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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CONCEITO ZERO / A. J. Barros
O CONCEITO ZERO / A. J. Barros

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

O dia fora apagado, como sempre ocorre após uma noite de pouco sono. Mesmo quando não se sentia bem, o general não baixava a guarda. Cuidadoso, antes de sair verificava se havia tomado todas as cautelas que o seu serviço exigia.

Normalmente, pousava a mão na maçaneta da porta e olhava de novo a mesa, os arquivos, a disposição dos objetos, o cesto do lixo, papéis pelo chão, e meditava se não havia deixado de tomar alguma providência.

Gostava de lembrar a história do juiz chinês que, quando ia dar uma sentença, pegava a chaleira de chá quente e despejava na xícara. Se alguma gota caísse no pires, deixava para decidir no dia seguinte. Evitava sair às pressas do seu gabinete, com receio de falhas nem sempre justificáveis. Aprendera que justificativas só confirmam o erro.

Já eram oito horas da noite e, apesar de estar um pouco frustrado por não ter conseguido criar ainda a estrutura de vigilância à qual dera início, sentia-se de certa forma satisfeito porque estabelecera um último contato que poderia ajudar na solução daquele mistério.

Chegou a ter receio de que o sujeito não fosse aceitar a missão. Já tinha trabalhado muito para o governo, sabia que era hora de parar e cuidar da própria vida, de seus negócios, pensar mais na família.

E estava certo, pensou com certa tristeza. Ele próprio já estava na faixa dos cinqüenta anos, atingira o generalato, ocupara cargos de importância, até mesmo no exterior, e às vezes sonhava com um pequeno sítio, brincar com os netos e vê-los correr pelo gramado e, quando os netos não esti­vessem lá, poderia cultivar flores com sua mulher. Pensava nela com certa melancolia. Ela engordara um pouco, coisa da idade, mas parece que ficava cada vez mais atraente. Admirava-a por manter a jovialidade e beleza.

 

 

 

 

Às vezes, via no seu rosto um pouco de apreensão, como se ela adivi­nhasse algum perigo. Mas estava à frente do principal órgão de informa­ções do governo federal e não podia sair enquanto não confirmasse suas suspeitas ou desistisse delas.

Sentia ter de adiar os sonhos do gramado em frente de uma casa afas­tada da cidade, mas era preciso descobrir que tipo de articulação estava sendo feita e quem estava por trás disso. Era preciso salvar o Brasil, pensou, e compreendeu de repente que não passava de um sonhador. Quem mais estaria preocupado com o país?

Desde que assumira a chefia da Agência Brasileira de Informações, Abin, começou a catalogar os registros considerados mais sigilosos. Tinha o há­bito de catalogar fatos, arquivar documentos com método e coerência. E, assim, organizou informações sobre políticos, movimentos sociais, guerrilhas nas fronteiras, contrabando, tráfico de drogas, principalmente na região da Amazônia, onde movimentos de guerrilheiros do Peru e da Colômbia se misturam com o tráfico.

Havia algumas coisas curiosas, como a comunicação daquele coman­dante da Varig que, quando ia de Manaus a Brasília, tinha ouvido pelo rádio um avião da Força Aérea Brasileira, FAB, dar ordens para outro avião se identificar e pousar numa pista perto de Itupiranga, à margem do rio Tocantins, no Pará. Como as coordenadas indicadas pela FAB não estavam no Pan-Rotas, ele relatou o episódio à Agência Nacional de Aviação Civil, Anac, e essa informação veio parar na Abin. Nenhum avião da Força Aérea esteve naquela região, nem registros de qualquer comunicado feito pela Aeronáutica. As coordenadas eram de uma pista clandestina, provavelmen­te usada por traficantes, e nela estavam os destroços de um avião roubado. Havia sinais de luta.

Em outro episódio, perto das terras da Mineração São Francisco, numa estrada abandonada que liga a cidade de Colniza, no Mato Grosso, com Humaitá, no Amazonas, a Polícia Federal recebeu denúncia de que ali funcionava um laboratório de cocaína do grupo de Pablo Escobar. Se­gundo a denúncia, ia ser feita a entrega de uma tonelada de cocaína, com pagamento em dólares, e os traficantes chegariam com o dinheiro em dois aviões Learjet.

No dia indicado, a Polícia Federal armou uma operação de guerra para prender a quadrilha, contando com a ajuda das polícias militar e civil de Mato Grosso. Quando chegaram ao local, os traficantes estavam mortos. Parece que houve luta entre grupos e a polícia encontrou a droga e o labora­tório incinerados.

Uma lancha explodiu no porto de Manaus, com dois cientistas que iriam estudar a flora amazônica. Logo depois, uma fonte anônima informou à im­prensa que esses cientistas tinham feito treinamento de guerrilha em Cuba. Não se sabe quem explodiu a lancha e quem passou a informação à imprensa, mas a fonte estava certa. Os cientistas e a lancha tinham documentos falsos.

Em Roraima, um avião com seis agentes da Polícia Federal desceu no aero­porto de Boa Vista para abastecer. Sua missão era destruir pistas clandestinas de pouso dentro da reserva Ianomâmi na fronteira com a Venezuela e que serviam para o tráfico. Enquanto abasteciam, chegou uma patrulha do Exército, que cercou o avião e prendeu seus passageiros. O avião havia sido roubado e os federais eram falsos. A informação fora dada pessoalmente por um agente do Serviço Secreto do Exército, que desapareceu logo em seguida.

Outros fatos foram catalogados e todos mostravam uma lógica imper­turbável em várias direções.

O general nunca se esquecera daquela lei de geometria de que, conhecendo-se dois pontos, traça-se uma linha reta até o infinito. Ali havia mui­tos pontos com os quais se podia traçar várias linhas retas. A seqüência de episódios não podia ser mera coincidência. Mas o que seria então? Quais pontos seguir?

Atrás de uma lógica para isso, foi criando linhas de raciocínio. Uma dessas linhas indicava que alguém se apoderava do resultado de operações ilícitas, principalmente o tráfico de drogas. Com paciência, foi colhendo informações, juntando os pauzinhos e chegou a uma conclusão surpreen­dente. Era possível que um grupo organizado estivesse ajudando a prender traficantes, mas ficava com o dinheiro deles.

Não foi difícil concluir sobre a Confraria. Foi um achado espantoso. Nem mesmo os órgãos de segurança ou de informações sabiam dessa Con­fraria, camuflada no meio da selva. E era como um presente do céu para os propósitos do Exército de criar a "Resistência".

A Confraria apoderava-se do dinheiro, das armas e dos aviões de tra­ficantes e contrabandistas, e depois os entregava à polícia. Com isso, ela auferia volumosa receita para cobrir suas despesas e formar um exército particular. Não tinha certeza, mas devia ser uma organização patriótica.

Mas por que então não procuravam auxílio do governo? Essas indagações estavam sem resposta. Será que esse grupo tinha informações que compro­metiam pessoas ou órgãos oficiais?

Assustou-se, de início. Aquilo não era ético, e era ilícito. A defesa do país devia assentar-se sobre bases morais. Chegou a pensar em acionar os órgãos de segurança para investigar a fundo essa tal confraria. O Comando Militar da Amazônia, o Comam, com sede em Manaus, devia ter meios de chegar até ela. Depois pensou que era melhor ele próprio tentar contato, sem alertar outros órgãos ou instituições.

Não era tão simples. Andou fazendo perguntas. Arriscou palestras em fa­culdades, entidades de classe e setores de segurança sobre o potencial da Ama­zônia e a sua importância para o país. Deixou escapar frases como isca, mas não adiantava. Essa organização, fosse lá o que fosse, não aparecia. Mas ela tinha de saber que o seu interesse era apenas ajudá-la. Não podia desanimar.

Outras linhas de raciocínio iam em direções perturbadoras. Não se atre­via a levar suas preocupações a escalões mais altos. O instinto obrigava cau­telas. E se o Ministério da Defesa não acreditar nas suas suspeitas? Poderiam não tomá-lo a sério e, nesse caso, seria substituído em seu posto e certamente interromperiam iniciativas que já vinha adotando sigilosamente para escla­recer as dúvidas que o corroíam. Não se importava com o cargo. Talvez fosse mesmo o momento de parar, mas o instinto o alertava sobre alguma coisa muito séria que poderia ocorrer e era preciso continuar investigando.

 

Chegou a semana da Páscoa dos militares. Não era católico praticante, mas a função impunha certas obrigações, e ele estava lá de novo estudando o estranho desenho daquela arquitetura. A catedral de Brasília talvez seja a única do mundo que não tem jeito de catedral. Também, não fora cons­truída para ser catedral. Oscar Niemeyer projetou um templo ecumênico, e Brasília seria a única capital do mundo cristão a não ter catedral. Logo o Brasil, com uma grande população católica!

O interessante é que a construção de Brasília gerou um impasse para o projeto. O Estado não tem religião e não podia financiar a obra. A solução foi decretar a catedral como patrimônio de interesse público, e o governo militar pôde, assim, destinar verbas para a sua construção.

Uma ou outra cerimônia o obrigava a nela entrar. O simbolismo da­quele templo era uma das maiores incoerências de Brasília. A cúpula foi inspirada na Estátua da Liberdade, mas a catedral acabou sendo dedicada à Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

A catedral de Brasília não tem a nave das outras igrejas, mas um amplo espaço circular que fica pouco abaixo do nível do solo. Um grande ovo no vitral azul, atrás do altar, simboliza o útero e os doze anjos em vitrais colo­cados em diagonal mostram a Anunciação de Nossa Senhora.

Para entrar na igreja, o fiel passa por um túnel meio escuro, chamado de "zona de meditação", que o prepara para se encontrar com a claridade interna que suplanta qualquer gótico no mundo.

Estava à paisana. Não se sentia bem quando entrava na igreja com far­da e aquelas condecorações no ombro. É bom ser humilde perante Deus, pensava ele. O dia era reservado para a confissão dos militares. Não havia muitos. Ultimamente as pessoas comungam sem se confessar. Já teve a pachorra de contar quantas pessoas comungam numa missa e chegou à conclusão de que não havia padre para todos se confessarem. Mas ele acha­va importante manter seus princípios religiosos.

Era um privilégio poder confessar-se e comungar naquela igreja. Sem­pre saía de lá com um sentido novo de vida. A "penumbra da meditação" e logo em seguida o esplendor irradiante da luz e do renascimento dos vitrais eram tocantes. Incomodava-o a pieguice que tomava conta dele nessas ho­ras, mas, afinal, quem não é emotivo neste mundo?

Chegou a sua vez. O confessionário era de madeira, estilo moderno, mas ainda daqueles em que o padre ficava dentro e o penitente se ajoelhava do lado de fora. Havia dois confessionários logo na entrada à direita. Não en­tendia muito essa história de pecado, nem acreditava que qualquer padre pu­desse perdoá-lo pelo que fez de errado. Mas sentia-se bem, como se estivesse realmente diante de Deus, menos porque acreditava, mas porque recordava os tempos de criança, quando ia à missa nas manhãs de domingo.

Entrou no confessionário e notou que não havia padre. "Estranho", pensou. Tinha visto uma pessoa se confessar ali e essa pessoa estava agora ajoelhada num dos bancos para cumprir a penitência. Não demorou muito e apareceu outro padre. Um monge? Encapuzado? Parecia beneditino, o capuz escuro lhe escondia o rosto, mas pôde ver o olhar penetrante e firme de um representante de Deus que parecia mesmo estar dotado de poderes sobrenaturais para livrar o mundo dos seus pecados.

O novo padre fez o sinal-da-cruz e disse com voz calma, estudada e misteriosa:

- Meu filho, Deus sempre dá respostas para perguntas bem-feitas.

Não eram palavras para começar uma confissão e entendeu logo que ali estava o contato que vinha buscando. Por que será que se lembrou de Bocage, o poeta português? São injustas as piadas que fazem sobre esse grande poeta. Lembrou-se da história que seu pai contara quando ainda era criança.

Parece que a rainha de Portugal não suportava mais as irreverências de Bocage com a Corte. Numa audiência, a rainha disse a Bocage que ia fazer-lhe duas perguntas. Se ele errasse apenas uma delas, seria enforcado, e então perguntou: "Qual é a melhor parte da galinha?" Bocage respondeu: "O ovo". Tempos depois, num baile no palácio, a rainha se encontrou com Bocage e perguntou de repente: "Com quê?" E Bocage respondeu pronta­mente: "Com sal".

O cargo que ocupava não permitia distrações, e assim respondeu ao monge:

- Mas existem perguntas bem intencionadas para as quais está difícil uma resposta.

Foi a melhor confissão de sua vida. Saiu de lá com a sensação de estado de graça. Tinha certeza de que se confessara com o mestre da Confraria, que talvez nem fosse padre, mas a absolvição fora tão convincente, que ele comungou assim mesmo. A Confraria estava fazendo trabalho policial, sem custos para o governo, e ao mesmo tempo defendendo a integridade nacional. Mas não foi só por isso que o general saiu satisfeito de lá. A idéia de um trabalho paralelo, extra-oficial, também o agradou.

Com poucas palavras e dentro do tempo de uma confissão normal, re­cebeu as explicações que buscava e estabelecera os meios de contato.

Isso se encaixava muito bem dentro da filosofia de "resistência". O Exército tinha consciência de que não podia suportar ataques de potên­cias como os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, Otan. Mas a guerra do Iraque, onde grupos de insurgentes conti­nuam resistindo até hoje e enfrentando os melhores exércitos do mundo, renovou os planos de se criarem grupos de resistência, como no Iraque e no Vietnã, para desencorajar o inimigo.

Pensava nisso agora, em pé diante da porta, com a mão na maçaneta, e sorriu satisfeito.

Respirou fundo, abriu a porta e saiu. Sempre levava uma pasta pequena de documentos de dissimulação. A sua secretária e chefe do gabinete já estava pronta. Ela sabia que, quando ele punha a mão na maçaneta, ainda dava tempo para passar batom e ajeitar o cabelo.

Ela também já estava de pé, a mesa em ordem, as gavetas trancadas, a roupa ajeitada. Gostava da sua ordenança. Era a mais eficiente de todas as pessoas que com ele trabalhara. Capita do Exército, exímia atiradora, lutava artes marciais como poucos e tinha raciocínio bri­lhante e rápido. Por trás daquele batom de secretária, havia uma arma segura e confiável.

A Abin fica no setor militar de Brasília, uma grande área no caminho do aeroporto, onde também está o setor policial. Evitava sair logo após o expediente por causa do trânsito. Preferia ficar até mais tarde porque sempre sobravam problemas que não pôde resolver durante o dia. Tinha a vantagem ainda de menos telefonemas e interferências.

Como homem de segurança, não gostava de ficar preso no meio de carros e sem opções para sair de eventual perigo. Já eram mais de oito horas e o trânsito fluía bem. O motorista era primeiro-tenente com vários treinamen­tos para situações de risco.

Passaram pela portaria, onde os controles não poupavam nem os mais graduados, e tomaram a avenida, passando em seguida por baixo de um grande viaduto, e retornaram em direção à cidade. Não faziam o mesmo percurso todos os dias e desviaram para a direita, como se estivessem indo para o setor das embaixadas.

A rua era arborizada de ambos os lados e também servia de corredor de ônibus. Brasília fora planejada para ter poucos carros particulares e mais transporte público. Projetada para apenas quinhentos mil habitantes, já conta hoje com quase três milhões, e o transporte público praticamente não existe. Foi preciso abrir viadutos para passar por cima ou por baixo daquelas largas avenidas. Estavam se aproximando de um deles, quando viram o enorme caminhão que vinha na contramão, em alta velocidade.

Eles mantinham a direita, e o caminhão parecia uma dessas caçambas de misturar concreto para construção. Talvez o motorista estivesse bêbado e entrara na contramão, sem perceber, mas não havia tempo para descobrir o que estava acontecendo naquele momento. O enorme veículo aumentou a velocidade e foi de encontro a eles. O perigo era real e a previsibilidade do choque iminente antecipava a angústia do impacto.

Já estavam praticamente em cima do viaduto, e no espaço entre o meio- fio e o guard-rail não cabia o carro. O tenente não viu outro jeito senão passar para a esquerda e deixar que o caminhão transitasse pela mão que vinham ocupando. Na hora em que quis mudar de pista, outro caminhão saiu da rua que dava acesso ao viaduto e ocupou o seu lado esquerdo e ele retornou para onde estava.

Iam bater de frente com o caminhão que vinha em cima deles. A capita gritou: "Pule, general!" E, dizendo isso, abriu a porta do carro e se jogou sobre o passeio, agarrando-se nas plantas que o ornamentavam. O tenente conseguiu frear o carro e, com essa manobra, o caminhão da esquerda adiantou-se e ele desviou, aproveitando o vazio que o caminhão deixou, mas ficou meio atravessado na rua para fazer essa manobra, e a enorme caçamba de concreto pegou-o de lado, jogando-o para o alto.

Horrorizada, ela viu o carro voar, fazer uma cambalhota e cair de ro­das para cima, bem de frente com o caminhão que continuou acelerado, arrastando-o na avenida. Os poucos carros que passavam não conseguiam desviar-se, chocando-se uns contra os outros.

O caminhão, que parecia blindado, pois nada aconteceu com ele, parou de repente, a uns vinte metros de onde ela estava, e um motorista aparente­mente assustado pulou da cabine e saiu correndo por uma rua lateral.

Nesse instante, o carro do general explodiu e o incêndio espalhou-se. A capitã conseguira arrastar-se, rolando pelo barranco que ia dar no viaduto e estava a ponto de desmaiar, mas fez um esforço enorme e se controlou. Não tinha como socorrer o general, ela pensou. Provavelmente já estaria morto. O carro explodira e espalhara fogo pela rua incendiando outros carros.

Fora treinada para todas as circunstâncias de perigo, mas não estava preparada para essa catástrofe. Fora tudo muito rápido e aquele episódio estava esquisito. Olhou bem a cena e percebeu que o motorista do ca­minhão que batera contra o carro do general saíra correndo no meio das árvores e fugia para os lados da Av. W3, onde havia mais movimento.

Começou a correr para tentar alcançá-lo, mas ele tinha ganhado dis­tância e mostrava estar bem treinado. Ela também estava em forma e saiu no encalço do motorista. "Vou alcançá-lo", pensou. O motorista conseguiu atravessar a área aberta da praça e chegou até a rua do outro lado. Ela estava em desvantagem, mas acelerou e passou a correr em maior velocidade. Nisso, apareceu uma viatura da Polícia Militar que se aproximou do motorista. "Graças a Deus, chegou ajuda e esse acidente precisa de explicações", concluiu.

A viatura parou perto do motorista e desceram dois policiais com as ar­mas apontadas como se fossem prendê-lo, mas a capitã viu o motorista entrar rapidamente na viatura, como se já a esperasse. "Não é possível", refletiu.

Os policiais voltaram as armas em sua direção e começaram a atirar, mas ela jogou-se de lado e rolou pela grama ainda seca pelo sol que acabara de se pôr. A viatura deu meia-volta e passou para o outro lado da avenida saindo em velocidade.

Aprendera a não ter emoções nas situações de perigo. Era preciso racio­cínio e agilidade. Os sentimentos trabalham em favor do inimigo. Tudo indicava que aquilo não fora simples acidente. Aquelas cenas tinham sido bem planejadas, e ela também era um dos alvos. O que fazer? Aqueles poli­ciais podiam não saber que ela havia pulado do carro, apesar do uniforme. Podiam imaginar que era uma espectadora casual, mas o motorista iria informá-los. Com certeza eles voltariam para eliminá-la, se ficasse ali.

 

O patrulheiro Rogério entrara em serviço às dezoito horas. Fazia a ron­da do bairro e tinha por princípio que alguma coisa errada estava sempre acontecendo ou ia acontecer a qualquer momento. Sua obrigação era ten­tar evitar qualquer coisa que pudesse afetar a segurança pública.

"Procure ver o que está errado e desconfie sempre do que está certo", aprendera nos treinamentos. Saíra do setor policial para a sua ronda costu­meira e foi assim que viu o caminhão vindo na direção do carro preto, com chapa oficial. Notou o outro caminhão estranhamente bloqueando a saída do carro pela esquerda. Previu o que ia acontecer e imediatamente chamou ambulância e Corpo de Bombeiros.

Viu quando um oficial fardado abriu a porta e pulou, rolando pelo barranco e agarrando-se nos arbustos que formavam o pequeno jardim. Logo em seguida veio o choque. Também viu o motorista pular da cabine do caminhão e o oficial fardado, que pôde identificar como uma mulher, correr atrás dele. Ia também correr para ajudar a oficial, quando viu o carro da PM chegando e os policiais militares saírem da viatura com ar­mas na mão.

"Que coisa mais maluca", pensou. "Os idiotas estão atirando numa ofi­cial do Exército e ainda estão levando o motorista do caminhão?!"

Não pensou mais. Ligou a sirene e as luzes pisca-pisca e entrou numa rua de ligação com a avenida. Notou que a viatura da PM havia recolhido o motorista e saído em velocidade, desviando-se dele. Já havia pedido ajuda e precisava agora ver se aquela mulher estava ferida. Colocou a viatura na frente da oficial, protegendo-a contra qualquer ação que pudesse vir da rua, e desceu do carro.

- A senhora está ferida? Sou o sargento Rogério, da Polícia Militar.

Estou um pouco dolorida. Não sei se me machuquei ao pular do carro ou se fui atingida. Precisamos sair daqui com urgência. Esta é uma situação de perigo desconhecido. Sou capitã do Exército. Por favor, me leve urgentemente para um hospital.

Ele ajudou-a a entrar na viatura. O uniforme tinha uma pequena man­cha vermelha, o que indicava algum ferimento. Já tinham se afastado uns duzentos metros quando se ouviu uma grande explosão. Objetos voavam e a confusão era grande.

Mas que diabos! Nunca tinha visto nada igual -, disse o patrulheiro.

"Fácil de entender", pensou a capitã. Não quis falar em voz alta porque não era assunto para aquele policial. "Devia haver uma bomba preparada para explodir alguns minutos depois do atentado e impedir a perícia do veículo. Acho que tive sorte em tentar correr atrás do motorista, quando ele saiu do ca­minhão. Se ficasse para atender os feridos, com certeza estaria morta agora."

Em seguida pegou o telefone celular e fez uma ligação.

Coronel Medeiros, é a capitã Fernanda. Tenho notícias tristes. O veí­culo do general Ribeiro de Castro chocou-se com um caminhão e explodiu. Temo que ele e o tenente Costa, que dirigia o carro, tenham morrido. Con­segui pular antes do choque e neste momento estou numa viatura da polícia na avenida W-3 indo para o Hospital de Base. Estou ferida, mas parece que não é nada grave. O patrulheiro que está me levando ao hospital se chama Rogério e disse que já chamou o Corpo de Bombeiros e ambulâncias. A chapa do veículo em que estou é BRP 8544.

"Caramba", pensou o patrulheiro. "Nesse estado e ainda anotou a cha­pa do meu carro?"

Só então ela se deu conta de como aqueles fatos a haviam afetado. Fora um atentado organizado por gente especializada, e o objetivo era eliminar o general e ela também, aproveitando o momento em que os dois estavam no mesmo veículo. "Quem fez isso vai tentar de novo e é assim que devo pensar daqui para a frente."

O patrulheiro chamou a Central pelo rádio e pediu que houvesse aten­dimento preferencial no Hospital de Base porque levava uma oficial do Exército, vítima de violência. Não era nenhum inocente e percebeu que aquilo não fora acidente e por isso acrescentou: "Os fatos são muito graves e preciso de apoio imediato. Acabo de entrar na W-3 e estou com as sirenes ligadas e em alta velocidade. Apoio urgente, insisto" e desligou.

Ficou contente quando aquele perna-de-pau, que nunca aprendeu a jogar futebol, mas insistia em participar de todas as peladas, respondeu: "Estou bem perto de você, ô pica-pau. Estou vendo o seu carro passar. Fique tranqüilo. Estou na sua cola". E ainda o goleiro do time: "Estou a uma quadra na sua frente, vou sair e abrir caminho. Me siga".

A capita ficou emocionada com aquela solidariedade e sentiu um pouco de remorso por duvidar, às vezes, da eficiência da polícia.

O Hospital de Base é reconhecido como um dos melhores do país, principalmente para tratamentos de urgência. Ficava bem no centro, junto ao Setor de Autarquias.

Assim que chegou na frente do hospital, viu os médicos de plantão na porta e enfermeiros com uma maca. Parou a viatura em frente à porta e a capitã foi logo recolhida. Um oficial graduado se apresentou como sendo o coronel Medeiros e disse ao patrulheiro:

Sargento, sou o coronel Medeiros. O senhor cumpriu seu trabalho com eficiência, nós estamos agradecidos, doravante o Exército cuidará da capitã.

Desculpe, coronel, mas tenho de concluir o meu trabalho. A capitã foi ferida em circunstâncias extremamente suspeitas e não posso deixá-la por enquanto. Já comuniquei meus superiores e recebi ordens para não sair de perto dela até que seja internada e haja efetiva segurança, e, o senhor me desculpe, mas parece que o senhor está sozinho e também pode precisar de ajuda. Estou aqui com mais duas viaturas e os colegas são de confiança. De qualquer forma, preciso preencher alguns papéis para fazer meu relatório.

O coronel olhou-o com surpresa e nada disse.

A capitã foi imediatamente internada e levada para uma sala de cirurgia. O patrulheiro postou-se ao lado da porta, enquanto o coronel ficou indo e vindo no corredor. Falou algumas vezes ao telefone e, após certo tempo, chamou o patrulheiro para que pudesse conversar um pouco afastado da sala de cirurgia.

Sargento, não há dúvidas de que o senhor presenciou um atentado no qual morreram dois oficiais do Exército. Uma das vítimas era um general. O motorista era oficial da área de segurança. A capitã teve sorte em conse­guir saltar do carro e ainda estar viva. Sem dúvida, quem fez isso vai querer completar o trabalho, e o senhor também pode correr risco de vida. Assim então, para sua segurança, é melhor que o senhor diga a quem perguntar que foi acidente causado por motorista descontrolado.

"Bem que eu estava desconfiando", pensou o patrulheiro.

Quanto à segurança da capitã, o pessoal especializado da Polícia do Exército já está no hospital. Agradeço o esforço que o senhor fez para salvar e proteger a vida dela e o elevado espírito de profissionalismo que está demonstrando. Já passei para o comando o seu nome, com as suas credenciais, e o Exército vai oficiar aos seus superiores solicitando que seja promovido. Também será agraciado com medalha de bravura, uma pela sua corporação e outra que será entregue pelo Exército Nacional.

O sargento ficou mudo e, ainda meio confuso, disse:

Obrigado, senhor. Cumprirei as ordens. Mas, se o senhor me permite, gostaria de ficar até ter notícias da capitã.

Um grupo de militares do Exército, comandado por um tenente, ocu­pou posições estratégicas do lado de fora do hospital e no corredor onde estava sendo atendida a capitã.

Não demorou muito, o médico-chefe da equipe que a atendeu saiu da sala de cirurgia, com a fisionomia tranqüila, e disse:

Ela está muito bem. Sofreu apenas esfolamento sem gravidade, mas está muito agitada e tive de lhe dar um sedativo. Assim que passar o efeito da medicação, ela vai para um quarto já reservado. Sei que os senhores vão querer ver o quarto e vou acompanhá-los.

O quarto ficava no terceiro andar e dava para a Esplanada dos Ministérios, tendo lá no fundo o Palácio da Alvorada, perto da escada de incêndio.

"Por que será que a colocaram perto de uma escada pela qual podem subir pessoas estranhas?" Mas achou que já estava vendo fantasmas e vol­tou para a sua ronda.

 

Faltavam vinte minutos para a meia-noite quando o vulto saiu do hotel de trânsito, no centro do quartel que alojava a 17a Brigada de Infantaria da Selva, e se esgueirou como um fugitivo procurando ocultar-se nas sombras das construções projetadas pela lua.

A iluminação do quartel e do vilarejo que ficava ao lado dele estava apagada. Procurando tomar cuidado para não ser visto ou ouvido, o vulto caminhou na direção do portão de entrada do forte.

Aquela fortificação já o impressionara durante o dia, mas, de noite, parecia trazer do fundo do passado ruídos confusos de história. Em homenagem ao herdeiro do trono de Portugal, foi batizado como Real Forte Príncipe da Beira.

Sua construção teve início em 20 de junho 1776, em meio à selva ama­zônica, na divisa com a Bolívia, e foi concluída no ano de 1783. Ninguém conseguiu ainda explicar como os portugueses conseguiram levar as imen­sas pedras de cantaria até aquele ponto.

Consta que duzentos operários e quase mil escravos trabalharam na cons­trução, que alguns acham ter sido mais difícil do que as pirâmides do Egito. Aquelas pedras vieram de longe, talvez de Belém do Pará, a três mil quilôme­tros de distância, subindo o rio Amazonas, o Madeira, e depois o Guaporé.

Entre Porto Velho e Guajará-Mirim, o rio Madeira não é navegável, e as pe­dras tinham de ser transportadas por terra. Há quem diga que algumas outras foram trazidas de Corumbá, mas ainda assim teriam de ser descarregadas em Jauru e daí seguirem por terra, numa distância de cem quilômetros, para serem novamente embarcadas. E isso era praticamente impossível naquela época.

O motor não tinha sido descoberto e os barcos eram movidos a remo. Não havia estradas, não havia os caminhões grandes de hoje, nem ferro­vias, mas apenas carroções puxados por burros ou escravos.

Seu pensamento fazia viagens fantasiosas e o ajudava a manter-se cal­mo, enquanto descia o fosso que circundava as imensas muralhas de pe­dras. As terras retiradas do fosso foram usadas para encher o espaço interno dos paredões, formando muros largos de terra socada revestidos de pedras entalhadas. Nos cantos, os quatro baluartes completavam o desenho geometricamente perfeito.

Vendo aquela construção, entendia como os faraós tinham construído as pirâmides. Não, os deuses não eram astronautas. A versão da história era mais lógica do que a fantasia. No período das chuvas, o Nilo inun­dava as terras cultiváveis. Se, por um lado, umedecia e enchia as suas margens de material orgânico que adubava o solo, por outro lado impe­dia o seu cultivo e ainda destruía os marcos de divisas que indicavam a propriedade de cada lavrador.

O sol e as estrelas passaram a orientar a gleba de cada um e assim nasceu a astronomia. Durante as chuvas, os faraós inventavam as grandes obras que hoje caracterizam o Egito.

Era preciso manter o povo ocupado e, então, executavam esses projetos faraônicos. Milhares de pessoas, escravos e prisioneiros de guerra, eram obrigadas a trazer as pedras por barcos, desde Assuã, e depois fazê-las rolar em cima de troncos de árvores até o lugar das pirâmides.

Antes da construção do Príncipe da Beira, havia poucos registros do homem branco na região. Talvez o primeiro tenha sido Raposo Tavares que, em dois grandes barcos, saiu de São Paulo, descendo o Tietê, pegou o Paraná e subiu em seguida o rio Paraguai.

Não existe ligação fluvial entre o rio Paraguai e o Guaporé e não se sabe até hoje como ele conseguiu alcançar o rio Madeira e descer o Amazonas, para chegar, depois de três anos e meio, a Belém, no Pará, cansado, magro e doente, quase irreconhecível e sem muitos dos seus companheiros.

O vulto estava agora parado diante do portão onde antes existia a ponte elevadiça, que era o único acesso ao interior do forte.

O silêncio da noite, um ou outro pio de coruja, movimentos de lagar­tixas fugidias, sapos coaxando e sombras esquisitas davam arrepios. Aquele não era o ambiente propício para se encontrar com pessoas que desconhe­cia e participar de cerimônia que o integraria a esse grupo misterioso, cujos propósitos não estavam muito claros.

Mas precisava ir. Não tinha mais como recuar, e qualquer hesitação po­deria colocá-lo em risco. Havia sido alertado sobre isso. Tinha uma missão a cumprir e era preciso manter a calma e a naturalidade.

Era também uma prova de coragem. Certamente o estavam vigiando e avaliando. Mas havia algo de estranho, misterioso, confuso. Por que tinham de marcar essa cerimônia dentro de um poço escuro e no centro de uma forta­leza abandonada? Não conseguiu evitar o calafrio que estremeceu seu corpo.

Consta que foram os templários que descobriram o gótico ao criarem o sistema de sustentação do arco pelo corte da pedra. A ciência de construção das catedrais, com seus arcos, estilos e vitrais, era mantida em segredo pelos Mestres construtores.

O Forte Príncipe da Beira era um imenso quadrado de 970 metros de perímetro e obedecia ao sistema de fortificações criado pelo marechal de França, Vauban. Com seus quatro baluartes e 56 canhoneiras estrategi­camente colocados sobre muralhas de 10 metros de altura, consta ser o segundo maior forte que os portugueses construíram fora da sua terra e com requintes artísticos próprios de castelos da Renascença.

Não entendia como uma obra dessas podia ter sido abandonada e estar hoje em ruínas. Existem associações e Organização Não-Governamental, ONG, que acreditam que o forte só pode ter sido construído por astronau­tas, pois se trata de obra perfeita em local inacessível.

Com o fim das disputas de fronteira entre Portugal e Espanha, o for­te passou a ser usado como presídio, mas foi abandonado em 1889. Em 1914 foi descoberto pelo então major Rondon, que, segundo a lenda, teria voltado lá em 1930 para guardar o ouro de uma imaginária mina chamada Urucumacuã, aproveitando-se dos índios que o ajudavam.

O vulto seguia em frente, apesar dos receios. Antes de vir, ele recebera instruções bem claras: "A cerimônia será à meia-noite em ponto. Não pode comer nem beber nada a partir do momento em que chegar à localidade do Príncipe da Beira".

Devia chegar pouco antes do escurecer para conhecer o forte e desco­brir o poço que existe no centro do pátio. Uma escada de corda estaria na entrada do poço, que dava numa sala, onde seria a cerimônia.

Dizem que dessa sala saem quatro túneis, um para cada lado do forte. Poucas pessoas se aventuraram a descer até a sala e não há referências de que alguém tenha entrado neles.

Era fácil entender que répteis, morcegos, aranhas, desmoronamentos, umidade criavam receios que mantinham afastados até mesmo os soldados do forte. Nenhum deles tinha ainda se aventurado a entrar nesses túneis e, por causa disso, eram também outro mistério.

"Será que ia mesmo encontrar uma escada na boca do poço?" Estivera ali de tarde e não vira sequer vestígios de que alguém tivesse preparado uma escada de corda para ele descer.

"Meu Deus! O que será que me aguarda aí dentro?"

Confraria, cerimônia de batismo, túneis subterrâneos, ruínas em meio à selva amazônica. Começava a fraquejar.

Ficar sem comer nada até a meia-noite era exagero e ele, então, levara bolachas e maçãs que, discretamente, comera antes de sair do alojamento.

"Não posso desistir agora. Tenho de enfrentar seja lá o que for", pensou.

Chegou à beira do poço, um buraco quadrado, com um metro de cada lado. A tampa de ferro, que durante o dia estava fechada, fora aber­ta. Uma escada feita de cordas estava enganchada num dos lados da tam­pa e desaparecia naquele buraco escuro. Não pensou muito. Agachou-se, experimentou as cordas que formavam a escada, pôs o pé no primeiro degrau, forçou mais um pouco para ver se agüentava o seu corpo, e co­meçou a descer.

De vez em quando parava e forçava a corda para ter certeza de que não iria arrebentar no degrau seguinte. Devia ter descido uns dois metros, quando sentiu que o espaço do buraco aumentou.

"Devo ter chegado à sala." Continuou descendo. A escada de cordas fi­cou mais solta e logo ele sentiu o piso. Um arrepio correu pelo seu corpo ao pisar no chão frio. A escuridão era intensa e ruídos estranhos começaram a surgir do fundo da terra.

"Seriam os túneis? Ou será que este salão tem mais mistérios do que a escuridão consegue inventar?"

Ficou parado ao lado da corda. Tinha a sensação de estar no meio de uma sala quadrada, mas não via nada. Os olhos foram se acostumando com a es­curidão. De repente, pareceu ter ouvido um farfalhar de coisas se esfregando. "Era só o que faltava: morcegos." A umidade aumentava o frio que sentia.

Percebeu que uma vela começava a clarear o ambiente. O que viu o dei­xou assustado. Recuou uns passos porque, diante dele, a vela grossa, como um círio pascal apoiado no chão, mostrava um grupo de pessoas vestidas como monges da Idade Média, que mais pareciam treze anjos da morte do que membros de uma confraria.

Eram treze as personagens que ali estavam e o monge do centro ficava mais afastado, porque o enorme círio iluminava melhor o lugar onde estava. Seis monges de cada lado, como na última refeição de Cristo em Jerusalém.

Na frente das vestes havia uma cruz semelhante à cruz dos Cruzados. Pareciam um pouco com os Cavaleiros da Ordem dos Templários. Traziam as mãos enfiadas dentro das largas mangas dos seus trajes e a cabeça baixa como se não quisessem mostrar os rostos. Não pôde conter o arrepio.

O silêncio foi rompido com um canto gregoriano. Os monges passaram a andar ao redor do círio entoando o Magnificat. Maurício continuou de pé, no mesmo lugar, e fazia imenso esforço para não demonstrar fraqueza. O peso do canto gregoriano, àquela hora da noite, em plena selva amazônica, dentro de ruínas de um forte abandonado, e uma luz de vela desenhando figuras nas paredes de pedra, lembravam cenas de castelo mal-assombrado.

Havia algo aterrador em todo aquele mistério e somente o autocontrole treinado em muitas situações difíceis mantinha a sua aparência de calma e segurança.

Havia harmonia no canto, e as vozes agradavam. Logo os monges fo­ram se ajeitando de novo em seus lugares, repetindo "Magnificat anima mea Dominum et exsultavit spiritus meus" (A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta...), até que ficaram em silêncio e o clima de tensão voltou ao ambiente.

Uma voz serena, clara, e até mesmo simpática atravessou a escuridão.

- Aproxime-se, por favor, mas fique um pouco distante da luz da vela.

Parecia que aquela ordem vinha de um dos cavaleiros do Apocalipse. Foi caminhando devagar e, quando sentiu que a escuridão acabava, parou.

Olhou para os monges e notou que todos eles tinham uma pequena barba branca. "Deve ser para disfarçar mais ainda o rosto", pensou.

Doutor Maurício da Costa e Silva, eu presumo.

Entendeu que era uma pergunta. Estava preparado para esse questioná­rio e respondeu.

Sim, senhor, Maurício da Costa e Silva — achou melhor acrescentar um reverente senhor para aquela figura fantasmagórica que poderia mudar seu destino.

Sabe por que está aqui?

Para a cerimônia do batismo, para a iniciação - respondeu em voz também clara e segura.

Sabe por que foi escolhido?

Embora não soubesse direito ainda por que havia sido convocado para aquela missão, entendeu que não devia repetir aquela descrição pessoal que o general fez quando fora entrevistado alguns meses antes.

Na época, agira com certa precipitação. Podia ter recusado educada­mente o pedido para que participasse dessa estranha missão, mas acabou aceitando por idealismo, e fatos posteriores o levaram a aceitar agora o convite para participar dessa confraria.

Também percebeu que havia algo estranho no tom de voz do monge. Era como se falasse num microfone, porque a voz não era normal. Não queriam ser identificados e por isso as cerimônias eram à noite e eles usa­vam todas as formas de dissimulação. Era melhor ser cauteloso. Se eles estavam usando de cautela, ele também deveria tomar as suas precauções e assim respondeu:

Com todo o respeito, senhor, ignoro.

Mas o senhor fez o Caminho de Santiago de Compostela no Ano Santo de 1997 e se confessou e comungou durante a sua peregrinação. O batismo é concedido àqueles que estão em estado de purificação. O senhor foi batizado em criança, quando não tinha a compreensão da grandeza do Cristianismo e da Busca. Depois de adulto e culto, o senhor fez uma das peregrinações mais emblemáticas da história da espiritualidade. O que o senhor estava buscando no Caminho?

Precisava de resposta que atendesse ao misticismo daquela cerimônia e disse sem pensar muito:

O Santo Graal.

A resposta pegou-os desprevenidos. Eles se ajoelharam logo em seguida à pronúncia do Graal e ficaram em silêncio. Mas ele continuou onde estava, de pé, e meio arrependido do seu atrevimento. Alguns instantes depois os monges se levantaram e aquele que o estava interrogando perguntou:

Foi por isso então que o senhor passou por San Juan de la Pena. Por causa do Santo Graal, o Cálice usado por Nosso Senhor Jesus Cristo na última ceia e no qual José de Arimatéia recolheu o sangue do Senhor depois de crucificado. As pessoas condenadas à morte não podiam ter a cerimônia do enterro. Seus corpos deviam ficar expostos ao ar livre até que restassem apenas os ossos. José de Arimatéia pediu a Pilatos o Corpo do Se­nhor, envolveu-o num lençol branco e o enterrou no sepulcro que havia pre­parado para si mesmo, numa rocha. José de Arimatéia era um rico cavaleiro a serviço de Pilatos e estava sempre entre os inimigos de Cristo. Era membro do Sinédrio que O condenou, mas ficou contra os demais membros, não concordando com aquela injustiça.

Estava tentando entender o motivo daquela aula de história do cristia­nismo, quando o monge fez uma pergunta surpreendente:

Se Arimatéia não era seguidor de Cristo, por que então estava com o Cálice? Responda!

Nunca havia pensado nisso. Imaginava que esse José de Arimatéia era um dos discípulos. Ora, se não estava com os apóstolos, como então podia ter o Cálice Sagrado com ele para recolher o sangue de Cristo? Era melhor ser franco.

Desconheço, senhor.

Disse num tom educado, mas a resposta simples e honesta indicava que aquilo já estava ficando aborrecido. Não era mais criança para receber aulas de catecismo e ainda num lugar lúgubre como aquele onde estavam.

Em reconhecimento aos serviços prestados, Pilatos permitiu que Ari­matéia enterrasse o Corpo do Senhor e ainda entregou-lhe um recipiente que os judeus haviam dado a Cristo e que fora usado para a oferenda durante a Santa Ceia. José de Arimatéia saiu do palácio de Pilatos e recolheu o Corpo de Cristo. Ao envolvê-lo no Sudário, saíram algumas gotas de sangue. Como estava com o Cálice, recolheu o Sangue do Senhor e o guardou.

A lógica era clara. José de Arimatéia só poderia ter recolhido as gotas de sangue no mesmo cálice que Cristo usou para a transformação do vinho, se já estivesse com esse cálice na hora de retirá-lo da cruz.

José de Arimatéia talvez não soubesse que estava criando as duas relí­quias mais importantes do cristianismo: o Cálice Sagrado e o Santo Sudário. Envolvido nessas meditações, quase esquecera que estava no fundo de um poço e se assustou com a voz do monge.

José de Arimatéia entregou o Santo Cálice e o Santo Sudário a São Pedro. O Cálice Sagrado foi mais tarde para Roma, porém, no século III, o papa Sixto II pediu a São Lourenço, que era seu tesoureiro, para levá-lo para a casa de seus pais, na Espanha, perto de Huesca, por causa das perseguições aos cristãos. Os descendentes de São Lourenço guardaram o Cálice sagrado até o século VI e depois o entregaram ao bispo de Huesca. Dessa cidade, o Santo Graal foi levado para San Juan de la Pena. Quando os hereges muçul­manos invadiram os Pirineus, o Cálice foi levado para Sirera e mais tarde para Valência, onde existe hoje um cálice que dizem ser o Santo Graal.

"Para que tanta explicação?" Não estava gostando daquilo. O que será que esse monge estava pretendendo. Teve logo a resposta para sua dúvida.

O senhor acredita que o cálice de Valência é o Santo Graal?

Pergunta idiota, mas fora feita de forma incisiva como se exigisse uma resposta. Que vestibular mais estapafúrdio esse! O que responder? Já era hora de testar o raciocínio desse fantasma. Respondeu em tom seco.

Não estive em Valência, senhor.

Se ele estava em busca do Graal e não estivera em Valência, é porque não acreditava. O outro parece que compreendeu. O silêncio aumentava os conflitos da imaginação.

"Será que passei no teste?"

O senhor foi eleito e aceitou fazer parte da Ordem, mas para isso é preciso também que revele os seus conhecimentos cristãos. Para entrar para a Ordem é preciso estar preparado não só em seu estado de pureza, mas também nos conhecimentos que disciplinam a vida do verdadeiro cristão. O reconhecimento dessas virtudes é dado por intermédio do batismo, não o batismo que teve em criança, mas o batismo da Ordem, porque ela tem a sua "Busca".

Maurício percebeu um tom mais forte nas palavras "eleito" e "busca". No­tou também que o monge não dissera o nome dessa "Ordem".

Tendo sido eleito, o senhor já foi reconhecido pelas suas qualidades de inteligência, habilidades pessoais, coragem, lealdade, patriotismo, cultura, idealismo e outras virtudes que o qualificam como um dos peregrinos da "Busca". Mas é preciso que o senhor professe perante este cabido e perante o Crucifixo de Cristo a sua vocação e preste o juramento da Ordem, que não poderá ser rompido sob pena de ser considerado herege e condenado, como nos tempos da Idade Média, para a salvação da sua alma.

A custo Maurício disfarçou o susto. Sabia que enfrentava perigo, mas o juramento o mantinha como uma presa permanente daquela Ordem, que não tinha nada de santificação e cujos propósitos poderiam ser elevados, mas que para cumpri-los fariam coisas terríveis. Não respondeu nada por­que a voz poderia traí-lo.

Em Villafranca del Bierzo, no Caminho de Santiago, parou diante da casa do grande inquisidor Torquemada, que mandou milhares de pessoas inocentes para a fogueira, porque achava que assim estava salvando as suas almas. Com o sacrifício do fogo aqui na Terra, estaria livrando essas pessoas do fogo do inferno e assim ele, Torquemada, o grande inquisidor, se igua­lava a Deus, mandando tanta gente para o céu.

No romance Os Irmãos Karamazov, Dostoievsky traz Cristo de volta à Terra e Ele aparece em Sevilha, faz milagres e é reconhecido pelo povo. Mas foi preso pela Inquisição e julgado como herege. Num monólogo horroro­so, Torquemada Lhe pergunta:

 

"Por que viestes inquietar-nos? Tu sabes muito bem por que viestes inquietar-nos. Amanhã vou condenar-Te a arder na fogueira como pai dos hereges, e este povo que hoje beijou os teus pés precipitar-se-á, ama­nhã, ao menor sinal meu, para atear as chamas da tua fogueira, estás ciente disso?"

 

Essa Ordem parecia um grupo de fanáticos. Ela tinha seus segredos e, no momento em que prestasse o juramento, passaria a ter acesso a muitos deles e isso seria uma situação irreversível. Poderia evitar esse juramento, ou mesmo adiá-lo, mas como? Mas se o fizesse também não teria como cumprir a missão que lhe fora confiada e que era questão de segurança na­cional. Teria de continuar e enfrentar o futuro conforme as circunstâncias. O monge continuou.

O seu batismo está preparado, conforme as regras de Santo Hipólito. E o monge foi dizendo as regras do batismo, segundo os cânones de Santo Hipólito que apareceram no século IV. Naquela época um profundo sentimento de cristianismo dominava toda a humanidade.

A Fé surgiu com o cristianismo. E é a Fé que nos leva a crer que um Deus Verdadeiro criou a humanidade à sua imagem e semelhança e, depois, para salvá-la, sacrificou seu único Filho para que a humanidade compreen­desse que a salvação está na prática da caridade, da humildade e do sofrimen­to — disse o monge como se o estivesse exorcizando.

Com a oficialização do cristianismo pelo Império Romano, acabaram-se os martírios que levavam os santos aos céus. Para suprir esse caminho para a santidade, os cristãos começaram o auto-flagelo e outras formas de sacrifício. Apareceram os eremitas e os homens santos das cavernas. Para ser cristão era preciso cumprir rigorosamente os mandamentos de Deus e seguir os Evangelhos, conforme os bispos ensinavam. Surgiram rituais, como as regras que Santo Hipólito criou para o Batismo.

Mas antes de colocar a roupa branca, o senhor precisa dar testemunho de um fato importante que prove que o senhor realmente alcançou a puri­ficação que buscou no Caminho de Santiago. Essa única oportunidade que é dada aos iniciados deve ser relatada de joelhos, com o rosto voltado para o chão. A Ordem tem todos os comprovantes de que o senhor seguiu os trâmites do Caminho, inclusive cópia da Compostelana, o certificado que recebeu em Santiago como prova de ter feito essa sagrada peregrinação.

O monge ficou uns segundos de silêncio e disse em tom de acusação:

Mas falta um documento.

"Falta um documento? Mas o único documento do Caminho é a Com­postelana. O que será que esse doido está querendo?" Ficou quieto espe­rando a pergunta que viria, porque o monge fez a pergunta como se já soubesse a resposta.

Trata-se da fotografia que o senhor tirou do túmulo de Santiago, no interior da Basílica, quando terminou a peregrinação. Agora, portanto, ajoelhe-se como lhe falei e informe. O senhor tem essa fotografia? E se a tem, onde está? Ou nos informe por que não a tem.

Maurício olhou estupefato para o monge, que abaixou a cabeça e fez sinal com a mão para que ele se ajoelhasse. Era a coisa mais incrível que po­dia ter acontecido. Ao chegar a Compostela, entrou na fila dos peregrinos, que iam visitar o túmulo, e estava com a máquina fotográfica na mão.

Ele havia, no entanto, se enganado com os muitos filmes de fotografias que havia tirado durante o Caminho e acabou pondo na máquina um filme já usado. As fotos do túmulo de Santiago não saíram. Ele abaixou a cabeça e, com voz relutante, disse:

Houve um pequeno descuido da minha parte e as fotos não saíram.

Naquele mesmo instante o monge da extrema direita avançou para a vela acesa e a apagou. Fez-se silêncio durante alguns segundos e ele ouviu a voz do monge pela última vez:

O Caminho de Santiago é uma peregrinação e deve ser feita com fé e respeito. O senhor perdeu o começo da missa solene de Roncesvalles, porque chegou cansado e foi beber cerveja num bar. O senhor não passou diante do monumento a Rolando no alto dos Pirineus. O seu Caminho foi incompleto.

O senhor não sabia o que buscava. Mas o senhor ainda é um candidato. Volte a fazer o Caminho com o mesmo espírito dos templários que ajudavam e protegiam os peregrinos que iam visitar o Santo Sepulcro. Não perca tempo!

Maurício ouviu o farfalhar dos hábitos dos monges que se afastavam.

Era incrível, mas como ele sabia de tudo isso? A estupefação misturava- se com o alívio de ter escapado do juramento e não ter entrado para aquela casa de malucos. Apesar de ridícula, essa história das fotografias mostrava que ele fora muito investigado. Teve uma espécie de intuição de que aquilo era uma farsa, pois estava evidente que tudo havia sido preparado para simular a sua aceitação na Ordem, mas eles não o queriam.

Mas por que não o queriam? Alguma coisa estava errada e era preciso descobrir isso porque alguém agora sabia ou suspeitava de que ele estava entrando para a Ordem para descobrir os seus segredos. E por que essa indicação de que "ainda é um candidato"? Por que fazer o Caminho de novo? Por que a urgência?

Ficou ali parado alguns minutos e depois se aproximou da escada de cordas. Teve medo de que a retirassem e procurou subir o mais depressa que pôde. Tinha bom preparo físico e não foi difícil subir a escada de corda meio às pressas e sair para o ar fresco da noite.

No céu escuro, aparecia um pedaço de lua amarelada. Ninguém tinha aparecido. Por onde será que iam sair aqueles sujeitos? Será que existem mesmo os túneis? Será que existe uma sala embaixo daquela em que ele esteve, conforme lhe falaram?

Os ruídos da natureza e mais fortemente o barulho das águas do Gua­poré, batendo raivosamente nas pedras que atrapalhavam o seu caminho, o apressaram. Chegou ao hotel do batalhão e deitou-se. A mente recusava-se a esconder-se no sono e ele teve visões estranhas de pessoas vestidas de negro, com foices nas mãos, paradas diante dele.

De manhã, quando se levantou, os outros ainda estavam dormindo. Ouviu um despertador tocar durante longo tempo e pouco depois o ca­pitão Batista apareceu assustado. O guarda de plantão estava acordando e soldados sonolentos apareceram para a ordem do dia.

O capitão estava confuso e furioso. Viu Maurício que caminhava soli­tário em frente do forte e foi até lá.

- O senhor está bem? Não entendo o que aconteceu. Se não fosse o meu despertador, tinha perdido a hora. Mas o quartel todo está atrasado. Vou dar a eles uma lição de como deve ser um soldado brasileiro num batalhão de fronteira.

Não estava também com bom humor e achou melhor ir embora. Era evi­dente que alguém havia colocado uma boa dose de sonífero na bóia do quar­tel. Foi por isso que ele recebera instruções para não comer nada por lá.

 

Maurício despediu-se do comandante do batalhão, agradeceu a acolhi­da e as informações sobre a história do forte.

O piloto drenou o tanque de gasolina para retirar a água que se acu­mulara nos tanques da aeronave, olhou os pneus e encontrando tudo em ordem, entrou, fechou a porta, colocou o cinto de segurança e olhou para trás. Aparentava também ter dormido muito.

Vamos para a fazenda, doutor?

Sim, comandante, para a Buritizal.

Ligou os motores, testou os fiaps, examinou todos os instrumentos do painel, esperou alguns minutos para aquecer os motores e taxiou para a cabeceira da pista.

Anunciou a decolagem, pois outras aeronaves poderiam estar chegando e acelerou. O avião pegou velocidade e subiu mansamente, deixando sob suas asas o harmonioso desenho do Real Forte Príncipe da Beira.

A manha estava bonita e a paisagem da região era acalentadora. Embai­xo, foi-se esticando o rio Guaporé, o avião sobrevoou a pequena cidade de Costa Marques e se dirigiu para Ji-Paraná, onde completariam o tanque para chegar até a Buritizal.

Vinte anos antes havia comprado uma gleba de terras à margem esquer­da do rio Roosevelt e deu-lhe o nome de Buritizal. O buriti é uma palmeira comum na região, de frutos amarelos, do qual se faz um refresco doce e agradável, que depois de fermentado se transforma em vinho.

Começava então a aventura de formar uma fazenda em plena selva amazônica. Ele era ainda novo, cheio de coragem, mas a formação da Bu­ritizal fora uma epopéia cheia de perigos, aventuras e desafios. O primeiro desafio era chegar lá.

Havia grande preocupação com a Amazônia, e a Rodovia Transamazônica foi aberta para ligar o Atlântico a Humaitá, no Oeste do Amazonas, e daí a Manaus, podendo chegar ao Pacífico, cortando o Peru.

Veio a crise e a estrada que ligaria o Norte de Mato Grosso à Transama- zônica foi aberta até perto da Buritizal, ficando, porém, setenta quilômetros por fazer. Não havia nessa época acesso por terra. Descobriu depois que era possível vir por Espigão do Oeste, cruzando as terras dos índios Zorós, e chegar até o rio Roosevelt. O rio foi o seu asfalto durante vários anos.

Um misto de frustração e preocupação fazia Maurício relembrar aquela época, não muito diferente do que é ainda hoje, porém com mais dificulda­des. Mas era mais novo, e a aventura, a fuga de São Paulo, o interior da flores­ta amazônica e os sonhos que o animavam, faziam aqueles tempos felizes.

Construiu uma pequena sede de madeira, fez uma pista de pouso e passou a ir de táxi aéreo. Costumava chegar normalmente lá pelas quatro horas da tarde. O administrador o esperava com dois cavalos arreados e eles saíam para uma cavalgada à tarde. Bandos de araras azuis e vermelhas sobrevoavam os céus por sobre as suas cabeças.

O sol costumava se pôr com muita preguiça e era hora de chegar em casa, tomar um ducha e saborear um dos maiores prazeres que ele tinha ali: a cerveja gelada na varanda protegida dos mosquitos por telas finas, enquanto ouvia o ronronar do rio.

O direito de tomar sua cerveja, sozinho, longe das rotinas medíocres que não permitem apreciar a própria vida. Sim, aí era o lugar. Na selva e com segurança, olhando as araras passarem lá no alto, o sol se pôr, o rio ir embora para não mais voltar.

Suspirou fundo, guardou o livro que tentara abrir para se distrair e ficou remoendo os fatos dos últimos meses.

Quando fora chamado a Brasília, saiu contente de São Paulo, imaginan­do que fosse tratar da sua aposentadoria. Estranhou, no entanto, quando leu a requisição. Reunião no gabinete do secretário da Receita Federal? Bom, quem sabe, depois de tantos anos de serviço, talvez fosse para receber elo­gios de despedida.

Foi conduzido ao gabinete do secretário. Pediu licença e entrou. Um militar cheio de estrelas ocupava uma das cadeiras em torno da mesa oval e grande, que já conhecia de reuniões anteriores.

O secretário era homem de poucos sorrisos, muito técnico e pouco cul­to. Bom profissional, que não fazia parte dos quadros da Receita Federal e não tinha lá grandes conhecimentos sobre tributos e fiscalização, mas sabia arrancar dinheiro dos contribuintes. Era a pessoa ideal para ocupar o cargo enquanto perdurassem as preocupações com o déficit fiscal e os compro­missos com o FMI, o Fundo Monetário Internacional.

Costumava dizer que rendia mais para o Tesouro um pequeno au­mento na alíquota de qualquer imposto do que processos demorados contra sonegadores.

Logo ao entrar, estranhou que o general não se levantara para sair.

O secretário fez as apresentações.

Estávamos falando sobre o senhor. Apresento-lhe o general Antonio Ribeiro de Castro, chefe da Abin.

Seus pressentimentos não costumavam errar e seu cérebro começou a formular hipóteses do que poderia acontecer. Já estava articulando quais des­culpas daria para não aceitar fosse lá o que fosse. Compreendeu também que estava diante de alguma coisa que devia ser sigilosa, pois não fora informado de que um chefe militar das Forças Armadas estaria na reunião.

Lembrou-se de que o general o encarou gentilmente e, com uma voz cordial que não escondia a habilidade de uma vida dedicada ao comando, foi objetivo.

Desculpe, se pedi ao senhor secretário para convocá-lo oficialmente. Preferia que esse nosso primeiro contato fosse em sua repartição. Nós es­tudamos a metodologia que o senhor criou para o controle da produção industrial e chegamos à conclusão de que esse seu método pode ser muito útil no combate à fabricação ilícita de armas.

Maurício fez um cumprimento sóbrio e ficou em silêncio. Parece que era o que o general esperava.

Pelo que estou sabendo, o senhor foi convocado por três dias. Po­demos continuar essa nossa entrevista no meu gabinete. Mando buscá-lo no hotel às nove horas da manhã, assim, o senhor já terá tido tempo para correr os seus dez quilômetros no Parque da Cidade, como faz sempre quando vem a Brasília.

Sem dúvida, o homem era cheio de surpresas. Aquela rápida reunião deixara-o desconcertado e intrigado. O homem não queria falar na frente do secretário. Aquela história de controle industrial de matérias-primas não colava. Ele já havia treinado muitos técnicos na Receita, inclusive alguns em Brasília.

Sentiu que devia ser alguma coisa séria para fazer um general de "alto coturno", como se diz na gíria, vir pessoalmente atrás de um auditor que estava se aposentando. "Fabricação irregular de armas?!... Estranho." Nunca ouvira falar disso antes. Contrabando sim, era até mais fácil. Já fazia quase um ano que não visitava Brasília, e a informação de que corria no Parque da Cidade era o recado de que já fazia tempo que o estavam investigando.

Normalmente, quando ia à Capital Federal, procurava hotel perto do parque, onde fazia suas corridas. Até mesmo esse seu hábito havia sido registrado e ele se sentiu devassado em sua vida particular. Não existe mais vida particular.

Costumava dizer em seus cursos que ministrara na Escola de Admi­nistração Fazendária, Esaf, que a Receita Federal tinha poderes demais. O auditor podia até descobrir as doenças do contribuinte, por intermédio dos nomes de médicos, laboratórios e hospitais que constam da declaração do Imposto de Renda.

"As contas bancárias, as contas de telefone, as espionagens de todo tipo que o Poder Público pode fazer. Enfim, não existe mais privacidade", la­mentou. A maneira de registrar o seu protesto era ir para o mato e se es­conder lá. Mas até esse direito estavam lhe tirando.

Deitou-se decepcionado com o dia e demorou para pegar no sono. Era outra coisa da qual ia se livrar. Tantos cursos pelo Brasil afora, sozinho num quarto de hotel. Não gostava da solidão dos hotéis. A recepção, as camarei­ras, os garçons, a gerência, por mais que a gente conheça os nomes, ainda assim são funções, como os móveis e as cortinas do quarto.

Quantas vezes olhou para um criado-mudo, uma cama, um guarda-roupa, que nada diziam para ele. Eram peças que não se afeiçoavam com nenhum hóspede e nada tinham a dizer a nenhum deles. Só a esconder. Ligava e desligava a televisão. A cerveja do minibar não tinha nem aquele leve toque de companheirismo das cervejas que tomava com os amigos.

Levantou-se às seis horas. Era uma manhã bonita de maio e o sol coloria o horizonte de muitas cores. Muitas pessoas já estavam no parque fazendo exercícios. Ali, ministros, deputados, senadores e gente simples se identifi­cavam pelo suor e pelo cansaço.

Às nove horas, ele estava no hall do hotel, esperando que viessem buscá-lo. Um carro cinza, um Gol, estacionou e uma moça alta, morena, de ca­belos lisos, porte altivo que lembrava a Iracema de José de Alencar, entrou no hotel e ia dirigindo-se à recepção quando se voltou para ele. Não fora preciso identificações, ela foi logo perguntando:

Doutor Maurício? Bom dia. Estou incumbida de levá-lo até a universidade.

O sigilo continuava. Não era um militar que vinha buscá-lo, mas uma guarda-costas à paisana. Por que essa dissimulação? Ela estendeu a mão e ele retribuiu o cumprimento.

Bom dia, professora — disse, naquele tom de quem não pretende es­conder o sarcasmo.

Viu que se tratava de profissional dotada de físico bem treinado, que avaliou o ambiente discretamente, e em seguida dirigiram-se para o carro.

A motorista tomou a direção da Estrada de Unaí, como se fosse para a Esaf, onde ele dera tantos cursos. Notou também que estavam sendo seguidos a distância. A motorista fez alguns contornos e voltou para a W3, a grande avenida que cruza a cidade ligando a Asa Norte à Asa Sul e leva ao aeroporto.

Logo saíram da W3 e se dirigiram para o setor militar. Brasília está toda dividida por setores. Setor comercial, setor hoteleiro, setor de autarquias, setor policial, setor militar e assim em diante.

Chegaram ao setor policial, cumpriram os protocolos de controle da portaria e entraram numa grande área com ruas internas asfaltadas, onde ficava o prédio de três andares da Abin.

Subiram até o segundo andar e um policial abriu a porta que dava para uma ante-sala, depois da qual estava o gabinete do chefe da Abin. A "profes­sora" sentou-se atrás de uma mesa, teclou o telefone e avisou que já tinham chegado. Tiveram permissão para entrar, e ela abriu a porta.

Ele entrou. O general olhava para as folhas de papel em cima de sua mesa, ajeitou-as, levantou-se e cumprimentou-o.

Bom dia, doutor Maurício, parece que o senhor deu uma canseira no nosso homem hoje, hein? O senhor não quer concorrer nas Olim­píadas do Exército? - perguntou o general com humor que não tinha demonstrado na véspera.

Respondeu o cumprimento e alfinetou o general.

Ele corre bem, manteve distância média de vinte metros, mesmo quando eu quis testá-lo na subida do quilômetro seis. Do parque até o hotel, fiquei na dúvida se o segurança era o da bicicleta ou aquele distraído da praça das Fontes.

O general riu e concordou:

Esse é um dos motivos pelos quais o senhor está aqui. Tem preparo físico e é perspicaz.

"Comentário estranho, para quem estava procurando auditor fiscal para dar aulas de controle industrial", pensou, mas fingiu que não entendeu a frase, e comentou:

Só esse parque justifica morar em Brasília. Correr no maior parque urbano da América Latina, projetado por Oscar Niemeyer e com paisagis­mo de Burle Marx!... Até o cansaço fica mais leve.

Passaram-se alguns segundos e o general começou.

Acho que o senhor já entendeu que não foi convocado para tratar de fa­bricação ilegal de armas. E muito mais sério. Trata-se de matéria de segurança nacional e é assunto que vem sendo conduzido com muito sigilo.

Aguardou a reação de Maurício, mas este ficou impassível.

Certos assuntos são, às vezes, tão graves que é preciso elevado grau de certeza. E este que vou tratar com o senhor é um deles.

Acostumado a trabalhar com papéis, processos de todo tipo, relatórios, documentos e tudo em quantidade maior do que o normal, Maurício gostava de uma mesa organizada, mas não tinha secretária exclusiva para os seus problemas. Além disso, tinha-se envolvido em tantos assuntos, que manter sua mesa arrumada passou a ser difícil.

Ali na sua frente estava uma mesa organizada, com os lápis bem aponta­dos, os papéis em ordem na cesta de plástico azul-claro e a correspondência anotada e pronta para providências ou arquivo.

Nós precisamos que o senhor nos ajude a ter esse grau de certeza. Porém, se o senhor aceitar essa tarefa, tudo será feito como se fosse uma espécie de voluntariado. O senhor terá condições, terá apoio, mas não será trabalho oficial.

Maurício continuou em silêncio. Estava inquieto e parece que o general percebeu isso.

Com um sorriso meio irônico, ele disse:

O senhor tem todo o perfil de uma pessoa que aceita desafios. Veja só. Maratona de São Paulo, no ano de 1995, em 4 horas e 25 minutos. Blu­menau o senhor fez em 4 horas e 35, no dia 27 de julho de 1996. No ano seguinte correu a Maratona de Nova York, quase no mesmo tempo, e no último dia 5 de abril o senhor foi correr a Maratona de Paris, fazendo o per­curso em 4 horas e 15 minutos. Vem correndo regularmente a São Silvestre, num tempo médio de uma hora e vinte minutos, nos últimos dez anos.

