Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CRIME DO PODER NEGRO / Ellery Queen
O CRIME DO PODER NEGRO / Ellery Queen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Durante o vôo da Capital para o interior, McCall fêz minucioso exame do 'folheto que o Governador Holland lhe metera em mãos. Era uma publicação da Câmara de Comércio de Banbury,,e tanto quanto McCall podia observar, tratava-se da habitual resenha da C. do C, constelada de estatísticas, como passas num pudim. Segundo a Câmara, Banbury era a terceira das mais importantes cidades industriais do Estado, gabando--se de uma variedade de indústrias, que iam de componentes de automóveis e laminações de metais até firmas eletrônicas de beira de estrada. Sua população, de acordo com o censo de 1960, era de 240 972 habitantes, declarava a Câmara, mas a previsão para 1970 ultrapassava os 297 000, em conseqüência do influxo de três indústrias pesadas a mais. Havia considerável diversidade de grupos étnicos entre os cidadãos, e a propósito disso o folheto que elogiava Banbury parecia um tantinho defensivo, como se não tivesse certeza de que tal coisa pudesse ser classificada como boa ou como ruim. As "relações entre as raças", fazia êle notar, num tom que sugeria algo como pressa, eram "excelentes". A última "perturbação", tal como êle a denominava (McCall sempre ouvira referências ao fato como guerra racial), tinha ocorrido na década de 1920.

 

 

 

 

O Assistente do Governador para Assuntos Especiais, estava mais interessado em cotejar a proporção de pretos e de brancos. Encontrou-a, dada em corpo 8, em nota de pé de página: "Estima-se que a presente proporção de pretos para brancos, entre os cidadãos da cidade de Banbury, esteja perto dos 24%".   Isso representava 70 000 pretos.

Bom número.

As cifras fizeram McCall pensativo. Estava voando para Banbury por ordem do Governador Holland, com a   missão específica ("que alguns dos meus relatórios, Mike" — dissera o governador — "dão a entender que deveria ser chamada missão impossível") de tentar atalhar uma explosão racial. Previa-se que se tal explosão ocorresse (dois dos conselheiros do governador tinham usado a expressão "quando"), sua violência convulsionaria todo o Estado e faria jorrar rios de lava política.

McCall atirou para o lado o panfleto da Câmara do Comércio e recostou-se para pensar bem na situação. Poucos problemas, era a sua opinião, mostravam-se insolúveis. Antes que se adotasse determinada forma de ação entretanto, os fatos tinham de ser bem apanhados. Quando havia seres humanos envolvidos, disso sabia êle, raramente a tarefa se revelava simples.

Havia sempre rodas dentro de rodas. A próxima eleição para a Prefeitura, em Banbury, não era a habitual agitação do partido político local. O homem escolhido pelo Governador Holland para o mais alto cargo da cidade, Jerome Duncan, perderia, com certeza, e perderia feio, se falhasse a missão de McCall, que era a de trazer paz à cidade perturbada. Tal coisa poderia resultar na derrota do governador e de seu partido, nas próximas eleições, que abrangeriam todo o Estado. (O que, por sua vez — pensou McCall, com um sorriso de esguelha — também me levaria a perder o emprego.)

Jamais vira Sam Holland tão grave como durante o resumo que lhe dera da situação, antes de sua partida.

— Não é apenas o meu futuro político e o êxito do partido o que me preocupa, Mike — dissera-lhe o governador. — Perca ou ganhe, daqui a dois anos eu não poderia mais dormir, pensando que, de certa forma, poderia ter evitado o derramamento de sangue, e não o fiz.   Não quero tal coisa, nem na minha consciência nem no meu registro.   Sou vaidoso bastante para desejar retirar-me como um dos melhores governadores deste Estado.

— O senhor já tem isso garantido — dissera McCall.

—   Você acha?   — respondera o Governador Holland, sombriamente. — Espere até brancos e pretos tombarem ensangüentados nas ruas de Banbury, e verá com que rapidez os historiadores me chamarão de vagabundo.   Mas de que estou falando?     Que o diabo me leve!     Não quero gente assassinada ali, Mike. É isso, simplesmente. Mas como se poderá evitar uma colisão frontal, se Harlan James fôr condenado?... Só por um milagre!

