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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COMODORO / Patrick O brian
O COMODORO / Patrick O brian

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

As duras condições da vida em um barco durante o século XIX e a ilusão por descobrir a aventura em qualquer momento aparecem refletidas com uma força e rigor deslumbrantes.
E através das experiências, as conversações e as reflexões do capitão Jack Aubrey e o doutor e cirurgião Stephen Maturin.
Este é o décimo sétimo romance da mais apaixonante série de novelas históricas marítimas jamais publicada; por considerá-lo de indubitável interesse, ainda que os
leitores que desejem prescindir disso podem perfeitamente fazê-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo e detalhado Glossário de termos marítmos
Foi mantido o sistema de medidas da Armada Real inglesa, como forma habitual de expressão da terminologia náutica.

1 cabo =120 braças = 185,19 metros.
1 celemine= 4,6 litros.
1 estadio= 201,2 metros.
1 jarda = 0, 9144 metros.
1 libra = 0, 45359 quilogramas - 1 kg = 2, 20462 libra.
1 pé = 0, 3048 metros - 1 m = 3, 28084 pés.
1 pinta = 0,47 litros.
1 polegada = 2, 54 centímetros - 1 cm = 0, 3937 polegada.
1 quintal = 112 libras = 50, 802 kg.

 

 

 


 

 

 


CAPÍTULO 1

A bruma se estendia pela entrada do Canal naquela feia noite. As nuvens corriam trepidantes, empurradas por um vendaval do noroeste que descarregava fortes chuvas.
Ouessant se encontrava em algum lugar pela amura de estibordo; as Scilly, a bombordo, mas não se via nem uma luz nem uma estrela. Não haviam feito uma só medição
já fazia quatro dias.

Dois barcos navegavam de conserva{1} rumo à Inglaterra. Um era a Surprise de Jack Aubrey, uma antiga fragata de vinte e oito canhões desativada fazia anos pela Armada,
que nesse momento servia como embarcação alugada por sua majestade, ainda que completava uma longa missão de caráter confidencial para o governo. O outro, o Berenice,
ao comando do capitão Heneage Dundas, era um navio de sua majestade de duas pontes e sessenta e quatro canhões, mais antigo mas menos usado que a Surprise. Navegavam
em companhia de seu barco de apetrechos, a Ringle, uma escuna americana da tipo conhecido como "clíper de Baltimore", que os acompanhara desde que se cruzaram ao
nordeste do cabo de Hornos, a uns cem graus de latitude ou seis mil milhas náuticas em linha reta (se as linhas retas têm algum sentido em uma travessia inteiramente
governada pelo vento), a Surprise proveniente do Peru e da costa chilena, e o navio de sua majestade, de Nova Gales do Sul. O Berenice havia encontrado a Surprise
muito maltratada depois desta sofrer um encontrão com uma fragata americana fortemente armada, e, sobretudo, por ter sido atingida por raio que destroçou seu mastro
maior e, o que é ainda pior, havia privado a embarcação de seu governo. Os dois capitães se conheciam desde que eram meninos, serviram juntos como guardas-marinhas
e tenentes, e portanto eram, sem dúvida, velhos companheiros de rancho e amigos íntimos. O Berenice proporcionara à Surprise vergas, cabos, apetrechos e um estupendo
e eficiente leme de Pakenham, construído com mastaréus de reserva; e as tripulações de ambos os barcos, a pesar da tensão inicial fruto da posição irregular da Surprise,
tinham se dado muito bem depois de celebrarem duas apaixonadas partidas de críquete na ilha Ascenção, onde se encaixou um leme mais apropriado. Também tinham se
trocado muitas visitas quando os três permaneceram nas zonas das calmarias equatoriais, com as velas golpeando durante quinze dias, balançando em um calor tão sufocante
que inclusive o breu, fundido, gotejava das vergas. Apesar de ter resultado uma viagem muito longa, não podia ter sido mais sociável, sobretudo porque a Surprise
teve oportunidade de tirar o espinho da injusta diferença existente entre quem dá e quem recebe, ao proporcionar um cirurgião ao Berenice, que estava em falta na
tripulação, pois perdera o seu (junto com seu único ajudante) quando o bote no qual navegavam virou a apenas dez jardas do barco. Nenhum deles sabia nadar, e se
agarraram um ao outro com fatídica energia, de modo que sua dotação, lamentavelmente minguada pela sífilis de Sidney e o escorbuto do cabo de Hornos, ficou a cargo
de um assistente que não sabia ler nem escrever, mas que compensava esta carência com sua audácia. Enfim, não só lhe proporcionaram um simples cirurgião naval munido
com pouco mais que um certificado emitido pela Junta de Enfermos e Feridos, mas também um médico veterano na pessoa de Stephen Maturin, autor de uma obra de referência
sobre as doenças dos marinheiros, membro da Royal Society, doutorado em Paris e Dublim, cavalheiro que conhecia à perfeição o latim e o grego (conhecimento que constituia
um alívio tremendo para seus pacientes), amigo pessoal do capitão Aubrey e, ainda que somente alguns poucos soubessem, um dos mais apreciados conselheiros do Almirantado
- e, portanto, do Ministério - em assuntos relacionados com a Espanha e a zona da América ocupada pelos espanhóis. Em resumo, um agente da Inteligência, ainda que
fosse voluntário e totalmente independente.

Mas um cirurgião, por mais que dispusesse de cabine própia e de uma bengala com empunhadura de ouro, por mais que o própio príncipe William, duque de Clarence, tivesse
solicitado seus serviços, era apenas um cirurgião, afinal de contas, e não precisamente um mastro maior, e muito menos um leme. Podia manter com vida à tripulação
e aliviar seus males, mas não podia empurrar nem governar o barco. Os da Surprise tinham portanto todo o motivo do mundo para sentir uma gratidão sem comparação
pelos marinheiros do Berenice e, com conheciam a diferença entre o que está bem e o que está mal no mar, cumpriram com acréscimo com seu agradecimento quando atravessaram
por zonas sucessivamente frias, temperadas e tórridas e, dali, ao simplesmente úmido e desagradável clima que lhes aguardava em casa. Contudo, nada no mundo lhes
teria feito estimar ao Berenice pelo que era.

A dotação da Ringle compartia seus sentimentos sem reservas. Tanto a fragata como a escuna eram barcos extraordinariamente navegáveis, rápidas, capazes de navegar
muito bem de bolina - a escuna inclusive melhor que a fragata, - e podia dizer-se de ambas que eram alheias ao abatimento, enquanto que o pesado e poderoso navio
de duas pontes era como um verme trepado a um cesto da gávea. Tinha se saído bastante bem ao receber o vento pelo través, ainda que navegasse melhor quando o recebia
justo pela alheta, mas ao recebê-lo além deste ponto sua dotação trocara olhares de inquietação. Finalmente, as alas e as rastreiras não puderam agüentar por mais
tempo e, quando o barco se aproximou do olho do vento, as bolinas pontearam retesadas, e compreendeu-se que, apesar de todo seu empenho, não poderia se aproximar
a seis quartas do vento nem impedir que caísse para sotavento de forma lamentável, igual a um caranguejo bêbado.

O Berenice se vira empurrado a comportar-se dessa forma tão lamentável durante dias, desde que, graças a uma acertada observação, tinham determinado que já podiam
pôr mãos à obra e pintar o barco, forrar os cabos com breu e polir tudo aquilo que fosse susceptível de brilhar, com vistas a picar a sonda totalmente preparados
para chegar à Inglaterra com esplendor. Contudo, ao longo dos últimos dias, o vento teimara no contrário e, ainda que a Surprise - para não mencionar a escuna -
pôde vencê-lo sobradamente barlaventeando um bom trecho, tiveram que atrasar-se devido a seu companheiro, tão pouco navegável. Haviam adentrado naquela noite feia,
naquela condenada e maldita noite, com a obra morta recém pintada arruinada pela espuma do mar, quando a essa altura já podiam estar perfeitamente bebendo todo o
devido ao estar em terra; ou, pelo menos, era isso que pensavam os marinheiros da Surprise, pois eram de Shelmerston, uma pequena povoação muito mais próxima que
Portsmouth, porto onde o Berenice fundearia.

Aquele era o sentimento que se estendera até o mais elevado, sobretudo no castelo de popa da Surprise, onde uma lufada de vento inusualmente violenta cortara a maré
ao repontar e havia empapado a todos os que estavam ali. Sob o convés, na cabine, os dois capitães permaneceram inalteráveis quando o Berenice se abateu indeciso
com as maiores e gáveas, carregando um monte de água e caindo para sotavento com sua torpeza habitual, enquanto que a Surprise mantinha sua posição exata a popa,
sem necessidade de nada mais que as gáveas duplamente rizadas e a bujarrona meio solta, e a Ringle, inclusive menos que isso. Ambos os capitães sabiam que os marinheiros
faziam todo o possível, e uma longa carreira profissional não só lhes havia mostrado a aceitar o inevitável, como a não se irritar por isso. Muito antes de fazer
as medições com a sonda, Heneage Dundas tinha sugerido que a Surprise não devia levar em conta o costume naval e se separar de seu barco, avaçar e navegar com toda
a rápidez que quisesse.

- Não estamos com pressa - replicou Jack enrugando o cenho. Um barco que levasse despachos de guerra estaria desculpado de guardar as formas e mostrar-se educado
nesse aspecto. Inclusive teria se proibido de demorar um só minuto. E assim ficou a coisa. Naquele momento, depois de que Dundas comesse e jantasse a bordo da fragata,
permaneciam sentados frente a uma senhora jarra cheia de vinho de vinho do porto, atentos pela metade aos golpes pouco fortes do mar primeiro na amura de bombordo
e, mais tarde, na de estibordo, depois que o barco virara para empreender outra bordejada. A lâmparina que pendia dos vaus se sacudia sobre a arca grande, iluminando
de forma intermitente um tabuleiro de gamão apto para o alto mar, no qual as fichas se fixavam com pinos de madeira, e que portanto ainda conservava a posição da
provável vitória de Jack Aubrey.

- Vai ganhá-la - disse Dundas antes de esvaziar o copo. - Será sua com todos seus apetrechos e sua amarração.

- Que amável de sua parte, Hen - disse Jack. - Obrigado de todo coração.

- Mas escute o que lhe digo, Jack: tem uma sorte endemoninhada. Não tem direito nem de salvar a pele.

- Devo admitir que foi muito concorrida - admitiu Jack com modéstia; então, depois de uma pausa, riu e disse: - Recordo-me de ouvir-lhe dizer essas mesmas palavras
no velho Bellerophon, antes da batalha.

- Foi mesmo - exclamou Dundas. - Foi mesmo. Meu Deus, passou muito tempo desde então.

- Ainda conservo o sinal - disse Jack. E ao descobrir seu moreno antebraço mostrou uma comprida e pálida cicatriz.

- Que lembranças - disse Dundas, e entre ambos, enquanto apuravam o vinho do porto, recordaram aquela história e todos os minuciosos detalhes que afloravam a sua
memória. Haviam se entretido com o mesmo jogo quando jovens, quando serviram sob o comando do condestável no navio de setenta e quatro canhões Bellerophon, destacado
nas Índias Orientais. Jack também ganhara naquela ocasião graças a sua infernal sorte, mas Dundas exigiu que lhe desse a revanche e voltou a perder, de novo devido
a um duplo seis. Trocaram-se palavras inconvenientes, como trapaceiro, farsante, sodomita, tonto e condenado marinheiro recruta. E como golpear-se a soco limpo subidos
na arca grande (a forma habitual de resolver tais desacordos na maioria de barcos) estava estritamente proibido a bordo do Bellerophon, combinou-se que, por não
poder tolerar de jeito nenhum semelhante linguagem entre cavalheiros, teriam que bater-se em duelo. Durante a guarda da tarde, o imediato, para quem um convés esfregado
cuidadosamente com pedra arenito constituia a maior felicidade, descobriu que o barco estava a ponto de ficar sem elas e despachou ao senhor Aubrey, a bordo do cúter
azul, para buscá-la em uma ilha na qual convergiam duas correntes e onde o grão não só era excelente, como também mais regular. O senhor Dundas o acompanhou, levando
consigo dois alfanjes recém afiados envolvidos em lonita, e quando enviaram os marinheiros que desembarcaram com eles para trabalhar com as pás, ambos se retiraram
para o amparo de uma duna, desenbrulharam o fardo, cumprimentaram-se com toda a seriedade possível e arremeteram um contra o outro. Meia dúzia de passes, o entrechocar-se
do aço, e quando Jack gritou "Mas o que você fez, Hen?" Dundas observou fixamente o sangue que brotava a jorro limpo, começou a chorar e fez em farrapos sua própia
camisa para vendar a ferida tão bem como pôde. Ao voltar a bordo do desgraçado e ocioso Bellerophon, este estava por sorte a mercê de um mar calmo. Suas explicações,
que diferiam muito entre si e que em ambos os casos eram tão pouco convincentes que ninguém pôde acreditá-las, foram desconsideradas e seu capitão surrou com severidade
seus traseiros desnudos.

- Como uivamos - lembrou Dundas. - Seus uivos eram mais agudos que os meus - disse Jack. - Muito parecidos aos de uma hiena.

Fazia um bom momento que Killick, o despenseiro do capitão, havia se retirado, de modo que Jack se serviu de um pouco mais de vinho do porto. Depois de beber durante
um momento, percebeu que curiosamente Dundas estava cada vez mais silencioso.

Ouviram-se no convés as ordens e o apito do contramestre, e a Surprise virou por avante para receber o vento pelo lado de estibordo, suave como a seda, sem contar
com mais marinheiros que os que estavam de guarda.

- Jack - disse finalmente Dundas, em um Tom de voz que aquele já ouvira antes, - talvez este lhe pareça um momento inapropiado, pois aqui estou derramando seu precioso
vinho... O caso é que mencionou que fez algumas estupendas presas no Pacífico.

- Isso mesmo. Como bem saberá, solicitaram que atuássemos na qualidade de navio de corso, e como não podia desobedecer minhas ordens, não só capturamos alguns baleeiros
que vendemos na costa, como também um estupendo barco pirata, carregado até o topo com tudo o que havia roubado de uma vintena de barcos, ainda que talvez fossem
duas vintenas.

- Enfim, vou dizer do que se trata, Jack. A areia da ampulheta se consome, e me atreveria a dizer que já percebeu isso. - Jack assentiu, observando penalizado o
atordoamento que se desenhava no rosto de seu amigo. - Quer dizer, é muito provável que o tempo aclare e o vento role para o oeste e mesmo para o sudoeste. Amanhã
ou depois de amanhã navegaremos águas acima pelo Canal, e depois teremos que nos separar. Você rumará para Shelmerston e eu irei direto para Pompey{2}. - Tudo isto,
ainda que fosse sumamente verdade, exigia toda a concentração que um fosse capaz se pretendesse que tivesse sentido, mas Dundas parecia incapaz de seguir adiante.
Baixou a cabeça, gesto digno de lástima tratando-se de um comandante tão distinto.

- Talvez leve a bordo uma moça que preferiria desembarcar em outro lugar - aventurou Jack.

- Não, desta vez não - disse Dundas. - Não. Jack, o assunto é que assim que o Berenice sinalize seu número mediante as bandeiras e se saiba em Portsmouth que está
ao alcance da mão, os aguazis sairão de suas tocas para prender-me assim que ponha um pé em terra. Prender-me-ão por minhas dívidas e me conduzirão à prisão de devedores.
Suponho que não poderia emprestar-me mil guinéus, verdade? É uma autêntica fortuna, eu sei, e me envergonha ter que lhe pedir.

- Certamente que sim. Como já lhe disse, sou assombrosamente rico, tanto que alguns me chamam de Creso. Mas mil guinéus será suficiente? A quanto ascende a dívida?
Seria uma lástima perder seu barco por...

- Oh, será mais que suficiente, eu lhe aseguro, e não sabe quanto lhe agradeço, Jack. Neste momento não me atrevo a tratar este assunto com Melville. Seria distinto
se me apreciasse tanto como lhe aprecia, mas da última vez que me acompanhou à saída me acusou de ser um maldito mexeriqueiro de segunda, e me condenou a essa vil
viagem a Nova Holanda a bordo do Berenice. - O irmão mais velho de Heneage, lorde Melville, estava ao comando do Almirantado, de modo que podia fazer tais coisas.
- Não. A sentença exige um pagamento de quinhentas e pouco. Lamento dizer que se trata da mesma jovem, ou melhor do infame de seu procurador. Mas mesmo assim, pese
a sentença e a influência a que possam recorrer, estou seguro de que mil guinéus cobrirão folgadamente a multa.

Falaram durante um tempo sobre as prisões por dívidas, os aguazis, as prisões onde se encerrava os caloteiros e coisas similares com um conhecimento profundo e íntimo
do tema, e ao cabo de um tempo Jack admitiu que bastaria um milhar de guinéus para livrar seu amigo do apuro, até que pudesse receber o pagamento que lhe deviam
já fazia tempo e visitar ao agente que se encarregava de administrar suas propriedades na Escócia. Com um navio tão lento, pouco navegável e desafortunado como o
Berenice não havia possibilidade alguma de obter dinheiro de butim, sobretudo tendo em conta aquela travessia tão pouco promissora que já estava em seu fim.

- Como me deixa feliz, Jack - disse Dundas. - Quando desembarque, com uma letra de crédito de Hoares, pois recordo perfeitamente que tem o dinheiro em Hoares, será
para mim como o escudo de Ayax.

- Nada como o ouro para satisfazer a um procurador.

- Jamais o ouvi dizer nada mais acertado, querido Jack. Porém, ainda que tivesse ouro (não me dirá que tem ouro de verdade, Jack, ouro inglês?), levaria horas para
contar mil guinéus.

- Pelo amor de Deus, Hen. Tom, Adams e eu passamos toda esta manhã e boa parte da tarde contando e pesando moedas como uma corja de agiotas, enchendo as bolsas para
quando façamos a divisão final depois de jogar a âncora em Shelmerston. O doutor também colaborou, mordendo alguma moeda ou outra das pilhas que fazíamos e marcando
todas as moedas antigas, pois acho que havia algumas de Júlio César e Nabucodonosor, e também apertou contra seu peito uma moeda irlandesa chamada "pistola de Inchiquin",
rindo comprazido, mas nos fez perder a conta e me vi obrigado a rogar-lhe que fosse tomar vento fresco, longe, muito longe. Quando se foi selecionamos e contamos,
selecionamos, contamos e pesamos, e conseguimos terminar antes da hora do jantar. Essas enormes bolsas que vê aí à esquerda do caixote de câmara, na janela de popa,
contêm cada uma um milhar de guinéus. São parte do butim do barco; as bolsas menores contêm mohures, ducados, luises de ouro, joes, e toda sorte de ouro estrangeiro
por um valor total de quinhentas cada uma; e as arcas grandes dispostas ao longo do costado e abaixo, no paiol do pão, contêm sacas de cem com prata, também ao peso.
Há tanto dinheiro a bordo que o barco sofre um bom emborno a popa, e me alegrarei muito quando tenha conseguido pô-lo em um bom lugar seguro. Pegue um dos de mil
guinéus da esquerda. Posso conseguir a soma em um momento se faltar; além disso, em prata lhe pesaria muito para levá-la pelas ladeiras.

- Que Deus lhe bendiga, Jack - agradeceu Dundas, sopesando a bolsa na mão. - Eu diria que pesa mais de catorze libras, ah, ah, ah! - E entre seus risos pôde se ouvir
o soar das quatro badaladas, quatro badaladas da guarda de prima. A elas seguiu de imediato a troca de ordens e demais gritos distantes no convés. Contudo, não eram
os ruídos de rotina que precediam à virada, de modo que os capitães aguçaram o ouvido, coisa que Heneage fez com a bolsa na mão, como se estivesse a ponto de servir
o pudim de Natal. Pouco depois, um guarda-marinha empapado até os ossos e com um sóbraço irrompeu na cabine e informou aos gritos:

- Rogo que me perdoe, senhor, mas o senhor Wilkins deseja que lhe transmita suas saldações e que lhe informe de que há um barco a umas duas milhas a barlavento,
um setenta e quatro canhões conforme sua opinião, um navio de dois conveses em todo caso; diz que não lhe agradou como respondeu ao sinal de inteligência.

- Obrigado, senhor Reade - disse Jack. - Subirei imediatamente ao convés.

- Seria tão amável de despertar à dotação de minha falua? - pediu Dundas ao tempo que guardava a bolsa na camisa, para depois abotoar o colete que a cobria. Quando
Reade desapareceu correndo, acrescentou: - Muito obrigado, Jack. Devo voltar ao meu barco. Arrebate a Surprise e passe a popa do Berenice até situar-se a sotavento
- ordenou, pois era o capitão de mais antiguidade, - que por mais desfalcado de dotação que esteja meu navio, acho que juntos podemos enfretar qualquer setenta e
quatro canhões que esteja flutuando.

Fora, no frio e úmido castelo de popa, o olhar de Jack se acostumou à relativa escuridão enquanto Dundas subia com torpeza à falua que içavam do pescante, sem afastar
a mão de seu estômago. Escuridão relativa, já que pelo momento uma lua velha e encurvada expelia luz suficiente para que, apesar das nuvens baixas, pudesse se distinguir
um borrão branco a barlavento, borrão que se converteu, ao observá-lo através do luneta, em um barco com gáveas, maiores e uma fila dupla de portalós iluminadas.
Contudo, foi o sinal que empregava o que mais chamou sua atenção, pois este não coincidia com a resposta ao sinal de inteligência que distinguia um barco aliado
de um inimigo: era formada por uma réstia de três lanternas acesas e a luz situada no alto pestanejava de forma constante. Mas as luzes deviam ser quatro e não três.

- Respondi "Não compreendemos seu sinal", senhor - informou Wilkins, - mas se mantém em seus três.

- Apite para preparativos de combate e largue trapo para fechar sobre o Berenice - disse ao tempo que assentia.

- Todos ao convés e apite para preparativo de combate - rugiu Wilkins ao segundo do contramestre, que estava despistado. - Aí de proa, ô de proa! Largar o estai
do trinquete e marear essa bujarrona!

A Surprise contava com uma dotação muito disciplinada. Participara de muitos combates no mar, e não por isso se descuidara da prática e adestramento dos homens em
todo tipo de contingências; em poucos minutos, podia passar de um barco em calma, onde três quartos do contingente cochilavam, para um barco em pé de guerra, iluminado
até os topes e com as bocas dos canhões para fora das portalós, as macas colocadas nos anteparos, o paiol de pólvora aberto e protegido com anteparos adicionais,
e todos e cada um dos homens em sua posição designada, junto ao restante de seus companheiros, dispostos a travar batalha ao comando de seu capitão. Mas não podiam
fazê-lo em silêncio, e o redobre do tambor, o estrondo abafado de quatrocentos pés e o chiado das rodas de carreta despertaram Stephen Maturin do sono profundo e
promissor em que se achava.

Havia se despedido de Jack e Dundas bastante cedo ao sentir-se um estorvo no fluxo de suas recordações. Em qualquer caso, os relatos tão detalhados da guerra naval
lhe afundavam em um mar de lágrimas ao cabo de uma hora. Fizeram os brindes correspondentes ao sábado pelas esposas e amantes, e Dundas, tão educado como sempre,
havia proposto um especial por Sophie e Diana com a taça cheia até a borda, que beberam de um só gole. Stephen, uma criatura abstêmia e exígua que apenas pesava
cento e vinte e seis libras, excedera em muito sua dose habitual de dois ou três copos e, ainda que desde o início pretendia retirar-se para a cabine situada na
coberta dos alojamentos, que raras vezes usava para dormir e à qual tinha direito por ser o cirurgião de a bordo, acabou na espaçosa e ventilada cabine que costumava
compartir com Jack, depois de fazer as rondas de rigor pela enfermaria. Estava disposto a ler, mas o vinho, que não o embebedara, mas afetara até certo ponto sua
capacidade de concentração, e como o livro que lia, Exame de Pyrrhonisme, de Clousaz, requeria de mais atenção, teve que largá-lo ao finalizar um capítulo, consciente
de que não tinha entendido nada do que se dizia no último parágrafo. Deitou-se na maca e, em um abrir e fechar de olhos, seu pensamento parou em sua esposa e filha.
A primeira era uma jovem chamada Diana que tinha o cabelo negro e os olhos azuis, esplêndida amazona. A segunda, Brigid, a menina de que tanto sentia saudade mas
a quem ainda não conhecia. Este sonho era muito normal nele, e não requeria em absoluto a menor concentração, muito pelo contrário, pois consistia em uma série de
imagens, amiúde imprecisas, amiúde intensamente vívidas, de conversações, reais ou imaginárias, e de um senso indefinido da felicidade presente. Contudo, essa noite,
pela primeira vez em toda a travessia - nada mais e nada menos que uma circunavegação completa, por não mencionar o sucedido em terra, que foi muito, - havia uma
sutil diferença, uma mudança de tonalidade. Informara-se que em qualquer momento podiam "picar a sonda", expressão que tinha um ar arrepiante, algo afastado de seu
significado. O fato em si transformava a imprecisão do que estava por vir em um presente quase imediato. A partir desse momento não era tanto questão de balançar-se
em braços de uma felicidade pretérita, mas de refletir sobre a realidade que enfrentaria em questão de alguns dias, ou mesmo menos se soprasse um vento favorável.

Certamente esperava com uma impaciência que jamais sentira o momento de reencontrar-se com Diana e conhecer a Brigid, e assim fora já fazia milhares e milhares de
milhas. Mas agora sua ansiedade se via embaçada por um receio que era incapaz de nomear, ou pelo menos não queria fazê-lo. Estavam separados desde que empreendeu
aquela viagem tão comprida. Soubera do nascimento de sua filha e de que Diana comprara Barham Down, uma mansão grande e afastada com excelentes estábulos, bons pastos,
terreno de sobra para galopar e generosas extensões de campo para os cavalos árabes que ela queria criar; mas além disso, praticamente não sabia de nada mais.

Passaram-se anos inteiros, e os anos têm má fama. Alguns versos de Horácio afloraram em sua mente:

 

Singula de nobis anni praedantur euntes;

eripuere iocos, venerem, convivia, ludum...

 

E por um instante quis dar uma tradução tolerável em inglês:

 

O passar dos anos nos privam de nosso deleite,

do alvoroço e do amor carnal, primeiro de um

e depois de outro, do jogo, do festejo...

 

Mas não lhe convenceram nem um pouco e abandonou a intenção.

De qualquer maneira a situação não era tão desesperada, pois ainda que Vênus pudesse ser um planeta distante e sua luz mortiça, ele ainda desfrutava de uma refeição
alegre em companhia de seus amigos e de uma partida encarniçada de uíste ou cinquillo{3}. Certamente que mudara de certa forma, disso não cabia a menor dúvida. Por
exemplo, cada vez estava mais convencido de que o estudo apropriado do gênero humano dependia do estudo do homem em si e não da atenta observação de coleópteros
ou aves.

Mudara, sim, e provavelmente mais do que podia imaginar. Era inevitável. Como encontraria a Diana? Como se comportariam um com o outro? Ela havia se casado com ele
sobretudo por amizade (ela gostava muito dele), talvez, de algum modo, por compaixão, posto que ele a amava já fazia muito tempo. Ele não era dessa tipo de pessoas
a que se agrada olhar e, de um ponto de vista físico, nunca fora um grande amante, fator este ao qual haviam contribuído anos de vício em ópio, que não fumava nem
ingeria, mas que costumava beber em forma de uma tintura alcoólica de láudano até alcançar doses heróicas, tudo isso para aplacar o desespero que o invadia ao pensar
em Diana. Esta, por outro lado, não havia chegado a tomar nem sequer um dracma, nem um escrúpulo de ópio, nem nenhuma outra coisa que pudesse diminuir seu temperamento
ardente por natureza.

A medida que avançava a noite chegou a preocupar-se com o passado e ofuturo, como costuma suceder a quem permanece às escuras, carente de vitalidade e coragem. Minguadas
sua capacidade de raciocínio e o senso comum, amiúde se consolava pensando na existência de Brigid, laço de união entre ambos. Outras vezes se dizia que pensar em
Diana como mãe era completamente absurdo, e ansiava dispor de sua velha amiga a tintura para relaxar o tormento ao que submetia a sua mente. Dispunha de uma alternativa
nas folhas da coca, muito apreciadas no Peru pela pausada euforia que produziam ao mastigá-las, mas tinham a desvantagem de tirar o sono, e o sono era, dentre todas
as coisas, aquilo que mais ansiava no mundo.

De algum modo, em algum momento, deve tê-lo alcançado, posto que o eco do tambor que tocava para os preparativos de combate o arrancou das profundidades. Em muitos
aspectos seguia sendo um homem do interior apesar dos anos que passara no mar; ainda que se podiam observar certas características navais nele, quase todas guardavam
relação com as funções que desempenhava na qualidade de cirurgião naval. Mesmo antes de que sua mente fosse plenamente consciente da situação, suas pernas o levaram
a toda pressa para seu posto na enfermaria, situada abaixo, à direita da popa, na coberta dos alojamentos. De um lugar frio, úmido e asfixiante, um buraco triangular
e fétido, convertera-se em uma enfermaria em toda regra, de modo que apenas teve que pôr um avental para ficar pronto para desempenhar seu trabalho. Ao chegar ali
encontrou seu assistente, um homem originário de Munster, forte, grande e praticamente monolíngüe, chamado Padeen, que nesse momento juntava duas arcas grandes sob
uma lanterna para que fizessem as vezes de mesa de operações.

- Que Deus e a Virgem Maria estejam contigo, Padeen - cumprimentou em gaélico.

- Que Deus, a Virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, senhoria - respondeu Padeen. - O senhor acredita que haverá combate?

- Sabe Deus. Como se encontram Williams e Ellis?

Referia-se a dois pacientes que ocupavam suas macas a estibordo da enfermaria, a quem Padeen havia vigiado toda a noite. Ao que parece, haviam brigado, armados com
balas de ferro maciço que pegavam com pinçotes para fazê-las arder ao vermelho vivo e afundá-las depois em cubas de piche ou breu, de modo que a substância se fundisse
sem risco de provocar um incêndio.

- Agora estão sóbrios, senhor. E arrependidos, pobres criaturas.

- Após prepararmos tudo irei dar um espiada - disse Stephen enquanto preparava as serras, bisturis, ligaduras e torniquetes. Fabien, seu ajudante, chegou à enfermaria
disposto a pôr as mãos na massa, seguido por duas meninas, Emily e Sarah, que a julgar por seu aspecto ainda seguiam adormecidas e cuja pele teria o tom rosáceo
própio do sono se não fossem tão negras. Encontraram-nas fazia muito em uma ilha de Melanésia, cujos habitantes tinham morrido vítimas de uma praga de varíola levada
por um baleeiro que ia de passagem. Dado que então estavam muito enfermas e famintas para cuidar de si mesmas no ossuário que tinham por povoado, Stephen levou-as
para o barco. Não presenciavam a horrível cirurgia que em ocasiões se via obrigado a praticar, mas sim a destreza de suas pequenas e delicadas mãos na hora de vendar.
Encarregavam-se daqueles a quem acabavam de intervir e dos convalescentes; também eram muito úteis ao doutor Maturin durante suas freqüentes dissecações de animais,
pois não se melindradas nem um pouco diante disso. Esqueceram completamente o idioma da ilha Sweeting, salvo quando contavam em voz alta ao saltar, e, conforme a
situação o requeresse, falavam um perfeito inglês carente de juramentos e maldições quando estavam no castelo de popa, ou uma versão mais mundana e empática para
quando tratavam com os marinheiros.

Todos dispuseram o material que poderiam necessitar durante e depois de um combate: linhas, bandagem, ripas, e também o instrumental puramente cirúrgico, como por
exemplo retratores, bisturis, lancetas e suas inflexíveis companheiras, as mordaças e as amarras forradas de couro. Quando tudo isto estava preparado em sua devida
ordem, o mais essencial à mão do cirurgião e este enfronhado em seu avental, relaxaram e prestaram toda a atenção do mundo ao que podia estar ocorrendo no convés,
tentando apreender algum som que pudesse permitir-lhes saber o que sucedia apesar do estrondo da água ao golpear contra os lados do barco, da voz do redemoinho ao
partir a barlavento do leme e da reverberação da tensa exárcia transmitida pelo própio casco. Mas não ouviram nada, e diminuiu a sensação de urgência que sentiam.
As meninas se sentaram na coberta, longe do intenso anel de luz que a lanterna expelia, para jogar em silêncio um jogo no qual uma mão podia simbolizar uma folha
de papel, uma pedra ou uma tesoura. Stephen se aproximou da cabine contígua para visitar seus pacientes, a quem perguntou como se achavam.

- Às mil maravilhas, senhor - responderam antes de agradecer-lhe de todo coração.

- Alegra-me muito ouvir isso - disse. - Ainda que tenham sofrido duas fraturas limpas e tido muita sorte ao serem imobilizados imediatamente, passará um tempo antes
de que possam subir na exárcia ou bailar sobre a grama, se é que chegaremos ao porto, que Deus o queira.

- Amém, amém, senhor - responderam em uníssono.

- Mas como chegaram a ser tão imprudentes e irrefletidos a ponte de se golpearem mutuamente com essas condenadas balas com pinçotes?

- Foi por diversão, senhor, como fazemos amiúde, e não pretendiamos nos machucar. Um tem que atacar e o outro se esquivar, e vamos nos revezando.

- Jamais tinha ouvido falar de prática tão terrível em todos os anos que estou no mar.

Os pacientes estavam dóceis como cordeiros e evitaram trocar olhares. Foi Ellis quem disse:

- Tudo depende do barco, senhor. Nós costumávamos jogar amiúde no Agamenon; e meu pai, que fazia parte da brigada do carpinteiro no velho George, tinha uma conta
pendente (coisa séria) com um do castelo de proa que o havia chamado de...

- Que o havia chamado de que?

- Preferiria não dizê-lo, senhor.

- Murmure-me ao ouvido - disse Stephen ao mesmo tempo que se inclinava até sua altura.

- "Ninfa", senhor... - sussurrou Ellis.

- Verdade que fez isso, o muito cachorro? E como terminou o caso?

- Verá, senhor, iam se enfrentar com as balas agarradas aos pinçotes, como lhe disse, e é que todo o castelo de proa estava de acordo em que era o mais correto,
e meu pai lhe deu tal surra que tiveram que amputar-lhe a perna nessa mesma noite porque foi feita em pedassos. Mas ao final o percalço resultou toda uma benção
para aquele pobre sodomita. Ao ter só uma perna, seu capitão, o honorável Byron, que sempre foi amável com seus homens, obteve para ele um nomeação de cozinheiro,
e viveu até que um dia se afogou na costa de Coromandel.

- Senhor - gritou Reade no dintel da porta, com um pote de café na mão, pote que cobria com um tecido, - o capitão lhe envia isto com seus cumprimentos, para alegrar
seu ânimo e compensar os incômodos. Afinal de contas, não haverá combate. O navio a barlavento resultou ser o Thunderer, de setenta e quatro canhões. Cingiu ao vento
ao não gostar de nosso aspecto e, ao fazê-lo, alguns dos oficiais mais brilhantes que o governam, refiro-me aos que são incapazes de contar além de três, colocaram
esse sinal falso, o que faltava uma lanterna.

- Não deveriam açoitá-los a bordo de todos e de cada um dos barcos da frota?

- Temo que não, senhor. Dizem que têm mais antiguidade que nós, o que é verdade. Lamentam todas as inconveniências que tenham nos causado e requerem a presença do
capitão Dundas, do capitão Aubrey e do doutor Maturin para tomar o café da manhã a bordo. Meu Deus, senhor, não gostaria de estar na pele do tenente encarregado
dos sinais, a quem com toda segurança não ascenderão em breve ao cargo de almirante.

 

A maioria dos sinais que se trocaram, e dos que Reade informou, foram decifrados com dificuldade, e em qualquer caso, devido a uma densa chuva a inteligência se
transmitiu lenta e laboriosamente mediante o uso de lanternas dispostas de formas diversas. Contudo, o convite para desjejuar sim resultou ser certo, pois se repetiu
com as primeiras luzes do amanhecer mediante as bandeiras, e inclusive um guarda-marinha empapado até os ossos se aproximou em um bote para repeti-la. Os capitães,
acompanhados pelo doutor Maturin, chegaram no barco justo antes de dar as oito badaladas da guarda da manhã, famintos, gelados, molhados e indignados.

Seu anfitrião, um homem mais velho chamado Fellowes, corria mais perigo que Reade quanto à possibilidade de que o ascendessem ao cargo de almirante, pois seu nome
figurava entre os primeiros da lista de capitães de navio, de tal forma que a fornada seguinte de almirantes que veriam seu nome escrito na lista de oficiais da
Armada provavelmente o incluísse na qualidade de contra-almirante da esquadra azul, a menos que por alguma terrível desgraça o destinassem à amarela, que não pertenecia
a nenhuma esquadra em concreto e, portanto, sem comando. Contudo, cabia a possibilidade de que se desse tão inominável desventura, afinal de contas. O desgraçado
tenente de sinais do Thunderer, que agora estava confinado em sua cabine, despertara uma ira perfeitamente justificada nas pessoas de dois eminentes cavalheiros:
em primeiro lugar, o filho de um antigo primeiro lorde do Almirantado e irmão do atual ocupante de tão temida agência. Em segundo lugar, na pessoa de um conservador,
membro do parlamento por Milport. Talvez o capitão Aubrey não representasse mais que a um punhado de burgueses, todos eles arrendatários das terras de seu primo
(era uma cadeira familiar), mas seu voto na Câmara contava tanto como o de qualquer outro membro do país. A ira de qualquer um destes cavalheiros bastaria para tingir
de amarelo uma ascensão ao cargo de almirante. E também estava esse tal doutor Maturin, por quem havia perguntado com curiosa insistência o oficial do Almirantado
que viajava rumo a Gibraltar a bordo do Thunderer. Não era o mesmo cavalheiro a quem se recorreu em uma ocasião para que visitasse ao príncipe William?

O capitão Fellowes recebeu seus convidados com toda a cordialidade do mundo, com desculpas, explicações e uma mesa disposta para o café da manhã atapetada com toda
a sorte de artigos de luxo que só um barco que partiu há alguns dias do porto podia oferecer: bifes de novilho, costeletas de cordeiro, bacon, ovos preparados de
formas variadas (ao ponto, crocantes ou torrados), champinhons, salsichas de porco, bolo de novilho e presunto, manteiga e leite frescos, uma creme se couber mais
fresco, chá e chocolate. Tudo menos o café que os paladares de Jack e Stephen tanto ansiavam.

- Suponho que não terá tido ocasião de desfrutar do exemplar mais recente do Proceedings of the Royal Society. Tenho um em minha cabine, recém saído da imprensa,
e creia-me se lhe digo que me encantaria mostrá-lo - disse o senhor Philips, o oficial de casaca negra do Almirantado que se sentava junto de Stephen. Este lhe agradeceu
muito e admitiu que seria um prazer, diante do que o senhor Philips acrescentou: - Permite-me servir-lhe um desses arenques defumados, senhor? São insolitamente
gordurosos.

- O senhor é muito amável, senhor - disse Stephen, - mas acho que deveria conter-me. Não fará mais que aumentar minha sede. - E em tom moderado e confidencial (de
fato, se conheciam o bastante bem como para falar dessa forma), acrescentou: - Não vão servir nem uma só gota de café?

- Espero que não seja assim - respondeu Philips, que em seguida perguntou ao despenseiro que passava ao seu lado.

- Oh, não, senhor. Oh, não. Neste barco se serve chocolate, senhor, ainda que se tolera o chá.

- O café relaxa os nervos - opinou em voz alta, carregada de autoridade, o cirurgião do Thunderer. - Pessoalmente recomendo o chocolate.

- Café? - exclamou o capitão Fellowes. - Quer café cavalheiro? Featherstonehaugh, vá correndo ver se pode encontrar café na câmara dos oficiais ou no camarote dos
guardas-marinhas.

- O café relaxa os nervos - repetiu o cirurgião, ainda mais alto. - É um fato científico.

- Talvez o doutor deseje relaxar-se - propôs o capitão Dundas. - Pelo menos eu o desejo, depois de ter passado toda a noite em claro.

- Senhor McAber - disse o capitão Fellowes, dirigindo-se ao imediato, sentado na outra ponta da mesa, - seja amável de ajudar a Featherstonehaugh em sua busca.

Mas por mais que se esforçaram não houve maneira de encontrar aquilo que não existia. Stephen se desfez em protestos: não tinham por que ter-se incomodado, não tinha
a menor importância, em outra ocasião (se Deus quiser) desfrutariam de um café... E finalmente assegurou que uma xícara de cerveja cairia muito bem com o salmão
em escabeche. E quando finalmente se concluiu o tão incômodo desjejum, foi até a cabine de Philips para folhear aquele novo volume do Proceedings.

- Como se encontra sir Joseph? - perguntou quando estavam sós, referindo-se ao seu amigo íntimo e superior hierárquico, além de chefe do Serviço de Inteligência
Naval.

- Fisicamente está bem - respondeu Philips, - e talvez um pouco mais forte que quando o viu pela última vez, mas também está muito preocupado. Não me atrevo a aventurar
qual pode ser a causa. O senhor sabe quão cloisonné são estes assuntos para nós, se me permite usar esta expressão.

- Nós na Armada utilizaríamos o termo "Mampareado" - observou Stephen.

- Mampareado? Obrigado, senhor, obrigado. É um termo muito mais adequado. Sem dúvida, esta carta servirá para aclarar-lhe as coisas - acrescentou tirando-a do bolso
interno da casaca.

- Fico-lhe sumamente agradecido - disse Stephen, que deu uma espiada no selo negro com a âncora encepada do Almirantado. - Agora, peço que me faça um relato detalhado
do sucedido desde o último mês de fevereiro, quando recebi um informe de Inteligência dos espanhóis.

Philips baixou o olhar, refletiu durante alguns instantes e disse:

- gostaria de poder lhe contar uma história mais agradável. Há progressos na Espanha, certamente, mas no restante dos países sofremos reveses diplomáticos. A onde
quer que Bonaparte vá encontra recursos em forma de aliados, homens, dinheiro, barcos e apetrechos navais, coisa que nós não conseguimos, ou só conseguimos algo
superando toda sorte de dificuldades. Enquanto nós estamos no limite de nossas forças, a ponto de ceder, ele parece indestrutível. O caso está tão espinhoso que
se se sai com a sua e consegue derrubar-nos de outro golpe, talvez tenhamos que submeter-nos a suas condições. "Permita-me falar da Europa, um país de cada vez..."

Falava do êxito dos agentes bonapartistas em Valaquia quando entrou um tenente para informar-lhes de que, quando o doutor estivesse com os capitães para embarcar
na falua do Berenice, seria dada a ordem para jogá-la ao mar. Ao que parece, estes já trocavam os cumprimentos de rigor a modo de despedida.

- E o vento está rolando - acrescentou o tenente. - Poderá subir a bordo sem empapar-se.

Talvez pudesse tê-lo feito, coisa difícil tendo em conta que tinha que descer aferrado a alguns cabos até o último degrau da escada do costado, e que a falua se
sacudiu até que o balanço jogou com o barco e o subiu com o mar, que nesta ocasião empapou o doutor até acima da cintura. Stephen chegou a bordo da Surprise molhado
até os ossos, como era de rigor. Também como era habitual, Killick - homem de rosto chupado, curtido e envelhecido, que também tinha um incrível humor de cachorro
por encarregar-se de cuidar tanto do capitão como do doutor, irrefletida parelha, além de suas roupas e extremidades - pegou-o e empurrou apressadamente para o interior
da cabine, gritando:

- Seus melhores calções! Além disso, seu único par de calções decentes. Tire também as cuecas, se é tão amável, senhor. Seque-se, não quererá se resfriar. E agora
dê-me isso e seque os pés também. Olhe quanto empapado está. Fique com esta toalha, que irei buscar algo razoavelmente seco. Pelo amor de Deus, onde está sua peruca?

- Está em meu peito, Killick - respondeu Stephen em tom conciliador. - Envolvi o relógio nela, e depois cobri a peruca com um lenço.

- A peruca no peito, a peruca no peito... - resmungou Killick enquanto recolhia a roupa molhada. - Pois não me parece disparatado.

- Há, Stephen, está aqui - disse Jack, que havia subido pelo costado muito mais rápido que seu cirurgião desde a cabine refeitório. - Você se...? - Então, ao recordar
que seu amigo não gostava que lhe perguntassem se havia se molhado, tossiu de propósito e seguiu dizendo em um tom alegre, incongruentemente alegre: -... se deu
conta do paupérrimo que foi o café da manhã? Que cerveja pequena tinham, e as costeletas de cordeiro eram pura gordura, e ademais servidas em bandeja fria. Uma bandeja
fria, pelo amor de Deus. Recordo-me de ter comido melhor em um barco holandês que se dedicava à pesca do arenque de frente ao Texel. E não trazia nem uma condenada
carta, nem uma nota, nem sequer a minuta do alfaiate. Mas não importa. O vento está rolando. Agora sopra do norte nordeste, e se rolar mais duas quartas, mais ou
menos, chegaremos na quarta-feira a Shelmerston pese a todos os esforços que o Berenice possa fazer para evitá-lo.

- Algum motivo em especial para ansiar o correio, irmão?

- Certamente que sim. Quando nos aproximamos de Fayal para a aguada, trocamos nosso número de identificação com o Weasel quando este franqueava a ponta com destino
à Inglaterra. Estava convencido de que informaria de nossa presença ao chegar ao porto, e esperava receber notícias. Mas não foi assim, nem uma só palavra, ainda
que Dundas tinha um senhor pacote. Um senhor pacote, ah, ah, ah! Oh, Deus, Stephen - continuou ao entrar por fim na cabine, sem que lhe impedisse o fato de encontrar
Maturin semi-nú, assim como a nudez tampouco havia suposto um impedimento para seus antepassados, encarnados em Adão, homem livre de pecado. - Mas peço que me perdoe.
Pelo visto lhe interrompi - disse ao ver pelo rabo do olho a carta que Stephen tinha na mão.

- Nada disso, meu amigo. Diga-me o que lhe faz tão feliz, apesar da decepção que teve.

Jack se sentou perto dele, e em um tom de voz que tinha por objeto evitar que Killick, a quem não escapava nada, pudesse ouvir o que dizia - vã esperança onde as
tivesse, - respondeu:

- A carta de Heneage incluía um passagem sobre mim que não podia ser mais amável. Dizia Melville que estava muito contente de saber que a Surprise estava a ponto
de entrar em águas costeiras, e que sempre me tivera por pessoa magnânima. Essas foram suas palavras, Stephen: "pessoa magnânima", e tudo por aceitar um comando
tão irregular, apesar do quão bem eu o usei, e que agora que tem a oportunidade de expressar sua opinião com respeito a meus méritos (meus méritos, Stephen, ouviu
isso?) aproveitará para oferecer-me uma esquadrilha que está reunindo, que partirá de cruzeiro diante das costas da África Ocidental com algumas corvetas muito marinheiras,
e talvez três fragatas e um par de navios de setenta e quatro canhões, para o caso de se produzir o que denominou "certas eventualidades". Nossa missão consistirá
em interceptar navios negreiros, coisa que lhe agradará, Stephen. Um comodoro de primeira classe, Stephen, com um galhardetão{4} de rabo de galo, um capitão sob
meu comando e um tenente de bandeira, não como naquela esforçada campanha que fizemos em Mauricio, quando tive que ascender por méritos própios fazendo de burro
de carga de segunda classe. Oh, ah, ah, ah, Stephen! Não tenho palavras para expressar o feliz que sou. Poderei encarregar-me de Tom, que de outra forma não voltaria
a ter um comando; esta é sua única oportunidade. E conforme parece não há pressa alguma. Desfrutaremos de um mês, talvez mais, para ficar em casa, o bastante para
que Sophie e Diana se encham de nós. Ah, ah! Primeiro Shelmerston, depois desembarcamos e, a seguir, pegamos o carro postal no Crown... Levarão uma pequena surpresa
em Ashgrove quando nos virem entrar pela porta! Suponho que deseja tomar um bom café, não?

- Com muito prazer. Jack, permita-me felicitar-lhe de todo coração por tão esplêndido comando - disse apertando sua mão, - mas com respeito a Shelmerston, verá,
escute, Jack - acrescentou Stephen, que apenas necessitara de uma espiada para decifrar a mensagem em código de sir Joseph, - tenho que aproximar-me da cidade sem
perder um minuto. Terei que esquecer-me de Shelmerston por enquanto e subir a bordo do Berenice. Não só porque vai para lá (enquanto que você teria que se desviar
para cobrir depois uma distância considerável), mas porque somente um bruto e um miserável seria capaz de desembarcar depois de semelhante ausência, beijar uma bochecha
ou duas e subir depois em um carro postal para desaparecer de novo. Contudo, em Plymouth poderei desembarcar sem passar por isso, já que ali não me espera nenhuma
bochecha a beijar.

Jack o olhou submisso, compreendeu que não poderia lhe fazer mudar de opinião e gritou:

- Killick! Vamos, Killick!

- E agora o que foi? - replicou Killick, que a julgar pela distância da qual soava sua voz se achava surpreendentemente perto.

- Acenda o fornilho e esquente uma panelinha de café. Ei, ouviu-me?

- Às ordens, senhor. Um panelinha de café.

De fato a ordem não lhe pegava de surpresa: o fervedor estava ao vermelho, e o grão recém moido. Ao cabo de alguns minutos apareceu o elegante pote refulgente, inundando
toda a cabine com o aroma que expelia. De todas as virtudes possíveis em um homem, Preserved Killick só possuía duas: extrair brilho da prataria e fazer o café.
Contudo, estas duas virtudes alcançavam tal perfeição em sua pessoa que, para quem gostava de ter a prataria brilhante e desfrutar de um café rápido, torrado como
poucos, bem moído e fervente a não poder mais, compensavam com acréscimo seus inumeráveis vícios.

levaram as xícaras para a cabine refeitório e se sentaram em um banco acolchoado (composto, de fato, por alguns baús alinhados) que percorria a popa abaixo das janelas.

- Não sabe quanto o lamento - disse Jack. - Nossa volta ao lar não será a mesma, não, muito pelo contrário. Ainda que você saberá o que faz, certamente. Mas quando
se referia a isso de não perder um minuto, dizia em sentido literal?

- Isso mesmo.

- Então, por que não sobe a bordo da Ringle? Ainda que o vento não role outra quarta, poderá navegar direitinho para Pompey tal e como está, sem ter que dar bordejadas,
e chegará ao porto pelo menos duas vezes mais rápido que esse pobre conjunto de vergas que conformam o Berenice. - Ao reparar na expressão maravilhada de Stephen,
serviu-lhe outra xícara de café e acrescentou: - Não lhe havia dito, não tive ocasião ontem à noite nem esta manhã, com esse asno, com esse impotente asno empenhado
em desempatar, mas ganhei de Heneage depois do jantar: com um duplo seis quando estava a ponto de ganhar-me. Já tinha metido seis fichas, mas ele tardou em voltar
a fazê-lo, e graças a isso ganhei. Tom, Reade e Bonden, que a governam à perfeição, levar-lhe-ão Canal acima, e de minha parte acrescentarei alguns marinheiros que
não pertençam a Shelmerston.

Stephen realizou os protestos pertinentes, ainda que foram poucos, posto que estava acostumado tanto com a generosidade da Armada como com a rapidez na tomada de
decisões. Jack devorou o conteúdo de outra xícara de café, e se apressou a pedir aos gritos a canoa.

Sozinho na cabine refeitório, Stephen pensou na mensagem de sir Joseph. Nela lhe pedia que fosse a Londres sem perder um só minuto, e o fazia com uma parcimônia
de palavras desconhecida nele. Joseph Blaine odiava a prolixidade quase tanto como odiava a Napoleão Bonaparte, mas a extremada secura do bilhete deixou Stephen
perplexo até que lembrou o sucedido tantas outras vezes no passado, virou um quarto da folha ao contrário, e ali, no canto inferior esquerdo, encontrou o caractere
n escrito a lápis, tênue, o que podia ter muitos significados. Neste caso se referia ao Comitê, órgão composto pelas principais figuras do Serviço de Inteligência
e do Ministério de Assuntos Exteriores, que o tinham enviado ao Peru para impedir, ou, isto é, para adiantar-se aos franceses em seus planos de conquistar a simpatia
dos cabecilhas do movimento de independência da Espanha. Estava claro que desejavam saber o que havia conseguido e, com toda probabilidade, esta prontidão supunha
que experimentavam algumas dificuldades à hora de mostrar o assunto sob uma luz favorável, ou mesmo tolerável, ante seus aliados espanhóis. Repassou a longa e intrincada
cadeia de fatos que moldariam seu relato, e enquanto o fazia observou a esteira da fragata, esteira que, considerando-se bem, alcançara uma enorme comprimento.

Em essas estava quando Tom Pullings, o capitão nominal do barco - nominal devido ao incompetente plano de disfarçar a Surprise de barco corsário sob o comando de
um oficial sujeito a meio soldo para enganar os espanhóis, - entrou e exclamou:

- Ah, o senhor está aí, doutor. Que notícias! Não fará nem meia ampulheta que o Berenice se pôs em pairo e a sonda picou, e a Ringle atracar-se-á diretamente. Killick,
vamos, Killick! O doutor necessita de seu baú, tão rápido como lhe seja possível.

Apenas saiu pela porta para encarregar-se de suas coisas, quando Jack voltou a bordo subindo pela escada de popa.

- Ah, está aí, Stephen! - exclamou. - Heneage pôs a pairar seu barco e picou a sonda: areia branca e pequenas conchas. Tudo está disposto a bordo da escuna. Ei,
Killick. Venha, Killick. O baú do doutor...!

- Aqui o tem, ou está cego? - protestou Killick, indignado a julgar pelo tom de sua voz. - Tudo amarrado e bem amarrado: a camisola em cima de tudo; cuecas; camisa
de batalha e os calções que deve pôr ao entrar por South Foreland; camisa branca e casaca paraLondres, e um par decente de calções negros; a melhor peruca dobrada
a mão direita, no canto dianteiro. - Caminhava pisando forte, e se podia ouvi-lo empurrar o baú de um lado para outro, ao mesmo tempo que gritava para seu companheiro:
- Mais brio aí, Bill!

- Com relação a minhas coleções... - disse Stephen, referindo-se aos barris e caixas que levava na bodega do barco e que continham inumeráveis espécimes, propriedade
de um apaixonado filósofo naturalista cujos interesses abarcavam desde os criptogramas até os grandes mamíferos, passando por insetos, répteis e aves (sobretudo
pelas aves), e que havia percorrido milhares de milhares de milhas, - eu lhe as confio por inteiro. Ah, que não se esqueçam das meninas. Conforme acredito, Jemmy
Ducks tem esposa no povoado.

- Tem o equivalente, ou pelo menos o tinha quando se fez ao mar. Espero que não creia que Sarah e Emily repararão na diferença. Seja como for, encarregar-me-ei de
alimentá-las bem até que regresse, porque dou por certo que voltará.

- Certamente. tomarei uma carro postal assim que possa. Lamentaria muito que permitisse que meu mergulhão do Titicaca se perdesse.

- Já temos a escuna pelo lado, se é tão amável, senhor - informou Bonden, timoneiro de Jack e velho amigo de ambos, a quem Stephen havia ensinado a ler.

- E Jack, peço que cumprimente afetuosamente a Diana de minha parte; asegure-lhe que se pudesse escolher...

- Vamos, senhor, se é tão amável - urgiu Tom Pullings. - A escuna está encostada ao costado, e o senhor não imagina como golpeia contra nosso casco com esta marejada
cruzada que temos hoje.

 

Conseguiram que chegasse a salvo a bordo da outra embarcação, seco e incólume, ainda que um pouco necessitado de fôlego depois de ter saltado, pese às advertências
de meia tripulação, quando a escuna subia na crista da onda. Não havia subido nela antes, quando era o barco de apetrechos do Berenice, apesar de tê-la contemplada
de vez em quando com certo interesse, em todas aquelas ocasiões em que os barcos estavam acalmados, seu própio esquife pintado de verde era infinitamente mais adequado
para se deslocar e explorar a superfície imediata do oceano e as modestas profundidades que estavam ao alcance de sua rede. Achou a sacudida muito mais brusca que
a da Surprise, seis ou sete vezes mais violenta, e se dirigiu cuidadosamente para a popa pelo bombordo, pelos amantilhos do maior, onde tinha a impressão de não
molestar a ninguém e pôde apoiar-se na junta situada pela popa. Entretanto, na proa, os marinheiros haviam aquartelado a bujarrona de tal maneira que a proa da Ringle
pudesse arribar. Ao cabo de um momento largaram o traquete, e depois a maior. Caçaram as escotas para bombordo, e a embarcação inclinou para sotavento, andando mais
e mais depressa. Stephen se agarrou como pôde. Sentia um estranho arrebatamento. quis sacar o lenço do bolso para cumprimentar seus amigos, mas antes de que pudesse
fazê-lo sem cair no convés, a escuna passou de largo junto ao Berenice, que parecia imóvel no mar, ainda que sua proa levantava um bom fluxo de ondas e ia coberto
de uma respeitável quantidade de lona.

Heneage Dundas se tirou o chapéu e gritou algo, amável e alegre sem dúvida, mas em qualquer caso suas palavras foram levadas pelo vento. Stephen levantou por sua
vez a mão para saudá-lo, gesto arriscado já que se viu arrastado do lugar ao que se agarrara e acabou topando, por sorte, com o musculoso Barret Bonden, que estava
na cana do leme, já que a escuna carecia de roda. Sem permitir que a Ringle se desviasse do rumo, Bonden agarrou ao doutor com a mão esquerda e lhe passou a Joe
Plaice, que o atou à groera{5} do leme, ainda que de modo que Stephen pudesse dispor de certa liberdade de movimento.

Ali teve ocasião de recuperar-se, e não tardou em colocar-se com certa comodidade, com o olhar voltado para a popa. Surpreendeu-se ao perceber que o Berenice e a
Surprise já tinham se afastado muito da escuna. Via as pessoas do castelo de proa como figuras distantes que diminuíam mais e mais a medida que as observava, indivíduos
irreconhecíveis com excessão de Davies, O Lerdo, que destacava-se com um colete vermelho. A essas alturas a Ringle havia mareado o velacho, pois, afinal de contas,
era uma escuna de gáveas, e com o vento a um largo por mais de duas quartas conseguiu andar com ânimo para regozijo de todos os marinheiros que iam a bordo. Duas
quartas para a escuna, ainda que era capaz de encostar a menos de cinco quartas do olho do vento, enquanto que um navio tão marinheiro como o era a Surprise, de
aparelho redondo, quando muito chegava às seis quartas, e por sua parte O Lerdo Berenice quase não conseguia manter-se a sete, e isso, evidentemente, a troca de
abater como um porco.

De fato, os dois barcos distantes se encontravam afundados no seio do fluxo de ondas, exceto quando subiam na crista, e se recortavam brancos sobre o cinza escuro
das nuvens. Stephen os viu mudar de bordo e rumar para Ouessant, e fazer-se ainda menores, pois a menos que o vento rolasse mais, os barcos, assim como a Ringle,
estavam condenados a bolinar e a dar uma bordejada depois da outra. Observou-os com uma curiosa mistura de sentimentos. Ao Berenice o tinha por um barco amável,
um lugar onde passara mais de uma agradável noitada em companhia de Jack, Dundas e Kearney, o imediato, jogando encarniçada mas educadamente ao uíste, ou simplesmente
assistindo a discussões pacíficas sobre portos, costumes locais e apetrechos navais, desde a China ao Peru, extraídas da experiência pessoal de cada um. Contudo,
a Surprise fora seu lar por mais tempo do que podia recordar facilmente. Passara momentos em terra e momentos em outros barcos, mas provavelmente vivera ali mais
tempo que em qualquer outra morada que pudesse recordar. Stephen Maturin tinha levado uma vida errante e sem amarras.

 

Transcorreram três dias até que o vento cedeu ao rolar em direção oeste, e inclusive sudoeste, vento perfeito para quem rumava Canal acima. Naquele dia por fim a
Surprise e o Berenice se separaram durante a guarda da tarde, ao chegarem à altura de Shelmerston. Todos a bordo de ambos os barcos se despediram uns dos outros
agitando o chapéu e dando vivas com toda a boa vontade de que foram capazes.

A Surprise, arrumada e recém pintada, pôs proa rumo oeste com as joanetes largadas: um belo espetáculo. Toda a dotação, incluídos os que estavam de guarda no convés,
tinha se enfeitado para a licença com toda a elegância e o asseio que podiam permitir-se depois de uma ausência tão longa: brilhantes casacas azuis com botões de
bronze, calças brancas de dril, camisas com bordados, escarpins adornados com laços e lenços de Barcelona ao redor do pescoço. A recontagem exata da divisão do butim
obtido durante a etapa de corso da viagem, processo prolongado e meticuloso, levara toda a manhã. Realizou-se com uma tal seriedade que parecia um julgamento supervisionado
por todos os oficiais da marinha, todos os oficiais de cargo e os representantes das quatro partes do barco. A quantidade que correspondia a cada marinheiro ascendia
a um total de trezentas sessenta e quatro libras, seis xelins e oito peniques, e inclusive as meninas, que por consenso geral se decidiu que compartissem a metade
de uma parte, tinham mais moedas do que podiam contar sem dificuldades, pois conforme seu peso oscilavam entre os quatro e os seis peniques. A pomposa cerimônia
foi conduzida com sobriedade, mas agora o grogue e o almoço tinham feito sua parte, haviam arrastado consigo toda a solenidade, e muitos marinheiros vagabundeavam
pelo convés, agitando os bolsos cheios e rindo de puro regozijo, enquanto o barco avançava com o refluxo da maré, rumo a uma costa que conheciam à perfeição.

Tiveram que cuidar do caminho muito antes de chegar ao porto, e pairaram com âncora pequena largada e as gáveas carregadas até que houve água suficiente para permitir
a entrada sem sofrer um só arranhão naquela fragata carregada até os topes. Então as pessoas se alinharam ao longo do costado, com o olhar posto em terra. Mais da
metade dos marinheiros da dotação pertenciam a Shelmerston, e nesse momento assinalavam todas as mudanças ocorridas e por haver, assim como tudo aquilo que não mudara
em absoluto, tal como faziam desde que chegavam ao porto.

Alguns dos escassos anglicanos que iam a bordo disseram aos gritos que o cata-vento da igreja de sua paróquia, um tubarão de vime, tinha uma calda nova; talvez tivesse
desaparecido para sempre o chiado que fazia. Havia quem se sentia reconfortado ante a visão da baixa e quadrada torre, cuja severidade normanda havia se visto dulcificada
depois de centenas de anos de chuvas e vendavais do sudoeste; mas não havia nenhuma mudança apreciável a simples vista. A maior parte de quem vivia ali pertencia
a uma ou outra das seitas inconformistas que abundavam na zona, e entre estas, os fiéis de Seth eram os mais ricos e influentes. Sua maior satisfação era a alta
capela que tinham, cujo mármore branco, decorado com lustrosas incrustações de bronze polido, refletia nesse momento a luz do sol que refulgia através de um espaço
deixado pelas nuvens carregadas de chuva. Havia se beneficiado muito de uma viagem anterior na qual o capitão Aubrey capturou, entre outras presas, um barco com
a bodega transbordando de enormes odres de couro cheios de mercúrio, e, sem saber, estava a ponto de se beneficiar também desta aventura, mais próspera se era possível.

Mas ainda não se tinha decidido que tipo de esplendor derivaria do butim, ainda que ao observar com atenção o povoado houve alguém que mencionou a possibilidade
de um capitel. Um anabatista, situado mais ou menos a uma jarda deles, um dos poucos marinheiros cujos problemas de digestão o deixava mal-humorado depois de almoçar,
manifestou sua opinião de que os capitéis fediam ao papismo. A pesar da alegria que reinava a bordo, isto poderia ter conduzido a uma discussão se William Burrowes,
um veterano marinheiro do castelo de proa dotado de uma grande autoridade, com um vozeirão que lembrou a todos os presentes o tom apropriado que devia observar-se
nas grandes ocasiões, não tivesse exclamado:

- Lá está a velaria do velho Sandby tão condenadamente feia como sempre, com aquela enorme lateral do diabo e sem perigalho que preste!

Este comentário conduziu a uma enumeração geral das casas, lojas e pensões que não tinham sofrido mudanças; apesar de tudo, o sentimento exultante decaiu pouco a
pouco. Entre os homens se espalhou certa inquietação. Afinal de contas, não tinham visto entrar ou sair uma alma do Crown, o que podia se considerar antinatural;
todos os barcos de pesca estavam ancorados em linha; ninguém tinha comparecido para observar sua chegada desde a praia, apesar que, quem dispusesse de uma luneta
- e havia centenas de lunetas em Shelmerston, - não só poderia reconhecer o barco, mas apreciar o lustre de prata arrebatado de um pirata do Grande Mar do Sul, içado
no tope do mastaréu maior. Que sucedia? A inquietação se estendeu lentamente, ainda que foram muitos os que não fizeram caso, mas quando o pastrano e bobão de Harris
disse que lhe recordava a ilha Sweeting, no Pacífico, cujos habitantes haviam morrido de repente, restando tão somente Sarah e Emily os outros se voltaram para ele
dando mostras de uma ferocidade surpreendente, armados com toda sorte de sugestões: "Podia ter ficado calado a fazer este comentário", "podia jogar-se ao rio com
uma bala atada aos pés", ou, em uma frase comum entre pessoas do mar, "podia ir tomar no cu" e levar consigo seu feio corpo roído pela sífilis e seu rosto, que parece
uma maca inimizada com o sabão.

- Gente ao cabrestante! - gritou Jack quando começaram a cair as primeiras gotas.

Recolheram a âncora pequena sem esforço algum, pois os marinheiros abarrotaram as barras do cabrestante e as empurraram com uma força incrível. E quando a âncora
repousou no pescante, a maré empurrou a proa do barco para o interior. Carregaram as joanetes e deslizaram suavemente sobre o banco de areia com uma braça de sobra.
E ao entrar, um homem ancião, muito ancião, com o rosto coberto por uma venda que tirada a força ao puxá-la, aproximou-se do barco seguido por um garoto que aparecia
atrás de seu ombro.

- Que barco é este? - cumprimentou o velho com voz aguda e chiante e uma mão no ouvido.

- A Surprise - replicou Jack ante o silêncio generalizado.

- De onde são?

- De Shelmerston, viemos de Fayal.

Surprise. Recordo, Surprise - disse o homem muito ancião ao mesmo tempo que assentia. - Levam a bordo a um jovem chamado John Somers?

Um silêncio sepulcral se estendeu no convés. John Somers havia se afogado diante do cabo de Hornos.

- Fala, jovem Somers - ordenou Jack em voz baixa.

- Avô - disse o irmão de John. - Sou William. John... John se reuniu com o Senhor. Sou seu irmão menor, avô.

- William? William? Sim. Eu conheço - respondeu o ancião com escassa ou nenhuma emoção.

- Como anda mamãe? - perguntou William.

- Morta e enterrada faz mais de um ano.

- Soltem a âncora - ordenou Jack Aubrey.

Enquanto o barco se aproximava e se içavam os botes pela borda, alguém perguntou quem era o garoto que acompanhava o ancião.

- Art Compton - respondeu.

- Então você és meu sobrinho - exclamou Peter Wills. - Eu trouxe um papagaio tagarela para Alice. Como vai tudo em casa? E onde anda todo mundo?

- Estão bastante bem, tio Peter. Foram a Worsley para ver o enforcamento de Jack Singleton e seus companheiros. Deixaram-me aqui para cuidar do primo Somers. Nós
tiramamos na sorte.

- Baixem o cúter vermelho - ordenou Jack, que procedeu a seguir a dar os gritos oportunos para que pendurassem e arriassem todas e cada uma das embarcações auxiliares
da fragata. Vogaram para a costa sob uma chuva que caía cada vez com mais força, e Jack foi direto ao Crown, levando pela mão as duas meninas. Ao chegar, bateu na
porta até que um decrépito moço de estábulo se dignou a abri-la.

A chuva parou antes do pôr do sol, e depois do regresso de toda as pessoas e das prostitutas de Shelmerston que haviam assistido ao enforcamento - sete homens e
uma criança em uma forca, espetáculo que atraiu a atenção de todo o condado, - a modesta população se tornou muito mais alegre apesar das novas mortes, de alguns
partos inesperados e outras francas deserções. E houve mais alegria ao som do violino na maioria das pensões e tabernas antes que a tripulação se dispersasse de
casa em casa, de fazenda em fazenda, com os baús repletos de maravilhosos presentes.

Quando o Crown e as outras pensões espalhadas ao longo da margem estavam a transbordar de ruído, luz e anedotas, Jack, depois de deixar Sarah e Emily aos cuidados
da senhora Jemmy, uma dama gorda inclinada ao fuxico, subira em um carro postal puxado por quatro cavalos e viajava tão rápido para Ashgrove Cottage como pudessem
levá-lo as bestas pelos bons caminhos.

Sua enorme arca grande ia presa com correias na parte posterior, mas o último presente que comprara para Sophie, um traje de renda de Madeira, não agüentaria bem
o sacolejar e por isso o levava em cima dos joelhos. Viu-se obrigado a viajar mais empertigado, ainda que de vez em quando aproveitou para dar uma cochilada, a última
delas depois de que o moço de posta mais veterano lhe despertou para pedir a direção exata, uma vez abandonada a estrada. Jack lhe deu, fez com que repetisse e voltou
a adormecer tal e como o fazem os marinheiros, em cinco minutos, perguntando-se se encontraria alguém acordado em casa.

Meia hora depois o ruído dos cascos mudou e cessou lentamente, o carro se deteve e Jack começou a despertar, maravilhado pela luz que saía da casa, no extremo posterior
do estábulo, que era por onde havia entrado o carro postal. Houve um tempo em que Jack, animado por um período temporal de riqueza, empreendera a criação e adestramento
de cavalos de corrida, do que se considerava tão bom juiz como qualquer membro da Armada, e esse esplêndido pátio pavimentado com ladrilho, assim como os belos edifícios
que o rodeavam, datavam daquela época. A luz surgia do mais bonito dos edifícios, uma cocheira dupla, e à luminosidade que perfurava a lúgubre noite era acompanhada
pelo rumor de uma conversa animada, gritos e risos, em um tom tal que ninguém se informou de sua chegada.

Jack pegou o traje de renda, em cima do qual havia apoiado os pés durante as últimas milhas de viagem, trocou algumas palavras com os moços do carro postal e lhes
pediu que carregassem sua arca grande até a entrada.

- É o capitão - gritou alguém. Cessou a algaravia, exceto no tocante à voz de uma certa mulher, surda para tudo menos para ouvir a si mesma.

- Assim que lhe digo, digo, "seu sodomita abilolado, por acaso nunca vira uma garota fazer...".

- "Quando longe estou, sinto saudade e sinto saudade e sinto saudade de meu lar..." - Ouvia-se ao fundo uma canção.

Hawker, o moço encarregado dos cavalos, aproximou-se do capitão com um sorriso nervoso.

- Bem-vindo para casa, senhor, e por favor desculpe que tenhamos tomado tantas liberdades - disse. - Era o aniversário de Abel Crawley e, como as senhoras se foram,
achamos que o senhor não se importaria... - Assinalou a Abel Crawley, que aos setenta e nove recém cumpletados, bêbado como um gambá e sem fala, tinha aspecto de
ter morrido aí mesmo. Servira como marinheiro do castelo de proa em um dos primeiros barcos onde navegou o tenente Jack Aubrey, a Arethusa, e certamente quase todos
os presentes serviram também com Jack em um momento ou outro de sua carreira, e a maioria estava incapacitada para o serviço. Suas acompanhantes eram o que se podia
esperar, um grupo de garotas atarracadas conhecidas como "as brutas de Portsmouth". O carro puxado por mulas que as havia trazido a Ashgrove Cottage estava no outro
extremo do pátio.

Aflito e decepcionado, Jack sentiu tentações de enforcar a todos esses fulanos, mas em troca limitou-se a perguntar:

- Onde está a senhora Aubrey?

- Ah, em Woolcombe, senhor, com as crianças e todo o serviço exceto Ellen Pratt. A senhora Williams e sua amiga, a senhora Morris, estão em Bath.

- Bem, diga a Ellen que esquente sopa e me prepare a cama.

- Senhor, para dizer verdade Ellie está um pouco alegre, mas eu mesmo lhe assarei um bom bife e um pouco de coelho de Gales; Jennings se encarregará da cama. Mas
temo, senhor, que o senhor terá que beber cerveja, já que a senhora Williams fechou a adega a chave.

Pela manhã, Jack preparou ele mesmo seu café e comeu alguns ovos com torradas na cozinha. Não estava com humor para vagabundear pela casa vazia, porque para ele
um lar sem Sophie não tinha sentido, mas antes de passear para o pátio fez uma rápida inspeção no jardim, que já não parecia o seu, mas o de algum negro estrangeiro.

- Diga-me, Hawker, quais são os cavalos que temos no estábulo?

- Somente a Abhorson, senhor.

- O que é o Abhorson?

- Um castrado negro, senhor: dezesseis palmos até o focinho.

- O que está fazendo aqui?

- Pertence ao senhor Briggs, senhor, ao criado da honorável senhora Morris. Não dispõem de estábulos em Bath, de modo que quando vão para lá, ele fica aqui. Quando
residem aqui, Briggs costuma muito amiúde aproximar-se de Bath a cavalo.

- Agüentará o meu peso?

- Oh, sim, senhor. É um animal forte e tem bons ossos. Mas hoje transborda vitalidade e talvez lhe pareça muito brioso.

- Não importa. Que me diz das ferraduras?

- Novinhas da semana passada, senhor. Verá que a senhora Williams cuida muito do cavalo de Briggs - disse o moço com uma curiosa ênfase. - Assim como a honorável
senhora Morris, por acaso.

- Excelente. Tenha-o preparado na porta em cinco minutos, pode ser? E veja se pode e conseguir uma capa. Choverá antes de que eu chegue a Dorset.

Efetivamente, Abhorson constituia todo um exemplo de força bruta, e sua cabeça pesada e os olhos pequenos não lhe conferiam precisamente nem beleza nem inteligência.
Recusou as carícias de Jack e levou a cabo uma evolução irregular muito mais própia de um caranguejo que de um cavalo, de tal maneira que o moço que o segurava pela
embocadura se viu arrastado de lado enquanto o própio Jack, que tentava montá-lo, foi fazendo hop, hop, hop ao longo de meio pátio até que conseguiu subir na sela.

Não tinha montado a cavalo algum desde que esteve em Java, a meio mundo de distância; mas assim que sentiu a sela de couro comodamente sob suas nádegas e teve os
pés bem metidos nos estribos, sentiu-se como em casa. Ainda que Abhorson se mostrasse muito brioso, amigo tanto de dar cambalhotas como de inclinar a cabeça ao mesmo
tempo que ofegava com violência e andava em diagonal com passos miúdos, as puxadas e os joelhos de Jack fizeram seu efeito, e quando começou a chover, ou, melhor,
a chuviscar, viajavam muito bem ajustados através das novas plantações. Jack desfrutava, admirado do modo em que suas árvores haviam crescido, muito mais do que
esperava, com umas folhas frescas e esplêndidas. Mas este deleite estava apenas na superfície de seus pensamentos: sob ela, no mais profundo, tudo aquilo que não
pendia de Woolcombe, da mansão familiar que herdara recentemente, e de Sophie e das crianças que se alojavam nela, mantinha-se inamovivelmente ancorado na encantadora
perspectiva que lhe oferecia sua futura esquadra, composta por barcos e oficiais da Armada real sem destino fixo, e no sem-fim de combinações em que poderia dispô-los.

- Uma coisa é segura: ficarei com a Ringle como barco de apetrechos - observou em voz alta.

O chuvisco obstinou-se até converter-se em uma chuva forte. Deixou de um lado suas felizes especulações. Era um homem inusualmente dotado para a felicidade, desde
quando a felicidade não fosse um impossível, e agora esta fluía de seu interior, de todos e cada um de seus poros, de modo que animou Abhorson para que apertasse
o passo, consciente de que não agüentaria muito com a chuva caindo com tanta força. O cavalo galopava tenaz e tosco, mas movia as orelhas como em resposta aos ânimos
de Jack, e o ginete se voltou para pegar a capa que havia enrolado atrás da sela.

Então um esquisito apareceu voando pela estrada sob o focinho do cavalo, piando de forma estrondosa. Abhorson deu um violento salto lateral, um meio caminho entre
a cambalhota e o giro, que jogou da sela sem maiores esforços a Jack. Ele levou uma dura queda, muito dura, pois acertou com a cabeça contra um marco de pedra que
marcava o limite de suas propriedades.

 

CAPÍTULO 2

- Bom dia, senhor - cumprimentou Stephen. - Chamo-me Maturin, e tenho um encontro com sir Joseph Blaine.

- Bom dia, senhor - replicou o porteiro. - Peço que seja tão amável de aguardar. James, conduza este cavalheiro à segunda sala de espera.

Este não era aquele famoso lugar com vistas para a corte e, através das cortinas, para Whitehall, no qual haviam aguardado gerações e gerações de oficiais da marinha,
geralmente com a esperança de obter uma ascensão ou qualquer tipo de destino. Era um lugar muito menor, um aposento muito mais discreto com uma única cadeira. Quase
Stephen não teve tempo de se sentar quando se abriu uma porta interna. Sir Joseph, um homem corpulento com um rosto simples e geralmente inquieto, pálido e constrangido
pelo trabalho, entrou no aposento sorrindo, com aspecto de sentir-se feliz como uma criança.

 

- Há, Stephen, não sabe o quanto me alegro de ver-lhe! - exclamou pegando Stephen pelas mãos - Como o senhor está, meu querido senhor? Como se encontra depois de
tantas milhas intermináveis e de tantos dias?

- Muito bem, obrigado, querido Joseph; ainda que devo dizer que me agradaria ver-lhe menos pálido, desolado e constrangido. O senhor tem dormido? Come bem?

- Devo confessar que tenho minhas dificuldades para conciliar o sono; apesar de tudo, como toleravelmente bem. Reunir-se-á comigo esta noite no Blacks? Venha e terá
a oportunidade de comprovar com seus própios olhos. Costumo jantar frango cozido molho de ostras, e uma pinta de nosso clarete.

- Será um prazer observá-lo - confessou Stephen, - ainda que de minha parte despachei um robalo e uma garrafa de Sillery. - Apalpou o bolso e acrescentou: - Peço
que aceite este presente. - Estendeu um lenço usado para sir Joseph.

- Eupator ingens! - exclamou sir Joseph depois de desenbrulhá-lo rapidamente. - Que amável de sua parte ter se recordado de mim; é um espécime esplêndido, que generoso,
pergunto-me se o senhor poderá suportar o fato de desprender-se dele. - Colocou a criatura de boca para baixo, olhou-a atentamente e murmurou: - De modo que, finalmente,
sou o feliz possuidor do escaravelho mais nobre da criação.

A porta abriu-se de novo.

- Começam a chegar os cavalheiros esperados, sir Joseph - informou um homem com a devida seriedade.

- Obrigado, senhor Heller - disse sir Joseph. - Reunir-me-ei com eles antes de que dêem as badaladas. - A porta se fechou. - Trata-se do Comitê, como suporá - informou
a Stephen. Envolveu o escaravelho com muito cuidado em seu própio lenço, devolveu o outro a Stephen e acrescentou: - Agora é mister que me dirija ao senhor na qualidade
de funcionário público: o primeiro lorde me pediu que lhe informe de que tem pensado em nomear o capitão Aubrey para o comando de uma esquadrilha. Hasteará galhardetão
e se dedicará a levar a cabo um cruzeiro frente às costas da África, com objeto de proteger nossos barcos mercantes e combater o comércio de escravos. Os negreiros
pertencem a nacionalidades diversas, contam com toda sorte de protecionismos e podem ser acompanhados de navios de guerra; de modo que é óbvio que não só necessita
da companhia de um cirurgião eminente, como a de um lingüista consumado, de um homem familiarizado com os segredos da inteligência política, e se espera que todas
estas características possam reunir-se na mesma pessoa. Apesar de tudo, existe a possibilidade de que surjam certas eventualidades, e, dado que sou consciente de
que, sem que isso prejudique em nem um pouco a nossa amizade, existem certos assuntos nos quais não estamos do todo de acordo, acho que seria conveniente perguntar-lhe,
se me permite, de que lado se decantaria seu coração se o francês tentasse de novo desembarcar em Irlanda. Creia-me quando digo que esta pergunta tem por único objetivo
evitar a possibilidade de que o senhor se mostre indeciso e reservado, em caso de ter que tomar certas decisões.

- De indeciso nada, querido amigo. Farei o que estiver em meu poder para aprisionar, afundar, queimar ou destruir ao francês. Os franceses, com seu atual e lamentável
sistema político, suporiam um mal completamente intolerável na Irlanda: aí tem o senhor a Suiça, pense nos estados italianos... Não, não, não, o senhor sabe perfeitamente
que sou dos que acreditam que todas as nações têm direito a governar-se por si mesmas. Poderá dizer-se que os irlandeses não se aplicaram à história: ela fala aos
montes a este respeito e sua leitura resulta lamentável, já que O'Brien, sem ir mais longe, Turlough O'Brien, rei de Thomond, saqueou ele própio Clonmacnois. Mas
estou me afastando da questão. Talvez meu lar necessite de uma limpeza, mas é meu lar, e não seria eu que agradeceria ao estrangeiro que se dispusesse a pô-lo em
ordem, menos ainda se tratando desse ladrão feio, velhaco e ímpio do negro corso.

- Obrigado, Stephen - disse sir Joseph apertando-lhe a mão. - Tinha postas todas minhas esperanças em que me diria isto mesmo. Agora devemos nos reunir com o Comitê.

- O senhor sabe o que vou lhes explicar?

- Sim, sim. Não sabe como lhe compadeço.

 

Dado o ânimo que se desprendia dos membros restantes do Comitê, era óbvio que eles também eram conscientes do resultado da missão, já que o traçado geral do resultado
era, por sua vez, perfeitamente óbvio, já que o Peru seguia fazendo parte do Império Espanhol. Mas não por isso prescindiu de fazer um relato sucinto do sucedido,
ao qual a maioria de membros do Comitê prestou atenção, explicando as perguntas pertinentes a medida que avançava sua exposição, e outras tantas quando concluíu.

Depois de resolver as dúvidas que tinham surgido, o senhor Preston, do Ministério de Assuntos Exteriores, que havia tomado notas conscienciosas, disse:

- Doutor Maturin, permitiria que eu leia este breve resumo que fiz em benefício do ministro, para que o senhor corrija qualquer erro que tenha podido cometer? -
Stephen inclinou a cabeça, e Preston seguiu adiante. - "O doutor Maturin, comparecendo ante o Comitê, assegurou que depois que o barco no qual viajava, um barco
alugado de sua propriedade que contava com a devida patente de corso, partiu da baía de Sidney, seu comandante recebeu instruções para dirigir-se a Moahu, onde duas,
ou talvez três facções rivais estavam em guerra. Tinha que aliar-se com a mais propensa a aceitar a soberania do rei, assegurar sua supremacia e anexar a ilha antes
de empreender rumo a América do Sul. Cumprida a missão, pouco depois apresou um barco corsário americano..."

- Desculpe-me, senhor, se me vejo na obrigação de interromper o senhor neste ponto - disse Stephen. - Mas temo muito que devo ter me expressado mal. O barco em questão
no qual estava embarcado por então era a Noz-moscada of Consolation, não minha Surprise, com a qual nos reunimos frente à passagem de Salibabu, e na qual navegamos
rumo ao Peru. A Noz-moscada nos foi proporcionada pelo governador de Java para substituir à fragata Diane, a bordo da qual o defunto senhor Fox e eu tivemos a alegria
de concluir um tratado com o sultão de Pulo Prabang. - Produziu-se um burburinho de aprovação ao dizer isto, e o senhor Preston dedicou a Stephen um olhar pouco
oficial e afetuoso. - O conflito em Moahu teve lugar entre a legítima soberana da ilha e um chefe descontente, que contava com o apoio de alguns mercenários brancos
e um francês chamado Dutourd, um visionário rico que desejava estabelecer um paraíso democrático em troca de assassinar todos aqueles que não estivessem de acordo
com ele, e que tinha adquirido, armado e dotado de homens a um barco na América, para levar a cabo seus propósitos. Neste caso, a moral e a conveniência coincidiram
felizmente: a Surprise derrotou ao chefe descontente e capturou tanto a Dutourd como a seu barco. Mas não houve lugar para anexação alguma. A rainha se aliou ao
rei Jorge III, aceitando sua proteção de bom grado, nada mais. Com relação ao corsário americano, o Franklin, como o chamava monsieur Dutourd, resultou que de fato
não desfrutava de sua condição, pois Dutourd passara por alto a necessária obtenção da patente de corso, de modo que o fato de ter capturado baleeiros ingleses o
convertia em um barco pirata. Esta, em todo caso, foi a opinião do comandante da Surprise, que decidiu levá-lo para a Inglaterra para que os juízes de rigor pudessem
resolver a questão.

- Obrigado, senhor. Deixarei muito claro este ponto - disse o senhor Preston enquanto escrevia a toda pressa. A seguir seguiu lendo o resumo que tinha feito, no
qual comentava o encontro de Stephen com o agente que residia em Lima, suas bem-sucedidas conversações com membros do alto clero e do Exército, particularmente com
o general Furtado, todos eles partidários da independência e, muitos deles, da abolição da escravidão; a fuga de Dutourd, seus contatos com a missão francesa dedicada
a um objetivo similar, mas muito menos bem-sucedida e pior custeada; sua denúncia de Stephen como agente inglês, e o grito de "ouro estrangeiro" em boca de quem
se opunham à independência, grito que, assumido por uma multidão paga de antemão, impossibilitou o plano perfeitamente calibrado de Stephen, baseado na ausência
temporal do vice-rei, pois o general Furtado se negou a agir, e somente Furtado podia mobilizar as tropas necessárias.

- Deve ter sido um duro golpe - observou o coronel Warren, chefe da Inteligência do Exército.

- Assim foi, certamente - disse Stephen.

- Dutourd tinha algum motivo para supor que o senhor era, de fato, um agente britânico? - perguntou outro membro do Comitê.

- Não tinha. Mas me vi obrigado a falar em francês quando atendi seus feridos depois de aprisioná-los. De fato, o mais provável é que recordasse de ter-me conhecido
em Paris e, sem dúvida, a intuição, irmanada ao desprezo pessoal e ao desejo de fazer todo o estrago possível, fizeram o restante. A sua foi uma acusação que teria
sido ignorada em qualquer outra circunstância, mas quando os contrários à independência fizeram eco dela, a opinião pública mudou completamente.

- É meu dever observar que se puseram em mãos do doutor Maturin enormes somas de dinheiro - observou o representante do Tesouro, depois de um silêncio, - entregues
de formas diversas, e devo perguntar-lhe se foi possível preservar qualquer parte, como por exemplo as notas, fáceis de transportar, e os bônus que ainda não foram
trocados.

- Não é senão com certa complacência que posso responder ao cavalheiro que o ouro, que teria que ser repartido entre os diversos regimentos numa quarta-feira se
Furtado não os retirasse numa terça-feira, ficou (menos algumas poucas centenas de libras empregados em subornos) nas mãos de nosso agente em Lima. O papel moeda,
os bônus e outros se encontram atualmente a bordo da pequena embarcação que me trouxe ao Pool, no interior de um caixote que está debaixo do atento olhar do capitão.
- Alguns membros do Comitê não puderam ocultar sua intensa satisfação, e Stephen percebeu que graças a isso poderia organizar-se um novo plano, talvez tão custoso
como o que tentara levar a cabo. - Com relação ao ouro - acrescentou, - nosso agente no Peru opina, e se lhes interessa minha opinião saibam que estou completamente
de acordo com ele, que o dinheiro resultaria muito útil de empregar-se no reino do Chile, onde dom Bernardo O'Higgins conta com um apoio considerável. Finalmente,
permita-me observar que nosso agente tem negócios marítimos, e que poderia engenhá-las, no caso, para transportar tão chato metal.

 

- Falando do chato metal - disse Blaine enquanto caminhavam juntos por Whitehall, - poderia fazer-me um grande favor se voltasse a Shelmerston na escuna. Com este
vento do noroeste chegaria lá muito mais rápido e mais comodamente que em um carro postal. Além disso, poupar-se-ia a chatice de trocar de carruagem.

- Diga-me por favor de que se trata.

- Verá, tenho que transportar uma estátua que prometi entregar a um amigo em Weymouth; empresa impossível para um carro, mas que seria uma minúcia para um barco.

Stephen, que não desejava em absoluto tomar um carro postal que o conduzisse diretamente a Barham e a Diana, parou uma carruagem de aluguel e com a mão na maçaneta
perguntou a sir Joseph Blaine:

- O senhor sabe quanto ela pesa? Pois se trata de um barco muito pequeno.

- Cerca de três toneladas, suponho. É um Júpiter de nada, feito de pórfido.

