosse.

Quando Franklin entrou em casa, Jorge o chamou: — Por favor, peça à Rosa para botar uma panela com água pra ferver.

Jorge levantou a galinha, que era surpreendentemente leve apesar do volume. O tamanho das aves geralmente engana por causa das penas e dos ossos ocos. A galinha podia alimentar os quatro por pelo menos duas refeições, presumindo que a despensa fria estivesse em bom funcionamento. Além disso, a parte mais desagradável da tarefa — cortar a cabeça e tirar a vida — já tinha sido feita como cortesia da Mãe Natureza.

Quando Franklin voltou, vestido com jeans e um suéter de lã, Jorge já havia tirado a maioria das penas maiores das asas. Ele pegou a faca e dissecou a carcaça, cortando o osso do peito até o fim e deixando vazar os órgãos internos. Ele pegou com cuidado o coração e o fígado ainda quentes. A moela estava cheia de grãos triturados e um pouco de cascalho cinza.

— Olhe só isso — disse Franklin, que parecia ter superado suas restrições. — Acho que poderíamos chamar isso de “última ceia” da galinha.

— As pedrinhas ajudam ela a triturar a comida — explicou Jorge. Ele sabia que a maioria dos americanos não tinha relação direta com a carne que consumiam. O Sr. Wilcox era igualzinho. A carne era algo que vinha numa embalagem plástica no supermercado ou era queimada e chapada entre duas metades de pão nas lanchonetes. A carne era estranha para eles.

Jorge usou a ponta da faca para tirar os pulmões do interior das costelas. Depois disso, ele cortou as coxas bem perto das juntas e tirou a pele como se removesse uma luva apertada. Normalmente, ele mergulharia a ave em água fervente e tiraria as penas, mas percebeu que uma ave sem pele fica mais magra e menos reconhecível para Franklin, que a tratava como animal de estimação.

— Você não gosta de matar? — perguntou Jorge, inclinando a galinha para escorrer as sobras e o caldo.

— Confesso que mataria se fosse necessário — respondeu Franklin. — Como aquele gavião. Normalmente eu não atiraria nele, mas ele estava mexendo com o que era meu, aí tive que revidar.

Jorge contou a Franklin sobre o homem com quem lutou na fazenda Wilcox e como ele se transformara em algo ameaçador e alienígena.

— Não, eles não são mais homens — disse Franklin. — Ouvi no rádio de ondas curtas que o pessoal os chama de “sequelados”.

— Se viessem pra cá, você teria que matar eles.

— Se chegassem aqui, eles estariam quebrando uma lei deste complexo — explicou Franklin, agitando um braço para indicar o jardim, as criações e os anexos. — A lei é: viva e deixe viver, respeite as cercas e faça o seu trabalho.

— É bom ter autoconfiança — opinou Jorge orgulhoso de ter aprendido essa palavra nos seus estudos com Rosa. — Mas também tem outra lei que está valendo.

— Hã... — grunhiu Franklin — e qual é?

— Estamos no mesmo barco. — Ele segurou a galinha. — Só nos resta esperar que não seja nossa última ceia.


CAPÍTULO 27

Dois... três... quatro...

Campbell contava os sequelados nas ruas em volta da igreja. Depois de uma busca infrutífera por Pete na noite anterior, ele chegara a uma igreja batista, encontrara a escada de acesso ao campanário e lá se trancara. Do chão, o horizonte a leste parecia estar acesso por uma fogueira que se espalhara. De um ponto mais vantajoso a quinze metros no ar, porém, Campbell avistara pelo menos doze incêndios grandes pontuando a paisagem negra a muitos quilômetros de distância.

Naquele momento, no clarão do dia, os focos ficaram em sua maioria ocultos, embora uma grossa névoa pairasse sobre o mundo. Um círculo preto de cinzas marcava a casa que Rachel incendiara na noite anterior. Ele andara talvez meio quilômetro no escuro, mas a sensação era de ter corrido uma maratona pisando em melado. Ele estava exausto.

A igreja ficava no fim da cidade, as ruas curtas dos quarteirões alinhadas com as casas que abriam caminho a estradas que dobravam suavemente até áreas arborizadas. As ruas estavam praticamente sem cadáveres, o que levou Campbell a achar que havia alguém fazendo trabalho de necrotério. Carros e caminhões estavam espalhados pelo asfalto, embora o tráfego ali estivesse mais leve quando as erupções solares aconteceram. Na rua junto à igreja havia um ônibus escolar com as rodas sobre a calçada. Campbell agradeceu porque as janelas estavam escurecidas pelo ângulo do sol de forma a ocultar o conteúdo do veículo.

Os sequelados se moviam entre os veículos com a mesma indiferença que a água rola pelas pedras do riacho. Embora não se apercebessem uns dos outros, pareciam conscientes da presença de cada um. O mais horripilante era que estavam todos indo para leste, em direção ao maior dos incêndios.

O movimento na lateral da rua chamou-lhe a atenção que se voltava às criaturas descerebradas. Um vulto saiu de repente de uma garagem num posto de gasolina de cabeça abaixada, arrastando atrás de si a mochila que quicava na calçada. Campbell reconheceu a camiseta preta.

Parou e colocou as mãos em concha ao redor da boca: — Pete!

Pete não olhou, mas os sequelados congelaram em seu caminho e inclinaram a cabeça em direção ao campanário da igreja.

Mas que merda.

Campbell se abaixou atrás da amurada do campanário, imaginando se os sequelados tinham ou não boa visão. Depois de um momento, porém, percebeu que perderia Pete de novo; levantou a cabeça até conseguir ver o trajeto de Pete. Pete estava mais longe na calçada. Passou por uma série de lojas com vitrines quebradas e fez um movimento brusco antes de virar num prédio de tijolos que ostentava um toldo verde e uma placa de madeira que Campbell não conseguia ler.

Deve ser fácil de encontrar, presumindo que ele esteja sozinho.

Campbell, no entanto, tinha uma preocupação de maior vulto. Os sequelados começaram a andar em direção à igreja, atravessando os gramados descuidados e os estacionamentos imundos.

Uns dois outros emergiram de casas vizinhas e compuseram o grupo de meia dúzia que já estava em torno da igreja. Eles pareciam agir em harmonia, embora nenhum deles tivesse sinalizado nem grunhido. O silêncio deles, sim, era perturbador — como se eles estivessem sob orientação distante de uma consciência de colmeia.

Campbell analisou as opções. Por mais aversão que tivesse de Arnoff, ele preferia estar acompanhado de um caubói dedo-solto brincando de atirador que acertasse os sequelados um a um. Ele até levaria os soldados, que provavelmente não se importavam se humanos inocentes fossem atingidos pelo fogo cruzado enquanto o “inimigo” era eliminado. A inocência, no entanto, era desses conceitos que não cabiam mais naquela nova realidade.

Além do mais, ele não tinha arma.

O sequelado mais próximo era um homem de terno de poliéster, cujas mangas e cujo colarinho eram de um cinza mais escuro que o restante das peças. Ele usava uma gravata, embora o nó estivesse afrouxado até a metade da camisa. Usava óculos tortos no rosto, perturbando-lhe a simetria asiática do rosto. Seu cabelo negro estava espetado como estopa engraxada.

O porte era pequeno, e Campbell conseguiria derrubá-lo se necessário. O sequelado a quinze metros atrás do asiático, porém, não seria fácil de abater. Ele estava com macacão de mecânico, com manchas escuras espalhadas pelo tecido cáqui. Campbell não sabia dizer se as manchas eram de óleo ou de sangue, mas também não queria olhar mais de perto para descobrir. O mecânico tinha lá seus centro e noventa centímetros corpulentos que se moviam com a graça malévola de um rinoceronte irritado.

À esquerda, duas sequeladas de meia idade, bem troncudas e parrudas. Se fosse necessário, Campbell tentaria pegar a de cardigã amarelo. Ela parecia mais intelectual, como uma professora primária que estivesse indo à cozinha pegar uma xícara de chá quando o caos termonuclear do sol teve reações inesperadas.

Mais perto da parte traseira da igreja estava um negro de uniforme de policial e óculos escuros. Embora portasse uma arma no coldre lateral, ele preferia o cassetete grosso e preto que segurava como um batedor de beisebol determinado a rebater uma bola até a arquibancada. Campbell desejou que não fosse o próprio crânio a bola de beisebol.

O último sequelado — pelo menos dos que ele conseguia ver — era um jovem de uns quatorze anos com os antebraços cobertos de tatuagens e nesgas de cabelos loiros que cresciam na cabeça em meio aos já tingidos de azul. Foi fácil para Campbell imaginá-lo sobre um esqueite, ondulando a prancha em meio ao tráfego e levantando o dedo médio para o policial. Ali eles eram amicíssimos, todos jogando no mesmo time.

A única ressalva é que nenhum deles parecia feliz. A linguagem corporal evidenciava sua triste missão: erradicar um vírus entre eles.

Caso eles vivessem o bastante para seguir Pete, Campbell deu uma última olhada na área ao redor, recolheu a mochila e desceu a escada estreita e escura. Já no térreo, pensou em trancar a porta da frente e se esconder, mas ele tinha certeza de que os sequelados o esperariam do lado de fora. Afinal, ele só tinha comida para um dia e não sabia se eles precisavam comer ou beber.

Além disso, se eles realmente quisessem entrar, poderiam destroçar qualquer uma das enormes janelas de vitral que exibiam imagens estilizadas da infância de Cristo com crianças, ovelhas ou homens de toga e semblante sério. Ele, porém, não queria sair pela porta da frente porque ali quatro sequelados estavam mais próximos. Ele passou pelas galerias da nave em direção ao altar, esperando encontrar uma saída lateral.

— Aonde diabos eu tô indo? — implorou aos pés da cruz folheada a bronze afixada à parede acima do altar.

— Procura e encontrarás — ribombou uma voz tão ressoante e clara que Campbell achou que fosse uma gravação.

Agora ferrou. Deus tá respondendo.

Em seguida, Campbell contornou a fileira da frente e viu um homem sentado no banco, inclinado para frente e agarrado a um hinário. Era careca; as mangas da camisa estavam enroladas até os cotovelos e os sapatos eram de couro preto com manchas cinza.

— Quanto tempo... você...? — Campbell não conseguia acreditar que o homem estava ali sentado com toda a civilização ruindo do lado de fora. No entanto, ele não podia deixar de admitir que a construção da igreja abafava a maioria dos sons exteriores e provavelmente era um lugar como qualquer outro para se morrer, fora uma casamata de sobrevivência com bastante estoque.