— Não sabe, Governador? — McCall dissera, — meu segundo nome é Milagre.

Falava com uma animação que estava longe de sentir.

Harlan James era o violento líder da organização militante negra, de Banbury, que se denominava "Corações Negros". O homem estava sob a acusação de ter violado a lei estadual de sedição. A acusação alegava que na "Corações Negros", "escola para revolucionários", James ensinara seus noviços a fazer bombas e coquetéis explosivos, usando material caseiro. Que, além disso, pregara aos estudantes a necessidade de fazer explodir aqueles estabelecimentos "honky"* de negócios, tanto dentro como fora do gueto de Banbury, que se faziam culpados de discriminação na admissão de pessoal.

Até ouvir aquele resumo, McCall estava certo de que as autoridades de Banbury tinham motivos substanciais para levar o líder negro a julgamento. Mas a informação, conforme o Governador Holland transmitiu a McCall, dizia que o julgamento era, em grande parte, uma manobra política do partido da oposição.

— O Prefeito Potter não pode fazer qualquer declaração pública sobre James antes do julgamento, é natural — dissera o governador. — Particularmente, contudo, êle me informou que acredita estar James metido numa trama.   Diz que o promotor público, aquele fuinha do Volper, está tentando, deliberadamente, promover perturbação racial em Banbury, para que o seu rapaz de loiros cabelos, Horton, seja levado de roldão ao cargo, pelo repincho dos brancos, sob sua divisa de "lei e ordem".   É um tempo impróprio para o velho Potter se retirar da política.   Mesmo com a idade que tem, bateria Horton.   Mas Jerome Duncan, em que pese toda a sua capacidade e todo o seu encanto, é um homem de côr, e se houver violência racial antes da eleição, os brancos do zuarte votarão contra êle, com toda certeza.

Até a última eleição, a máquina eleitoral de Heywood Potter, durante toda uma geração, tinha levado os votos, persistentemente, para o partido do governador. Contudo, o Prefeito Potter envelhecera, e já fazia quatro anos que o pulso de ferro com que dominava a política da cidade enfraquecera. Gerald Horton, dono da estação de rádio local, a BOKO, fora eleito vereador por todos os distritos. E um advogado obscuro, chamado Volper, saíra rastejando de uma trama política, e, através de uma campanha de palavrório sujo, obteve uma surpreendente vitória sobre o titular da promotoria. Seu opositor era um tranqüilo e consciencioso promotor, que trabalhara tranqüila e conscienciosamente durante dezesseis anos, e que logo depois da derrota sofrerá oclusão coronária e recolhera-se a uma silenciosa aposentadoria. Após as vitórias de Horton e Volper, a oposição ganhara firme impulso, e estava preparada para uma séria luta contra o partido situacionista, na disputa de todos os cargos públicos da cidade e do condado.

O Prefeito Potter contava oitenta e quatro anos, e a notícia de que não concorreria dessa vez abrira a vaga em seu partido para a candidatura ao cargo de prefeito. Para preencher essa lacuna avançou o Governador Holland, e, com algum acicate de sua parte, Heywood Potter. Apoiaram, ambos, Jerome Duncan. (Nos bastidores dizia-se que o velho Heywood rosnara: "Com os diabos, Sam, não se trata da côr dele, você me conhece bem, mas é que não tem possibilidade de vencer." E que o governador dissera: "Acho que pode, se tiver o devido apoio, e você e eu, Heywood, somos esse apoio.") Os estrategistas do partido resmungaram, mas o Prefeito Potter falou em quanto Duncan se assemelhava a Carl B. Stokes *, no aspecto e em carisma (argumento que impressionou toda a gente, menos a êle próprio) e Duncan venceu, facilmente, tendo o seu nome sido indicado como candidato do partido.

Analisada friamente, sua chance de ganhar a eleição da cidade mostrava-se inteiramente outra coisa.   Duncan era advogado muito respeitado, presidente estadual da NAACP**, mas tivera pouca experiência política. Poderia esperar a outorga de uma votação negra, virtualmente sólida, mas calculava--se que necessitasse mais de 25% dos votos dos brancos para ser eleito, e êle não era bem conhecido nas classes menos favorecidas da comunidade branca. Para aumentar as dificuldades do candidato, Harlan James, da "Corações Negros", endossara a candidatura de Duncan antes de ser acusado de sedição, não ganhando Duncan, com isso, um novo apoio, mas sim, conforme parecia aos observadores, sendo levado a perder substancial votação entre os eleitores brancos da classe superior.