Maurício estava começando a ficar vermelho com aquela invasão da sua vida privada.

O general fingiu que não notou a sua reação e continuou:

Pratica natação, faz parte de clube de tiro ao alvo e alguns outros hobbies. Em seu trabalho na Receita Federal, o senhor tem sido um dos mais preparados e eficientes auditores fiscais. Já chefiou repartições aduaneiras e enfrentou, às vezes sozinho, contrabandistas, participou de manobras militares para apreensão de navios com contrabando, tem supervisiona­do ou coordenado grupos de combate à sonegação fiscal, inclusive nos desmanches de carros roubados.

Sem esconder a ironia, tentou justificar-se:

Peço-lhe para não ficar indignado com as informações que temos a seu respeito. Afinal, precisávamos conhecê-lo bem e a sua ficha pessoal se revelou motivadora.

"Motivadora? O que será que vem aí?"

Nunca corri uma maratona, afirmou o general. Sempre achei que a Maratona de Nova York era coisa para se ver na televisão. Aliás, só fui saber que o mundo tem tantas maratonas depois que li a sua ficha.

"Ficha? É isso o que parece que sou por aqui. Bom, até aí, nada com­prometedor. Ele está apenas alimentando o meu ego. Antes que entre em algo mais sério, posso simplesmente dizer que ele se dane e volto para casa." Parecia fácil, pensou.

Nós estamos precisando de uma pessoa que nem precisa ter tantos predicados, mas o senhor tem uma fazenda em lugar que passou a desper­tar preocupações para a segurança nacional.

Brasília tem um dos climas mais secos do país. Dizem até que as pes­soas aqui sofrem dos rins porque o organismo filtra pouca água. Elas dormem com toalha molhada no quarto e quem pode tem piscina, se não para nadar, pelo menos para evaporar. É a única capital do mundo que tem um lago artificial só para aumentar a umidade do ar.

Sentiu a boca seca. Seria o clima ou seria a conversa? O general deve ter percebido o seu desconforto e pediu à "professora" que trouxesse água e café.

Ela estava agora em uniforme de capitã do Exército e assumia claramen­te as funções de auxiliar direta do general.

Todo o seu instinto de sobrevivência o alertara para cair fora daqui­lo. Afinal, não tinha assumido compromisso algum, já era hora de se aposentar e cuidar da própria vida, buscar um pouco de tranqüilidade e afastar-se desse ambiente de intrigas, tricas e futricas, que era o ser­viço público.

Seus trinta anos a serviço da fiscalização federal em várias regiões do país já era muito. Tinha começado a trabalhar cedo. Aos dezesseis anos já trabalhava com carteira registrada e agora, aos cinqüenta, sentia-se no di­reito de usufruir do sonho de uma aposentadoria tranqüila, com pequenas aventuras no interior da Amazônia.

Havia, porém, o outro lado, que resistia. A curiosidade, o desafio, a vai­dade de ter sido escolhido para alguma coisa importante, aquela sensação idiota de ainda ser considerado útil. Afinal, de que serve um aposentado?

General de pijama, se diz no Exército. De que serve um general de pijama? Não comanda tropa, não ocupa cargos, quando muito, vai ser lobista de multinacional e participar de negócios que a farda sempre condenara.

"É muito melancólico", lembrou-se de ter pensado na hora.

Esse lado estava mostrando força superior às do bom senso. O raciocí­nio ficou mais turvo ainda quando um patriotismo súbito começou a emo­cioná-lo. A pátria poderia estar precisando de auxílio, dizia lá por dentro um Maurício que até agora estava esquecido. Foi interrompido em sua luta interior pela voz piedosa do general.

As investigações e pesquisas levam a concluir que o Brasil está prestes a perder mais da metade do seu território. O nosso pacífico Brasil pode ter pela primeira vez um grande derramamento de sangue.

Parou, meio decepcionado porque suas palavras não causaram o impacto que imaginara, mas logo continuou:

Aparentemente, quem está planejando isso parece que está pen­sando que não haverá reação por parte do governo brasileiro. Essa nossa imagem de povo pacífico, que proclamou a Independência, proclamou a República e costuma fazer revoluções sem grandes reações, pode estar levando pessoas a enganos.

"Está criando condições para alguma informação mais séria, ou será que vai ficar nesse discurso?"

Tenho certeza de que o senhor já ouviu falar muito da internacio­nalização da Amazônia. Aliás, todos os dias saem artigos sobre ONGs e internacionalização, mas parece que ninguém se importa. E o mais desa- lentador nessa situação é que não existe um inimigo declarado.

Teve a impressão de que ele entendia as dúvidas que começaram a se avolumar em seu cérebro, porque o general mudou o tom de voz.

O importante, para a nossa conversa de hoje, é que existem funda­das suspeitas sobre um complô internacional para reduzir as dimensões do Brasil àquelas definidas pelo Tratado de Tordesilhas.

Maurício se perguntava de que modo poderia evitar que o Exército americano descesse em sua fazenda e proclamasse o domínio sobre o rio Roosevelt, já que um presidente americano passou por lá havia cem anos. Era melhor mostrar a sua incredulidade, mas não sabia o que dizer.

O general abriu uma pasta com alguns papéis.

Este material já é do conhecimento de todos nós, mas acho que todo brasileiro devia ler estas frases no café da manhã pelo menos uma vez por semana.

Segurou a folha e leu com voz firme:

 

"Diversos restaurantes populares, de fast-food, nos Estados Uni­dos, utilizam toalhas descartáveis em suas mesas. Nelas se lê com muita freqüência o mesmo que os ingleses colocam em adesivos nos seus carros: 'Lute pelas florestas. Queime um brasileiro."'

 

Embora preparado para ouvir coisas absurdas, Maurício não resistiu:

Como é? Queime um brasileiro?!...

O general passou a ter certeza de que o pegara desprevenido. Mas continuou:

Aqui temos outro estudo que circula na internet, datado de novembro de 2003 e, portanto, trabalho recente, que repete essa notícia de que os car­ros de Londres e outras cidades européias traziam adesivo plástico dizendo "Lute pela floresta. Queime um brasileiro". No início dos anos noventa, os ambientalistas acusavam o Brasil de "inimigo número um do planeta".

O general pegou outra folha de papel e entregou a Maurício.

Isso é extrato de um seminário na Escola Superior de Guerra, onde foram discutidas declarações feitas por líderes mundiais, a respeito da Amazônia.

Maurício pegou a folha que lhe foi estendida e leu em silêncio:

 

Em 1981, o Conselho Mundial das Igrejas declarou que "a Ama­zônia é patrimônio da Humanidade, e que sua posse por países é meramente circunstancial".

"A Amazônia é um patrimônio da humanidade. A posse dessa imen­sa área pelos países mencionados Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru e Equador é meramente circunstancial." Conselho Mundial de Igrejas Cristãs reunidas em Genebra, 1992.

Em 1983, Margareth Thatcher "aconselhou as nações carentes de dinheiro a venderem seus territórios e fábricas".

Em 1984, o vice-presidente Al Gore, dos Estados Unidos, de­clarou que "a Amazônia não é deles, é de todos nós".

Em 1985, o presidente Mitterrand declarou: "O Brasil deve acei­tar a Soberania relativa sobre a Amazônia".

Mikhail Gorbachev: "O Brasil deve delegar parte dos seus direi­tos sobre a Amazônia".

O primeiro-ministro inglês, Major, asseverou: "A Amazônia pode ensejar operações diretas sobre ela".

O general Patrick Hugles, dos Estados Unidos, também disse: "Caso o Brasil no uso da Amazônia puser em risco o meio ambiente nos Estados Unidos, estamos prontos para interromper".

Devolveu a folha ao general e o olhou sem demonstrar o que estava sentindo.

Veja mais esta, por favor.

"A Amazônia deve ser intocável, pois constitui-se no banco de reservas florestais da Humanidade." Congresso de Ecologistas Alemães, 1990.

"Só a internacionalização pode salvar a Amazônia. " Grupo dos Cem, 1989, Cidade do México.

"A destruição da Amazônia seria a destruição do Mundo." Parla­mento Italiano, 1989.

"É nosso dever garantir a preservação do território da Amazônia e de seus habitantes aborígines para o desfrute pelas grandes civilizações européias, cujas áreas naturais estejam reduzidas a um limite crítico." Conselho Mundial de Igrejas Cristãs reunidas em Genebra, 1992.

 

Maurício fez um pequeno comentário.

Acho que o senhor tem razão quando fala que essas notícias circulam pela imprensa sem despertar a preocupação que deviam causar. O estranho é que os brasileiros não sabem disso, ou, se sabem, não acreditam ou até mes­mo podem estar anestesiados em relação ao que pode acontecer com este país que parece que já não tem mais dono - deixou escapar Maurício.

"Peguei o homem", pensou o general sorrindo por dentro e jogou mais pimenta no assunto.

Imaginem o que os Estados Unidos não fariam se alguém dissesse que vai invadir o Alasca porque a extração de óleo está ameaçando o Pólo Nor­te. É mais ou menos o que disse o senador Cristovam Buarque, quando ele respondeu a uma pergunta sobre desmatamentos da Amazônia.

Sim — respondeu Maurício. — Aliás, uma resposta inteligente. Não só a Amazônia seria patrimônio da humanidade mas também as reservas de petróleo e até a cidade de Nova York, onde está a sede da Organização das Nações Unidas, ONU. E alerta ainda que o arsenal atômico dos Estados Unidos pode provocar danos milhares de vezes maiores do que essas quei­madas da Amazônia.

O general achou melhor entrar em outro campo para mostrar que essa preocupação não é nova.

O senhor conhece a expedição Roosevelt, não conhece?

E sem esperar resposta:

Pois bem. Existem dúvidas de que aquela expedição, que foi chama­da de expedição científica, era simplesmente uma aventura do presidente Theodore Roosevelt no interior da Amazônia.

Lembrou-se de que chegou a perguntar ao general:

Pelo que o senhor disse até agora posso presumir que não existe cer­teza ainda de onde surgem essas ameaças. Não é meio especulativo fazer referências a uma viagem feita há quase um século?

Eis aí um detalhe interessante. Já naquela época o governo brasileiro olhou essa viagem de Roosevelt com certa suspeita. Essa expedição, de início, se chamava "Expedição Científica Roosevelt". As bagagens dessa expedição tinham essa inscrição. Ao chegar ao Brasil, no entanto, as baga­gens foram substituídas por outras nas quais estavam impressos os dizeres "Expedição Científica Roosevelt-Rondon".

E, demonstrando espantoso conhecimento sobre a viagem de Roosevelt, o general passou a dizer:

Outra curiosidade é que, a pretexto de fazer pesquisas para o museu Metropolitano de Nova York, o presidente Roosevelt e a sua equipe fize­ram uma verdadeira matança de animais da região, inclusive de espécies hoje desaparecidas ou em extinção. Veja o que ele mesmo escreveu no livro, com o título de Nas Selvas do Brasil, em 1914, traduzido por Luiz Guimarães Júnior.

Abriu a página 316 do livro traduzido para o português e leu em voz alta:

"Cherrie e Miller coligiram para mais de 2.500 aves, cerca de 500 mamíferos..."

O senhor está dando a entender que o governo americano simulou uma viagem de Theodore Roosevelt ao Brasil, com caráter de espionagem? Mas, nesse caso, está supondo que, além do livro Nas Selvas do Brasil, ele teria feito relatórios confidenciais dos quais nós não temos conhecimento?

Ocorreu então a Maurício outro aspecto do problema e insistiu:

Mas, se o marechal Rondon, que na época era coronel, chefiou essa expedição em território brasileiro, com certeza ele deve ter notado alguma coisa, pois era homem culto, patriota, um positivista estudioso de Auguste Comte e Benjamin Constant. Será que Rondon não fez também um rela­tório, assim como Roosevelt?

Desde aquele dia, a idéia de que Rondon teria feito um relatório dessa viagem, mencionando fatos e informando o governo brasileiro de suas im­pressões, não saiu da sua cabeça.

O general, no entanto, apenas filosofou:

As dúvidas antecedem as preocupações. Rondon foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz pelo próprio Einstein, que ficou impressionado com a obra desse grande brasileiro. Mas não deram o prêmio a Rondon.

Mostrou outro documento.

Veja o senhor que há relatos de que o presidente Theodore Roosevelt já havia antes tentado tomar o Acre e só não conseguiu porque o presidente Epitácio Pessoa foi duro. Os americanos sempre tiveram interesse em do­minar aquela região. O próprio Roosevelt deixou escapar a possibilidade de ligação da bacia do Prata com a Bacia Amazônica, quando descreve as riquezas naturais do país, na página 198. Ali ele fala da ligação dos rios Paraguai, Madeira e Amazonas.

O senhor quer dizer então que Roosevelt...

Não deu tempo para Maurício concluir seu raciocínio.

Sim, sim. O Acre era um grande produtor de borracha. Roosevelt criou então o consórcio internacional chamado de "Bolivian Syndicate of New York" com a intenção de ocupar o Acre. Encontrou resistência do governo brasileiro e...

Foi a vez de Maurício interrompê-lo:

E, aí, o governo brasileiro deu um jeito de mudar o roteiro da viagem de Roosevelt, afastando-o do Acre, porque ainda estava desconfiado de suas intenções. Certo?

O general balançou a cabeça afirmativamente.

O Acre na verdade pertencia à Bolívia desde 1867. No entanto, desde o século 19 foi invadido por brasileiros que exploravam os seringais. A Bolívia perdeu o controle da área e o assunto foi resolvido em 1903, pouco antes da viagem de Roosevelt.

Nada diplomata esse Roosevelt. Podia ter esperado um pouco mais.

Não sei se foi erro de diplomacia ou pressa. O senhor vai verificar que a Inglaterra também estava querendo entrar aí. Mas é bom lembrar que o Bra­sil não tomou o Acre da Bolívia, mas pagou caro por ele. Foram dois milhões de libras esterlinas para a Bolívia, mais 110 mil libras para esse sindicato, algumas áreas da Amazônia e Mato Grosso constituindo juntas 2.296 qui­lômetros quadrados e ainda a obrigação de construir a Madeira-Mamoré e deixar os bolivianos saírem pelo rio Amazonas até o Adântico, o que, se fosse feito, já caracterizaria a internacionalização dos rios amazônicos.

Havia lógica na exposição do general. O governo brasileiro deve ter empurrado Theodore Roosevelt para o meio da selva amazônica. Contava para isso com um explorador de primeira grandeza, o coronel Rondon, descendente de índios Terena, pacificador de muitas tribos, responsável por levar o telégrafo aos mais distantes pontos daquele território, demarcador de divisas, geógrafo, enfim Roosevelt estaria protegido, mas quando saísse do rio da Dúvida, ia querer voltar logo para casa.

Como o próprio Roosevelt escrevera em seu livro, o coronel Rondon ha­via descoberto um rio que nascia no Planalto Central do Brasil, perto de Vilhena, em Rondônia, mas que ainda não tinha sido explorado. Rondon não sabia se esse rio era afluente do Ji-Paraná, também chamado de Machado, ou se desaguava no rio Tapajós. Denominou-o então de rio da Dúvida.

Quando chegou ao Brasil, foi recebido pelo ministro do Exterior, Lauro Müller, que sugeriu que a expedição explorasse o rio da Dúvida. Lauro Müller disse a Roosevelt que o governo brasileiro tinha interesse na explo­ração e no desenvolvimento do interior da Amazônia e essa expedição seria de muita valia para tornar o Brasil conhecido no exterior.

Praticamente, o governo brasileiro induziu Roosevelt a explorar esse rio completamente ignorado pelos geógrafos.

- Li o livro do presidente Roosevelt e ele mesmo diz que o seu pro­pósito inicial era subir o Paraguai, pegar um afluente do rio Amazonas, provavelmente o Madeira, e chegar a Manaus. Estaria ele querendo repetir a expedição de Raposo Tavares?

Lera toda a epopéia da viagem, escrita pelo próprio Roosevelt, e, segun­do consta, ele morreu pouco depois. Uma grande amizade firmou-se entre o presidente dos Estados Unidos e o então coronel Rondon. Roosevelt des­creve com empolgação o momento em que o coronel Rondon deu o nome de rio Roosevelt ao rio que antes ele havia chamado de rio da Dúvida.

Rondon já tinha dado o nome de rio Kermit a um afluente também desco­nhecido do rio da Dúvida. Kermit era filho do presidente Roosevelt e acom­panhava o pai nessa excursão e quase morreu quando o seu barco virou numa correnteza. Depois que fincou a placa com o nome de rio Kermit na desemboca­dura desse afluente, Rondon colocou a guarda em fila e leu a "ordem do dia".

Diante da tropa e em meio à selva amazônica, cercado de índios e ani­mais selvagens, Rondon abriu um pergaminho e leu em voz alta, segundo relatou Roosevelt:

 

"...de ordem do governo brasileiro e considerando que o ignorado curso d'água era evidentemente um grande rio, ficaria sendo denomina­do 'rio Roosevelt'."

 

Agora recebe essa informação absurda de que tudo isso pode não ter passado de encenação.

E o senhor acha então que o governo brasileiro desviou intencionalmente o trajeto de Roosevelt, jogando-o numa aventura perigosa para afastá-lo do que seria nossa principal fonte de riquezas na época, os seringais da Amazônia?

Nós estamos falando de fatos ocorridos há quase cem anos, em 1913 e 14. O ministro das Relações Exteriores era o general Lauro Müller, hábil estrategista e homem de muitos méritos e títulos, como o de doutor em Direito pela Universidade de Harvard.

Mas, se isso realmente ocorreu, foi um grande golpe da diplomacia bra­sileira. O pessoal veio de lá com certas intenções e aqui o governo brasileiro os tirou de seu projeto original empurrando-os para uma missão meramente topográfica ou geográfica. Ora, ora... - comentou Maurício pensativo.

E antes que o general falasse alguma coisa:

Mas, por outro lado, se isso aconteceu realmente, ou, pelo menos, se eles acreditarem que foi isso que aconteceu, será que não querem agora voltar à cena, ainda que para recuperar a moral?

Calou-se, com receio de se aventurar em conclusões perigosas.

Naquela época, eles tinham tantas riquezas naturais como as nossas e o que lhes interessava era a borracha. Mas hoje eles já gastaram ou, se não gastaram, não querem mais gastar as suas riquezas naturais e talvez quei­ram reeditar o passado, com um final mais feliz... para eles.

Maurício estava pensativo. Nunca tinha imaginado sequer a possibi­lidade de isso ter acontecido e agora a própria Abin, o maior centro de inteligência da América Latina, conta-lhe essa história. Esse general não inventou isso sozinho.

Foi interrompido em suas conjeturas.

Lembre-se de que estávamos no auge do ciclo da borracha e tínhamos acabado de comprar o Acre. Temos de ter a percepção histórica daquela época. O momento era estranho para um presidente dos Estados Unidos aparecer naquela região.

Esperou que Maurício pusesse em ordem seus pensamentos e continuou:

Entendo que o senhor esteja meio confuso. Mas não posso falar so­bre esse tema com qualquer pessoa, mesmo sendo pessoas dos órgãos de segurança do governo. Suponho que o secretário da Receita não esteja acreditando que o senhor veio dar aulas de auditoria para oficiais do Exér­cito. Mas ele não tem a mínima noção dos assuntos que estamos tratando. É bom que o senhor registre isso.

Maurício achou que já tinha assunto demais para pensar e não quis entrar nessa desconfiança militar.

No entanto, até agora, não sei ainda o que devo fazer.

Sei que estou falando com um homem esclarecido e cheio de recur­sos. A primeira coisa a fazer é estudar tudo sobre essas ONGs que invadi­ram a Amazônia. O Brasil tem aproximadamente umas 250 mil ONGs.

Duzentas e cinqüenta mil ONGs? Mas o que faz essa gente?

Só na Amazônia devem existir perto de mil. E preciso investigar suas origens, seus responsáveis, de onde vêm as centenas de milhões de dólares que recolhem de todos os cantos do mundo e como gastam essas fortunas. Principalmente, quais são suas intenções.

Devo então estudar as ONGs?

Tudo o que se referir à Amazônia. Conhece aquelas placas de estradas de ferro: "Pare, olhe e escute"? Comece a prestar atenção em todas as no­tícias, em todas as pessoas, em todos os movimentos que julgar estranhos. O senhor tem meios de fazer muitas pesquisas que nos serão úteis. A capitã Fernanda lhe dirá como se comunicar conosco.

Está me parecendo um tanto empírico.

O senhor tem qualidades que até mesmo a Central Intelligence Agency, CIA, demoraria anos para transmitir a um agente. Podem surgir imprevistos e não basta apenas a cultura profissional.

Imprevistos?

Com voz mais pausada, continuou:

Não sabemos com quem estamos lidando. Quando uma idéia alcança o íntimo de um grupo, a razão cede lugar à ideologia, ao fanatismo, e as pessoas que se opõem a ela são vistas como inimigas da humanidade. É nesse sentido que é preciso tomar cuidado. Estamos formando um grupo de pessoas de alto nível. Às vezes, a gente faz alguns descredenciamentos... Bem, contamos com o senhor.

Era o tipo de discurso final de uma reunião.

Em encontros posteriores, o general sugeriu a visita aos fortes construí­dos pelos portugueses na Amazônia quando ainda não estavam definidas as divisas com o lado espanhol.

Existem algumas fortalezas construídas por Portugal para se defen­der dos espanhóis. Não sei por que, mas algo me diz que é preciso estu­dar esses fortes, não apenas o seu lado estratégico ou arquitetônico, mas principalmente o que a gente não vê. Não posso fazer isso, sem despertar suspeitas. Gostaria que o senhor cuidasse disso.

O general conseguiu então "financiamento" para comprar o Sêneca e conseguia pagar as prestações com os "treinamentos" que dava às forças de segurança. O avião não ia apenas trazer facilidades para as suas pesquisas, mas era também fator de segurança.

Certo dia lhe falou sobre a Confraria. Disse que ele precisava apro­ximar-se dessa Confraria. A Abin estabelecera contato com a Confraria, mas não era conveniente o envolvimento das Forças Armadas. E assim aconteceu de ele ser convidado a participar de uma cerimônia que lhe daria as credenciais de confiança dessa organização.

Mas alguma coisa saiu errado. Aquela história de que não tinha as foto­grafias do túmulo de São Tiago não colava. Alguma coisa séria aconteceu e estava disposto a ir a Brasília atrás de explicações.

Agora com esse avião e despesas pagas pelo contribuinte, ficava mais fácil.

O Sêneca já sobrevoava a Buritizal e Maurício viu lá de cima o gado branco e manso sobre as pastagens verdes. O rio Roosevelt não era mais aquele lugar tranqüilo onde esperava gastar um pouco dos sonhos que armazenara.

Quanto mais se envolvia nesse assunto, mais aumentava a sensação de perigo que teve desde o início.

O Sêneca aproximou-se da pista e já ia descendo, quando o coman­dante perguntou:

— O senhor estava esperando visita? Tem um avião perto da sede.

 

O setor de embaixadas em Brasília fica localizado numa grande área arborizada entre o Palácio do Planalto e o aeroporto.

A embaixada dos Estados Unidos foi construída em uma área de apro­ximadamente 10 mil metros quadrados. É um dos edifícios mais bem guardados da capital brasileira.

O embaixador já passava dos 50 anos. Alto, claro, forte, ainda com a cabeleira inteira, mas começando a branquear, estava de pé, mas seu olhar confiante, fixo no céu azul de Brasília, não escondia a sensação de incerteza.

Se tivesse levado mais a sério as frases ambíguas do general, talvez tivesse lhe salvado a vida. Mas por que ele não foi mais explícito? Se pressentia algum perigo iminente, se não sabia em quem confiar, por que não confiou nele?

Percebeu, logo no primeiro jogo, que aquela dupla havia sido arran­jada. O general jogava golfe regularmente, mas não era conveniente o chefe de um órgão de segurança do governo brasileiro ficar praticando esportes com o embaixador dos Estados Unidos. Então, o general prefe­ria o seu próprio grupo, os oficiais, os diplomatas brasileiros, os empre­sários, os políticos.

Naquele dia não houve coincidência e, quando ele conseguiu colocar a bola no buraco com a terceira tacada, o general deixou escapar uma frase estranha. Estava esperando por algo assim, porque desconfiara da­quele jogo.

Bonita jogada. Ultimamente coisas estranhas poderiam fazer o jogo ficar mais difícil - disse ele.

Entendeu que havia coisas novas, que não podiam ser ditas em gabinetes.

Embora não soubesse do que se tratava, mas obviamente era assunto sério e então deixou também o seu recado subentendido:

Num jogo mais duro não se pode escolher parceiros errados.

O general sorriu satisfeito e acrescentou:

Então precisamos de mais treinos.

Alguns dias depois, numa manhã de domingo, lá estava de novo o ge­neral como seu parceiro. O diálogo foi curto, mas preocupante. O general foi incisivo, sem no entanto revelar o que sabia.

Acho que nossos treinamentos precisam aumentar rapidamente. Pres­sinto que em breve teremos um jogo difícil e não gostaria de vê-lo do outro lado. O senhor joga muito bem.

Era uma afirmação inquisitiva e lembrou-se de ter pensado na hora que para frases ambíguas, nada como outra frase ambígua. E então respondeu um tanto emblemático:

Conforme o jogo, a vitória depende da equipe. Quanto mais difícil o jogo, mais importante passa a ser essa escolha.

"Qual o segredo que esse general levou para o túmulo?"

"Foi muito estranho aquele acidente. Ele devia saber de alguma coisa muito séria e os adversários o mataram. Agora precisava ganhar o jogo sozinho, mas antes tinha de saber que jogo seria esse."

 

Maurício olhou preocupado para a pista. Não estava esperando visita e era estranho que alguém o procurasse ali no meio da Amazônia num dia como aquele. Não tinha conseguido ainda superar a decepção dos últimos acontecimentos. O nível de tensão aumentara e era preciso ficar mais atento.

Não desça agora. Chame pelo rádio e pergunte quem é.

O comandante fez um vôo rasante pela pista e tornou a subir. Um avião Baron estava estacionado perto da sede. O comandante chamou pelo rádio:

Buritizal, Buritizal, na escuta Buritizal?

Sim, comandante. Buritizal na escuta. Aqui é Jorge.

Bom dia, Jorge. Tem um avião aí, você pode dizer quem é?

Olha, comandante, parece que é um pessoal de Goiânia. Eles vieram ver terras aqui na região e pousaram na fazenda. Tem uma mulher que é amiga do doutor. Ela disse que é professora de uma escola chamada Esaf, em Brasília. São duas pessoas apenas. O piloto é o dono do avião e é ele quem diz estar interessado em terras.

Maurício compreendeu o recado sutil do administrador. Primeiro disse que eram só duas pessoas. Ou seja, não havia perigo. Segundo, não estava acreditando nessa história de o piloto comprar terras.

Vamos descer.

O comandante fez a volta e usou a pista pelo lado esquerdo onde tinha visão mais completa. Logo se alinhou com a cabeceira que se esticava por mil e duzentos metros até a margem esquerda do rio Roosevelt. O avião foi descendo e alcançou o chão.

Nesse momento, o piloto exerce toda a sua perícia, porque um avião como o Sêneca pesa mais de mil quilos e toca o chão a uma velocidade de cento e vinte quilômetros por hora. Avião não pousa, apenas controla a queda.

O Sêneca foi reduzindo a velocidade e parou perto do outro. O adminis­trador chegou logo em seguida. Maurício cumprimentou-o e perguntou:

Jorge, aqueles dois "cerqueiros" estão por perto?

Sim, doutor. Assim que o avião deles pousou, mandei chamá-los e estão atentos a qualquer situação estranha. Pode ficar sossegado.

Ótimo. Mas por que você agiu assim, alguma suspeita?

O comprador de terras não entende de terras e acho que a mulher não tem jeito de professora.

Maurício riu e se dirigiu para a casa. Agora já tinha uma sede maior, toda cercada de varanda, com quatro quartos, sala de estar, copa e cozinha, que foi construindo aos poucos, porque era muito difícil levar material até ali. Isso só era possível na época da seca e ainda a preços bem mais altos que os da cidade.

A mão-de-obra não era fácil. Só agora a região estava se desenvolvendo e a única coisa barata era a areia e os seixos que substituem a brita. Quando vem a seca, as águas baixam e fica fácil tirar a areia e o cascalho grosso para as construções.

Entrou e a capitã Fernanda cumprimentou-o:

Desculpe invadir sua privacidade, doutor Maurício, mas eu tinha de vir falar com o senhor. Deixe-me apresentar-lhe o tenente Alexandre, que trabalha conosco.

Ela parecia cansada, envelhecida. Os olhos vermelhos. Algo sério estava acontecendo para ter vindo até ali. Isso nunca esteve programado.

Bom dia, capitã. É um prazer recebê-la aqui no meu resort particular. - Foram bem atendidos?

Bom dia, tenente.

A capitã respondeu:

Oh! Sim. O senhor tem uma boa casa num lugar maravilhoso. Não é à toa que quer se aposentar e viver por aqui.

Maurício pediu licença para guardar sua maleta de viagem e voltou logo em seguida. A empregada já estava fazendo um café novo. Para ele, o café tinha de ser sempre feito na hora. Café novo, dizia ele, é sempre a melhor marca. E não é todo tipo de café que tem bom sabor. Ele tinha suas marcas prediletas, de boa qualidade. Quando feito e ainda quente, exalava um agradável odor que passeava pela casa.

Havia dependências também para piloto, veterinário e outros profis­sionais que iam à fazenda, ou ainda amigos que pediam para ir lá pescar. O comandante acabou os cuidados que tinha com o avião e foi para o alojamento, levando com ele o piloto da capitã. Dessa forma, a casa, com exceção da empregada, que ficava na cozinha, estava sem outras pessoas.

A porta da cozinha ficava sempre fechada para não chegar barulho aos quartos e às salas. A empregada se retirou, depois que serviu o café, fechan­do a porta. Maurício não disse nada, apenas olhou curiosamente para a capitã, esperando que ela tomasse a iniciativa da conversa.

O senhor está sabendo a respeito do general? - começou ela.

Não, o que houve?

O rosto da capita avermelhou e ela apenas conseguiu articular numa voz trêmula:

O general morreu. Foi assassinado — e começou a chorar.

Não era possível. O general Antonio Ribeiro de Castro, chefe da Agência Brasileira de Informações, a famosa Abin, estava morto, assassinado. Eis aí a explicação de a cerimônia da Confraria ter sido cancelada.

A capitã se recompôs e Maurício compreendeu que essa trágica notícia mudava tudo e ele não sabia o que poderia acontecer.

Estava imaginando que a senhora não iria deslocar-se de Brasília até aqui num vôo dissimulado se não tivesse alguma coisa séria para contar.

Maurício olhou para a televisão.

Desde que voltei de Brasília, estou neste mato sem notícias - disse, como se estivesse se desculpando.

O vento desregulou a antena parabólica e eu não tive pressa de man­dar consertá-la.

Ela parecia embaraçada. Mostrava uma fragilidade que não notara an­tes, mas falou com certa relutância:

Foi horrível.

Explicou o atentado e falou do seu reflexo ao pular do carro, da viatura da PM ajudando o assassino e da coincidência de outra viatura da Polícia Militar estar passando por perto e tê-la socorrido. Por sorte, sofrerá feri­mentos leves e pôde sair logo do hospital. O coronel Medeiros assumira interinamente a Abin e lhe dera uns dias de folga.

Na verdade, seria até preferível que eu não viesse. Mas temo que este­jamos correndo risco de morte, e o senhor também. A operação na qual o senhor foi envolvido parece que acelerou os acontecimentos.

Se já estava achando tudo aquilo muito misterioso, o relato da capitã au­mentou suas preocupações. Era evidente que ela se sentia humilhada e culpada pela morte do general. Estava diante de uma pessoa mortificada que relatava os fatos como se fosse uma confissão. Não adiantava dar-lhe a absolvição. Aquela mulher não ia se perdoar nunca, a não ser que levasse adiante todos os projetos do general, como uma espécie de vingança dele após a morte.

A senhora não está pretendendo ir embora hoje, penso eu.

Não, não creio que haja tempo e precisamos conversar.

Podemos então deixar para mais tarde. A senhora descansa um pouco. Vou providenciar suas acomodações e as do tenente.

O dia estava quente, o sol já havia subido até onde podia e começava a descer. Uma pequena brisa movimentava as folhas do lado de fora da casa.

A varanda era protegida por telas finas por causa dos mosquitos, principal­mente o pium e o mosquito da malária, o dito anofelino, e as telas acaba­vam segurando também o vento.

Maurício mandou ligar os motores, e os ventiladores de pé alto distri­buídos pela casa deixaram o ambiente mais agradável. A energia da fazenda era ainda fornecida por motores a diesel. Esperava um dia construir uma pequena usina hidrelétrica para uso próprio.

O dia transcorreu normalmente e, depois do almoço, Maurício levou a capita até a margem do rio.

A senhora escolheu a época certa para vir aqui. No período da seca o pium quase não existe. Esse mosquito é terrível. Roosevelt o amaldiçoou em seu livro, chamando-os de "terríveis mosquitos". Mas na seca, princi­palmente de julho a outubro, ele desaparece. A expedição Roosevelt foi no começo do ano, quando a região está cheia de mosquito de malária e de pium.

Malária?

Sim. A malária é outro flagelo. Mas não se preocupe. Estou por aqui há vinte anos e nunca peguei essa doença. Os horários mais perigosos são o amanhecer e o entardecer. Normalmente fico dentro de casa nesses ho­rários ou, se tenho de sair, uso mangas compridas, luvas, repelentes, o que for necessário. Pescaria, por exemplo, exige cuidados.

O senhor costuma pescar? Deve ser muito gostoso pescar. Nunca fiz isso na vida.

Acho que deveria tentar. A gente assiste a uma das lutas mais tensas da natureza contra o homem. Ah! Quando o peixe pega a isca, ele começa a lutar para não sair da água. Trazer o peixe para dentro do barco exige muita con­centração. A gente sente a mordida e, quando o peixe puxa a linha, é a hora da fisgada. O pescador dá um puxão forte, o peixe resiste e estica a linha. Certos peixes são valentes e a gente só consegue tirá-los da água depois de cansá-los.

Cansar o peixe?

Sim, quando o peixe é muito pesado, é difícil trazê-lo para dentro do barco e, nesse caso, a linha é mais longa. Vai-se dando corda ao peixe e ele sai desesperado pensando que está livre, e quando a linha bambeia de novo é hora de rodar a carretilha. A linha se encolhe e se endireita com a resistência do peixe, então ele é arrastado mais um pouco e logo começa a lutar de novo, um pouco mais de linha, ele corre, e assim vai até ficar cansado. Logo ele está perto do barco, lutando, debatendo-se, e a gente o puxa para dentro.

Maurício não sabia por que descrevia as cenas daquela maneira. Parecia que também estava se vingando de alguma coisa.

Dependendo do tamanho do peixe, existe o risco de ele rebentar a linha e levar o anzol na hora em que está sendo puxado para dentro do barco. Nes­se caso, às vezes é preciso dar um tiro na cabeça, antes de erguê-lo. Os peixes menores são logo jogados no fundo do barco e ali ficam se debatendo até morrer com a falta de água e ar. Alguns peixes, como os bagres e as piranhas, podem morder o pescador e até arrancar os dedos. Rondon perdeu um dedo com a mordida de uma piranha. E bom ter alicate e canivete para prender as guelras e cortar o lugar onde o anzol está atravessado.

Mas isso é bárbaro! É isso que se chama pescaria? É isso que o senhor quer que eu tente também?

Sim, senhora, capita. É um prato delicioso, mas o sofrimento do peixe é grande. Nenhum ambientalista ou humanista que se preze devia comer peixe.

As águas agitadas da correnteza batiam nas pedras do meio do rio e jogavam gotas até a margem. Esqueceram as barbaridades da pescaria e ficaram apreciando o entardecer.

O sol foi baixando e formava uma enorme labareda sobre a imensa floresta que se estendia no oeste. Bandos de araras enormes e barulhentas passavam no céu. O entardecer ia chegando quando a capitã perguntou:

Não é este o horário da malária?

Voltaram para casa. Notou que o comportamento da capitã não era natural. Não fazia nenhum sentido ela vir de Brasília num avião da FAB com credenciais de táxi aéreo, sem motivo relevante. Faltava alguma coisa. Não iria lá apenas para dizer que ele estava correndo perigo ou avisar da morte do general.

 

Como sempre, antes do jantar, a empregada preparou a cerveja. Colo­cou algumas latinhas dentro de um balde de gelo e trouxe dois copos do tipo tulipa que estavam guardados no congelador.

- Mas isso é um requinte - disse a capitã. - Mas prefiro um suco, de preferência de alguma fruta da Amazônia.

A empregada preparou um suco de cupuaçu.

Muito bom esse suco, dizem que é uma arte fazer um bom suco de cupuaçu, é verdade?

Maurício chamou a empregada, que explicou:

Olha, primeiro a gente tira a polpa da fruta, depois bate no liqüidi­ficador com água ou com leite, mas com leite fica melhor. Um pouco de açúcar e umas pedras de gelo. E só isso.

O ensopado de jundiá fez a capitã esquecer o sofrimento do peixe na hora de subir no barco.

Depois do jantar, Maurício disse para a capitã que o lugar mais segu­ro para um boa conversa era na pista. Ali era a melhor sala de reunião. Ninguém ouvia nada. A noite estava estrelada, uma lua enorme esbanjava claridade e nem parecia que era noite.

Seguindo instruções de Maurício, o administrador foi para a ponta mais afastada da pista e deixou outro empregado de sua confiança mais perto da casa.

Desde os primeiros anos em que viera para a região, percebera que qualquer morador ou vaqueiro que viesse trabalhar ali devia entender de armas. Era uma região isolada, sem policiamento, e muitas vezes tinham de contratar pessoas que estavam fugindo da polícia, porque não havia mercado regular de trabalho.

Às vezes nem mesmo se conseguia saber o nome dos empregados. Eram chamados de Goiano, Maranhão, Baiano, Pará, quase sempre se referindo aos lugares de origem, mas não tinham documentos ou, se tinham, não mostravam.

Outras vezes tinham histórias de crimes comuns, como brigas por causa de mulher, uma legítima defesa que não ficou bem clara, mas numa região daquelas era preciso ter gente que soubesse usar uma arma. Havia animais ferozes e o empregado precisava, às vezes, dormir longe da sede, no meio do mato e sozinho.

Esses homens, quando tratados com respeito, são prestativos e leais. Costumava dar uma caminhada na pista, depois do jantar, como agora na companhia da capitã. Ali podiam conversar à vontade, sem perigo e sem que fossem ouvidos. Pelo menos assim imaginavam.

O senhor não me falou sobre a Confraria.

As lembranças da noite anterior misturaram-se com a notícia da morte do general em circunstâncias preocupantes e ele estava desorientado. Evita­ra falar com essa capitã sobre o fracasso da cerimônia, mas parece que não ia poder mais fugir do assunto.

Fui reprovado. Chegaram das sombras e desapareceram nas sombras depois de uma pequena sabatina. Mas agora entendo o que houve. Sem o general, eles também ficaram inseguros.

Lembrou-se dos conselhos para voltar a fazer o Caminho de Santiago. Será que o estavam aconselhando a sair do país? Será que aqueles fantasmas estavam prevendo situações mais difíceis? Achou melhor esclarecer.

E agora, capitã, como ficamos? Era o general que estava bem infor­mado sobre essa questão da Amazônia. Era o general que tinha os contatos com a Confraria. Foi o general que me aproximou deles e eu seria um elemento de ligação entre a Abin e a força de resistência amazônica que iria aproveitar a organização dessa Confraria. Mas o general morreu.

A lua estava alta e a figura de São Jorge matando o dragão naquela arena estrelada aumentava a intensidade dos receios.

Ela sabia que, se o projeto do general não fosse levado adiante, eles esta­riam ainda em maior perigo.

Caminharam mais um pouco em silêncio e ele insistiu:

Nunca indaguei como o general descobriu esses assuntos e por que o próprio governo não se encarrega dele de uma vez por todas. Mas acho que já é hora de colocarmos as cartas na mesa.

Não tenho o conhecimento e a certeza que o general tinha, mas vou tentar resumir.

Ele aguardou em silêncio.

O general era adido militar na Alemanha e tomou conhecimento de que havia verbas disponíveis para a constituição de ONGs com a finali­dade de salvar a Amazônia. Mas salvar de que e de quem? Um dia ele me confessou que fez essa pergunta a si próprio e resolveu aprofundar-se no assunto. Acho que o resto o senhor já sabe.

Pareceu emocionar-se ao falar do general, mas se recuperou logo.

Maurício foi tendo a impressão de que o general confiava mais nela do que em outras pessoas. Mas não estava acreditando que só ela tives­se conhecimento desses assuntos. Certamente era pessoa de confiança do general e ele precisava que ela estivesse a par da gravidade do que estava acontecendo, até mesmo para não cometer alguma imprudência. Mas não podia ser apenas ela.

Há consenso nos sistemas de defesa dos países que não integram as grandes potências de que nenhum outro país tem condições de suportar um ataque frontal de forças americanas ou européias; a Argentina, o Iraque e a Iugoslávia são exemplos.

De fato. É difícil entender que os países mais ricos gastem centenas de bilhões de dólares para destruir outro país e aleguem que é tudo pela democracia e pela paz. Matam e estraçalham homens, mulheres, crianças, trazendo horríveis sofrimentos ao ser humano.

Maurício surpreendeu-se com a força do seu desencanto com o chama­do mundo civilizado.

Também penso como o senhor, mas as Forças Armadas Brasileiras preci­sam enxergar isso aí de forma bem objetiva. O fato é: se os Estados Unidos esti­verem pretendendo invadir a Amazônia, nós temos condições de enfrentá-los?

Ela mesma respondeu:

Temos receio de que não teremos como enfrentá-los. Mas estamos procurando estudar meios de dissuasão, um tipo de resistência para desa­nimar essas pretensões. O povo iraquiano está ensinando alguma coisa. Da mesma maneira que a Resistência Francesa foi minando o Exército alemão, os iraquianos criaram uma força de resistência num país de campo aberto e está causando muitos danos aos invasores.

A Confraria pode então ser o núcleo importante dessa resistência no meio da selva amazônica. Era para a Ordem dos Templários da Amazônia que eu iria entrar, como uma espécie de ligação entre o general e essa resis­tência. Até aí, a senhora não trouxe novidade. O que me incomoda é que o general não tenha alertado o governo. Não seria mais fácil?

A capitã ficou em silêncio, como se estivesse em dúvidas sobre o que falar.

O senhor quer dizer que as Forças Armadas deveriam informar pessoas que até há pouco lutavam contra a ordem constitucional para entregar o Brasil aos comunistas? O senhor quer dizer que as Forças Armadas deveriam confiar em pessoas que lutaram contra as Forças Armadas?

Mas isso é surpreendente. Não tinha visto ainda por esse lado. O presidente da República é o chefe supremo das Forças Armadas, conforme está na Constituição. Mas por outro lado, o governo hoje é composto por aquelas pessoas que ontem eram inimigas declaradas das Forças Armadas e não obedeciam nem à Constituição e nem às leis do país, e então um lado agora não confia no outro.

Apesar da brisa fresca da noite, Maurício começou a suar.

Parece que estamos sem saída. Nosso Exército reconhece que não tem condições de enfrentar o Exército do país inimigo e ainda por cima não confia no governo do seu próprio país.

Não resistiu a um pouco de sarcasmo:

Mas, graças a Deus, temos a Ordem dos Templários da Amazônia.

Infelizmente, o nosso rei Artur morreu — completou ela, com um misto de ironia e tristeza.

Voltou ao normal e disse com voz preocupada:

Temos também a impressão de que, se as Forças Armadas ou outro órgão oficial do governo aparecer ostensivamente, estaremos fazendo o jogo de quem está por trás disso. Há consenso de que esses grupos, sejam eles quais forem, querem que o Brasil provoque um debate internacional sobre a Amazônia.

As Forças Armadas receiam então uma polêmica internacional sobre a Amazônia?

Não podemos fazer uma acusação internacional contra essas invasões disfarçadas e contra essa intromissão em nossos territórios. Primeiro, por­que até agora nenhum país ou organização de países assumiu essa invasão. Depois, porque há razões para se acreditar que esses grupos estão querendo justamente isso, ou seja, que o Brasil provoque um debate internacional sobre a Amazônia. Não podemos fazer o jogo deles,

Mas é a coisa mais estapafúrdia que já ouvi. Não podemos nem mes­mo nos defender?

A estratégia deles foi muito bem planejada, porque, afinal, todas essas ocupações estão sendo feitas com o propósito de salvar a humanidade e, para salvar a humanidade, é preciso que se salve antes o planeta, que passou de repente a depender da Amazônia.

Conversaram sobre as muitas ONGs que foram surgindo como fantas­mas e agora assombram as matas amazônicas. Apareceram aos poucos, em silêncio, como instituições bem-intencionadas e inocentes.

O senhor ficou pensativo. Posso ler seus pensamentos?

Pelo que sei, existem outras pessoas que foram escolhidas como eu para constituir uma espécie de Agência de Espionagem da Amazônia, se me permite a brincadeira. A senhora por acaso conhece essas pessoas? Che­gou a visitá-las também?

Ela não respondeu de imediato. Procurou uma resposta estudada e ele entendeu logo que o Exército estava buscando alguém para coordenar os contatos com a Confraria e com capacidade de tomar iniciativas que a área militar não poderia assumir.

Então, a descoberta da Confraria foi importante para completar o sistema de "resistência" e essa espionagem do tipo que me incumbiram...

O senhor compreendeu. Foi uma pena o que aconteceu na Confraria.

Mas então, posso concluir que as Forças Armadas estão já há algum tempo...

Não estamos dormindo, se é isso que o senhor quer dizer.

Mas, por falar em dormir...

Voltaram para a sede.

 

Descendo o rio Roosevelt, pouco antes da Buritizal, encontra-se do lado direito uma pequena casa de madeira em ruínas. Era uma posse antiga, chamada de Chuvisco. A casa fica à beira do rio e atrás dela existe uma pastagem abandonada, parcialmente tomada pela juquira. O rio alarga-se depois de uma curva em frente à casa e forma adiante a corredeira do Chu­visco, já perto da Buritizal. O sol se põe na margem oposta e forma um dos mais belos entardeceres da região.

Um homem esgueirou-se para dentro do antigo pomar, protegido pela vegetação. Era comum os beiradeiros, como são chamados os moradores das margens, descerem ou subirem o rio pescando, procurando castanhas ou até o leite da seringueira, e ele não podia correr risco de ser visto.

Havia um mês recebera instruções para procurar trabalho como "motoqueiro" em desmatamentos na região da Conservan, pequeno vilarejo que se desenvolvia perto do Roosevelt, no município de Aripuanã. Era trabalho perigoso esse de derrubar árvores com motosserras, mas era também um bom exercício e ele podia assim conhecer a selva com a qual teria de con­viver para cumprir as ordens que chegaram.

O pequeno bote infiável era suficiente para atravessar o rio. Só precisava fazer uns remos com as tábuas velhas que existiam no local. Ali não dava para remar com as mãos por causa das piranhas.

Tinha também a sua "motosserra", porém ao ser contratado comprou outra do empreiteiro. O "gato", como são chamados os empreiteiros na região, perguntou por que não usava a motosserra que tinha trazido e ele explicou que aquela ia ficar de reserva para não atrasar os serviços. A resposta parece que satisfez. Na verdade, naquela caixa, ele escondia uma arma poderosa, sofisticada, e as munições, além do fuzil.

Treinava muito com aquele fuzil e não errava tiros a uma distância de até oitocentos metros. Podia assim ficar longe da casa da fazenda, sem ser visto por algum empregado ou pressentido pelos cachorros.

Paciente, enquanto apreciava a paisagem, ficou pensando no melhor lugar para passar para o lado de lá do rio e procurar outro abrigo a uma distância conveniente da sede da Buritizal. Sabia esperar. Fazia parte da sua profissão. Só não podia falhar. O pessoal que o contratara não admitia falhas. Recebera instruções de como eliminar o seu alvo e informações de que se tratava de pessoa que sabia defender-se e vinha tomando cautelas para evitar surpresas.

As instruções eram para ficar aguardando até ter certeza de que o alvo estava lá. Um avião Sêneca de cor bege deveria estar perto da casa. Do lugar onde estava tinha uma boa visão da sede, mas não viu o avião. Não contava com isso. Recebera informações de que já podia executar a missão, mas será que o sujeito tinha saído? Era melhor esperar um pouco mais.

Não passou muito tempo e teve a impressão de ouvir o ronco de um motor. "Será que é o barulho da cachoeira?", pensou. Logo o ruído aumen­tou, um avião foi chegando, aproximou-se da pista e desceu.

"Estranho." Não era um Sêneca, era outro tipo de bimotor, pouco maior. Não era bege. Não entendia de avião, mas sabia que não era aquele. Havia algo errado. "Será que o alvo mudou de avião?" Era melhor esperar, já que não podia fazer nada durante o dia.

Passadas umas duas horas, ouviu o ronco de outro avião. Logo depois o Sêneca bege pousou na pista. Havia mais gente na sede da Buritizal do que ele imaginava. O que será que está acontecendo? Tinha de esperar. Não podia errar. O alvo era um só.

No entanto, passou o dia e o outro avião não foi embora. Havia o risco de continuar ali e ser encontrado. Não podia esperar pelo dia seguinte, até esse pessoal ir embora. E se não fosse? Precisava agir naquela noite. Afinal, o trabalho de eliminar um era o mesmo de eliminar todos que estivessem dentro da casa. O rio não ia esquecer a explosão.

Trabalho perfeito o daquele armeiro. Foi bom ter trazido o lançador de bombas. Pequeno, mas ousado e destruidor. O difícil foi transportar todo aquele peso. Por sorte o "gato" o levou de camionete até a margem do rio e ele só acompanhou a correnteza, até chegar perto da Buritizal. Parou o bote na margem direita, esvaziou o ar, colocou-o na mochila e entrou pela picada que tinha feito para chegar até a casa do Chuvisco. Estivera ali an­tes, estudara bem o plano, fizera a picada, escolhera o lugar, enfim, tinha condições de cumprir as ordens recebidas.

Já estava para escurecer e logo teria de encher de ar o bote de borracha. Era só soprar com força, colocar o colete à prova de balas para evitar surpresas, preparar convenientemente o fuzil, o pequeno morteiro e im­provisar o remo com as duas tábuas que já tinha separado.

Estava assim planejando o seu trabalho quando viu um vulto do outro lado do rio, que veio certamente da sede e ficou em posição de cuidadosa vigilância justamente no lugar aonde planejava chegar na outra margem. "Droga!". Eles estavam preparados e tinham colocado vigias. Parecia muito fácil. Devia ter pensado nisso antes. Mas não importa, sabia que o homem era esperto e cuidadoso.

O vulto do outro lado levantou-se de repente, olhou para o lugar onde estava com atenção e ele chegou a sentir receio de ter sido visto. Ficou o mais imóvel que pôde. Tinha certeza de que a vegetação do pomar era bastante espessa e o vulto do outro lado não o veria. Era questão de esperar e ver quem tinha mais paciência.

Calculava que o vulto não ia ficar parado lá. Se estava em trabalho de vigi­lância, ele teria de se mover, porque a área era grande e coberta de arbustos.

Precisava eliminá-lo, mas se esperasse muito, ia escurecer e não teria visão. Poderia esperar o dia seguinte, mas quanto mais esperasse mais perigoso seria. Tinha de ser nesta noite. Não hesitou. Cuidadosamente, para não fazer movi­mento na vegetação, abriu a caixa e pegou o rifle que estava desmontado.

Juntou as peças e colocou a luneta de mira. A distância não era grande, uns trezentos metros, não tinha como errar. Já atingira muitos alvos antes a essa distância e com precisão. O vigia tinha de ser imobilizado com um só tiro, bem na testa, para não ter tempo de avisar a sede, ou disparar alguma arma que alertasse os outros. Colocou o silenciador. Carregou a arma e agachou atrás da pedra que estava no meio da moita, que escolhera antes.

Ficou de joelhos, colocou o cotovelo esquerdo sobre o pequeno maciço de pedra, mirou com segurança. O alvo estava parado atrás de um arbusto e com o pescoço levantado como se quisesse vê-lo. Era o momento perfei­to. Fixou a linha reta imaginária traçada pela mira até o centro da testa, na junção do nariz com os dois olhos.

Sentia uma excitante felicidade nesses momentos. Encher o pulmão e soltar o ar aos poucos, enquanto puxava vagarosamente o gatilho, o envolvia numa espécie de carma celestial. Sentia-se escolhido por Deus para trazer a vida e a morte. A maioria dos seres humanos só sabia dar a vida. Ele não. Deus o tinha escolhido para dar a morte também.

Estava totalmente concentrado para o momento do tiro, quando foi to­mado por uma súbita sensação de perigo. Virou-se imediatamente e levou a primeira pancada na cabeça. Outra pancada com uma espécie de cano de ferro tirou o rifle de suas mãos e ele se viu repentinamente indefeso diante de uma figura misteriosa, vestida como cavaleiro da Idade Média, com uma grande cruz vermelha no peito e um sabre na mão.

- Quem é você? - perguntou, assustado.

Mal pôde perguntar e o sabre já o estava atravessando na altura do estô­mago, logo abaixo dos coletes à prova de bala, como se o adversário soubesse que estava de coletes protetores. Olhava ainda aquela figura que se parecia com o anjo da morte, sentindo a dor aguda na barriga e quis gritar, quando o outro retirou o sabre, mas a boca se encheu de um líquido quente.

A vista começou a escurecer e ele pôde ver ainda o sabre se aproximando da garganta. Sabia que estava morrendo e não tinha como resistir. Tentou apoiar-se na pedra para se levantar, quando a ponta do sabre entrou em seu pescoço e não sentiu mais nada.

Fora tudo muito rápido. O monge ficou imóvel por alguns minutos, protegido pelo matagal onde o morto estava antes. Imponente, alto, forte, olhou para a sede da Buritizal e depois para o outro lado do rio onde estava o vigia e escondeu-se quietamente até escurecer.

 

Maurício costumava levantar-se às seis horas para correr na pista. Na­quela manhã, porém, o administrador o estava esperando.

Doutor, ontem à noite, o vigia que eu pus em frente do Chuvisco me avi­sou pelo rádio portátil que teve a impressão de ver alguma coisa estranha perto da casa. Ele não sabe o que foi, mas não havia vento e num certo momento os arbustos no pomar se mexeram como se alguém estivesse lá.

Ali era a selva amazônica. Os pastos do Chuvisco estavam abandonados e era possível que algum animal, talvez uma anta, tivesse entrado no pomar e alarmado o vigia.

Ele viu mais alguma coisa?

Não, não viu. Pode ter sido algum animal. Achei melhor não sair daqui sem falar com o senhor, mas pretendo ir lá confirmar o que houve. Ele me in­formou ontem mesmo pelo rádio, mas, como não houve mais nada suspeito e ele mantinha contato permanente, achei melhor aguardar o amanhecer.

A capitã também já tinha se levantado e escutava a conversa. Maurício dirigiu-se a ela:

Capitã, vou com o Jorge ver o que houve. A senhora pode ficar na sede.

Desculpe, doutor, mas vou com o senhor. Se há alguma coisa diferen­te, preciso saber o que é. O tenente Alexandre pode ficar aqui.

Não era momento de ficar discutindo com mulher e Maurício mandou o administrador preparar a voadeira e chamar o vigia para ir junto.

Já está tudo pronto, doutor. Foi o Gordo que ficou em frente ao Chuvisco. O Zeca ficou do lado de baixo da sede e vai ficar aqui tomando conta dos aviões.

Então vamos.

Entraram na voadeira, que se distanciou do píer em frente da sede, e seguiram para o Chuvisco. No período da seca a corredeira do Chuvisco fica muito perigosa. As águas baixam e a água do rio se estreita em uma garganta que é o único lugar seguro para passar.

O barqueiro era experiente e, quando chegou perto da corredeira, ace­lerou o motor, e a voadeira subiu, balançando de um lado para o outro até alcançar o largo do rio. Ali ainda havia muitas pedras e outras corredeiras menores se formavam. Usavam colete salva-vida, e a capitã segurava as bordas do barco, saboreando uma sensação de turismo de aventura. O barqueiro foi desviando das pedras e das corredeiras mais perigosas, au­mentando a velocidade, porque estava indo rio acima com o barco pesado e era preciso aproveitar a velocidade inicial para ajudar o motor.

Logo alcançaram o remanso da curva e apareceu a casa do Chuvisco. Era como um passeio matinal, e o sol já tinha subido acima da linha do horizonte. O barco aproximou-se do banco de areia que era usado como ancoradouro. O vigia pulou e o arrastou, até poder amarrá-lo num pau fincado na areia para esse fim.

Todos olhavam com atenção em volta, mas parecia não haver nada es­tranho. Jorge havia trazido seu cão predileto, que farejava uma onça de longe. O cão pulou do barco, alegre, pensando que fosse para uma caçada. Foi farejando e pulando na areia em busca de rastros e cheiros.

Jorge perguntou ao vigia em que lugar ele pensava ter visto o movimen­to e o vigia indicou o pomar. O cachorro foi na frente e começou a latir, atraído pelo cheiro estranho. Seguiram o latido do cachorro e encontraram o corpo estendido no chão e já cheio de formiga. O cheiro indicava que ele estava morto desde a noite anterior.

A capitã pegou o lenço e tapou o nariz enquanto dizia:

Foi assassinado - disse ela. - Golpe de instrumento pontudo no peito e na garganta.

Olhou para o vigia.

Onde estava o senhor, quando viu o movimento?

O vigia indicou o lugar, logo depois do rio, perto de um atravessador de gado que a fazenda utilizava.

Ela olhou o lugar e comentou como se falasse para si mesma:

Ele ia matar o vigia. Pelos vestígios do local onde ele se encontra caído, dá para perceber que tinha escolhido essa pedra para apoiar o rifle. Seria um tiro silencioso e fatal, com mira, para não precisar dar dois tiros.

O administrador já estava revirando as armas e a mochila do morto.

Barbaridade, o que será isso? — perguntou. — Isso é um rifle? Parece um canhão manual. E esse outro negócio aqui?

Maurício aproximou-se e pegou o fuzil. Era uma arma pesada. Como uma pessoa tinha chegado até ali com ela? Virou-se para a capitã e pergun­tou se ela conhecia aquela arma.

Esse é o famoso fuzil americano calibre cinqüenta. E a mais poderosa arma de uso portátil. Pode derrubar um avião a jato a mil e quinhentos metros de distância. Essa arma ficou famosa depois de um programa de televisão mostrar que era fácil exportá-la para terroristas de todo o mundo, falava com voz trêmula.

Vias essa outra arma... Meus Deus! E um morteiro portátil, calibre sessenta milímetros, de origem francesa, pesa nove quilos e pode alcançar pouco mais de mil metros...

Gaguejava e não conseguia mais falar.

Estava pálida, transtornada. Tentava dizer alguma coisa, mas a voz não saía. Maurício também compreendia que a situação era inespera­da. As coisas estavam acontecendo muito depressa. Primeiro o general, depois aquela história de Confraria e ainda encontra a tal capitã na sua fazenda. Agora esse mistério. A capitã estava abalada, trêmula e não con­seguia articular as palavras.

"Por que será que ela ficou tão nervosa, de repente?"

Ele gritou para ela, pegou o seu braço e a chacoalhou chamando:

Capitã, capitã!

Ela parece ter despertado do seu estupor e olhou para ele com olhar apoplético.

Capitã, é melhor a senhora acordar - disse ele com voz ríspida. Al­guém veio aqui para fazer algum estrago e é muita coincidência a senhora ter chegado junto. Não quero acusá-la de nada, mas houve um assassinato aqui e acho que a senhora pode ajudar a esclarecer. Havia dois sujeitos. O que eles queriam aqui? Qual era o plano deles? Roubar avião? Seriam trafi­cantes de droga? Por que então deixaram esse fuzil?

Ela balançava a cabeça de um lado para outro como se também não compreendesse, mas se mostrava bastante assustada.

A senhora não esclareceu o que veio fazer aqui. Aquelas histórias de ontem não me convenceram. A senhora não veio aqui me visitar ou falar coisas desnecessárias, mas precisava de uma pista segura para pousar, não é? Para quê? Quem a senhora está procurando? Aqui não tem mais ninguém num raio de duzentos quilômetros que possa interessar ao seu Exército. Madeireiros, beiradeiros, seringueiros...

Uma idéia estapafúrdia tomou conta do seu cérebro.

Os seringueiros!... A Associação dos Seringueiros do Água Branca. A senhora veio buscar a irmã Tereza. Sim, a irmã Tereza era um dos agentes do general.

Olhou para o morto e para as armas.

É isso. Agora eu entendo aquela história de "descredenciamento" que o general falou. O antigo agente de vocês era a irmã Tereza. Ela era a única pessoa na região que podia ajudá-los discretamente porque tinha como ob­ter informações por intermédio dos seringueiros que andam por centenas de quilômetros por esses rios e florestas. Mas ela deve ter cometido alguma indiscrição e podia correr perigo se continuasse na área. Diga logo se é isso ou não, pois diante do que aconteceu aqui, se ela ainda estiver viva, pode estar correndo perigo.

A capitã gaguejou um "sim" e Maurício virou-se rapidamente para o administrador.

Jorge! - gritou. - Vamos embora, precisamos correr.

 

A voadeira desceu o rio com velocidade. Maurício deu instruções para vol­tarem lá, enterrarem o corpo e trazerem todos os objetos para a Buritizal. Os vigias deveriam tomar conta até ele chegar. A camioneta ficava na sede da fazenda e era preciso passá-la para a outra margem. Até ajeitar o rebocador com a balsa e atravessar o rio, gastaram quase uma hora. Maurício estava aflito.

A capitã já havia se recuperado e nem ela nem Maurício queriam fazer comentários. Mandou o administrador dirigir porque ele tinha mais co­nhecimento dos buracos e desvios da estrada. Pegou a sua pistola 765 e por precaução o Taurus 38 que o acompanhava havia anos.

Não era preciso mandar o administrador correr o mais que podia. En­tendendo que alguma coisa grave estava acontecendo com a irmã Tereza, desenvolvia a velocidade que a estrada permitia. Todos estavam tensos e evitavam falar. Maurício tentava pôr ordem nas idéias, mas o tempo agora estava contra ele. A estrada estava boa e a camioneta corria bem.

Eram trinta quilômetros até a ponte do córrego do Agua Branca, onde havia uma associação de seringueiros e um posto de saúde. Já fazia seis anos que a irmã Tereza chegara ali e foi conquistando o carinho de toda aquela gente. Era pessoa culta e Maurício gostava de parar na associação, quando ia para Colniza. Falavam de literatura e história das religiões.

Quando Maurício fez o Caminho de Santiago, trouxe-lhe um terço com o crucifixo de Santiago. Era a espada de São Tiago, uma cruz semelhante à dos templários. Confraria, Santiago de Compostela, templários, ele ia perdi­do em seus pensamentos, quando Jorge entrou numa curva à direita.

No leito antigo da estrada havia uma pequena ponte de madeira quase ao nível da água e a estrada ficava intransitável na época das chuvas. A prefeitura fez um desvio para construir outra ponte, onde os barrancos do riacho eram mais altos.

A altura da ponte até o leito do riacho tinha agora mais de três metros, e as enchentes não iam mais impedir o trânsito, mas para isso foi preciso desviar o leito da estrada e fazer aquela curva que saía bem em cima da ponte. O instinto de sobrevivência o alertou:

Pare, Jorge, pare, pare!

O administrador deu uma freada brusca, quase em cima da ponte e, assustado, perguntou:

O senhor viu alguma coisa?

Não há tempo para explicar — disse Maurício. — Dê marcha à ré. Vamos cruzar o vau do rio, que está seco. Vamos, não perca tempo e nem pergunte mais nada. Falamos depois sobre isso.

A capitã olhou para ele também com cara de espanto e ele achou me­lhor dar uma informação vaga.

Essa ponte é muito alta, capitã. Na volta a gente confirma os meus receios.

Logo depois chegaram ao Água Branca e foram direto para a casa da irmã Tereza. Uma senhora que tomava conta da casa disse que ela não estava. Havia saído com dois padres que vieram buscá-la para ajudar um doente que eles tinham administrado os sacramentos.

Dois padres? - perguntou ele, incrédulo. - Usavam batina, algum uniforme?

Sim - disse a mulher. - Não sei como eles não morreram de calor. Aqui padre não usa aquelas roupas porque é muito quente.

Usavam alguma coisa na cabeça, tipo chapéu feito com a mesma roupa da batina?

Não adiantava falar "capuz" porque a mulher não ia saber o que era isso.

Pois é o que estou falando para o senhor. Estavam muito encapotados.

Maurício parecia mais calmo. A capitã estava séria, parecia não enten­der o que estava acontecendo, mas não queria perguntar nada.

Perguntou de novo:

Veio mais gente aqui atrás dela?

Sim, veio a polícia, com quatro soldados. Eu disse a eles que ela tinha saí­do com dois padres e eles ficaram muito nervosos. Queriam ver a casa da irmã e eu não tive coragem de falar não. Eles estavam muito bravos e armados.

Vamos entrar na casa. A senhora pode abrir para nós?

A casa era de madeira, simples, uma biblioteca com livros de diversos assuntos, em sua maioria de medicina e saúde e alguns instrumentos cirúr­gicos. Os móveis estavam todos revirados, as gavetas jogadas pelo chão, o colchão rasgado como se quisessem encontrar alguma coisa escondida.