- Escute, querido amigo. Permita-me dizer-lhe que não haverá nenhum problema, e que para mim será um prazer, a menos que o capitão Pullings afirme que em caso de
subi-la a bordo a estátua acabaria atravessando o fundo da escuna. Vou cumprimentar a senhora Broad nas Liberties do Savoy. Lembra da senhora Broad, a dona do Grapes?

- Certamente. Apresente-lhe meus respeitos, se é tão amável.

- E do Grapes me aproximarei ao Pool, porque estão um ao lado do outro.

- Em tal caso, até esta noite - cumprimentou Blaine, que se encostou rapidamente na parede quando a carruagem puxada por quatro cavalos passou, salpicando barro
para os quatro cantos.

Stephen e a senhora Broad eram velhos amigos. Ele tinha alugada durante todo o ano um quarto do segundo andar, ainda que estivesse de viagem pelo outro hemisfério.
Assim podia dispor em Londres de um armário para os esqueletos, e de prateleiras com toda sorte de coisas que podia necessitar: instrumental, espécimes, livros,
um manuscrito incompleto de um trabalho sobre litotomía, e um grande número de cartas velhas e envelopes usados com notas no dorso. Ela havia se acostumado às extravagâncias
do doutor, e também às de Padeen, que fazia as vezes de servente do doutor em terra e que usava alguns calções com botões e fivelas de prata dos quais estava excessiva
e pecaminosamente orgulhoso. Conhecia Stephen já fazia muito tempo, e o havia tratado em circunstâncias tão difíceis que nada podia surpreendê-la muito. Tivera ursos
na carvoeira, junto à roupa suja, e texugos capturados nas armadilhas que o doutor punha no alpendre, para não mencionar certas dissecações bastante estranhas, de
modo que quando mencionou as duas meninas não se preocupou muito, por mais negras e papistas que pudessem ser. Além do mais, chorou aos prantos ao saber das circunstâncias
nas quais as tinham encontrado em sua ilha.

- Que o Senhor o bendiga, doutor - disse depois de secar suas lágrimas, agradecida pelos receios de Stephen, - aqui serão muito felizes. Aqui em Liberties temos
de todas as cores: negro, cinza, marrom e amarelo, todos excetuando talvez o azul celeste; e poderão perambular pelo cemitério da igreja ou observar o tráfego que
circula pelo Strand. Porém, oh, querido senhor, o que o senhor estará pensando de mim? Nem sequer lhe perguntei pela senhora Maturin. Como se encontra sua dama,
senhor? E a senhorita Brigid, que Deus a bendiga?

- Ainda não tive oportunidade de vê-las, senhora Broad. Não tive mais remédio que vir diretamente pela boca do Canal a bordo da escuna, enquanto o capitão Aubrey
desembarcava em Shelmerston. Mas talvez amanhã volte a bordo do barco de apetrechos, que me levará para seu lado. Sopra um vento perfeito, claro que também poderia
tomar um carro postal.

- Bem, pelo menos o senhor poderá jantar aqui e dormir em seu quarto. Lucy e eu o arejamos desde que Padeen veio e nos fez compreender que o senhor andava por aqui.
"Clo, clo, clo", nos disse a sua maneira, o pobre diabo; e ao ver que eu punha cara de não entender nada, Lucy exclamou: "Quer dizer que o doutor está na cidade",
e todos rompemos a rir. Oh, querido senhor, não sabe como rimos. De modo que trocamos os lençóis da cama, que previamente arejamos com alfazema.

- Não posso ficar para o jantar, senhora Broad, porque me comprometi com sir Joseph Blaine, que por certo me pediu que lhe transmitisse seus respeitos. Mas dormir
já é farinha de outro saco e será um prazer. Seria preferível que me desse a chave da porta, pois é possível que chegue tarde. Agora mesmo tenho que aproximar-me
ao Pool.

 

Ao entrar no Blacks encontrou Blaine, de pé na frente do fogo que ardia no salão, com a casaca sobre os ombros e o traseiro voltado para o fogo.

- O capitão Pullings me disse que poderá carregar mais três toneladas- informou Stephen, - mas já que deve partir com a maré alta, pergunta se o senhor poderá levar
a estátua a tempo.

- Oh, o senhor me traz excelentes notícias! Isso não será nenhuma dificuldade, pois já se encontra em Somerset House, e dispomos de uma embarcação de apetrechos
capaz de trazê-la para a escuna em um abrir e fechar de olhos. Em um abrir e fechar de olhos. Stephen, o senhor não está faminto? Com este vento do nordeste tenho
tanta fome que, se estivesse falando com qualquer um que não fosse o senhor, já teria me mostrado desagradável.

- Comparto completamente suas inquietações. Ponhamos mãos à obra de imediato.

Comeram com vontade e guardaram um silêncio quase absoluto, como se fossem velhos companheiros de mesa.

- Isto já é outra coisa - disse sir Joseph, depositando alguns ossos de frango em um pratinho. - Bem, agora volto a sentir-me como um ser humano, ainda que ainda
não estou de todo satisfeito. Comeria um coelho galês e, provavelmente, alguns doces com o café. Como está a senhora Broad?

- Transbordante de saúde, obrigado. Ele lhe envia lembranças. É uma excelente pessoa, como já saberá.

- Estou seguro disso.

- Duas meninas nos acompanharam, Sarah e Emily, que recolhemos em uma ilha da Melanésia na qual toda a população, com excessão delas, havia perecido por causa de
uma varíola levada por um baleeiro. Não pudemos deixá-las ali para que enfrentassem uma morte lenta, já estavam muito debilitadas, de modo que as levei a bordo.
Talvez tivesse sido melhor matá-las de um golpe na cabeça.

- Dizem que a todos convém demonstrar certa piedade - observou sir Joseph.

- Naquele momento me pareceu que não tinha escolha; mas desde então estou confuso porque não sei o que vou fazer com elas. Gostaria que a medida que vão crescendo
aprendam a levar uma casa, mas não como se fossem criadas; proporcionar-lhes um dote razoável...

- Dotes. Graças a minha infinita boa sorte, segue intacta a fortuna do senhor - interrompeu Blaine com um sorriso, pois ao iniciar tão prodigiosa travessia um exasperado
Stephen lhe havia enviado uma carta na que lhe concedia poderes para que transferisse seu dinheiro (do qual cuidava um enorme, lento, impessoal e negligente mas
solvente banco de Londres) para um modesto banco do país que suspendeu os pagamentos poucos meses depois, e cujos clientes tiveram que contentar-se em receber quatro
peniques por cada libra que lhe haviam confiado. Uma carta que dada à pressa e ao nervosismo tinha esquecido de firmar com nada mais além de seu nome de batismo.
E este esquecimento invalidou por sorte as procurações confiadas a sir Joseph, coisa que, em primeiro lugar, dizia muito do inusual costume de Blaine e Maturin de
chamar-se um ao outro de Stephen e Joseph, e, em segundo lugar, permitiu a Stephen seguir sendo um homem de recursos. - E pelo que me lembro, quase tudo era ouro
- acrescentou Blaine.

- Isso mesmo, e sim, em boa parte, pois ainda está guardado nos baús de ferro de meu padrinho. Só troquei uma pequena soma para os gastos. Em tal caso, uns dotes
razoáveis, caso se decidam se casar no lugar de conduzir macacos no inferno. Casar, talvez, com algum artesão reflexivo e habilidoso, por exemplo um relojoeiro,
ou alguém que faça instrumentos científicos; possivelmente um boticário ou um cirurgião, ou um preparador de espécimes para as aulas de anatomia. Católico, certamente.
E nada de marinheiros. Um marinheiro que possa ausentar-se durante anos do lar faz impossível a vida de qualquer mulher casada. Se é mulher de certo temperamento
é preciso explicar, como não, a questão da castidade; e em qualquer caso a do domínio, ou talvez diria melhor a da decisão. Uma mulher dona de uma casa, de uma casa
com terras, por exemplo, adquire uma autoridade e um poder de decisão aos quais nem sempre está disposta a renunciar. O certo é que em ocasiões é preferível que
não o faça, já que nem todos os homens nascem com uma capacidade inata para as finanças. Quem passa tanto tempo no mar costuma ficar menos familiarizado com os negócios
que se fazem em terra do que uma mulher inteligente. Também há o assunto relacionado com a educação dos filhos... - Stephen continuou por estas rotas até que percebeu
que a atenção de sir Joseph estava no coelho galês que comia, e talvez também em certas preocupações que levara consigo do Almirantado, de modo que deixou de falar.

- É verdade. Pode-se dizer bem pouco do matrimônio de um marinheiro, ou de qualquer outro matrimônio. Com relação à perpetuação da raça humana, há momentos em que
me parece que o mundo estaria muito, muito melhor se nossa espécie desaparecesse por completo. Nós lhe fizemos tão mal, sacrificamos a felicidade e criamos tal miséria
em toda parte que, apesar da ave cozida, minha pinta de clarete e a companhia do senhor, sinto-me muito angustiado. - Olhou ao redor da sala, que seguia cheia de
membros do clube, alguns sentados em mesas próximas, e acrescentou: - Ainda que certamente falo na qualidade de solteiro, o que me faz recordar que agora o senhor
é um homem casado: foi inumano de minha parte atrasar sua partida com meu Júpiter de pórfido. O senhor não desembarcou em Shelmerston nem pegou o carro postal de
Hampshire em companhia de Jack Aubrey, o que significa que ainda não pode ver Diana nem teve notícias suas. Nem tampouco da senhora Oakes.

- Isso mesmo - respondeu Stephen, um pouco intrigado pela ênfase de Blaine.

- Quer que tomemos o café na biblioteca?

- Será um prazer. É o melhor aposento do clube.

Era o melhor e também o mais esplêndido: três paredes cobertas de estantes cheias de livros, mobiliada com cômodas cadeiras e um tapete turco. Nunca havia ninguém
ali.

- Stephen - disse Joseph depois que o garçon lhes serviu o café, uma bandeja com doces e uma jarra de conhaque. - Não considero adequado de minha parte falar-lhe
o que tenho em mente em um lugar público, por mais fechada que esteja a habitação. Provavelmente estes ouvidos hipotéticos não sejam mais que uma de tantas alucinações,
fruto de uma mente que tem estado submetida e entregue por tanto tempo àquilo que, na ausência de um termo melhor, chamarei de Serviço de Inteligência, mas pode
ser que existam, e é por isso que me alegra tanto estar sentado com o senhor neste aposento quente e isolado. - Serviu-se de um pouco de café e com ar distraído
devorou meia dúzia de pequenos merengues. - Nas cartas que o senhor me enviou, pedia que cuidasse de Clarissa Oakes e falava da informação excepcional que lhe proporcionou.
- Clarissa, uma jovem senhorita empobrecida, havia trabalhado em um prostíbulo de moda situado a um tiro de mosquete dos clubes que havia em Saint James Street,
onde dada sua situação descobrira uma série de fatos muito curiosos. - Encarreguei-me dela, consegui para o pobre jovem Oakes uma ascensão e um barco, e quando morreu
a apresentei a Diana. A informação era indiscutivelmente excepcional, e com sua ajuda identificamos rapidamente ao cavalheiro coxo, pertencente à Ordem da Liga{6},
que estava relacionado com aqueles condenados sodomitas do Wray e Ledward. - Os "condenados sodomitas", a quem Blaine tachava como tais com ricos motivos, tinham
proporcionado informação, sobretudo informação naval, ao inimigo; foram delatados por um agente francês, e depois de diversas vicissitudes Stephen os despedaçou
pessoalmente em uma sala de dissecações das Índias Orientais.

"Infelizmente, resultou que se tratava de um duque aparentado com a realeza, um tal duque de Habachtsthal. Foi educado principalmente na Inglaterra, mas desfruta
de um pequeno principado próximo de Hannover, e umas propriedades mais consideráveis no Reno, ambas ocupadas pelos franceses, certamente, e que servem de cortina
de fundo ideal para a chantagem do francês. O ancião rei o tinha em grande apreço e se fosse homem solteiro, que não o é, talvez poderia ter se casado com uma de
nossas princesas, mas mesmo assim praticamente intocável.

- Se não me equivoco, este cavalheiro desfruta de um bom emprego no Exército, honorário, talvez, e de uma influência considerável.

- Sim. Atua como conselheiro de diversos órgãos, e através de seu assessor, o coronel Blagden, pode-se também dizer que toma parte em alguns comitês importantes.
- Chegados a este ponto, ambos aproveitaram para tomar um trago de conhaque, e depois Blaine prosseguiu: - Certamente não havia a menor possibilidade de empreender
uma ação direta contra ele, sem dispor previamente de provas férreas como as que tínhamos contra Ledward e Wray. Contudo, como esse não é o caso, nós nos escondemos
para anunciar a tormenta. Jamais o senhor acreditaria, Stephen, quantos modos bizantinos tem Whitehall de arejar uma ameaça, de fazer que reverbere de parede em
parede até alcançar o ouvido desejado.

- E quais foram as consequências?

- Para começar, direi que foram excelentes. Continuavam passando informação, como nos tempos de Ledward, mas de repente deixaram de fazê-lo. Contudo, neste momento
nosso cavalheiro já compreendeu melhor até que ponto é imune, e no mês passado perdemos boa parte de um comboio das Índias Ocidentais. Mais que isso, é um cortesão
de muita consideração próximo ao Ministério, e acredito que afrouxou o fio até a meada, ou em todo caso está a ponto de fazê-lo. Temo que esteja ressentido, temo
tanto pelo senhor como por mim: estimava muito a Ledward, e inclusive, da maneira bizarra desses cavalheiros, a Wray. É um homem muito vingativo... Não estou totalmente
seguro do que acabo de dizer-lhe, Stephen; mas há um ou dois detalhes que não fazem senão acrescentar minha inquietação, por muito ilógicos, tênues e mesmo supersticiosos
que possam parecer. Um deles é que tanto Montague como seu primo Saint Leger parecem aproveitar qualquer ocasião para pôr-me em evidência, tal e como me atreveria
a dizer que teve oportunidade de comprovar na reunião com o Comitê, quando tive que...

Um membro do clube vestido com uma casaca azul impecável e reluzentes botões entrou na biblioteca. Observou a ambos com olhar míope e se aproximou um pouco mais.

- Sir Joseph, o senhor não terá visto por casualidade a Edward Cadogan? - perguntou.

- Não, senhor, não o vi - respondeu Blaine.

- Então terei que ir procurá-lo na sala de bilhar.

A porta se fechou ao sair; entretanto Blaine aproveitou para servir-se de mais conhaque.

- Além disso, o senhor deve se recordar que me pediu que conseguisse os perdões tanto da senhora Oakes, como de seu querido Padeen, por terem cometido o crime de
abandonar Botany Bay sem permissão. Pareceu-me coisa feita. Clarissa era a viúva de um oficial da marinha morto em um combate muito louvável, e quando me pareceu
adequado não perdi ocasião de mencionar os serviços peculiares que sua senhora prestara ao Serviço de Inteligência; por outro lado, os serviços prestados pelo senhor
ao Almirantado e a alguns de seus pacientes mais ilustres poderiam bastar para amparar ao pobre Padeen. Contudo, meus progressos extra-oficiais não foram satisfatórios;
sofri atrasos estranhos e acusado uma certa reserva encoberta. Não gosto de pressionar com uma petição direta, menos ainda de fazê-lo por escrito, pelo menos até
estar seguro de obter uma resposta favorável. Havia pensado em abandonar os canais habituais e recorrer ao duque de Sussex, tendo em conta que tanto o senhor como
ele são membros da Royal Society e membros fundadores do Conselho contra a escravidão, mas partiu para Lisboa, e neste tipo de assuntos os prolegômenos devem fazer-se
verbalmente.

- Sem dúvida - admitiu Stephen.

- Seja como for - continuou Blaine depois de considerar a questão, - este segundo caso não é senão acadêmico. Se os dois sujeitos em questão não propagandearem sua
presença, a possibilidade de que sejam incomodados é extraordinariamente remota. Cito seu caso somente como um exemplo a mais das consequências que derivam do desagrado
de alguém importante. Se ele tornou pública a sua aversão, se ele exclamou "Esse velho estúpido de Blaine, do Almirantado", por exemplo, a notícia correria como
pólvora; pelo menos eu me tornaria levemente leproso, e ninguém em seu são julgamento quereria fazer-me um favor. Isso é tudo. Não pretendo dar a entender nenhum
tipo de malignidade direto, cujo braço abarque a ninguém exceto a mim, e talvez ao senhor, se é que realmente existe tal malignidade, e não é consequência de minha
mente esgotada e de uma imaginação desmedida.

- Estas são as folhas da Erythroxylon coca, a coca ou folha de coca - disse Stephen, depois de sacar uma bolsa de pele de lhama. - Já faz algum tempo que recorro
a ela, assim como muitos habitantes do Peru. Dobra-se na forma de uma bola e a introduz na boca, acrescenta-se a seguir um pouco de suco de limão, e a mastiga suavemente
de vez em quando, primeiro com uma bochecha e depois com a outra, experimentará no início um calor agradável na língua, nas bochechas e no extremo de sua laringe,
seguido por uma clareza extraordinária de pensamento que irá aumentando, além de serenidade e uma percepção que converterá qualquer preocupação em uma simples minúcia.
A maior parte das preocupações que possamos ter são o resultado de noções confusas, geralmente falazes, e do nervosismo. Tudo isso se acumula e aumenta em proporção
direta ao declive de nossa capacidade para raciocinar. Não lhe aconselho tomá-las agora se o senhor valoriza uma noite de sono reparador, pois, geralmente, a coca
costuma tirar o sono; mas prove-as amanhã pela manhã. Não há folhas como estas em todo o mundo, eu lhe digo.

- Se reduz a ansiedade, ainda que seja em um cinqüenta por cento, peço que me permita tomá-las agora mesmo - disse Blaine. - Esse duque holandês não é minha única
preocupação, ainda que sim a mais sobrevalorizada se a comparo com a situação do Adriático, em Malta, por não mencionar a atual crise do Levante.

 

A Ringle chegou a Shelmerston com os últimos estertores do vento do nordeste, cruzou a barra e jogou âncora junto da Surprise, cuja tripulação de guarda, uma guarda
de porto, cumprimentou com os gritos que eram de esperar.

- Onde diabo vocês tinham se metido?

- Que estavam fazendo? Bebendo até se embebedar, creio.

- Nem o coche mais lento teria demorado tanto a chegar até aqui.

- Uma carroça lhes teria ganhado por um dia inteiro.

Stephen, Tom Pullings, Sarah, Emily e Padeen se apressaram a desembarcar, apertaram-se em seus carros postais e partiram de imediato para Ashgrove. Contudo, apesar
de toda a pressa que se deram, tanto as cartas enviadas urgentemente, como os sinais e as ordens que viajaram por semáforo desde o teto do Almirantado até Portsmouth
lhes haviam ganhado por uma mão; e foi com o resultado do terceiro destes meios em seu poder, que a senhora Williams - uma mulher baixinha, gorda e de rosto aceso,
se possível ainda mais aceso devido ao nervosa que estava - pôde dizer a sua filha, Sophie Aubrey:

- A Ringle passou por Portland Bill às quatro e meia, de modo que o doutor Maturin chegará nesta mesma tarde. Acho que é meu dever, e nisto a senhora Morris concorda
comigo, compartir com o capitão Aubrey tudo o relativo ao desgraçado comportamento de Diana, de modo que possa contá-lo tranqüilamente ao seu amigo.

- Mamãe - disse Sophie com firmeza. - Eu lhe rogo que não faça tal coisa. Sabe perfeitamente que necessita de repouso, e o doutor Gowers disse que...

- O doutor Gowers, senhora, com sua permissão - anunciou o mordomo.

- Bom dia, senhoras - cumprimentou Gowers. - Se lhes parece adequado darei uma espiada no capitão, e depois veremos que podemos fazer pelas crianças. - Mais tarde,
quando descia pelas escadas, disse: - Tão bem como era de esperar, mas deve permanecer em completo repouso, com o quarto às escuras. Talvez poderiam ler-lhe algo
em voz baixa. Os sermões de Blair, ou os Pensamentos noturnos de Young iriam de maravilha. Recentemente sofreu uma grande agitação mental. Além disso, deve ingerir
cada três horas três destas gotas, dissolvidas em um copinho de água. Que jante esta noite, mas não muito, e que coma um pouco de queijo. Nem novilho nem cordeiro,
certamente. - Ele e Sophie se apressaram a dirigir-se aos quartos de Charlotte, Fanny e George, que, imediatamente depois de sua rápida chegada de Dorset, tinham
contraído febre alta, tosse ruidosa, dor de cabeça, inquietação, sede e certa tendência a queixar-se continuamente.

Quando saíram, a senhora Williams se aproximou caminhando sem fazer ruído do quarto onde repousava seu genro. Ali se sentou junto a sua cama e lhe perguntou como
se encontrava. Depois de ouvir que estava bem e que tinha muita vontade de ver Stephen Maturin, ela tossiu e encostou a cadeira um pouco mais.

- Capitão, para que o senhor possa ajudar seu desgraçado amigo quando chegue o momento de digerir tão terríveis notícias, acho meu dever contar-lhe que, desde o
nascimento dessa filha tonta, Diana tem bebido em excesso. Esteve conduzindo pela campina, jantando em companhia de pessoas que residem inclusive a vinte milhas
de distância, amiúde indivíduos de vida dissoluta como os Willis, e assistiu a bailes e orgias em Portsmouth, empenhada continuamente na caça da raposa sem sequer
um moço que a acompanhasse. Não é boa mãe para a pobre garota, e se não fosse por sua amiga, essa senhora Oakes, a menina estaria dia e noite sob os cuidados dos
serviçais. Pior ainda - disse baixando a voz ainda mais, - pior ainda, senhor Aubrey, e como poderá imaginar isto lhe digo com grande pesar pois se trata de minha
própia sobrinha, pior ainda, dizia, existem dúvidas a respeito de sua conduta. Digo dúvidas, mas... Entre outros nomes se mencionou com freqüência ao coronel Hoskins,
e a senhora Hoskins já não devolve as visitas de Diana. A senhora Morris afirma... Oh, mas aqui está ela. Entre, entre, Selina, querida.

- Oh, capitão Aubrey, temo que trago tristes notícias para o senhor - disse Selina Morris; - não obstante acho que deveria saber. Achei que dizer era o mais adequado,
pois sucede amiúde que um alimenta uma víbora em sua própia casa sem saber. Agora mesmo, a partir de uma informação fornecida por nosso homem Frederick Briggs, surpreendi
Preserved Killick dirigindo-se aos dormitórios do serviço com um odre de vinho. "Aonde acha que vai com esse odre de vinho, Killick?", perguntei, e com esse desembaraço
e a insolência que lhe são tão própias me respondeu: "O capitão me deu", e se há afastado como se nada. Eu o adverti que informaria ao senhor do sucedido sem perder
um minuto, e vim aqui antes que pudesse ocultar o odre ou devolvê-lo à adega. Eu lhe asseguro que o esforço me deixou sem fôlego.

- Muito amável de sua parte, senhora Morris - disse Jack, - mas o fato é que eu mesmo lhe dei o odre.

- Oh, verdade? Bem, em todo caso minha intenção era boa, disso estou segura, e vim correndo todo o caminho. Meu pai não costumava dar... - Mas ao perceber que os
costumes de seu pai não tinham a menor relevância para o caso, por mais que fosse um par do reino{7}, retirou-se sacudindo de tal maneira os ombros, os braços e
o traseiro, que fez patente seu descontentamento.

- Mas como lhe dizia antes que Selina entrasse aqui, empenhada em uma errônea ainda que justificada missão, o maior motivo de desaprovação e comentários o constitue
a relação praticamente aberta (como chamá-la, se não?) que manteve com o cavalheiro que administrava sua cocheira, o senhor Wilson, tarefa imprópria de uma mulher,
por mais que se trate de uma mulher casada, por certo. Trata-se de um homem de bom aspecto com umas costeletas ruivas que não têm nem ponto de comparação com as
de Selina Briggs, e que se bem não vivia na mesma casa ficava muito perto, em um canto isolado do lugar. A última vez que a vi, e isso já faz um tempo, pois nunca
oculto nada do que penso de minha sobrinha, ainda que ela não se ajustasse nunca a obedecer a sua tia porque sempre foi uma garota rebelde...

- Mas se a senhora mesma me disse que foi ela que lhe deu uma forte soma de dinheiro.

- Talvez fora assim. Mas o dinheiro não significava nada para ela (além talvez dos enormes benefícios que podem render; pois o doutor Maturin deixou muito, muito
dinheiro em suas mãos, dinheiro que maneja de forma descontrolada, além de carecer da devida supervisão). De toda forma Selina e eu lhe devolveremos a soma assim
que nos for possível. Contudo, a última vez que a vimos, a senhora Morris estava segura de que estava grávida; e agora nos informamos de que enviaram todos os cavalos
para Londres, que estão despedindo os moços, e que ela mesma já não está, sem dúvida porque fugiu com seu capataz. Explique-o tranqüilamente ao seu amigo, ou ficará
louco.

- Não penso fazer nada semelhante.

O silêncio de Jack havia convencido a senhora Williams de que a sua era uma decisão irrevogável.

- Palavra - exclamou indignada - de que em tal caso serei eu que falarei com ele.

- Se se atrever a falar com ele a este respeito - advertiu Jack em voz baixa mas carregada de convicção, - tanto a senhora como a senhora Morris e seu servente Briggs
se encontrarão fora desta casa em menos tempo do que canta um galo.

A senhora Williams mudara muito durante sua ausência, mas não tanto como para estar disposta a renunciar por bem a alojar-se em uma casa confortável desde que surgisse
a possibilidade. Fechou com força os lábios e, pálida de ira, abandonou o quarto com mais ou menos os mesmos gestos e sacudidas de sua amiga.

Jack se recostou. Era feliz demais para que a irritação durasse muito: já conhecia a maior parte do que a senhora Williams acabava de contar-lhe a respeito de Diana.
Durante a viagem, a correspondência de Sophie, apesar de ser tão espaçada, havia lhe mantido a par da situação; e ainda que sabia perfeitamente que a opinião de
Diana à respeito da moral sexual era muito parecida com a sua, não acreditava em nem uma décima parte de toda aquela fofoca, e sobretudo não estava disposto a acreditar
que ela tivesse fugido com o homem que administrava sua cocheira. Ainda que lamentava de sério a terrível, a funda e inevitável decepção que seria para Stephen a
filha que tanto ansiara, pensou que seu matrimônio resistiria. Assim fora até o momento, apesar das tensões extraordinárias às quais se vira submetido.

A alegria e a tristeza remexiam de atividade no interior de sua cabeça, e em parte, tanto para fugir da confusão resultante, como do doloroso que era para ele sentir-se
alegre em um momento assim, refletiu deliberadamente nas mudanças experimentadas pela senhora Williams. Diana, como muitas de suas amigas, sempre estivera mais do
que disposta em respaldar um bom cavalo mediante uma aposta, e depois de apostar uma forte soma a trinta e cinco para um no animal que ganhou em Saint Leger há dois
anos, achou-se com várias milhares de libras à sua disposição. Repartiu parte de sua aposta em pequenas somas, desde meio guinéu do boxe peso galo até as vinte e
cinco para a anciã lady West (cujo marido, assim como o pai de Diana, havia servido como oficial de cavalaria), mas a maior parte foi parar em algumas apostas de
cinco guinéus jogadas por senhoras viúvas de Bath, de boa posição, que gostavam de apostar: somas que os escritórios importantes e confiáveis de Londres nem sequer
se molestariam em administrar, enquanto que não tinha objeto sequer confiá-las em mãos dos do lugar, a triste ralé. Quando pagou a todas estas felizes criaturas,
sugeriu a sua tia - que naquele momento estava sem um penique e, oh, era mansa como um cordeiro - que se encarregasse da empresa em troca de uma porcentagem, pois
fazia as vezes de agente de apostas (aí está o caso), que Diana se lhe ensinaria como fazer as contas. Não acabava de entender que papel representava a senhora Morris
em tudo isto, mas o certo é que sua presença dava respeitabilidade ao negócio. O servente desta, um homem alto enfronhado em uma casaca negra que tinha aspecto de
ser um pastor dissidente e que exigia dos outros serventes que o chamassem de senhor Briggs, trabalhara para um propietário de cavalos de corridas e estava familiarizado
com o tema. A conversa de ambas fazia delas pessoas pouco recomendáveis, mas eram membros aceitos desse mundo, e sua respeitabilidade combinada com sua habilidade,
discrição e conveniência tinham rendido frutíferos resultados. Jack não entendia como a senhora Williams tinha feito para conciliar esta ocupação com a rigidez de
seus princípios, claro que, quando era rica, os princípios nunca lhe impediram de empreender a busca ativa de qualquer investimento que rendesse elevados benefícios
(até que um procurador que lhe ofereceu uma vez alguns negócios a trinta e um por cento que foi sua perdição), e talvez tudo isso fizesse parte de um todo. Fosse
como fosse, era cada vez mais rica e cada vez mais insuportável. Jack pensava muito nisto, pensando em um aforismo que tinha na ponta da língua, quando ouviu o ruído
das rodas no caminho, seguido pelas portas de uma carruagem que se abriam e se fechavam, passos no cascalho, mais vozes elevadas, passos no corredor, até que viu
Stephen abrir a porta do quarto onde tinham colocado sua cama.

- Diabo, meu pobre Jack - exclamou em pouco mais que um sussurro, - quanto lamento ver-te prostrado, meu amigo. Seus ouvidos e olhos doem? Pode falar?

- Claro que posso, Stephen - respondeu Jack em voz alta. - Hoje estou muito melhor, e não sabe quanto me alegra vê-lo. Mas em quanto a estar prostrado, é só a cabeça,
pois meu coração dá pulos igual a um cordeiro. Na quarta-feira pela manhã recebi um bilhete que o correio me trouxe, emitido pelo almirante ao comando do porto,
que homem mais valioso. Pequeno bilhete..., mas diga-me, que tal a viagem? Encontrou tudo em ordem na cidade?

- Tudo bem, obrigado. Sir Joseph me pediu que trouxesse uma estátua para entregá-la a um amigo seu em Weymouth, de modo que voltei com Tom a bordo da Ringle, peguei
Sarah e Emily em Shelmerston e viemos todos no carro postal. Tom nos acompanhou: ordens. Pode ouvi-lo rugir no jardim. Pretendo levar as meninas para Barham para
que fiquem com Diana um tempo, e depois as levarei ao Grapes, onde viverão com a senhora Broad. Mas Jack, parece que sua casa anda um pouco alvoroçada. Quer que
peça a Tom que ponha um pouco de ordem?

- Nem pense nisso. Lamento o ruído; esse chiado que ouve é coisa de Sophie. Acho que está acima falando com ele, mas o fato é que as crianças adoeceram, as três
de uma vez, e comigo neste estado o lugar está entregue a algumas raposas. Gostaria de saber o que dizia o bilhete, Stephen?

- Se tiver a bondade.

- Bem, pois resulta que obterei o comando do Bellona, de 74 canhões, com um galhardetão e Tom como capitão sob meu comando; o Terrível, outro navio de 74 canhões,
e três fragatas, uma das quais será provavelmente a Pyramus, além de uma meia dúzia de corvetas, para cruzar frente às costas da África das que tanto me falou Heneage
Dundas. Assombrado? Palavra que me tive uma boa surpresa. Acreditava que era uma dessas coisas que se dizem por aí, muito boas para serem verdade.

- Eu lhe felicito de todo coração por seu novo comando, meu amigo. Queira Deus que seja longo e próspero.

- Virá comigo, Stephen, verdade? Em princípio temos que combater o tráfico de escravos, como bem recordará; e por volta do dia 25 do mês que vem deveria estar tudo
disposto, governado e apetrechado.

- Eu gostaria muito. Mas agora, meu querido comodoro, devo ir dar uma espiada em seus filhos. Prometi a Sophie enquanto seu médico os visitava, porque assim poderemos
contrastar nossa sapiência sobre medicina. Também lhe prometi que não lhe fatigaria. Depois partirei rápido para Barham; se não chego lá ao anoitecer, Diana poderia
pensar que estou estendido em alguma vala perdida do caminho.

- Sophie faz um tempo que não a vê... - disse Jack depois de titubear, pois de repente sentia o coração imenso. - Acho que tem algo a ver com uma diferença de opiniões
com a tia de Diana. Mas Stephen, que não se decepcione caso não a encontre. Já sabe que ninguém tinha a certeza de que voltaríamos por estas datas.

- Espero que dentro de alguns dias possa voltar com Diana para ver como anda - disse Stephen com um sorriso; - entretanto, pedirei ao doutor Gowers que lhe prescreva
um pouco de heléboro para acalmar a agitação de seu estado de ânimo e aplanar o terreno para a cura.

Encontrou Tom Pullings no saguão. Estava completamente sozinho, pulava como uma cabra louca e parecia concentrado em toda sorte de palhaçadas. Ao ouvir os passos
de Stephen se virou rapidamente, e seu rosto transluzia tal felicidade, que nem sequer o Diabo em pessoa teria evitado sorrir.

- O senhor acha que poderia ver o capitão? - perguntou.

- Pode senhor, mas não fale alto e não faça nada que possa agitá-lo.

- Hasteará um galhardetão a bordo do Bellona, e me nomeou para que seja seu capitão - sussurrou Pullings depois de apertar seu ombro com mão de ferro. - Ele me promoveu
a capitão de navio! Sou capitão de navio! Achei que isso jamais aconteceria.

- Não sabe o feliz que me sinto - Stephen o felicitou, apertando-lhe a mão. - A este passo, Tom, viverei para felicitar-lhe por hastear sua insígnia de almirante.

- Obrigado, obrigado, senhor - disse Tom enquanto subia as escadas de dois em dois degraus. - Jamais tinha ouvido nada tão bem exposto, nem com tanta elegância e
engenho.

- Sophie, meu amor- disse Stephen antes de beijá-la em ambas as bochechas, - não poderia estar mais radiante, querida, ainda que percebo certa tensão em você; além
do mais, eu diria que inclusive tem febre. Acho, doutor Gowers, que poderíamos aproveitar a situação para receitar uma dose de heléboro tanto para a senhora Aubrey
como para o comodoro.

- O comodoro - murmurou Sophie, apertando-lhe o braço.

- Concordo plenamente com meu colega - disse Stephen depois que ambos observaram as crianças, que permaneceram aturdidas desde que entrou. - Trata-se de um estado
avançado de um princípio de sarampo. Observe o aspecto inchado e retardado que tem o rosto da pobre Charlotte.

- Não sou Charlotte. Sou Fanny; e meu rosto não está inchado nem retardado.

- Oh, Fanny, que lástima - exclamou sua mãe muito preocupada, antes de passar a chorar.

- Tão inchada e retardada que não tardará em manifestar-se a erupção. Lamento muito que seja sarampo, porque não poderei trazer as meninas para que conheçam as pacientes.
Como a maioria das pessoas negras, não estão protegidas contra a doença, e pode ser mortal para elas. E agora, querida Sophie, devo ir recolhê-las. Peço que não
se mova. - E, ao seu ouvido, acrescentou: - Sinto-me muito feliz por Jack.

- Em breve verei o rosto de uma pequena que não está nem inchado nem retardado, uma criatura que, além disso, é incapaz de responder desse modo - murmurou para si
Stephen enquanto descia pelas escadas.

No salão encontrou nada mais e nada menos que a senhora Williams, que estava a ponto de estourar do mau gênio que estava.

- Onde estão Sarah e Emily? - perguntou.

- As negrinhas? Eu as enviei para a cozinha, que é onde devem ficar - respondeu a senhora Williams. - Quando entrei não me cumprimentaram nem se dirigiram a mim
tratando-me de senhora. E quando lhes disse "Não sabem que não devem se limitar a dar bom dia sem nada mais como se falássem com o gato, e que ante uma dama devem
fazer uma reverência?", pois aí ficaram, olhando-se e sacudindo a cabeça.

- Tenha a senhora em conta, senhora - disse Stephen, - que passaram boa parte de sua vida a bordo de um barco de guerra, onde não há damas que valham, e onde as
reverências, se existem, tão somente se observam com o oficialato.

- Entendo que são de sua propriedade - replicou a senhora Williams, depois de aspirar com força; - Sendo assim, devo informar ao senhor que na Inglaterra está proibida
a escravidão, de modo que o mais provável é que o senhor perca suas meninas. Nas colônias, sim; mas jamais devemos esquecer que a Inglaterra é um país livre e que
quando os escravos põem um pé em solo pátrio também eles são livres. Certamente que, como estrangeiro, não pode compreender nosso amor pela liberdade. Mas jamais
devemos esquecer de prestar atenção a todos os aspectos de um negócio vantajoso, ou poderíamos descobrir que não adquirimos mais que fumaça. - Sua natureza ardilosa
e seu mau temperamento lhe impeliam a acrescentar algo com respeito à que a caridade começava em casa de um, pois ao pensar um pouco em suas roupas e desembaraço
pensou que talvez fossem protegidas em lugar de escravas, mas a pesar de tão chateada não se atreveu a chegar mais longe.

- A seus pés, senhora - disse Stephen depois de contemplá-la largamente com seus olhos claros, arrumar o chapéu e inclinar-se. Dirigiu-se à cozinha, onde encontrou
as meninas que descreviam para dois cozinheiros de barco afastados a beleza do gelo verde que tinham visto diante do cabo de Hornos.

Estiveram muito caladas durante o restante da viagem, e aproveitaram para observar a maravilhosa e desconhecida campina inglesa sob a luz do entardecer. Stephen
fez o memo. Seus pensamentos, assim como os de Jack, eram confusos dada a variedade de emoções fortes que sentia: a ansiedade do reencontro entremesclada com um
medo que temia sequer nomear; e, assim como Jack, procurou refúgio refletindo a respeito da senhora Williams. Não só deixara de ser a parente pobre e desesperada
- continuamente consciente de sua dependência, - a recuperar seu anterior grau de segurança em si mesma (ainda que não de domínio, pois Sophie se tornara mais forte
que ela) e de revoltante beatice; também havia experimentado uma mudança nesse ser anterior, uma espécie de dissipação acrescentada, uma tendência a abandonar-se
em um divã, uma grosseria absurda, ocasional e inapropiada, ou, no mínimo, uma expressão totalmente incongruente e incivilizada, como se ao manejar as apostas tivesse
absorvido parte da rudeza que reina no ambiente das corridas de cavalos.

- Não me surpreenderia nada que tenha adotado o costume de jogar um pouco de genebra no chá - disse em voz alta, - e que também cheire tabaco em pó.

Pouco depois de pronunciar estas palavras começou a chover. A paisagem se desvaneceu, e Emily adormeceu no colo de Padeen. O postilhão acendeu as lâmparinas que
haviam no interior da carruagem, pediu perdão, voltou a perguntar o endereço, e conduziu lentamente, clop, clop, clop. Percorrida uma milha mais ou menos, depois
de trocar gritos com o granjeiro de uma carroça, o postilhão voltou a deter-se, aproximou-se de novo da porta, rogou que lhe perdoassem e disse que temia muito que
tinham tomado o caminho equivocado. Poderia girar quando encontrasse espaço para fazê-lo. Esta cena se repetiu uma ou duas vezes mais, mas não muito depois do pôr
do sol chegaram ao pelado terreno elevado que conduzia a Barham Down.

A carruagem se aproximou da imponente porta que havia em metade do imóvel, em cujo interior não havia luzes acesas. As meninas acordaram inquietas, cansadas; Padeen
começou a desatar a bagagem; Stephen fez soar o sino e chamou com os nós dos dedos à porta, enquanto seu coração batia com força.

Não houve resposta, mas um cachorro começou a latir na parte traseira da casa, talvez na cozinha. Voltou a bater na porta com a sensação de que algo raro passava
ali dentro. Puxou a corda do sino, e pôde ouvi-lo reverberar dentro da casa, muito adentro.

Uma luz se filtrou pelas fendas da porta, que se abriu tudo o que prendia a trava.

- Quem é? - perguntou a voz de Clarissa.

- Stephen Maturin, querida. Lamento ter chegado tão tarde.

A trava deslizou com um golpe um pouco forte e a porta abriu se escancarando. Ali estava Clarissa com uma lanterna na mesa que havia ao seu lado e uma pistola na
mão.

- Oh, quanto me alegro de ver-lhe - exclamou com certo receio apesar de sua alegria. Desarmou a pistola, que obviamente estava carregada, largou-a em cima da mesa
e estendeu sua mão.

- Bobagens - disse Stephen, - para meus braços. - E a beijou.

- O senhor não mudou nada - disse ela sorrindo antes de retroceder um passo e convidá-lo para entrar.

- É sério que a senhora está sozinha? - perguntou sem mover-se, apesar de que seu olhar auscultava a funda escuridão que cobria o saguão, e com o ouvido atento ao
menor ruído.

- Sim... sim - respondeu depois de titubear. - Bem, além de Brigid.

Stephen se aproximou para acertar o pagamento com o moço da posta e voltou acompanhado pelas meninas. Padeen o seguia com a bagagem a custas.

- Aqui lhe trago alguns velhos companheiros de tripulação - disse levando-as pela mão. - Sarah e Emily, façam a devida reverência diante da senhora Oakes, e perguntem-lhe
como está.

- Como está, senhora? - perguntaram em uníssono.

- Muito bem, obrigado, queridas - respondeu beijando-as. Apertou a mão de Padeen, e ainda que não se deram de todo bem quando navegaram juntos a bordo da Noz-moscada,
os viajantes ansiavam ouvir uma voz amiga naquelas paragens tão estranhas e tão alheias a sua existência no mar. Não só lhes parecia estranho a paisagem, o campo,
pois carecia de qualquer das coisas que se encontrava a bordo de um barco e dos prazeres de um porto, cheio de gente estranha que em qualquer momento podia lançar-se
sobre um, aliás esta casa em particular se encontrava fora dos limites de sua experiência. De fato, era um edifício peculiar, elevado, frio e austero, um dos poucos
casarões antigos que não tinham sofrido alterações ao longo dos últimos dois séculos, de modo que o salão estendia-se até o teto, muito mais sombrio, se cabe, graças
ao horário e à insuficiente luz da lanterna.

Clarissa os conduziu lentamente ao longo do piso, quase como se temesse fazê-lo, até que dobrou uma curva à direita e se acharam em uma sala coberta por um tapete
que dispunha de candelabros e um fogo. Uma menina construía um castelo de baralho em uma mesa, junto à chaminé.

- Não se preocupe, senhor, se ela não fala - murmurou Clarissa, e Stephen se apercebeu da angústia controlada e implícita em sua voz.

A menina da mesa estava iluminada pelo fogo e por dois candelabros: estava meio virada para Stephen, que viu que se tratava de uma menina loira, magra e extraordinariamente
bela, ainda que a sua era uma beleza inquietante, própia de um duende. A medida que colocava as cartas seus movimentos se revelavam perfeitamente coordenados; olhou
para Stephen e para os outros por um momento sem mostrar o menor interesse, quase sem largar as cartas, e depois seguiu contruindo o quinto piso.

- Venha, querida, e apresente seus respeitos ao seu pai - disse Clarissa, pegando-a suavemente pela mão e levando-a, sem que fizesse nada para resistir, até onde
Stephen esperava de pé. Ao chegar, inclinou-se empertigada ante ele, e apesar de mostrar uma intenção de se afastar deixou que a beijasse. A seguir Clarissa a conduziu
até os outros; disse seus nomes; eles se inclinaram ante a menina e Brigid caminhou gracilmente até o castelo de baralho, sem se importar com seus rostos negros
e sorridentes, ainda que tenha levantado o olhar um momento para observar a Padeen.

- Padeen - disse Clarissa, - vá por esse corredor aí, e depois da primeira porta a sua direita - disse levantando a mão direita - encontrará a cozinha; lá estão
a senhora Warren e Nellie. Por favor, dê-lhes esta nota.

Stephen se sentou em uma poltrona de canto afastada da luz, de onde observou a sua filha. Clarissa perguntou a Sarah e Emily pela viagem, por Ashgrove e sua roupa.
Todas se sentaram em um sofá, e falaram demoradamente; a medida que venciam a timidez; mas o fizeram sem afastar o olhar da frágil, absorvida e mesmo possuída figura
iluminada pelo fogo da chaminé.

A senhoras Warren e Nellie tomaram seu tempo antes de aparecer, pois tiveram que pôr uniformes e coifas para estar à altura de poder apresentar-se ante o doutor,
que, afinal de contas, era o senhor da casa. Um cachorro de focinho branco se misturou entre elas e o primeiro alívio da terrível, da extraordinária dor que torturava
Stephen - uma dor tão intensa como nunca sentira, nem em intensidade nem em natureza - sobrevia quando o velho cachorro cheirou a parte posterior do tornozelo de
Brigid, e esta, sem deixar de mover suavemente a mão esquerda, estendeu a outra para coçar-lhe a testa enquanto um lampejo de prazer rompia sua seriedade. Contudo,
não houve nada mais que perturbasse sua indiferença. Viu desabar o castelo de baralho, vítima cambaleante de uma corrente de ar, com uma compostura sem igual; mastigou
o pão e tomou o leite junto a Emily e Sarah, sem que parecesse aperceber-se de sua existência; e depois de que Stephen lhe desejou boa noite, foi para a cama sem
protestar nem se queixar. Observou com outra pontada no peito que, se por casualidade cruzavam seus olhares, seus olhos seguiam movendo-se como teriam feito diante
de um busto de mármore, como se carecesse do menor interesse, ou pertencesse a outra espécie.

- Pode falar? - perguntou quando se sentou à mesa da sala de jantar em companhia de Clarissa, servido de frango frio com presunto, queijo, e um bolo de maçã, depois
de enviar os serventes para dormir.

- Não estou segura - respondeu Clarissa. - Às vezes a ouvi articular algo parecido com a fala; mas quando entro se cala.

- Até que ponto entende o que se diz?

- Acredito que entende praticamente tudo. E a menos que esteja em um de seus maus dias, é muito boa e obediente.

- Inclusive afetuosa?

- Gostaria de pensar que sim. Certamente, é muito provável, ainda que seja difícil distinguir suas amostras de afeto.

- Quererá falar-me de Diana? - perguntou Stephen enquanto cortava outro pedaço de queijo, depois de comer com fome de lobo durante um tempo. - Quer dizer, o que
a senhora creia conveniente dizer-me. - Clarissa o olhou como se hesitasse o que fazer. - Não me refiro a nada de amantes ou detalhes que a senhora não contaria
de uma amiga. Suponho que as senhoras são amigas.

- Sim. Foi muito amável quando Oakes se fez ao mar, e ainda mais amável quando o mataram; ainda que por então estava claro que Brigid não era como as pessoas normais,
o que lhe causava uma angústia tremenda, e por isso bebia em excesso e podia falar sem travas e mesmo mostrar-se indiscreta. Mas a verdade é que foi muito amável.
Ensinou-me a cavalgar, que consolo. Muito amável, e o senhor sabe que não sou uma pessoa ingrata - disse Clarissa, apoiando a mão no braço de Stephen. - Ainda que
tinha suas reservas comigo, provavelmente porque em seu foro íntimo estava convencida de que eu era ou fora sua amante. Quando aleguei minha completa indiferença
quanto a estes assuntos, ela se limitou a sorrir educadamente e a repetir essa frase tópica: Les hommes, c'est difficile de s'endormir sans (Os homens, é difícil
dormir sem); não podia prová-lo explicando-lhe todas as confidências que o senhor tão amavelmente escutou naquela remota ilha, quando viajávamos a bordo de minha
querida Surprise. Confidências, se me permite dizê-lo, que nunca havia feito a ninguém mais que ao senhor, coisa que me propus continuar fazendo no futuro, tal e
como me recomendaram tanto o senhor como sir Joseph. Para o mundo sou uma governanta que, agoniada por seu emprego em Nova Gales do Sul, fugiu com um marinheiro.

- Quando a senhora supõe que ela começou a sentir-se infeliz?

- Oh, muito cedo; bastante antes de conhecê-la. Acho que sentia nutas saudades do senhor. E pelo que ouvi o parto foi mais difícil do habitual: um esforço interminável,
também acompanhado do estúpido que fazia as vezes de parteira. O bebê ficou aos cuidados de uma ama-de-leite, certamente. Quando voltou, a menina parecia encantadora
e Diana se deu conta de que ia amá-la com toda sua alma. Mas imediatamente deu mostras desta total indiferença por tudo e por todos. A menina não queria carinho
nem ser carinhosa. Diana nunca na vida havia se encontrado com nada parecido, não sabia o que fazer e sofria muito por isso. Acho que quando cheguei lhe servi de
certo alívio, mas minha presença não foi suficiente e cada vez se tornou mais e mais infeliz, e inclusive difícil. Sua tia, a senhora Williams, não foi precisamente
amável com ela, conforme acredito. E a medida que o tempo passava Brigid não parecia experimentar nenhuma melhora, muito pelo contrário. A indiferença se converteu
em uma clara aversão, e mesmo em frio desprezo.

- Sabe se recebeu alguma de minhas cartas?

- Desde minha chegada não recebeu nenhuma, exceto a que lhe entregamos Oakes e eu. Teriam sido uma grande ajuda para ela. Começou a perder a esperança; já sabe,
perdem-se tantos barcos. Mesmo assim ansiava seu regresso. Obviamente. Então começou a cismar com a casa: o senhor não devia ter permitido que a comprasse; é fria,
solitária e incômoda. Amou aos cavalos quase até o final, mas de repente me disse que ia abandonar a cocheira, ainda que não ia mal, e uma semana depois enviou todos
os cavalos para Tattersalls com o senhor Wilson, o capataz; todos excetuando um cavalo e duas éguas que foram ao norte... Esqueci o nome da casa à qual os enviaram.
Em qualquer caso, fica perto de Doncaster. Despediu todos os moços exceto ao velho Smith, que conservou o emprego para cuidar de meu pequeno cavalo árabe, do pônei
e da carruagem. Contudo, sei que se correspondeu com suas amizades para procurar-lhes trabalho em suas casas, e me rogou que me ficasse aqui com Brigid até que pudesse
dispor as coisas. Deixou-me certa soma em dinheiro e me asegurou que me escreveria. Soube dela em uma ocasião, desde Harrogate, mas desde então, nada.

- Nunca foi muito amiga das cartas.

- Não. Contudo, escreveu uma que devia entregar ao senhor pessoalmente, em caso de que a fragata o trouxesse de volta. Gostaria de lê-la?

- Se é tão amável.

Quando Clarissa se foi, Stephen enrolou uma bola enorme de folha de coca, que, contudo, jogou ao fogo antes de que Clarissa abrisse a porta.

- Lamento ter demorado tanto - desculpou-se. - Por favor, se desejar abra-a de imediato. Trarei um pouco de vinho do porto, se puder achá-lo.

"Stephen - leu, - sei que despreza às mulheres fracas, mas não tenho coragem suficiente para agüentar mais. Se regressar, se algum dia regressar, não me depreze."

Clarissa voltou com uma jarra. Durante alguns minutos não trocaram uma só palavra. Ouvia-se a chuva cair do beiral. Após um tempo, Stephen se serviu do vinho, e
ao recuperar a consciência de si mesmo, disse:

- Clarissa, estou infinitamente agradecido por ter ficado aqui para cuidar de minha filha. Amanhã devo ir à cidade com Sarah e Emily, mas se posso deixarei Padeen
aqui com a senhora. Com a casa vazia, não acho que seja muito adequado que as senhoras fiquem aqui com um criado ancião. Prometi voltar a Ashgrove uma semana antes
de que a esquadra parta, e até então espero que possamos dispôr tudo melhor. Estava em Bath, disse como se falasse ao acaso, e na costa de Sussex. De sua parte Gosport
oferecia a comodidade de contar com um agradável ambiente naval, pois estava claro que um lugar tão isolado como Barham Down, com o tempo, teria afetado inclusive
ao ânimo de um anjo. Clarissa estava de acordo em que a casa era fria, escura e triste, ainda que desfrutava de alguns terrenos incríveis para montar. Havia se interessado
muito em montar.

- Claro, um cavalo brioso pode converter-se em um companheiro estupendo e compreensivo - opinou Stephen. - Mas agora, querida, quando tenhamos bebido o vinho do
porto, bom vinho este, eu gostaria de me retirar se me permite. Onde vou dormir? - Ouviu-se dizer a si mesmo: quase de imediato compreendeu que aquela era, que podia
ser, uma pergunta equívoca, e sua mente começou a dar voltas e mais voltas.

Clarissa guardou silêncio com expressão séria.

- Eu estive pensado - disse. - Nellie e eu limpamos na sexta-feira o quarto de Diana. Um rato havia arrumado sua toca entre um dos postes da cama e a cortina: parecia
uma meada redonda e macia com cinco criaturas rosadas em seu interior. Passou a correr, certamente, mas deixamos a toca em uma caixa, e quando voltou fechei a tampa
e os levei ao palheiro. Até agora não recordava se tinhamos voltado a fazer a cama, mas agora estou segura. Lençóis novos e cortinas limpas.

 

CAPÍTULO 3

- Papai! - gritava Fanny enquanto corria em direção à cocheira, da qual ainda a separavam duzentas jardas. - Papai, o seu uniforme chegou!

- Fan - exclamou Charlotte, a mais gorda das gêmeas, que corria atrás dela, - não grite tanto que a senhorita O'Hara ainda lhe ouvirá. Por que não me espera? Espera,
oh, espera-me. - Contudo, sua irmã seguiu correndo ao mesmo passo e, ao ver que não poderia alcançá-la, Charlotte se deteve, levou a mão direita à bochecha, mais
ou menos como fazia seu velho amigo Amos Dray quando advertia de um galerno aos do traquete, e rugiu a voz em grito: - Papai! Olá papai, seu uniforme de almirante
chegou! - Então, com a voz rouca devido ao esforço, acrescentou com um grito menos meritório: - Oh, George, deveria envergonhar-se. - Nesse momento, seu irmão pequeno
apareceu correndo por uma lateral do pátio do estábulo. Demonstrou uma melhor compreensão do tempo e da distância, de modo que atalhara pelo pátio da cozinha através
das groselheiras espinhosas, sem reparar nos espinhos, e saltara o muro para cair na vereda posterior. Naquele momento entrou a toda no estábulo, onde conseguiu
explicar-se com dificuldade, entre ofegos.

- Papai. Oh, senhor. O uniforme chegou. Na carroça de Jennings.

- Obrigado, George - disse seu pai. - Jennings sempre é muito pontual. Encantam-me as pessoas que são capazes de respeitar a pontualidade. Pode pegar este estribo?
- passara em casa o tempo suficiente para que seus filhos voltassem a se acostumar com a sua presença. As filhas entraram pela porta sem observar a menor cerimônia,
e repetiram a notícia com maior veemência e riqueza de matizes, como saber quem tinha visto o carro pela primeira vez, a que distância, a cor do cavalo e dos pacotes,
seu número e formas fizesse que as notícias recuperassem parte de sua frescura.

- Sim, minhas queridas- disse Jack sorrindo: eram um par de mulher-macho, estavam a meio caminho entre a infância e a adolescência, quase eram bonitas e, às vezes,
podiam mover-se com a elegância de uma égua. - George acabou de me dizer. Abotoe essa fivela daí.

Jack seguia impertérrito.

- Bem, e não pensa em provar? - exclamou Charlotte com certa indignação. - Mamãe estava convencida de que o senhor viria para provar.

- Não há nenhuma necessidade. Tudo estava em ordem quando o provei pela última vez para ajustá-lo, exceto alguns botões que era necessário trocar, e as dragonas.
Já me aproximarei quando George e eu acabemos com este sobrecinto.

- Nesse caso, poderíamos, por favor, abrir a caixa das dragonas? Nunca vimos de perto a dragona de um almirante. A senhorita O'Hara diz que não devemos tocá-las
sob nenhum pretexto, a menos que o senhor nos dê sua permissão; e mamãe foi dar de comer à avozinha e à senhora Morris.

- Oh, papai, não viria ainda que fosse para pôr a capa do uniforme diário?

- Por favor, senhor - rogou George, - por favor, posso voltar a ver o sabre do uniforme de gala? Suponho que o senhor o usará quando vista o uniforme de gala, creio.

Jack subiu a escadinha que tinha a sua esquerda para pegar uma sovela e uma meada de fio de barbante.

- Bem, condenado George - murmurou Fanny, observando os arranhões produzidos pelos espinhos das groselheiras, - os pagará se a senhorita O'Hara o vê assim. Fique
aí, que lhe arrumarei com meu lenço.

- Mamãe terá uma decepção tremenda se não provar o traje, senhor - disse Charlotte enquanto dirigia seu vozeirão ao sótão.

 

Quando Sophie voltou com sua mãe e a senhora Morris, Jack se encontrava na sala azul, que dispunha de um closet ao qual só se podia aceder desde essa habitação;
neste closet, Killick, com o brilho do fanatismo em seu olhar, e sem esperar a permissão de ninguém, havia desdobrado o conteúdo de todos os pacotes do alfaiate.
Ainda que em seu foro íntimo era tão sujo, dado e bonachão como fosse possível sê-lo na Armada, regozijava-se na cerimônia - provavelmente, com vistas a um festim,
seria capaz de ficar polindo a prataria até as três da manhã - e inclusive mais ante um bonito uniforme. Pelo menos Jack havia correspondido à primeira destas paixões,
pois possuía um monte de prata e, em uma ocasião, os comerciantes das Índias Ocidentais lhe presentearam com um magnífico festim; mas até o momento sempre se havia
revelado como uma autêntica decepção quanto ao segundo, pois Killick remendara calções e capas velhas, que logo tinha virado do revés quando se viam gastas. Claro
que durante boa parte do tempo em que Killick servia ao senhor Aubrey, este fora extraordinariamente pobre e inclusive passara longas temporadas acossado pelas dívidas.

Contudo, a situação tinha dado agora um giro completo: finíssimos bordados em todas direções; uma incrível abundância de galões de ouro; solapas brancas; um novo
botão com a coroa em cima de uma âncora encepada, tudo isso brilhante como o sol; chapéus de três bicos; diversas espadas magníficas, e um sabre simples e pesado
para a abordagem; cinturões de marroquim azul; uma estrela na vistosa dragona de ouro, cujo ponte era de prata fosca; colete e calções de pano branco; meias brancas
de seda; sapatos negros com fivelas de prata...

Depois de superar a fase na qual provou o uniforme diário, que também era esplêndido, Jack abandonou o closet envolvido na gloriosa auréola do Almirantado, com o
cabelo empoado, a medalha do Nilo refulgindo presa do peito e adornado o chapéu engalanado com o pingente de diamantes que lhe havia dado o Grande Turco, cuja peça
central em forma de coração cintilava com qualquer tipo de luz.

- Hei aqui a rainha de Maio - disse.

- Oh, magnífico! - exclamaram as senhoras; e inclusive a senhora Williams e sua amiga, que tinham permanecido sentadas mordendo os lábios pois haviam se declarado
contra semelhante dispêndio, estavam que se derretiam, e acrescentaram: - Glorioso, soberbo. Soberbo. Soberbo.

- Hurra, hurra! - gritou George. - Oh, que não daria para ser almirante!

- Como me gostaria que Helen Needlam pudesse vê-lo - disse Charlotte. - Teria que pôr um ponto final ao seu fuxico incessante sobre o general e suas penas.

- Fan - disse Sophie ao mesmo tempo que voltava a colocar a capa de seu marido, e passava com a mão nas franjas de ouro de uma das dragonas, - vá perguntar à senhorita
O'Hara se gostaria de vir vê-lo.

O relógio da sala de jantar deu a hora, seguido por outros situados a diversas alturas da casa, o último dos quais era o lento e rouco carrilhão do estábulo.

- Por Deus santo - exclamou Jack tirando a capa e voltando a entrar no closet. - O capitão Hervey não tardará nada em chegar.

- Mas não o jogue no chão! - protestou Sophie. - E por favor, eu lhe rogo: cuide bem destas meias quando as tire. Killick, obrigue-o a livrar-se das meias pela fita.

Os homens partiram, descendo a toda pressa e com grande estrondo pelas escadas: Jack, vestido como um cavalheiro qualquer propietário de uma fazenda, em lugar de
ser um pavão da marinha; Killick com seu aspecto habitual, magro e arisco. As senhoras aproveitaram para entrar no tocador de Sophie. A senhora Williams e sua amiga
se sentaram juntas em um elegante divã de cetim das Índias, com corações entrelaçados no respaldo, e Sophie tomou assento em uma poltrona de canto que ficava ao
lado de uma cesta de calções por cerzir.

Chamou ao serviço para pedir o chá, mas antes de que o servissem sua mãe e a senhora Morris tinham recuperado sua habitual expressão de censura.

- Que é tudo isto que ouvimos com respeito à essas roupas tão caras que fazem parte do uniforme de um almirante? Suponho que o senhor Aubrey não será tão indiscreto
e irreflexivo como para ascender a um emprego superior ao seu, ao cargo de almirante, nada mais e nada menos. - Desde que mencionava a autoridade, a senhora Williams
adquiria uma expressão devota e respeitosa, mas antes de que desaparecesse interrompeu o argumento de Sophie com as seguintes palavras: - Recordo que faz muito,
muito tempo, fazia se chamar capitão quando só era comandante.

- Mamãe - protestou Sophie em um tom de voz mais elevado do que era habitual nela. - Acho que se equivoca: na marinha sempre chamamos um comandante de capitão, por
uma questão de cortesia; enquanto que um comodoro de primeira classe, o que equivale a dizer um comodoro com um capitão sob seu comando, um capitão de navio que
neste caso é o senhor Pullings...

- Sim, sim, o bom do senhor Pullings - disse a senhora Williams com um sorriso condescendente.

-... tem a obrigação, não só por respeito mas por ditar assim as ordenanças do Almirantado, de vestir uniforme de contra-almirante. Aqui está, - disse em voz baixa
quando chegou o chá, mas o bastante alto como para que pudessem ouvi-la.

Mesmo em Ashgrove, uma casa razoavelmente bem governada, onde havia arraigada a tradição e se respeitava a ordem e a pontualidade, o chá acarretava certo transtorno;
contudo, após um tempo as mulheres mais velhas ficaram mais tranqüilas, concentradas na tarefa de desfazer o açúcar, e Sophie estava a ponto de fazer um comentário
quando a senhora Williams, com essa presciência que amiúde encontra-se nas mães, interrompeu-a ao perguntar:

- E o que é tudo isso de umas indagações feitas no povoado a respeito de Barham Down?

- Não sei a que se refere, mamãe.

- Briggs se informou de que um homem entrou na taberna e perguntou por Barham Down e por quem vivia lá, um homem que parecia o escrevente de um advogado. E que tinha
que ir lá por um assunto relacionado com veneno para ratos, perguntou a respeito ao taberneiro. Conforme parece, a maior parte das perguntas versavam sobre a senhora
Oakes, não sobre Diana. Não era questão de recolher provas para uma conversa criminal ou um divórcio com Diana como parte culpada, tal e como eu havia pensado, aliás
que tinha algo a ver com a senhora Oakes: dívidas, não tenho a menor dúvida. Mas também cabe a possibilidade de que o senhor Wilson, o capataz, tivesse esposa em
alguma parte e...

Sophie fora criada com tal pantomimice que em primeiro lugar não tinha uma idéia concreta de como se faziam as crianças, e, em segundo, não sabia como nasciam, até
que o experimentou com evidente surpresa em suas carnes; e uma das mudanças experimentadas por sua mãe que mais a surpreendiam era este intenso, quase obsessivo
e amiúde singularmente específico interesse (um interesse matizado pela desaprovação, certamente) com respeito à quem ia, ou queria ir, à cama com quem, interesse
compartido sem reservas pela senhora Morris, de tal maneira que ambas repassavam os detalhes de crimes e presos durante uma hora ou mais. Pensava nisto quando ouviu
a sua mãe dizer:

- Assim que, certamente, tomei emprestado o calesín{8} e Briggs conduziu todo o caminho por essa estrada pedregosa e empinada que conduz a Barham. Depois de chamar
à porta me disse que não estava apresentável, mas insisti e respondi que queria ver à menina, que afinal de contas era minha neta, sangue de meu sangue. De modo
que me deixou entrar. Achei que estava muito bem vestida para ser a viúva de um simples tenente, e que seu chapéu era outré: acho que hospeda certas pretenções com
relação a seu aspecto. Em fim. Perguntei-lhe a fundo, disso pode estar segura: qual era seu sobrenome de solteira? Para quem trabalhava em Nova Gales do Sul? Ensinava
a tocar a harpa? Tinha que ser a harpa. Onde teve lugar seu curioso, por não dizer "suposto", casamento? Mostrou-se esquiva, deu-me respostas breves e insatisfatórias,
e quando confiava que se mostraria mais sincera comigo, em lugar disso me tirou da casa. Contudo, não estava disposta a permitir que uma garota adoentada à qual
em nenhuma parte lhe pagariam mais de cinqüenta libras por ano, como muito, tirasse-me da casa, assim que lhe disse que voltaria. Resulta que, estando Diana ausente,
não tenho direito de supervisionar a educação e bem-estar da menina? Se existe uma relação indesejável nessa casa, ela terá que partir. Falarei com meu agente, e
lhe direi que...

- Esquece, mamãe - interrompeu Sophie quando sua mãe parou de falar, - esquece que o doutor Maturin é o tutor legal de sua própia filha.

- O doutor Maturin, o doutor Maturin, bah, bah, hoje aqui, amanhã ali: pelo menos faz seis semanas que não sabemos nada dele. Dessa forma não pode proporcionar o
bem-estar de sua filha - disse a senhora Williams. - Eu mesma me nomearei sua tutora.

- Chegará amanhã pela tarde - disse Sophie. - Seu quarto está preparado, pois dormirá aqui e não em Barham para poder ficar mais perto da esquadra durante estes
últimos dias tão importantes.

 

Stephen cavalgou para Ashgrove Cottage, sombrio depois do longa e inútil viagem que realizara para o norte, sombrio por ter parado em Barham, onde se informou da
vileza da senhora Williams. Contudo, tanto pessimismo se via perfurado aqui e ali por um raio reluzente de esperança. Em um pequeno aposento quadrado no piso superior
de Barham, de cuja janela se viam os estábulos, agora quase vazios, Diana havia guardado um monte de papéis e espécimes: era um aposento seco, onde se preservariam
intactos. Do outro extremo do corredor havia um quarto, às vezes conhecido como quarto das crianças, onde havia umas bonecas sem usar, um cavalinho de madeira, aros,
bolas grandes coloridas e outros; e ao sentar-se para arrumar os papéis, folhas e folhas de uma Hortus siccus que recolheu nas Índias Orientais e que enviou para
casa de Sidney, ouviu a voz de Padeen proveniente do corredor.

Quando Padeen falava em irlandês gaguejava muito menos, e quase não o fazia a menos que estivesse nervoso, e nesse momento sua fala fluía como a água de um rio:

- Muito melhor, bendita seja a boa cravelha... Um, um pouco mais alto... Oh, o ladrão negro, que há faltado ao remo, isso fazem quatro; agora o quinto, glorioso
são Kevin, eu mesmo tenho aqui ao quinto...

Aquilo era normal. Amiúde Padeen falava sozinho quando jogava dados, tabas{9} ou cerzia a rede. Stephen não prestava atenção suficiente àquele ruído caseiro e agradável,
mas de repente deu um respingo. O papel escorregou entre seus dedos. Era como se tivesse ouvido uma vozinha infantil exclamar "Doze!" ou algo muito parecido. Doze
em irlandês, certamente. Levantou-se da cadeira com toda a precaução do mundo e semicerrou um pouco a porta, colocando um livro de cada lado para impedir que pudesse
se fechar.

- Que vergonha, bichinho, querido - disse Padeen, - deve dizer a dó dhéag. Escute, doçura, escute outra vez, certo? A haon, a dó, a trí, a ceathir, a cúig, a sé,
a seacht, a hocht, a naoi, a deich, a haon déag, a dó dhéag, com esse som parecido ao yia yia. Bem, vamos lá, a haon, a dó...

- A haon, a dó... - repetiu a voz pequena e aguda até chegar ao "a dó dhéag" que pronunciou precisamente com o sotaque de Padeen, característico do condado de Munster.

- Minha coisinha, que Deus, Maria e são Patrício lhe bendigam - celebrou Padeen dando-lhe um beijo. - Agora lhe deixarei jogar o aro ao quarto, com o que teremos
doze no total, pois oito e quatro são doze.

O sino que chamava para janta ressou no ouvido atento de Stephen, com um resultado muito particular, quase galvânico. Dispersou sua linha de pensamentos de forma
estranha, e ainda não se recuperara de tudo quando o piso do corredor rangeu com o peso de Padeen: era um grandalhão, alto como uma torre, ainda que não tão largo
de costas talvez como Jack Aubrey. Estava claro que levava a menina, pois os ouviu falar mediante burburinhos sussurrados ao ouvido.

 

- Não devia ter lhe informado da visita da senhora Williams - disse Clarissa depois de desfrutar de uma janta silenciosa. - Tirou seu apetite. Verá, abriu passagem
à força até chegar ao quarto de Brigid, assegurando aos gritos que a curaria com uma boa surra. Seus gritos assustaram à menina.

- Sim, verdade, causou-me uma grande angústia conhecer a conduta dessa harpia egoísta e ingovernável; mas estava a senhora em seu direito de fazer-me saber. De outra
forma, quem sabe se tivesse voltado a tentar, com todo o estrago que pode causar. Pelo menos agora posso encarregar-me disso. - Agitou o vinho com o garfo durante
um momento; percebeu o que fazia, observou atentamente o garfo, limpou-o com o guardanapo e acrescentou: - Não. Não foi a angústia o que me tirou o apetite, mas
a alegria. Ouvi Brigid falando alto e claro com Padeen.

- Oh, estou tão contente. Mas... - titubeou. - Tinha sentido o que dizia?

- Certamente que sim.

- Eu também os ouvi. E Nelly. Mas só quando estão sozinhos, porque sempre estão juntos como já saberá, no sótão, ou com as galinhas e a porca negra. Pensamos que
falava por falar, o tipo de linguagem que utilizam as crianças.

- Conversam em um gaélico de primeira.

- Estou tão contente - repetiu Clarissa.

- Escute - disse Stephen. - Acho que neste momento o equilíbrio é muito delicado, e não me atrevo a fazer nenhum movimento a respeito: não me atrevo a fazer nada
que possa dar atrapalhar sua recuperação. Devo refletir, e consultar o caso com colegas meus que saibam muito mais que eu. Há o doutor Willis, de Portsmouth. Há
o grande doutor Llers, de Barcelona. Pelo momento, peço que a senhora haja como se tudo seguisse igual. Deixemos que floresça.

Olharam-se em silêncio e Stephen acrescentou imediatamente:

- Quanto me alegra que tenha me contado dessa mulher. Na tessitura atual sua violência ignorante poderia estragar, arruinar, profanar... Devo encarregar-me dela.

- E como pensa fazê-lo? - perguntou Clarissa.

- Ocorrem-me várias possibilidades - respondeu Stephen; mas a ferocidade pálida e reservada de sua expressão se desvaneceu por completo ao entrar Nelly com o pudim,
seguida de Padeen e Brigid. Sua filha se sentou na cadeira que tinha almofadas empilhadas, e voltou a cabeça para ele quando Stephen a ajudou a comer o mingau. Achou
distinguir um inconfundível olhar de aprovação, ainda que não se atreveu a dirigir-lhe a palavra diretamente. Foi só quando a janta terminou, que disse em gaélico:
- "Padeen, dentro de doze minutos traga-me a égua pequena". - E suas palavras atraíram rapidamente a atenção daquela cabecinha loira, normalmente imóvel e abstraída
em um mundo interior.

 

Percorreu com um cômodo galope milhas e milhas de estrada dura, no lombo da égua pequena, até topar com a barreira de pedágio, e dali passou para uma vereda que
atravessava as plantações de Jack Aubrey até chegar ao montículo onde construíra o observatório, já que o capitão Aubrey não só era um oficial profissionalmente
interessado pela navegação astronômica, mas também um astrônomo aficionado e, ainda que ninguém suspeitaria dada a expressão franca e honesta de seu rosto, era um
matemático: um matemático de formação tardia, verdade, mas que possuía tal sabedoria que havia chegado a publicar seu estudo sobre os satélites jovianos no Philosophical
Transactions, artigo que depois fora traduzido por diversas publicações científicas do continente.

Jack acabava de fechar a porta deste edifício, e quando Stephen apareceu ao dobrar a última curva do terreno se encontrava de pé no degrau, contemplando o Canal.

- Ei, Stephen! - cumprimentou com a voz em grito ainda que a distância não desse para isso. - Já está aqui? Que tipo mais esplêndido você é, por minha honra! Chegou
no dia combinado e quase com pontualidade. Apostaria algo em que você morria de vontade de ver a esquadra, glorioso espetáculo! Ainda que não tem nada a ver com
o que lhe prometi em primeira instância, porque nenhuma esquadra é o que se espera que seja. Estive olhando-a durante esta última meia hora, desde que a Pyramus
arribou. - E como não podia ser de outra maneira, a fresta do domo móvel de cobre apontava diretamente para Portsmouth, Spithead e Saint Helens. - Gostaria de dar
uma espiada? Não, não é nenhum incômodo... - Observou a sela de Stephen, guardou silêncio, e em um tom completamente distinto, acrescentou: - Mas santo Deus, que
maneira tenho de fuxicar sobre meus própios assuntos. Desculpe-me, Stephen. Como está? Confio em que sua viagem tenha sido pro...

- Encontro-me bem, obrigado, Jack. Alegra-me muito comprovar que sua cabeça se recuperou do golpe, ainda que tenha um aspecto de cansado... Minha viagem não saíu
como tinha desejado. Esperava encontrar Diana, e não foi assim. Contudo, achei alguns de seus cavalos; hei aqui um, por exemplo.

- Eu a reconheci - disse Jack acariciando a égua. - Eu também esperava que...

- Não. Ela vendeu duas éguas e um castrado a um criador de cavalos de corridas que reside perto de Doncaster. Prontificou-se amavelmente a vender-me a Lalla, mas
pouco sabia dos movimentos de Diana além de Ripon e Thirsk, onde ela tem algumas amizades. Ao que parece mencionou também Ulster, onde vive Frances. - Saltou da
sela e passearam lentamente em direção aos estábulos. - Tudo isto não tem nenhuma importância. Recorda-se de Pratt, o caçador de recompenças?

- Por Deus, acho que sim - exclamou Jack, que tinha motivos de sobra para isso. Aprazia um tempo Jack fora acusado de fraudar a Bolsa, e Pratt, que por ser filho
de um carcereiro passara boa parte de sua infância entre ladrões, e que tinha melhorado seus conhecimentos do sub-mundo servindo com os mensageiros de Bow Street
antes de independentizar-se, havia atuado em benefício de Jack e de seus advogados, e conseguira encontrar uma testemunha essencial em um alarde de maestria, maestria
que resultou do todo ineficaz, dado que o negócio dependia da identificação da testemunha e podia-se dizer que lhe apagaram o rosto.

- Enfim, contratei os serviços de Pratt e seus colegas para encontrá-la, e não tenho nenhuma dúvida de que o farão. Não pretendo persegui-la, como bem compreenderá,
irmão. Contudo, quero dar-lhe a entender que atua sob duas suposições falsas, cuja falsidade me propus demonstrar-lhe, coisa que só posso fazer falando com ela diretamente.

- Certamente. É lógico - disse Jack para afugentar o silêncio, e a égua, ao virar a cabeça, observou-os com seus lustrosos olhos árabes, ofegando suavemente sobre
eles enquanto os olhava.

- Já sabe sobre Brigid, certamente. Acreditam que seja meio tonta, o que é completamente incorreto. A sua é uma forma particular de desenvolvimento, que se caracteriza
por ser mais lenta que a da maioria; contudo, Diana não o sabe. Acha que é meio tonta, e não pode suportar... - Jack também sentia aversão por qualquer variante
da loucura, e quase lhe escapou um comentário -... e ao pensar sem dúvida que sua presença não só era inútil como positivamente daninha, fugiu. Acha que eu deveria
culpá-la por fazê-lo, o que implica no primeiro mal-entendido. O segundo, como já disse, é que Diana acredita que Brigid é meio tonta, e me agradaria informá-la
de que está em um erro. As crianças deste tipo são muito mais raras que os autênticos meio tontos (a quem eu diria que se pode distinguir só em vê-los), mas não
são tão insólitos. Há dois no povoado de Padeen, no condado de Kerry; na Irlanda os chamam de leanaí sídhe, e não diria que ambos se curaram mas o fato é que acabaram
vivendo mais neste mundo que em qualquer outro. Foram ajudados no momento adequado. Padeen é o tipo de pessoa capaz de fazer isso. Tem dotes extraordinários para
isso.

- Recordo como pegou com a mão um gato que estava preso em uma armadilha, e o livrou sem levar um só arranhão. Por não mencionar aquele cavalo selvagem que capturamos
para o sultão.

- Precisamente: citou tão somente dois exemplos. Mas neste desenvolvimento em particular, no desenvolvimento particular de Brigid, o equilíbrio constitue um fator
exageradamente delicado. As circunstâncias, o ambiente físico sem ir mais longe, são excepcionais. Devo consultar o doutor Willis; devo escrever ao doutor Llers
de Barcelona, grande especialista na matéria. Contudo, a senhora Williams deve manter-se à margem custe o que custar. Apresentou-se em casa e insultou Clarissa fazendo-lhe
todo tipo de perguntas impertinentes, antes de insistir em ver a menina, a sua neta: assustou-a, e a ameaçou em dar-lhe uma boa surra se não falasse. Alegra-me poder
dizer que Clarissa a tirou da casa sem contemplações.

- Tenho em grande estima por Clarissa Oakes.

- Digo o mesmo. A senhora Williams não deve voltar a Barham. Devo ter umas palavras com ela a respeito.

Quase haviam chegado ao pátio do estábulo.

- De fato - disse Jack, - resulta que tanto ela como a senhora Morris estão lhe esperando: eu lhes disse que chegaria hoje mesmo, e lhe esperam. Não poderiam estar
mais apuradas.

- De que se trata?

- Seu homem, Briggs, brinca de espião muito amiúde: alguns homens lhe fizeram uma emboscada em Trumps Lane quando voltava da taberna, e o golpearam. Noite escura,
nem uma só palavra; organizaram tal estrépito que parecia que estavam surrando a um cachorrinho.

- Oh, doutor Maturin - exclamaram as três crianças mais ou menos em uníssono, ao chegar correndo pelo caminho lateral. - Aqui está. Por fim chegou! A avó nos colocou
junto ao quiosque para avisar-lhe de sua chegada. A senhora Morris e ela lhe rogam que as cumprimente de imediato. Briggs foi emboscado e golpeado pelos Negros de
Hampton...

- O senhor Owen, o boticário, pôs um emplastro nele; conforme sua opinião pode ser que sobreviva, mas duvidamos muito.

- Por favor, o senhor poderia nos acompanhar agora mesmo? Prometeram-nos quatro peniques se o levássemos lá de imediato. Papai cuidará de seu cavalo, verdade, papai?

- É uma égua, ignorante. - Objetou Fanny. E dirigindo-se a Stephen acrescentou: - Uma égua árabe se não me equivoco, senhor.

 

Chegou Stephen, e depois de agüentar durante um bom momento os gritos, a indignação e o relato detalhado dos fatos, pediu às senhoras que o deixassem sozinho com
o paciente. Realizou o exame: tinha ante si um rosto verdadeiramente inchado, e a costas e os glúteos marcados pelo extremo das cordas e das hastes com as quais
o haviam açoitado; contudo, não tinha ossos quebrados, cortes ou incisões. Para Stephen lhe surpreendeu o fato de que um homem tão acostumado aos hipódromos estivesse
tão incomodado com tais mostras de moderada violência; apesar disso, Briggs estava prostrado e bem prostrado, assustado e mesmo aterrorizado. Tinha a dignidade no
chão, a sensação de ter sido ultrajado, e talvez era represa de algo póximo a uma covardia abjeta. Stephen aprovou os curativos do senhor Owen, prescreveu alguns
medicamentos inofensivos e adequados, e cruzou o corredor até onde as duas inquietas damas esperavam sentadas.

- Necessita tranqüilidade, luz tênue e uma companhia que não seja muito exigente - disse. - Se a senhora Morris fosse tão amável de ficar com ele, explicarei os
pormenores do tratamento à senhora minha tia Williams, pois nossa relação familiar me permite o uso de termos e expressões médicas que acharia embaraçoso empregar
na presença de qualquer outra dama.

- Não o terão castrado? - perguntou alarmada a senhora Williams quando ficaram sozinhos. - Creio que ao dizer "embaraçoso" não se referisse a isso.

- Não, senhora - respondeu Stephen. - Não terá a senhora um eunuco a seu serviço, não tema.

- Quanto me alegra sabê-lo - disse a senhora Williams. - Ouvi que os ladrões amiúde fazem essas coisas quando suas vítimas resistem. Fazem porque, conscientes de
que amiúde o cavalheiro oculta em..., bem, o senhor já entendeu.

- Conhece a identidade dos ladrões?

- Estamos praticamente seguros disso, e me propus de imediato a informar a sir John Wriothesley, o juiz de paz. No início meio suspeitamos dos marinheiros de cuja
justa reprimenda era responsável, mas o senhor Aubrey, o comodoro Aubrey, negou redondamente tal possibilidade; e o senhor verá, praticamente é um almirante. Mas
então resultou que tinham todos rostos negros, de modo que se tratava obviamente do bando conhecido como os Negros de Hampton, que atuam com o rosto enegrecido quando
saem de noite para caçar furtivamente. Suponho que sabiam perfeitamente que costuma transportar somas consideráveis desde Bath.

- Levaram algo?

- Não. Agarrou-se com tal bravura ao seu relógio e ao dinheiro que não roubaram nada em absoluto.

- Excelente. Convém que descanse e medique-se com regularidade, e acredito poder assegurar à senhora que dentro de sete dias voltará a ser o mesmo de sempre.

- Então não corre nenhum perigo? - perguntou a senhora Williams. - Ou seja, que posso enviar ao moço para que diga ao pastor que não precisa que venha. Estou segura
de que não me cobrará o serviço se o avisarmos a tempo. O senhor deve saber que o senhor Briggs é um papista. - Stephen consentiu com a cabeça, e a senhora Williams
acrescentou: - Que alívio. - E sacudiu o sino para pedir vinho de Madeira para o doutor. Uma vez deu boa conta dele, e é que Jack sempre tinha o melhor madeira em
casa, a senhora Williams acrescentou, divertida: - Não é que tenha nada pessoal contra os papistas. O senhor ouviu falar da senhora Thrale? - Stephen voltou a assentir
com a cabeça. - Pois bem, ela se casou com um depois da morte de seu marido, um homem de posição um pouco inferior, além disso, um estrangeiro; mas conforme entendi
a recebem em toda parte.

- Sem dúvida. Aqui tem uma breve lista das medidas e doses necessárias, que me agradaria que a senhora respeitasse com total regularidade. E agora, senhora, eu gostaria
de falar-lhe de minha filha Brigid. Deve ter percebido que sua saúde mental é delicada; mas o que provavelmente não sabe é que seu progresso alcançou uma fase crítica
na qual a menor impressão ou revés poderiam resultar desastrosos. Portanto, devo pedir-lhe que interrompa de momento suas bem-intencionadas visitas a Barham.

- Está me pedindo que deixe de ver o sangue de meu sangue? A minha própia neta? Creia-me se lhe digo, doutor Maturin - disse alterada a senhora Williams, cuja voz
havia alcançado um timbre metálico e dominante, - que é melhor deter o quanto antes e com firmeza estes caprichos infantis, egoístas, teimosos e obstinados: uma
boa surra, o poço ou o quarto escuro, pão, água e talvez uma boa surra com a vara, e o senhor terá solucionado o problema sem maiores dispêndios de meios: ainda
que o senhor seja o médico, quem melhor que o senhor para dar-me razão?

- Lamentaria muito ter que proibir sua entrada em minha casa - disse Stephen.

- E permita-me dizer, senhor - continuou a senhora Williams, já atirada e quase sem escutar, - que não posso dar minha aprovação com respeito à jovem que neste momento
cuida da menina. Naturalmente era meu dever formular-lhe algumas perguntas para satisfazer a curiosidade que sentia por sua competência; mas tudo o que recebi em
troca foram respostas breves e insatisfatórias. Se manejou com tal repulsiva reserva, tal confiança em si mesma, tal autosuficiência, e uma necessidade tal de que
a tratasse com respeito que não pude senão surpreender-me. Correm rumores de dívidas, fazem-se perguntas no povoado e se questiona sua moralidade...

- Estou familiarizado com os antecedentes da dama - asegurou Stephen com voz decidida, - e plenamente satisfeito com as qualidades com que conta a senhora Oakes
para cuidar de minha filha; assim que não sigamos por este caminho, se é tão amável.

- Deveria nomear-me a sua tutora, com direito de inspeção quando esteja embarcado nessas suas viagens tão longas. O que sim tenho é o direito moral de visitá-la;
e também o legal, disso estou segura.

- Discordo. E se, apesar de supor que isso não ocorrerá depois de expor claramente minha posição, cometesse a senhora a torpeza de invadir minha morada, não só meu
servente irlandês (homem forte e perigoso) a expulsaria à força, como a senhora enfrentaria as sérias conseqüências legais: não só pela invasão de morada, como também
por dirigir, e ter dirigido, um escritório de apostas ilegais. Apartir desse momento, a menor amostra de indiscrição de sua parte resultaria infalivelmente no recrutamento
forçoso na Armada de seu homem, Briggs. Ele seria enviado a bordo de um barco repleto de marinheiros normais e comuns, que amiúde são violentos e nenhum deles teria
o menor motivo para portar-se bem com ele; a este barco o destinariam sem dúvida às mortíferas Índias Ocidentais, ou, talvez, a Botany Bay.

 

- Senhor - exclamou George, interrompendo-lhe no jardim. - Papai diz que provavelmente o senhor gostaria de dar uma rápida espiada na esquadra enquanto ainda resta
luz no mar.

- Isso é precisamente o que mais me agradaria no mundo - afirmou Stephen. - George, aqui tem uma moeda de três xelins para você.

- Oh, obrigado, senhor. Muito obrigado. Não conseguimos os quatro peniques, mas agora quando alguém for a Hampton o acompanharei para dar um pançada de... - Suas
palavras se perderam na distância.

- Entre, entre, Stephen - convidou Jack desde as profundidades, as profundidades moderadas, do observatório. - Tenho a lente preparada. Tem cuidado com a viga saliente...
Oh, nem pense em tocar nessa roda de espigas. Cuidado com a caixa ocular, se é tão amável. Não se preocupe, depois o arrumarei e o limparei. Bem, vejamos, entre
aqui e sente bem reto no tamborete: reto no tamborete, aí. Pelo amor de Deus, Stephen, deixe essa porca em paz. Se necessitar agarrar em algo, pegue na carcaça da
torre. Será muito mais fácil quando seus olhos se acostumarem com a penumbra: a penumbra é para ter um bom contraste, entende? Aí, sente-se reto. Introduzi uma espécie
de olho mágico, como poderá ver. Não, aproxime o olho até o ocular, Stephen. Pequeno tipo raro é; de fato, são fios de teia de aranha estirados, colocados no lugar
preciso. Engenhoso, não acha? A irmã de Herschel me ensinou a fazê-lo. O enfoque é o correto para meu olho bom, mas se achar um pouco borrado gire esta roda - explicou
ao mesmo tempo que guiava seus dedos - até que o distinga perfeitamente. De momento há pouca turbulência. O telescópio está apontado com muita precisão, de modo
que nem pense em tocar em nada mais, ouviu?

Stephen se acomodou, meteu o olho a fundo no ocular, respirou fundo várias vezes e girou a roda com cuidado. De repente o olho mágico ganhou em nitidez e em sua
interseção viu um navio de linha, nítido e claro como a água, que pertencia a outro mundo, a outra dimensão por mais familiar que fosse. Penduravam as joanetes para
arejar-se, e muitas pessoas se encontravam nos costados, concentradas em arrumar e pintar o barco, coisa que não diminuia beleza da cena, nem tampouco diminuia um
pingo à sensação de força concentrada. Fazia do barco um ser vivo, um navio não isento de consciência própia e coletiva, de ansiedade, que prendia a respiração pousando
para seu própio retrato, preparado para receber a visita de um almirante.

- Tenho ante mim o barco mais elegante do mundo - assegurou Stephen. - Um setenta e quatro, não me cabe a menor dúvida.

- Bem feito, Stephen - exclamou Jack, e se tratasse de outra pessoa lhe teria dado uma palmada nas costas. - Pequena planta tem este setenta e quatro. E esse galhardetão
vermelho de rabo de galo é meu galhardetão. O almirante enviou seu tenente de bandeira para expressar-me seu desejo de que o hasteasse de imediato, coisa que agradeci.
Saberá que é necessário obter permissão para isso.

- De modo que se trata do Bellona, pedra angular de seu comando! Hurra, hurra! Eu lhe felicito, Jack. Cá, eu diria que tem um senhor castelinho, o que diz muito
a favor de sua dignidade.