O opositor de Duncan era o Vereador Gerald Horton, que prometia "lei e ordem" se eleito, "suas esposas e namoradas de novo em segurança pelas nossas ruas", e capitalizando seus quatro anos no governo da cidade em contraste com Duncan "que sobrecarrega o calendário do nosso tribunal com seus frívolos processos em apoio do poder negro!"

A campanha amedrontadora de Horton e a ameaça de instauração de processo por parte de Volper contra Harlan James, menina dos olhos dos militantes negros, tinha saltado como fagulha, inflamando tanto brancos como pretos, e colocando as raças a ponto de se agarrarem pelas respectivas gargantas. Os choques raciais já não se confinavam a explosões ocasionais de violência entre grupos de ginasianos adolescentes. Agora os adultos se envolviam. Os boatos mais selvagens corriam pelas ruas de Banbury. O Prefeito Potter tivera de recorrer a freqüentes visitas à estação de rádio municipal, a fim de fazer apelos pessoais em favor da calma pública. Houve demonstrações por parte de trabalhadores pretos, bem como de trabalhadores brancos, agitadas linhas de piquetes, erupções com apedrejamento de policiais e bombeiros. Em suma, uma fermentação contínua em Banbury. Concordava-se, geralmente, em que se não fosse por Jerome Duncan, a Guarda Nacional já estaria ocupando a cidade. O candidato preto estava em toda parte ao mesmo tempo, serenando os brancos, dizendo, caladamente, aos pretos, que "esfriassem os ânimos", que o que os racistas desejavam era exatamente a violência...   e ia conseguindo, fosse como fosse, conservar a tampa na chaleira em ebulição.

— Mas é apenas uma questão de tempo, Mike — essas tinham sido as últimas palavras do Governador Holland ao despedir-se de McCall. — Quando a tampa saltar, teremos o inferno à solta. Pelo amor de Deus, descubra alguma forma de evitar isso, ou pelo menos de controlar a situação até o dia da eleição.   Penso que depois a fervura baixará.

 

O avião de McCall desceu no aeroporto municipal às 8 e 10 da manhã. Às 8 e 30 encaminhava-se êle para o tribunal do condado, num Ford de aluguel. Não havia tempo de fazer uma visita de cortesia ao prefeito. O julgamento de Harlan James estava marcado para as 9 horas, e do aeroporto até o centro da cidade de Banbury havia vinte minutos de trajeto.

Ajustou o rádio para 1410 K/hz, freqüência da emissora de Gerald Horton: queria ouvir a posição oficial de Horton quanto ao julgamento do líder negro. Aconteceu que a BOKO dava as notícias locais às horas exatas, e êle perdera a oportunidade de ouvi-las. As meias horas eram dedicadas a sumários de notícias nacionais e internacionais, o que nada lhe disse sobre o caso Harlan James. Quando percebeu isso e tentou outras estações, McCall tinha perdido também seus noticiários locais.

Disse um palavrão e desligou o rádio.

O tribunal do condado ficava de frente para uma praça, e a praça estava repleta de gente, com grande maioria de pretos. Um em cada quatro ou cinco desses pretos usava jaqueta de vinil brilhante, com insígnia branca, circular, nas costas. Dentro do círculo branco havia um coração preto, e, ferindo esse coração, uma adaga — branca.

Era aquela a primeira vez que McCall via o emblema da "Corações Negros", embora tivesse lido a medíocre literatura existente sobre sua história. Segundo o relatório do FBI, que lera, rotulado de "possivelmente apócrifo", tanto o nome como o símbolo da organização negra militante tinham sido inspirados num discurso feito no Senado dos Estados Unidos por um segregacionista do Sul, depois da decisão original do Supremo Tribunal desagregando as escolas públicas.     O senador teria dito (a citação jamais foi encontrada no Registro do Congresso): "O brilhante punhal branco do cavalheirismo sulista deveria ser enterrado no coração negro dos responsá­veis por esse assassínio traiçoeiro dos direitos humanos".