— Eles estão chegando. — Campbell ficou pensando se o homem sabia dos sequelados. Os olhos fundos e o sorriso extático e vazio davam-lhe a impressão de ser alguém que se importava muito pouco com as coisas.

Em seguida, seus olhos fulguraram com uma paixão súbita. — Mas no dia em que o Senhor vier como um ladrão, os céus deixarão de existir, haverá um trovão e os corpos celestes queimarão e se dissolverão, e a Terra e os trabalhos nela feito serão expostos.

— Ahm... tem gente lá fora querendo entrar pra nos matar. — Ele não tinha certeza se “gente” era a palavra certa, mas não tinha tempo de fazer um resumo do fim do mundo. Começou então a procurar uma arma de qualquer natureza.

— O Livro de Pedro — explicou o homem. — Você conhece Pedro?

— Conheço. É o equivalente bíblico do cara que tá escondido a uns quarteirões daqui. Vem comigo. Vamos nos sair melhor se ficarmos juntos.

O homem acenou para as fileiras vazias atrás dele. — Não posso deixar meu rebanho.

—Você é o pastor? — Campbell achou ter ouvido algo raspar na porta da igreja.

— Sou um servo.

A frustração de Campbell era evidente. Ele não tinha tempo a perder com um louco. No entanto, ele ainda estava imbuído de velhas noções de camaradagem e civilidade, mesmo que esses valores fossem só empecilhos. — Bom, é melhor servir a si mesmo agora, senão você vai morrer.

— E o Cristo morto primeiro se levantará.

Campbell desistiu. Eles estavam batendo na porta principal e o ruído era mais perturbador por causa da insistência e do ritmo constante.

É quase como se não estivessem coléricos, mas só batendo pra fazer uma visitinha aos vizinhos.

O altar era trinta centímetros mais alto que o piso da nave e era ladeado por dois castiçais combinando com a cruz. As bandeiras dos Estados Unidos e da Carolina do Norte ficavam em mastros grossos em cada lado da cruz num cruzamento incongruente de igreja e Estado, peculiar das igrejas batistas do Sul. Uma escadaria escura descia de um dos lados do altar. Apesar das janelas altas, a luz era tão fraca que Campbell achou melhor não penetrar ainda mais nas entranhas do templo.

Campbell pulou na plataforma e pegou a bandeira estadual, atraído pelo mastro pontiagudo. O objeto tinha pouco mais de dois metros de comprimento; quando Campbell o removeu, percebeu que seria muito difícil atacar com aquilo. Pegou um dos castiçais altos, tirou o cotoco de vela e fez um teste de manejo. Ele tinha cerca de um metro e um peso satisfatório.

— Isso é de propriedade do Senhor — gritou o pastor, levantando-se do banco e deixando cair o hinário.

— Eu devolvo quando terminar. — Campbell fez uma última tentativa de convencer o pastor a acompanhá-lo, segurando o castiçal em riste. — Porta lateral, você corre e eu te protejo.

O pastor se virou em direção à entrada principal, que estava sendo ainda mais golpeada por mãos no exterior. — Todos são bem-vindos à casa de Deus.

O pastor juntou as mãos e curvou em reverência enquanto começava a caminhar lentamente pela galeria. Ele murmurou alguma oração poética, mas Campbell não quis esperar para ver como a mensagem seria recebida pela sua nova congregação. Em vez disso, ele desceu as escadas na escuridão.

No piso inferior, uma pequena janela funcional iluminava um estreito corredor que dava acesso a vários quartos. Campbell esperou não ter entrado num beco sem saída. Ele se sentiu confiante de que conseguiria se livrar de um ou dois sequelados no caminho, mas não tinha esperanças de vencer uma multidão deles no estilo gladiador.

Ele tentou abrir a porta à esquerda. Ali havia uma sala meio escura que provavelmente era usada nas aulas da escola dominical. O fedor o arrebatou como uma lâmina de gelo. Os corpos se empilhavam em várias posições pelo chão, dispostos em forma de cruz. Enquanto Campbell se afastava protegendo o nariz com a dobra do braço, pensou se o pastor fizera ali um tributo sagrado meio insano em meio a um ataque de febre apocalíptica.

No corredor, ele escutava a voz do pastor soando em rapsódicas boas-vindas.

Por que os sequelados ainda não mataram ele?

Em uma virada do corredor, ele avistou uma saída de emergência. Enquanto chutava a barra de destravamento, empunhando o pesado castiçal, a luz do sol o absorveu e ele ficou grato ao pastor por ter servido de isca.


CAPÍTULO 28

Eles ficaram no lado escuro da rua e se moviam rápido. Rachel liderava, esperando ir para o norte. DeVontay parecia um pouco menos adepto do escotismo do que ela, portanto não questionou sua decisão — ou talvez estivesse de olho nos becos laterais, preocupados menos com o destino que com o percurso.

Eles andaram pelo menos dez quarteirões sem ver sinal de vida — se é que a palavra era apropriada naquelas circunstâncias. Os pássaros batiam assas nos beirais dos prédios e na copa das árvores e Rachel ouvira um cão latindo à distância, mas a cidade era em grande parte uma natureza morta de carros abandonados e fachadas silenciosas. O cheiro de morte emanava de dentro de muitas construções, por isso eles nem se incomodaram em fazer uma busca por sobreviventes de porta em porta. Chamar os sobreviventes por aí também era arriscado, pois o barulho atrairia os sequelados.

As ruas estavam notadamente sem corpos, dada a densidade da população, mas chegaram a passar por um homem encolhido de barba branca encostado numa parede de tijolos com os braços sob os joelhos. Antigamente, ele se passaria por um sem-teto, com trapos amarrados nos tornozelos.

— Ei, vovô! — sussurrou DeVontay com medo de tocá-lo.

Como o velho não se moveu, continuaram. A expressão de Stephen não mudava, o que deixou Rachel triste. Uma criança não deveria ficar tão endurecida, insensível. Era para os dias dele serem cheios de chicletes, gibis e videogames em vez de tanta morte.

As placas das ruas eram tão comuns quanto sempre foram, um testamento mudo de lugares como: rua Hayward, rua Depot, via expressa Old Bristol. Eles passaram por uma loja de noivas cuja vitrine da frente exibia manequins sem braços e sem cabeça, impossivelmente anoréxicos, vestindo fluidos vestidos brancos. Rachel perdeu o fôlego quando viu. Ela nunca seria noiva — não daquele jeito.

— Eca — exclamou Stephen, entediado pela vitrine da loja. Ele caminhou até a rua e se curvou para brincar com o lixo que pegara na sarjeta.

DeVontay se aproximou por trás dela: — Aquele homem lá... você notou algo de estranho nele?

— Só alguém que não conseguiu — respondeu ela.

— Morreu há pouco. Não está escurecido nem inchado.

Rachel deu uma olhada para Stephen, apreciando o brilho relativamente saudável de sua pele em comparação com toda a putrefação ao redor deles. — Até os que sobrevivem a erupções solares morrem um dia.

— Mas, pelo que eu vi, não bateram nele nem nada. Ele estava lá abaixadinho, como se estivesse esperando.

Novamente, Rachel pensou nas pílulas que o farmacêutico lhe dera. Nem todo mundo tinha aversão espiritual ou moral ao suicídio. Para alguns, o suicídio parecia mais um elevador para as portas do céu.

— Tem muitos jeitos de morrer — disse ela. — Ele era velho. Talvez tenha tido um infarto ou então ficou sem remédio.

— Ninguém mais morre de causas naturais.

— Então tá bom. Talvez ele tivesse um furo de bala nas costas, alvejado pelos militares.

— Não tinha nenhuma poça de sangue.

Irritada, Rachel viu o reflexo no vidro da vitrine e viu Stephen andando na rua. Ela o chamou, mas ele continuava andando, arrastando Molly pelo cabelo como se tivesse esquecido como carregar a boneca. DeVontay foi correr atrás dele e Rachel saiu de sua paralisia e o seguiu.

Quando alcançaram Stephen, conseguiram ver a praça da cidade, o fórum com uma fachada de concreto rachado e uma abóbada, cercado de carvalhos de folhas escurecidas pelo outono. O gramado do fórum era um amplo espaço público entremeado de caminhos, pontuado por uma estátua de bronze de algum herói da Independência recoberta de uma pátina verde e de excremento de pombo. O idílico cartão postal do lugarejo tinha bancos de ferro forjado que compunham um retrato cheio de corpos. Havia mais cadáveres na escadaria do fórum, tão cheio de gente como se o tribunal do distrito estivesse em breve recesso, um intervalo para o acusado fumar um cigarro.

— Olha quantos — disse Stephen encantado e nem tão horrorizado.

Eram algumas dezenas, inclusive crianças, embora eles não estivessem agrupados como unidades familiares. De fato, Rachel pensou de cara que tinham sido dispostos daquela maneira, como uma pose para foto de algum artista moderno de estilo grotesco.

— Mais deles recém-mortos — disse DeVontay. Rachel percebeu que o que a perturbava mais do que o número de mortos era que, como o velho encostado na parede de tijolos, eles não estavam em estágio avançado de decomposição.

— Você acha que... — Ela não quis continuar enquanto Stephen estivesse por perto para ouvir, mas DeVontay preencheu a lacuna.

— É — completou ele. — São sequelados. Estão morrendo.

Rachel não tinha certeza se deveria comemorar a notícia. Os sequelados estavam tentando matá-la havia semanas, mas estavam seguindo seus instintos. E se todos os sequelados morressem, o mundo se tornaria ainda mais solitário, ainda mais isento do que outrora caminhara sobre a terra como um coletivo humano.

Eles seguiram Stephen até o banco mais próximo em que havia uma menina de uns seis anos deitada, de lado e enrolada. O vestido rosa estava desarrumado e as meias furadas, mas, por outro lado, ela parecia estar dormindo.

— Ela foi posta nessa posição — afirmou DeVontay. — Ela não morreu assim.

Stephen se ajoelhou e falou com ela. — Ei, você tá bem?

Rachel ficou logo atrás de Stephen e tocou-lhe os ombros com as mãos. — Agora ela tá com o Papai do Céu, Stephen.

Stephen olhou para os outros. — Qual deles é o Papai do Céu?

— Ele fica lá em cima, no céu — explicou Rachel, embora estivesse olhando ao redor para conferir se Jesus Cristo não estava ali naquele exato minuto. Afinal, se Ele estava planejando voltar à Terra, aquela cidadezinha da Carolina do Norte era tão adequada quanto outro lugar qualquer.