- E não só de sua dignidade, mas também de sua segurança. Quando está no castelo de popa em metade de um combate com um inimigo feroz que lhe dispara tanto com a
artilharia de grande calibre como com a fuzilaria, é um consolo dispor de um sólido castelinho a suas costas.

- De minha parte prefiro ficar abaixo, muito abaixo. Eu lhe rogo que me mostre o restante da esquadra.

- Ali tem a Pyramus - indicou Jack movendo a lente até que o olho mágico repousou em uma esplêndida fragata de trinta e oito canhões. - É como a Belle Poule francesa.
Agora pertence a Frank Holden, um bom tipo, e corajoso também; mas duvido que fiquemos comela. Asseguram os desagradáveis rumores que correm que a enviarão para
fazer um cruzeiro por conta própia, e que a substituirão por uma embarcação de porte inferior, mais velha e lenta. Temo que o ar começa a cintilar no porto e em
Gosport - seguiu dizendo enquanto girava o telescópio e o deslocava pela guia, - mas se voltar a enfocá-lo a seu olho acho que distinguirá um barco que anda devagarzinho
junto a Priddys Hard. É o Stately, um navio de sessenta e quatro; me o deram depois de arrebatar-me súbita e injustamente ao Terrível, nosso outro setenta e quatro.
Muito me temo que vamos ficar com ele. Um barco de sessenta e quatro canhões é uma embarcação muito lamentável, Stephen; de certa forma pior inclusive que o horrível
e velho Leopardo que era um simples cinqüenta. A bordo deste último poderíamos fugir de um setenta e quatro holandês sem temor de ruborizar-nos, e prender a vela
até que todos voltássemos a rir e pudéssemos nos olhar ao espelho com a consciência tranqüila; mas um sessenta e quatro teria que mudar de bordo e enfrentar-se ao
inimigo, a risco de cubrir-se de desonra. O capitão do Stately, William Duff (recorda-se de Billy Duff de Malta, Stephen?), faz o que é possível, mas... Aí, já escurece.
O sol se oculta. Só consigo distinguir o Aurora, uma fragata de vinte e oito canhões, e o bergantim Orestes, mas ambos se esfumam e terei que esperar para falar-te
deles quando tenhamos levado algo ao estômago. Deve estar com uma fome de lobo.

- Se Deus quiser os verei a todos amanhã. Tenho que embarcar cedo, para reunir-me com meus ajudantes e revisar o instrumental médico e a botica. Quantos somos no
total?

- Para dizer verdade, Stephen, não sei. Há tantas mudanças e cortes. Ainda nos falta uma fragata; é possível que percamos a Pyramus; as corvetas e os bergantins
vêm e vão; e a data se adia uma e outra vez. Não devia ter insistido tanto para que regressasse logo. Afinal de contas, conheço a Armada desde que era um girino,
e jamais, jamais, há se lançado ao mar uma esquadra na data designada em primeira instância pelo almirante ao comando do porto, ou pelo comodoro, e tampouco nunca
se fez com os barcos atribuídos no início. Mas agora, por minha vida, que vai comer como é devido. Sophie não deixou de se queixar por não lhe ter visto devido ao
sarampo das crianças, e não o deixa de repetir. Nós a arrastaremos para longe de suas contas e se sentará comodamente conosco e um prato de pães. Amanhã cedo terá
ocasião de ver a esquadra sob a luz do amanhecer, antes do café da manhã e se não chover, claro; e depois cavalgaremos direto para Pompey.

 

Stephen se alojava no quarto de costume, afastado das crianças e do ruído, em um canto da casa que dava para a cerca e para a pista de bochas. Apesar de sua prolongada
ausência, aquele lugar lhe era tão familiar que quando despertou mais ou menos às três se aproximou da janela quase tão rapidamente como se estivesse a ponto de
amanhecer, abriu-a e saiu para a sacada. A lua havia se ocultado, e quase não viu uma única estrela. O orvalho impregnava de frescura a quietude que se respirava
no ar; enquanto que, ao longe, nas plantações de Jack, um tardio rouxinol entonava com voz indiferente seu rotineiro canto; mais perto, na cerca, e muito mais agradável,
ouviu o agradável canto de dois, ou talvez três bacuraus que gorgeavam na cerca, gorgeios que ficavam mais forte e amainavam entrelaçados, de tal maneira que não
podia localizá-los com total segurança. Preferia poucas aves aos bacuraus, mas não fora seu canto o responsável por Stephen ter despertado: permaneceu de pé apoiado
na grade da sacada e Jack Aubrey, no quiosque que havia junto ao campo de bochas, começou a tocar de novo, suavemente, ao amparo da escuridão: improvisava com seu
violino e fantaseava com uma maestria que Stephen não podia comparar com nada, apesar dos anos e anos que tocavam juntos.

Como tantos outros marinheiros, Jack Aubrey também havia sentindo saudade da possibilidade de descansar em sua cama quente durante toda a noite; contudo, agora que
tinha a possibilidade de fazê-lo com a consciência tranqüila, amiúde se despertava a horas pouco cristãs, sobretudo se se sentia impelido por uma forte emoção, e
saía de seu quarto de roupão para passear pela casa ou os estábulos ou perambular pela pista de bochas. Amiúde levava consigo o violino. De fato era melhor intérprete
que Stephen, e agora que empregava seu precioso Guarneri em lugar do resistente instrumento que tocava no mar, a diferença era, se couber, mais notável. Ainda que
não seria justo atribuir todo o mérito ao Guarneri. Jack dissimulava sua maestria quando tocavam juntos para manter-se ao medíocre nível de Stephen: este o descobriu
quando suas mãos se recuperaram finalmente das empulgueras{10} e demais instrumentos com que os oficiais da contra-espionagem francesa o torturaram em Menorca; mas
pensando bem, Stephen achou provável que tivesse começado a superar-lhe muito antes, pois, além da sua saúde delicada durante aquele período, Jack pertencia a esse
tipo de pessoa que detesta se exibir.

Agora, naquela noite quente, não havia ninguém a quem consolar, ninguém a quem desconcertar, ninguém que pudesse zombar dele por ser um virtuoso, assim que podia
se deixar levar completamente; e a medida que fluía a grave e sutil música de seu violino, Stephen serviu uma vez mais de testemunha à aparente contradição encarnada
naquele enorme, alegre e ruborizado oficial da marinha que a todos deslumbrava apenas com sua presença, mas a quem ninguém descreveria como epítome de sutileza,
nem sequer como alguém capaz de sutileza alguma (excetuando, talvez, seus adversários em combate), e a quem ninguém tampouco teria relacionado com a intrincada e
reflexiva música que criava nesse momento. Pólo oposto à limitação de seu vocabulário, que em ocasiões riscava em uma incapacidade total.

- Minhas mãos recuperaram a medíocre habilidade que tinham antes de que me capturassem - observou Maturin em voz alta, - mas as de Jack alcançaram um ponto que jamais
achei possível nele: não só suas mãos, também sua inteligência. Estou assombrado. A seu modo, ele é o agente secreto. Só gostaria que sua música fosse mais alegre.

 

Contudo, à primeira hora da manhã voltava a ser o Jack Aubrey de sempre.

- Se não tivesse nomeado Adams meu secretário pessoal - disse Jack enquanto caminhavam sobre o orvalho em direção de seu observatório, - agora lhe pediria que ficasse
aqui para ajudar Sophie com a papelada. A propriedade de Woolcombe não é grande coisa, terra baldia em sua maior parte, mas dá muita dor de cabeça porque hospeda
alguns arrendatários que não poderiam ser mais ardilosos, uma corja de ladrões, e a pobre tenta levar tudo sozinha, para não dizer nada deste lugar e dos infernais
impostos, dos necessitados, dos dízimos... E esse pássaro?

- É um picanço real, ainda que há quem o toma por picanço, somente.

- Sim. O guarda do primo Edward sempre os chamou assim. Quando era menino me mostrou um ninho. Mas voltando aos dízimos, temos um novo pastor, o senhor Hinksey.
Recorda-se dele?

- Não, a menos que fosse aquele cavalheiro com quem encontrei em uma ou duas ocasiões em minhas livrarias, e que teve a amabilidade de levar alguns ensaios náuticos
para Sophie.

- Trata-se do mesmo homem que a pretendeu quando levamos o pobre senhor Stanhope a Kampong, nas Índias Orientais. A senhora Williams o considerava o pretendente
ideal. É um pastor muito cavalheiresco, com uma boa renda de quinhentas, ou, mesmo, de seiscentas libras anuais. Era um nosequé de Oxford; talvez um querelador em
matemáticas. Há laureados em matemáticas{11} em Oxford, Stephen?

- Inclino-me a pensar que são coisa de outro lugar. Diria que em Oxford só há fornicadores, ainda que poderia equivocar-me.

- Bem, seja como for se tratava de um título louvável. E ela assegura que a razão dele nunca ter casado não se deve a Sophie ter quebrado seu coração quando fugiu
para casar-se comigo. E olha, aí o tens agora, instalado em nossa reitoria pelo menos há dezoito meses. Não lhe parece assombroso?

- Não acredito já ter estado tão assombrado.

- Tal e como suporá me dispunha a odiá-lo com todas minhas forças, mas é um ginete consumado e um rebatedor de primeira, um tipo tão agradável, aberto e amistoso
que não pude fazê-lo. É um homem de compleição forte, com uma altura de seis pés e pouco; e no colégio costumava boxear. Tem o nariz quebado.

- Claro, claro, isso por si diz muito a seu favor.

- Bem, significa que não pode conversar decentemente na linha evangélica, como alguns outros pastores e alguns de nossos oficiais secundaristas com seus ensaios
devotos. Veio de vez em quando, quando a mãe de Sophie ou a própia Sophie andavam perdidas com a contabilidade, coisa que me parece muito atenta de sua parte. Porém,
por Deus, como posso ter desviado do tema desta maneira? Falava de Adams. Vejamos, compreenderá, Stephen, que existe uma diferença incomensurável entre ser o secretário
de um oficial de bandeira e o escrevente de um capitão, de modo que depois de nomeá-lo como meu secretário a decência não me deixa pedir-lhe que fique em terra para
ajudar a Sophie. Contudo, pedirei que busque entre seus conhecidos em Plymouth e Gosport a alguém que ocupe seu lugar na casa... Bem, já chegamos. Stephen, cuidado
com essa vala: caminhe pelo centro da tábua. Demos este rodeio porque queria mostrar uma trepadeira à qual tento convencer para que converta uma árvore desmochada
em um parreiral, ainda que ao que parece as urtigas terminarão por devorá-la. Agora deixe-me ir antes para enfocar de novo a lente; como suporá, existe uma diferença
prodigiosa entre um espelho de manhã e outro de noite, certamente. Não tardará em ver toda a esquadra que vale a pena ver. Alguns dos bergantins e uma escuna ou
duas se reunirão conosco em Lisboa. Como a luz vem do leste não poderá apreciar todos os detalhes, mas espero que pelo menos faça uma idéia do que há.

Ninguém teria surpreendido em Jack Aubrey o menor indício de façanhice, exceto, talvez, nesse caso, que era especial. Ele mesmo fizera o telescópio, tinha afinado
sete espelhos antes de conseguir aquela peça prima; inventara a sela melhorada, assim como o descobridor de observação de precisão; e neste único caso fez trejeitos,
tentando que o invento fizesse milagres, enquanto esperava que o sol desprendesse uma iluminação mais difusa e equilibrada, tudo isso enquanto resmungava toda sorte
de ociosas explicações.

Stephen ignorou o bate-papo difuso de seu amigo, principalmente composto de tecnicismos incompreensíveis entre os quais difração, aberração e imagens virtuais se
erigiam como protagonistas, e em lugar disso deu uma espiada às sucessivas visões distantes e silenciosas, a medida que se meterializavam no ocular.

Primeiro o esplêndido Bellona, que estava de perfil: parte da dotação seguia concentrada baldeando o castelo de proa e tudo o que podia ver-se no convés superior,
enquanto as guardas de popa e do castelo atritavam a popa e o castelo de popa com pedra arenito.

- Setenta e quatro canhões, certamente - disse Jack, - um peso em metal por descarga de novecentas vinte e seis libras: vinte e oito canhões de trinta e seis libras
no convés principal, vinte e oito canhões de dezoito libras no convés superior, dois longos de doze libras como guarda-lemes, e seis curtos, além das dez caronadas
de trinta e duas libras e quatro pequenas para a popa.

- Isso o converte em um navio de setenta e oito canhões.

- Pelo amor de Deus, Stephen. Estou seguro de que se fizer um esforço recordará que não costumamos incluir as caronadas quando contamos o total de peças que arma
um navio.

- Peço que me perdoe.

- É um barco de Chatham: mil seiscentas e quinze toneladas, uma ponte de cento e sessenta e oito pés, um vau mestre de quarenta e seis pés por cinco; e tem um calado
de dezenove pés com nove na bodega, o que considero muito aceitável. Com apetrechos para seis meses afunda vinte e dois pés com nove na popa. Muito menos na proa,
certamente.

- Quando o construiram?

- Em 1760 - respondeu Jack a contragosto, um pouco na defensiva. - Mas ninguém o consideraria um barco velho. O Victory foi lançado um ano antes, e pelo que entendo
está como novo. Dizem que respondeu toleravelmente bem em Trafalgar. Além disso, em 1805 forraram o Bellona, e dispõe de um aparelho novo, de modo que é como se
acabasse de sair do estaleiro. Muito melhor, pois tudo está em seu lugar.

- Desculpe-me.

- Sempre foi um barco peculiarmente marinheiro, recordo-me muito bem dele de quando estive nas Antilhas quando criança. Balança com desenvoltura, anda a nove e mesmo
dez nós de bolina com vento de joanetes, bom governo, vira em redondo rapidamente, aperta perfeitamente com a gávea maior e a de estai de mezena, e entra prodigiosamente
bem em todos os sentidos... Diabo, como o baldearam bem.

- Alegra-me ouvir isso. Por favor, informe-me o número de tripulantes.

- A dotação estipulada é de quinhentos e noventa homens, mas acho que andamos com falta de uns vinte ou quarenta, mas esperamos grandes coisas do recrutamento da
segunda-feira, no Nore. Ainda que, bem, isso é coisa de Tom; eu só devo me preocupar com a papelada do Almirantado, da Junta Naval, do almirante ao comando do porto
e dos demais capitães que pertencem à esquadra. Agora permita-me mostrar o outro navio de linha que nos acompanhará. - Manipulou uma rodinha. Paus, vergas, velas
arejadas, exárcia e trechos de água clara e brilhante desfilaram ante o campo de visão de Stephen; de repente o alvo se deteve, trêmulo, e aí, tão nítido, firme
e distinguível como Jack ou qualquer outro construtor de telescópios teria podido desejar, apareceu outro navio de duas pontes, desta vez não de perfil, mas visto
a quatro quartas pela amura de estibordo, posição que lhe permitia apreciar as vergas perfeitamente perpendiculares com o casco. Tinha os costados pintados de negro,
e as portalós dos canhões com uma faixa de azul-claro, enquanto que por cima destas refletia uma linha da mesma cor, combinação que causou em Stephen uma pontada
no coração, pois era uma das favoritas de Diana.

- Esse é o Stately, o navio de sessenta e quatro canhões - informou Jack. - Ele nos foi imposto depois de nos arrebatarem o Terrível, mostra mais vil de favoritismo
e politicagem na Armada.

- Contudo, está claro que seu capitão é um homem de bom gosto - manifestou Stephen.

- Bem, quem sou eu para falar do gosto de alguém, não sou nenhum diletante. Ainda que se a trama enxadrezada de Nelson valia para esse grande homem, então também
vale para mim. - Jack fez uma pausa. - E lhe direi uma coisa, Stephen, não sou amigo de desbocar ninguém por suas costas, mas você é médico, e isso lhe converte
em alguém especial, como compreenderá. Já sabe, odeio o fato de que se enforque ou se açoite aos sodomitas em toda a frota, e gosto de Duff, mas se alguém não quer
que a disciplina vá a pique, convém não se relacionar com os jovens gavieiros de água doce. Duff é um bom marinheiro, e faz o que pode, mas o Stately demorou toda
a noite para fundear em sua paragem... Bem, em qualquer caso aí tem um barco velho: talvez não o lançassem até oitenta e dois, mas serviu no bloqueio de Brest durante
anos e anos, o que bastou para fatigá-lo antes do tempo; já sabe, esses temíveis ventos do sudoeste que duram semanas e semanas, e algumas marejadas do Pai e nosso
Senhor. Não voltaram a forrá-lo nem a trocar o aparelho como Deus manda. Em estes momentos, é tão pouco marinheiro como a Arca depois que Noé a pôs para secar nas
alturas do Ararat, e talvez seja a mais lenta das embarcações de sua classe fabricadas. Cai para sotavento de tal maneira que consideraria parecido com qualquer
lavrador do interior arando. Dado que temos que conviver com ele, lhe direi que arquea mil trezentas e setenta toneladas; cento e cinqüenta e nove pés e seis polegadas
de distância de popa a proa, com um vau mestre de quarenta e quatro pés por quatro. Arma vinte e seis canhões de vinte e quatro libras, vinte e seis de dezoito libras,
seis de nove libras e dezesseis caronadas mistas, para um total de apenas setecentas e noventa e duas libras contra as mais ou menos mil do Terrível. Se puder efetuar
duas descargas a cada cinco minutos será um milagre. Busquemos algo mais satisfatório. - De novo a imagem se tornou borrada. - Oh! - exclamou

Jack, muito mais alegre. - Não esperava vê-lo tão cedo. Reconhece-o, né? - Stephen não respondeu. - É o cúter Nimble, a bordo do qual nos levou para casa de Groye
esse jovem, Michael Fitton. Mas não vou me deter muito nele. Aqui, olhe, é a jóia de nossa esquadra, a Pyramus, uma autêntica fragata moderna de trinta e seis canhões
de dezoito libras, novecentas e vinte toneladas de arqueio, cento e quarenta e um pés de distância de popa a proa, trinta e oito pés por cinco do vau mestre, e um
peso de metal por bombardeio de quatrocentas e sessenta e sete libras. Conta com uma dotação de duzentos e cinqüenta e nove dos melhores homens, pois levam tempo
navegando juntos e são feitos o seu capitão, esse tipo estupendo e empertigado do Frank Holden, assim como de seus oficiais, alguns dos quais já navegaram conosco.
- Observou o barco com a aprovação desenhada no olhar, antes de seguir adiante com a inspeção. - Aí tem a Aurora, nossa outra fragata - disse. -Temo que poderíamos
considerá-la outra relíquia: foi lançada em 1771, e apenas arma vinte e quatro canhões de nove libras, como naquele época, mas sinto certo afeto por ela devido à
Surprise, ainda que não possa compará-la em rapidez e a Surprise seja muito mais marinheira e cômoda. Quinhentas e noventa e seis toneladas, cento e vinte pés com
seis de distância de popa a proa, e neste momento provavelmente conte com cento e cinqüenta homens, de uma dotação total de cento e noventa e seis. É comandada por
Francis Howard, O Grego, a quem conhece perfeitamente porque nos encontramos com ele frente a Lesbos. Mais para lá, em direção a Saint Helens, está a Camilla, de
vinte canhões, e o Orestes, um bergantim com aparelho de corveta, além de outras embarcações. Eu lhe falarei delas enquanto cavalgarmos para o porto, e certamente
lhe mostrarei quando estejamos lá. Porém, por agora, acho que já viu bastante.

- Não, em absoluto - disse Stephen ao abandonar uma postura intolerável por mais incômoda que fosse. - É um comando muito mais imponente do que tinha imaginado,
e muito mais glorioso.

- Sim é mesmo, né? - perguntou Jack enquanto o guiava para a saída do observatório. - Apesar desses coroas, e mesmo prescindindo do Terrível, é uma esquadra estupenda.
Sinto-me tão orgulhoso como Poncio Pilatos. Ainda que já imaginará o peso de tamanha responsabilidade. Em Mauricio tinha o almirante por minhas costas, ainda que
não estivesse presente, mas neste caso estarei totalmente sozinho.

 

Sophie os recebeu a meio caminho da casa. Estava radiante e linda, mas ao mesmo tempo parecia inquieta. Expôs uma das razões que justificavam tal incômodo ainda
antes de chegarem na casa: ao que parece, sua mãe e a senhora Morris tinham decidido voltar a Bath, levando Briggs; ela lhes cedera o coche, mas Bentley o traria
de volta quando os cavalos tivessem descansado. Aquela era uma ação muito mais decidida do que Stephen pudera esperar; contudo, ela não parecia dar-lhe a menor importância.

Não, era o fato de ter prescindido do coche e de um par de cavalos o que a inquietava, e nem por sua mãe ter se ausentado.

- Oh! - exclamou Jack, que apenas assentiu com a cabeça ante semelhantes notícias. - Cheira a bacon e café - disse ao abrir a porta. - E inclusive a ovos recém feitos.
Não tem melhor forma de começar o dia. E rins defumados!

Os três se sentaram sozinhos na sala de desjejum, a sala mais cômoda da casa, e parte original da fazenda de Ashgrove tal e como era antes de que Jack Aubrey, durante
uma dessas avalanchas de ouro que às vezes alcançam os comandantes mais afortunados em sua guerra particular por butim, empreendesse a construção de alas, estábulos,
a dupla cocheira, basculante aqui e lá, a sacada de canto, e uma fileira de casas modestas para os velhos companheiros da Armada. Estavam sozinhos os três, pois
ainda que amavam às crianças de todo coração estas comiam com a senhorita O'Hara, sentados com a costas bem reta, sem nunca chegar a tocar o respaldo da cadeira,
e falando somente quando lhes dirigiam a palavra.

Os saborosos rins defumados não tardaram em desaparecer; durante, esvaziou-se a primeira cafeteira, e Jack em silêncio atacou os ovos e o bacon, escutando pela metade
o relato preciso e circunstancial que fazia Stephen da moda importada de Madras de preparar um prato composto de pescado esmiuçado, ovos e arroz, momento em que
Killick entrou com o queixo inclinado em direção ao comodoro.

- Chegou o tenente de bandeira do almirante do porto, e roga por favor que o receba. Ordenei a Davies, O Lerdo, que levasse o pangaré ao estábulo, e o acompanhei
ao salão aveludado. - Para Killick, o veludo tinha uma forte conotação de riqueza, assim como a palavra "salão"; pois o salão frontal tinha um sofá coberto de veludo,
além de algumas almofadas, nada no mundo lhe teria induzido a referir-se a ele de nenhuma outra maneira. Tão somente acompanhava à sala em questão os oficiais de
guerra.

- Oh - disse Jack antes de jogar tomar o restante de café, - desculpe-me, querida. Já volto. Sem dúvida se trata do informe semanal.

Mas transcorreram os minutos e as torradas deixaram de se considerar como tais; provavelmente havia algo muito mais complexo em jogo que o relatório semanal.

Sophie esquentou uma segunda cafeteira, inclinou a cabeça e serviu outra xícara para Stephen.

- Quanta alegria tê-lo aqui de novo - disse. - Quase não lhe tive para mim sozinha nem por cinco minutos, apesar do muito tempo que passara fora, e aos milhares
e milhares e milhares de milhas que nos separaram. Tampouco vi muito a Jack. Recebe continuamente mensagens do almirantado, ou vem gente para entrevistar-se com
ele ou para pedir-lhe que aceite a um de seus filhos a bordo de qualquer de seus barcos. E também está tão contente por ter conseguido este esplêndido comando -
daqui para a bandeira, não, Stephen? - que anda também muito preocupado, sobretudo com tantas mudanças e cortes. Também está preocupado com o Parlamento, e com suas
propriedades em Woolcombe... Oh, Stephen, quanto éramos felizes sendo pobres. Agora tem tanto o que fazer e tanto como o que se preocupar - por não falar do banco
asqueroso que não responde à correspondência, - que já não temos tempo nem para conversar como costumávamos fazer. Na próxima quinta-feira convidamos para almoçar
a todos os capitães, ainda que seja a data de nosso aniversário. Certamente alguém se embebedará. Diga-me, como o encontra, depois de todas estas semanas?

- Mais cansado do que me agradaria vê-lo - respondeu Stephen, olhando-a nos olhos.

- Sim - admitiu Sophie, que guardou silêncio alguns segundos antes de acrescentar: - Tem algo em mente. Não é o mesmo. Não se trata apenas dos barcos e do trabalho.
Além disso, o senhor Adams, que é um tesouro, encarrega-se de aliviar boa parte de seu trabalho. Não. Eu o noto como reservado..., não digo que não seja amável...
Mas quase lhe diria que se mostra frio. Não. Isso seria um absurdo exagero. Mas amiúde dorme em seu estúdio devido à papelada ou porque fica até tarde. E mesmo quando
não é assim se levanta de noite e vai passear até o amanhecer.

Imerso em uma conversa tão pouco promissora, não ocorreu nada melhor a Stephen que dizer:

- Talvez recupere o ânimo no momento em que se jogue ao mar. - O que lhe fez credor de um olhar de censura. Ambos estavam quase certamente a ponto de dizer algo
desafortunado quando Jack entrou depois de acompanhar à porta o tenente de bandeira, com os vestígios do sorriso de despedida nos lábios.

- Temo que dizia respeito à Pyramus. Vão afastá-la da esquadra, e em lugar dela nos acompanhará a Thames. A Thames, uma fragata de trinta e dois canhões de doze
libras.

- São apenas quatro canhões a menos que a Pyramus - observou Sophie, em um de seus infelizes esforços para consolar seu marido.

- Verdade. Mas seus trinta e dois canhões só são de doze libras, em contraposição aos de dezoito que arma a Pyramus. A descarga por bombardeio quase não alcança
as trezentas libras, enquanto que a outra descarregaria um total de quatrocentas e sessenta e sete. Mas queixar-nos não vai nos servir de nada. Venha, Stephen, temos
que ir. Seria possível outra xícara de café?

- Oh, querido - lamentou-se Sophie, - temo que não. Mas não tardarei nem cinco minutos em fazer outra cafeteira. - Fez soar o sino, mas o fez soar em vão. Jack já
se havia posto em marcha e metia pressas a Stephen para que atravessasse primeiro a porta. - Não se esqueceu que os Fanshaw, a senhorita Liza e o senhor Hinksey
vêm para jantar? - perguntou.

- Tentarei voltar a tempo para o jantar - respondeu Jack. - Mas se o almirante me entretém, apresente-lhes minhas desculpas. Certamente Fanshaw entenderá.

 

Cavalgaram por um terreno que podia ser considerado um bosque respeitável: Stephen montado em sua égua, e Jack em um baio castrado e forte.

- Ontem mesmo lhe falava desse pastor, o senhor Hinksey - disse Jack, rompendo um longo silêncio.

- Acho recordar que disse que não podia odiá-lo.

- Isso mesmo. Porém, ainda que não poderia chegar a odiá-lo com todas minhas forças, agora que me sinto tão condenadamente maltratado por ter perdido a Pyramus lhe
direi que tampouco me agrada. Nos visita muito amiúde para meu gosto; e caminha pela casa como se... Uma vez inclusive o encontrei sentado em minha poltrona favorita,
e ainda que deu um pulo ao ver-me entrar enquanto conjugava a desculpa conveniente me pegou de surpresa. Sophie e ele falam continuamente das coisas que sucederam
comigo no mar... Caramba! Aí tem de novo o seu picanço que parece um roedor.

Stephen falou então durante um tempo dos picanços que pudera reconhecer ao longo de sua vida, e em particular do picanço de dorso vermelho de sua infância; ofereceu
a Jack a possibilidade de mostrar-lhe a diferença entre o mosquiteiro comum e o mosquiteiro musical, pois alguns deles volteavam ao redor das folhas que pendiam
sobre suas cabeças. Mas se conteve ao perceber que o comodoro havia se consentrado em um profundo silêncio, remoendo, talvez, ao assunto das fragatas e dos modestos
navios de linha de que dispunha, assim como a criminosa despreocupação de quem despachava milhares de homens ao mar sem contar com um plano consistente, uma preparação
cabal ou a adequada previsão.

Cavalgaram silenciosos até alcançar a ponte que conduzia à ilha Portsea, onde Jack exclamou:

- Santo Deus, já chegamos à ponte. Stephen, acho que perdeu o dom da fala; de tanto cismar nem sequer se deu conta de que já chegamos. - Aquela descoberta pareceu
comprazer-lhe descomedidamente, assim como a prova de que o castrado cavalgava a bom passo. Seu mau humor havia desaparecido, e cavalgaram através da familiar paisagem
que moldava os arredores do povoado, e depois, mais alegre se cabe, por suas ruelas esquálidas, até chegar a Keppels Head, sua pensão favorita que conhecia desde
seus tempos de guarda-marinha. Ali largaram os cavalos e seguiram a pé até o Hard às dez horas. Bonden os esperava, acompanhado pelos sorridentes tripulantes da
falua de Jack, e vogaram com precisão para governar a embarcação de um oficial de bandeira, olhando com desprezo as demais embarcações auxiliares que infestavam
em todas as direções aquele enorme porto.

E vogaram com brio, pois o Bellona fundeava junto a Haslar, e a mente de Stephen, arrulhada pelo ritmo constante, nadou longe, atrás no tempo, até parar nos picanços
de sua infância, da etapa catalã de sua infância cuja paisagem era objeto das carícias do sol. Pensava na língua catalã quando Jack, por decepção de seu timoneiro,
ordenou atracar por bombordo.

Não era momento de importunar à dotação de um barco ocupado - que andava acarretada com a estiva dos apetrechos, e que, para mais afronta, estava necessitada de
homens - com a chegada cerimoniosa do comodoro pelo lado de estibordo; mas para Bonden lhe doeu, pois, assim como Killick, sentia fraqueza pela pompa e circunstância
desde quando se tratasse da pompa e circunstância de seu oficial ao comando. Sentia não menos afeição pela sapatada e o estampido metálico dos infantes da marinha
quando apresentavam armas, depois de que o contramestre e seus ajudantes chamassem ao toque de apito aos homens para avisar que Jack ia subir a bordo do castelo
de popa, cheio de oficiais e guardas-marinhas expectantes; ademais, hospedava a esperança de que Stephen servisse de testemunha ao esplendor que rodeava ao seu comodoro.
Mas como não tinha nem voz nem voto puxou da cana para obedecer a ordem, e a falua rodeou a embarcação para que Jack pudesse subir a bordo de seu barco sem exigir
as devidas atenções.

Subiu discretamente, o que não quer dizer que ninguém o viu. Certamente tinham visto o bote desatracar, e certamente ali estava o capitão Pullings para recebê-lo,
assim como os marinheiros do portaló, limpos da cabeça aos pés, que se encarregaram de jogar-lhe um cabo quando subiu agilmente pela escada. E menos mau que tenha
sido assim, pois o doutor Maturin o seguiu de imediato, tão impermeável às destrezas de um marinheiro como o era o senhor Aubrey à literatura na moda. Mais ainda,
dado que não fazia muito que Jack lera em voz alta o Macbeth para suas filhas, que o escutaram encantadas, enquanto que Stephen não pensara nem em barcos nem no
mar desde que botou um pé em terra, e lhe tinha bastado para esquecer quase todo o pouco que tinha aprendido. Além do mais, fazia pouco que tinha abandonado seu
ensimesmamento, quando a falua se encostou ao costado do barco e cessou o movimento constante. Bonden e a maioria de marinheiros que formavam a dotação da falua
estavam muito familiarizados com seus ocasionais despistes, e eram perfeitamente conscientes da fraqueza de seus conhecimentos náuticos; e ainda que o mar estivesse
calmo como um tanque cheio de patos o empurraram pelas nádegas, ao mesmo tempo que o animaram a pegar-se "a esses cabos acolchoados, senhor", assim como a colocar
os pés sucessivamente nos degraus da escada de corda. Não precisa nem falar que conseguiram subi-lo a bordo completamente seco, coisa que para eles constituiu todo
um triunfo.

Contudo, ao chegar ao convés ficou olhando ao seu redor de um modo simplório, igual como faria um lunático ou um peixe fora d’água. Fazia muito tempo, e muitas milhas,
tantas como para dar a volta ao mundo, que seu barco não fora mais que uma pequena fragata; e apesar de que anos antes servira a bordo de um navio de linha durante
um breve período de tempo, a recordação havia desaparecido de sua memória: media tudo comparando com a Surprise, e a enormidade do Bellona, a existência de um castelinho
e de toda essa gente o afundaram em um estado de perplexidade. Jogava com desvantagem, e seu rosto adotou uma expressão fria e reservada; mas seu velho amigo Tom
Pullings, que se aproximava para apertar sua mão e dar-lhe a boas-vindas a bordo, estava inclusive mais familiarizado com as extravagâncias do doutor que a dotação
da falua, e com voz alta e clara lhe explicou que dois dos ajudantes de cirurgião que serviriam sob suas ordens tinham chegado na noite anterior e o esperavam na
enfermaria da coberta dos alojamentos. Talvez desejasse vê-los, expressou Tom, que contudo se antecipou a sua decisão.

- Senhor Wetherby - disse a um jovem de boa cor que vestia um uniforme recém estreado, - rogo-lhe que acompanhe o doutor à enfermaria.

Desceram até a coberta da bateria alta, dotada de uma extraordinária mostra de canhões de dezoito libras dispostos de ambos os lados. Desceram de novo pela escada
da escotilha de popa até a coberta da segunda bateria, onde reinava a escuridão devido a terem fechado as portalós para pintar o exterior.

- É aí onde vivo, senhor - disse o jovem apontando a câmara dos oficiais. Stephen vestia-se de civil e não tinha aspecto de ser homem do mar, de modo que o garoto
se dispôs a acrescentar uma explicação: - Ainda não me classificaram como guarda-marinha, sabe, senhor?, de modo que me alojo com o condestável e outra meia dúzia
de garotos; a mulher do condestável é muito boa conosco. Nos ensina, por exemplo, a cerzir a roupa. E agora, senhor - guiou Stephen para a proa, - por aqui, por
favor, tenha cuidado com os degraus. Atrás desse pedaço de lona é onde dormem os marinheiros, todos eles apertados quando são chamados para descer as macas. Esse
compartimento daí, o que fica entre os anteparos de lona, é o que conhecemos como "enfermaria".

Havia duas figuras de pé na penumbra, ocultas pela escuridão mas visivelmente nervosas.

- Bom dia, cavalheiros - cumprimentou Stephen. - Sou o cirurgião a bordo, Maturin.

- Bom dia, senhor - responderam em uníssono. Então, o primeiro de seus ajudantes disse: - Sou Smith, senhor, William Smith, anteriormente servi a bordo da Serapis
e no hospital de Bridgetown.

O segundo, vermelho como a cochinilha, apresentou-se como Alexander Macaulay e lhe explicou que depois de seu aprendizado tinha estudado no Guys, onde vendou feridas
para o senhor Findlay durante quase cinco meses. Aquele navio de linha constituia seu primeiro destino na Armada.

- E realmente nos encontramos na enfermaria do Bellona? - perguntou Stephen, surpreso. - Senhor Wetherby, seja tão amável de aproximar-se ao castelo de popa e perguntar
ao oficial de guarda se posso abrir uma portaló.

Quase não havia terminado de falar quando se ouviu um chiado, seguido de um puxão, e se alçou a portaló mais próxima, permitindo a entrada de um feixe de luz quadrado
e mostrando os rostos sorridentes de Joe Plaice e Michael Kelly, ambos seguidores de Jack Aubrey desde o momento em que assumiu o comando de sua primeira embarcação,
o bergantim Sophie, e também velhos amigos de Stephen.

- Joe Plaice e Michael Kelly - cumprimentou Stephen apertando-lhes a mão através da portaló. - Quanto me alegro de vê-los. Joe, como anda sua cabeça-dura?

Os marinheiros levantaram o olhar, atentos a uma ordem que tinham recebido procedente das alturas.

- Sim, senhor - gritaram para algum distante oficial. Piscaram o olho para Stephen e desapareceram.

Stephen recuperou o tom grosseiro que havia empregado antes.

- Como é possível? - exclamou, observando o anteparo de lona parcialmente dobrado, as escassas macas e outro pedaço de lona que pendia ao fundo. Voltou-se para a
vasta caverna da coberta inferior, agora vazia excetuando as filas de canhões de trinta e duas libras e as tábuas de madeira entre elas e que de noite estariam abarrotadas
por centenas de marinheiros e infantes da marinha (além de quem fazia guarda na ponte) que roncariam e respirariam, sobretudo respirariam, pequenas quantidades de
ar naquele ambiente viciado, que se já era pernicioso de por si, era ainda mais para os enfermos. - Como é possível? É arcaico, própio da Idade Meia. Esta é a parte
mais insalubre de todo o barco: ar irrespirável, o enfermo não pode ir ao beque, e tem homens por todas as partes, gritando e uivando durante cada refeição e cada
troca de guarda; este fedor não desaparece por mais que lavem a coberta, que segue úmida, outro fator pernicioso a levar-se em conta. - Aspirou, voltou a aspirar,
e reconheceu tanto o aroma como outros obstáculos que podiam considerar-se distantes: os porcos de rancho, para a proa do barco, em sua correspondente pocilga. Ouvira
de sua existência nos barcos antigos, e os vira em uma ocasião, no início de sua carreira. - Isto não pode ser. Onde estão os enfermos que figuram na lista?

- Acredito que os trasladaram para o Haslar, senhor, quando o cirurgião anterior morreu. Um coma etílico, conforme me disseram.

- O que? - proclamou Stephen, não tanto pela questão do coma etílico, mas pela monstruosidade que o rodeava. - Vamos dar uma espiada no ambulatório, assim poderei
apresentar meu relatório. Senhor Wetherby, rogo que me mostre o caminho.

O garoto os conduziu pela proa até a escada, de onde puderam ver com claridade a pocilga em questão e o odor se fez mais intenso - os porcos levantaram o olhar ao
passarem por eles e os observaram com olhos cheios de curiosidade. - Dali passaram para a escuridão da sentina, muito abaixo da linha de flutuação, onde apesar do
débil lampejo de luz que se filtrava através dos gradeados, e de uma ou outra lanterna que encontraram no caminho, prosseguiram às apalpadelas para a popa até chegar
à enfermaria, que fazia as vezes de alojamento para os guardas-marinhas e que era um lugar ruidoso como poucos. Tão somente encontraram em seu interior a quatro
jovens, um macaco e um cachorro dogue, aos quais se podia ouvir de longe.

- Não me atreveria a entrar, senhor, se não estivesse acompanhado pelo senhor. Cuidado com o degrau - disse o jovem.

- Que aconteceria se não tivesse mais remédio que entrar sozinho? - perguntou Stephen.

- Os mais velhos e os ajudantes do piloto de derrota me torceriam o pescoço e me jogariam nas fauces do cachorro dogue, senhor - Abriu a porta e se pôs de lado.

- Cavalheiros, bom dia - cumprimentou Stephen ante um silêncio repentino.

Os cavalheiros em questão eram do mais variado: um homem de aspecto feroz e pele morena, ao qual encontraram sentado na coberta tentando ler junto a um lustre. Dois
jovens deselegantes cuja roupa era tão curta que deixava em descoberto os pulsos e tornozelos; e um endemoninhado baixinho de catorze anos que tentava ensinar ao
macaco a plantar bananeira. Contudo, todos eles compreenderam de imediato que não seria boa idéia descarregar sua má intenção com as visitas, de modo que responderam
ao cumprimento e se levantaram com toda a elegância da qual foram capazes; o diabólico garoto se dedicou de sua parte a estrangular desnecessariamente ao cachorro
dogue quando este quis aproximar-se para apresentar seus respeitos. Stephen passeou o olhar pelo ambulatório, lugar ao qual estava designado e que podia converter-se
em seu particular teatro de operações em caso de que o barco travasse um combate. Era um lugar espaçoso, pois pelo menos hospedava a uma vintena de jovens. Depois
se dirigiram para popa.

- Oh, senhor - voltou a exclamar o senhor Wetherby, - procure não tropeçar, por favor. - E tinha ricos motivos para elevar o tom de voz, pois encontraram aberta
a escotilha de coberta que dava ao paiol de pólvora de popa, por onde assomou a cabeça do condestável, decidido a ver quem se aproximava. Em seu rosto, geralmente
sério, desenhou-se um sorriso e estendeu a mão.

- Há, doutor - disse. - Ficamos sabendo que o senhor viria, e não sabe quanto nos alegrou a notícia. Rowley, fui segundo do condestável no velho Worcester.

- Certamente - disse Stephen, apertando sua mão. - Uma feia ferida de lasca no gluteus maximus. Como ela evoluiu?

- Jamais o diria o senhor, senhor. Quando voltei para casa mostrei para minha mulher. Mostrei a cicatriz, bem, o que restava dela, e lhe disse: "Kate, se soubesse
costurar tão bem como o doutor, eu te poria para trabalhar e viveria de renda". Ah, ah, ah! - Com esta, desapareceu como o boneco de uma caixa surpresa, mas ao revés,
e fechou a escotilha sobre sua cabeça.

A luz intensa expelida pela lanterna pendurada no vau os deslumbrou quando Smith abriu a porta do ambulatório.

- Espero que não creia que faço mais trabalho do que devo, senhor - disse. - Mas ontem à noite o contador me informou de que tinham chegado alguns apetrechos procedentes
da Junta de Feridos e Enfermos, e em lugar de largá-los nas mãos do despenseiro me dediquei a colocá-los no baú da botica. Ainda estava concentrado nisso quando
seu bote se amadrinhou ao barco, de modo que deixei as coisas como estavam. Temo que não caberão todos.

De repente se abriu de novo a escotilha e reapareceu o sorridente rosto do condestável.

- Eu lhe disse, disse: "Kate, se soubesse costurar tão bem como o doutor, eu lhe poria para trabalhar e viveria de renda". - E voltou a prorromper em gargalhadas.

- O senhor fez perfeitamente, senhor Smith - disse Stephen uma vez entrado, observando a miniatura que tinham por botica, com suas gavetinhas, suas prateleiras para
garrafinhas e outros compartimentos. - Mas temo que o senhor está certo. Tudo isto não caberá - disse assinalando com uma inclinação de cabeça os pós, as raízes
secas, os medicamentos, os linimentos, as bandagens, compressas, torniquetes e demais coisas que atapetavam o piso. - Não terá mais remédio que guardá-lo e estivá-lo
no ambulatório de estibordo.

- Desculpe, senhor - disse Smith depois de titubear, - mas não dispomos de nenhum ambulatório de estibordo.

- Jesus, Maria e José - exclamou Stephen. - Quinhentas e noventa almas terão que contentar-se com o conteúdo desta miserável botica, que com sorte medirá quatro
pés por três! O que são as coisas. Muito bem, cavalheiros, sejam tão amáveis de guardar tudo nesta cabine daqui - disse ao mesmo tempo que abria a porta de uma habitação
que media seis pés de largura por quatro de comprimento, - enquanto eu me dirijo ao capitão para apresentar meu relatório. E pequeno relatório, por Deus.

- O que houve, doutor? Falta-lhe algo? - perguntou Tom Pullings quando Stephen se juntou a eles.

- Você caiu, Stephen? - perguntou Jack ao vê-lo muito pálido e com os olhos abertos descomedidamente, aproximando-se dele e pegando-lhe no braço.

Observou friamente a ambos, primeiro a um e depois ao outro, e disse em um tom de voz forçadamente sossegado:

- Acabo de descobrir que este... este barco, porque por respeito não o tacharei de destroço ruim, desfruta de uma enfermaria que seria uma desgraça inclusive para
um turco, uma enfermaria que poderia ruborizar a um punhado de hotentotes, e creia-me que o fariam. É uma enfermaria tão horrível que não posso consentir ver-me
relacionado com ela e - acrescentou em um tom elevado, mais elevado e apaixonado - se não consigo que se transforme em um lugar mais tolerável que o Gólgota, pois
parece mais destinado a matar que a salvar vidas, lavarei minhas mãos com a consciência tranqüila. - Acompanhou suas palavras com o gesto de lavar as mãos, observando
seus rostos assombrados. - Afirmo que é uma vergonha para a humanidade.

- Por favor, Stephen, sente-se - pediu Jack com suavidade, acompanhando-lhe para uma cadeira. - Eu lhe peço, sente-se e beba um copo de vinho. Não se chateie conosco,
por favor.

Pullings estava transtornado demais para dizer palavra, mas lhe serviu um copo de madeira. Ambos observaram a Stephen com infinita preocupação; seguia pálido e inquieto.

- Algum de vocês já visitou essa zombaria infame que temos por enfermaria? - perguntou enquanto cravava o olhar primeiro em um e depois no outro. Oh, que fortaleza
moral possue a raiva totalmente sincera, sobretudo se está certo e se mostra altruísta.

Jack negou com a cabeça lentamente e com a consciência limpa, pelo menos a esse respeito.

- Suponho que passei por ali quando fui ver as pocilgas - confessou Tom Pullings, - mas não vi ninguém ali porque levaram os pacientes ao hospital antes de que subisse
a bordo; por isso não tinha me dado conta de que a enfermaria estava em tão más condições.

Stephen disse que uma enfermaria sem paz, luz nem ar não serviria de absolutamente nada; explicou com veemência e todo luxo de detalhes. Quando as águas se acalmaram,
acrescentou que a única enfermaria a bordo de um navio de linha com a que se sentiria a vontade devia, por força, desterrar os porcos em favor de cristãos enfermos
e que, portanto, devia encontrar-se sob o castelo de proa, e que tinha que dispor de luz, ar e acesso ao beque, conforme o plano desse eminente ingênuo, sultão da
benevolência, de nome almirante Markham.

- Doutor - disse Tom, - não diga mais nada, senhor: agora mesmo vou mandar chamrem ao Astillas e sua quadrilha. Se o senhor os dirigir, terá sua enfermaria ao Markham
antes do canhonaço da noite.

Remeteu a tensão. Stephen tomou um pouco mais de vinho e sua cor, ainda que ainda tinha uma tonalidade inquietantemente azeitonada, recuperou sua palidez natural,
em lugar da que lhe conferia a raiva. Sorriu, e o capitão Pullings enviou para buscar o carpinteiro.

- Stephen - disse Jack com timidez. - Havia pensado levar-te de visita aos outros barcos, para que pudesse conhecer seus capitães e oficiais, mas me atreveria a
dizer que acondicionar uma enfermaria como Deus manda lhe levará boa parte da tarde.

- Isso mesmo - admitiu Stephen, - e também todas minhas forças. Tom, dispõe de carpinteiros de sobra, né? Também desejaria instalar um ambulatório em condições no
lugar onde esses porcos brincam desenfreadamente com inteira liberdade, em vez de enviar a alguém constantemente à enfermaria de popa cada vez que necessite de purgante
negro. Jack, peço-lhe que me perdoe se adio este encontro até que se celebre seu almoço, ao qual assistirão todos estes cavalheiros.

 

CAPÍTULO 4

Quando o capitão Aubrey, seu despenseiro e seu timoneiro se faziam ao mar, Ashgrove Cottage retinha boa parte da atmosfera naval que a caracterizava graças aos antigos
companheiros de tripulação que viviam ali ou nos arredores, e que levavam a cabo seus habituais serviços de limpeza, enxugo e pintura para deixar tudo em condições
tão marinheiras como lhe permitisse a idade e os membros perdidos, costume que despertava a admiração de todas as esposas que se encontravam à distância necessária
para visitar a casa ou fofocar a respeito. Contudo, Woolcombe, a casa que Jack havia herdado fazia pouco, a casa onde fora criado, não passava de um lar de um homem
do interior. A senhora Aubrey vivia a maior parte do tempo em Ashgrove, e Woolcombe ficava em mãos de Mnason, o mordomo de toda a vida, ao qual ajudavam alguns serventes
com soldo dos que se havia prescindido em Ashgrove Cottage.

Apesar de tudo, quando Jack estava em casa e ia celebrar algum evento onde deviam primar a educação e a elegância, requeria-se em Hampshire a presença de Mnason,
que então tinha que trabalhar de sério. Desempenhava com perfeição as funções de um mordomo; cuidava do vinho madeira, de sua míngua no tonel, de seu trasfego e
engarrafamento, cuidava das garrafas e, com o tempo, repartia seu conteúdo para servi-lo na mesa em excelentes condições. Levava a cabo a parte mais ornamental de
suas funções com a dignidade apropiada. Mas os marinheiros não valorizavam nem um pouco nenhuma de suas destrezas; desprezavam-no por seu exílio em Woolcombe, lugar
onde só punham os pés uma vez ao ano, na primavera, em vez de como faziam diariamente, ao amanhecer, em Ashgrove; e se doiam ante o menor indício de que seus direitos
pudessem ver-se pisoteados; seus direitos, seus privilégios ou seus costumes de gente do mar.

O ruído causado por um destes desacordos fez Sophie correr pela sala de jantar no dia em que devia celebrar-se o almoço dos capitães. Ao abrir a porta, o rumor aumentou
consideravelmente: Killick, cujo desagradável rosto estava lívido de ira, tinha encurralado Mnason, a quem ameaçava com a faca do pescado enquanto lhe espetava com
sua voz tão chiante e desagradável que não era em absoluto uma boa pessoa, observação para a qual recorreu a todo luxo de detalhes e tal conjunto de obscenidades
que Sophie se viu na obrigação de fechar a porta ao entrar, para evitar que as crianças pudessem ouvir-lhe.

- Que vergonha, Killick, que vergonha! - exclamou.

- É que ele ousou tocar em minha prataria - replicou Killick, cuja trêmula faca passou a assinalar o nobre metal espalhado na mesa da sala de jantar. - Mudou de
lugar três colheres com esses dedos gordurentos que tem, e o vi bafejar sobre esta faca de pescado.

- Apenas lhe dava um toque profissional.

- Eu é vou lhe dar toques pro... - ameaçou Killick com fúria renovada.

- Silêncio, Killick! - disse Sophie. - O comodoro ordenou que será você que permanecerá atrás de sua cadeira, vestido com sua melhor casaca azul. Mnason permanecerá
ao seu lado com seu abrigo cor ameixa. Bonden porá suas melhores luvas. Agora apresse-os, rápido. Não há nem um minuto a perder.

E, certamente, não havia. Os convites indicavam que a hora de chegada era de três e meia às quatro da tarde, e conhecia por experiência a pontualidade naval, de
modo que entre as três e meia e as três e trinta e cinco minutos se apresentariam todos os convidados. Observou aquela mesa onde tudo reluzia, colocado exatamente
em seu lugar; ajustou um pouco um jarro de rosas, e logo depois saiu apressadamente para pôr o esplêndido vestido de seda escarlata, presente de Jack, que sobrevivera
à interminável e árdua viagem desde Batavia sem um só arranhão.

Quando Jack conduziu ao interior o primeiro dos capitães, encontrou Sophie mais bonita do que nunca, sentada na sala desejando aparentar convincentemente certo sossego
para cumprir com seu papel de anfitriã. William Duff, do Stately, era um homem atlético, alto e excepcionalmente atraente, de uns trinta e cinco anos.

Depois chegaram Tom Pullings e Howard, da Aurora; Thomas, da indesejável Thames; Fitton, do Nimble; e com este o quadro estava completo..., ou quase.

- Onde está o doutor? - sussurrou Sophie para Killick quando este entrou com uma bandeja repleta de taças. O despenseiro olhou ao seu redor, e seu rosto mudou daquela
expressão amável que resultava tão forçada nele (sorriso afetado incluído), para adotar sua habitual aspereza.

Uma regra respeitada desde tempos imemoriais na Armada estipulava que quanto mais classe tinha um marinheiro, mais tarde comia. Sendo guarda-marinha, Jack Aubrey,
assim como os marinheiros, comia ao meio-dia. Quando ascendeu ao cargo de tenente, ele e seus companheiros alojados na câmara dos oficiais comiam à uma; quando comandou
seu própio barco comia meia hora ou, mesmo, uma hora depois; e agora que era, no momento, comodoro de primeira classe com uma esquadra sob seu comando, considerou-se
apropriado que aguardasse sua vez em consonância com a hora de almoçar de um almirante. Mas seu estômago, assim como o de seus convidados, seguia pertencendo a um
capitão. E antes de dar as três estava desesperado; às três e meia estava que mordia. Bocejava e afogava bocejos de fome. A conversa, a pesar de estimulada pelos
esforços constantes de Sophie, assim como pelas azeitonas e as bolachinhas - que serviam em bandeja os marinheiros de luvas brancas, - pela genebra de Plymouth,
o madeira e o xerez, tendia já a fraquejar ou a tornar-se muito forçada quando se abriu a porta e Stephen fez uma entrada curiosa e brusca, como se o tivessem empurrado
pelas costas. Vestia um traje negro bastante decente, empoada a peruca e colocada bem direita sobre a cabeça; exibia um lenço branco amarrado com a precisão de um
cirurgião, tão forte que quase não podia respirar. Ainda parecia assombrado, mas se recuperou enquanto se inclinou ante os presentes para saudá-los, para dirigir-se
depois rapidamente à Sophie, disposto a apresentar suas desculpas. Aduziu em sua defesa que estivera contemplando os picanços e que perdera a hora.

- Pobre Stephen - disse ela, sorrindo com amabilidade, - em tal caso estará faminto. Cavalheiros - disse ao mesmo tempo que se levantava, para alívio de todos os
presentes, - o que lhes parece se entrarmos e deixarmos as apresentações para depois? - E, ao ouvido do doutor: - Stephen, aproveite a sopa e o pão: não acho que
o bolo de carne esteja à altura.

Depois dos titubeios de rigor e da cessão de preferência na porta que conduzia à sala de jantar, a mesa se encheu rapidamente. Sophie sentou-se em um extremo e Jack
no outro.

Stephen, tal e como lhe haviam recomendado, atacou a sopa com vontade; prato incrivelmente saboroso, cozinhado, sobretudo, com lagostas trituradas, cujas antenas,
cuidadosamente arrancadas, flutuavam sobre a promissora massa, e quando apaziguou os arrebatamentos de seu estômago olhou ao redor da mesa. Pois se tratava de uma
reunião social convocada por Sophie, a ordem dos lugares não era o ortodoxo do ponto de vista da Armada, ainda que havia respeitado a antiguidade até o ponto de
situar a William Duff à direita de sua esposa, enquanto que a sua esquerda havia sentado a Michael Fitton, filho de um antigo companheiro de tripulação e bom amigo.
Para si havia reservado a dois oficiais excepcionalmente tímidos: Tom Pullings, que tinha uma feia ferida e voz de homem do interior (ambas qualidades faziam que
sua companhia fosse algo incômoda na mesa); e Carlow, do Orestes, que não tinha nenhum motivo para mostrar-se tímido, pois era bem relacionado e contava com uma
sólida educação, mas que não gostava de almoçar fora por muito que, ou isso pareceu a ele, necessitasse que cuidassem dele.

Stephen passeou o olhar ao redor da mesa. Não era muito amigo da vida em sociedade, era mais um observador que um participante, mas lhe agradava ver seus colegas,
e muito amiúde lhe agradava escutá-los. A sua esquerda se sentava o capitão Duff, que falava animadamente com Jack a respeito dos amantilhos de Bentinck: Stephen
foi incapaz de detectar pista alguma dos gostos que lhe atribuíam. Além do mais, teria jurado e perjurado que Duff tinha certo êxito com as mulheres. Ainda que o
mesmo, refletiu, pôde ter-se dito de Aquiles. Sua mente vagou pelas diversidades desta faceta da sexualidade: o enfoque comparativamente direto do Mediterrâneo;
os curiosíssimos negócios que tinham lugar em Inns of Court; o sentimento de culpa, furtividade e obsessão que parecia aumentar a cada cinco ou dez graus de latitude
norte. No extremo oposto da mesa, não em frente de Stephen mas em um lugar mais para o lado, encontrava-se Francis Howard, da Aurora, talvez o maior erudito em língua
grega da Armada. Passara três felizes anos no Mediterrâneo Oriental reunindo inscrições, e Stephen confiara em poder sentar-se ao seu lado. À direita de Howard viu
a Smith, do Camilla, e a Michael Fitton, ambos de rosto moreno, cabeça redonda, alegres, jovens de aspecto inteligente que obedeciam a um quadro típico na Armada.
Impossível confundi-los por soldados. Por que a Armada atrairia homens de cabeça redonda? Que teria que dizer o frenólogo Gall a esse respeito? À de Stephen se encontrava
o capitão Thomas, que, para mais afronta, também tinha a cabeça redonda e a pele morena, ainda que não era alegre nem jovem. Depois de uma longa carreira como comandante,
principalmente nas Índias Ocidentais, o haviam nomeado capitão de navio ao conceder-lhe o comando da Eusebio, uma fragata de trinta e dois canhões, destruída pelo
furacão de 1809. Agora comandava a Thames. Era o mais velho dos presentes, e seu rosto autoritário tinha adquirido um aspecto de desaprovação que lhe fazia parecer
perpetuamente irritado. Na Armada era conhecido pelo apelido de Imperador Púrpura.

- Senhor - murmurou uma voz familiar ao ouvido de Stephen, - há metido a manga na sopa. - Era Plaice, marinheiro do castelo de proa, com os luvas brancas postas
e uma casaca de servente do camarote.

- Obrigado, Joe - disse Stephen, que tirou a manga da sopa e a enxugou apressadamente, sem deixar de olhar para Killick com inquietação.

- Uma sopa estupenda, senhor - elogiou Duff, sorrindo-lhe.

- Pura ambrosia, senhor, no lugar adequado, está claro- disse Stephen, - ainda que talvez se revele um tanto espessa sobre o velar-te negro. Desculpe o incômodo,
mas poderia alcançar-me um pedaço de pão? Acho que me fará melhor serviço que o guardanapo.

Conversaram distendidamente. E depois do primeiro prato, serviu-se uma vasilha de costeletas de novilho assadas que colocaram diante de Stephen.

- Senhor, permita-me que lhe sirva - propôs o doutor.

- O senhor é muito amável, senhor. Poucas coisas temo mais que ter que trinchar a carne.

- E o senhor, senhor? - perguntou Stephen, virando-se para Thomas.

- Se é tão amável - respondeu o Imperador Púrpura. - Há, o senhor corta tão bem como um cirurgião.

- É que sou o cirurgião, senhor, de modo que isso não constitue nenhuma virtude. O cirurgião do navio insígnia do comodoro, se é assim mesmo como se diz. Chamo-me
Maturin.

Joe Plaice deu uma risada rouca e alegre, e de imediato tentaram asfixiá-lo com uma luva branca. Stephen e Duff se voltaram para olhá-lo com um sorriso nos lábios.
Thomas parecia furioso.

- Oh, certamente - disse. - Tinha entendido que esta refeição era para oficiais de guerra, para oficiais ao comando. - E não disse mais nada.

 

- Sophie, querida - disse Stephen na manhã seguinte. - Pequeno festim nos preparou ontem. Da próxima vez que veja o padre George terei que admitir ter pecado de
gula, de deliberada e premeditada gula. Repeti o bolo de carne não três, mas quatro vezes. E também repetiu o capitão Duff. Animávamos um ao outro.

- Alegra-me tanto que tenha gostado - disse ela, olhando-o com carinho. - Mas como lamento ter lhe sentado junto desse tipo tão antipático. Jack diz que sempre encontra
faltas em tudo; e como muitos desses montes capitães das Antilhas, parece convencido de que se puder conseguir que sua tripulação trabalhe tão duro a ponto de ser
capaz de desenvergar e envergar os mastaréus de joanete em treze minutos, e polir o bronze para que brilhe como o ouro dia e noite, poderia por conseqüência vencer
a qualquer uma dessas pesadas fragatas americanas, por não falar das francesas. Jack tentará persuadir ao almirante a que realize uma troca.

- Se é tão amável, senhor, o capitão Tom lhe espera com o dócar na porta - informou George.

- Mas ele disse às nove - protestou Stephen, tirando o relógio, seu adorado Breguet. Apesar de ser de movimento perpétuo e mais confiável que o Banco da Inglaterra,
sacudiu-o duas vezes. A carcaça de platina que mantinha o mecanismo em seu lugar produziu um rangido afogado. Os ponteiros lhe informaram de que passavam dez minutos
das nove. - Pelo amor de Deus - disse. - Mas já são nove e dez. Sophie, desculpe-me mas devo passar a correr.

Como comandante e capitão de navio, Jack Aubrey nunca tinha desbocado com Stephen dos oficiais que serviam em seu própio barco. Na qualidade de comodoro havia lhe
explicado a vida e os milagres de Duff, ainda que com certa objetividade, mais como se fosse um médico que outra coisa. Também lhe falou dos defeitos do Imperador
Púrpura, pois já não se aplicava a regra que havia dirigido sua relação: Stephen e o Imperador não eram companheiros de rancho, por assim dizer, nem tinham que submeter-se
à lealdade do camarote. Contudo, era muito improvável que, a partir desse momento, Jack voltasse a fazê-lo.

Tom Pullings não sofria de tais inibições. Conhecia Stephen desde que servia como guarda-marinha e sempre falara com ele sem a menor reserva.

- Aquele tipo não deveria ter passado de imediato - disse enquanto conduziam em direção a Portsmouth naquela doce manhã, falando do almoço da noite passada (pois
se estendeu até a noite) e do restante dos convidados. - Nunca deveriam ter lhe concedido a autoridade. Não sabe o que fazer com ela, de modo que está sempre dando
ordens para demostrar o contrário. Sempre está mal-humorado e reclamando de alguém. O senhor deve conhecer muitos pais de família assim. Tem gente de sobra a mão
para surrá-lo, ou castigá-lo a pão e água ou enviá-lo para a cama por rir dissimuladamente no momento equivocado. Converte em um inferno a vida de toda a dotação,
e a julgar por sua cara avinagrada não acredito que ele o passe melhor. Ele e sua dignidade! Lorde Nelson nunca incorreu nessa afetação do "não me fale o senhor".
Se alguém peidasse no castelo de popa desse tipo, ainda que fosse a sotavento, consideraria um insulto ao representante do rei. Bah! E além disso, nunca esteve em
combate.

- Sejamos justos, nisso não se diferencia de boa parte dos oficiais da Armada.

- Não. Mas acredita que quem esteve em combate, inclusive os marinheiros, viram-lhe a cara e riem a suas costas, assim que se desabafa com eles ou com qualquer outro.
Não sabe quanto desejo que o comodoro se livre dele. Nesta esquadra, o que necessitamos é de um capitão combativo, não ao imediato de um iate da realeza, com suas
vergas embreadas e re-embreadas. Nós necessitamos de um capitão cuja marinharia seja capaz de abrir fogo, e a quem sigam como os da Sophie nos seguiram. Deus bendito,
que jornada aquela! - Tom riu ao recordar o imponente costado da fragata espanhola de trinta e dois canhões, e o modo em que ele e seus cinqüenta e três companheiros
da corveta Sophie, de catorze canhões, subiram em tropel atrás de Jack Aubrey para derrotar a bordo a trezentos e dezenove espanhóis, e depois levar a presa de volta
ao Porto Mahón.

- Eu que o diga - observou Stephen.

- E mais - continuou Tom, - o condestável da Thames disse ao nosso condestável que durante estes últimos oito meses nem sequer haviam utilizado a provisão de pólvora
destinada à prática. Ao que parece, destrincam e voltam a trincar os canhões continuamente. Igual a pedras. Além disso, confessou suas dúvidas (esteve a ponto de
passar a chorar, escute o que lhe digo) de que pudessem disparar duas descargas em cinco minutos. Agora, isso sim, qualquer esforço é pouco para manter os conveses
bonitos e a tinta fresca.

 

- O senhor tem algo pessoal em contra o capitão Thomas, comodoro? - perguntou o almirante. - Acha possível que possa faltar-lhe brio?

- Oh, não, em absoluto, senhor. Não me cabe nenhuma dúvida de que é bravo como um...

- Um leão?

- Isso mesmo. Obrigado, senhor. Tão bravo como um leão. Mas veja, senhor, acredito que seja muito importante a necessidade de contar com uma boa artilharia nesta
esquadra. Uma dotação capaz de efetuar pelo menos três bombardeios bem apontados em cinco minutos não se improvisa da noite para o dia.

- E o que lhe faz pensar que a Thames não seja capaz disso?

- O fato de que seu capitão afirmar nunca ter calculado quanto demoram em disparar, e os informes de seu condestável, que demonstram que nem sequer se utilizou a
bordo a pólvora e as balas designadas para as práticas de artilharia.

- Em tal caso terá o senhor que pô-los em dia. Não, Aubrey, não posso trocar a Thames, e o senhor terá que arrumar-se com o que tem, que, palavra, é um comando muito
atraente para um jovem de sua idade. Jamais vi um barco melhor disposto que a Thames; e nisso concordo com o duque de Clarence, que disse isto mesmo quando teve
ocasião de visitá-la no Nore. Seja como for, não se trata de obter resultados da noite para o dia, tal e como o senhor diz. Provavelmente disponha de várias semanas
antes de chegar ao apostadero, com este vento travesso e entabulado que temos do sudeste. Por outro lado, a modo de compensação por ter privado ao senhor da Pyramus,
pretendo entregar-lhe a Laurel. Ainda mais, também tenho intenção de informar-lhe finalmente da data de partida. Dependendo do vento e do tempo, procederá o senhor
a reunir-se frente às Berling, conforme se especifica em suas ordens, na quarta-feira dia 14.

- Oh, obrigado, senhor. Muito obrigado. Não sei como lhe agradecer por esta informação. Se permite que me retire de imediato, irei a bordo sem a menor demora para
dispor tudo para a quarta-feira dia 14.

- Não há nem um minuto a perder - assinalou o almirante, apertando sua mão.

 

- Avisem ao doutor Maturin - ordenou o comodoro, e o aviso passou de coberta em coberta, como um eco.

- O comodoro e ele são antigos companheiros de trança - observou o marinheiro enquanto abria passagem pela coberta dos alojamentos.

- Que é um companheiro de trança, chefe? - perguntou um homem do interior ao qual acabavam de recrutar forçosamente.

- Não sabe o que é um companheiro de trança, amigo? - perguntou o marinheiro com brincalhona tolerância. O do interior sacudiu sua cabeça; a essa altura havia umas
dezessete mil coisas que ignorava, cifra que aumentava diariamente. - Bem, saberá o que é uma trança, não? - perguntou o marinheiro mostrando-lhe a sua, uma calda
enorme que lhe chegava ao traseiro, ao mesmo tempo que elevava o tom de voz, como se falasse com um tonto ou com um estrangeiro. O do interior assentiu, e de repente
pareceu mais inteligente. - Tem-se destrançá-la, lavá-la para tirar os piolhos, penteá-la, e voltar a trançá-la para ficar apresentável com vistas a passar em revista,
companheiro. E não esperar pelo dia do juízo para fazê-lo. De modo que se faz isso com um amigo, como eu e Billy Pitt, para que ele faça a sua, enquanto se senta
a seu lardo em uma dessas buchas de queijo, ou talvez em cima de um balde virado do revés; depois você faz a dele, porque o que é justo é justo, como eu digo. É
a isso que se chama de "companheiros de trança".

- Ouvira falar desse seu Billy Pitt- disse o do interior, abrindo os olhos descomedidamente.

Naquele momento Stephen deu com a escada direita (o barco tinha, pelo menos, um piso a mais do que recordava), e encontrou ao comodoro e ao capitão do Bellona na
câmara. Ambos sorriam de orelha a orelha.

- Que notícias, Stephen, que notícias - disse Jack. - Vão nos designar a Laurel, uma corveta de vinte e dois canhões ao comando de Dick Richards, embarcação de sexta
classe e rápida na virada. Lembra-se dele, Stephen?

- Por acaso se trata do mesmo desgraçado garoto devorado pela acne, ao qual chamavam Dick, O Manchado? Então, claro que sim. Homem obstinado, ainda que não fosse
má gente.

- O mesmo. Eu lhe ensinei a disparar os canhões, e olha que estava verde, o pobre, mas ao final seus servidores se converteram no melhorzinho do barco, o melhor
barco flutuando. Confesso que estava cada vez mais nervoso: já vi tantas esquadras serem formadas, sofrerem atrasos no porto, sofrerem ainda mais atrasos, adiar-se
a data prevista, adiar-se ainda mais até que as dispersavam quando seus oficiais já tinham toda a bagagem a bordo, bagagem suficiente, digamos, para empreender uma
travessia de seis meses. Vamos, todo o plano posto a perder, e o comodoro de novo entre simples capitães de navio, obrigado a mendigar nas ruas depois de ter gasto
os últimos guinéus que lhe restavam em um galão dourado de contra-almirante.

- Quando partiremos?

- Stephen, peço que não seja indiscreto. Creio que os espiões franceses terão se dado conta de toda a agitação que há no porto, e que podem informar dela graças
a incontáveis contrabandistas, mas o ministério sente-se a salvo enquanto ninguém mencione em voz alta a data de partida. Só o que posso dizer é que não há um só
momento a perder. Encarregue-se diretamente dos apetrechos médicos, e que Deus se apiede de sua alma.

 

- Cavalheiros - disse Stephen a seus ajudantes na esplêndida enfermaria recém estreada, cheia de luz e ventilação, que incluía espaçosos ambulatórios, tanto a bombordo
como a estibordo. - Acho que poderíamos dar por supervisionados os antimônios, a jalapa e a hena, as oito jardas de bandagem de linho galês que deveria bastar-nos
para o primeiro mês; só nos faltam os torniquetes, o mercúrio e a insignificante lista de alexifármacos que Beale nos enviará amanhã. Até aqui nosso suprimento oficial.
Contudo, acrescentei certa quantidade de remédios que acharão nas caixas da esquerda, junto a um baú de sopa portátil, infinitamente preferível que a cola de carpinteiro
de segunda mão que a Junta de Provisões nos fornece, além de um pacote de minha assa-fétida particular. Que é importada para mim por um mercador turco, e como talvez
tenham podido observar, apesar da bexiga de esturjão na qual está encerrada, corresponde à variedade mais agressiva e autenticamente fétida conhecida pelo homem.
É necessário que saibam, cavalheiros, que quando se receita algo a um marinheiro, este gosta de saber do que se trata. Bastaria com que quinze grãos, ou menos, desta
valiosíssima substância impregnassem as fossas nasais do paciente ou o ar que o rodeia, para tirar qualquer dúvida que tenha a respeito; tal é a natureza da mente
humana, que empurra o paciente a experimentar mais benefícios do que o medicamento em si poderia proporcionar-lhe em caso de privá-lo de sua fetidez.

- Permite-me perguntar onde vamos guardá-lo, senhor?

- Bem, senhor Smith - respondeu Stephen, - havia pensado que quase não incomodaria na camarote dos guardas-marinhas.

- Mas se nós também vivemos lá - protestou Macaulay. - Vivemos e dormimos lá, senhor.

- Assombrar-lhes-á descobrir o rápido que um se imuniza, quão rápido se acostuma ao que as mentes débeis denominam "mau cheiro", assim como se acostuma à sacudida
do fluxo de ondas. Passemos agora para este segundo pacote, colegas, no qual encontraremos uma substância muito mais valiosa que toda a nauseabunda assa-fétida,
talvez inclusive mais que a infusão de córtex, o mercúrio ou o ópio. Ainda não figura na farmacopéia de Londres, nem sequer na de Dublim, ainda que não tardará muito
em ver-se inscrita em ambas, e em Edimburgo, com letras de ouro.

Abriu uma cesta pequena trançada conscienciosamente com junco, levantou o papel de lama e depois duas capas de seda verde-clara. Seus ajudantes observaram atentamente
as folhas marrons e secas que havia dentro.

- Estas folhas marrons e secas, cavalheiros - explicou Stephen, - provêm do arbusto peruano conhecido como Eurythroxylon coca. Não serei eu que lhes direi que isto
é a panacéia, mas lhes asseguro que possue grandes virtudes curativas recomendadas para tratar casos de melancolia, mórbida depressão do espírito (quer seja racional
ou irracional), além da inquietação incansável da mente que tão amiúde acompanha os estados febris. Provoca euforia e uma sensação de bem-estar muito mais lúcida
e superior em todos os aspectos que a produzida pelo ópio; e o faz sem causar o desafortunado vício com o qual estamos tão familiarizados. Verdade, não causa o sono
reparador do ópio, um sono doentio em todo caso, se me permitem, mas por outro lado o paciente não necessita do sono: sua mente descansa de si mesma, imbuída de
uma considerável serenidade de pensamento.

- E não é perigosa? - perguntou Smith.

- Não soube de efeitos secundários nas pesquisas que realizei entre gentes de medicina - respondeu Stephen, - e é muito conhecida, apreciada e utilizada em todo
o Peru. Enquanto o homem seja homem existirá a possibilidade de um abuso, verdade, igual que existe com o chá, o café, o tabaco, o vinho e, como não, os licores
mais fortes que nos rodeiam, mas não soube de um só caso nas semanas, ou meses, que estive entre os peruanos.

- Prescreve-se como específico para algum transtorno peruano, como tônico ou como alterativo? - perguntou Macaulay.

- Usa-se como febrífugo e como remédio para muitas doenças - aclarou Stephen, - mas principalmente os membros das classes trabalhadoras o tomam como intensificador
da vida diária. Assim como a euforia da qual já falei, a coca também proporciona ou, talvez deveria dizer que libera grandes quantidades de energia, ao mesmo tempo
que dissipa a angústia acumulada de dias. Conheci homens magros e secos, não mais altos que eu mesmo, capazes de caminhar do amanhecer ao pôr do sol a grande altitude
por terreno montanhoso, sob uma tormenta insuportável, carregando volumes pesados sem fatigar-se e sem comida. Contudo, ainda que o uso da folha de coca seja evidente
entre os pobres, os trabalhadores do campo, os mineiros e os transportadores, seus efeitos inclusive resultam mais surpreendentes entre quem trabalha com o intelecto.
Escrevi durante toda a noite até quarenta e três páginas em oitavo, sem acabar mentalmente exausto, nem ao menos cansado, depois de uma dura jornada. Ouvi informes
verídicos e corroboráveis de cirurgiões que trabalharam por vinte e quatro horas depois de celebrar-se uma batalha, operando sem que suas habilidades sofressem míngua
alguma. Mas de um ponto de vista estritamente médico, a aplicação mais evidente e imediata no dia a dia fica reservada à perturbação mental. Hospedava grandes esperanças
de poder provar seu valor durante minha recente viagem, mas lamentavelmente (sei que não deveria tachá-lo de lamentável, certamente) todos os nossos, oficiais, suboficiais
e marinheiros, não podiam estar mais contentes. Alguns casos de congelamento em frente ao cabo de Hornos, indícios de escorbuto ao norte da ilha, mas nenhuma depressão
de verdade, nem choramingos, nem tristeza, nem brigas estúpidas; além do mais, raras vezes se trocaram palavras inconvenientes. É verdade que o fato de regressar
à Inglaterra supunha motivo de satisfação, e que tinhamos sido muito afortunados no que se refere às presas, mas sua alegria entre os blocos de gelo do sul, sua
alegria nas águas pegajosas e densas das calmarias equatoriais, quando as velas pendiam flácidas dia após dia, teria bastado para enervar a um santo homem. Temos
atualmente algum caso que possamos tachar de melancolia?

- Verá, senhor - respondeu Smith depois de titubear, - muitos dos homens recrutados a forçosa andam com baixo ânimo, certamente; mas daí à melancolia clínica...
Lamento decepcionar-lhe, senhor.

Os jovens, que estavam inclinados sobre as folhas, esticaram-se quando Stephen, ao voltar-se, viu entrar na enfermaria ao capitão Aubrey.

- Na glória, para a vida... - exclamou. - Mais luz e mais ar que no mesmíssimo Céu. Seria um prazer adoecer em um lugar assim. Mas bem - acrescentou aspirando a
esquerda e direita, - pode-se saber quantos mortos o senhor guarda nesses baús?

- A nenhum - respondeu Stephen. - Esse fedor é da assa-fétida de Smyrna, a mais fétida de todas elas. Em tempos se pendurava do mastro mais alto. Talvez poderiam
convencer-me para que a recobrisse com seda empapada em óleo e a guardasse em uma caixa forrada de chumbo, que penduraríamos de alguma fresta. Ainda que, evidentemente,
guardaria aqui um pouco em uma jarra para uso diário.

- Eu lhe o rogo, doutor - pediu Jack. - Se me acompanhar poderemos falar diretamente com Astillas. Um cavalheiro da Junta de Feridos e Enfermos espera o senhor na
cabine.

O cavalheiro em questão não pertencia à Junta de Feridos e Enfermos, ainda que levava documentação oficial da mesma, mas ao Almirantado, e era um desses funcionários
que raramente se via no departamento de Inteligência Naval, um cavalheiro em quem amiúde sir Joseph Blaine havia confiado para levar a cabo as missões mais delicadas.
Não se cumprimentaram como se se conhecessem de antes, nem sequer quando Jack os deixou a sós. O senhor Judd se referiu com firmeza e autoridade a certos pontos
obscuros da administração médica, estendeu-lhe os documentos relevantes com certa ênfase, e se despediu com educação antes de ir embora por onde havia vindo.

Stephen se dirigiu diretamente à câmara do comodoro iluminada pela galeria de popa, e lá, comodamente sentado, abriu o pacote. Os papéis careciam de complicações
e interesse, pois sua única função era a de incluir a nota onde se pedia que se fosse ao bosque de coleópteros naquela mesma tarde se possível, ou que se reunisse
com o portador, a quem encontraria no Cock durante meia hora, para marcar um encontro cedo, no dia seguinte.

A estas alturas dos preparativos no Bellona, Stephen estava praticamente livre. Foi ao Cock, falou com seu homem, pegou um carro postal de volta a Ashgrove, selou
sua égua e percorreu a cavalo umas milhas em direção a Liss, antes de virar por uma série de caminhos, um dos quais o teria levado a uma casa de campo pertencente
a sir Joseph se, antes de chegar ao caminho, não se tivesse desviado por uma vereda que derivava por pastos acidentados e arenosos até chegar a um bosque afastado,
um dos poucos bosques da Inglaterra onde um entomólogo tinha uma oportunidade razoável de encontrar essa maravilhosa criatura chamada Calosoma sycophanta, assim
como, pelo menos, três variantes do escaravelho tigre.

- Quanto me alegra que tenha podido vir - cumprimentou Blaine, levantando a mão para apertar a sua. Conduziu o cavalo e o ginete até uma margem sombreada, onde Stephen
desmontou, atou simbolicamente a Lalla e se sentou, contemplando o rosto nervoso e pálido de seu amigo.

- Estou tão preocupado com os assuntos que tenho em mente que quase não sei por onde começar - disse sir Joseph. - A última vez que nos reunimos lhe expliquei que
Habachtsthal prosseguia com o trabalho de Ledward de enviar informação aos franceses; também lhe disse que foi ameaçado de sofrer um justo castigo por isso, ameaça
que pôs em xeique suas atividades até que se apercebeu do oca que era. Eu lhe adverti assim mesmo que era um homem excepcionalmente vingativo, e que tinha motivos
para suspeitar que me considerava o responsável último de ditas ameaças. Estas suspeitas se viram justificadas, o que lamento de verdade, Stephen, pois devo dizer-lhe
que também identificou ao senhor como a nêmesis de seus amigos Ledward e Wray, e a Clarissa como a fonte da informação que o senhor obteve sobre ele. De modo que
já sabe quais foram meus informantes.

- Sabe como ele descobriu?

- Quanto ao primeiro, resulta óbvio, pois é sabido o ódio que Wray professava tanto pelo senhor como por Jack Aubrey e a sua presença em Pulo Prabang quando aqueles
dois foram assassinados. Já quanto ao segundo, a verdade é que resulta muito mais obscuro... ainda que chegado a este ponto devo desviar-me do tema e voltar a elucubrar
sobre esse outro assunto, feio quer que seja, que conduziu ao capitão Aubrey a ser acusado por fraudar a Bolsa. Foi orquestado por criminosos, certamente: um bando
de fanfarrões, como se diz comumente, os mesmos criminosos que, com um ou dois golpes, tiraram do meio e desfiguraram àquela testemunha que poderia servir para absolver
ao acusado. Acreditará o senhor que o vice-procurador da Coroa e uma firma de advogados respeitável e de longa tradição têm pouco o que ver com um bando de criminosos,
mas a gente de bem conhece a quem não o é, e assim sucede até a mesmíssima porcaria. No que concerne a raison d’État, ou ao que possa disfarçar-se de raison d’État,
acho que mesmo o senhor se surpreenderia do que pode chegar a suceder. E devo lhe dizer que pela mesma comprida e sinuosa estrada, os advogados de Habachtsthal o
puseram mais ou menos em contato direto com um bando de indivíduos de semelhante aspecto, senão igual. Pratt, que está muito familiarizado com esse mundo, assegura
que pelo menos três deles pertenciam ao grupo anterior, e que um no mínimo, um homem chamado Bellerophon, assassinou ao cúmplice que matou e mutilou ao desgraçado
de Palmer, no caso de que sua riqueza o induzisse a falar pelos cotovelos.

- Pratt? - perguntou Stephen.

- Sim. Sua perspicácia, honestidade, e a peculiaridade de suas qualificações me impressionaram profundamente quando o senhor e eu o empregamos, e desde então pus
em suas mãos outras pesquisas, que sempre resolveu satisfatoriamente para o departamento. Agora conta com associados, todos homens como ele, carne de presídio e
amiúde antigos mensageiros de Bow Street.

- Isso ele me disse. Neste momento trabalha para mim, ou mais provavelmente o façam dois ou três de seus associados. Trata-se de uma investigação familiar da qual
lhe falarei quando tenhamos terminado com isto.

- Não mencionou nada a respeito, como era de esperar - respondeu sir Joseph depois de fazer uma inclinação de cabeça, - mas sim falamos do senhor e do capitão Aubrey.
Sente um grande respeito e apreço pelo senhor. Inclusive me atreveria a chamá-lo afeto. Não obstante... - Fez uma pausa, reuniu seus inquietos pensamentos e continuou,
- estes indivíduos, talvez com a ajuda de um burocrata, além do estrato mais rastreiro de procuradores criminosos, puseram em conhecimento de seu patrão os seguintes
fatos: que o senhor trouxe de volta ilegalmente a dois convictos de Nova Gales do Sul, sem que tivessem sido perdoados, que obedecem aos nomes de Patrick Colman
e Clarissa Harvill, agora senhora de Oakes; que o senhor solicitou, através de mim, seu perdão; e que como tal perdão ainda não se obteve o senhor segue passível
de processamento por uma série de delitos inegáveis que, talvez, não o levem à morte, mas no mínimo a sofrer penas de prisão e de confisco de todas suas propriedades.
Além disso, alegam que o perdão que há tempo pedimos para o senhor...

- Acho que deveria explicar-me esse ponto, Joseph.

- Desculpe-me, Stephen. A primeira vez que o departamento solicitou sua ajuda e conselho para o assunto catalão, dizia-se que o senhor e alguns amigos e familiares
seus tinham estado envolvidos no levante irlandês de 1798, o que lhe situa na ampla categoria legislativa de "cúmplice e encobridor" e "associação com malfeitores".
Para proteger-lhe incluimos seu nome em um dos perdões mais amplos. Confesso que nos tomamos certas liberdades, mas serviu a nossa causa comum. Sem isso não poderia
ter mostrado ao senhor nenhum documento confidencial sem incorrer eu mesmo em um crime, enquanto que no momento menos pensado um processo mal-intencionado e particular,
por exemplo, poderia ter-nos privado de sua valiosíssima ajuda. Como saberá, os processos particulares são comuns nestes casos.

Stephen assentiu.

- Porém, por desgraça, ao que parece esta gente teve acesso ao documento em questão - continuou Blaine, - e se diz que poderia não ser tão estanque, que se pudessem
concretizar-se novas provas poderiam prender o senhor por traição. Conforme parece, mesmo a estas alturas podem proporcionar-se ainda tais provas, em Dublim, onde
ainda hoje em dia se arrastam criaturas infames, e procurar-se a troca por um preço não muito exorbitado.

Agitado como estava, Blaine tirou um lenço do bolso, lenço no qual havia envolvido um envelope enrugado e dobrado pela metade.

- Se me esquecia - exclamou sustentando-o no alto. - Devia ter-lhe enviado este envelope. Corresponde à minuta que explicita a quantidade que se lhe há de pagar
pelo aluguel da Surprise nesta última viagem. O contador difere na soma da primeira página, que acredita excessiva por dezoito peniques, e observa que no total o
senhor omitiu a soma combinada de dezessete mil libras, mais ou menos, em caráter de aluguel, manutenção e reparações.

- Como confunde a existência de um o fato de saber-se capaz de esquecer, ou mesmo de descartar, dezessete mil libras - disse Stephen em voz baixa.

Blaine não prestou atenção a suas palavras e continuou:

- Pensando bem acho que errei em minha exposição, pois aredito ter dado a impressão de que toda esta informação se encontra nas mãos de Habachtsthal. Não é assim.
Possue uma idéia geral mas ignora os detalhes. E por mediação de duas fontes descobri que a... como chamá-la?, a... turma não só se pôs pôr um alto preço a seus
serviços, como depois o chantageou por ter procurado e usado sua ajuda. A verdade, não sei o que possa ser dele, ainda que seu final se me deseja que será bastante
desagradável. Contudo, o senhor não me é indiferente, e devo dizer-lhe com uma preocupação infinita que seu projeto mais imediato consiste em chantagear o senhor.
Lamento dizer, mas sabem que é pessoa de recursos, e também conhecem seus pontos fracos, ainda que só seja no concernente a Clarissa e a Padeen, e que poderiam pegá-los
para conseguir que os deportassem de novo para Nova Gales do Sul. A informação me chegou por duas fontes distintas. Não lhe surpreenderá saber que Pratt foi uma
delas, mas acho que a segunda sim o surpreenderá, pois se trata nada mais e nada menos que de Lawrence, o conselheiro de Jack Aubrey no caso da Bolsa. Mostrou-se
tão cauteloso e discreto como cabia esperar, mas deduzo que Habachtsthal já tem consciência de que está muito, muito mais envolvido nesta associação com malfeitores
do que esperava ver-se, que não vai poder satisfazê-los com a cifra estipulada de antemão, e que ainda que o regente soberano de um estado alemão insignificante
possa despachar expeditivamente a todo aquele que lhe resulte incômodo em seu própio terreno, aqui não terá as mesmas facilidades. O muito estúpido brigou com seu
própio advogado e agora anda em busca de proteção a direita e esquerda. E assim, direta ou indiretamente, é como Lawrence se informou do que sucede. É perfeitamente
consciente da posição em que se encontram Clarissa e Padeen. Entende com perfeição que uma longa demora em conceder um perdão que, de outra forma, deveria ter sido
rotineiro, forma parte de uma manobra a longo prazo dirigida contra minha pessoa e, através de mim, contra o senhor. Pede para que o senhor tenha muito cuidado.

- Sempre senti um grande respeito, estima e apreço pela pessoa de Brendan Lawrence - confessou Stephen, - e lhe agradeço muito sua amabilidade. Não terá oferecido
ao senhor algum conselho a respeito?

- Isso mesmo, esta mesma manhã tive a oportunidade de entrevistar-me com ele. Seus conselhos coincidem ponto por ponto com os de Pratt, que veio me dizer que, nesta
mesma segunda-feira, um procurador de segunda disporá finalmente da documentação autenticada de Newgate para completar o processo que aprova a deportação de Clarissa.
Também coincidem com a minha, se lhe serve de algo.

- Peço que me diga sua opinião sobre todo este assunto, se é o senhor tão amável.

Em pleno silêncio, um gaio-comum assobiou desde a copa da árvore que tinham acima de suas cabeças, um álamo branco; deu uma espiada desde as alturas e ao ver o que
eram afastou-se voando com um grito rouco.

- Não sei se devo dizer - disse Blaine, que olhou com firmeza para Stephen. - Acho tão extravagante que poderia tachá-lo de romântico, de excessivo. Contudo, todos
nós estamos de acordo em que o senhor deveria fugir de imediato, levando seus protegidos, assim como todo o dinheiro que possa reunir. Assim se apresentem as acusações
contra sua pessoa, assim que os arquivos de Newgate tenham percorrido o caminho que os separa dos advogados empregados por Habachtsthal, e assim que este tenha firmado
a denúncia que dará começo ao processo legal, sua conta bancária sera embargada e não poderá tocá-la. Acreditamos o senhor que deveria se esconder e permanecer oculto
pelo menos até que o duque de Sussex regresse, momento em que minha posição se verá sumamente reforçada, momento também em que o carinho que ele tem pelo senhor
se concretizará em um perdão do mais rotineiro, pois sua posição supera em muito a de Habachtsthal.

Regressou o gaio-comum, voou em círculos ao redor da égua e voltou a pousar na árvore, grunhindo para si durante um tempo antes de alçar vôo de novo.

- Tudo depende de Habachtsthal - disse Blaine. - Se fosse eliminado não poderia fazer nenhum favor, e desapareceriam todas estas dúvidas sobre o perdão. Quando os
concedam, os chantagistas não terão a que se agarrar para fustigar ao senhor. - Guardou silêncio, mas seu olhar disse tudo o que queria dizer.

- Certamente - disse Stephen. - Trata-se de um inimigo da mesma estatura que Ledward e que Wray, como alguns outros aos que eliminei ou servi de veículo para sua
eliminação sem peso algum de consciência. E ao mesmo tempo se trata de um caso diferente, e com os compromissos que adquiri com este país, não consigo sequer poder
considerar semelhante ação.