Corria a estória de que Harlan James, então menino de doze anos, ouvira, por acaso, uma discussão de seus pais a respeito do discurso do senador, durante a qual seu pai comentara, amargurado: "Para êle, direitos humanos são os dos todo-poderosos brancos. Aos olhos deles, nós não somos humanos."

Considerava-se que o comentário do pai mergulhara fundo na memória de jovem negro, para vir à tona em 1968, quando o grupo militante, recentemente formado sob sua liderança, estava procurando um nome. A distorção da metáfora do senador, pondo-a a serviço da causa negra, encantou a comunidade de côr, independente dos pontos de vista pessoais, e desalentou qualquer propósito de persuasão por parte dos brancos. Astutamente, James jogou com variações desse tema, em seus discursos. Usava, repetidamente, as expressões "de coração negro" como sinônimo de "perverso", e "branco" de "virtuoso", em seus amplos ataques satíricos em relação às atitudes e ações dos brancos. Em sua peroração, entretanto, nunca deixava de tornar bem claro o que queria dizer: "Do fundo do meu negro coração dou graças a Deus por ninguém me haver jamais dito impunemente: 'Isso é branco de sua parte, Harlan'; porque o branco, e não o preto, é que é a verdadeira côr da perversidade!"

Alguns dos homens que usavam a jaqueta da "Corações Negros" levavam faixas. Suas mensagens iam de um simples LIBERTEM HARLAN a um selvagem O PROMOTOR VOL-PER E O JUIZ GRAHAM SÃO SUÍNOS RACISTAS, através de uma beligerante CONSPIRAÇÃO HONKY!

McCall estacionou seu carro alugado numa rua lateral, fora da praça, bem distante da multidão que se apinhava no tribunal. Havia filas de policiais colocados atrás de barricadas de madeira, nos degraus do tribunal, e êle teve mais trabalho para passar por esses policiais do que para atravessar a praça abarrotada de gente. Conseguiu-o, afinal, usando o "abre-te, Sésamo" que não gostava de exibir: o único emblema de ouro, que o identificava como assistente especial do governador.

Dentro do tribunal era um pandemônio. A despeito dos esforços da polícia, um excesso de lotação, para a qual não havia espaço na sala do tribunal, enchia os corredores e a escadaria que levava ao andar superior. Fosse como fosse, McCall conseguiu abrir caminho a contrapelo, como um salmão, e acabou por dar consigo na linha de frente da multidão, diante da sala do tribunal que estava marcada como 2A. A porta dupla estava fechada e dois musculosos oficiais de justiça mantinham-se de costas, apoiados nela.

Um jovem de jaqueta da "Corações Negros", e uma mulher branca, de meia-idade, mal aprumada, estavam na vanguarda dos que esperavam àquela porta, e, aparentemente, foram os primeiros a ter a entrada barrada. Discutiam alternadamente com os oficiais de justiça, lançando olhares furiosos entre si.

McCall usou de novo seu "abre-te, Sésamo". O selo de ouro do governador e a legenda embaixo fêz que o oficial de justiça mais próximo   olhasse   agudamente   para   McCall.

— É autêntico, Bill — disse êle ao companheiro. — Deixe passar o cavalheiro.

Uma das portas se abriu não mais do que 30 centímetros. E enquanto McCall se torcia para passar por essa abertura, ouviu alguém, atrás, exclamar:

— Como agüentar isto?   Como é que vocês deixam esse honky entrar e nós temos de gelar aqui fora?

O oficial de justiça respondeu:

— Acontece que esse honky é o Sr. McCall, representante do governador.   Para trás!

Passavam, agora, muitos minutos das nove horas, mas a poltrona do juiz ainda se conservava desocupada. A grande sala do tribunal parecia estar cheia de abelhas. Todos os lugares, na secção de espectadores, estavam ocupados. Uma fileira de pessoas de pé colocava-se contra a parede do fundo. As alas laterais, bem como a central, mantinham-se livres. Os espectadores pareciam eqüitativamente divididos entre brancos e pretos. A contrário do que acontecia lá fora, entre a multidão, um preto, em cada três, usava a jaqueta da "Corações Negros". As passagens estavam sendo patrulhadas por policiais de aspecto nervoso, sendo que quase a metade deles era composta de pretos.