Que horror - disse a mulher, que se benzia a todo momento. - Nunca imaginei que a polícia fosse fazer isso. O que será que eles têm contra a coitada da irmã Tereza? Ela é uma santa. O senhor nem imagina a falta que ela fez quando ficou aqueles dias fora para se tratar.

Ela ficou algum tempo fora, para tratamento de saúde? - surpreen­deu-se Maurício.

Sim. Voltou pálida, ficou uns tempos sem poder tomar sol e até véu ela usava. É uma pena que o senhor não vem muito aqui.

Faz tempo isso? Quero dizer, quando foi que ela ficou doente e ficou fora?

Faz três meses mais ou menos. Não faz muito tempo não. Ela ficou um mês fora. Foi uma tristeza para todos nós.

Não sabia disso. Passei por aqui há uns quarenta dias e ela tinha saído. Parece que a senhora tinha ido com ela, não sei para onde.

Pois é. O senhor avisou pelo rádio que estava vindo, mas aí ela teve de levar remédio para o seu Godoy, que mora uns dez quilômetros descendo o rio. Ela não quis ir sozinha e me levou. Mas nem precisava ter ido porque, graças a Deus, o seu Godoy não tinha nada.

Maurício olhou em volta. A casa tinha sala, dois quartos e uma cozi­nha que servia de copa. Os dois quartos tinham banheiros privativos e era comum a irmã dormir na sala e ceder os quartos aos doentes. Em outro quarto, mais amplo e com cama apropriada, ficava a enfermaria.

Tudo estava revirado, mas todos os pertences da irmã estavam ali. Até mesmo a sua maleta com instrumentos cirúrgicos, remédios, avental, luvas e coisas de que ela precisava para fazer partos ou curativos estavam lá, e tudo esparramado, mas estavam lá.

"Estranho. Se ela foi atender doente, por que não levou os equipamentos?"

Em cima da mesa estava o rádio que ela usava para se comunicar com as fazendas vizinhas e até mesmo com o resto do país. Era um rádio Kenwood de freqüência variável e com ele a irmã podia falar para várias regiões.

A irmã fazia e recebia muitos chamados?

Olha, às vezes recebia sim. Hoje mesmo estava no rádio e quando entrei ela desligou depressa e me olhou de um jeito esquisito, meio com raiva, como nunca tinha feito antes. Depois disse que era o padreco, mas tive a impressão de que ouvi o rádio dizer Pacheco. Eu não perguntei nada, porque não gosto de bisbilhotar a vida dos outros.

O terço que ele trouxera de Compostela com a cruz de Santiago estava pendurado na estante. Maurício achou estranho, porque se lembrava do dia em que passara por ali e dera o terço para a irmã. Ela ficou emocionada e disse que era devota de São Tiago, o apóstolo dos trovões, e que nunca se separaria daquele terço, que tinha valor inestimável, porque havia sido trazido por um autêntico peregrino que tinha feito o Caminho no ano do Jubileu e visitado o túmulo do santo.

Achei também que depois da doença ela ficou de memória fraca, disse a empregada. Nem se lembrava mais do terço. Eu tive de lembrá-la de que era presente do senhor.

Maurício pegou o terço e o guardou no bolso. Ela deve ter recebido alguma informação pelo rádio e saiu precipitadamente, sem condições de pegar o terço. Sabia que a irmã não ia mais voltar e tinha esperança de devolvê-lo um dia.

Era uma mulher culta e viu que tinha adquirido livros novos sobre a Amazônia. Havia dois ou três volumes sobre as fortalezas construídas pelos portugueses para proteger as terras que tinham tomado da Espanha duran­te o período da unificação da coroa na Península Ibérica.

Não sabia desse interesse da irmã pela história dessas fortalezas. Pelo menos, antes só falava de Goethe, Júlio Verne e autores europeus.

E depois de invadirem a casa, para onde foram os policiais?

Ah! Não sei. Saíram fazendo poeira e quase atropelando as pessoas. Já vi polícia ruim, mas igual àqueles é difícil.

A capitã estava atenta e observava todos os objetos da casa com olhar investigativo, mas não disse nada.

Depois de certo tempo, Maurício disse:

Acho que podemos ir. Pelo que presumo, a irmã está bem, mas acho que ela talvez não volte mais por aqui.

 

O silêncio da volta indicava que nem Maurício nem a capitã queriam falar na frente do administrador e este continuava dirigindo, sem fazer perguntas. Já passava do meio-dia e o sol estava alto e quente.

As pequenas folhas verdes da braquiária nascendo naqueles pastos secos documentavam a fertilidade da região, onde o capim rebrota até na seca, só com o orvalho.

Pararam um pouco antes da ponte que Maurício não quis atravessar e desceram. Cauteloso, olhando com cuidado a mata, o movimento das aves e rastros no chão, aproximou-se e a examinou com cuidado.

Desceu o barranco e de lá debaixo fez sinal para a capitã indicando os cortes em forma de V, nas colunas de madeira que sustentavam a estrutu­ra da madeira que ligava as duas margens. Os cortes foram feitos pouco abaixo do nível da água, para que não fossem notados. Eles iriam desabar de três metros de altura, quando estivessem no meio da ponte.

Como o senhor adivinhou isso?

O instinto de perigo. A bem da verdade, já não confio muito nessas pontes de madeira que fazem por aqui.

Mas o senhor agiu como se tivesse certeza de que podiam ter prepa­rado essa armadilha para nós. Mas como iam saber que nós iríamos passar por aqui hoje?

Quase não consegui dormir a noite passada. O atentado contra o gene­ral, aqueles malucos da Confraria, a sua chegada aqui, as coisas não batiam. Com os acontecimentos de hoje, então, fiquei vendo hipóteses e fantasmas em quase tudo. Esta é a única estrada para sair da Buritizal.

O senhor acha então que eles criaram essa armadilha...

Quando vínhamos para cá, estive pensando no que faria para dificultar nossa fuga, se estivesse no lugar deles. Fui pensando nos pontos de risco e, por sorte, no último minuto tive a percepção do perigo que podia ser esta ponte.

A capitã examinou a ponte pensativamente, olhou para ele, quis falar alguma coisa, mas ficou calada.

Voltaram para a camioneta e ele abriu a porta para ela. Não tinha até então reparado naquela mulher que, para ele, era simplesmente uma mili­tar trazendo-lhe problemas. E era assim que devia continuar.

Chegaram à margem do rio. O rebocador estava lá esperando por eles.

Passava das duas horas da tarde e o almoço estava pronto. Não resistiu ao calor, e a empregada trouxe uma latinha de cerveja e um copo gelado que ela mantinha sempre na geladeira. Com gestos estudados, abriu a lati­nha e derramou a cerveja. Uma espuma branca e voluptuosa tomou conta do copo e foi transformando-se num líquido amarelo quase dourado, até que o copo ficou dividido em duas cores harmoniosas.

Sabe, capitã, o primeiro gole é o melhor. Quanto mais longo, mais saboroso.

Ela sorriu, mas não estava disposta a estender a conversa. O dia estava quente e ela não conseguira ainda se recuperar dos acontecimentos. Aquele assassinato na outra margem, logo no dia em que chegara, aquela história da ponte cortada para que eles caíssem, o desaparecimento da irmã Tereza. Onde será que isso ia parar?

Almoçaram e a capitã foi sentar-se à sombra, do lado de fora da casa, para apreciar a brisa e a paisagem, enquanto ele foi esticar-se na rede.

Gostava daquele momento. "Era a hora da preguiça", dizia. Balançando a rede mansamente, ficou observando o horizonte separado entre o verde e o azul e deixou o pensamento andar à solta.

Deve ter cochilado uns vinte minutos. Olhou no relógio. Uma nuvem escondia o sol e o tempo estava mais agradável. Procurou pela capitã e ela estava em pé, quase imóvel, olhando as águas incansáveis do rio.

Bonita paisagem, não é, capitã?

Sim, muito bonito tudo isso. E uma natureza rica, forte e, ao mesmo tempo, frágil. E assim em todo o Brasil. Somos ricos, fortes e frágeis.

A senhora virou filósofa. Mas é preciso pensar na frente. Veja essas águas. Elas só vão para a frente. Nunca voltam, nem olham para trás.

Ela sorriu e devolveu:

Agora é o senhor que está filosofando.

Maurício pediu um café e sugeriu que depois fossem andar na pista.

Havia alguns pontos sem ligação nessa história e era preciso amarrá-los.

A situação está exigindo um exercício de lógica. Temos alguns fatos que, ao que parece, estão todos ligados pelos mesmos motivos. O atentado contra o general, a minha rejeição na Confraria, essa morte no Chuvisco e o caso da irmã Tereza, que foi levada por dois padres antes da chegada de alguns policiais, que também estavam à sua procura.

Será que foi a Confraria que matou o homem ali no Chuvisco e também levou a irmã Tereza? O senhor não acha que os policiais eram falsos?

A senhora chegou às mesmas conclusões que eu.

Nesse caso, então, o assassino do Chuvisco sabia que eu vinha até aqui. Mas como ele poderia saber, se eu não contei a ninguém que vinha para cá?

Não. Não acredito que ele soubesse que a senhora estava aqui. Acho que foi coincidência. O mais lógico é que eles queriam se livrar de mim. Mas que perigo posso representar para eles? Mal entrei nesse assunto.

Mas, e a Confraria? Como será que sabiam desse assassino e da irmã Te­reza? Será que, desde o momento em que o senhor foi contatado para entrar para essa organização, eles começaram a protegê-lo aqui na região? Quanto ao senhor, até que isso faz alguma lógica. Mas, e a irmã? Como sabiam dela?

Maurício pensou: "E como essa capitã tem tanta certeza de que a Con­fraria não sabia a respeito da irmã Tereza? O general devia informá-la de tudo e talvez só a ela".

O problema, senhora capitã, é que essa organização de assassinos sa­bia que eu havia sido, vamos dizer assim, agenciado pelo general e também sabia a respeito da irmã Tereza, e tentaram liquidar-nos. Nesse caso, mais gente está em perigo.

A capitã comentou, apreensiva:

Nossos contatos correm perigo.

O problema é mais sério. Acredito que essa organização só poderia saber a meu respeito se tivesse espiões entre vocês. E, em reciprocidade, essa confraria só poderia saber a respeito desse assassino, se também tivesse algum espião entre eles. Houve muita precisão na morte do sujeito lá no Chuvisco. Ou foi muita coincidência, ou ele estava sendo seguido.

Pensou um pouco e depois disse:

— Vou aumentar a segurança esta noite, mas amanha a senhora deve voltar para Brasília. Eu tenho algumas coisas para resolver aqui e depois vou para lá também. Os fatos estão se precipitando.

 

Cuiabá é ainda considerada a porta de entrada da floresta amazônica. Goza do privilégio de estar cercada por três dos maiores eco-sistemas do mundo: a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal, e ser o centro geodésico da América do Sul.

Foi fundada em 1719, depois da descoberta de ouro às margens do rio Coxipó; posteriormente, surgiram as ricas minas da Prainha e da Colina do Rosário, sobre a qual foi construída a igreja do Rosário, no coração de Cuiabá. Ainda hoje há quem defenda a exploração do ouro que existe embaixo da igreja.

O primeiro nome da cidade foi Arraial da Forquilha. Duas histórias explicam a mudança do nome para Cuiabá. Numa delas, contam que um português estava lavando uma cuia de garimpar ouro no rio e ela escapou das suas mãos, sendo levada pela correnteza. O português teria dito "cuia vá", dando origem ao nome da cidade.

Seria fenômeno semelhante ao que originou o nome da cidade de Bom­baim, na índia. Consta que quando os portugueses chegaram ao local teriam dito "boa baía", expressão que os locais entenderam como Bombaim, nome que permaneceu, até recentemente quando foi mudado para Mumbai.

Ao chegar ao continente sul-americano, o europeu teve de mudar seus hábitos de alimentação porque o trigo não se deu bem aqui. Os portu­gueses aprenderam com os índios as vantagens da mandioca, um arbusto cuja raiz é o alimento natural da região e que deu origem a uma das mais bonitas lendas da Amazônia.

Conta essa lenda que um tuxaua, o chefe da aldeia, tinha uma filha muito bonita que um dia ficou grávida misteriosamente. Feliz porque ia ter um filho, ela foi correndo contar ao pai dela. O tuxaua não aceitou a situação e expulsou a filha, que foi viver sozinha numa cabana distante da aldeia, onde era visitada por amigos e parentes que lhe levavam alimentos e carinho.

Um dia nasceu uma linda menina de cor branca, à qual a mãe deu o nome de Maniva. A notícia se espalhou por todas as aldeias e os índios co­meçaram a visitar a menina Maniva. Até o avô, que antes havia expulsado a filha, não resistiu e se encantou com a neta.

Quis o destino, porém que, ao completar três anos, a menina morresse. A mãe enterrou-a perto da cabana e dias depois começou a nascer uma planta cuja raiz era tão branca como a menina. Deram então a essa planta o nome de manioca, ou seja, a casa de Mani.

A lenda da manioca, palavra que passou a ser mandioca, traz o simbolismo místico de todas as religiões, pois representa a pureza do nascimento e a ressurreição, que renova a vida em seu elemento imaculado, o branco. Desde então, as tribos passaram a se alimentar com a alma branca de Mani.

Descobriram que da mandioca se faz a farinha, que depois comiam com o peixe ou com a caça. Faziam o cauim, uma bebida alcoólica, e também podiam cozinhar ou assar. E pobre em gorduras, proteínas e vitaminas, mas rica em carboidrato.

Essa é a outra versão para a origem da palavra Cuiabá, que, na linguagem dos índios, significa homem que faz farinha. Todo habitante da margem do rio sabia fazer farinha da raiz da mandioca.

Cuiabá formou-se na época da febre do ouro e, quando este acabou, a cidade ficou quase desabitada e também isolada do restante do país. Aproximou-se então dos países vizinhos, principalmente Bolívia e Paraguai, ganhando sotaque e costumes castelhanos. As lendas e histórias tornam a cidade diferente e fascinante.

Dizem que a imagem do Senhor Bom Jesus, da catedral metropolitana, tinha sido esculpida em madeira na cidade de Sorocaba, em São Paulo, mas foi abandonada numa ilha fluvial do Pantanal. Um viajante a encontrou, mas não conseguiu levá-la de volta para São Paulo, porque a imagem ficou extre­mamente pesada. Resolveu então deixá-la em Cuiabá e, de repente, a imagem ficou leve novamente, como se quisesse ficar ali protegendo o povo cuiabano.

Bem em frente da catedral, nos primeiros degraus da calçada onde co­meça a escadaria que dá acesso à nave da igreja, um homem de calça jeans e camisa bege de manga comprida fez sinal a um táxi que passava. O mo­torista parou e o passageiro entrou no carro.

Bom dia - disse o motorista -, o senhor vai para onde?

Bom dia — respondeu o passageiro. — Por favor, me leve até a Secretaria da Cultura, preciso fazer uma pesquisa sobre Lourenço Marques.

Entendido. O senhor marcou alguma entrevista?

Sim. Com o doutor Oswaldo Cruz, às onze horas.

Parecendo satisfeito, o motorista rodeou a igreja e tomou a direção de San­to Antonio do Leverger, porto fluvial e aéreo a trinta quilômetros de Cuiabá.

Seis homens, com idade que variava entre trinta e cinqüenta anos, já esta­vam no barco de aluguel, para turistas, que iam pescar perto do rio São Louren­ço. O barco estava preparado com caniços e todos os apetrechos para pesca.

O táxi parou perto do barco e o passageiro desceu. O motorista estacio­nou num ponto de táxi e entregou as chaves para outro motorista que o es­tava aguardando. Em seguida entrou noutra lancha, onde mais dois homens olhavam ao redor como se estivessem esperando por algum perigo. Com o motorista, passaram a ser três os que assumiam essa postura de vigilância. Em seguida o barco saiu e a lancha começou discretamente a acompanhá-lo.

O sol foi se pondo como uma bola de fogo de onde saía todo o calor da tarde. Os passageiros estavam sentados em torno da mesa que ficava no centro do barco, mas uma observação mais atenta indicava que se tratava de grupo étnico heterogêneo. Havia alguns de cor mais clara e outros mais escuros, uns de origem européia e outros que pareciam ter nascido na Bolívia, ou Peru ou mesmo em Mato Grosso.

A região de Mato Grosso está hoje ocupada por pessoas de diversas origens. Além da população local, que se confunde um pouco com o tipo andino, chegaram gaúchos, paulistas, paranaenses e catarinenses, motiva­dos pelo avanço para o Oeste, iniciado na era Juscelino. Aparentemente o grupo escolheu a cidade de Cuiabá para não chamar atenção sobre as diferenças dos tipos que ali estavam.

Sentados à volta daquela mesa, conversando distraídos e com o maço de baralho no centro, davam a impressão de serem um grupo de pescadores em férias, enquanto o barco descia lentamente as águas do rio Cuiabá.

O passageiro que tinha chegado por último aparentava cinqüenta anos, ti­nha a cor mais clara, rosto arredondado, com as bochechas meio largas. Levan­tou-se para pegar no isopor uma latinha de refrigerante e voltou a sentar-se.

Conversavam animadamente e riam como se nada de importante os tivesse levado até ali. O passageiro que viera no táxi, e que parecia ser o chefe, pegou o maço de cartas, embaralhou-as com mestria e, enquanto as distribuía, disse:

Nossos planos não tiveram o êxito esperado. Eliminamos o cabeça, mas deixamos escapar uma pessoa perigosa, inteligente e que hoje coor­dena os planos do inimigo. Tudo havia sido meticulosamente planejado. Houve exercícios práticos com estudos de velocidade, rapidez, impacto no caminhão e a fuga do motorista. Infelizmente, não contávamos com a intuição de perigo e a rapidez dos seus reflexos. Ela precisa ser eliminada com urgência enquanto estão ainda abalados com a falta do seu chefe.

Esperou algum comentário, mas como o grupo continuasse em silên­cio, continuou com voz grave:

Há outro problema. E isso pode ter sido falha de nossos serviços de in­formações. Quando começamos a intensificar nossas ações sobre a Amazônia, a área militar passou a desconfiar. Formaram um grupo de pessoas experien­tes, que começou a receber e a transmitir informações sigilosas a respeito da Amazônia. Alguns dos nossos companheiros passaram a ser observados, assim como algumas de nossas iniciativas mereceram atenção que não esperávamos.

Pegou uma carta, ajeitou os óculos e continuou.

Quem organizou esse grupo para nos espionar foi o general-chefe da Abin. Apesar dos riscos, tivemos de eliminá-lo, porque ele vinha agenciando pessoas para substituir outras das quais já estávamos desconfiando. Um des­ses novos recrutas é um funcionário da Receita Federal, um certo Maurício. É preparado, inteligente e esportista. Tem uma fazenda na margem esquerda do rio Roosevelt, perto do córrego Panelas.

Deixou o silêncio tomar conta do ambiente e ficou olhando para as cartas que tinha na mão. Alguém perguntou:

Então esse general da Abin já tinha uma rede de espiões na Amazônia para tentar nos descobrir?

Sabíamos que os órgãos de informação das Forças Armadas tinham preo­cupações a respeito, mas parece que esse general não passava adiante as informa­ções que tinha. Parece que ele não confiava nem mesmo em seus superiores.

E esse sujeito da Receita é alguma ameaça?

Ele conhece bem a Amazônia. Não temos certeza ainda sobre o nível de informações que o general lhe passou. No entanto, não temos dúvida de que tudo o que o general sabia ele passou para a tal capitã. Os dois pre­cisam ser eliminados.

Deu um descanso, pegou outra carta do baralho, tomou água e conti­nuou falando como se estivesse prestando atenção no jogo:

Ali perto da fazenda desse Maurício havia uma agente do general. Uma freira que estava há anos na região. Como ela passou a ser um desses informantes do general, não sabemos. Mas ela fundou uma associação de seringueiros e passou a ser chamada para vários locais para atender doentes e com isso subia e descia aqueles rios, vendo e ouvindo.

Um dos participantes tomou um pouco de coca-cola, pegou uma car­ta e disse:

Muito ardiloso esse general. Mas você disse que havia uma freira. Não existe mais?

Houve um pequeno momento de tensão no ambiente. Mexer com frei­ra não era bom. O povo latino ou é religioso ou é supersticioso, e, quanto mais simples a população, mais delicado é esse assunto.

O chefe retomou o discurso com prudência.

Nós já sabíamos que o general estava formando essa rede de espiona­gem. Quando desconfiávamos de alguém, acontecia um acidente de carro ou mordida de cobra, porque não podemos correr riscos. No caso dessa irmã, achamos que podíamos tirar proveito da situação.

Quem observasse o grupo jogando baralho, podia notar que não havia coerência nas jogadas. Agora, por exemplo, alguém pegou as cartas da mesa sem ser a sua vez.

Há alguns meses a irmã Tereza foi substituída por pessoa de nossa confiança, uma antiga agente do Comitê de Segurança do Estado (KGB). Depois da queda do comunismo, o mercado de agentes ficou inflacionado e formamos equipes especializadas. Estamos proclamando a independência de um país e isso não acontece sem ações mais cirúrgicas. Num dia em que a freira foi atender um doente, ela foi substituída. Sua maneira de falar, seus hábitos, um curso de enfermagem e uma operação plástica cuidaram para que ninguém desconfiasse.

O chefe olhou para o grupo, tomou um pouco do guaraná que tinha pegado no isopor e continuou a falar com frieza:

Nossa agente passou a ter alguma cobertura. Sempre que alguém com um senso crítico melhor fosse passar por lá, como por exemplo esse Mau­rício, ela era informada e então saía para atender algum doente e evitava encontrar-se com pessoas que podiam estranhá-la.

Seria demonstração de fraqueza, e corria o risco de ser malvisto pela orga­nização, perguntar o que aconteceu com a freira. Mas o chefe compreendeu que eles estavam curiosos.

-A irmã Tereza tem resistido, mas já deu algumas informações úteis. É cedo ainda para eliminá-la.

Certa estranheza no seu tom de voz manteve o grupo em silêncio.

Recentemente soubemos que o general ia substituí-la. Não sabemos o que levou a promover essa substituição, mas o fato é que a nossa agente precisava sair de lá. Ela já fizera um bom trabalho e estava designada para outra missão.

O barco já estava bem afastado de Santo Antonio do Leverger e não havia risco de alguém desconfiar do grupo, que não precisava mais fingir que estava jogando. Alguns ainda tinham as cartas nas mãos, mas olhavam o chefe com atenção.

Mandamos quatro dos nossos melhores profissionais com uniforme da Polícia Militar para buscá-la, mas, quando lá chegaram, souberam que dois padres a tinham levado.

Dois padres? Naquele mato? - perguntou um deles.

De fato, coisas estranhas aconteceram. O agente que devia ter eli­minado esse Maurício deve ter também falhado na missão, porque ele e a capitã estiveram na casa da freira depois dos nossos agentes. Temos acom­panhado todos os passos dessa capitã e tínhamos notícia de que ela ia fazer um vôo num avião da FAB com prefixos de avião particular, mas não ima­ginávamos que fosse procurar esse doutor Maurício.

Todos estavam atentos àquele relato. Ultimamente vinham se reunindo em vários lugares da Amazônia, ora como um grupo de pescadores, ora em reuniões empresariais, sempre dissimulando. Havia grupos organizados para outros fins, como contrabando de armas, espionagem, contra-espionagem, "eliminação" de obstáculos, e até então tudo ia bem.

Agora, no entanto, começaram a surgir reações.

Receio que nossa estratégia tenha de sofrer alguma alteração. O apoio que recebemos de organizações do exterior foi tão grande que pen­so hoje que subestimamos o adversário. Será mesmo que o general era o "cabeça"? Por outro lado, a reação do governo foi muito estudada.

Olhou para as pastagens ainda secas que se estendiam além da margem do rio Cuiabá.

Já passei para o Comando-Geral que a reação do governo me preo­cupou. A morte do general-chefe da Abin não mereceu destaque maior do que o de um acidente de carro. Nossa idéia era que o governo reagisse com a acusação de que grupos estrangeiros interessados na Amazônia tinham matado o general, porque ele estava montando a estratégia de defesa da área. Isso não aconteceu, mas por que será que isso não aconteceu? Preci­samos de resposta.

Não havia motivo para pressa e falava com intervalos de tempo para que o grupo pensasse.

Os senhores poderão pensar que estamos entrando no campo da fan­tasia. Mas vejam isso.

Mostrou um pequeno desenho, pouco maior que uma carta de baralho, onde se via um cavaleiro montado num cavalo branco, empunhando a espada e vestido com capa branca na qual se via a cruz dos Cavaleiros da Ordem do Templo, os temidos templários da Idade Média. Embaixo do cavaleiro estava escrito Otam.

Ele esperou que o folheto passasse de mão em mão e o último o entre­gasse de volta.

O Comando-Geral nos enviou este cartão com instruções para con­firmar a existência de um grupo com essas características. Este desenho foi encontrado no gabinete do general, logo depois do atentado. Pode até ter sido feito por ele mesmo e estivesse articulando a criação de grupos de resistência à proclamação da independência.

Era uma preocupação nova, e um deles perguntou:

Seria possível admitir que criaram uma sociedade secreta e deram-lhe a sigla de Otam para demonstrar seu desagrado ao fato de a Otan, a Orga­nização do Atlântico Norte, formada pela Europa e pelos Estados Unidos, incluir em seus estatutos a hipótese de invasão da Amazônia?

O chefe respondeu:

Otam pode significar Ordem dos Templários da Amazônia. E mais um obstáculo que temos de identificar e eliminar. Se for o que pensamos, pode ser um grupo perigoso com autonomia para agir e isso explica alguns reveses que já sofremos.

Um deles observou:

Voltando ao assunto da freira, pelo que entendi, nós seqüestramos a verdadeira freira e a substituímos por uma agente nossa. No entanto, essa nossa agente foi levada, por engano, por dois padres que aparentemente pertencem a essa confraria. É isso?

O senhor entendeu bem. A situação ficou complicada. Quando substi­tuímos a irmã Tereza, esse doutor Maurício não tinha sido recrutado. Tivemos a confirmação disso há poucos dias e deduzimos que o general ia retirá-la. Procuramos agir com rapidez, mas não chegamos a tempo.

Pode-se concluir então que houve dupla falha na ação. A nossa agente está em mãos da Abin e o novo agente da Abin está vivo e agora mais alerta.

Diria que eles não sabem que a verdadeira irmã Tereza está em nosso poder. Por outro lado, a nossa agente está muito bem. Sabemos da sua lo­calização e será fácil resgatá-la. Talvez ela mesma encontre um jeito de se livrar, porque é habilidosa. Quanto a esse Maurício, já traçamos um pla­no e acredito que, em breve, ele e outros obstáculos serão eliminados.

O grupo ficou em silêncio, enquanto o barco foi descendo o rio Cuiabá até alcançar o rio São Lourenço, no qual entrou. Pouco depois chegaram a um pesqueiro. A casa de madeira, porém alta, de dois andares, sobre o barranco, oferecia uma bonita paisagem para quem subia ou descia o rio. A lancha vinha mais atrás e esperou que os tripulantes e passageiros descessem e subissem para a casa. Atracou meio afastada e dois tripulantes desceram bem armados e se postaram em lugares estratégicos. O terceiro ficou dentro dela.

 

Conta a história que o Capitólio de Roma foi salvo pelo barulho dos gansos quando o inimigo chegou durante a noite.

Os dois vultos se arrastavam com cuidado, na mata que rodeava o pes­queiro. Talvez não existissem gansos ao redor da casa, mas podia haver cães, e uma casa de pescaria normalmente tem frangos, galinhas, patos e até mesmo um chiqueiro com porcos. Nem só de peixe vive o pescador.

Usavam óculos para enxergar à noite e moviam-se ao estilo dos índios ame­ricanos, como descreveu Karl May nas aventuras de Old Shatterhand e o chefe apache Winnetou. Silenciosamente, sem pressa, tateando o terreno e movendo-se lentamente, paravam de vez em quando para estudar o lugar e localizar o alvo. Era a época da seca e havia muitos gravetos quebradiços. A quebra de um graveto seco faz ruído que chama a atenção de qualquer vigilante.

A cem metros da lancha, um dos tripulantes olhava ao redor com muita atenção. Mantinha a arma na cintura e se comunicava com o seu colega por meio de walk-talk. Evitava a claridade das lâmpadas externas, pois preferia ficar no escuro, onde era menos notado e ainda mantinha a vista acostumada com a escuridão. A lua minguante não conseguia se livrar das nuvens e as poucas estrelas estavam sem brilho para clarear.

Os dois vultos pararam. Avistaram o segundo vigilante, no outro lado da casa, embaixo de uma árvore, também afastado da claridade. Um de­les recuou com lentidão alguns metros, fez um pequeno desvio e foi-se arrastando em sua direção. Tinham de ficar afastados da casa, por causa de possíveis animais de guarda e porque o reflexo da luz em suas lentes de visão noturna poderia denunciá-los.

Dentro da casa havia uma mesa posta para o jantar. Pouco além do pomar morava o caseiro com sua mulher, e eles já tinham preparado as aco­modações e o jantar, com frango, peixe, ovos fritos, como sempre fizeram para os pescadores que alugavam a casa. Havia cerveja e outras bebidas, mas nenhum deles quis outra coisa se não refrigerantes e água gelada. Ain­da fazia calor e o vento estava calmo.

Já estavam com roupas mais leves e logo jantaram. O caseiro e a mulher acabaram de arrumar a casa, lavando os pratos e deixando a cozinha limpa. A casa estava toda em ordem e o caseiro disse que ia preparar as varas de pescar para saírem à noite, mas aquele que parecia ser o chefe dispensou-o.

Não há necessidade. Hoje todos nós estamos cansados. Vamos jogar um pouco de baralho e logo vamos dormir. Vocês podem ir dormir também, porque sairemos amanhã cedo.

Não era comum as pessoas chegarem no primeiro dia e o dispensarem. Normalmente ficam até tarde, tocando violão, cantando, comendo e be­bendo. Mas ele também estava cansado e preferiu ir dormir sem insistir.

Os senhores não precisam de mais nada? Se precisarem de nós, é só chamar. Moramos logo depois do pomar.

Está tudo bem. Se precisar, a gente chama. Boa-noite e obrigado.

Boa-noite, doutor.

O chefe esperou que ele saísse e observou quando ele atravessou o pomar em direção à sua casa. Depois dirigiu-se aos outros e com voz firme disse:

Na verdade, nossas preocupações não são apenas aquelas que já dis­cutimos na vinda. Temos outro assunto que considero mais sério e temos de resolvê-lo hoje.

Os outros estranharam essa comunicação feita assim de maneira abrup­ta e continuaram em seus lugares, aguardando a informação. O chefe, en­tão, olhando firme para eles, declarou:

Existe um traidor entre nós.

Estavam preparados para muita coisa. Mas a palavra "traição" caiu como uma bomba. Olharam perplexos para o chefe.

Como os senhores sabem, decisões como o acidente contra o general e a capitã, a eliminação desse Maurício e o seqüestro da irmã Tereza, sempre são tomadas em um número de três pessoas, ou seja, eu e mais dois. No caso do general e da capitã, não houve problema. Entretanto, no caso da irmã e do doutor Maurício, essa tal de Confraria foi informada por alguém.

Houve um movimento estranho e perturbador no meio do grupo. A trai­ção era punida com a morte no momento da acusação e, com certeza, alguém seria sentenciado ali, naquele instante. Para aquele grupo não funcionava o princípio da justiça humana pelo qual era preferível um culpado solto a um inocente condenado, porque não podiam correr o risco de um culpado solto.

Adianto o seguinte. No caso da irmã Tereza, eu, o agente Loro e o agente Piauí, tomamos a decisão e os outros não sabiam dela. No caso do doutor Maurício, os agentes Esquilo e Jaú, também sabiam. Presumo que bastava um deles avisar o inimigo para ele proteger os dois ao mesmo tempo. Sem dúvida que, sabendo eles que a irmã Tereza ou o doutor Maurício seria eliminado, imediatamente o inimigo protegeria esses seus dois membros.

E antes que algum deles fizesse alguma conjetura, ele acrescentou:

Portanto, existem quatro pessoas suspeitas aqui, já que eu não co­meti essa traição.

Todos continuaram em silêncio. Havia dois membros que participaram da decisão da morte do general e que, portanto, estavam livres de suspeitas. Quatro pessoas suspeitas, em um grupo de seis, era muito. O chefe não ia fazer uma acusação dessas se não tivesse informações completas.

O vulto que se afastara viu o caseiro atravessar o pomar e dirigir-se para a sua casa chamando os cachorros, que o seguiram latindo alegres, pois sabiam que quando chegavam pescadores sempre sobrava algum resto de carne ou pedaços de frango. Os cães estavam distraídos e faziam barulho. Não podia perder a oportunidade, e o vulto entrou no meio do pomar, aproveitando a escuridão. As árvores frutíferas lhe davam proteção e ele notou que o vigia ficou desatento a esse setor, enganado pelo barulho que o caseiro e os cães estavam fazendo.

Estava a uns trinta metros do vigia. Colada ao seu uniforme de campanha estava uma carabina fina, que ele pegou cuidadosamente porque já estava armada e preparada para o tiro. O vigia recebeu a bala na nuca e ficou ainda um pouco encostado na árvore. Depois começou a descer vagarosamente, enquanto o walk-talk o chamava.

O vulto que ficara para trás viu quando o caseiro saiu e entrou no pomar. Não teve dúvidas de que o seu companheiro ia aproveitar aquele momento e também pegou a sua carabina. Apontou e esperou. Quando viu que o vigia do outro lado começava a escorregar pelo tronco da árvore, também disparou.

Virou então a carabina para a lancha e aguardou. O terceiro vigia co­meçou a estranhar que seus colegas não respondiam aos seus chamados e saiu de dentro da lancha. Assim que apareceu, uma bala o atingiu e ele escorregou de volta para a cabine.

O vulto encostou a carabina no tronco de uma árvore e pegou do bolso uma pequena caixa que emitia sinais luminosos, como um pisca-pisca.

Dentro da casa, a sessão continuava.

O chefe então fez uma revelação:

Assim que desconfiamos de que essa organização era um tipo de polícia paralela que poderia prejudicar os nossos interesses na Amazônia, procuramos saber quem a estava financiando e que organização era essa. A descoberta foi surpreendente. Acreditem ou não, parece que existe mesmo uma confraria que tem disciplina militar e organização evangélica. Há um mestre, que estaria na condição de Cristo ou do papa, os doze apóstolos e os discípulos. Essa ordem tem semelhança com a Ordem dos Templários, na Idade Média, e se julga no direito de roubar e matar para proteger o seu Graal, que é a Amazônia.

Mas quem sustenta essa gente? - perguntou um deles, embora desnecessariamente, porque as respostas já vinham sendo dadas, mesmo sem perguntas.

Eles se alimentam do tráfico de drogas. Os senhores vão me pergun­tar: são traficantes? Não, não são.

Notou a curiosidade do grupo.

E isso aumenta os riscos para os nossos planos. Não se sabe como, mas eles são informados do lugar onde é feita a entrega da droga e apa­recem no momento do pagamento. Então chegam de surpresa, prendem e amarram os traficantes, queimam a droga e avisam a polícia. Com esse dinheiro, compram armas, veículos, aviões, compram pessoas.

Deu tempo para os demais pensarem e, como ninguém perguntou nada, continuou:

Poderíamos denunciar essa organização e tentar pôr o governo contra ela. Não seria fácil. O assunto foi discutido e chegamos à conclusão de que os Estados Unidos, a Europa e o governo brasileiro, enfim, todos aqueles órgãos que combatem o tráfico de droga apoiariam a Confraria. Com isso, ela se fortaleceria e os nossos planos poderiam ser desvendados. E um risco. Preci­samos aperfeiçoar as nossas iniciativas e destruir os cabeças, com urgência.

Fez uma pequena pausa, tomou um pouco de água e continuou:

Essa é a questão. Precisamos aperfeiçoar as nossas iniciativas. Subesti­mamos o inimigo. Uma organização militar não deixa nunca de pensar na informação, e a informação militar se busca com a espionagem.

E mais sério:

Infelizmente chegamos à conclusão de que essa Confraria tem um espião que atua entre nós e está sentado nesta mesa.

Todos se mexeram inquietos diante da situação inesperada e não escon­deram a ansiedade:

Traidor, aqui dentro do grupo?

O chefe ficou um instante em silêncio, como se fosse dar a sentença final e continuou a explicação:

Há alguns meses a Confraria teve conhecimento de uma grande tran­sação e preparou uma armadilha para o momento da entrega da mercadoria. Ficaram com o dinheiro e destruíram a carga. Mas prenderam também vários integrantes que entregaram à polícia da Colômbia. Só não entregaram o chefe desse grupo de traficantes que era pessoa importante no tráfico de seu país. Não tínhamos explicação dos motivos pelos quais ele foi solto e voltou às suas atividades, enquanto os demais foram presos. Acontece que tínhamos suspei­tas de vazamento de informações entre nós e começamos a fazer ilações. Vie­mos a descobrir que esse traficante é o irmão mais novo de um dos nossos.

E sem dar tempo para novas manifestações:

O agente Esquilo é colombiano e irmão do traficante solto. Sem dú­vida alguma, a traição foi o preço da liberdade do irmão.

Nem bem acabou de dizer isso e os outros apontaram suas armas para o colombiano.

O chefe disse friamente:

A sentença para a traição sempre foi a pena de morte, e o julgamento já está feito. A execução será fora da casa e o corpo jogado no rio.

Naquele momento o vulto apertou o botão da parte inferior da pequena caixa que emitia sinais luminosos e no mesmo instante uma pequena ex­plosão rompeu o zíper da bolsa, que o colombiano havia deixado perto da mesa, e gases começaram a sair. O gás espalhou-se imediatamente e eles não tiveram tempo de se proteger. Em poucos segundos estavam dormindo.

Os cachorros começaram a latir e o caseiro veio correndo pensando que o botijão de gás havia explodido.

Os dois vultos puseram máscaras, entraram na casa, revistaram malas e roupas, pegaram tudo o que puderam, inclusive documentos, e saíram car­regando o colombiano, chamado de Esquilo. O caseiro parou assustado e a mulher começou a chorar desesperada achando que ia morrer. Um dos vultos disse apenas:

Vai haver outra explosão e essa casa vai queimar. Mas não haverá pe­rigo para vocês, se ficarem longe. Agora, saiam correndo daqui.

Tiraram o vigilante que estava caído na cabine da lancha. A chave es­tava no contato. Deram partida e afastaram-se para longe do pesqueiro. Pouco depois a casa explodiu. O fogo embelezou as águas escuras do rio e, se alguém estivesse vendo aquilo, podia pensar que o sol se pôs duas vezes naquela tarde.

 

 

                            REPÚBLICA DA AMAZÔNIA

 

"Se os Estados Unidos querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos os arsenais dos Estados Unidos. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas ar­mas, provocando uma destruição milhares de ve­zes mais do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.

Como humanista, aceito defender a interna­cionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa."

         Cristovam Buarque

         Ex-reitor da Universidade de Brasília,

         Governador do Distrito Federal no período 1995-98

         E Ministro da Educação em 2003

 

O patrulheiro Rogério estava deitado em sua cama no alojamento do Quartel do Comando-Geral da Polícia Militar, tentando ler o The murder book, de Jonathan Kellerman, que o professor de inglês havia recomenda­do. Seria uma boa maneira de ter vocabulário atualizado, disse o professor. "Realmente", pensou Rogério, que a todo momento consultava o dicioná­rio: "Por que tanta palavra diferente?"

"Afinal, para que tanta perda de tempo estudando línguas? O tempo que o cérebro humano já perdeu e ainda perde só para estudar latim, fran­cês, grego, árabe, alemão e tantas outras, se fosse empregado para pesquisar a cura das doenças, acho que muitas delas já não existiriam mais."

Anotava o significado da palavra nos espaços laterais das páginas, mas a cada consulta punha o lápis na boca e ficava pensativo. Não conseguia se concentrar no inglês e não via mais por que se preocupar com essa língua que não vai mais reprová-lo nos exames do Itamaraty. Era demais. Não conseguira entrar para o Itamaraty porque fora reprovado em inglês e agora o inglês não é matéria eliminatória.

Pensava na capitã. Agora sabia o nome dela. Era Fernanda. Como foi bom ter ido ao Parque da Cidade naquele dia! Era uma manhã clara com o sol subindo num fundo azul. Fez alongamento durante uns vinte minu­tos, começou a andar, acelerou e em seguida a corridinha de sempre. Era metódico no esporte. A corrida era importante porque muitas vezes tinha de sair da viatura e correr atrás dos trombadinhas ou outros assaltantes. E como esses bandidos sabiam correr!

Aquele coroa também corria bem. Vinha mantendo a média de seis minutos por quilômetro e Rogério queria ver se ali, quando começava a subida para completar a volta dos dez quilômetros, ele ia manter o ritmo.

"Coisa estranha", pensou. "Logo na subida ele acelera? Não vou entrar nessa, prefiro a manutenção rotineira."

Um sujeito mulato, forte, também aumentou o ritmo. Rogério lem­brou então que aquele moreno vinha mantendo distância de uns vinte metros do outro. Praticamente os três mantinham o mesmo ritmo, mas agora eles estavam se distanciando.

"Será que o moreno é algum segurança?"

O coroa aumentou a velocidade e o moreno também. Instintivamente passou a acompanhá-los. Faltando quinhentos metros para o final, o coroa foi maneirando e, quando completou os dez, começou a andar. Andou alguns minutos na pista e depois voltou para o local de alongamento, onde ficam as barracas de coco gelado, água e os médicos de apoio. O moreno tentou disfarçar, mas acompanhou o sujeito da frente na caminhada.

Rogério também andou, mas em outra direção para não dar a perceber que os estava observando. O coroa fez uns quinze minutos de alongamento e depois foi até a barraquinha e pediu água de coco. O moreno continuou se alongando, mas observando discretamente o outro.

"Bem", pensou Rogério, "água de coco é para todo mundo. Vamos ver quem é esse cara."

Aproximou-se da barraquinha e pediu "coco gelado". O coroa tinha cara de burocrata, mas parecia muito bem fisicamente para homem de gabinete. Não era de Brasília. Esperou e atentou no sotaque quando ele pediu outro coco e pagou a conta.

"É paulista", concluiu.

O moreno esperou um pouco e começou a segui-lo. Rogério foi até a sua motocicleta, com calma, para ganhar tempo, e deu a volta na quadra para encontrá-los de frente e não despertar atenção.

Ao passarem pela praça das Fontes, viu que o moreno mudou de ca­minho e outro sujeito que estava ali parado seguiu o coroa até o hotel. O moreno não foi embora e ficou em frente de um edifício, fingindo que continuava a se alongar.

O do chafariz ficou em frente do hotel.

"Tem tudo para ser seqüestro", pensou.

Deu a volta para ficar em posição de ataque, imaginando que o buro­crata ia precisar de ajuda. Estava com a camiseta molhada, fria, mas ficou em cima da moto, pronto para agir. A umidade estava incomodando, mas ele não queria nem mesmo espirrar. Apesar da distância, o espirro poderia ser ouvido e ele ia perder o elemento surpresa.

Daí meia hora viu chegar o Gol, com uma motorista. Anotou o número da chapa. "Tem tudo para ser chapa fria." Uma mulher alta, bem compos­ta, morena, bonita, dessas que não se acha fácil.

"Como eu imaginava. Dá para perceber. A mulher atrai o coroa e os dois entram depois no carro. Mas essa vai ser fácil. Dou conta sozinho."

Viu o coroa entrar no carro, que saiu em direção à estrada para Mi­nas Gerais.

"Estrada de Unaí", foi analisando os movimentos do carro, mantendo discreta distância com a sua moto. "Estranho. Ali o trânsito é grande, mas é rápido. E os dois camaradas, onde foram?"

Percebeu que outro carro estava seguindo a motorista e reconheceu os dois que estavam faltando. Ficou alerta.

"Certamente ela vai diminuir a velocidade em algum ponto, ou vai alegar que o pneu furou e aí os outros chegam. Bem, o jeito é seguir essa danada."

"Que coisa triste", pensou melancólico. "Já não existem assim tantas mulheres bonitas e as que existem fazem uma coisa dessas!"

A perseguição continuou e a mulher desviou-se do caminho original. "Esse seqüestro está ficando sofisticado. Será que não era melhor pedir aju­da?" O carro deu algumas voltas e tomou o rumo do setor militar. O outro carro continuou a segui-la e ele viu quando chegaram ao setor militar e entraram no portão da Abin.

Ficou surpreso, pois estava preparado para impedir um seqüestro e descobre que o próprio Exército estava dando segurança a um civil que corria no parque.

"Ainda bem", pensou alegre. "Mulher bonita e não é assaltante. Será que vou vê-la de novo?"

A partir desse dia, continuou a fazer a sua ronda de forma a passar em frente do setor militar, procurando coincidir com a saída da capitã. Ela ficava mais bonita de uniforme. Descobriu onde morava, conseguiu o nú­mero do telefone, mas não teve coragem de ligar ou se apresentar.

"Se ao menos tivesse passado nas provas do Itamaraty. Mas o que sou eu hoje? Um simples patrulheiro. Aí não vai dar, não."

Um dia a sorte mudou. Fizera bem em segui-la na noite do atentado. Agora ele se sentia orgulhoso e feliz. Que destino! Foi preciso morrer o general para que ele pudesse vê-la de perto e pegá-la nos braços.

Oh! Grande herói! Você está estudando ou sonhando? - gritou o ca­pitão que comandava o seu grupo.

Ele deu uma boa risada, abriu o dicionário e anotou na altura da expres­são "craving a drink" - "necessitando de um drinque". E como se com essa expressão já tivesse apreendido o bastante, deixou o inglês de lado. Ainda tinha tempo suficiente e foi para o computador.

"Esse pessoal pensa que pode me enganar", pensou ele. "Aquele coronel quis me afastar muito depressa de lá. O que será que está havendo? Bem, nada tenho a ver com isso, já fui promovido, recebi medalhas, sou hoje orgulho para a corporação, mas, pera aí, por que não noticiaram direito que houve um atentado?"

Aquelas indagações o perturbavam.

"E por que o tal coronel disse que eu também podia correr perigo?"

O coronel era subchefe da Agência Brasileira de Informações e ficou no lugar do general assassinado. Os jornais só deram uma notícia curta sobre o acidente que matou um general e nem falaram que ele era o chefe da Abin.

"Vou bisbilhotar um pouco", continuou falando para si próprio. "Afi­nal, sou um dos maiores especialistas em informática da PM e peguei vá­rios hackers. Descobri transferências irregulares de contas e, em todas as investigações que envolvem computação, o pessoal me chama. Agora vou investigar por minha própria conta. Vamos ver no que dá."

Precisava de outro computador. Não podia fazer bisbilhotices ali no quartel. Seria logo identificado. Se o assunto era perigoso, nada como to­mar a devida cautela. Uma tática é usar mais de um computador.

"Já sei. A biblioteca da Universidade. Fiz vários trabalhos lá para o ves­tibular e pode parecer que estou fazendo a mesma coisa. Vamos lá."

Pegou o seu carrinho e dirigiu-se ao campus da Universidade de Brasília.

Boa tarde, dona Mariana, como vai a senhora? Olha, trouxe aqui mais um gorro da PM para o seu garoto. Mas fale para ele fazer bonito, não pode desonrar esse gorro não!

Ah! Que ótimo! Ele vai gostar muito. Já está no time principal da escola e diz que ainda vai ser sargento da PM como o senhor.

Sabia agradar as pessoas e sempre que vinha à biblioteca trazia um cha­veiro, um gorro, uma camiseta, para o filho da secretária, que estudava no segundo colegial e gostava de esportes.

Posso usar um dos computadores, se achar algum desocupado?

Claro! Fico até contente por você não ter desistido dos estudos. É assim mesmo! A gente tenta uma vez, não passa, mas precisa insistir. Ah!

Fiquei muito feliz com a sua promoção e as medalhas de bravura que re­cebeu. Quando contei em casa que conhecia o sargento Rogério e que ele costumava estudar na biblioteca, parecia que era eu a heroína. Meus filhos ficaram acesos. Mas agora você é tenente, meu Deus, eu não consigo deixar de chamá-lo de sargento. Me desculpe.

Rogério ficou um pouco encabulado, mas não quis dizer a ela que aque­las medalhas e a promoção é que o estavam levando ali de volta.

A Universidade de Brasília tinha passado por melhorias e uma dessas novidades foi a compra de computadores novos. Havia um prédio, que era o Instituto de Tecnologia, muito comprido, que os estudantes apelidaram de Minhocão. Computadores ficavam logo na entrada e era de uso fran­queada a qualquer pessoa. Mas ele preferiu lugar mais isolado.

Não sabia por onde começar, mas certamente era pelos sites do gover­no. Os órgãos militares, segurança, gabinetes e principalmente o gabine­te desse coronel.

Foi selecionando sites. Não tinha pressa e não precisava descobrir tudo no mesmo dia. Era metódico e fez um levantamento de todos os departa­mentos das Forças Armadas, incluindo Exército, Marinha e Aeronáutica. Como era previsível, esses sites traziam a história, atos de heroísmo, a com­posição, as descrições, mas nada revelador.

Fez novas pesquisas e procurou o endereço, as datas, os locais de nascimento, ora colocando as cidades, ora o nome do Estado, ora os pon­tos cardeais, as regiões geográficas, e foi aumentando a largueza de dados para a criação de um decodificador. Descobriu mais coisas, mas parecia que não era ainda o que buscava.

Não imaginava que havia tanta coisa sobre a Amazônia na internet. Coisas até mesmo esquisitas.

Entrou na Abin, no gabinete da Casa Militar, da Casa Civil, Estado-Maior do Exército, Escola Superior de Guerra - enfim, depois de alguns dias já estava desanimado. Estudou a vida do general assassinado, do seu substituto, da capitã, procurou endereços na web de tudo o que lhe vinha à mente, mas não encontrava nenhuma indicação.

"Preciso de alguma pista. Ora, também, não estou agindo com inteli­gência. É claro que nesses sites não vou encontrar nada. Afinal, se está aí, é porque qualquer um pode ver. Preciso descobrir o que não pode ser visto. Mas como fazer isso? A única forma é descobrir os sites ocultos. Mas não vamos no ensaio e erro. Preciso traçar um plano objetivo, mesmo que dê trabalho, mas não vou desistir.

Voltou para o quartel. Já era hora da sua ronda. Pegou a viatura e saiu. Foi uma noite calma, sem problemas e ele continuou pensando.

"Será que vai ter alguma finalidade criar alternativas como, por exemplo, colocar o nome da instituição seguido das iniciais dos nomes dos titulares?"

No dia seguinte voltou à biblioteca e fez um levantamento de todas as pessoas que trabalhavam nos órgãos e gabinetes que ele já vinha pes­quisando. Presidência, Congresso Nacional, gabinetes militares. Eram muitas as repartições que poderiam ter as informações que ele estava buscando. Conseguiu descobrir alguns sites particulares, mas nada muito indicativo. Demorou, mas ele tinha agora muitos dados com os quais podia começar a trabalhar.

"Só falta colocar tudo isso dentro de um programinha, fazer a curva de repetição' para saber a densidade dos assuntos e depois um decodificador. Não é fácil, mas com jeito sai."

"Estranho. Que linguagem esquisita. Parece texto codificado. Códi­go? Será?"

Lembrou-se de Sessa, o ministro indiano que teria inventado o jogo de xadrez. Segundo a lenda, o rei ficou tão impressionado que quis dar-lhe um prêmio. O ministro então pediu ao rei uma quantidade de grãos de trigo que correspondesse à soma de um grão para a primeira casa do tabu­leiro, dois para a segunda, quatro para a terceira, dezesseis para a quarta e assim por diante.

O rei ordenou que ele fosse pago, mas acabou descobrindo que era im­possível o pagamento, pois dava um total de 18.446.744.073.709.551.615 grãos. Não havia colheita no reino para aquilo e nem depósito no mundo conhecido para tanta fartura. O tabuleiro de xadrez tem 64 casas, o que elevaria a quantidade de grãos à potência de 2, menos um, da primeira casa, que já está incluído na elevação das potências.

"Como expressar um número desses? Seria dezoito quintilhões, quatro­centos e quarenta e seis quatrilhões, setecentos e quarenta e quatro trilhões, setenta e três bilhões, setecentos e nove milhões, quinhentos e cinqüenta e um mil e seiscentos e quinze?"

"Será que existem tantos grãos assim nesse código? Bom, na Índia o xadrez era chamado de Chaturanga. Podia ser chaturice. Ficava melhor!"

Já armazenara material suficiente. Havia de tudo: cartinhas de amor, desenhos de crianças, negócios escusos, e podia até mesmo começar a fazer investigações policiais a respeito de certos assuntos, mas não era isso que estava procurando e não podia perder tempo.

Esquecera o inglês e já se desencantara com o Itamaraty. Um curso de Direito poderia ser-lhe útil para vários concursos públicos e mesmo para a carreira dentro da PM, se quisesse continuar lá.

Lembrou-se da capita. Achou que era hora de refrescar um pouco a ca­beça e, naquela noite, ia dar umas voltas de carro por perto do setor militar, que era praticamente ao lado do seu quartel.

"Será que teria coragem de enfrentá-la? Por que conquistar uma mulher é mais difícil do que enfrentar bandidos?"

Hoje era seu dia de folga. Tinha um carro Gol, com uma chapa fria. Sentia-se mais seguro na clandestinidade. Já fazia alguns dias que não via a capitã. Estava entardecendo e ele deu algumas voltas para se ajustar ao tempo em que ela podia estar saindo. Não queria esperar o entardecer, pois nas duas últimas vezes não conseguira vê-la. Será que saíra mais cedo? Tinha viajado? Não trabalhava mais lá?

Assim, então, ficou dando voltas perto do setor militar. Viu saírem al­guns carros e procurou ficar mais perto. Mais ou menos às sete horas o Versalhes preto chapa BRM-7070 mostrou o focinho na portaria.

Havia alguém mais no carro. Procurou localizar-se melhor para iden­tificar quem era e teve a leve impressão de que já conhecia aquela pessoa. Não estava fardado. Era um civil.

"Já vi esse cara antes", disse para si mesmo, sentindo uma pontada de ciúme. "Já vi esse mesmo cara sair daqui, às vezes sozinho e uma vez com o general. É aquele do parque. Agora sai com ela. Não estou gostando nada. É melhor desistir, afinal, ela já está acompanhada e não quero ban­car o intruso."

O Versalhes não tomou nenhum dos caminhos que ele conhecia, desde quando começou a segui-la.

"Será que ele a convidou para jantar? Isso não é justo. Salvei a sua vida justamente porque costumava vir aqui só para vê-la. Não é justo. E claro que ela foi lá me cumprimentar quando recebi a medalha do Exército e ainda me agradeceu. Como estava bonita!... Bom, pode não ser o que estou pensando, mas de qualquer forma hoje não vai ser o dia de eu poder conversar com ela."

Estava assim pensando, mas automaticamente continuou seguindo o Versalhes preto. O carro entrou no prédio onde ela morava e aquele aperto no coração aumentou. Ficou olhando o edifício residencial reservado para membros das Forças Armadas e esperando acender a luz no terceiro andar.

Um carro sai da garagem. E um Honda Civic cinza e a capitã está diri­gindo. O gajo continua do lado.

"Coisa estranha! Aí tem algo. Trocaram de carro. É meio indiscreto, mas que se dane o mundo! Agora vou tirar todas as minhas dúvidas e quem sabe tiro essa mulher da cabeça para sempre."

E, procurando se convencer de que estava certo, seguiu o Honda.

Não é fácil seguir alguém em Brasília sem ser notado. Quando os veículos alcançam as avenidas principais, eles ganham velocidade e só diminuem nos pontos de controle do radar. No entanto, e essa é a maior dificuldade, quan­do um veículo tem chapa dos serviços de segurança ou estão em serviços especiais como as ambulâncias e os corpos de bombeiros, eles passam com velocidade até mesmo nesses locais. A multa, obviamente, será anulada.

Mas se um veículo de segurança, com chapa fria, como pode ser o caso do Honda Civic cinza, passa num lugar desses em velocidade e acontece de um veículo que o esteja seguindo também passar em velocidade, é possível que o pessoal do carro que está sendo seguido desconfie.

Rogério preferiu reduzir a velocidade do seu carro em dois lugares onde havia radar, esforçando-se para não perder de vista o Honda Civic cinza.

"Essa besta tinha de entrar na minha frente agora", quase gritou, quan­do um táxi o ultrapassou logo após o radar.

Também não é fácil seguir um veículo quando ele sai das avenidas de velo­cidade e ganha os setores comerciais ou residenciais. Aí as esquinas são tantas, que o carro da frente também pode perceber que está sendo seguido. Mas o trânsito era de fim de tarde e o número de carros nas ruas era grande.

A capitã tomou o setor residencial sul. O táxi ainda continuava na sua frente. Não valia a pena ultrapassá-lo porque assim ele ficava menos expos­to. As distâncias em Brasília são longas e o táxi continuou na mesma rota, entre ele e o Honda Civic, facilitando a sua perseguição.

Numa determinada esquina o táxi tomou outra rua e saiu da frente. Rogé­rio manteve a luz baixa, para não perturbar a capitã e esta não olhar para ele.

"Pena que o táxi foi embora. Táxi não chama tanto a atenção", ia di­zendo, mas de repente concluiu "a não ser que, depois de dar a volta na quadra, ele reapareça sem passageiro", foi o que aprendera.

Já tinha feito muitas rondas, diurnas e noturnas, naquele setor, e sabia que, se a capitã tomasse certa rua, ela não teria alternativas. Fez uma mano­bra e desviou-se para outra rua onde acelerou o mais que pôde o seu "golzinho" e saiu na frente do Honda Civic, como se fosse um veículo qualquer.

"Estranho! Parece que esse táxi pensou o mesmo que eu." De fato, ele ti­nha feito a manobra para se adiantar ao Honda Civic e evitar suspeitas. Mas lá estava também o táxi, que saíra antes dele e estava agora estacionado.

O Honda parou em frente a uma casa térrea, avarandada, perto de uma praça escura, cheia de árvores. Os dois desceram e se dirigiram para a casa.

O táxi começou a se movimentar lentamente e parou ao lado da pra­ça. "Sem dúvida, aí tem coisa." A iluminação da rua não era boa e isso ajudava. O caminhão parado pouco adiante podia servir de esconderijo. Encostou o seu golzinho discretamente.

Aproveitou a escuridão dos muros das casas e esgueirou-se para chegar até a praça, tomando cuidado para não ser visto.

Um casal de namorados aproveitava o escurinho. "Era só o que faltava. Se eles me virem, podem cumprimentar ou falar alguma coisa e o motoris­ta do táxi vai olhar e ver que tem mais gente. É melhor ficar por aqui."

Logo que tocaram a campainha da casa, uma mulher com uniforme de empregada doméstica abriu a porta e convidou-os a entrar. Eles entraram e ele pôde ver, pela janela de vidro, que se sentaram em cadeiras que estavam em volta de uma mesa com aparelho de telefone. A empregada perguntou alguma coisa e, pelo movimento da cabeça, dava para entender que não aceitaram.

"Deve ter perguntado se querem água, café, coisa assim."

Logo em seguida a mulher saiu, como se estivesse com pressa, e depois começou a correr. Rogério intuiu o perigo.

"Diabos, o que será agora?" Ficou alerta. "A empregada saiu correndo, por quê?"

Já estava desconfiado do táxi e viu o motorista pegar o microfone do rádio que estava no painel do carro. Falava olhando para os lados do casal de namorados embaixo da árvore.

Estava escuro, mas Rogério viu o rapaz pegar alguma coisa na cintura e levou à boca para falar. Era um walk-talk.

"Comunicação por rádio. Estão falando um para o outro, mas o quê? Está passando instruções, mas para quê? O que será que pretendem?"

O casal começou também a se afastar em passos rápidos. Rogério pro­curou se aproximar para enxergar melhor. O rapaz pegou do bolso alguma coisa que parecia um celular.

"Um celular? Mas o outro está com rádio, eles já se falaram. Então, será?!... Um celular serve para muitas coisas, até mesmo para falar, mas..."

Não havia tempo para ter certeza nas conclusões. Esse tipo de certeza normalmente se tem quando já é tarde. Rogério anteviu o que ia acontecer. "Esse sujeito não pode fazer a discagem."

Pegou a arma e saiu correndo em direção ao casal gritando o mais alto que podia:

Polícia! Jogue o celular no chão. Não disque esse telefone. É a polícia. Jogue o celular!

O rapaz não obedeceu às ordens e começou a discar rapidamente. Ro­gério atirou e atingiu o rapaz que deixou cair o aparelho, enquanto a moça saía correndo. O motorista saiu do táxi e atirou contra ele. Rogério correu em direção à casa, gritando o mais alto que podia:

Não atendam o telefone! E uma armadilha. A casa vai explodir.

Já estava na porta da entrada quando levou um tiro. Pôde ainda atirar no motorista que voltou para o táxi, acelerou e foi atrás dos seus parceiros. O perigo ainda continuava, mas uma bala o havia acertado e quando a capitã abriu a porta com o revólver na mão, apontando para todos os lados, encon­trou Rogério caído. Ele fez um esforço e falou:

O telefone tem uma bomba que pode ser acionada por celular. Preci­samos sair daqui urgente - disse ele.

E já desmaiando:

Mas, capitã, como a senhora dá trabalho...

Mas o que esse homem está fazendo aqui? — perguntou assustada.

Não era hora para perguntas sem resposta. Tivesse ou não razão o pa­trulheiro, o fato é que houve tiros e ele estava ferido.

Pegaram-no com cuidado e se afastaram da casa uns trinta metros. Mau­rício voltou correndo e conseguiu tirar o carro da capitã. Afastaram-se o mais rápido que puderam e uns minutos depois ouviu-se a explosão.

Outro barulho desses e acho que vou enlouquecer. Estou me tornan­do uma pessoa explosiva — tentou ela exercitar seu raro humor.

Langley, Estado da Virgínia, perto de Washington, o mais impressio­nante complexo de informações que o mundo moderno já conheceu.

Os serviços secretos americanos não se mostraram muito eficientes du­rante as duas grandes guerras mundiais e foi criado então, em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, o Office of Strategic Services, abolido em 1945, sendo suas atividades assumidas pelo Pentágono.

Em 1947, Harry Truman criou a CIA, sob protestos do Federal Bureau of Investigation (FBI) e dos serviços militares. Seu verdadeiro orçamento é desconhecido, mas calcula-se que gira em torno de trinta bilhões de dólares. Consta que seu subsolo seja imensa área de trabalho com equipamentos so­fisticados de escuta e investigações.

No ano de 1952, foi criada a National Security Agency (NSA) para fazer escuta e decifração de códigos, desde que o telégrafo e o telefone passaram a ser empregados nos serviços de comunicação. A agência está hoje subordinada ao Petágono e, com o surgimento dos satélites e meios eletrônicos de comunicação, a capacidade de espionagem da NSA ficou ilimitada. A NSA e a CIA operam em conjunto e contam com o apoio de sistemas semelhantes da Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e Japão.

Só na sua sede, em Fort Meade, perto de Washington, no Estado de Maryland, consta trabalharem mais de trinta mil funcionários especiali­zados em transmissores, satélites, antenas de alta densidade e aparelhos sofisticados que talvez nem sejam do conhecimento do resto do mundo.

A importância da NSA é a sua capacidade de registrar uma palavra em qualquer canto do mundo e, se essa palavra"estiver entre as cem mil palavras do Dicionário Echelon, ela será imediatamente levada para os computadores da NSA, que a registram para análise por uma equipe de especialistas. O projeto Echelon pode registrar informações trans­mitidas por telefone, e-mail, fax, telex, não importando se o sistema utilizado é satélite, microondas, celular ou fibra óptica. Tecnologias so­fisticadas fazem o reconhecimento de voz e até são capazes de imitá-la com perfeição.

Informações militares, econômicas, políticas, comerciais, científicas e mesmo particulares são regularmente registradas pela NSA, que trabalha em conjunto com a CIA e conta com o apoio da Inglaterra.

Qualquer telefonema, fax, acesso à internet ou outro equipamento de comunicação que for acionado em qualquer ponto do mundo pode estar anotado pela NSA.

A pesquisa de todas as palavras que indiquem alguma preocupação com segurança, tais como bomba, terrorismo, nome do presidente dos Estados Unidos ou outra personalidade de importância no mundo imediatamente determinará uma investigação.

Duas pessoas encontravam-se na sala do embaixador dos Estados Unidos, em Brasília. Uma delas é um agente especial da CIA, quarentão, olhar vigilan­te e físico adestrado. Outro, meio calvo, cinqüenta anos aproximados, usando gravata com camisa branca de mangas curtas, era o típico burocrata.

Foi este último quem iniciou a conversa:

Recebemos essa notícia hoje. Parece que alguém está procurando um site especial em órgãos do governo brasileiro. A pesquisa é meio frenética. Parece que algum assunto anda preocupando alguém.

É possível supor que a pessoa não saiba qual seja o assunto e desco­nheça a fonte? - perguntou o embaixador.

É a conclusão a que se chega. Parece que o pesquisador está tomando alguns cuidados e muda de lugar e de computador para cada pesquisa. É uma pesquisa itinerante, que começou na biblioteca da Universidade de Brasília, mas tem circulado por cybers nos bairros.

O homem da CIA, que até então estava calado, comentou:

Pelas informações recebidas, essa pessoa tentou primeiramente abrir todos os sites oficiais e abertos ao público. Parece que ela entendeu que o assunto que procurava poderia já ser do conhecimento público e que seria fa­cilmente encontrado, desde que localizado o site hospedeiro da informação.

O embaixador perguntou:

Assunto? O senhor sabe qual é o assunto? E não pode ser mais do que um pesquisador? Não seria coincidência?

O homem da CIA não estava preparado para tantas perguntas.