Claro, ela também estava ciente de que tais pensamentos bem podiam indicar uma manifestação de insanidade. Os grandes visionários e profetas do Velho Testamento estavam no limite da esquizofrenia clássica, com suas sarças ardentes, rodas de fogo no céu e vozes que lhes mandavam matar seus próprios filhos.

— Bizarro pra cacete — disse DeVontay. — Você acha que são sequelados?

— Eles sabem — respondeu ela com a voz bem baixa. Se algum deles estivesse dormindo, ela não queria acordar.

— Sabem o quê? Você andou tomando alguma coisa, foi? Pegou alguma garrafa na loja de bebidas enquanto eu não estava vendo?

— Eles sabem que o mundo mudou — concluiu ela. — Eles têm essa consciência.

— Tá falando desses sequelados que estão tentando matar a gente faz duas semanas?

— Eles cuidam dos mortos — observou ela. — É a última nesga de humanidade: respeitar os mortos. — Ela teve o súbito e horripilante pensamento de que talvez todos fossem vítimas de um suicídio em massa, que um grupo de sequelados percebeu que havia algo de errado na cabeça deles e tomaram suco com cianeto, e não se rendeu à sua natureza mais essencial, ou seja, aos seus instintos assassinos.

Esse ato exigia uma comunicação, uma mecânica e uma socialização de ordem mais alta, até então nunca vistos nos sequelados.

Mas o que você realmente sabe sobre eles? Você tava ocupada demais correndo, escondendo-se — e sobrevivendo — pra prestar atenção de verdade.

— Eles não parecem tão assustadores agora — disse Stephen.

— As tribulações deles terminaram. — Rachel quase acrescentou: “Esses são os sortudos”, mas a viagem ainda não tinha chegado ao fim. Se houvesse algo em que ainda acreditava era que Deus tinha um motivo para colocá-la naquela situação.

Mesmo que Deus tivesse se mostrado um grande planejador de extermínios em massa, ela ainda acreditava. Ainda.

— Vamos sair daqui antes que alguém venha aumentar esse número — disse DeVontay.

— Vem, Stephen — chamou Rachel.

— Só um pouquinho. — O garoto se curvou sobre o banco em que a menininha dormia. Sem tocá-la, delicadamente deitou Molly entre os braços dela. Stephen praticamente pulou para trás até Rachel e deu-lhe a mão.

— Agora ela não vai mais ficar sozinha — disse sorrindo.

Rachel pensou na irmã se decompondo dentro de um caixão de fibra de vidro no cemitério de Seattle. Ao lado de seu pálido cadáver, Rachel colocara sob um dos braços rijos e frios da irmã o panda de pelúcia que era dela, uma cópia do livro predileto e uma fotografia da Terra feita pelo telescópio Hubble. Rachel rezara para que a irmã também não estivesse sozinha em qualquer Depois que ela pudesse estar.

DeVontay os conduziu novamente para a rua com a pistola pendurada no quadril. Ouviram-se tiros ao longe e a brisa trazia um cheiro repentino de fumaça; em contrapartida, o lugar estava tão sereno como uma cidadezinha numa tarde de domingo.

Enquanto eles passavam de novo pela loja de noivas, Rachel achou ter visto algum movimento lá dentro. Ela nada disse, mas também não foi conferir.


CAPÍTULO 29

Enquanto Campbell era inundado pela luz do sol, levantou o pesado candelabro preparando-se para lutar.

Em vez disso, viu que a porta lateral dava para um pequeno cemitério com grama não cortada, buquês de plástico desbotado e placas de mármore desalinhadas. A cerca do cemitério tinha uns sessenta centímetros de altura, instalada mais para delimitar que para impedir a ação de vândalos e cães selvagens. Depois de se certificar de que não havia sequelados naquele lado da igreja, orientou-se segundo o mapa visual que memorizara quando estivera no campanário.

Protegido por um conjunto de bordos, ele conseguiria chegar até a rua. No entanto, estranhou não haver sequelados em volta da igreja.

Será que entraram todos?

Ele imaginou os sequelados se aproximando do reverendo demente, indo pegá-lo enquanto ele declamava o evangelho na tentativa de alcançar-lhes o coração e salvar-lhes a alma das chamas eternas do inferno.

Apesar disso, estava grato pelo ato de martírio que o permitiu sair entre um restaurante irlandês e uma loja de antiguidades, virar num beco lateral ladeado de latas de lixo abarrotadas, tanques de propano e aquecedores. Um corpo estava jogado sobre um saco de lixo rasgado como se tivesse caído de cima. Campbell não conferiu de perto, mas as mãos expostas e o rosto estavam enegrecidos e inchados de putrefação.

Já a dois quarteirões do templo, ele saiu cautelosamente na rua que, segundo a placa, era a Hardin Boulevard. Reconheceu o ângulo da arquitetura, cuja silhueta apresentava um prédio de cinco andares com um relógio antigo de ponteiros enferrujados que se destacava diante do horizonte esfumaçado. O restante do quarteirão era de prédios de dois andares e carros estacionados ao longo dos dois lados da rua, com alguns veículos enviesados na faixa de sinalização.

Tá tudo morto.

Campbell decidiu correr pela rua em vez de ficar só nas sombras. Se ele fosse avistado, teria tempo o bastante para tomar uma decisão a céu aberto em vez de arriscar ser atacado por alguém que pulasse das portas. Além disso, ele se sentia cada vez melhor com o grande candelabro de latão nas mãos.

O bar em que Pete entrou ficava na esquina e tinha mesas de metal sob o toldo. Um cartaz de vinil vermelho descia de cima do andar superior com o nome do estabelecimento em letras grandes e o tipo de serviço oferecido em letras menores embaixo dele. Campbell e Pete passaram muitas noites de sexta-feira em estabelecimentos semelhantes, comendo asas de frango e paquerando, mas sempre bebendo a cerveja local mais barata.

Campbell pensou se todos os sequelado da vizinhança foram atraídos para a igreja. Ele já vira reações semelhantes com barulho, violência e fogo, mas a igreja nunca ofereceu nenhuma dessas atrações. Campbell mal tinha se acostumado às coisas como estavam — certamente desconfortável com elas, mas acostumado — e as regras tinham mudado.

Não que Campbell tivesse noção do mundo como era antes de ter metaforicamente saído do eixo. A escola fora uma doutrinação em vários sentidos — “Entre aqui quando soar a campainha, faça isso, faça aquilo” —, mas Campbell ficava desnorteado de ansiedade sentado em meio a outros vinte e cinco moleques. A faculdade também fora surreal, em grande parte porque vira as regras que os adultos eram forçados a adotar sem ter conseguido fraudar nenhuma delas. Ele tinha certeza de que todos usavam máscaras, todos os personagens eram tirados de uma central de elenco: o suboficial do recrutamento militar de rosto talhado a faca, o caminhoneiro com antebraços avantajados, a garçonete mascando chiclete servindo no restaurante, o nerd de TI com fixação em super-heróis de quadrinhos.

Logo, um mundo cheio de sequelados não assim tão diferente, não é?

Enfim: ele agradeceu por não haver nenhum sequelado por perto. Se a igreja oferecia o que eles precisavam, por ele tudo bem, e amém.

Campbell passou entre um carro fervendo de varejeiras azuis e um sedã com as quatro portas escancaradas exalando o fedor dos cadáveres. Ele pulou uma motocicleta caída ao lado, quase perdeu o equilíbrio e chegou à entrada do bar. Deu uma olhada pelo vidro oval na porta de madeira, mas não viu muita coisa. — Empurrou uma folha da porta segurando o candelabro.

— Fala, mano. Chegou na hora do happy hour. — A voz de Pete saiu de algum lugar na escuridão perto dos fundos do estabelecimento.

À medida que os olhos de Campbell se ajustavam, ele conseguiu perceber as fileiras de mesas, algumas delas ocupadas por gente morta com a cara enfiada nos pratos de comida mofada. Algumas velas bruxuleavam, refletidas pelo espelho do bar ao longo de fileiras e fileiras de garrafas. Campbell limpou o nariz incomodado com a decomposição, ainda não acostumado ao fedor docemente pútrido.

Porém, o cheiro de cera de vela e álcool eram fortes também, criando uma combinação lúgubre. Pete estava atrás do balcão com uma garrafa meio cheia de uma bebida castanha e um copo d’água. Campbell achou no começo que Pete tinha encontrado uns caras para beber com ele porque havia quatro pessoas sentadas ao balcão, empoleiradas nos bancos altos com um copo diante de cada uma delas.

— Pete, quem são esses caras? — O coração de Campbell ficara gelado como pedra dentro do peito.

Pete só riu maliciosamente, virou um copo com duas doses de uísque e o bateu contra o balcão. — Por conta da casa — disse ele arrastando um pouco o falar.

Campbell olhou pelas mesas, segurando o candelabro diante de si como se fosse um aguilhão de tocar gado para afastar alguns dos corpos pelo caminho. — Tá tudo tranquilo, cara. Dá pra gente sair da cidade numa boa.

Pete fez um gesto para a fileira de garrafas com a luz das velas brilhando nos olhos. — Sair? Eu morri e cheguei no céu. A cerveja tá quente e não tem gelo, mas não dá pra reclamar. Não me’mo.

Campbell deu uma olhada nos corpos que se reclinavam sobre o balcão. Eles estavam em poses empoladas, excessivas, com os bancos amontoados sob si para mantê-los eretos. Um deles era ciclista; vestia um colete jeans e um boné de vigia e tinha vermes passando pelas órbitas.

— Pete — disse Campbell cautelosamente. — Por que você não pega uma garrafa e vem comigo? Você pode ir bebendo na estrada.

— Eu não — respondeu ele tacando uísque no copo do ciclista até a borda, fazendo-o transbordar e escorrer por todo o balcão. Os copos em frente aos outros cadáveres também estavam cheios.

— Você... — Campbell não conseguia processar a cena. O melhor amigo estava perdido, finalmente cedera à pressão. Campbell sentiu um arrepio mais profundo que o medo: o poço fundo e frio da solidão em que estava caindo.

— A festa tá só começando! — Pete vociferou para seus fregueses servindo-lhes mais uma dose de uísque puro. Pete limpou a boca e sorriu com o rosto ainda mais sinistro e vermelho por causa das velas, como um demônio de filme ruim de terror.

Campbell ignorou o fedor dos corpos profanados que Pete obviamente arrastara das mesas para criar sua sessão etílica improvisada. Inclinou-se sobre o balcão enquanto Pete batia um copo na madeira.