McCall descobriu uma cadeira vazia na secção da imprensa, na parte da frente, e única desocupada na sala do tribunal. Mais que depressa forçou passagem para lá, através da ala central. Na cancela, um meirinho lhe barrou a entrada, tendo McCall de fazer brilhar novamente seu escudo. Ganhou o lugar.

Sete homens e uma mulher sentavam-se na secção da imprensa, a mulher ao lado da cadeira vazia que McCall tomara. O moço sorriu para ela, e ela devolveu-lhe o sorriso, com franca curiosidade. Era esbelta, quase magra, do tipo que usa tweed; morena bastante atraente; andava ali pelos trinta anos. Tinha os olhos reluzentes e escuros, os malares altos como os dos índios, que sempre o tinham atraído numa mulher, embora se dissesse que a variedade de atrativos femininos capazes de embeiçar McCall rivalizavam com os produ­tos Heinz.*

— Ôi — disse ela, em voz   amistosa. — Sou Maggie Kirkpatrick, do Post-Telegram de Banbury. Quem é você?

— Mike McCall.

— Jornal de fora, ou um dos serviços telegráficos?   Acho que nunca o vi antes. .

Êle sacudiu   a cabeça negativamente:

— Não sou repórter.

— Mike McCall.

Os olhos escuros fulguraram.

— Não é verdade. Mike é apelido para outro nome que não seja Michael?

— Micah.

— É isso! Nunca posso me lembrar.   Não me diga que é, realmente, o famoso Assistente do Governador para Assuntos Especiais?

McCall careteou um sorriso.

— Explique o   "famoso".

— Não me referi às suas proezas como quebra-galhos de Sam Holland — disse Maggie Kirkpatrick, por sua vez careteando um sorriso. — Estava-me referindo à sua reputação quando a 1'amour.

— Você será péssima repórter se acreditar em tudo o que dizem.

— Essa notícia parece bastante persistente. Dizem que todas as beldades da capital já tiveram seu fraco por você, e que todas as mães caem sobre os joelhos trêmulos, à noite, e rezam para que as filhas consigam levá-lo ao altar antes que você consiga arrastá-las para a cama.

— Se é assim, ainda não fui apanhado.

— Dizem que você é escorregadio como uma enguia.

— Faça uma tentativa — disse McCall. — Verá que sou fácil de fisgar.

— Com que propósito? — retorquiu Maggie Kirkpatrick.

— Ah! — disse McCall, misteriosamente, encerrando o assunto com um sorriso.   Olhou em torno de si e começou a estudar o pessoal que ali estava.

Enquanto fazia essa inspeção, a jornalista o inspecionava, por sua vez, com crescente interesse e admiração, como acontecia com a maioria das mulheres. McCall não impressionava as pessoas, fossem homens ou mulheres, como um homem grande, o que era mais caso de proporção do que de tamanho, como acontece com muitos que são naturalmente atletas. Era graça muscular, mesmo em repouso. Jogara como zagueiro no Noroeste e jamais se permitira entrar fisicamente em decadência. Tinha um rosto sólido, vigoroso, da espécie que os outros homens não podiam compreender que as mulheres considerassem bonito, e seu cabelo escuro mostrava apenas a medida certa de um grisalho prematuro.

Maggie Kirkpatrick suspirou e desviou os olhos. Mamãe — pensou ela — se você ainda estivesse conosco já teria caído agora mesmo de joelhos.

McCall estava dando especial atenção às mesas dos contendores. À mesa do promotor sentavam-se dois homens, brancos. Um era gorducho e rosado, com grandes olhos úmidos e cabelo de um grisalho areia, cortado à moda da Marinha. O outro, obviamente assistente seu, era um jovem aparentemente nervoso. A mesa da defesa estava ocupada por um só homem, preto, usando um terno azul conservador e gravata cinzenta de seda. Sempre manuseando os papéis que tinha diante de si e lançando olhares preocupados para o relógio do tribunal.

— Os dois tipos de pele branca — Maggie Kirkpatrick disse — são o Promotor Volper: aquela lêsma côr-de-rosa de olhos papudos, e o seu assistente.   O preto. . . desculpe... o homem de côr que está à mesa da defesa é Prentiss Wade, advogado de Harlan James.