- Suponho que não. E não sabe o quanto lamento. Em caso de desaparecer o da Liga, tudo viria abaixo. É o único e principal artífice. Se morresse, toda sua sede de
vingança e toda sua influência desapareceriam com ele. Trata-se de um caso de acusação particular, de modo que também desapareceria. Não temos por que esperar por
Sussex. Deveria insistir, talvez, em que o senhor considerasse e recorresse ao seu antigo paciente o príncipe William. O departamento se livraria de um oponente
perigoso, livrar-se-ia de uma vez por todas. Contudo..., com relação ao dinheiro, Lawrence acha que o senhor dispõe de uma soma importante em ouro.

- Isso mesmo. A última vez que estive na cidade me entrevistei com ele, e depois de considerar tudo o que me explicou com respeito às participações e às ações, às
anualidades e às propriedades, decidi depositá-lo nas arcas em que veio da Espanha. Um dos sócios me mostrou-as, ficam guardadas em uma câmara forte situada no porão
de sua casa na Cidade.

- Estaria o senhor disposto a firmar algumas procurações dirigidas a algum candidato cuja confiança estaria garantida por Lawrence e por mim, para podê-lo guardar
em lugar seguro?

- Sem dúvida.

- Assim o supúnhamos, de modo que Lawrence redigiu as procurações: aqui tem uma pena e um tinteiro de bolso. O banco tardará muito pouco em ter tudo preparado. Como
saberá, não há um minuto a perder.

 

CAPÍTULO 5

- Por que estou tão nervoso? - perguntou-se Stephen enquanto cavalgava para Portsmouth. - Minha mente cavalga descontrolada sem um rumo determinado, ela me escapa.
Por que, oh, por que eu deixei no barco minha bolsa cheia de folhas? Era a oportunidade perfeita para que demonstrassem seus poderes, tão superiores aos da papoula,
que proporcionam pouco menos que uma estúpida modorra. Claro que, em ocasiões, é preferível desfrutar de uma estúpida modorra - refletiu ao recordar que Petersfield
contava com uma farmácia onde, em tempos, comprara láudano. - Vade retro, Satanás - exclamou ao mesmo tempo que fazia um esforço para mudar o pensamento.

As nuvens se amontoavam no alto, pelo sudoeste. Avançava a noite, tão cedo como sempre, e era quase certo que traria chuva. Havia abandonado os caminhos fazia tempo,
e agora cavalgava pela estrada entre Londres e Portsmouth, que abandonaria um pouco antes de chegar a Petersfield. As margens lisas facilitariam a viagem, e não
podia desviar-se do caminho facilmente. Tal e como havia dito sir Joseph com uma intenção de sorriso, não havia nem um minuto a perder.

Pois o estado anímico é algo que não só se contagia facilmente de pessoa para pessoa, como também de pessoa para cachorro, gato, cavalo, e vice-versa, parte de sua
alegria atual se devia a Lalla, ainda que a inusual e inquieta volatilidade da égua era devida a uma causa que provavelmente não podia ser mais remota: a estação
do ano, seu temperamento, e uma miríade de diversos fatores que lhe inspiravam a sensação de que nada seria mais agradável que achar-se com um estupendo exemplar
de cavalo. Dava pulos a medida que cavalgava, às vezes dançava para um lado, às vezes movia a cabeça. Sua atitude era mais que evidente para outros membros de sua
raça, e os pobres e desgraçados castrados elevavam o olhar para o céu, enquanto que o único potro junto ao qual passaram correu como um possesso de um lado para
o outro do pasto, relinchando. Por outro lado, um asno pretencioso proferiu um relincho de tristeza que os seguiu além do cultivo, até a margem de um árido exido
onde uma ampla vereda se unia ao caminho pelo qual cavalgava, pois ambos seguiam até fundir-se, junto às forcas, em uma estrada. Comprazida por seu êxito, Lalla
grunhiu, arqueou o pescoço e corcovou até tal ponto que Stephen gritou:

- Basta, basta. Quieta. Vamos, Lalla, pelo amor de Deus. - E puxou as rédeas com força para obrigar a égua a deter seu andar ao pé das forcas, sempre lugar de passagem
obrigatório para qualquer pessoa interessada na anatomia, inclusive para alguém tão preocupado como Maturin.

Este lugar de mau agouro em um cruzamento de caminhos, rodeado de mato de ambos os lados, perfeito para uma emboscada, fora escolhido para a exibição de terríveis
exemplos. Contudo, não pareciam ter um efeito muito dissuasório, pois ao que parece tinham que renová-los com tal regularidade que as duas parelhas de corvos de
Selborne Hanger o visitavam duas vezes por semana para desfrutar de carne fresca. A essa altura a luz era muito escassa para que Stephen pudesse fazer alguma observação
interessante; contudo, pelo rabo do olho percebeu um movimento na tojo. Talvez fosse uma cabra, pois havia visto várias no caminho. Lamentou não ter a mão a precisa
pistola de longo canhão giratório, presente de um agente de inteligência francês, que costumava levar quando viajava de noite.

Esporeou Lalla, mas esta apenas tinha franqueado o ponto exato em que os caminhos se fundiam quando ouviu um estampido de cascos a suas costas. Quando montava Lalla,
Stephen não usava esporas nem fuste, de modo que a animou a apertar o passo apertando os joelhos, os calcanhares e toda a força moral que pôde exercer, apesar de
tudo a égua não pareceu dar-se por ciente, e apenas avançou ao galope. Os cascos de seus perseguidores se aproximaram mais e mais: tinham chegado a sua altura e
os rodeavam por ambos os lados. Era uma turma de castrados sem ginete, que comiam a égua com os olhos, além de outros potrancos e cavalos de fazenda procedentes
dos exidos, tal e como Lalla sabia obviamente desde o início.

- Apesar de tudo - disse Stephen quando a grade se fechou atrás deles e se acharam trotando pela estrada de Portsmouth, - há um armeiro em Petersfield, e acho que
comprarei um par de pistolas de bolso.

Pararam no Royal Oak, onde Stephen descobriu que não só havia esquecido a arma de Duhamel, mas também seu própio dinheiro, ainda que foi graças ao fato de descobrir
por casualidade uma moeda de sete xelins que tinha guardado em um bolso, como uma curiosidade, que se poupou uma situação embaraçosa e, talvez, uma experiência desagradável.

- A mensagem de Joseph projeta sua própia sombra - refletiu. - Pois claro raras vezes me permiti o luxo de baixar a guarda desta maneira.

Cavalgou debaixo de uma chuva incessante, e voltou a pensar em Duhamel, um agente que, subutilizado e talvez a ponto de ser sacrificado por seu própio governo, mudara
de lado e proporcionara a Stephen provas da traição de Wray e Ledward. De Duhamel, por quem sentira um afeto sincero, passou a recordar de outros agentes, detendo-se
especialmente em um homem ao qual chamavam McAnon, um normando de Vauville de boa posição que acostumava infiltrar-se até Alderney para visitar uma esposa extra-oficial,
e que, assim como outros homens surpreendidos em idêntica e frágil postura, mudara de lado, tanto mais simples pois desprezava a Bonaparte com um ódio pessoal e
exacerbado, própio de um vulgar rebelde italiano e de alguém a quem haviam recusado uma proposta para a melhora do sistema de sinais telegráficos. McAnon, que ocupava
um posto de responsabilidade no departamento de comunicações, havia lhes proporcionado algumas previsões de longo alcance que resultaram muito precisas. Era ele
que aguardava o momento de que Jack Aubrey abrisse as ordens secretas quando alcançasse a latitude e longitude adequadas. Nestas ordens lhe informavam que uma esquadra
francesa de força mais ou menos equivalente, acompanhada por navios de apetrechos, reunir-se-ia em Lorient em uma data determinada, e que com a ajuda de três distrações
individuais se faria ao mar o mais perto possível da lua cheia. A intenção do comandante francês consistia em pôr proa para as Antilhas com o objetivo de enganar
possíveis observadores, a seguir rumaria para a costa sudoeste da Irlanda, onde desembarcaria suas tropas na costa do rio Kenmare ou da baía Bantry, conforme permitissem
tanto as atividades da Armada real como o tempo.

McAnon era um homem valioso onde quer que fosse, ainda que, como havia dito Blaine, seu ascendente, com ele era agora menos firme, já que a esposa extra-oficial
havia se interessado por usar bóbis em pleno dia, e a adotar a voz de uma menina pequena quando abria a boca. Mesmo assim era provável que o desprezo que sentia
pelo regime imperial, seu desfrute do perigoso jogo e a amizade que o unia ao homem que tratava com ele o mantivessem na ativa e em posição de dar informação confiável.
Mas era muito difícil sabê-lo com certeza. O outro bando contava com outros homens muito inteligentes, interessados em envenenar os brotamentos de inteligência:
recordou-se de Abel, um aliado devoto e completamente altruísta de Paris, cujo chefe lhe permitira "por acidente" ver o plano de ataque do almirante Duclerc sobre
um comboio do Báltico, e que pouco antes de sua morte enviara os pormenores com toda sua boa fé. Como conhecia tão bem ao agente em questão, o segundo de Blaine,
pois este se encontrava então em Portugal, atuara de imediato: para sua surpresa os barcos adicionais despachados para proteger aos mercantes se encontraram fortemente
superados em número. O comboio sofreu terríveis danos, apresou-se um bergantim armado, destruiu-se uma corveta, e a Melampus, fragata de sua majestade, somente conseguiu
salvar-se devido à descida de uma bruma providencial, ainda que com muitas baixas, incluída a do capitão, que era amigo de Jack, a perda de dois mastaréus e graves
danos no casco.

Situações difíceis, situações difíceis. E se Jack seguisse a bordo teria outra dentro de uma hora. O comodoro Aubrey tinha mais trabalho do que podia levar a cabo,
como sucede a todo aquele que tem ordens de partir em tão pouco tempo, com alguns preparativos que dão fé da indiferença dos comandos e tantas mudanças de última
hora. Apesar disso, estava melhor apetrechado que muitos em condições similares. Como tantos grandes homens não perdia os nervos com facilidade; não recorria ao
seu poder na hora de repreender a ninguém. Geralmente, sentia desprezo por qualquer um que se queixasse, e todo o transcurso de sua carreira profissional lhe preparara
para o desempenho do papel atual. Por outro lado, encontrava-se incrivelmente indefeso no tocante à inveja. Era um sentimento que ao que parece não conhecia, pelo
menos não em sua atual e arrasadora intensidade, de tal forma que quase não parecia capaz de reconhecer os sintomas, de modo que não podia recorrer à inteligência
para a escassa ajuda que pudesse proporcionar nestes casos.

Stephen estava muito familiarizado com a causa da cegueira no tocante à saúde: "é somente um inchaço e não tardará em desaparecer", ou nos sentimentos: "certamente
não recebeu minha carta. O correio é muito lento nos tempos que correm, e dista muito de ser considerado seguro". Apesar de tudo, surpreendia-se muito ao descobrir
que Jack Aubrey era capaz de tais sentimentos, pois era um homem muito mais inteligente do que parecia para quem não o conhecia bem. Observara com suma preocupação
o progresso de sua doença, as mudanças operados na atmosfera que envolvia Ashgrove Cottage, lugar que o senhor Hinksey seguia visitando com uma regularidade mais
do que desafortunada, aparecendo amiúde pouco antes de que Jack partisse. Também reparara nas mudanças operados no Bellona. Jack ainda seguia comportando-se amavelmente
com ele, e em tudo o tocante à esquadra se dava perfeitamente bem com quem lhe rodeava. Contudo, de vez em quando sucedia que um repente de severidade ou seu tom
autoritário surpreendia a quem havia servido com ele antes, e fazia com que seus novos subordinados o observassem com certo incômodo. Será que teriam embarcado com
outro Saint Vicent, conhecido como Velho Jarvey ou mesmo como Velho Diabo, por ser disciplinador feroz e estar sempre tenso?

Obviamente, este julgamento em particular, que na opinião de Stephen era de todo desnecessário, punha a prova o temperamento de Jack Aubrey. Stephen lamentava muito
todo o caso, o sofrimento dos dois principais envolvidos e de quem os rodeava, a impossibilidade total de representar o papel de amável mediador que endireita tudo
com algumas palavras suaves e compreensivas, comunicadas talvez de forma parabólica. Chegado a este ponto, sua tristeza adquiria um tom singularmente imediato, sentia
a angústia pessoal de quem joga muito, pois ia pedir-lhe um favor que mesmo um comandante naval bem disposto, sem pressa e famoso por sua benevolência, titubearia
na hora de conceder, isso por não falar de alguém concentrado na tarefa de preparar uma esquadra que devia fazer-se ao mar, alguém a quem lhe roía um monstro de
cuja existência quase não era consciente, um monstro que nesse momento o devorava por dentro.

Lalla se deteve e voltou a cabeça para olhá-lo. Devia tomar a estrada até Portsmouth, ou levá-lo pelo caminho que conduzia para casa?

- À esquerda, fresca - ordenou, afundando o joelho no lado. Ainda não a havia perdoado por ter-lhe feito de idiota junto às forcas, ainda que se abrandou quando
chegaram a Keppels Head. Pediu farelo molhado, mesclado com melaço, que era o refresco favorito da égua, antes de ir ao porto em busca de um bote, já que o moço
do estábulo lhe informara que o cavalo de Jack continuava no estábulo.

- O Bellona fica a uma boa distância, senhor - disse o barqueiro, - e o suportará senhor uma remada longa e úmida. Quer pôr este capote de lonita, já que, pelo visto,
esqueceu a capa?

Apesar do capote de lonita, Stephen se ensopou completamente antes de que bote se encostasse na embarcação. Ao aproximar-se do costado, iluminado e concorrido pelos
marinheiros, o barqueiro observou que a falua da Thames esperava no lado de estibordo.

- Olhe-os, parecem uma turma de pisa-verdes - disse ao mesmo tempo que assinalava com uma inclinação de cabeça para os remadores do capitão Thomas, todos eles vestidos
com o mesmo traje ostentoso, como um bando de palhaços empapados. - Será bombordo para o senhor, verdade, senhor?

- Isso mesmo - respondeu Stephen. - E lhe agradeceria que avisasse aos do barco de que necessitaria, se possível, de uma escada em boas condições.

- Aí, do bote! - gritaram desde o Bellona.

- Oi! - replicou o barqueiro.

- Vem por aqui? - perguntaram do navio.

- Não, não - respondeu o barqueiro, com o que na realidade queria dizer que sim se atracaria ao navio, que aferrara sem dificuldade com o croque, e que seu passageiro
não era um oficial de guerra; então, levantando ainda mais a voz, gritou: - O cavalheiro agradeceria por uma escada em condições, se estiver disponível!

Suas palavras foram recebidas por um silêncio fruto do assombro que durou talvez mais do que o barqueiro esperava, e quando este encheu os pulmões para repetir o
dito, ao mesmo tempo que afogava o riso, algumas vozes familiares lhe informaram de que o doutor não devia se mover por temor de que escorregasse devido à chuva,
que não saísse de onde estava, que eles se encarregariam de subi-lo a bordo.

E assim o fizeram os homens da Surprise: no convés o depenaram de sua roupa, e lhe disseram que estava empapado, empapado até o pescoço, por que não havia posto
a capa? Com o vento do sudoeste sempre teria que usar a capa.

Dirigia-se para a popa quando o capitão Pullings o interceptou.

- Há, doutor - disse, - o comodoro está ocupado neste momento, não poderia pôr melhor essa capa, pelo menos? Pegará um resfriado que o levará direitinho para a tumba.
Senhor Somers - disse ao oficial de guarda, - muita atenção, em qualquer momento a partir de agora.

- Senhor Dove - disse Somers ao contramestre, - muita atenção, em qualquer momento a partir de agora.

Um dos ajudantes do contramestre se inclinou sobre o corrimão e observou a falua. Conseguiu atrair a atenção do timoneiro e inclinou a cabeça de uma forma extra-oficial,
repleta de significado.

Uma porta se abriu a estibordo da popa: um vozeirão sem impedimentos em seu caminho disse em um tom de sonora indignação:

- Isto é tudo o que tenho a dizer, e espero que não volte a suceder nada parecido. Que o senhor tenha um bom dia, senhor.

O capitão Thomas saiu lívido da emoção, levando consigo debaixo do braço o registro de castigos da Thames. Depois, cumprimentou aos oficiais do castelo de popa com
pouco mais que uma inclinação de cabeça quando os ajudantes do contramestre fizeram soar o apito para anunciar que descia pelo costado, com toda a cerimônia que
acompanha a ocasião.

- Agora a cabine está vazia, doutor, se o senhor quiser entrar - disse Tom Pullings com uma olhada de cumplicidade.

- Ah, aqui está, Stephen - cumprimentou Jack ao mesmo tempo que levantava o olhar da escrivaninha, com um sorriso natural que transformou a severidade de sua expressão.
- Já voltou? Pelo amor do céu, está empapado até os ossos. Não deveria trocar os sapatos e as meias? Costuma-se dizer que os pés são a parte mais frágil. Aí fica
o calcanhar de Aquiles... ainda que você já saberá o que é seu calcanhar de Aquiles.

- Depois. Mas no momento, Jack...

- Bem, em qualquer caso tome um trago para tirar a umidade. A água do mar não faz estrago a ninguém, mas a chuva é farinha de outro saco quando se mete nos ossos
de um. - Moveu-se como peixe na água, pegou uma garrafa do armário e serviu dois copos de rum, glorioso rum que extraíra da madeira durante o também glorioso ano
de Trafalgar. - Deus, eu realmente necessitava disso - disse ao apurar o copo. - Quanto desprezo a quem surra de forma indiscriminada. - Deu uma espiada nos papéis
que havia em cima da mesa, e seu rosto voltou a adquirir uma expressão pétrea.

- Jack, diria que não escolhi o melhor momento - disse Stephen. - Tenho que pedir-te uma coisa. Um favor, e não sabe quanto preferiria encontrar-te mais calmo. Pois
salta à vista que teve um dia de cachorros.

- Diga-me, diga-me, Stephen. Não acredito que amanhã esteja de melhor humor. O mau humor parece ter se aninhado em meu peito - disse golpeando-o, - tanto como o
vento costumava entabular-se pelor sudeste e ficar ali quando tentávamos sair arrastados do Porto Mahón, semana após semana.

Houve um silêncio.

- Se é tão amável gostaria de pegar a Ringle emprestada- disse Stephen por fim, com voz rouca, - com a dotação adequada, para realizar uma viagem particular a Londres
tão cedo como seja possível.

Jack o observou fixa e penetrantemente, como Stephen nunca o vira fazer.

- Sabe que nos faremos ao mar com a maré da quarta-feira. - Observou depois de olhar o rosto de Stephen.

- Sim. Mas permita-me dizer que se o vento nos acompanhar, estou seguro de poder reunir-me contigo no Groyne, ou em frente a Finisterre. - Quando Jack assentiu,
Stephen aproveitou para continuar: - E permita-me também acrescentar que se trata de uma questão inteiramente pessoal, uma emergência particular.

- Isso me havia parecido - admitiu Jack. - Muito bem, ela é sua. Mas com o tempo que se aproxima, duvido muito que possa reunir-se comigo a tempo. Tem intenção de
demorar muito na cidade?

- O suficiente para carregar alguns baús perto da Torre.

- Quantas marés você calcula?

- Marés? Para dizer verdade, Jack, não tinha pensado em marés... ainda que também - disse baixando o tom de voz, tanto que pareceu fraquejar sua confiança no que
ia dizer - confiava em poder passar talvez uma noite em Shelmerston.

- Entendo. - Jack fez soar um sino. - Poderia dizer ao capitão Pullings que necessito um minuto de seu tempo? - Tom Pullings entrou de imediato. - Tom - disse, -
o doutor tem necessidade do barco de apetrechos e pretende navegar até o rio de Londres diretamente. Confia-lhe a Bonden, a Reade e a uma quadrilha tão discreta
de velhos companheiros de rancho como lhe ocorra pensar, os suficientes de forma a assegurar duas guardas e que dois fiquem livres. Talvez não possa reunir-se conosco
antes do Groyne ou de Finisterre, de modo que assegure-se de que conte com a bagagem necessária para as Berling, para ontem.

- Para ontem, senhor - disse Tom sorrindo.

- Fico sumamente agradecido, Jack, meu amigo - disse Stephen.

- Não é necessário agradecimento algum entre você e eu, irmão - disse Jack. E em outro tom, acrescentou: - Talvez demore um pouco a ficar pronto, porque está junto
a Gilkicker, mas poderá partir com a maré-cheia. Lamento não lhe ter cumprimentado alegre como umas castanholas. Tive um dia surpreendentemente esgotador. Ainda
que você também, a julgar por seu aspecto, se me permite falar deste modo tão condenadamente pessoal. Quer um café? - Sem dar tempo para uma resposta, fez soar o
sino e gritou: - Killick, uma cafeteira das grandes. Ah, e o doutor necessitará de meia dúzia de camisas limpas, um abrigo seco e umas meias imediatamente. - Deixe
que lhe fale do dia que tive hoje - disse Jack quando desfrutavam do café, - e deixo de lado a minha batalha particular com os provedores, e com esse asno de Thomas,
que se seguir assim acabará como Pigot ou Corbett, sendo pasto para as feras marinhas. Verá, tinha desembarcado para comprovar como se manejava meu segundo cronômetro,
o Arnold, que necessitava de uma limpeza, quando resulta que me topo com Robert Morley da Blanche. Ao que parece está ancorada em Saint Helens, recém chegada da
Jamaica. Choquei-me literalmente com ele e, além do mais, ao cair o fez sobre um canal. Eu o recolhi, sacudi a poeira e o levei ao Keppels Head, onde pedi um copo
de ponche de limão porque sei que Bob Morley gosta muito. Mas ainda tinha essa palidez no rosto e lhe perguntei se havia se ferido e se queria que chamasse a um
cirurgião. Disse que não, que estava perfeitamente bem, e então se inclinou sobre a mesa enquanto as lágrimas resvalavam por suas faces. Seu barco havia chegado
antes do amanhecer e havia desembarcado a toda pressa para chegar em casa antes do café da manhã. Pois bem, vai e encontra a sua esposa grávida de seis meses. estivera
fora durante dois anos. Ela estava horrorizada. Seu sogro estava presente, um pároco ancião, e disse a Bob que não devia maltratá-la nem mostrar-se desagradável.
Não devia lhe jogar uma só pedra a menos que estivesse livre de pecado; e nem sequer então, se é que em verdade era um bom homem. Pois Bem, como sabe muito bem,
Bob Morley, ainda que seja uma companhia excelente e um tolerável bom marinheiro, nunca foi muito amigo da castidade, pelo menos mais do que eu mesmo, ainda que
ele levava as coisas muito mais longe. Nas Antilhas sempre andava de cruzeiro com uma senhorita a bordo, e permitia a seus oficiais, e inclusive aos guardas-marinhas,
tais liberdades quando comandava essa Semiramis que parecia um bordel flutuante, até tal ponto que o almirante em pessoa se apercebeu disso.

- Seu cirurgião morreu de sífilis.

- Pois bem, vou e tento explicar assim a Bob, tento dizer-lhe que não podia culpar decentemente a ninguém por fazer o que com tanta alegria ele tinha feito. Certamente,
a empreendeu com aquele grito de papagaio de: "Oh, é que para as mulheres é diferente".

- E o que respondeu a isso?

- Não lhe disse que achava a resposta simplória porque me daria um esfregão, é o que penso, porque estava muito triste, o pobre, de modo que respondi que as coisas
eram assim - que bobagem, - que o fato era o mesmo para ambos, e que a única diferença era que uma mulher podia trazer um cuco ao ninho e enganar às outras aves
do quintal, mas que isso se conserta deixando ao cuco em questão fora do testamento.

- É essa sua considerada postura, irmão?

- Sim, isso mesmo - respondeu Jack com um olhar angustiado, - é minha mais profunda e considerada postura. Eu pensei uma e outra vez. O que é justo é justo, já sabe
- disse com uma ameaça de sorriso. - Sempre estive convencido disso.

- Pois lhe honro por isso.

- Alegra-me ouvir isso, ainda que alguns diriam que é uma pena. Apesar de tudo, não acredito que lhe compraza tanto ouvir que me ofereci para comparecer ante o homem
em questão para pedir-lhe uma satisfação.

- Mas vejamos, Jack, não acha que sua atitude tem certa contradição? Por um lado, a decência - e não me referirei à caridade cristã, - e, por outro, uma selvagem
ânsia de vingança...

- Stephen, não acredito que seja a pessoa adequada para me falar de selvagens ânsias de vingança, pois ambos temos as mãos manchadas. Nós dois estamos desqualificados.
E se existe uma contradição aparente, posso responder a ela desta forma: acho, mais que isso, estou plenamente convencido, de que estou com a razão quanto ao primeiro;
e que estou praticamente com a razão com relação ao segundo. Chegou em seus estudos matemáticos à equação de segundo grau, Stephen?

- De fato meus estudos na matéria não alcançaram o pé da tábua de multiplicar.

- A equação de segundo grau concerne à segunda potência de uma quantidade desconhecida, mas nada mais. A raiz quadrada.

- Ah, verdade?

- E meu argumento é o seguinte: uma equação quadrática tem duas soluções, e ambas são acertadas, demonstráveis e comprováveis. Existe uma contradição aparente mas
irreal entre ambas as respostas.

Stephen sentiu que pisava em terreno perigoso; ainda que não tivesse temido a possibilidade de infligir dor, sua mente estava tão esgotada que, apesar de dar com
possíveis objeções aos argumentos de Jack, quase não era capaz de formulá-las.

- Jack - disse em um tom completamente diferente, depois de refletir um pouco, -mencionou antes as Berlings. Quando pensa em falar-me delas?

- Vá - disse Jack, que o compreendeu perfeitamente bem, - são um grupo de rochas, ainda que você as chamaria de ilhas, que se alçam em pleno mar como o cume de uma
montanha, um pouco ao sul das Farilhoes, a umas duas léguas a oeste noroeste de cabo Carveiro, em Portugal. São muito perigosas em metade de uma borrasca, e mais
de um barco que cobre a rota de Lisboa já lamentou não contar com um bom vigia de noite e não ter se mantido bem ao mar. Contudo, supõem um ponto de encontro ideal
caso não se queira se aproximar da barra do Tajo e esperar a maré-cheia; e em condições atmosféricas moderadas é possível permanecer facilmente a pairar, a sotavento
delas, largadas as artes de pesca para ver se bica a pescadinha. - Refletiu enquanto via a silhueta das Berlings alçar-se sobre o mar de maio, cálido e morno. -
Estando no Bellerophon de guarda-marinha - continuou, - o capitão despachou o piloto, o senhor Stevens, para reconhecê-las, e este me levou com ele porque sabia
que eu gostava desse tipo de trabalho. Sempre foi muito amável comigo ou com qualquer outro jovem que demonstrasse interesse por levantar planos ou reconhecer costas.
Existe uma satisfação enorme na triangulação e no cálculo de um rumo, Stephen.

- Estou convencido disso.

- Recordo-me algumas das comprovações que fizemos, as que casavam perfeitamente. E também recordo os gigantescos bancos de aves marinhas.

- De que espécie?

- Oh, de todas as espécies, de todas. Certamente você saberia reconhecê-las. Lembro que ele me disse que a maioria eram petréis, mas como estavam assustadas não
me pareceu que voassem como estas aves costumam fazer. E algumas estavam mais cobertas de plumagem branca que os da espécie comum. Estavam assustadas porque entramos
em uma caverna enorme que não tinha fundo, e as aves surgiram voando na penumbra como uma avalanche de neve. A caverna seguia e seguia, tinha um teto alto, e ao
final vimos luz ao dobrar uma esquina no extremo oposto, porque a caverna não acabava ali, não. Ao chegar à saída, a luz penetrava oblíqua e pudemos distinguir inumeráveis
morcegos...

- Morcegos, Jack? Surpreende-me. Tão longe de terra? Suponho que não os observou detalhadamente.

- Estivemos muito ocupados medindo a braceagem, mas me dei conta de que alguns eram grandes como perdizes, bem... talvez como codornas, e que tinha outros menores.
Estou quase seguro de que um tinha as orelhas compridas. Eu o vi recortado contra a entrada da caverna antes de que saísse voando.

- Quanto me agradaria poder passar uma ou duas horas entre morcegos. Fale-me da superfície das rochas, da vegetação, dos lugares onde as aves aninhavam; certamente
teriam seus ninhos ali.

- É claro que sim, e justo um em cima do outro, quase como as gentes que vivem em Seven Dials{12}; ainda que, tal e como eu o vejo, a maioria dos petréis surgiram
dessa caverna. Era cheia de fendas, cantos e buracos.

- Que alegria. Mas vamos, fale-me da vegetação, e faça-me uma descrição superficial das aves.

Conversaram e conversaram até que se perdeu o eco do canhonaço da tarde, jantaram juntos e repassaram a viagem à Portugal que fizeram na Surprise, durante a qual
Stephen teria apreciado o contorno das Berlings se estivesse no convés, e na qual, depois de desembarcar em Lisboa, foram informados de que Sam fora ordenado sacerdote.
Tratava-se de Sam Panda, o filho ilegítimo e negro de Jack, concebido no Cabo. Discutiam ainda que oportunidades tinha de obter uma prelazia quando o buque de apetrechos
se atracou ao navio. Jack Aubrey era tão protestante como qualquer pessoa que abjurasse ao Papa e ao Impostor, mas como sentia todo o carinho do mundo por Sam convertera-se
em um especialista nos segredos da hierarquia eclesiástica, tanto como podia sê-lo na sucessão de almirantes. Conversava com ilusão dos protonotariados apostólicos
e de suas diversas fileiras de botãozinho violeta quando Reade entrou, descobriu a cabeça e disse:

- Acaba de atracar-se a escuna, senhor, com sua permissão, e tudo está disposto - disse observando Stephen de forma significativa, com o que queria dizer que Killick
subira a bordo uma mala com toda a roupa que, segundo ele, o doutor Maturin necessitaria, incluídas diversas camisas.

- Obrigado, senhor Reade - disse Stephen. Entrou apressadamente na cabine dormitório que compartia com Jack, guardou uma soma considerável de dinheiro em seu bolso,
e depois meteu em seu peito a bolsa de pele de lhama na qual guardava as folhas de coca, além da ampulheta que continha a solução de raiz de freixo e a pistola de
canhão giratório. - Adeus, Jack - disse ao sair, enquanto se abotoava o abrigo. - Por favor, cuide de seus intestinos. Há algo em seu rosto que não me diz nada bom
do estado de seu fígado. Se passar mal esta noite, peça amanhã ao senhor Smith que lhe dê ruibarbo. Todo meu carinho para Sophie, certamente. Dar-me-ei toda a pressa
do mundo, como sempre que posso. Bem, que Deus te bendiga.

 

A sensação de urgência que lhe acompanhara desde o momento em que recebeu a mensagem de sir Joseph, e que em algum momento indeterminado tinha desaparecido para
ver-se sustituída por certo grau de espaço mais que de tempo, voltou com força renovada ao descer pela escada do costado do Bellona em plena escuridão; seu desejo
largamente frustrado viu-se satisfeito, satisfeito além do que poderia desejar.

O vento, uma brisa forte do sudoeste que obrigava a levar as gáveas rizadas, alentava o mar estranho e um pouco cruzado que reinava no porto, e quando Reade - que
tinha virado a Ringle para aproar parao castelo de Southsea - ordenou marear a estai do trinquete para separar-se do imponente costado do Bellona e principiar a
caminhada, a escuna empreendeu um movimento curioso e azougado como um cavalo ao qual sustentassem as rédeas, balançando-se primeiro sobre um casco e depois sobre
o outro, ansioso para soltar-se.

O bico da carangueja se ergueu, sua vela flameou antes de aquartelar-se como o fruto de uma enorme lufada. Caçou-se a escota com brio para popa, e de imediato a
coberta se inclinou justo antes de que todo o brio impulsionasse o barco a deslizar com um ou outro cabeceio. Abriu caminho pelo porto sem alterar seu rumo, pois
Reade e Bonden tinham aproveitado todas as horas livres que tiveram para aprender a governá-la com maestria e carinho. Largaram a maior e a bujarrona, e com Bonden
ao leme e Reade ao comando começou a passar pelos outros barcos ancorados frente a Saint Helens.

Haviam pedido a Stephen que aproveitasse as manobras para estivar seus pertences como boamente pudesse em tão pouco espaço, e quando subiu ao convés a escuna pegava
o vento pela amura de estibordo. Todas as velas de cuchillo{13} estavam retesadas como a pele de um tambor, tinham largado o velacho assim como tudo o que os estais
de proa pudessem suportar, e naquele momento Reade, Bonden e dois dos veteranos de Shelmerston se perguntavam se agüentaria também as alas e as rasteiras.

Os de Shelmerston, Mould e Vaggers, constituíam excelentes exemplos do que podia chamar-se de "relatividade náutica": ambos eram fiéis seguidores de Seth, membros
respeitados da congregação, ainda que nenhum deles tivesse encontrado dificuldade alguma em reconciliar o contrabando com a mais estrita probidade em todos seus
tratos pessoais. Naquele momento, um deles dizia que se as alas e rasteiras em questão tivessem pertencido ao rei, as arriscariam sem titubear, mas como a embarcação
era de propriedade privada do capitão Aubrey, que bem, talvez... e sacudiu a cabeça. Este tipo de discussão na Armada Real não eram comuns, tampouco se animava os
homens a levá-las a cabo, mas aquela ocasião era sem dúvida excepcional. Mould e Vaggers, por assim dizer de algum modo, eram contrabandistas, e tanto seu pão como
sua liberdade dependiam em grande medida de que conseguissem andar mais rápido que os cúteres que cuidavam das costas, ou que os barcos de guerra que tentassem detê-los.
Eram os contrabandistas mais prósperos de Shelmerston, e ainda que geralmente navegavam em um lugre chamado Flying Childers, também haviam colhido êxitos em uma
escuna que, ainda que certamente não possuía tão belas linhas como a Ringle, era a mais rápida daquelas águas; sua opinião sobre as alas e rasteiras era, portanto,
a opinião de autênticos mestres, e sua autoridade se via aumentada pelo fato de que não navegavam de novo com o capitão Aubrey porque necessitassem dinheiro. Nada
mais longe da realidade, certamente: todos aqueles que há tanto tempo embarcaram com ele na Surprise, e que tinham sobrevivido para contar, tiveram tanta sorte com
a divisão do butim que se quisessem poderiam converter-se em seus própios amos. Havia quem preferia gastar o dinheiro aos montes para depois afrontar uma pobreza
total. Contudo, este não era o caso dos homens responsáveis do povoado, os anciãos, os diáconos e os presbiterianos das diversas seitas e capelas; e a razão que
justificava a presença constante de Mould, Vaggers e de muitos de seus amigos era uma revelação, talvez ilusória e certamente inoportuna, com respeito à qual os
seguidores de Seth em Shelmerston podiam praticar a poligamia (e mais, inclusive se recomendava sua prática), revelação esta que fora tão mal recebida pelas senhoras
Mould e Vaggers, por citar somente dois exemplos, que o Bellona, apesar de ser um navio de guerra, parecia em comparação um retiro de paz.

Durante a viagem de regresso, Stephen subira de vez em quando à escuna, mas sempre em águas calmas e em plena luz do dia. Agora, ao subir pela escada de chupeta
até o convés inclinado e escorregadio, não pôde reconhecer nem onde estava. Pouco podia ver, e o pouco que via era desconhecido para ele. Pouco significava para
ele a enorme espicha do mastro maior, confuso borrão branco a sotavento, e ainda que se parasse para considerar com calma era quase seguro que podia enumerar as
diferenças fundamentais que existiam entre um aparelho redondo e um aparelho de velas de cuchillo, naquele momento não tinha tempo para isso. Seu pé, cheio de um
ânimo explorador, acertou um mordedor, o convés fez uma cambalhota, perdeu o equilíbrio e rodou pesadamente até topar contra uma das caronadas da Ringle, à qual
se agarrou com força.

Recolheram-no com as perguntas típicas de pessoas do mar: "Havia se ferido?" "Por acaso esquecera que sempre devia reservar uma mão para si mesmo e outra para o
barco?" "Por que não havia pedido ajuda a qualquer um deles?"

Stephen respondeu secamente, ante o que abriram os olhos surpreendidos, pois o doutor costumava comportar-se como um cordeirinho do interior, apreciava um bom conselho
e demais admonestações, e costumava geralmente agradecer o fato de que o levantassem e, se fosse necessário, inclusive contribuía para isso. Contudo, eram criaturas
incapazes de guardar nenhum rancor, e quando compreenderam que seu velho companheiro desejava ficar onde estava, perto do que naquela embarcação denominavam proa,
onde aquelas velas não escureciam seu ângulo de visão, e seguir ali de pé, apesar da escuridão e o frio, responderam amavelmente que não era boa idéia, não nesse
tipo de barquinho que mais podia ser chamado de barco de corrida do que de uma escuna cristã, e que nem ao menos contava com um pavês para impedir que o gato caísse
na água. Vamos, que era melhor não permanecer ali, a menos que se atasse a esse mastro próximo.

E assim o fez, preso ao mastro de proa, seguiu de pé hora depois de hora. Uma parte dele acusava a força do vendaval enquanto as mortíferas ondas de proa rompiam
espumantes sobre as amuras, polvilhando-o de água, e o negro e manchado mar escorria ante seus olhos, tudo isso envolvido por um vasto pot-pourri de som embriagador.
O resto dele considerava seu futuro imediato com toda a agudeza e concentração da qual era capaz. Fazia tempo que sua mão, por vontade própia, havia se fechado sobre
a bolsa que continha as folhas de coca, ainda que finalmente se conteve. "Poderia justificá-lo aduzindo que se a crise atual merece de toda a claridade de pensamento
e antecipação possíveis, devo reservar as folhas para o caso de surgir outra crise que possa ser inclusive mais urgente; ainda que temo muito que minha reserva possa
dever-se a uma simples superstição e ao fervoroso desejo de impor-me a uma causa assustadora, de superar e deixar para trás uma mera sofisteria."

De vez em quando Reade ou um dos marinheiros se aproximava para perguntar-lhe como andava, ou para dizer-lhe que aquilo ali era Selsey Bill, que o vento esfriava
um pouco, ou que aquelas eram as luzes de Worthing, New Shoreham...

Bem entrada a segunda guarda, o fluxo de ondas veio mais do sul, de modo que quantidades enormes de chuvisco do mar, espuma e mesmo água verde banharam por completo
o baixo convés. Reade se aproximou da proa com uma capa cobrindo-lhe os ombros e rogou a Stephen que a pusesse.

- E o senhor não acha, senhor, que seria melhor que se refugiasse lá dentro? - perguntou. - Pela amura de sotavento se pode ver Beachy, e ao dobrar Beachy a coisa
ficará feia. A tripulação se preocupa que o senhor possa ensopar-se até os ossos.

- Para dizer a verdade, William, não me importa em absoluto. Nada agrada mais a meu espírito que esta sensação onipresente de velocidade que emana do ar, do mar,
e da água que salpica tudo constantemente. E isso é muito mais presente em uma embarcação como esta que em um barco grande e sólido.

- Há, senhor, é que navegamos a uma boa velocidade: dez nós a maior parte do tempo, com picos de doze. E se o vento não ceder ou o pino do leme não soltar, a nossa
será uma singradura das mais notáveis. Porém, senhor, não lhe agradaria descer e pôr algo no estômago?

Esse algo foi um prato de carne em salmoura com bolacha de barco, verdura refogada, cebola e batata, tudo isso temperado com um bom punhado de pimenta. Ao longo
da segunda guarda o haviam mantido em sua justa temperatura ao colocá-lo entre tijolos quentes, cobertos por um lençol. A comida desceu extraordinariamente bem com
um quarto de galão de cerveja que compartiram à maneira do mar, passando a jarra de um lado a outro sem maiores cerimônias.

- Não quereria tentar ao destino, senhor - disse Reade, - mas amiúde acho que se pudéssemos alcançar o início da maré-cheia a nossa seria uma singradura extraordinária.
Se não tivermos problemas entre North Foreland e Sheerness, e aproveitarmos a maré-cheia no Nore, enfiaremos no Tâmisa por cima, ah, ah! O velho Mould o conseguiu
uma vez no Flying Childers, depois de partir diante da ponta de Sainte Catherine.

- Isso seria estupendo, creio.

- E também encantaria ao capitão. Tem grande consideração por este barco, e pensou em envergar a melhor lona poldavy de Riga para o bom tempo, incluída uma vela
maior quadrada. Agora, se me desculpa, senhor, acho que devo voltar ao convés. O senhor pode deitar-se aí, atrás dessa maca. Por favor, tente descansar um pouco.

E assim o fez, e submergiu numa série de pensamentos incongruentes e lembranças meio esquecidas que costumam preceder ao sono. Despertou na penumbra ao ouvir o ruído
de uma tosse afogada, o tilintido da porcelana e o aroma do café.

- Bom dia, William - disse, - não será café isso que cheiro?

- Sou Vaggers, senhor - disse o marinheiro com a bandeja. - O capitão está no convés observando os comboios. O senhor provavelmente nunca viu semelhante linha de
barcos. Estamos nos Downs.

- Como anda o vento, Vaggers? Chegaremos a tempo de aproveitar a maré-cheia?

- O vento se mantém entabulado, senhor. Mas com relação a isso de aproveitar a maré-cheia..., frio, frio, senhor, frio, frio. Ainda que se a perdemos não será por
culpa do senhor Reade. Esteve ao leme toda a noite com os olhos bem abertos.

Ainda seguia ao leme quando Stephen o encontrou ordenando que largassem uma varredora na estai do trinquete, ainda que imediatamente se virou para ele com educação
e interesse para saber se havia dormido bem, antes de dar-lhe sua palavra de que o vento não passava, mas que o fato de perder intensidade devia-se a que South Foreland
lhes tirava um pouco o vento, "já estamos aqui em Deal, como pode ver", e que não se preocupasse pois não tardaria em refrescar. "E todos esses pobres diabos - disse
apotando para o mar, para o abarrotado ancoradouro dos Downs - estão retardando para que passe totalmente e role para nordeste. Alguns levam duas semanas, talvez
mais, detidos por ventos de proa, coisa que aqui sucede amiúde. Esse daí é o comboio das Antilhas, e já vê que está a este lado do canal de Gull. Esse outro, o que
se estende até beijar o North Foreland, é composto pelos barcos destinados ao Mediterrâneo, no mínimo serão um centena de mercantes. E ao sul de Goodwin Sands poderá
distinguir um grupo de mercantes das Índias. Eu lhe asseguro que todos eles estão rezando agora mesmo."

- Não importa quantos deles rezem, William, mas a intensidade da oração que elevem, e, certamente, sua qualidade - disse Stephen. - Não acredito que suas considerações,
puramente mercantilistas, recebam muita atenção lá no Céu.

- Creio que tem razão, senhor - disse Reade, que passou a recitar os nomes dos navios de guerra que escoltavam os comboios, e que enchiam aquele mar plúmbeo com
suas ondinhas e as enxurradas intermitentes que caíam de algumas nuvens baixas que escorriam fugazes. - Amethyst, Orion, Hercules, Dreadnought... - Inconscientemente,
pronunciou em um tom de voz que seria menos fora de lugar diante do altar.

Chegaram à altura de North Foreland, e a Ringle orçou para ajustar e rumar para oeste.

- O senhor acha que poderia se dizer que nos encontramos dentro do estuário do Tâmisa? - perguntou Stephen durante o almoço.

- Sim poderia se dizer, senhor - respondeu Reade, contente ainda que olheirudo pela falta de sono. - E acredito também que quase poderíamos dizer, ainda que toco
a madeira, que não é provável que percamos a maré-cheia.

Chegados ao Nore, mesmo o doutor Maturin pôde apreciar que mudara o movimento da escuna devido a que tinham aproveitado a maré, e que o primeiro indício de que repontava
era o fato de que a embarcação se deslizava como empurrada pela corrente. A costa distante, visível agora de ambos os lados, aproximava-se mais e mais, e após um
tempo Reade cedeu o comando para Mould, frustrado como patriarca polígamo, mas o melhor piloto do Tâmisa dentre os presentes. Mould falou a Stephen durante longo
tempo sobre os oficiais, nada bem, evidentemente, até que finalmente assinalou Muck Fiat, que vinha a ser a planície do esterco, na costa norte, onde um piloto saído
de Trinity House o fez encalhar no ano de noventa e dois.

- O senhor poderia tê-lo chamado de Planície do esterco depois do cacto que lhe metemos.

Ainda que o vento, o rio e inclusive quem navegava por ele, incluídas as faluas desajeitadas, pesadas e lentas do Tâmisa - que atuavam como se tivessem prioridade
sobre as demais embarcações que povoavam o canal - comportaram-se bem durante todo aquele dia ventoso, Mould estava de um humor sombrio. Pela noite, quando entre
enxurrada e enxurrada o céu limpou por completo, mostrando Greenwich em todo seu esplendor, que luzia branco e verde na margem do rio, inclinou o queixo em sua direção
e disse:

- Greenwich. O senhor não acreditaria, senhor, a quantidade de dinheiro que roubam dos pobres e honrados marinheiros para metê-lo nesse seu velho cofre. E aonde
o senhor acha que vai parar até o último penique? Não no bolso do velho Mould, isso lhe asseguro.

- Hei aqui Greenwich, povoada de harpias - comentou Stephen sem pensar.

- Greenwich é um lugar mau, porém mau de valor. Há um monte de trapaceiros em Greenwich. Ainda que não é nada comparado... - disse Mould, que alçou o tom de sua
voz apaixonadamente, enquanto a vara tremia sob seu pulso, - nada comparado com Shelmerston se nos referimos a feras. Pense o senhor na senhora Mould, por exemplo...
- E aproveitando o momento falou da senhora Mould, não só de sua recusa ignorante, intolerante e mundana a um homem ter mais de uma esposa: "Pense em Abraão, senhor;
pense em Salomão; recorde de Gideón: setenta filhos e um punhado de esposas!", mas também de uma miríade de defeitos que a duras penas seria decente nomear, todos
eles denunciados com tal veemência que teria sido necessário chamar-lhe a atenção se uma barcaça, mais ou menos governada por um garoto estúpido armado de um enorme
remo, não tivesse passado sobre a amura da Ringle de tal forma que se teve que pôr de imediato a gávea a pairar para parar, e largar as escotas ao vento, enquanto
todos a bordo pegavam perchas, e as agitavam entre berros de reprovação.

Foi como se aquele estrondo levasse a maré e o vento, já que enquanto a barcaça ia para a costa mais distante, a Ringle já não respondia ao leme, e se dedicou a
virar sobre si mesma e rumar para o lugar por onde havia entrado. Não navegavam precisamente por águas calmas, e nesse momento começaria a minguar a maré. Por sorte,
o fato do vento ter passado se devia ao o sol estar se pondo, e quando esfriou se viram empurrados até o Pool, antes que a corrente descendente tivesse reunido a
energia necessária para levá-los consigo. Ali jogaram a âncora para alívio de todos os marinheiros. Reade consultou seu relógio, riu em voz alta, e deu a ordem de
costume:

- Apitar para o rancho.

Havia um tráfego considerável no rio, e muitos botes que levavam tripulações de um barco para outro entre as centenas de navios mercantes, cidadãos em plena jornada
de trabalho, e quadrilhas de marinheiros que se aproximavam de Greenwich dispostos a se divertirem. Quando Stephen e um feliz Reade tinham desfrutado de uma janta
com capão e uma garrafa de clarete comprada em Kings Head para celebrar tão impoluta viagem, o doutor chamou a atenção de um bote que passava por ali, que o levou
às escadas do Temple.

Mas no escritório do senhor Lawrence teve que enfrentar-se a um surpreendido escrevente, que lhe informou de que o senhor Lawrence não se encontrava presente nesse
momento. De fato, ninguém esperava ver o doutor pelo menos durante os próximos dois dias, e o senhor Lawrence tinha se ausentado da cidade; não chegaria pelo menos
até amanhã, e tarde. Lamentaria muito não ter podido falar com o doutor.

- Não terá que lamentar nada - replicou Stephen. - Eu me alojarei em uma pensão chamada Grapes, no distrito de Savoy, e amanhã cedo irei adquirir diversas coisas
e visitar a alguns amigos. Almoçarei em meu clube, cuja localização o senhor Lawrence conhece perfeitamente. E deixarei uma mensagem no Grapes e no Blacks para dizer
onde pode encontrar-me, se por algum motivo regresse antes do esperado. De outra forma, voltarei amanhã na mesma hora, pela tarde.

- Excelente. E permita-me acrescentar, senhor - disse o escrevente em voz baixa, - que cuidamos de seus bens.

 

Stephen chegou tarde demais para encontrar Sarah e Emily acordadas, mas a senhora Broad pôde fazer-lhe um relato dos pormenores de sua felicidade, e na manhã seguinte
desjejuaram com ele, serviram-lhe elas mesmas o café, trouxeram torradas, arenques defumados, geléia, descreveram as maravilhas de Londres, interrompendo-se continuamente
uma à outra e cerceando seu relato para perguntar-lhe se recordava de Lima e do esplêndido órgão que tinham ali, da rua revestida de prata, das montanhas e da neve,
do gelo verde que viram no cabo de Hornos.

- Senhora Broad - disse ao ir embora do Grapes, - se vier alguém do escritório do senhor Lawrence, tenha a amabilidade de dizer-lhe que poderá encontrar-me no armazém
de pianos Clementi até as três, e que depois estarei em meu clube.

De fato não apareceu mensageiro algum, mas o tempo passou agradavelmente em companhia do senhor Hinksey, a quem encontrou no armazém Clementi, e, depois de almoçarem
juntos no Blacks, ele o acompanhou de passeio até o Temple Bar.

Lawrence estava emocionado e comprazido de ver-lhe, já que, obviamente, sentia mais preocupação que requeria a sua responsabilidade como conselheiro legal de Stephen.

- Alegra-me tanto de que tenha seguido nosso conselho - disse. - Entre, entre, por favor. Esta situação é tão desagradável e potencialmente perigosa como nenhuma
outra que eu já tenha visto. Aqui mesmo, sente-se e desculpe por estes papelotes e o bolo. Quanto me alegra ter-lhe aqui. Não o esperava até amanhã. Suponho que
o senhor terá tomado o carro postal...

- Vim de barco - respondeu Stephen. - Pelo mar - acrescentou, ao observar que suas palavras não colhiam o efeito esperado.

- Ah, não me diga - observou Lawrence, para quem aquele fato sem precedentes guardava uma clara relação com qualquer viagem de Richmond ou Hampton Court. - Um paquete,
sem dúvida.

- Não, senhor. Trata-se de um navio de apetrechos particular, pertencente ao senhor Aubrey, barco capaz de efetuar grandes destrezas no mar. Nenhuma outra poderia
ter-nos trazido até o Pool de Londres em um número de horas que, pelo momento, não me lembro, mas que deixou meus companheiros de tripulação mudos de assombro e
de admiração.

- De modo que o senhor ainda dispõe do barco. E no Pool. Tanto melhor. Por favor, sente-se - insistiu. - Quanto me alegro de ver-lhe; a verdade é que estava um pouco
inquieto pelo senhor. Permita-me cortar-lhe um pedaço de bolo. - Sentaram-se diante da mesa repleta de migalhas, e Lawrence procurou outro copo. - É o mesmo madeira
que o senhor me enviou há um par de anos - disse.

Relaxaram enquanto desfrutavam o vinho e comiam o bolo, zelosos de seu sabor como se da respiração se tratasse.

- Sir Joseph me trouxe os documentos firmados - disse Lawrence. - Estou muito grato ao senhor pela confiança que depositou em mim.

- Eu estou infinitamente mais agradecido ao senhor por seus conselhos e ajuda - disse Stephen.

- Proporcionei ao banco a advertência mínima de uma hora, e depois enviei Pratt - explicou Lawrence depois de inclinar a cabeça. - As transferências físicas do tesouro
exigem certa discrição em todo momento: tanto mais agora, como é o caso. Tal e como lhe disse estava cada vez mais nervoso, e Pratt compartia meus temores: nenhum
de nós ouvira nada concluente, ainda que ambos soubemos das consultas realizadas por parte dos principais advogados de Habachtsthal, assim como de algumas intervenções
violentas e mesmo homicidas por parte desses criminosos a quem tão imprudentemente contratou como agentes. - Serviu-se mais vinho, e acrescentou: - Encarreguei-me
pessoalmente de gastar algumas centenas de seus guinéus.

- Certamente, certamente. Não poderia estar-lhe mais agradecido por isso.

- Pratt, que entende destes negócios mais que qualquer outro homem que eu conheça, se encarregou de que seus baús fossem distribuídos em caixas baixas marcadas como
"Arame de platina purificado" e as levou a um armazém de chumbo, bronze e cobre que há no rio, junto às Irongate Stairs, onde seguirá até que o senhor leve a cabo
os arranjos pertinentes para seu transporte. Talvez queira embarcá-los, ainda que certamente ignoro que planos tem. Esse navio de apetrechos do qual me falou, trata-se
de um barco como é devido ou de uma embarcação para a navegação em momentos de lazer?

- Não é o que um marinheiro descreveria como barco, porém, apesar de ser uma embarcação de proporções modestas, é capaz de levar a cabo uma circunavegação. Deus
sabe que não exagero.

 

Para os companheiros do doutor Maturin o fato de carregar objetos singulares a bordo dos barcos em que navegava não era nada novo: lulas gigantes de vez em quando,
ou pequenos baús adornados de ferro que pesavam como demônios. O doutor Maturin era, e sempre fora assim, um cavalheiro peculiar. Estavam acostumados a suas manias,
pois era de todos sabido que realizava tarefas políticas e científicas em benefício do governo, e ainda que a presença dos toscos boxeadores e dos antigos corretores
de Bow Street que supervisionaram a operação não deixou de lhes intrigar um pouco, não se ofenderam em absoluto, ficaram a vontade e arrumaram a platina purificada
para que só afundasse um emborno da popa da escuna. Pretendiam largar amarras com as primeiras luzes da manhã, quando se descobriu que faltava Arthur Mould.

- Ainda não voltou? - perguntou Bonden. Os outros seguidores de Seth negaram com a cabeça e olharam para os pés. - Joe - chamou Bonden ao membro mais jovem da dotação,
- vá a Bedmaid Lane, a primeira à esquerda corrente abaixo, chame na porta de número seis, veja bem, um grande seis escrito em vermelho, e pergunte lá pelo senhor
Gideon Mould e informe-lhe que o barquinho aguarda que sua majestade se digne.

- Que se digne, ah, ah, ah!. Muito bem, amigo - vários de seus companheiros riram. - Que tipo este Mould. Não pode ser deixado sozinho.

Mould voltou, tosco e mal-humorado, sem um penique e inquieto pelo eventual resultado de suas repetidas alegrias: a Ringle içou a carangueja, ganhou avante afastando-se
do cais e chegou até a metade do canal entre uma maré e a outra, com vento entabulado pela alheta de estibordo, animada pelos berros desaforados de um negro que
governava uma canoa pintada de vermelho:

- Ei! Mas o que temos aqui? Se não é um clíper de Baltimore!

Quando tudo esteve disposto e o rio se tornou mais largo e menos abarrotado, Reade encontrou Stephen na cabine.

- O senhor gostaria de dar uma espiada no caderno de bitácula, senhor? - perguntou. - Acho que escrevi tudo em boas condições.

- Creio que está muito bom - admitiu Stephen enquanto repassava a escritura, disposta em colunas com os encabeçamentos correspondentes a data, vento e comentários.

- E aqui, senhor, tem o minuto exato em que jogamos a âncora no Pool. Por favor, assine aí mesmo, na margem, com todos os títulos e cargos que lhe ocorram, e não
esqueça seu título de membro da Royal Society. Se não, nunca me acreditarão.

Stephen assinou, e Reade, depois de recrear-se contemplando a firma durante um momento, disse:

- E por acaso não nos agradaria poder fazer o mesmo na travessia de volta?

- Oh, não, em absoluto. Mesmo que fosse, agora a escuna anda empopada, cerca de meia salva, o que sem dúvida constitue todo um alívio.

- Em que sentido isso constitue um alívio, William?

- Há, senhor, porque barlaventeará um pouco melhor. - Ao ver a ignorância desenhada no rosto do doutor, acrescentou: - Não havia percebido que o vento ainda sopra
do oés-sudoeste?

- Achava que tínhamos o vento pelo flanco, pela parte mais larga, em nosso través de estibordo - disse Stephen. - Tive ocasião de observá-lo quando meu chapéu voou.
Ainda que não resta a menor dúvida de que fomos nós que viramos, em lugar do vento, ou, como seria mais adequado, chamá-lo, a tempestade. O senhor acha que talvez
nos vejamos impedidos como esses desgraçados comboios que encontramos nos Downs, aflitos e tristes?

- Oh, não, senhor, espero que não. Eu me atreveria a dizer que por então o vento terá rolado, não tenho nenhuma dúvida, a julgar pelo formigamento que sinto na ferida.

Contudo, apesar de todo o formigamento que Reade pôde chegar a sentir, pois lhe feriram no braço durante um combate com dyaks nas Índias Orientais e Stephen não
teve outro remédio que amputá-lo, ainda soprava com força do oés-sudoeste quando passaram de novo pelo Nore no cair da tarde. Todo o pedaço do mar que ficava ao
longo do North Foreland e a todo comprimento e largura dos Downs estava manchado pelas luzes de posição dos barcos que permaneciam ali ancorados, com dois ou três
cabos pela frente, ainda impedidos pelo vento, com outros muitos que haviam se unido à procissão. O vento esfriou a medida que transcorria a noite, e na metade da
segunda guarda quatro barcos encalharam nas Goodwin Sands{14}.

 

A semana seguinte foi uma das mais desagradáveis que Stephen podia recordar. Noite após noite se entrevia uma mudança; e cada vez que o sol se afundava sob o horizonte
a mudança resultava ser uma miragem. Durante o dia havia menos abafamanetos, que geralmente se produziam ao meio-dia, momento que algumas das embarcações mais duras
de Deal aproveitavam para sair, comerciar a preços inflacionados com os mercantes mais abrigados, e depois voltar a entrar, a sotavento, em Ramsgate; mesmo estas
encalhavam de vez em quando. Alguns dias depois de que a esquadra partira - pois inclusive o própio doutor Maturin era capaz de compreender que os barcos que pairavam
frente a Saint Helens recebiam o vento do oés-sudoeste pelo través, em lugar de nos dentes, como as desgraçadas almas que o sofriam nos Downs, - subiu a bordo de
uma dessas embarcações de Deal para desembarcar em Ramsgate, meio disposto a pegar o carro postal em direção a Barham. Mas enquanto permanecia sentado em uma loja
de música, consumido na reflexão, pensou que as incertezas eram muitas. Aquela era uma empresa que devia ser levada a cabo em uma seqüência fluida, ou com facilidade
e de nenhuma maneira, com titubeios nem vacilações. A Ringle não chegaria sem ele sabe Deus senhor quando, não teria loquazes e indiscretos mensageiros fuxicando
por aí, não teria esperas indefinidas, nem despertaria onde quer que fosse a curiosidade pública.

- Senhor, se é tão amável, muito me temo que devo fechar a loja - disse o tendeiro. - Há um leilão no Deal a que devo assistir.

- Excelente - disse Stephen, - eu levarei esta - disse segurando no alto a partitura da Symphonie fúnebre de Haydn, - se o senhor fosse tão amável de envolvê-la
com cuidado; devo cavalgar de volta ao Deal para tomar meu barco.

- Em tal caso, senhor, peço que me acompanhe em meu carro. Protegerei a partitura em uma tela dupla e encerada, pois muito me temo que o senhor terá uma viagem muito
molhada no bote.

 

Desse momento até o sábado voltou-se para suas folhas de coca, convencido de que só o estrondo, o incessante ainda que variado bramar, gemer, gritar do vento, o
trovejar perpétuo do mar, justificava essa medida, além, claro, da inquietação mental que o invadia. Descobriu que tudo aquilo tinha um efeito do todo curioso e
inesperado: enquanto que desde sempre se considerara um leitor de partituras orquestrais bem ordinário e dado a titubeios, agora era capaz de ouvir quase toda a
orquestra tocando junta com apenas o cravar dos olhos na primeira página, sem chegar muito longe da perfeição na segunda ou terceira leitura. E, certamente, as folhas
também proporcionavam o que tanto ansiava delas, pois limpavam sua mente, diminuíam sua ansiedade e lhe faziam esquecer-se da fome e do sono; apesar de tudo, ao
terceiro dia era consciente da impressão que faziam essas coisas não a Stephen Maturin, mas a um homem inferior, apático e carente de interesse que, ainda que de
certa forma fosse inteligente, não considerava a peça de Haydn como algo digno do adjetivo sublime.

- Será que estou me tornando um convencido? - perguntou em voz alta enquanto contava as folhas que lhe restavam para averiguar a dose que tomaria. - Ou será que
este balanço violento e incessante me causou esta mudança abismal, esta perda da felicidade?

- Doutor - exclamou William Reade interrompendo o fio de seus pensamentos, - desta vez acho que podemos ter esperanças. O barômetro subiu!

Outras embarcações também haviam reparado nisso, mais de um olhar ansioso estava em cima do barômetro, e agora se percebia certa atividade no mar; mas o vento ainda
seguia sendo muito intenso e muito perigoso para que qualquer dos barcos, os barcos de aparelho redondo, considerassem a possibilidade de mover-se em águas tão estreitas;
ainda que tudo parecia indicar que rolaria para o oeste, e inclusive que rolaria para o noroeste. A pouco do meio-dia começou a avançar um barco de passageiros de
uma só coberta, observado, vigiado pelas escassas embarcações de aparelho de velas de cuchillo que povoavam os Downs. Por breves instantes um aguaceiro o ocultou
de quem observava desde o convés da Ringle, e quando passou de longo parecia andar como um cavalo descontrolado: o traquete perdera as relingas e andava sem rumo
por entre as demais embarcações, enredando-se em mais de um cabo, sendo maldito por todos os que estavam a distância suficiente como para fazer-se ouvir.

Na guarda de doze a quatro da tarde, Bonden, que havia descido com um pretexto mais ou menos convincente, disse a Reade:

- A estas alturas me atrevo a confessar-lhe, senhor, que alguns dos nossos foram comerciantes livres em tempos. Certamente agora se reformaram, e recusariam zombadores
um barril de conhaque ou um baú de chá que não tivesse passado pela aduana; contudo, recordam perfeitamente o que aprenderam naqueles dias de cão. Mould e Vaggers
estiveram uma vez neste mesmo lugar sem uma pitada de vento na gávea de sua escuna, e asseguram que com um vento nem a meia quarta ao oeste daqui existe uma passagem
na maré-cheia para uma embarcação marinheira. Conforme parece a tomaram em uma ocasião pois tinham certa pressa: passaram por entre Anvil e Hammer, a bigorna e o
martelo, franquearam os Downs e assim desceram pelo o canal ligeiros como uma pena, e chegaram a Shelmerston no dia seguinte para jantar, depois de encontrar-se
com seus amigos frente a Griz Nez. E seu barquinho - acrescentou olhando o horizonte, - não era tão marinheiro como o nosso.

Reade não respondeu de imediato. Assim como tantos outros guardas-marinhas levara presas aos portos; porém nunca tivera uma viagem como aquela, e muito menos semelhante
embarcação. Durante meia hora ficou observando a barlavento, e quando tinham ganhado meia quarta a seu favor chamou Mould e Vaggers.

- Mould e Vaggers - disse com voz profunda e em tom formal, - com este vento e neste estado da maré, atrever-se-iam pilotar a escuna através da passagem?

- Sim, senhor - responderam, - ainda que teríamos que nos apressar: o refluxo não tardará nem meia hora em começar.

Os da Ringle não perderam tempo. Estavam enjoados e fartos depois de ver-se sacudidos de um lado para outro como ervilhas secas em uma lata, e se sentiam mais que
dispostos a demostrar a esses recrutas dos Downs como os melhores marinheiros resolvem esse tipo de situação. Puxaram as âncoras, içaram a carangueja, marearam a
maior com seus cachos e passaram a andar por entre os navios mercantes.

Mould estava ao leme, seguro com três voltas aos cabos da cana; Vaggers e dois companheiros na escota da maior. Uma imponente capa de águas brancas cobria a superfície
do mar, e com os primeiros suspiros do refluxo as arrebentações pareciam ganhar espaço na borda das areias. Rumavam para um obstáculo em particular, e já começava
a delatar-se a seqüência que lhe dava seu nome: uma onda comprida rompia a mão direita, desprendendo uma coluna de água que, com a baixa-mar e com a forte ressaca
e o vento que a seguiam, espalhar-se-ia ao longo de vinte jardas pelo canal, indo cair com um seco estampido sobre as areias claras situadas do outro lado. A Bigorna.
Até o momento, o martelo não era senão uma modesta fonte de dez pés, mas ao aproximar-se os rostos dos homens refletiram a tensão, já que imediatamente depois passariam
por uma curva no canal que deviam calibrar com uma margem de erro de uma jarda.

Achavam-se entre a bigorna e o martelo: a pequena fonte se alçou, salpicando Stephen e Reade.

- Preparados - advertiu Mould. - Cana a sotavento. - A escuna andou com perfeição, dobrando a curva sem um só problema: Mould a manteve assim, perto do olho do vento
durante um instante no qual cobriu terreno, e depois deixou que caísse. Franqueado, tinham franqueado os estreitos, tinham franqueado os Downs; a partir de então,
para uma embarcação tão marinheira como a Ringle, com mar de sobra, era tão somente uma questão de uma dúzia de longas retas para chegar em casa.

 

Stephen Maturin, com o relógio de seu estômago desordenado pelo consumo das folhas de coca - agora, em todo caso, moderado, pois pelo menos era capaz de administrar
a dose para alguém em quem podia reconhecer-se, - entrou na sala de jantar de Barham já começada a refeição, o que equivale a dizer que Clarissa tinha quebrado a
casca do segundo ovo passado em água.

Não era mulher dada a exclamações e gritos, mas reagiu como era de esperar ante tal aparição, de modo que lançou um considerável "Oh!" e rapidamente lhe perguntou
se era ele, e se havia regressado, para depois recuperar-se, sentar-se de novo e sugerir que devia comer algo e que não tardaria nada em preparar-lhe uma fritada.

- Obrigado, querida, já comi na estrada - disse Stephen, dando-lhe um beijo em ambas as bochechas. - Que mesa mais agradável - acrescentou ao sentar-se a seu lado.
Havia herdado de seu padrinho uma absurda quantidade de prata, peruana em sua maior parte, sóbria, quase se diria severa; de modo que um rio reluzente sulcava a
toalha de mesa de ponta a ponta.

- É para celebrar o dia em que abandonei Nova Gales do Sul - explicou Clarissa. - Não gostaria de tomar uma taça de vinho, pelo menos ?

- Poderia, sim - disse Stephen. - Uma taça de vinho me cairá muito bem. Porém escute, querida. Temos que partir para Espanha dentro de uma hora, de modo que quando
tenha acabado com esse ovo, e espero que o aproveite, talvez possa empacotar tão somente o que a senhora e Brigid possam necessitar para a viagem.

Clarissa o olhou com gravidade enquanto sustentava a colher a poucos centímetros de sua boca. Antes de que pudesse falar se ouviu um estrondo procedente das escadas
e do corredor, seguido pela aparição na sala de jantar de Padeen e Brigid. Padeen começou a gaguejar algo que podia se parecer com uma saldação, ainda que não teve
tempo de terminá-lo.

- Cavalos! - exclamou Brigid em inglês; então, ao ver a Stephen, ambos guardaram silêncio, surpreendidos.

Depois de uma pausa de não mais de meio suspiro, Padeen pegou Brigid pela mão e a conduziu para ele. A menina olhou para Stephen com timidez, mas também com um interesse
sincero, inclusive com um sorriso.

- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam com o senhor, pai - cumprimentou alto e claro em gaélico, levemente animada por Padeen, ao mesmo tempo que lhe
oferecia a face.

- Que Deus, a virgem Maria e são Patrício estejam contigo, filha - correspondeu ele depois de beijá-la. - Nós vamos para a Espanha, minha querida.

Padeen explicou que se encontravam acima, no quarto do fundo, pendurando uma maca, antes de acompanhar Brigid abaixo para que tomasse o pudim, quando viu o carro
postal do Royal William entrar no pátio dos estábulos, puxado por dois cavalos que conheciam, Norman e Hamilton, e outros dois que não, que sem dúvida tinham pegado
emprestado na pensão Nalder Arms.

A senhora Warren serviu o pudim, ruborizada e transtornada por tanta atividade. Atou o babador da menina mais forte, sentou-a reta na cadeira e serviu o pudim (pudim
do normal, um tanto dominado pelo tremor).

- Os moços da posta dizem que vão dar de beber aos cavalos, e que os manterão descansados durante uma hora, não mais. Quer que lhes dê algo de comer?

- Pão, queijo e uma pinta de cerveja para cada um - respondeu Clarissa. - Brigid, querida, não se brinca com a comida. O que seu pai pensará?

De fato, Brigid tinha começado a maltratar o pudim para fazer que tremesse ainda mais, mas se conteve de imediato e inclinou a cabeça para um lado.

- Quer provar um pouco? - perguntou em gaélico.

- Um pouco, se é tão amável - respondeu Stephen.

Contemplou a Clarissa enquanto terminava o ovo.

"Quanto valorizo esta jovem por não fazer perguntas - refletiu. - É verdade que está acostumada aos modos da marinha, de abandonar o lar, a família, as casas de
jogos, as pombas e os vasos quase sem prévio aviso, não há que desperdiçar a maré, pelo amor de Deus, mas estou convencido de que não tem necessidade de fazer perguntas:
compreendeu o essencial com apenas um cruzar de olhos comigo."

Tudo aquilo não era novo para ele, pois já havia imaginado que Clarissa reagiria assim, mas a menina o deixou petrificado, completamente desarmado, nas nuvens. Ansiara,
rezara com a ajuda de mais de uma centena de círios, criteriosamente repartidos entre um total de cinqüenta e três santos, para que experimentasse um progresso mais
perceptível. Por fim, quase de improviso, a menina havia se aberto para o exterior.

Terminou o pudim e mostrando o prato dividido perguntou se podia ir aos estábulos. Tinha tanta vontade de ver de perto o carro postal, de tocá-lo. Organizou o pensamento
para dizê-lo em algo parecido ao inglês, porém então, em voz baixa como se se tratasse de algo confidencial, disse em gaélico para Stephen:

- E o que o senhor me diz? Gostaria que lhe mostrassem o carro postal com seus quatro cavalos?

- Querida, afinal de contas fui eu que vim nele. Deixei os assentos quentes. Além disso, temos que partir dentro de uma hora no máximo, nem um minuto a mais, assim
que tenha tomado o café.

A menina soltou uma risada.

- Poderei sentar-me com Padeen no lugarzinho que há acima, atrás, na boléia? - perguntou. - Que divertido!

Clarissa não havia acumulado muitos bens pessoais. Em um dado momento assomou a cabeça pela porta e perguntou:

- Fará frio?

- Um frio terrível no inverno - respondeu Stephen, - ainda que não deve preocupar-se. Compraremos tudo o necessário na Corunha, em Ávila ou mesmo em Madri. Mas leve
algo para proteger-se da umidade do norte, e não esqueça as botinas.

Quase não tinha tempo para encarregar-se do ancião e das criadas, mas lhes pagou seis meses de comida e casa, deu-lhes instruções para o cuidado do gado e da renovação
da caldeira, e uma letra de câmbio que a senhora Aubrey se encarregaria de trocar.

- Tudo carregado e preso, senhor - informou Padeen; - Acha que Brideen e um servidor poderíamos subir ao asien... ao asien... ao lugarzinho de...?

- Podem - respondeu Stephen enquanto saía da casa. Abriu a porta da carruagem para ceder a passagem para Clarissa. - Que Deus lhes bendiga - disse aos serventes
reunidos nas escadas, e depois se dirigiu aos moços da posta: - adiante.

A carruagem partiu.

- Quer que lhe explique os motivos? - perguntou Stephen.

- Padeen e eu fomos atraiçoados?

- Precisamente.

- Sim. Ao que parece alguém esteve fazendo perguntas no povoado. Gente forasteira ao longo do caminho, e inclusive no pátio dos estábulos.

- Tudo se reduz a uma questão de vingança contra mim. Os perdões que solicitei - petição da mais normal tanto para a senhora como para Padeen em um caso como este
- não foram recusados, mas estão em suspenso, atrasados e atrasados por um ato de má fé. Acho que os aprovarão, e logo; mas até então o melhor será que nos ausentemos
do país, que nos mantenhamos longe do alcance de meu inimigo. Em qualquer caso, gostaria de pôr Brigid sob os cuidados do doutor Llers, que obteve mais êxitos com
crianças de seu tipo que qualquer outro homem na Europa. E olhe, que o bom Deus esteja recompensado por isso, não é que pareça necessitar da ajuda de nenhum homem
de ciência. A mudança que experimentou é de uma natureza tal, que somente caberia atribui-la a um milagre.

- Escapa por completo a minha compreensão - confessou Clarissa. - Nada que recorde me proporcionou tanta alegria, dia depois de dia. É como uma flor que se abre
ao chegar a primavera. Antes só fuxicava com Padeen e os animais, e agora o faz com as criadas e também comigo: em inglês, ainda que um pouco tímida. No início somente
o falava com os gatos e a porca.

Stephen riu comprazido, um riso rouco e áspero.

- Também aprenderá a falar em espanhol - disse ao cabo de um tempo, - em castelhano. Lamento que não seja em catalão, língua muito mais fina, velha e pura, mais
melíflua, que conta com escritores de grande estatura - aí tem a Ramón Llull por exemplo, - ainda que como costuma dizer o capitão Aubrey: "Quem recebe uma alfinetada
a tempo não tem confusão no quintal." Eu me propus a acompanhar a senhora (ou, isto é, enviá-la acompanhada, pois não posso abandonar o barco) a um convento beneditino
de Ávila, que tem por abadesa uma tia de meu pai, e onde poderá ter à mão o doutor Llers. Ali a disciplina é relaxada, a vida agradável; as monjas são, em sua maioria,
senhoras de boa família, e inclusive algumas delas e das pensionistas são inglesas pertencentes a antigas famílias católicas ou irlandesas. Contam com um coro excelente,
e o convento possui três dos melhores vinhedos da Espanha. Tenho intenção de pedir a Padeen que a acompanhe na qualidade de servente, e como fonte de inspiração
contínua para Brideen. A senhora não estará sozinha ali; e ainda que a vida possa parecer-lhe um pouco chata, pelo menos estará a salvo.

- Não peço mais - disse Clarissa.

O carro postal transitava uma estrada plana, não muito longe de Ashgrove Cottage, e puderam ouvir a voz de Brigid lançar todo tipo de exclamações ante as enormes
pilhas de feno, maiores que qualquer outra coisa que tivesse visto em toda sua vida.

- Teremos tempo para visitar à senhora Aubrey e despedir-nos dela? - perguntou Clarissa. - Não acho que seja muito apropriado desaparecer assim, sem dizer uma palavra.
Pareceria fruto de uma mente devorada pelo ressentimento.

- Não - respondeu Stephen. - "Tal como vamos encontraremos a maré pela metade. Não podemos perder nem um minuto", refletiu antes de repetir em voz alta a palavra
"ressentimento", em tom inquisitivo.

- Sim - disse Clarissa. - Desaparecer assim não poderia ser mais desafortunado. Foi muito amável de sua parte vir de vez em quando para visitar-nos a Brigid e a
mim, e não faz muito enviou um bilhete para dizer-nos que tinha recebido uma carta do capitão Aubrey de Londres com notícias sobre minha pensão de viúva de um oficial,
e perguntando se podia vir nos visitar. Dado que um amigo de Diana havia nos presenteado com um veado, que brilhava na lua cheia e ela estava sozinha, eu a convidei
para jantar, junto com o doutor Hamish e o senhor Hinksey, nosso pároco. Nós preparamos tudo para celebrar a ocasião com certo lustre, nem mesmo aquele terrível
Killick teria se empregado mais a fundo que Padeen, e eu pus meu melhor vestido: o esplêndido vestido escarlata de seda de Java, com o qual me presenteou o capitão
Aubrey no meu casamento.

Stephen assentiu. Recordava o incidente com detalhes: o pedaço de tecido do rolo que Jack Aubrey comprara a um mercador chinês em Batavia, com a ajuda da esposa
do governador.

- Sim. Mas o caso é que a senhora Aubrey chegou com um vestido confeccionado com o mesmo tecido. Um pouco mais cheinho e recatado; mas exatamente do mesmo tom escarlata.
Ficamos nos olhando como duas tontas, e antes de que nenhuma pudesse articular palavra chegaram os homens, primeiro Hinksey e depois o doutor. Contudo, tive a absoluta
certeza, como se estivesse escrito na testa, de que ela acreditava que Aubrey tinha me presenteado o tecido por serviços prestados, e de que, de sua parte, havia
recebido as sobras que a amante de seu marido havia desprezado. A refeição foi bem, acho. O vinho era de sua adega, pois tomamos um velho Chambertin com o veado,
e de vez em quando ela recordava suas maneiras e contribuía um pouco para a conversa. Mas não saiu às mil maravilhas. O jantar, um dos poucos que organizei, foi
um completo fracasso. Brigid entrou quando a senhora Aubrey e eu nos retiramos para o salão, de modo que não houve momento propício para dar explicações, por mais
que estivesse decida a dá-las, coisa que a essas alturas não estava disposta a fazer. Por sorte os homens não ficaram muito tempo com os vinhos, de modo que a noitada
não tardou em se concluir miseravelmente. A isso me referia por ressentimento.

- Que posso dizer? - perguntou Stephen, consentindo. - Apenas que lamento realmente tanta desgraça, sobretudo por ser desnecessária. Já descemos para o mar.

 

- O mar, o mar! - gritou Brigid enquanto saltava extasiada ao encaminhar-se para a praia, onde um bote lhes esperava. - Oh, que maravilha de mar! - Era a primeira
vez que o via, e teve mais sorte que a maioria. A maré andava a meio caminho do refluxo e desde a embocadura do porto uma leve marejada enviava uma série de ondas
que rompiam brancas em leque atrás de leque sobre a areia pura e endurecida. A água tinha um vivo colorido azul-verdoso, claro, cristalino. Muito acima de suas cabeças,
o céu carecia de um colorido determinado e transbordava cúmulos elevados. A direita e esquerda a baía se curvava para dar forma a escuros escarpados de âmbar, enquanto
que mais além de Shelmerston o sol distante e poente expelia uma luz cálida, difusa, tranqüila, uniforme e confortável. Brigid passou a correr, pegou três algas
verdes e cacheadas, levou-as ao peito e voltou correndo para o grupo. - Como está, senhor? - perguntou a Bonden estendendo-lhe a mão, momento em que a dotação do
bote a cumprimentou com infinita benevolência.

- Deixe que a donzelinha do doutor se sente na amura - propôs Mould, e a passaram de mão em mão até que esteve sentada sobre seu abrigo dobrado, fuxicando encantada
da vida enquanto os do bote remavam com brio.

- Senhora Oakes, madame, seja bem-vinda a bordo - cumprimentou Reade ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para ajudá-la a subir pelo costado. - E você também, querida.
Doutor, senhor, o senhor foi tão pontual que poderemos aproveitar a maré. Creia-me, apenas havia começado a olhar a hora no relógio. Senhora, espero que tenha fome.
Nossos amigos do povoado nos trouxeram os linguados mais excelentes que jamais vimos. - Conduziu-os para baixo, rogando-lhes que tivessem cuidado com a cabeça, e
depois voltou a subir.

Os habituais sons seguiram sua habitual seqüência: puxado o cabo, engatada a gata, e a âncora e o bote em seus respectivos assentos; mesmo então, alguém familiarizado
com tais trabalhos teria podido distinguir o som das adriças deslizando em seus moitões e a inclinação da coberta inclinando-se sob seus pés. O barco se encheu todo
ele de um gemido generalizado, de uma vibração.

- Estamos nos movendo! - gritou Brigid, que escapou da cabine e subiu correndo ao convés.

"Devo evitar comportar-me como uma galinha choca", pensou Stephen, que, apesar de tudo, seguiu-a e, sentado junto à cana do leme, viu como a menina arriscava a vida
e a integridade, suavemente contida em seus excessos mais extravagantes por Padeen e os marinheiros, amáveis e dotados de uma paciência infinita: teve um momento
em que a viu descer pelas vaus do traquete, empoleirada no enrugado e crostoso pescoço do velho Mould.

Era a viajante ideal, incansável, deslumbrada ante tudo o que via; e ainda que a Ringle encontrou uma marejada do oés-sudoeste quando perdeu de vista terra firme,
uma marejada que diminuiu um pouco ao topar com a maré, a menina não mostrou o mínimo desfalecimento nem, ao que parece, medo de nenhum tipo. Tampouco lhe importava
ensopar-se até os ossos, e melhor, porque a Ringle rumava para sudoeste a duas quartas do vento, e o mar picado subia a bordo de pedaço em pedaço pela amura de estibordo,
empapando-a em intervalos regulares enquanto se agarrava aos amantilhos que havia mais a proa, e a cada pedaço do mar, quer fosse verde ou branco, o cumprimentava
com um gritinho de puro gozo.

Passou o tempo, e quando a escuridão adquiriu forças a levaram para baixo, para a popa, secaram-na, puseram-na diante de uma vasilha de carne em salmoura, verduras,
especiarias e bolacha de barco - era o único prato que se servia a bordo da Ringle, além do burgoo ou mingau de aveia - e lhe disseram que "coma, companheira, coma
com apetite, e para não deixar nem uma só migalha no prato". Depois de comer duas colheradas, adormeceu com a testa apoiada na mesa e uma mão agarrada à bolacha
de barco que havia mordido; adormeceu de tal maneira que tiveram que levá-la inconsciente, mais ou menos limpa, e metê-la em uma pequena maca.

 

- Acredite, senhor, não poderíamos navegar em melhores condições - disse Reade durante a janta. - Este barco recebe muito melhor o vento que entra pelo través de
proa, e andamos a dez nós desde que passamos por Start, tal e como o senhor nos vê: sem grinaldas, sem partir-nos o espinhaço e nem ao menos a gávea de carangueja.
Sugeri a possibilidade de forçar lona, senhora, para demonstrar-lhe do que é este barco capaz, mas não me pareceram muito entusiasmados pelo trabalho. Não estourou
um motim em toda regra, certamente, mas que se limitaram a lançar-me olhares de desaprovação e a sacudir a cabeça, e depois me fizeram saber que o barquinho navegava
com bastante soltura, tendo em conta que se tratava da primeira viagem da daminha. Ainda que faço constar que não acredito em absoluto que nem ao menos pestanejasse
se nos víssemos obrigados a correr um temporal com todo o trapo aferrado, e o perigo de que o mar chocasse contra nossa popa uma e outra vez. Vejamos, senhora, deseja
provar um pouquinho desta torta de maçã? Cortesia da esposa do carpinteiro, uma para seu rancho e outra para o nosso, detalhe que lhe agradeço muito.

- Ponha-me um pouquinho, se é tão amável. Gosto de torta de maçã, e esta tem um aspecto soberbo; mas tenho tanto sono que temo que vou desgraçar-me caindo de lado.
Sem dúvida é coisa da brisa marítima.

Sem dúvida. A brisa marítima exerceu a mesma influência nos três passageiros, que não despertaram até que o sol luziu bem no alto, momento em que fizeram ato de
presença, olheirudos, pálidos e aturdidos; não se podia dizer que algum deles estivesse melhor que o outro.

- Bom dia, senhor - exclamou Reade, ofensivamente disposto. - Que dia mais esplêndido! Desfrutamos de uma travessia estupenda esta noite, e perto de Ouessant falamos
com o Briseis: o velho Beaumont, o senhor recorda-se do velho Beaumont, do Worcester, senhor? Pois resulta que o encontramos de oficial de guarda, e nos comunicou
que alguns barcos da esquadra que protege a costa haviam trocado na quinta-feira sinais de inteligência com o comodoro, que rumava para sudoeste com pouca vela.
Ainda que, senhor, eu me atreveria a dizer que necessita de um bom café da manhã. O que a menina tomará?

- Isso mesmo eu me pergunto. O que? Senhora Oakes - chamou, - diga-me, por favor, como se alimenta às crianças?

- Com leite - respondeu Clarissa.

Todos a bordo da Ringle adotaram um olhar de incompreensão, e como a disciplina que reinava com um guarda-marinha ao comando do navio de apetrechos não era de todo
rígida que teria sido caso se encontrassem em um navio de linha, não titubearam na hora de expressar livremente seus pontos de vista.

- Deveria ter pensado nisso - disse Slade. - Devia ter trazido um balde de leite; e um pote de creme.

- O queijo é particularmente bom para os ossos das mocinhas - disse o homem do interior que estava nas escotas. - Meu primo Sturgis poderia ter-nos emprestado a
sua cabra.

Finalmente se decidiu que se a bolacha de barco e um pouco de cerveja não eram aceitáveis, e nisto a senhora Oakes se mostrou incisivamente contrária, então o mingau
de aveia era a única alternativa. Assim, Brigid se enfrentou a uma tijela de mingau de farinha de aveia, adoçada com açúcar e mesclada com manteiga. Ela o elogiou
como o melhor prato que tinha comido na vida, como se fosse seu aniversário: comeu com uma fome voraz e depois pediu mais, e finalmente lhe disseram que podia ir
ao convés para cantar "mingau, mingauzinho, mingaus, ooh hoo hoo hoo", com isso denotava que somente o teria suportado o mais tolerável dos homens, tal e como fizeram
os da Ringle, até que na hora de almoçar mudou o curso de seus pensamentos. Por ser quinta-feira, se lhe serviu assim como ao restante dos homens uma libra de porco
em salmoura e meia pinta de ervilhas secas: um galão de cerveja teria formado parte de sua ração, mas lhe aconselharam que não devia insistir mais.

O vento esfriou pela tarde. Colocaram um rizes no traquete e na maior, e a Ringle dava a ligeira sensação de estar fazendo uma boa travessia: guarda atrás de guarda,
dez nós, dez e duas braças, onze nós, senhor, com sua permissão. Brigid passou todo o tempo nas amuras, observando como se dominava a escuna sobre uma marejada cada
vez mais forte, como descia e como pulverizava a crista seguinte a grande velocidade, salpicando a sotavento com vigor, sempre a mesma, sempre distinta. Em uma ocasião,
uma linha de botos cruzou a proa do navio, acima e abaixo como se fosse uma só serpente negra e longa. Stephen também teve oportunidade de mostrar-lhe um petrel,
uma ave branca e negra que pousava nos restos espumosos do fluxo das ondas. O resto do dia foi dominado por uma luz difusa, um vasto mar cinzento, o contínuo barulho
do vento e da água, e uma frescura que chegava até o último canto do barco.

- Diria que leva o mar no sangue, querida - disse Slade quando Brigid se aproximou da popa, correndo a toda velocidade.

- Não voltarei para terra nunca mais - replicou.

Padeen não teve nenhuma dificuldade em assumir de novo seu papel de marinheiro, marinheiro ordinário, já que carecia do sem-fim de habilidades particulares necessárias
para figurar no rol como marinheiro de primeira. Contudo, não carecia de conhecimentos, mas todos tinham a ver com a terra, pois era um camponês da cabeça aos pés,
camponês de nascimento e de coração. Apesar disso, era tão marinheiro que se sentia a bordo como em casa, e durante a guarda da manhã Stephen o encontrou pescando
cavalas desde as amuras da Ringle.

Ainda faltava para o amanhecer: tempo nublado com algum ou outro aguaceiro, trovões, o mar ainda mais picado, vento intenso do oés-noroeste. Ajustava a escuna de
bordejada em bordejada, longas, longas bordejadas, e naquele momento a amurada de estibordo não estava muito longe de terra: da férrea costa norte da Espanha, invisível
até o momento. O farol de Vares pela amura de bombordo, no alto de um cabo que estendia seus longos dedos sobre o mar, expelia uma luz alaranjada quando os aguaceiros
não lhe faziam sombra. Dizia-se que aquele farol atraía de tal maneira aos peixes que amiúde os encontravam na baía. Verdade ou não, a segunda guarda tinha pescado
uma cesta inteira, e por essa razão a escuna demorava na virada, cada vez mais perto da costa. Haviam tomado seus cachos a maior e o traquete, a carangueja estava
meio aferrada, represando o fluxo de ondas que escorria vertiginoso ao dobrar o cabo, mas sem fechar distâncias com relação à costa.

- Diria que não se deitou ainda - disse Stephen.

- Isso mesmo - respondeu Padeen. - Ao terminar a guarda comecei a pensar no homem que nos atraiçoara, o informante, o Judas. Perdi o sono, remoído pela ira e o temor
de que pudessem enviar-me de volta a Botany Bay.