— Gue gue cê vai tomá, parcêro? — perguntou Pete. Em seguida, seu rosto ficou subitamente solene. — Você sabe o que eu acho disso tudo? Não consigo ficar num mundo sem celebridades. Lady Gaga, Jay-Z, Lindsay Lohan. As mentes curiosas precisam saber.

— No caso da Lindsay Lohan, acho que não faria tanta diferença.

— LeBron James. O Depp, cara. Um mundo sem o Depp.

— Você tá bêbado — disse Campbell preferindo essa constatação ao diagnóstico de loucura.

— Sério, cara. Você ficou sequelado? Tem algum sequelado Brad Pitt por aí de boa com costeleta e mosquinha no queixo?

— Cara, sai dessa. Encara o que tá na tua frente.

Pete olhou para o copo e sorriu. Rapidamente voltou para o sentimentalismo e gemeu em estilo dramático. — Taylor Swift. A Taylor, não? Ela é tão linda, tão atraente, tenho uma queda por ela nível Jodie Foster.

— Você não vai ficar aí esperando eles te encontrarem — disse Campbell olhando para a porta da frente. Ele pensou que poderia haver sequelados mais para dentro do prédio, talvez no porão ou nos banheiros. Pete não tinha nenhuma arma e a mochila dele estava jogada de qualquer jeito perto do caixa.

— Quantidade é qualidade — disse Pete mostrando a impressionante coleção de garrafas. — Tem para todo mundo: sequelado, sobrevivente e... — Pete fez um gesto benevolente com o braço não etílico para indicar os cadáveres — a maioria silenciosa e fétida.

Pete começou a dar outro gole do copo, mas Campbell o agarrou pelo punho, fazendo-o derramar bebida no braço de um e de outro. — Você se lembra de que me pediu pra te avisar quando chegasse ao fundo do poço com a bebida?

— Eu devia estar bêbado quando disse isso — disse Pete com os olhos vermelhos já se fechando. — Não leva a sério o que alguém diz quando tá bêbado. Se fosse sério, eu já tinha casado seis vezes.

Pete riu da própria lastimável piada, mas o som foi engolido pelo espaço imóvel e poeirento. Toda alegria e jovialidade que outrora infiltravam aquelas paredes evaporaram completamente, embora o cheiro de bebida, comida podre e corpos inchados encharcasse o ar.

Ouviu-se vidro quebrando perto da porta da frente e Campbell levantou imediatamente o castiçal. – Eles nos acharam.

Parecia que Pete não se importava. Ele bebia direto da garrafa de uísque. Passou um pouco de bebida debaixo do nariz como um agente funerário aplicando mentol antes de começar o dia de serviço.

— Abaixa — disse Campbell bafejando na vela em frente. Ele agachou no escuro, numa posição desconfortável pela proximidade com as pernas da clientela funesta de Pete.

A porta da frente se abriu e encheu o bar de luz. A luz definiu a silhueta de um vulto e Campbell imaginou se os sequelados podiam ou não enxergar no escuro — não que isso importasse. Pete parou em frente a outra vela com o rosto brilhando no círculo amarelado da chama.

Campbell se retesou esperando o ataque do sequelado. Em vez disso, a silhueta disse: — Achei que vocês estariam aqui.

Arnoff!


CAPÍTULO 30

Da plataforma camuflada construída em meio aos galhos de um carvalho, Jorge tinha uma vista panorâmica das serras e dos vales em volta. “Wheelerville”, como Franklin Wheeler chamava seu complexo, era o ponto mais alto nas montanhas Blue Ridge, mas separado do alto dossel da montanha Rogers e das montanhas menores de faces de granito escarpadas sob barbilhos de pinheiros. Um gavião voava sobre o cinturão cinza de neblina que coroava o vale e Jorge se perguntou se não era o mesmo que matara a galinha.

À distância, as tranças de fumaça das cidades se mesclavam ao borrão de carvão no horizonte. No entanto, o ar só trazia um traço do odor acre, como se as montanhas estivessem filtrando o vento prevalecente até limpá-lo enquanto soprava para noroeste. Ele não conhecia ninguém daquelas cidades, mas não deixava de sentir uma perda. Marina podia ter tido uma coleguinha lá, ou ele e Rosa podiam ter encontrado um trabalho melhor.

Focalizando o binóculo, ele mudou o foco para a estrada que entremeava as árvores abaixo. Pontilhando a estrada, os mesmos veículos abandonados, alguns deles atravessados nos canteiros gramados já que os motoristas morreram instantaneamente. Uma proteção de madeira estava deslocada e quebrada por um caminhão que capotou e saiu do acostamento. Havia também um trailer emborcado, com colchões e um corpo podre saindo pela traseira.

Ele estava prestes a descer quando viu movimento na estrada.

Deve ser um veado. Nada demais, eles agora estão na terra que é deles.

Ele olhou pelo binóculo e viu uma mulher subindo o aclive na pista. Ela não se movia com muita rapidez; as bochechas estavam com rastros de sujeira e o cabelo emaranhado. Ela parecia exausta, como um cavalo que atravessou o deserto. Ela carregava um monte de panos junto ao peito.

Ela não anda que nem um deles.

— Franklin! — chamou ele.

Franklin saiu da casa, onde estava mexendo no rádio. Depois do almoço, Franklin disse que “precisava ouvir más notícias”, por isso foi para a escrivaninha enquanto Rosa lavava os pratos da refeição. Franklin apertou os olhos contra o sol enquanto olhava para Jorge. — Que é que foi?

— Tem alguém na estrada — respondeu Jorge. — Uma mulher.

— Fogo do inferno — praguejou Franklin enquanto se apressava para escalar as alças presas à árvore. Para alguém de sua idade, ele era bem ágil, escalava a árvore como um velho cabrito montês. Pegou o binóculo de Jorge, que apontou a direção.

— Ahm, parece que ela está sozinha — descreveu Franklin.

— Ela não é... como é que se chama?

— Não, ela não é sequelada. É só uma mulher assustada. — Ele devolveu o binóculo para Jorge e se virou para descer.

— A gente não vai pegar ela?

Franklin deu uma olhada no complexo. — Eu projetei Wheelerville pra doze pessoas sobreviverem a qualquer coisa, exceto a holocausto nuclear. Vocês vieram a ocupar três vagas quando entraram pela mata com a garota doente. Estou esperando mais companhia e não tenho muito espaço pra compartilhar.

— Você não pode deixar ela lá.

Franklin apertou os olhos. — E você é o quê? Comunista, por acaso? O que é que eles ensinam ao sul da fronteira?

— Ela é jovem, está sozinha...

— Ela sobreviveu até aqui, portanto não é de papelão. Não tô aqui pra salvar o mundo.

Jorge tentou entender a contradição. Franklin ajudara a família dele, mas naquele momento estava negando ajuda a quem precisava. Jorge olhou pelo binóculo para ver como a mulher se saía. As calças dela estavam rasgadas nos joelhos e o moletom marrom de capuz estava desbotado e encardido. Ela virou a cabeça e o cabelo louro chicoteou o ar quando olhou por sobre o ombro.

Será que tem alguma coisa perseguindo ela?

Jorge percorreu a estrada com o binóculo até o pavimento desaparecer em meio à sombra das enormes árvores. Três deles saíram da mata e Jorge não teve dúvida de suas intenções.

— Eles! — disse Jorge enquanto apontava. — Os bicho de nome esquisito. Tão perseguindo ela.

Franklin tomou-lhe o binóculo e deu uma olhada neles por um momento. — Droga. Ela pode estar carregando um bebê.

Em seguida, abaixou e começou a descer da árvore. A meio caminho, olhou para Jorge e disse: — Você queria bancar o herói; agora é uma ótima oportunidade.

No momento em que Jorge chegou ao chão, Franklin já tinha pegado o rifle e a mochila e jogou para Jorge um cinto preso à bainha de um facão. Rosa os chamou da porta da casa. — O que tá acontecendo?

— Tranque o portão depois de nós sairmos — ordenou Franklin com uma calma que contrastava com sua pressa. — Tem uma arma pendurada na parede se você precisar. Voltamos daqui a uns vinte minutos.

— Jorge! — exclamou Rosa com os olhos arregalados.

— Tranca o portão — confirmou Jorge. — Não deixa Marina sair.

Jorge seguiu Franklin para fora do complexo ignorando os gritos de Rosa. Logo depois eles estavam descendo uma trilha que Jorge nunca notara, muito menos a quisera percorrer. A andadura de Franklin era segura e firme e Jorge tinha dificuldade de acompanhar, mesmo sendo três décadas mais jovem. Ele não media o tempo em minutos, mas em lajes de granito que se projetavam do chão, tocos podres do caminho, riachos prateados que atravessavam e raios dourados de sol que penetravam pela folhagem das copas até o chão.

Jorge se desorientara, perdendo toda noção de localização tanto do complexo quanto da estrada. Ele ficou concentrado nas costas de Franklin, no cheiro de lama, nas folhas apodrecidas e na seiva de pinheiro em cada lufada de ar. A trilha se alargou e se tornou uma campina arbustiva, uma cerca de pedra e, além dela, alguns carros abandonados.

— Fique abaixado — disse Franklin fazendo um movimento descendente com uma das mãos e preparando o rifle com a outra.

— Ainda tá longe? — disse Jorge desembainhando o facão.

Franklin agachou, levantou a coronha do rifle até o ombro e começou a olhar por cima do cano. — A um milhão de quilômetros.

Em seguida, Jorge abriu o mato com o facão e viu a motocasa. A mulher estava a uns dez metros dele e andava mais lentamente que antes, com a boca aberta em busca do ar que lhe faltava. Apertava sua carga contra o peito; um dos braços a apertava mesmo quando ela tentou alcançar a porta lateral da motocasa.

Os sequelados a estavam alcançando, talvez a uns quinze metros dela. Ela conseguiu chegar à porta e acionou a maçaneta, mas a porta não abria. Jorge percebeu que ele e a mulher poderiam estar na mesma posição se tivessem planejado acampar nela.

Os três sequelados que Jorge vira no mirante do complexo se juntaram a outros dois. Eles podiam ser paroquianos de uma das igrejinhas das montanhas, ou clientes de alguma churrascaria, ou da equipe de funcionários da escola de Marina. As roupas deles estavam imundas e três deles eram mulheres. O mais próximo da motocasa era um adolescente de camiseta sem manga que angulava os joelhos enquanto partia para o abate.