Ainda não sabemos do que se trata. Conforme o senhor já disse, pa­rece que o próprio pesquisador, ou pesquisadores, não sabe o que está pro­curando. No entanto, essa densidade de pesquisa sobre um mesmo tema e em tempo curto pressupõe uma só fonte.

Se a busca é frenética e ele toma cuidados especiais, então se pode concluir que ele não tem certeza, mas desconfia de algo sério.

-Aparentemente o pesquisador não encontrou o objeto da pesquisa ou, se encontrou, não entendeu, isto é, deixou passar. Como não encontrou nada nos sites abertos, está agora atrás dos endereços eletrônicos de pessoas ligadas a instituições do governo brasileiro. As hipóteses aí se desdobram: chantagem, terrorismo, investigações do próprio governo, entre outras, não se descartando espionagem e contraespionagem.

O embaixador pensou um pouco e comentou:

O senhor acha que devemos nos aprofundar nesse assunto? Será que pode interessar ao governo dos Estados Unidos?

O homem da CIA foi conclusivo:

O pessoal que nos encaminhou essas mensagens espera uma resposta.

Mas na sua opinião o que deve ser feito agora?

Primeiramente, devolver o assunto à Central pedindo alguns esclare­cimentos e alertar os nossos agentes infiltrados no governo.

O embaixador pensou um pouco e perguntou:

Não será arriscado fazer esse alerta agora? Acabaram de eliminar o gene­ral que era chefe da principal agência de informações do governo e ainda não sabemos quem fez isso. Será que esse problema não estaria ligado ao outro?

O homem da CIA não pensou muito:

Não há propriamente coincidência de datas. Quando foi o atentado do general e quando começaram essas pesquisas?

Bom - disse o burocrata isso dá para saber por aqui. O atentado contra o chefe da Abin foi no dia 4 de junho e as buscas dos sites se inicia­ram no dia 25, ou seja, três semanas depois.

Três semanas de intervalo - comentou o embaixador. Seria possível dizer que essa pessoa começou a ligar fatos, pensar, e aí então desconfiar?

O silêncio foi curto e o homem da CIA disse:

Podemos fazer o seguinte: primeiramente solicitar mais esclarecimen­tos da Central sobre os pontos de acesso dos computadores usados por esse invasor. Eles devem nos enviar com urgência as informações que ele pode ter conseguido, já que, segundo o informe, imprimiu várias mensagens. Pode ser trabalho inútil, mas outra regra da CIA é que não existe trabalho inútil em matéria de segurança.

O embaixador sorriu e não foi preciso fazer comentários. O outro en­tendeu logo o grande universo de inutilidades dessa CIA.

Independentemente disso, podemos ir adiantando algumas pesquisas. Vou procurar saber quais foram as pessoas envolvidas nesse acidente com o general. Quem estava com ele, quem o substituiu, quais os contatos que ele fez recentemente, porque acho que não podemos demorar.

Então — disse o embaixador —, o senhor se encarrega dessa investigação, enquanto enviamos ao órgão central as solicitações que indicou.

Deu a reunião por encerrada e seguiu para o seu gabinete.

Não fumava, não bebia, mas às vezes sentia falta de uma dessas coisas. Pediu chá quente à secretária. Não gostava de café expresso, apesar de que tivesse mandado a sua secretária aprender a fazer um bom café, desses que poucos sabem fazer até mesmo no Brasil. Preferia o chá.

Sentiu vontade de telefonar para Washington e explicar as suas preocu­pações diretamente ao presidente. Mas ele também não ia saber o que dizer. A situação era ainda confusa. Muita divulgação nos últimos tempos sobre a Amazônia. Fatos estranhos vinham ocorrendo como se fossem provocação.

O atentado contra o chefe da Abin e a forma silenciosa como o governo brasileiro noticiou o assunto também intrigavam. O que será que estariam escondendo? Não queria transferir preocupações para os homens da CIA antes que tivesse coisa mais concreta.

CIA, FBI, diplomatas, Pentágono! Cada um desses órgãos, fora a im­prensa que também é doida para criar alarmes falsos, geram concorrência entre si que aumenta os problemas. Não podia dizer, por enquanto, que já vinha estudando as atividades do general Ribeiro de Castro. Esse homem sabia coisas, e agora a sua morte pode precipitar os acontecimentos. Se fora alguma iniciativa da CIA ou de qualquer instituição americana, tinha de saber, antes que a situação se complicasse.

Sentia-se incomodado. Se fosse coisa da CIA, era óbvio que esse camaradinha empolado o estava enganando. A CIA só faz serviços sigilosos quando a diplomacia não consegue resolver e quando a ação militar é prematura. Mas, nesses casos, é preciso ordem direta do presidente dos Estados Unidos. Então, só o presidente e a CIA ficam sabendo dessas atividades.

"Pelo que se pode concluir, portanto, é que ou a CIA não está nisso, ou, se está, não vai me dizer o que está fazendo."

Tomou o chá, sem pressa, pensando nos passos que ia dar.

Maurício e a capitã levaram o patrulheiro para o hospital, onde teve atendimento de emergência. A bala passou de raspão na cabeça e ele des­maiara com o impacto. Os exames radiológicos não indicaram nada grave, deveria ficar uns dias no hospital, de onde sairia sem nenhum problema, segundo o médico.

A capitã levou Maurício para o hotel e foi para seu apartamento.

Entrou com cuidado, porque os acontecimentos dos últimos dias exigiam atenção redobrada. Precisava pensar. Foi até o armário, pegou um copo, colo­cou quatro pedras de gelo e despejou o seu uísque preferido, Black Label. Riu do que o doutor Maurício poderia pensar, vendo-a com o copo na mão.

Sentou-se no sofá. Não quis ligar a televisão. Precisava pensar. Estava tensa, confusa e com medo. Mas algo novo a animava.

Sempre se dedicara demais à sua profissão e nunca dera muita impor­tância à sua vida pessoal. Teve alguns namorados, mas nada sério. Um pouco de receio, um pouco o acaso, mas não se lembrava de alguém ter passado em sua vida deixando marcas.

Lembrou-se do atentado contra o general. Aquele patrulheiro praticamente a pegara no colo para ajudá-la a entrar no carro. Não havia necessidade daquele esforço. Mas não fora tão mau assim. Homem educado, forte, que mesmo num momento de perigo não teve nenhuma atitude ou gesto mais brusco.

Agora ele estava ali de novo. Como ele sabia que ela e o doutor Maurício iam para aquela casa? Será que a estava seguindo? Ou a estava protegendo? Mas a mando de quem? Será que o general tinha até mesmo providenciado segurança fora do Exército? Improvável! Conhecia bem o seu chefe. Mas quem era ele? Precisava saber, fazer pesquisas e conhecer melhor essa pes­soa. Já salvara sua vida duas vezes.

Tomou o drinque pausadamente para que cada gota entrasse pela sua alma solitária. Tinha-se passado quase uma hora e ela estava ficando meio melancólica. Levou um susto quando o telefone tocou.

Ia atender, mas parou de repente. Esse telefone também podia estar prepa­rado. Mas o aparelho tinha um bina e ela anotou o número. Era do hotel do doutor Maurício. Esperou o telefone parar de tocar e discou o seu celular.

Maurício atendeu.

Alô, doutor Maurício?

Sim. Desculpe ter ligado, mas a senhora fez bem em não atender an­tes que fosse feita uma varredura em todos os telefones que nós usamos.

Não, não se preocupe. Vi o número e estou discando do celular. Al­guma coisa nova?

E sobre isso que queria lhe falar. Quando vi aquele patrulheiro caído no chão, tive a impressão de que já o conhecia. No primeiro dia em que a senhora veio me buscar no hotel, eu tinha ido correr no Parque da Cidade. Havia duas pessoas me seguindo durante a corrida. Comentei com o ge­neral a respeito de uma só, mas, vendo o patrulheiro, lembrei-me de outra pessoa que estava acompanhando o segurança. A senhora se lembra se era um ou eram dois os seguranças que me acompanharam na corrida?

Ela pensou um pouco e respondeu:

Havia dois seguranças, mas apenas um deveria acompanhá-lo na cor­rida. O outro deveria ficar no chafariz para aumentar o apoio, já que den­tro do parque o perigo era menor.

Então esse terceiro elemento precisa nos explicar algumas coisas. Fiz algumas pesquisas e descobri que o patrulheiro Rogério era sargento da Polícia Militar, até ser promovido a tenente por causa do episódio com o general. Tem colegial completo, prestou concurso para o Itamaraty, mas não conseguiu passar, é especialista em informática e agora está se prepa­rando para o vestibular de Direito.

Ela ficou em silêncio. Então, não era um qualquer, e enrubesceu com o seu preconceito. O garotão não era de jogar fora. Ficou feliz de repente. A sua melancolia desapareceu e o doutor Maurício chamou:

Capitã. Tudo bem com a senhora?

Ela respondeu, tentando esconder o seu embaraço.

Tudo bem, tudo bem. Estou apenas pensando na coincidência de ele estar lá de novo, porque parece evidente que estava nos seguindo. O que será que está procurando ou escondendo?

Liguei para o hospital e o médico recomendou deixá-lo em paz ama­nhã, mas depois de amanhã poderemos visitá-lo. Devemos nossas vidas a ele, e se já estiver em condições poderemos esclarecer essa dúvida.

A idéia de rever o seu herói a convenceu.

Sem dúvida. Amanhã falaremos de novo. Se o senhor precisar de al­guma coisa, por favor, me telefone.

Obrigado. Amanhã entro em contato com a senhora para combinar­mos a ida ao hospital. Boa noite, capitã.

Ela tomou mais uma dose. Maurício ficou um pouco pensativo, ainda de pé, com o aparelho na mão.

Foi até o restaurante comer alguma coisa e notou que um veículo da Polícia Militar fazia ronda perto do hotel.

Com uniforme impecável e um perfume doce que ele não sentira antes, a capitã foi buscá-lo às oito horas da manhã. Ele já tinha ido ao Parque da Cidade e corrido os seus dez quilômetros. Dessa vez não havia guarda-costas dentro do parque, mas a radiopatrulha o seguira discretamente.

Bom dia, capitã.

Bom dia, doutor Maurício. O senhor foi correr?

Pois é. Hoje corri normalmente e nenhum terrorista se atracou comi­go - brincou.

Ela estava com a fisionomia alegre e maquiada com discrição. Alta, ele­gante, era uma mulher bonita e o uniforme bem passado não conseguia esconder as curvas femininas. Fez o possível para mostrar normalidade, mas um leve rubor atrás da maquiagem traiu a percepção de que o normal seria que ele dissesse alguma coisa.

Aquele horário da manhã é ruim em qualquer cidade. Brasília não era exceção. O hospital ficava perto do setor de autarquias, não longe do hotel, mas para chegar lá demoraram mais de meia hora.

Uma viatura da Polícia Militar estava em frente do hospital e guardas bem armados mantinham-se vigilantes. Sem dúvida, o patrulheiro estava sendo protegido contra eventuais incidentes e isso alegrou Maurício.

Foram informados na recepção que o paciente tenente Rogério já tinha saído da Unidade de Terapia Intensiva, UTI, e estava no quarto 314. O médico havia pedido que, quando chegasse alguma visita ou se alguém telefonasse, era para entrar em contato com ele.

Na porta do quarto havia dois policiais militares. Com a aproximação da capitã, os dois se perfilaram e prestaram continência respeitosamente. Um deles, que ostentava divisa de cabo na ombreira, bateu discretamente na porta e a abriu para eles entrarem.

O patrulheiro estava deitado, barbeado e asseado. Vestia um pijama novo e discreto, e a cabeça protegida por uma faixa.

Olhou-os com uma certa bonomia e a capitã achou-o antipático, como se ele estivesse cobrando agradecimento por ter salvo a sua vida. Mas sabia que tinha de agradecer-lhe.

Cumprimentaram-se formalmente e, numa apreciação preliminar, o policial lhes pareceu franco, olhar arguto e com aquela transparência de uma pessoa digna. Ele também os examinava com curiosidade. Respondeu os cumprimentos com simpatia e perguntou se a casa explodiu. Maurício respondeu que ocorreu a explosão assim que saíram de perto.

Então - disse o patrulheiro -, eles não tinham outro celular. Ou vol­taram para buscar aquele que havia caído no chão ou telefonaram de algum orelhão. De qualquer forma, o tempo que perderam foi suficiente para evitar que fôssemos todos para o ar. Escapamos de boa. E coisa de especialista a bomba explodir só com o chamado e sem ninguém tirar o fone do gancho.

Ficou em silêncio e disse pensativo:

Mas, se demoraram tanto, sabiam que os senhores não estariam mais lá. Se ainda assim explodiram a casa, é porque não queriam deixar rastros ou documentos...

Maurício admirou o raciocínio do policial. A capita ia falar alguma coi­sa, mas Maurício achou melhor se adiantar. Havia percebido certa interfe­rência emotiva que podia dificultar o diálogo entre Rogério e a capitã.

Bem, tenente, nós lhe devemos a vida. O senhor parece um anjo da guarda. Está sempre em momentos perigosos para salvar a vida dos ou­tros. É a segunda vez que o senhor salva a vida da capitã. E agora salvou a minha também.

Ela reforçou os agradecimentos, mas deixou que Maurício assu­misse a conversa.

O coronel Medeiros já o informara de que a morte do general não foi acidente. Presumo também que a sua presença naquele momento não foi simples coincidência. Não existem coincidências. Mesmo porque me seguiu naquela corrida alguns meses atrás, no Parque da Cidade, quando pela primeira vez a capitã me pegou no hotel, e era também o homem da motocicleta que seguiu o carro da capitã.

Ela olhou para Maurício e perguntou:

Mas como o senhor sabe disso? Por que não me informou naquele dia que estávamos sendo seguidos?

O tenente sorriu meio encabulado e respondeu por Maurício:

Simples, capitã, a senhora era a segurança. Ou eu os estava seguindo porque fazia parte da sua equipe, ou não fazia parte e a sua segurança fa­lhou. Ele ficou atento e, como não aconteceu nada, apenas registrou o fato. Para um burocrata, ele até que se saiu bem, a senhora não acha?

Ela apertou os lábios para não ser grosseira, mas a sua antipatia por aquele outro convencido aumentou. Estava diante de dois homens diferen­tes, mas ambos muito conscientes da sua capacidade. "Ainda bem", pen­sou. "E melhor contar com gente assim."

Maurício justificou-se:

Acontece que naquele dia eu estava um tanto assustado. O general me pegou de surpresa e eu fiquei desconfiado. Já tinha sido seguido no parque e fiquei mais atento.

E, querendo pôr fim àquela introdução:

Não quero ser grosseiro. Ao contrário, estamos felizes e gratos pela sua interferência, mas posso perguntar-lhe o que o fez nos seguir?

O policial pensou um pouco como se não soubesse o que responder. Maurício percebeu a inconveniência da sua pergunta e mudou de assunto:

Entenda, por favor. Tive de tirar algumas informações a seu respeito e sei que é especialista em informática. E possível então que tenha feito investigações por conta própria e chegado a algumas conclusões que aguça­ram ainda mais a sua curiosidade policial. Dizer que estamos numa missão especial que se revelou perigosa já não deve ser novidade.

Esperou um momento e falou num tom de alerta:

É possível que as pessoas que queiram se livrar de nós também te­nham estranhado a sua presença em momentos de risco para nos proteger. Não é nenhum inocente e sabe que, para essas pessoas, o senhor também passou a ser um obstáculo que precisa ser eliminado. Então, quanto mais clareza entre nós, será melhor.

A capitã se arriscou:

Além do mais, se estava nos seguindo e isso é uma conclusão óbvia, então sabe que trabalho no serviço secreto e, portanto, se tem informações que possam nos ajudar, é seu dever colaborar.

Maurício achou infeliz esse "dever de colaborar" para um policial que iá arriscou a vida no cumprimento do dever, mas olhou com complacên­cia para os dois. Queria estimular o diálogo entre eles e estava até certo ponto se divertindo.

O tenente ouvia calado, sem reações, mas achou que era melhor falar um pouco mais. Afinal, diante dele estava a capitã que ele vinha seguindo às escondidas e de agora em diante não precisava mais segui-la. Era só mostrar o que sabia e tinha certeza de que, a partir daí, teria mais chances de vê-la e quem sabe até começar um namoro.

Naquele dia da corrida, na verdade, eu achei que o senhor ia ser seqüestrado. Eu também fui correr no Parque da Cidade e notei que um corredor aumentava e diminuía o ritmo conforme a sua velocidade. Ele esperou e o seguiu quando terminou o alongamento. Segurança não era, porque se fosse, não ficaria sempre afastado como se não quisesse ser des­coberto. Depois vi aquele outro do chafariz. Aí chega uma mulher bonita de carro e o leva. Os dois vão atrás de maneira suspeita. Duas vezes dois quatro, era seqüestro com certeza. Não tive dúvidas. Passei a segui-los.

A capita ficou com as faces róseas por ele a ter achado bonita.

Aconteceu o atentado com o general, desconfiei de tantas medalhas e promoções e comecei a pesquisar. Pois é, ontem foi outra coincidência, dessas que o senhor não gosta, mas que existem, existem.

O tenente quis saber sobre o grande segredo em que eles estavam en­volvidos e Maurício informou, sem entrar em detalhes, que se tratava de estudos sobre a internacionalização da Amazônia, assunto já batido nos jornais, mas que de repente se complicou.

Conversaram sobre as pesquisas que ele fez e sobre a Amazônia e o médico apareceu. Depois de examiná-lo, disse que era melhor que ele repousasse.

Vocês podem voltar à tarde. Depois das cinco horas. Ele ainda está em recuperação. Vou dar-lhe um analgésico. A medicação de eficiência já foi ministrada.

O tenente então perguntou:

O senhor quer ver os papéis que imprimi? Talvez o senhor e a capitã encontrem alguma coisa que faça sentido. Como eu não conheço o assun­to, pode ser que tenha deixado escapar algo importante.

Franziu a testa e exclamou:

Ih! Os papéis estão no porta-malas do carro que ficou lá perto da casa que explodiu. Fui lá no meu golzinho, e saí correndo para avisá-los quando percebi o perigo. Esquecemos o carro. Corram lá e me informem. Podem ter roubado o carro. Esta é uma cidade sem policiamento e a chave ficou na ignição - brincou ele.

Maurício olhou para ele sem responder e notou que a capitã deu um sorriso. "Já está melhorando", pensou.

Despediram-se com poucas palavras e, após agradecimentos dos dois lados, o patrulheiro disse:

Desculpe, capitã. Mas achei que o Exército ia ter dificuldade em dar cobertura ao doutor Maurício e, assim que voltei ao normal na UTI, pedi ao meu comandante que o hotel dele tivesse vigilância permanente e que ele não ficasse sozinho em nenhum momento nesta cidade. Quanto à se­nhora, não quis me adiantar, para não melindrar o Exército.

Maurício olhou para ele admirado. Mesmo doente e hospitalizado teve ainda a percepção da situação de perigo e cuidou da sua proteção.

Não sei por que não estou surpresa - disse a capitã, mordendo o pequeno elogio.

Depois olhou-o fixamente, com um desses olhares que a gente não sabe se a pessoa está admirando ou criticando, e disse com voz natural:

Com certeza vamos nos ver de novo. Até logo, tenente, e mais uma vez obrigada.

Espero que no próximo encontro os senhores me convidem para o chá da tarde. Faz menos barulho.

"Ele não consegue esconder esse seu convencimento", pensou a capitã.

Na verdade, quando chegaram ao local da explosão, o policiamento ainda era intenso. A casa estava em ruínas e as que estavam próximas sofre­ram abalos. O Gol ainda estava lá, com a chave na ignição e a identificação da capitã facilitou saírem do local, levando o carro do patrulheiro. O por­ta-malas estava cheio de papéis impressos.

A capitã precisava ocupar-se dos seus serviços na Abin e ele pretendia estu­dar o material colhido pelo tenente. Ela providenciou outra viatura do Exérci­to para acompanhá-lo, de forma a não ter de voltar sozinho para o hotel.

Maurício não conseguia controlar o estado crescente de preocupação. Era a segunda vez que escapava de um atentado. Se fosse gato, ainda lhe restariam cinco vidas. Mas não era gato. Lá na Buritizal, um maluco estava com rifle e morteiro indicando que seus propósitos não eram amigáveis.

Agora, essa armadilha poderia tê-lo mandado, ele e a capitã, para o espaço sideral. Ainda bem que o tenente se tomou de amores por ela. Mas até onde essa situação iria continuar? Não havia como ligar os fatos, não existia inimigo conhecido e pelo jeito não podia confiar em ninguém.

"Amanhã vou dar um aperto nessa capitã", disse para si mesmo. "Ela está escondendo muita coisa e, se não disser tudo o que sabe, vou cair fora. Não vou morrer feito bobo e sem mesmo saber por quê."

Com esses pensamentos, foi dirigindo o Gol até chegar perto do hotel. O veículo militar o acompanhava e pelo menos nesse percurso estava se sentindo mais seguro. No hotel, percebeu a viatura policial, que logo se aproximou.

Conheciam o carro do tenente e um deles, com divisas de cabo da PM, cumprimentou-o:

Boa tarde, o senhor deve ser o doutor Maurício, não é?

Sim, senhor. Boa tarde.

Sou o cabo Marcelo. Recebemos ordens para permanecer à sua dispo­sição enquanto estiver em Brasília. Desde o acidente com o tenente Rogé­rio estivemos mantendo guarda neste hotel. Nossas ordens incluem levá-lo aonde for preciso. O senhor não deve pegar táxis ou carros estranhos.

Muito obrigado, mas acho que por hoje não vou sair do hotel. Preciso estudar uma grande quantidade de papéis que estão no porta-malas do carro, e agradeceria se alguém me ajudasse a levá-los para o quarto.

Com muito prazer.

O porta-malas foi esvaziado e Maurício examinou também o porta-luvas. Procurou ver se encontrava alguma coisa diferente que pudesse levar a outras conclusões, mas não viu nada aproveitável. O carro estava limpo, não havia documentos, papéis ou instrumentos reveladores.

Pegou a chave do Gol e entregou ao cabo.

Acho melhor alguém levar esse carro à casa do tenente Rogério. O senhor pode cuidar disso?

Sem dúvida.

Pegou a chave na recepção e subiu para o quarto, no nono andar. O soldado levou os papéis e deixou-os em cima do maleiro, que ele não usava porque a sua bagagem era pouca. Tinha aprendido a viajar e pouca baga­gem era um dos segredos.

Estava com fome. Não tinha almoçado e lembrou-se de que podia ter convidado a capitã para o almoço, mas com certeza ela perdoaria a falta de cavalheirismo, numa situação como essa.

Desceu para o restaurante e escolheu uma mesa de centro. Nunca se esquecera de ter lido que Jesse James morreu porque se sentou de costas para a porta do restaurante.

Pediu o cardápio e escolheu pescada grelhada no azeite de oliva com legumes cozidos ao vapor. Nada de manteiga. Seu colesterol era baixo. Não tinha problemas, mas gostava de se cuidar. As corridas não bastam para a saúde.

O garçom aproximou-se:

Temos uma surpresa para o senhor. O vinho é um Mersault de pri­meira, em copos. A não ser que o senhor queira a garrafa inteira.

Mersault, em copos? Ora que surpresa! Bem gelado? Então, venha lá com um belo copo.

Certas polêmicas fazem nascer alegrias. A cada vez que tentava se con­vencer de que os Chablis são melhores do que os Mersaults, acabava des­cobrindo aquele aroma, aquele fundo de paladar que havia num e noutro e servia apenas para aumentar a vontade de tomar os dois.

O vinho melhorou o seu humor e ele agora procurava raciocínios para encontrar solução, em vez de abandonar os seus companheiros de dificul­dades. Uma vez assumido o compromisso, não podia simplesmente aban­donar o barco. E será que teria como abandoná-lo? Já estava conhecido e representava perigo para certas pessoas.

Safra 2000. Talvez valesse tomar a garrafa inteira. Pena que tinha de examinar aqueles papéis. Ficou no segundo copo e subiu para o quarto.

Meio enlanguescido pelo vinho, sentou-se na cama, deitou-se, a cabeça no travesseiro e, sem querer, dormiu. Foi um sono nervoso, agitado. Sonhou que uma enorme sucuri saiu do rio Roosevelt e estava engolindo a Buritizal. Acordou com o telefone tocando. Pulou assustado e pegou o aparelho:

Alô! Quem é?

Era a capitã. Ela deve ter estranhado a maneira como atendeu o telefone.

Doutor Maurício? Tudo bem com o senhor?

Sim, capitã, tudo bem. Alguma novidade?

Não, não, é que estranhei um pouco a sua voz. Chegaram informa­ções que gostaria de resolver com o senhor. Posso passar aí no hotel lá pelas oito horas da noite?

"O assunto deve ser sigiloso", pensou. "Do contrário ela me falaria ago­ra pelo telefone. Bom, talvez possa me redimir do convite que não fiz para o almoço."

Claro, aliás, a senhora podia me fazer companhia para o jantar, aqui no hotel mesmo e assim teremos mais tempo. Aceita?

Ela não hesitou:

Combinado, então. Oito horas no saguão do hotel.

"Ora, no saguão do hotel, onde mais essa idiota pensava em se encontrar comigo? Bom, vamos ao trabalho. Preciso mostrar algum serviço, já estou fi­cando com raiva desse patrulheiro. Ele está bom demais para o meu gosto."

Olhou para o monte de papéis. Era preciso classificá-los, antes de fa­zer qualquer estudo. Mas de que forma separar esses impressos? Notou que havia muitas informações sobre ONGs, também sobre a CIA, a NSA, o Pentágono, a Otan, o projeto Echelon, reservas indígenas, crimes ru­rais, transferências de dinheiro para associações, enfim, o levantamento de informações que o tenente fez impressionava. Os trabalhos identificados eram mais fáceis. Alguns impressos, porém, tinham siglas que ele não co­nhecia e havia alguns com linguagem estranha.

"Que língua seria essa? Uma mistura incompreensível de letras. Seria código? Pode ser. Parece código. Se for código, talvez aí esteja a solução de tudo. De qualquer forma, passa a ser importante saber se é ou não código. Mas vamos deixar isso para descobrir depois, o importante agora é a classificação."

Várias vezes teve de parar e andar de um lado para o outro do quarto. Não podia acreditar no que estava lendo e não via motivos para que aquilo tudo não saísse nos jornais e não fosse divulgado sistematicamente para que todos os brasileiros tomassem conhecimento.

Estava tenso, nervoso, irritado e fazia enorme esforço para manter o seu poder de raciocínio. Era evidente que o general estava certo. Por isso o mata­ram. A Amazônia já não era mais nossa. Existiam relatos e documentos sufi­cientes para comprovar que a Amazônia tinha virado sociedade anônima.

Foram horas de trabalho. O patrulheiro fizera serviço excelente. O mais admirável é que ele tinha chegado a esses assuntos por conta própria.

"Será que está ligando a morte do general com a Amazônia? Esse cama­rada é inteligente, ele não pode mais sair do grupo, vai ser ainda mais útil do que pensa."

Já eram quase seis horas da tarde, quando acabou de separar e fazer a análise dos documentos principais. Com as costas doendo de abaixar e le­vantar para distribuir os papéis pelo quarto, começou a fazer alongamento. Suas lições de ioga ajudavam nessas horas.

Escapara da morte naquela explosão. De manhã, visitara o patrulheiro. Teve de agradecer, tirar informações, administrar os sentimentos confusos que já estavam martirizando a disciplinada capitã, e manter os caminhos abertos para agregar aquele sujeito. A corrida no parque fora importante para recuperar o equilíbrio mental.

O almoço foi suave, mas o vinho avivou receios e teve até um pequeno pesadelo, interrompido pelo telefonema da capitã. Aqueles papéis o deixa­ram ainda mais enervado, suas preocupações aumentaram muito e estava perdendo a sua autonomia mental. Precisava recuperar o poder da mente.

Há dez mil anos, na Índia, já se praticava o alongamento, com posições chamadas asanas, que significa sentar-se ou manter o corpo numa postura firme. Essas posições fazem convergir a atenção dos pensamentos para o corpo, acalmando a mente com a meditação.

A posição mais fácil é chamada Sukhasana. Cruzou as pernas, descan­sando os pés no chão e pôs as palmas das mãos nos joelhos. Ficou com as costas eretas, pressionando a parte inferior da coluna para a frente. Os antigos descobriram que a prática de exercício em forma de ritual traz be­nefícios metafísicos, como se fosse uma alquimia corporal.

Ficou nessa posição durante vinte minutos, concentrando-se numa me­ditação neutra e quase infinita. Não era fácil concentrar-se. Fixou os olhos numa das alças da fechadura do criado-mudo. Com os olhos fixos num só ponto, concentra-se melhor.

Depois passou para a posição perfeita, ou Siddhasana, com o calcanhar direito pressionando o períneo e a sola do pé esquerdo pressionando a coxa direita. Os joelhos no chão com o calcanhar esquerdo sobre o calcanhar

direito, pressionando a base do abdome com os dedos enfiados na dobra da perna com a coxa. Buscava nessa posição fortalecer a força psíquica. Sentiu-se recomposto após uma hora de exercícios.

A capitã foi pontual. Estava vestida de calça jeans azul, blusa cor-de-rosa, discretamente maquiada, brincos, pulseiras prateadas, não dando para saber se eram mesmo de prata ou simples bijuterias, bolsa preta com­binando com o sapato.

"Não está com o doce perfume de hoje de manhã, quando ela foi visitar o patrulheiro", notou.

Foram conduzidos pelo maitre para uma mesa reservada e o garçom trouxe o cardápio. Maurício falou da pescada grelhada com legumes e ela seguiu a sugestão. Como já havia legumes no prato principal, dispensaram a salada e aceitaram a sugestão de uma entrada preparada pelo chefe para a semana de degustação do Mersault.

O hotel está promovendo a semana de degustação de um vinho bran­co da Borgonha, um dos meus prediletos. Combina bem com o prato. E o Mersault, a senhora me acompanha?

Vinho? Branco? Sim, por que não? Acho que ajuda a relaxar. Só que eu bebo pouco, um, talvez no máximo dois copos.

O garçom trouxe o vinho. Mostrou a garrafa deitada na palma da mão com o rótulo para cima para que Maurício o visse. Entendendo o silencioso movimento de cabeça, o garçom abriu a garrafa com cuidado. Primeiro cor­tou o invólucro de chumbo perto do gargalo e que protege a rolha contra as agressões do ar. Depois, cuidadosamente tirou a rolha para não quebrar e não fazer barulho. Enrolou o polegar no guardanapo branco e limpou a boca da garrafa tirando algum resíduo que às vezes fica no gargalo.

Colocou um pouco de vinho no copo de Maurício, que o pegou com carinho, pela base para não aquecê-lo, admirou mais uma vez o amarelo- esverdeado do líquido, levou o copo com delicadeza até perto do nariz, respirou com satisfação, em seguida encostou o copo nos lábios e deixou o vinho escorrer em quantidade suficiente para ele apreciar todo o paladar.

Recolocou o copo na mesa e fez outro movimento silencioso com a cabeça. O garçom sorriu satisfeito. Era profissional que regozijava quando o vinho tinha um bom acolhimento. Serviu a capitã e depois voltou a servir Maurício. A garrafa ficou num balde de gelo com água e o garçom se retirou.

O senhor faz um ritual quase afrodisíaco - disse ela sorrindo.

Levantou o copo com um gesto gracioso e deixou escoar com elegância um pequeno gole pelos lábios que se abriram com delicadeza.

"Tem gestos bonitos essa capitã", observou.

Que delícia! São raras as pessoas que sabem guardar um pouco de si para viver momentos agradáveis, mesmo em situações difíceis. Mas é preciso conhecer essas coisas, não é mesmo? O vinho é uma boa bebida, mas não é todo vinho que agrada. Eu entendo pouco disso, mas dá para se perceber que este vinho tem classe.

Conversaram sobre diversos assuntos, evitando estragar o jantar com te­mas preocupantes. Após a sobremesa, quando veio o café, ele comentou:

Durante todo esse tempo em que estive com vocês, não foi feita ne­nhuma pergunta sobre a minha vida pessoal. Mulher, filhos e coisas assim. Presumo que vocês tenham estudado tudo isso também.

Ela olhou para ele e disse a contragosto:

O senhor hoje deve estar convencido de que o assunto para o qual foi chamado é realmente sério. Não podemos contar com qualquer tipo de pessoa. Acho que o senhor compreende. Sabemos também que o senhor sofreu muito com a morte de sua mulher e não quisemos reacender dores passadas.

Maurício respirou fundo. Não devia ter abordado esse assunto. Lembrou- se com tristeza de quando levou sua mulher para fazer aquela mamografia. A cirurgia seria simples, disse o médico. Graças a Deus aquele caroço havia sido detectado em tempo. A biópsia fora positiva e o caroço foi retirado. Tecnologia moderna, o local ficara limpo, bastavam algumas aplicações de quimioterapia, não havia ramificações e a alegria voltou ao lar.

Alguns meses depois começou a sair um certo líquido do bico do seio. Normal, dizia o médico. Era a drenagem linfática e isso era bom sinal. Mas logo teve de ser operada para retirar todo o seio. Infelizmente era tarde.

"Como pode? Tanta pesquisa, tantos doutorados, laboratórios, Saúde Pública, avanços na cirurgia, tantos remédios novos e não conseguem ven­cer um simples caroço!"

Na época, procurou esconder o próprio desespero para não agravar ain­da mais a tristeza dos seus dois filhos. A menina não entendeu e achou que foi culpa dele. Não devia mais ter saído de casa para dar aqueles cursos, disse ela, que ainda interpretou mal o esforço que tinha feito para esconder a sua angústia e acusou-o de não estar sentindo falta da mamãe.

Assim que completou dezoito anos, mudou-se para a Europa. Havia alguns meses recebera dela uma carta comunicando que estava bem. Tra­balhava numa empresa de turismo e tinha se casado com um alemão. Fora outro golpe. Sua filhinha, que carregara tantas vezes sobre os pés, fazia upa-upa ou andava de cavalinho... Não merecera nem o aviso de que "ia se casar". Mandou um telegrama dando os parabéns. Quem sabe o tempo...

O rapaz está nos Estados Unidos. Fez o curso de administração de empre­sas da Getúlio Vargas, em São Paulo. Está hoje fazendo o Masters Business and Administration, MBA, em Stanford. Escreve sempre. É mais animado, quer voltar logo para o Brasil e ajudar na fazenda, mas está longe.

Acabou ficando só. Cultiva, porém, a memória da sua mulher e assim alimenta a tristeza por não ter evitado a sua morte. Carrega a culpa de que podia ter evitado aquilo.

Lembrou-se de repente de que não era momento de ficar com os olhos úmidos. E então uma sensação de revolta contra esse general tomou conta dele. Esse general não o escolheu apenas por causa das suas virtudes pessoais, mas também porque não tinha família.

"O senhor hoje deve estar convencido de que o assunto para o qual foi chamado é realmente sério. Não podemos contar com qualquer tipo de pessoa. Acho que o senhor compreende." Foi o que a capitã tinha acabado de dizer. Mas procurou controlar-se.

Não tinha vocação para heróis de Dan Brown, Ludlum ou Forsyth, mas estava num caminho sem volta.

Parece que a senhora tem informações importantes. Será que pode­mos falar nisso agora?

Ela compreendeu que ele estava mudando o rumo da conversa e tam­bém já era hora de voltar aos seus problemas.

A primeira providência é regularizar a sua situação funcional. A morte do general interrompeu o canal com a Receita e precisamos de uma solução. Acredito que essa história de cursos possa não estar mais convencendo.

Resta a opção da minha aposentadoria. Mas a burocracia pode atra­palhar a rapidez do processo.

Estudamos o caso. A Escola Superior de Guerra vai convidá-lo for­malmente para palestras sobre política tributária. O senhor tem estudos publicados sobre essa matéria e esse seu afastamento estaria justificado.

Maurício teve a sensação de que a capitã evitava tocar no assunto do atentado que sofreram na noite anterior e achou melhor esclarecer algu­mas coisas.

Talvez a minha pergunta a incomode um pouco. Mas posso saber quem lhe deu a informação de que teríamos reunião com a Confraria na­quela casa? Como a senhora recebeu a mensagem?

Ela franziu a testa.

Isso também eu queria falar com o senhor. Recebi a comunicação pelos canais de sempre.

Não era a mesma capitã, segura de si mesma.

Sinceramente, ando com medo. A forma como recebi a comunicação foi autêntica e normal. Graças a Deus saímos ilesos, mas isso agora mostra que o nosso meio está infiltrado.

O seu meio, infiltrado? As Forças Armadas? A Abin?

Ela procurava conter-se para não transferir receios.

O senhor está sozinho. A sua segurança é outra preocupação.

O que a senhora acha de eu ter esse patrulheiro como ajuda? O traba­lho que ele fez na internet é espantoso. Descobriu coisas que parecem ser importantes. E corajoso, inteligente e já mostrou ser de confiança.

Ela não disfarçou o entusiasmo.

Acho que o senhor teria um grande companheiro.

Existem trabalhos em determinada linguagem que na minha opinião não é uma língua falada, mas mensagens codificadas.

Como assim? — ela pareceu assustada. — Código? Quando assuntos desse tipo chegam a níveis de código é porque as coisas estão mesmo se precipitando. A morte do general, os atentados contra nós, a presença da Confraria nos vigiando. Como será que a Confraria soube que iriam nos atacar? E por que essa Confraria não apareceu desta vez?

Não tenho tanta certeza de que seremos procurados por eles. Acho que eles têm gente no seu meio e sabem desse último atentado. O nome da Confraria foi usado. Bem, amanhã cedo vou ao hospital ver o nosso herói. Vou ter uma conversa com ele, mas preciso de telefone que não seja grampeado para falar com a senhora.

Ela deu um sorriso desajeitado e deu-lhe um cartão com o núme­ro do seu celular. Maurício acompanhou-a até a porta. Despediram-se formalmente. "Interessante", pensou, "não consigo ter muita familiaridade com essa senhora."

Um carro oficial a estava esperando e outro acompanhou-os.

O carro da Polícia Militar estava parado no pátio do estacionamento em frente ao hotel.

Foi até a recepção e pediu para colocarem outra toalha no quarto, pois que­ria toalha limpa, logo cedo. O recepcionista ligou para a camareira e disse que ela já estava providenciando. Maurício esperou um pouco e tomou o elevador.

"Será que os heróis do Ludlum teriam pensado em mandar a camareira na frente?" Sorriu da ironia de ver que estava tomando precauções nas quais nunca tinha pensado antes na vida.

Depois que a camareira saiu, ele trancou a porta, pôs a corrente prote­tora no gancho, acendeu todas as luzes. A porta não abria por fora sem a chave. Olhou o banheiro. As toalhas estavam lá. A cama estava arrumada, mas assim mesmo tirou a colcha, chacoalhou os lençóis, tudo era possível, até mesmo uma pequena cobra ou escorpião.

Estava tão assustado quanto a capitã e era preciso cuidado. Olhou debaixo da cama, tomou a arrumar os lençóis e as cobertas e foi dormir mais sossegado.

Levantou-se às seis e meia. Tinha dormido bem e não se lembrava mais da sucuri que tinha engolido a fazenda Buritizal. Tomou café e preferiu não ir ao Parque da Cidade para correr.

"Não é bom dar chance ao diabo", pensou. O hotel tinha fitness center e ele fez quarenta minutos de bicicleta e quarenta minutos de esteira. Consu­miu novecentas calorias e achou que era suficiente. Tomou banho e saiu.

A viatura estava lá. Para aqueles soldados, ele e a capitã tinham salvado a vida de um colega seu em serviço e eles queriam agora mostrar a sua gratidão. A viatura levou-o ao hospital. O cabo disse que ia ficar esperando por ele.

O tenente estava mais composto. Roupas normais, a cabeça continuava enfaixada, mas mostrava rápida recuperação.

Bom-dia, tenente. O senhor parece melhor hoje.

Bom-dia, doutor Maurício. O senhor veio cedo e sozinho. Parece que vamos ter uma conversa de homem para homem — disse com o seu jeito provocador.

Maurício riu como se já fossem dois amigos, pois precisava de maior intimidade.

Achei melhor não trazer a capitã.

O tenente não disse nada. Passou para um olhar vago, como se isso não lhe dissesse respeito. Maurício sentiu que devia primeiramente mostrar o seu reconhecimento pelos riscos que o policial correu.

Contraímos com o senhor uma dívida difícil de pagar. Tanto eu como a capitã caímos numa armadilha. O senhor vai saber com mais detalhes em outro momento, mas é a segunda vez que tentam nos eliminar. Como sabe, queriam assassinar a capitã naquela explosão em que morreu o gene­ral. A sua chegada ali foi, como dizer, muito oportuna.

Acentuou o "oportuna" e olhou para o tenente que continuava calado, como se estivessem tratando de rotina policial.

Eu e a capitã lhe somos muito gratos, mas a minha visita hoje tem outro propósito. Vou tentar ser simples e franco. Não quero que se ofenda com o tipo de análise que vou fazer da situação, mas estamos correndo contra o tempo e acho que o senhor pode nos ser de grande ajuda.

Fique à vontade, não vou me ofender - disse o tenente, sorrindo.

Bem, então deixe-me dizer-lhe que acredito na história que contou so­bre ter me seguido por pensar tratar-se de seqüestro. Podia ter sido. Mas não foi seqüestro e, para sua surpresa, a moça que o senhor pensava que servia de "isca", na verdade era uma militar de alto nível e ainda muito bonita.

O tenente perdeu o seu ar malicioso. Pareceu um pouco desconcertado. Maurício fez que não notou e continuou:

Acho que compreende que coincidência demais levanta indagações. No primeiro caso, estava num veículo oficial e a sua intervenção era justifi­cável. Serviço rotineiro de policiamento somado à coincidência de ter sido o senhor e não outro patrulheiro. Correto?

É. Pode-se pensar assim.

Na primeira coincidência, o senhor virou herói e foi promovido. A segunda coincidência também foi em momento de perigo, como no pri­meiro caso.

Olhou significativamente para o tenente, mas este continuou impassível.

Imaginar que havia sido contratado por alguma organização para nos liquidar, também está fora de propósito, porque, ao contrário, salvou as nossas vidas, como aliás já havia salvado antes a capitã.

Falava devagar, em tom seguro, porém educado, pois estava fazendo apenas raciocínio de lógica e não uma acusação.

Acontece que desta vez estava em carro particular. Isso chamou logo a atenção, tanto minha como da capitã.

O tenente esboçou um sorriso e falou:

Estou gostando do enredo. Pelo que já ouvi, pode dar uma boa história.

Maurício levantou-se, ficou de costas para o tenente e falou, olhando pela janela o céu claro de Brasília:

Uma mulher bonita, com boa posição social, bom cargo, fez suas pes­quisas, era solteira, não tinha compromissos e então passou a segui-la.

Virou-se e completou:

Foi a nossa sorte. Graças aos seus sentimentos pela capitã, estamos vivos.

O tenente levantou-se meio aturdido. Aquele bisbilhoteiro estava en­trando em coisas muito particulares da sua vida. Se ele fez esses comentá­rios com a capitã, a situação ia ficar embaraçosa. No dia anterior, ela estava ali e ele fora muito desajeitado. Não sabia o que falar, ficara sem jeito e talvez ela não tivesse gostado dele. Agora, tudo veio às claras e ela pode gostar menos ainda de ter sido seguida por um soldado de pouco futuro. Até pouco tempo era apenas um sargentão e só foi promovido porque, propositadamente, a estava seguindo.

Maurício parece ter entendido as preocupações dele e disse:

Obviamente não comentei nada com a capitã a esse respeito. Estou adiantando certos comentários porque precisamos da sua colaboração e o tempo está curto.

O tenente estava sério, com a testa franzida e comentou:

O senhor gosta de ir direto ao assunto, hein!

Maurício preferiu ficar em silêncio para que o tenente pensasse um pouco.

Já que posso ser útil, seria demais querer saber em que problemas iria me envolver?

Na verdade já se envolveu. Em dois atentados contra militares ocu­pando postos elevados nos setores de segurança nacional o senhor esteve presente. Já fez pesquisas e desconfia do que se trata. O que estou lhe dizendo é que, seja lá quem for que organizou esses atentados contra nós, pode considerá-lo um obstáculo.

Esperou que ele comentasse alguma coisa, mas como o outro ficou ca­lado, insistiu:

Se continuar isolado aqui em Brasília ou for para qualquer outro lugar, o perigo agora é o mesmo. Por outro lado, o senhor mostrou inteli­gência, interesse, coragem e lealdade.

A proposta parecia maluca. Jamais tinha pensado que uma platônica paquera poderia mudar tanto a sua vida.

Está propondo que eu deixe a PM e os siga? Isso está parecendo a proposta que Cristo fez a São Pedro.

Não é bem assim. De início, vai ficar afastado dos seus serviços por dois meses. É possível que em dois ou três dias já poderá sair do hospital e nós três, ou seja, o senhor, a capitã e eu devemos ter uma primeira reunião. Acho isso urgente.

Parece que vocês dois já decidiram tudo por mim.

Maurício pensou um pouco.

A capitã está preocupada com a sua vida. E eu confesso que estou sozinho, porque a capitã é mulher e ocupa cargo que a obriga permanecer em Brasília. Com certeza, teremos algum trabalho de campo. Não sei se me faço entender.

O tenente entendia. Sentiu simpatia por esse doutor Maurício. Gostou de ouvi-lo dizer que a capitã estava preocupada com a sua vida. Mas será que vai dar certo trabalhar com ela?

O tenente olhou para a janela. O sol de Brasília já estava quente. Aquele céu azul era enganoso. O pôr-do-sol colorido de todas as tar­des lá no horizonte distante do cerrado do Planalto Central também era enganoso. Não havia tanta felicidade assim na vida humana para essa celebração da natureza.

Já vinha pensando mesmo que estava sem saída. Em alguma coisa peri­gosa eu entrei e não sou inocente. Sei que também, doravante, corro perigo. Fico agradecido pelo convite e farei o melhor que puder para colaborar.

Maurício estendeu-lhe a mão, agradecido.

Muito bem, temos de tratar de assuntos urgentes. Confesso que es­tava contando com a sua concordância. Acho que devemos começar pelo material que imprimiu, mas como se sente? Quando pensa que pode estar em condições de trabalho?

Já me sinto bem melhor. A cabeça dói um pouco, mas o principal é que posso trabalhar no computador. O médico deve vir hoje à tarde. Se tudo estiver bem, posso ir para casa amanhã cedo.

Vamos aguardar o parecer do médico, mas já vou telefonar para a capitã e confirmar a sua participação. Ela vai ficar contente. Acha que em dois até eu estarei mais seguro. Eu disse a ela que ia telefonar daqui do hospital.

Não diga! O senhor devia montar uma agência matrimonial.

Usou o telefone do quarto e informou a capitã que doravante eles ti­nham um novo companheiro.

- Voltarei amanhã e enquanto isso vou estudar o seu material. A propó­sito, muito obrigado pela segurança que os seus colegas estão fazendo no hotel. Assim, posso trabalhar mais tranqüilo.

Despediu-se e a viatura da PM o levou de volta.

Levantara-se mais cedo e cumprira a sua rotina de ginástica. Agora mais do que nunca precisava manter a forma. No dia anterior, pedira para os policiais levarem ao hospital uma parte do material da internet para que o tenente fosse lendo.

Após as formalidades do hospital e ouvir as recomendações do médico, seguiram para um edifício de escritórios no setor comercial sul. Do próprio hospital, Maurício telefonara para a capitã dando-lhe o endereço e logo em seguida ela chegou.

Os policiais tinham ajudado a levar os impressos que foram colocados em cima da mesa na ordem de separação feita por Maurício e que o tenente mantivera. O tenente disse para os soldados permanecerem perto do edifí­cio, mantendo a vigilância.

Depois que se retiraram, a capitã foi mais cordial.

Felizmente não houve nada mais sério com o nosso herói, não é dou­tor Maurício? Mas o senhor está em condições de trabalhar, tenente?

O tenente aproveitou o momento de descontração para manter um bom diálogo:

E bom vê-la de novo. Na verdade não é trabalho pesado, e o ambiente é confortável. Se me cansar, eu aviso.

A capitã olhou em volta e perguntou:

Como o senhor conseguiu esta sala? Está muito bem decorada. Aliás, é mais de uma sala. É um conjunto com quatro salas, dois banheiros, mesas de trabalho, sofás, bom ambiente.

Pertence a um colega aposentado. Ele comprou este conjunto para advogar depois da aposentadoria e insiste que eu venha trabalhar com ele. Quem sabe?

O senhor pensou em tudo - disse a capitã.

Telefonei hoje de manhã para o dono da sala e ele mandou essas rega­lias todas. Também disse a ele que não queria ser interrompido e principal­mente não queria que ninguém soubesse que estava em Brasília. Justifiquei que estava fugindo de compromissos da Receita. Hoje é sexta-feira. Ele tem uma chácara perto de Goiânia e foi para lá. Acho que estamos tranqüilos e podemos discutir esses assuntos com mais critério.

Depois dessas explicações, voltou-se para ela:

A senhora está no comando. Acho que o nosso parceiro já leu o ma­terial e anda curioso.

O tenente não perdeu a oportunidade de exercer a sua bonomia.

Se a senhora achar que a platéia é muito grande, eu posso sair.

Mas em vez de estragar o ambiente, todos riram e Maurício serviu o café, enquanto a capitã fez um pequeno resumo dos fatos, analisando-os sucintamente, para ajudar nas decisões que eles teriam que tomar.

Não falou mais do que vinte minutos, resumindo o tema da reunião e os perigos pelos quais já tinham passado. Nem Maurício nem Rogério a inter­romperam para que ela não perdesse o seu melhor raciocínio. Falara como uma comandante e pelo jeito já tinha feito palestras para platéias selecionadas.

O tenente comentou:

Estou impressionado. Estava desconfiando de coisas assim, mas não pensei que vocês já tinham passado por tudo isso. Não imaginava também que o Exército estava tão preocupado.

Para Maurício, no entanto, todas aquelas coisas estavam ainda muito vagas. Era preciso orientar os trabalhos para situações objetivas. Procurou mostrar essa preocupação.

Acho muito importante que tenhamos informações niveladas sobre o problema. Mas entendo que é também importante que elas nos levem a con­clusões sobre o que de fato está acontecendo e o que ainda pode acontecer.

Eles sentiram o tom de seriedade que estava sendo dado à reunião e ele continuou:

De concreto, o que nós temos não é muito esclarecedor. A morte do general, outra morte no Chuvisco, dois atentados, uma Confraria no meio da selva e a ameaça de origem não identificada de invasão da Amazônia. Como ligar esses fatos?

Pegou uma das folhas que o tenente imprimiu:

Por exemplo, existe aqui um estudo de dois cientistas, que desmistificam as propagandas contra a Amazônia. O que podem nos dizer esses estudos?

Eram informações veiculadas no seminário da Escola Superior de Guer­ra, ESG, sobre as declarações de Parrick Moore, fundador do Greenpeace, e Philip Stott, publicadas no New York Post em 9 de julho de 2000. Se­gundo esses dois ambientalistas, as teses divulgadas nos Estados Unidos e Europa sobre os perigos ambientais para a humanidade provenientes da devastação da floresta amazônica eram falsas.

Estes cientistas afirmam que:

 

"O movimento para salvar a floresta tropical amazônica é incorreto.

E na melhor hipótese o movimento desencaminhou-se. Na pior hipótese,

ele é uma fraude. Todos os segmentos dos salvadores da floresta ama­zônica estão baseados numa falsa ciência. Estão simplesmente errados.

Nós encontramos a floresta tropical amazônica, mais de 90%, intacta.

Voamos sobre toda a sua extensão e contatamos com todas as autoridades.

Estudamos as fotos de satélites em toda a área."

 

É um estudo bem recente e publicado por pessoas insuspeitas. En­tão, a primeira conclusão é que alguém está criando situação inexistente e isso por si só é suspeito. Pelas pesquisas da Empresa Brasileira de Pesqui­sa Agropecuária, Embrapa, que é um órgão do Ministério da Agricultura respeitado em todo o mundo, o desmatamento gira em torno de 10%, devendo ainda ser considerado que mais de 70% desse percentual circunda áreas urbanas, ou seja, desmatamento para produção de alimentos num país onde dezenas de milhões de pessoas passam fome. Isso não pode ser visto como uma agressão ao meio ambiente.

Então - disse o tenente -, o crime do qual nos acusam é uma farsa e, portanto, a acusação é uma fraude.

Assim parece! E, nesse caso, podemos começar pelos primeiros passos da investigação criminal: a quem interessa a farsa?

A capitã deixava os dois dialogarem.

Aí é mais fácil. E só ir atrás das divulgações enganosas e de quem está fazendo pressões.

Pois é, tenente, mas a gente se assusta, porque as pressões levam direta­mente aos Estados Unidos e à Europa. Por exemplo, essa informação de que no ano de 1991 o presidente Collor e o secretário do Meio Ambiente do Bra­sil, Lutzemberg, participaram de reunião a bordo do iate real Britannia, que emblematicamente estava ancorado no rio Amazonas, e nessa reunião estavam presentes o príncipe Charles, o ministro do Meio Ambiente da Inglaterra, o diretor da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos e o coordena­dor da Comunidade Européia, é indicadora de pressões internacionais.

O tenente brincou:

Não me convidaram para essa reunião e não sei o que falaram, mas isso tudo está circulando por aí e ninguém contesta.

Logo depois, o Collor foi aos Estados Unidos e o presidente George Bush entregou-lhe uma carta de senadores americanos para que a delimi­tação da reserva dos Ianomâmis fosse acelerada. Houve pressão da ONG inglesa Fundo Mundial Para a Natureza, e a reserva foi criada.

Só do lado do Brasil, são dez milhões de hectares, para apenas oito mil índios.

O mais grave é que o presidente venezuelano, Carlos Andrés Peres, também criou uma reserva do lado da Venezuela e, com a reserva brasileira, acabou por inviabilizar antigo projeto de ligação da bacia do Prata com o Orenoco, através da Bacia Amazônica.

É verdade. Li nesses artigos que um dos planos de desenvolvimento econômico da Amazônia é a ligação do rio Paraguai até o Orenoco, ligando o Pacífico ao Atlântico, com essa imensa rede fluvial.

O tenente continuou:

Coincidência ou não, tanto o Collor como o Andrés Peres acabaram sendo afastados do governo por corrupção.

E segundo esses artigos, o Lutzemberg recebia salários da ONG Gaia Foundation - completou a capitã.

Dá o que pensar, não dá? - comentou o tenente.

Bem, parece que não está sendo difícil identificar os interessados. Agora, vamos a outro exercício que também não parece difícil. Vamos ten­tar descobrir em que é que estão interessados.

Acho que isso aí não precisa de muito raciocínio — disse o tenente. — Existem pronunciamentos do próprio Senado Federal de que só em petró­leo e gás deve existir na Amazônia seiscentos e cinqüenta bilhões de dólares.

Já mandei fazer um levantamento na minha fazenda para vender ma­deira. A média por hectare foi de dez metros cúbicos, o que não é das mais otimistas. Ora, se um quilômetro quadrado tem cem hectares, então de­vemos ter uma média conservadora de mil metros cúbicos por quilômetro quadrado. Supondo que a Amazônia tenha ainda uns quatro milhões de quilômetros quadrados de florestas, então a nossa reserva de madeira seria de quatro bilhões de metros cúbicos.

E quanto poderia valer o metro cúbico?

No caso, devemos pensar valor da madeira industrializada que tem preço médio de mil dólares o metro cúbico.

A capita franziu a testa.

Tudo isso? O senhor está calculando que a floresta amazônica pode ter valor agregado de quatro trilhões de dólares? Só em madeira?

Mas não é só isso. Os produtos industrializados por laboratórios quími­cos podem chegar a quinhentos bilhões, e ainda existem minérios em quan­tidade insondável. E procurando dar ênfase, concluiu: - A Amazônia é um patrimônio hoje de mais de dez trilhões de dólares. Ela sozinha vale muitas vezes a nossa dívida interna e externa somadas.

A capitã repetiu, pensativa:

Dez trilhões de dólares! É uma tentação para esses países. E está tudo meio abandonado.

Foram verificando os trabalhos impressos pelo tenente. As estimativas do Senado não estavam isoladas. Havia estudos dizendo que só na reserva dos índios Ianomâmis a riqueza mineral superava um trilhão de dólares.

O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Inpa, tem estudos indicando que seriam necessários três trilhões de dólares por ano para con­trolar o efeito estufa, se não existisse a floresta amazônica - comentou a capitã, que continuou:

Segundo alguns pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Es­tados Unidos, os benefícios criados pela floresta corresponderiam a 1,1 trilhão de dólares por ano.

O tenente começou a esfregar o rosto com a palma das mãos e a capitã perguntou preocupada:

O senhor está bem, tenente?

Estou sim, obrigado. E que esses números me assustam. Como é que nós três vamos conseguir defender um tesouro dessa ordem? Somos três mosqueteiros. E o nosso D'Artagnan morreu.

Arrependeu-se com a brincadeira que fez com a morte do general e mudou logo o assunto, antes que a capitã se ofendesse:

Vocês sabem se existem ONGs querendo internacionalizar as florestas dos países ricos?

Maurício preferiu voltar às análises.

-Já temos, portanto, resposta a duas questões: "Quem?" E "O quê?" Falta responder "Quando?" e "Como?" Vamos começar com o "Como". Talvez identificando os meios de ataque fique mais fácil responder o "Quando".

Olharam para a capitã, que estava calada e entendeu a muda inda­gação deles.

Os senhores sabem que o nosso efetivo na área é muito pequeno.

O tenente perguntou:

E as polícias militares?

Ela balançou a cabeça.

Não podemos contar com polícias comandadas pelos governos locais. Não quero ofendê-lo. Mas temos receio de que, se surgir movimento de desligamento da Amazônia, haja apoio local.

Maurício ficou em silêncio. "Ela não precisava ter dito isso."

O tenente ficou indignado.

A senhora não está querendo dizer que a Polícia Militar é traidora, não é?

Desculpe! Fui infeliz no comentário. Mas as Forças Armadas acham que, seja lá quem for que esteja organizando isso, certamente já conta com apoio dentro do nosso governo, dentro do próprio Exército e principal­mente entre os governos locais.

O tenente olhava para ela incrédulo.

Então não podemos confiar em ninguém? Nem mesmo nas For­ças Armadas?

O general Castro morreu. Era o chefe da Abin e não sabemos ainda quem é o responsável. Nós mesmos quase morremos. Eu, em três situa­ções, duas das quais só não morri porque o senhor estava lá.

Ela falou de modo comovente. Os olhos estavam lacrimejantes e a face vermelha. Pegou um lencinho na bolsa.

Desculpe. Essa situação está me deixando muito nervosa.

O tenente olhou para Maurício como se perguntasse o que ele estava fazendo ali ainda e não os deixava a sós pelo menos uns minutos. Mas pro­curou amenizar a tensão do momento.

A senhora é que me desculpe, capitã. Mas, pelo que está dizendo, não temos condições de enfrentamento armado. Aliás, isso consta até mesmo de alguns estudos. Mas, então, o que podemos fazer?

A capita voltara ao normal e respondeu:

Primeiro, acho que nenhum país tentará invadir a Amazônia pelos meios convencionais de guerra. Estamos também organizando forças de resistência para cansar o inimigo. O problema é que os adversários estão adotando para a Amazônia uma estratégia que chamamos de "anestesia local".

Anestesia local? Nunca ouvi falar disso como estratégia militar.

Maurício também achou interessante essa observação da capitã. Pelo menos as Forças Armadas não estavam omissas e vinham analisando todas as hipóteses.

Não é difícil entender. ONGs, pressões sobre os governos locais, como por exemplo o caso já conhecido de empréstimos internacionais só serem liberados mediante a criação de reservas dentro do Estado tomador do empréstimo, a propaganda internacional, e assim por diante. O país fica anestesiado em pontos localizados, até perder toda a sensibilidade.

E se a Amazônia for dividida em vários alvos? - perguntou Maurício.

O senhor quer dizer, por exemplo, os Estados Unidos ficam com o Estado do Amazonas, a Inglaterra cuida de Roraima, algo assim?

E, sem esperar a resposta, continuou:

Já pensamos nisso. A divisão geográfica é uma das formas de soberania compartilhada. Isso pode ocorrer, mas acreditamos que em último caso. Por enquanto o que existe é uma luta surda e oculta pela ocupação da Amazônia.

A capitã falava com tom de voz de quem tinha informações privilegiadas:

Sob o ponto de vista da evolução econômica, a Europa é a região mais carente de meios naturais de riqueza. A China, a Índia e outros países populosos da Ásia são carentes de espaço para a produção de alimentos. Já os Estados Unidos se apoiam no Direito Geográfico para manter sua hegemonia mundial.

Maurício comentou:

A senhora tocou num ponto interessante. De fato, já existe certa agressividade nas atitudes dos países interessados. A vida humana, pelo menos a nossa vida humana - e frisou o nossa - não conta para eles. Vejam só essa questão do "malthusianismo" do Kissinger.

E mostrou um impresso com o título de "O Memorando NSSM: o mal­thusianismo institucionalizado na política exterior dos Estados Unidos."

Estudei esse tal de Malthus para o concurso do Itamaraty. A teoria dele é de que a população mundial cresce em ordem geométrica enquanto a produção de alimentos cresce em ordem aritmética, ou seja, num certo dia, vamos todos morrer de fome.

Mas isso não acontece porque, segundo Malthus, as guerras, as epi­demias e a fome crônica acabam eliminando o excedente da população e criando novo equilíbrio do estoque humano. Mas isso não vem acontecen­do e a população mundial cresceu, ameaçando as reservas de alimentos.

Estoque humano! - repetiu o tenente, como se não tivesse gostado da expressão.

Maurício não deu atenção e continuou:

Segundo esse artigo, Henry Kissinger, quando era chefe do Conselho de Segurança Nacional, e George Bush, que na época era o chefe da CIA e posteriormente foi eleito presidente dos Estados Unidos, elaboraram uma política secreta com a finalidade de reduzir a população dos chamados países do Terceiro Mundo, inclusive o Brasil, para sobrar matérias-primas e alimentos para os Estados Unidos.

Nem a capitã, nem o tenente fizeram comentários.

O que dá para se entender desse artigo é que o crescimento das popula­ções no Brasil, Índia, Bangladesch, Paquistão, Egito, Turquia, México, Indo­nésia, Filipinas, Tailândia, Etiópia, Nigéria e Colômbia podia colocar em risco a produção de alimentos e o suprimento de minerais para os Estados Unidos.

Não tive tempo de estudar esse artigo como devia, mas entendi que os Estados Unidos só iriam ajudar os países pobres que fizessem controle de natalidade - disse o tenente.

É por aí.

Eu só não entendo como não puseram a China.

A China era comunista, nenhuma estratégia de controle populacional dos Estados Unidos seria aceita por lá.

A capitã foi sarcástica:

Que sensibilidade humana. Não se vislumbra aí nenhum humanis­mo, mas apenas americanismo. Não estão preocupados realmente em re­duzir o controle da população para salvar o mundo, mas todo o enfoque é para salvar os Estados Unidos.

É — disse o tenente. — Dá para entender a facilidade como eles querem matar um brasileiro para salvar uma árvore. Ora, se eles fazem plano de deixar que a população morra de fome para que sobre comida para eles...

Existem motivos reais para preocupação. Olhem essa conclusão do mesmo trabalho que foi divulgado como sendo da ESG:

 

O exame, ainda que superficial, do mapa demográfico mundial, mostra-nos regiões superpovoadas e regiões despovoadas. Entre estas destacam-se o Saara, a Antártida, as vastidões geladas da Sibéria, o nor­te do Canadá, o Alasca e as alturas nevadas do Tibete ou alguns outros maciços e a Amazônia. Todas estas regiões são praticamente inabitáveis, exceto a última — a Amazônia.

Levando-se em conta a explosão demográfica mundial, a terra de­sabitada, mas habitável, da Amazônia será objeto cobiçado. E se for a única, corre perigo, independentemente do consenso ou dos tratados...

 

E parece que não somos nós brasileiros os únicos a achar que essas idéias ambientais escondem outros interesses. Ainda o seminário da ESG traz um estudo interessante. E leu:

 

No livro dos jornalistas americanos Gerard Colby e Charlott Dennett, com título em português Seja feita a vossa vontade, Rio de Janeiro, Record, 1988, assim é abordada a geopolítica do Departamen­to de Estado: "No caso da Amazônia tais disfarces estão embutidos nas mistificações ambientalistas, nas hipocrisias rotuladas de direitos huma­nos e nas distorções conceituais sobre reservas indígenas para encobrir as políticas de exploração econômica que têm sido tratadas, com apoio nos meios de comunicação de massa, que manipulando a cultura de massa, no que diz respeito às culturas populares nacionais, conseguiu, utilizando-se de poderes locais subservientes e de formadores de opinião mercenários, criar um estado coletivo de passividade ou alienação que favorece a penetração dos poderes externos hegemônicos com seus planos de novo tipo de colonização. A colonização que está sendo posta em prá­tica difere da colonização (ou globalização)...

 

Como se quisesse dar descanso a Maurício, a capitã observou:

Não há dúvida de que estamos em estado de beligerância e temos o dever de proteger o território nacional, seja qual for o invasor. É muito significativo que esse estudo tenha chegado à conclusão de que o livro Seja Feita a Vossa Vontade, de mil e noventa e quatro páginas, escrito por jornalistas americanos põe em evidência que "as políticas ambientalistas e de direitos humanos e proteção dos povos indígenas, do ar­senal das missões religiosas " tem atuado "como força-tarefa para transferir aos Estados Unidos não a superfície amazônica, mas do que sobre e sob ela está. Razão por que ela deve permanecer como reserva estratégica do poder norte-americano ".