— Onde está o cliente dele? — indagou McCall.

Maggie encolheu os ombros.

— Está livre, sob fiança de dez mil dólares, e penso que Wade começa a transpirar.   Tem um assistente também, e há alguns minutos mandou-o sair com algum recado.   Provavelmente para ir ao telefone e descobrir por que o James ainda não está aqui.     Isto pode começar com uma bomba.. .

Antes que McCall pudesse responder, o meirinho bateu as suas pancadas:

— Todos de pé!

E o juiz veio lá de dentro, drapejante, e instalou-se sobre o estrado.

 

O Juiz Graham era um homem aparentemente frágil, maxilar obstinado, e cabelo branco rebelde, o que levou McCall a pensar no falecido Senador Dirksen. Mal o tribunal fora declarado em sessão — as pessoas ainda estavam voltando a sentar-se — quando um jovem de côr, com aparência de estudante, entrou apressadamente na sala, atirou-se numa cadeira à mesa da defesa, e cochichou alguma coisa no ouvido de Prentiss "Wade.   O advogado negro pareceu aterrado.

O juiz tinha franzido a testa, ao observar que o acusado não estava à mesa da defesa.   Perguntou a Wade:

— Advogado, onde está o seu cliente?

O advogado negro ergueu-se rápido:

—   Meritíssimo, estava combinado que o  Sr. James   se encontraria comigo aqui, esta manhã, a um quarto para as nove.   Não apareceu.     Meu associado, Sr. Barker, que aqui está, acaba de falar ao telefone com as duas pessoas mais chegadas ao meu cliente.   A irmã do Sr. James, com quem êle mora, informa que aquele senhor não foi para casa na noite passada e que desde então não tem notícias dele.     A outra pessoa com quem o Sr. Barker falou foi LeRoy Rawlings, vice--presidente da   "Corações Negros"   e o   amigo mais   leal do meu cliente.     O Sr. Rawlings não tem, igualmente, notícias do Sr. James, nem faz idéia de onde êle possa estar.   Sei que meu cliente tinha toda a intenção de se apresentar aqui, Me­ritíssimo, de modo que só se pode ter retardado por alguma circunstância imprevista.   Peço a indulgência do tribunal por alguns poucos minutos mais.

O Juiz Graham relanceou os olhos para o relógio.

— Quase nove horas e um quarto, Sr. Wade.   Concedo-lhe quinze minutos para fazer novos telefonemas, na tentativa de saber o que aconteceu ao acusado.

Usando o seu martelo, disse:

— O tribunal está em recesso até as nove horas e meia.

— Todos de pé! — berrou o meirinho.

O juiz encaminhou-se para a sua sala.   Um homem uniformizado interceptou-lhe á   passagem e   sussurrou   algo, ràpidamente, em seu ouvido.   Êle se voltou imediatamente para os advogados, que estavam de pé atrás de suas mesas.

—   Tenho uma mensagem pedindo-me que faça contato com o chefe de polícia para tratar de assunto referente ao acusado.     Sugiro que nem o promotor nem o advogado de defesa deixem o tribunal enquanto eu não souber o que se está passando.

Dez minutos mais tarde o Juiz Graham reapareceu.   Parecia colérico e espantado.

—   Sr. Wade, acabo de falar ao telefone com o Chefe de Polícia Condon.   Diz êle que há cerca de trinta minutos recebeu um telefonema da emissora BOKO.     Não o aborrecerei com os pormenores do sumário que a BOKO fêz sobre a   situação,   porque   desejo   ouvi-los   pessoalmente;   a   BOKO pretende levar ao ar o assunto completo num noticiário especial, às 9,50. Ouvirei a transmissão em meu gabinete, e os cavalheiros da promotoria e da defesa estão convidados a ouvi-la comigo. Por ora é suficiente dizer que o Chefe Condon me assegurou que o acusado não comparecerá hoje à corte e que sua ausência é deliberada, um ato de inequívoco desafio a este tribunal.