- Não ofereceria a outra face ao informante - disse Stephen. - O inferno está repleto de gente assim. São... - Foi interrompido por uma tripla descarga de luz que
iluminou fugaz os escarpados que se recortavam a bombordo, seguida quase de imediato por um trovão. - Aí - acrescentou, - aí está a costa da Espanha. - Outros relâmpagos
a iluminaram com maior clareza. - E assim que ponha um pé nesse país, ninguém poderá enviar-te de regresso àquele lugar infame. Seja como seja, estou seguro de que
até o final do ano obterei seu perdão, e depois poderá ir aonde queira. Porém, Padeen, pelo momento quero que acompanhe Brigid e a senhora Oakes a Ávila, Espanha,
e que cuide de ambas. Lá residirão em um convento, cujas monjas hospedam a algumas outras damas. Agora escute o que vou te dizer, Padeen. Se cuidar fielmente delas
pelo espaço de um ano e um dia, será sua uma pequena fazenda de Munster que tenho perto de Sidheán na Gháire, no condado de Clare, uma fazenda com dezessete acres
de terra, dezessete acres irlandeses, se entende. Conta com uma casa com teto de ardósia, e também com três vacas e um asno, além de alguns porcos, certamente, e
de dois favos de abelhas; terá direito a obter dezessete carregamentos de carvão fóssil no pântano. Satisfeito, Padeen?

- Satisfeito, sua senhoria, sua discrição - respondeu Padeen com voz trêmula. - Cuidaria de Brigid durante um milhar de anos e um dia em troca de nada; porém, oh,
quanto me agradaria ter uma parcela de terra em propriedade. Faz tempo, meu avô tinha quase três acres, e mais dois alugados...

Conversaram sobre a terra, sobre os prazeres derivados do cultivo, a satisfação de ver crescer o que se plantou, de cortar e de debulhar; ou melhor, foi Padeen quem
falou: soltou uma cristalina torrente de palavras como Stephen jamais ouvira em seus lábios; e amanheceu, amanheceu de repente, foi como se as nuvens se esfumassem
ante a primeira carícia do amanhecer.

- Atenção todo mundo, atenção! - rugiu Bonden de popa, ao mesmo tempo que, imitado por outros marinheiros, corria golpeando as escotilhas. - Todo mundo ao convés!
- Padeen, a quem não era difícil surpreender, tropeçou com Stephen, vara e cesta de pescado na mão, e antes de que ambos pudessem se recuperar Reade havia se plantado
no convés vestido com a camisola de dormir, dando ordens a torto e a direita. Meia milha de popa, na baía fechada pelo cabo Vares, encontrava-se um lugre de três
paus, comprido, baixo e negro. Ia fortemente armado e contava com uma considerável dotação; estava se cobrindo de lona.

Padeen havia se dirigido correndo ao seu posto na escota de proa. Stephen se colocou na alheta de estibordo, onde se encontrava razoavelmente afastado. Escutou os
rápidos intercâmbios que se produziram entre Reade e os homens cuja opinião consultou; e também pôde ouvir as opiniões dos marinheiros enquanto trabalhavam ou se
dispunham a formar. Todos se mostravam de acordo em que o lugre era francês e havia partido de Douarnenez, que se chamava Marie-Paule e que era rápido: os cúteres
aduaneiros nunca o tinham aprisionado; às vezes atuava como navio de corso, e naquele momento, tão a transbordar de homens, não podia ser mais que um corsário, que
talvez perdoassem a um rastreador de Brixham mas a ninguém mais, quer fosse cristão, turco ou judeu, e que François o patrão era um autêntico canalha. Armava a proa
uma peça de bronze de nove libras, peça que servia incrivelmente bem. Todos os marinheiros falaram em sério, com gravidade. Não pôde ver a expressão de Reade, que
estava na cana com Bonden, virado de costas, mas viu Bonden empertigado e sossegado.

Ao olhar de proa e a popa, Stephen julgou a posição enquanto a luz se afiançava a cada minuto transcorrido, e a escuna tombava mais e mais enquanto os homens puxavam
as escotas e as amarravam cada vez mais para popa. Até onde chegava sua experiência no mar, Stephen pensou que não havia escapatória possível. A menos de uma milha
da proa, o cabo Vares refletia ao norte, ao mar. Não poderiam superar a ponta estando como estavam amurados para estibordo. Teriam que ir por avante para navegar
de volta, e enquanto o fizessem o enorme lugre os abordaria sem remédio. Partia em sua direção a toda pressa, cheio a transbordar de homens.

Tinha participado de muitas perseguições navais, quer fosse como caçador ou presa, e todas elas tinham sido negócios longos, muito, às vezes questão de dias, grande
a tensão e, apesar de tudo, contida a medida que se afiançava e se fazia mais suportável com a passagem do tempo. Agora a coisa seria questão de minutos em lugar
de horas ou dias: a escuna, com o corrimãos de sotavento afundado na espuma, coberta por uma nuvem de lona, levava seus bons dez nós e, ou contornava o cabo em quatro
minutos, ou tinha que mudar de bordo e cumprimentar a chegada do lugre pelo través de estibordo.

A medida que transcorreram estes minutos se deu conta com extraordinária viveza do que sua fortuna, guardada nos baús que havia na bodega, supunha para ele, para
sua filha e para um milhar de aspectos de sua vida. Não lhe havia ocorrido pensar que o dinheiro pudesse ter tanto valor, de que pudesse valorizá-lo até esse ponto.
As gaivotas pairavam entre a Ringle e o cabo, as ondas rompiam ao longo da costa. Voltou seu rosto olheirudo para os homens que governavam o leme, e como a instâncias
de seu pensamento Reade lhe devolveu o olhar. A expressão do jovem se parecia à desaforada alegria que Stephen havia visto no olhar de Jack Aubrey em similares momentos
de crise.

- Fique aí, doutor. Tenha cuidado - gritou o guarda-marinha com um sorriso, antes de voltar-se para Slade para dizer-lhe algo com respeito à uma bolacha. Então,
Bonden e ele, com as mãos agarradas à cana pelo cabo de três voltas e o olhar posto na testa da vela traquete, puxaram a cana para sotavento, e ainda mais para sotavento.

Stephen viu a terrível costa do cabo, tão perto, afastar-se para a esquerda. Viu aparecer o extremo que dava ao mar, talvez livre de sua amura de bombordo por umas
dez jardas de distância. Ouviu ao jovem Reade gritar "jogue-a com alma, com alma!" e viu Slade lançar a bolacha, que deu contra as rochas, e em um estrondo de risadas
as franquearam, avante a mar aberto.

O lugre efetuou um disparo sem consequências antes de mudar de bordo, incapaz de superar o cabo, perdeu terreno, ímpeto e a presa. A perseguição continuou pelo espaço
de algumas horas, mas ao meio-dia já não se via ao leste mais que a lona do lugre, pois a escuna era mais veloz.

A Ringle seguiu navegando com um estado de bom humor, amiúde rindo, amiúde recordando-se uns aos outros que "haviam franqueado ao canalha do cabo Vares à distância
de bolacha, ah, ah, ah!". Houve quem tentasse explicar o triunfo à senhora Oakes e a Brigid, mas ainda que conseguiram lhes contagiar com sua alegria e a boa sorte
que haviam tido, não conseguiram que entendessem o resto antes de que a Ringle chegasse ao porto da Corunha, ou, como alguns o chamavam, ao "Quebra-mar".

Enquanto Stephen permanecia na amura, sorrindo para o agitado porto e para a cidade, Mould se aproximou como quem não quer nada, e entre os lábios disse:

- Eu e meus companheiros conhecemos o Quebra-mar tanto como Shelmerston: costumávamos vir aqui para buscar o conhaque. E se o senhor prefere que desembarquem seus
bens com discrição, se me permite a palavra, conhecemos a um tipo, honesto como ele só - pois de outra forma faria tempo que o teriam matado de uma surra, - que
poderia responder.

- Obrigado, Mould, agradeço muitíssimo sua amável sugestão, mas nesta ocasião - e repito: nesta ocasião - tenho intenção de desembarcar tudo legalmente. E isso é
o que me propus dizer ao capitão do porto e aos seus. Contudo, quero que saiba que lhe agradeço por suas boas intenções.

Algumas horas depois, Stephen, sentado na cabine com um Reade totalmente mudo e duas autoridades portuárias, disse:

- E além dos apetrechos de guerra que pertencem a esta embarcação, navio de apetrechos do navio de sua majestade britânica o Bellona, ao qual terão visto não fará
muito - nenhum dos quais pode considerar-se como mercadoria, - não há nada mais excetuando um tesouro que me pertence em propriedade, e que pretendo depositar no
Banco do Espírito Santo e do Comércio desta cidade. Conheço pessoalmente a dom José Ruiz, seu diretor, que foi a pessoa que me o envio por barco em primeira instância.
Como se trata de ouro em guinéus ingleses, fica, certamente, isento de contribuições.

- Trata-se de uma soma importante?

- Não saberia lhe dizer de quantos guinéus se trata exatamente, mas o peso, acredito, oscila entre as cinco e as seis toneladas. Essa é a razão de que devo pedir
aos senhores que me façam o incrível favor de dar ancoradouro adequado a esta embarcação, e de emprestar-me uma vintena de forçudos de confiança para transportar
os baús. Aqui - disse assinalando com um gesto um par de avultadas bolsas de lonita - há uma soma que espero distribuam da forma que considerem mais apropiada. Posso
dar por serto que chegamos a um acordo, cavalheiros? Pois, se for esse o caso, devo apressar-me a desembarcar e falar com dom José a respeito do ouro, e depois ir
direto para apresentar meus respeitos ao governador.

- Oh, senhor - exclamaram, - a estas alturas o governador deve encontrar-se a meio caminho de Valladolid. Não sabe o senhor quanto lamentará não poder ver-lhe.

- Mas confio em que esse não será o caso do coronel dom Patrício Fitzgerald Saavedra?

- Oh, sim, isso mesmo. Dom Patrício segue aqui, com todos seus homens.

 

- Primo Stephen! - exclamou o coronel, - quanto me alegra vê-lo. Que bom vento lhe traz a Galiza?

- Primeiro deixe-me perguntar como está e se é feliz. A fortuna lhe trata bem?

- Por favor, a fortuna tem me agarrado pelas partes pudendas, mas nunca permita um a soldado se queixar. Fale, por favor.

- Bem, vejamos, Patrick, trouxe a minha filha Brigid e a dama que cuida dela, porque me agradaria que passassem um tempo com a tia Petronila em Ávila. Contam com
um servente, Padeen Colman, mesmo assim, com o país tão revirado, a viagem tão comprida que lhes espera e como tenho que despedir-me aqui mesmo deles, não me agradaria
que fossem sozinhos, sem contar com alguém que fale espanhol por eles. Ruiz, o do banco, há acertado uma carruagem com um condutor que fala francês, e a guarda de
rigor, mas não sabe quanto lhe agradeceria que pudesse emprestar-me a uma dúzia de seus soldados e a um oficial. A verdade é que embarcaria muito mais tranqüilo
e feliz.

 

O coronel lhe deu bons motivos para ficar-lhe agradecido. Observava os oito cavalos que puxavam a enorme carruagem que avançava pesadamente colina acima, atrás da
Corunha, com uma escolta de soldados de cavalaria na frente e atrás, e duas mãos agitando dois lenços brancos, agitando-os e agitando-os de um lado para o outro
até que foram devoradas pela distância, mas ninguém que visse o rosto de Stephen de pé na amura da Ringle, teria pensado que o via, ali, mais feliz.

- Bem, senhor - disse Reade, que a julgar pelo tom de sua voz se sentia tão incômodo como compassivo, quando Stephen entrou na cabine, - temos intenção de largar
amarras em quanto esse português gigantesco daí se afaste de nosso caminho. E agora que o penso, senhor, não recordo do senhor ter me dito aonde devíamos aproar
no caso de não encontrarmos ao comodoro no Quebra-mar.

- Sério que não o fiz? - perguntou Stephen. Refletiu sobre isso e voltou a refletir. - Jesus, Maria e José - murmurou. - Esqueci o nome. Eu tenho na ponta da língua,
mas me escapa, é onde os petréis aninham, ou eram os fradezinhos...? Morcegos, eram morcegos. Em uma vasta caverna por onde circula um vendaval, a certa distância
em pleno mar. Ilhas... Eu o tenho, o tenho: As Berlings! As Berlings, é isso, por minha alma.

 

CAPÍTULO 6

No sábado pela tarde avistaram as Berlings pela amura de bombordo, órfã a Ringle do vento de joanetes que havia brincado muito com ela desde o cabo Finisterre, vento
talvez assustado pelo estrondo da batalha que se ouvia ao sudoeste, a estibordo.

A escuna, disposta para a ação, cobriu-se com mais e mais lona, orientada para aproveitar o menor sopro de vento e empurrada pela incerteza do que lhe aguardava
pela amura de estibordo. O doutor Maturin, afastado do corrimão desde o qual estivera observando as nuvens de aves marinhas perturbadas pelas detonações, a medida
que desenhavam amplos círculos sobre as distantes rochas, foi enviado abaixo, a esse sombrio e abarrotado espaço triangular no qual teria que atender aos feridos,
sem ajuda, se a Ringle podia fazer avante rumo sudoeste a tempo de unir-se à esfrega, prodigiosa esfrega a julgar pelo ruído das descargas que partiam dos navios
de linha, nada mais e nada menos.

Mould, o mais velho e mais leve dos marinheiros embarcados, pecador de pele enrugada e cinco pés de altura, encontrava-se no tope armado de uma luneta. O embriagador
aroma da pólvora se estendeu pelo convés arrastado pelo vento, no mesmo instante em que gritou:

- Convés, aí! Vejo algo além da fumaça e da escuridão. É a esquadra, que pratica com os canhões. Distingo o galhardete do Bellona. Vejo claramente ao Stately.

O vento, amável, esfriou ao som de suas palavras, e levou consigo os penachos de fumaça branca que os canhões expeliam até revelar ante seu olhar toda a esquadra
- à qual haviam se somado dois bergantins e uma escuna de Lisboa, - ao mesmo tempo que impelia a Ringle a uma boa velocidade até o ponto de reunião.

Reade se apressou a descer para tranqüilizar ao doutor.

- Se não parecia um combate de verdade, um combate de linha, como meu chapéu - disse. - Se o senhor pegar minha luneta, poderá ver que estiveram disparando de ambos
os costados em alvos dispostos ao longo da linha de barcos. De ambos os costados! Já ouvira algo parecido, senhor?

- Jamais - respondeu Stephen, armado com a verdade absoluta. Seu posto de combate se encontrava na enfermaria da coberta dos alojamentos ou o que podia ser seu equivalente,
e ainda que em certas ocasiões, todas elas memoráveis, quando o tambor não tinha redobrado para preparativo, se lhe permitira observar aos oficiais, guardas-marinhas
e marinheiros levar a cabo os exercícios com os canhões, nunca os vira servir ao mesmo tempo as peças de ambos o lados de um barco. Sucedia em raras ocasiões em
um combate real, exceto, evidentemente, quando o combate se convertia em um enfrentamento generalizado, como ocorreu em Trafalgar. Mas não se produzia quase nunca
durante uma prática. Um dos motivos era o preço da pólvora; o governo fornecia uma exígua quantidade de pólvora, que dava apenas para realizar uma prática com os
canhões de um lado. Qualquer coisa que fosse além teria que sair do bolso do capitão, e eram poucos os capitães que acreditavam na importância da artilharia e eram
ricos o bastante para adquirir a quantidade de pólvora necessária para conseguir que a dotação do barco tivesse a experiência suficiente para chegar a efetuar três
disparos bem apontados no espaço de cinco minutos. Alguns, como Thomas da Thames, homem razoavelmente próspero, tinham a convicção de que a brusquidão na manobra,
o brilho dos metais, a impoluta pintura dos costados, umas vergas enegrecidas e o arrojo natural do povo inglês serviriam para coroar com êxito qualquer propósito,
de modo que suas práticas com os canhões não iam além de destravá-los e levá-los de um lado a outro sem mais, sem sequer aproveitar a quantidade extra proporcionada,
pelo governo. A maior parte destes oficiais tinham participado de poucos combates, talvez em nenhum. De sua parte, Jack Aubrey tomara parte de muitos mais combates
que a maioria; e ele, assim como boa parte de seus amigos, estava convencido de que por mais coragem que se tivesse não se podia ganhar de um inimigo de força igual
que desfrutasse do barlavento e que pudesse disparar mais rápido e com precisão. Além disso, tinha comprovado os efeitos desastrosos de não adestrar à dotação no
disparo de ambos os lados. Em uma ocasião, por exemplo, ao estar de passageiro a bordo da fragata de sua majestade Java, quando esta enfrentou a Constitution, fragata
dos Estados Unidos, houve um momento na batalha em que o americano apresentou sua vulnerável popa ao barco inglês, mas os marinheiros, que estiveram servindo os
canhões do lado de estibordo careciam das luzes necessárias e, sobretudo e antes de tudo, do adestramento imprescindível para varrer sua popa com efetividade com
os canhões de bombordo. A Constitution andou quase de graça e, ainda que pouco depois, cheios de coragem, tentaram tomá-la pela abordagem, não serviu de nada. Ao
finalizar aquele dia de dezembro, a Java, abatida, foi apresada e queimada, enquanto que seus sobreviventes, incluído Jack, foram feitos prisioneiros e conduzidos
a Boston.

Agora dispunha de dinheiro suficiente como para gastá-lo na quantidade de pólvora que quisesse; e agora, também, decidido a ter sob seu comando uma esquadra que
pudesse enfrentar qualquer inimigo de igual porte, havia ordenado levar a cabo um exercício de fogo real de proporções homéricas, e disposto todos seus barcos em
linha de combate para que pudessem abrir fogo ao passar contra alvos espalhados a um cabo de distância, à queima-roupa.

A medida que a Ringle se aproximou do navio insígnia, que formava a pairar na metade da linha, Stephen observou não sem certa inquietação que ainda que a superfície
do oceano estivesse plana como o vidro, com quase sem dobras, seu corpo principal, essa enorme massa líquida, subia e descia arrastada por um intenso fluxo de ondas
procedente do sul, movimento claramente visível entre os botes que formavam ao lado dos costados do Bellona, já que o comodoro reunira os capitães do Stately, da
Thames e da Aurora, e suas faluas se elevavam e desciam de um modo surpreendente. A experiência lhe dizia que qualquer um que não levasse o mar no sangue teria dificuldades
para subir a bordo sem se arriscar a sofrer uma desgraça; contudo, ainda refletia a respeito daquele particular quando a Ringle deslizou por baixo da popa do Bellona,
foi direitinha situar-se por seu costado de bombordo e se enganchou às amarras da mesa de guarnição do traquete.

- Senhor Barlow - chamou Reade ao segundo do piloto, situado no castelo de proa, -jogue-me um palanquim para o doutor, se é tão amável.

Depois de assegurados os pertences do doutor, pediu-lhe que se sentasse em seu baú de marinheiro, agarrado ao cabo com ambas mãos.

- Agarre-se forte, senhor, e não olhe para baixo - advertiu Reade; então, na crista da onda, gritou: - Lá vai. Agora, pouco a pouco e sobre a borda.

Stephen e seus pertences se elevaram no ar, balançaram sobre o navio de linha e pousaram no convés com um golpe tão suave que não teria rompido um ovo.

- Há, Caley... - disse enquanto observava um daquelas rostos conhecidos, depois de agradecer aos marinheiros. Pegou com suavidade a orelha esquerda do marinheiro
em questão, orelha que havia costurado depois de que um companheiro um pouco brincalhão lhe arrancou boa parte dela, e acrescentou: - Muito bom, tem a mesma capacidade
para se recuperar que um filhote. - E sem mais se dirigiu a popa pelo corrimão de bombordo, respondendo à meia dúzia de inclinações de cabeça e gestos diversos que
lhe dedicaram seus antigos companheiros de tripulação, pois praticamente a totalidade dos marinheiros da Surprise que não tinham lar em Shelmerston navegavam agora
com o capitão, no Bellona.

Ao aproximar-se do castelo de popa viu sair da cabine do comodoro o capitão Thomas da Thames. Parecia furioso: seu rosto adquirira um colorido peculiar, e a cólera
que recobria como uma capa a pele morena conferia a sua cara o aspecto de uma máscara. Apitaram quando desceu pela borda com a devida cerimônia, sem cumprimentar
nem nada do tipo, em marcado contraste com Duff do Stately, e Howard da Aurora, que haviam precedido em suas respectivas faluas.

Stephen observou os olhares de compreensão e os sorrisos particulares que trocaram os oficiais reunidos com a devida formalidade no castelo de popa, mas quando a
falua da Thames se afastou, Tom Pullings apareceu pela porta de entrada com um amplo, cândido e alegre sorriso desenhado em seu rosto, um sorriso completamente distinto
dos outros, e se apressou para Stephen, exclamando:

- Bem-vindo a bordo, querido doutor, bem-vindo a bordo. Não esperávamos ver-lhe tão cedo, pequena surpresa. Venha ver o capi... o comodoro. Ele ficará muito contente
e aliviado de ver-lhe. Mas antes permita-me apresentar-lhe ao meu segundo tenente, o primeiro figura no boletim de enfermos, nada do outro mundo. Tenente Harding,
apresento-lhe o doutor Maturin.

Apertaram-se as mão, trocando atentos olhares, pois os companheiros podiam dar-se bem ou mal e converter qualquer destino em um inferno ou um céu. Ante o cortês
"Como o senhor está, senhor?", o outro respondeu "Encantado de conhecer-lhe".

Aquela foi a primeira ocasião em que Stephen via a Pullings enfronhado no tão ansiado uniforme de capitão de navio, e depois, ao reparar nisso, disse:

- Como esse uniforme lhe cai bem, Tom.

- Há, senhor - disse Pullings, que riu alegre. - Devo admitir que amo este uniforme de todo coração.

Chegaram ao lugar onde o infante da marinha fazia guarda.

- Devo deixar-lhe aqui, senhor - disse Pullings, - mas trarei meu relatório sobre as cadências de fogo assim que esteja redigido como Deus manda. Não há um momento
a perder, porque a metade dos números escritos na tabuinha seguem em minha cabeça, e a outra metade estão na do senhor Adams.

Stephen atravessou a sobrecâmara para chegar à câmara com um sorriso; porém, encontrou Jack sentado de costas, com o olhar voltado para a popa e ambos braços apoiados
sobre a escrivaninha cheia de papéis; permanecia imóvel, e com tal olhar de infelicidade que o sorriso de Stephen desapareceu em um visto e não visto de suas feições.
Tossiu forçadamente. Jack se voltou de imediato, com uma autêntica indignação que mascarou a infelicidade um instante antes de que se levantasse, tão magro como
quando era jovem, e abraçou Stephen com mais força da que era normal nele.

- Pela vida de... Stephen, quanto me alegra vê-lo! Como andam as coisas em casa?

- Tudo bem, que eu saiba, ainda que como compreenderá tive que vir muito rápido no carro postal.

- Sim, sim. Fale-me de sua viagem. Deve ter desfrutado de ventos favoráveis por todo o caminho. Os do paquete disseram que estiveram acalmados nos Downs até a quinta-feira
passada, a quinta-feira da semana passada, quero dizer. Meu Deus, como me faz feliz ter você aqui. Deseja um pouco de madeira e uma bolacha? Xerez? Ou talvez um
café? Que tal se tomarmos uma cafeteira inteira?

- Por favor. Aquele canalha da Ringle, ainda que sem dúvida seja um grande marinheiro, não tem nem a menor idéia do que é um café. Nenhuma em absoluto, nenhuma em
absoluto, o animal.

- Killick, Killick! - gritou Jack.

- E agora o que é? - perguntou Killick, que assomou pela a porta da cabine dormitório. Acrescentou o "senhor" depois de uma pausa, e dedicando um sorriso glacial
para Stephen, disse: - Espero que sua senhoria ande bem.

- Muito bem, obrigado, Killick, e você, como está? - Como vê, senhor, levando. Ainda que temos muitas responsabilidades com isso de exibir um galhardete.

- Esquente uma cafeteira - ordenou Jack. - E será melhor que pendure uma maca para o doutor.

- Não, se agora resultará que passei toda a manhã com os braços cruzados - replicou Killick, ainda que o fez em um tom mais suave que o seu habitual, e não sem acompanhar
suas palavras com uma olhar apreensivo.

- Conte-me então sobre sua viagem - seguiu Jack. - Temo ter interrompido seus assuntos com tantas pressas.

- Não vou lhe preocupar com meus assuntos em terra, além de observar que o navio de apetrechos e sua gente não poderiam ter se comportado de forma mais exemplar,
e que chegamos a Shelmerston e depois à Corunha, mas permita-me dizer que, apesar do vento forte e favorável que às vezes nos empurrou por um espaço de duzentas
milhas entre um meio-dia e o seguinte, pudemos ver... - A seguir recitou uma lista de aves, peixes, mamíferos marinhos (entre eles uma manada de baleias), plantas,
crustáceos e outras formas de vida que apareceram na superfície ou foram arrastadas por uma pequena rede, até ver que perdia por momentos a atenção de Jack. - Frente
a Finisterre, o vento nos abandonou durante um tempo continuou, - e me pareceu avistar uma foca-monge; mas o vento logo respondeu a nossos assobios de protesto e
nos trouxe alegremente até que avistamos as Berlings e ouvimos o estrondo dos canhões. Esse excelente jovem, Reade, cobriu a embarcação com todo tipo de lona, tão
temeroso estava de perder a batalha, pois supusemos que se tratava de tal; não pareceu disposto a arriá-la quando o vento esfriou e os paus se dobraram até o indizível.
Porém, resultou não ser mais que um exercício de artilharia de proporções homéricas. Creio que tudo deve ter saído a sua inteira satisfação, meu amigo.

- Stephen, foi um autêntico despropósito, deveras que sim. Ainda que pode ser que da próxima vez o façamos melhor. Diga-me, não se encarregou de alguma carta ao
se despedir de Shelmerston? Refiro-me a uma carta de Ashgrove em particular.

- Não - respondeu Stephen. - Lamento de verdade decepcionar-te assim, mas havia prometido ao jovem Reade aproveitar a maré da manhã, a sagrada maré da manhã. Além
disso, somando-se ao afã para não faltar ao encontro que combinara contigo - poderia-se inclusive dizer que "além do senso do dever", - viajava em companhia de Clarissa
Oakes e de minha filha, às quais levei para a Espanha, onde a segunda será tratada por uma eminente autoridade; vamos, que não passei por Ashgrove: Clarissa e Sophie
não estão em bons termos.

- Não. Eu sei.

- Lamento decepcioná-lo - repetiu Stephen ante o silêncio.

- Oh, não se preocupe por isso, Stephen - exclamou Jack. - Jamais poderia decepcionar-me. Em qualquer caso, outro dia o paquete me trouxe uma de Lisboa, pequena
carta mais desagradável. Não lhe direi que me deixou nervoso, mas...

"Irmão, somente em uma ocasião lhe vira tão abatido como agora - pensou Stephen, - e foi quando apagaram seu nome da lista de capitães da Armada."

- Entre - disse Jack.

- Tudo disposto, senhor - informou Tom Pullings. - E aqui tem o relatório do exercício. Temo que não vai lhe comprazer precisamente.

- Não - admitiu Jack depois de dar uma espiada no papel. - Não. Não é nada encantador. Será melhor que ponhamos mãos à obra para melhorá-lo. Stephen, faz tempo que
não assiste a um exercício em toda regra com os canhões, e não recordo se já viu ou não a um barco abrir fogo de ambos lados contra um alvo. Gostaria de presenciá-lo?

- É o que mais me agradaria no mundo.

Enquanto se dirigiam ao castelo de popa, Pullings deu ordem de tocar geral.

- Apenas se trata dos canhões das baterias superiores, entenda - explicou Jack alçando sua voz acima do redobre de tambores, - os localizados na coberta alta e na
coberta da segunda bateria. Vamos, os de trinta e duas libras e os de dezoito.

Nem sequer o doutor Maturin podia supor que aquele fosse um exercício normal com os canhões longos, depois de ver como ordenavam aos homens que abandonassem o que
estivessem fazendo nesse momento para servir as peças três ou quatro vezes antes de dar por terminado o exercício. Nada disso. Tinha por objetivo, coisa que todos
na esquadra sabiam perfeitamente, proporcionar um exemplo de como deviam manejar-se durante um combate. A dotação do Bellona se esforçava para assegurar-se de que
o exemplo do navio insígnia fosse precisamente isso, exemplar, pois não só existia um sentimento de orgulho tremendo no barco, como que inclusive aqueles que haviam
servido com ele em seu primeiro comando, uma desajeitada corveta no Mediterrâneo, tinham a firme intenção de comprazer ao comodoro, ou mais exatamente de evitar
dar motivo ao seu descontentamento, que podia ser devastador, sobretudo nesse momento. O senhor Meares, o condestável, seu ajudante, os cabos de canhão e, certamente,
as dotações que os serviriam, o primeiro, o segundo, o da lanada que limpava a alma, os fuzileiros, que orientavam as velas, os da parte de abordagem, os encarregados
da pólvora e os infantes da marinha, cada um fizera a sua parte, haviam embonecado suas peças, engraxado os carros, pedido gordura aos cozinheiros para lubrificar
os moitões, disposto o cordame e os suportes de balas, enquanto que os guardas-marinhas e oficiais ao comando das divisões existentes também cuidavam dos menores
detalhes dos chifres de pólvora, os buchas de fio, os guarda-cartuchos, os mecanismos de disparo, os trabalhos e outros, coisas estas que se faziam tanto nas baterias
do lado de estibordo como nas de bombordo. Ainda que o Bellona contasse com algo mais que quinhentos homens a bordo, estes não bastavam para atender ambos os costados,
de modo que cada brigada tinha que servir duas peças.

As dotações, amiúde capitaneadas por marinheiros veteranos da Surprise acostumados aos modos de Jack Aubrey, ou, em todo caso, por homens experientes que haviam
tomado parte em mais de um combate, se formaram tão logo Jack assumiu o comando, e haviam praticado juntos desde então. Era de supor que teriam que ter ganhado confiança,
mas não era assim. Amarraram o lenço ao redor de sua testa, puxaram suas calças, cuspiram em suas mãos e cravaram a vista na frente, para a luz reluzente que iluminava
aquele mar ritmicamente encrespado, enquanto o torso negro, o marrom ou esbranquiçado mas moreno pelo sol se movia de um lado para o outro inconscientemente com
o balanço da coberta: esperavam o sinal do castelo de popa e que aparecessem os alvos aos quais deviam disparar.

- Muito bem, senhor Meares - disse o capitão Pullings antes de que o canhão que devia dar o sinal abrisse fogo; o penacho de fumaça quase não havia abandonado a
popa quando apareceu o alvo de estibordo, três conjuntos de barris com sua correspondente lona gasta envergada em três berlingas que representavam o castelo de proa,
o castelo e o castelo de popa de um navio de linha, tudo isso rebocado por um senhor cabo pelas embarcações auxiliares da esquadra. Ao cabo de dois minutos apareceu
a isca de bombordo, que também andava a bom passo a trezentas jardas de distância.

- Fogo com discrição de proa a popa - gritou Pullings desde o castelo de popa, e no convés o segundo tenente repetiu suas palavras. Jack pôs em marcha o cronômetro.

Dois longos balanços e o barco inclinou sete graus enquanto os marinheiros mostravam os dentes. Ao subirem na onda seguinte, o canhão de trinta e duas libras situado
na amura da coberta da segunda bateria proferiu um bramido aborrecido, ao mesmo tempo que descarregava uma lingua de fogo que iluminou o penacho da fumaça. A bala
alcançou as berlingas{15} envergadas sobre os tonéis do alvo, o que provocou gritos de júbilo em ambas cobertas do lado, ainda que a brigada que servia o canhão
não teve tempo para juntar-se à algaravia. Safaram-se do canhão no retrocesso, o da lanada limpou a alma, meteram um cartucho e depois a bala, moveram o canhão em
bateria com a velocidade de um raio, fizeram mudar de bordo com toda sua alma ao monstro de quinhentas e cinqüenta libras de peso com um estampido e se dirigiram
correndo para o lado de bombordo, onde o segundo havia disposto tudo para que pudessem apontar ao alvo seguinte. A estas alturas o canhoneio se estendera até a metade
de ambas as cobertas do lado de estibordo. O estrépito ensurdecedor e a caprichosa fumaça já tinham o ânimo e a percepção de Stephen Maturin completamente confundidos,
e então o estrondo se redobrou se couber quando os canhões de bombordo entraram na brincadeira e um novo conjunto de alvos apareceu a distância de disparo. Sentiu
o ruído estrondoso, assustador, que acompanhava a saída de cada bala, fruto por sua vez de um trabalho intenso e concentrado, visível pelo menos lá onde podia ver
às esforçadas brigadas do castelo, banhadas em suor enquanto moviam o canhão, apontavam e disparavam os canhões, para depois correr ao outro lado, ordenadamente,
sem tropeçar uns com os outros, sem quase se dirigir a palavra; o verbo substituído por gestos, por uma leve inclinação de cabeça que não necessitava de mais e que
todos compreendiam.

Tudo terminou com um último estrondo do canhão de trinta e duas libras situado mais a popa, e o silêncio se peneirou sobre aquele mundo ensurdecido. A nuvem de fumaça
caiu para sotavento, longe da esquadra.

- Temo que tudo não foi equivalente a três descargas em cinco minutos, capitão Pullings - disse Jack, observando a um Tom nervoso.

- Temo que não, senhor - respondeu Tom, sacudindo a cabeça.

- Mas tampouco estivemos muito longe de consegui-lo; e não tardaremos muito em animar-nos um pouco - acrescentou Jack. - Em todo caso, agora tenho uma idéia aproximada
do que poderíamos esperar, uma idéia bastante aproximada. Que lhe parece, doutor?

- Não sabia que lutar por ambos os lados fosse tão árduo - confessou Stephen nesse tom de voz bem mais elevado que se utiliza depois do intenso fogo dos canhões,
- nem que se necessitasse de tal destreza e fosse tão perigoso devido ao retrocesso dos canhões em ambos os lados e à força que dispersam. Amiúde presenciei o fogo
de uma só descarga, que requer de uma surpreendente agilidade, mas isto supera todas minhas expectativas. Observei como atendiam no castelo tão horripilante tarefa
- assinalando com o dedo o empalletado{16} do castelo de popa e os canhões de dezoito libras da coberta superior, agora convenientemente trincados e batiportados{17},
- porém abaixo, na coberta da segunda bateria, com todas essas enormes peças retumbando no ouvido de um e toda essa fumaça, deve ser como estar no própio inferno.

- A prática converte ao aluno em mestre - observou Jack. - É maravilhoso comprovar ao que pode chegar um ao acostumar-se. Não há muita gente capaz de suportar seus
serrotes e cubetas de sangue, mas você nem sequer arqueia uma sobrancelha. - Voltou-se para dirigir-se à cabine e Stephen estava a ponto de fazer o mesmo quando
viu aproximar-se ao ajudante de cirurgião de mais antiguidade.

- Desculpe-me, senhor - disse, - mas nos preocupa muito o estado do senhor Gray, o imediato. Macaulay acredita que poderia tratar-se de um ataque repentino e agudo
de pedra; e se quer minha opinião, estou de acordo.

- Vamos lá, senhor Smith - disse Stephen. Os gritos afogados do paciente adquiriram força a medida que desciam coberta atrás de coberta. A chegada de Stephen supôs
certo alívio para ele, e Gray deixou de gritar enquanto durou o exame rápido que o cirurgião de bordo levou a cabo. Foi rápido porque não havia dúvida alguma a respeito,
mas quando voltaram a deitá-lo reiniciou as lamúrias, ainda que fincou o dente no lençol com todas suas forças, arqueado o corpo, estremecido pela dor. Stephen assentiu,
dirigiu-se para o ambulatório, pegou sua intacta tintura de láudano (em tempos seu único solaz, seu único deleite, que também esteve a ponto de converter-se em sua
destruição, pois se tratava de uma solução líquida de ópio) e algumas sanguessugas, administrou uma dose que seus ajudantes observaram boquiabertos, deu-lhes instruções
e vendas, colocou meia dúzia de sanguessugas, disse ao jovem em latim que estava completamente de acordo e que quando o paciente estivesse em condições, se sobrevivesse
até lá, relizaria a intervenção, provavelmente na primeira hora da manhã. O carpinteiro teria preparada a cadeira que necessitaria. Achava que o Archiboldo incluía
uma ilustração com medidas precisas.

Regressou ao castelo de popa, onde passeou um pouco desfrutando do suave anoitecer. A esquadra rumava su-sudeste com pouca lona, e proveniente do castelo de proa
do Stately, o barco seguinte na linha pela popa, chegou-lhe o som da música, enquanto os marinheiros dançavam a ponto de finalizar a segunda guarda do quartilho.
Em um dado momento viu a Killick na escuridão.

- Esta noite servirei para jantar um velho pato pouco assado, senhor - disse em tom amável e protetor, antes de afastar-se andando em silêncio ao longo do corrimãos
até o castelo de proa; uma vez ali trepou por meio dos amantilhos ao cesto da gávea do traquete, ampla e cômoda plataforma situada no alto, sobre o convés, onde
alas e rastreiras serviam de almofada e de onde se podia desfrutar de uma vista estupenda dos barcos que iam na frente, rumo à África, com as maiores e as gáveas
com um só cacho debaixo de um céu que já estava tachado de estrelas.

Mas Killick era tão indiferente às estrelas como o era à beleza da Laurel, a adorável e pequena embarcação de vinte e dois canhões que navegava justo a proa. Subira
ao cesto da gávea porque tinha um encontro em um dos poucos lugares de todo o barco onde se podia conversar em particular, e é que quinhentas pessoas ou mais conviviam
em um espaço de cento e setenta pés de comprimento por quarenta e seis pés e nove polegadas de largura, ao todo, quase totalmente cheio a transbordar de apetrechos,
provisões, água, canhões, pólvora e balas. Havia marcado um encrontro com seu velho amigo Barret Bonden, com quem quase não tinha trocado duas palavras desde que
a Ringle se reuniu com a esquadra. Ao chegar, observou aos jovens marinheiros que encontrou ali sentados, jogando damas, com uma expressão que parecia dar pé a jogar-lhes
o agraço no olho no momento menos pensado.

- Vão tomar no cu, companheiros - Bonden lhes disse com certa amabilidade. Obedeceram de imediato, pois a autoridade que destilava o timoneiro do comodoro não lhes
deixava outra opção.

- Que há de novo? - perguntou Killick ao apertar a mão de Bonden.

- Tudo adriçado e bem teso - respondeu Bonden. - Tudo adriçado e bem teso, obrigado. Porém diga-me, que sucede nesta casca de noz?

- Realemente quer saber o que sucede nesta casca de noz?

- Isso mesmo, companheiro. Como é que mudou a paisagem. Qualquer um diria que levamos a bordo ao diabo ou ao Velho Jarvey: olhares avesso, nem um sorriso, oficiais
nervosos, gente que anda por aí dando respingos como se fosse o dia do juízo ou viesse o almirante de inspeção. Quando nos despedimos de Pompey ainda não mantinham
as pessoas em trabalhos inúteis para mantê-las ocupadas, então havia muitos de nossos velhos companheiros de tripulação a bordo, marinheiros justos, e em geral parecia
que no barco reinava a harmonia. O que aconteceu?

- Bem - respondeu Killick, e pensou em dar uma resposta assombrosa, inclusive epigramática, mas desistiu e acrescentou: - não é somente coisa do Imperador Púrpura
e seu barco descontentadiço, que não poderia enfrentar-se a um bergantim ianque armado com vistas a aprisioná-lo se o bergantim fosse um pouco vivo, e tampouco se
deve a que o velho Stately esteja a bordo; ainda que, certamente, tudo isso ajuda. Não. A causa é a infelicidade familiar. É a infelicidade familiar o que se há
filtrado na casca de noz, adoentada casca de noz em todo caso, por muito que diga o contrário, cheio a transbordar de ignorantes marinheiros de água doce, uma porrada
de desgraçados desses aos quais os do recrutamento aprisionam, e um imediato muito enfermo sem condições de cumprir com seu dever. A infelicidade familiar, companheiro.

- Ao que se refere com isso de infelicidade familiar? - perguntou Bonden em tom grave.

- Refiro-me a que o cap... a que o comodoro e a senhora A. quebram o pau. É a isso que me refiro.

- Deus Todo-poderoso - sussurrou Bonden ao mesmo tempo que afundava as costas contra o arco do cesto da gávea, pois Killick parecia falar com conhecimento de causa.
Contudo, após um momento perguntou: - E você como o sabe?

- Bem - respondeu Killick, - um se dá conta das coisas. Não posso evitar de ouvir algumas conversações, e se juntar as peças... Ninguém poderia acusar-me de xereta...
- Bonden não fez comentário algum -... e ninguém se atreveria a dizer que não tenho em mente os interesses do capitão.

- Isso é verdade - disse Bonden.

- Bem, enquanto esteve fora nas Índias Orientais, na fodida Botany Bay, no Peru e tudo isso, a senhora A. Cuidava de tudo o que haviamos deixado aqui, refiro-me
a Ashgrove, em Hampshire; e também cuidou da propriedade de Woolcombe que o capitão herdou com a morte do general: pois o senhor Croft, Croft, o Letrado, não estava
precisamente bem, pois já era muito velho, o pobre. E anda por esses andurriais uma família chamada Pengelley.

- Pengelley. Sim, lembro-me deles.

- Agora esses Pengelley têm duas fazendas em suas terras, ambas de propriedade vitalícia do ancião Frank Pengelley, e a última vez que o capitão esteve em Dorset
justo antes de zarparmos, o ancião Pengelley lhe disse que estava preocupado com o arrendamento se morresse antes do retorno do barco à Inglaterra, isto é, preocupado
por sua família, pois era um arrendamento por duas gerações e ele já era a segunda. O muito filho de seu pai, se entende a que me refiro. - Bonden assentiu. Os arrendamentos
por uma, duas ou três vidas não eram alheios ao canto da Inglaterra do qual provinha. - Bem, pois parece que quando o capitão subiu ao seu cavalo (aquele enorme
saco de pulgas cinzento, lembra-se dele?) disse que se encarregaria do direito dos jovens Pengelley, pelo que o ancião Frank entendeu que se referia a seus filhos.
Mas quando o velho Frank morreu quando ainda não estávamos a um ano fora, a senhora entregou Weston ao seu filho mais velho William, e Alton Hill, com todos seus
caminhos de gado, ao jovem Frank, sobrinho e apadrinhado do velho, deixando com as mãos vazias ao outro irmão, Caleb.

- Esse Caleb era um bêbado ocioso e inútil, que não servia para cuidar da terra. Ainda que tinha uma filha muito bonita.

- Sim. Mas quando voltamos para casa, resultou ser que o capitão se referiu aos filhos quando falou dos jovens Pengelley, assim que a senhora e ele tiveram umas
palavras a respeito. Discutiram encarecidamente mais de uma vez. E também discutiram sobre outros mudanças que ela levara a cabo. Ao que parece morreu muita gente
em Dorset durante o tempo que estivemos fora. - Killick titubeou, incapaz de distinguir a expressão de Bonden na escuridão, antes de continuar: - Sim, esse Caleb
tinha uma filha preciosa que se chama Nan, e resulta que Nan é criada em Ashgrove. Conhece a Ned Hart, aquele que trabalha nosso jardim?

- Claro que sim. Claro que o conheço. Fomos companheiros de rancho. Perdeu um pé no velho Worcester.

- Pois bem, Ned e Nan pretendem se casar. E se Caleb puder obter esse arrendamento diz que cuidará deles. É por esse motivo que estou a par, porque Nan explica a
Ned o que Caleb pretende, e Ned me diz por eu ser próximo ao capitão.

- É verdade. Mas suponho que não brigariam por algo assim.

- Não. Mas uma coisa se somou à outra e cada vez discutiam mais. Diziam-se de tudo e mais. Recorda-se daquele pároco, Hinksey?

- Aquele cavalheiro que cortejou a senhorita Sophie faz tempo, o que jogava críquete?

- O própio. Pois bem, resultou ser que foi o pároco Hinksey que aconselhou o arrendamento e tudo o mais, todas as coisas pelas que discutiram. Ia a Ashgrove pelo
menos uma vez por semana enquanto estivemos fora, foi o que Ned disse, e agora se senta na poltrona do capitão.

- Oh.

- Ao que parece, a senhora Williams e sua companheira de trança o atendem como se fosse o senhor da casa; e as crianças também. Como um rei.

Bonden assentiu secamente. Ao que parece, o negócio atravessava um momento pouco promissor.

- De modo que trocaram palavras, e o pároco Hinksey foi citado uma e outra vez, porque Hinksey os visitava com muita freqüência. Mas isso não foi nada, nada em absoluto,
comparado com o que passou quando o capitão esteve em Londres e ela foi comer em Barham, onde a senhora Oakes cuida da estranha filha do pobre doutor...

- Não é estranha... É uma daminha encantadora como nunca seus olhos viram outra, fala com Padeen em sua língua, e como uma cristã conosco. Ri a gargalhadas quando
o casca-de-noz faz avante, trepa no cesto da gávea aos ombros do velho Mould, nunca enjoa e adora o mar. Tivemos ocasião de levar ela e a senhora Oakes ao Quebra-mar
a bordo da escuna. Uma donzelinha adorável, isso é o que é, e o doutor está contente como uma... - Mas antes de que pudesse definir a alegria do doutor, Killick
o interrompeu.

- Nan não pôde me explicar o que se passou exatamente, mas teve algo a ver com aquela seda que o capitão comprou em Java, a seda com a qual fizemos o traje de noiva
para a senhora Oakes.

- Eu costurei o corpete - lembrou Bonden.

- Bem, para esse vestido só necessitamos de uma parte do total, e o restante terminou em casa tal e como se havia planejado em primeira instância. De modo que a
senhora A. o estreou no jantar, ao qual também compareceram o pároco Hinksey e outro cavalheiro. Pois quando voltou para casa o fez em pedaços e assegurou que jamais
na vida voltaria a pôr aquele trapo, ela o deu para sua criada - que mostrou a Nan uma peça, - que assegurou jamais ter visto na vida uma tecido mais bonito.

- Não sei que conclusão sacar de tudo isto - admitiu Bonden.

- Eu tampouco soube o que pensar - admitiu po sua vez Killick. - Não até que o ocorrido passou da criada particular da senhora A., a Clapton, a suas amigas, e depois
a Nan. Ao que parece, quando o capitão voltou para ficar um dia, depois do almoço, tinha uma carta a respeito do arrendamento esperando-lhe, uma carta que não pôde
chatear-lhe mais, e ao repreender à senhora A. pelo fato de ver muito ao pároco Hinksey e por levar mais em conta sua opinião que a de seu marido, e pode ser que
também tenha dito algo mais porque se deixou levar, acho. Seja como for, foi mais, muito mais do que estava disposta a agüentar e brigou com ele como um tártaro
faria, como um selvagem, dizendo-lhe que se ia tratá-la dessa forma, acusá-la assim, ao mesmo tempo que não se privava da companhia de prostitutas, apesar de comportar-se
educadamente com ela, que maldita fosse se tinha nada mais que ver com ele; tirou o anel e lhe disse que podia... não, de fato não o disse, ainda que jogou o anel
pela janela. Mas bem poderia tê-lo dito, e pior ainda: quem teria previsto que seria capaz de pôr-se tão furiosa, de fazê-lo ir de um lado a outro, sem uma lágrima
nem uma palavra mais alta que a outra e sem quebrar nada de passagem. Enfim, isso foi justo antes de jogar-nos ao mar. Ele passou os últimos dias dormindo no caramanchão,
enquanto que a senhora se encerrou com chave no closet. Ao despedir-se não houve palavras carinhosas, embora as crianças o acompanharam até a falua e agitaram a
mão em sinal de despedida, e...

Um dos pagens a bordo assomou a cabeça por cima do anteparo do cesto da gávea.

- Senhor Killick, senhor - disse. - Grimble pergunta se já quer que sirva o pato, ou se espera pelo senhor. Diz que, de outra forma, a janta do comodoro irá para
o espaço.

 

- Killick - disse o comodoro ao mesmo tempo que lhe estendia uma molheira vazia, - diga ao meu cozinheiro que a encha com algo que se pareça, ainda que vagamente,
a um molho, ou que se atenha às consequências. O céu e a terra se associaram contra este infeliz pato ressecado - acrescentou, voltando-se para Stephen.

- O pato que carece de unção perde o direito a que o considerem como tal - admitiu Stephen. - Ainda que aqui temos algumas aiguillettes (como poderíamos chamá-las
em inglês?) procedentes do lado interno de uma criatura, que cairão muito bem acompanhadas por um trago deste Hermitage.

- Já eu gostaria de saber trinchar com tanta habilidade - disse Jack ao observar como a faca de Stephen fatiava as compridas e finas tiras. - Minhas aves costumavam
voar, espalhando o molho da maneira mais desastrosa tanto sobre a mesa como sobre o colo de meus convidados.

O único barco que me atrevi a governar virou ignominiosamente de boca para baixo - replicou Stephen. - Sapateiro a seus sapatos, já dizia Platão. Isso é o justo.

Chegou o molho, talvez um pouco claro e líquido mas adequado. Jack comeu e bebeu.

- Imagino que quererá um pouco mais - disse. - Aí tens a ave, ante você, ou, pelo menos o que resta dela. Outra taça de vinho?

- Não. Estou mais que satisfeito; e tal e como já havia dito devo guiar-me como um espartano. O mais provável é que amanhã me espere um dia terrível que, por certo,
começará a primeira hora. Mas lhe acompanharei quando sirvam o vinho do porto.

Jack comeu sem recato; eram velhos amigos, de tamanho, peso, capacidades e necessidades muito diversas, mas tampouco demonstrou ter muito apetite.

- Permite-me outra apreciação de Platão? - perguntou Stephen.

- Eu lhe peço - respondeu Jack com um sorriso fugaz que iluminou seu rosto.

- Você gostará, pois é boa. Hinksey a citou quando comi com ele em Londres e discutíamos o cardápio. "A caligrafia", disse Platão, "é a manifestação física de uma
arquitetura da alma." Se for verdade, a minha é por necessidade uma alma submetida a um contínuo puxa e afrouxa, pois até um gato rueiro repudiaria minha letra.
A sua, pelo o contrário, sobretudo no que se refere a suas cartas de navegação, possue uma clareza e uma harmonia das mais elegantes: a forma externa de uma alma
que poderia ter-se concebido no Partenón.

Jack inclinou a cabeça educadamente, e nesse momento serviram o pudim: cachorro manchado{18}. Ofereceu em silêncio uma porção a Stephen, que sacudiu a cabeça, e
comeu mecanicamente durante um tempo antes de afastar de si o prato.

Killick trouxe o vinho do porto, além de uma tigela cheia de amêndoas, nozes e uns bolinhos gelados. Jack lhe disse que podia voltar por onde havia entrado e fechar
as portas tanto da sobrecâmara como da cabine dormitório, sem reparar na surpresa com que perguntou se não tomaria café.

- Não sabia que havia comido com Hinksey - disse ao sentar-se de novo.

- Certamente que não o sabia. Foi quando tive que ir a Londres a toda pressa na escuna, e você já estava no mar. Tropecei com ele na alcova do negócio de Clementi,
aonde tinha ido comprar partituras para pianoforte e clave. Eu o achei muito entendido na matéria, capaz de trocar de opinião no tocante a Bach o velho, e eu o levei
ao Blacks, onde desfrutamos de um estupendo ágape. Teria sido ainda melhor se os soldados que abarrotavam a mesa vizinha não tivessem começado a rugir e a uivar
como possessos. Porém, concluímos a noitada em muito bons termos, conversando a respeito de Bendas na biblioteca: talvez quando terminemos o vinho poderíamos tocar
alguns dos duetos que trrouxe comigo.

- Oh, Stephen - disse Jack, - não tenho mais ânimo para a música do que tenho para a comida. Não tenho tocado o violino desde que largamos amarras. Porém, voltando
a Hinksey que opinião faz dele?

- A sua é uma companhia da mais agradável: é um erudito e um cavalheiro com grande educação, e a verdade é que se comportou muito amavelmente com Sophie quando estivemos
fora.

- Oh, não sabia, eu lhe agradeço muito, disse Jack, e em voz baixa, com um gemido, acrescentou: - Já me agradaria não ter tanto que agradecer-lhe; sem ir mais longe,
preferiria não ter que agradecer-lhe o par de cornos que me colocou.

Stephen não pareceu ter ouvido, tinha a cabeça em outra parte.

- Lembro - disse finalmente - que jogavam ao críquete e que alguém golpeou ou pegou a bola com tal destreza que se produziu um burburinho de aprovação. O cavalheiro
que estava a meu lado comentou: "Quem foi? Quem foi?", ao mesmo tempo que saltava para cima e para baixo.

"Foi esse cavalheiro tão agraciado", respondeu seu acompanhante. "O senhor Hinksey." Ao que parece o tem por um homem atraente.

- As ações falam mais alto que as palavras - disse Jack. - Pergunto-me o que verão nele.

- Oh, suponho que sua figura atlética, certamente, e sua amabilidade. Acho que reúne todas essas qualidades capazes de comprazer a uma jovem mulher. Ou a uma mulher
de certa idade, para o caso.

- Pergunto-me o que verão nele - repetiu Jack.

- Talvez minha imaginação voe com outras asas, meu amigo. Contudo, seja como for, ao que parece essa senhorita Smith, Lucy Smith, vê o suficiente nele para ter aceitado
sua proposta de matrimônio. Ele mesmo me disse, não sem certo triunfalismo modesto, ao concluir a refeição. Antes de separar-nos me confessou que o pai da dama,
um dos principais da Companhia de Índias Orientais, aprova o enlace tão decididamente que há recorrido a toda sua influência para que se nomeie bispo de Bombaim
ao senhor Hinksey, um bispo anglicano, certamente. Pode ser em Bombaim, pode ser em Madras ou Calcutá, ainda que possa ser que tenha me dito bispo sufragâneo, não
sei porque tinha a mente um pouco enturvada depois de tantos brindes. De qualquer maneira, um nobre posto nas Índias para ele e sua esposa. Jack, seguimos na região
da cerveja, né?

- Cerveja? Oh, claro que sim, vamos, eu acho... Stephen, não posso lhe dizer o quanto me alegra que me o tenha contado. Então ele vai se casar? Tive tanto medo...
Stephen, aí está o vinho do porto... Estive a um tris de despampanar-me... estupidamente, pequenas idéias mais desonrosas.

- Alegro-me de que não o tenha feito, irmão. Nem a amizade mais íntima suportaria semelhante tensão: os resultados sempre são desastrosos.

- Estou tão contente - observou Jack após um tempo; e era óbvio que se desinflava por momentos. - Porém, que me dizia da cerveja?

- Eu lhe perguntava se seguíamos na região da cerveja, no domínio, nessa parte do oceano em que a cerveja que estivamos no porto e que servimos ao ritmo diário,
absurdo, criminoso, de um galão (oito pintas!) por cabeça, segue estando disponível. Ou se por acaso a cerveja cedeu seu posto ao grogue, beberagem perniciosa onde
quer que seja?

- Acredito que seguimos com a cerveja. Não costumamos ficar sem ela até avistarmos o cume de Tenerife. Quer um pouco?

- Se é tão amável. Hoje em particular necessito desfrutar de um bom descanso; a cerveja, a respeitável cerveja de um barco, é o melhor remédio conhecido para proporcionar
sono.

Após um tempo, Jack regressou com um recipiente de quarto de galão, do qual tomaram tragos alternativamente enquanto permaneciam sentados com o olhar voltado para
popa, observando a comprida esteira iluminada pela luz da lua.

- Sabe? - disse Jack. - Não fiz nenhuma acusação direta.

- Irmão - disse Stephen, - poderia dar um chutão extraordinário no traseiro de uma mulher, e depois sustentar sem nenhuma dúvida que não esbofeteou seu rosto.

- Mesmo assim - seguiu Jack meia pinta depois, - ela não devia ter dito aquilo de sua prostituta", quando resulta que, como bem sabe, sou totalmente inocente a esse
respeito.

- Nesse caso... Mas em quantos outros não foi tão culpado como lhe permitiram sê-lo suas fraquezas? Que vergonha buscar evasivas desse modo. Foi desafortunado; mas
isso não lhe concede a superioridade moral. Nem a mais mínima superioridade moral. Seu único rumo de ação consiste em se arrastar de barriga para baixo entre bramidos
de Peccavi enquanto se golpeia no peito. E vou lhe dizer algo. Jack, tanto Sophie como você estão machucados, profundamente machucados, devido a esses condenados
ciúmes, a essa falha perniciosa que perverte a vida tanto interior como exterior; e se não se apressar pode ser que acabe por se arrepender de verdade.

- Sempre tive motivos para orgulhar-me de não ser zeloso - disse Jack.

- Durante muito tempo me orgulhei de minha beleza superior, mais ou menos por motivos iguais; ou mesmo por mais motivos que os seus - replicou Stephen, e beberam
a cerveja. Depois, quando regressou à cabine procedente do jardim de popa, acrescentou: - Mas me alegro de que não ter lhe dito. Depois me teria jogado na cara e,
de qualquer maneira, não poderia ter lhe agradado com toda a compaixão que você se achava merecedor. Pela manhã devo abrir um paciente afetado de pedra, e qualquer
desacordo matrimonial, sobretudo se se fundamenta em uma cadeia de equívocos, acho supérfluo se comparo submeter alguém a uma litotomia em alto mar, e a uma morte
mais que provável acompanhada por um medo terrível, um sofrimento sem par e a aflição... A uma aflição atroz.

 

CAPÍTULO 7

O senhor Gray se submeteu à operação com uma integridade sem par. Fisicamente não tinha outra opção, pois estava imobilizado e atado a uma espantosa cadeira, com
as pernas separadas e a barriga desnuda à mercê da navalha. Sua integridade parecia provir de outro plano, e apesar de que Stephen havia aberto mais de um paciente
- paciente na acepção que entendemos por sofredor, - jamais em toda sua vida vira nada parecido ao firme tom de voz de Gray, nem ao agradecimento tão coerente que
lhe deu ao livrá-lo das correias de couro, quando seu rosto emocionado, pálido e suado deu mostras de perder a consciência, coisa que finalmente fez.

Para Stephen lhe doía profissionalmente perder a vida de um de seus pacientes; e amiúde também lhe pesava de um ponto de vista pessoal, e o fazia durante longo tempo.
Não achou que perderia a Gray por mais que seu caso fosse tão desesperado; contudo, a infecção que arraigou no mais fundo de seu organismo foi adquirindo forças
apesar de tudo que o doutor Maturin fez, e o enterraram a duas mil braças de profundidade pouco depois de que a esquadra pegasse os alísios do nordeste. O vento,
ainda que entabulado, soprou a princípio com suavidade, e o comodoro obteve uma prova excelente das qualidades marinheiras de seus barcos: quando navegavam com brio
sem descuidar das respectivas posições, o Bellona superava ao Stately carregado de sobrejoanetes, alas e rastreiras inferiores; a Aurora podia andar mais que os
navios de duas pontes, mas a Thames quase não conseguia se manter à altura. Jack não achou que fosse devido a seu casco, nem ao relaxamento dos marinheiros que trepavam
depressa para aplicar as velas, senão bem mais pela ausência de um oficial que compreendesse as sutilezas da navegação. Escotas tesas para popa pela força bruta,
as amuras das velas para baixo e com brio, e as bolinas tesas como corda de violino desde que o vento vinha um pouco pelo través de proa: essas eram as máximas universais
de seus oficiais, seus axiomas, ainda que certamente superavam a todos os demais no referente ao brilho do metal e à pintura; não se tinha mais remédio que admitir
que já disparavam um pouco mais rápido, ainda que sua pontaria não tivesse melhorado nem um pouco. Os barcos de menor porte, a Camilla de vinte canhões de Smith,
e a Laurel de Dick Richards, de vinte e dois canhões, eram, contudo, uma delícia. Ambas contavam com um governo extraordinário, e ambas possuíam muitas das virtudes
de sua amada Surprise, pois eram boas embarcações, veleiras e tão carentes de abatimento como era possível em um barco de aparelho redondo.

- Vou lhe dizer do que se trata, Stephen - disse Jack, estando ambos de pé na galeria de popa, rodeados de estatuetas douradas pertencentes a outros tempos, de quando
se usavam casacas longas, - o barômetro disparou como uma mulher caprichosa, e nestas águas não recordo que sucedesse tal coisa sem vir acompanhada por uma calmaria
ou algo muito parecido. Durante a guarda do segundo quartilho... Oh, Stephen, sempre que pronuncio essa palavra me recordo de como o descreveste uma vez, acho recordar
que, conforme você, o quartilho era uma guarda mas esquartejada, claro, esquartejada em quatro partes, oh, ah, ah, ah, ah! Não sabe a quantidade de vezes que já
terei rido sozinho. Bem, se meus cálculos, os de Tom e os do piloto são acertados, a essas alturas teríamos que ter cruzado o paralelo trinta e um, momento em que
romperei o selo das ordens secretas. Conforme a medição que fizemos ao meio-dia nos encontrávamos tão cerca perto que poderia tê-lo feito nesse momento, mas sinto
um temor reverencial e supersticioso por tais assuntos. Não sabe como anseio encontrar boas notícias nelas: ordens de buscar ao inimigo, algo que se pareça a navegar
de verdade em tempo de guerra, coisa que com uma esquadra deste tamanho não seria estranho, em lugar de lutar em escaramuças pontuais para liberar a um punhado de
miseráveis escravos.

- Talvez esses miseráveis escravos também sejam dignos de consideração - observou Stephen.

- Oh, creio que sim. Sou o primeiro em afirmar que em nenhum caso quereria ser um escravo. Ainda que Nelson mesmo disse que se se abolisse o tráfico... - Calou pronunciando
um "Contudo", já que aquele era um dos escassos particulares nos quais diferia completamente de Nelson. - Não creia, Stephen - acrescentou pouco depois, tempo que
a Ringle aproveitou para cruzar sua esteira. Como era o navio de apetrechos do Bellona não tinha por que observar uma posição concreta na linha, desde quando se
mantivesse sempre à distância de buzina, coisa que Reade conseguia oferecendo um autêntico recital das qualidades da embarcação. - Não creia que estou descontente,
que gemo ou me mostro ingrato por desfrutar deste esplêndido comando. Mas tive pensado, refletindo e ponderando...

- Irmão - interrompeu Stephen, - com está prolixo.

-... E cheguei à conclusão de que esta esquadra é muito esplêndida para o trabalho que nos encarregaram. Além disso, há certos detalhes que não me agradei desde
o início: sua existência correu de boca em boca como se fosse celebrar-se uma partida de bola, e os jornais publicaram manchetes deste tipo: "Soubemos graças a um
cavalheiro próximo ao Ministério que este decidiu empreender uma série de medidas decididas contra o desprezível tráfico de negros, e que o valente capitão Aubrey,
disposto a que a liberdade reine tanto nos mares como em terra, encarregar-se-á de comandar uma poderosa esquadra", e o infeliz vai e dá os nomes de todos os barcos,
bagagens e portes. E esse jornal, além do Post e do Courier, também assinalou, o que era muito verdade, que a presente seria a primeira vez que se despachariam navios
de linha para cumprir semelhante missão. "Vai se empreender um esforço inflamado para varrer de uma vez por todas este vil comércio de carne humana, que redundará
em benefício do Ministério." Isso eu li em Lisboa; e depois dúzias de notícias similares. Falatórios demasiados e confusão desnecessária, amiúde excessiva e desagradavelmente
centrada em minha pessoa... chamativa. Como pretendem que os peguemos de surpresa se não fazem outra coisa além de revelar tudo aos gritos? Mas o que pretendia dizer
desde o princípio era que, quer sejam boas ou más notícias, estou tão convencido como se pode ficar de qualquer coisa que tenha a ver com o mar, que o vento cairá
ou que haverá calmaria, de tal maneira que me propus a convidar para almoçar aos capitães de navio. Pois é impossível conseguir uma esquadra um pouco eficiente sem
que exista certo grau de compreensão mútua.

- Se o que deseja é congraçar-se com o Imperador Púrpura, bastará que lhe fale de lorde Nelson, do comércio de escravos e da Armada Real. Seu cirurgião consultou
comigo a respeito da saúde de sua majestade imperial: examinei o paciente, que compartiu comigo a opinião que tem da presente empresa. Conforme ele, é uma bobagem
tentar guardar semelhante extensão de costa de norte a sul com uma esquadra de nosso tamanho. E mesmo se nos limitarmos à área geral de Whydah, por exemplo, nenhum
navio de linha nem as escassas fragatas de que dispomos poderiam apresar um barco negreiro, exceto que se faça em condições de tempo muito duro. Até o momento quase
todos eles são escunas de convés baixo, muito marinheiras, construídas sobretudo para a velocidade e governadas por marinheiros dos melhores. Porém, ainda que esse
não fosse o caso, de que serviria? Depois de resgatadas as desgraçadas criaturas, provenientes de todo tipo de tribos do interior, que não dispõem de uma linguagem
comum para entender-se entre elas e amiúde se detestam de morte, serão conduzidas a Serra Leoa ou a algum outro lugar cheio de boas intenções, onde serão informadas
do que devem fazer para pagar o devido; essa gente não há trabalhado na vida e comem tipos diferentes de alimentos. Não, não. Conforme ele, seria muito melhor, mais
bondoso, deixar que viajem amontoados, que cheguem em um abrir e fechar de olhos às Antilhas, e que ali os vendam a pessoas que não só cuidarão deles, pois qualquer
que olhe para seu própio interesse cuidará do que tanto lhe há custado, como que também os converterão em cristãos, que era o melhor de tudo, pois pelo menos os
escravos se salvariam, enquanto que o resto de congêneres que fiquem na África ou que sejam devolvidos para lá serão condenados por toda a eternidade. Então repetiu
aquilo que disse com respeito à que a abolição da escravidão suporia a destruição da Armada, e terminou dizendo que as Sagradas Escrituras aceitavam a escravidão.
Contudo, estava totalmente disposto a cumprir com suas ordens até onde fosse necessário, pois esse é o dever de qualquer oficial.

- E o que respondeu a tudo isso, Stephen?

- Não disse nada, eu juro. Houve poucos momentos nos quais pude intercalar palavra, mas de vez em quando fiz um ou outro gesto ambíguo com a cabeça. Então lhe prescrevi
uma dose que talvez o apazigue; estou seguro de que pelo menos bastará para purgar seus humores mais malignos.

- Talvez a partir de agora seja melhor companhia. Deve ser muito fatigoso isso de estar consumido em um perpétuo estado de raiva ou, pelo menos, a ponto de acender-se
ante a menor contrariedade. - O ouvido de Jack captou o imperceptível som metálico do mecanismo do relógio que Stephen guardava no bolso. - A segunda guarda do quartilho
- exclamou, e dirigindo-se à cabine fez soar a sino para chamar um guarda-marinha. - Senhor Wetherby - disse, - seja o senhor tão amável de apresentar meus respeitos
ao capitão Pullings e de comunicar-lhe que me agradaria saber a distância que percorremos desde a medição deste meio-dia.

- À ordem, senhor - disse o jovem cavalheiro, que ao cabo de um minuto já estava de volta com um pedaço de papel. Jack o observou, sorriu, entrou na cabine do piloto
para fazer uma última comprovação, e se dirigiu a passo leve para a caixa forrada de ferro que guardava em seu armário: ferro com lastro de chumbo, para todos aqueles
documentos que não deviam cair em mãos do inimigo, entre os quais se contavam sinais, códigos e correspondência oficial; caixa que afundaria de imediato sem risco
algum de que pudessem ser recuperados. Suas ordens secretas eram as mais volumosas que recebera em toda seu carreira, e comprovou com um prazer entusiasta que incluíam
os comentários e observações daqueles comandantes que o haviam precedido desde 1808, encarregados da mesma missão, pois sua relação com essa costa praticamente reduzira
a navegar ao largo tão longe e tão rápido como lhe foi possível daquele canto tão extraordinariamente insalubre do mundo, e a sofrer ventos variáveis, penosas correntes
e calmarias quando esteve perto.

Depois de inspecioná-las pela frente e por trás, acariciou com o olhar o texto escrito e a meia leitura seu rosto se iluminou com um sorriso de puro prazer. Compreendeu
com extraordinária rapidez que, após fustigar aos negreiros, devia dirigir-se em uma data concreta a uma longitude e a uma latitude determinadas, onde tinha que
reunir aos barcos listados na margem e adotar um rumo concreto, com objetivo de interceptar e destruir uma esquadra francesa que partiria de Brest em uma data igual
à sua e que, inicialmente rumaria para as Açores, mas que depois, próximos a, ou em torno dos vinte e cinco graus de longitude oeste, mudaria seu rumo para a baía
Bantry. Toda esta informação ia acompanhada por certa quantidade de reservas, às quais Jack estava acostumado. Havia captado o cerne no mesmo instante e seus olhos
repassaram o parágrafo que rematava a maioria das ordens que havia recebido. Em seu empenho podia contar com os conselhos do doutor Stephen Maturin - o qual poderia
transmitir-lhe datas e posições mais precisas, dados que este receberia através dos canais adequados - para tudo aquilo que tivesse aspecto político ou diplomático.
Ignorou a garantia conforme a qual se fracassasse ou se descuidasse de uma parte ou a totalidade do assinalado responderia por sua conta e risco (último e grato
detalhe de suas senhorias), e chamou a Stephen desde a galeria de popa, a parcela mais atraente da arquitetura naval. Apenas Stephen compareceu e o resplendor que
iluminava o rosto de Jack, no sorriso, em seus olhos, desapareceu devido a duas ou três possibilidades que lhe ocorreram. Seguro de que os franceses pretendiam levar
a cabo outra invasão da Irlanda, ou "libertação", tal como eles a chamavam, e então sentiu certo receio na hora de tocar no tema. Stephen nunca havia defendido suas
opiniões com veemência, jamais as expusera com injuriosa clareza, mas Jack sabia perfeitamente bem que preferia que os ingleses se limitassem a permanecer na Inglaterra
e deixassem o governo irlandês cuidar dos seus.

Maturin observou como mudava a expressão, contida em um rosto basicamente ruborizado, apesar de sua pele morena, rosto de olhos azuis que expeliam um brilho peculiar,
um rosto cinzelado para o bom humor, e também observou os papéis que tinha na mão.

- Creio que já saberá tudo a respeito, Stephen. - Este inclinou a cabeça. - De qualquer forma, há uma carta para você - disse estendendo-a. - Quer que visitemos
a popa?

Mesmo para um comodoro de primeira classe com um capitão sob seu comando, por muito que tal comodoro exibisse um chapéu de contra-almirante, a intimidade resultava
um bem apreciado a bordo de um barco repleto de gente tão dada à curiosidade e aos falatórios. Sobretudo tratando-se de um navio de guerra que contava entre os seus
com marinheiros tão perguntões como Killick e seu ajudante Grimble, cujas obrigações lhes permitiam aceder a lugares sagrados, e que eram grandes conhecedores de
que gradeado dava para que lugar, e que corrente de ar arrastava melhor as palavras.

O castelinho, majestoso com cerca de uns cinqüenta pés de largura por vinte e oito de comprimento, livrou-se da presença do cabo de sinais e de seus amigos, de tal
forma que Jack e Stephen puderam passear pelo convés durante um tempo.

- Não sabe por onde começar, querido - disse Stephen quando haviam dado doze voltas, - de modo que vou lhe explicar do que se trata. A questão irlandesa, tal e como
a gente a conhece graças aos jornais, poderia resolver-se a meu entender mediante a implantação de duas medidas muito simples. Primeiro, a emancipação católica.
Segundo, a dissolução da União. É possível que com o tempo se possa conseguir sem necessidade de violência. Mas se os franceses desembarcarem em solo irlandês e
se empenharem em proporcionar armas aos descontentes, armar-se-á uma população extrordinária, não haverá mais que violência e mais violência, e mesmo se isso sucedesse
poderia inclinar-se a balança a favor desse diabo do Bonaparte. Em tal caso, em que posição ficaria a Irlanda? Em uma situação muito pior, submetida a uma tirania
tão eficiente como carente de escrúpulos, católica só de nome e notavelmente ávida de butim. Pense em Roma, Veneza, Suiça, Malta... Não. Ainda que possa doer a muitos
de meus amigos, empenharei todas minhas forças em impedir o desembarque do francês. Servi por tempo suficiente na Armada como para saber quando se deve escolher
entre dois males, e eleger o mal menor.

- Não duvido disso, irmão - disse Jack olhando-lhe com afeto. - Certamente me aconselharam recorrer a você para resolver todos os pontos difíceis que possam surgir,
e quando tenha um momento lhe mostrarei toda a documentação; ainda que permita-me dizer que o Almirantado, depois de fazer notar que amiúde se produzem muitas baixas
nas costas da África Ocidental, assinala que durante a primeira fase da operação podemos reunir a bordo de um mesmo barco a todos os enfermos graves da esquadra,
e que, depois, esse barco pode rumar para a ilha Ascensão, onde durante a estação apropiada encontrará consolo nas tartarugas, além de água fresca e certas verduras.

- Ah, Ascensão... - disse Stephen, ansioso.

- E também me informaram de que o atual governador de Serra Leoa é meu velho companheiro de rancho James Wood. Recorda-se de James Wood, Stephen? Uma bala lhe atravessou
a garganta em porto Vecchio, e em lugar de falar se diria que ofega. Nós o visitamos a bordo da Hebe quando esteve nos Downs, e ele passou alguns dias em Ashgrove.

- Aquele cavalheiro tão alegre que encheu o barco com uma quantidade inconcebível de cabo, tinta e outros?

- O mesmo. Não é muito amigo dos formulários, mas gosta de jogar-se ao mar em um barco bem armado, ainda que isso suponha confraternizar com a gente de mestrança
até um ponto que lhe pareceria surpreendente. Também tem boa mão para jogar uíste.

- Lembro-me dele perfeitamente.

- É claro que sim - disse Jack, sorrindo ao rememorar a jovialidade com que subornava o capitão Wood, concretamente em uma ocasião em que adquiriu uma das âncoras
de respeito do navio almirante. - E como sabe tudo a respeito da segunda parte, não aprofundarei mais nisso - continuou dizendo em pouco mais que um sussurro, -
não direi uma palavra, melhor mantê-lo na sombra. Mas lhe falarei da primeira, que insiste na necessidade de dar um bom golpe na cabeça desses negreiros. Ordenaram-nos
fazer um estrondo de mil demônios e deixar boquiaberto a todo aquele que possa estar observando nossas idas e vindas, assim como libertar a tantos escravos como
nos seja possível. Não tenho nenhuma experiência no tocante ao último, e ainda que tenha olhado os escassos comentários dos comandantes anteriores gostaria de saber
muito mais, e acredito que perguntar será a única forma de averiguá-lo. Não é possível formular perguntas a um livro ou a um informe, mas em troca umas palavras
com o tipo que os escreveu bastarão para tirar muitas dúvidas. De modo que me propus a reunir todos os capitães e perguntar-lhes tudo o que saibam; vou convidá-los
para almoçar amanhã. - Apertou o passo e gritou em direção ao castelo de popa. - Capitão Pullings!

- Senhor?

- Vamos hastear o sinal de reunir a todos os capitães.

- À ordem, senhor. Senhor Miller - disse ao oficial de guarda. - Chame a bordo a todos os capitães.

- À ordem, senhor. Senhor Soames... - E desta guisa passou a ordem do tenente de sinais ao guarda-marinha de sinais até o suboficial encarregado de içá-lo fisicamente,
que teve tempo de sobra de preparar a adriça. Ordem a todos os capitães para que compareçam a bordo do navio insígnia. Pouco depois se desdobrou no tope, e os bergantins
repetidores de sinais o repetiram ao longo de toda a linha. A dita ordem causou consternação em mais de uma cabine. Os capitães se livraram das calças de trabalho
e das casacas de nanquim (dia caloroso aquele, com vento de popa) e vestiram suados os calções brancos, as meias brancas e o colete não menos branco, rematado o
conjunto com uma casaca azul de pano fino e rebordos dourados.

Sua chegada não respeitou uma ordem particular, ainda que foram pontuais; contudo, a falua da Thames chegou um pouco tarde, e pôde se ouvir seu capitão maldizer
ao guarda-marinha, ao timoneiro e a "esse bastardo que estava de proeiro" durante seus bons cinco minutos. Quando todos estavam reunidos no castelinho, que pareceu
a Jack um lugar mais arejado e informal que o castelo de popa, este lhes disse:

- Cavalheiros, devo informar-lhes de que minhas ordens requerem que a esquadra leve a cabo uma demonstração de força ao chegar à costa. Disponho dos informes e observações
dos comandantes anteriores que serviram neste posto, mas também me agradaria conversar com todos aqueles oficiais que tenham navegado nestas águas. Não sei se posso
contar com algum dos senhores, ou, talvez, com algum dos oficiais que estejam sob seu comando.

Burburinho geral. Cruzamento de olhares, e Jack, voltando-se para o capitão Thomas, que servira durante muito tempo nas Antilhas, onde também possuía uma propriedade,
perguntou-lhe se tinha algo em particular a dizer.

- Eu? - exclamou Thomas. - E por que eu teria algo em particular a dizer com respeito à escravidão? - Então, ao ver o pasmo desenhado nas faces dos que o rodeavam,
conteve-se, tossiu e acrescentou: - Peço-lhe perdão, senhor, se me mostrei um tanto brusco: estou nervoso depois de comprovar o quão estúpida que é a dotação de
minha falua. Não, não tenho nada em particular a dizer a esse respeito. - chegado a este ponto voltou a morder a língua, e Stephen e o senhor Adams trocaram uma
olhada esquiva; a expressão de seus rostos não se viu alterada em nem um pouco, ainda que ambos tiveram a certeza de que as palavras que se havia tragado teriam
servido de apologia ao comércio e, certamente, à própia escravidão.

- Bem, lamento que tudo isto tenha sido completamente em vão - disse Jack, observando a todos para constatar o uniforme olhar de estupidez nos rostos de seus capitães.
- Contudo, os informes de meus predecessores deixam perfeitamente claro que boa parte do serviço terá lugar perto da margem, este é um negócio que se resolve desde
os botes, de tal maneira que devo pedir a todos os oficiais presentes que se assegurem de que suas embarcações auxiliares estejam disponíveis e em bom estado, e
que contem com dotações familiarizadas em tratar com paus e navegar a vela cobrindo distâncias consideráveis. Senhor Howard, diria que anteontem lhe vi arriar o
bote com uma brusquidão inusitada.

- Isso mesmo, senhor - respondeu Howard, sorrindo. - Foi coisa do idiota do pajem de limpeza. Arpoou um bonito com tanto zelo que atravessou a portaló das miras
de proa para cair sobre o peixe, tudo isso sem soltar o arpão, cujo chicote tinha ao redor da munheca. Por sorte o bote pendia do pescante e estávamos a ponto de
estivá-lo, de modo que o devolvemos ao mar e recuperamos a única arma decente que levamos a bordo.

- Muito bem - elogiou Jack, - mas vamos, foi muito bem feito, sim senhor. E a palavra arma me recorda o seguinte: jogar rapidamente os botes na água e governá-los
bem é muito importante, mas não deve, sob nenhum pretexto, afetar nossos exercícios com os canhões, cujos resultados, como todos sem dúvida reconhecerão, ainda deixam
muito a desejar. Sem dúvida amanhã será um dia excepcional; e espero e confio que apesar do exercício os senhores disporão de tempo suficiente para acompanhar-me
durante o almoço.

Soaram duas badaladas. Killick, seu ajudante e três serventes se deslocaram com sumo cuidado até a escada do castelinho, armados os dois primeiros de bandejas com
jarras que continham as bebidas mais apropiadas para tais horas, e os outros dos copos para desfrutar delas.

A medida que se despedia dos capitães com o clamor dos apitos, Howard, amigo de Stephen, aproximou-se dele e lhe perguntou:

- Por certo, Maturin, o senhor que conhece ao comodoro infinitamente melhor que eu, saberá sem dúvida quão preciso é em o uso do termo "oficial".

- Bastante, acho. É muito sencível quanto ao costume de classes e títulos. Assim como Nelson, não suportava a sir Sydney Smith, cavalheiro da Suécia. Contudo, o
comodoro é um homem muito razoável.

- Certamente, certamente. Não sabe quanto me surpreendeu a convicção, a ordem e a clareza do estudo sobre a nutação que apresentou ante a Royal Society (Scholey
me levou), e diria que durante alguns dias não só compreendi a natureza da nutação, como inclusive a precessão dos equinócios.

- Não posso dizer que me surpreenda. É o melhor astrônomo do mundo.

- Sim. Mas voltando ao assunto. Tenho na Aurora um ajudante do piloto de derrota que já é algo veterano, chama-se Whewell. E um ajudante do piloto de derrota, como
o senhor bem saberá, não é um oficial no sentido estrito da palavra, não é um oficial de guerra. Serviu a tempos, foi aprovado no exame público, ou semi-público,
de tenente, mas foi reprovado no de cavalheiro; em resumo, depois dos oficiais que o examinaram conferenciarem em particular, decidiram que não era um cavalheiro,
e que, portanto, não podiam conceder-lhe o certificado de tenente, de modo que seguiu onde estava. Contudo, é um bom marinheiro e sabe muito de barcos negreiros
e de seus costumes.

- Em tal caso, estou completamente seguro de que o comodoro amará entrevistar-se com ele.

- Não poderia encontrar a ninguém melhor. Whewell nasceu na Jamaica, é filho de um armador. Embarcou pela primeira vez em um dos mercantes de seu pai que transportava
mercadorias e alguns escravos, e então Dick Harrison lhe levou ao castelo de popa da Euterpe. Durante a paz serviu de segundo em um dos barcos negreiros de Thomas
que cobriam habitualmente a rota, mas se encheu disso e se alegrou de voltar para a Armada. Antes de servir comigo esteve na Euryalus, de John West.

- Não sabia que o capitão Thomas fosse proprietário de escravos.

- É um negócio de familia; contudo, desde que se proibiu por lei o comércio de escravos se mostra muito sensível a respeito, e não lhe agrada que se saiba.

 

Whewell compareceu a bordo ao cabo de dez minutos, apesar de que havia tido que se barbear e pôr o melhor uniforme que tinha. Era baixinho, arrogante, tinha a cabeça
redonda, tinha em torno de trinta e cinco anos e estava longe de considerar-se atraente: a varíola lhe havia marcado o rosto com fúria, e a explosão de um cartucho
de pólvora salpicara de pontos negros seu rosto, ali onde a doença lhe havia perdoado. Tinha dentes insalubres, falhados e descoloridos. Apesar de tudo, esta feiúra
relativa não justificava sua posição atual na Armada, talvez a mais incômoda de todas, pois Jack sabia de guardas-marinhas de piores aspectos que haviam obtido a
ascensão ao serem aprovados no exame de tenente em Somerset House. Não. O problema era o tom acobreado da escassa tez que Whewell podia considerar como tal, legado
evidente de sua tataravó africana.

- Sente-se, senhor Whewell - convidou Jack, levantando-se ao vê-lo entrar na câmara. - Sem dúvida o senhor será consciente de que nossa esquadra se propôs a acabar
com o comércio de escravos, ou, pelo menos, desalentar todo o possível aos que o praticam. Disseram-me que o senhor possue um conhecimento considerável na matéria
e lhe rogo que me faça um relato breve de sua experiência. Ao doutor Maturin, aquí presente, também agradaria saber algo sobre o assunto; compreenda o senhor, nada
relacionado com a náutica ou as particularidades dos ventos que sopram no golfo de Benín, mas sobre quaisquer aspectos gerais que lhe possam ocorrer.

- Verá, senhor - disse Whewell, olhando para Jack diretamente nos olhos enquanto ordenava seus pensamentos, - nasci em Kingston, onde meu pai possuía alguns mercantes,
e quando era menino costumava amiúde embarcar em qualquer um deles para fazer o comércio com as ilhas até os Estados Unidos, ou atravessar o Atlântico até a África,
ao cabo Palmas e diretos ao golfo para buscar óleo de palma, ouro se podíamos conseguir, pimenta de Guinéu e marfim; e alguns negros se ocorresse, mas não muitos,
pois não costumávamos dedicar-nos ao comércio de escravos, ainda que sim nos convinha tratar com eles amiúde. Foi assim como cheguei a conhecer aquelas águas toleravelmente
bem, sobretudo as do golfo. Um tempo depois meu pai disse a um velho amigo seu, o capitão Harrison, que eu ardia em desejos de alistar-me em um barco de guerra,
e teve a amabilidade de levar-me ao castelo de popa da Euterpe, fundeada em Kingston naquele então. Servi a bordo durante três anos e depois segui a meu capitão
quando baldeou para a Topaze, onde me qualificou como segundo do piloto. Isso foi justo antes da paz, e por causa desta a fragata foi desarmada em Chatham. Eu me
virei para voltar à Jamaica e me dediquei ao que pude (meu pai havia deixado os negócios por então), em sua maior parte pequenos mercantes que cobriam a rota de
Guinéu e ao sul, até Cabinda, ou que cruzavam ao Brasil. Alguns negros, como de costume; mas ainda que estivesse familiarizado com os negreiros e a seus procederes,
sobretudo aos barcos grandes de Liverpool, nunca naveguei a bordo de um até que me alistei no Elkins, na baía de Montego. Os propietários tinham acordado que levasse
mestiços, descobri que era um dos principais da linha no mesmo instante em que pus um pé no convés.

- E como foi que se deu conta disso, senhor? - perguntou Stephen.

- Porque o fogão transbordava em todas as direções, senhor. Geralmente, um barco conta com caldeirões suficientes para satisfazer à dotação (neste caso, ponhamos
trinta marinheiros), mas aqui o tinham calculado para manter com vida a quatrocentos ou quinhentos escravos durante quatro ou cinco mil milhas de passagem de escravo.
Ponhamos um par de meses. E a água estava à altura. Claro que também estava aquela coberta de escravos, a prova definitiva.

- Não acho que sei a que se refere.

- Verá, não se trata de uma coberta no sentido estrito da palavra, senão a um conjunto de gradeados que cobrem todo um espaço reservado aos escravos e que permitem
arejá-la um pouco; amontoam-se debaixo destes gradeados, a uns dois pés ou dois pés e meio quando muito, sentados ou, melhor, encolhidos, geralmente em filas que
escorriam até a popa: na frente os homens, acorrentados aos pares, e as mulheres na popa.

- Quase não poderão sentar-se ainda que sejam dois pés e meio, e menos ainda pôr-se em pé.

- Não, senhor. E costuma ser menos.

- Quantos costumam levar, aproximadamente?

- Para que nos entendamos, direi que quantos possam meter. A conta habitual contempla a três escravos por cada tonelada de arqueio do barco, assim que o Elkins,
o barco no qual eu ia, podia carregar com uns quinhentos, pois seu arqueio ascendia a um total de cento e setenta toneladas. Nesse caso o podem fazer rápido. Mas
há quem os obriguem a ficar tão apertados que ninguém pode se mover, a menos que todos o façam; ademais, se não têm bom vento durante a travessia, os resultados
são terríveis.

- Quando os deixam sair?

- Não saem sob nenhum pretexto enquanto estão à distância de nado da costa. Em alto mar, saem em grupos e sempre de dia.

- E o que me diz do sanitário noturno?

- Não há tal, senhor; nenhum em absoluto. Alguns barcos varrem com a mangueira a merda e levam pessoas às bombas durante a guarda da manhã; há quem obriga os negros
a limpá-lo e, depois, a limpar o convés (todos eles andam por ali desnudos como Deus os trouxe ao mundo) com água e vinagre. Mesmo assim, um barco negreiro fede
a uma milha ou mais a sotavento.

- Não me admira - disse Stephen, - e com semelhante imundice, tanta gente respirando um ar viciado e o calor, imagino que contrairão doenças.

- Sim, senhor, isso mesmo. Ainda que os negros não sofram muito quando os capturam, depois, quando caminham até a costa e os prendem no barracão, e mesmo se não
têm que sentar-se debaixo dos gradeados durante uma semana inteira, enquanto aguardam para que se complete a carga, a fluxão se desata amiúde no terceiro ou quarto
dia, mais ou menos para quando superam os enjôos, momento em que costumam começar as mortes. Às vezes, conforme parece, morrem de pura tristeza. Mesmo a bordo de
um barco razoavelmente cuidadoso, onde açoitavam aos escravos que se negavam a comer e os obrigavam a correr pelo convés para arejar-se e estirar as pernas, recordo
sem esforçar-me muito que em alguns dias jogávamos a vinte pela borda, após uma semana de ter partido de Whydah. Não se considera extraordinário perder uma terça
parte do carregamento.

- E não prevê o patrão do barco, se é inteligente, adotar uma política mais humana com vistas a obter um benefício maior? Afinal de contas, um homem forte pode oscilar
entre as quarenta e as sessenta libras na plataforma onde se realiza o leilão.

- Esses são minoria, senhor; são aqueles que se orgulham de apresentar um gado de primeira, tal como eles dizem. Alguns inclusive possuem fazendas onde os engordam,
submetidos a cuidados médicos. Mas a maioria não o acha necessário. Os benefícios, mesmo com um terço de perdas, são tão grandes agora que o comércio é ilegal, tanto,
que o melhor para eles é carregar o barco até os topes por maior que seja o risco que corram. Sempre existe a possibilidade de que tenham bom vento no golfo e uma
travessia rápida e saudável.