Maurício lembrou que o ex-ministro da Economia, hoje deputado Delfim Netto, escreveu artigo em que disse:

 

Eu achava isso tudo paranóia, mas hoje acredito que épossível uma reserva indígena declarar independência do Brasil e obter o reconheci­mento imediato dos Estados Unidos.

 

O ridículo disso tudo é que já estão vendendo a Amazônia até pela internet. O senhor notou? - perguntou o tenente.

Sim. Sim. É como dizem aqui num dos artigos colhidos pelo senhor. Oferecem uma propriedade desenhada no mapa sem nenhuma documenta­ção e informam aos interessados que eles podem criar uma "área particidar de reserva natural para proteger a Amazônia". E dessa forma já surgiram talvez mais de mil ONGs que constituem um poder informal na Amazônia.

O dia estava quente e por sorte a sala tinha ar-condicionado que funcio­nava bem e eles podiam conversar confortavelmente. A capitã aproveitou o momento e olhou para o tenente. Sem afetação, mas escondendo qualquer encanto que poderia ter a voz feminina, perguntou:

O senhor está bem, tenente? Acha que podemos continuar ou prefere repousar?

O tenente esforçou-se para sentir um tom amistoso naquela voz.

-Ah! Sim. Esse assunto está palpitante. Tenho analgésicos, caso necessá­rio, mas estou bem. Aliás, se me permitem, vou pegar água na geladeira.

Mas não foi preciso levantar-se. A capitã pediu-lhe para continuar sen­tado e trouxe água e café.

Maurício continuou:

Desde criança, nos ensinam que a Amazônia é nossa. E isso se incor­pora aos nossos sentimentos como verdade absoluta. No entanto, lá nos países que vêm descobrindo e dominando o mundo há milhares de anos, o desenho do Brasil é apenas uma carta geográfica sujeita a alterações.

E depois filosofou:

Sabem, ou melhor, os senhores sabem melhor do que eu que só se formula uma conspiração contra um organismo com a anuência dele. Até mesmo no organismo humano se pode confirmar essa teoria. Os vírus só atacam com o organismo desprevenido ou imprudente.

Percebeu aquele olhar de quem não está entendendo.

É simples. Quem pode afirmar que regiões como Manaus, Belém e Porto Velho, já não estariam de acordo com essa internacionalização, con­forme alertou a capitã?

— É — disse o tenente —, não tinha pensado nisso. Uma conspiração des­se vulto, com tanto dinheiro envolvido e com esse imenso território cheio de riquezas, com certeza tem gente de dentro. Só pode ter. Aliás, aí está a explicação dos atentados.

Maurício levantou-se para pegar outro impresso, quando o celular do tenente tocou.

Sim, é Rogério, o que houve? Não diga! Está bem. Está bem. Me dê notícias. Boa sorte!

O tenente olhou para eles, meio cético e foi categórico:

Temos de sair daqui. Jogaram uma bomba no quartel e todas as uni­dades foram chamadas. A situação é de emergência e os policiais que es­tavam aí em vigilância tiveram de ir. Na minha opinião, isso foi plantado, para ficarmos sem segurança.

A capitã olhou-o surpresa e disse:

Concordo com o senhor. Temos de sair daqui, mas não se preocupem. Terão dificuldade de chegar a este edifício.

Maurício disse:

A maioria dos papéis pode ficar. Acho que ninguém vai se interessar por eles. Vou levar apenas alguns que me despertaram maior interesse.

Saíram. Maurício foi até a mesa e pegou um maço de papéis que esta­vam separados. Depois trancou tudo enquanto os dois desciam as escadas que ficavam no fim do corredor. Quando passou pelo elevador social, ele estava subindo. Podia ser coincidência, pois afinal era edifício comercial, um prédio de escritórios. Apertou o passo e alcançou os outros dois. Che­garam ao térreo e os policiais já não estavam mais lá.

A capitã pegou um walk-talk e logo depois três veículos se movimenta­ram. Eles entraram no carro do meio e saíram do local.

Maurício notou que todos os veículos que entravam na rua estavam sendo vistoriados por uma equipe de segurança do Exército. O tenente olhou aquilo e disse:

É, capitã. A senhora estava cuidando da minha saúde, não estava?

Ela sorriu e o tenente preferiu ficar no alojamento do quartel da Polícia Militar. Lá ele estaria seguro e tinha ainda quem o levasse a algum lugar, se precisasse.

O aparato policial em frente do quartel era grande. A explosão havia des­truído a guarita da entrada e houve vítimas. O tenente foi transferido para uma viatura e levado para o alojamento, onde nada tinha acontecido.

A capitã levou Maurício até o hotel. Ele queria estudar melhor os papéis que havia trazido. Ela foi para o seu gabinete e ficaram de se comunicar mais tarde para marcar novo encontro.

O homem da CIA acompanhou a saída do tenente do hospital até a quadra 2 do setor comercial sul. Deixou o carro no estacionamento perto do bloco 5 e foi até a livraria que ficava no edifício ao lado, de onde podia perfeitamente acompanhar os acontecimentos.

Comprou uma revista e sentou-se no banco de cimento, embaixo de uma árvore, e passou a observar discretamente tudo o que acontecia. Exa­minou o bloco 5. Um prédio comum, de escritórios, moderno, construído sobre pilotis, com espaço livre embaixo.

"Com certeza a capita ainda vai aparecer", pensou ele. "Os dois já subi­ram e os fardadinhos já levaram a papelada."

Logo chegaram três viaturas do Exército. A capitã estava na viatura do meio e bem protegida. "A mulher da Abin", pensou ele.

O prédio tinha dois elevadores. Ele levantou-se calmamente, foi até a banca de jornal, comprou o Diário de Brasília e se dirigiu ao saguão do prédio. Brasí­lia é cidade cheia de fardados e, portanto, uma militar a mais ou a menos não podia impressionar. Ele olhou para a capitã como se fosse apenas uma mulher com curvas que chamavam a atenção, sem demonstrar curiosidade.

Quando a porta se abriu, ela e mais algumas pessoas que trabalhavam no edifício entraram e ele também. Viu que ela apertou o botão do quarto andar e ele apertou o do terceiro. Saiu do elevador e caminhou pelo cor­redor como se fosse a alguma sala determinada, mas quando o elevador fechou as portas ele voltou e apertou o botão de descida.

Voltou para o banco, pôs o jornal e a revista de lado, pegou o celular e discou.

A milhares de quilômetros de distância, no Centro de Processamento de Dados da NSA, em Langley, uma pessoa disse em inglês:

Já estou com as coordenadas. O celular que você está usando é muito completo. Serve para muitas coisas.

Preciso que você me diga se alguém está acionando algum daqueles sites a partir de agora.

Pacientemente, ficou observando. O carro da PM continuava estacio­nado perto do seu. Os militares faziam controle de entrada e saída de cada motorista. Não gostou. A cada dez minutos informavam que nenhum computador dentro daquele edifício estava ligado nos tais assuntos.

Nada? Existem computadores ligados nessas coordenadas, mas ne­nhum está fazendo pesquisas nesses sites? Entendo. Continue atento.

As informações que chegavam eram sempre negativas. Depois de quase três horas, o veículo da Polícia Militar saiu de forma apressada. Viu que um dos policiais tinha telefonado antes e imaginou que era alguma comunica­ção com os três do quarto andar.

Achou aquilo estranho. Dirigiu-se displicentemente para o seu carro. Precisava ver se ele estava fácil de sair. Antes dera uma boa gorjeta para o guardador que ficava ali fingindo que tomava conta dos carros, porque ia precisar dele se tivesse de sair com pressa.

Não demorou muito e os três apareceram apressados dirigindo-se para os veículos do Exército, que também se movimentaram. Eles entraram no veículo do meio e se foram. "Acabou o controle", pensou, e foi até o carro, onde o guardador o esperava, solícito.

O telefone tocou. Era da NSA.

Encontrou alguma coisa?

Não, respondeu o outro, mas aconteceu alguma coisa aí por perto. Pelo nosso sistema, houve uma explosão que, pelo mapa da cidade, é no setor policial, na direção do aeroporto. Uns dez quilômetros de onde você está.

  1. Thanks. Ligo se precisar.

Acompanhou, com cuidado e um pouco afastado, as viaturas, mas nem precisava, porque conhecia o local da explosão. Chegou no momento em que o tenente era conduzido por outra viatura para dentro do quartel.

Evitou ficar por perto porque o ambiente estava muito vigiado. Foi até mais adiante e ficou observando pelo retrovisor os veículos do Exército que logo saíram e tomaram o rumo do setor hoteleiro.

"Uma explosão num quartel da PM? Mas com que finalidade? Bem, o pessoal não se sentiu muito confortável e saiu às pressas. Eu também teria feito o mesmo. Mas penso que estão cometendo um erro. Esses brasileiros são tão confiantes!..."

Maurício pegou a chave na recepção e foi para o quarto. Saiu do ele­vador com cuidado, examinou o corredor e tomou precauções para evitar surpresas. Achou que o tenente exagerou na história da bomba no quartel. Se fosse para tirar os guardas de perto do edifício onde estavam, teriam tirado também os soldados da capitã. Mas, enfim, é bom ser precavido.

Pegou o telefone e ligou para o tenente. Tinham pedido para Rogério deixar o celular ligado.

Pronto. É o tenente Rogério.

Tenente, é Maurício. O senhor está bem? O que aconteceu aí?

Olha, não sabem ainda os motivos dessa bomba, mas o quartel já está em ordem. Os peritos estão fazendo todos os testes possíveis no material do artefato.

Ótimo! Uma pergunta: o senhor não acessou a internet ainda, não é?

Não, não acessei, o senhor quer alguma pesquisa?

Não, não. É apenas uma questão técnica. O senhor acha que é possível que alguém consiga descobrir quem puxou esses trabalhos pela internet?

Houve um certo silêncio do outro lado.

O senhor está querendo saber se do lado dos adversários existe algum expert que possa me rastrear?

Isso mesmo.

Novo silêncio e o tenente respondeu:

Sem nenhuma dúvida. Esse é um ponto estratégico. É melhor não mexer mais nessa tal de internet por enquanto. Mas precisamos encontrar uma saída para isso, pois a internet vai ser importante para nós.

Claro! Então, por enquanto, é melhor não chegar perto de computa­dor. Quando o senhor volta ao hospital?

O médico pediu para eu voltar lá daqui três dias, mas estou me sentindo bem. Nós temos aqui um médico de plantão e pode ser que nem volte lá.

Maurício pensou um pouco e se arriscou.

Como está se sentindo? Muito cansado?

Não, estou bem. Por quê?

É sobre aqueles trabalhos em linguagem diferente. Na minha opinião aquilo são mensagens e acho que a gente precisa começar a tentar decifrá-los com urgência.

Cheguei a pensar nisso, por isso imprimi o material. Mas não conse­gui entender nada daquilo. O que propõe?

Olha, se puder vir até aqui. Quem sabe os policiais que estavam vi­giando o hotel antes...

Parou de repente.

"Meu Deus! Os policiais não estão aqui. O tenente está num quartel e bem vigiado. A capitã está dentro de um órgão de segurança e muito pro­tegida, mas eu estou aqui sem proteção nenhuma!"

Do outro lado da linha, a iminência do perigo ficou clara.

Estou indo para aí agora com os policiais. Não saia do quarto. Chame a segurança do hotel.

Desligou o telefone. Maurício olhou pelo espelho da porta e não viu nin­guém no corredor. A camareira estava limpando um quarto quase em frente e ele não teve dúvidas, pegou o seu 38, colocou-o sob a camisa, abriu a porta e saiu deixando que ela batesse e se fechasse sozinha. Correu até o quarto onde estava a camareira, entrou e fechou a porta. Ela se assustou e perguntou:

E o senhor que está hospedado aqui? Mas não está no quarto 915?

Maurício fez sinal para ela ficar em silêncio e disse apenas:

Não faça barulho! Parece que alguns ladrões estão no corredor e eu já chamei a polícia. É melhor ficarmos quietos.

Ela ficou branca e começou a rezar.

O olho mágico da porta não dava visão completa do corredor, mas ele con­seguia ver a frente do seu quarto. Não demorou muito, chegou um mensageiro com uma bandeja na qual estava um envelope com o timbre do hotel e apertou a campainha. Não tendo resposta, apertou de novo e em seguida bateu na por­ta com o nó dos dedos. Um outro tipo alto, de terno, com as mãos sob o paletó postou-se em frente à porta do quarto 913, que era contíguo ao dele.

Os quartos pares ficavam de um lado do corredor e os ímpares do ou­tro. Debaixo da bandeja, escondida sob um guardanapo branco, o "gar­çom" segurava uma arma.

Ouviu o mensageiro tocar a campainha novamente e com insistência. A camareira afastou-se e foi para o fundo do quarto. De onde estava, podia ver as portas dos elevadores e um deles estava subindo. O tenente podia aparecer no corredor a qualquer momento. Estava pensando numa ma­neira de ajudá-lo, mas sabia que, se abrisse a porta do quarto onde estava, seria eliminado sem tempo de reagir. Aqueles sujeitos eram profissionais e estavam em dupla.

A porta do elevador se abriu e ele não teve mais dúvidas. Precisava avisar o tenente, e a melhor maneira seria distrair aqueles dois. Pôs a mão na maçaneta, mas ficou aliviado quando viu que não era o tenente que estava chegando.

Um sujeito moreno, de terno marrom amarelado, saiu descuidadamente e caminhou em direção ao quarto 917. Os dois ficaram alerta, sem saber que atitude tomar. Não contavam com o intruso, mas, por outro lado, o alvo que devia estar no quarto 915 ainda não tinha aparecido.

O recém-chegado cumprimentou-os com um "bom-dia" e parou diante da porta do quarto 917 para abri-la. Levou a mão ao bolso da camisa, por baixo do paletó, para pegar a chave. De repente, foi como numa cena de fa­roeste. Ele virou-se com rapidez para o que estava em frente ao quarto 913 e atirou. O mensageiro deixou a bandeja cair e apontou a arma para o intruso, mas era tarde. Foram apenas dois tiros, um em cada testa.

O sujeito foi até o mensageiro e arrastou-o para longe do quarto de Mau­rício. Nisso a porta do elevador se abriu e o tenente saiu correndo empunhan­do a arma. Apontou para o moreno, que levantou as duas mãos e sorriu.

Maurício abriu a porta.

Calma, tenente, não sei quem é ele, mas certamente não está contra nós. Explico depois. Virou-se para o outro e perguntou:

Quem é você?

Talvez a gente se encontre mais vezes por aí. Vocês terão notícias mi­nhas. Acho melhor o tenente encontrar uma explicação razoável para isso, e apontou para os dois. Depois, tomou o elevador que ainda estava parado no mesmo andar e desceu.

O tenente olhou para o elevador sem saber se prendia o moreno ou seguia as ordens dele. Olhou para os dois corpos no chão, mas Maurício levou-o para o quarto e explicou o que houve.

Ainda bem que o senhor pensa rápido. Os safados não iam aprontar nada com a gente lá no escritório. Era muito difícil e ainda tinha a seguran­ça do Exército. O que eles queriam era tirar os policiais de perto do hotel.

Mas quem será esse sujeito? Com certeza vamos vê-lo de novo. Ainda bem que existe gente querendo nos salvar. Uns querendo matar e outros aparecendo de surpresa para ajudar.

Maurício lembrou-se da Buritizal e da possível intervenção dos templários.

Esse assunto está ficando cada vez mais esquisito. Esse sujeito saiu do elevador com a certeza de que ia encontrar dois assassinos prontos para o crime. Num instante, percebeu que um deles estava com a arma debaixo do paletó e preparado para atirar, enquanto que a bandeja era um empeci­lho para o outro. Deu um tiro na testa de cada um e saiu tranqüilamente como se tivesse tomado sorvete. Me responda: em que organização existe gente assim?

Com certeza não é coisa do Brasil, mas não senti sotaque estrangeiro quando ele falou.

Pois bem — disse Maurício —, a conclusão é que nós estamos sendo seguidos por mais de uma organização.

O tenente chamou os policiais da viatura e foram feitas as formalidades normais. O Boletim de Ocorrência policial informou que o tenente Rogério ia falar com o doutor Maurício e encontrou dois ladrões nos corredores. Eles se assustaram quando o viram e o tenente, mesmo doente, reagiu. Outro ato de heroísmo.

Já almoçou?

Ia comer qualquer coisa quando me chamou.

Bem, o hotel deve estar um alvoroço. O senhor virou herói novamente. Acho melhor pedir alguma coisa aqui no quarto e assim a gente ganha tem­po para decifrar esse enigma.

Maurício preferiu não falar na capitã. Os dois se comportaram bem e era melhor que as coisas andassem por si mesmas. Conversaram sobre vá­rios assuntos para distrair um pouco a mente e depois do lanche Maurício pegou os papéis que trouxe do escritório.

Eram seis mensagens em código. Todas elas enviadas para sites desco­nhecidos. A origem também era desconhecida. E óbvio que um assunto desse tipo devia ter código para transmissão de mensagens.

O homem da CIA seguiu os veículos do Exército até o hotel onde esta­va hospedado o homem da Receita. Ele não quis se aproximar muito e seria melhor ficar por ali. "Tenho tempo", e procurou uma vaga na rua ao lado, onde o guardador veio correndo para orientá-lo. Ia estacionar quando ou­tro carro chegou por trás e tomou a vaga.

Ei! — gritou. - Essa vaga é minha, pergunte ao guardador.

Não senhor! Eu cheguei primeiro - disse o outro, que deu dez reais ao guardador e disse para ele ir embora dali.

No entanto, a posição do outro carro bloqueava o seu e ele nem podia sair para procurar outra vaga, porque não tinha mais espaço. Também não podia deixar o carro ali, porque estaria impedindo todos os outros carros. "Isso também foi proposital." Avançou sobre o outro, tomou-lhe a chave, afastou o outro carro e estacionou o seu, saindo rapidamente, enquanto o proprietário do carro aprontava um escândalo.

"Depois eu vejo como resolver isso, mas agora preciso ir àquele hotel", pensou e saiu correndo.

Chegou à entrada do hotel meio suado. Ajeitou-se para não parecer muito esquisito e o porteiro cumprimentou-o:

Boa tarde, doutor. Está quente hoje, não?

"Mania de brasileiro, todo mundo é doutor. E só pôr gravata vira doutor."

Respondeu o cumprimento e entrou na recepção. Estudou com rapidez o ambiente. Estava tudo calmo. "Coisa estranha. Será que meus pressentimentos estavam errados, ou será que cheguei cedo demais? Ou será tarde demais?"

Não passou muito tempo e uma viatura da PM chegou ao hotel. "O te­nente? Será que perceberam em tempo a besteira que estavam fazendo?" Viu o policial descer da viatura e ir às pressas para o elevador. O hotel dispunha de três elevadores sociais. Um deles havia subido até o último andar, mas tinha antes parado no nono. Dos outros dois, um estava no térreo e outro estava descendo.

O tenente entrou e o elevador subiu. Parou no nono andar.

"Bem", pensou, "é melhor ficar observando. Se houve alguma coisa, já é tarde. Se não houve, pelo menos agora o homem não está sozinho."

Observava tudo com cuidado. Era hora do almoço e muitas pessoas vinham ao hotel e ficavam no saguão ou no bar esperando por amigos.

Logo depois, os policiais foram chamados. Os funcionários tentavam justificar. "Estão enganando todo mundo", pensou ele, "e eu também". O elevador que o tenente havia tomado estava ainda no nono andar e come­çou a descer. Parou no sexto. "Pegou alguém no nono andar e talvez algum hóspede do sexto", calculou. "Mas por que demorou tanto no sexto andar?" Depois, parou no primeiro andar e logo em seguida desceu até o térreo. "Ninguém no elevador? Estranho!"

Um homem de idade, meio curvado, apoiado numa bengala, passou por ele. Andava devagar, o porteiro veio ajudá-lo e chamou um táxi.

"Idade", pensou. "Mas espera um pouco. Um velho de bengala descendo a escada? Por que não pegou o elevador? Por que será que desceu a escada? Será que ele era mesmo velho ou estava despistando? Será que ele saiu do elevador no primeiro andar e desceu pela escada? Tem coisa esquisita nesse velho. Pode ter parado no sexto andar para colocar esse disfarce de velho.Vou segui-lo."

Saiu apressado, mas a porta giratória da entrada do hotel estava com muitas pessoas. O movimento era grande, talvez devido ao horário do al­moço. E, quando ele saiu, o táxi com o velho já tinha desaparecido.

Foi até o estacionamento. O outro carro tinha ido embora, o guardador também desaparecera e nada de errado tinha acontecido com o seu. "Acho que tem gente mais esperta que eu. Tenho de reconhecer isso. Mas um dia chega a minha vez." Entrou no carro e deu a partida.

Mudou de idéia, desligou o motor e voltou para o hotel.

"Não pode ser. Alguma coisa deve ter acontecido naquele hotel. É me­lhor voltar lá para saber."

O porteiro estava em frente à porta giratória e olhou-o como se estives­se vendo um ser desorientado, mas empurrou a porta e cumprimentou-o com um "Boa-tarde, doutor".

"Imbecil", pensou.

Foi até o bar e pediu um uísque duplo, com soda.

Movimento estranho no hotel hoje, não? - perguntou ao barman.

Ah! O senhor não está sabendo? Parece que a polícia prendeu dois ladrões no nono andar. O ambiente ficou um pouco agitado, mas já está normal.

Prenderam? Já levaram embora?

Já. Saíram pelos fundos para não impressionar os hóspedes. Nunca aconteceu isso aqui antes. E uma coisa muito esquisita. E com toda a segu­rança do hotel. Parece ser gente que entende das coisas, porque desligaram o circuito de tevê interna que vigia o corredor. Incrível, não é?

Faz tempo que levaram os presos embora? Estive aqui há pouco e não notei nada.

Olha, pelo que eu sei, faz uns dez minutos.

"Perdi essa também", pensou. "Com certeza não levaram nenhum pre­so. O velho de bengala... Por que essa sensação? Mas não vão me tirar daqui não. Sei que o tal policial e o outro não saíram. Bom, a tarde está quente e um drinque não faz mal."

O tempo foi passando. Pediu mais um duplo e depois sorriu satisfeito. Viu a capitã chegar com dois carros. Uma mulher com quatro seguranças. Dois deles, fardados, pegaram o elevador e subiram até o nono andar. Logo em seguida desceram e com eles o tenente e o homem da Receita. O ho­mem da CIA pediu a conta e pagou deixando o troco. Dirigiu-se apressado para o seu carro.

Os veículos tomaram a direção do hospital. "Estranho. Será que algum deles saiu ferido?"

No hospital, o tenente desceu e os outros dois foram com ele. Os carros continuaram esperando. "Então a capitã entrou com eles. Morenaço!..."

Demoraram uma hora mais ou menos. Entraram no carro da frente e tomaram a avenida W3. "Ora, aonde será que eles vão? É a primeira vez que fazem esse trajeto. Aeroporto? Estranho, muito estranho." Pegou o celular, fez uma ligação e foi atrás deles.

No aeroporto, os carros não pararam no setor de aviação comercial e se dirigiram para o setor de aviões pequenos e hangares particulares. Acompanhou-os até onde pôde. Viu que eles foram deixados em frente a um hangar de táxi aéreo.

"Isso não está me cheirando bem. É outra patifaria. O que será que eles estão planejando? Não podem ser mais espertos do que eu e esse exercitozinho verde-e-amarelo é muito subnutrido para enganar a CIA. Vamos ver o que eles vão fazer. Malas? Nem o tenente, nem o homem da Receita estavam com malas, então, no máximo, se tomarem algum avião, é para vôo curto. O homem da Receita tinha apenas uma valise pequena, talvez com papéis."

Um avião Baron 58, Beechcraft, estava esperando pelos três. O motor estava funcionando e, portanto, já estava aquecido. Ele pegou o telefone, discou, falou e depois desligou. Gostava de ver aviões subirem e descerem. Fazia-o lembrar-se dos tempos em que era piloto na guerra do Vietnã. As condecorações e medalhas de heroísmo que recebeu não conseguiram apa­gar a sensação de derrota para um povo simples, mas obstinado.

O Baron movimentou-se, tomou o rumo da pista e ele assistiu com pra­zer à aeronave empinar o nariz e levantar, fazendo em seguida um círculo no céu para tomar o rumo Norte.

Pegou de novo o telefone e informou o seu centro de espionagem:

Foi para o Norte. Mas acho que vai mudar de rota. Tem certeza que dá para captar o Sivam por aí?

Por que você acha que nós brigamos para que esse país não comprasse o sistema francês? Pense bem.

Uma grande discussão atrasou por vários anos a implantação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). Empresas americanas e francesas desenca­dearam uma guerra de acusações pela imprensa, para conseguir o contrato de US$ 1,4 bilhão de dólares, ao final firmado com a empresa americana Raytheon, deixando dúvidas que levaram à demissão do chefe do cerimonial do presiden­te Fernando Henrique Cardoso e várias investigações sem conclusões.

Ótimo! Preciso saber aonde ele vai pousar. O Baron não é um avião pe­queno e, portanto, deve ser numa pista boa. Deve ser alguma pista homologa­da. Estou na espera aqui no aeroporto porque preciso agir rápido. E desligou.

Dez minutos depois o telefone tocou.

Ele fez plano de vôo para as seguintes coordenadas S11.25.10 e W058.42.06. Pelo meu registro trata-se da cidade de Juína, no norte de Mato Grosso. Mais ou menos 685 milhas de distância.

"Juína? São mais ou menos quatro horas de vôo nesse Baron. Bem, ele tem autonomia para cinco horas. Sobra uma hora de margem de segurança. E suficiente. Não resta dúvida, vamos segui-lo. As instruções foram claras."

Pegou o telefone e ligou novamente.

Entrou com o carro no hangar próximo e se dirigiu até um Citation 6, bem conservado, onde piloto e co-piloto estavam prontos para sair. O piloto falou com a Anac e esperou que o seu plano de vôo entrasse no sistema. Logo veio a autorização e em meia hora estava tomando o rumo de Juína.

"Citation 6. Bom mesmo é o Citation 10. O Baron vai fazer uns tre­zentos e trinta quilômetros por hora e este aqui faz em média setecentos. Então, chegaremos lá antes deles e terei tempo de preparar alguma coisa." Pensando em como agir, acabou esticando as pernas e procurou relaxar. "As coisas estavam ficando mais fáceis."

De onde estava, o homem de terno marrom pôde ver o Baron sair e logo em seguida o Citation. Acompanhou todo aquele movimento, enquanto es­perava a chamada para o vôo 1789, da Varig, com destino a Cuiabá. O Ba­ron saíra às treze horas e o seu vôo ia demorar uma hora e quarenta minutos de Brasília até o aeroporto Marechal Rondon, ainda em fase de reformas. Ia chegar, portanto, antes do Baron.

Chegou a Cuiabá no horário certo. De acordo com seus cálculos, eles tocariam o solo pouco antes das quatro da tarde. Estava conferindo a hora em seu relógio de pulso, quando um avião de pequeno porte, tamanho de um Baron, apontou no horizonte. As luzes estavam acesas e a aeronave encostou as duas rodas de trás no solo e depois a roda da frente. O Baron bege PT OXY deslizou elegantemente pela pista de 2.800 metros, mas não utilizou mais do que oitocentos para reduzir a velocidade e taxiar até a pista lateral, onde seus passageiros desceram.

O caminhão de combustível chegou logo e os passageiros se dirigiram para o hangar, certamente para ir ao banheiro e tomar um café, enquanto o avião era abastecido.

Todo esse expediente demorou uns trinta minutos e o homem do FBI ficou observando atentamente. O piloto também já tinha se dirigi­do a Anac.

Os passageiros e o piloto voltaram, e o Baron tomou a cabeceira da pista e levantou vôo. O homem do FBI pôde ver pelo binóculo que dentro dele estavam dois homens e uma mulher. Os dois homens à paisana e a mulher com uniforme de capitã da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso.

O homem do FBI continuou ali, aguardando.

Não demorou muito e outro Baron bege, prefixo PT OXJ, apareceu na pista e ficou esquentando os motores durante alguns minutos. Levantou o binóculo e lá dentro estavam a capitã e seus dois companheiros de fuga.

O homem do FBI sorriu satisfeito. "Aquele idiota não aprende. Como eu gostaria de ver a cara dele em Juína. Essa CIA acha que satélite resolve tudo. Os três fujões trocaram de avião e ainda mandaram a polícia para esperá-los. Como eu imaginava, eles desconfiaram que estavam sendo se­guidos e desviaram de rota. Se aquele imbecil for pego em Juína, o embai­xador vai ter dificuldade para explicar o que a CIA foi fazer lá."

Guardou o binóculo. Voltou para o saguão do aeroporto, comprou uma passagem no vôo 1788, da Varig, com destino a Brasília.

Maurício pensava na informação da capitã de que podia ser um agen­te da CIA que havia matado aqueles dois no hotel. A agilidade e frieza demonstradas por aquele sujeito eram qualidades próprias de profissionais de elevado nível e isso confirmava as especulações de que governos estran­geiros já estavam assumindo papel determinante no assunto.

— A senhora tem mesmo certeza de que aquele sujeito que matou os dois lá no hotel era agente da CIA?

A capitã não era de falar muito. Mas em algumas situações não havia como economizar palavras. Aquela era uma situação de emergência e ela também tinha de dar mais detalhes até mesmo para segurança do grupo.

Nós não temos certeza de que aquele homem é agente da CIA. Temos, porém, certeza de que a CIA já está nos seguindo. Vocês fizeram bem em interromper as pesquisas em computador. Seria fácil concluir que as pes­quisas desses sites na internet pararam quando o tenente foi para o hospital e recomeçaram quando ele saiu. Como dizia o general, bastam dois pontos para traçar uma linha até o infinito.

Os dois ficaram em silêncio.

As ordens que recebi foi para tirá-los de Brasília e continuarmos as pesquisas no computador. Principalmente decifrar o código. Parece que a situação está ficando cada vez mais urgente. Os órgãos de segurança estão tomando providências sigilosas e essa intrusão da CIA pode complicar to­dos os planos de defesa.

Defesa? A coisa já está nesse ponto? - perguntou Maurício.

Em matéria de segurança não se transige - respondeu o tenente no lugar da capitã, que olhou para ele e riu com simpatia.

Sabe, doutor Maurício, é difícil para um civil entender certas preocu­pações das áreas militares. Um exército vive em constantes preocupações de defesa, inclusive fazendo simulações com invasões e inimigos imaginá­rios. Quando então se desenha uma situação como essa, os órgãos militares ficam muito sensíveis e atentos.

De repente, o risco saiu do plano da imaginação para a realidade.

Seus pensamentos projetavam imagens de bombardeios saírem das ba­ses americanas existentes nos países vizinhos do Brasil e pousarem na sua fazenda. Ah! A Buritizal. E como ia ficar a sua fazenda agora?

A voz da capitã trouxe-o de volta ao avião.

Vocês fizeram algum avanço a respeito do código?

A gente estava quase decifrando, quando a senhora nos mandou sair correndo do quarto para virmos para cá. Agora, embaralhou tudo de novo - disse o tenente, no seu jeito meio alegre.

Ainda bem que o senhor mantém o bom humor, porque eu já estou ficando desintegrada.

Todos ali tinham motivos para estarem tensos e cansados, mas a urgên­cia impunha o seu ritmo.

A situação nos obrigou a criar um sistema de desvio de atenções, para dificultar a nossa localização. Precisamos fazer todo o possível para decifrar esse código. Essa tarefa ficou conosco porque não querem, em Brasília, Rio ou São Paulo, iniciar pesquisas nesse sentido. Não podemos divulgar preocupação que não queremos ainda que se espalhe.

Pensou no exagero que era terem confiado a eles essa tarefa de decifrar o código dos adversários. Achou melhor explicar.

Nós não temos especialistas em criptografia aos quais pudéssemos confiar esse assunto. Expliquei que o tenente tinha experiência em infor­mática e fez um bom trabalho na decodificação dos sites de onde ele mes­mo coletou as informações que temos hoje.

O tenente gostou do elogio, mas fingiu que não o ouviu.

A senhora quer dizer então que nós vamos ficar dentro deste avião, por alguns dias? - perguntou o tenente.

Não, não é bem assim. Teremos ajuda. Mas precisamos da internet e não podemos ficar num único lugar, porque não é apenas a CIA que nos preocupa.

Ela não deu tempo para que fizessem algum comentário e continuou:

Os senhores sabem que a CIA tem, perto de Washington, a maior rede de investigações via satélite. Qualquer telefonema que envolva assun­tos que possam ser do interesse dos Estados Unidos é interceptado, a fonte é localizada e imediatamente eles fazem mais pesquisas a respeito. Tenho certeza de que todas as suas consultas na internet já foram registradas e eles têm em mãos as mesmas cópias que estudamos hoje.

Parou de falar e o tenente disse.

Nós já estudamos isso. NSA e o projeto Echelon. Nós, subdesenvolvi­dos, não temos consciência de que todas as conversas telefônicas podem estar sendo monitoradas. Não é só isso não. Eles encheram o céu de binóculos e podem ver tudo o que estamos fazendo aqui. Podem identificar uma pessoa através dos satélites. São vinte e cinco satélites, pelo menos, em operações conjuntas com a Inglaterra, Nova Zelândia, Japão e sei lá o que mais.

Maurício saiu do seu abstracionismo e comentou:

Todas as informações eletrônicas, telefônicas, radiofônicas! Esses paí­ses podem estar registrando todas as conversas do presidente da República do Brasil, todas as estratégias militares e talvez seja por isso que o Bush tinha tanta certeza de que o Sadam Hussein estava fazendo armas químicas e nucleares. Pode estar acontecendo o mesmo com qualquer país.

É isso, doutor Maurício. Ninguém sabe dizer hoje qual é o poder de informação que os satélites construíram em favor dos países ricos. Podem derrubar as bolsas, aumentar o câmbio, o petróleo e quebrar países.

O clima de tensão dominou o pequeno espaço do avião. Após alguns momentos, Maurício perguntou à capitã.

A senhora sabe para onde estamos indo?

Sim, eu sei. Mas o piloto só receberá essas informações durante o vôo. Por enquanto o plano de vôo é para Juína. E bom que saibam que o avião no qual vínhamos será o avião que chegará a Juína. Nós tomamos o rumo de Cáceres.

Maurício estranhou:

Cáceres? Algum simbolismo? Ali está o Marco do Jauru.

O Marco do Jauru é uma das peças históricas mais importantes da Ama­zônia. Foi construído para comemorar o Tratado de Madri, de 13 de janeiro de 1750, que pôs fim às divergências territoriais entre Portugal e Espanha.

É um obelisco de mármore construído em duas partes, uma delas feita pela coroa espanhola e outra parte pela coroa portuguesa, e foi colocado no dia 18 de janeiro de 1754, na desembocadura do rio Jauru no rio Paraguai.

Devido a divergências que surgiram na demarcação das fronteiras e ou­tras questões, foi assinado um novo tratado em 1761, denominado de Ajuste do Pardo, que anulou o Tratado de Madri e deixou sem finalidade o Marco Jauru, como ficou conhecido. Com a eliminação do Tratado de Madri, volta­va a vigorar o Tratado de Tordesilhas, com a divisão do Brasil ao meio.

Durante mais de um século esse obelisco ficou esquecido no meio da selva. Em 1883 foi transportado para o centro de Cáceres e hoje é conside­rado monumento nacional.

A capitã respondeu às perguntas de Maurício.

Entendo o que o senhor quer dizer com simbolismo. O Marco do Jauru simboliza que entre Portugal e Espanha nunca houve respeito a marcos e tratados. Nem mesmo a ocupação que o Tratado de Madri quis consolidar com o princípio do Uti possidetis, foi respeitada. Também por aqui passou Raposo Tavares. Há quem informe que tenha passado por este ponto, não sei, para poder chegar ao Guaporé e sair em Belém.

Falava como se não tivesse pensado nisso.

Acontece que ali estaremos seguros. O comandante do quartel é o meu tio, coronel Alfredo de Góes.

"Mulher reservada", pensou Maurício, que achou melhor não olhar para o tenente. Este ficou em silêncio e disse com aquela indiferença de quem está tentando esconder a dor de uma batida distraída.

Ótimo. Então, mãos à obra! Telefone aí para um tal de Champollion e vamos decifrar o enigma antes que ele nos devore.

A capitã olhou para ele:

A esfinge, de Édipo Rei, a tragédia de Sófocles. O senhor conhece o enigma?

"O que anda primeiro com quatro pernas, passa para duas e depois três pernas?"

Maurício olhava para eles com paciência. Era bom que se divertissem um pouco, desafiando os conhecimentos um do outro. A capitã completou:

O homem. Quando criança, engatinha usando as mãos, depois cresce e usa apenas as pernas, mas depois de velho precisa de uma bengala.

E então a esfinge enfureceu-se e pulou num abismo. Édipo foi acla­mado rei de Tebas.

Riram e, como se estivesse pedindo desculpa, a capitã passou a respon­sabilidade a Maurício:

Bem, por onde começamos então?

Maurício passou uma folha para cada um, com escritos codificados e fez uma pequena introdução.

No meu trabalho como auditor, gostava de criar códigos para poder identificar as matérias-primas, produtos acabados, produtos semi-acabados, produtos intermediários, embalagens, produtos semi-embalados, enfim, era preciso fazer identificações para que o computador distribuísse as di­versas embalagens e matérias-primas pelos seus respectivos produtos.

Imaginou que os outros estariam se perguntando o que um produto semi-embalado tinha a ver com o problema deles.

Às vezes era preciso misturar letras com números. Num desses traba­lhos, tive de organizar programa de fiscalização nas indústrias químicas. Foi complicado, porque além de criar um programa que fizesse o compu­tador identificar cada matéria-prima com cada produto, dentro de uma fábrica, era preciso fazer o computador distribuir esses mesmos itens pelas respectivas fábricas incluídas no programa.

A capitã franziu a testa e perguntou, como se estivesse começando a entender:

O senhor está querendo dizer que se trata de código de números e de letras e que, ou os números ou as letras identificam um destinatário ou uma ação?

Maurício balançou a cabeça e confirmou:

Na minha opinião, se isso aqui se trata de mensagens codificadas, essas mensagens têm destinatários diferentes e para ações diferentes. Então, nossa tarefa vai ser inicialmente identificar os números com as letras. Feito isso, já teremos dado um grande passo. É o mesmo problema de identifi­cação das fábricas.

Pensou um pouco e continuou:

E acho ainda que essas mensagens são enviadas a poucas pessoas. De­vem ser decisões de comando para pessoas de algum escalão.

Sim, mas em que isso modifica as coisas? — perguntou a capitã.

Vocês não estão com a impressão de que esse pessoal está muito con­fiante? Esse assunto de internacionalização da Amazônia está tão divulgado e com tanta gente metendo o bedelho, que a estratégia deles pode incluir o descrédito das mensagens como se fosse coisa de criança.

Poderiam estar contando com a banalização do tema?

Isso mesmo. Nós mesmos, se não tivéssemos passado por algumas experiências negativas e não tivéssemos outras informações, talvez olhásse­mos isso como brincadeira de orkut, coisa de estudantes, plano de comu­nicação de ONGs ou órgão de pesquisa.

E então - perguntou Rogério —, esse raciocínio facilita ou complica as coisas para nós?

Maurício respirou e olhou para o papel:

Acho, em princípio, que fizeram mensagens que não fossem com­plicadas. Alguma coisa fácil de decorar, por isso, no meu raciocínio, elas foram enviadas a pessoas mais graduadas, com capacidade de memorizar ou de guardar em alguma página de livro, mas me parece um código de poucos complicadores.

"Página de um livro. Por que a palavra livro, cada vez que era repetida, trazia uma leve preocupação? Teriam sido os livros da irmãTereza?"

Seus pensamentos foram interrompidos pela capitã:

Então, se o senhor acha que não é difícil, por que não começamos agora?

- É o que estou fazendo - respondeu Maurício. - Na verdade, estava pensando em voz alta. Vamos olhar essas mensagens. Todos nós temos uma mensagem escrita com palavras que não pertencem a língua nenhuma. Vou ler duas palavras da minha mensagem e depois cada um vai ler tam­bém duas palavras, quaisquer que sejam, para a gente ver o que elas podem ter em comum:

E então leu, ou melhor, soletrou o seguinte:

"repaquivîtûdesei quadeoioirepdeoi"

Vamos ver, capitã, o que a senhora tem aí.

Não dá para ler. Vou soletrar como o senhor fez:

"amdeseisetdeoidesetvîtûdo repquideoitrdeseioi"

Parece que algumas coisas são semelhantes. Vamos ver a sua leitura, tenente?

Num instante.

A capitã havia trazido um laptop e o tenente estava registrando as lei­turas feitas.

Bom. Lá vamos com o meu dialeto tupininquim:

"quivîtûoiquideseiôvîtû quazdeseidevîtû"

Agora, veja aí se o senhor pode fazer o lap identificar as letras do alfabeto fazendo uma numeração seqüencial com as letras, de forma que o número 1 seja a letra "a" e assim por diante. Claro que não vai dar em nada. E só para teste.

Então vamos começar com a primeira palavra, aquela que o senhor leu. Vamos ver, a letra "R" seria o número 18, a letra "E" o número 5, blablablá, terminando e aqui vai a primeira palavra do esperanto em tupi-guarani, que é exatamente a mesma palavra:

"repacquivîtûdeseivîtr quadeoioirepdeoi"

O que nos leva de volta ao ponto inicial.

Vamos então fazer uma tentativa inversa, ou seja, tentar encontrar números no meio dessas palavras.

Números? Ah! Já entendi. Transformar os conjuntos em algum nú­mero e depois classificá-los novamente. Mas em que língua? Imagino que seja uma linguagem comum e portanto o português. Vamos lá.

Podemos começar tentando identificar formas iguais nas três palavras — disse a capitã, com certo entusiasmo.

Dado o meu grau inferior de hierarquia, vamos obedecer, blablablá, e lá está:

"rep" está nas três palavras

"qui" está nas duas primeiras

"de" está nas três, mas espera aí, existem algumas combinações, como por exemplo:

"deoioi"

Será que isso pode ser desdobrado em deoi e oi? Existem outras com­binações, vejam só: deseioi, que acho que pode ser desei e oi.

O tenente continuou falando em voz alta e simulando hipóteses. Em pouco tempo havia separado os conjuntos e criado variações suficientes.

Muito bem - disse Maurício. - Tenho a impressão de que o código pecou na sonoridade. Por exemplo, esse deoi, soa como dezoito. Se for isso, o desei é dezesseis, o oi é oito, o sei é seis. Vamos insistir no exercício?

Os dois olharam para ele e o tenente fez um sinal com a mão esquerda para a capitã, como se quisesse dizer "Ande, fale" e ela perguntou:

O senhor está no campo da adivinhação ou do ensaio e erro?

Olha, se isso é verdadeiro, o código está revelando outra faceta, além de ser traído pela sonoridade. E o corte de palavras ou a supressão ou subs­tituição de letras e sinais. Vejam esse vîtû. Parece que essas duas letras com sinal circunflexo são nasalizadas e o circunflexo na verdade é um "til", caso em que estaremos diante de vin e um, ou seja, vinte e um.

Bravo! - gritou o tenente, assustando até o piloto. A capitã tam­bém não escondeu a sua alegria e encostou-se nele, afastando-se porém rapidamente. "Mas não ficou corada", pensou Maurício. "Pelo visto, não estamos progredindo só no código."

Então - disse a capitã -, agora é uma questão de encontrarmos a pa­lavra certa para cada uma dessas referências.

Depois de algum tempo de exercício, chegaram à conclusão de que, ainda, de seria 10, sei, 6, e set seria 7, deoi seria dezoito, qui seria quinze, tr seria três, qua seria quatro e assim deram tradução numérica às hipóte­ses que cada simplificação podia sugerir.

Mas não temos solução, por exemplo, para o começo da minha frase - disse o tenente. - Vejam só, o que pode significar "repamrrepdeseirepde- Tr"? Se a gente tirar o de, que é 10, e o sei que pode ser 6, ou 16, o que resta? Não vejo nenhum número identificável com as demais letras e expressões.

Podemos tentar palavras, por que não? O que pode ser am se não amazônia?

Barbaridade, essa estava fácil e nós a perdemos, hein, capitã?

Nesse caso - disse ela -, repam só pode significar...? - E olhou signi­ficativamente para os dois.

Eles olharam surpresos para ela.

A senhora tem razão, estamos decifrando o código de mensagens da República da Amazônia.

Esse mérito, de descobrir o código, é seu, meu caro tenente. Podemos estar juntos agora no mesmo cesto, mas foi o senhor com aquela sua mania de fazer ronda em volta do edifício das Forças Armadas, coincidentemente no horário em que eu costumava sair de lá, que acabou se metendo nesse assunto e imprimindo mensagens codificadas.

Ela disse isso num tom de voz sério e deixou o tenente meio desconcer­tado. Maurício se conteve, mas engoliu a surpresa. "Então a danada fingiu esse tempo todo."

Não fique vermelho. Conversaremos sobre isso em outro momento.

O tom de voz continuava sério, como se ela estivesse censurando o comportamento dele, mas em seguida completou:

E de preferência, senhor tenente, quando o doutor Maurício não estiver por perto!...

Maurício não resistiu e deu uma gargalhada.

Mas, tenente, não sabia que o senhor era tão tímido. De repente ficou vermelho e parece até que está suando. Mas valeram os riscos, não valeram?

O coitado não disfarçava o desconforto. "A danada da mulher então era mais viva do que eu imaginava. E escondeu todo esse tempo que estava gostando da paquera."

A capitã também parece que se arrependeu de ter sido tão espontânea e preferiu voltar aos estudos do código.

Bom, então, com esses números, vamos voltar ao alfabeto - disse o tenente -, com voz meio engasgada, retornando ao seu laptop. Tentemos de novo a primeira palavra:

"repaquivîtûdesei quadeoioirepdeoi"

No nosso idioma esperanto-tupi-guarani vamos ver no que dá: "Rep é República, qui é quinze que é a letra o, vî é vinte e portanto é a letra T, û é um que é a letra a, de dez que é a letra J, sei é seis, ou seja, vai dar f, vî é t de novo, tr é três que é a letra c, ou seja, já empacamos na primeira palavra da impressão, porque ela vai significar: repúblicaacotajftc, que para mim não significa nada.

Olhou para o dr. Maurício.

Faço a segunda?

Lógico.

Então: qua é quatro, letra d; de é dez, letra j; deoi é dezoito, letra r; oi é oito, letra h; rep é República; de é j, de novo e oi é h, o que vai dar a seguinte maravilha:

djrhrepjh

E olhando sorridente para a capitã:

A senhora não sabia que eu havia estudado tupi-guarani, não é?

Doravante eu vou chamá-lo de Rogério e você vai me chamar de Fernanda, certo?

Puxa vida, eu já estava acostumado com capitã, mas Fernanda é mais bonito.

Voltou porém ao trabalho e disse:

Temos agora as palavras: "amseisetdeoisetdo repquideoitrdeseioi" e "repamrrepdeseidetr". Sei que nem precisa traduzi-las, porque, como a primeira, não vão dar em nada, mas vamos lá. Pronto: amazonasfgrgb repúblicaorcph e agora esta outra maravilha que é repúBLICAAMAZONASR- repúblicapjc, que também não sei o que é.

A capitã estava decepcionada. Maurício olhou para as nuvens e, nesse momento, o piloto informou que estavam se aproximando do aeroporto de Cáceres.

O Baron deslizou pela pista asfaltada e taxiou perto do edifício recém-construído. Uma viatura do Exército, acompanhada por outra viatura com quatro militares bem armados, não combinava com as preocupações de dissimulação que a capitã pretendia.

O quartel do 2o Batalhão de Fronteira ocupava uma grande área perto do rio Paraguai. Normalmente, os quartéis mais afastados, como o Príncipe da Beira, têm os hotéis de trânsito, para alojar oficiais e acomodar situações como essa. O quartel de Cáceres tinha um conjunto residencial para ofi­ciais, no qual algumas casas eram reservadas para hóspedes.

Ficaram acomodados numa casa confortável, com dormitórios e ba­nheiros privativos, sala, escritório, cozinha e varanda.

Os quatro soldados ficaram de plantão em frente à casa, o que servia ape­nas para chamar a atenção porque era improvável que corressem perigo ali.

O embaixador tirou os óculos de leitura e perguntou para o homem que estava sentado em frente da sua mesa.

- Uma capitã do Exército que trabalha na Abin e estava com o general Ribeiro de Castro quando ele sofreu o atentado. Muito interessante! E quem são os outros dois?

Um tipo comum, que não se distinguiria facilmente em meio à popu­lação miscigenada de Brasília, estava diante da mesa do embaixador. Era moreno-claro, pouco mais de um metro e setenta, usava terno marrom chegando a amarelo, parecendo vendedor de loja, sapatos pretos, camisa branca e gravata levemente colorida.

Era como um camaleão. A melhor forma de disfarce é se parecer com os outros, aprendera isso na escola de agentes do FBI.

O homem do FBI respondeu:

Trata-se de um respeitado funcionário da Receita Federal e do mesmo tenente que socorreu a capita, quando explodiram o carro do general. Era sargento da Polícia Militar, mas foi promovido depois que salvou a capitã. Tive informações de que é profundo conhecedor de informática.

E como o senhor chegou a eles?

O outro assentiu com a cabeça e informou:

Não foi muito difícil. Logo no dia seguinte que o senhor me pediu para descobrir quem era o pesquisador da internet, aconteceu aquela ex­plosão da casa na beira do lago. Coincidentemente, o tenente e a capitã estavam lá de novo.

E como, logo após esse incidente, a internet não foi mais incomodada sobre esse assunto, o senhor concluiu que o nosso tenente tenha sido o bisbilhoteiro, porque ele estava hospitalizado, certo?

O homem do FBI acrescentou:

Era normal que tanto o homem da Receita como a capita fossem ao hospital visitá-lo. Ontem o homem da Receita foi visitá-lo sozinho e hoje de manhã o tenente foi levado diretamente do hospital para um conjunto de escritórios no setor comercial.

Diretamente do hospital para essa reunião? O que será que é tão im­portante para eles?

O agente comentou com calma:

Um forte esquema de segurança, tanto da Polícia Militar como do Exército protegia essa reunião. No entanto, o surpreendente é que jo­garam uma bomba no quartel da Polícia Militar e retiraram do local os policiais da PM.

O senhor quer dizer que tentaram novamente liquidá-los? Consegui­ram alguma coisa?

Não havia condições para outro atentado ali, porque os guardas do Exército e os policiais não saíram de lá. Logo que houve a explosão, os po­liciais se retiraram às pressas, mas os três interromperam a reunião e tam­bém saíram nos veículos militares que trouxeram a capitã. O tenente foi levado ao quartel da polícia, onde ficou. Depois a capitã levou o homem da Receita para o hotel e foi embora, com os seus guarda-costas. Muita imprudência, o senhor não acha?

O embaixador olhou-o espantado.

O que o senhor quer dizer com isso? Aconteceu alguma coisa com esse homem?

Quase aconteceu, quase aconteceu... - respondeu o agente do FBI de forma enigmática.

O embaixador ficou olhando para ele e imaginando o que podia ter acontecido, mas preferiu não perguntar nada. Era bom não saber de nada, mas perguntou:

O senhor acha que a CIA tem alguma coisa com isso?

O agente ficou sério.

A CIA é um problema. Seus assuntos são sempre sigilosos e às vezes eles agem como se não tivessem de dar satisfação nem mesmo ao senhor presidente. Eles aprovam planos de ação e dentro desses planos agem com autonomia perigosa. Mas não acho que isso seja coisa da CLA.

Aquele agente da CIA é o mesmo com quem tive reunião no outro dia. Ele não é burro. É muito inteligente. É estranho que ele não tivesse chegado às mesmas conclusões que o senhor.

Ele chegou às mesmas conclusões.

O embaixador olhou para ele e não fez mais perguntas. O homem do FBI então acrescentou:

O que eu acho mesmo é que esses três já foram julgados e condena­dos. Mas tenho minhas dúvidas de que serão executados.

Na sua opinião, existe alguma organização determinada a eliminá-los? Seria o narcotráfico?

Traficantes de droga? Não, não me parece. As precauções que eles estão tomando são muito estranhas. Se o perigo fosse o tráfico de drogas eles não se esconderiam e as ações policiais seriam formalizadas. Parece que estão fugindo de algum inimigo que desconhecem. Mas não acredito que serão eliminados tão facilmente.

O embaixador encarou-o interrogativamente e ele explicou:

São três pessoas qualificadas. A forma rápida como essa capitã pulou do carro e a eficiência do tenente em retirar os dois daquela casa mostram que são bem preparados.

E quanto a esse homem da Receita?

Ele parece ser o líder do grupo. Duas pessoas do nível da capitã e do tenente não aceitariam uma liderança inferior a eles. Ele pensa rápido e deve ser pessoa preparada para emergências.

Bem, o senhor sabe o que fazer.

Sim senhor. É importante que o senhor me informe quando as pes­quisas da internet recomeçarem... se recomeçarem. Enquanto isso, vou acompanhando mais de perto esse tenente.

- Ótimo. Não preciso lhe pedir para manter sigilo absoluto sobre isso.

Ele saiu e o embaixador pediu o chá.

"Os Estados Unidos têm grande interesse na Amazônia, sem dúvida. Há anos estamos aplicando estratégia cuidadosa para que a Amazônia venha sozinha para o nosso lado. Uma guerra ali seria interminável, outro Vietnã. Mas será que logo agora, depois de todo o convencimento internacional, existe o perigo de alguém tomar a Amazônia de nós? Mas quem seria? Ou seria coisa nossa mesmo e eu estou aqui fazendo papel de tolo?"

Continuou pensando um pouco mais e depois concluiu:

"Bom, resta o chá", e pegou a xícara.

Assim que se instalaram, começaram imediatamente a trabalhar. O tenente estava cansado, mas fazia esforço para mostrar-se bem. Abriu o notebook e perguntou:

Próximo passo? - E olhou para Maurício, como se tudo dependesse do raciocínio dele.

Pelo que vimos até agora, os agrupamentos de letras parecem significar números, mas podemos estar de volta à idéia original, na qual esses núme­ros também indicariam letras. A dificuldade vai ser descobrir quais letras esses números indicariam. Já vimos que a seqüência natural não dá em nada, mas se fizermos seqüências diferentes, como por exemplo o número "um" indicar a letra "b" e assim por diante?

Acho que entendi — disse o tenente. — Vamos tentar.

E começou a fazer todas as alternativas possíveis, como fazendo o número "um" começar na letra "b", mas, não dando certo, o número "um", então, passou para a letra "c" e assim em diante - para cada tenta­tiva procuravam traduzir as palavras criptografadas, mas os esforços não resultaram em nada.

Já estavam na décima sexta tentativa e iam ficando tensos, nervosos. Maurício olhava pensativo para a grande mangueira que havia no quintal. A pergunta do tenente tirou-o das cismas.

Será, doutor?

Acho que não. Mas talvez estejamos insistindo no mesmo erro.

O que o senhor quer dizer com isso? — perguntou a capitã.

Vamos tentar outra coisa. Vamos pular as letras, quero dizer, o núme­ro "um" seria ainda a letra "a", mas o número dois seria a letra "c" e quando chegasse no "z", voltaria para a letra "b".

Vamos em frente.

Também não deu coerência. As combinações de letras não formavam palavras, mas conjuntos sem sentido. Maurício pediu ao tenente para ten­tar tirar da internet outras mensagens codificadas.

Falava com a capitã como se pensasse em voz alta.

Acho que nosso raciocínio está navegando dentro de uma normali­dade incomum para códigos. É bem possível que algumas letras estejam suprimidas desse alfabeto. Por exemplo, será que precisam da letra "A"?

Ela não respondeu à pergunta, porque sabia que ele estava buscando um ponto de lógica qualquer.

Em toda organização existem princípios, como o princípio da uni­dade. A unidade sempre predominou o comportamento da natureza viva. Até os animais têm unidade de comando, dentro de um rebanho, de um enxame de abelhas, ou de um formigueiro.

Ela não o interrompeu. Já tinha percebido que quando ele falava assim, como que filosofando, acabava chegando a algum lugar. "É mais ou menos como Cristo. Gosta de parábolas."

O teatro grego, por exemplo, se baseia no princípio da unidade. São três unidades básicas: unidade de ação, unidade de lugar e unidade de tempo. O Velho Horácio, de Corneille. Tudo se passa em vinte e quatro horas, num só lugar e num só episódio: o rapto das Sabinas. É verdade que o mundo de hoje está há mais de dois mil anos longe do rapto das Sabinas. O conhe­cimento antigo dava muito valor às unidades visíveis. Hoje, a ciência está mais voltada para o invisível, como as células, o átomo, o DNA. Mas a unidade será sempre o princípio que forma os demais.

Parou um pouco e continuou:

A senhora já assistiu a um filme chamado Matar ou Morrer? Acho que não. Eram os áureos tempos do bangue-bangue, que hoje chamam de fa­roeste. Gary Cooper e Grace Kelly. Ah! Que perfeição! Que construção do suspense misturado com a covardia de toda a população! Foi a mulher dele, que também já o havia abandonado por causa do medo, quem lhe salvou a vida. Pois é. Matar ou Morrer copiou o teatro grego: unidade de ação, unidade de lugar e unidade de tempo. Aliás, a unidade do tempo nesse filme foi uma coisa interessante, porque o relógio da estação acompanha o tempo do filme, que foi de uma hora e vinte minutos.

Ele parou um pouco, franziu a testa e resumiu

Unidade. Sim, senhora, a unidade serve para muitas coisas. Quando se quer dizer que uma pessoa é a mais importante dentro de uma organização, diz-se que essa pessoa é a "número um". O começo de tudo é pelo número um. A letra "a" deveria ser o número um e nesse caso ela dispensaria o número.

Franziu a testa e olhou para o tenente, que também havia parado de mexer na internet e estava agora olhando para ele com ar interrogativo mas ouvindo o raciocínio da capitã.

O senhor disse que a letra "A" dispensaria o número? Então pode ser que a seqüência numérica comece no "b". Bom, se a seqüência numérica começa com "b", mas não existe o número um, não vai adiantar também repetir a seqüência lógica de números e letras, porque a letra "c" continuará sendo o nú­mero três, a letra "d", o quatro, e isso nós já tentamos antes, sem resultado.

Mas, se nós pularmos uma letra, de forma que o número três passe a ser a letra "d" e chegarmos até o "z", que na seqüência lógica seria vinte e seis, mas que passou a ser catorze, para recomeçar lá na letra "c", com o número quinze? Vamos ver?

O tenente refez o programa do computador e escreveu: repaquivîtûdeseiv quadeoioirepdeoi.

Meu Deus! Olhem só: deu republicaçoe finai.

A capitã entusiasmou-se:

Está dando sentido! Faça as outras duas e depois a gente tenta desco­brir o significado.

Adelante, soldados! "amdeseisetdeoidesetvîtûdô repquideoitrdeseioi" que pode dar amazonaseligov acident

Parou um pouco.

Ei! Isso aí está meio esquisito. Mas vamos à última, que é quivîtûoi- QUIDESEIÔVÎTÛ QUADESEIDEVÎTÛ. Bom, concordamos que QUA tanto pode ser quatro como quatorze e, portanto, como fero não faz sentido, pode­mos concluir que é conceito zero.

Conceito Zero?! Falaram quase ao mesmo tempo.

A capitã comentou:

É a única expressão até agora que não tem prefixos. O que será que isso quer dizer? - E olhou interrogativamente para Maurício, que falou:

Vamos tentar decifrar as outras, de forma completa. Vejamos a primeira republicacoe finai. Vejam que eliminaram o "s" do plural, confirmando a existência de princípios. Então, se eles têm princípios, podemos ir adivi­nhando alguns, como por exemplo, quando um assunto é o mais impor­tante, ele é sempre considerado o número um. A letra "a" só pode estar no código representando ou a pessoa ou o assunto mais importante.

Parou de falar e balançou a cabeça negativamente.

Pessoa mais importante? Não, não acho que é pessoa. Não tem lógica mandar mensagem cifrada para a pessoa mais importante, quando é ela quem afinal de contas dá as ordens. Então, se não é pessoa, só pode ser o assunto. E qual o assunto mais importante? Ou melhor: qual o tema mais importante? Na minha opinião é a República da Amazônia.

Pensou um pouco e disse:

Voltemos às palavras já decifradas.

A capitã estava nervosa. Se ele tivesse razão, o código seria decifrado naquela noite e todas as mensagens poderiam ser traduzidas.

Mantenha a calma, capitã. A gente raciocina melhor com a mente fir­me. Eu também estou começando a acreditar. Quais são os Estados que representam a Amazônia? Sem dúvida o código tem conceitos que precisam ser interpretados. Como, por exemplo, descobrir mensagens para destina­tários diferentes, ou ordens para Estados diferentes.

Deixa eu concluir uma coisa: o senhor acha então que a expressão "amazonaseligov acident" pode significar "Eliminar o governador do Es­tado do Amazonas por acidente"?

A senhora está entrando, como eu, no mundo das adivinhações e acho que esse vai ser o nosso caminho daqui para a frente. Precisamos in­terpretar as mensagens. Não vão dizer as coisas de forma simples.

Ele riu e filosofou de novo.

O Universo sobrevive graças ao que chamamos de princípios. Na vida humana os princípios da moral é que mantêm as sociedades equilibradas. A senhora pode achar que não, mas o supérfluo determina princípios que regulam a atividade humana.

Supérfluo. Sem dúvida! Os cinco Estados da Amazônia. Repam é Repú­blica da Amazônia, mas a economia de letras e de siglas está aí para facilitar e até confundir. O senhor com os seus princípios! Ora essa, acho que vou estudar filosofia também! Então aí temos que AM tanto significa Amazônia, como Amazonas, e A significa Acre, Mato Grosso seria M ou MG e o R signi­fica Roraima e Rondônia. Quando o assunto é geral, vem o REP na frente.

Ela estava excitada e respirava ofegante antecipando o momento de gozo pelo resultado que estava para sair.

E Maurício procurou aumentar as explicações.

Então, a expressão "amdeseisetdeoidesetvîtûdo repquideoitrdeseioi" indica uma ordem dirigida apenas para o Estado do Amazonas. Se fosse uma ordem para todos os Estados envolvidos nessa conspiração, a mensagem começaria com rep.

Ela ficou em silêncio. Maurício entendia por quê. Uma ordem de assas­sinato de um governador do Estado era muito séria. Mesmo que se tratasse de acidente, isso significava que o vice-governador iria assumir. E qual a razão de o vice assumir assim em tais circunstâncias?

Logo depois o tenente chegou com grande número de folhas codifica­das. Teriam uma longa noite de trabalho.

Agora você vai me fazer um grande favor. Vai descansar. Vá dormir um pouco.

Desculpe, mas não posso ainda. Acho que vocês vão demorar muito para traduzir isso sem um decodificador. Tomei uns comprimidos e estou bem. Tenho de agüentar.

Tem razão - disse Maurício. - Mas o senhor está em condições de fazer isso?

Na verdade não vai tomar muito tempo, porque, à medida que ia imprimindo as mensagens, já ia bolando um programinha. Aliás, antes mesmo, quando nós estávamos tentando decifrar o código, já estava es­tudando isso.

De fato, era especialista em informática e logo o notebook estava com o programa que traduzia as mensagens e o tenente pôde então ir descansar.

Maurício e a capitã ficaram traduzindo as mensagens recebidas e algumas delas necessitavam de interpretação para terem sentido. O programa de decifração do código que o tenente criou fazia as traduções automaticamente, bastando digitar o código dentro das tabelas criadas por ele.

Mas a capitã teve de interromper os trabalhos por diversas vezes porque o tenente começou a sentir-se mal e teve febre. Fazia apenas três dias que tinha sido baleado e o dia fora exaustivo.

Ela estava visivelmente traída em suas dúvidas. Um sentimento novo e a alegria de viver lhe inundavam a alma e ela pedia licença para ir ao quarto e voltava depois de alguns minutos, sem a mesma concentração.

Maurício sabia que precisava desdobrar-se. A primeira preocupação foi com aquela mensagem intrigante.

O que será que significa isso? — perguntou a capitã. "Conceito Zero"?

Não entendo. Por que a palavra "conceito" e por que o "zero"? Além disso, a senhora notou que a data dessa mensagem é anterior às outras que nós temos?

Sim, notei. O senhor vê alguma relação de datas entre as mensagens? Será que a data também modifica o código? - perguntou ela, meio preocupada.

Não é bem isso. E uma questão de conceito, conforme a própria men­sagem indica. Note a senhora que é uma mensagem única. De novo a ques­tão da unidade. Isso quer dizer que ela se sobrepõe a todas as demais. A data é anterior às ações posteriores. Será que essas ações têm algo a ver com esse "conceito zero"?

Pensou um pouco.

Uma só mensagem transmitindo a idéia de "conceito zero".

Olha aí o senhor filosofando de novo. Mas aonde quer chegar agora?

Lembro-me uma vez de ter estudado o zero. Foi o zero que deu con­dição infinita aos números. Sem ele os demais algarismos ficariam limita­dos. O zero, isoladamente, não tem valor algum, mas se colocado ao lado direito de um número, multiplica-o por dez. Também serve para preencher o espaço vago dentro de um número.

A capitã deixou que os pensamentos dele flutuassem. Ela não entendia como ele conseguia esses raciocínios esquisitos e que ao fim ajudavam em alguma coisa.

E possível que a invenção prática do zero tenha sido obra dos hindus, em­bora haja referências a outros sistemas tão antigos quanto o hindu. Mas não se tem certeza sobre o período do desenvolvimento pleno do conceito de zero.

Ele falava com a testa franzida e olhando a folha em sua mão, como se fizesse um grande esforço de memória.