O rifle soou e o peito do rapaz se abriu num florão de borrifos vermelhos. Ele se inclinou para frente, deu duas cambalhotas no chão e caiu inerte com as pernas dobradas embaixo do corpo e um braço para cima num ângulo bizarro.

Os outros sequelados congelaram, olhando na direção do ruído súbito. Jorge não tinha certeza se eles estavam visíveis, mas a mulher não hesitou. Ela esmurrou a porta da motocasa gritando com uma voz aguda: — Me deixa entrar! Me deixa entrar!

Enquanto Franklin, ajoelhado, nivelava o rifle para dar outro tiro, o arbusto do lado deles se abriu. Um rosto escuro se projetou para fora de olhos arregalados e com a boca entreaberta exibindo os dentes amarelados.

— ¿Hola? — disse Jorge, pensando ser um dos amigos do Franklin. Logo em seguida, lembrou-se de que Franklin não tinha amigos.

A mulher saiu dos arbustos e do mato alto se movendo com rapidez. Franklin se preparava para atirar de novo e não devia tê-la notado. Ela estava a praticamente três passos dele. Jorge levantou o facão hesitante.

E se não for um deles?

Ela sibilou e ergueu o braço direito. Ela tinha na mão uma pedra irregular e cheia de musgo. Jorge deu um grito de alerta.

Franklin se virou e bateu nela com o cano do rifle. Ela era pesada e sólida, e o metal golpeou-lhe o flanco. Ela empurrou a arma para longe com facilidade e levantou a pedra novamente. O peso da pedra fez o braço dela tremer.

— Dá um jeito nela — disse Franklin com equilíbrio na voz.

— Eu... — Jorge olhou para ela e pensou se ela não tinha filhos.

— Não é humana — disse Franklin. — Enfie a faca nela!

Ela desceu a mão com a pedra e Franklin ergueu o antebraço para bloquear o golpe. Jorge pulou para frente e golpeou o pulso dela com o facão. O golpe foi alto demais e a lâmina acertou a pedra da mão dela com um ruído metálico. Um dos dedos dela voou pelo ar com um rastro de sangue. Ela não emitiu um som sequer.

Ela acertou a cabeça de Franklin com a pedra. Franklin rolou para longe e Jorge agarrou o cabo do facão com as duas mãos e, com um movimento circular, preparou o golpe.

A lâmina acertou a nuca da mulher e a pedra saiu da garra das mãos, esfolou a bochecha de Franklin e acertou-lhe o ombro. Enojado, Jorge puxou o facão da carne. O ferimento abriu até o ponto em que se viam tendões e uma laceração no crânio.

Ela emitiu um som abafado e caiu. Franklin mexeu no corpo e Jorge percebeu que o rifle estava debaixo dela. Ele olhou de volta para a motocasa.

A mulher estava subindo uma escadinha de acesso na traseira do veículo, lutando para manter o equilíbrio com um braço em torno da carga. Os quatro sequelados restantes se juntaram em torno da motocasa, golpeando o ar abaixo dos pés dela como se confundidos pela escada.

— Vá pegá-la — disse Franklin empurrando a sequelada morta. — Ela é humana. E o bebê também.

Jorge começou a correr com suor pingando da pele. Segurou o facão como se fosse Antonio Banderas como Zorro, embora ele o detestasse por que Rosa chamou o ator de “muy sexy”. O sangue do facão espirrou na bochecha dele. Um zumbido elétrico muito agudo atingiu-lhe os ouvidos.

Ele pulou sobre o muro de pedra baixo, que era quase meramente decorativo. Nesse momento, a mulher estava em cima da motocasa, sentada, empurrando o corpo para trás com os pés. Um sequelado vestido de pescador com botas de borracha quase na altura do joelho, experimentou a escada com a mão como se estivesse experimentando adivinhar como funcionava.

O sequelado mais próximo se virou quando Jorge alcançou o acostamento da estrada e Jorge quase deixou cair o facão. Ele reconheceu a mulher. Ela era caixa da loja de agropecuária, uma mulher sacudida, daquelas fumantes inveteradas, que estava sempre vestida com um casaco verde promocional de um fabricante de tratores. Ela estava sem o casaco, sem nem uma camisa, com os seios balançando como melões moles contidos pelo sutiã sujo.

Sempre que Jorge comprava quirera, feno ou adubo para a fazenda Wilcox, ela evitava olhar para ele enquanto ele preenchia a nota fiscal, com cuidado para nunca encostar nos dedos dele. Ela no momento não tinha nenhum problema em olhar para ele: os olhos dela eram como brocas elétricas azuladas enterradas na cabeça.

— ¿Señora? — ele vacilou, mas continuou a caminhar avante, esperando que ela lhe dissesse algo familiar para que ele não precisasse cortá-la. Qualquer coisa serviria, mesmo que fosse o arreganhado “Dá ré na caminhonete até a plataforma pra carregar”.

No entanto, ela só sibilava, e Jorge percebeu que era aquela a fonte do zumbindo nos ouvidos. Os outros também estavam sibilando, como o guizalhar de grilos numa noite eterna. Ainda assim, Jorge não conseguia atacá-la. Ela era racista, daquelas que certamente não queria que gente do seu povo atravessasse a fronteira, mas era um ser humano.

Não era?

Antes que ele resolvesse a questão, o topo da cabeça dela explodiu depois do ribombar de uma arma de fogo. A cabeça dela voou para trás, seus seios tremeram e os joelhos dobraram enquanto ela caía no chão.

— Mexa-se, seu idiota! — gritou Franklin. — São sequelados, pelo amor de Deus.

Os outros sequelados se viraram para ele, embora o pescador finalmente percebera como levantar a perna e colocá-la no degrau inferior.

Faltam quatro.

Jorge, no entanto, percebeu que não era preciso matá-los. Eles não estavam agindo com agressividade, não como os da fazenda Wilcox. Em vez disso, eles estavam a olhá-lo com um interesse cauteloso, como o que ele exprimiu pela escada — como se ele fosse algo novo além da compreensão deles. Ele, porém, não quis arriscar e meteu um talho grande no couro cabeludo de um jovem de calções e sandálias. O homem caiu e o sibilar gutural aumentou em tom e volume.

Dor. Apesar do que Franklin diz, eles sentem dor.

O pescador escalara mais alguns degraus, mas os dois sequelados restantes se afastaram com o olho brilhando como diamantes.

— Não atira! — gritou Jorge para Franklin, em parte porque ele não tinha certeza se eles eram perigosos e também porque não confiava totalmente na mira do velho.

O pescador continuou a escalar, movendo-se mais rapidamente enquanto descobria os degraus. Ele estava quase no topo da motocasa com a mulher sentada no meio do teto, curvada para proteger o bebê.

— Aguenta aí — disse Jorge a ela, que não respondeu. Jorge correu para a traseira da motocasa e começou a subir atrás dele. Jorge deu um corte de facão no calcanhar de borracha da bota do homem, que se soltou pouco antes de a lâmina resvalar no metal.

O pescador se levantou com seu colete cor de canela, com a cabeça erguida como se farejasse a brisa. Colocou uma mão numa antena de satélite para se endireitar e torceu para frente e para trás. A barra de aço que prendia a antena fez um ruído e se soltou. O homem levantou a antena como uma arma e se virou para o rosto de Jorge, que ainda estava três degraus abaixo dele.

Ouviu-se um disparo, que zuniu sobre a cabeça de Jorge. O sequelado levantou a antena e Jorge pensou em derrubá-la no chão. O homem, porém, pensou que conseguiria subir antes que o ex-pescador matasse a mulher e o bebê.

Em vez disso, Jorge se jogou para frente e rolou. O pescador parou um momento com a antena ainda erguida, como se ele também hesitasse atacar. Jorge acertou a patela do homem com uma de suas botas. A perna do homem se dobrou, mas não cedeu.

O sequelado sibilou de dor, ou talvez de raiva, e golpeou com a antena como se Jorge fosse uma mosca gigante. Jorge levantou o facão — como o Banderas faria, pensou — e bloqueou o golpe, mas fez com que o lado oposto à lâmina do facão quase lhe acertasse o rosto.

De costas, Jorge levantou as duas pernas e acertou a sola das botas na barriga do sequelado. Um sopro de ar saiu do abdome do homem quando o chute o acertou, levantando-o do teto da motocasa e mandando-o por sobre a cerca enquanto agitava os braços. O corpo acertou o piso abaixo com um ruído úmido enquanto a antena batia a poucos metros da estrada.

Jorge nem se incomodou de ver o estrago. Em vez disso, foi até a jovem, cujo rosto se contorcia entre expressões de medo e de gratidão. Uma lágrima correu-lhe a face. Mais de perto, ela parecia ser ainda mais jovem, talvez uns dezessete anos.

Podia ser Marina daqui a alguns anos, pensou ele, mesmo que a mulher fosse do tipo ruiva-loira em vez do tipo moreno latino da filha.

— Vem — disse ele estendendo uma das mãos. — Temos um lugar seguro.

Ela olhou para o facão ensanguentado. Jorge olhou para ele e o limpou na calça. — Só uso quando necessário — explicou ele.

— Venham — gritou Franklin dos arbustos. — Senão vou ter que começar a matar os outros.

Jorge olhou para a estrada. Mais dois sequelados emergiram da floresta, embora a velocidade com que vinham não fosse ameaçadora. Jorge teve novamente a sensação de que eles pareciam ser mais curiosos que qualquer outra coisa, como se tivessem sido largados num mundo hostil sem nenhum mapa rodoviário.

Isso eu entendo, mis amigos.

— Vem — chamou Jorge com mais suavidade. — Minha esposa vai te ajudar a cuidar da criança.

Ela relaxou um pouco e puxou um pouco o pano que envolvia a carga. Jorge viu uma estreita faixa de pele rosada antes de ela cobri-la novamente. Ela quase perdeu o equilíbrio e Jorge a endireitou. Os dois sequelados na traseira da motocasa se afastaram uns três metros, olhando para cima como se estivessem assistindo a uma encenação de teatro do absurdo.

— Não atira — gritou Jorge para Franklin, que no momento estava perto da cerca de pedra com o rifle apontado para o sequelado mais próximo. — Eu acho que eles não vão nos atacar.

— Então o que o pescador aí estava fazendo? Jogando squash?

— Eles estão confusos.

— Bom, eles não são os únicos.

Jorge desceu primeiro a escada e se ofereceu para carregar o bebê, mas a mulher balançou violentamente a cabeça. Jorge então desceu e ficou em guarda enquanto ela descia com cautela.