- Que tipo de barcos estão presentes? - perguntou Jack.

- Bem, senhor, depois de aprovar a lei que abolia o comércio, e a chegada de uma esquadra para impô-la, a maioria dos barcos abandonaram a carreira. Há alguns poucos
bergantins muito veleiros na baía, ou na travessia de Rio desde o golfo, para não mencionar os antigos portugueses do sul da Linha, que estão protegidos, mas a maioria
dos negreiros dispõem de escunas, que navegam rápido e são muito marinheiras, e de embarcações de pouco calado. Também desfrutam dos novos clípers de Baltimore de
trezentas toneladas que hasteiam bandeira espanhola, amiúde falsa, com mais ou menos dotação americana e um patrão que diz ser espanhol, pois os espanhóis não estão
condicionados a nossa legislação. Na atualidade, parece que alguns veteranos voltaram ao negócio, depois da esquadra inglesa ter se retirado; consertaram seus barcos,
mais ou menos, para fazer a corrida da Havana. Geralmente conhecem a costa como a palma de sua mão, também aos chefes, e amiúde se aventuram lá onde nenhum estrangeiro
se atreveria a ir. Isso não impede que as embarcações de maior calado tenham que transportar aos escravos em canoas em muitos pontos da costa. Costa abaixo até o
golfo de Biafra se trabalha perto da margem porque é costa de pouca braceagem. Pântanos de mangue e lodo formam a paisagem por centenas de milhas, e há uns mosquitos
tão grandes que quase não se pode respirar, sobretudo na estação das chuvas. Constantemente se encontra uma enseada, pequenos buracos no bosque se se sabe onde buscar,
e ali se encostam as escunas pequenas, que às vezes embarcam todo o carregamento em um só dia.

- Conhece toda a costa, senhor Whewell? - perguntou Jack.

- Não lhe direi que serviria de piloto da costa entre o cabo López e Benguela, senhor, mas estou muito familiarizado com o resto.

- Então demos uma espiada na carta, e vamos descendo desde o norte. Gostaria que o senhor me proporcionasse uma idéia aproximada das condições imperantes na zona,
as correntes, os ventos, certamente, os mercados mais ativos e tudo isso. Depois, outro dia, com o capitão Pullings, o piloto e meu secretário para que tome as notas
necessárias, procederemos mais detalhadamente. Vejamos, aqui temos Serra Leoa e Freetown... Doutor - disse, - certamente o senhor pode ficar se desejar; contudo,
devo advertir-lhe que a partir de agora nossa discussão versará sobre os aspectos puramente náuticos, negócio chato para um homem do interior.

- E o que lo faz o senhor considerar-me como tal, comodoro, diga-me, eu lhe rogo? A água salgada corre por minhas veias como se fosse um arenque em escabeche. Contudo,
a enfermaria me reclama - acrescentou consultando seu relógio. - Tenha um bom dia, senhor Whewell. Espero que um dia destes tenha tempo para falar-me um pouco dos
mamíferos da África Ocidental. Tenho entendido que existem não menos que três espécies de pangolim.

 

No dia seguinte devia celebrar-se o almoço do comodoro em companhia de seus capitães. Foi um dia esgotador, muito mais do que puderam expressar com palavras quem
se alojava a popa, devido à incessante, esquiva e conflituosa atividade do despenseiro do comodoro, Preserved Killick, seu ajudante Grimble, os cozinheiros do capitão
e do comodoro e tantos marinheiros como puderam recrutar-se para esfregar, enxugar, abrilhantar, substituir e levar a cabo os preparativos com o maior rigor, tudo
isso rematado por uma bateria de maltratos e injúrias formuladas uma atrás da outra, geralmente gritando. Jack foi desterrado ao castelo de popa, onde aproveitou
para mostrar aos mais jovens o modo correto de manejar um sextante e examinar a quem morava no camarote dos guardas-marinhas sobre os conhecimentos que possuíam
das estrelas principais para a navegação astronômica. Stephen não teve mais remédio que refugiar-se na coberta dos alojamentos, onde leu com atenção as anotações
de seus ajudantes, até que irrompeu o pajem de limpeza, que lhe informou de que o cirurgião do Stately havia transbordado com a intenção de ver-lhe.

O senhor Giffard e Stephen tinham uma boa relação, suficientemente boa, em todo caso, para que o senhor Giffard se sentisse incômodo quando tentou convencer a Stephen
de que a sua não era uma visita normal, que não fora para lhe pedir emprestado uma garrafão de melaço de Veneza ou a centésima parte de uma arroba de sopa portátil
e um pouco de tripa. Depois de manter uma tediosa discussão sobre os alísios, Giffard lhe perguntou se poderiam conversar em particular. Stephen o levou de volta
à coberta dos alojamentos, para sua diminuta cabine; uma vez lá, foi Giffard que iniciou a conversa.

- Acho que poderia considerar-se este tema adequado para dois homens de medicina: confio em não atraiçoar ou ofender a discrição profissional se lhe digo que nosso
capitão é um pederasta, que introduz de noite em sua cabine aos marinheiros mais jovens do traquete, que os oficiais estão muito preocupados, pois estes jovens são
muito favorecidos, coisa que com o tempo socavará por completo a disciplina. A coisa já anda muito frouxa, mas titubeiam sobre se devem empreender ou não medidas
oficiais, o que acabaria necessariamente em um enforcamento ignominioso, além de dinfamar a embarcação. Confiam na possibilidade de que umas palavras em particular
com o comodoro obtenham o efeito desejado. Um homem de medicina, um amigo e velho companheiro de tripulação...

- Não vou fingir que não lhe entendi - disse Stephen, - mas devo informar-lhe que detesto a um delator tanto ou mais como possa detestar a um sodomita, isso se é
que realmente detesto aos sodomitas, evidentemente, porque basta pensar em Aquiles e em uma centena de sodomitas ilustres como ele. É verdade que em nossa sociedade
tais relações se encontram fora de lugar a bordo de um navio de guerra... Apesar disso, o senhor não aduz nada além de um sem-fim de probabilidades. Por caso a reputação
de um homem deve ver-se esfregada pelo chão por uma simples relação de possibilidades que, além disso, são de segunda mão?

- Pense no bem da Armada - aduziu Giffard.

- Certo - disse Stephen, que interrompeu sua réplica para elevar o tom de voz: - Entre.

- Por favor, senhor - disse um pajem de limpeza. - O senhor Killick me encarrega de perguntar-lhe se não pensa em pôr a camisa de babados. Está com ela na mão a
meia ampulheta ou mais.

- Jesus, Maria e José - exclamou Stephen, levando a mão ao lugar onde devia encontrar-se o relógio que havia esquecido no jardim de popa. - Senhor Giffard, peço
que me perdoe... Acha adequado que lhe informe mais adiante de minha decisão, quando tenha podido considerá-la com mais calma?

 

A capacidade de confeccionar com celeridade uma camisa de cambraia sob medida e enfeitá-la com um peitilho de babados, para depois passar esse mesmo peitilho até
conferir-lhe uma tensa perfeição, parecia coisa bastante improvável em alguém tão tosco como Killick; contudo, era um marinheiro, e mais hábil com a agulha do que
um homem de sua profissão costumava ser, de modo que nem ele nem ninguém o consideraram fora de lugar.

Portanto, Stephen aguardou de pé no castelo de popa do Bellona a chegada dos convidados, vestido com tão elegante camisa. Os nomes das embarcações foram anunciados:
a Thames, a Aurora, a Camilla, a Laurel, a medida que os capitães destas chegavam na falua correspondente, um atrás do outro, saudados com o toque do apito a modo
de boas-vindas. Estavam todos presentes quando apareceu a falua do Stately, governada pelo orgulhoso timoneiro de Duff, acompanhado por um guarda-marinha com um
chapéu adornado por um laço dourado e vogada por dez jovens remadores, enfeitados até o paroxismo da elegância e o esplendor náuticos: calções brancos apertados
com galões nas costuras, camisas com bordados, lenços de pescoço vermelhos, chapéus de palha de aba larga e tranças serpenteantes. Com as palavras de Giffard em
mente, Stephen os observou com atenção. Separadamente não havia nada que chamasse a atenção naqueles marinheiros, mas considerou algo estranho o fato de que usarem
um mesmo uniforme. E não foi o único. Jack Aubrey deu uma espiada na falua depois de cumprimentar ao capitão Duff, riu com vontade e disse:

- Palavra, senhor Duff, que o senhor terá que cuidar do aparelho dessas senhoritas, antes que algum grosseiro comece a ter idéias cômicas a respeito. Já acho ouvir-lhes
dizer: "sodomizai-los amanhã" e citar depois o Artigo vigésimo nono. Oh, ah, ah, ah!

O almoço foi às mil maravilhas, e mesmo o Imperador Púrpura, consciente de sua capacidade para meter a pata e fiel devoto de seu estômago, havia se proposto a mostrar-se
agradável. Uma sessão de pesca das aberturas da câmara dos oficiais servira para fazer-se com um esplêndido exemplar jovem de peixe espada; o gado do comodoro, três
pares de aves e uma ovelha; sua adega, uma quantidade considerável de clarete, forçosamente quente mas com a qualidade suficiente para fazer as honras; e o novilho
de Jérsei, um doce frio feito com nata, licor e suco de limão; também se serviu um queijo aceitável e bolos de amêndoas, com os quais os convidados puderam contornar
a tormenta provocada pelo vinho do porto.

Stephen desfrutou muito da refeição sentado, a um lado, junto a Howard - com quem pôde conversar sobre Safo e as alegrias que lhe havia proporcionado o sino de imersão,
- e, pelo outro, com um oficial da infantaria da marinha que conhecia a um número surpreendente de membros do mundinho literário londrino e que, para seu enorme
prazer, falou-lhe do romance do senhor John Paulton, romance que todo mundo elogiava nesse momento, obra dedicada, curiosamente, a um cavalheiro que tinha o mesmo
nome que o doutor Maturin e que sem dúvida devia tratar-se de algum familiar de Stephen.

O capitão Duff estava sentado em frente dele e tiveram ocasião de trocar algumas palavras amistosas; mas não mais, já que a mesa era muito esplêndida e o rumor da
conversa não fazia honra a tal apelativo. Apesar de tudo, em ocasiões, quando seus interlocutores estavam empenhados em outro assunto, Stephen aproveitou para inspecionar
seu rosto, seu comportamento e conversa: Duff era um homem inusualmente atraente e de aspecto viril, de uns trinta e cinco anos e mais corpulento que a maioria,
sem um só indício dos traços que costumam associar-se aos afetos pouco ortodoxos; a grosseria do comodoro não pareceu afetar-lhe nem um pouco, e em ocasiões Stephen
se perguntou se os oficiais do Stately não estariam completamente equivocados. Era óbvio que se tratava de um homem cordial, tanto como costumavam os oficiais de
guerra ser, disposto a comprazer e a ser comprazido. Definitivamente, um bom interlocutor. Stephen sabia que havia combatido em um de seus comandos, uma fragata
de trinta e dois canhões de doze libras, e que o fizera com distinção. Contudo, houve alguns momentos nos quais lhe pareceu observar certa ansiedade, certo desejo
de aprovação.

"Se seus oficiais estão certos - refletiu Stephen quando tiveram que brindar à saúde do rei, - quanto anseio que o comentário aparentemente cândido e inocente de
Jack lhe sirva de advertência."

Todos os presentes tomaram o café no castelinho, de pé com as xícaras na mão, desfrutando da brisa. Antes de despedir-se do comodoro, Duff se aproximou de Stephen
para dizer-lhe que esperava poder ver-lhe em terra, quando chegassem a Serra Leoa.

- Eu também o espero, verdade que sim - respondeu Stephen, - ainda que também espero poder observar algumas das aves, bestas e flores desta zona. Levamos a bordo
a um jovem oficial bom conhecedor do ambiente, a quem pedi que me fale de tudo isso.

 

Mas passou muito, muito tempo antes de que o senhor Whewell pudesse contar ao doutor tudo o que sabia com respeito à fauna da África Ocidental, já que dia atrás
de dia esteve encerrado com o comodoro e seus oficiais em chefe enquanto a esquadra singrava lentamente para o sul. Geralmente, aquela era a parte mais agradável
da viagem em um barco estanque, empurrado pelos alísios sob um sol intenso que ainda não merecia o qualificativo de sufocante, pois não fazia falta tocar uma escota
ou uma braça e os marinheiros no convés confeccionavam de dia a roupa de verão, enquanto que de noite bailavam no castelo de proa. Contudo, as coisas haviam mudado,
haviam mudado muito, haviam mudado mais do que o mais veterano dos marinheiros era capaz de recordar. O comodoro, imitado pela maioria de seus capitães, começara
a preparar a esquadra: "Não há um minuto a perder", observou depois de ordenar que hasteassem o sinal correspondente para que a Thames largasse mais trapo; e estava
claro que tinha razão. Nem mesmo seu própio barco, superior em capacidade artilheira graças à presença de um forte contingente de antigos marinheiros da Surprise,
era tão rápido como a Thames na hora de jogar, dotar e armar todos os botes, e mais de uma palavra inconveniente trocou o capitão Pullings com seus tenentes, segundos
do piloto e guardas-marinhas, palavras que passaram de uns para os outros, às vezes impregnadas de um aquecimento excessivo. Todo o negócio de jogar os botes ao
mar com prontidão, assim como envergar os mastaréus de joanete em treze minutos e cinqüenta e cinco segundos, ou desenvergá-los em dois minutos vinte e cinco segundos,
era algo de tantos exercícios de porto com que destacava qualquer comandante do posto das Antilhas. Ainda que as gentes da Thames não pareciam conscientes do que
fazer quando se encontravam na água embarcadas nos botes (além de vogar), sua velocidade deixava em ridículo o restante dos componentes da esquadra.

Dia atrás de dia suavam muito com os exercícios de artilharia, com as práticas de armas leves e com esse exercício de jogar os botes, embarcar e vogar que, amiúde,
incluía também o transbordo de caronadas nas embarcações auxiliares de maior calado. Todas estas atividades, que não só deviam ser, como que eram adequadamente cronometradas,
eram realizadas junto com o resto dos trabalhos habituais, e ainda que afundaram os marinheiros em um estado parecido com a letargia durante os primeiros dias, produziu-se
uma descida considerável em toda a esquadra do número de tripulantes que faltavam ao dever, inclusive em um barco desafortunado como a Thames: quase não houve bêbados,
nem brigões, nem burburinhos (o pior crime de todos).

Desde o princípio entrou em jogo o afã de emulação, feito com brvura, e em uma ocasião Stephen viu a Joe Plaice, seu amigo alto, gordo e calvo, jogar o chapéu no
convés e saltar em cima lançando um juramento desmedido, quando o guarda-marinha do cúter azul, depois de comparar as marcas, afirmou que a Laurel os tinha superado
em seis segundos na hora de cruzar as vergas superiores. Certamente, Jack Aubrey, testemunha dos olhares pétreos com que os outros receberam a bordo a dotação da
falua, às vezes se perguntava se a rivalidade não estaria alcançando um ponto sem retorno; contudo, não tinha tempo para pensamentos abstratos, pois passava a maior
parte do dia com Whewell, John Woodbine - piloto do Bellona e excelente navegante, - o senhor Adams e, em ocasiões, o própio Tom Pullings, repassando as cartas,
anotando os comentários de Whewell, cotejando-os com a documentação do Almirantado, e tentando em seu foro íntimo planejar uma breve e surpreendente jogada de abertura
para a campanha contra os negreiros, campanha destinada a impressionar à opinião pública. Breve, breve, por força tinha que ser breve. Estava obcecado com temor
de faltar a seu encontro com os franceses, verdadeiro objetivo da expedição, e sabia - quem melhor que ele para sabê-lo? - que praticamente toda a costa africana
que lhe concernia era pouco confiável do ponto de vista do vento, em particular os temíveis golfos. Se tudo se desenrolasse como esperava mas se ao pôr rumo norte
a esquadra se visse presa nas calmarias, com as velas flácidas, sem fazer avante, enquanto que os franceses navegavam para o noroeste, para a Irlanda, procedentes
de algum ponto próximo às Açores - pois fintariam nessa direção, como se sua intenção fosse a de atacar as Antilhas, - estava disposto a enforcar-se do pau maior.
Por outro lado, tinha que fazer o possível por cumprir com suas ordens, e não só isso, também tinha que deixar-se ver e ouvir enquanto cumpria com seu dever.

A morte de Gray abrira uma vaga entre os tenentes do Bellona, e seu modo de solucioná-lo foi proporcionando uma capacitação temporal a Whewell. Sabia que alguns
de seus jovens cavalheiros se sentiriam muito agravados por isso, pois uma capacitação temporal concedida por um comodoro tinha todos os reflexos de ver-se confirmada
pelo Almirantado; mas não podia passar sem os excepcionais conhecimentos e os contatos de Whewell, sua compreensão dos assuntos tanto tribais como mercantis em toda
a costa, e sua capacidade para as línguas. Além disso, simpatizava com Whewell antes de ter se acostumado ao seu desagradável sorriso, e não só por ter idéias claras,
uma inteligência aguda e uma compreensão do mar própia de um oficial, mas por sua forma de ser. Aquelas reuniões de planejamento amiúde solapavam as horas estabelecidas
para as refeições, assim que Jack e seus colegas as celebravam ali mesmo sem interrupção, e inclusive chegaram em ocasiões a prescindir por completo do sacrossanto
almoço.

Tudo isto devolveu a Stephen ao lugar que por natureza devia ocupar na economia doméstica a bordo: o cirurgião era mais um membro da câmara dos oficiais. Ainda que
a câmara do Bellona fosse um apartamento longo e atraente, com uma esplêndida galeria de popa própia, amiúde lhe parecia excessivamente concorrida. Na qualidade
de navio insígnia levava um tenente e um oficial da infantaria da marinha a mais, de modo que quando Stephen fazia ato de presença, geralmente tarde, era o décimo
terceiro a sentar-se à mesa, o que tirava de suas rotinas a seus companheiros de rancho e aos membros do serviço. Raras vezes comera antes ali, assim que a duras
penas todos sabiam do que gostava. Todos sabiam que que era amigo íntimo tanto do capitão como do comodoro, e se dizia que era mais rico que ambos, o que constituia
outro motivo de reserva, tanto mais porque não parecia amigo de falatórios e amiúde parecia completamente ausente.

Resumidamente, sentia-se um tanto coibido em companhia dos presentes, companhia que, curiosamente, ou pelo menos isso lhe pareceu, não incluía a nenhum de seus antigos
companheiros de tripulação. Pois também considerava insuportável o papo furado e as anedotas intermináveis de dois dos tenentes de infantaria da marinha, para não
mencionar os truques de mágica que o contador se empenhava em fazer, optou por apresentar-se no final da refeição, ou levar algo em um lenço para a cabine do cirurgião,
situada abaixo, bem longe, na enfermaria da coberta dos alojamentos.

Desde a viagem a A Corunha, Stephen se sentira arrebatado por uma profunda felicidade, tanto dormindo como acordado. A sua felicidade era subjacente, disposta a
aflorar à superfície em qualquer momento. Contudo, mais que tigida se via acompanhada de certa saudade pela vida no mar que conhecera até o presente, a vida de um
povoado onde se conhece ao restante dos habitantes, onde, a força de tratá-los continuamente, o normal era dar-se bem praticamente com todos eles. Um povoado cuja
geografia, a pesar de complexa, seguia uma lógica marítima, própia, e que, com o tempo, tornava-se tão íntima como a de um lar.

Contudo, um navio de duas pontes era uma cidade, e se necessitaria de um período de serviço extenso para vislumbrar uma pálida sombra da mesma liberdade e companheirismo
entre seus seiscentos habitantes (incluídos os supernumerários), se é que isso podia chegar a ser possível. Aí estava o caso do Worcester, como não, e do horrível
e velho Leopard; mas sua passagem pelo primeiro foi uma experiência breve e variada, enquanto que o segundo, pouco maior que uma fragata pesada, havia desembocado
em tal riqueza de conhecimentos em filosofia natural, tanto das criaturas como da escassa vegetação do Antártico, que quase não estavam à altura de figurar como
exemplos do que sentia no momento presente.

"Não só a disparidade de tamanhos é o que marca a diferença - refletiu deixando sua cabine para desfrutar de um pouco de ar fresco antes de fazer a ronda, - também
a marca a presença desta outra dimensão, este piso adicional, ou coberta."

A medida que as palavras apareciam em sua mente e que seus passos lhe conduziam escadas acima até que sua cabeça assomou por cima da coberta em questão, teve uma
nova oportunidade desde que vivia no mar de admirar e se maravilhar. Todas as portalós dos canhões estavam abertas de par em par; a luz intensa do sol minguante
se refletia em um mar calmo e ondulado que inundava com sua claridade todo seu campo de visão; a cena estava banhada por um tom de luz dourado, sutilmente matizado
pelos paus, e a cada lado se encontravam dispostas as filas precisas formadas pelos enormes canhões de trinta e duas libras, enquanto que o extremo ficava coberto
pela proteção de lona que protegia a enfermaria. Todo o conjunto, em sua perfeita e simétrica simplicidade, desenhava um enorme natureza-morta tão satisfatório como
jamais o tinha visto.

- Que tipo de exercício terá desembocado nesta maravilhosa pompa? - perguntou em voz alta. Todo tipo de exercícios tinham lugar continuamente nos barcos da esquadra,
coisa que sabia perfeitamente bem, dado o número de baixas que acabavam na enfermaria: entorses, fraturas de pé, os habituais casos de hérnia, e as queimaduras provocadas
pelo uso da pólvora; contudo, ignorava o que havia motivado aquela esplêndida vacuidade luminosa, aquele odor de sal, breu e de mecha de combustão lenta.

A natureza-morta mudou ante seu olhar, trocou de forma surpreendente depois da irrupção de um garoto que surgiu em sua totalidade por uma escotilha situada na proa,
a estibordo, e que passou a correr para a popa.

- Finalmente lhe encontro, senhor! - exclamou para assegurar-se de contar com toda sua atenção. - Estive procurando-lhe por toda parte. O comodoro me pediu que lhe
transmita suas saldações, e me ordenou comunicar-lhe quanto o alegraria ver ao doutor Maturin no castelinho, contanto que lhe vá bem ao senhor.

- Obrigado, senhor Wetherby lhe peço que comunique ao comodoro com todos meus respeitos que assim que tenha dado uma espiada na enfermaria terei a honra de esperá-lo
acima.

 

- Ah, Stephen, aí está - exclamou Jack. - Faz séculos que não o vejo. Como anda?

- Admiravelmente bem, obrigado. A enfermaria me produz uma satisfação enorme. Mas não acredito que possa lhe felicitar pelo bom aspecto que tem - acrescentou empurrando
Jack par baixo da luz para poder observar bem seu rosto.

- Que eu recorde, nunca felicitou por meu aspecto. Acho que me sentiria muito incômodo se começasse a fazê-lo agora.

- Não. Acontece que superou com folga a palidez doentia que a sisuda reflexão costuma provocar em um homem, coisa à qual, efetivamente, não estou acostumado. Esteve
trabalhando em excesso: muito estudo e demasiada observação. Deixe-me ver a língua. Seca, muito seca, diabo, como está seca! O hálito está um pouco fedido. Deixou
talvez de tomar seu banho matinal, de subir ao meio-dia aos diversos cestos da gávea, de passear três milhas antes de retirar-se para a cabine?

- Sim, isso mesmo. Em primeiro lugar porque há uma quantidade grande de tubarões; Whewell assegura que abundam nas rotas dos negreiros. Em segundo e terceiro lugar,
porque quase não tive ocasião de estirar as pernas fora da cabine. Estive terminando um plano de campanha com muita atenção e urgência, porque, verá, ainda que tenha
me proposto a fazer tudo o que razoavelmente possa ser feito no tocante à escravidão, quero fazê-lo rápido, deixando todo o tempo possível para o resto, você sabe.
Ficaremos como palhaços se faltamos ao nosso encontro.

- Espero de todo coração que esteja satisfeito com os progressos.

- Bem, Stephen, pode lhe parecer uma gasconada mas devo admitir que sim. Com a ajuda desse excelente jovem, Whewell, Tom, o senhor Woodbine e eu planejamos uma série
de movimentos que, com um pouco de sorte, nos proporcionarão a vitória. Só o que lamento de verdade é que não vejo nem a mais remota possibilidade de produzir uma
prodigiosa bulha nada ao chegar, tal e como suas senhorias me ordenaram.

Antes de continuar, baixou o tom de voz e conduziu o doutor para a popa, até situar-se junto a um dos esplêndidos faróis que havia ali, farol que se balançava e
cabeceava ao ritmo cadenciado do barco.

- Se me deseja miserável, inclusive blasfemo, dizer que minhas ordens poderiam ter sido escritas por um bando de homens do interior, acostumados à regularidade da
viagem em carro postal, ou à navegação por um canal interno. Apesar de tudo, por outro lado, uma parte de suas senhorias são simples políticos de água doce, se bem
as ordens chegam finalmente às mãos do secretário, aquele asno de Barrow, assim como a certo número de auxilares que nunca pisaram no convés de um barco, mas deixe
estar. Não será a primeira vez que recebo ordens que não levam em conta nem o vento nem a maré, assim como ocorre com o restante dos oficiais da Armada. Não me queixo.
Mas o que me custa horrores compreender é como diabo pretende o ministério que pegue aos negreiros de surpresa quando nossa expedição foi anunciada aos quatro ventos
em meia dúzia de diários de todo o mundo, incluído o TheTimes. E não me diga que esses parágrafos apareceram publicados sem conhecimento prévio de Whitehall. Não,
só o que me ocorre é realizar um exercício em toda regra com os canhões longos, quando chegarmos diante da população. Pelo menos ouvirão um estrondo de mil demônios.
O que não poderia ser mais irritante, porque Whewell me disse que quando a esquadra inglesa anterior se retirou, os negreiros voltaram à carga, inclusive no rio
Galinhas e na ilha Sherbro, junto a Freetown, e com um pouquinho de discrição poderíamos aprisionar a meia dúzia embarcando escravos no estuário. Contudo, amanhã
despacharei a Ringle para dispor de um barco na zona. Com este vento, quase não tardará um dia em chegar.

- Não estará cometendo uma injustiça com o ministério, meu amigo? Imagino que devem ter pensado que se bem alguns agentes de Inteligência franceses figuram entre
os leitores mais atentos do Post e do The Times, poucos negreiros figurarão entre seus subscritores; enquanto que os franceses, convencidos de que se encontra ocupado
ao sul da linha do trópico - convicção reforçada por informes do estrondo que tanto lhe preocupa, - teimarão com suas tretas truhanescas, quer dizer, seus planos,
apesar da presença em águas próximas desta esquadra.

- Oh! - exclamou Jack. - Realmente acha que poderia tratar-se disso?

- Não seria a primeira vez que uma estratagema parecida colha êxito. Isso sim, deve fazer-se com toda a delicadeza possível, ao risco de que quem se excede se veja
excedido.

- Eu é que me excedi, ainda que acredite ter um conhecimento tolerável do mundo. Sem dúvida Whitehall conta com alguns cérebros mais entendidos que eu, e melhor
será que me dedique à navegação e ao violino. Deus, aqui me tens - disse rindo com vontade, - disposto a jogar a política. - Seguiram caminhando um pouco e acrescentou:
- Eu lhe serei sincero, Stephen: a música ferve em meu interior desde o preciso instante em que me falou desse honesto e simpático cavalheiro, Hinksey. Deseja que
toquemos esta noite?

 

O doutor Maturin possuía muitas das virtudes própias de um homem de medicina: escutava tudo aquilo que seus pacientes lhe diziam; desejava de boa fé que mesmo os
mais repulsivos se recuperassem, desde quando se submetessem a seus cuidados; não importava o que lhe pagassem; e, afinal de contas o que tinha lido e de tudo o
que havia experimentado, era plenamente consciente de suas limitações, consciência que amiúde dissimulava, ainda que só fosse com objeto de preservar seu ânimo em
todo o possível: acreditava firmemente nos poderes curativos da alegria, ou, melhor, da hilaridade. Apesar de tudo tinha seus defeitos, e um deles era o costume
de medicar a si mesmo, geralmente movido por seu afã filosófico, tal e como fez, por exemplo, durante o período em que inalou ingentes quantidades de óxido nitroso
e vapor de cânhamo indiano, para não mencionar o tabaco, todas as variedades do bhang, que é como conhecem na Índia ao cânhamo, do betel de Java e ilhas vizinhas,
do cat narcótico do mar Vermelho e dos cáctus alucinógenos da América do Sul, ainda que em ocasiões também o fez movido pela angústia, como quando se tornou viciado
em ópio em qualquer de suas formas. Agora se envenenava com a folha de coca, cujas virtudes havia descoberto no Peru.

Ele as mastigava com um traguinho de lima; levava as folhas em uma bolsa de couro, e a lima em uma caixa peruana em forma de coração, ainda que de um tempo para
cá observara que seus efeitos diminuíam, coisa que atribuía ao tempo que fazia que as tinha. Não parecia experimentar os mesmos efeitos anestésicos em sua boca e
faringe. Podia ser que não fosse mais que o resultado de ter se habituado à substância, mas decidiu que quando a esquadra chegasse ao Brasil conseguiria mais para
abastecer-se de novo e, aquela noite, pois desejava tocar bem, tomou uma dose inusualmente forte. Tocou bem. Ambos o fizeram, e também ambos desfrutaram da música.
Porém, quanto o comodoro, agoniado pelo trabalho, o vinho do porto e o queijo, adormeceu de imediato assim que sua cabeça repousou no travesseiro de sua balançante
maca, Stephen descobriu que as folhas de coca lhe haviam despertado como sempre. De fato, superavam em muito ao café na hora de tirar da cabeça de um a vontade de
dormir. Como desejava escrever suas notas pela manhã, tomou um trago de um potente sonífero, além de um bolo de mandrágora de Java, e introduziu umas bolinhas de
cera em seus ouvidos para evitar ouvir os ruídos do barco, a troca da guarda, o eventual esfregar com pedra arenito do convés, e o rangido e estampido das bombas.
A prática tinha desenvolvido certa habilidade neste exercício; contudo, era, de certa forma, uma criatura muito simples, e não percebera que, ao despertar a cada
novo dia, tinha envelhecido um dia mais, e que, portanto, seu corpo de meia idade dificilmente poderia assimilar uma combinação como aquela, própia de um jovem vigoroso.

Normalmente era difícil despertá-lo em tal estado. E naquele dia resultou ainda mais complicado.

- Peço que me perdoe, senhor - disse Wilkins, o ajudante do piloto de maior antiguidade, - mas não há forma de despertá-lo. Tirei os lençóis, mas fez gesto de morder-me,
e depois voltou a se enrolar, por mais que tenhamos gritado ao seu ouvido e sacudo sua maca.

Foi Killick que o levou por fim ao convés, a meio vestir, mas sem barbear; estava abobado, ressentido e pestanejava devido à luz.

- Ah, o senhor está aqui, doutor! - exclamou Jack em voz muito alta. - Bom dia. Confio em que tenha podido dormir a gosto.

- O que aconteceu? - perguntou Stephen, olhando ao seu redor com o cenho enrugado. A esquadra estava a pairar, e em metade da formação, amainadas as gáveas, viu
um mercante desproporcional de bandeira espanhola, situado um pouco a barlavento do Bellona. Enquanto o observava o vento trouxe um fedor nauseabundo que se estendeu
por todo o convés, de modo que não lhe surpreendeu nem um pouco ouvir Jack dizer que era um negreiro.

- O senhor Whewell conhece esta embarcação, a Nancy, que pertenceu a Kingston antes de que a vendessem. O patrão não tardará em subir a bordo. Gostaria que o senhor
fizesse o possível para distinguir a que nação pertence, e que dê uma espiada em sua documentação caso seja estrangeira. (Deus, quanto anseio que seja mais falso
que Judas) - acrescentou em voz baixa, de tal forma que só Stephen pudesse ouvi-lo.

A bordo do navio negreiro tinham aceso a fumaça dos fogões; havia muitas mulheres nuas e crianças negras no convés; jogaram lentamente o bote ao mar, e quando a
borda do sol refulgiu sobre o horizonte, o patrão do mercante subiu a bordo com os papéis do barco e um intérprete.

- O senhor fala inglês, senhor? - perguntou o capitão Pullings.

- Muito pouco, senhor - respondeu o patrão com sotaque estrangeiro. - Ele traduzirá.

- Porém, o senhor fala espanhol? - perguntou Stephen nessa língua.

- Oh, sim, sim, senhor - respondeu ao mesmo tempo que ria.

Trocaram algumas frases. Stephen pegou o passaporte que levava e depois de dar-lhe uma espiada o jogou na água. O homem soltou um uivo e fez gesto de jogar-se atrás
da documentação, mas se conteve em vistas do povoado que estava o mar.

- É um impostor - disse Stephen. - Um inglês. Não sabe nada de espanhol. Sua documentação é falsa. O senhor pode aprisionar tranqüilamente o barco. - E a Jack: -
Subamos a bordo.

Jack consentiu e chamu a Whewell.

- Nada como o amanhecer para estes descobrimentos - disse ao mesmo tempo que os remadores manejavam a falua. - Quantas vezes terei encontrado uma presa a sotavento,
justo antes das primeiras luzes.

Mas mudou o tom de sua voz por completo quando se aproximaram do mercante: o fedor se intensificou, a água parecia mais hedionda, e guardou um abrupto silêncio ao
ver que jogavam a duas meninas mortas, de pele macilenta, pela borda. Por um instante, alguns tubarões um pouco maiores que as meninas disputaram a presa com vontade,
até que um tubarão enorme, que surgiu por baixo da quilha, despedaçou-as.

Os negros não compreendiam o que estava sucedendo: não o entenderam como um resgate, mas como uma mudança em seu estado de cativeiro, provavelmente para pior; estavam
assustados e também tinham uma fome e uma sede desesperadas. Whewell tentou tranqüilizá-los recorrendo a línguas variadas e também à língua franca da costa: além
de algumas crianças, ninguém lhe acreditou.

Ainda não haviam soltado os homens, mas ao levantar os gradeados apareceu o primeiro grupo pela escada, gaguejando. Caminhavam retorcios e inclinados, depois de
passar toda a noite espremidos em um espaço diminuto, com dois pés e seis polegadas no máximo até dar com a cabeça contra o teto. Jack, Stephen, Whewell e Bonden
desceram sob o convés, onde imperava um fedor irrespirável, vigiados pelos inquietos marinheiros do negreiro, que empunhavam os chicotes com torpeza e indecisão.
Os escravos que estavam mais a popa saíram, quase sem dirigir-lhes o olhar, esfregando-se joelhos, cotovelos e cabeças encarniçadas; iam acorrentados aos pares.
Em geral, suas expressões eram quase inumanas - transluziam apatia e um temor subjacente, - apesar de que era difícil adivinhar em seus rostos uma só emoção que
fosse visível.

A procissão parecia interminável: dezenas e dezenas de homens inclinados, descarnados e humilhados, desnudos, de um colorido negro sem luz. Contudo, ao cabo de um
tempo a procissão rareou quase até cessar por completo.

- Agora, sem dúvida, só nos restam os enfermos. Sempre os levam para proa, onde entra um pouco de ar pelos escovéns. Talvez o senhor queira me acompanhar para dar
uma espiada, doutor?

Stephen, que havia visitado algumas enfermarias de prisão horripilantes, para não falar de manicômios e hospícios, dispunha de certa couraça profissional. Assim
como Whewell, dado o tempo que este servira a bordo de navios negreiros. Mas Jack, não, nem ao menos a coxia da segunda bateria imersa em plena batalha de linha
- lugar conhecido com o nome de "matadouro", - havia lhe preparado para essa visão; sua cabeça girava. Empenhou-se em seguir-lhes e aproximar-se da proa com eles,
e se inclinou sob os vaus: ouviu Stephen dar ordens para que livrassem os escravos das correntes, viu-lhe examinar com luz tênue e o ambiente estancado a vários
homens muito débeis para se moverem, achou compreender que certificava casos de disenteria, que necessitava de homens, água e esfregões.

Subiu ao convés, onde os marinheiros do navio negreiro o observaram consternados, e com voz estrangulada e feroz ordenou a seis marinheiros que descessem à coberta
inferior com baldes e esfregões, a outros seis que fossem às bombas, e a outros quatro que trabalhassem com brio na cozinha. Jogaram todos os chicotes pela borda.
Alguns dos escravos o observaram sem mostrar muita curiosidade; alguns já estavam se lavando; a maioria seguia sentada no convés, agachada.

- Bellona! - gritou.

- Senhor?

- Envie-me a esse tipo com seus homens. Um grupo de infantes da marinha e um oficial; ao armeiro e a seu ajudante. E também aos ajudantes do cirurgião.

Pediu aos gritos a presença do despenseiro de bordo, a quem ordenou estender no convés todas as macas que encontrasse nas cabines, e a medida que subiram aos enfermos,
quer fosse no ombro ou em macas, ordenou também estendê-los nas macas. O patrão do Nancy voltou a seu barco.

- Pegue este esfregão - disse Jack, que se inclinou sobre seu rosto espantado quando o viu assomar pelo costado. - Pegue este esfregão e vá abaixo para limpar. Abaixo
para limpar. Abaixo para limpar!

Em nenhum momento se questionou ou desobedeceu em nem um pouco a autoridade do comodoro a bordo do navio negreiro, pelo contrário, pois os marinheiros se comportaram
com um zelo asqueroso e turvo. Depois, quando os infantes da marinha já haviam formado no convés em fila dupla, a estibordo pela popa, com os mosquetes ao ombro,
a comida surgiu da cozinha em baldes para dez, e os escravos formaram seus bandos habituais, quase enchendo por completo o convés. Haveria uns quinhentos, como mínimo.

- Senhor Whewell - disse Jack. - Poderia dizer-lhes que não vamos feri-los e que não serão vendidos como escravos, aliás serão liberados quando chegarmos a Serra
Leoa dentro de dois dias?

- Eu tentarei, senhor, com as noções que tenho. - E assim o fez, alto e claro, em diversas versões. Meia dúzia de homens negros mostraram interesse, talvez inclusive
lhe compreenderam. O restante devorava a comida e cravava o olhar no nada, ou em um mundo de divagações inescrutáveis.

- Senhor Whewell - disse de novo Jack, - que opinião tem do fato de livrá-los de suas correntes?

- Acho bom, senhor, desde que os infantes da marinha permaneçam a bordo. Contudo, acredito que os marinheiros deveriam ser levados para baixo antes do cair da noite:
um pedaço de fumo impedirá que haja problemas na escuridão.

- Se o doutor precisar de algo - disse Jack, - botes, padiolas, macas ou coisas assim, informe ao capitão Pullings de imediato. (Stephen havia improvisado uma enfermaria
na cabine do patrão). O senhor será substituído antes do final da guarda. Davies - chamou um dos marinheiros de sua falua, homem violento, grande e feio que lhe
seguira de barco em barco, - encarregue-se de que esses tipos das bombas sigam com o trabalho. Pode assustá-los se ficarem moles.

Voltou a bordo do Bellona, tirou toda a roupa, ficou um bom momento debaixo de um jorro de água limpa e se retirou para sua cabine, onde sentou-se a considerar a
situação, a avaliar as opções que surgiam diante de si, a pensar carrancudo, a tomar notas e a escrever duas cartas para o capitão Wood em Serra Leoa, uma oficial
e outra particular.

Durante a maior parte deste lapso de tempo, Stephen sentou-se em companhia de Whewell no cabrestante do mercante negreiro, com o vento pela alheta e o céu limpo
a medida que a esquadra marchava rumo sudeste. Estava razoavelmente satisfeito do estado de seus pacientes; aliviara com ungüento e linho limpo muitos, muitos pulsos
mordidos pelos grilhões, e no convés bem alimentado se respirava um ambiente mais humano.

- O senhor diria que encontramos o barco em um estado terrível, dada sua experiência? - perguntou.

- Oh, não, em absoluto - respondeu Whewell. - Para um barco que partiu há catorze dias de Whydah, eu diria que o encontramos razoavelmente bem. Não. Estava distorcida
a coisa, certamente, e acredito que o comodoro teve uma surpresa; mas havia poucos casos de disenteria, e os que foram diagnosticados se encontravam em um estágio
inicial da doença, de modo que poderia ter sido pior, muito pior. Talvez o pior que vi foi um bergantim chamado Góngora, ao qual perseguimos durante três dias frente
à costa. Durante todo esse tempo mantiveram os escravos abaixo, certamente, sem comida e com ventilação escassa, e quando por fim o apresamos abrimos as escotilhas
e encontramos duzentos cadáveres na coberta inferior: disenteria, fome, asfixia, miséria, e sobretudo o fato de que lutaram entre si armados com as correntes, antes
de debilitar-se por completo. Aquele infeliz bergantim levava partes iguais de Fantis e Ashantis, inimigos mortais que haviam estado em guerra, e os dois bandos
venderam seus prisioneiros no mesmo mercado, de modo que os apertaram a todos ali dentro.

- Peço que me perdoe, senhor - disse o ajudante do piloto de derrota, um homem alto que assomou pela borda, - mas vim substituir o senhor Whewell. O comodoro deseja
ver-lhe quando tenha se lavado e trocado de roupa.

 

- Senhor Whewell - cumprimentou Jack, - corrija-me se me equivoco, mas acredito que é norma em Serra Leoa dispor dos negreiros capturados e condenados de tal maneira
que a estimativa do preço de leilão seja distribuída como butim de presa.

- Isso mesmo, senhor. Faz um tempo, os comerciantes recuperavam os barcos muito marinheiros, que voltavam a empregar no negócio.

- Muito bem. Também nos falou ao doutor e a mim dos kroo, descritos como marinheiros excelentes, pilotos experimentados e conhecedores da costa, inteligentes e de
confiança.

- Sim, senhor. Sempre tiveram essa reputação, e constatei por experiência própia que a merecem e que inclusive a descrição lhes faz jus. Conheço-os bem, desde que
era menino. E além do mais, a maioria deles fala bem o inglês da costa e o compreendem ainda melhor.

- Alegra-me ouvir isso. Verá, aqui tem duas cartas para o capitão Wood, o governador. Nelas peço que condene de imediato este barco, o Nancy, sem julgamento prévio,
e que permaneça ancorado na enseada após ser esvaziado. Também peço que prepare um barco de apetrechos carregado com pólvora até os topes, para quando a esquadra
chegar ao porto. Se me compraz, e não me cabe a menor dúvida de que o fará, quero que o senhor recrute pelo menos um bom kroo para cada uma das embarcações auxiliares
que fazem parte da esquadra, a partir dos cúteres de seis remos, contanto que possam guiar aos nossos de noite e assaltar a ilha Sherbro e, talvez, o rio Galinhas.
Acha isso possível, senhor Whewell?

- Com este vento entabulado que sopra o acho perfeitamente possível, senhor. E não tema pelos kroo. Há um povoado kroo em Serra Leoa que conta com algumas centenas
deles, homens com quem tratei durante os últimos vinte e cinco anos. Detestam a escravidão e farão o possível para combatê-la.

- Alegra-me muito ouvir-lhe dizer isso. O senhor Adams lhe entregará suas ordens e o dinheiro que o senhor julgue necessário para os kroo. Subirá a bordo da Ringle
assim seja possível e rumará para Serra Leoa sem perder um só minuto. Leve o senhor Reade, que a governa como ninguém. E cubra-se de lona, senhor Whewell. Tenha
o senhor um bom dia.

 

CAPÍTULO 8

Escuras nuvens na entrada da tarde, escuras, escuras nuvens que começaram por cobrir as colinas em cujo sopé se estendia Freetown, e que depois avançaram empurradas
pelo vento durante uma hora até que a metade do céu se tornou negro e o calor se fez ainda mais asfixiante. Depois sucedeu igual ao oeste, em mar aberto, ainda que
ali as nuvens eram mais negras se cabe, negras como a piche; e a medida que o vento para fora se fixava, as nuvens devoraram por completo o sol poente e se apressaram
a tingir todo o céu com um pano mortuário, sufocante e ameaçador.

O vento para o mar também levou consigo cinco embarcações, escurecidas pela distância ainda que não o bastante como para não distinguir que se tratava de navios
de guerra com rumo a O Cabo e à Índia. O barco de apetrechos carregado de pólvora que partira do arsenal rumava com intenção de abastecê-los. Dado que certo número
de kroo haviam subido a bordo de uma escuna, era muito provável que entre eles houvesse um mercante, aproveitando sua proteção até pôr rumo leste e percorrer a costa
do Cereal, a costa de Marfim e a costa Dourada para obter pimenta, óleo de palma, marfim e pó dourado. Corriam certos rumores estúpidos a respeito do regresso da
esquadra inglesa, rumores baseados na chegada sob custódia e imediata condenação do Nancy, que agora fundeava na enseada. Estes rumores foram contudo desviados sobre
a base de que o Nancy tinha chegado ao porto escoltado pela escuna do governador, que sem dúvida atuara na qualidade de corsário. O capitão Wood, assim como seus
predecessores, podia conceder uma patente, e quem mais apto para isso que tão meritório oficial? Ademais, quem recordava que a esquadra inglesa incluísse um navio
de duas pontes? Apesar da luz, uma luz que muito bem podia pressagiar o fim do mundo, não havia apenas um, mas dois barcos de duas pontes que qualquer pessoa poderia
avistar.

- É o pai das mentiras - disse um mercador sírio. - Nada aparece sob esta luz, ou, seja, sob esta escuridão visível. Ainda que admito que parece o fim dos tempos.

- Então você é o broto de uma toupeira impotente e um morcego - replicou seu amigo. - Distingo perfeitamente duas pontes no segundo a contar da frente; e também
no terceiro. Parecem ir diretos para buscar o Nancy.

- Não parecem - disse o primeiro mercador. Mas apenas pronunciou estas palavras quando o primeiro barco que formava em linha virou para estibordo até que seu costado
ficou paralelo ao do Nancy, e a uma distância de duzentas jardas abriu fogo com toda a artilharia do costado, cujas brilhantes labaredas iluminaram toda a capa de
nuvens e cuja voz, depois de ensurdecer a toda a população, achou eco entre as colinas. Pelo espaço de três exclamações de assombro, nem uma a mais, repetiu-se todo
este processo mesmo com mais força, com estocadas mais potentes e compridas de fogo e o fundo vozeirão dos canhões de trinta e duas libras. Assim o imitaram um depois
do outro todos os barcos da linha até chegar ao último. O silêncio, com a fumaça da pólvora que ondeava sobre a baía, resultou não menos surpreendente, e as aves
voaram em todas as direções. Mas depois de uma breve pausa se alçou por todo o povoado um estrondo generalizado causado pelos gritos de assombro, pelas conjeturas:
Seria o francês? Anunciaria a bulha o retorno do patriarca Abraão? Seria o capitão de um navio de guerra inglês, disposto a impor a lei vigente contra a escravidão?
Havia pegado a esse desgraçado Nancy navegando com bandeira espanhola, haviam acorrentado ao patrão e a todos seus homens ao pau maior e nesse momento reduziam o
barco a lascas e a eles os queimavam na fogueira. Esta explicação foi a que ganhou mais adeptos a medida que a esquadra virava em redondo e voltava a mudar de bordo,
envolvida no estrondo de seus barcos que agora disparavam aos pares, de tal forma que os espectadores, toda a população de Freetown, quase não podiam ouvir o som
de suas própias vozes por muito que gritassem. E durante a pausa entre uma virada e a seguinte, quando de novo as baterias de estibordo lançaram seu prolongado e
deliberado rugido (apenas o Bellona vomitava setecentas e vinte e seis libras de ferro por descarga) correu a notícia de boca em boca que Kande Ngobe, propietário
de um telescópio, havia distinto claramente às vítimas mutiladas, atadas ainda com correntes: também Amadu N’Diaje, homem de vista aguda; também Suleiman bin Hamad,
que afirmou também que alguns seguiam com vida.

Também seguia com vida o maltratado barco, cujo costado fora crivado rigorosamente, mas que continuava flutuando, ainda que muito baixo sobre o mar calmo, se é que
não havia afundado nem um emborno a mais abaixo da linha d’água. Depois, após outra prodigiosa descarga que iluminou o céu e o povoado, e que tarugou as ruas de
sombras, a linha fechou para fazer uso das caronadas de curto alcance, momento em que se pôde ouvir outra das muitas vozes que tem a guerra, o agudo estalido da
genuína descarga que tudo quebrava, disparada em uma cadência maior que as peças grandes apesar de ser carregada com uma bala mais pesada que a maioria, tão rápida
e tão potente que o navio negreiro não pôde agüentar por mais tempo e empreendeu sua última travessia ao deslizar a pique no mar, que estranhamente havia cuspido
uma areia grossa como mingau, resultado do conflito que haviam entabulado a maré mutável e a corrente.

- Batiportar{19} a artilharia aí, batiportar a artilharia - ouviu-se gritar ao longo da linha de barcos, e as sorridentes dotações trincaram tesos e bem tesos os
acesos canhões. Por fim se serviu a janta, surpreendentemente tarde. Ainda sorriam quando todos os marinheiros contribuiram para ancorar os barcos em águas de vinte
e cinco braças e se completou com a troca da guarda: disparar com brio e fazê-lo contra semelhante alvo era um dos trabalhos mais gratificantes para qualquer marinheiro.

- O ministério não poderia ter desejado maior estrondo, maior fragor - opinou Stephen, que ainda falava em voz alta, sentado na cabine reconstituída onde ainda se
respirava o odor de pólvora. - Nem tampouco uma prova mais convincente da presença da esquadra.

- Foi como na noite de Guy Fawkes{20} - disse Jack. - Não sabe quanto agradeço a James Wood que tenha disposto tudo com tanto tino e discrição. Havia um punhado
de detalhes nos quais eu nem sequer havia pensado, qualquer um deles poderia ter revelado o truque. Sem ir mais longe, aí tem essa brilhante jogada de despachar
a sua própia gente para trazer o Nancy ao porto.

- Uma jogada brilhante, sem dúvida. Brilhante.

- Sim. Mas se o vento se entabular na costa, tal e como juram e perjuram que sucederá, acho que nossa noite de Guy Fawkes não será nada comparado com o que ocorrerá
amanhã pela tarde. Acredito que poderemos dar semelhante dano ao comércio de escravos que Wilberforce e... como se chama?

- Romilly?

- Não. O outro.

- Macaulay.

- É isso. Que Wilberforce e Macaulay pularão, aplaudirão e se embebedarão como Lordes.

No dia seguinte, muito antes da guarda do primeiro quartilho, todos os homens formaram nos postos de combate em todas e em cada uma das embarcações que Jack Aubrey
tinha sob seu comando. Os marinheiros não tiravam o olho do cabo que fechava a baía, já que ao redor deste, ao redor do cabo de Serra Leoa, seus amigos, que se haviam
escapulido aproveitando a algaravia do festim, não tardariam em reaparecer empurrados pelo suave vento que soprava, trazendo consigo a licença em terra e, talvez,
a promessa do dinheiro do butim que pudesse fazer da licença algo mais prazeroso. Contudo, deixando de um lado o dinheiro do butim, era a liberdade em si o que resultava
mais agradável: a deliciosa visão dos palmeirais para todo aquele que nunca teve a oportunidade de vê-los..., e se dizia que as jovens da costa não podiam ser mais
amistosas. A castidade pesava como um lastro em todos os marinheiros; também poderiam arrumar frutas frescas. Tal como estavam as coisas nesse momento, contudo,
os barcos que fundeavam justo diante da baía nem sequer cheiravam a liberdade. Os únicos condenados botes se apetrechavam para levar somente a um oficial em cada
viagem, ou, como muito, a dois que fossem magros. E é que sem os botes maiores a esquadra não podia sequer sonhar com nada parecido à liberdade.

A bordo da Aurora, que fundeava ao mar da linha, desatou-se a algaravia, e rapidamente se estendeu por toda a esquadra quando apareceram os botes recortados na distância,
escoltando um inesperado número de presas. Pelo menos havia cinco escunas, dois bergantins e um barco.

A escuna do governador largou amarras de porto para guiar as presas diante do atento olhar de todo o povo reunido, mais surpreendido se couber nesta ocasião que
durante a noite anterior. Jamais se tinha visto semelhante captura, nem nada remotamente parecido. Aqueles que tinham interesses no comércio de escravos, que não
eram poucos, empalideceram ou amarelaram como era de esperar, silenciosos, toscos e entristecidos, pois reconheceram todas as embarcações aprisionadas; era impossível
não fazê-lo. Contudo, a maioria dos habitantes da cidade estava excitada, cheios de satisfação, sorridentes, tagarelas, e não devido ao apoio que prestavam à causa
abolicionista - excetuando o caso dos kroo, - mas pelo cândido e sincero prazer de pensar no dinheiro que sairia dos bolsos dos marinheiros. O butim de sessenta
libras por escravo liberado, de trinta libras por mulher liberada e de dez libras por cada criança suporia uma soma considerável ainda que só contassem ao Nancy.
Mas com esta redada sem comparação, a soma seria prodigiosa por mais que não incluísse às embarcações condenadas. Pois Freetown estava acostumada ao comportamento
dos marinheiros em terra, os habitantes, em particular os taberneiros e as casas de má fama, ansiavam recebê-los com os braços abertos.

Todos a bordo sentiam com mais força tão encantadora esperança e, quando em resposta ao sinal do comodoro, a Ringle e muitos de seus botes puseram proa ao ancoradouro
e aos navios aos que pertenciam, foram recebidos com mais aplausos e gritos de alegria. Em um visto e não visto os botes se converteriam em embarcações de liberdade,
dispostos e desejosos por levar voando a Jack para terra; diversos membros da guarda que não estava de serviço se apressaram a embelezar-se, enquanto que outros,
menos seguros de poder desfrutar da sobremesa, pediram a seus guardas-marinhas ou suboficiais que podia fazer-se no terreno da súplica, da deferência, com a esperança
de que pudessem adiantar-lhes quatro peniques.

Quando mais animadamente comentavam as alegrias que iam desfrutar, começou a difundir-se um rumor horrível. Primeiro um jovem segundo do contramestre disse triste
que "Nada de liberdade", ao mesmo tempo que lascava o pé no convés e rasgava o lenço de seda de Barcelona que tinha exibido amarrado ao pescoço. "Nada de permissões
em Serra Leoa após a meia-noite. Essas são as fodidas ordens do doutor."

Disseram que estava enganado, ou que a ordem só se aplicava a ele devido a sua má conduta, a ter os pés tortos e a esse rosto negro de Jonas que tinha. Era um absurdo
dizer que não haveria liberdade. Contudo, a notícia correu de boca em boca e foram tantos os marinheiros que se informaram dela que já não havia ninguém que não
acreditasse. Nada de permissões em terra em toda a costa após a meia-noite: ordens do doutor, confirmadas pelo capitão e o comodoro.

- Maldito seja o doutor.

- Oxalá o doutor apodreça.

- Espero que o doutor apodreça no inferno - ouviu-se na coberta inferior, no camarote dos guardas-marinhas e na câmara dos oficiais.

O doutor em questão se esforçava em costurar o braço de Whewell, que tinha recebido um talho como consequência de um encontrão (o exibia vendado com um farrapo da
camisa que arrancara de um negreiro falecido), enquanto escutava seu relatório, o informal relatório verbal que relatava ao comodoro. Depois de consultar com o tenente,
com os guardas-marinhas e com os oficiais do mar havia dividido a flotilha em quatro grupos de força igual, mantendo os companheiros de rancho juntos desde que pôde,
dois para Sherbro e dois para Manga e Loas, perto do continente.

- Primeiro nos aproximamos do mercado ocidental de Sherbro. O chefe kroo do bote guia os cumprimentou sem trejeitos e lhes perguntou como andavam as coisas; enquanto
os distraía, o outro bote atracou. Quando subiram a bordo encerramos a guarda do porto sob o convés, travamos as escotilhas e os ameaçamos com uma passagem para
o inferno se ao menos pensasse em mover um só dedo; depois cortamos o cabo e nos jogamos ao mar com um vento estupendo. Foi tão fácil como beijar minha mão. - Whewell
riu comprazido. - Não tinham guarda, e acho que não esperavam problemas, e tampouco eles nos deram. Sucedeu igual com os três barcos seguintes, escunas de primeira
(quase não podíamos acreditar) e assim foi a coisa até que chegamos ao barco. Tardamos um pouco em ganhar o convés porque não estava ancorado e tinha todos os homens
preparados, e aí houve algum ou outro problema (foi lá onde ganhei esta ferida) - disse mostrando o braço com um gesto da cabeça. - Mas no final não deu em nada,
e depois de ter despojado Sherbro de oeste a leste, reunimo-nos com os outros em alto mar e rumamos para Manga e Loas, onde fizemos mais ou menos o mesmo, ainda
que me alegra dizer-lhe, senhor, que ali sim nos dispararam.

- Muito bem - disse Jack satisfeito, pois qualquer barco que abrisse fogo contra uma embarcação de guerra, ainda que não fosse mais que um cúter de quatro remos,
incorria em ato de pirataria e, portanto, fossem quais fossem suas cores ou nacionalidade, seria condenado sem direito de desfrutar de uma defesa. - Confio em que
não teve maiores consequências.

- Feridas limpas, senhor. Quando o primeiro bergantim, português, abriu fogo iluminou o céu e puderam ver quantos éramos, com as presas e tudo. Um tentou fugir,
mas não serviu de nada. Os outros, que estavam acordados, jogaram-se sobre os botes que rebocavam ou que tinham atracados para perder-se na costa. Depois de limpar
esses dois lugares, senhor, prendemos sua gente na coberta inferior das as embarcações capturadas e rumamos para a esquadra. Nós os mantivemos todo o caminho a sotavento,
para o caso de algum ter a estúpida idéia de escapar.

- Muito bem, senhor Whewell, excelente - aplaudiu Jack, que acrescentou depois de uma pausa: - Diga-me, o que o senhor fez com a documentação?

- Verá, senhor, lembro tudo aquilo que o governador disse a respeito da sofisteria legal se entrometer com o que era obviamente justo, e acho que, em sua maior parte,
os papéis acabaram destruídos durante os combates, quando não foram jogados pela borda. Só salvei um par de manifestos de carga e registros pertencentes a capitães
portugueses, por aquilo do que dirão: não é que isso mude muito as coisas, porque os portugueses não contam com proteção ao norte da Linha. Dos piratas nem sequer
me preocupei, ordenei logo acorrentá-los. E agora que o penso, senhor, havia alguém na sede do governo, um dos cavalheiros que formavam parte do tribunal do Contra-almirantado,
acho, que observou que todo aquele que não tivesse documentação, cujo barco não tivesse papéis, e que não fosse capaz de identificar com certeza à pessoa que o prendera
estava perdido: nem sequer pode expor uma defesa, por muito que conte com a ajuda de profissionais na matéria, ou tenha a seu favor alguma estúpida cláusula legal.

- Acho que também era essa sua opinião, doutor - disse Jack.

- Aí, senhor Whewell - observou Stephen ao cortar a linha, fazendo caso omisso da indiscrição de seu amigo. - Aí. Eu lhe recomendo que leve o braço em uma tipóia
durante alguns dias e que evite no possível cometer excessos com a carne ou a bebida. Recomendo um prato de ovos para almoçar, ou pescado grelhado, acompanhado por
um pouco de fruta; e uma tijela de mingau antes de retirar-se, mingau fino, mas não me entenda mal, que tampouco sejam muito. E isto daqui servirá muito bem como
tipóia - acrescentou com o olhar no melhor lenço de cambraia superfina de Jack, que repousava sobre o respaldo da cadeira, recém passado por Killick. - Bom, assim
- disse ao introduzir o braço ferido com a facilidade que dá a prática. - Agora permita-me pedir-lhe que me recomende a um kroo de meia idade e de confiança, que
não seja dado a caprichos nem à bebida, para que me guie por Freetown, aonde irei depois do pôr do sol. Meu querido comodoro, o senhor me proporcionaria um meio
de transporte adequado?

- Meu querido doutor - respondeu Jack. - Não lhe proporcionarei tal coisa, nem tampouco o fariam o capitão Pullings ou o senhor Harding, nem ninguém que lhe queira
bem. Se alguém o visse em terra meia hora depois de proibir o mesmo lazer às companhias dos barcos que estão sob meu comando, seria sem dúvida o homem mais odiado
de toda a esquadra. Não serei eu que lhe direi que sua segurança física estaria em perigo, mas o afeto que lhe têm desapareceria por completo como que me chamo Jack
Aubrey.

- Nesse caso, se amanhã pela manhã lhe convier, senhor - interveio Whewell, - tenho o homem de que necessita, que se aproximará precisamente com toda a documentação
que o senhor Adams e eu devemos assinar com relação aos escravos libertados. Trata-se de um kroo veterano, de nome... Bem, custa-nos muito pronunciar seus nomes,
de modo que amiúde os chamamos Harry Presto, ou Gordinho, ou Conde Howe. Ao meu o conhecem em toda a costa como John Quadrado. É justo o homem de que necessita.

 

O nome de Quadrado era uma hipérbole marinheira, ainda que somente um pedante teria posto objeções a Retangular, pois o kroo de Whewell era um homem de ombros e
peito largos, de pernas curtas e braços largos. Cobria a cabeça redonda com um pedaço de lã cinzenta e exibia no rosto duas linhas azuis na testa e outra, mais larga,
que sulcava seu rosto de orelha a orelha, ainda que para ele nenhum destes detalhes nem seus incisivos afiados pareciam mais bizarros que um europeu em camisa. Era
tão negro, ou mesmo negro azulado, como um homem podia ser, o que conferia a seu sorriso um brilhantismo particular; contudo, estava claro e bem claro que não era
alguém com quem se pudesse cruzar.

Apareceu ao amanhecer, remando em uma dessas flexíveis canoas de aspecto frágil que os kroo empregavam para desembarcar depois de evitar o fluxo de ondas monstruoso
que beijava a costa. Trepou pelo costado ágil como um garoto e cumprimentou o castelo de popa.

- Documentação para o tenente Whewell, senhor, se é tão amável - disse com uma tremenda voz de baixo.

Não pôs a menor objeção ao fato de levar Stephen ao povoado e mostrar-lhe tudo quanto quisesse ver em Freetown; e uma vez embarcados na canoa, enquanto negociavam
as ondas da marejada que a levantavam e enterravam, Stephen lhe perguntou se conhecia o interior, a paisagem selvagem, e os animais que viviam ali. Respondeu que
sim, que de menino vivera em Sino, em território kroo, na costa, mas como tinha um tio que vivia rio acima passou alguns anos com ele quando teve idade suficiente
para caçar. Seu tio lhe mostrara toda sorte de criaturas: quais eram lícitas, quais eram sagradas ou estavam, pelo menos, amparadas pelo yuyu, quais eram impuras,
quais eram impróprias para um jovem solteiro de sua condição; e esta sabedoria, preciosa e necessária em si própia, foi de muita ajuda quando ao cabo de um tempo
um naturalista holandês lhe contratou para que mostrasse as serpentes da região, contrato que lhe permitiu comprar a sua primeira esposa, bailarina esplêndida e
ótima cozinheira.

- Somente serpentes?

- Oh, não, não. Céus, não. Elefantes também, e musaranhos, morcegos, aves e escorpiões gigantes; mas principalmente que serpentes, e quando lhe mostrei a píton kroo,
de três braças de comprimento, enroscada ao redor de um de seus ovos, deu-me sete xelins do satisfeito que estava. Sete xelins e um estupendo chapéu vermelho de
lã.

- Confio em que tenha escrito um livro. Oh, não sabe quanto confio em que tenha escrito um livro. Quadrado, como se chamava o cavalheiro em questão?

- Senhor Klopstock, senhor - respondeu Quadrado sacudindo a cabeça. - Não livro.

- Não o escreveu?

- Senhor Klopstock morreu - disse sacudindo a cabeça de novo. Suspendeu a canoa com confiança sobre a lombada de uma onda de consideração; encolheu-se até assumir
um tamanho inferior ao que tinha, tremeu convulsivamente e fez o gesto de quem vomita nos últimos estádios da febre amarela, tudo isso com uma verossimilhança total
e nos escassos segundos que necessitou a onda para quebrar-se, estender-se sobre a costa e depositar a canoa sobre a areia. Quadrado desembarcou quase sem molhar
os pés, ofereceu a mão a Stephen e arrastou a canoa até afastá-la da margem, ordenando a um garoto kroo que vigiasse a embarcação e o canalete com seu preciso e
singular inglês. Contudo, o garoto kroo não entendeu nada do que lhe disse, de modo que se viu obrigado a repeti-lo no dialeto do lugar.

- Nada de livro, senhor - disse Quadrado, sério, enquanto caminhavam pela praia. - Mas era um homem muito bom, e foi amável comigo. Ensinou-me inglês, inglês de
Londres.

- Achei ter-lhe entendido que era holandês.

- Sim, senhor, mas falava bem o que inglês, e estava muito contente de vir aqui porque pensava que nós também falávamos inglês. Inglês de Londres. Isso sim, mostrou-me
as pegadas de cobras, pangolins e musaranhos, quando não as desenhou ele mesmo, e me disse como se chamavam em inglês de Londres. Foi assim como me acostumei a sua
forma de falar. Falava como um missionário. Vejamos, senhor, aonde gostaria de ir?

- Gostaria de visitar por cima a cidade, passar pela casa do governador, o forte e o mercado. Depois me agradaria ver ao senhor Houmouzios, o cambista.

Tratava-se de uma povoação espaçosa e em expansão. A maioria de casas ficavam separadas umas das outras e dispunham de seus própios cercados, amiúde com palmeiras
que assomavam por cima dos muros. Cruzaram com pouca gente enquanto caminhavam pelas suas ruas.

- E também conheci a outro naturalista quando era criança - seguiu John Quadrado ao ver que Stephen parecia desejoso de conversar: - Senhor Afzelius, um sueco; ele
também falava muito bem o inglês de Londres. Era um botânico. Tampouco livro, ainda que passou anos aqui.

- Tampouco escreveu nenhum livro?

- Não livro, senhor. Quando os franceses tomaram a cidade no ano noventa e quatro queimaram sua casa com as outras, com todos seus papéis e seus espécimes dentro.
Isso iludiu a seu coração tão cruelmente, que nunca escreveu seu livro.

Ambos se limitaram a mostrar sua desaprovação com um gesto e depois caminharam um pouco em silêncio até que chegaram ao mercado. Então, ao dobrar a esquina, penetraram
em um mundo completamente distinto, um mundo concorrido, agitado, barulhento e alegre, cheio de cor. Havia barracas repletas de frutas e verduras de todas as naturezas
e cores, deslumbrantes sob o sol: tanchagem, banana, mamão, goiaba, laranja, lima, melão, abacaxi, guandu, abelmosco, graviolas, coco..., e cestas de vime transbordantes
de arroz, milho, searas do paraíso, assim como batata, mandioca e cana-de-açúcar. Abundava o pescado de brilhantes escamas: tarpón, cavala, salmonete, castanhola,
tuna, peixe coelho (pesca de água doce em opinião de Quadrado, ainda que alimentícia), e, certamente, montanhas e montanhas de ostras. Viram árabes de rosto sério,
enfaixados de branco, e alguns casacas vermelhas do forte, e a maioria das barracas tinham um cachorro ou um gato. Porém, em geral o panorama era de cor negra. Havia,
contudo, diversos graus de negritude, desde o ébano reluzente do kroo até um acobreado característico do chocolate com leite.

- Aí tem a uma zandi de Welle que vem do Congo - disse Quadrado ao mesmo tempo que indicava discretamente a zandi em questão, que regateava em um apaixonado inglês
de Serra Leoa por um peixe coelho que, conforme ela, não pesava mais de um oitavo. "Niminy-piminy, nada de nada", exclamava a mulher.

"E ali alguns yoruba. Aos agbosomi sempre se reconhece pelas tatuagens: falam ewe, parecido ao attakpami. Olhe as cicatrizes tribais kondo nessas bochechas: parecidos
a os dos grebo. Há um kpwesi daqui falando a um mahi de Dahomey - informou Quadrado enquanto apontava para outros pontos. - Todas as nações que tenham podido ser
vendidas na costa ou até Moçambique vivem aqui. E ali tem, senhor, a alguns negros de Nova Escócia. Ainda que suponho que saberá tudo o que há que saber sobre Nova
Escócia, senhor.

- Calro que não - respondeu Stephen.

- Bem, senhor, foram os escravos americanos que lutaram ao lado do rei. Quando os homens do rei foram derrotados, os trasladaram para Nova Escócia; então, depois
de uns vinte anos, aqueles que ainda seguiam vivos depois de toda essa nevada foram trazidos aqui. Alguns aprenderam gaélico por esses lares.

- Que Deus os bendiga - disse Stephen. - Agora me agradaria cumprimentar ao senhor Houmouzios, se é tão amável.

- À ordem, senhor. Por aqui - disse Quadrado. - Seu posto fica ali ao fundo, debaixo da marquise ou toldado, como se diga.

O senhor Houmouzios era um grego descendente de alguma distante diáspora africana. Encontraram-no sentado sob o toldo, ante uma mesa atapetada de pratos que tinham
uma grande variedade de moedas, de objetos pequenos de cobre até os joes portugueses que valiam quatro libras a moeda, além de um ábaco e uma balança. A sua esquerda
estava sentado um garoto negro, e a sua direita um cachorro calvo tão enorme que podia pertencer a outra raça, um cachorro que não parecia interessado no que sucedia
ao seu redor exceto quando alguém se atrevia a roçar a mesa.

- Monsieur Houmouzios - Stephen cumprimentou em francês. - Bom dia. Trago uma carta de troca para o senhor.

Houmouzios o observou com amabilidade por cima dos óculos e respondeu na mesma língua com fluidez, adotando uma versão do Levante curiosa e fora de moda. Deu-lhe
as boas-vindas a Serra Leoa, comprovou o documento, disse que nunca levava somas tão importantes ao mercado e, no inglês do lugar, ordenou ao garoto que fosse buscar
Sócrates, um escrevente ancião. Uma vez que este chegou, Houmouzios conduziu Stephen a uma casa árabe de uma beleza esplêndida, com persianas gastas e uma fonte
no pátio. Depois de rogar-lhe por favor que se sentasse em uma tarima atapetada, observou que nesse tipo de transações era necessário certo grau de identificação.
Desejava que o doutor lhe desculpasse por respeitar uma norma tão desnecessária, mas era uma superstição própia de gentes de sua condição.

- Oh, certamente - disse Stephen com um sorriso. Levou a mão ao bolso e procurou algumas moedas. Ao não encontrar nenhuma, teve que pedir-lhe emprestados seis peniques
ingleses, que a seguir dispôs em duas linhas, antes de alterar a posição de três de tal maneira que, sem perder o contato umas com as outras, formassem um círculo
com um terceiro movimento.

- Muito bem - disse Houmouzios. Pegou uma bolsa debaixo de sua camisa, contou cinqüenta guinéus e acrescentou: - Meu chefe me explicou que poderia ter a honra de
receber mensagens do senhor de vez em quando. Tenha a completa segurança de que também as guardarei em meu peito.

- Uma insignificância mais - disse Stephen. - Poderia recomendar-me um mercador de Freetown que disponha de correspondência no Brasil ou Buenos Aires?

- Agora que o comércio é ilegal não há muito trato que digamos; contudo, mantenho certos contatos no âmbito bancário com companhias exportadoras da Bahia: quina,
borracha, chocolate, baunilha e essas coisas.

- Folhas de coca?

- Certamente.

- Então lhe rogo que tenha a amabilidade de encomendar para mim uma arroba da melhor folha pequena de coca, a peruana que cresce nos altiplanos. Aqui tem o senhor
cinco guinéus pelo incômodo.

- Certamente. Farei isso imediatamente, e não acredito que tarde mais de um mês ou seis semanas em tê-la em suas mãos.

- O senhor é muito amável, senhor - disse Stephen, e depois de tomar uma xícara de café se despediu dele, satisfeito de tê-lo conhecido. Sucedia tão amiúde que estes
contatos, estes contatos, revelavam mais de uma mesquinhez. Em certas ocasiões, a vida de um agente de inteligência era muito perigosa, mas o que era de certa forma
mais irritante era que quase sempre tinha que se lidar com personagens de moral duvidosa, amiúde póximos na criminalidade, cujo companheirismo afetado e sorrisos
de conivência resultavam profundamente desagradáveis. Contudo, em assuntos desta índole, que amiúde tinham um ar de tratos financeiros sombreados, de correspondência
adúltera, este tipo de personagem era muito importante. As falatórios eram comuns inclusive em uma embaixada, delegação ou consulado que se regesse conforme as normas,
e tanto era assim que um meio de comunicação paralelo se convertia em um mal absolutamente necessário. Maturin não estava disposto, muito pelo contrário, a pôr em
perigo o êxito da atual expedição (que para ele tinha muita importância) por confiar ao empreendedor governador ou a seus subordinados uma informação de caráter
confidencial.

- John Quadrado - disse enquanto caminhavam de volta à praia. Tinha encontrado o kroo do lado de fora, sentado em cima de uma pedra, - se não tem o senhor nenhum
compromisso durante as próximas semanas, gostaria que navegasse comigo para mostrar-me toda a vegetação, as aves e os animais que possa, quando nos seja possível
desembarcar. Eu lhe pagarei o mesmo que recebe um marinheiro de primeira, e pedirei ao capitão Pullings que anote seu nome no rol de tripulantes na qualidade de
supernumerário.

- Feliz, senhor, muito feliz - respondeu Quadrado. Apertaram-se as mãos para selar o acordo.

- Acho ter visto um bonito pântano do outro lado da cidade - disse depois de caminhar outras duzentas jardas e remoer o assunto. - Se me programo para despachar
as rondas a uma hora decente, poderíamos aproximar-nos esta mesma tarde. Já ao longo dos próximos dias poderíamos subir aquela colina empinada ali.

O capitão Pullings estava mais que disposto a aceitar a Quadrado a bordo na qualidade de supernumerário em troca da comida - sem contar o tabaco, ou o contador gemicaria
e gemeria até que desarmassem o barco no porto. - Disse que podia guardar a canoa no bote, pois era embarcação mais recomendável para desembarcar o doutor em uma
costa tão agreste.

O acordo não poderia ser mais satisfatório, tanto quanto a alegria quase universal que se respirou a bordo quando os botes se amadrinharam para desembarcar os homens
que tinham licença. Ouviram-se algumas risadas anônimas, acompanhadas pelos gritos de: "E agora, velho Saturnino?", apelido que alguns marinheiros malteses e dissolutos
tinham dado a Maturin, mas em geral todos se desfizeram em sorrisos e inclinações de cabeça, já esquecida a veemência do dia anterior. Inclusive a grande maioria
de seus antigos companheiros de tripulação lhe perguntaram se desejava que lhe trouxessem algo da cidade.

Contudo, suas rondas não foram tão satisfatórias. Apesar da demonstração de força com os canhões não ter matado os negreiros que governavam o Nancy - notícia estendida
por toda Freetown, - feriu diversos principiantes pertencentes à esquadra, os mais desajeitados, os mais impetuosos, apesar da freqüência com que haviam praticado
o exercício.

Ainda que a enfermaria do Bellona estivesse tão limpa e ventilada como se podia desejar em um navio de linha pertencente à frota, nem aquela intensa umidade nem
o calor asfixiante eram recomendáveis para quem não tinha mais remédio que repor-se ali. As mangueiras de ventilação, por mais distribuídas e eficientes que fossem,
não podiam refrescar o ar que fazia os marinheiros do convés ofegarem e secarem a testa. Diversas feridas e queimaduras ameaçavam piorar, e depois do almoço que
se celebrou na câmara dos oficiais - Jack e seus capitães desfrutavam de um convite do própio governador, - entre cujos pratos se contavam entre outros uma fatia
de pudim de fígado, Stephen voltou a fazer outra ronda acompanhado por seus ajudantes, jovens amáveis sem dúvida, mas lentos e com pouca experiência. Assim continuou
a coisa até que, justo quando administrava o último calmante em forma de solução de heléboro, Stephen ouviu o som da falua ao atracar-se à embarcação, seguido pelo
lamento dos apitos do contramestre quando o comodoro e o capitão subiram ao convés, e pelo sapateado e fragor dos infantes da marinha que apresentavam armas.

- Bem, cavalheiros - observou, - acho que poderíamos deixar os pacientes descansarem. Evans - disse ao assistente, um ferrador veterano que havia se alistado para
fugir de seu lar e da megera que o regia, - chame o senhor Smith se surgir alguma emergência. De minha parte, vou visitar o pântano que há atrás da povoação - acrescentou.

 

- Há, querido, então já está de volta? - disse ao entrar na câmara, onde encontrou Jack em mangas de camisa, sentado na janela de popa, com os calções desabotoados
tanto nos joelhos como na cintura. - Confio em que tenha desfrutado da refeição.

- James Wood nos rendeu as honras de Pomposo Pilato, que Deus o bendiga - respondeu Jack. - Quatro horas, e creia-me se lhe digo que não passei um só minuto sem
um copo na mão. Meu Deus, às vezes me dou conta de que já não tenho vinte anos. Não acha que faz um calor infernal? Úmido, denso, asfixiante. Suponho que não, visto
que está de abrigo.

- Não acho que este calor seja tão exorbitado nem desagradável; ainda que admito que esteja úmido. Vocês os sujeitos majestosos sentem mais que nós os magros ou
que temos uma figura mais grácil. Mas console-se, disseram-me que a estação seca está passando; o ar, a pesar de quente, se torna seco, tanto que os negros ungem
o corpo com óleo de palma para impedir que sua pele resseque, ou, na falta de óleo de palma, com sebo. Seco, sim, e em ocasiões vem acompanhado por um vento do mais
interessante, o harmattan; ainda que pode ser que esse nome também faça referência à estação em si. Com respeito a meu abrigo, eu o pus porque tenho intenção de
passear pelo pântano que há atrás da povoação, e preferiria não me molhar.

- Querido Stephen, em que está pensando? Esqueceu das ordens que deu para não permitir ninguém desembarcar depois do pôr do sol? Claro que, agora que o penso, não
nos disse o porquê. Não acho que seja pelas chuvas torrenciais, já que não ocorrem em tabernas ou nas casas de prostitutas, que é aonde iriam parar os marinheiros
guiados por seu instinto, como o cervo ao arroio.

- É por causa da miasmata.

- Refere-se às miasmas?

- Vem a ser o mesmo, asseguro, Jack; e os piores casos se contraem depois do pôr do sol.

- Olhe bem - disse Jack, assinalando com a cabeça para o oeste, além da janela de popa, onde o sol reluzia vermelho com um brilho atenuado devido à atmosfera densa
e carregada. - Ele se porá antes de que tenha oportunidade de contemplar seu pântano durante cinco minutos. Não, Stephen. O que é justo é justo, já sabe. Não pode
negar aos homens a liberdade, e depois ir embora perseguir corujas e aves noturnas sozinho.

A sinceridade e o prumo de Jack se impuseram aos protestos de Stephen, a seus gritos quando os proferiu, às excessões feitas à letra de qualquer norma, excessões
que, conforme ele, deviam dar-se por sentadas.

- Bem, de toda forma não teria podido ver muito - aceitou finalmente. - Além disso, amanhã terei ocasião de aproximar-me.

- Stephen - disse Jack. - Lamento dizer, mas quanto a seu lamaçal pantanoso não haverá um amanhã. Levaremos âncoras quando troque a maré. O governador me disse que
com este vento as notícias de nossa chegada e nossas cambalhotas ainda não terão chegado à ilha Philip, onde ao que parece encontraremos vários navios negreiros
a ponto de encher por completo seu carregamento; também me disse que poderíamos pegá-los no ato.

- Oh, certamente - disse Stephen, surpreendido.

- Devemos aproveitar a vantagem que temos, antes de que toda a costa saiba de nossa presença. Não há nem um momento a perder, e tão logo a maré mude poderemos vencer
a corrente e franquear a baía.

Stephen não pôde senão mostrar-se de acordo, e depois de passar alguns minutos falando pragas de sua própia estampa por tão absoluta e imperativa tolice, por ser
impulsivo e carecer de moderação, pelas exceções e a ausência de certas excessões em favor do bem comum, foi ao convés, onde em primeiro lugar se sentiu confortado
ao ver uma revoada extraordinariamente numerosa de peixes voadores que roçaram as águas a certa distância da superfície, mas que acabaram por dar-se com as fregatas
à luz do anoitecer, que voaram visto e não visto entre eles com uma celeridade capaz de deixar a qualquer um sem fôlego; e em segundo lugar, pelo fato de que o rio
da ilha Philip tinha um caudal em toda regra que Quadrado conhecia como a palma de sua mão. Este lhe explicara que no ponto culminante da estação das chuvas o rio
fluía ao largo e o fazia com rapidez, tanto que cobria o pé das árvores do bosque dando lugar a uma catarata em sua embocadura e também a uma bonita barra. Mas quando
cessavam as chuvas começava a encolher, desimpedindo a margem, ao longo da qual se podia caminhar através do bosque, onde amiúde podiam ver-se chimpanzés, e mais
além, a campo aberto, era zona frequentada por elefantes. Também lhe falara de uma pequena planície situada sobre um segundo conjunto de cataratas, quase atapetada
por inteiro de baobás, onde viviam catorze espécies diferentes de morcegos, alguns enormes e de rosto monstruoso.

Pensava nas inumeráveis possibilidades que surgiam ante ele: a coruja da África Ocidental, o turaco gigante, os multicolores e exóticos pássaros tecelões e os nectarinídeos,
inclusive provavelmente os potto, quando ouviu gritar "Gente ao cabrestante para recolher a âncora!", ordem inesperada seguida de imediato pelo toque do apito do
contramestre e os gritos de seus ajudantes que rugiam "Gente ao cabrestante para recolher a âncora!" através de todas as escotilhas. Stephen se apressou a afastar-se
do caminho. Conhecia sobradamente as temíveis pressas e a atividade que seguiam a esta ordem: as quadrilhas de homens que corriam pelo convés sem contemplações e
que arrasavam a quem pudessem encontrar em seu caminho, a gritaria, o puxão que davam nas cordas. Ao entrar na cabine encontrou a Jack sentado placidamente sobre
um baú, trocando as cordas de seu violino.

- Há, Stephen - disse levantando o olhar. - Não sabe quanto lamento ter arruinado seus planos com relação a esse fétido pântano. Eu me atreveria a dizer que a miasma
não faz distinções entre doutos e indoutos.

- Nada disso, meu amigo - replicou Stephen. - Estava pensando nos prazeres que me aguardam no Sinon, o rio que atravessa a ilha Philip. Refleti a respeito da variedade
de espécies de plantas e animais, e na possibilidade inclusive de topar-me com um potto, e não demorei nada a recuperar o entusiasmo que me caracteriza.

- O que é um potto?

- O Perodictius potto é uma pequena criatura peluda que dorme de dia como uma bola com a cabeça entre as pernas e que depois caminha muito, muito lentamente de noite,
no alto das árvores, comendo com calma as folhas e espreitando os pássaros quando estes dormem, para comê-los também. Possui olhos imensos, o que acho muito compreensível.
Há quem o chame de lêmure, e outros o conhecem por preguiça, mas errôneamente, porque não têm nada em comum além de seu comportamento recatado e sua inofensiva existência.
De um ponto de vista anatômico, o potto é o primata mais interessante. Adanson o estudou e dissecou, e eu anseio ter a mesma sorte.

- Adamson, o da Thetis?

- Não, não. Adanson, com "n". Era francês, ainda que não me admiraria nada que fosse de origem escocesa. Mas, Jack, nunca lhe falara de Adanson?

- Acho que o ouvi mencionar seu nome em alguma ocasião - respondeu Jack, com toda sua atenção concentrada na cravelha correspondente à corda do ré, cravelha escolhida
para o violino de batalha que levava consigo a bordo para dar-lhe problemas, sobretudo quando havia muita umidade.

- Foi um naturalista magnífico, tão zeloso, prolífico e trabalhador como desafortunado. Quando era jovem o conheci em Paris, e o admirava muitíssimo; Cuvier também.
Naquela época já era membro da Académie des Sciences, mas foi muito amável conosco. Viajara ao Senegal quando jovem, onde permaneceu cinco ou seis anos observando,
armazenando, dissecando, descrevendo e classificando. Depois reuniu todos seus estudos em um breve mas eminente e respeitável compêndio de história natural do país,
do qual aprendi quase tudo o que sei da flora e da fauna africanas. Um livro valiosíssimo, certamente, resultado de um trabalho intenso e minucioso; ainda que não
me atreveria a pô-lo à altura de sua obra fundamental: vinte e sete enormes volumes dedicados a um elenco sistemático de seres vivos e substâncias, assim como às
relações existentes entre eles, junto a cento e cinqüenta volumes mais de índicadores, descrições precisas e científicas, ensaios e um glossário. Cento e cinqüenta
volumes, Jack, com quarenta mil ilustrações e trinta mil espécimes. Tudo isso apresentado ante a Academia. A instituição elogiou sua obra, mas nunca chegou a publicá-la.
Apesar disso, seguiu trabalhando na pobreza e na velhice, e gostaria de acreditar que estava satisfeito de tão enorme projeto, e do fato de contar com a admiração
de grandes homens como Jussieu e o Institut em geral.

- Creio que sim - disse Jack. - Estamos nos movendo - exclamou quando o barco empreendeu um movimento mais garboso;

Stephen, ao seguir o olhar de seu amigo virou para a popa, viu a Thames, a Aurora e a Camilla marear as gáveas e buscar a esteira do Bellona enquanto a esquadra,
encabeçada pelo Stately, avançava rumo sudeste adentrando-se na noite, debaixo de um aguaceiro repentino e violento.

Jack afinou o violino. Conversaram um pouco da arte da afinação e de como alguns defendiam de cómo o lá devia soar.

- Não posso suportá-lo - disse Jack depois de esfregar a corda ao ar. Odeio pensar que nossos avós tocassem de forma tão insossa, com tão poucos bemóis. Após um
tempo riu entre dentes, ao reparar no duplo sentido da expressão, e acrescentou: - Que bom, Stephen, não acha? "Com tão poucos bemóis." Não havia percebido, né?
Mas imagina a Corelli tocando com esse tom de lamentos, como se gemicasse? - Então mudou por completo o tom de sua voz e continuou: - Vou lhe dizer uma coisa, Stephen:
exercer um posto equivalente a um oficial de bandeira supõe um trabalho muito duro, tudo são coitas, um esforço tremendo e infinitamente solitário, e se a expedição
não corresponde às expectativas de um punhado de tipos que nunca navegaram em toda sua vida, executam-lhe na forca e lhe enterram em um cruzamento de caminhos com
uma estaca cravada no coração. Contudo, tem suas compensações. Aí tem a Tom e a todos os demais que nos acompanham a bordo, a todos os que governam os barcos do
rei que tenho sob meu comando, saltando de um lado para outro, empapados até a bunda. Olha quanto navega bem agora! Com vento de alheta, puxam desses cabos, arrebatam
as escotas sem esquecer de aduchar os cabos como Deus manda, enquanto nós permanecemos aqui sentados como pessoas importantes, ah, ah, ah! Há, mas agora se lhe convém.
Permita-me pedir umas velas, afine o violoncelo e toquemos uma melodia.

 

Às quatro e meia da manhã um inquieto senhor Smith despertou a Stephen: Abel Black, gavieiro do traquete que fazia parte boletim da guarda de estibordo e que tinha
uma fratura de perônio - ao que parece havia tropeçado no escuro em um balde que não devia estar em seu lugar, - estava a ponto de se arrebentar. Tinha sofrido de
retenção de urina devido a uma causa totalmente alheia à fratura, cálculo comum, desde o instante em que o levaram para a enfermaria. Era homem tímido, e o fato
de achar-se longe de seus companheiros de rancho, deitado entre um par de marinheiros da guarda de bombordo, homens do interior lotados na popa, empurrou-lhe a não
dizer nada a princípio, enquanto que nas guardas noturnas preferiu não molestar aos doutores, de tal maneira que seu recato o levara por fim a sofrer uma morte elegante
onde as tenha. Stephen não era precisamente alheio a essa situação, freqüente companheira de outros males da marinharia; também estava acostumado a tratar com as
selvagens e complexas naturezas que adotava a finura nos marinheiros, de modo que voltou para cama depois de labutar com aquela peculiar confusão. E não para dormir,
já que, nada mais deitar-se na maca que se balançava suavemente, uma terrível voz que surgiu de seu íntimo lhe disse: "Maturin, Maturin, olha que ter chateado ao
pobre Jack Aubrey como se não houvesse Deus com sua tediosa descrição do Michel Adanson de anos atrás, falando quase sem parar para pegar ar e com o mesmo entusiasmo
durante nada menos que meia hora, enquanto ele seguia ali sentado, sorrindo e dizendo educadamente: "Oh, verdade?" e "Céu santo", que vergonha. Envergonhe-se, anda,
ainda que fazê-lo não te servirá de nada. Simples remorso de consciência".