No simbolismo hindu, o zero era usado para assinalar um espaço em branco, ou seja, uma lacuna, que em hindu é "sunya". Essa palavra entrou para o árabe como "sifr", que significa vago. Lá pelo ano 1200, entrou para o latim modificada para "zephirum" e depois chegou a nós como zero ou cifra, cada uma tendo conceito diferente. Então, embora tenham a mesma origem, cifra é muito diferente de zero.

A capitã ficou em dúvida, mas ousou interromper os pensamentos dele.

O senhor está querendo chegar à conclusão de que podem estar crian­do um desvio de atenção e em vez de zero seria cifra? Mas que cifra?

Ele riu.

Não, não estou pensando em valores, mas apenas que cifras incluem o zero e podem ser um número qualquer. Essas preocupações com o número um e com o zero já atormentaram pessoas mais famosas do que nós. Para Leibniz, o sábio alemão, enquanto o número um representa Deus, o zero é apenas o vazio, como no hindu. E foi desafiando esses conceitos que ele criou o sistema binário. E agora nós estamos de novo nos debatendo em primazias e vazios, para decifrar um código.

Levantou-se, passou a mão pela cabeça. Afinal, também já estava cansado. Lembrou-se de que naquele mesmo dia fora novamente alvo de uma tentativa de homicídio no hotel, em Brasília. Por sorte teve a lucidez de sair do quarto e ainda contar com a ajuda daquele sujeito de terno que apareceu de repente. Quem seria ele? E como se estivesse dando um descanso à mente, comentou:

Aquele sujeito que matou os dois lá no hotel sabia de alguma coisa. Ele sabia que eu tinha sido isolado. Sabia que eu seria a próxima vítima e apareceu lá como se fosse um guarda-costas. Falava bem o português. Tinha jeito de gente simples. Simplicidade perigosa. Por trás da aparência simples demonstrou precisão e rapidez de tiros impressionantes.

Tenho certeza de que a Confraria não age assim. Aliás, acho que ela age somente dentro da Amazônia. Também não acredito que seja gente da Polícia Federal. Eles não têm motivos para protegê-lo e nem agiriam desse modo. É possível prever que fosse um agente americano. Mas não pode­mos confiar em ninguém por enquanto.

Ele piscou forte e achou melhor voltar ao zero.

Há quinze bilhões de anos o Universo todo se concentrava num único ponto, com temperatura elevadíssima e grande intensidade de energia. Esse ponto explodiu, criando o "instante zero". Foi o chamado bigue-bangue.

Ela não se aventurou a novas cogitações. Não estava ainda entendendo aonde ele queria chegar.

Uns trezentos mil anos depois e, devido a essa fragmentação, o Uni­verso se resfria, chegando a quatro mil graus Celsius, dando origem às galáxias e às estrelas, que acabaram se formando entre dois e quatro bilhões de anos depois do instante zero.

O senhor está invocando o bigue-bangue para concluir que esse pes­soal pode criar uma situação catastrófica e posteriormente recuperar os fragmentos para formar uma nova constelação?

Olhou para ela:

Bem, agora é a sua vez de chutar, diga alguma coisa.

O senhor vai rir do que eu vou dizer, mas acho que estou reduzida a zero.

Ele pensou um pouco.

A senhora estava brincando ou pensou nisso mesmo?

Na verdade eu gostaria de reduzir tudo isso a zero e voltar para o meu trabalho. Sabe, não sei por que estou dizendo isso para o senhor, parece tudo muito precipitado, mas de repente senti vontade de ser mulher, casar, ter filhos, ser normal, ser menos profissional. Não sei se o senhor entende.

Não era essa a resposta que ele esperava. A idéia dos fragmentos o dei­xou pensando, mas permitiu que ela se abrisse um pouco e reduzisse suas tensões pessoais.

Entendo sim, senhora, entendo muito.

Esse tenente não parece ser mau sujeito. É alegre, divertido, e o que ele já fez por mim é difícil de acreditar. Pode ser que não levemos nada adiante, a vida é complicada e a gente se conhece pouco. Mas de qualquer forma ele está me fazendo descobrir que tenho um outro lado do qual tenho descuidado.

Maurício era bom ouvinte e sabia quando devia ficar calado. Ela era uma jovem bonita que dedicou a melhor parte da sua vida à carreira militar. Não fora o caso dele, que se casara e tivera filhos, mas também lamentava não ter dedicado mais tempo à família, ao seu lado humano. Agora também se sen­tia só e a tristeza que saía das palavras da capitã quase o confortava.

Mas, enfim, o que mais o senhor tem a filosofar sobre o zero? - per­guntou ela desconsoladamente.

Existem pessoas que nunca ficarão reduzidas a zero e a senhora é uma delas.

Ela sorriu, balançando a cabeça, e ele continuou:

Conversar é bom. Noto que a senhora não fala do seu passado e não fala também da sua família. Respeito isso. Mas é jovem, bonita, inteligente, e as pessoas que têm esses dons devem muito a si próprias. Não esqueça que o seu maior compromisso é com a senhora.

Achou que ele estava sugerindo alguma coisa e até era bom iniciar uma vida nova. "Vida nova." Voltou à realidade e perguntou:

O Conceito Zero, então, seria um novo marco, o início de uma nova vida e quem sabe de um novo país?

Ele percebeu que ela estava voltando ao código. Sem decifrar aquele código e descobrir o enigma que estava por trás dele, ela também não teria vida nova.

Chego à conclusão de que é isso. O marco zero é o início da República da Amazônia e as mensagens deverão trazer elementos que confirmam essa hipótese. O romanos não tinham o zero. Para escrever dez, eles puseram um X, cinqüenta era L, e pronto. Para eles, os números deviam servir para contar as coisas existentes, cada coisa era uma unidade, eles não entendiam a existência de zero coisa, ou zero mercadoria, por exemplo. Mas tinham, porém, o "nihil", que significa nada. Seria isso o Conceito Zero, começar tudo do nada?

Existe lógica no que o senhor diz. As outras mensagens que o tenente traduziu são posteriores a essa mensagem do conceito zero e veja só, uma fala em operações finais, a outra sugere a morte do governador do Amazo­nas e a terceira manda aguardar a data para isso. Pelo menos assim a gente entendeu. E agora estas outras, vamos começar a traduzi-las?

Já era madrugada quando terminaram a leitura de todas as mensagens. Estavam horrorizados.

A estratégia da República da Amazônia era muito clara. Se tudo aquilo que estava ali escrito fosse concretizado, o Brasil ficaria dividido em dois. Uma teia de aranha fora cuidadosamente traçada para impedir a reação militar.

Terminada a tradução e o adensamento das mensagens codificadas, a capitã fez uma conexão e enviou as traduções através da internet, mesmo sabendo que corria o risco de alguém interceptá-las. Mas pelo que pude­ram descobrir, ações armadas e de terrorismo iriam começar logo.

Depois disso foram dormir. Estavam cansados e o dia seguinte não seria mais fácil. A capitã foi antes ao quarto do tenente que dormia um sono apa­rentemente tranqüilo e depois foi para o quarto que lhe haviam destinado.

Maurício olhou as roupas novas que estavam em cima da cama, em seu quarto. Como sabiam o seu número? Ia perguntar depois para a capitã. Agora estava cansado e deitou-se.

Ela também estava cansada, mas animada. Decifraram o código e ainda se aproximara do homem que quase a pegara no colo no dia do atentado do general.

Despiu-se lentamente diante do espelho como se fizesse um strip-tease para si mesma, até ficar completamente nua. Viu, com satisfação, que os exercícios a que se impunha não lhe haviam tirado a delicadeza do corpo bem torneado. Pôs as mãos sob os seios firmes e forçou-os para cima.

Ficou assim uns minutos e depois foi deitar-se, sem roupa. Esticou-se languidamente sob o lençol, e ficou imaginando se resistiria aos pensamen­tos que a estavam tentando, se ele não estivesse doente.

Eram pouco mais de seis horas quando a claridade começou a entrar pelos vãos da cortina e Maurício levantou-se. Tomou banho, fez a barba, vestiu-se com a roupa que lhe haviam trazido.

"Estranho", pensou. "Roupas práticas, como se tivesse de entrar em flores­tas, ou andar de barcos. Parecia que iam acampar. Algo novo vem aí. O que será? Mulher forte essa capitã. Esse Rogério nunca vai encontrar nada igual."

O tenente também havia tomado banho e estava de roupas novas, na sala, e logo a capitã apareceu, de uniforme, como se estivesse indo para a Abin.

Bom dia, Fernanda. Acho que dormi melhor que você.

Como é que você está? Passou febre à noite, teve sono agitado, e agora como está?

Ele agradeceu o cuidado que ela teve em ter ido vê-lo. Mas disse que estava bem, sentia-se recuperado.

Ela disse com voz séria:

Temos urgência.

Correu ao computador e abriu outro site. A mensagem era curta. Leu, releu e apagou. Os dois ficaram em silêncio.

Tomaram café, que já estava preparado na sala de jantar.

É bom comer, sabem? Se a CIA vier de novo atrás de nós, vamos ter de ir para mais longe - disse Rogério.

Havia também uma maleta de mão para cada um, com o necessário para pousos ou hospedagens de urgência, arma e munição, além de uma autorização especial de porte para todo o território nacional de qualquer tipo de arma que estivessem carregando.

O telefone tocou e um oficial avisava que o comandante Góes gostaria de vê-los.

O quartel ocupava uma grande área livre, com casas construídas em alvena­ria e pintadas de branco com barras verdes até a altura de um metro do solo.

Essas construções, bem ao gosto português, davam um ar de serenidade que contrastava com o armamento pesado e soldados fardados em exercí­cios cansativos.

Foram levados a um prédio logo após a portaria e um homem alto, moreno, magro, apresentando uns cinqüenta anos, educado e simpático, veio ao seu encontro.

Fernanda, como você está bonita!

Prestaram continência e ela o beijou na face. Mostrava-se alegre em ver o tio e o tenente viu uma nova Fernanda, com aquele ar de peraltice que mostrava que ela tivera uma infância divertida.

Oi, tio! Só mesmo a trabalho para poder vê-lo de novo. E a titia, como vai? - E sem esperar a resposta:

Este é o doutor Maurício, da Receita Federal, e este é o tenente Ro­gério, da Polícia Militar de Brasília. Eles estão comigo em missão oficial, como o senhor sabe.

Feitos os cumprimentos, o coronel mostrou o quartel e as bases de fron­teira que a sua unidade cobria, ao longo da Bolívia.

 

 

                                         OS TEMPLÁRIOS

 

"Penso verdadeiramente que neste solene A. momento eu deva proferir toda a verda­de. Ante o céu e a terra, e com todos vocês aqui como minhas testemunhas, eu admito que sou cul­pado da mais grotesca das iniqüidades. Mas essa iniqüidade foi eu ter mentido ao ter admitido as grotescas acusações emitidas contra a Ordem. De­claro que a Ordem está inocente. A sua pureza e santidade estão acima de qualquer suspeita. Eu admiti de fato que a Ordem era culpada. Mas unicamente assim agi para evitar contra mim as terríveis torturas — A vida foi-me oferecida, mas pelo preço da infâmia. Por este preço, a vida não vale a pena ser vivida."

         Jacques de Molay

         Grão-mestre da Ordem dos Cavaleiros do Templo - Os Templários

 

O pequeno outeiro em cima daquele morro era simples e pobre, mas ali do alto parecia contemplar em silêncio as águas barrentas do rio Solimões descerem para o oceano distante.

Afastado da cidade, era pouco usado para as celebrações cotidianas, mas a procissão de Corpus Christi atraía fiéis de toda a região. A procissão começava na igreja matriz, às quatro horas da tarde, e percorria os seis qui­lômetros do trajeto até a igrejinha, onde o Corpo do Senhor ficava exposto no altar de madeira.

A festa de Corpus Christi teve origem na Bélgica, quando uma freira agostiniana da Abadia de Cornillon, perto de Liège, teve visões de que um astro semelhante à Lua brilhava com intensa claridade, mas tinha uma mancha no meio. O próprio Jesus Cristo lhe revelou que a Lua significava a Igreja; a claridade, as festividades religiosas, e a mancha era a mácula de não existir uma data consagrada ao Corpo de Deus.

Santa Juliana deu conhecimento dessas visões ao bispo local, que em 1258 instituiu a festa em sua Diocese. O fato chegou também ao conhe­cimento do bispo Jacques de Pantaleón, que veio a ser o papa Urbano IV. Esse papa tinha sua corte na cidade de Orvieto, e, devido ao milagre de Bolsena, tornou universal a festa de Corpus Christi.

Consta que um padre tcheco chamado Pietro de Praga, da paróquia de Bol­sena, perto de Orvieto, enquanto consagrava a hóstia, duvidou de que ela se transformaria no Corpo de Cristo. Na hora da comunhão, quando foi parti-la, começou a brotar sangue. O papa soube do fato e ordenou que as alfaias litúrgicas manchadas com o sangue de Cristo fossem levadas em procissão até Orvieto, e universalizou as festividades, encarregando São Tomás de Aquino de escrever as peças litúrgicas da solenidade, que permanecem até hoje.

O Concílio de Trento, no século XVI, tornou oficial em todo o uni­verso católico a procissão do Corpo de Deus, com a exposição pública da hóstia consagrada, para opor-se às teses de Lutero que negava a presença de Cristo na Eucaristia. Uma das características da cultura da Idade Média era a necessidade de ver as coisas para nelas acreditar. A Fé não conseguiu es­capar dessa exigência cultural e daí surgiu o costume de se levantar a hóstia consagrada para que os fiéis a contemplem após a consagração.

A Santa Eucaristia ficou exposta até começar a escurecer, enquanto o padre exaltava os mistérios da Ressurreição e da Encarnação. Encerrou a cerimônia com uma bênção solene e a procissão retomou o caminho de volta. Cada fiel tinha agora uma vela acesa na mão e aquelas duas filas de luzes descendo o morro reacendiam o espírito de fé e piedade que fica es­quecido nas rotinas do dia.

Assim que a procissão começou a descer o morro e a igrejinha ficou abandonada na semi-escuridão de algumas velas que ficaram acesas, treze pessoas que haviam acompanhado a chegada da procissão saíram das trevas e entraram na igreja. Estavam encapuzadas e se dirigiram ao altar.

Ajoelharam-se diante da mesa em que o Corpo do Senhor esteve havia pouco e ficaram em silêncio por alguns minutos. Aquele que estava no centro falou:

Nossa reunião será de joelhos, porque o Senhor esteve nessa mesa e Ele nos orientará. Professemos a nossa fé com o lema da Ordem desde os primeiros tempos, quando defendia o Santo Sepulcro.

Todos entoaram com respeito:

"Non nobis Domine non nobis sed Nomini Tuo da gloriam" e repetiram em português: "Não para nós, Senhor, não para nós, mas ao Vosso nome dai a glória".

Não se podiam ver as feições dessas figuras que vestiam hábito de mon­ge e usavam capuzes como se não quisessem ser reconhecidas. Uma barba branca estranha uniformizava os rostos.

Quem os visse ajoelhados diante da mesa, não imaginaria que se in­titulavam Apóstolos de Cristo. Cada apóstolo tinha um grupo de doze discípulos e, quando os apóstolos se reuniam com os seus discípulos, eram eles chamados de "Irmão Apóstolo" e os discípulos eram chamados sim­plesmente de "Irmão", por razões de segurança.

Mas os membros desse grupo não paravam aí. Daí em diante, a hierar­quia obedecia à denominação militar. Cada discípulo, ou irmão, tinha o dever de selecionar e comandar três sargentos, cada sargento por sua vez deveria ter dois cabos e cada cabo tinha quatro soldados. Era um exército de 4.896 cavaleiros, como eram todos chamados, sob o comando do mes­tre da Ordem. Cada Apóstolo, cada discípulo, cada sargento, cabo, solda­do, ou simplesmente cavaleiro, era cuidadosamente selecionado.

Em sua maioria eram militares. Aqueles que ainda estivessem na ativa, participavam de operações e cerimônias próximas de sua localidade, guar­dando o mais completo sigilo. Cabia a cada posto hierárquico a função de selecionar os seus comandados, treiná-los e doutriná-los.

Todos os participantes do grupo deveriam ser religiosos e a cruz era o seu símbolo. Não importava se eram católicos ou de outra religião cristã, só não podiam pertencer a seitas modernas, dessas que evoluíram e enri­queceram nos últimos anos.

Era a cúpula da Confraria da Ordem dos Templários da Amazônia que estava ali reunida. O Mestre continuou com os olhos fixos no lugar onde estivera o Corpo de Cristo e disse:

Como os senhores já devem ter visto pelos noticiários, as forças do mal se precipitaram. Perdemos um dos nossos importantes orientadores, mas conseguimos evitar que a irmã Tereza e o doutor Maurício, que os senhores já conhecem, fossem tirados do nosso meio.

Os apóstolos não eram chamados pelo seu verdadeiro nome, mas sim pelos nomes dos apóstolos de Cristo, de acordo com a cadeira que ocu­pavam na Santa Ceia. No lugar onde seria o lugar de Judas, no quadro da Santa Ceia, de Da Vinci, estava o mestre. Era um simbolismo para indicar que toda a humanidade continua traindo Cristo. Era, porém, chamado de mestre.

A Santa Ceia de Leonardo da Vinci não representa a verdade histórica porque naquela época os antigos comiam sentados de flanco, como se nota em várias gravuras da época dos romanos.

O mestre continuou:

A irmã Tereza está salva. Ela seria torturada para contar tudo o que sabe a nosso respeito e depois seria assassinada cruelmente.

Mestre - disse o Apóstolo João -, o Senhor não acha que o nosso informante começa a correr perigo? Nossas providências foram muito rápi­das e eles podem desconfiar de que alguém de dentro do grupo deles estaria passando informações.

Sim, existia esse risco - respondeu o Mestre, enigmático, dando ênfa­se ao verbo no passado.

A resposta indicava que haviam sido tomadas providências, e o Mestre continuou:

A Ordem está hoje com uma organização quase completa. Com a morte do general, tomamos a decisão de não integrar formalmente o dou­tor Maurício na Confraria. A presença dele seria útil para a uniformização dos procedimentos da Ordem com os procedimentos das Forças Armadas. Mas as circunstâncias mudaram e é melhor aguardar.

Em situações como essa, quando era prevista alguma intensidade no movi­mento, era costume que um dos apóstolos revivesse a história da Ordem.

Paulo de Tarso foi um dos maiores perseguidores dos cristãos e presidiu o sacrifício de Santo Estêvão, primeiro mártir do cristianismo e irmão da sua noiva, Abigail. Quando ia atacar cristãos na cidade de Damasco, Cristo apareceu-lhe como num relâmpago e ele chegou a cair do cavalo. Indagado por Cristo por que perseguia o seu povo, ele não soube responder e conver­teu-se. Foi decapitado por ordem de Nero aos sessenta e seis anos de idade por pregar uma religião ilegal. Há quem o considere o verdadeiro fundador do cristianismo, por consolidar o pensamento cristão em suas epístolas.

Naquele momento, o Cavaleiro Templário Apóstolo Paulo não estava em torno dos demais, porque São Paulo, o apóstolo de Cristo, também não esteve presente na Santa Ceia, e por isso o Cavaleiro ficava sempre de pé, ou ajoelhado, conforme a cerimônia, próximo ao Mestre.

Levantou-se e começou a falar de forma didática como se fosse para alu­nos de história. Isso fazia parte do exercício de humildade e da renovação dos propósitos.

Depois que os cruzados tomaram Jerusalém das mãos dos turcos e libertaram o Santo Sepulcro para a visitação dos peregrinos, verificou-se que era preciso criar uma força para evitar que esse lugar sagrado caísse de novo em mãos dos infiéis.

Quando o grupo revivia a história dos templários, faziam questão de enfatizar a retomada da Terra Santa e a necessidade de protegê-la. Para a Ordem dos Templários da Amazônia, a Terra Santa era a própria Amazônia que, se não fosse protegida, cairia em mãos de infiéis.

No ano de 1118, o cavaleiro francês, chamado Hugo de Pains, deu a idéia de uma ordem que seguisse os votos monásticos de castidade, obedi­ência e pobreza, mas tivesse poderes para lutar como guerreiros.

E com mais ênfase:

O Cavaleiro do Templo ganhava de Deus todas as virtudes do sacer­dócio e o direito de matar o inimigo. Nenhum outro ser humano tinha esses poderes. Os padres não podiam empunhar a espada e os quartéis não tinham as bênçãos do monastério.

Voltou a falar em tom de meditação.

Confirmando as origens divinas da Ordem, lembramos que o seu Re­gulamento foi escrito por São Bernardo, quando era abade do monastério de Claraval, na França. São Bernardo foi uma das personagens mais impor­tantes da sua época. Num discurso considerado uma das peças de oratória mais importantes da história, fez a defesa da criação da Ordem. Quando voltou para Claraval, deu forma escrita a esse discurso que passou a ser conhecido como o De Laude Novae Militiae, o Elogio da Nova Milícia.

Aguardou um curto silêncio e continuou com mais ênfase:

Mas as forças do mal começaram a aparecer. Deus criou os anjos, mas apareceu o demônio querendo dominar o Universo, e o demônio também quis se igualar aos templários.

Os monges se persignaram.

A Ordem cresceu, enfrentou os árabes, ajudou nas cruzadas e a sua luta, dedicação às causas sagradas, a defesa dos peregrinos, dos humildes e da justiça conquistaram o respeito de reis, nobres, intelectuais, religiosos, governos e da gente humilde. Muitos lhe destinaram suas heranças porque assim buscavam a vida eterna, sabendo que a Ordem destinaria seus bens em benefício dos pobres e das causas justas, mas nunca em benefício próprio, porque aos templários era até mesmo proibido ter mais de uma túnica. No rigor do inverno deviam exercitar-se, mas não podiam vestir mais nada além da túnica branca que era o seu uniforme.

O apóstolo aguardou que os demais dissessem:

"Non nobis, Domine, non nobis"

A Ordem despertou cobiças, e o rei da França, Felipe, o Belo, quis sanear as finanças do Tesouro francês, confiscando os bens da Ordem. O papa Clemente V foi pressionado por Felipe e pelos bispos franceses e dissolveu a Ordem. O Exército francês invadiu os nossos monastérios e prendeu os Cavaleiros do Templo, submetendo-os às mais terríveis torturas para que confessassem pecados que não cometiam. Milhares de Cavaleiros do Templo foram torturados e mortos, queimados em fogueiras, decapi­tados, enforcados, para que fizessem as confissões mais ignominiosas para justificar os atos cruéis de Felipe.

Colocou as duas mãos sobre a cruz vermelha do hábito.

Sem alterar a voz para não mostrar sentimentos de vingança:

Como a Ordem devia obediência ao papa e não podia empunhar suas espadas contra os cristãos, foram dominados sem luta. Calúnias foram levan­tadas, como a de que os candidatos a nela ingressar deveriam renegar Cristo três vezes e cuspir sobre o Crucifixo também por três vezes, passando então a adorar o diabo sob a forma de um deus barbudo cognominado Bafomet. Um dos torturados disse que se o tivessem acusado de ter sido o assassino de Cristo, ele confessaria.

Novamente respirou fundo:

O grão-mestre, Jacques de Molay, que veio de Jerusalém para defender a Ordem foi preso e submetido durante sete anos às mais terríveis torturas. Acabou cedendo ao sofrimento e fez confissões, que negou depois.

Como ele negou a confissão que havia sido arrancada sob tortura, foi condenado à morte na fogueira e, enquanto ia sendo devorado pelo fogo, virou-se para o rei, que lá estava para assistir à sua agonia, e gritou: "Papa Clemente, cavaleiro Guilherme de Nogaret, rei Felipe... Convoco-os ao Tribu­nal dos Céus antes que termine o ano, para que recebam vosso justo castigo. Malditos... Malditos... Malditos... Sereis malditos até treze gerações...".

O silêncio pesava na penumbra formada pelas velas. O orador então falou em tom profético.

O rei e o papa morreram antes de um ano depois da maldição profe­rida contra eles pelo nosso grão-mestre.

O orador esperou uns momentos e continuou a falar com voz mais calma.

A Ordem foi dissolvida e perseguida. Alguns conseguiram fugir para Portugal e lá, com o apoio de dom Diniz, foi fundada a Ordem de Cristo, que tinha o mesmo emblema, a Cruz dos Templários, para agasalhar os ir­mãos perseguidos na França. Os templários levaram para Portugal muito das suas riquezas e ajudaram dom Manuel, o Yenturoso, a fazer as descobertas marítimas. Em respeito aos templários, dom Manuel mandou colocar nas caravelas a Cruz da Ordem de Cristo, ou seja, a Cruz dos Templários, que aparece no primeiro marco português em nossas terras.

Os cavaleiros todos cruzaram os braços sobre a cruz em hábitos de monge.

Os templários eram cultos, porque dedicavam grande parte do seu tempo nos monastérios estudando arquitetura, geografia, botânica, histó­ria e outras ciências. Eles foram os criadores da arquitetura gótica e foram eles os responsáveis pelas descobertas da Coroa Portuguesa, porque já ti­nham noção de que outras terras existiam no planeta. E assim Portugal descobriu o Brasil e não foi por mero acaso.

Em qualquer outra reunião, o orador teria um copo de água à sua fren­te. O cavaleiro limitava-se a parar de vez em quando e salivar a boca para continuar falando.

O Brasil foi descoberto pelos templários e não foi uma descoberta ca­sual. O Brasil é o único país que tem a Cruz de Cristo em cima e é o único país que longitude e latitude formam uma cruz. Não foi por acaso que os templários descobriram essa terra, não foi por acaso que a Igreja quis im­pedir que nós a conquistássemos, e foi por isso que o papa Júlio II assinou a bula "ea, quae pro bono pacis", em 26 de janeiro de 1506, dividindo o país no meio, com o Tratado de Tordesilhas.

Esperou que os demais cavaleiros lembrassem que o Tratado de Torde­silhas tinha sido patrocinado pelo papa.

A Cruz de Cristo não pode ser dividida, e nós reconquistamos essa uni­dade, recuperando o território com astúcia, coragem e energia, até que as divi­sas fossem enfim reconhecidas definitivamente pelo Tratado de Utrecht. Mas assim como nos tempos do Santo Sepulcro, é preciso uma força que mantenha este território. Sabemos que inimigos da Cruz ameaçam a glória do Senhor e é para isso que estamos organizados e preparados para defender o território do Brasil, com a Amazônia em seu mapa, completando a Cruz de Cristo.

Calou-se. Todos abaixaram a cabeça em sinal de respeito. Não cumpri­mentavam o orador, por melhor que ele fosse. Não era por orgulho, mas não podiam fazer discursos para receber cumprimentos.

O mestre levantou a cabeça e todos fizeram o mesmo.

Nossa fé não se renova. Ela se fortalece.

Todos abaixaram a cabeça durante um minuto e depois se levantaram. O mestre saiu primeiro e eles desapareceram, cada um tomando rumo diferente por dentro da mata escura.

Um observador que estivesse ali para registrar a oração daqueles monges veria que, quando eles deixaram o pequeno outeiro, guardas armados e camuflados saíram de seus esconderijos e cada monge passou a ser protegido.

Depois que saíram do quartel e se despediram do coronel, eles volta­ram para a casa e prepararam-se para sair.

Quando acessara o site sigiloso logo pela manhã, a capitã confirmou o recebimento das mensagens que tinha enviado de madrugada, antes de ir dormir, e recebeu novas instruções.

Provavelmente haveria movimento de tropas em vários pontos do ter­ritório nacional e ela devia voltar. Sentia tristeza em separar-se do tenente, mas eles tinham de seguir outro rumo.

Maurício entrou no quarto, arrumou suas coisas e saiu da casa.

Avisou à capitã que ia a uma farmácia e provavelmente demoraria uns trinta minutos. A viatura do Exército o levou até a cidade. Entrou num escritório de contabilidade, identificou-se e perguntou se podia usar a in­ternet. O contador era um gaúcho simpático que lhe franqueou o escritó­rio. Ele acessou o site da Receita. Não tinha pressa e já era hora de deixar aqueles dois sozinhos por uns tempos.

Desde o primeiro encontro com o general, começara a fazer levan­tamentos de ONGs, pessoas, empresas, instituições científicas e reli­giosas, políticos, e suspeitas começavam a se avolumar em torno de um certo alemão.

Rogério acabara de arrumar suas coisas e começou a pensar.

"Trinta minutos. Não é muito, mas será que ela não vai achar ruim eu ir até o seu quarto? Mas preciso ir. Afinal, já é hora de assumir uma posição. Vamos criar coragem."

A porta estava entreaberta e ele pôde vê-la diante do espelho, vestida e exuberante em toda a sua beleza. Não resistiu.

Oooi... Posso entrar? — perguntou meio desajeitado.

Ela apenas sorriu e foi ao seu encontro.

Até que enfim esse Maurício nos deu uma folguinha — ele disse. — Não é muito tempo, mas eu queria lhe falar...

Ela aproximou-se dele, tomou-lhe as mãos e disse:

Não, não fale. Já falamos muito.

Ele pegou-a pela cintura e as duas bocas se apertaram num beijo sufocante, intenso e sequioso de emoções. Ela passou as mãos por trás do pescoço dele, abaixo do ferimento, e apertou ainda mais os seus lábios contra os dele.

Depois de alguns momentos, ela afastou-o delicadamente:

Não vamos exagerar. Nem bem nos conhecemos.

Sim. Acho que você tem razão. Mas não quero perdê-la. Segui-a tan­tas vezes sonhando com esse momento, que peço desculpas se exagerei.

Precisamos nos aprontar, porque o doutor Maurício já deve estar chegando.

A contragosto, mas compreendendo que ela tinha razão e que também não queria forçar as coisas nesse primeiro contato, aquietou-se.

Rogério estava feliz porque tinha receios de que ela seria calculista e dominadora. No entanto, descobriu uma mulher dócil, meiga e cheia de feminilidade.

Maurício saiu do escritório e a viatura conduziu-o pela rua que acompa­nha a margem do rio, que, devido à grande seca, estava com pouca água.

Segundo o Guiness, o maior festival de pesca fluvial do mundo é o Fes­tival de Pesca de Cáceres, que reúne mais de cem mil pessoas. Era a época do festival e, apesar de o rio estar raso e talvez a pesca não viesse a ser tão produtiva, havia grande quantidade de barcos coloridos que subiam e des­ciam com pescadores animados pela cerveja, pouco importando se a pesca ia ou não ser farta.

Quando chegou à casa, Maurício encontrou-os tomando café. Ele pe­gou uma xícara, serviu-se e disse:

Imagino que a senhora volta para Brasília e nós continuamos. Pelo menos é o que deduzo das mochilas.

O tenente e a capitã não escondiam o desconforto de terem de se se­parar agora. Os poucos minutos que tinham estado a sós apenas serviram para aumentar o sofrimento da separação.

Rogério disse:

Ela já me informou. Logo agora!

Bobo. Eu estarei esperando e você sabe muito bem onde. Já deve ter decorado o caminho, não é?

E dirigindo-se a Maurício:

Tive de enviar um relatório ao ministro do Exército. Nosso trabalho foi conclusivo, graças a vocês dois. As informações ao ministro, obviamente, foram resumidas e por isso preciso voltar com urgência. Além disso, o assunto, a rigor, pela Constituição, já cai na responsabilidade direta das Forças Armadas. A falta de ações concretas pode servir de pretexto para acusações de omissão, no julgamento da História - disse ela com ufanismo verde-e-amarelo.

Mas se a senhora já sabia que íamos partir, certamente sabe para onde. Alguma instrução especial?

Ela falou sem muita segurança.

Nós estamos na Amazônia. O mais seguro é vocês ficarem onde possam ser protegidos. Mas temos de disfarçar também essa saída. Só o coronel Góes sabe para onde vão agora. Vocês sairão um pouco mais tarde em outro avião.

A capita recobrou a segurança e disse:

Precisamos partir.

Falou isso com voz quase triste. Maurício levantou-se e foi para o quar­to, deixando os dois sozinhos. Uns dez minutos depois o tenente também foi para o seu quarto.

Um médico do Exército fez curativos e exames protocolares. Entregou-lhe alguns comprimidos e fez recomendações. Encontrava-se melhor, mas o esforço, a viagem e a noite mal dormida atrapalharam um pouco.

Os mesmos veículos que os buscaram no aeroporto estavam em frente à casa. Já tinham se despedido do coronel, que preferiu não aparecer na casa ou ir ao aeroporto.

O Baron não estava mais lá. Tinha saído cedo e dois outros aviões na pista estavam esperando por eles. Um Learjet estava preparado para levar a capitã de volta e um Skylane estava esperando ordens.

Os dois se olharam com ternura e Maurício pôde sentir uma doce emoção se misturando no ar quente e úmido do Pantanal Mato-grossense naquela despedida.

O Learjet saiu primeiro e fez uma leve curva para desaparecer depois na direção do Nascente. O tenente ficou olhando até o completo desapareci­mento daquele pontinho distante no horizonte.

É. O aviãozinho dela é rápido, não?

Expressões normalmente ditas para disfarçar a emoção.

Acho que a gente vai para alguma fazenda ou lugarejo — disse Maurício.

Pensou um pouco.

Mas não ficaremos ali. Vão nos levar para longe. Este avião é outro disfarce.

Não saíram de imediato. Passava das treze horas quando um oficial chegou com uma mensagem, que entregou para o piloto, e eles então en­traram no avião e partiram para destino que ignoravam.

O Skylane correu trezentos metros da pista asfaltada, ganhou veloci­dade e subiu. Fez uma curva no ar, como se estivesse espreguiçando e to­mou o rumo Sul. Maurício não tinha muita certeza de que esses desvios de rota, para despistar as atenções da CIA ou de quem quer que fosse, iam dar resultado.

Sabiam que deveriam ficar na fazenda Buritizal, onde aguardariam o de­senrolar dos acontecimentos. Segundo a capitã, algumas providências seriam tomadas logo. Por razões de segurança deles mesmos, era melhor passar um dia ou dois em lugares mais seguros antes de irem para lá. Não sabiam no momento para onde estavam indo, mas tinham de confiar na capitã.

O rio Paraguai é a espinha dorsal de um dos mais bonitos ecossistemas do mundo, o Pantanal Mato-grossense. Desce da chapada dos Parecis, um espigão no interior do Estado do Mato Grosso, de onde saem as nascentes do rio Paraguai e de afluentes do Amazonas. Nos seus primeiros cinqüenta quilômetros segue em direção ao Sul, com o nome de Paraguaizinho.

O trecho brasileiro do rio Paraguai percorre aproximadamente 1.700 quilômetros desde as nascentes à desembocadura do rio Apa, e seu curso total tem uma extensão de 2.621 quilômetros até sua foz, no rio Paraná, o décimo maior rio do planeta em descarga de água. Ali, o Brasil é ba­nhado pela Bacia do Prata, a segunda maior do mundo, só superada pela bacia Amazônica.

Quando os primeiros colonizadores chegaram à região, era a época das cheias. Ficaram tão impressionados com a quantidade de água, que deno­minaram o pantanal de Mar dos Xeraiés, nome da tribo que ali habitava.

Não se trata, porém, de um grande pântano como o nome sugere. Em seus 1.500 quilômetros de extensão até chegar ao oceano, o rio Paraguai tem declividade de apenas cinco centímetros, por quilômetro, causando lentidão no escoamento das águas que então se acumulam no período das chuvas.

Maurício foi olhando aquela paisagem de impressionante beleza que se desenhava lá embaixo, cortada por rios, montanhas, lagos e a vegetação robusta já meio amarelada por causa da seca que esvaziava rios e lagos.

"Onde será que esse piloto vai nos levar? A capitã disse que o piloto ia receber instruções codificadas em vôo. Ela também não sabia, mas parecia despreocupada quanto a isso."

Pensava nos últimos acontecimentos. Decifrar o código foi a coisa mais importante que eles fizeram e agora já tinham relatório completo sobre o que essa organização estava planejando.

Tudo estava detalhado. Assalto a quartéis, acidentes para eliminar go­vernadores que poderiam ser obstáculo, substituição de comandantes das polícias militares, apoio da imprensa, tomada das posições militares hoje ocupadas pelas Forças Armadas e outras temeridades.

Foi um choque para a capita ler o nome de oficiais das Forças Arma­das, que ocupavam cargos importantes na Amazônia, fazendo parte da lista dos conspiradores.

Sem dúvida, o plano era audacioso e cheio de ações. Ao mesmo tempo, ocupações de terras e de prédios públicos para desviar a atenção. Textos preparados para a imprensa. O que mais preocupava era a onda de terro­rismo com a explosão de bombas em lugares públicos. O relatório, com o resumo dos fatos mais importantes, estava agora com as Forças Armadas e certamente deve ter causado grande apreensão.

Mas como tudo isso foi planejado assim, sem que essa tal de CIA tomasse conhecimento? Afinal, o código não era indecifrável. Foi até fácil. Ou será que a CIA está acompanhando isso tudo lá de Langley? Não há dúvida que os aviões passaram a ser seguidos, principalmente depois do episódio de Juína. Essa capitã é terrível. Mas foi uma bonita lição para esses gringos pretensiosos.

O tenente estava folheando os artigos traduzidos e de vez em quando fazia algum comentário. Pensava na capitã. Mulher cuidadosa! Quando ela entrou no avião, dois outros militares vestindo-se com roupas iguais às dele e do doutor Maurício também a acompanharam.

Admirava os cuidados que a capitã tomava. Mesmo alguém que os es­tivesse seguindo tenderia a acreditar que se tratava dos três voltando para suas bases.

Maurício pensava na sua aposentadoria que tinha gorado. Acabou se envolvendo numa missão perigosa, mas se tudo isso que ele estava vivendo não era fantasia, e as tentativas de eliminá-lo provavam que não era, então ele não tinha escolha. Não era fantasia, era um pesadelo.

Estivera poucas vezes com o general. A primeira, quando foi a Brasília enganado com a sensação de que já estava livre do serviço público. Numa segunda vez, o general falou sobre as dificuldades dos militares em confiar no governo civil. Governo civil, disse ele, como se houvesse também um gover­no militar e os dois governos estariam administrando países diferentes.

A cada reunião, o general foi dando indicações novas. Insistiu que ele fosse visitar os fortes que os portugueses haviam construído para defender a Amazô­nia. Esses fortes foram construídos nas embocaduras de rios estrategicamente escolhidos e com isso Portugal pôde manter o território livre de ocupações.

Lembrou-se da Confraria e do Forte Príncipe da Beira.

"Acontecimento estranho aquele", pensou. "Não quiseram a minha presença depois que o general morreu. Só pode ser isso."

Já tinham voado quase duas horas e, quando entraram no avião, leva­vam varas de pescar, material de caça, e roupas apropriadas para uns dias de lazer, como se fossem dois pescadores.

Procurava controlar a ansiedade, porque não havia mais como voltar dali agora. Mas tinha de chegar a algum lugar de onde pudesse comunicar-se com a capitã. Precisava falar com ela e com urgência. Pena que não tinha pensado nessa possibilidade antes. Mas estavam tão empolgados com a tradução das mensagens codificadas, que essa hipótese não lhe passara pela cabeça.

O tenente continuava folheando o material com certa apreensão. Aquilo parecia um plano real e bem-feito de divisão do país. Era um policial estudio­so, inteligente e preparado. Sabia que o melhor era ter todas as informações memorizadas e destruir arquivos que poderiam cair em mãos estranhas. Pro­curou memorizar e entender tudo aquilo, para depois rasgar.

"Mas até esse reverendo Moon? Será que é verdade isso? Será que ele tem mesmo um projeto chamado New Hope com três mil pessoas e a maioria estrangeira, aqui no Pantanal de Mato Grosso? E eles vêm rece­bendo visitas de milhares de coreanos? Coreano não combina muito com Pantanal Mato-grossense."

O tenente estava perdido nesses pensamentos quando o piloto avisou que já estavam chegando.

O avião foi perdendo altitude e quando chegou a mil pés, a pista de pouso se destacou junto a uma pequena floresta e à margem de um rio que poderia ser afluente do Paraguai.

Viam-se as pastagens e algum gado. No período das águas, quando o Pantanal se enche, os fazendeiros levam o gado para os pastos que não sofrem inundação e que, nessa época, estão com o capim alto e verde. Na seca, depois que o gado bateu o capim dos pastos elevados, ele é levado para as terras antes alagadas. As águas trazem material orgânico e enrique­cem o solo, como ocorre no rio Nilo, e, assim, mesmo durante o período da seca, o capim fica rico e verde.

A sede bem cuidada ficava numa elevação a duzentos metros da mar­gem do pequeno rio. O avião pousou e foi em direção ao hangar que estava vazio, mas parou antes e eles desceram. Tinham sido duas horas de vôo e eles estavam precisando alongar as pernas.

Foram conduzidos à residência, onde um casal os recebeu. Os proprie­tários não estavam. Também não viram outros empregados a não ser o caseiro e sua mulher. Um suco gelado de maracujá foi gentilmente descar­tado por Maurício, que perguntou se havia cerveja.

Estava precisando relaxar um pouco e nada melhor do que a cerveji- nha gelada para pôr o pensamento em ordem. Procurava esconder o seu nervosismo porque não valia a pena contagiar o tenente com as suas novas preocupações.

Pegaram uma latinha de cerveja cada um e foram até a beira do rio.

O córrego devia ter cinqüenta metros de largura e, do lugar onde esta­vam, podia-se desfrutar da bonita paisagem que se descortinava além do gramado bem cuidado. A vegetação de ambos os lados abafava o lamentoso murmúrio das águas.

Certamente a área era bem guardada. O piloto desaparecera e só o casal que os recebeu ainda continuava por perto.

O que o senhor está achando deste lugar, tenente?

Fácil! Se nos acharem por aqui, a capitã vai ficar viúva antes de se casar comigo.

Pelo jeito vou ser padrinho de casamento. Mas me diz qual a sua sen­sação em relação a este lugar?

Bom, eu estou achando tudo isso uma maravilha. Saí de Brasília, estou passeando, estou ficando cada dia mais importante, estou até conse­guindo uma namorada. Bom, desculpe, sei que o senhor está falando sério. Acho que é um pouco ermo. Cadê o povo daqui?

Esse é o problema. Esta propriedade não é normal. Pertence a gente meio estranha.

O senhor não vai dizer que...

Isso mesmo. Acho que teremos surpresas.

Acabou a cerveja. O tenente olhou para a casa e não acreditou. A gover­nanta vinha trazendo um balde de gelo e dentro estavam algumas latinhas. O administrador trazia cadeiras para eles sentarem. O sol não estava muito forte e o entardecer prometia ser bonito.

"Não dá nem mesmo para sentir saudades da Buritizal", pensou Maurício.

Viu o piloto com umas varas de pescar descer pelos fundos da casa e entrar num barco.

"O danado sabe se distrair."

O sol foi se pondo e encheu de cores o horizonte. Os pássaros cruzavam o espaço em sinfonias de sons nem sempre bonitos, mas animados. Havia aquela melancolia do entardecer. Ficaram ali, apreciando o farfalhar das folhas nos arbustos com a brisa leve que amenizava a temperatura quente do dia que ia se apagando.

Antes que começasse a escurecer, eles voltaram para a casa, uma bonita sede de madeira, construída com bom gosto. Observavam os móveis, os ar­mários e biombos entalhados. Uma varanda com o pé direito alto separava a copa e áreas de serviço das demais áreas de estar e dormir.

Logo foi servido o jantar. A natureza mostrava sua fartura em cima daque­las bandejas e pratos. "Mandioca frita. Quem resiste?" Peixe ensopado, uma paca assada, farinha de pupunha e outras delícias que lembravam a Buritizal.

Jantaram. O café foi servido na sala principal. Muito ampla, alta e bem decorada com móveis rústicos, mas de bom gosto e arte. Notou que suas mochilas estavam ainda no sofá da sala.

"Deveriam ter sido levadas a um quarto", pensou.

Escureceu. O céu estava um pouco nublado e escondia a Lua. A noite não estava escura, mas também não tinha aquele céu estrelado que en­canta os poetas.

O administrador apareceu, pegou suas mochilas e pediu para eles o acompanharem.

"Estranho! Ele está nos levando para o rio."

Ancorada na margem do rio perto de onde eles estavam antes tomando cerveja, uma voadeira com dois outros camaradas estava pronta para sair. O administrador apenas disse:

Os senhores precisam ir. São as ordens.

Era inútil perguntar para onde iriam. Tinham de seguir a orientação des­sa gente e entraram na voadeira que desceu o rio e foi se distanciando da casa. Os barqueiros conheciam bem o caminho. O rio estava com pouca água e foram cuidadosamente se desviando das pedras e dos bancos de areia, sem no entanto acender nenhuma lanterna. Às vezes um alertava o outro sobre paus ou pedras, mas foram descendo o rio sem parar, por quase duas horas, e só então acenderam as lanternas e eles puderam andar mais rápido.

Quando o feixe de luz alcançava as margens do córrego, pequenas luzes imóveis acendiam no barranco como se fossem um vilarejo.

O que é aquilo? - perguntou o tenente.

São jacarés. Eles dormem com os olhos abertos. Durante o dia a gente não consegue ver tantos, mas à noite eles se reúnem e fica mais fácil vê-los porque os olhos deles refletem a luz da lanterna. Essa é uma das grandes riquezas do Pantanal.

Maurício lembrou do Skylane que os trouxera. "Interessante! O piloto não guardou o avião no hangar. Eles querem que o avião seja visto lá e estão nos tirando do local. Para onde será que vamos?"

Pouco tempo depois, o córrego ficou mais largo, as margens se dis­tanciavam e parecia mais fundo. Logo surgiu o rio Paraguai, o principal responsável pelo ecossistema do Pantanal de Mato Grosso.

Faltava pouco para as oito horas quando saíram da casa da fazenda. Apertou o botão da luz do relógio de pulso que usava para correr. A lanterninha do relógio servia para essas ocasiões. Às vezes até para se guiar à noite, quando não tinha outra luz. Já era quase meia-noite.

Os barqueiros acenderam um grande farol que estava na dianteira do barco e com essa nova claridade o barco começou a andar mais depressa. O rio Paraguai tem muitos pesqueiros e é comum os pescadores e turistas acamparem nas margens de córregos e terem luzes mais fortes para saírem à noite. Esperavam que essa luz agora não levantasse suspeitas.

Quando saía para pescar, lá no Roosevelt, aproveitava para exercitar a sua ioga durante o tempo em que a voadeira subia ou descia o rio. Por algum tem­po também ficou sentado ali no meio do barco, fazendo os seus exercícios.

"É por isso que esse sujeito é controlado", pensou o tenente.

Cinco horas de barco. A voadeira tinha ido devagar quando estava no afluente, mas no leito do Paraguai fazia justiça a seu nome. Pela velocidade média que desenvolveram, já deviam ter navegado de setenta a oitenta quilômetros.

"Se a idéia é desviar a atenção, dando a entender a outros que, pelo fato de o avião ainda estar lá, nós também continuamos no mesmo lugar, então, essa distância já é suficiente. Devemos estar chegando."

Rogério parecia bem disposto para quem tinha saído do hospital no dia an­terior. Se estava sentindo alguma coisa, não revelava. Apenas olhava para as águas do rio Paraguai, como se não acreditasse que estava agindo como fugitivo.

Não demorou muito e a luz de uma grande casa apareceu à margem do rio e a voadeira foi se dirigindo para ela. Era outra sede de fazenda, tam­bém grande, bonita e vistosa.

Encostaram o barco na margem. Um deles pulou e puxou a corda até o ancoradouro e todos desceram. Subiram a escada de madeira, que também se apoiava no pequeno ancoradouro, e foram levados para a casa, onde duas pessoas vestidas de monge os esperavam.

O tenente olhou para ele e disse:

- O senhor acertou. Esse povo é mesmo cheio de surpresas.

Foram recebidos com cerimônia e os cumprimentos formais não escon­diam a gentileza. Os quartos eram separados e Maurício cuidou logo de tomar um bom banho e ir dormir. Estava cansado e aquele chuveiro de boca larga de onde a água caía em abundância dava a sensação de que estava debaixo de uma pequena cachoeira. Rejuvenesceu.

O quarto era espaçoso, com duas camas de solteiro, do tipo "cama de viúva". Pediu a Deus que todos aqueles problemas acabassem logo e ele pudesse viver ali mesmo, esquecendo até a Buritizal.

Ia deitar-se quando alguém bateu na porta.

Desculpe incomodá-lo. Posso entrar?

Maurício abriu a porta e levou um susto. O piloto do Skylane estava à sua frente, com trajes de monge e o olhava sorridente.

Ah! Então foi por isso que o senhor não me convidou para a pescaria? O senhor saiu na frente. Por favor, entre.

O monge sorriu e entrou. Colocou as mãos dentro das mangas, como se fosse seguir uma procissão da Paixão de Cristo, abaixou a cabeça e falou respeitosamente:

-Às vezes nossa fisionomia demonstra cansaço, apenas cansaço. Mas às vezes também mostra apreensão e dúvidas. Se o irmão tem alguma coisa que aflige a sua alma, estou aqui para ouvi-lo. Se tiver alguma instrução que possa ajudá-lo nessa sua dúvida, por favor não hesite. No momento não podemos nos dar ao luxo de hesitações.

Se aquele monge tivesse levantado a cabeça, teria visto a cara de espanto de Maurício.

"Será que ele é algum adivinho?"

Maurício então disse:

O senhor seria capaz, de conseguir um encontro com a capita Fernanda, em lugar seguro, para amanhã cedo, sem falta? O mais cedo que puder?

O monge fez uma leve inclinação e se retirou dizendo:

Que Deus lhe dê uma boa noite!

"Será que aquele coronel, tio da capitã, pertence a essa Confraria?"

Esqueceu suas preocupações e dormiu profundamente.

O embaixador olhava pensativo para os papéis que estavam em cima da mesa. Folheava ora um, ora outro e procurava por coisas que ainda não sabia. Sentia a necessidade de pesquisar e ler tudo que dizia respeito à Amazônia.

"Esses europeus!... O que será que eles estão pretendendo? A Amazônia está dentro do continente americano. Como disse o presidente Monroe A América é para os americanos'. Claro que não é só para os americanos do Norte, como dizem por aqui para criticar a doutrina de Monroe. Não é bem isso. Europeu é que não pode vir xeretar por aqui."

Estava preocupado. O episódio com o avião da CIA o tinha ocupado muito e os congressistas americanos e brasileiros buscavam explicações. Ha­via requerimento de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Se­nado do Brasil para apurar o que a CIA estava fazendo na Amazônia e ainda com um avião em condições irregulares. Aquele ex-presidente e hoje senador, Rocha Meira, está exagerando com discursos e pedindo providências.

"Isso não está cheirando bem. Por que será que a CIA esperou vinte e quatro horas para me mandar as pesquisas da internet? Se já havia infor­mações, não podiam ter esperado. Essa autonomia da CIA ainda vai criar muitos embaraços para o meu país."

Comparava os papéis e eles indicavam vários locais de pesquisa. Era difícil localizar quem estava provocando isso. "O agente do FBI tem ra­zão. Não podemos continuar subestimando a inteligência alheia. Eles estão atrás de alguma coisa séria e nos estão despistando. Mas o que será?"

Leu a declaração de John Major, quando era primeiro-ministro da In­glaterra, muito comentado nas pesquisas da internet:

 

"As campanhas ecologistas internacionais que visam à limitação das soberanias nacionais sobre a Região Amazônica estão deixando a fase propagandística para dar início a uma fase operativa, que pode, defini­tivamente, ensejar intervenções militares diretas sobre a região."

 

"Será que eles já estão nessa fase operativa ? Mas como os nossos servi­ços de espionagem não informam nada? Ou será que pretendem manter a diplomacia fora disso?" Leu outra folha.

"Até mesmo o Gorbachev? Mas o que é a Rússia hoje para sair lá da Sibéria e ter pretensões na Amazônia? Então ele acha que 'O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes'? Pois bem."

"O Parlamento Italiano também está se intrometendo. E um exagero dizer que "A destruição da Amazônia seria a destruição do mundo."

Tirou os óculos. Levantou-se e foi até a janela.

"Se continuar desse jeito, nossos planos sobre a Amazônia não vão dar certo. O caminho correto é a diplomacia, a pressão inteligente. Não vai adiantar nada uma guerra e é possível que o mundo todo se vire contra nós. Esses europeus sabem da importância das reservas naturais. A Amazônia é ainda a grande reserva, praticamente inesgotável."

Leu a folha impressa pela secretária e tirada da internet, na qual cons­tava que o general Luiz Gonzaga Shõereder Lessa, ex-comandante Militar da Amazônia informava que:

 

"Ela se constitui no maior Banco Genético Mundial. Possui 1/5 da água doce do mundo, a qual será objeto de guerras para o seu controle no 3° milênio; 1/3 das florestas do mundo e 1/20 de toda a superfície da Terra. A Amazônia Brasileira possui 11.248 quilômetros de fronteiras, 1.020 quilômetros de litoral, 23.000 quilômetros de rios navegáveis, possui a maior bacia hidrográfica do mundo e 30% da biodiversidade mundial. E nela cabe toda a Europa, menos a Rússia. Possui três fusos horários e se situa em dois hemisférios."

 

Foi até o globo geográfico que estava sobre a sua mesa. Olhou o mapa da Inglaterra.

"O rio Amazonas lança no mar em um só dia toda a água que o Tâmisa lança em um ano. Perderam a África, perderam a índia, perderam a China. Será quê...!?..."

Não estava muito satisfeito. Sabia que precisava agir, fazer alguma coisa, mas não tinha certeza do que estava acontecendo. Se pelo menos aqueles três confiassem nele!

O telefone tocou. Era a secretária.

Está aí, é?

A porta abriu-se e o homem do FBI entrou.

Bom dia, embaixador.

Bom dia. Como vai? Estava precisando do senhor ontem e me deixou sozi­nho no meio de todo aquele embrulho. Ainda hoje a situação está fervendo.

Recebi instruções para não aparecer na embaixada. Acho que o se­nhor compreende.

Claro que compreendo. O governo dos Estados Unidos tem os dois melhores centros de espionagem do mundo e numa hora dessas um fica contra o outro. Em quem agora o senhor acha que o presidente pode se apoiar? Sem dúvida, vou ser chamado a Washington. Não agora. É estratégico. Uma ida lá agora seria confessar para o mundo todo que nós fizemos outra presepada, mandando um agente da CIA até Juína.

O homem do FBI ficou em silêncio. Compreendia a posição do embai­xador, mas ele era o diplomata. O assunto agora era para diplomatas.

Mas o senhor pode ao menos fazer algum relato do que sabe? Se pu­der falar alguma coisa?

Era visível o constrangimento do velho embaixador. Estava sob tensão e pelo jeito não havia dormido bem.

Quando saí daqui naquele dia, voltei ao ponto de observação. O agente da CIA estava lá. A capitã veio ao hotel e levou o homem da Receita e o tenente para o aeroporto, onde pegaram um avião para Juína.

-Juína? Ah!... E então?

Numa situação dessas, como a que estamos passando, nenhuma in­vestigação pode esquecer o aeroporto. Minhas sondagens diziam que um avião Baron estava preparado e com destino para Juína. O homem da CIA pegou o Citation e foi para Juína, onde pretendia chegar antes deles. Os dois pilotos do Citation tinham trabalhado com o agente da CIA no Vie­tnã. Depois do Vietnã serviram como mercenários em alguns países da África. Eram assassinos profissionais, se essa informação lhe for útil. Por que foram recrutados pela CIA, não sei.

Não posso acreditar! O senhor tem certeza?

Essas informações me foram passadas quando procurei saber quem eram os pilotos. Os documentos deles são falsos, mas a fonte já os conhe­cia. Eles se julgavam tranqüilos aqui, ainda mais com a proteção da CIA.

Estou horrorizado. O senhor acha então que eles queriam chegar an­tes, para surpreendê-los quando saíssem do avião?

Não sei se era esse o objetivo.

Mas então o que houve?

O homem do FBI sorriu e descreveu o que ocorrera em Cuiabá.

Então, o senhor calculou que eles iam aprontar alguma coisa contra o governo americano. Não sabiam se era a CIA ou o FBI, mas desconfiavam de estarem sendo seguidos e acabaram confirmando, através de ação de contra-espionagem de fazer inveja à própria CIA, que o governo america­no agiu de forma suspeita contra três pessoas ligadas aos serviços de inte­ligência do país. Mas como o senhor adivinhou que eles iam para Cuiabá e não para Juína?

Bem, a conclusão não era difícil. Juína não tem iluminação noturna e um vôo direto de Brasília até lá demora perto de quatro horas num Baron, que tem autonomia de cinco horas. Não se arriscariam a um vôo direto, sem escalas para abastecer e, se parassem, não iam chegar antes do horário permitido para pouso.

Então?

O comandante da base militar de Cáceres é tio da capitã...

Cáceres?

Perto de Cuiabá. - Bem, pensei eu, se estão indo para Mato Grosso, mas não podem arriscar-se a um vôo direto para Juína, qual seria então o destino mais seguro para eles?

O embaixador se levantou. Estava muito inquieto. Normalmente era cal­mo e concentrado. Um diplomata de carreira que sabia dominar emoções e transmitir serenidade. Percebia-se o esforço que fazia para se auto-controlar.

Então, o assunto é muito mais sério do que parece.

O homem do FBI estava quieto. O embaixador voltou-se para ele:

Mas o senhor está querendo me informar alguma outra coisa, da qual o senhor também não tem certeza. E melhor dizer.

Tenho a impressão de que os serviços de inteligência do Exército, incluindo essas pessoas, não confiam nos homens do governo.

Como assim? O senhor quer dizer que não tem havido comunicação com a Casa Civil e o Gabinete da Presidência, ou com o Ministério da Justiça? Mas e o ministro da Defesa? Ele é um civil, um político.

Pode acreditar. Eles têm ficado de fora do assunto. Não lhes é passada uma única informação. Comecei a sondar isso quando morreu aquele ge­neral, chefe da Abin. Por que esconderam que houve um atentado?

Um conveniente silêncio tomou conta da sala.

Mas isso é explicável. Afinal, o governo hoje está com muita gente que enfrentou os militares... Espera aí. O que o senhor quer dizer com isso?

Isso pode significar que os militares estão com receio de que gente do governo esteja por trás dessas coisas. Se levarmos em consideração que as organizações esquerdistas da época tinham treinamento estratégico na Rússia, em Cuba, na antiga Tchecoslováquia e outros países comunistas, pode acontecer que continuem organizados.

O embaixador olhava com olhos arregalados para o homem do FBI.

O senhor não chegou a essas conclusões sozinho. Esse é um racio­cínio bastante viável, mas muito elevado para o nível de inteligência de um simples agente do FBI. A CIA se considera melhor que o FBI e olha no que deu. Anda! Me explica! Quem pôs essas coisas nessa sua cachola torta? Quem?

O agente do FBI riu gostosamente.

Mas antes o senhor vai mandar trazer um café, não vai? Um café novo, com coador de pano e passado na hora, como aprendi a tomar por aqui nos meus tempos de criança.

O embaixador pediu o café, com todas as recomendações, mas, para ele, o chá.

Já estava sentindo falta da sua espontaneidade - disse o agente do FBI, frisando espontaneidade.

Dava a entender que já tinham trabalhado junto antes.

Tenho contatos. É o mais importante na minha atividade.

Eu também tenho contatos - disse o embaixador. - É o mais impor­tante no meu cargo, mas o que disseram os seus contatos?

As informações que recebi deixaram a impressão de que precisam de ajuda. Acho que confiam no senhor. Fizeram uma manobra de troca de aviões para despistarem a CIA e é claro que com isso estão nos dando um recado.

Parou um pouco para causar impacto.

Recado? Para mim? Ou para o nosso governo?

O agente do FBI não respondeu de imediato. Pensou um pouco e arriscou:

Não me diriam isso, se pensassem que o governo dos Estados Uni­dos está por trás dessas ações. Acho que estão pedindo ajuda, ou estão nos informando de que alguém está querendo comprometer-nos. Mas e a CIA? Ela é parte do governo americano. No que será que esses malucos estão metidos?

O embaixador olhou pensativamente para o homem do FBI. Normal­mente, ele não era tão falante. Estava dando muitas explicações. Estaria também preocupado? Conhecia aquele rapaz e tinha provas de sua lealdade para com o seu país e para com ele mesmo. Estava no Líbano, num mo­mento difícil de sua carreira, e foi aquele rapaz que conseguiu evitar que ele e sua mulher fossem seqüestrados por terroristas. Desde então, procurava mantê-lo por perto.

Levantou-se. O café chegou e cheirava gostoso. Quase se arrependeu do seu chá.

Acho que temos algum motivo de otimismo.

O agente olhou para ele e esperou o comentário.

Pode ser que as Forças Armadas estejam realmente desconfiando des­ses antigos esquerdistas. E obviamente nós também não temos motivos para confiar neles e nem eles em nós. Nesse caso?

Eles precisam de uma mensagem da nossa parte.

Então?

Espionagem é como ação na bolsa. A qualquer momento pode surgir uma boa oportunidade. Preciso da sua concordância para agir.

Confio no seu trabalho.

O agente sorriu em agradecimento da confiança e perguntou:

E a internet? Eles continuam mandando mensagens?

Muitas. E de locais diferentes. Universidade, escritórios, centros de pesquisa, parece que houve uma histeria internética em assuntos de ONGs e Amazônia.

Já esperava. É como eu disse para o senhor. Esses brasileiros são esper­tos. Isso é coisa da capitã. Para tirar o foco das atenções do grupo deles, ela criou centros de emissões em lugares diferentes.

O embaixador pegou algumas folhas com mensagens cifradas. Mostrou ao agente do FBI.

O senhor consegue decifrar esse código? Acho que seria interessante.

O embaixador estava visivelmente tenso.

Precisamos decifrar essas mensagens. E importante e urgente.

O agente pensou um pouco.

Acho que estamos atrasados nisso. O senhor pode estar certo de que, desde o primeiro dia que uma dessas mensagens chegou ao conhecimento daqueles três, eles começaram a trabalhar. O isolamento em Cáceres certa­mente era para dar o retoque final.

Volto a dizer. Precisamos decifrar essas mensagens. É importante e urgente.

Embaixador, me desculpe. Eu não posso perder tempo com essa decodificação. Preciso me pôr em campo, preciso de informações. Por outro lado, imagino que o senhor não vá pedir à CIA para decifrá-lo. Com certe­za eles já o fizeram e foi por isso que retardaram a mensagem para o senhor. Não queriam que decifrássemos essas mensagens antes deles. E se a CIA decifrou as mensagens e não as mandou já traduzidas...

É. Parece que estou em descrédito com essa CIA.

Outra informação interessante. A capitã voltou sozinha de Cáceres. Os dois camaradas estão soltos em algum lugar da Amazônia e provavelmente longe de Cáceres. O que estarão fazendo e o que a Receita Federal tem a ver com isso? Preciso descobrir.

Levantou-se.

Foi o melhor café que tomei aqui, senhor embaixador. Posso me retirar?

O homem do FBI saiu. O embaixador voltou ao seu chá. Pegou a xícara e foi até a janela novamente. Admirava Brasília, mas algo na sua localização o intrigava. Quando Juscelino iniciou a sua construção, ela já estava de­marcada no mapa, como parte da doutrina de segurança nacional. Já havia aí, portanto, o dedo dos militares receosos de perderem a Amazônia.

Brasília representou o avanço para o Oeste, como na história americana.

Voltou à mesa e continuou folheando os papéis. Precisava encontrar alguma coisa que indicasse com mais coerência o que estava acontecendo.

Uma publicação da internet dizia que pilotos da FAB fizeram um pouso forçado na região de Paa-Piú Novo, a duzentos e cinqüenta quilômetros de Boa Vista, em Roraima e encontraram uma ONG com a bandeira da Comunidade Européia hasteada na frente da sede dessa ONG e no interior havia um mapa da região com a Amazônia separada do Brasil.

"Será que vão estragar tantos anos de paciente trabalho?"

Lembrou que o seu governo viu com certa desconfiança a construção de Brasília. Juscelino era meio ligado ao comunismo e deu o projeto para aquele outro "camarada", o Niemeyer. Uma obra dessas podia valorizar a esquerda. A União Soviética era poderosa. Tinham lançado o Sputnik. É claro que depois a Nasa, Agência Espacial Americana, mandou o homem à Lua, mas a glória do primeiro passo para a conquista do espaço ficou com a Rússia.

"Mas o que Sputnik ou aquela cachorrinha, Laika, que os russos man­daram para o espaço num outro foguete, tem a ver com as coisas agora?"

"Ah! Sim." Continuou pensando. "Deixamos o Juscelino infiacionar o país com emissões de dinheiro para construir Brasília. Depois, veio o doido do Jânio Quadros que se apaixonou pelo Guevara. Apoiamos os militares contra o comunismo. O golpe foi bem estudado. Os comunistas já esta­vam organizados. As Ligas Camponesas chefiadas por um tal de Francisco Julião, no Nordeste, eram um verdadeiro exército. Estavam armados. Li­gas Camponesas. Sim, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da época."

Levantou a cabeça e ficou olhando para o quadro na parede. Era a batalha de Gettysburg. O general Lee resolveu jogar tudo naquela batalha que é considerada a batalha decisiva da Guerra de Secessão. Foram apenas três dias de luta e em 3 de julho de 1863, depois de cenas horríveis de de­sespero e milhares de soldados mortos, Lee determinou a retirada.

A Guerra de Secessão, como foi chamada a Guerra Civil Americana, quando onze Estados do Sul queriam se separar do Norte, teve um total de dez mil encontros militares entre batalhas, combates e outros con­frontos. Morreram mais de seiscentos mil americanos, um pouco menos do que os Estados Unidos perderam em todas as guerras nas quais se meteram até hoje.

"A morte faz parte da história", filosofou.

"Só numa guerra interna nós perdemos tanto quanto perdemos em to­das as outras guerras. É melhor levar as guerras para fora do território dos Estados Unidos. Foram mais de cinqüenta milhões de mortos, apenas na Segunda Guerra Mundial", pensava orgulhoso.