— Sai — ordenou Jorge para os sequelados com um movimento do facão. — Vete.

Eles ficaram lá com seus olhares perdidos e brilhantes, embora os dois novos sequelados continuassem se aproximando. Quando a jovem mãe chegou ao chão, Jorge a guiou em direção a Franklin e à trilha que dava no complexo.

— Até que enfim — disse Franklin.

— É assim que a gente faz do outro lado da fronteira — disse Jorge.

— Bom, então nada de siestas até nós termos certeza de que esses bichos não vão nos seguir, sí?

Quando estavam no meio do caminho que subia a montanha, Jorge sentiu o estômago revirar e vomitou nas folhas enquanto Franklin ficou de sentinela.

Nesse momento, ele não se sentiu assim tão Antonio Banderas.


CAPÍTULO 31

— Seria bom mesmo um GPS — disse DeVontay.

Ele apertou os olhos contra o sol, que àquela hora mergulhava no horizonte a oeste. Eles deixaram a cidadezinha, mas ainda sentiam um cheiro de fumaça. Além dela, as colunas mais altas de cinza difusa marcavam a passagem de Charlotte para a atmosfera. As nuvens eram como bolas de lã suja lá no alto ao sabor de correntes incertas.

Rachel se sentou à sombra de um plátano, analisando a rua em que estavam. As imagens de corpos espalhados pelo gramado do fórum ainda a assombravam. Para todos os lugares que olhava, ela alucinava e via corpos nas sombras e nas quebradas, dispostos em arranjos horrendos.

Não pira, Ray Ray. Stephen precisa de você.

O garoto ficara mais animado a cada quilômetro percorrido. O ato de deixar a boneca com o cadáver da menina serviu para purgar parte de sua melancolia. Rachel pensava se essa tranquilidade momentânea seria mais preocupante que a quase catatonia, mas não havia nenhum manual de psicologia que diagnosticasse as condições emocionais do Depois. Era uma situação totalmente nova.

— Pra lá — apontou Rachel vagamente para noroeste. Eles entraram numa área rural e as casas eram mais esparsas e distantes entre si, o que significava menos possibilidade de encontrar sequelados. Eles andaram por uma estrada de saibro por uns oito quilômetros e só encontraram alguns veículos abandonados. Rachel não queria pensar nos corpos que eles talvez contivessem e se tinham sido removidos e usados em obras de arte.

— Certeza? — DeVontay analisou o mapa rasgado que tinha nas mãos. — A I-77 vai pro norte e volta mais ou menos por aqui.

— Não vamos seguir pela interestadual — disse Rachel. — Precisamos ficar longe dos centros populacionais.

— Onde vamos encontrar comida?

— Vamos de casa em casa — respondeu Rachel.

— Onde a gente vai dormir?

— Vamos de casa em casa.

Stephen, que estava cavando a terra com um pauzinho, olhou para cima. — Então a gente pode ficar com a casa que quiser?

— Claro — respondeu ela. — Vai ser nosso presentinho da vizinhança. Se não tiver ninguém dentro, não acho que vão se importar se ficarmos lá.

— Quero uma casa com piscina. — Ele bateu o pauzinho numa mariposa que esvoaçava aleatoriamente em torno dele.

— Não mata ela, não — orientou ela.

— Por que não? — perguntou ele com um beicinho depois de abaixar o pauzinho.

— Porque a vida é sagrada.

— Então por que morreu todo mundo?

Rachel queria dar uma resposta automática, mas todas as opções pareciam erradas: Porque Deus quis assim? Porque o universo é um sacana de marca maior? Porque eles não mereciam?

Em vez disso, ela ficou com a resposta pronta que a fez sentir a dor de ser adulta: — Porque sim.

DeVontay começou a andar pela estrada limpando a poeira da testa com um lenço e enrolando-o na cabeça à Jimi Hendrix. — Aposto que aquela casa lá tem piscina — disse ele. — Ou um laguinho com peixe.

A casa de fazenda branca de dois pisos tinha um teto de zinco que brilhava ao sol poente. O terreno era cercado e a propriedade em volta era dividida em alguns pastos. Havia um trator estacionado perto de um celeiro vermelho e duas vacas a pastar, que o ignoraram completamente. A terra em volta terminava em aclive até a floresta. Perto do pórtico havia uma caminhonete enferrujada. Rachel viu um rifle num suporte perto da janela traseira.

— Eu quero peixe! — exclamou Stephen correndo para alcançar DeVontay. Rachel colocou a mochila e os seguiu. A casa oferecia uma boa visibilidade e parecia bem segura, presumindo que não houvesse uma família de sequelados à mesa da cozinha...

— Ei! — disse DeVontay com as mãos em concha em volta da boca. A única resposta foi do vento.

DeVontay estava verificando a caminhonete na hora que Rachel chegou. — Tá vazia — disse ele, embora Rachel desse uma olhada sugerindo que não estava.

— Stephen, vem aqui rapidinho — disse Rachel. Ela foi até uma macieira no quintal lateral e puxou um galho mais baixo para que Stephen colhesse algumas maçãs bem vermelhinhas. Quando ela olhou de novo, DeVontay estava mexendo na caminhonete e saiu com o rifle nas mãos antes de fechar a porta.

— Vou ver a casa — disse ele. — Esperem aqui até eu voltar.

Rachel deixou Stephen no jardinzinho tomado de mato. Os tomates estavam quase todos podres e os pepinos estavam amarelados, mas a mostarda e a couve estavam bem verdes e saudáveis. — Me ajuda a pegar alguns — disse ela ajoelhando-se na terra. Ela levou um nabo na boca e o mastigou, saboreando seu fresco amargor.

— Que nojo — disse Stephen.

— Você não quer ficar forte igual ao Homem-Aranha?

— Seus dentes tão verdes. — O garoto olhou para o celeiro. — Qu’é que tem aí dentro?

— Feno — respondeu ela. — Agora vamos à colheita. Vai ser bom comer legumes e verduras frescas depois de toda essa comida enlatada.

— O feno é mais gostoso que isso — disse ele indo em direção ao celeiro.

— Não entra lá sozinho, não — advertiu ela levantando a dianteira inferior da camisa para fazer uma bolsa de coleta. Ela colheu muitas hortaliças e esperava Stephen voltar. Ela ficou tão entretida na colheita que, por um momento, não percebeu aonde tinha ido o menino.

Ele estava quase chegando ao celeiro. — Stephen — chamou ela.

O garoto ficou na entrada de madeira do celeiro, que ficava suspensa por rodas de metal numa estrutura de aço. A porta se abria em uns sessenta centímetros e, depois dela, uma grossa escuridão. Rachel não conseguia imaginar o garoto entrando ali, não depois dos horrores pelos quais passou.

O garoto deu uma olhada para trás, mas parecia não ter notado Rachel. Ele esticou a cabeça como se estivesse ouvindo uma música ao longe e rapidamente entrou no celeiro. Rachel largou as hortaliças e correu atrás dele, sentindo a fadiga e a tensão dos dias recentes numa onda que lhe enfraqueceu as pernas. Uma bolha no dedão dela gritava de tão vermelho, mas ela perseverou, pensando na irmã.

Ela o chamou novamente. A palavra soou mais como o estalar de um raio no silencioso ambiente pastoril, calando os pássaros da floresta em volta. Ela chegou à porta e o ar escuro do lado de dentro era quase sólido, densificado pela poeira do feno e do esterco, um bloco de obsidiana emoldurado por tela de arame e tábuas rústicas de madeira. Rachel não queria tocar essa escuridão miserável, muito menos entrar nela, mas Stephen estava lá dentro.

Ela prometera cuidar dele.

Entrou e chamou-o pelo nome, ouvindo os estalos do teto de zinco quente. Ela zombou de si mesma pelo excesso de confiança. Ela devia ter pegado a pistola de DeVontay depois que ele encontrou o rifle. No entanto, a paz da várzea da fazenda a embalara para uma falsa complacência e ela se permitiu esquecer que o momento era o Depois e que as regras mudaram com um arroto do sol.

Vacilante na escuridão, Rachel lutou contra uma vontade quase incontrolável de esperar DeVontay. Ela achava improvável que houvesse sequelados no celeiro; caso contrário, eles teriam reagido à voz dela. Ainda assim, as sombras profundas traziam o peso da ameaça, como a respiração suspensa da espreita. Algo ali não estava certo.

Enquanto os olhos dela se ajustavam aos feixes de luz que penetravam das rachaduras e janelas, ela conseguiu notar vigas de suporte e baias, com tufos de feno espalhados pelo chão sujo. No feixe central, três vultos se dependuravam de cordas como sacos de ração. Stephen ficou em silêncio, olhando para eles.

— Meu bom Deus — disse Rachel titubeante ao lado do garoto. Ela tentou puxá-lo e, em seguida, cobrir-lhe os olhos, mas ele conseguiu se soltar.

— Que aconteceu? — perguntou Stephen.

Os corpos eram de um homem e dois jovens, obviamente irmãos. Eles tinham os olhos saltados e a língua negra deles se projetava da boca arreganhada. Apesar do enxame de moscas, eles pareciam ter morrido um ou dois dias antes.

— Não é bom você ver isso, Stephen.

— Eles se mataram? — disse Stephen com a voz fria e inexpressiva, como se seu autismo pós-traumático tivesse retomado o controle.

Rachel achou que o homem tinha enforcado os próprios filhos e depois se matado. Não parecia trabalho de sequelado. Ela, porém, não sabia que resposta seria a mais confortadora para Stephen. Talvez não houvesse conforto na morte.

Talvez.

Talvez o homem tenha ponderado a situação no Depois e tomou uma decisão baseada no amor e na misericórdia. Apesar dos recursos da fazenda, o homem pode não ter vislumbrado um futuro sem violência. Talvez esse fosse o modo que o homem encontrou para proteger a família dos sequelados, matando a esposa na caminhonete e antecipando a paz eterna dos filhos em vez de enfrentar mais um dia no inferno.

Talvez esse tenha sido seu último ato de fé.

— Não sei o que aconteceu — disse Rachel e, com isso, pelo menos evitou uma mentira.

— Quero minha mãe — disse Stephen.

Rachel o abraçou. — Eu sei que quer, querido.

— E minha boneca.

— Eu sei. Por que você não vai para a casa da fazenda? Aposto que esses meninos tinham brinquedos e tenho certeza de que eles não se importariam que você brincasse com eles.