Foi incapaz de recordar a longitude ou a latitude, nem sequer em que oceano o havia feito. Ainda que sim pôde ouvir o som de sua própia voz empenhada em falar, falar
e falar, e as respostas educadas de Jack. "Será que o faço amiúde? - perguntou-se na escuridão. - É habitual, Deus não o queira, ou somente um sintoma da idade?
É um homem simpático e cortês, uma criatura sem par, mas poderá meu coração perdoar sua superioridade moral?"

Por fim se adormeceu, ainda que ao despertar suas reflexões o fizeram com ele, vívidas e recentes. Para dissipá-las se asseou e barbeou pondo um particular esmero
em tudo o que fazia; afinal de contas, era domingo, e ao terminar subiu ao convés para respirar um pouco de ar fresco. Para sua surpresa não se avistava terra por
bombordo, nem tampouco nenhuma das embarcações de menor porte. A esquadra havia se reduzido aos dois navios de duas pontes e as fragatas, embarcações que formavam
uma linha exata e igualmente espaçada, aproadas com rumo sudoeste, largadas as joanetes e com um vento franco de uma ou duas quartas. Um guarda-marinha cantava a
medida depois de jogar a barquilha: "Oito nós e meia braça, senhor, com sua permissão. O senhor Woodbine estima que a corrente vai direto para o leste, a um nó de
velocidade". O oficial, o senhor Miller, fez um comentário que Stephen não ouviu, pois havia colocado toda sua atenção em um redemoinho de vento do traquete que
arrastou um aroma de café e torradas, de bacon e, talvez, de peixe voador recém frito.

Dirigiu-se para a popa. Tinha intenção de imbuir-se de certo porte, levado pelo caminho do navio e o brio da corrente, mas a gula e o afeto puderam mais.

- Bom dia, Jack - exclamou, - que Deus e a virgem Maria estejam contigo; eu me perguntava se por acaso esse odor é de peixe voador recém frito.

- Muito bom dia, Stephen. Sim, isso mesmo. Eu rogo que me permita servir-te um par.

- Jack - disse Stephen após um tempo, - fiquei muito surpreso quando não avistei a costa nem nossas acompanhantes mais modestas. Seria impróprio de minha parte se
lhe perguntasse o porquê? Finalmente perderam o norte na escuridão da noite? Temo que seja o mais provável.

- Eu muito temo que sim - respondeu Jack com um sorriso que confundiu a Stephen. - Ainda que estou seguro de que pelo menos uma delas dispunha de bússola a bordo;
seja como for, ainda que estivesse quebada, poderiam ter-se guiado por nossos faróis. Dispomos de três esplêndidos faróis verdes na popa, como sem dúvida terá tido
oportunidade de apreciar, e me arriscaria a assegurar que alguém deve tê-los acendidos. - Então elevou o tom de sua voz: - Killick, Killick. Esquente outra cafeteira,
pode ser?

- Já a tenho pronta, ou não o vê? - replicou este no dintel da porta.

- Quer outra xícara, Stephen?

- Se é tão amável.

- Nós nos separamos quando o vento rolou três quartas durante a segunda guarda. Os bergantins e as escunas, que orçam muito, navegam como podem ao longo da costa
rumo à ilha Philip, e quando não, viram por avante para afastar-se da costa. A Laurel e a Camilla os seguem, um pouco mais afastadas da costa; enquanto nós percorreremos
um bom trecho rumo sudoeste, com intenção de mudar de bordo durante a guarda da tarde, fechar sobre a costa que há atrás da ilha e arremeter contra qualquer selvagem
que pretenda escapar, ou dar uma mão se surgirem problemas no porto, coisa que duvido.

Stephen digeriu esta informação durante um momento.

- Jack, ontem à noite me dei conta de repente de que já lhe falara de Adanson em uma ocasião - disse, - e muito, mais: seu zelo, seus inumeráveis livros, seu azar.
Peço que me perdoe. Não há nada mais chato, nem mais triste, que prestar atenção a alguém que se repete.

- Nisso eu concordo contigo, pelo menos em geral. Mas lhe asseguro, Stephen, que neste caso nem sequer me dei conta. Para dizer a verdade, estava tão concentrado
na corda do ré, que não parava de patinar, que temia que pudesse considerar descortês minha falta de atenção. Porém, vou lhe revelar do que realmente se trata, Stephen:
estive falando com Whewell, e decidi o plano de campanha. Gostaria de conhecê-lo?

- Se é tão amável.

- Pois bem, faz tempo que acho esta operação essencialmente costeira, coisa que concordo com Whewell e todos os oficiais que estiveram em Sherbro e outros. Os navios
de linha e inclusive as fragatas estão fora de jogo, a menos que estas últimas sejam tão marinheiras e velozes como a Surprise, exceto, evidentemente, se se dedicassem
ao mesmo propósito que esses jogadores de críquete que se adiantam um bom trecho, como a longa parada ou os extremos: refiro-me aos que se situam no mar e a barlavento
das rotas de fuga mais prováveis, em particular para Havana. Não tem sentido ficar a pairar com a costa à vista: a altura de nossos paus nos delataria de longe,
tanto mais tendo em conta que a última vez que a esquadra inglesa esteve nestas águas, tinham vigias apostados, situados nas alturas e trepados em árvores muito
altas. Adotarão de novo esta medida, assim que tenham conhecimento de nossa chegada. Além disso, os negros vêem muito melhor do que nós, como saberá.

- Creio que sim.

- De modo que quando terminarmos com a ilha Philip pretendo estacionar os navios de duas pontes e a Thames em alto mar, longe de possíveis olhares indiscretos da
costa, mas à distância necessária para comunicar-se mediante sinais, tanto entre si como com outras embarcações de menor porte situadas convenientemente no meio.
Com isso conseguiremos cobrir um área impressionante. Ao mesmo tempo, os outros percorrerão a costa com rapidez, desde escondidos para ir à frente da notícia de
nossa situação nestas águas, enquanto nós nos mantemos perto da costa, desde o cabo Palmas até o golfo de Benín.

- "Olho espreitador, guarda-te do golfo de Benín, pois por cada um que sai, entram mil." - recitou Stephen.

- O que você está pensando, Stephen - exclamou Jack em um tom de genuíno desagrado. - Como diabo lhe ocorre cantar, ou gemer, uma canção tão velha e desafortunada
como essa a bordo de um barco que se dirige ao golfo? Depois de tantos anos no mar, realmente não compreendo.

- Vamos, Jack, lamento tê-lo ofendido. Sabe Deus onde a aprendi. As palavras aparecera em minha mente por si mesmas, por simples associação de idéias. Não tema,
não voltarei a cantá-la, eu lhe prometo.

- Não é que seja supersticioso - disse Jack, nada apaziguado. - Uns mais outros menos, qualquer um que saiba um pouco do mar sabe que se trata de uma canção que
se canta naqueles barcos que saem do golfo, e que tem por objeto zombar de quem está a ponto de entrar. Eu lhe peço que não volte a cantá-la até que rumemos para
casa. Poderia atrair-nos má sorte, e lhe asseguro que incomodaria aos homens.

- Lamento de verdade e lhe asseguro que não voltarei a fazê-lo. Mas fale-me deste golfo, Jack. Há sereias ao longo de suas costas, ou talvez terríveis arrecifes?
E onde fica?

- Quando passemos para a cabine do piloto lhe mostrarei exatamente nas cartas onde fica - respondeu Jack, - mas de momento - disse ao mesmo tempo que se munia com
lápis e papel, - farei um esboço para que faça uma idéia. Faço de um lado da costa do Cereal porque a confusão que armamos em Sherbro e a que armaremos também na
ilha Philip porá todo o país de sobre aviso; porém aqui, para o leste, encontra-se a costa do Marfim, cuja geografia desfruta de diversos estuários e lagunas, nada
mais promissor; depois seguiremos rumo leste e um pouco para o nordeste, justo no golfo, pela costa Dourada, onde passaremos por lugares tais como Dixcove, Sekondi,
cabo Coast Castle e Winneba, mercados de primeira todos eles, e assim até chegar à costa dos Escravos desta gigantesca baía, que de fato é o golfo de Benín (o de
Biafra se encontra mais além), onde os ventos se arrebatam, há uma forte corrente do leste e a febre é mau negócio. Más águas, exceto para as embarcações de aparelho
de velas de cuchillo. Mas aí é precisamente aonde se dirigem a maioria de navios negreiros, a Grand Popo e Whydah. Não acredito que possamos ir muito mais longe.
Contudo, Whydah, ainda que situada em terreno de mangue, tem ali as Brass and Bonny e as Calabares, as velhas e as novas. Mas a essas alturas acho que teremos que
empreender a volta de fora se é que podemos, pôr rumo ao sul para a Linha e aproveitar os alísios do sudeste na ilha Saint Thomas, que fica livre da influência dos
golfos e de seus acalmados e maus ventos. Esse é meu plano, ainda que esqueci de dizer que a Ringle e a escuna Active navegarão da margem ao alto mar para informar
continuamente, quer seja de viva voz ou mediante sinais, à Camilla ou a Laurel, que por sua vez repetirão os sinais a este navio insígnia, pois pairarão entre nós
e as embarcações que vigiam a costa. E, por certo, acredito que partirei o coração de Dick quando lhe ordene trocar seu esplêndido mastaréu de navio de guerra por
mastaréus maltratados, e o mesmo à Camilla, de modo que quem possa vê-los de terra os tomem por mercantes normais e comuns.

- Então, tal e como eu o vejo - disse Stephen, que não parecia comovido pela angústia que estava a ponto de sofrer o capitão Richardson, - esta embarcação, o Bellona,
não terá oportunidade de ver a costa durante o transcurso de toda a expedição.

- Só no improvável caso de que os bergantins, a Camilla e a Laurel, que entre todos contam com um total de mais de sessenta canhões, não possam resolver o que nos
ocupa. Claro que, de vez em quando, avistam-se de soslaio as montanhas dos vaus do mastaréu de joanete.

Stephen deu a costas para Jack e apoiou o braço no respaldo da cadeira.

- Diria que lamenta perder a oportunidade de ver seu potto - disse Jack depois de um silêncio incômodo. - Mas amanhã pela manhã terá oportunidade de desembarcar
e acampar a vontade, depois que tenhamos descoberto o que nos espera no porto da ilha Philip. E inclusive me atreveria a dizer que talvez possa acompanhar à Ringle
quando se aproxime para apresentar seu relatório ou quando vá levar ordens de volta para a esquadrilha que patrulha a costa. Ainda que, se isso lhe aflige, acho
que poderia trocar seu posto com o cirurgião da Camilla, da Laurel ou de qualquer dos bergantins.

- Não, me têm atado à estaca: não posso voar, apenas lutar contra a maldição que me acossa - respondeu Stephen com um sorriso louvável. - Não é uma maldição terrível,
apesar de tudo. É só que fiquei muito mimado nas Índias Orientais, em Nova Holanda, no Peru... Não, em absoluto. Agora tomarei outra xícara de café e sairei, pois
tenho que atender ao meu cálculo, matéria que resulta quase sempre um tema espinhoso onde os tenha.

- De repente passou a gostar de cálculo? - exclamou Jack. - Não sabe quanto me alegro, estou assombrado, fico sem fala. Como se refere ao cálculo, creio que se refere
ao diferencial e não ao infinitesimal. Se posso ser de alguma ajuda...

- É muito amável, querido - respondeu Stephen, que largou a xícara na mesa antes de levantar-se, - mas me refiro ao cálculo de vesícula, nada mais. O que se conhece
vulgarmente como pedra na vesícula. Até aí alcançam minhas matemáticas. Tenho que ir.

- Oh - disse Jack um tanto abatido. - Não terá esquecido que hoje é domingo - advertiu a seu amigo, enquanto se afastava.

 

Era pouco provável que Stephen pudesse esquecer que era domingo, já que não só Killick tirou e lustrou a melhor peruca que tinha, recém cacheada e empoada, a segunda
melhor casaca recém escovada e um bom par de calções, como o assistente de cirurgião teve ocasião de perguntar-lhe se havia esquecido, com sua permissão, que era
domingo, enquanto os dois ajudantes, em separado e não sem certo tato, perguntaram também se se recordava.

- Qualquer um diria que sou um monstro e um idiota incapaz de distinguir o bem do mal, ou o domingo de qualquer outro dia normal e comum da semana - protestou; mas
sua indignação se amenizou ante a consciência de que, certamente, havia se levantado da maca sem reparar em tão interessante distinção, e que se barbeara por pura
casualidade. - Ainda que não teria tardado muito em dar-me conta, porque a atmosfera que se respira aos domingos a bordo de uma embarcação de guerra não é, nem de
longe, a mesma de qualquer outro dia.

E assim era, pois quinhentos ou seiscentos homens se asseavam, barbeavam ou se deixavam barbear, e também trançavam a trança do companheiro, pegavam as macas limpas,
punham seus melhores trajes para celebrar a passagem de revista por divisões e depois ouvir a missa, tudo isso com muita pressa, tudo isso em um espaço tão reduzido,
tão caloroso e úmido que poderiam ter chocado ovos, e tudo isso depois de ter posto o barco, e tudo o que era visível nele, em um estado exemplar de elegância quando
se tratava de madeira, e de brilhantismo se fosse metal.

A natureza anglicana do domingo não afetou Stephen, mas a limpeza ritual sim, e acompanhado por seus ajudantes e o assistente se apresentaram, discretos mas vestidos
com propriedade, com os instrumentos dispostos, refulgentes, e os pacientes deitados e esticados nas macas, quando o capitão Pullings e o imediato, o senhor Harding,
aproximaram-se para inspecionar a enfermaria. Também lhe afetou o costume de almoçar com o capitão e os oficiais, se bem que esta refeição não se celebrou até depois
de aparelhar a "igreja", ou seja, até que se estendeu o toldo para proporcionar sombra ao castelo de popa, coberto com um par de baús com uma bandeira que serviria
de pulpito para o sermão ou a súplica se o barco tivesse um capelão a bordo. Como este não era o caso do Bellona, a responsabilidade recaía no capitão, ainda que
um capitão da Armada podia optar pela leitura do Código Militar. Definitivamente, Stephen teve tempo de sobra, após a inspeção da enfermaria, de dirigir-se ao castelinho,
de onde pôde ver com clareza os soldados do real corpo de infantaria da marinha, quase uma centena, dispostos em fila, imbuídos de todo o esplendor de seus uniformes
de casacas vermelhas, de seus calções branqueados, e da longa e às vezes trêmula linha de marinheiros, limpos e barbeados, com seu ar descontraído, seus ombros carregados,
que cobriam o convés de proa a popa. Era um espetáculo que sempre lhe proporcionava certo prazer.

Durante o serviço religioso reuniu-se sob o castelo de proa com outros católicos para rezar o rosário de santa Brígida. Eram de todas as cores e origens imagináveis,
e alguns se sentiram momentaneamente confusos ante o inusual número de ave-marias, ainda que por mais remoto que fosse seu lugar de procedência o latim era reconhecível,
era o mesmo. A sensação de que estavam em casa os envolvia, e rezaram em um agradável uníssono enquanto na popa se alçava o som dos hinos e dos salmos anglicanos.
Concluíram ambos mais ou menos ao mesmo tempo, e Stephen dirigiu-se ao castelo de popa, alcançando o capitão Pullings quando este se dirigia para a câmara onde se
alojava, pois se vira na obrigação de ceder a cabine para o comodoro.

- Bem, Tom - disse, - vejo que sobreviveu à provação? - Como capitão do Bellona acabava de ler ante os homens um dos sermões mais breves de South.

- Isso mesmo, senhor. Pouco a pouco vou ganhando confiança, tal como o senhor me disse; ainda que em certas ocasiões me agradaria que não fôssemos mais que uma corja
de pagãos. Meu Deus, não me importaria de levar algo ao estômago, nem de dar um trago.

 

O almoço, quando foi celebrado, foi de uma qualidade excepcional, e durante boa parte de uma hora antes de sentar-se os oficiais e convidados do Bellona soprou um
vento cálido procedente de terra, cálido mas surpreendentemente seco, de tal forma que o uniforme não se colou aos corpos e seu apetite recebeu renovadas forças.

- Hei aqui os primeiros suspiros da estação seca - disse Whewell; que conversava com Stephen através da mesa. - As duas se picarão e mudarão pelo menos pelo espaço
de uma semana ou duas, e depois me atreveria a dizer que imperará um harmattan em toda regra, as cobertas se cobrirão de pó marrom e tudo se rachará, antes do dia
da Virgem.

A conversa versou sobre a estação seca, muito preferível à úmida, e se prolongou no regozijo de poder satisfazer uma sede enorme, até que Stephen, voltando-se para
o tenente de infantaria da marinha do Stately, que se sentava ao seu lado, disse quanto admirava a resistência que tinham os soldados para suportar ambos extremos,
quer fosse permanecendo de pé como estátuas sob o sol ou ante um frio terrível, ou desfilando, dando meia volta e desfilando em perfeita simetria.

- Invade-me uma sensação sumamente agradável quando presencio semelhante autocontrole, ainda que poderia chamá-la de renúncia do eu própio, quando assisto à formal
precisão rítmica, ao redobrar do tambor, ao estampido metálico das armas. Não sei se guarda ou não relação com a guerra, mas confesso que esse espetáculo me deleita.

- Não poderia estar mais de acordo com o senhor, senhor - respondeu o infante da marinha. - Sempre achei que a disciplina do exercício tem outro objetivo além do
simples adestramento na fé e obediência devidas à voz de comando. Pouco sei da dança pírrica, ainda que me compraz imaginá-la como nossas manobras, só que com uma
atribuição sagrada claramente reconhecível. A Guarda real oferece um claro exemplo do que me refiro, desde que seus soldados desfilam ondeando suas bandeiras.

- A duras penas poderia rebater-se o elemento religioso da dança. Afinal de contas, David bailou ante a Arca da Aliança, e naquelas zonas da Espanha onde sobrevive
o rito moçárabe ainda que faça parte da missa uma dança comedida. - chegado a este ponto, o capitão Pullings cominou a Stephen a beber um copo de vinho, enquanto
que seu vizinho, o tenente de infantaria da marinha, uniu-se a um animada bate-papo originado no extremo oposto da mesa que versava sobre a preservação da caça.

A refeição seguiu adiante. O imediato trinchou um quarto traseiro de carneiro e depois uma pata, e o fez de tal guisa que os do Bellona se orgulharam; enquanto isso,
as jarras de clarete correram de mão em mão. A essas alturas, contudo, já haviam esgotado o tema de enforcar tanto aos faisões como aos caçadores clandestinos.

- Recordo-me um detalhe com respeito à dança pírrica, é que a bailavam vestidos com a armadura - disse Stephen ao encontrar desocupado o seu oficial da infantaria
da marinha.

- Alegra-me muito ouvir-lhe dizer isso, senhor - disse o jovem com um sorriso (era um jovem notavelmente atraente), - porque não faz senão reforçar minha convicção
de que nós fazemos o mesmo. Quer dizer, admitimos a degeneração que teve lugar desde tempos de Héctor e Lisandro, e reduzimos nossos avios em proporção; mas mutatis
mutandis, ainda seguimos levando a cabo o adestramento, a dança, embutidos em armadura.

- Verdade? - perguntou Stephen. - Pois não havia percebido.

- Olhe isto, senhor - disse o infante da marinha, ao mesmo tempo que dava uma palmada na gorjeira, uma peça prateada em forma de lua crescente que pendia do peito
de sua casaca vermelha, - a isto o chamamos peitoral. É um pouco menor que o peitoral que Aquiles usava, ainda que também o são nossos méritos. - Rompeu a rir alegremente
e pegou uma jarra ao vôo, disposto a encher tanto o copo de Stephen como o seu. Não havia apurado nem a metade de seu conteúdo quando Tom Pullings levantou a mão
e no silêncio que seguiu pôde ouvir-se claramente o grito do vigia do tope, que atravessou as escotilhas abertas e as portalós.

- Convés! Terra à vista! Terra à vista pela amura de bombordo!

- Senhor Harding, o senhor terá que me perdoar, mas devo reunir-me com o comodoro. Cavalheiros, peço que prossigam com a refeição. Em caso de que não possa regressar,
queira agradecer-lhes por sua hospitalidade.

Não regressou. E como não tinha muito sentido deixar que a carne esfriasse para avistar terras distantes, continuaram. O vento quente, quase abrasador, soprava com
força e ainda que alguns dos oficiais pediram aos gritos o Negus ou a limonada, outros mataram a sede crescente com a ajuda do clarete, com o que uma dúzia dos presentes
teve que ser arrastada para cima.

Ao cabo de um tempo, devido à ausência do capitão e à presença de um imediato recém ascendido que naturalmente emanava escassa autoridade, o bate-papo ganhou em
tom e perdeu em formalidade. Stephen e seu infante da marinha tiveram que elevar a voz para entender-se: seus argumentos ainda versavam em temas como a sutil dança
da última época em França e no adestramento, tanto no concernente à cavalaria como á Armada, e Stephen percebeu, para seu pesar, que seu interlocutor bebia e havia
bebido demais e que sua atenção tinha divagado até parar na conversa que tinha lugar no extremo da mesa ocupado pelo contador, lugar onde várias pessoas falavam
ao mesmo tempo de sodomia.

- Digam o que queiram - disse o tenente alto e magro, segundo oficial da Thames, - mas nunca serão homens feitos. Talvez sejam educados, tenham lido muitos livros
e tudo isso, mas em um combate seriam incapazes de agir como Deus manda. Quando servi de guarda-marinha no Britannia tive dois na brigada que servia um canhão, e
quando as coisas se punham feias se escondiam entre a pipa d’água e o cabrestante.

Ouviram-se outros pontos de vista, outras convicções e experiências, algumas tolerantes, inclusive conciliadoras, ainda que a maioria de interlocutores se manifestaram
mais ou menos de forma agressiva e contrária aos sodomitas.

- Neste ambiente não acho que convenha mencionar a Patroclo ou à Legião Tebaica - murmurou Stephen, mas seu infante da marinha estava muito atento à salada de vozes
ouvir-lhe. Encheu outro copo e o apurou sem tirar o olho do grupo reunido ao redor do contador.

- Digam o que queiram - repetiu o tenente alto e magro. - Porém, ainda que eu tivesse os mesmos gostos, lamentaria de verdade ter que entrar em ação a bordo de um
barco comandado por um deles, por mais augusto que fosse.

- Se se trata de um insulto contra meu barco, senhor - exclamou o infante da marinha, empurrando a cadeira para trás para erguer-se, pálido - devo pedir-lhe que
o retire de imediato. A combatividade do Stately está fora de toda dúvida.

- Não sabia que o senhor pertencesse ao Stately, senhor - disse o tenente.

- Já vejo que há quem também seja incapaz de agir como Deus manda - disse o infante da marinha. A seguir se alçou o alvoroço; preocupados com a situação, alguns
mais outros menos tentou-se separá-los. Após um tempo embarcaram em botes diferentes, o do Stately governado por algumas das desgraçadas senhoritas de seu capitão.

 

A costa se avistava com total clareza: o vento cálido soprava tão forte e entabulado como se poderia desejar, e o Bellona, o Stately e a Thames se aproximavam ao
ponto no qual deviam interceptar qualquer possível fugitivo da ilha Philip. Já se trocavam sinais de inteligência hasteados pelos bergantins destacados na costa,
e o faziam por mediação da Laurel. Não havia fugitivos a interceptar, o porto estava vazio, os negreiros não apareceriam até transcorridos três dias, pois haviam
se demorado em Takondi, mas ao desembarcar encontraram muitos negros enclausurados nos barracões e nos currais onde se encerrava aos escravos, estes já haviam sido
libertados.

Jack Aubrey ordenou mudar o rumo, e graças à maré e ao vento que soprou ao anoitecer seus três barcos navegaram direto para o porto, dirigidos por Quadrado, que
conhecia as pequenas enseadas e ancoradouros como a palma de sua mão. No Bellona hasteou-se o sinal para chamar a bordo a todos os capitães, e se fez antes de largar
a âncora. Os botes se atracaram debaixo do rápido crepúsculo tropical.

- Tenho intenção de ir de novo para alto mar e perder-me atrás do horizonte - confessou Jack a Stephen depois de conversar com eles. - Despacharei os bergantins
e as escunas ao longo da costa até a laguna Muni para interceptar e deter a qualquer embarcação costeira ou canoa que possa informar do sucedido, e também para armar
uma emboscada para esses tipos quando se aproximem ao porto. Conforme as profecias de Whewell e Quadrado (excelente marinheiro, esse Quadrado) e também do barômetro,
existe a possibilidade de que possamos pegá-los. Trata-se de três holandeses e um dinamarquês, que rumarão para Havana. De modo que se deseja desembarcar esta noite
com Quadrado, poderia desfrutar de uns dois dias de naturalismo nesse seu rio. Há um pequeno povoado kroo onde poderá passar a noite, mas terá que se apresentar
na costa, disposto a partir sem perder um minuto com a maré-cheia da quarta-feira.

- E quando será isso? - perguntou Stephen, que resplandecia por dentro.

- Às sete da tarde, certamente - respondeu Jack não sem certa impaciência. Mesmo a essas alturas considerava a incapacidade da mente de Stephen, para adaptar-se
ao ritmo da lua e da maré, inacreditável em alguém de seu intelecto. Fez uma pausa, considerou a questão, e então, em um tom muito diferente, acrescentou: - Claro
que, bem, Stephen, não posso senão recordar o que já lhe disse sobre a licença em Freetown depois do anoitecer, tudo isso das miasmas e dos eflúvios nocivos, de
modo que lhe rogo que tenha muito cuidado, que permaneça resguardado e que só ande por aí durante o dia.

- Agradeço sua preocupação, meu amigo - disse Stephen, - mas não permita jamais que o clima aflija seu generoso coração. Freetown conta em seus arredores com um
pântano cheio de febres mortíferas. Nem sequer os cavalos agüentariam muito em Freetown. Pelo contrário, eu passearei junto a um amplo rio de generoso caudal que
tem suas pertinentes cascatas, e não devo temer à miasma desde que a água corra. É a água estancada que engendra a febre. Agora devo ocupar-me de meus sacos para
a coleta e das folhas de papel, escolher a vestimenta mais adequada - haverá sanguessugas? - e conversar com o bom do Quadrado para planejar nossa rota. Em dois
dias, a bom passo, poderíamos atravessar a planície repleta de baobás e morcegos de tamanho monstruoso, e alcançar o território onde talvez encontremos tanto ao
potto como ao pangolim de Temminck!

 

CAPÍTULO 9

Stephen não pôde desfrutar de uma tarde tranqüila em sua cabine até vários dias depois de abandonar a ilha Philip. Só então pôde dedicar-se a organizar as apressadas
notas e alguns dos espécimes botânicos que recolhera, e começar um diário detalhado de sua viagem rio Sinon acima. Certamente já havia contado a Jack tudo relativo
a seus encontros: o hipopótamo pigmeu, o javali, o veloz elefante que lhe perseguiu até uma árvore baobá, os macacos de coxa amarela, os chimpanzés (curiosos mas
tímidos), uma orquídea terrestre mais alta que ele, repleta de flores rosas, ou a píton kroo que Quadrado cumprimentou com um cântico respeitoso e que os observou
virando a cabeça quando passaram ao seu lado e em paz, cabisbaixos. Também as sete espécies diferentes de cálaos, os dois pangolins, a rica variedade de escaravelhos
e um escorpião que media sete polegadas e meia, além dos nectarinídeos e dos pássaros tecelões.

- E o seu potto? - perguntou Jack. - Espero que tenha tido ocasião de encontrar a seu potto.

- Eu o vi, claro que sim - respondeu Stephen. - Estava trepado em um galho pelado, recortado contra a lua, e me observou com olhos redondos e grandes. Eu me atreveria
a dizer que avançou um pé ou mesmo dezoito polegadas ante meu olhar.

- Disparou nele?

- Não. Não sou naturalista o bastante. Você tampouco o teria feito. Mas disparei contra um cárabo, inseto que me interessa muito; se demonstro que se trata de uma
espécie não catalogada, e confio em que o farei, eu o batizarei com o nome deste barco.

Durante aqueles primeiros dias na ilha e na costa imperou uma atividade constante. Foram registrados alguns casos de malária entre quem havia assaltado Sherbro,
e ainda que os negreiros capturados - que tinham entrado no porto com toda a confiança do mundo, sem adotar precaução alguma - não levavam a bordo mais que a metade
do carregamento, muitos dos negros haviam embarcado na Antiga Calabar e alguns se encontravam muito mal. Imediatamente se despachou para Freetown aos dois mercantes
holandeses e ao dinamarquês, com suas correspondentes tripulações de presa. De sua parte, os dois navios de duas pontes, junto com a Thames e a Aurora, lentas e
pouco marinheiras, tinham recolhido âncoras de noite, proa para o alta mar com rumo leste para o golfo de Benín, com a intenção de pôr em marcha o plano do comodoro.
Pela manhã, quem se encontrava no castelo de popa do Bellona pode distinguir as humildes gáveas da Laurel pelo través de bombordo, e é que a Laurel estava em contato
com os bergantins que cruzavam a costa; tudo estava em marcha. O barco voltou a recuperar a rotina diária, e Stephen pôde por fim dispor seus espécimes com certa
ordem, esfolar as aves e etiquetar tudo antes de que a enorme quantidade - pois a sua fora uma expedição muito proveitosa - constrangesse sua falível memória. Contou
para isso com a ajuda inestimável e eficaz de John Quadrado; mas estava sozinho quando se sentou depois de almoçar para dedicar-se à tarefa de escrever um relato
exato. Geralmente, quando se impregnava da atitude adequada e reunia suas recordações, costumava escrever bastante rápido; mas agora, ainda que tivesse em mente
a imagem daquele bendito rio, a limpa praia que mediava entre a margem e os bosques, e o cárabo que voava no alto, os nomes, a hora do dia e a seqüência do sucedido
eram farinha de outro saco; não o recordaria por mais que se esforçasse. Languidez. Dor muscular. Uma dor de cabeça incipiente. Atordoamento.

Tinha tomado um par de copos de vinho para acompanhar a refeição, e uma xícara de café depois, e no suposto de que esta xícara não bastasse para contrariar o peso
dos alimentos se dirigiu à câmara, onde encontrou a Jack Aubrey ocupado ante sua escrivaninha, com uma xícara de café ao seu lado.

Com a ajuda de mais dois cafés pôde escrever um ou dois parágrafos esforçadamente, o que não era nada comparado com o desinibido fluxo espontâneo que o dia anterior
havia circulado por sua cabeça. Uma bolinha de folha de coca - pois dosava o puco que dispunha - quase não esporeou o verbo, ainda que ao cabo de um tempo aproximou-se
do espelho e olhou sua língua. Estava escarlata, tal como suspeitara; e seus olhos, ainda que brilhantes, tinham um cerco escuro ao seu redor, enquanto que os lábios
pareciam atritados com pedra arenito. Tomou seu pulso: rápido, muito rápido. Mediu sua temperatura com um termômetro Fahrenheit: levemente acima dos cem, um pouco
além da temperatura que imperava no ambiente. Refletiu um pouco a respeito às implicações de seu estado e depois desceu para o ambulatório, onde encontrou ao senhor
Smith preparando as pílulas.

- Senhor Smith - disse, - sem dúvida em Bridgetown o senhor teve ocasião de contemplar muitos casos de febre amarela.

- Oh, sim, senhor - respondeu Smith. - Foi a maior causa de mortandade. Os oficiais jovens contavam com ela para a ascensão. Em ocasiões a denominavam "vômito negro".

- Diria o senhor que a febre facial é um dos sintomas típicos da doença?

- Sim, certamente que sim, senhor: se couber, mais que em nenhuma outra doença.

- Nesse caso, tenha a amabilidade de avisar-me quando tenha terminado com esse surtimento de pílulas, para ver se o senhor pode examinar-me sob uma boa luz.

Nenhuma luz podia ser preferível à que se filtrava pela portaló do canhão aberta para seu lado, e tampouco Stephen teria podido encontrar um jovem médico mais convincente
que o senhor Smith. Observou a Stephen com toda a atenção e a objetividade do mundo, tanto foi assim que assumiu com total naturalidade as liberdades própias de
qualquer físico: levantou suas pálpebras, ordenou-lhe que abrisse a boca, tomou seu pulso na carótida e lhe fez diversas perguntas.

- Com todas as reservas possíveis devidas à minha falibilidade e à relativa inexperiência que possuo, senhor - disse finalmente, sério como uma estátua, - eu diria
que, com excessão de uma, possue o senhor todas as características de um paciente no primeiro estádio da febre amarela; ainda que rogo a Deus que me equivoque.

- Eu lhe agradeço sua sinceridade, senhor Smith. A que excessão se refere?

- A inquietação visível e a opressão sentida da praecordia, cuja ausência nunca tinha presenciado em nenhum dos casos que já vi, e que, em Barbados, tem-se pela
mais significativa.

"Acho que talvez o senhor nunca tenha examinado um paciente fortalecido pela coca", pensou Stephen, ao que acrescentou em voz alta:

- Apesar de dita ausência, senhor Smith, afrontaremos esta indisposição como se se tratasse de um caso de febre amarela e me portarei de acordo com isso. Resta-nos
raiz de calumba?

- Eu duvido, senhor.

- Em tal caso, a Radix serpentariae virginianae responderá muito bem. Também ingerirei uma quantidade considerável de infusão de casca. E no caso de que a doença
se manifeste, eu lhe instruo formalmente para que não leve a cabo neste caso nenhuma sangria, nem tampouco a purgção, já que não há pletora. Tanta água quente (com
umas gotinhas de café) como queira, desde que não me cause incômodos. E esponja, simplesmente esponja, nada de afusões estúpidas, isso me resultará muito benéfico
quando a febre alcance seu estágio mais alto. O senhor está disposto a seguir minhas instruções ao pé da letra, William Smith?

- Sim, senhor. - Esteve a ponto de acrescentar algo, mas pensou melhor.

- Além disso, uma luz tênue junto a toda a tranqüilidade que possa proporcionar um navio de guerra no mar, e minha bolsa de folhas de coca ao meu lado: isso é tudo
o que necessito. Apesar da inestimável opinião do doutor Lind e de tantos outros, não acredito que a febre amarela seja infecciosa. Contudo, antes de preocupar meus
companheiros de tripulação, prefiro recolher-me em minha cabine da enfermaria. Aquele caixotinho se encontra mais ou menos em condições, porém lhe ficaria sumamente
agradecido se o senhor se encarregasse de que o varram, não que o lavem, mas que o varram, pois a barata marrom e bonita do África Ocidental, ainda que seja uma
espécie interessante, torna-se irritante em certas quantidades; temo que já se aninha no barco.

- Muito bem, senhor. Voltarei quando a cabine esteja pronta e ventilada.

Sozinho, Stephen dirigiu-se lentamente pela deserta câmara dos oficiais e esperou sentado junto ao reservado, olhando para popa. A coberta não desfrutava de uma
galeria de popa, mas possuía um elegante respiro em forma de janelões que penduravam diretamente sobre o branco alvoroço da esteira do Bellona, nada mais hipnótico,
e durante um tempo sua mente se abstraiu em uma sonhadora imprecisão familiar, antes de recuperar o fio de seus pensamentos, estruturados de forma sequencial.

A febre amarela era mortífera: difícil precisar um cálculo de possibilidades satisfatório, se bem que tivera notícia de informes verificados que indicavam uma mortandade
do oitenta por cento dos casos. Quanto aos aspectos legais, ditara o que o senhor Lawrence denominou "um testamento férreo" antes de partir da Inglaterra, e disposto
como depositários a alguns cavalheiros de confiança que cuidariam de Diana, Brigid, Clarissa e dos outros. No aspecto menos tangível do assunto, sua experiência
como médico lhe havia demostrado que em condições similares os pacientes que cediam, quer fosse por medo, dor, falta de espírito ou pouca vontade de viver, não sobreviviam,
enquanto que aqueles com um desejo urgente de viver sem perder nem um minuto, aqueles que tinham uma filha encantadora, uma extensa fortuna, uma coleção de fanerógamas
de espécies desconhecidas...

- O que foi? - perguntou.

- O comodoro deseja que lhe cumprimente de sua parte - disse um jovem ruivo, tão jovem que ainda mudava os dentes, - e que lhe peça que vá vê-lo quando possa.

- Transmita todos meus respeitos ao comodoro - respondeu Stephen mecanicamente, - e diga-lhe que irei imediatamente. - Permaneceu sentado durante alguns minutos
e depois se levantou, sacudiu a poeira, endireitou sua peruca e gravata, e subiu lentamente pela escada até chegar ao castelo de popa, e dali acedeu à câmara, consciente
da estranha fraqueza de seus joelhos.

- Ah, está aí, Stephen - exclamou Jack enquanto Tom Pullings se levantava como ativado por uma mola, disposto a aproximar-lhe uma cadeira, - que amável de sua parte
vir tão cedo. Tom e eu queríamos que desse uma espiada neste relatório de nossas ações desde que chegamos ao posto. Talvez pudesse arrumar duas ou três frases e
dar-lhes um tom mais elegante. O senhor Adams tem a mão quebada, mas redigindo não é muito melhor do que nós se nos comparamos com a elegância que possuem suas frases.

- É somente um rascunho, doutor - observou Tom.

Stephen o leu durante um momento.

- A que se referem com "expeditivamente"? - perguntou. - "Procedemos tão expeditivamente como nos foi possível."

- Bem, é que navegamos tão rápido como pudemos - disse um deles.

- Como "urgência", já sabe - disse o outro. - Com a maior urgência possível.

- Não lhes agrada "tão rápido como pudemos navegar..." - começou a dizer Stephen.

- Não - disse Tom. - "Tão rápido como pudemos navegar" acho que não é dizer muito.

- Então, ponham "com a maior celeridade possível" - sugeriu Stephen.

- Celeridade. Grande palavra - disse Tom sorrindo. - Como se soletra, senhor? - Uma pausa. - Como se...? Está bem, senhor?

Ambos o observaram sobressaltados e com preocupação enquanto Stephen permanecia sentado, boqueando. Jack puxou a corda do sino e ao aparecer Grimble lhe ordenou:

- Encarregue-se de que procurem por todo o barco ao ajudante do cirurgião. Diga a Killick que prepare uma maca, uma camisola e um urinol.

Os dois ajudantes do cirurgião compareceram em menos de um minuto, seguidos alguns segundos depois por Killick, e na disputa que seguiu o débil Stephen, débil de
corpo e mente, viu-se avassalado pela amável insistência dos presentes.

- Às favas com a infecção - disse o comodoro. - Eu mesmo tive febre amarela na Jamaica quando era uma criança e me curei. Além disso, não é infecciosa.

- Doutor, o senhor está muito pálido - disse Tom Pullings. - O que o senhor necessita é de um pouco de ar fresco, homem, não ficar lá metido naquela enfermaria hedionda.

Avassalado. Depois de tanta atividade acompanhada por um ruído comedido, encontrou-se deitado em sua maca de sempre, sob uma escotilha escurecida, com um pote de
água morna tigida de café ao alcance de sua mão, e com as folhas de coca. A febre subia: seu pulso era firme e rápido, rápida, a respiração. Um agradável sopro de
brisa marítima acariciou seu rosto, e se dispôs a submeter-se ao acúmulo de adversidades que se aproximavam.

 

O primeiro estágio: sonolência no dia em que se inaugura a doença, o dia mais benigno, e devido ao calor corporal moderadamente elevado o paciente sofre de arrepios.
Neste momento a língua fica úmida e áspera. A pele, úmida, e amiúde se experimenta uma sudoração profusa.

 

- Por favor, senhor Smith, faça-me um breve relato dos três estágios desta doença, e dos fatos por separado. Seria muito conveniente que o senhor Macaulay pudesse
escutar-lhe e observar os sintomas a medida que o senhor os nomeie - disse Stephen.

- Bem, senhor, este é o segundo dia do primeiro estágio, e cabe esperar uma descida do calor corporal, acompanhado por incômodos e agitação crescentes. Observaremos
que a urina é turva, agitada, provavelmente com algum resto de sangue... Em todo caso, escura. E ainda que as dores musculares e a forte sudoração de ontem possam
diminuir, o paciente se desanima por momentos.

- Resulta muito adequado, muito valioso, o fato de que o paciente esteja informado de tudo isto. Cavalheiros, devem considerar que se o paciente é consciente de
que sua tristeza obedece a causas, digamos, mecânicas, de que é devida a um processo a mais da doença, comum a todos que a sofrem, e não a um desenlace razoado dos
trabalhos de sua própia mente, e ainda menos de um princípio de melancolia ou mesmo de um resultado de um fatídico sentimento de culpa, estará muito melhor armado
para combater seus ataques.

- Sim, senhor - disse Smith. - Mostre-me a língua, por favor. Exatamente. Este é o segundo dia, e tem a metade de cor marrom. Quer que lhe sustente a bacia, senhor?

- Se é tão amável.

- Amanhã cederão a secura e o mau colorido. Mas lamento dizer-lhe que amanhã, terceiro dia do primeiro estágio, o senhor também sofrerá de violentos vômitos e de
uma fraqueza sem comparação.

- A fraqueza já é apreciável. Por favor, aproxime o copo de vinho de meus lábios. Quase não posso com ele, e menos ainda evitar que derrame.

 

Uma quadrilha de marinheiros ocupados em entesar o conjunto de amantilhos do cesto da gávea do traquete, frouxo devido ao início da estação seca, observou seu guarda-marinha
servir-se de um gradil para deslizar-se até o convés, provavelmente para ir ao beque. Relaxaram, e um dos mais tontos, voltando a retomar os falatórios que corriam
pelo barco, disse:

- Assim que o doutor não nos permitiu desembarcar por medo da febre essa feliz, e resulta que é ele que a pega, oh, ah, ah, ah! Não nos deixou ir e agora ele a tem:
Deus nos assista.

- É melhor que não diga nada a esse respeito diante de Barret Bonden - advertiu outro, - ou lhe porá a cara como pôs em Dick Roe, que agora ri pelo revés, pela nuca.
Grande cara lhe pôs.

 

Segundo estágio: pulso fraco e queda, ausência de febre; o calor corporal se situa abaixo do normal. Inquietação extrema e difusão amarela dos olhos e da pessoa.
Vômito negro. Maior abandono. Prostração. Delírio. Este estágio dura um número indeterminado de dias antes de cessar por completo ou fundir-se com os sintomas própios
do terceiro estágio.

 

Foi graças a esta prostração e ao delírio, um delírio moderado, contido pela folha de coca e mais póximo de um estado de sono de vigília que ao desvario fruto da
febre elevada, pelo qual Stephen foi consciente em todo momento da presença de Jack, presença reconfortante. Jack se movia pela habitação de um lado para o outro,
falando de vez em quando em voz baixa, dando-lhe de beber, cuidando-lhe na doença. Também, em um de seus muitos intervalos de lucidez, ouviu dizer a um marinheiro
do castelinho:

- Nem pense respirar perto da escotilha, companheiro: aí abaixo têm ao cirurgião, e o ar que sai daí é letal por si só. Há uma árvore em Java sob a qual é fatídico
ficar-se adormecido. Pois isto é o mesmo.

- Killick diz que não é contagioso.

- Se não fosse contagioso, por que o pobre diabo leva a comida a toda pressa contendo o fôlego com um pedaço de carvão na boca, e depois sai correndo para esfregar-se
a cara com vinagre e licor de Gregory, pálido e trêmulo? Que não é infeccioso? Porra nenhuma! Eu os vi morrer a dúzias em Kingston, até que os caranguejos de terra
arrebentavam e se enchiam de devorar seus cadáveres.

 

Terceiro estágio: o pulso, já débil, torna-se imperceptível e desigual; a temperatura perto da região precordial aumenta muito, a respiração se faz dificultosa,
com freqüentes suspiros; o paciente se torna ainda mais nervoso e extraordinariamente inquieto; o suor flue pelo rosto, pescoço e peito; a deglutição fica difícil,
subsultus tendinum, o paciente dorme muito. O estado de inconsciência pode durar oito, dez ou doze horas antes de que se produza a morte.

 

E então, outro dia (mas quantos depois?) ouviu umas vozes altas e claras, claras como em um sonho: "O assistente os ajudou a limpá-lo com a esponja. Afirma jamais
ter visto um corpo tão amarelo: como uma guinéu todo ele, repleto de manchas púrpuras. Os doutores dizem que se não levantar a cabeça em dois dias terão que jogá-lo
pela borda no domingo no máximo, para quando aparelhem a igreja".

 

Chegou o domingo e ao pôr do sol não se celebrara nenhum funeral, e na terça-feira Smith e Macaulay se aproximaram da cabine.

- Senhor, agora estamos convencidos de que saiu do terceiro estágio. É um prazer sentir-lhe o pulso, pois ainda que continue fraco é regular e perceptível. Também
é um prazer inspecionar seus excrementos. Os derrames internos de sangue são uma minúcia desde a sexta-feira, e o senhor já está recuperando as forças; quase pode
levantar um copo meio cheio. Sua voz se ouve na galeria de popa. Passará muito, muito tempo antes de que possa voltar a vagabundear por esses seus bosques, mas mesmo
assim já podemos felicitar-lhe e nos alegrar por sua recuperação.

- Alegrar-nos, senhor, alegrar-nos por sua recuperação - disse Macaulay, e ambos apertaram suavemente sua mão.

 

Passou muito, muito tempo antes de que Stephen pudesse caminhar pela cabine, mas quando pôde voltar a fazê-lo, e fazê-lo nessa coberta instável com suas pernas finas,
não só recuperava forças rapidamente, como também um apetite elogiável. Antes de ir por seus própios meios à galeria de popa, teve oportunidade de queixar-se do
estado de invalidez em que se encontrara consumido.

- A doença implica inumeráveis misérias, muitas das quais você mesmo conhece de sobra, meu amigo - disse um dia que Jack e ele se sentaram juntos na cabine, - e
entre elas, de certa forma a pior de todas é o total e absoluto egoísmo de quem a padece. Indubtavelmente, um corpo empenhado em fazer o possível para sobreviver
só se dedica a si mesmo; mas a mente que habita nesse corpo é tão proclive a dar-se um banquete de indulgência que, logo, quando a necessidade desaparece, segue
a seu ar. Com amarga vergonha devo admitir que sou completamente alheio ao êxito de nossa expedição, e inclusive a seu paradeiro atual. De vez em quando me falou
de passagem de diversas capturas, emergências, tormentas, inclusive do por todos temido harmattan, mas confesso que pouco foi o que ouvi, e pouco o que retive, de
tal forma que não pude elaborar uma narração continuada dos fatos. Seria tão amável de paçar-me outra rodela de abacaxi?

- Veja, o senhor Smith nos disse que seria preferível não se excitar nem molestar, sobretudo o primeiro, e de qualquer maneira desde que sucedeu algo interessante,
como quando a Aurora e a Laurel aprisionaram aquela enorme escuna de Havana, não tardava nada em adormecer.

- Diabo, sim, quanto dormi. Um banho saudável dentro e fora de um estado de rósea hibernação, não há nada mais reparador. Porém, por acaso não pensa em me dizer
como foi esta parte de nossa missão, que estágios já alcançamos, e se até o momento suas expectativas se cumpriram?

- No que concerne ao estágio, quase completamos nosso percurso da costa. Chegamos tão ao interior do golfo como havia planejado, talvez mais do que podia permitir-me,
e o fizemos a tempo, até o golfo de Benín. Agora nos encontramos a pairar frente à costa dos Escravos, e amanhã ou depois confio que os bergantins costeiros porão
as mãos em cima de Whydah e seu enorme mercado de escravos. Uma vez resolvido isso, entregarei a Henslow o comando das embarcações destacadas na costa. Henslow é
o comandante de bergantim de maior antiguidade.

Nós poremos proa para Saint Thomas, com o objetivo de aproveitar os alísios do sudeste.

- Agora recordo: dali a Freetown e ao norte!

- Isso mesmo. Com relação a nosso êxito, não acho que ninguém pudesse ter esperado mais ou, nem sequer, tanto. Aprisionamos dezoito navios negreiros e os enviamos
com as respectivas dotações de presa. Todos, ou a grande maioria, serão condenados, e é que pegamos de surpresa à maior parte destas embarcações ao adiantar-nos
às notícias de nossa presença, e como nos dispararam serão condenadas por atos de pirataria.

- Bom trabalho, por minha honra! Pelo menos terá libertado a cinco mil negros. Não me ocorrera que conseguiria semelhante façanha.

- Seis mil cento e vinte, contando com as mulheres. Ainda que houve alguns portugueses aos quais não tivemos mais remédio que deixar ir, pois possuíam uma documentação
especial e carregavam aos escravos para assentamentos portugueses. Também tivemos alguns duvidosos; veja, qualquer comandante que aprese uma embarcação que não descumpra
a lei é susceptível de ser demandado por danos, por tremendos danos e prejuízos. Apesar disso, tudo foi às mil maravilhas. Há alguns oficiais excelentes e muito
ativos a bordo das embarcações que seguiam a costa, assim como nos botes. Whewell é um deles, certamente. Amanhã virá para pegar as ordens referentes a Whydah, e
se você estiver com força suficiente lhe pedirei que lhe leia o diário de bitácula, que descreve por ordem todos os combates. Ele participou neles, enquanto que
eu não pude nem cheirá-los, exceto na tomada da presa de Havana.

- Não me ocorre nada que possa desejar mais. Porém, mesmo assim, irmão, apesar de tão surpreendente êxito, eu lhe vejo triste, abatido e inquieto. Não queria pecar
de excesso de confiança e se minhas palavras lhe parecem indiscretas, tal e como temo, não ache que lhe acusarei de mostrar-se circunspecto. Mas seu violino, que
me manteve com vida durante todas estas semanas desde a galeria de popa, fala piano, suavemente e sempre em ré menor. Tem este pobre barco uma entrada de água oculta
que não se possa solucionar? Perecerá?

- Triste, sim, nunca gostei de liderar desde a retaguarda - confessou Jack depois de olhá-lo largamente; - e não sabe o quanto me aflige a morte de tantos jovens
aos quais enviei ao interior. Cansado e inquieto: tenho dois motivos, duas razões de peso para estar cansado e inquieto. A primeira é que os ventos, depois de ter-nos
sido tão favoráveis até o momento, tornaram-se cruéis e desconcertantes, assim como no golfo de Benín, e temo (assim como Whewell) que possam permanecer assim durante
meses, impedindo-nos de alcançar Saint Thomas até que seja tarde demais. A segunda é que se conseguir levar minha esquadra até o ponto de reunião a tempo de enfrentar-nos
ao francês, não estou seguro de como se manejarão meus barcos. Lamento muito dizer isto, Stephen, ainda que tendo em conta que um barco é como uma caixa de ressonância
imagino que nada disto seja uma novidade para você. O fato é o seguinte: duas embarcações, que supõem quarenta por cento de nossa capacidade total em libras por
descarga, não estão em condições. Graças a todo o exercício que realizamos podem disparar toleravelmente bem, e também podem jogar os botes na água com tolerável
celeridade, o que não me impede de dizer que não estão em boas condições. Nenhum destes dois barcos desfruta do que você denominaria de harmonia; e ambos estão sob
o comando de homens que não estão preparados para assumir tamanha responsabilidade. Um é um sodomita, ou tem fama de ser, e essa suspeita o faz ficar em muito maus
termos com seus oficiais, enquanto que a disciplina entre seus marinheiros deixa muito a desejar; o outro é um maldito tirano, amigo do chicote, que pouco tem de
marinheiro. Se não o controlasse constantemente, agora mesmo estaria lidando com um motim, um motim em toda regra, dos feios.

Jack fez uma pausa, cortou com ar ausente outra rodela de abacaxi para Stephen e lhe ofereceu. Stephen agradeceu com uma inclinação de cabeça, mas não disse nada.
Não queria interromper o fio de seu discurso.

- Odeio ter que empregar tão chocarreira palavra para referir-me a Duff, que é de meu agrado além de ser um bom marinheiro, e me importa nada o fato de que seja
ou não sodomita. Mas tal como tentei fazer-lhe compreender, é preciso se conter a bordo de um navio de guerra. Uma garota a bordo é mau negócio. Meia dúzia de garotas
converteriam qualquer barco em um manicômio. Mas se um homem, um amante de outros homens, é um sodomita desenfreado, toda a dotação do barco se converte em sua presa.
Algo ruim. Tenho tentado fazê-lo compreender, mas não sou um tipo muito douto nisto de falar e me atreveria a dizer que levou a mal porque é discreto ao extremo,
e é que ao que parece só o que lhe importa é que sua hombridade, sua coragem, sua conduta como nós dizemos, possa ser posta em dúvida. Quando estava disposto a atacar,
fossem quais fossem suas possibilidades de sair garboso, tudo ia às mil maravilhas. É muito complicado. Seus oficiais querem prendê-lo para levá-lo ante um conselho
de guerra, pois estão muito alterados com tudo isso dos favoritos. Dizem que têm testemunhas e provas. Se o declaram culpado o enforcarão: esta é a única sentença
possível nestes casos. A coisa está negra. Negra para a Armada, muito negra em mais de um sentido. Fiz o possível para trocar seus oficiais: depois da febre e das
baixas resultantes surgiram várias vagas a cobrir, mas seu barco segue... - Sacudiu a cabeça. - E com relação ao Imperador Púrpura, que, por certo, nem sequer dirige
a palavra a Duff e quase não o faz quando se dirige a mim, conseguiu reunir uma camarilha de oficiais muito próximos a sua forma de pensar: não há um só marinheiro
entre eles, e inclusive o piloto necessita de duas guardas para fazer que o barco fique em um estado cristão. Isso tudo e a disciplina das Índias Ocidentais: cuspir
nos metais e poli-los durante todo o santo dia, e pendurar até o último homem da verga, tudo isso combinado, como não, com uniformes de qualidade, uma ignorância
extrema da profissão e um desprezo absoluto por qualquer capitão que demonstre ter outros interesses. Jamais na vida havia me topado com semelhante bando de incompetentes
reunidos em um barco de sua majestade.

- Talvez com a longa travessia para o norte que nos espera - Stephen aventurou-se a dizer, depois de Jack permanecer em silêncio durante um bom momento, - com o
exercício constante e mares mais frios, estas duas embarcações enfermas recuperem certa saúde.

- Espero que sim, não sabe como - disse Jack. - Mas necessitaremos de uma travessia incrivelmente comprida para conseguir que alcancem o nível de exigência de Nelson,
e que todos os homens troquem de quilha como uma luva. Com alguém como o Imperador Púrpura não há mudanças que valham: não há nada o que mudar, tão somente um conjunto
de atitudes ostentosas. Creio que o exercício e os mares frios podem operar um milagre, ainda que nós, por nossa posição longe da costa, estivemos muito ociosos.
Stephen, acredita que se pudesse contar com a ajuda de algumas almofadas poderia sustentar o violoncelo? Temos mar plano. Com um par de cabos à altura do peito nem
sequer notará o balanço.

 

Quando Whewell subiu a bordo do cúter do Cestos encontrou no castelo de popa tanto ao comodoro como ao capitão com aspecto comprazido. Depois de trocar os cumprimentos
de rigor, perguntou como estava o doutor; o comodoro assinalou a popa com um gesto de cabeça e Whewell, ao prestar atenção, ouviu a voz profunda e melodiosa, ainda
que um pouco instável, do violoncelo.

- Eu já sabia que uma simples febre amarela não poderia com ele - disse o comodoro. - Acompanhe-me e, depois de apresentar-me o relatório, eu o farei entrar. O doutor
ansia saber como foram as coisas em terra.

Ambos se dirigiram para a popa.

- Meu relatório não poderia ser mais breve, senhor. Whydah está vazia. Por fim as notícias nos adiantaram, e não resta um só negreiro na enseada que possamos aprisionar.

- Não sabe como me alegra ouvir isso - confessou Jack, e ao entrar na câmara encontraram a Stephen atado com correias a uma poltrona, com aspecto de um menino que
tivesse crescido de repente. - Doutor - exclamou Jack, - aqui tem ao senhor Whewell, que acaba de informar-me de que encontraram Whydah vazia. Alegro-me de todo
coração porque não podemos destinar mais oficiais e marinheiros para as dotações de presa. Com tantos em Freetown passeando já andamos bastante abaixo do complemento.
E que, ademais, isso nos permite abandonar esta costa infernal de uma vez por todas, rumar para Saint Thomas e para qualquer lugar cujo ar possamos respirar. Porém,
o vento já anda mais esticado que um rato preso na bodega, e tem pinta de seguir assim até que o sol se ponha, aí partiremos, diremos adeus aos bergantins e escunas
e, depois, daremos tal saldação a esses sevandijas da cidade e aos barracões que saberão o que significa exatamente a Ira de Deus. Senhor Whewell, eu lhe enviarei
os esboços das anotações que figuram no caderno de bitácula, de modo que o senhor possa informar ao doutor de todos os combates entabulados, e possa fazê-lo na devida
ordem.

 

As ordens puderam ser ouvidas no convés, e também o tamborilo dos pés que ressoava acima de suas cabeças enquanto se dispunham a içar as bandeiras de sinais. Já
haviam metido o leme para sotavento, o barco virava, virava, e ao pôr rumo para a costa seu movimento passou de forma gradual do balanço ao cabeceio.

- Olhe, senhor, aquele recruta do diabo - exclamou Whewell assinalando a Thames, a dois cabos de distância pela popa e na esteira do Bellona. Stephen distinguiu
que algumas das velas ondeavam, e também apreciou certo desvio de ambas faixas da esteira que traçava o navio insígnia; mas seu conhecimento do mar não lhe permitia
pôr um nome ao crime cometido, por muito vil que este pudesse ser.

Chegaram os esboços das anotações, mas antes de lê-los, Whewell perguntou por Quadrado e pela viagem que haviam feito Sinon acima.

- Quadrado era o que eu podia desejar - admitiu Stephen. - Não sabe quanto agradeço ao senhor por recomendá-lo; e ainda que minha pequena expedição tenha sido muito
breve, tive ocasião de contemplar muitas maravilhas e trouxe comigo um sem-fim de espécimes.

- Pergunto-me se o senhor viu ao seu potto. Recordo que tinha um interesse particular em topar-se com ele por esses lares.

- Vi um, estou seguro disso; e contemplá-lo não pôde ser mais gratificante. Mas fui incapaz de trazê-lo comigo.

- Em tal caso, o senhor saiba que tenho um a bordo do Cestos, se é que ainda está interessado. Mas temo que é da espécie Calabar, carece de calda: um anguantibo.
Um potto fêmea. Pensei no senhor quando o vi no mercado.

- Nada, nada neste mundo me comprazeria mais - exclamou Stephen. - Sinto-me em dívida com o senhor, não sei como compensar-lhe por seus incômodos, querido senhor
Whewell. Um potto Calabar a duas ou três horas de navegação, ou menos com esta esplêndida brisa doce que sopra. Que alegria.

As atividades na esquadrilha que servia na costa ocuparam mais ou menos a hora que precedia ao almoço, tempo que Whewell desfrutou em companhia do comodoro, do capitão,
do imediato e de um guarda-marinha imaculado que também parecia mudo. Tomaram o café no castelinho depois de ajudar a Stephen a subir pela escada. A essas alturas,
podia ver-se à proa um extenso pedaço da África, lagunas que cintilavam na costa, palmeiras altas como torres quase não visíveis, e verdor, um verdor amiúde escuro
que se estendia pelo interior até fundir-se com o céu e um horizonte indefinido. O guarda-marinha desculpou-se ruborizado antes de desaparecer. Os oficiais superiores
o seguiram depois de tomar um copo de conhaque.

- Ali, na margem mais afastada da laguna - assinalou Whewell, - a meio caminho, mais ou menos, fica Whydah. Quer a luneta?

- Se é tão amável. De modo que aí temos o grande mercado de escravos, mercado no qual, por outro lado, não vejo nem gente nem porto.

- Isso mesmo, senhor. Whydah não tem nada disso. Tudo tem que ser desembarcado ou levado consigo apesar do temível fluxo de ondas, observe como rompe, depois, praia
acima e através da laguna. Os mina, é que fazem tudo, dispõem de esplêndidos botes para superar este fluxo de ondas; mesmo assim não é nada estranho perder alguns
bens.

- Que curiosa disposição para um povoado que atua como centro comercial.

- Sim, senhor. Verá, há poucos portos reais ao longo da costa. E também são Dahomey o que vem a supor que praticamente tudo o que buscamos o poderíamos encontrar
mais para o interior. Sua capital fica situada nas montanhas. Nada sabem do mar e a costa lhes desagrada, porém são uma nação muito aguerrida, sempre andam assaltando
a seus vizinhos para capturar escravos para trocar por produtos europeus. De modo que comparecem a Whydah, que se encontra mais ou menos sob seu controle, por ser
o lugar mais próximo e por mais inconveniente que possa parecer. Pois exportam milhares e milhares de negros anualmente, converteu-se em um lugar bastante grande,
com bairros ingleses, franceses e portugueses, além de alguns árabes e yorubas.

- Vejo muito verde entre as casas.

- Laranjeiras, limeiras e limoeiros por toda parte, senhor, um autêntico gozo depois de uma longa viagem. Recordo que a primeira vez que estive aqui esprimi uma
vintena em uma tijela e joguei diretamente no papo. Naquele então as coisas não estavam tão bem organizadas, e era necessário levar a mercadoria por todo o caminho
até Abomey, a povoação do rei, ou a Kana, sob um sol a pino, que também pertence ao rei mas que é um lugar menor, como uma residência de descanso.

- Não acredito já ter lido sobre uma descrição real de uma povoação africana. Refiro-me a um povoado negro, não a um árabe.

- É um espetáculo muito curioso, senhor. Abomey tem um muro de seis milhas ao a redor, de vinte pés de altura e seis portas. Lá fica a casa do rei, um lugar espaçoso
como poucos, surpreendentemente alto, com caveiras alinhadas por toda parte. Crânios nas paredes, crânios em postes, crânios por toda parte, e também queixadas.
Certamente o senhor encontrará certo número de casas ewe - todo mundo fala ewe por estes lares, - que são feitos de barro e têm teto de palha; e algumas casas às
quais o senhor chamaria de palácios, uma praça de mercado de talvez quarenta ou cinqüenta acres, e um sem-fim de barracões que se perdem na distância.

- Como sua gente trata a um?

- Os Dahomey são honrados e bravos, ainda que reservados; contudo, tive a impressão de que me olhavam por cima do ombro, nada mais verdadeiro, certamente, já que
são mais altos, mas me refiro a uma questão de arrogância. Mesmo assim, não recordo que nenhum dos homens se comportasse de um modo que me parecesse digno de crítica;
e pois levara comigo uma dúzia de baús de um ferro de primeira e capacetes para suas amazonas, o rei ordenou que me dessem um fetiso de ouro que pesava um quarto
de libra.

- Disse suas amazonas, senhor Whewell?

- Sim, senhor. As amazonas Dahomey. - E ao ver que Stephen não parecia entendê-lo, acrescentou: - as unidades mais efetivas do exército do rei são compostas por
mulheres jovens, senhor, valentes a mais não poder e umas verdadeiras feras. Nunca vi mais de um milhar, quando alguns bandos em particular marchavam a bom passo;
mas estou seguro de que havia muitas mais. Foi para elas para quem levei os capacetes de ferro, os chapéus de guerra.

- Suponho que são guerreiras, não? Não se limitam a seguir aos homens à guerra.

- Certamente que são guerreiras, senhor, e conforme se diz são terríveis. Desconhecem o medo e são terríveis. Sempre ocupam o posto de honra na batalha, e são as
primeiras a atacar.

- O senhor me surpreende.

- A mim também me surpreendeu, senhor, quando um punhado do que eu suponho eram mulheres sargento me obrigaram a ir a sua tenda e dar-lhes os chapéus de guerra.
Eu então era jovem, e não era tão feio como agora, e lhe direi que me usaram de uma maneira vergonhosa. Ainda me ruborizo ao recordá-lo. - Inclinou a cabeça, lamentando
ter dito a anedota.

- Com relação a esse potto com que o senhor me presenteia tão amavelmente, senhor Whewell, é tão estritamente noturno como seu parente o potto comum?

- Senhor, não tenho a menor idéia. Estava ali, no mercado, feito um novelo debaixo de um feixe de palha que havia no piso de uma esplêndida jaula de cobre, e quando
perguntei o que era, a anciã me disse: "Potto". Não teria sido satisfatório para ninguém se não regateasse um pouco, de modo que lhe ofereci o equivalente a quatro
peniques por não ter calda; mas ao final obteve um preço que a fez rir comprazida e disse que ao potto acrescentava também alguns livrinhos e gravuras. Fora a governanta
de um missionário papal, já vê o senhor, e vendia tudo o que lhe restava. Tudo já desaparecera, excetuando esses livros, os documentos e o potto, do qual suspeitavam
todas as nações de Whydah, inclusive os hausas, que se tratava do fetiso romano, capaz de ofender aos espíritos do lugar. Levei-a a bordo do Cestos e justo antes
de fazê-lo vi que se aferrava a mim com os olhos abertos como pratos, mas o fato é que não parecia agradar-lhe o que via, e se encolheu de novo quase de imediato
entre a palha por mais que tenha lhe oferecido uma banana. Isso é tudo o que sei dela, exceto que a teriam servido amanhã assado se não chegasse a encontrar o dono.

- O senhor não o terá nesse elegante barco, querido senhor Whewell?

- Oh, não. O movimento parece inquietá-lo, e tivemos que superar uma marejada de proa. O que trouxe comigo foram as gravuras e os livros.

Os livros eram um De situ orbis, de Elzevier Pomponius Mela, um breviário quase reduzido a um estado de destruição total e um grosso caderno repleto de notas em
algumas margens de equivalências entre diversas línguas africanas, e, em outras, de reflexões pessoais e o que pareciam ser esboços de correspondência. As gravuras
eram esmeradas e inexpertas representações do potto em diversas atitudes, sem calda e inquieto.

- Lamento decepcionar-lhe - disse Whewell, - mas a esquadra anda a seus bons oito nós. Olhe, ali, a estibordo, pode ver nossos bergantins e escunas. Dentro de alguns
minutos devo apresentar-me com as ordens. Todos os barcos e embarcações têm instruções de realizar a saldação real dos vinte e um canhonaços.

- E por que, pelo amor de Deus? Que eu saiba hoje não é o dia do Oak Apple{21} nem corresponde a nenhuma outra ocasião célebre.

- Objetiva impressionar a toda Whydah e ao rei Dahomey: e pode justificar-se alegando que é o aniversário de um membro da família real..., bem, quase. O senhor Adams
esteve buscando algo ao que se agarrar no livro e achou um tal duque de Habachtsthal, que ao que parece nasceu hoje. É um primo próximo, acho. Seja como for, é o
bastante régio para o propósito que nos ocupa.

Aquele infeliz nome nunca andava muito longe dos pensamentos de Stephen, mas o fato é que aquele dia parecia mais remoto do que nunca, e sua súbita e inesperada
menção correu um véu sobre a felicidade de Stephen.

Whewell empreendeu o caminho de volta para a baía de Whydah, deixando as gravuras e outras coisas nas mãos de Stephen. Este pegou o caderno e ao folhear as últimas
páginas encontrou de repente um pequeno desenho do potto e de uma criatura muito parecida que supôs seria o Lemur tardigradus, com o seguinte texto, ao que parece
escrito por outro membro da Congregação do Espírito Santo:

 

Em seus modos se mostra geralmente amável, exceto na estação fria, quando seu temperamento parece mudar totalmente. Seu Criador o fez tão sensível ao frio, ao qual
deve ter sido exposto em seus bosques originários, que lhe proviu de uma grossa pelagem que em poucas ocasiões encontramos em animais própios destes climas tropicais.
Não só o alimento constantemente, como que o banho duas vezes por semana em água morna conforme a temperatura da estação. Ele me reconhece, e se mostra agradecido
em todo momento, ainda que quando o pertubava no inverno costumava indignar-se e parecia repreender-me a incomodidade que sofria, por muito que tivesse adotado todas
as precauções possíveis para mantê-lo na temperatura adequada. Em todo momento se mostra comprazido quando o acaricio sua cabeça, e de maneira freqüente tem que
agüentar que toque seus afiadíssimos dentes; de gênio sensível, quando se incomoda sem motivo aparente expressa seu ressentimento mediante um burburinho similar
ao de um esquilo.

No espaço compreendido entre a meia hora depois do nascer do sol e a meia hora antes de pôr-se dorme sem interrupção, feito um novelo, como um porco espinho. E quando
acorda, começa a se preparar para os trabalhos de uma nova jornada: lambe-se e se veste como um gato, operação que a flexibilidade de seu pescoço e extremidades
lhe permitem realizar perfeitamente. Está preparado para um desjejum leve, depois do qual costuma desfrutar de uma breve sesta; recupera toda sua vivacidade quando
o sol se põe. Pouco antes do amanhecer, quando minhas prematuras obrigações me permitem frequentemente ter a oportunidade de observá-la, parece solícita de minha
atenção, e se lhe aproximo um dedo, ela o lambe ou o rói com muita suavidade, e come fruta quando lhe ofereço, ainda que nunca muita durante a refeição matinal.
Quando o dia ganha terreno de novo para a noite, seus olhos perdem seu lustre e vigor, momento em que lhe esconde para desfrutar de um sonho de dez ou onze horas.

 

Era difícil compreender a letra do missionário, pois era irregular e trêmula, parecia escrita pela mão de um homem de idade avançada, talvez enfermo, e quando Stephen
chegou ao pé da página, o Bellona, seu consorte e todas as embarcações que serviam em trabalhos costeiros haviam formado uma linha paralela com relação à praia,
pairar sob a carícia de um vento suave e em franca acalmada a pouco mais que uma distância à queima-roupa da imensa multidão que atapetava a praia. Ouvira as ordens
de sempre, o grito rouco de Meares, do contramestre e de seu ajudante, e sabia que estavam a ponto de executar a saldação. Contudo, nada teria podido preparar-lhe
para o prodigioso e estrondoso rugido que seguiu à primeira descarga do Bellona. A gente que havia na praia parecia igualmente surpreendida, inclusive mais, e vários
milhares se prostraram de joelhos levando as mãos à cabeça.

O ruído não foi tão memorável, nem os penachos de fumaça tão densos como foram em Freetown, mas o caso é que tudo estava mais concentrado. Quando Stephen pôde atender
de novo o fluxo de seus pensamentos, pensou que Jack Aubrey tinha provavelmente razão e o comércio de escravos em conjunto havia sofrido um revés muito maior que
o custo em pólvora (porque não se utilizaram balas). Não estava muito preocupado com relação ao potto. As criaturas que viviam nessa zona sacudida pelas tormentas
tropicais, com aquele homérico trovão que rugia sobre suas cabeças, podiam suportar qualquer coisa que a Armada Real tivesse em seu arsenal, particularmente se dormiam
durante todo o dia com a cabeça entre os joelhos.

Este era o caso daquele potto em questão. Quando Whewell e Quadrado o trouxeram a bordo e o levaram à diminuta cabine de Stephen na enfermaria da coberta dos alojamentos
- pois desconfiava que Jack falando em voz alta e aos sopapos não lhe cairiam bem até que se acostumasse com a vida do barco, - sentou-se com ele um bom momento
sob a luz de um lustre. Ao cair o sol saiu da jaula um pouco nervoso, disso estava seguro, igual que o faria qualquer outro potto selvagem ao encontrar-se em um
novo ambiente, ainda que não parecia nem constrangida nem aterrorizada. Não quis ter nada a ver com a banana que lhe ofereceu, menos ainda com o dedo, mas se asseou
até certo ponto - era uma criatura esplêndida - e um pouco antes de que Stephen saísse descobriu que uma das muitas baratas do lugar entrava em sua jaula. Seus imensos
olhos se iluminaram estranhamente febris: ficou completamente imóvel até que a teve ao alcance, momento em que a pegou com as mãos. Contudo, para comer o inseto,
coisa que fez em um alarde de autêntico apetite, recorreu a uma só de suas mãos, a esquerda.

- Boa noite, querido potto - disse ao fechar a porta ao sair. Percorreu a enfermaria e o camarote dos guardas-marinhas, cheio naquele momento de uma dúzia de meninos
e jovens, comprometidos em desfrutar da janta, jogando-se pedaços de bolacha e gritando uns para os outros. Todos eles saltaram ao ver o doutor, perguntaram como
se achava, disseram que se alegravam muito de ver-lhe caminhar sobre seus pés, mas que não devia fazer esforços, sobretudo tão cedo e a sua idade, e que devia andar
com atenção. Com esse terral bendito de gáveas a barco cabeceava no fluxo de ondas como o cisne de Leda, e os dois ajudantes de maior antiguidade do piloto de derrota,
Upex e Tyndall, insistiram em levar-lhe escada acima até a coberta da segunda bateria, cada um em um cotovelo, depois ao convés principal, e de ali ao castelo de
popa, onde lhe considerariam a salvo e capaz de chegar-se à popa, com ajuda, isso sim, do imediato, até a cabine.

- Céus, Stephen - exclamou Jack. - Achei que estava dormindo. Estive caminhando na ponta dos pés e bebendo o xerez sem fazer ruído.

- Estava sentado com meu potto, na enfermaria - explicou Stephen, - porque é uma criatura noctâmbula. Que amáveis são os jovens do camarote.

- Pois Sim. Agora já estão mais tranqüilos e são menos incômodos: inclusive há um ou dois que poderiam converter-se em marinheiros de verdade se perseverassem nos
próximos quinze anos, mais ou menos. Mas pequena façanha subir desde a enfermaria no estado em se encontra. Creio que lhe deram uma mão.

- Melhor dizendo, nós nos demos mutuamente - disse Stephen. - Recupero a força em arrancadas. Em arrancadas - repetiu a expressão náutica com certa complacência.

E se bem era verdade que por um lado mentia como um velhaco, por outro dizia a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade. Dia após dia aquele maravilhoso
vento soprava com força e levava a esquadra coberta de lona para longe do infeliz golfo, em uma ocasião até o ponto de marear as monterillas a bordo da Thames depois
de repetir-se três vezes o sinal de forçar vela, a terceira repetição enfatizada com um canhonaço para barlavento. Com o transcurso dos dias, Stephen se tornava
mais ativo, mais ágil, e, como o potto, mais glutão.

Muitos dos enfermos que haviam servido nas embarcações costeiras se encontravam nesse momento no Bellona e em outros barcos da esquadra. A maioria deles sofria febres
de um ou outro tipo: terçãs em sua maior parte, terçãs duplas, remitentes e quartãs, ainda que também se registraram três casos de febre amarela. O doutor Maturin
não tardou muito em recuperar o costume de fazer suas rondas matinais, acompanhado por Quadrado, que o ajudava a mover-se pela convés, onde permaneceria durante
o tempo que levava em apurar-se meia ampulheta, mais ou menos, desfrutando em companhia de Jack, Tom e todos os marinheiros presentes da atual marcha da esquadra,
enquanto o vento assobiava ora pela amura de estibordo, ora pela de bombordo. Já não era o vento cristão que havia soprado pela alheta de estibordo como no primeiro
dia que se aproximaram à praia, ainda que tampouco os desviava de seu rumo, de modo que navegavam a orçar rumo à Linha, sem necessidade de mudar de bordo mais que
de guarda em guarda.

- Conforme os guineanos mais veteranos, jamais se vira sorte semelhante - assinalou o senhor Woodbine, o piloto, - e alguns marinheiros afirmam que seu potto trouxe
boa sorte ao barco.

- Meu assistente Joe Andrews me há dito que muitos dos marinheiros africanos dizem que não há nada como um potto para atrair a boa sorte - comentou um oficial da
infantaria da marinha, presente no castelo de popa. - Afinal de contas, há um campo do potto na Bíblia, não é assim?

- É verdade que Barker e Overly estão melhorando? - perguntou Jack a Stephen.

- Isso mesmo - respondeu Stephen, que havia permanecido horas inteiras sentado com eles, convencendo primeiro a seus vizinhos de que a febre amarela não era infecciosa,
apesar de não trocarem palavras com os enfermos, cuidarem muito para não respirar o ar que estes respiravam e permanecerem todos dando-lhes as costas. Depois assegurou
aos pacientes que tinham muitas possibilidades se se aferrassem à vida com todas suas forças e não se abandonassem ao desespero. Ninguém a bordo teria mais autoridade
neste particular, e ainda que o terceiro, avançada a doença, morreu quase de imediato, o mais provável era que Barker e Overly encontrem finalmente outro modo de
reclamar o Céu.

- Ah - disse Jack assentindo com a cabeça, - bom truque trazer a bordo esse potto.

- Que o diabo leve sua débil alma, Jack Aubrey. Está agindo como um pagão ímpio e um infame cachorro supersticioso - exclamou Stephen, profundamente irritado.

- Oh, peço que me perdoe - disse Jack muito ruborizado. - Não era isso o que pretendia. Em absoluto. Só queria tranqüilizar aos homens. Estou seguro de que seus
cuidados também os ajudaram a se recuperar. Não me resta a menor dúvida.

Navegaram à orçar, à orçar e sem demora com ventos em sua maior parte procedentes do sudoeste, ventos que amiúde rolavam mas que jamais acalmavam: não apareceu nenhuma
condenada calmaria do golfo com as densas brumas portadoras de febres que sopravam desde a costa. Quando alcançaram Saint Thomas viram uma nuvem coroando o cume
que se destacava no horizonte a setenta léguas a su-sudoeste quarta leste; Stephen tinha ganhado catorze libras de peso e seus calções se mantinham em seu lugar
sem necessidade de recorrer ao alfinete.

- Hei aí nossa salvação - exclamou depois de que lhe arrancaram de um plácido sono reparador para que pudesse ver o cume em questão.

- A que se refere? - perguntou Jack com desconfiança. Mais de uma vez lhe havia afastado da rota, ou se vira tentado a fazê-lo por culpa de ilhas remotas nas quais
se rumorejava que aninhava um primo do fênix, curiosa galinha sem dúvida, ou os lagartos partenogenéticos (aquilo foi no mar Egeu), e não tinha a menor intenção
de desembarcar ao doutor Maturin em Saint Thomas para que levasse a cabo outra de suas intermináveis expedições. Qualquer marinheiro teria reparado no particular
acúmulo de nuvens que se formavam pela amura de estibordo, empurradas pelos alísios do sudeste.

- Meu querido comodoro, como pode ser tão esquecido? Não lembra que lhe disse uma e mil vezes ao longo de toda esta mortífera semana que quase não me resta um dracma
de quinino no ambulatório, já sabe, a infusão de casca de jesuíta. Meus pacientes afetados de febres a consumiram de dia e de noite. Além disso, não terá esquecido
que os outros barcos me hão privado de vários quartos de Winchester? Não recorda que a esse pastrano, ao que não vamos nomear, não lhe ocorreu outra coisa que jogar
por terra todas meus garrafões de reserva? Não é Saint Thomas a melhor ilha do mundo para conseguir casca da melhor qualidade, casca que nos garantirá livrar-nos
de enfermos em um abrir e fechar de olhos? E não só casca, como os amáveis frutos da terra, cuja carência se torna cada dia mais evidente.

- Isso implicará em perder um dia - disse Jack. - Ainda que devo admitir ter ouvido algumas queixas a respeito da casca, tanto pela quantidade como pela qualidade.

- A infusão de casca de jesuíta é um específico soberbo para combater a febre - disse Stephen. - É necessário que nos rebasteçamos com essa casca.

Em circunstâncias que não poderia recordar com exatidão, provavelmente durante uma festa celebrada em Keppels Head, em Portsmouth, Jack havia dito que a "infusão
de casca de jesuíta era pior que sua mordedura", comentário acolhido com grande algaravia e admiração cordial. Sorriu ao recordá-lo e ao observar o rosto inocente
e sério de seu amigo (nada mais afastado do de um lagarto partenogenético) disse:

- Muito bem. Mas será chegar e partir, o tempo necessário para desembarcar a toda pressa, comprar uma dúzia de garrafas de infusão e de volta a bordo. - E acrescentou
para si: - O que eu não daria para que as coisas fossem tão simples.

E não o foram, certamente. Nunca o eram tratando-se de portos que não pertencessem a sua majestade. Primeiro estava a questão da saldação, pois nenhuma das embarcações
do rei podia efetuar a saldação devida a um forte estrangeiro, a um governador ou a um dignatário local sem ter-se assegurado antes de que lhes devolveriam o cumprimento
com o mesmo número de canhonaços. Isso supunha despachar a um oficial, acompanhado de um interprete; sorte que o senhor Adams tinha certos conhecimentos de português.
Também estava a questão da prática..., mas depois de que os quinze canhonaços de rigor reverberassem ao longo da baía Chaves, um homem enviado pelo capitão do porto
apareceu em uma bela galera, e ao ouvir que a esquadra vinha da costa dos Escravos adotou um porte sério e observou que, como havia registrado um brotamento de praga
em Whydah há três dias, teriam que submeter-se a uma quarentena antes de que alguém pudesse desembarcar. Stephen raciocinou com ele em particular, convencido como
estava da possível lassitude das regulamentações a esse respeito. Finalmente se decidiu que o doutor e um pote de cada um dos barcos poderiam passar umas horas em
terra, mas ninguém se adentraria a mais de uma centena de passos da margem.

Tal e como mais de um esperava na esquadra, o segundo tenente da Thames e o jovem oficial da infantaria da marinha do Stately, que haviam compartido com Stephen
aquela conflituosa refeição, aproveitaram a ocasião, a primeira que se apresentava, para resolver seus desacordos. Eles e seus assistentes se adentraram a mais de
cem passos da margem, mas não muito mais, ao ver que havia um conveniente coqueiro a mão. Ali se mediu o terreno, e ao cair o lenço ambos efetuaram um disparo no
estômago do adversário. Foram levados de volta ao bote, e a questão da hombridade e a combatividade do Stately seguiu em suspenso.

- Você sabia algo desta refrega, Stephen? - perguntou Jack naquela noite, quando Saint Thomas se afundava no extremo sul do mar e o Bellona recuperava o tempo perdido
mareando as alas e as rastreiras, estendidas para aproveitar a carícia dos alísios do sudeste.

- Palavra que estive presente quando se efetuou a provocação.

- Devia ter me dito, poderia tê-lo impedido.

- Bobagens. Produziu-se uma ofensa em toda regra, e o infante da marinha do Stately tinha todo o direito do mundo de responder a ela. Não se ofereceu uma desculpa,
não se retirou a ofensa. Não havia outra saída, como creio que poderá compreender.

Jack não pôde negar.

- Espero que esse jovem não morra - disse sacudindo a cabeça. - Se morrer, o mais provável é que o pobre Duff se enforque. Acha que se recuperará? Refiro-me ao do
Stately.

- Sabe Deus. Não o vi. Terminou antes de que tivesse saído da botica, e só o que vi foi seu sangue na areia. Mas normalmente as feridas no abdomem têm um desenlace
fatal, se as vísceras são feridas.

Os dois jovens morreram em conseqüência do duelo, mas não antes do segundo tenente, por insistência do capelão da Thames, ter reconhecido que estava equivocado e
enviasse a mensagem de rigor a Willoughby, o infante da marinha, que respondeu agradecendo e desejando-lhe uma pronta recuperação. Contudo, a reconciliação foi limitada
a quem havia se enfrentado em duelo. Aumentou a hostilidade entre os dois barcos, fato patente a julgar pelos gritos de "Há! Os do barco de maricas!" desde quando
houve possibilidade de que os ouvissem, ou "Cuidado com essas crianças!" quando não a havia, tudo isso por parte da Thames. O Stately chamava o outro por "Lassitude
de estais!", ou o cominava "A cubrir-se de lona aí!". Não é que se apresentassem muitas ocasiões para mostrar-se rudes, pois embora tenha variado a intensidade dos
maravilhosos alísios, o vento nunca chegou a cair até o ponto de não poder navegar, tal como costumava suceder nas zonas de calmarias equatoriais, o que teria facilitado
as visitas de cortesia entre os barcos, assim como os convites entre os diversos grupos de oficiais: tampouco o comodoro forçou uma calmaria artificial ao ordenar
pôr-se a pairar, nem mesmo no domingo. A verdade é que estava obcecado com a possibilidade de chegar tarde, e ainda que em dias menos ventosos que o normal chamava
a Ringle para que percorresse a linha e perguntasse a seus capitães como andavam, insistia constantemente em sua máxima de "Não perder nem um minuto: não há um minuto
a perder", e a obedecia até o ponto de proibir aos barcos que visitava diminuissem vela para que pudesse subir a bordo com mai facilidade. Em uma ocasião comeu a
bordo do Stately, e ainda que dera o comando de um bergantim ao imediato, o mais teimoso em advogar contra o capitão Duff, que havia querido prendê-lo, lamentava
encontrar uma mostra tão evidente de tensão na mesa do capitão: os oficiais não pareciam muito cômodos, e Duff, ainda que fosse um bom anfitrião, mostrava-se nervoso
e carente de autoridade.

- É um tipo bom, amável e governa o barco como um marinheiro de primeira, mas parece incapaz de aceitar um conselho - disse Jack ao voltar.

Contudo, aquele foi o único dia triste de um total de dez, pois dez dias, nem mais nem menos, levaram para chegar a Freetown - se não fosse pela pouco marinheira
Thames, a coisa teria ficado em oito, - e o restante do tempo desfrutaram de uma deliciosa travessia, de um mundo ao qual haviam se acostumado nos vastos confins
do Pacífico e ao qual voltavam como se volta ao seu ambiente natural, composto pelos devidos rituais e cerimônias a bordo, todos eles separados pelo toque das correspondentes
badaladas, como num monastério. Oito badaladas para a guarda de meia, momento em que quem tinha a obrigação de apresentar-se embaixo do sol com um convés imaculado
devia abandonar suas macas: exatamente duas horas antes de que o astro aparecesse; oito badaladas para a guarda de oito às doze da manhã, quando os oficiais mediam
a altura do sol ao meio-dia e à força de apito se chamava para o rancho. Sinos e apitos todo santo dia, e também um pouco de música: o toque do tambor seguindo a
melodia do Corações de carvalho para anunciar o almoço na câmara dos oficiais - ainda que na Aurora, cujo oficial da infantaria da marinha organizara uma banda entre
seus homens, faziam em grande estilo, - de novo o tambor para o alarme e os preparativos de guerra, e durante muitas noites os violinos, as gaitas ou o diminuto
pífano que tocavam para os marinheiros que bailavam no castelo de proa. Mais badaladas durante toda a noite, talvez algo emudecidas. Estas medidas formais haviam
existido, certamente, durante as esgotadoras jornadas em que se arrastaram pelas costas do Golfo: sucedia amiúde que o Bellona pairava, ocioso. Mas somente agora
recuperavam todo seu significado, e em um tempo surpreendentemente curto esta parte da viagem pareceu ter durado uma eternidade.

Para Jack e Stephen a noite também recuperava sua habitual estrutura repartida entre a janta e a música. De vez em quando disputavam uma partida de xadrez ou jogavam
cartas, sobretudo se o mar se empenhava em impedir que Stephen controlasse o violoncelo; ou conversavam animados sobre os amigos que tinham em comum, sobre as viagens
que haviam feito juntos; raras vezes falavam do futuro, causa de zelos para ambos, tema do qual costumavam fugir se fosse possível.

- Jack - disse Stephen quando o cabeceio do barco o obrigou a render o arco. Mostrou-se diminuído porque sabia o muito que desagradava a Jack tratar de qualquer
tema que pudesse jogar uma mácula sobre sua profissão, - afligir-lhe-ia muito falar-me um pouco mais da sodomia na Armada? Geralmente ouve-se coisas, e a perpétua
repetição do Código Naval com essa alusão ao "pecado detestável e contra a natureza da sodomia" faz que forme parte do mundo naval. Contudo, aparte de seu primeiro
comando, o bergantim Sophie...

- Era uma corveta - propôs Jack, irritado.

- Mas tinha dois mastros. Lembro perfeitamente: um na frente, e o outro, se me segue, atrás. Pelo contrário, uma corveta, tal e como nunca cessa de me repetir, tem
só um, mais ou menos no meio.

- Ainda que não tivesse um só mastro, ou cinqüenta, seguiria sendo uma corveta desde o momento em que li minha nomeação a bordo. Eu era comandante, ou seja, um tenente
que ainda não foi ascendido a capitão de navio. Qualquer coisa que esteja sob o comando de um comandante se converte instantaneamente em uma corveta.

- Bem, nessa embarcação havia um marinheiro que não podia conter sua paixão. Naquele caso foi por uma cabra, se não me engano. Mas além disso não recordo nenhum
outro exemplo, e olhe que a esta altura já estou feito todo um lobo do mar.

- Não me surpreende que seja assim. Mas quando um se detém a pensar como são as coisas abaixo do convés, com trezentos ou quatrocentos homens apertados, a quantidade
de coisas que se vê quando se dobram as macas e a natureza pública dos beques, resulta difícil imaginar um lugar menos adequado para tais travessuras. Ainda que
se dê de vez em quando nos poucos buracos e cantos que possue um barco de guerra, e também na intimidade das cabines. Recordo um caso horroroso que sucedeu em Córsega
no ano noventa e seis. A Blanche, ao comando do capitão Sawyer, e a Meleager, ao comando do capitão Cockburn, George Cockburn, ambas fragatas de trinta e dois canhões
de doze libras, haviam navegado de conserva no ano anterior e sucedeu algo disso no qual Sawyer estava envolvido. Recorda-se de George Cockburn, Stephen?