"Vinte milhões de russos. Seis milhões de poloneses. Seis milhões de judeus. E nós só perdemos pouco mais de seiscentos mil soldados em todas as nossas guerras, mesmo tendo participado das duas grandes guerras mundiais."

Tirou os olhos do quadro de Gettysburg e voltou seus pensamentos para o período das ditaduras militares na América Latina.

"Foi uma grande lição contra o comunismo. Tomamos o Chile, a Ar­gentina, mas o Brasil foi um modelo exemplar de regime anti-comunista. Os militares brasileiros são mais disciplinados. Queriam restabelecer a ordem e a democracia. Não chegou a haver uma ditadura, mas o estabelecimento planejado do capitalismo democrático que trouxe grande crescimento eco­nômico ao país, desmoralizando a esquerda."

"Em dezoito anos de regime militar, o Brasil teve vários presidentes eleitos pelo Congresso Nacional. Castello, Costa e Silva, Medici, Geisel, Figueiredo, nenhum deles ficou no poder tanto tempo quanto o Fernando Henrique. Ironias da democracia."

"Esquerda. A esquerda não sabe fazer riqueza, só aprendeu a fazer revolução."

Seus pensamentos andavam lentamente em busca de alguma razão que não estava encontrando nos fatos recentes. Não havia movimentação de tropas, nem declarações contundentes de políticos, nem artigos na im­prensa que indicassem alguma coisa que ele desconhecia.

Passou a mão no queixo. Apesar de tudo, as coisas não estavam indo bem.

"É! A esquerda não sabe fazer riquezas, isso é verdade. No máximo, o que eles conseguem é dividir a riqueza dos outros. Dividir o que a gen­te não tem é fácil. Mas hoje não há mais espaço para revoluções. E eles também não são burros. Aprenderam que sem riqueza perdem o poder. Se o que eles pregavam levava à pobreza, e foi o que aconteceu no mundo socialista, então, para fazer riqueza é só agir na direção contrária do que pregavam. Passaram então a fazer o que os Delfins Nettos, os Simonsens, os Robertos Campos fizeram."

Olhou de novo o quadro na parede. Aquelas cenas horrendas de ca­nhões destruindo brancos e negros estimulavam o seu pensamento.

"E agora parece que o Brasil está crescendo de novo. Onde estamos errando?"

Começava a entardecer. Em poucos minutos ia poder assistir àquele es­petáculo colorido que se repetia todos os dias com o pôr-do-sol. Sua janela se transformava num quadro a óleo.

"O grande golpe. Faltou o grande golpe. O Grande golpe era dividir o país. Sem a metade do seu território e sem as riquezas que a Amazônia tem, o Brasil deixaria de ser a ameaça econômica que pode comprometer a segurança dos Estados Unidos. E preciso pensar em matérias-primas, áreas cultiváveis, ouro, urânio e outras riquezas. E ainda manter faixas de florestas para preservar o clima, se de fato isso funcionar."

De pé, olhando a batalha de Gettysburg, lamentava que o seu país não tivesse aproveitado o momento quando o Brasil estava endividado e os mili­tares, desmoralizados, passaram o poder para a esquerda.

"Agora é um pouco tarde, mas parece que alguém pensa do mesmo jei­to. Estariam os europeus dando o primeiro passo, como fizeram os russos com o Sputnik? Será que estão entrando naquela área, usando ONGs e nos deixando de lado? É, pode ser, pode ser... ONG européia é mais bem aceita que ONG americana. Eles levam essa vantagem. ONG européia tem credibilidade."

A cena daquele negro com o desespero estampado nos olhos e as duas mãos segurando o sabre, que o soldado branco lhe enfiara no abdome, não saía da sua cabeça.

"É. Não dá para imaginar umas mil ONGs americanas na Amazô­nia. Já teria dado em guerra. Mas os europeus, o Velho Mundo, eles se julgam criadores da moral, da filosofia, do humanismo, enfim parece que o que vem da parte deles é mais intelectual, mais voltado para a humanidade. Eles conseguem deixar essa impressão de que são amigos de todos os povos."

"Por que será que todo mundo desconfia dos Estados Unidos?"

Em Nordland, na Noruega, uma antiga gravação numa pedra docu­menta que o esqui já era praticado naquela região há aproximadamente 4.000 anos. A mitologia escandinava registra a existência de Ull, o deus do esqui, e Skade, a deusa da caça e do esqui. Mas foi o município de Telemark, no sul da Noruega, que recuperou o esqui como esporte no fim do século XIX.

Soube a natureza distribuir democraticamente o gelo por todo o globo terrestre e, assim, numa estação de esqui no Sul do Continente Americano, uma gôndola subia lentamente o morro congelado levando perto de vinte esquiadores com suas roupas coloridas, alguns sentados com os esquis e os bastões entre os joelhos, para não estorvar os outros que procuravam se apoiar como podiam, e outros de pé seguravam as argolas que caíam do teto.

A paisagem de pinheiros verdes cobertos de neve branca chamava a atenção dos passageiros, enquanto subiam para o alto do morro, onde sal­taram. Um senhor forte, com pouco mais de cinqüenta anos, colocou os esquis, ajeitou os óculos, o gorro, e saiu deslizando sobre a neve macia.

Pegou uma das pistas, ganhou velocidade e mais adiante tomou um desvio que, durante o verão, é o caminho por onde se chegava até o alto do morro e que no inverno se transforma em pista de esquiar.

Logo mais abaixo havia um bonito chalé de madeira construído em cima de pedras cinzas parcialmente cobertas pela neve e o homem se di­rigiu para lá. Há um mês alugara o chalé em nome de um certo Muller Smith e era esse o seu nome ali. Foi recebido por uma governanta e, após as apresentações, foi conduzido aos aposentos que lhe estavam reservados.

Voltou depois de tirar as incômodas roupas de esporte e vestir agasalhos mais leves e confortáveis. A temperatura aquecida do interior do chalé dispensava agasalhos pesados.

Esperava mais seis pessoas e foi até o bar, onde se serviu de um Hennessy XO, seu conhaque preferido. Sentou-se no sofá, perto da lareira, e ficou esfre­gando o copo com as mãos para esquentar a bebida e fluir melhor o buquê.

Era hoje homem rico, proprietário das Empresas Reunidas F.S., holding sob a qual se agrupavam investimentos em vários países. Era respeitado e prestigiado nos meios políticos, inclusive sendo convidado para cargos de importância no governo alemão, aos quais tinha sempre de declinar, por­que seus interesses eram outros.

Já fizera várias reuniões para amadurecer e consolidar o plano e chega­ra o momento de dar formato aos capítulos finais de uma nova história. Enquanto esquentava o conhaque e apreciava o seu aroma, foi lembrando aquele vôo de Manaus para Brasília. Participava então de um grande proje­to na Zona Franca de Manaus e sua empresa já tinha investido milhões de dólares para implantar a Indústria de Compensados F.S.

Lembrou-se de que olhava, da janela do avião, aquela imensidão verde que nunca se acabava e deixou escapar comentário que deu início a essa grande aventura. O companheiro do assento do lado tinha acabado de dobrar o jornal que estava lendo e colocou-o na bolsa que fica na parte de trás do banco da frente e ele disse então sem qualquer finalidade:

É uma imensidão. Daria um novo país.

O companheiro parecia pouco mais novo que ele, olhou-o interessado e continuou o assunto, mantendo a conversa como se fosse apenas para passar o tempo.

E seria um país bem rico. Com o minério que existe aí embaixo dessas árvores, a riqueza florestal, a proximidade com o Pacífico e o Atlântico, se­ria um país mais rico que o Brasil litorâneo, porque além de toda a fartura natural, já existem pólos industriais em vários Estados, sem contar a Zona Franca de Manaus.

Achou interessante a expressão "Brasil litorâneo".

A conversa continuou sobre hipóteses idealísticas de uma eventual in­dependência da Amazônia, que poderia até mesmo contar com grupos do Sul do país que já pensavam na independência do Estado de São Paulo e outros. Um trabalho bem-feito, com infiltrações em vários órgãos e, pron­to!, a independência da Amazônia não estava tão verde assim.

Seria fácil conquistar a opinião pública mundial com insinuações de que o governo brasileiro estava estragando aquele patrimônio que na ver­dade pertencia à humanidade. Várias conjeturas foram feitas apenas para ajudar passar o tempo, até o pouso no aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília. Houve troca de cartões, uma despedida cordial, mas nada que pudesse supor novos encontros.

Passara três dias em Brasília tentando liberar o licenciamento para ini­ciar a produção, mas tudo estava muito difícil. Já estava no país havia quase três anos, aprendera o português e falava até bem, mas não conseguia entender essa gente.

Num dia o chefe não estava lá, no outro dia faltavam guias ou formu­lários e, quando tudo parecia estar pronto, faltava aquele documento que ninguém havia exigido antes. Não, não era fácil. Tinha contratado empresa de projeto para fazer tudo certinho, mas não estava na Alemanha.

Os custos aumentavam a cada dia. Dinheiro para campanha de depu­tado, dinheiro para isso e mais aquilo, taxas, projetos, certidões, era uma loucura. Sabia que precisava de paciência, principalmente agora que a in­dústria estava pronta e só faltava produzir.

Estava se aprontando para jantar, quando tocou o telefone.

Atendeu. Uma voz que lhe pareceu conhecida perguntou:

Senhor Sauer?

Sim, Sauer.

Aqui é o seu companheiro do vôo de anteontem de Manaus para Brasília, o senhor se lembra?

Sim, como não, senhor Dílson.

O senhor está muito ocupado? Gostaria de convidá-lo para jantar esta noite. Eu também estou só aqui em Brasília e notei quando o senhor saiu do edifício do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES. Por pouco não nos encontramos lá.

Puxa! Que coincidência, o senhor também estava lá?

É. A gente aqui precisa correr atrás da burocracia e era sobre isso que também queria lhe falar. Talvez possa ajudá-lo.

Seria ótimo - respondeu.

"Deve ser mais um desses vendedores de milagres, mas não custa ouvir o que ele tem a dizer", pensou.

O outro veio pegá-lo e logo estavam jantando no restaurante Munchen e tomando um Bulaier, vinho agradável do Mosel, bom para acompanhar o pacu com batatas douradas.

A conversa teve início cauteloso. Achou que o seu companheiro de vôo estava preparando o terreno para fazer alguma proposta de assessoria para a aprovação de projetos. Mas o assunto foi tomando outra direção e pareceu assustador no começo, mas Sauer achou que aquilo poderia dar certo, pois, afinal, a história é feita pelos homens.

Devia ter menos de quarenta anos, como ele próprio. Talvez um metro e oitenta, pele clara e olhos azuis. Expressava-se com facilidade e dizia as coisas de maneira convincente.

Fora a primeira reunião que tivera com Dílson para a criação da Repú­blica da Amazônia.

Soube então que um grupo de políticos e pessoas que foram exiladas do Brasil pelos militares no golpe de 1964 mantiveram-se unidos e fundaram uma organização com a finalidade de criar um novo país. Naquela época, antes do golpe de 64, a intenção deles era tomar o poder, com o apoio da Rússia, aproveitando-se da fragilidade do governo João Goulart, mas fo­ram impedidos pelo golpe militar.

Eram pessoas preparadas intelectualmente, com disciplina partidária, na verdade uma elite que não se confundia com a massa ignara do país. Além desse conteúdo de superioridade intelectual, tinham recebido intenso treinamento militar e estratégico em vários países do mundo comunista e constituíam ainda uma organização abrangente e bem estruturada.

Em seus treinamentos de guerrilha, tinham estudado vários tipos de estratégia revolucionária e, nesses treinamentos, não importava se a revolu­ção era de direita ou de esquerda. Importava a estratégia, ou seja, as razões do êxito ou do fracasso. Estudavam detidamente por que uma revolução foi vitoriosa ou derrotada.

O golpe militar frustrou a revolução planejada pelo grupo, mas eles continuaram unidos à espera de outra oportunidade. A anistia favoreceu a reorganização e agora eles estavam ocupando posições estratégicas dentro e fora do governo.

No entanto, precisavam de um objetivo novo para mantê-los coesos. O mundo socialista estava se desagregando e não iam mais conseguir apoio da Rússia ou de outros países socialistas.

Descobriram então uma causa na qual era quase certo que podiam ter êxito.

Era tão fácil, que hoje estranhavam não terem pensado nisso na época. Podiam até mesmo ter deixado o Jânio ou o João Goulart no poder e eles já estariam com outro país em suas mãos. Fazer guerrilha urbana com o Marighela ou reuniões com intelectuais foi ingenuidade. Os militares estavam numa perseguição implacável e não tiveram piedade.

A guerrilha no Araguaia foi outro erro. O que podia fazer lá um gru­po de poetas isolado, sem logística alguma? Bastaram alguns soldadinhos e uns tiros, para saírem correndo, e ainda cometeram atrocidades contra pessoas inocentes, perdendo o lugar na história. Alguns até se acovardaram e denunciaram companheiros.

Mas, se agissem agora com inteligência, podiam tomar a Amazônia sem que houvesse reação do Exército ou do governo. E ainda teriam o apoio dos Estados Unidos, da Europa, do mundo socialista e também de brasileiros.

Lembra-se de ter ficado assustado com a revelação. Afinal era um es­trangeiro que estava havia pouco tempo no país e não podia se envolver em questões políticas. Tinha um projeto madeireiro que precisava explorar e, se fosse se imiscuir em assunto político, corria o risco de perder o seu investimento. Afinal, a redemocratização estava apenas engatinhando.

Mas o assunto o deixou curioso.

Onde vocês vão arranjar dinheiro, como vão conquistar a imprensa e a opinião pública mundial?

Bom, quanto à opinião pública mundial, logo o mundo todo vai querer que alguém salve a Amazônia. Alguns crimes vão chocar as organizações de direitos humanos. Temos muitos correligionários na imprensa e até mesmo dentro de instituições militares. O movimento já está tomando corpo dentro do país, mas precisamos de ajuda lá fora, principalmente na Europa.

Mas o senhor está querendo que eu entre nisso?

Não se assuste! Ocorre que o senhor já vem sendo estudado há algum tempo e o meu assento no avião não foi coincidência. O que me surpreen­deu, no entanto, foi o senhor ter iniciado a conversa sobre o que eu ia justa­mente lhe falar. No avião eu queria apenas o contato.

O senhor quer dizer que eu então já era uma pessoa marcada?

Não diria marcada. Ocorre que o senhor é empresário respeitado na Eu­ropa e suas empresas atuam em diferentes ramos. Sabemos que tem pretensões de continuar investindo na Região Amazônica, inclusive na área de minérios.

Dílson parou um pouco e disse com voz mais firme:

Entenda o que vou dizer. O senhor não está conseguindo a aprovação final do projeto nem as licenças ambientais para começar a produzir. No entanto, poderá estar com tudo isso em mãos, amanhã cedo.

Entendeu o recado. Se quisesse que seu projeto andasse, teria de aderir. E, se aderisse, podia ter vantagens nisso. Valia a pena perguntar mais um pouco.

Mas se os senhores vão proclamar uma república e criar um país novo, certamente já pensaram em governantes, numa invasão militar, numa constituição, isso tudo já está preparado?

Praticamente, tudo já está planejado. O nosso ideal é proclamar uma República Global.

República Global? Nunca ouvi falar disso.

Explico. A soberania é princípio egoísta e superado. Veja, para que uma república na Amazônia tenha apoio e futuro, vai ser preciso partici­pação internacional.

Lembrou-se de que Dílson fez uma pequena pausa para que ele absor­vesse a informação.

Nós queremos criar um novo tipo de democracia, uma democracia in­ternacional, como, por exemplo, constituir ministérios compostos de pessoas de vários países. O senhor poderia ser um Primeiro-Ministro. O que o senhor acha de um parlamento com membros não só do território da nova república, mas também de outros países e que tenham legítimos interesses na região?

A pergunta deixou-o estupefato. Nunca havia pensado num país assim.

Cidadania é uma abstração. Se o cidadão nada faz para o seu país, não é um cidadão.

Franz Sauer não sabia o que responder e o outro então disse de maneira quase mística:

Existe a profecia de um santo afirmando que na Amazônia surgirá uma nova civilização, a Amazônia será a terra prometida.

Profecia dizendo que a Amazônia terá uma nova civilização? Não sabia disso.

É uma profecia que interpretaram de forma errada para justificar a construção de Brasília. Dizem que Dom Bosco sonhou que entre os para­lelos 15 e 20 seria construída uma cidade. Não é bem assim. Interpretaram os sonhos de Dom Bosco de forma conveniente para justificar a roubalheira que sempre ocorre com uma obra faraônica.

Parecia meio comovido.

Na verdade, Dom Bosco sonhou que uma voz dizia repetidamente que, quando escavarem as minas ocultas no meio das montanhas existentes entre os paralelos 15 e 20, surgirá a terra prometida, vertendo leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.

Franz Sauer teve um momento de lucidez para perceber que o sujeito era meio estranho. Mas o outro retomou a normalidade e continuou, sem esperar comentários.

Inicialmente a idéia é abrir o leque para eventuais interessados em participar desse parlamento, que seria escolhido, num primeiro mandato, pela Organização e, nos mandatos seguintes, haveria concurso de títulos e documentos submetidos ao próprio parlamento, que a partir daí passaria a selecionar os seus membros, respeitando uma renovação obrigatória de um terço, mas sempre de maneira seletiva. A Organização está aperfeiçoando o sistema. A nova república será um modelo de administração, nela não haverá lugar para analfabetos ou incultos.

Explicou que a população da Amazônia era muito heterogênea e a maioria estava totalmente despreparada. Se por um lado isso era bom por­que essa população não iria se levantar contra a proposta de independên­cia, por outro lado iria criar dificuldades de desenvolvimento. Por isso era importante a integração com pólos mais evoluídos e ricos.

E insistiu:

Pense nas vantagens de se iniciar um país novo, novo em todos os seus aspectos, com um planejamento detalhado para o aproveitamento racional e consciente de todas aquelas riquezas nele existentes.

Sauer achou a idéia genialmente maluca, mas preferiu ser mais objetivo.

Mas quais as ações concretas que os senhores planejam para chegar a essa separação?

Dílson falou num tom misterioso:

Grupos e ONGs estão sendo constituídos para adquirir ou se apossar de grandes áreas e criar domínio sobre elas.

E em seguida explicou, como se estivesse citando um salmo de Davi:

Ninguém vai acreditar que uma ONG com finalidades ambientais estará trazendo armas e soldados disfarçados. Quando desconfiarem, a Amazônia já estará separada e a nova república com sua ordem jurídica formalizada. São mais de mil afluentes do rio Amazonas atravessando flo­restas e onde se pode esconder lanchas e barcos com armamentos pesados e soldados disfarçados de turistas, cientistas e pescadores.

De fato, quem ia desconfiar de ONGs humanísticas inglesas ou alemãs levando armas para a Amazônia?

Mas e os governadores, prefeitos, enfim os políticos da área? — per­guntou Sauer achando, porém, que nem precisava ter perguntado.

O senhor verá. A adesão será quase unânime, inclusive de alguns comandos militares.

E assim terminou aquele jantar. Seus negócios na Amazônia prosperaram e ele foi arregimentando pessoas de sua extrema confiança para investir na Ama­zônia, com promessas de outras vantagens. Aos poucos foi formando verdadei­ro exército de empresários de vários países. Aquela idéia de Democracia Global, com a possibilidade de os próprios investidores fazerem parte do governo, mo­tivou o grupo, que via nessa alternativa maior proteção a seus investimentos.

O ruído de um snowmobil interrompeu seus pensamentos. Os servi­ços de entrega durante o inverno eram feitos por veículos especiais para andar na neve e um deles tinha chegado até o portão da casa e deixado um pacote de mercadorias.

Estranhou aquilo porque não havia feito nenhuma encomenda. Con­sultou a empregada e ela disse que o entregador do supermercado havia passado por ali na véspera e perguntado se precisava de alguma coisa. Ela então encomendou mais leite, pão e verduras, porque ele disse que estava prevista uma tempestade de neve para os próximos dias e talvez não pudes­se fazer entregas tão cedo.

Franz Sauer voltou ao seu Hennessy, sem perceber que o entregador dei­xara junto ao portão um minúsculo aparelho com câmeras especiais de fil­magem e gravação de som. Não teria também como saber que aquele entre­gador estava trabalhando no supermercado havia apenas um mês. O anterior tinha sofrido um acidente e ia ficar sessenta dias com a perna engessada.

Tendo confirmado a entrega com a empregada, esqueceu o entregador e continuou relembrando os fatos que o colocaram nessa esperança de se tornar um dos líderes de uma grande nação.

Foi tudo muito inesperado, mas parece que ia dar certo. Não poderia nunca imaginar que um grupo remanescente de militantes de esquerda pudesse criar uma organização eficiente, com "núcleos" de comando, "cé­lulas" de execução, espionagem e contra-espionagem, que se infiltraram no Ministério Público, no Judiciário, nos organismos militares, nos sindica­tos, na polícia, no meio político e empresarial e agora estava pronto para criar um novo país.

Coube a ele, Sauer, a missão mais importante que foi organizar o apoio econômico e jornalístico internacional. Não foi difícil arranjar contatos na indústria bélica que estava desorientada com o fim da guerra fria. Logo vis­lumbraram novo mercado e passaram a colaborar. Investidores em madei­ra, minério, transportes, energia e outros setores foram aos poucos criando uma força econômica organizada à espera da nova república.

A idéia tinha sido genial. Ninguém iria imaginar que estava sendo pre­parada a soberania da Amazônia como país autônomo. Ninguém se inte­ressava pela Amazônia a não ser pelas suas árvores e índios. E foi aí que a genialidade do grupo foi eficiente.

Dílson foi profético quando avisou que leis ambientais seriam criadas para engessar o progresso da Amazônia. Seriam criados vários canais de dis­córdia entre o passado e o presente. Os incentivos fiscais para projetos na região seriam eliminados e os projetos já criados passariam por restrições.

As leis seriam mudadas abruptamente para inviabilizar projetos já apro­vados, como a redução de cinqüenta para vinte por cento do aproveitamento das glebas. Normas dificultariam as atividades de madeireiras que acabariam indo para a marginalidade.

Junto a essas dificuldades, uma rigorosa fiscalização começaria a apreen­der madeiras, lacrar serrarias regulares, proibir derrubadas, impor pesadas multas e prender empresários, principalmente aqueles mais conhecidos, para inibir novos projetos.

As ONGs ambientalistas fariam uma ocupação informal de grandes áreas; enquanto isso os órgãos ambientais iriam criando um clima de revolta entre proprietários de terra, madeireiros, mineradores, indústrias de móveis, serrarias etc.

O clamor ia chegar aos governos locais, que não ficariam insensíveis. Lembrou-se da expressão de Dílson: "Armazenar o descontentamento".

Vou ser sincero para o senhor. A idéia do controle do poder pelos movimentos ecológicos na verdade não é minha. Li uma entrevista do se­cretário do Clube de Roma, Maurice Guernier, de 27 de maio de 1980, na qual ele declara que "A nossa chave para o poder é o movimento ecológico". Descobri então que estávamos errados com aquelas idéias de guerrilheiros. Convoquei a Organização e começamos o nosso movimento.

Ouviu a longa dissertação de Dílson. De fato, como o grupo era pre­parado intelectualmente, foi ocupando cargos importantes em todos os órgãos públicos, incluindo setores de segurança nacional.

Mas era também forçoso criar uma situação de abandono da Amazônia. Estudos acadêmicos seriam feitos para retratar a região como território completamente diferente do Brasil. O Brasil litorâneo não se harmonizava com o Brasil Amazônico. Eram coisas incompatíveis.

Atreveu-se a perguntar:

E como um movimento desse porte pode passar despercebido?

Dílson sorriu triunfante:

O senhor já leu Chesterton? O Homem que foi Quinta-Feira? Para ele, uma reunião secreta, como aliás eram as nossas células comunistas, sempre desperta suspeita. Revolução deve ser discutida na mesa do bar da esquina. Ninguém desconfia de um grupo de amigos tomando cerveja.

Estava esquecendo o Bulayer. Pegou o copo e continuou:

Essa revolução não deverá despertar suspeita, mas simpatia. Se houver alguma reação, o assunto será divulgado de forma a neutralizar preocupa­ções. Afinal, vamos salvar a humanidade, preservando a Amazônia, ou, pelo menos, devemos dar essa impressão agora.

No dia seguinte chegaram os outros convidados. O frio era grande e as roupas de proteção usadas pelo entregador do supermercado cobriam todo o seu rosto. O entregador do supermercado estava na estação de esqui e falou por um aparelho oculto no gorro que encobria o nariz e a boca:

O principal chegou ontem e os outros estão vindo na gôndola. Eles não sabem esquiar e foram contratados três snowmobils. Eu sou um deles. Estou tirando fotografias, mas eles estão de gorro protetor e preciso esperar oportunidade melhor.

Cada país confinante com a Amazônia mandou um representante. Bo­lívia, Peru, Colômbia e Venezuela. Estavam também presentes represen­tantes da Argentina e do Paraguai. Franz Sauer falava espanhol, que foi o idioma usado no encontro.

Em princípio, era um grupo de homens de negócios que tirou férias para esquiar. Ia parecer estranho se essas pessoas ficassem ali apenas um ou dois dias. Podia chamar a atenção e até agora Franz Sauer cuidara para que as reuniões tivessem sentido lógico e não despertassem suspeitas.

Procuravam tratar dos assuntos da Organização, depois que as empre­gadas saíam.

A primeira reunião do grupo foi numa tarde de domingo, porque Sauer dispensara as empregadas. Os convidados haviam chegado de manhã e os primeiros contatos eram mais para apresentações. Sauer já os conhecia. Estivera com eles em Manaus. O pretexto para a reunião naquela cidade fora a visita às suas instalações industriais e o contato para novos negócios. Evitavam reuniões repetidas com as mesmas pessoas e mesmos lugares. Embora cinco anos tivessem passado sem se reunirem pessoalmente, sem­pre trocaram informações protegidas por severo sigilo.

Estavam sentados em volta da mesa de centro, perto da lareira e con­versavam com certa formalidade. Essa seria uma das últimas reuniões que teriam, antes da proclamação da independência.

Após alguns minutos de conversas aleatórias, Franz Sauer achou que não devia perder mais tempo.

Solicitei a presença dos senhores para este encontro, porque já estamos preparados para a proclamação da República da Amazônia e, portanto, este é o momento apropriado para uma revisão dos compromissos assumidos.

Notou certa inquietação do grupo e explicou:

Tenho mantido comunicação pessoal com cada um e os conheço bem. Sei que são pessoas responsáveis e que representam correntes que têm inte­resses na separação do território da Amazônia brasileira. Neste momento é importante que conversemos abertamente e que cada um saiba das reações em seus países.

Pelos olhares, percebeu que demonstravam certa insegurança por reve­larem as iniciativas que cada um tinha tomado.

Sauer sabia que poderiam ocorrer dúvidas e insistiu:

Esse auto-reconhecimento dará mais segurança a cada um de nós. As reações em cada país deverão ser de forma harmônica e positiva.

Olhou para os lados do representante da Argentina e do Paraguai, coincidentemente sentados um ao lado do outro. Embora a Argentina e o Paraguai não façam divisa com a Amazônia, são países que estavam a Oeste da linha de Tordesilhas e, além disso, eles têm interesses específicos na República da Amazônia.

E, sem mais cerimônia:

Peço então ao coronel Fernandez, da Argentina, que faça uma peque­na exposição dos interesses do seu país.

Propositadamente começou com a Argentina, que estava representada por um militar da área de segurança nacional. Quis assim demonstrar aos demais que já havia apoio militar de um país importante e rival do Brasil.

O coronel argentino falou pouco, mas foi claro:

Desnecessário dizer aos senhores que meu país tem justos receios da pretendida hegemonia brasileira na América do Sul. Dividir o Brasil inte­ressa à Argentina. O Brasil pretende ser uma potência econômica e domi­nar a região. Esse é um ponto.

Alto, claro, olhos azuis, alguns fios de cabelo branco denunciando a idade, mas com postura firme de quem se acostumou a exercícios físicos duros, falava com calma e segurança.

Outro ponto, que nos foi levado pelo senhor Sauer, é a possibilida­de de imediata ligação fluvial da bacia do Prata, subindo o rio Paraguai até uma ligação com os rios Guaporé, Madeira, saindo no Amazonas, e, ainda, pelo canal de Cassiquiare até o Orenoco, na Venezuela. Essa imensa rede fluvial, ligando a Amazônia aos oceanos Pacífico e Atlân­tico, com certeza dará origem a importante pólo de desenvolvimen­to regional. Parece que esse é um objetivo que interessa a todos nós. Segundo o senhor Sauer, existem grupos econômicos preparados para grandes projetos.

Não falou das providências que teria tomado para obter apoio e de onde sairiam as primeiras manifestações favoráveis à República da Amazô­nia, mas os demais perceberam o tom de certeza em sua voz.

Como que seguindo a seqüência geográfica, o representante do Para­guai olhou para Franz Sauer e falou:

- Não é que tenhamos boas recordações dos nossos amigos argentinos - mas em tom apaziguador - no entanto, também vemos com apreensão os esforços brasileiros de dominar o cone sul.

O Paraguai foi responsável pela mais sangrenta guerra de toda a Amé­rica Latina. Em 1864, o ditador Francisco Solano Lopes invadiu o Brasil e a Argentina, tentando aumentar o território paraguaio e conseguir uma saída para o Oceano Atlântico.

Naquela época, o Paraguai estava em pleno desenvolvimento e punha em prática uma economia estatal e independente da Inglaterra, contraria­mente aos países vizinhos que tinham economia capitalista dominada pela Inglaterra, que aproveitou a loucura de Solano Lopes e apoiou a união do Brasil com a Argentina e o Uruguai, na formação da Tríplice Aliança.

A guerra durou seis anos e levou à morte trezentas mil pessoas. O Exér­cito paraguaio foi eliminado e com ele quase toda a população masculina do país, que ficou praticamente reduzida a velhos, mulheres e crianças. Nunca mais o país se recuperou. A esperança de uma mudança geopolítica na região e a criação desse pólo de desenvolvimento era alentadora.

Estranhamente, o Paraguai tinha recentemente firmado acordo militar com os Estados Unidos, supostamente com cláusulas secretas que modifi­cariam profundamente as condições geopolíticas da região.

O Brasil e a Argentina estavam perplexos com esse acordo, porque previa o estabelecimento de uma base militar americana muito próxima da fronteira com o Brasil, mas o representante argentino compreendia que, no momento, o importante era essa união contra o gigante brasileiro em suas fronteiras.

O representante da Bolívia, assim como do Peru, da Colômbia e Ve­nezuela, fez suas exposições e mostrou que houve entusiasmo em seu país com a possibilidade de maior equilíbrio na região e principalmente com a possibilidade do desenvolvimento econômico que viria da união fluvial das três bacias fluviais — do Prata, da Amazônica e do Orenoco. Seria a ressur­reição da linha prevista com a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, que o Brasil se obrigou a manter e não cumpriu.

Era crescente o nacionalismo contra a exploração brasileira nos territórios vizinhos. A Bolívia não se conformava em ter perdido o imenso território do Acre para o Brasil. Muitos brasileiros invadiram o território rico em serin­gueiras e, quando a Bolívia percebeu, o Acre já estava tomado.

Agora a Bolívia estava novamente sendo invadida por brasileiros, com a ocupação de plantadores de soja nas terras de fronteira. A maior riqueza da Bolívia, o gás natural, está comprometido com a Petrobras.

O representante da Colômbia levantou os receios de que a proclamação da República da Amazônia pudesse dar justificativas para o governo ameri­cano mandar tropas para o seu país, a pretexto de combater a guerrilha.

Sauer tranqüilizou-o:

Com a nova república, poderemos fazer acordo militar entre os países amazônicos, com o apoio americano, porém sem a participação direta deles.

O senhor quer dizer que o governo americano poderia financiar e treinar grupos militares de nossos países, para proteger as fronteiras e com­bater insurretos?

Vamos ter de fazer um tipo de acordo como esse para evitar que o Exército americano entre na Amazônia e não saia mais de lá.

Também o Peru e a Venezuela mantinham o interesse inicial na in­dependência da Amazônia. A integração das grandes bacias hidrográficas do Prata até o Amazonas já parecia uma realidade.

Eram homens experientes e tinham feito as sondagens em seus países sem despertar suspeitas. Haviam contatado apenas pessoas que poderiam ter real interesse na proclamação da nova república. Se necessário, seriam feitos desmentidos ou feitas divulgações contraditórias.

Nessa fase, optou-se por não chamar a Guiana Inglesa, a Guiana Fran­cesa e o Suriname. Essas regiões estavam ainda buscando sua autonomia e era prudente deixar a Inglaterra, a França e a Holanda afastadas.

Depois do fato consumado, esses países seriam chamados a participar do processo de desenvolvimento acelerado da região.

A reunião naquele chalé fora organizada de maneira a dar a impressão de que se tratava de um grupo de turistas sul-americanos. Na parte da manhã um professor de esqui acompanhava o grupo para ensiná-los a usar aquelas patas longas. Franz Sauer não precisava dessas aulas, mas sentia-se mais seguro perto deles.

"Esses latinos são muito esquivos", pensava. "Para eles, é sempre mais fácil dizer que não sabiam de nada e deixar os problemas todos nas minhas costas. No ponto a que as coisas chegaram, é preciso cuidado. De qualquer forma, eles estão sendo vigiados e, se algum sair da linha,... Bom, é melhor que tudo ocorra normalmente."

Já sabiam como ficar de pé no lift, sem sentar-se, deixando-se empurrar morro acima, porque com o peso do corpo o lift parava e eles cairiam.

O lift deixou-os no início da pista e eles começaram a descer, fazendo curvas cuidadosas e com os esquis em cunha para não ganhar velocidade. O instrutor insistia que, ao fazerem a curva, deviam apoiar todo o peso na perna que ficava do lado de baixo e manter os braços abertos com os bas­tões levantados e olhando para o fundo do vale. Alguns se saíam melhor e outros sentiam arrepio ao olharem para o pé do morro, lá embaixo, a mais de 1.500 metros de altura.

Vinham assim descendo, quando um grupo de jovens também apren­dendo a esquiar aproximou-se e um deles desgovernou-se, vindo em velo­cidade para cima deles. O instrutor da escolinha gritou para o garoto fazer a curva, como lhe ensinara antes e desviar-se do grupo, e, enquanto dava orientações aos gritos, começou a descer para tentar evitar o acidente.

Não houve tempo e o menino avançou sobre o grupo que se apavorou e alguns caíram na neve, abrindo assim espaço entre eles por onde felizmente pas­sou o esquiador descontrolado, que aos poucos conseguiu fechar as pontas do esqui, formando uma cunha e reduzindo a velocidade, até parar mais adiante.

Caídos na neve, estavam agora sem os esquis e os bastões que se sol­taram e ficaram esparramados. O instrutor aproveitou para ensiná-los a recolocar esses equipamentos ali naquele morro inclinado e também a se levantarem novamente, sem auxílio. No entanto, para isso, tiveram que tirar os gorros que estavam cheios de neve.

O instrutor do grupo de garotos aproximou-se pedindo desculpas e esperou com paciência que se recuperassem e descessem o morro. Deslizou até onde estava o seu "aluno" e disse brincando:

Bonita manobra, agente Franzino!

Alguns minutos depois, recebeu o recado:

As fotos já foram transmitidas e ficaram boas.

Franz Sauer também havia se aproximado, mas não interferiu porque havia dois instrutores para ajudar os seus convidados. Não sabia, porém, que o instrutor do grupo dos meninos era o mesmo entregador, que estava de folga no supermercado naquele dia.

Passado o susto e acabada a aula de esqui, o grupo voltou para o chalé, onde à tarde se reunia e tratava dos preparativos para a proclamação da independência.

Todos estavam empolgados com o fato de estarem participando do nas­cimento da nova nação. Uma nação diferente e praticamente já reconhecida pelo mundo todo como território que não podia mais pertencer a um só país. A Amazônia já não era mais brasileira e o mundo podia explorá-la de forma mais conveniente e trazer benefícios para toda a humanidade.

Um país como o Brasil, sem recursos para investimento, país desorgani­zado e confuso, governado por um bando de incapazes e corruptos, estava apenas deixando perder toda a riqueza natural que se escondia nas flores­tas, nas águas e no solo daquela região. Com esse raciocínio, esperavam o reconhecimento das outras nações pela grandeza das iniciativas que esta­vam tomando.

Como é que pode um país que não consegue manter a ordem nas áreas rurais de Estados mais desenvolvidos, como São Paulo e Rio Grande do Sul, pretender tomar conta e cuidar de um território imenso e rico como o ter­ritório que agora já forma a República da Amazônia? E assim exercitavam a sua convicção na necessidade do novo país.

Franz Sauer foi informando aos poucos as últimas medidas e procu­rando confirmar se podia realmente confiar naquelas pessoas. Na maioria eram empresários com grandes interesses na região e gozavam de prestígio político em seus países.

Sabiam, porém, do risco que estavam correndo e, se aceitaram a partici­pação, é porque acreditaram. Esse raciocínio confortava o alemão, embora ficasse sempre atento.

Costumava dizer de si mesmo que era "pré-ocupado" e não preocupa­do, no sentido de pessoa alimentando receios. Era apenas previdente.

Numa reunião de fim de tarde, disse:

Preciso dizer para os senhores uma coisa importante.

Assunto novo ou importante, no meio de conspiradores, sempre gera tensão.

Há alguns anos, estava eu na embaixada brasileira na Alemanha e conheci o adido militar. Era um coronel do Exército brasileiro simpático e discreto. Naquele dia fui apresentar ao embaixador um grupo de médicos aposenta­dos que queriam fazer uma ONG para ajudar os índios da Amazônia. Esse coronel estava no gabinete do embaixador e não saiu quando entrei com os médicos. O embaixador nos apresentou e disse a esse coronel o propósito da nossa visita. Ele se mostrou estranhamente interessado.

Sauer parou um pouco, respirou e continuou:

Há pouco tempo encontrei-me com ele numa reunião de empresários na sede da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em Belém do Pará. Nós nos reconhecemos. Cumprimentamo-nos cordial­mente, e vim a saber que ele era então o chefe da Agência Brasileira de In­formações, a Abin. Informei à Organização que já tinha achado estranho o interesse daquele militar quando do nosso primeiro encontro e estranhava também a presença de um chefe militar de informações em reuniões de empresários da Sudam.

Os outros o olhavam com atenção.

Pois bem, como suspeitei, esse general estava investigando alguma coisa e podia ter chegado até nós. Felizmente houve um acidente automo­bilístico e ele já não nos incomoda. Não sabemos até onde ele sabia das coisas e não sabemos se passou suas informações para mais alguém, embora tenhamos algumas pessoas sob vigilância.

O grupo ficou em silêncio. Todos compreenderam que o acidente fora provocado.

É possível - continuou, que esse acidente leve a investigações. Esperava-se reação mais forte do governo brasileiro, mas estranhamos que o assunto não teve repercussões maiores na área oficial.

O colombiano perguntou:

O que senhor quer dizer com isso?

Bom. A primeira coisa é que os passos a serem dados não podem mais esperar. Até agora nós temos procurado dar a entender que são os ameri­canos e europeus que estão interessados na Amazônia. Instituições, tanto americanas, como européias, acabaram divulgando pesquisas alarmantes sobre a floresta, e nós apenas nos aproveitamos desse clamor. Sabem como é, no calor da onda, outros clamores acabaram se levantando por conta própria e isso permitiu o nosso anonimato até o momento.

Mas existe algum perigo agora? - perguntou o boliviano.

O acidente do general com certeza vai fazer a embaixada americana se interessar pelo assunto. Soubemos que o general esteve com o embaixador ame­ricano, mas pode ter tratado de outros assuntos. Como não podemos ficar na dúvida, precisamos acelerar o processo. E é por isso que os senhores estão aqui.

O grupo estava motivado.

Os senhores vão tomar conhecimento de fatos novos. As providências já estão sendo tomadas. A estratégia foi cuidadosamente montada e a Repú­blica da Amazônia já é realidade. Nós vamos ser lembrados pela História.

E encerrou a reunião com uma informação estranha:

Só mais um detalhe. É quase certo que as Forças Armadas brasileiras façam movimentos de tropa na região. Por favor, não me procurem e nem se aflijam, porque isso faz parte da estratégia.

No dia seguinte, foram embora.

O entregador informou a base:

Não foi possível gravar a conversa. Eles instalaram na casa um apare­lho de desarticulação silábica.

John Hawkins era ainda jovem para o cargo que ocupava. Seu currí­culo, no entanto, o credenciava a qualquer posto na Casa Branca, até mes­mo o principal. Graduado e doutorado por Harvard, uma carreira política facilitada por sua postura simpática e confiante levou-o a ser um dos princi­pais assessores da Presidência.

O senhor está querendo me dizer que existe um complô para proclamar a independência da Amazônia? E que o próprio presidente o enviou aqui para me ajudar a tomar algumas providências para não comprometer os Estados Unidos? - perguntou o embaixador aparentando incredulidade.

O embaixador conhecia o assessor para Assuntos Internacionais e sabia que o presidente confiava mais nele do que no secretário de Estado para casos mais complicados. A visita de um secretário de Estado chama muito a atenção e certos assuntos requerem prudência.

O assessor era jovem, dinâmico, raciocínio rápido e coerente, sabia fa­zer as pessoas mudarem de opinião com um jeito afável e convincente, ou, então, sabia ele quando mudar de opinião.

"É uma boa ajuda para uma situação dessas", pensou o embaixador, "mas preciso tomar cuidado para não me deixar envolver nas armadilhas que em geral esses assessores já trazem preparadas."

Sim, senhor embaixador - respondeu John Hawkins.

E o presidente acha que eu tenho uma varinha mágica para evitar essa situação?

John Hawkins compreendeu que o embaixador estava um pouco irrita­do pelo fato de o presidente não o ter chamado a Washington e conversado pessoalmente com ele. Procurou desanuviar o ambiente.

O presidente mandou pedir-lhe desculpas por não conversar dire­tamente com o senhor. Achou que pelo telefone não haveria como expor toda a situação e chamá-lo agora a Washington logo após esse incidente com a CIA também poderia não ser muito conveniente. Mandaram-me aqui então para tentar explicar-lhe tudo o que sabemos e me colocar às suas ordens para o que for preciso.

"Mais uma cascavel tentando morder a velha raposa. Mas já que ele entrou no assunto..."

Incidente com a CIA. O senhor está querendo dizer então que a CIA foi até Juína para salvar a Amazônia e se esqueceu de que havia uma em­baixada dos Estados Unidos aqui no Brasil?

John Hawkins não aceitou a polêmica.

Embaixador, ao que consta, a situação é de urgência. A CIA já vem trabalhando nesse assunto há algum tempo e há fundadas suspeitas de que um grupo muito bem organizado está preparado para desencadear ações tendentes a desorientar o governo brasileiro, enquanto ocupam a Amazô­nia em pontos determinados, simultaneamente com iniciativas que podem provocar movimento de apoio internacional.

Quando o senhor se refere a "grupo muito bem organizado", está querendo dizer Europa?

O assessor achou melhor não alimentar suspeitas que pudessem trazer complicações futuras e respondeu sem envolver outras regiões.

Nós não sabemos ainda o que está preparado para acontecer, mas com certeza podemos estar atrasados em relação a esse assunto. O presidente está muito preocupado.

"Sem dúvida que o presidente tem de ficar preocupado. Eu avisei que ele estava se descuidando da América, enquanto destruía os países árabes. A fortuna e o momento histórico que ele está gastando lá não compensam. A América está se destruindo, mesmo sem bombas."

O presidente reconhece que descuidou mais do que pretendia da América Latina e se concentrou demais no Oriente Médio. Ele reconhece que o senhor o alertou antes, pede desculpas, mas agora ele precisa de aju­da e de ação imediata.

"Malandro! Eu ia tocar nesse assunto e ele já me desarmou."

O embaixador sabia que, se houvesse uma tentativa de divisão do país, haveria guerra na região. O nacionalismo de esquerda estava renascendo na América Latina e os países vizinhos tenderiam a apoiar o Brasil contra invasões estrangeiras. Ora, se invadem um é porque vão invadir o resto.

Pensou em questionar o assessor sobre a expressão "mais do que pre­tendia", mas isso poderia soar como acusação direta ao presidente. Não era prudente.

Haveria a hipótese de os países europeus estarem apoiando essa sepa­ração para criarem uma arma diplomática? Estariam aumentando suas pressões para o lado de cá e com isso negociando a redução da influência americana nos negócios do Iraque, da Palestina, do Líbano e de outros pontos sensíveis?

Preferiu deixar suas preocupações de lado e desafiar o assessor.

E a sua sugestão é...?

O outro pensou um pouco, como se estivesse deixando o embaixador ruminar o tom da sua pergunta, e disse:

A emergência sugere uma conversa com o presidente do Brasil.

O embaixador sorriu. Balançou a cabeça, respirou fundo, pegou o tele­fone e pediu à secretária que trouxesse dois cafés feitos na hora, mas com aquele pó bom.

O Brasil, senhor assessor, ao contrário da frase que atribuem a De Gaulle, é um país sério, muito sério, e precisa ser levado a sério. Esse país vem passando por momentos conturbados, mas vai chegar um dia em que pode nos criar embaraços.

Não estou entendendo. Sei que o senhor entende bem do Brasil e é por isso que o presidente me mandou procurá-lo.

Senhor John Hawkins - e o embaixador enfatizou o "senhor" -, o senhor sabe quem foi até bem pouco tempo o chefe da Casa Civil da Pre­sidência da República no Brasil?

Foi o deputado federal José Dirceu, antigo guerrilheiro e hoje com­panheiro do presidente.

Pois bem, como o senhor sabe, José Dirceu, cujo nome completo é José Dirceu de Oliveira e Silva, foi líder estudantil e presidente da União Nacional Estudantil. Foi preso pelo regime militar e depois solto em troca do embaixador americano Charles Burke Elbrick, seqüestrado pela Aliança Libertadora Nacional. Em seguida José Dirceu foi banido do Brasil com outros guerrilheiros soltos em razão do seqüestro.

O embaixador falava devagar para dar tempo para o outro pensar.

Foi para Cuba, onde recebeu todo tipo de treinamento e fez opera­ção plástica, voltando com o falso nome de Carlos Henrique Gouveia de Mello. Há fortes suspeitas de que durante essa clandestinidade ele serviu como espião de Cuba e obviamente dos países comunistas. Envolvido em escândalos de corrupção, teve de deixar o governo.

Parou de falar uns segundos e perguntou:

E o senhor sabe quem substituiu José Dirceu na chefia da Casa Civil?

John Hawkins fez um sinal negativo com a cabeça.

Foi a senhora Dilma Roussef, indicada pelo próprio José Dirceu. Ela também foi guerrilheira, lutou contra os militares, enfim, na sua posse, o deputado José Dirceu chamou-a de "companheira de armas".

O assessor estava mudo. Não se preparara para enfrentar o velho diplo­mata e reconhecia a sua ingenuidade. Tinha perdido pontos irrecuperáveis em qualquer estratégia que podia tomar daí para a frente.

O embaixador continuou.

Este é um país onde o passado não acaba. Quando menos se espera, o passado entra pelo presente como uma espécie de vírus que modifica todas as instituições e altera o futuro previsível.

Parece que ele gostou da filosofia e se entusiasmou.

Se o senhor estudar melhor a composição humana deste país, verá que certos assuntos fogem à normalidade das decisões. A etnia brasileira é formada de diversas colônias: a colônia italiana, a japonesa, a judia, a portuguesa e assim por diante. Nem mesmo existe uma colônia árabe, mas sim colônia sírio-libanesa, colônia turca e não é exagero dizer que no meio de todas essas etnias também existe a colônia brasileira.

Levantou-se e continuou falando como se pensasse em voz alta:

E dentro disso ainda existem os agrupamentos de interesses. Os em­presários pensam de um jeito, os políticos de outro, os empregados formam uma grande massa dos que ganham pouco e dos que já não têm emprego, ainda temos aí os funcionários públicos, e acredito também que o senhor já ouviu falar dos invasores de terra, dos invasores de edifícios públicos, dos movimentos indígenas, do banditismo organizado, do grande movimento das igrejas recém-criadas, que também é assustador.

John Hawkins não sabia aonde o embaixador queria chegar. Mas não quis interrompê-lo.

Este é o país do medo. É incrível, mas cada organismo desses tem vida própria como se houvesse tantos Brasis como quantas organizações. As organizações criminosas agem como se formassem um governo autônomo, onde elas praticam a justiça, criam leis e administram as suas sociedades.

Hawkins estava achando que aquilo era impossível.

Em meio a toda essa miscelânea existe uma organização que não en­tendo como conseguiu sobreviver intacta nesse meio. São os militares. O Brasil ainda existe porque a sua organização militar é sólida. Eles se or­gulham de terem proclamado a República e de terem salvado o Brasil do comunismo com a revolução de 1964.

Falava como se escrevesse em parágrafos, dando tempo para o outro pensar.

É preciso ter respeito por uma organização que num mesmo dia, numa mesma hora, com um mesmo uniforme e ouvindo o mesmo hino, coloca centenas de milhares de soldados em milhares de cidades do país e desperta um patriotismo que, felizmente para o sonho americano, só é lembrado nessas ocasiões.

"Logo vai querer me dar lição de moral", pensou o assessor, que preferiu continuar em silêncio até o embaixador se sentir satisfeito.

O senhor conhece alguma outra organização que seja assim estrutura­da e metódica? Talvez a Igreja Católica. Talvez.

O outro não respondeu.

Na chefia da Casa Civil, o presidente cometeu o erro de colocar um guerrilheiro para substituir outro. Dois guerrilheiros que naquela época participaram de movimentos a favor do comunismo, contra a democracia, e nessa luta morreram muitos militares.

Voltou-se para o assessor e perguntou:

O senhor acha que os militares acreditam na lealdade desses guerri­lheiros? O senhor acha que eu, embaixador dos Estados Unidos, tomando conhecimento de um assunto tão sério como esse, posso simplesmente e com a maior ingenuidade chegar ao presidente brasileiro e dizer que estão proclamando a República da Amazônia?

John Hawkins olhou espantado para o embaixador.

República da Amazônia? O senhor já sabia sobre a República da Ama­zônia? Mas como o senhor sabe disso?

"Esse chute foi de primeira. Que outro nome poderia ter um país inde­pendente dentro da Amazônia? Vou apertá-lo um pouco mais."

O senhor não respondeu a minha pergunta. Então vou repeti-la, senhor Hawkins: o senhor acha que um embaixador dos Estados Unidos pode se dar à ingenuidade de ir lá e transmitir essa informação ao presidente, sabendo que ex-guerrilheiros hostis às Forças Armadas vão tomar conhecimento disso imediatamente? Há poucos dias o Exército deu uma comenda à ministra Dilma Roussef. Consta que vários militares que haviam recebido a mesma comenda a devolveram, porque consideram um insulto ao Exército.

Hawkins começou a sentir-se encurralado.

O senhor acha que existe a possibilidade de alguém do alto escalão do governo brasileiro estar envolvido com esse assunto?

Mas vendo a inocência da sua pergunta, acrescentou logo:

Acho que o senhor tem razão. Os militares podem não gostar de saber disso por intermédio de um ex-guerilheiro contra quem eles lutaram.

Não se trata disso, senhor Hawkins. Os militares brasileiros já sabem que alguma coisa estranha está acontecendo, mas não estão informando o presidente da República. Eles não confiam em guerrilheiros que antes queriam dar o Brasil, país que eles conquistaram, formaram e defenderam, aos comunistas.

Mas então..., então...

Então, senhor Hawkins, o senhor vai voltar para Washington e dizer ao presidente que, se ele não quiser ser atropelado pela história, deve co­locar à minha disposição todas as informações que a NSA, a CIA e o FBI tiverem, e com urgência.

John Hawkins sentiu o impacto da ordem. O embaixador tinha infor­mações e sabia como cuidar do assunto. O melhor era concordar para não sair arranhado da missão. Quando chegasse a Washington ia saber dar ver­são um pouco mais colorida em seu favor, porém no momento não devia melindrar o velhote.

Outro problema é que a CIA veio aqui e fez um serviço ruim. Esta­mos tentando seguir os passos de três pessoas, aquelas mesmas pessoas que aprontaram a armadilha para a CIA. Só que, se essas três pessoas descon­fiam da CIA, é de se concluir que os órgãos militares também desconfiam.

E calculou o tom da pergunta:

O senhor está entendendo a burrice toda dessa CIA, senhor Hawkins? O senhor sabe o que é a Abin?

É uma agência de informações dos órgãos militares.

Pois bem. O chefe da Abin, general Ribeiro de Castro, morreu num atentado há poucos dias e, acredite, há suspeitas caindo sobre a CIA.

O senhor está querendo dizer que os militares brasileiros suspeitam de que a CIA matou esse general? Mas, o senhor poderia, por favor, me explicar o que a morte desse general tem a ver com essa independência da Amazônia? Como o senhor sabe disso?

O embaixador não deixou transparecer o gosto que sentiu por aquele "por favor".

Simples deduções. Primeiro, o general morre num atentado violen­to e a imprensa apenas divulga que o chefe da Abin morreu num acidente de automóvel. Nenhuma explicação, nenhuma outra notícia. Depois, os órgãos de segurança do Exército brasileiro prendem um agente da CIA em Juína. Ora, se a CIA está lá na Amazônia, com armas e avião com documentação suspeita, e isso pouco depois da morte do general, da qual a CIA deve ter alguma informação, o que é o que o senhor pensaria no lugar deles?

Parece que o assunto era mais complicado do que o assessor imaginava. O embaixador o estava deixando cada vez mais confuso.

Veja, senhor Hawkins. Nos Estados Unidos, a CIA e a NSA são ins­tituições civis, com um pouco de Pentágono no meio. No Brasil, o serviço de informações é militar. Existe uma duplicidade de governo neste país. A gente pode até mesmo dizer que existe um governo civil e um governo militar. E, pior do que isso, um não confia no outro.

E concluiu:

Como o senhor pode ver, as informações que dizem respeito à segu­rança nacional passam antes pelos militares. E são eles que vão decidir quais informações podem ser do conhecimento do poder civil, principalmente num governo que nomeia para cargo tão importante um guerrilheiro que os militares desconfiam de ter espionado para Cuba.

Abriu a gaveta e pegou uma revista.

Esta revista é um encarte do jornal Valor, de 25 de novembro de 2005. Aqui está uma entrevista que revela a sensibilidade da situação. Vou ler para o senhor trecho de uma entrevista que o general Ivan de Souza Mendes, que chefiou o SNI, o antigo Serviço Nacional de Informações, que é a Abin de hoje, durante o regime militar, deu a essa revista, quando indagado sobre a morte de membros do Partido Comunista Brasileiro, numa casa em São Paulo. Veja só o que ele diz: "Na ocasião, a tese era acabar com eles, mesmo. Só podia ser. Ou a gente acabava com os comunistas, ou eles acabavam com a gente."

Folheou a revista e leu outra declaração:

Olha esta aqui como é reveladora: "Até pelo fato de que a guerrilha não acaba a não ser que você mate — você não pode acabar com comunista, só ma­tando. Eles estão aí, continuam a existir, estão até no governo. Epreciso tolerá-los democraticamente, mas, saiu da linha, descumpriu a lei, pau neles. "

John Hawkins sabia que, sem a ajuda do embaixador, não ia ser possí­vel fazer o trabalho do qual estava encarregado. Compreendeu que o seu próprio papel ia ficar reduzido ao de um menino de recados. O melhor era então ser um eficiente garoto de recados.

Antes que ele falasse qualquer coisa, o embaixador continuou:

O senhor entende quando digo que existe ainda um governo militar? Pois, se esse general, com oitenta e três anos, e depois de decorridos qua­renta anos desses acontecimentos, ainda alimenta tal sentimento em rela­ção aos comunistas, nós temos de imaginar que os demais militares podem pensar do mesmo modo.

E releu em voz baixa como se fosse para ele: "É preciso tolerá-los democraticamente, mas se saírem da linha..."

O senhor está certo. Mas, segundo o presidente, o problema está se agravando com muita rapidez. Precisamos agir com urgência e é o senhor quem deve coordenar esse trabalho. A NSA, a CLA e o FBI serão órgãos de informações e operações. Vou convencer o presidente para que o senhor seja o coordenador de todas essas ações. De que mais o senhor precisa?

"Peguei o peixe", pensou o embaixador. "Agora é puxá-lo para dentro do barco."

Preciso de uma linha direta com o diretor de Inteligência da CIA e uma linha direta com a NSA e com os demais órgãos de informação em Fort Meade. Não posso perder tempo em pedir para a CIA mandar memo­randos para a NSA num assunto desses.

Vou cuidar disso.

Mais uma coisa. Aliás, a mais difícil. Precisamos mostrar para os mi­litares brasileiros que estamos do lado deles. E para isso...

Parou um pouco e repetiu a frase para deixar o outro bem consciente:

Para isso, senhor Hawkins, nós temos de descobrir os verdadei­ros responsáveis por esses fatos. Depois disso, precisamos de provas. Provas, senhor Hawkins, para que não fique nenhuma desconfiança sobre nós. E depois, senhor Hawkins, precisamos tirar proveito dessas provas para melhorar nosso relacionamento por aqui. Acho que o se­nhor compreendeu.

A reunião foi encerrada e o assessor especial da Presidência dos Estados Unidos tomou o primeiro vôo de volta para o seu país.

O embaixador não tinha tomado o café e pediu um chá.

"Não estou acabado ainda", ele pensou com satisfação. "Esses novatos..."

John Hawkins saiu dali diretamente para o aeroporto Juscelino Kubitschek e tomou o vôo 2267, da Varig, para Cumbica, de onde seguiu para Washington.

No dia seguinte, numa das gavetas da escrivaninha, meio escondido para que não fosse visto facilmente, um aparelho de telefone soou discretamente.

O embaixador sorriu e pegou o aparelho.

Alô - disse ele.

Conhecia aquela voz simpática que só mudava o tom nas campanhas políticas. O embaixador sentiu saudades do amigo.

Meu caro Williams. Não fique magoado comigo. Tivemos de fazer umas comprovações antes de incomodá-lo. Já dei ordens para o George dirigir-se diretamente a você e cumprir todas as suas instruções. Se tiver algum assunto mais polêmico mandarei o Hawkins pessoalmente.

Sim, senhor presidente. Agradeço a sua atenção e cuidarei de tudo.

Confio na sua eficiência e no seu tato. Se precisar de qualquer ajuda adicional ou se não o atenderem bem, fale com o Hawkins ou pode di­rigir-se diretamente a mim. Em assuntos mais complicados, convoque o Hawkins para reuniões pessoais.

Sim, senhor presidente, fique sossegado.

Com você assumindo isso, estou muito mais sossegado. No momento oportuno, falaremos pessoalmente. Até breve.

Até breve, senhor presidente.

Desligou o telefone, mas não conseguiu colocar no rosto o sorriso triunfante de outras vezes.

"Um telefonema curto, mas que revelava muito. O presidente não iria telefonar-lhe pessoalmente, se o dito Hawkins não tivesse mostrado coe­rentemente a gravidade da situação. Ou talvez seja mais grave do que eu mesmo esteja pensando."

"Por outro lado, o assunto agora lhe fora entregue com todas as res­ponsabilidades. O presidente era seu amigo, mas um homem sem amigos. Aquela frase 'no momento oportuno, falaremos pessoalmente' não deixava dúvidas. Se tivesse sucesso, haveria festa. Se não, ..."

Ficou esperando. E, de fato, alguns minutos depois, o mesmo telefone volta a tocar.

Embaixador Williams?

Sim. Williams, o embaixador.

Embaixador, aqui é George, diretor do Departamento de Inteligência da CIA. Tenho ordens para atender suas solicitações. Acho que o senhor já sabe do que se trata. Em que posso lhe ser útil?

"Se ele acha que eu já sei, é porque já lhe contaram a minha versão sobre as atividades da CIA nesse caso."

Senhor George, primeiramente quero saber por que o senhor não me mandou as mensagens em código já decifradas.

O outro sentiu um início ruim de diálogo. Achou melhor ser prudente.

Desculpe, senhor embaixador, mas tudo indicava que era falso.

Indicava? O senhor não tem certeza?

Foram feitas várias reuniões com os criptógrafos da NSA e chegamos à conclusão de que era código de indução a erro e não seria prudente agir precipitadamente. Acho que o senhor compreende a dificuldade de uma situação dessas.

Muito bem. Posso até compreender. Mas preciso daquelas mensagens agora e com urgência e eu vou decidir se é falso ou não, e mesmo sendo falso teremos de entender melhor o motivo dessa falsificação. Espero que o senhor entenda a urgência do momento.

Sem dúvida nenhuma, senhor embaixador. Estou mandando neste momento as mensagens diretamente para a sua mesa. Estarei aqui aguar­dando uma comunicação assim que as tiver lido.

O embaixador desligou e ficou aguardando.

A situação exigia dele agora um comprometimento maior. Mandou chamar o agente do FBI. Precisava de alguém de confiança com quem pu­desse trocar idéias e traçar planos antes de falar novamente com a CIA.

Logo chegaram as mensagens decodificadas. Estava terminando de lê-las quando a secretária anunciou o agente do FBI. Mandou que entrasse e foi passando para ele as folhas que já tinha lido.

Depois que o agente leu, perguntou:

O que o senhor acha disso? Fiquei de ligar para a CIA agora mesmo e não estou muito certo sobre o que pedir a eles.

O agente do FBI era homem de ação, acostumado a enfrentar situações de surpresa que exigiam pensamento e reações rápidas. Seus neurônios se agitavam diante de emergências e essa era uma emergência que exigia mais que bom raciocínio.

A CIA e a NSA têm condições de acompanhar os passos daqueles três. Com certeza a CIA sabe para onde eles foram e o que estão fazendo. Para isso eles dispõem de informações precisas do satélite.

O senhor acha que devo pedir a eles um relatório sobre o que esses três andaram fazendo?

O agente parece que não ouviu o embaixador.

Como eles sabem que esses relatórios indicam uma situação falsa? Não é momento para dúvidas e não podemos perder tempo.

O embaixador pegou o telefone.

Senhor George?

Sim, senhor embaixador.

O embaixador não quis deixar o telefone no viva-voz, tanto porque as paredes podiam ouvir, como porque o outro podia perceber e ele não que­ria dar a entender que tinha mais alguém ouvindo a conversa.

Primeiramente, senhor George, como o senhor concluiu que isso tudo não passa de uma falsificação?

O outro pareceu escolher as palavras.

Como o senhor pode ver, são fatos dispersos, de atuação difícil, que pode fugir ao controle. Tudo indica que não é uma situação real.

E se não forem situações falsas, mas um relatório com o propósito de ser assim considerado, para não ser levado a sério se alguém traduzisse o código?

Isso também foi considerado. Diante das circunstâncias, as análises sugerem que era melhor esperar os acontecimentos, antes de uma iniciativa precipitada que poderia comprometer o governo americano.

A resposta deixou o embaixador meio confuso.

Mas, mesmo assim, por que o senhor não mandou esse relatório com a indicação de que era falso? Por que mandou seguir aqueles três em território amazônico? O senhor não acha que isso comprometeu o governo americano?

É uma situação consolidada. Estávamos obedecendo a ordens diretas da Presidência. Agora espero solicitações concretas da sua parte para po­dermos agir sob a sua coordenação, conforme ordens recebidas.

"Mas que danado! Vamos reduzir as cobranças, pois do contrário não terei ajuda."

A primeira coisa que precisamos saber é o que estão fazendo aque­las três pessoas que o senhor mandou seguir. E vital saber isso antes de qualquer outra iniciativa. Para onde se dirigiram, com quem eles tiveram contato e onde estão no momento.

Posso dar-lhe algumas informações agora. No dia em que deveriam ter ido a Juína, eles foram para Cáceres e saíram de lá para uma sede de fazenda na re­gião do Pantanal de Mato Grosso. Eles procuraram despistar nossa vigilância.

Aí o embaixador não resistiu.

Além dos Estados Unidos, o senhor conhece algum outro país que pudesse segui-los via satélite?

O outro não entendeu a malícia da pergunta.

Não senhor. Somente nós estamos em condições dessas averiguações. A Europa tem sistema semelhante, assim como o Japão, mas eles trabalham em conjunto conosco.

Então, na sua opinião, o senhor acha que eles estavam despistando quem?

Não teve resposta. Era óbvio que estavam despistando a CIA, porque suspeitavam dela. O embaixador dispensou a insistência.

Precisamos consertar isso agora com urgência, o senhor não acha?

Não temos dúvidas quanto a isso e contamos com a sua ajuda, senhor embaixador.

"Bom, muito bom. Estão levando umas palmadas merecidas."

E, dessa fazenda, para onde foram?

Não estamos certos ainda, mas o senhor receberá essas informações assim que as tivermos. Estamos com a melhor equipe de rastreamento por satélite trabalhando nisso.

O canto monótono, logo ao amanhecer, o acordou. Preparou-se e saiu. Quase automaticamente, tomou a direção daquele som e foi caminhando ao longo de um corredor, que dava numa pequena capela, onde estavam reunidos monges encapuzados e com aquela cruz estranha dos templários na frente.

Viu na parede, acima do altar, um Cristo sofrido e maltratado, pregado numa grande cruz e mostrando suas feridas. Sentiu-se também acusado por aquela injustiça que cometeram contra Ele.

Ajoelhou-se, rezou, pensou em sua mulher. "Onde estará ela agora?" Olhou para Cristo, mas não perguntou. Sabia a resposta. "Era só ter fé", costumava dizer sua mãe. Rezou por todos os seus familiares, pensando em sua mulher e em seus filhos.

Um padre, porém sem a cruz dos templários, celebrava a missa, que já estava no momento da consagração do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo.