— Eles morreram — disse ele. Ele espirrou por causa da poeira e depois fungou.

Os olhos de Rachel estavam quentes de lágrimas, mas ela não permitiria soluçar. — Vamos lá, querido.

Dessa vez, Stephen se deixou levar do ar corrompido do celeiro de volta para a luz do sol. Rachel olhou para as nuvens incertas lá no alto.

Deus, por que o permitistes? Qual seria o Vosso plano para tudo isso?

Mas ela não acreditava na própria fé naquele momento porque tinha medo de tê-la perdido. A única certeza na vida dela, o poder que lhe dera conforto em meio à tristeza e às tribulações e que lhe fizera gozar de cada prazer, ali era uma mera fumaça à distância. E sem sua fé, quem era ela?

DeVontay estava esperando no pórtico quando chegou à casa com o rifle apoiado num dos ombros. — Tudo limpo — disse ele com um alívio quase leviano. — Tem até comida enlatada e um fogão a gás, dá pra gente preparar uma refeição caseira da hora.

Em seguida, notou o rosto dos dois e olhou em volta com cautela. — Qu’é que foi?

Rachel acenou para o celeiro atrás deles. — Podemos ficar na casa deles. Eles não vão precisar mais dela.

— Ah. Bom, então vamos entrar e comer. — Ele manteve a porta aberta para que os dois entrassem e Rachel conseguiu notar a pergunta nos olhos dele: Eram sequelados?

— Acho que estamos seguros aqui — disse Rachel. Apesar da ansiedade contida, ela estava ávida para fugir e explorar a cozinha. — Por que você não encontra um lugar pro Stephen enquanto eu preparo um jantarzinho?

Ela não conseguia esquecer a imagem dos corpos flácidos e pensos nem a fenda crescente no meio de seu coração abandonado.


CAPÍTULO 32

— Eu te vi correndo pela rua e sabia que você ia me levar até seus amiguinhos — disse Arnoff.

— Que amiguinhos? — Campbell não gostou do modo com que Arnoff apoiava o rifle semiautomático no quadril, uma postura de machão que, em outras circunstâncias, teria sido caricata.

— Seus amiguinhos do exército.

— Eu não mexeria com eles — aconselhou Pete servindo-se mais uma bebida sem oferecer nada a Arnoff.

— Não quero mexer com ninguém. Quero me juntar a eles, me alistar na equipe dos humanos.

— Tenho a impressão de que eles não tão procurando recrutas — opinou Campbell. Ele olhou para a porta da taberna na esperança de que Arnoff tivesse removido os inimigos da rua antes de segui-lo. Se o sequelados estivessem andando em bandos, até uma semiautomática seria insuficiente.

— O comandante deles vai pensar direitinho — disse Arnoff. — Donnie e o professor sabem atirar e a Pam... bom, ela sabe cozinhar, sei lá, ou fazer a alegria da rapaziada. Quantidade é segurança.

— Vô te falá um negoço — disse Pete em sua fala etílica numa virada beligerante. — O cara é nacionalista. Ele não precisa de quantidade igual a gente.

Arnoff deu uma olhada pelo cômodo à meia-luz como se notasse os corpos pela primeira vez. — O que você sabe sobre isso?

Campbell saiu do bar esperando que Arnoff o detivesse, mas o homem estava mais interessado no que Pete tinha a dizer. Pete murmurou algo incoerente, mas Campbell fez um convite pessoal a Arnoff para que fosse realizar um ato sexual solitário e depravado.

Ele olhou por uma janela encardida, para a imobilidade dos carros e dos corpos inertes, para um carrinho de bebê emborcado perto de um hidrante. Um pombo de asa quebrada pulava pela calçada — o único sinal de vida.

— Você estava com eles — disse Arnoff. — Eles te pegaram na estrada.

— Eles me fizeram de isca pra sequelado — corrigiu Pete. — Igual a você.

— Todos temos uma parte no plano — disse Arnoff. — Algumas são maiores que outras.

— Presumindo que o Capitão deixe você entrar na equipe classe A, qual é o seu plano? — perguntou Campbell. — Vai começar uma onda de genocídios? Eliminar todos os sequelados? Matar todo mundo que não for do teu tipo?

— Para com essa palhaçada. É a sobrevivência da raça humana. Sobrevivência do mais adaptado. Não sei o que esses bichos são, nem porque eles querem rachar a cabeça dos outros, mas não preciso do professor pra saber quando é pra matar alguma coisa.

— Eles estão mudando — disse Campbell tentando formular ideias a partir de meras considerações. — Não acho que eles estejam nos atacando, atacando as pessoas normais, só porque nos querem fora da jogada. Acho que eles estão tão confusos e assustados quanto nós.

— Vai pro inferno com esse papinho. — Arnoff acenou com o braço para os cadáveres, o bar lúgubre que outrora abrigou música, risos e o tilitar de copos levantados em brindes. — Além de eles serem um perigo à vida, são uma ameaça ao nosso estilo de vida. Se quisermos que tudo seja como antes, temos que vencer hoje e deixar pra lutar amanhã.

— Pra mim chega de lutar — disse Pete. — Prefiro é beber. Mas você ia ficar feliz com o Capitão e o pelotãozinho dele. Eles tão indo pr’uma base ao norte.

— Uma base?

Pete deu um gole da bebida apreciando a ansiedade de Arnoff. — É. Disseram que tem uma base militar secreta lá, subterrânea, preparada pro juízo final. Um troço construído pra guerra nuclear, mas que ia servir pra quase tudo. Acho que o Clarão conta como “quase tudo”.

— O quanto pro norte?

— Até ver o mágico — disse Pete com a voz arrastada. Até para alguém com o nível de tolerância de Pete, as quantidades prodigiosas de uísque já mostravam seu efeito. — O mágigo dje Ozzzzz.

Arnoff estocou o cano do rifle para frente e espatifou a garrafa de Pete. O cheiro forte e doce do uísque sobrepujou brevemente a fermentação dos cadáveres.

Pete rosnou e se projetou de trás do balcão para golpear Arnoff. — Seu animal desgraçado.

— O quanto pro norte? — repetiu Arnoff. Mesmo na pouca luz, seus olhos e dentes brilhavam com uma ameaça feroz que rapidamente deixou Pete sóbrio.

Pete sofreu uma onda de rendição e fastio. — Pra estrada Blue Ridge.

— Que mais? A estrada tem uns oitocentos quilômetros.

— Eles chamavam de Marco 291. Sei lá o que isso quer dizer.

— Se tiver zoando da minha cara, venho atrás de você e vou te deixar pendurado num poste pros sequelados comerem teu fígado.

Pete bufou de desgosto e pegou outra garrafa na fileira atrás dele. Campbell via a cena pelo espelho empoeirado do bar e ficou assustado com a pessoa de pé à esquerda de Arnoff. Campbell inclinou a cabeça para o lado para ter certeza de que não era reflexo dele próprio. Bochechas magras de barba mal feita com madeixas grisalhas e manchas roxas sob os olhos.

Não sei nada de zumbis, mas estamos virando mortos-vivos.

Arnoff encostou o rifle num banco do balcão e pegou um mapa e uma lanterna no bolso. Ele limpou a poça de bebida com o antebraço e espalhou o mapa sobre a superfície de madeira. Campbell não conseguiu deixar de olhar quando Arnoff ligou a lanterna.

— Que cidade fica perto disso aí? — perguntou Arnoff a Pete.

— Tá me achando com cara de patrulheiro? Ouvi eles dizendo “Boone”.

Arnoff passou o indicador curto e grosso pelo mapa da Carolina do Norte para fora dos círculos vermelhos que desenhara para marcar a localização atual e a rota desde que saíram de Charlotte. — Uns cento e cinquenta quilômetros. Deve dar pra chegar numa semana, dez dias de caminhada.

Pete riu de novo. Ele nem usava mais copo: bebia direto da garrafa de uísque e estremecia a cada trago. Campbell estudou o mapa e notou as cidadezinhas que pontilhavam a estrada para Boone. Arnoff franziu o rosto e dobrou o mapa com decisiva eficiência.

Pegou o rifle e foi até a porta. — Vocês vão comigo ou ficam aqui pra esperar os sequelados? Tome.

Campbell colocou a mochila e o acompanhou. Pete, no entanto, não se movera da sua posição atrás do balcão. Ele olhou para eles como se estivesse perdido num happy hour há muito tempo, daqueles com cerveja a rodo, rock das antigas rolando, e luzes de neon vermelhas e verdes cintilando sedutoramente.

— Vem, Pete — chamou Campbell da porta. Arnoff se certificou de que a rua estava segura e atravessou.

— Você tá virando um pela-saco mandão igual o Arnoff — disse Pete contornando o balcão, quase tropeçando no motociclista morto com manchas excrescentes de morte na roupa de couro.

Arnoff já estava quase no fim do quarteirão dobrando a esquina. Campbell temeu que o homem os deixasse para trás. Embora a opção de Arnoff não fosse agradável, Campbell imaginou como seria ruim passar outra noite sozinho no campanário da igreja. Ele serpenteou por entre os carros abaixado caso houvesse algum sequelado por perto.

Quando Campbell chegou à esquina, Arnoff estava quase fora de alcance. O homem se esquecera completamente deles.

Campbell se virou e tentou animar Pete a se apressar. Pete acabara de sair do bar de olhos quase fechados por causa da claridade do ocaso. Ele arrastava a mochila numa das mãos e a outra agarrava uma garrafa de destilado perto do pescoço. Enquanto caminhava para frente, caído, esquivo e espástico, Campbell lutou contra uma onda de irritação.

Que boçal. Ele parece um sequelado com esse jeito de...

A saraivada distante ecoou pelas gargantas das fachadas dos prédios. Pete levantou a cabeça, boquiaberto por causa do choque. O súbito florão rubro em sua camiseta se espalhou pelo peito. Suas pernas dobraram e ele caiu, espatifando a garrafa de destilado na calçada.

Campbell correu abaixado em sua direção. — Para de atirar! — gritou ele sem saber se isso adiantaria alguma coisa.

Os soldados claramente não ligavam. Todos os que não usassem uniforme seriam alvejados. Ele se lembrou das palavras do Capitão: “Nós somos o governo. Ou você está conosco, ou está contra nós”.

Campbell esperou que a próxima bala atravessasse a própria carne e quase a saudou. No entanto, tudo estava silencioso enquanto ele se ajoelhava na cidade morta ao lado de Pete, cujo sangue se misturava com a tequila num elixir doente e fatal. Campbell se ajoelhou, murmurando ao amigo morto enquanto o crepúsculo caía.