- Sim. Um homem excelente, um marinheiro de raça.

- Pois reuniu a todos os homens de ambos barcos que estavam a par e os fez jurar que guardariam silêncio sobre aquele assunto. Foi isso que ele fez. Mas resultou
que no ano seguinte Sawyer voltou à carga, chamando os garotos do traquete para sua cabine e apagando a luz. E, certamente, favorecia a esses tipos e não permitia
que seus oficiais os instassem no cumprimento do dever, de modo que a disciplina começou a ir ao diabo. Depois de fazer de sua capa um saio, o imediato solicitou
a formação de um conselho de guerra, que lhe foi concedido, e a Sawyer não ocorreu outra coisa para defender-se senão fazer acusações contra quase toda a câmara
dos oficiais. O pobre George Cockburn se viu arrastado a uma situação terrível. Dispunha de certas provas da culpa de Sawyer graças à correspondência particular
que lhe havia dirigido, que o própio Sawyer lhe havia dirigido. Mas eram privadas, tão confidenciais como a correspondência de qualquer um pode ser. Por outro lado,
se Sawyer se safasse, todos seus oficiais enfrentariam a ruína, e um capitão que nunca deveria ter recebido o comando de nada seguiria estando. De modo que pelo
bem do serviço pegou as cartas, pálido como a morte quando o fez e muito depois. Os juízes deram voltas e mais voltas nas provas, como uma âncora pequena sobre o
cabo, e declararam inocente a Sawyer do ato em si, apesar de declará-lo culpado de indecência, de modo que não o enforcaram mas o expulsaram da Armada. D’Arcy Preston,
um conterrâneo seu, conforme acredito...

- Dos Gormanston. Lembre-me de lhe falar algum dia de sua morte. Por favor, continue.

- D’Arcy Preston o substituiu durante um tempo, e então Nelson, comodoro naquele então, nomeou Henry Hotham, um disciplinador daqueles, para o comando da Blanche,
que ainda estava em muito más condições. Como não podia ser de outra forma, a marinharia havia desfrutado tanto da desobediência e da lassitude que não estavam dispostos
a mudar as coisas. Acusaram-no de ser um condenado tártaro, e disseram que não estavam sequer dispostos a ouvi-lo ler sua nomeação a bordo: apontaram para popa os
canhões do castelo de proa e o jogaram do barco. Após um tempo, Nelson em pessoa subiu a bordo, levando Hotham consigo. Lembrou à dotação da Blanche que tinham a
melhor reputação de todas as fragatas da Armada Real - depois de tudo, tinham aprisionado duas fragatas pesadas em justo combate, - e lhes perguntou se realmente
queriam rebelar-se agora. Se o capitão Hotham os maltratasse, só teriam que escrever-lhe uma carta e ele os apoiaria. Ao ouvir aquilo lançaram três hurras e voltaram
a suas atividades, enquanto que ele regressava ao seu barco deixando Hotham ao comando. Mas não durou. A dotação havia se preguiçoso a perder, a podridão tinha se
arraigado no mais fundo, e quando chegaram a Portsmouth solicitaram que lhes designassem outro capitão ou outro barco.

- Tal petição lhes foi concedida?

- Certamente que não. Foram repartidos entre toda uma série de barcos que andavam com falta de homens. Com respeito ao caso que nos ocupa, ou pelo menos o que parece
perfilar-se como nosso caso, eu falarei com James Wood quando chegarmos a Freetown, para ver o que se pode fazer com uma reorganização cuidadosa e completa e, talvez,
alguns traslados mais. Mas por enquanto tomemos outra taça de vinho - o vinho do porto agüenta perfeitamente bem este calor, não lhe parece? - e voltemos a concentrar-nos
em nosso querido Boccherini.

Assim o fizeram, mas Jack tocou com desânimo, seu coração já não estava inclinado para a música, e Stephen se perguntou como podia ter se mostrado tão chato, sabendo
a devoção que sentia seu amigo pela Armada, para mencionar o tema apesar de seus própios receios. Consolou-se pensando que a água salgada cura tudo, que outras cem
milhas de navegação perfeita levantariam o ânimo de seu amigo Jack, e que em Freetown poderiam resolver-se suas dificuldades.

 

Noite limpa em Freetown, cujo imenso porto estava manchado de barcos pertencentes à Armada Real - além de alguns mercantes de Guinéu, - que cumprimentaram ao galhardete
do comodoro Aubrey com a prontidão própia das pessoas do mar. Havia despachado a Ringle na frente para que informasse ao governador de sua chegada, e quando o Bellona
estava ancorado adequadamente e toda a esquadra esteve em condições, com as vergas perpendiculares em relação ao casco, Jack, seguido por seus comandantes subordinados,
desembarcou com estilo para aguardar a chegada de sua excelência. Uniforme de primeira, espadim do uniforme de gala, chapéu de rebordo dourado e a medalha do Nilo.
O edifício do governo hasteou o sinal o sinal de reconhecimento do barco convidando a ele e a seus capitães para almoçar. A falua do Bellona constituia um espetáculo
precioso, recém pintada como estava, vogada por um conjunto de marinheiros tão limpos como caiba desejar, pois a maior parte deles havia seguido Jack de barco em
barco, e Bonden a governava, sério, consciente da ocasião, exatamente com a mesma pinta que Tom Allen, timoneiro, em tempos, do própio Nelson, com quem também se
parecia; ao seu lado ia o senhor Wetherby, oficial da infantaria da marinha, a quem havia tido que explicar-lhe como devia portar-se em tais circunstâncias.

A falua do Bellona - era um bote, de fato, mas ao ser governada pelos tripulantes da falua se convertia nesta e assumia uma importância um pouco mais esplêndida
- contava com catorze remos, e quando estes catorze homens faltavam à exata regularidade da remada se voltavam para a popa com certo olhar de desaprovação: o cirurgião
e seu guia haviam se convidado para a viagem, e seu aspecto desmerecia de certa forma a pulcritude do conjunto: descuidado, sem esmero, e levando um pára-sól de
cor verde, mal aferrado.

- Não entendo por que esse velho sodomita de Killick o terá permitido sair com essa pinta de pisa-verdes - sussurrou o proeiro.

- Não há problema - resmungou o companheiro. - Ele não irá ao palácio.

Quadrado e ele tinham intenção de passar pelo mercado para entrevistar-se com Houmouzios quando surgisse a ocasião, antes de ir sem perder um minuto ao lamaçal,
onde tomariam assento debaixo do pára-sól e contemplariam as ancudas aves de pernas longas, inclusive talvez algum cárabo, com sua luneta. Sentiu-se peculiarmente
abatido quando, ao chegar à barraca do cambista, só encontraram a Sócrates, que lhes informou que o senhor Houmouzios se achava ausente devido a uma viagem que fizera
ao interior, mas que voltaria na sexta-feira.

Stephen se sentiu peculiarmente abatido e contrariado. Contudo, depois de considerá-lo durante um tempo deu permissão a Quadrado para que fosse ver a sua família
e caminhou lentamente em direção ao fétido pântano, empobrecido na estação seca, mas fétido e pântano afinal de contas, e com as aves concentradas em uma zona pequena.
O que podia suceder? Adanson trabalhara muito duro, mas o fizera longe, ao norte, nas margens do Senegal; e mesmo Adanson não inspecionara todos e cada um dos ovos
que encontrou em sua passagem.

- Doutor, doutor! - exclamou alguém que gritava ao longe.

"Valha-me Deus. Que criaturas, imagine só chamar a um doutor - pensou. - Onde pretenderão encontrá-lo? O açor chega tão ao sul?"

- Doutor, doutor! - gritaram, roucos e correndo, até que finalmente se detiveram.

- O comodoro lhe roga que compareça de imediato - informou um guarda-marinha, quase sem fala. - Sua excelência lhe convidou para almoçar.

- Transmita meus mais sinceros cumprimentos e agradecimentos a sua excelência - disse Stephen, - mas digam-lhe que lamento não poder aceitar seu convite. - E se
dirigiu decidido pela fetidez do pântano.

- Vamos, senhor, não seja assim - disse um sargento alto. - O senhor vai nos meter em uma grande enrascada. Temos ordens de escoltá-lo de regresso, e nos castigarão
e nos açoitarão se não o fizermos. Vamos, senhor, se é tão amável.

Stephen observou a três ofegantes mas decididos ajudantes do piloto, depois olhou para o musculoso infante da marinha, e finalmente cedeu.

- Querido senhor - exclamou o governador. - Peço que me desculpe pelo pouco tempo que lhe dei, o pouco cerimonioso que foi meu convite, mas a última vez que o senhor
esteve aqui não tive o prazer, a honra, de conhecê-lo. Quando minha esposa se informou de que o doutor Maturin, o doutor Stephen Maturin, estivera em Serra Leoa
sem passar por aqui para almoçar não sabe quão mal ficou, o desolada que estava, o contrariada... Permita-me apresentá-la. - Conduziu Stephen ante a presença de
uma jovem muito atraente, alta, loira, agradavelmente roliça, que lhe sorriu com toda a amabilidade do mundo.

- Peço que me desculpe, senhora, por apresentar-me com este aspecto...

- Por favor - exclamou ela, pegando-lhe as mãos. - O senhor está coberto, coberto de louros. Sou a irmã de Edward Heatherleigh e li todos seus adoráveis livros e
ensaios, incluída a conferência que deu no Institut, que monsieur Cuvier teve a amabilidade de remeter para Edward.

Edward Heatherleigh, jovem muito tímido, era naturalista e membro da Royal Society, ainda que se deixasse ver em raras ocasiões. Possuia uma fazenda situada ao norte
da Inglaterra, onde vivia tão discretamente como era possível em companhia de sua irmã. Ambos colecionavam, desenhavam, dissecavam, e, acima de tudo, comparavam.
Tinham esqueletos articulados de todos os mamíferos ingleses, e Edward dissera a Stephen, um de seus escassos amigos íntimos, que ela sabia mais de ossos do que
ele, e que, além disso, era invencível em matéria de morcegos.

Tudo isto passou de través, ou, melhor, apareceu em sua mente com tal velocidade que não teve pausa alguma antes de que articulasse sua resposta da seguinte guisa:

- Senhora Christine! É um prazer conhecê-la. E saiba que agora já não lamento em absoluto o meu aspecto.

O capitão James Wood, o governador, possuía uma mulher que havia procurado seu entretenimento oficial antes do matrimônio, o que estava muito bem; pois se bem a
senhora do governador jamais esquecesse de cumprir com seu dever, e o fazia, poucos marinheiros podiam atrair sua atenção de verdade quando andava perto de um famoso
filósofo naturalista.

- Definitivamente o senhor tem que voltar amanhã - disse quando se despediram, - e lhe mostrarei meu jardim e meus animais: tenho um açor e um porco-espinho de calda
de broxa! Talvez o senhor queira ver meus ossos.

- Nada no mundo poderia comprazer-me mais, creia-me - disse Stephen, apertando sua mão. - E talvez possamos ir dar um passeio pelo pântano.

 

- Há, Stephen, que sorte você tem, palavra - disse Jack quando caminhavam para o bote. - A única mulher bonita da festa e a monopolizou por completo. No salão se
aproximou para sentar-se a seus pés e não trocou palavra com ninguém mais durante horas.

- Tínhamos muito do que falar. Sabe mais sobre ossos e das variantes existentes entre diversas espécies que qualquer outra mulher que conheça; muito mais, certamente,
que muitos homens, por muito anatomistas que se façam chamar. É a irmã de Edward Heatherleigh, a quem terá visto nas reuniões da Royal. É uma jovem estupenda.

- Que prazer. Encanta-me falar com mulheres assim. Caroline Herschel e eu costumávamos conversar até bem entrada a noite sobre o sedimento pomerano e dos últimos
estágios do espelho de um telescópio. É sábia e também é uma mulher preciosa, que benção. Ainda que não posso entender como foi que se casou com James Wood. É um
estupendo marinheiro, homem prático e um tipo excelente, mas nunca teve uma só idéia original em toda sua vida. E pelo menos tem o dobro de sua idade.

- Os casamentos dos outros costumam ser uma constante fonte de espanto - assinalou Stephen.

Seguiram caminhando, recusando a princípio a oferta que lhes fizeram de uma liteira, e depois a de uma rede pendurada em um pau carregado entre dois homens, meio
de transporte habitual por aqueles lares.

- Você também parecia divertir-se muito em sua ponta da mesa - disse Stephen após um tempo.

- E foi assim. Havia algumas pessoas da corte do Vice-almirantado, além do secretário civil, e não deixaram de nos dizer o bem que tinhamos feito, pelo que haviamos
superado aos outros, o ricos que seríamos quando tudo estivesse resolvido, sobretudo se nenhum dos americanos ou dos espanhóis processados ganhassem o recurso interposto
contra suas decisões, o que é muito improvável, ou o muito que desfrutarão nossos marinheiros quando recebam sua parte, que já se encontra preparada em bolsas de
lonita no tesouro, butim pronto para sua entrega. E, Stephen, agora que estamos na estação seca não seguirá empenhado em mantê-los toda a noite a bordo?

- Não. Mas bem sabe qual será o resultado. Percebo certa alegria que emana de você e que jamais atribuiria ao dinheiro do butim, por muito que o adore. Por casualidade
não terá recebido notícias do Almirantado?

- Oh, não. Não espero nada. Poupamos uma quantidade considerável de tempo no último trecho. Não. Ocorre que tenho correspondência de casa - disse ao mesmo tempo
que dava palmadas em seu peito, - e você também, mas da Espanha.

 

A carta de Stephen era de Ávila. Clarissa lhe informava de que levavam uma vida tranqüila e agradável, falava também de sua saudável, afetuosa e invejável filha,
agora toda uma tagarela e toleravelmente correta falando inglês. Brigid tinha aprendido um pouco de castelhano, mas preferia o gaélico que falava com Padeen. Aprendia
o alfabeto sem maiores problemas, mas não sabia com que mão devia escrever as letras. A tia de Stephen, Petronilla, era muito atenta com Brigid, com ambas. Algumas
das damas que viviam no convento tinham carruagens e as levavam de passeio, envolvidas em peles. Aquele era um inverno duro, e dois dos primos de Stephen, um procedente
de Segovia e o outro de Madri, ouviram lobos perto da estrada, ao meio-dia. Ela estava bem, era bastante feliz, lia tudo quanto não pudera ler em anos e lhe agradavam
os cantos das monjas: às vezes se aproximava com Padeen - que lhe enviava lembranças - da igreja beneditina para o ouvir o canto gregoriano. Adjuntava um pequeno
pedaço de papel, não muito limpo, com um desenho de um lobo com dentes e algumas palavras que Stephen não pôde distinguir até que se deu conta de que se tratava
de gaélico escrito foneticamente: "Oh, meu pai, espero que esteja bem, Brigid".

Permaneceu sentado em sua cabine, saboreando aquelas notícias e bebendo um suco de lima durante longo tempo, antes de que Jack aparecesse procedente da galeria de
popa com aspecto igualmente alegre.

- Recebi umas cartas encantadoras de Sophie: ela lhe envia todo seu carinho e tenho intenção de responder-lhe agora mesmo. Há um barco mercante que está a ponto
de largar amarras rumo a Southampton. Stephen, como se soletra peccavi?

Christine Heatherleigh havia deslumbrado ao doutor Maturin, que jazeu em sua maca naquela noite, sacudindo-se a mercê da agitação do Atlântico, pensando em tudo
o que havia sucedido naquela tarde. Entesourava uma viva imagem dela falando das clavículas dos primatas com os olhos extraordinariamente abertos. "É possível que
sua presença física tenha despertado umas emoções que acreditava adormecidas faz tempo em meu, digamos, peito?", perguntava-se. A resposta "Não. Meus motivos são
totalmente puros" chegou no preciso instante em que outra parte de sua mente considerava o suave aperto de sua mão como um gesto de... amabilidade? Por um amigo
de seu irmão? Como de certo interesse? "Não - respondeu de novo, - como meus motivos são totalmente puros, sente-se perfeitamente a salvo comigo, sou de meia idade,
malformado, magro pela febre amarela e pôde mostrar-se tão desenvolta como o faria em companhia de seu avô; ou, pelo menos, de um tio. Apesar de todo o respeito
que eu possa lhe ter, e também ao senhor governador e ao posto que ostenta, pedirei a Killick que recupere, cacheie e empoe minha melhor peruca, com vistas à visita
de amanhã."

Aquela manhã despertou cedo, dizendo-se: "Não me barbearei até depois de ter cumprido com minhas rondas e de ter tomado o café da manhã, quando tenha luz suficiente
para apurar todo o possível". Mas quando terminou as rondas, que demorou devido a novos casos de brotoejas intratáveis como nunca havia visto na vida, a luz ainda
era escassa. No caminho para o convés se encontrou com Killick, e elevando o tom de sua voz para impor-se ao curioso ruído ambiental lhe pediu que se encarregasse
tanto da peruca como de passar os calções de cetim e uma camisa limpa, acrescentando também que pediria ao imediato um bote para aquela mesma manhã.

- Nem pela manhã nem a tarde, senhor. Há fumaça por toda parte, e quase não se pode respirar no convés. Tampouco poderiam jogar o bote na água. Harmattan, dizem
alguns, uma fumaça de Guinéu. Não quererá a peruca para nada. - Não. E se a levasse a teria perdido. E quando assomou a cabeça à altura do castelo de popa seus exíguos
cachos sofreram um golpe pelo sudoeste e compreendeu que o ruído que ouvia era fruto de um curioso e intenso vento do nordeste, cálido, extraordinariamente seco,
e tão carregado de poeira avermelhada que em ocasiões quase não se podia ver a vinte jardas pelo costado. E essas jardas visíveis do mar sofriam o embate contínuo
e espumante do fluxo de ondas.

- Fumaça, senhor - disse Quadrado. - Mas não é grande coisa, e amanhã ou depois será história.

- Espero que tenha razão - confessou Stephen. - Gostaria de poder visitar o senhor Houmouzios. - E ao mesmo tempo que falava sentiu a poerira avermelhada entre os
dentes.

Dia decepcionante aquele, um dia de uma sede extraordinária. Contudo, também teve suas alegrias. Jack, que por costume levava a cabo todas as medições possíveis
(observações relacionadas com a temperatura da água a diversas profundidades, salinidade, umidade do ar e tudo isso para seu amigo Humboldt), mostrou a Stephen seu
baú, que subiram da entrecoberta para que o carpinteiro pudesse acrescentar uma gaveta ou bandeja adicional, baú forte, certamente, que tinha presenciado e sobrevivido
a todas as condições climáticas que o mundo podia oferecer; a todas menos ao harmattan, que partira a tampa. O baú apresentava uma ampla fenda de um extremo a outro.

- Estamos molhando os botes com a mangueira de incêndios para mantê-los inteiros - observou antes de lançar uma sonora gargalhada.

 

Quadrado estava certo com relação à duração, e na quinta-feira deu passagem a um mundo coberto por um pó vermelho de um pé de altura nos lugares abrigados, pó geralmente
áspero, um dia onde pelo menos imperava a calmaria. Stephen Maturin, barbeado cuidadosamente e vestido com esmero, desembarcou em terra procedente de um mar sujo
mas suave. Pois levava um presente em forma de nectarinídeo, ou, melhor, sua pele disposta com as penas para fora, tão bonito como um ramo de flores e muito mais
duradouro, tomou uma liteira para ir ao edifício do governo. Lá teria chamado à porta como um bom cristão se não fosse porque a própia senhora Wood levantou a janela
ao mesmo tempo que lançava um berro, para depois perguntar-lhe como se encontrava.

Desceria em um minuto, disse; e assim foi, pois demorou o suficiente para calçar-se e cobrir-se com um xale de casimira muito conveniente.

- Lamento tanto este odioso harmattan - disse. - Arrasou por completo meu jardim. Quando tenhamos tomado um pouco de café talvez queira dar uma espiada nos espécimes
dissecados, e também nos ossos.

Valia a pena ver aqueles ossos, dispostos de forma esplêndida, amiúde articulados com uma destreza que muitos poucos podiam conseguir.

- Quando éramos jovens - disse ela, diante do que Stephen sorriu, - Edward e eu costumávamos incluir o morcego entre os outros primatas. Mas agora já não o fazemos.

- Creio que fazem o correto - disse Stephen. - São criaturas muito amáveis, ainda que eu consideraria os insetívoros como seus parentes mais próximos.

- Isso mesmo - exclamou ela. - Basta observar sua dentadura e hióides, por muito que Linneo se empenhe. Os primatas são muito mais interessantes. Quer que os vejamos
primeiro? As gavetas dali e o armário estão cheios de primatas. Suponha que quiséssemos começar pela espécie inferior até chegar ao orangutango. Aqui está o potto
comum. Perodicticus potto - disse abrindo a gaveta inferior.

- Ah, quanto ansiava ver estas falanges - disse Stephen, que pegou com delicadeza a mão esquelética. - Sabe por casualidade se em algum ponto de sua vida conta esta
tentativa de dedo indicador com uma unha?

- Não tinha unha a pobre criatura, e, creia-me, parecia muito consciente disso. Eu o surpreendi amiúde observando-se a mão, pasmado.

- Entendo que vivia com a senhora.

- Sim. Durante dezoito meses quase, e não sabe quanto desejaria que seguisse com vida. Desenvolve-se um absurdo afeto pelo potto.

Stephen examinou os ossos em silêncio durante bastante tempo, sobretudo a curiosa disposição da vértebra anterior dorsal.

- Eu queria, senhora Wood... - disse finalmente. - Poderia pedir-lhe que fosse muito amável comigo?

- Querido senhor Maturin - respondeu ela, ruborizada, - o senhor pode pedir-me o que queira.

- Eu também sinto um afeto absurdo por um potto - disse, - um potto sem calda da antiga Calabar.

- Um anguantibo! - exclamou a senhora Wood, enquanto se recuperava da surpresa.

Stephen inclinou a cabeça.

- Não me sai da cabeça desde que abandonamos aquelas paragens. Minha consciência me impede de levá-lo ao norte da linha dos trópicos; tampouco tenho o arrojo necessário
para sacrificá-lo e dissecá-lo. Abandoná-lo em qualquer árvore do lugar, em terreno desconhecido, suporia agir contra minhas convicções.

- Oh, não sabe como lhe compreendo - disse pegando sua mão em um gesto de amabilidade. - Deixe-o e cuidarei dele tanto como me seja possível, tanto por seu bem como
pelo do senhor; e se morrer, como o meu querido potto morreu, o senhor também terá seus ossos.

 

Era sexta-feira e o mercado estava mais abarrotado do que era habitual; também a inquietação de Stephen por encontrar a Houmouzios era mais intensa do que teria
sido normal. O harmattan não só havia partido a tampa do baú de marinheiro do comodoro, como também um número considerável de objetos a bordo do Bellona, entre eles
a caixinha onde Stephen guardava seu modesto resto de folhas de coca. As insaciáveis e onívoras baratas de Guinéu haviam irrompido na caixinha e posto a perder tudo
o que não devoraram. Stephen já começava a sentir falta das apreciadas folhas. Havia, contudo, um grande número de marinheiros e infantes da marinha que vagabundeavam
pelos arredores; e também uma tribo de homens muito negros, altos e fortes, procedentes de alguma região onde era costume usar lanças de folha larga e um tridente
brilhante, que observavam o mercado maravilhados por ser aquela sua primeira visita à cidade. Quadrado os afastou de um lado com suavidade, abrindo passagem como
se faz com uma manada de bois, seguido por Stephen. Ali, por fim, além do encantador de serpentes, viu a figura familiar da barraca, o cachorro calvo e, hurra, a
Houmouzios. Sócrates também estava presente, de modo que o cambista o deixou a cargo da barraca e levou de imediato a Stephen para sua casa. Logo após cumprimentar-lhe
disse que havia recebido as folhas brasileiras, mas não foi até que a porta se fechasse que informou das três mensagens que recebera para o doutor Maturin.

Stephen lhe agradeceu cordialmente pelos incômodos, pagou as folhas e guardou as mensagens no bolso.

- O senhor foi muito amável comigo. Permita-me recomendar-lhe a aquisição de ações da Companhia das Índias Orientais, quando estejam cotadas abaixo de cento e dezesseis.

Despediram-se tão amigos, e Stephen, acompanhado por Quadrado, que carregava o saquinho, empreendeu o caminho de regresso para a praia, ao bote, ao barco e à intimidade
de sua cabine e de seu livro de senhas. Contudo, não tinham percorrido um estádio{22} quando encontraram a estrada bloqueada por uma agitada multidão de marinheiros,
a maioria bêbados, brigando, a ponto de fazê-lo ou animando a quem já etava envolvido: marinheiros da Thames e do Stately, como não?, que resolviam assim suas diferenças.
Por sorte apareceu um grupo moderadamente sóbrio, composto por marinheiros do Bellona, alguns deles antigos companheiros de tripulação de Stephen, que formaram em
ordem fechado ao redor do par e avançaram gritando: "Abram passagem aí!", até que os deixaram para trás sem um só arranhão.

Quando subiu a bordo, Stephen caminhou apressadamente para sua cabine, fechou a porta atrás de de si e abriu as mensagens na ordem em que foram enviadas. Todas elas
provinham, como não podia ser de outra maneira, do escritório de Blaine. A senha lhe era tão familiar que quase pôde lê-la sem necessidade de recorrer ao livro de
códigos: as duas primeiras eram muito tranqüilizadoras e não revelavam nada especial. O plano francês seguia seu curso; haviam se produzido duas mudanças sem importância
no comando de duas embarcações menores, e haviam substituído um barco por outro de igual porte. A terceira nota, contudo, informava de que uma petição para Holanda
lhes proporcionara transportes melhores e mais rápidos, de tal forma que toda a operação ia ser adiantada em uma semana ou dez dias, e que um terceiro navio de linha,
o César, de setenta e quatro canhões, vinha da América para reunir-se com a esquadra francesa nos 42° 20' N, 18° 30' O. Podia produzir-se, contudo, uma redução no
número de fragatas francesas. A mensagem terminava expressando a esperança de que não lhe chegasse tarde demais, e incluía uma quarta folha escrita de punho e letra
de Blaine, conforme a fórmula que empregava em sua correspondência particular e pessoal. Stephen reconheceu sua letra, reconheceu a forma das sucessões, mas não
entendeu nada da mensagem, ainda que estava quase completamente seguro de que um grupo de elementos correspondia à combinação que sir Joseph empregava para referir-se
a Diana. Procurou no livro, livro que, de toda forma, conhecia de memória, mas não encontrou uma solução evidente.

Largou a mensagem de lado para um posterior estudo e foi procurar Jack, a quem encontrou na cabine do piloto com Tom. Os três observavam os cronômetros com visível
inquietação; as horas não concordavam, os mecanismos estavam secos e cheios de poeira, de modo que o mais provável era que estivessem danificados. Para certos assuntos,
Jack era rápido como um lince: bastou um olhar para o rosto de Stephen para que ambos se encontrassem ao cabo de um instante na câmara, onde escutou em silêncio
tudo o que seu amigo queria lhe dizer.

- Graças a Deus que nos informamos a tempo - disse. - Tenho que pôr-me em marcha assim que seja possível. Por favor, encarregue-se dos apetrechos médicos de imediato.
- Chamou a Tom. - Tom, é necessário que larguemos amarras dentro de doze horas, com o despontar da maré-cheia. Vamos com falta de dotação e com tantos marinheiros
em terra, difíceis de encontrar e de trazer de volta, teremos autênticas dificuldades. Despache os botes aos últimos mercantes que acabam de chegar ao porto e recrute
à força quantos homens possa. Os apetrechos estão em condições, além dos do condestável, mas a aguada deve realizar-se de imediato. Nada de permissões, certamente.
Hasteie o sinal para chamar a atenção de todos os capitães e outra para os barcos de pólvora. Ordene a todos os infantes da marinha que vão buscar aos que estão
de licença, que eu me encarregarei de pedir ao governador que nos proporcione a ajuda de seus soldados.

Stephen, seus ajudantes e o potto em sua escura jaula desembarcaram no meio de uma intensa atividade. Enquanto os jovens se dedicavam a adquirir tudo quanto fosse
necessário para a farmácia, Stephen visitou apressadamente à senhora Wood para entregar-lhe seu protegido e despedir-se; uma despedida forçada, tal como observou
muito penalizado. Nenhuma outra jovem teria se mostrado mais amável.

De regresso a bordo viu como desamarravam os barcos de apetrechos que levavam a pólvora, e como no castelo os marinheiros de barcos mercantes forçosamente transbordados
eram designados a uma guarda e posto. Em questão de onze horas e meia depois de Jack dar a ordem, a bandeira azul ondeou no tope do traquete: um ou dois botes e
algumas canoas chegaram evitando freneticamente um fluxo de ondas moderado, e ao dar as doze horas a esquadra se jogou ao mar formando em perfeita linha, rumo oeste
noroeste com um forte vento de gáveas a uma quarta da popa do través, enquanto a banda de músicos da Aurora cantava alto e claro:

 

Vamos, para cima com esse ânimo, garotos, que para a glória rumamos

Para acrescentar algo de novo a este maravilhoso ano:

Em nome da honra chamamos vocês, não para tratá-los como escravos,

Quem é mais livre que nós, filhos dos mares?

 

CAPÍTULO 10

O comodoro Jack Aubrey subira até a cruzeta do maior do Bellona, a uns cento e quarenta pés de altura acima de um mar amplo e cinza. Frágil suporte aquele para alguém
de seu peso, e apesar do moderado balanço e cabeceio suas duzentas e poucas libras se moviam continuamente traçando uma série de curvas irregulares que poderiam
ter assombrado a um macaco, pois somente o balanço lhe sacudia setenta e cinco pés. Ainda que sabia que a guarda de estibordo aferrava a gávea de capa à verga que
tinha debaixo - e é que o barômetro descia por momentos, - não parecia consciente do movimento, das diversas forças centrífugas que entravam em jogo, nem do vento
que uivava em seus ouvidos, e estava ali de pé, com tanta naturalidade como se tivesse plantado no modesto patamar das escadas de Ashgrove Cottage. Voltou-se para
o nordeste, onde pôde distinguir as gáveas da Laurel sobre o horizonte, a quinze milhas de distância; o vigia desta embarcação dominava um horizonte ainda mais extenso,
um horizonte onde se encontrava a Ringle, justo no limite para manter a comunicação com boa visibilidade. Contudo, a Laurel não hasteava sinal algum. Com a luneta
pendendo de uma correia, trocou o braço que o sustentava ao amantilho de joanete e rondou para observar o oceano para o sudoeste. Encontrou o céu coberto de nuvens,
tal e como esperava, ainda que ainda podia distinguir o lampejo branco do bergantim Orestes, em contato com o cúter Nimble, que distava três léguas. Portanto, nesse
momento encontrava-se na metade de um círculo que se estendia por cinqüenta milhas ao redor, no qual não podia navegar nenhum barco que escapasse a sua atenção.
Contudo, quando seus barcos mais distantes e as embarcações de menor calado fechassem distâncias, o sol se ocultaria atrás dos nimbos do sudoeste e a noite cairia,
quase certo acompanhada por um tempo de tristeza. Sem lua, nada.

Estava a oito dias esperando ali em companhia de toda a esquadra, depois de uma acidentada travessia desde Serra Leoa, a uns quarenta graus de latitude. Havia chegado
aos 42° 20'N, 18° 30'O oito dias antes da primeira data prevista no informe de Inteligência para o encontro da esquadra francesa com o setenta e quatro canhões,
o navio de linha proveniente do oeste. Durante estes oito dias de ventos favoráveis e tempo limpo cruzara lentamente para o nordeste até o meio-dia, e voltado ao
sudoeste até o pôr do sol de ambos perímetros do círculo. Não havia visto nada excetuando a um mercante com destino a Bristol, que passara recentemente e que lhes
informara de que não tinha avistado uma só vela desde a boca do Canal; ao que parece se encontrava nesse canto perdido do mar por culpa de uma condenada escuna americana
de corso que lhe perseguia ao sul. Aqueles oito dias tinham incluído suas correspondentes sete noites, e a oitava estava próxima.

Voltou a dar uma espiada para o nordeste e viu que a Laurel já rumava para reunir-se com a esquadra, navegando à orça pela amura de bombordo. Outra espiada, mais
longa, para o sudoeste, dado que era o quadrante vital. Se não interceptasse o navio de setenta e quatro canhões, e se o comandante francês soubesse como se governava
um barco, sua esquadra, em franca desvantagem, afrontaria a desgraça.

Girou, baixou de novo a luneta e desceu para o convés com sumo cuidado. Stephen o ouviu conversar com Tom Pullings na sobrecâmara, cobriu seu livro de cifras e as
inumeráveis variantes da mensagem de Blaine que havia obtido depois de trocar números, letras e combinações com a esperança de descobrir onde se originava o erro
de seu velho amigo, e poder averiguar do que queria informar-lhe. Até o momento, depois de alguns dias de atento exame, apenas alcançara a firme convicção de que
o grupo de caracteres que acreditou reconhecer após do primeiro golpe de vista fazia referência a Diana. Fechou a tampa da escrivaninha, dissimulou a inquietação
de seu rosto e regressou à câmara. Ao entrar, Jack lhe encontrou sentado ante uma bandeja de peles de ave e etiquetas. Stephen levantou o olhar.

- Para uma mente atormentada, não há nada, acho, mais irritante que o conforto - disse após um momento. - Além de outras considerações, implica amiúde uma sabedoria
superior por parte de quem conforta. Mas lamento de verdade por suas preocupações, meu amigo.

- Obrigado, Stephen. Você sempre diz que há um amanhã, e olhe, acho que deve meter seu calendário pela garganta.

Submergiu em um sono enquanto Stephen seguia dispondo e etiquetando peles. Tinha a íntima convicção de que o navio de setenta e quatro canhões passara despercebido
de noite proveniente do oeste, e de que as possibilidades de que o francês derrotasse à esquadra eram muito elevadas. Isso não era novo na Armada. Sir Robert Calder,
ao comando de quinze navios de linha, havia se enfrentado ante a costa de Finisterre com a frota franco-espanhola de vinte navios comandada por Villeneuve. Julgaram-no
em conselho de guerra e o culparam por ter aprisionado tão somente dois barcos. Claro que havia deixado desprotegida a costa inglesa, e se lhe julgou por ter calculado
mal e não por ter-se comportado mal; mas mesmo assim... Nelson, com nove navios de setenta e quatro canhões, um dos quais encalhou, tinha caído na baía Abukir sobre
Brueys que contava com dez, incluídos três navios de oitenta canhões além do esplêndido navio insígnia, L’Orient, para um total de catorze navios de linha. Nelson
atacou de imediato e queimou, aprisionou e destruiu a todos com excessão de dois. E a outra escala totalmente diferente, ele mesmo, ao comando de um bergantim de
catorze canhões, tinha abordado e capturado uma fragata espanhola armada com trinta e dois. Claro que Nelson conhecia a seus capitães, conhecia a seus barcos e também
conhecia ao inimigo. "Não se preocupe com a manobra - havia dito a Jack durante uma noitada memorável, vá sempre para cima deles."

Sim, mas naquele momento o inimigo não contava na realidade com marinheiros sobressalentes, pois levava anos encerrado num porto e suas dotações não estavam acostumadas
a trabalhar com brio em um barco em péssimas condições atmosféricas - geralmente tampouco saíam garbosos por muito favoráveis que fossem estas, - nem a disparar
os canhões com decisão; e sem falar da melhor disciplina. Como haviam mudado as coisas. Nelson nunca teria aconselhado ao capitão da Java que fosse direto para a
Constitution, fragata dos Estados Unidos, sem pensar em absoluto na manobra.

Nelson conhecia a seus capitães. O jovem Jack Aubrey havia conhecido intimamente à tripulação da Sophie, depois de conviver juntos na corveta durante um longo cruzeiro.
Apesar de todas suas faltas e a freqüência com que se embebedavam, podia confiar neles para que atuassem sem titubeios chegado o momento do combate, durante o combate
em si, e também para enfrentar-se a um inimigo superior em número. O Jack de agora, em troca, não conhecia a seus capitães, além de Howard do Aurora, e a Richardson
da Laurel. Em quanto a Duff, não duvidava de sua coragem; o problema residia na possibilidade de que a disciplina houvesse tocado fundo e pesasse como um lastro
na marinharia na hora de fechar sobre o inimigo, e durante o combate em si. Não sabia o que pensar com respeito a Thomas, da Thames, o Imperador. Os brutos podiam
mostrar-se corajosos no combate, mas também era verdade que se lutasse não o faria de maneira inteligente, coisa que garantia sua falta de sensibilidade, assim como
sua falta de experiência. Para Jack não lhe preocupava muito o espírito de luta de sua dotação. Haviam alcançado um nível razoável quanto ao manejo da artilharia,
e sempre acreditara que quando um barco se envolvia em combate, os serventes que atendiam as peças trabalhavam com brio, todos juntos e com a bala rasa voando por
toda parte; o estrondo dos canhões e a fumaça da pólvora bastavam e sobravam para tirar qualquer receio que os menos promissores tivessem. Talvez em certas ocasiões
se livravam de oficiais tiranos (quer fosse de forma acidental, ou de propósito), mas jamais os vira deixar de lutar, a menos que o barco se visse obrigado a arriar
a bandeira.

Não. Neste combate, já que haveria combate por muito que os outros navios de setenta e quatro canhões chegassem a tempo de participar nele, o xis da questão residia
na manobra, no governo do barco; com a escassa disciplina que reinava no Stately, e a falta de destreza marinheira da Thames, Jack não podia evitar sentir-se aflito,
tanto era assim que quando sua mente não impunha a calma, não parava de elucubrar um plano de ataque que reduzisse por completo a incerteza do que pudesse suceder.

- Não acredito que haja ocupação mais fútil do que dar voltas e mais voltas ao que se deveria fazer em um combate no mar - disse em voz alta, - pelo menos até conhecer-se
tanto a direção do vento como sua força, o número de combatentes de ambos os lados, suas respectivas posições, o estado do mar, e se o combate terá lugar de dia
ou de noite. Por Deus, Stephen, juro que acabo de sentir o cheiro de queijo torrado. Que eu recorde, faz muito que não comemos queijo fundido antes de tocar.

Produziu-se uma breve pausa quebada pela voz de Killick que, a certa distância, entremesclada com o odor que o mar desprende, a reverberação confusa da exárcia tesa
e o rangido da madeira, dizia a seu ajudante:

- Já ouviu, Art. Que eu saiba não tem flanela nos ouvidos. Eu disse que abra a porta com seu traseiro e me deixe passar.

Quase de imediato, Killick entrou de costas com uma esplêndida bandeja de prata que incluía alguns pratinhos de queijo fundido. Depositou-a na mesa de jantar com
uma expressão de triunfo no olhar.

- Esse tipo de Bristol deu um pouco ao despenseiro do contador. É Cheddar, e o confisquei.

 

Stephen raspou a superfície do segundo prato tanto como pôde, armado com um pedaço de bolacha seca; depois, apurou o vinho.

- Falarei de certo assunto que está rondando minha cabeça desde o do golfo de Benín, quando você me falou do incômodo que lhe causava pensar em dois dos barcos.
Veja, não sou precisamente um estrategista naval...

- Oh, eu nunca diria isso.

Stephen inclinou a cabeça.

- Nem sequer um especialista em tática...

- Enfim, tudo na vida é relativo.

- Apesar disso, um dos barcos em questão é uma fragata, e eu tinha entendido que quando se enfrentam navios de linha, a fragata tem o dever de permanecer a certa
distância, levar mensagens, repetir sinais, recolher os sobreviventes que possam aferrar-se ao destroço e, depois, perseguir e fustigar às fragatas do outro bando
quando tentem escapar. Achava que não deviam tomar parte no combate sob nenhuma circunstância.

- O que me diz concerne a batalhas entre navios de linha. Estes não abrem fogo sobre as fragatas durante um combate, ainda que recordo uma excessão que presenciei
durante a batalha do Nilo, desde quando as fragatas não lhes disparem antes. Afinal de contas, os cachorros não mordem a raposa, e vem a ser mais ou menos o mesmo.
Mas nós não contamos com a capacidade de uma frota, pois dois barcos não formam uma linha de batalha. Tudo depende do vento e do tempo, da luz, da escuridão e do
mar que tenhamos. Quando esquadrilhas de barcos se enfrentam pode dar-se uma mêlée na qual se envolvem as fragatas e, inclusive, as corvetas. Seja um bom menino
e alcança-me seu colofônio para que possa encerar meu arco, pode ser? - A esta altura, ambos se dispunham a tocar.

- Pergunto-me (e tenho minhas própias razões para fazê-lo), se acaso um homem de seu poder, inclusive diria que de sua riqueza e de sua posição, um membro do parlamento
cujo nome figura em boa posição na lista de capitães de navio, bem relacionado com a corte, não pode ou não quer proporcionar-se um pedaço de colofônio.

- Tem que considerar que sou um homem de família, Stephen, com um menino ao qual educar e umas filhas ás quais proporcionar um dote, e roupa, por não falar das botinas,
duas, e, mesmo, três vezes ao ano. Pelerines. Quando comeces a se preocupar pela fortuna de Brigid e pelas pelerines de Brigid, você também economizará em colofônio.
Sim, sim. Não lhe parece que o queijo cai maravilhosamente no estômago? Acredito que esta noite dormirei profundamente.

- Tenho essa mesma impressão - admitiu Stephen. - Tenho prescindido de minha habitual dose de folha de coca e bebi dois copos de um extraordinário vinho do porto.
Acho que minhas pálpebras já tendem a fechar-se. Passe-me a partitura, por favor, que ainda não consegui dominar o adágio.

A duras penas pode se considerar ao queijo fundido com torradas como um soporífero, mas quer fosse a hora, o tempo ou alguma virtude inerente ao queijo, houve um
algo que relaxou suas mentes, por outro lado esgotadas pela ansiedade, e que fez que Stephen dormisse como um bendito até que se chamou a dotação para o café da
manhã; enquanto que Jack, com uma pausa quando seu catavento interno sentiu refrescar o vento do noroeste de tal forma que obrigou ao oficial que estava de guarda
a pôr um riz na maior e na gávea do traquete, dormiu roncando placidamente até que uma silhueta borrada ao seu lado gritou com o timbre de voz própio de um adolescente:

- Senhor, senhor! A Laurel hasteou o sinal de que avistou o inimigo ao nor-noroeste, a umas cinco léguas em direção sudoeste.

- Quantos? Transportes?

- Não, senhor. O céu está mais bem coberto ao nor-noroeste.

- Obrigado, senhor Hobbs. Subirei diretamente ao convés.

E assim o fez. Reuniu-se com os oficiais e guardas-marinhas, e também com os integrantes da segunda guarda que ainda usavam camisola e se cobriam com a casaca. Todos
os olhares haviam se voltado para a amura de bombordo, onde se distinguia o casco da Laurel debaixo da tênue luz do cinzento amanhecer. Convés de lona, seu quebra-mar
fendia as águas, e da adriça de sinais pendiam as bandeiras de inteligência.

Na chegada do comodoro, os homens se afastaram e lhe deram o bom dia.

- Peça que ela pergunte à Ringle se tem alguma idéia de seus portes - ordenou ao tenente encarregado dos sinais.

Houve uma pausa, durante a qual a tormenta dominou o horizonte, ao noroeste.

- Negativo, senhor - informou finalmente o tenente de sinais.

- "Laurel, repita a seguinte ordem para a Ringle: Fechar sobre o inimigo com bandeira americana. Averigue número e porte das embarcações. Destrua suas gáveas que
navegam rumo sudeste. Informe... - Jack olhou fixamente para o céu -... dentro de uma hora. Não responda a este sinal." E agora, ordem para a esquadra: "Rumo este
nordeste duas quartas este, com pouca vela". - Ouviu-se a primeira badalada da guarda da manhã, e Jack acrescentou: - Capitão Pullings, se os seus se parecem em
algo comigo, a estas alturas estarão famintos como lobos. Vamos comer.

Foi o agudo apito e o retumbar dos passos no convés o que finalmente conseguiu despertar ao doutor Maturin. Sentou-se à mesa antes de ninguém, pois não prestava
mais atenção ao asseio, à escova e à navalha de barbear que os monges de Thebaid. No castelo de popa, Jack encaminhou-se à popa para a cabine do piloto de derrota,
seguido por Tom, o imediato e o própio piloto e, ao entrar, o sol irrompeu através das nuvens que se estendiam ao leste.

 

- Bom dia, comodoro - cumprimentou Stephen, já envolvido com os ovos e o esplêndido bacon cortado pelo açougueiro de bordo. - Bom dia, Tom. Vou fazer um resumo da
situação. Dormi muito, faltei às minhas rondas matinais, o café está praticamente frio e essa gente não para de correr de um lado para o outro, gritando: "Oh, oh,
o inimigo está vindo para cima. O que faremos para nos salvar?" É isso verdade, meus amigos? - Temo que sim - respondeu Jack, que inclinou a cabeça penalizado. -
E lamento muito dizer que se encontram a umas trinta milhas, talvez menos.

- Não se preocupe, doutor - disse Tom. - O comodoro tem um plano que sem dúvida confundirá sua política.

- Pergunto-me se estará em condições de expô-lo. De expressá-lo em termos que sejam compreensíveis inclusive para alguém dotado de uma extrema ignorância a respeito.

- Permite-me terminar o bife de cordeiro enquanto ordeno meus argumentos - pediu Jack, - e se quer que o explique em termos compreensíveis, acho ser seu homem. Bem,
o que posso oferecer é muito teórico, está no ar, vamos, como não poderá ser de outra forma até que averigüemos de que forças dispõe o inimigo - disse depois de
limpar a boca. - Contudo, parto das três seguintes suposições: primeira, que anda em busca do setenta e quatro desaparecido. Segunda, que não entrará em combate
a menos que não possa evitar, lastrado como está com a responsabilidade de cuidar dos transportes. Terceira, que este vento do noroeste, providencial para ele neste
instante mas pouco comum nestas águas, rolará até converter-se ao anoitecer, ou pouco depois, em um vento do sudoeste, muito mais comum, convicção esta que é a pedra
angular de meu plano.

- Isso mesmo - consentiu Tom.

- Supondo que todos estes presupostos sejam certos, rumaremos para o leste do lés-noroeste, sem perdê-lo de vista se o tempo a seguir se estabelece limpo, com a
Ringle a pairar digamos que a umas dez milhas, como se fosse um barco comum, incapaz de levantar suspeitas; um modesto corsário americano. Há dúzias de embarcações
assim, com o mesmo casco e aparelho idêntico. A Laurel repetirá os sinais. Então, quando o comodoro francês se encontre ao sul de nós... Tom, pode me passar a cesta
do pão? - Fez uma bolacha em cacos, limpou um pedaço da mesa e exclamou: - Gorgulhos! Tão rápido? Estes daqui somos nós, rumo leste. Estes, os franceses, por cima
de nosso horizonte e sem fragatas que façam a descoberta: dirigem-se a um ponto de reunião. Quando o alcancem, o que deveria suceder hoje mesmo com este vento...,
quando o alcancem e não vejam em nenhuma parte ao setenta e quatro, virarão em redondo e rumarão para a Irlanda. Com toda probabilidade, a essas alturas o vento
terá rolado para su-sudoeste, outro bom vento para eles. Sim, mas aqui estamos nós - disse tamborilando com a polpa do dedo um pedaço da bolacha, - e quando tenham
ultrapassado o paralelo do ponto em que os vimos pela primeira vez, assim que estejam ao norte de nós, o barlavento será nosso, certo que sim! Teremos o barlavento,
e em princípio poderemos entabular combate com eles por mais que queiram evitá-lo.

- Isso é muito satisfatório - opinou Stephen, observando os pedaços de bolacha. - E sumamente claro. Porém, que necessidade mais odiosa - acrescentou sacudindo a
cabeça.

O desprezo que Stephen sentia pelo fato de matar amiúde molestava a Jack, pois essa era sua profissão.

- Claro que esta é a seqüência ideal de acontecimentos - Jack apressou-se a matizar. - Poderiam suceder um milhar de coisas, por exemplo que o vento seguisse entabulado
para o noroeste ou que caísse totalmente, que algum cachorro corsário nos visse e informasse ao francês de nossa presença, que recebesse reforços, que chegasse outro
navio de linha, que uma tormenta nos desaparelhasse... seja como for, minhas profecias têm uma forte influência do Velho Moore...

- Desculpe, senhor - disse um guarda-marinha ao dirigir-se ao capitão. - O senhor Soames deseja que lhe transmita seus respeitos, e que informe que a Laurel informou
da presença de dois navios de linha, provavelmente de setenta e quatro canhões, duas fragatas que navegam em conserva, e de uma fragata ou corveta a uma légua da
proa, além de quatro transportes, dois deles longe, a popa.

- Obrigado, senhor Dormer - disse Tom Pullings. - Agora mesmo irei vê-lo. -Presenteou a Stephen com um sorriso de orelha a orelha e, quando o garoto havia saído,
comentou: - Não acredito que as profecias do comodoro tenham nada a ver com o velho Moore, senhor. Acho que os temos...

- Silêncio, Tom - disse o comodoro. - Terá ouvido em alguma parte isso de que da mão para a boca desaparece a dama.

- E quão verdade é, senhor - disse Tom, tocando a cesta de madeira onde serviam a bolacha de barco. - Estive a ponto de dizer uma impropiedade. - Levantou-se, agradeceu
pelo café da manhã e se dirigiu apressadamente ao castelo de popa.

Em geral, as previsões do vento que Jack fizera resultaram muito acertadas, como também o foram suas reservas. O vento rolou em direção su-sudoeste antes do que
esperava, pelo que a esquadra francesa teve que navegar de bolina e dar bordejada atrás de bordejada rumo ao ponto de reunião. Então, o comodoro Esprit-Tranquil
Maistral, sobrevivente da ambiciosa expedição do ano noventa e seis com destino à baía Bantry, expedição que contou com não menos de dezessete navios de linha e
treze fragatas, decidiu aguardar ao setenta e quatro canhões proveniente da América até o dia catorze, dia particularmente afortunado. Nem sequer então se deu à
vela até a hora que achou mais propícia, as onze e meia, de tal forma que, em uma noite escura e impenetrável, com o forte vento de joanetes pela alheta de bombordo
que os empurrou com brio, ele e seus barcos estiveram a ponto de deixar para trás a seus perseguidores.

Durante este tempo, se pode chamar-se assim a um período tão carregado de ansiedade, o Bellona e seus companheiros se limitaram a serpentear rumo oeste para buscar
a esteira do francês, que fez avante rumo nor-nordeste para a Irlanda durante três ou quatro dias. Ocuparam o tempo com as inumeráveis tarefas que exige qualquer
barco no mar, além de pescar pela borda, não sem certo êxito.

Informou-se tanto à Ringle como à Laurel da posição na qual a esquadra pairaria, um pouco ao sudeste do ponto que confiavam alcançar os franceses em questão de três
dias no máximo. Contudo, em quase o dobro desse lapso de tempo, o oceano rebelde, o mau tempo e a falibilidade humana privou ao tropo do significado que lhe correspondia,
e foi somente quando Maistral estava no mar desde o dia catorze que a Ringle se aproximou navegando de bolina por entre o mar encrespado e a negra tormenta às sete
badaladas da guarda da manhã, para informar a voz em grito que havia visto aparecer o casco do francês, pelo nordeste com rumo nordeste, meia hora depois do anoitecer
do dia anterior.

Pelo espaço do último dia e meio, Jack Aubrey passara boa parte do tempo no convés ou subido ao tope, parco de palavra, sem apetite, pálido e esgotado. Por fim voltava
a respirar. A partir desse momento se ouviu o rangido constante dos contraestais, das braças, dos amantilhos e estais que permitiriam ao barco suportar a pesada
lona de capa que a marinharia mareava em um alarde de destreza.

Contudo, esta urgência requeria ao barco e à esquadra de toda a energia marinheira existente. Era sua intenção evitar repreender a si mesmo o excesso de confiança
demostrado em seu própio julgamento. Boa parte desta atividade, assim que o Bellona esteve em condições de empreender a caça, dedicou à Thames. Passou um dia inteiro
a bordo desta embarcação, mostrando a seus oficiais como conseguir um, inclusive dois nós ou três braças de velocidade. E embora tenha notado certa melhora, não
teve mais remédio que admitir que, mesmo fazendo todo o possível, aquela embarcação seguia mostrando-se lenta para uma fragata. Nada poderia curá-la, exceto medidas
radicais. Não lhe pareceu que seu casco estivesse particularmente malformado, embora fosse verdade que não poderia navegar melhor com seu lastro e disposição atuais.
Para aproveitar suas linhas, teria que ficar pelo menos a um pé e meio para a popa. Para melhorar seu aspecto, a bodega, o lastro, a água, as bagagens... tudo isso
teria que ser estivado de tal forma que seus paus estivessem encavilhados e esticados, perpendiculares para proporcionar uma melhor catadura. Amiúde Thomas dizia
que era o barco mais elegante, com suas vergas bracejadas e os paus no ângulo adequado, perpendiculares em relação ao mar. Em mais de uma ocasião o príncipe William
havia elogiado o mesmo. Jack não compartiu com o capitão a opinião que lhe merecia a perícia marinheira do príncipe William, mas sim disse que quando estivessem
na enseada de Cork tentariam ganhar um emborno na popa e levar a cabo algumas comparações. Logo depois lhe deu bom dia e abandonou a fragata de melhor humor. Apenas
havia chegado no convés do Bellona quando a Thames, em um excesso de zelo para comprazer-lhe, perdeu o mastaréu de joanete.

Fosse como fosse, pelo final da guarda do meio-dia da segunda manhã, o céu limpou um pouco e apareceram as velas francesas como tênues lampejos brancos recortados
contra o quadrante nordeste do horizonte. Jack as contemplou durante um bom momento do tope, para proporcionar-se uma idéia geral de suas qualidades marinheiras.
Finalmente, ao deser topou com o rosto desagradável e esquivo de Killick.

- Vejamos, senhor, sua melhor camisa e o uniforme de almirante estão a meia ampulheta estendidas - disse em seu habitual tom lamuriento. - Não terá esquecido que
hoje convidara para almoçar a toda a câmara dos oficiais? Nem mesmo o doutor esqueceu, e se trocou por vontade própia.

O nervosismo da caça havia atuado maravilhas no cozinheiro da câmara, que tinha usado os ingredientes mais excelentes, caros e peculiares: xerez na sopa de tartaruga,
vinho do porto para o molho do leitão, conhaque em um dos pratos favoritos do comodoro, o fufú, geralmente cozinhado com alho e melaço, regado agora com mel e conhaque.

Jack comeu esplendidamente pela primeira vez em muito tempo. A caça, a audível velocidade do barco, pois a água assobiava em voz alta ao passar pelos lados, a sensação
da madeira tensa... Tudo isso contribuiu para minimizar a tensão habitual imposta pela presença de um uniforme de comodoro sentado na cabeceira da mesa, de modo
que não tardaram muito em começar uma conversa animada e espontânea. Vários oficiais tinham presenciado - ou ouvido, - algo sobre a desastrosa tentativa de Hoche
no ano de noventa e seis na baía Bantry com sua enorme e ingovernável frota, e se bem a maioria evitou dar por concluído o assunto, todos tinham coisas interessantes
que dizer sobre essa costa de ferro, com seus mares de medo submetidos a tormentas do sudoeste - a rocha de Fastnet, a marejada frente às Skellings, - comentários
que não poderiam ter sido introduzidos em melhor momento se não estivesse soprando como soprava semelhante vendaval, e se o barômetro em franca descida não sugerisse
que não tardaria em soprar com mais força ainda.

Depois de tomar o café, Jack sugeriu que Stephen colocasse o sudoeste - um gorro para o mau tempo que não podia ter um nome mais apropriado - e o abrigo de lonita,
que lhe acompanhasse ao castelo de proa onde desfrutariam de uma vista estupenda, e que certamente não esquecesse a luneta. Reinava a umidade no castelo de proa
e os chuviscos e inclusive a água verde dos mares que os seguiam banhavam o convés até misturar-se com a água que o Bellona embarcava pelas amuras, ao balançar-se
até os escovéns. Contudo, a vista não podia ser mais imperfeita, de modo que Jack propôs o cesto da gávea do traquete e chamou a Bonden.

Stephen protestou. Afinal de contas, achava-se totalmente recuperado e se sentia com forças para empreender tão simples e familiar subida. Jack elevou o tom de voz
e Bonden se aproximou a passo ligeiro.

- Terei ocasião de que me subam sem tropeçar, sem quase nenhum esforço, a tamanha altura, sem que isso suponha menosprezo para minha autoestima - observou Stephen
para si.

A tamanha altura alcançava os oitenta pés, de onde desfrutaram de uma esplêndida visão do oceano cinzento, sulcado de frisos brancos e açoitado pelo vento. Lá, ao
noroeste, encontravam-se as ansiadas velas brancas. Não só carregavam as gáveas, às vezes também as maiores, e em uma ocasião se alçou um casco por cima do horizonte.
O Bellona não fora buscar de todo a esteira, pois o modo mais rápido de consegui-lo seria convergir sobre ela em uma linha tão reta como fosse possível, em lugar
de traçar um vê no mar. Portanto, desde cesto da gávea do traquete desfrutavam de uma vista de perspectiva da linha francesa. Jack ofereceu a luneta a Stephen.

- Dois navios de duas pontes e outra embarcação de menor porte longe, a proa - confirmou Maturin. - Seguida por quatro barcos que suponho serão os transportes de
tropas, e duas fragatas.

- Sim - disse Jack. - Como são bem manejados esses transportes: não há nem um fora de posição. Seu comodoro deve ser um homem de talento. São rápidos, inclusive
muito rápidos por tratar-se de transportes, mas não me resta a menor dúvida de que os alcançaremos. - virou a rosca da luneta que separava as duas metades de uma
lente dividida, e acrescentou: - A seguir, verá duas imagens do navio de duas pontes no extremo da fila, duas imagens que praticamente se tocam: se continuam assim,
é que vamos à mesma velocidade; se se separam, a presa anda mais rápido; se se sobrepõem, ganhamos terreno. É necessário esperar um pouco para perceber o efeito.

Stephen observou e observou. Depois de longo tempo, que aproveitou para assinalar um petrel que picava o lado de uma enorme onda coroada de espuma, voltou a concentrar-se
e exclamou:

- Elas se uniram. Sobrepõem-se!

- Aí está, ganhamos terreno e com rapidez. Acredito que se deixássemos a Thames, poderíamos alcançá-los no meia da manhã, à vista da costa. Estou convencido de que
seu comodoro se poria a pairar ali mesmo para entabular combate antes de aproximar-se mais daquelas perigosas rochas e de uma costa desconhecida. Além disso, isso
lhe permitiria desembarcar as tropas, protegidas por uma ou ambas fragatas.

- Nossas própias fragatas não as destruiriam?

- Pode ser. Mas o mais provável é que estejam em desvantagem no que se refere à capacidade de fogo. Diria que um desses franceses é uma fragata de trinta e seis
canhões, e quase com toda certeza armada peças de dezoito libras. A outra é uma de trinta e duas, com o mesmo. A pobre e velha Thames dispõe tão somente de canhões
de doze libras, enquanto que a Aurora não tem mais que canhões de nove libras.

Stephen fez algumas observações mais, ainda que Jack, mais atento ao inimigo, não prestou atenção.

- Tal como estão as coisas agora - disse por fim, - quanto antes entrarmos em combate, melhor. - Voltou-se para chamar a atenção de Meares, ocupado na popa do castelo:
- Peço que supervisione essas cunhas de pontaria, condestável, porque amanhã mesmo as provaremos.

- Se se afogarem, senhor - respondeu o condestável, olhando-lhe com um sorriso torcido, - o senhor pode afogar a mim também, e em ainda esquartejar-me, se quiser.

Jack riu de boa vontade; mas no convés disse a Stephen em um aparte:

- Acho recordar que o francês tinha ordens de dirigir-se à baía Bantry ou ao rio Kenmare. Conhece esses lugares, ou as profundas enseadas que há ao longo de suas
costas?

- Muito pouco, e o pouco que sei não lhe serviria de muito, dado que tenho o ponto de vista de um homem do interior. Quase não conheço a parte ocidental de Cork.
Em uma ocasião me alojei na casa dos Whites, não os Whites de Bantry mas alguns de seus primos, Skibbereen e Baltimore. Corria o rumor na região que exemplares da
águia de calda branca se reuniam na ilha Clear, e foi isso o que me levou ali. Não lhe serviria de nada como guia, e muito menos como piloto, pelo amor de Deus.

- Não poderia ter as idéias mais claras, desde quando as coisas sigam assim - disse Jack.

 

Mas as coisas não seguiram assim: o vento esfriou e rolou para o oeste, de tal forma que não puderam largar as joanetes senão com rizes; inclusive assim o vento
os empurrou como alma que o diabo leva. Fazia uma noite tão escura como caiba imaginar, o céu estava completamente coberto de nuvens que quase não permitiam distinguir
o tope, e caía uma chuva constante, amiúde em forma de aguaceiro. Não havia a menor possibilidade de tirar as medições de rigor e pouco se podia confiar na estimativa.

Os três faróis de popa do Bellona ardiam, e de vez em quando Jack Aubrey abandonava o violino ou a partida de cartas que jogava com Stephen para situar-se entre
os faróis, de onde observava a chuva iluminada pela luz, ou auscultava a escuridão com a esperança de distinguir o restante dos componentes de sua esquadra. Ao dar
as oito badaladas, achou ver um fulgor mortiço quando mudou a guarda a bordo do Stately, e em uma ou duas ocasiões acreditou ver uma diminuta luz no que supôs seria
o través da Ringle. Contudo, quase todo o tempo não houve mais que uma escuridão como o breu, outro plano da existência. Ao cabo de um momento esquadrinhando a escuridão
dessa forma, as luzes da bitácula brilhavam com tal intensidade que ao regressar ao castelo de popa lhe bastava um mero reflexo para reconhecer ao guarda-marinha
de guarda, por muito enterrado que estivesse sob a roupa e o chapéu impermeáveis.

- Noite feia, senhor Wetherby - disse. - Confio em que não umedeça seu ânimo.

- Oh, não, senhor - respondeu o garoto, que a seguir soltou uma risada nervosa. - Não estará o senhor de brincadeira?

Passeava a cada intervalo de poucas badaladas, às vezes com certa dificuldade, pelo castelinho, consciente das forças mutáveis do ar e do mar. No dia seguinte subiria
a maré do equinócio, e a essas alturas pensou que já podia perceber os primeiros indícios de sua presença nas incontáveis forças que atuavam sobre o casco.

- Praticamente o vento já sopra para o oeste - disse a Stephen ao voltar de um de seus passeios, quase no final da noite. Contudo, Stephen dormia sentado em uma
poltrona; sua cabeça acompanhava o vaivém e o cabeceio do barco, que avançava através da escuridão.

Jack seguiu seu exemplo pelo espaço do que lhe pareceram alguns minutos, pelo menos até que ouviu o grito do vigia postado no castelo de proa.

- Arrebentação pela amura de estibordo!

Este grito penetrou no cochilo de Jack, que ganhou o convés antes de que o mensageiro pudesse ir até ele. Miller, o oficial de guarda, já tinha aventado escotas
para reduzir a marcha do barco, e Jack e ele permaneceram de pé, atentos a qualquer ruído. Por cima do estrondo generalizado do vento e do choque daquela marejada
surgiu a grave batida constante da onda ao romper contra a costa, ou contra um arrecife.

- Dois foguetes azuis - ordenou Jack. Era o sinal combinado. Naquela ocasião, apesar do vento e do onipresente açoite da chuva que tudo molhava, os foguetes subiram
vôo de imediato, mostrando uma espectral luz azulada.

- Vejo que não há tanta nuvem, quase está limpo - observou o tenente.

- Dentro de meia ampulheta será de dia - disse o piloto de derrota. - Se olhar bem o senhor poderá distinguir uma luz trêmula, ao leste.

A luz trêmula se estendeu; o vento do oeste, apesar de seguir sendo forte, trouxe menos chuvas e mais nuvens, e pouco depois seus olhos, acostumados à escuridão
da noite, distinguiram primeiro um cabo a bombordo, cuja altura de uma centena de pés as nuvens ainda cobriam. Algumas ilhas se estendiam no extremo do mar adentro.
Depois, a estibordo, viram o promontório muito mais extenso e mais nublado, em cuja parede ocidental o mar rugia com uma solenidade tremenda, rítmica. Situada entre
ambos, distinguiram uma estreita baía rochosa que penetrava terra adentro até perder-se nas trevas. A medida que aumentou a luz e a água perdeu a escuridão, viram
outra ilha redonda a certa distância, perto da costa norte. Neste lado da ilha havia dois barcos. Jack pegou a luneta de Miller. Eram os navios franceses de setenta
e quatro canhões, e ao enfocá-los, intensamente concentrado, convenceu-se mais e mais de que não tinham muita certeza aonde desembarcar as tropas. Obviamente, com
semelhante visibilidade, tinham uma dúzia de lugares entre os quais escolher. Supôs que confiavam nos sinais combinados de antemão e na ajuda de pilotos aliados,
pois em seus paus ondeava uma bandeira verde.

- Não toquem o sino - ordenou, com o que veio a interromper a rotina de bordo. Nesse momento, não estava de humor para cerimônias matinais.

- Nada de badaladas, senhor - disse o cabo.

- Se é tão amável, senhor - disse Miller assinalando a primeira ilha, situada pelas costas do braço norte da baía, ilha que ao olhá-la com atenção resultou ser um
pequeno conjunto de barcos.

- Já vejo - disse Jack. - Excelente. - Em uma enseada tão adequada, abrigada e oculta como caberia desejar se encontravam os transportes e as duas fragatas; a enseada
era invisível do mar e também da outra baía.

Calibrou a situação com intenso prazer. A estreita baía estendia-se diretamente para o nordeste. Caso o comodoro francês metesse bem a sua esquadra, com este vento
resultar-lhe-ia impossível sair. Tentava assegurar-se se aquele seria seu verdadeiro destino ou não, quando reparou que já haviam entrado em águas perigosas.

Todos os oficiais se encontravam presentes no convés.

- Não nos resta nenhum piloto familiarizado com águas irlandesas? - perguntou Jack.

- Não, senhor - respondeu Miller. - Até Michael Tierney morreu no golfo de Benín. Contudo, o piloto está teimando em encontrar alguém, e também quer inspecionar
as cartas com toda a atenção possível. Ordenou jogar a sondareza.

- Dá no mesmo - disse Jack. - Toque para preparativo de combate. - Correu para o castelinho, sem descolar a vista da popa. Exceto a Thames, que vadiava ao leste,
além da ponta que fechava a baía, comprovou que todos seus barcos estavam presentes. O Stately se encontrava a um cabo de distância, e a Ringle, obediente barco
de apetrechos, se alçava e caía a mercê do fluxo de ondas, apenas a cinqüenta jardas pela alheta do Bellona.

- Bom dia, William - cumprimentou a voz em grito. - Como anda?

- Bom dia tenha o senhor, senhor - respondeu Reade. - Às mil maravilhas, senhor, muito obrigado.

Ao voltar, Jack fez primeiro sinal para a Thames para que se reunisse com ele, seguida de outro sinal para a Stately para que se situasse à distância de um grito.

O navio de sessenta e quatro canhões se chegou a sotavento do Bellona.

- Capitão Duff, ali estão os navios franceses de duas pontes - informou Jack com seu vozeirão. - Nós os atacaremos sem contemplações; e enquanto pomos rumo a eles,
aproveitaremos para comer algo. Eu atacarei o navio insígnia, se o senhor e a Thames se encarregarem do outro.

- Será um prazer, senhor - respondeu Duff sorridente, e sua dotação lançou três hurras.

Antes de ir coberta abaixo, Jack deu ordens para a Aurora, a Camilla e a Laurel para que mantivessem entre as ilhas uma vigilância discreta dos transportes e sua
escolta. Hospedava esperanças de aprisioná-los sem danos nem baixas, desde que conseguisse o que queria na baía.

Um fogareiro de álcool e uma mente disposta podem fazer maravilhas, mesmo submetidas a um mar de cuidado e a uma tormenta de morte. Jack Aubrey, que permitiu a Stephen
levar a cafeteira até a cabine, regressou ao convés tonificado e alimentado. Ia apetrechado com a vestimenta habitual: uma velha casaca surrada de uniforme, um chapéu
forrado de latão, que lhe havia salvado de mais de uma estocada, um pesado sabre de cavalaria em lugar do espadim ou do alfanje de rigor, botas e meias de seda -
muito melhores em caso de sofrer uma ferida. - Passeou o olhar pelo convés, que encontrou em perfeita ordem de batalha que o capitão Pullings proporcionava tão bem.
Olhou para o lado oposto da baía, onde a Thames avançava bem. Depois observou os franceses, que de sua parte haviam se deslocado das ilhas pelo que parecia ser um
povoado envolto em bruma, situado na parte sul, onde pairaram atravessados entre o vento e a maré, talvez com a âncora pequena arriada. O Stately se mantinha a popa,
a um cabo de distância, e o seguia com as gáveas rizadas, com um aspecto tanto ou mais competente.

- Companheiros - disse Jack em tom coloquial, tom que se impôs ao uivo do vento, - nós pretendemos atacar desde o barlavento ao navio insígnia, enquanto o Stately
faz o mesmo com seu companheiro. Este barco entabulará combate tão perto que nossa bala rasa atravessará ambos os costados, para assim decidir logo o negócio. Que
um raio parta ao primeiro que dê ordem de separar-se!

O estrondoso rumor dos vivas reverberou nas cobertas do Stately, e de imediato se elevou em espiral a fumaça das mechas de combustão lenta, uma para cada peça, que
desprendiam um odor quase tão intenso como a da pólvora.

A que velocidade cobriram as últimas centenas de jardas! Houve um momento em que podiam distinguir ainda as gaivotas, ou a essa condenada bobona da Thames, mas de
repente se acharam em meio do ensurdecedor rugido do combate penol a penol. As descargas perderam toda unidade, fundidas em um contínuo uivo destrutivo. Os barcos
se juntaram uns com os outros, e os franceses tentaram a abordagem, gritando ao atacar. Foram rechaçados. Depois se ouviu um grito mais alto, triunfal, seguido de
outro quando o pau mezena inimigo caiu pela borda à altura de coberta, arrastando pela frente o mastaréu do maior. O barco já não pôde aproar face ao vento, e virou
para bombordo. Contudo, como ainda respondia ao governo do leme andou para o nordeste seguindo o traçado da praia, mantendo o fogo por seu costado incólume até que,
com a maré-cheia, onze minutos depois de efetuado o primeiro disparo, arriou a bandeira ao mesmo tempo que sulcava as águas que rompiam sobre a parede rochosa, justo
ao pé do povoado.

Jack ordenou fechar sobre o barco e pediu aos gritos que se rendesse; e isso fez depois de titubear. Poderia ter apresentado os canhões para atacá-los, mas o fato
de achar-se em semelhante posição com relação à rocha e com aquele fluxo de ondas reduzia a nada toda a esperança. Apesar de tudo, a essa altura da baía e com águas
de tão escassa profundidade, o fluxo de ondas era muito menos perigoso do que parecia. Os botes transportaram o comodoro francês e seus oficiais sem a menor dificuldade,
e levaram de volta a tripulação de presa, incluída a pessoa de Stephen Maturin, a pedido do francês; o cirurgião de bordo havia morrido por querer presenciar a batalha.
Além da dotação de presa de rigor, Jack ordenou também o transbordo de um modesto destacamento de infantes da marinha, pois embora não esperasse que surgissem problemas
a bordo da presa, sempre era melhor prevenir do que remediar. Debaixo das nuvens acabava de ver que o Stately tentara uma esforçada mas perigosa manobra, ao andar
e mudar de bordo por avante de repente, ante as amuras do francês, disposto a varrer sua proa com uma descarga depois da outra. Mas tanto seu barco como a perícia
de seus homens o puseram em má situação: o Stately não completou a virada, e ficou ali a mercê da maré e do vento enquanto o francês o atacava com vontade e rendia
seus mastaréus do maior e da mezena. Finalmente recuperou sua posição anterior, amurado a estibordo. Certamente o inimigo andava um pouco e por sua vez varreu-lhe
o convés.

Se não fosse pela aproximação do Bellona, o francês poderia tê-lo destruído ou aprisionado. Em vista do aspecto que tomava a situação, marejou as gáveas e partiu
de bolina até o extremo do promontório situado ao sul, e depois para o mar aberto, salvando seu paus e suas correspondentes velas para desaparecer rumo leste e cobrir-se
de lona sem ao menos preocupar-se pelos companheiros que haviam ficado encurralados na enseada.

O motivo da fuga se descobriu pouco depois, quando dois navios de linha ingleses de setenta e quatro canhões dobraram o cabo acompanhados de uma fragata. Jack ordenou
hastear o sinal de pôr-se a pairar, ordem que sublinhou com um disparo de canhão. Pediu a Tom que atendesse ao Stately e, caso pudesse deixar o navio sem escolta,
avançasse pela enseada onde se refugiavam os transportes de tropas. Depois, foi para a Ringle.

Subiu a bordo do setenta e quatro mais próximo, o Royal Oak, onde receberam sua falta de elegância e sua roupa manchada de sangue com grande entusiasmo e todos os
respeitos devidos ao seu galhardetão.

- Cavalheiros, vou informar-lhes às pressas - disse. - Há uma enseada situada entre aquele conjunto de ilhas dali - assinalou, - que oculta quatro transportes franceses
de tropas e duas fragatas. Eu mesmo os aprisionaria, mas tenho quatro pés de água na sentina que estão aumentando, tudo isso resultado do combate contra aquele que
encalhou ali, um oponente muito enérgico, por que negá-lo? Neste momento, meu barco não está em condições, é lento e pesado.

Trataram-no com infinita consideração, e certamente lhe asseguraram que cumpririam suas ordens. Felicitaram-lhe de todo coração pela vitória conseguida, desejaram
que não tivesse sofrido muitas baixas e agradeceram ao Céu por terem sido despachados do porto de Bere devido ao rumor do combate. Depois lhe conduziram à cabine,
onde perguntaram se desejava um chá. Chocolate? Talvez genebra e água quente, ou o uísque que se consumia por esses lares. Durante todo esse tempo os barcos se aproximaram
da enseada, e chegado esse ponto os capitães de fragata de Jack subiram a bordo, ansiando notícias, lamentaram o maltratado estado do Bellona, barco ao qual puderam
ver inclinar-se na água e cujas bombas expulsavam para sotavento água em abundância.

Uma das fragatas francesas da enseada optou por fugir. Cortou o cabo da âncora, abriu passagem como facilmente pôde através de um improvável buraco e partiu para
o leste ante a tormenta, com toda a lona de que dispunha, para reunir-se com o barco de linha em sua rota de regresso à França. O restante se rendeu diante de semelhante
força, já que a essas alturas o Bellona havia se unido a os demais navios na enseada.

- William - disse Jack Aubrey a Reade, ao regressar ao navio de apetrechos, - peço que vá correndo ver o doutor e lhe informe que o capitão Geary nos emprestará
alguns marinheiros para que nos ajudem com as bombas; este capitão cuidará de que regressemos à baía Bantry para as reparações, enquanto o Warwick rebocará ao desgraçado
Stately. Diga-lhe que tudo foi bem e que espero voltar cavalgando em um dia ou dois. Há um trecho curto por terra, é por isso que se soube em Bantry da notícia de
nossa presença; ao que parece, um garoto montado em um asno avisou que finalmente os franceses haviam chegado.

 

Por fim os franceses haviam chegado, tanto ansiaram por sua ajuda, prometida fazia tempo. A situação parecia ir por mau caminho; contudo, ali estava finalmente o
esplêndido barco francês, carregado de gente e de armas.

A maré se retirou, para longe, incrivelmente longe, e o barco francês tocou fundo com a madeira malferida rangendo e inclusive cedendo sob seu peso. Encerrou-se
a maioria dos prisioneiros debaixo do convés, ainda que alguns deram uma mão à dotação de presa em diversas tarefas, e outros ajudaram a Stephen a trasladar aos
feridos para o hospital do Sagrado Coração, situado no alto, além de Duniry. Alguns habitantes do povoado faziam parte de um ou outro dos regimentos irlandeses que
serviram sob a bandeira francesa antes da Revolução, e não haviam esquecido a língua; foram eles que descobriram o propósito da expedição e a natureza do carregamento
que o barco transportava. A notícia se espalhou, e quando Stephen voltou do hospital acompanhado pelo padre Boyle encontrou uma multidão ruidosa e ameaçadora junto
ao barco encalhado, cujo lado, que dava para a costa, estava praticamente seco. Havia se colocado uma espécie de escada, e em uma plataforma a seus pés formava a
guarda dos infantes da marinha do Bellona, com aspecto cruzado e aprensivo, já que não só os do povoado se sentiam tentados a apedrejá-los, como também, a praia
transbordava algas, barro e todo tipo de imundice, e as mulheres, que já haviam soltado o cabelo, eram perfeitamente capazes de jogar-lhes o que fosse necessário,
e estragar seus uniformes.

As pessoas abriram passagem para o padre Boyle e para Stephen.

- Temo que pretendem subir pelo lado - um jovem oficial lhes sussurrou.

- Homens de Duniry, são as armas o que desejam - disse Stephen em gaélico, ao virar-se enquanto subia a escada.

- Isso mesmo, e as conseguiremos - gritaram a modo de resposta.

- Se vocês fazeis com essas armas, armas que provêm do mesmo homem que manteve o santo padre prisioneiro, que se tornou turco no Cairo e que rendeu culto a Maomé,
converter-se-ão em vossa ruína e em vossa morte; Deus se interpõe entre nós e o mal. Não sabiam que toda a baronia se levantou em armas ao conhecer a chegada do
francês? Os propietários rurais de todo Cork Ocidental e do condado de Kerry estão em pé de guerra, e se enforcará a todo aquele que seja pego em posse de um mosquete
deste barco. Ao anoitecer não encontrarão mais que forcas em sua passagem, e nem um só telhado cuja palha não arda. - Voltou-se ao cura e exclamou: - Mors in olla,
vir Dei: mors in olla. Pelo amor de Deus, convença-os a se tranquilizarem, querido padre, ou amanhã a estas horas haverá dúzias de viúvas. - Recorreu de novo ao
gaélico para dizer: - Houve um profeta chamado Elíseo, tal e como nosso bom padre Boyle poderia contar, que, em companhia de seus discípulos, foi convidado para
uma refeição no deserto. Contudo, alguém exclamou com uma voz retumbante, que surgiu como um rugido do interior de seu peito: "Não a toqueis, oh, homem de Deus,
que o cozido está envenenado!". Conterrâneos, esse maldito barco será para vós como o mortífero cozido do profeta. E assim será caso se atrevam a tocá-lo, que Deus
não o queira. - E subiu até chegar ao convés da presa, deixando-os em silêncio.

Depois, ao longo daquela noite e durante toda a manhã seguinte, os propietários, a milícia e os soldados, com o aparato habitual de triângulo, amarras e fogo, revistaram
Duniry, além de todas as propriedades e cabanas das proximidades. Não encontraram nada além de certa quantidade de licor ilícito, que beberam.

No dia seguinte, na missa, Stephen foi recebido com o respeito devido a um representante da coroa no condado, e provavelmente com mais afeto. Mais de um lhe perguntou
se honraria sua casa provando seus manjares, e muitos mandaram ao barco presentes em forma de pudim, creme e geléia. A essas alturas levara a cabo todas as operações
cirúrgicas de urgência, e os médicos do lugar haviam se encarregado do restante dos pacientes. Dispunha de tempo livre, tempo para passear pelos arredores, e sucedeu
que um dos muitos cavalheiros do lugar, que se aproximaram para ver o barco francês, chamou sua atenção desde um cabriolé.

- Maturin! Quanto me alegro de vê-lo! Terão passado anos... Venha, acompanhe-me a esta taberninha ilícita e tomemos um trago de xerez; ou prefere um gole de aguardente,
do que poderá confiar mais? Como está? Por minha honra que me alegra ouvir isso. Eu também, eu também. Certamente se dirigia para visitar a Diana. Saí com ela a
finais de março, com os cachorros de Ned Taaffe. Bom dia, matamos duas raposas. Taberneiro. Taberneiro: duas taças de xerez, se é tão amável, e algo sólido para
acompanhá-las. Não terá o senhor anchovas por alguma casualidade?

Stephen observou o vinho, levantou a taça, e disse fazendo uma reverência:

- Que Deus lhe abençoe. - Pegou seu elegante relógio, colocou-o sob a luz e observou atentamente o ponteiro dos segundos até que este completou uma volta.

Seu amigo lhe observava por sua vez, também com toda a atenção do mundo.

- Sem dúvida está tomando-se o pulso - disse.

- Isso mesmo. Recentemente padeci uma miríade de emoções fortes, e queria atribuir um cálculo ao efeito geral, ao efeito físico, dada a impossibilidade de que a
qualidade possa ser medida. Meu cálculo alcança os cento e dezessete por minuto.

- Esse é o número mais afortunado do mundo, conforme acredito; número primo, impossível dividi-lo por outro.

- O senhor está no certo, Stanislas Roche: nem muito nem pouco. Escute. Seria tão amável de fazer-me um favor? Levar-me-ia a Bantry em seu elegante carro, até que
possa alugar um cavalo ou um calesín{23}?

- Vou fazer melhor que isso, dado que Bantry se encontra na direção contrária pelo menos em metade do caminho. Eu lhe levarei a Drimo, não lhe parece encantador
de minha parte?

- Um ato digno de inscrever-se com letra dourada - respondeu Stephen com ar ausente.

E ausente, muito ausente, foi a conversa que mantiveram durante todo o trajeto. Por sorte, Stanislas tinha conversa de sobra para dois. Descreveu os pormenores da
jornada de caça com os cachorros de Ned Taaffe, a destreza de Diana ao eludir uma quantidade prodigiosa de desníveis e arroios no lombo de um castrado árabe e, enfim,
até o menor detalhe de uma longa caçada através de um terreno que Stephen desconhecia por completo, caçada que terminou de forma tão surpreendente como inesperada.

- Não lhe parece assombroso? - perguntou Stanislas.

- Estou profundamente assombrado - respondeu Stephen sem faltar um pingo à verdade. Contudo, lentamente resolvia seu estado de confusão, dotava de certa ordem a
seus assuntos, quase mentalizado de que em questão de alguns minutos podia ver aquilo que mais desejava seu coração, fossem quais fossem as consequências. Ao que
parece, Diana residia já fazia tempo com o coronel Villiers, um ancião parente de seu primeiro marido. Ainda que Stephen não recordava se era um tio, ou um tio de
segundo grau, sabia que o cavalheiro servira na Índia, e que era um grande amante da pesca.

- Já chegamos - disse Stanislas ao puxar das rédeas. - E não demoramos nada. Agora o senhor seria tão amável de abrir o portão? Quase nunca encontro a ninguém na
casinha do guarda. Oh, antes de que me esqueça, como oficial ao serviço do rei deveria informar-lhe de que, em certa maneira, teria que estar de luto. Está manhã
estive em Bantry, tal e como já lhe disse, observando ao Bellona e ao Stately, e lhe tinham posto uma espécie de mastro, refiro-me ao Stately. Para desgosto meu
vi que ondeava uma bandeira a meio mastro. Enviei alguém para perguntar se isso supunha que o valente capitão Duff havia morrido. Não, disseram; somente perdeu a
perna. A bandeira, que certamente ondeava também nas outras embarcações, coisa que pude comprovar ao observá-las, devia-se à morte de um membro da realeza, bem,
quase da realeza, o duque de Habachtsthal, dono do castelo Rossnacreena, representante da coroa neste condado. Ao que parece se degolou em Londres na quinta-feira
passada, e a notícia acaba de chegar.

Este comentário acrescentou assombro ao conjunto de emoções, um assombro que não tinha tanta importância como o anterior, certamente, mas que era assombro afinal
de contas. Com a morte desse homem não teria dificuldade alguma para obter os perdões de Padeen e Clarissa, e a fortuna de Stephen estaria a salvo em qualquer lugar.
Se a aceitasse, poderia presentear a Diana com uma coroa de ouro.

- Stanislas - disse Stephen da margem do caminho. - Não abrirei o portão. Despeço-me do senhor neste momento e lhe agradeço o bem que me fez. Não tenho visto a Diana
há tanto tempo e tantos milhares de milhas marítimas... queria vê-la sozinho.

- Claro, claro. Entendo perfeitamente. Ela também levará uma surpresa.

- Que Deus lhe bendiga, Stanislas.

Acedeu a um amplo pátio ao atravessar o postigo, um pátio um pouco estragado por um muro desmoronado de pedra cinzenta de vinte pés de extensão, e pelo esqueleto
de um bergantim de duas toneladas escorado junto à fonte que havia no centro. Detrás do pátio, a casa que se estendia ante seus olhos sob o sol brilhante tinha duas
alas e um bloco central de três pisos, com um pórtico clássico e uma estupenda escadaria, inteiros a maioria dos degraus.

estava a ponto de chegar á escadaria, entre cujos degraus crescia uma curiosa hepática, quando a porta se abriu e se ouviu a voz de Diana:

- É o senhor o do pão?

- Não - respondeu Stephen.

Diana surgiu da escuridão, com uma mão sobre os olhos, a modo de sombrinha.

- Stephen, meu amor, é você? - desceu a escadaria, tropeçou ao chegar ao último degrau e caiu em seus braços com lágrimas nos olhos.

Sentaram-se ali mesmo, muito juntos.

- Grande costume você tem de aparecer de surpresa, quando coincide que tenho seu nome nos lábios e sua imagem em minha cabeça. Porém, Stephen, querido, você está
amarelo e magérrimo. Não lhe têm dado de comer? Esteve doente? Estará de licença, suponho. Deve ficar aqui, o coronel lhe agradará com salmão, enguia e truta defumadas.
Chegará antes da hora de almoçar. Meu Deus, quanto me alegra ver-te, meu amor. Agora iremos descansar; tem um aspecto lamentável. Venha, acompanhe-me para a cama.

- A sua cama?

- A minha cama, claro que sim. E não deve abandoná-la jamais. Stephen, nunca mais deveria fazer-te ao mar.

 

 

 

 

{1} Navegar de conserva: em companhia de outras embarcações para auxiliar ou defender-se.

{2} Pompey: era como os marinheiros britânicos antigamente chamavam a Portsmouth.

{3} Cinquillo: m. jogo de baralho no qual a carta inicial é o cinco.

{4} Galhardetão: Galhardete rematado em duas pontas, mais curto e largo que o ordinário.

{5} Groera: Mar. Buraco feito em uma prancha ou uma chapa, para dar passagem a um cabo, a um pinzote, etc.

{6} Ordem da Liga: Ordem militar inglesa, instituída por Eduardo III no século XIV, chamada assim por sua insígnia, que era uma liga.

{7} Membro da câmara dos lordes.

{8} Calesín: Carruagem leve, de quatro rodas e dois lugares puxada por um só cavalo.

{9} Taba: jogo em que se joga ao ar uma astrágalo de carneiro ou um objeto desta forma, cujo resultado depende do lado em que caia.

{10} Empulgueras: Instrumento que servia para torturar apertando os dedos polegares.

{11} Em Cambridge, conhece-se ao laureado em matemáticas como Wrangler, voz que em suas acepções mais comuns alude a brigão e querelador.

{12} Seven Dials: zona de Londres conhecida antigamente por sua pobreza e sordidez.

{13} Vela de cuchillo: Mar. A que é envergada em cabos ou perchas colocadas no plano longitudinal do navio.

{14} Sands Goodwin: banco de areia de 10 km de comprimento no Canal Inglês.

{15} Berlinga: Mar. Tronco inteiriço de árvore, descascado ou não, que por seu especial tamanho serve para a construção de peças de mastreação, vergas, botalós,
alavancas, etc.

{16} Empalletado: Mar. Espécie de colchão que se formava no costado das embarcações quando iam entrar em combate, pondo juntos numa rede as trouxas da roupa dos
marinheiros, e servia para defesa contra a fuzilaria inimiga.

{17} Batiportar: Mar. Trincar a artilharia de modo que as bocas das peças se apoiem no canto alto alto das portalós respectivas.

{18} Cachorro com manchas: pudim de sebo com passas.

{19} Batiportar: Mar. Trincar a artilharia de modo que as bocas das peças se apoiem no canto alto das respectivas portalós.

{20} Noite de Guy Fawkes: em 5 de novembro de 1605 os católicos fracassaram em sua tentativa de voltar ao Parlamento inglês, como protesto às leis ditadas contra
eles e como parte de um complô ("Conspiração da pólvora") para acabar com Jacobo I. Seu lider, Guy Fawkes, foi capturado e executado. Os protestantes comemoram essa
data queimando pela noite um boneco de palha que o representa.

{21} Oak Apple: feriado público formal celebrado na Inglaterra no dia em 29 de maio para comemorar a restauração da monarquia Inglesa em maio de 1660. Foi abolido
no ano de 1859.

{22} Estádio: Medida de longitude equivalente a 201,2 metros.

{23} Calesín: Carruagem ligeira, de quatro rodas e dois lugares, do qual puxava uma só cavalgadura.

 

 

                                                   Patrick O brian         

 

 

 

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