Sempre achou que a consagração era um ato solene que o impressiona­va. Havia muito tempo não assistia à missa celebrada em latim e uma forte emoção tomou conta de sua alma quando o padre levantou o cálice com o vinho dizendo "Hic est enin sanguis mei...." e depois terminou a consagra­ção dizendo: "Misterium Fidei".

Há quase dois mil anos, todos os dias, milhares de religiosos em igrejas espalhadas por todo o mundo repetem esse ritual num outro grande misté­rio da fé. Qual seria essa força indecifrável que mantém os cristãos unidos nos mesmos rituais de oração?

Piedoso silêncio acompanhava a celebração. Igreja é lugar de recolhi­mento. Preferia missas assim a essas modernas de hoje, cheias de violão e cantoria, com gente pulando e dançando como se estivessem numa festa.

O padre terminou a missa com a bênção final e o tradicional "Ide in pace" olhando para ele.

Os monges começaram a sair, com as mãos dentro das largas mangas do há­bito, olhando para o chão, e aquele que era o piloto e o havia procurado assim que chegou, apenas movimentou levemente a cabeça, quando passou por ele.

Encontrou-se com Rogério que já tinha saído do quarto e parecia bem.

Bom dia, tenente. Como está?

Estou ótimo. Mas o senhor não é capaz de imaginar...

O piloto?

Rogério olhou para ele espantado.

Ele é médico. E dos bons. Deve estar acostumado a curar muitos ferimentos por aqui. Fez um bom curativo em mim ontem. Mas como o senhor sabe disso?

Maurício explicou que o monge tinha estado em seu quarto na noite anterior. Não havia dito que era médico, mas demonstrara certa perspicá­cia em perceber que ele estava precisando de alguma coisa.

O senhor disse que o piloto desconfiou que estava precisando de algu­ma coisa? Mas todo esse tempo juntos, por que o senhor não falou nada? O senhor sabe que pode contar comigo.

Maurício não respondeu e foram para o restaurante para tomar café.

Tenente, se eu lhe disser que dei um jeito de o senhor rever a capitã hoje ainda, o senhor vai ficar triste, surpreso ou alegre?

Surpreso e alegre. Triste não. Mas o que houve?

Depois que entrei no Skylane, fiquei olhando a paisagem, relembran­do esses dias de estudo do código. De repente me veio uma pergunta. E se o código for falso? E se tudo isso for uma armadilha?

A xícara de café com leite parou no meio do caminho. Rogério encarou-o.

O senhor está dizendo que plantaram aquelas coisas na internet para desviar a nossa atenção? Pode ser, pode ser. Se for isso então estamos lidan­do com gente muito esperta. Pode ser, pode ser. Mas o que fez o senhor desconfiar do código?

A facilidade. Ainda os princípios. Conversei bastante sobre princípios com a capitã, não sei se o senhor se lembra.

O teatro grego? Sim, eu estava na internet, mas gostei daquela explicação.

Pois é. Todo código tem por princípio a dificuldade.

O tenente compreendeu a dúvida de Maurício. Levantou a cabeça, re­colocou a xícara na mesa e ficou olhando o horizonte que se abria por inteiro desde a outra margem do rio até onde a vista se perdia no colorido da distância.

O monge médico veio juntar-se a eles. Cumprimentou-os e disse:

Daqui a Corumbá não é longe. Deverão vir buscá-los em breve. A missa de hoje foi para que vocês tenham sucesso na sua missão. Nossas orações e nossas atenções os acompanharão, onde estiverem.

O "onde estiverem" fora dito com entonação mais forte.

Maurício olhou agradecido para o monge. Fora uma mensagem curta de que a Confraria estaria por perto se ele precisasse de ajuda.

Prepararam-se. Não demorou muito um Sêneca pousou na pista que ficava perto do casarão. Tudo ali funcionava como sede de fazenda e após a missa os monges trocaram seus trajes por roupas simples, como se fossem lavradores ou vaqueiros.

Foram cinqüenta minutos de vôo até que a cidade de Corumbá come­çou a aparecer no outro lado do rio Paraguai, parcialmente encoberta pelo nevoeiro que vinha dos lados da Bolívia, cuja fronteira estava apenas a seis quilômetros dali.

O piloto teria de fazer uma grande curva e entrar por baixo do nevoeiro, vindo do outro lado, para poder ver a pista e pousar. O avião passou pela cidade e começou a se distanciar.

"Esse piloto está muito precavido", pensou Maurício, que já tinha es­tado ali com o seu Sêneca, quando veio conhecer o Forte Coimbra. "Ou então, ele está indo direto para o forte."

Foi lembrando de quando vinha pescar no Pantanal e ficava em Corumbá, uma das mais antigas cidades do continente americano, fundada em 1524.

Na época, era rico entreposto comercial e terceiro porto fluvial do con­tinente. Na praça da Independência existem ainda o coreto octogonal, im­portado da Alemanha, e as quatro esculturas que representam as estações do ano. As quatro estátuas, esculpidas em Pisa, foram doadas por um no­bre italiano que veio caçar no Pantanal.

Em 1867, a praça da República foi palco de uma das mais sangrentas batalhas da Guerra do Paraguai. Em homenagem aos heróis da guerra, foi erguido um obelisco que é uma réplica do obelisco que está hoje na praça da Concórdia, em Paris, levado por Champollion.

Dizem que quando Napoleão foi conquistar o Egito, Josefina lhe teria pedido para trazer um pequeno obelisco de presente. Se Josefina fez esse pedido a Napoleão, não se tem certeza, mas em 1833, Champollion, o en­genheiro naval que decifrou os hieróglifos, levou do templo de Karnak, em Luxor, o obelisco que havia sido erigido em homenagem ao rei Ramsés II, havia 4.000 anos.

O obelisco saiu do Egito em abril de 1833 e somente no dia 22 de outubro de 1836, o monolito de quase vinte e três metros de altura e pesando duzentas e vinte e sete toneladas, foi erguido na praça da Concór­dia, diante de uma multidão de duzentas mil pessoas. Foram necessários trezentos homens e toda a engenharia da época para levantar o imenso granito, sem quebrá-lo.

O avião continuou, deixando a cidade para trás e passou pela fortaleza de montanhas de saibro branco que circunda a cidade e lhe dá o título de Cidade Branca, para logo baixar em direção ao Forte Coimbra.

A pista começava na margem direita do pequeno afluente do rio Paraguai e tomava a direção do forte. O Sêneca desceu com maciez sobre a grama e foi deslizando até estacionar perto de um jato da Força Aérea Brasileira.

Uma kombi meio velha, mas em bom estado estava esperando por eles, e o tenente Batista, rapaz alto, mato-grossense com cores de sulista, os re­cebeu sorridente. O cabo Bruno era o motorista e um soldado armado de metralhadora completava o grupo.

Bom dia, tenente!

Bom dia, doutor! O comandante pediu para levá-lo até o escritório dele.

A quinhentos metros da pista começavam as instalações da 3a Compa­nhia de Fronteira, do Forte Coimbra.

Chegaram ao escritório do capitão Martins Neto, comandante da guarnição, quando ele estava contando à capitã Fernanda a história do forte. Tiveram oportunidade apenas de ligeiros cumprimentos porque o capitão insistiu:

Desculpe, doutor Maurício, mas estava acabando de contar à capitã a história dos índios Guaicurus que tomaram o forte e mataram cinqüenta e quatro soldados. A gente aprende estratégia militar até com os índios.

Maurício tinha assunto mais urgente para cuidar e não sabia como sair daquilo. A capitã respeitava a hierarquia, mas era evidente a sua ansiedade em saber o que ele tinha para falar de tão urgente, mas o capitão queria terminar a sua história.

Eles aproveitaram que o governador havia dado ordens para fazer as pazes com os índios e então um grupo de índios Guaicurus veio até o forte, com as índias, que não vestiam roupa e pintavam o corpo com finas linhas de tinta. Enquanto os soldados se distraíam com as índias nuas e coloridas, os Guaicurus atacaram e mataram cinqüenta e quatro homens. Foi a maior derrota do forte.

O capitão era homem culto e aproveitava quando havia visitas para discorrer sobre a história do forte.

O que mais nos comove, no entanto, são os dois milagres de Nossa Senhora do Carmo, a padroeira do forte.

Como podia misturar história de índias nuas com os milagres de Nossa Senhora do Carmo, ele não explicou.

Houve dois milagres, num deles os espanhóis chegaram com uma poderosa esquadra e intimaram a guarnição a se render. O comandante era o tenente-coronel Ricardo Franco, que respondeu com uma das fra­ses históricas da bravura nacional: "Repelir o inimigo ou sepultar-se debaixo das ruínas do forte". Os soldados começaram a rezar para Nossa Senhora do Carmo e se formou uma forte tempestade. Os espanhóis ficaram com medo e se retiraram sem atacar.

"Eram dois milagres. Falta um", pensava Maurício, que já tinha estado lá antes e conhecia esse lado cultural do capitão Martins.

A história mais bonita, para mim é o milagre da Guerra do Paraguai. Em dezembro de 1869, os paraguaios chegam a Coimbra, com três mil e duzen­tos homens, quarenta e um canhões, onze navios de guerra e farta munição e quando intimaram a guarnição a se render, o comandante Porto Carrero res­pondeu que: "Somente pela sorte ou honra das armas entregaremos o forte".

O capitão parou de falar. Parecia frustrado, como se gostaria de ter sido ele a dar essa resposta histórica aos paraguaios.

E claro que com tanta superioridade, os paraguaios tomariam o forte. E isso estava para acontecer quando dona Ludovina Porto Carrero, esposa do comandante, mandou o soldado Verdeixas erguer a imagem de Nossa Senhora do Carmo sobre a muralha. Dizem que quando Verdeixas, sem camisa, apareceu em cima da muralha e ergueu a imagem gritando: "Valha-me Nossa Senhora!", os paraguaios pararam de atirar e começaram a saudar a imagem com o mesmo grito de "Valha-me Nossa Senhora!".

O comandante não escondia a emoção. Estava difícil interromper aque­la dissertação desnecessária e Maurício estava ficando aflito porque precisa­va discutir assuntos importantes com a capitã.

Os paraguaios suspenderam os ataques e naquela noite a guarnição aban­donou o forte, porque já não havia mais munição. O forte foi ocupado pelos paraguaios sem nenhuma baixa do nosso lado. Foi um verdadeiro milagre.

Ele pediu desculpas novamente pelo entusiasmo e Maurício aproveitou para dirigir-se à capitã, sem dar tempo para o capitão continuar.

Preciso falar urgentemente com a senhora.

O capitão não se mostrou melindrado, porque afinal eles lhe haviam dado tempo suficiente para relatar as suas histórias, e cedeu o seu escritório para que pudessem conversar.

Sem mais preâmbulos, Maurício disse:

Capitã, o código pode ser uma armadilha, pode ser falso.

Ela teve uma reação intensa, mas dominou-se e escutou atentamente.

Assim que recebi o recado, vim imediatamente porque imaginava algo grave. Mas a sua conclusão é aterradora. Esse pessoal é muito mais perigoso do que imaginávamos - disse balançando a cabeça meio decepcionada.

Não disseram nada, para que ela absorvesse a notícia.

Ninguém tinha pensado na hipótese de um código falso que teria por finalidade desmoralizar as Forças Armadas brasileiras. Nem mesmo os ministros militares, que aceitaram o nossos relatórios e acreditaram ser parte de um plano real.

De repente, pareceu aliviada. A traição de oficiais superiores desonraria a farda por completo.

Essa sua nova tese nos deixa em situação difícil. No entanto, o senhor não sabe o alívio que vai trazer para os ministros. Havia nomes de militares importantes, em quem eles confiavam e dos quais eram verdadeiros ami­gos, e esses nomes estavam na lista do código.

E acrescentou, como que para controlar a sua emoção:

Mas, pensando bem, acho que o senhor tem razão. Não que esti­vesse assim tão fácil. Se não fossem o senhor e Rogério, não sei se conse­guiríamos decifrar esse código, mesmo que agora eu concorde que, para um assunto desses, o código foi decifrado muito depressa. O que você acha, Rogério?

O tenente parece ter gostado de ela ter-se dirigido a ele.

Eu não conseguiria decifrar o código, porque nada sei de teatro gre­go. - Eles riram. Acho que o código não foi fácil. Trabalhamos os três, o doutor Maurício soube conduzir o raciocínio e a informática ajudou. Mas concordo também que isso aí parece mais uma armadilha do que código de comunicação entre pessoas que estão promovendo uma guerra. Não tem o nível de dificuldade que isso exigiria.

A capitã perguntou:

E agora o que fazemos? Se eles prepararam essa armadilha, é por­que esperam que caiamos nela, para logo em seguida iniciarem as ações planejadas por outro plano, sem que delas tenhamos conhecimento. E en­tão, volto a perguntar?

Ela mostrou-se mais dependente do raciocínio de Maurício. Fora ele quem decifrara o código dos conspiradores e que até então parecia convin­cente. Agora ele é quem levantou essa hipótese bastante realista de que tudo não passava de armadilha. Mas, como dizer aos seus superiores, os três mi­nistros, aos quais se dirigia diretamente nesse assunto, passando até mesmo por cima do coronel Medeiros, que as mensagens eram falsas? Será que acre­ditariam? Não ficariam eles, depois disso, em descrédito? Confiava nos seus superiores e sabia que eram pessoas objetivas e inteligentes. Assim como ela compreendeu de imediato a lógica do raciocínio do doutor Maurício, os ministros também compreenderiam.

Mas mesmo aceitando essa lógica, o que fazer agora?

Maurício poupou o embaraço da capitã de pedir conselho a um civil para resolver assunto de estratégia militar.

Por enquanto, acho que não temos saída. Precisamos entrar no jogo deles e ganhar tempo.

O senhor diz que devemos prender os oficiais superiores denunciados no código e agir como se tudo fosse verdadeiro?

Não diria prender. Devemos evitar comoção no meio militar. Mas podemos simular isso. As Forças Armadas saberão como agir. "Similia similibus curantur", já diziam os romanos, e um médico alemão chamado Samuel Hahnemann usou esse princípio para inventar a homeopatia, no fim do século XVIII. Portanto, nada como uma armadilha contra outra.

Lá vem o senhor de novo - disse Rogério.

Deus permita que não estejamos errados. Mas estou convencido de que lançaram esse código com a finalidade de desmoralizar as Forças Arma­das e destruir a confiança interna dos quartéis com o comprometimento de pessoas sérias da cúpula militar. Se não entrarmos no jogo deles, poderão ficar mais cautelosos. Acho que devemos agir de forma a não melindrar comandos militares e, ao mesmo tempo, fingir que acreditamos no plano.

Maurício disse isso e saiu da sala para que eles ficassem a sós. Ela deveria partir logo e eles também. O comandante fez questão de acompanhá-los até a pista e, ao se despedirem, relembrou o heroísmo do Forte Coimbra:

Não se esqueçam das duas frases: "Repelir o inimigo ou sepultar-se debaixo das ruínas do Forte" e "Somente pela sorte ou honra das armas entre­garemos o Forte'.

E olhando para eles de forma enigmática:

Se alguém pensa que pode conspirar contra a pátria brasileira, nós saberemos honrar o nosso passado de glória.

Prestou continência.

Esperaram a capitã sair. Logo o Sêneca levantou vôo e os deixou em Corumbá.

As iniciativas agora passavam para a área militar. Deveriam voltar para a Buritizal. A capitã informou que ia providenciar mais vigilância para a fazenda, mas tudo indicava que nesses próximos dias eles não correriam perigo, por causa do movimento de tropas. Assim pensava ela.

Maurício perguntou sobre a irmã Tereza, mas a capitã não sabia onde ela se encontrava. Tinha sido levada para Brasília, mas desapareceu. Talvez tivesse ficado assustada e se escondido num convento.

O importante para eles agora era despistarem o mais que pudessem o caminho de volta para a Buritizal. Foram até La Paz, onde tomaram um avião até Lima, no Peru, indo em seguida para Manaus, de onde conseguiu avisar o comandante Carlão para buscá-lo em Porto Velho, capital de Ron­dônia, aonde chegaram num avião de carreira.

A cidade de Porto Velho surgiu com o acampamento para a construção da Madeira-Mamoré no ano de 1909. Um pescador chamado Pimentel tinha uma casa na margem do rio, onde os demais moradores da região costumavam se reunir para caçar e pescar. O local passou a ser chamado de Porto Velho de Caça, que deu então o nome ao município de Porto Velho, oficializado em 1915.

O rio Madeira, ali, era largo, com quase um quilômetro de largura e a estação ficava na sua margem direita. A tentativa de construção da Madeira-Mamoré, prometida no Tratado de Petrópolis, quando o Brasil comprou o Estado do Acre da Bolívia, foi uma tragédia. Interessava ao Brasil integrar as regiões mais produtoras de borracha com o mercado internacional, e a ferrovia era o único meio de evitar as cachoeiras entre Guajará-Mirim e Porto Velho.

A tentativa de construção dessa ferrovia foi um dos capítulos mais dolo­rosos da história da Amazônia. Foram contratados trinta mil trabalhadores de diversas partes do mundo, e aproximadamente seis mil morreram de acidentes no trabalho, mordidas de cobra, malária e outras doenças.

Quando a ferrovia ficou pronta, a borracha asiática tomou conta do mer­cado. O látex extraído da Amazônia não conseguiu competir e a ferrovia perdeu seu objetivo. Mais tarde, as rodovias foram eleitas por Juscelino Kubitschek como as vias de integração nacional, e as ferrovias do país perderam importância. Com a inauguração da rodovia que liga Cuiabá a Porto Velho, a Madeira-Mamoré foi abandonada e, a partir de 1972, a maior parte desse patrimônio histórico foi vendido como sucata para empresas de ferro velho e seus arquivos históricos incinerados.

"Há um quê de abandono em tudo que já foi importante para a Ama­zônia", pensou Maurício. "Essa ferrovia é uma das mais misteriosas do mundo, cheia de lendas, misticismo e sacrifícios."

Sabe, tenente, já li muito sobre essa ferrovia e sinto a frustração de não ter viajado por ela quando ainda funcionava.

Rogério notou o tom de lamentação, mas preferiu ouvi-lo mais um pouco antes de fazer comentários.

É uma das grandes epopéias do Brasil, feitas por homens cheios de coragem, ambição e esperança. Imagine o que foi construir essa estrada de ferro aqui nos confins do mundo, sem recursos, sem conforto, trazendo tudo por via fluvial, de Belém do Pará, subindo o Amazonas e o Madeira, sem operários especializados, que tiveram de ser importados. Milhares de vidas humanas perdidas, empresas brasileiras, americanas e inglesas se afundan­do em dívidas e falindo. Por isso ela foi chamada de "Ferrovia Amaldiçoa­da", "A estrada dos trilhos de ouro", "A estrada onde morreu uma pessoa para cada dormente colocado".

"Aonde será que esse camarada quer chegar? Quando ele começa a falar assim é porque está tentando buscar alguma lógica que não entendo."

O senhor já leu A Ferrovia do Diabo? E de um jornalista chamado Manoel Rodrigues Ferreira. Acho que preciso ler essa obra de novo. Temos de recomeçar a pensar, tenente, temos de recomeçar a pensar. Nossos prin­cípios e teorias podem morrer no "Conceito Zero".

"Então é isso? Ele já está tentando decifrar o novo código que nem sabe se existe. Daqui a pouco ele me chama de "Meu caro Watson". Olhou para Maurício, mas antes que pudesse falar qualquer coisa, ele riu:

Não estou delirando, tenente. Vamos ver mais uma coisa interessante. O senhor já ouviu falar da praça das Três Caixas d'Água? Pois olha, uma das dificuldades da construção da ferrovia era água potável para os empre­gados que estavam sempre com diarréia. Vieram então três caixas d'água, desmontadas, de Chicago, que foram erguidas perto da matriz. Hoje elas estão desativadas, mas são tombadas pelo Patrimônio Histórico, porque mostram a dificuldade que foi construir essa ferrovia. Até um sistema de água potável foi importado dos Estados Unidos.

"Já, já ele começa a ligar essas caixas d'água com os templários."

O seringueiro é uma figura interessante. Acho que os ambientalis­tas estão criando um novo tipo de nação, a Nação dos Seringueiros. São milhões. A borracha desapareceu, mas o seringueiro continua. Quando a gente fala do nordestino, do gaúcho, do paulista, a gente faz um enquadra­mento geográfico da população. Seringueiro é diferente. E um estado de coisas, uma filosofia, uma continuidade, ele não muda, é como uma nação. Pelo que pude ver até agora, o extrativismo não está tirando esse povo do estado de miséria. Não fosse o peixe, a caça, a mandioca que eles mesmos plantam na beira dos rios, talvez passassem fome.

Rogério não conhecia a vida dos seringueiros e achou melhor não respon­der. Depois das visitas aos pontos mais importantes de Porto Velho, foram para o aeroporto, onde o comandante Carlão, com o Sêneca, os esperava.

Até a Buritizal, gastaram uma hora e quarenta minutos sobrevoando a selva amazônica, onde alguns focos de colonização para alojar a população urbana de desempregados e mendigos surgiam em pontos isolados.

Chegaram em tempo para o almoço e, após terem descansado um pou­co, Maurício propôs um passeio a cavalo. Lá pelas duas horas da tarde, saíram com o séqüito costumeiro.

Nunca antes tinha andado a cavalo na selva amazônica. Mas tudo isso aqui é do senhor? Me conta como conseguiu isso?

Explicou que durante o regime militar, o Estado de Mato Grosso tinha um plano de desenvolvimento e ele e alguns amigos requisitaram várias glebas. Mas os amigos foram desistindo. Um deles pegou malária, o outro achou que o cus­to de ir e vir era muito elevado, enfim ele foi se ajeitando com um e com outro e comprou a parte deles, porque o seu plano era ficar ali definitivamente.

A área ficou muito grande, mas a região foi se desenvolvendo e as terras valorizando. Apareceram uns vizinhos querendo comprar uma parte e, com o dinheiro dessa venda, formou a Buritizal, comprando bezerros e fazendo melhoramentos. Foi um longo período de mais de vinte anos. Vinte anos atrás, todos o chamavam de louco. E ainda há quem pense do mesmo jeito.

Mas isso aqui é como um paraíso. O rio, a floresta, os pássaros. E ainda existe muita caça por aqui? Só vi anta no zoológico.

Existem antas. Ela se parece com uma vaca. O presidente Roosevelt, no seu livro, faz interessante observação sobre os animais da América do Sul. A anta é o maior deles. Na América do Sul, não existem animais grandes, como os elefantes, na Ásia, ou os búfalos da América Norte e da África.

Mas, como negócio, o senhor acha que vale a pena?

Estavam perto de uma palmeira. Maurício pegou um coco e disse rindo:

Astrocaryum vulgare. Nós chamamos de tucumã. No mato, é difícil passar fome.

Começou a descascar o coco com a boca e comeu a polpa amarelada.

Rogério balançou a cabeça de um lado para outro, como se não enten­desse nada.

Sabe, tenente? Já acreditei mais. Quando comprei isso, podia formar cinqüenta por cento da área. O resto seria reserva conforme estava no Códi­go Florestal. Depois, baixaram uma Medida Provisória alterando o Código e reduzindo o uso da gleba para apenas vinte por cento. Foi por isso que meus colegas desistiram, porque, para quem mora em São Paulo, por exemplo, uma fazenda aqui, nesta distância, não pode ter menos de mil hectares apro­veitáveis. Acontece que para formar mil hectares o senhor precisa de pelo menos seis mil hectares.

Seis mil? Mas vinte por cento de cinco mil não são mil? Ainda assim, ter uma gleba de cinco mil hectares e só poder usar mil é um despropósito.

-A matemática não é essa. Dentro desses mil hectares, os órgãos ambientais descontam as chamadas Áreas de Preservação Permanente, como as margens de rios, fontes, alto de morro e aí cada um interpreta como quer.

Mostrou o rio Roosevelt.

O senhor está vendo o rio? A Buritizal tem uns quarenta quilômetros de margem de rio. Cem metros de cada lado em toda a extensão do rio são áreas de preservação permanente e a fazenda não pode usar. Da mesma forma, não pode ser usada a área correspondente a trinta metros de cada lado dos riachos internos. Então, a área útil vai se reduzindo.

Entendi. É por isso que para poder usar mil hectares, é preciso ter mais de cinco mil.

Mas existe outro problema. Os órgãos ambientais querem que eu cer­que todas essas áreas permanentes para que os bois não entrem nelas para descer o barranco do rio e beber água.

E como o senhor vai canalizar água para os bois?

Eles querem que eu faça corredor com bebedouros e aí então os bois terão de andar muito e perdem peso. Mas o problema maior não é esse. Vão ser necessários perto de sessenta mil metros de cerca para todas essas áreas. E quem vai pagar por essas cercas?

Barbaridade! Tudo isso?

O contra-senso é que, para fazer essas cercas, vai ser preciso cortar árvores. Além disso, se as áreas das margens dos rios forem cercadas, no período da seca, quando o rio baixa, o boi desce até onde está a água e aí não há mais cerca. O boi sai do corredor e se perde.

Espera aí. Mas isso não é uma exigência só para o senhor. Todos os proprietários de terras teriam de fazer o mesmo.

-Justamente. Serão milhões de quilômetros de cerca ao preço médio de três mil reais por quilômetro e o ruralista não tem como pagar isso. O estranho é que isso tudo mudou muito bruscamente. Há um clima de revolta generaliza­do. Como esses pequenos lavradores vão poder construir essas cercas, não sei. Nem sei por que uma exigência dessas, se o boi não come árvore e ele acaba, por si mesmo, fazendo o caminho para as águas, sem andar pelo resto do mato.

O senhor está falando como se estivesse raciocinando sobre a interna­cionalização da Amazônia. Parece que está analisando a sua situação, para verificar se há fundo de verdade nessa história de ONGs estarem interfe­rindo para que os investidores saiam daqui.

Vou contar para o senhor uma coisa revoltante que aconteceu aqui no ano passado. O rio sempre foi a única via de acesso para os moradores das margens. Durante séculos e talvez milênios as suas canoinhas serviram para eles andarem pelos rios e caçarem e pescarem. No ano passado, a Po­lícia Florestal esteve aqui na região do Guariba e afundou as canoinhas dos moradores porque eles não tinham autorização para pesca. Claro, foi um caso isolado, talvez um policial cheio de idealismo com os peixes. Mas essa é uma mentalidade que vem aumentando. Mate um brasileiro, para salvar uma árvore, ou deixe uma criança com fome para salvar o peixe.

A fazenda se estendia ao longo do rio Roosevelt e Jorge tinha manda­do a voadeira ir buscá-los no córrego do Duelo, um afluente distante dez quilômetros da sede. Os vaqueiros trariam os cavalos de volta e, assim, iam saborear o entardecer com o sol refletindo nas águas do Roosevelt. Ver a esteira de ondas que vai ficando para trás era melhor que o sacolejo duro dos burros. Naquela região, onde o serviço é pesado e o animal precisa an­dar longas distâncias todos os dias, não se pode pensar em cavalos de passo macio, das raças Mangalarga ou Campolina. Era serviço para burros.

Quando passaram em frente do Chuvisco, contou ao tenente o episó­dio da tentativa de assassinato que ele e a capitã sofreram.

- Puxa! E eu nem estava por aqui, hein! Que perigo vocês correram!

Maurício contou-lhe que provavelmente essa tal Ordem dos Templá­rios possa ter atrapalhado os planos dos assassinos.

"Estranho que a irmã Tereza tivesse aquele livro sobre os fortes. O ge­neral não ia pedir para ela visitá-los. Isso parece que estava reservado para mim. Nunca antes ela tinha mostrado interesse em fortalezas portuguesas na Amazônia", não deixava de pensar.

A voadeira desceu a corredeira e fez uma larga curva para encostar no barranco, onde foi amarrada no pequeno píer da Buritizal.

O dia foi exaustivo. A viagem de avião de Porto Velho até a fazenda, o almoço e logo em seguida a cavalgada, que demorou umas quatro horas.

Jorge manteve seus camaradas distribuídos perto da sede e pela margem do rio, com walk-talk, lanternas e bem armados.

O embaixador não tinha tido antes um contato tão direto com a CIA como estava tendo agora. Não era apenas o serviço diplomático que sustentava a grandeza do seu país. A eficiência da informação o estava contagiando a cada vez que o diretor lhe dava novas informações.

O diretor falava com a normalidade de quem tinha assistido a um filme.

Por sorte, a mulher, que é uma capitã a serviço da Abin, que tinha re­tornado a Brasília no dia anterior, saiu bem cedo num jato da Força Aérea Brasileira para o Forte Coimbra, em Corumbá. Um avião Sêneca chegou logo em seguida com os dois. Depois de uma hora mais ou menos, a capitã voltou a Brasília e eles seguiram de carro até a Bolívia, tomaram avião para Lima, no Peru, e depois retornaram para Manaus, de onde seguiram para Porto Velho, onde o avião do homem da Receita os esperava. Eles estão hoje à margem do rio Roosevelt na fazenda desse último.

O embaixador não conhecia o diretor do Serviço de Inteligência da CIA, mas parece que ele sabia trabalhar. Alguma coisa, no entanto, estava faltando. Parece que o outro terminou o relato, sem muita convicção.

Achou melhor insistir.

Admitindo que essas mensagens sejam realmente falsas, com que pro­pósito o senhor acha que elas foram enviadas?

Do outro lado da linha, o diretor começou a perceber que estava li­dando com um homem perspicaz. Ficou mais satisfeito. Tinha receios de diplomatas, muito cultos, muito literatos, muito políticos - e muito con­fusos. Esse parecia ser exceção.

Desmoralizar os militares brasileiros.

O senhor pressupõe então a existência de outro plano de ação que nós desconhecemos?

Essa é a conclusão. Existe um plano de ação para a proclamação da República da Amazônia e, quando esse plano for posto em prática, os mili­tares poderão já estar desmoralizados por terem se envolvido numa farsa.

O agente do FBI olhava atento para o embaixador, que já estava tenso, mas procurava manter o controle da situação e conseguir dados mais específicos.

Pelo que estou entendendo, os senhores nada sabem ainda a respeito do plano real, verdadeiro, se é que existe. Estou certo?

O outro esperou uns segundos para responder. Não queria confessar que, apesar de todo o aparato que a NSA e a CIA dominavam, eles estavam sendo surpreendidos.

Estamos trabalhando. Não temos ainda registros ou informações que possam ser traduzidos como um plano de ação. As únicas mensagens são essas e elas estão em código inadequado para uma ação de tais proporções.

Havia lógica e segurança na maneira como o diretor falava, mas alguma coisa estava errada em tudo aquilo. Afinal, se esse grupo dispõe de organi­zação para montar uma armadilha dessas para as Forças Armadas Brasilei­ras e nas barbas dos serviços de segurança dos Estados Unidos, eles devem estar espalhados em várias instituições e contando também com outros grupos de apoio. Se isso é verdade, a falha dos serviços secretos americanos foi grande.

Embaixador, posso imaginar o que o senhor está pensando. Talvez tenhamos cometido algumas falhas, mas o senhor há de convir que esse pessoal escolheu o momento próprio para isso.

Entendo. Enquanto estamos inteiramente voltados para o Iraque, o Irã, a Síria, a Palestina e o preço do petróleo, eles começaram a agir onde menos esperávamos. Mas não acredito que o senhor não tenha outra infor­mação para passar. Por exemplo, sobre aqueles três. Eles devem saber algu­ma coisa que estão escondendo de nós porque os deixamos desconfiados no momento inadequado. Concorda?

O outro sabia que o embaixador falava ainda de Juína e respondeu:

Bom, o fato é que nós também estamos curiosos para saber se os mi­litares brasileiros vão cair nessa armadilha. E é aí que entra o caso de Juína. Era uma tentativa de saber alguma coisa, mas houve erro ou precipitação.

O agente do FBI sorriu satisfeito e o embaixador não deu tempo ao outro lado:

O senhor quer dizer que estava testando o Exército brasileiro num assunto tão sério?

Não diria que estamos fazendo teste. Na verdade, acho que essa organização é que estava testando o governo brasileiro. Veja o senhor o seguinte: se os órgãos de informação não conseguiram decifrar esse código, então o governo não sabe do plano. Se, no entanto, os órgãos de inteligência do governo decifraram o código, é de se pressupor que haverá movimento de tropas.

E se decifraram o código e não houver o movimento de tropas? Ou, então, está me ocorrendo que o Exército brasileiro pode também simular um movimento de tropas. Vendo por esse lado otimista, se o Exército brasileiro fingir que caiu na armadilha, quais os passos seguin­tes, na sua visão?

O homem do FBI estava gostando do raciocínio rápido do embaixador. Ele estava cada vez mais tenso, começava a suar e chegou a pegar o lenço para secar a testa. Tinha uns cinqüenta anos, mas em alguns minutos de conversa com a CIA parecia dez anos mais velho. O rosto mostrava rugas que se escondiam quando estava alegre e disposto.

O diretor procurou ser prudente.

Existe outro assunto que nos interessou e isso pode ser um caminho novo. Quando o general Ribeiro de Castro convocou esse homem da Re­ceita, nós aqui ficamos intrigados. Por que convocar um agente da Receita Federal?

-Também achei interessante essa iniciativa do general Ribeiro de Castro. O que a Receita Federal pode fazer num caso de espionagem como esse?

A informação, embaixador, a informação! Aquele general sabia o que estava fazendo. Aliciou um homem preparado e que podia tirar in­formações dos computadores da Receita, sem ele ter de pedi-las oficial­mente. Desde que aceitou a missão, ele vem fazendo levantamentos para identificar pessoas suspeitas.

Aquilo era novidade. Começou a achar que a CIA servia para alguma coisa.

E como ele consegue essas informações?

Não é difícil. Com uma senha de entrada no sistema, ele consegue o que quer. Pode não ser muito legítimo, mas é assunto de segurança na­cional e o senhor sabe muito bem que, quando se trata de segurança de Estado, não se pode fazer nada oficial, porque é dar armas ao inimigo.

Entendo. E, pelo que o senhor disse, algumas pessoas podem desde já ser investigadas.

Estamos confirmando isso e lhe informaremos assim que tivermos certeza.

O embaixador pensou um pouco. Alguma coisa estava faltando. Havia

um espaço ilógico em toda aquela conversa.

E existe alguma coisa que o senhor acha que podemos fazer por aqui?

Nem tudo a informática resolve. Acho importante acompanhar de perto o que esse Maurício está fazendo.

O senhor sugere que mande alguém ficar perto desse homem?

É nisso que estou pensando. O senhor já ouviu falar do "Spytic", um minúsculo aparelho, na verdade um chip que é implantado na orelha e pode ser ligado e desligado no relógio de pulso? Esse chip serve para muitas coisas, inclusive para ampliar sons e decodificar conversas. É a mais nova invenção do FBI. Pergunte ao agente que está à sua frente, ouvindo a nossa conversa. Ele é o homem indicado para esse serviço.

O embaixador olhou estupefato para o agente do FBI. Este apenas sorriu.

Despediram-se e combinaram outro telefonema para algumas conclusões.

Foram deitar-se lá pelas nove horas, porque estavam cansados e tensos, mas antes Maurício mostrou ao tenente as armas que haviam encontrado no Chuvisco. Ele ficou impressionado com o morteiro e com o rifle, que não conhecia.

Apesar de cansado, teve dificuldade para dormir. Eram muitos os acon­tecimentos para um professor de legislação tributária. A morte do general, aquela esquisitice da Confraria, os atentados que sofreu, o esforço da decifração do código, o envolvimento do FBI e CIA em sua vida, nada daquilo era o de que precisava.

Não entendia a situação da irmã Tereza. Não sabia que a irmã tinha fi­cado doente, conforme a mulher lhe disse quando visitou a associação dos seringueiros naquele dia do assassinato no Chuvisco. Mas também, como ia saber? Às vezes ficava mais de três meses sem sair de São Paulo. Agora, a capitã Fernanda disse que ela desapareceu de Brasília.

O sono foi tumultuado. Num certo momento, teve a impressão de que alguém bateu na janela do quarto. Ficou em silêncio, sem se mover na cama, imaginando se teria sonhado ou teria mesmo ouvido o barulho. Passou a mão por baixo do travesseiro e pegou o revólver.

O curral ficava a cem metros da casa e uma parte do gado ainda estava recolhida para ser vacinado logo cedo. Ouvira barulho de madrugada e chegara a levantar-se para tomar água. Havia olhado atentamente a outra margem do rio e voltara a deitar-se.

"Será mesmo que ouvi algum barulho?"

Aguardava em silêncio, quando Jorge falou junto à janela:

Doutor, a onça pegou um bezerro no curral. O cavalo do senhor está arreado. O senhor vem?

Pulou da cama.

Onça no curral?

Pois é, doutor. O Wagner ouviu barulho do gado e foi ver o que era. Ele pensava que o gado estava solto. A onça entrou no curral e pegou o bezerro de uma vaca leiteira. Ela devia estar com muita fome para vir até perto da casa. Aqui nunca aconteceu isso.

Ainda estava escuro. Era preciso aguardar um pouco até clarear o dia. Levantou-se e, ao sair do quarto, viu o tenente já preparado e com a arma na mão.

Ouvi barulho e acordei. Parece que vamos ter uma caçada de onça. Sempre quis participar de uma caçada dessas, assim ao vivo. Ajudei a pegar uma onça que escapou do zoológico uma vez, mas não teve muita graça. Posso ir junto?

Claro - respondeu Maurício. - Eu mesmo só fui duas vezes. Vale a pena. É uma caçada desafiadora. Não tem retorno. Ou a gente ou o bicho morre.

A empregada chegou logo depois e o café quente era reconfortante. Pe­gou uma boa xícara e ficou andando pela varanda. Um pouco de ação não iria fazer mal. Andava tenso e precisava recuperar o sangue-frio.

"E se não for onça?" Afastou essa hipótese porque os empregados esta­vam no curral havia várias horas e, se fosse outra coisa, teriam notado.

A fazenda tinha onze cachorros caçadores de onça. Entre eles, havia pelo menos uns seis que estavam bem treinados.

O tenente aproximou-se também com uma xícara de café e comentou:

A lei deveria permitir caçar de vez em quando, o senhor não acha? Lá em Brasília a onça é considerada um animal em extinção. Mas nessa flores­ta imensa devem existir milhões de onças, não é verdade?

Entre a lei e a realidade a distância é longa. Nós aqui temos um acordo com as onças. É proibido caçá-las, desde que não ataquem os animais. En­quanto elas permanecerem vivendo do seu meio, elas não são importunadas. Entretanto, se alguma delas começar a matar os bezerros, é preciso afastá-la do nosso convívio. O bezerro é um animal indefeso e fica cercado no pasto. Ao cercar os pastos, nós facilitamos para a onça. Às vezes a vaca investe con­tra ela e defende a sua cria. Na maioria das vezes, a onça leva vantagem.

Mas a onça não ataca também a vaca?

É difícil enfrentar uma vaca enfurecida. O chifre, o coice, e com o barulho que faz, as outras vacas mugem, a onça às vezes se assusta e sai atrás de presa mais fácil. Quando ela pega um bezerro, costuma arrastá-lo para lugar seguro. Come a metade e cobre o resto para mais tarde. Os urubus às vezes descobrem a carniça, e quando a onça volta, não encontra mais o que comer. Ela vai então atrás de outro bezerro e, quando acha que é fácil, dei­xa de comer a carne e passa a chupar o sangue no pescoço, abandonando o resto. O prejuízo da fazenda é grande nesses casos.

E como controlar isso?

Quando se descobre o lugar onde a onça deixou o resto da sua presa, vale a pena ter paciência e esperar pela sua volta, em cima de alguma árvore. Prepara-se uma jaula, que é como um engradado em cima da árvore e espera-se até o anoitecer. A onça acaba voltando e o caçador tem a oportunidade de se livrar dela. Muitas vezes, porém, ela continua o seu caminho e vai atravessan­do os pastos, pode matar algum bezerro, mas segue em frente.

O senhor acha que essa onça é uma dessas que vão embora?

Acho que não. Com os problemas que estamos tendo nesses dias, os vaqueiros não estão percorrendo os pastos e essa onça está se banqueteando.

O governo devia pagar esses prejuízos. Afinal, se a onça é tratada como um bem público, o poder público devia se responsabilizar pelos da­nos que a onça causa.

Poderiam criar estações de caça, em locais próprios e nas épocas cer­tas. As propriedades que tivessem animais selvagens em suas terras cobra­riam por essas temporadas. O prejuízo que esses animais podem causar seria compensado com uma receita de caça. Do jeito que está hoje, vai ser muito tarde quando quiserem incentivar a proliferação dessas espécies.

O senhor quer dizer que os próprios proprietários teriam interesse em preservar os animais, a fim de terem uma renda com essas temporadas? Não tinha pensado nisso. Obviamente o governo cobraria taxas de licença e com isso teria também receita para uma boa fiscalização. Afinal, caçador é gente que pode pagar.

Bom, se o presidente americano Theodore Roosevelt teve o direito de matar duas mil e quinhentas espécies...

Clareou o dia. O curral não ficava longe. A onça tinha pegado o bezerro no pequeno cercado que era feito para ele passar a noite preso e não esgotar o leite da vaca. O bezerro fica com a mãe durante o dia, quando mama à vontade. A noite, porém, é separado para que no dia seguinte haja leite para o consumo da fazenda e dos beiradeiros vizinhos que chegam com as suas canoinhas para buscar um pouco de leite para as suas crianças.

Ela havia entrado no curral, passado por baixo das tábuas da cerca e agarrado o bezerrinho. Havia sinais de que a vaca havia tentado salvá-lo. A onça, porém, o arrastara, andando de fasto, para se proteger contra as vacas e touros maiores que tinham feito todo o barulho que ele ouvira de madrugada. Por isso os cachorros estavam demorando para sentir o cheiro do animal. Ela arrastara o bezerro por cima de seus passos e o cheiro do bezerro atrapalhava os cachorros.

A vaca berrava tristemente olhando na direção para onde a onça arrasta­ra o seu filhote. Não deixava de ser interessante notar que ela sentia a tris­teza de ter perdido a sua cria, enquanto muitas mães humanas abandonam seus filhos em cestos de lixo.

Não se vai atrás de uma onça sem cachorros treinados. São orelhudos, pardos, malhados, de orelha comprida, desajeitados e feios. Esses cachorros pegam o rastro da onça pelo faro e saem disparados até encontrá-la. Che­gam perto dela e ficam uivando como lobos, deixando a onça meio zonza. O caçador pode atirar de três metros de distância.

Jorge atiçava os cachorros, que corriam de um lado para outro. Uma cachorra mais velha e esperta levava no pescoço uma sineta. Era a mestra, chamava-se Diana e já tinha ensinado vários filhotes.

Os cachorros estavam perdidos. Ganiam, latiam, corriam de um lado para outro, enquanto Jorge atiçava: "Isque, isque, isque", excitando os cães. Num determinado momento, um cachorro latiu mais alto e ficou correndo de um canto a outro desesperado. Em seguida saiu em disparada latindo, os outros atrás dele. Jorge esporeou o cavalo e gritou para o seguirem.

Galoparam atrás dos cachorros que já tinham descoberto a onça e cor­riam atrás dela ganindo estridentemente. A onça dirigiu-se para uma área de pastos mais sujos, onde certamente tinha feito o seu acampamento e dali saía para pegar os bezerros. A quiçaça ali era alta, formando uma juquira cerrada e cheia de arranha-gatos. Os cavalos não estavam ajudando. Jorge pulou do animal e eles fizeram o mesmo.

Correram a pé na direção dos latidos e com o revólver na mão. Numa caçada dessas, em que se corre atrás de cachorros seguindo onça, o mais prático é levar armas de cano curto, que não atrapalham a corrida. Entra­ram por meio de moitas, arrastaram-se sobre espinheiros e formigueiros, orientados pelos latidos que se perdiam na distância. Era mais fácil para os pequenos animais correrem no meio daquela quiçaça com espinhos, for­migas e abelhas.

Os latidos foram ficando mais fortes. Jorge estava na frente e gritou que os cachorros tinham acuado a onça. Se não chegassem logo, a onça po­dia matar um deles. Logo adiante acabou a quiçaça e começava a floresta. A onça estava empoleirada no galho de uma árvore e olhava para baixo, imóvel. Um vaqueiro ainda jovem tinha chegado na frente, junto com os cachorros. Era um mulato meio índio com prática de correr por aqueles matos e, quando chegaram, ele estava com a cartucheira apontando para o animal, mas deixava para o patrão o privilégio do tiro.

Jorge estava tão excitado quanto os cachorros. Caçar onça era o seu esporte preferido. Dizia que nesse esporte não era só a caça que morria. Era comum morrer algum cachorro e, se o caçador não fosse bom, morria também. Onça ferida perde o medo dos cachorros. Avança sobre eles e enfrenta o atirador. Mas, dizia ele, enquanto tivesse um cachorro vivo ele não tinha medo da onça, porque ela só se preocupava com o cachorro.

Era uma onça parda, das grandes. O espetáculo era bonito de ver. O céu começava a se colorir com o nascer do sol e a imagem do felino se projetava majestosamente por entre as folhas da árvore.

Jorge olhou para Maurício, que apontou para o sargento. O administra­dor estendeu-lhe uma pistola de cano longo e explicou, dando risada:

O doutor não deixa matar. Esta pistola tem balas tranqüilizantes. É melhor o senhor atirar logo, porque se a onça descer não vai dar tempo de ela perder os sentidos e pode atacar os cachorros.

Maurício explicou:

Atire na paleta, é mais fácil de acertar e ela não terá como fugir, mas atire logo porque parece que está descendo para enfrentar os cachorros.

O tenente levantou a arma que lhe fora entregue e atirou. O animal sentiu o tiro, assustou-se e tentou passar para outra árvore, cujos galhos se entrelaçavam com os galhos da árvore onde estava, mas, enquanto estudava para que lado ir, adormeceu e caiu. Os cachorros correram furiosos para cima dela e não foi fácil tirá-los de lá.

O tenente se aproximou e ficou admirando aquele animal que os empregados amarravam com cordas. Estava feliz por não o terem matado, mas não gostara de ter sido enganado. A cada dia entendia menos esse tal de doutor Maurício.

Retomaram o caminho de volta para a sede, desviando-se da macega que tinham atravessado antes e que os tinha deixado com arranhões por todo o corpo. Os empregados agora estavam levando a onça, com um pau enfiado entre as cordas para lugar distante no meio do mato. Doses suplementares de tranqüilizantes iam permitir que soltassem as amarras da onça, sem perigo para eles. Essa, com certeza, não voltaria à Buritizal.

Já eram sete horas da manhã quando se aproximaram do curral e viram o barqueiro chegando. Ele morava do outro lado do rio e todos os dias vinha com a voadeira e trazia seus dois filhos e as crianças do seu cunhado, que morava perto dele.

Ultimamente Maurício prestava atenção a todos os detalhes que fugiam da normalidade. Sabia que a sua vida podia depender de alguma coisa sem importância e que lhe passasse despercebida.

Me diga uma coisa Jorge, as crianças do Zelão não estão vindo às aulas?

É!... Ontem também ele não trouxe as crianças, nem as dele nem a menina do Goiano. Perguntei por elas e ele me pareceu preocupado. Perguntei se ele gostaria que a minha mulher fosse lá ver se podia ajudar em alguma coisa. Ela foi enfermeira antes de mudarmos para cá e sempre que as crianças da escola ficam doentes, eles querem que a minha mulher vá levar remédios. Achei estranho quando ele disse que não precisava.

Maurício pensou um pouco e perguntou:

E ele pareceu assustado? Quero dizer: você chegou a notar se ele ficou com medo de alguém ir lá?

Jorge franziu a testa. Fez um esforço de memória.

Parece que respondeu muito depressa que não precisava não. Estava meio estranho. Na hora não dei importância. O senhor quer que...

Não, não. Nem comente nada. Tive a impressão de ver luz acesa do outro lado do rio, quando me levantei nesta madrugada. Era muito cedo para ele estar acordado. Agora com essa história de ele não trazer as crian­ças... Mantenha os cavalos prontos para sairmos. Vamos dar um pulo até o Panelas.

O piloto estava na varanda da casa querendo saber da caçada. Não teve coragem de ir junto porque sabia que essas caçadas exigem preparo físico e ele estava sem treino para corridas.

Comandante, me faça um favor. Vá ao rádio e dê um recado à sua mulher. Diga para ela que aqui está tudo bem. Pode dizer que amanhã a gente volta para Cuiabá. Mas faça isso agora.

O piloto entendeu logo que aquilo era uma mensagem. Que tipo de mensagem ele não sabia, mas certamente o recado não era para a sua mu­lher. A fala pelo rádio devia estar sendo monitorada.

Logo depois, os três saíram em direção ao córrego Panelas, que era a divisa no extremo sul da fazenda. Levavam apenas os revólveres, um cantil com água e algumas frutas. Tinham saído como se fossem voltar para o almoço que Maurício mandou preparar, e avisou que iam chegar depois do meio-dia.

Os três cavaleiros tomaram a direção do córrego. Cavalgavam sem pressa e iam conversando como se estivessem estudando os pastos, vendo cercas e contemplando a paisagem. A neblina que se formava durante a noite nas duas margens do rio umedecia o solo e mantinha as pastagens durante a seca.

Maurício olhava satisfeito para aqueles campos de capim. Foram anos de trabalho, mas agora a sua fazenda estava pronta, organizada, produtiva. Era enfim a realização do sonho de tantos anos de sacrifício, despesa e trabalho. Uma leve tristeza invadiu sua alma e lembrou aqueles tempos em que sonhava viver ali com a companheira que hoje não existia mais.

Jorge ia na frente para abrir as porteiras e o tenente aproximou-se. Des­pertou então para a realidade que estava vivendo e acabando com os seus so­nhos. Foram se aproximando do retiro do Panelas. Já tinham andado mais de duas horas. Uma casa de madeira, bem construída e pintada com cores ale­gres como era costume na região, um grande curral e outras instalações bem cuidadas indicavam que ali morava gente que tinha gosto pelo trabalho.

Um vaqueiro moreno e seu filho, já moço e alto, apareceram e Jorge pediu que eles os acompanhassem.

Após esse retiro, uma pastagem formada de humidícola, tipo de braquiária que resiste a terrenos alagados, cobria a várzea que ligava as mar­gens do Roosevelt com o Panelas.

Atravessaram os campos de humidícola, que na época da seca parece um grande arrozal amarelado, e chegaram até os arbustos que cobriam a margem direita do igarapé. O cipoal, misturado com vegetação de folha­gens encrespadas e típica de margens de rio que ficam alagadas durante as chuvas, era largo e denso.

Desceram dos animais e Jorge se dirigiu a uma moita mais cerrada e longa, junto com os dois vaqueiros. Tinha levado um facão para cortar a ra­magem. O facão era companheiro indispensável e cada peão devia ter o seu. Foram abrindo caminho e logo depois voltaram arrastando uma voadeira.

Voltaram mais algumas vezes para o mesmo lugar para trazer o motor, óleo dois tempos para misturar com a gasolina e dois galões de combustí­vel. Um último vaqueiro veio com as mochilas que os dois haviam trazido desde Cáceres.

O tenente ficou surpreso:

— Pensei que ontem, quando chegamos, a empregada havia pegado minhas roupas para lavar. Posso imaginar que não vamos voltar para a fazenda.

Maurício explicou que mandou trazer as mochilas durante a noite, na voadeira, por precaução e felizmente acertara. Lá na sede, ele tinha roupa de sobra e com tamanhos diferentes, que amigos às vezes deixavam quan­do vinham pescar. Entretanto, se precisassem sair às escondidas, era bom estar prevenido. A capitã não tivera tempo de aumentar a segurança como planejava, e havia o risco de alguém chegar antes.

E o senhor ficou impressionado porque coloquei a viatura protegen­do o seu hotel em Brasília — disse o tenente, como se elogiasse as provi­dências tomadas.

Nós vamos trocar de roupa e os dois vaqueiros vão voltar com o Jorge, ves­tidos com as nossas roupas e nossos chapéus. Nós vamos tomar outro rumo.

De voadeira? Nesse rio? E a cachoeira ali na frente? Daqui estou escu­tando o barulho dela.

Jorge riu e disse:

O único ponto mais perigoso é a cachoeira. Eu e o doutor já passamos por ela várias vezes. O melhor lugar para pescar pacu com vara é depois da cachoeira. O rio é largo e manso. Os pacus ficam perto da margem comen­do as frutinhas que caem da vegetação do barranco. Costumamos pescar por lá e portanto não precisa se preocupar. Vou passar vocês na cachoeira e volto a pé, pela margem do rio, sem que ninguém me veja. Daí para a frente o rio é amigo do doutor.

Jorge misturou o óleo na gasolina, abasteceu o tanque com um galão e deixou o outro dentro do barco.

Não era bem uma cachoeira. Era, porém, uma das corredeiras mais for­tes do rio Roosevelt, que se formava logo após receber as águas do Panelas, e nunca deixavam de usar os coletes salva-vidas.

Jorge foi tomando o lado esquerdo, desviando das pedras e procurando o canal por onde descia o maior volume de águas. A voadeira balançava e avançava contra as ondas que as águas criavam nos lugares mais aciden­tados. Quando batia numa onda mais forte, levantava a frente e dava a impressão de que podia virar.

Conduzia com habilidade e logo mais adiante apareceu o canal onde as águas se avolumavam e faziam barulho ensurdecedor. A correnteza puxava a voadeira rio abaixo e ela ganhava velocidade. O tenente começou a ficar preocupado. Segurava as duas bordas de alumínio com firmeza, pois pare­cia que ia ser cuspido do barco.

Foram momentos de tensão, não tanto para Maurício que já conhecia cada um daqueles movimentos, mas até ele respirou aliviado quando a voadeira saiu daquela correnteza estreita e forte onde o consumo de adre­nalina é maior do que o de combustível.

Arre! - gritou o tenente. - Pensei que não ia mais ver a capitã.

Jorge foi se aproximando da margem, onde encostou. Depois de algumas instruções, saiu do barco e Maurício foi para o banco de trás e tomou o leme. A voadeira foi descendo o rio com mais velocidade. O Roosevelt se alongava como um corredor de águas calmas. Era largo, bonito, com floresta densa em ambas as margens, e o barulho da voadeira escondeu o ronco do motor de um avião Bonanza, monomotor, que ia se aproximando.

O avião passou por eles e ficou no campo de visão de Maurício, que balançou a cabeça com um sorriso de concordância.

"Essa capitã é de uma precisão nuclear", pensou.

O sinal do telefone despertou o embaixador de suas costumeiras divagações. Era de novo o aparelho codificado para que as conversas não fossem compreendidas.

"Coisas maravilhosas do mundo moderno", pensou enquanto pegava o aparelho. "Como conseguiram inventar um sistema de comunicações em que as frases são desmanchadas em toda a extensão da linha e as palavras che­gam dispersas no aparelho de destino, sendo transmitidas para outro aparelho onde são reorganizadas, de modo que a escuta da conversa não leva a nada?"

Bom dia, senhor diretor. Como vai? Algo novo?

Bom dia, embaixador. Sim, temos algo novo. Temos uma situação de emergência.

Mas, o que houve agora?

Nós acompanhamos todos os passos deles até a fazenda na beira do Roosevelt, conforme meu último telefonema. Hoje de manhã, detectamos uma comunicação fora de padrão, emitida pelo rádio da fazenda, e logo em seguida eles saíram a cavalo, andaram uns vinte quilômetros e continu­aram pelo rio Roosevelt, parando numa pista de pouso aproximadamente cinqüenta quilômetros abaixo.

O embaixador estava inquieto.

Desculpe diretor, mas qual é a emergência?

Aquela comunicação era uma mensagem. Logo em seguida um avião Bonanza saiu do aeroporto de Cuiabá e se dirigiu para a pista, onde pegou os dois. Aí é que vem a situação de perigo. Parece que neste momento estão se dirigindo para a cidade de Manaus.

E então?

Faz tempo que estamos atrás de um grupo de terroristas profissionais de elevado risco. Sabemos que eles vêm mantendo contato com um ale­mão chamado Franz Sauer, que já foi identificado pelo homem da Receita como um dos prováveis cabeças dessa conspiração. Esses assassinos estão em Belém.

O embaixador pareceu confuso.

Belém? Franz Sauer? Então eles já identificaram um suspeito? O senhor pode explicar melhor? — perguntou, sem esconder o nervosismo.

Esse Maurício pode estar indo atrás do Sauer. Deve estar fazendo esse desvio por Manaus, mas cairá em Belém. Ele descobriu que esse alemão freqüenta um órgão do governo chamado Sudam, cuja sede é em Belém, mas não sabe que o alemão contratou profissionais especializados, de fora do país, para eliminá-los.

É difícil compreender que uma organização de tal nível se preocupe tanto com esses dois, não sei se o senhor me entende, mas eles já foram alvo de vários atentados.

O outro talvez tivesse entendido, mas preferiu continuar a sua disserta­ção didática, sem entrar no campo das conjeturas.

O grupo de assassinos contratado por esse Sauer não é um grupo co­mum. E uma verdadeira organização composta de vários grupos. Quem está no comando em Belém é um dos chefes da organização. Por sinal, é brasi­leiro. O pai era capitão do Exército, um médico que se recusou a assinar atestado de óbito de um guerrilheiro que morreu sob tortura e parece que, por esse motivo, ele próprio acabou sendo vítima da revolução. A mãe ficou abatida e doente. Morreu de câncer logo depois. O rapaz era filho único, revoltou-se contra o regime militar e se incorporou a grupos de guerrilha. Mais tarde saiu do Brasil e teve participação na Organização para Libertação da Palestina, OLP, no Iraque, na Chechênia, Bósnia e outros.

E agora ele está de volta ao Brasil. O bom filho à casa torna.

O diretor esperou um pouco para assimilar a impressão de que o embai­xador não estava entendendo a gravidade do momento e acrescentou:

Embaixador, desculpe insistir, mas esses assassinos são muito organi­zados. Faz tempo que estamos tentando pegá-los e ainda não conseguimos. Estamos agora com uma estratégia que pode funcionar, mas é preciso evi­tar que eles cheguem a esses dois que estão caindo na malha deles.

O embaixador compreendeu o perigo e ficou de repente inquieto.

O senhor disse que eles fizeram um chamado em código e depois saíram da fazenda em um Bonanza?

Sei o que o senhor quer dizer. É bem possível que eles tivessem notado alguma coisa estranha e aproveitaram para sair da fazenda, disfarçadamente.

E o restante desse grupo de assassinos? — perguntou o embaixador.

Existe uma mulher que trabalhava para a KGB. É procurada em vários países. Faz aproximadamente um ano que não se tem notícia dela. Já parti­cipou de diversos atentados, é uma assassina fria que sente prazer em ouvir os gritos de dor das suas vítimas. Os outros dois são do mesmo nível.

Então, esses assassinos estariam em Belém, esperando por eles?

Temos informação de que já chegaram a Belém e esperam por esse Franz Sauer.

E a saída deles da fazenda, assim de forma dissimulada, seria porque pressentiram algum perigo?

E outro ponto intrigante. Eles saíram da sede da fazenda a cavalo, tro­caram de roupa, pegaram a voadeira. Um deles, presumivelmente o admi­nistrador, ajudou-os a passar por uma corredeira forte e depois foi até a casa de um morador local, que o levou até onde estavam os cavalos. Lá os dois vaqueiros vestiram as roupas do tenente e desse Maurício e então voltaram para a sede. Ainda não chegaram à sede. Com certeza estão esperando ficar mais escuro para dificultar a identificação.

O embaixador olhou para o agente do FBI, que estava quieto na sua frente.

Nossos satélites fotografaram com precisão a mudança de roupa. Se eles quisessem fazer alguma coisa para dificultar a identificação, teriam trocado de roupa no meio do mato, que os encobriria. Parece, no entanto, que sabiam que estavam sendo controlados pelo satélite e nos queriam mandar um recado.

O senhor acha que eles estavam praticamente nos informando de que iam sair de lá camuflados?

Sem dúvida. Colocando-me no lugar deles, acreditaria que, se eu esti­vesse sendo vigiado por algum bandido, perto da sede da fazenda, eles pode­riam ser enganados pelos vaqueiros com os quais fizeram a troca de roupa. Então, acho que eles queriam enganar quem os estivesse vigiando na sede, para poderem sair disfarçadamente, e, se estavam nessa dissimulação e ainda assim trocaram de roupa às claras, sabendo que poderíamos estar a observá- los, é porque nos estavam enviando uma mensagem.

Então, pelo que o senhor está dizendo, eles estão indo direto para a morte.

Estão enfrentando risco desconhecido. Não sabem, porque não tinham como saber, que o Franz se antecipou e contratou esses mercenários.

Mas estão tomando precauções. Não quiseram sair no avião desse Maurício - disse o embaixador.

Pois é. O avião Sêneca ficou na fazenda. Preferiram mudar de avião, deixando a impressão de que vão passar a noite por lá. Continuaremos vigiando para saber se esse avião fica na fazenda ou que rumo toma.

De fato, se sabem, ou mesmo, se desconfiam de que estão sendo se­guidos pelo satélite e trocaram de roupa a céu aberto, deixando clara a ca­muflagem, tenho de concordar com o senhor. Estão pedindo ajuda. Podem não saber a respeito dos assassinos, mas estão pressentindo o perigo.

O diretor não fez comentários. O leve tom de respeito que sentira na voz do embaixador foi confirmado em seguida.

Muito bom! Bom mesmo, senhor diretor, é o seu campo agora.

Não gostou do tom educado demais da sua voz que poderia dar a im­pressão de que estava transferindo responsabilidade, mas o outro parece que percebeu o momento de fraqueza e foi elegante.

Estamos aqui para ajudá-lo a cumprir essa missão. Nós já tomamos algumas iniciativas que não dependem e nem devem depender do senhor. Estamos todos alertas e à sua disposição.

O embaixador procurou pensar rápido. O momento não era de fraquezas ou dúvidas. O outro lado, fosse lá quem fosse, estava agindo com rapidez.

Diretor, preciso achar esses dois. O senhor me mantenha informado dia e noite. Hoje todo o território da Amazônia deve ser considerado ter­reno minado. Se o que estamos pensando a respeito dessa independência é verdadeiro, muita gente na região já faz parte dos conspiradores.

Também pensamos assim. E, se isso facilita, um Learjet, fabricado pela Bombardier, pertencente à Mineradora Krieger & Koster está pronto para sair. O avião vai vazio para trazer de volta a diretoria que foi até a sede da Sudam. Se o seu agente... Bem, acho que o senhor entendeu.

O embaixador ficou surpreso com a rapidez das conclusões e das inicia­tivas tomadas pela CIA.

Estupendo! Gostaria que a embaixada tivesse uma equipe assim. Acho que a NSA vai acompanhar um Bombardier chegando a Belém ainda hoje.

 

 

                                                          CONTINUA

 

 

                                       AS AMAZONAS

 

"Estas mulheres são muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e en­rolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pêlo, tapadas as suas vergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma destas mu­lheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras um pouco menos, de modo que os nossos bergantins pareciam porco-espinho. "

                       Frei Carbajal

 

Diz a lenda que as índias icamiabas habitavam as terras localizadas perto das nascentes do rio Nhamundá. Existia ali um lago denominado Espelho da Lua, ou Iaci-uaruá, onde todos os anos as índias icamiabas realizavam a Festa de Iaci e lhe ofereciam um talismã retirado do fundo do lago Iaci-uaruá.

A festa durava vários dias, quando então as icamiabas recebiam os índios guacaris, que era a tribo mais próxima, e mantinham com eles relações sexuais.

Os filhos masculinos que nascessem dessa união eram sacrificados, so­brevivendo apenas os que fossem do sexo feminino. Pouco antes da meia-noite, mas depois do acasalamento, as índias mergulhavam no fundo do lago e retiravam de lá um precioso amuleto chamado muiraquitã, de cor esverdeada, que lhes era entregue, por Iaci, a Mãe das Águas, ainda mole, no formato que elas escolhessem. Quando elas voltavam à superfície, o talismã petrificava em contato com o ar.

Cada uma então presenteava o índio, com o qual tinha acasalado, com esse talismã, que tinha poderes mágicos.

 

 

 

 

Alguns desses artefatos estão espalhados pelos principais museus do mundo e também no museu de Santarém, no Pará, perto de onde habitavam as ica­miabas. A pedra talvez seja classificada como jade ou nefrite, e os índios cos­tumavam trazer o amuleto pendurado ao pescoço. É possível que as amazonas tenham se refugiado mais ao norte para fugir dos colonizadores, porém não foram mais encontradas. O amuleto de pedra verde continuou a ser fabricado pela tribo dos índios Uaboí, que também habitam a região de Nhamundá.

A lenda das mulheres guerreiras ou amazonas pode ter nascido na batalha de Termodonte, quando os gregos enfrentaram um exército de mulheres.

Para melhor manejarem o arco, as flechas e as lanças, elas queimariam ou cortariam, na puberdade, o seio direito. A palavra amazonas tem ori­gem no grego, no qual o prefixo de negação "a" vem seguido da palavra "mazós" que significa peito. Daí "a-mazós", ou mulheres sem peito.

Francisco Orellana passou para a história como o primeiro homem branco a percorrer o rio Amazonas. Depois de granjear respeito na luta contra os incas, juntou-se a Francisco Pizarro, em Quito, para outra expe­dição que tinha por finalidade a busca do Eldorado.

Desencontrou-se porém de Pizarro e, com um pequeno navio cons­truído na selva, chegou até o rio Napo, o qual desceu navegando até uma grande embocadura, que era a confluência do Napo com o rio Amazonas. Frei Gaspar de Carbajal acompanhava a expedição e relatou a viagem de Orellana, denominando inicialmente o rio Amazonas de "Mar Dulce".

Depois, impressionado por ter sido atacado por mulheres com arco, fle­cha e lanças, frei Carbajal as comparou às lendárias amazonas da mitologia grega e...

 

   

 

                                                                              

 

                                         

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