Era o Depois.

E ele estava sozinho.


CAPÍTULO 33

Jorge ajudou Franklin a fazer a barricada no complexo depois que voltaram. O sol estava se pondo, emitindo longos feixes de sombras pelas folhas e matos. As montanhas estavam estriadas em faixas de preto e castanho, com a neblina grossa coroando o horizonte. Os primeiros lampejos de aurora boreal eram visíveis ao céu no extremo norte, com ramos verde-limão e magenta como numa psicodélica visão xamânica.

— Acha que eles virão atrás da gente? — perguntou Jorge a Franklin.

— É difícil dizer. Eles não estavam se comportando como de costume.

Não estavam atacando. Mas eles se sentiram atraídos pela mulher.

— Talvez eles quisessem o bebê dela.

Jorge pensou em Marina e no que faria se os sequelados a pegassem. A mulher quase histérica estava lá dentro com Rosa, que a confortava. O bebê dela estava a salvo e Jorge prometeu ajudar Franklin a defender o complexo até a morte. O lugar passara a ser a pátria deles.

Franklin passou um cabo de enxada por uma bobina metálica de arame farpado enquanto Jorge vestia um par de luvas grossas de couro. Ele subiu numa pequena escada e puxou uma seção de fio por cima do portão de madeira enquanto Franklin cortava o arame com um torquês. Ele o enrolou por entre as tábuas em grandes voltas frouxas de forma que qualquer invasor ficasse emaranhado nas farpas.

Franklin colocou uma série de holofotes nas árvores em torno do complexo. Ele disse a Jorge que o sistema de bateria não os queimaria devido à alta tensão, mas que a luz seria uma medida de segurança adicional caso precisassem.

— Além da sobrevivência, você tava preparado pra defesa? — perguntou Jorge, que juntava as ferramentas.

— Tem muito mais coisas aqui além de mim — respondeu Franklin enquanto rumavam para o tênue brilho avermelhado do interior da cabine.

Jorge se viu ansioso para sentar no interior aconchegante à luz de velas com mais pessoas para cuidar. Ele concordara em assumir a primeira vigília da noite, mesmo depois de Franklin afirmar que seus sistemas de alarme estivessem à altura da tarefa. — Como assim?

— Essa estrada é danada. O governo diz que é uma rota bonita pros turistas, mas foi construída pra aguentar tráfego pesado de caminhões. Pesado mesmo.

— Não entendo.

— Não fui o único a ter a ideia de me entocar aqui. Tem mais gente da Rede da Prontidão que acreditava que tinha uma casamata militar ali. Faz sentido. É preciso uma estrada construída pra aguentar bombardeio aéreo numa área sem grande importância industrial.

— Foi por isso que você trouxe eu e minha família pro complexo? É por isso que você quer trazer mais gente?

Franklin parou logo do lado de fora da cabine. De dentro ouvia-se o murmúrio baixinho de mulheres conversando.

— Um sobrevivencialista sabe que não é só sobreviver — explicou Franklin, apertando os olhos para a aurora que, naquela hora, tinha um brilho com que se poderia ler um livro, se não fosse a atenuação da neblina. — A gente tem é que viver. Só ter comida, suprimentos e munição não faz traz nenhum benefício a longo prazo porque, afinal, que vida é essa? Ficar escondido numa casamata por vinte anos? Sozinho?

Jorge não considerava a sobrevivência como algo além da próxima respiração. Cada dia desde as tempestades solares era um desafio, mas ele tinha de admitir que se sentia mais vibrante e que seus sentidos — todos eles — estavam tão aguçados e vívidos como os de sua infância. Talvez a perspectiva de perder o mundo o imbuíra de um mistério e uma riqueza mais profundos.

— A saída é viver em comunidade — continuou Franklin. — Agrupar e construir algo melhor a partir das ruínas.

— Você disse que outros estavam vindo.

— Espero que sim, filho.

Jorge não sabia como responder a esse sinal de familiaridade. Sendo assim, ignorou-o. — Melhor a gente ver como estão a mulher e o bebê.

Franklin deixou as ferramentas ao lado da porta da cabine, mas levou o rifle pendurado no ombro. Eles entraram num ambiente caloroso, com o fogo crepitando no fogão à lenha e as várias velas penduradas no cômodo. Jorge sorriu para Marina. Ela parecia ter crescido nessa última semana, totalmente saudável, e estava quase virando uma mulher. Marina, no entanto, não retribuiu o sorriso. Seu rosto estava grave, com linhas vincando-lhe a testa e as laterais da boca.

Ela e Rosa estavam ao lado da mulher, que ninava o bebê.

A mulher olhou para cima. — Obrigada — disse ela, brilhando com aquele resplandecer maternal. — Obrigada por nos salvar. Obrigada por ter salvado a ele.

Ela puxou a criança do peito e a virou para eles. Franklin inspirou uma lufada de ar. O peito de Jorge ficou gelado e insensível.

A criança estava perfeitamente formada, com as mãozinhas em punho e um tifo de cabelo arrepiado na cabeça grande. Era um menininho lindo.

Exceto os olhos.

Eles faiscaram com um brilho estranho e anormal, refletindo a luz de velas como espelhos quebrados.

Jorge já vira esses olhos antes — nos homens que o tentaram matar e na estrada perto da motocasa.

A criança era um sequelado.


CAPÍTULO 34

Stephen tossiu de novo, emitindo um perdigoto de desconforto em direção a Rachel. E se o garoto ficasse doente? Doente mesmo?

DeVontay arrastou uns dois colchões extras para um quarto no andar de cima que pertencia a um dos garotos mortos. Ele estivera do lado de fora procurando uma pá, dizendo que queria dar à família um enterro digno em troca da hospitalidade. Stephen não caiu nessa e Rachel imaginou se DeVontay simplesmente empilharia os corpos ao lado das baias do celeiro como lenha.

Stephen estava enrolado nos cobertores da cama do garoto morto, olhando para o teto. Rachel encontrara uma lâmpada a óleo cujo brilho em feixes projetava sombras fantasmagóricas no teto.

— O fantasma do garoto vai voltar? — perguntou Stephen. — Ele vai ficar bravo se eu brincar com o trenzinho?

Rachel passou os dedos pela franja na testa dele, aproveitando para aferir-lhe a temperatura. — É claro que não. Ele está lá no céu, brincando com brinquedos novinhos.

— A família dele tá lá?

— Tá sim, querido.

— Eles têm cachorro?

— Ele não ia pro céu sem um cachorro, né? — Rachel olhou pela janela para a escuridão instalada na floresta. DeVontay deixara a pistola com ela e prometera que, no dia seguinte, a faria treinar tiro com espingarda.

Eles concordaram tacitamente que ficariam na fazenda por ora. Rachel estava empolgada com a perspectiva de uma horta e das refeições que prepararia, DeVontay disse que não seria difícil defender o lugar, se necessário. — Tem um bom campo de visão — disse ele, como se isso não significasse ter muito tempo para atirar em quem se aproximasse.

— Tô com saudade da mamãe — disse Stephen olhando para as sombras que bruxuleavam no teto branco. — Tomara que ela esteja no céu também.

— Não seria o céu se a mamãe não estivesse lá — disse Rachel. Ela sorriu. Stephen tossiu de novo e o peito chiou um pouco.

Deve ser a poeira do celeiro.

— Amanhã vamos colher maçã — disse ela. — Talvez brincar no riacho. Eu vi um barquinho no armário. Acha que vai ser legal?

Stephen assentiu e tossiu de novo.

Rachel pensou nos três corpos enforcados no celeiro. Ela pensou se o fazendeiro enforcava porcos lá pra depois esfolá-los e salgá-los.

Por quanto tempo o Depois afetara a mente do fazendeiro? Quantas vezes ele dissera aos filhos que tudo ficaria bem? Quão difícil foi atirar na mulher depois que ela se transformou?

Stephen tossiu de novo, duas vezes.

De quanta coragem ele precisou? O fazendeiro devia acreditar mesmo numa vida e num mundo que os aguardavam. A fé nas ações, o amor como propósito.

Ela procurou algo na mochila e encontrou. — Como está se sentindo agora, Stephen?

Ele esfregou os olhos. — Com sono. Cansado.

Ela também estava cansada.

Ela lhe pediria para pensar na mãe que o esperava. Ou será que isso o assustaria? E se ele pensasse na mãe como estava no hotel, deitada na cama com os olhos cheios de moscas? E se aquele fedor o acompanhasse até o próximo Depois?

Ela se lembrou das informações do farmacêutico. Primeiro, o antiemético para não vomitar. Depois, o pentobarbital.

Sobre a mesinha ao lado da cama havia um copo de água limpa e filtrada do riacho. Dado o tamanho dele, três comprimidos seriam suficientes.

Ela baixou a cabeça e fechou os olhos. Senhor, seria um ato de compaixão?

Pela primeira vez na vida, sentiu que a pergunta estava ecoando num vácuo profundo de espaço vazio e infinito, um telefonema direto para o nada que havia depois da linha.

Ela nunca ficara tão assustada.

— Toma aqui uma coisa pra fazer essa tosse sua ir embora — disse ela que, de alguma forma, conseguiu esconder o tremor da voz, embora os dedos tivessem tremido ao abrir o frasco de remédio.

— Cadê o DeVontay? — perguntou ele.

— Ele vai chegar num minuto. Toma aqui, querido.

Ela lhe deu o antiemético, que ele engoliu com uma careta. — Eca. Que ruim.

— Bebe aqui. — disse ela dando-lhe o copo d’água, e ele bebeu.

Ela estava prestes a lhe dar os três comprimidos quando olhou-lhe o rosto, esperando ver algum sinal de paz e aceitação. Em vez disso, viu o rosto de Chelsea no velório, com aquela pele pálida e empoada de olhos eternamente fechados.

Ela apertou o frasco dela na mão em punho e o atirou no canto do quarto, onde rolou no chão de madeira densa.

— Você tem razão — concordou ela. — Remédio é horrível.

No piso inferior, a porta bateu e DeVontay subiu a escada.

— Quanto tempo vou ter que dormir na cama do menino? — perguntou Stephen meio grogue.

— Alguns dias — respondeu ela. — Depois vamos pras montanhas, lá é mais seguro.

— Achei que a gente tava indo pro Mi’ssippi.

— A gente chega lá — disse ela. — Ainda temos um longo caminho pela frente.

 

 

                                                   Scott Nicholson         

 

 

 

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