O advogado negro disse, rapidamente:

—   Lamento, Meritíssimo.   O tribunal tem a minha palavra de que não tive idéia nem aviso de que meu cliente pretendia esquivar-se à fiança.     Acho isso   realmente difícil de acreditar, com as devidas desculpas ao tribunal e ao chefe de polícia.

— Compreendo perfeitamente seus sentimentos, advogado, e tem a minha solidariedade por ter sido colocado nessa posição.   Contudo, através da informação que acabo de receber, não parece haver dúvidas sobre o fato.

Numa voz bastante ácida, o Juiz Graham disse, então:

— A fiança do acusado é, de agora em diante, declarada confiscada.   Ainda mais, este tribunal emitirá uma ordem para sua prisão. O tribunal suspende os trabalhos. Cavalheiros?

—   Que pensa disso, Sr. McCall? — perguntou Maggie Kirkpatrick, em meio à confusão e ao falatório do tribunal que já se ia esvaziando.

— Chame-me Mike e eu lhe direi, Senhorita Kirkpatrick.

— Se me chamar de Maggie.

— Maggie.

— Mike.   Agora, responda a minha pergunta.

— Que se pode pensar?

McCall sorriu.   Estava longe de sorrir, por dentro.

— Sou o pior dos adivinhadores deste mundo.

Relanceou os olhos para seu relógio de pulso.

— Aquele noticiário começa dentro de onze minutos.

— Tem rádio em seu carro?

— Sim.

— Então, temos muito tempo.. .

— Nada disso.     Não estacionei junto do tribunal.     Vi aquela multidão que estava na praça e levei o carro para uma rua lateral.

Maggie meteu suas notas, de qualquer maneira, na bolsa, cujo tamanho era supergigantesco, e agarrou o braço dele.

—   Então, vamos esticar as pernas.     Que está fazendo, afinal, em   Banbury, Mike?   — perguntou   ela,   enquanto   se dirigiam apressadamente para a saída. — Qual é o ponto de vista de Sam Holland em relação a Harlan James?

— Óbvio — disse McCall. — O governador quer evitar perturbação da ordem em Banbury.

— Que disse sobre o governador?

Quem perguntava era outro jornalista, de orelhas acabanadas.

— A conversa é particular, George — disse a   Senhorita Kirkpatrick, com um doce sorriso, arrastando McCall para outro lugar. — Por aqui, sei de outra saída.

Levou-o, assim, para a escada dos fundos.

— Obrigado — disse-lhe McCall. — Eu não gostaria de presidir agora a uma conferência com a imprensa.

— Não me agradeça, Mike.     Meu propósito é estritamente egoístico.   Eu quero notícia exclusiva.

— Claro que quer.   Mas por que eu a daria a você?

— Porque o Post-Telegram e eu estamos do lado do governador, e os outros jornais de Banbury não estão.   O Press-Time seria capaz de estrangular os próprios filhos, coletivamente, para vender mais um jornal, por isso são pela perturbação da ordem: quanto mais sensacional, melhor. O News-Mirror está inteiramente empenhado na campanha de Gerry Horton. E os jornais de fora não contam.   Tudo isso somado dá que você e eu estamos no mesmo time.   E então?

— Está   sendo muito   persuasiva — disse McCall.   — Okay, vou verificar sua informação, e, se estiver sendo sincera, já arranjou um negócio.

— Sou sincera — afirmou Maggie Kirkpatrick.

Ele tomou uma rápida decisão.     Os olhos cinza-gêlo da moça pareciam remotos, mas não desonestos.

— Toque aqui — disse-lhe.

Ela apertou-lhe a mão, como um homem.

— Isto significa que você não terá segredos para mim.

— Alto lá, Maggie — sorriu McCall. — Eu não concordei com tal coisa.     "Dar-lhe exclusividade" significa que quando eu tiver de dizer alguma coisa a algum órgão, você será a primeira a saber.

Maggie encolheu os ombros.

— Bem; eu tentei, mas não colou.   Recorda-se do meu nome?

— Kirkpatrick? Com certeza. Eu desenterro os gaélicos.

Disse essa frase com um sotaque um tanto rude.

— Escocês? — fêz Maggie, admirada. — De certa forma tomei você por um dos nossos, um irlandês.

— Um pouco de cada — falou McCall.   Olhou para o relógio. — Dois minutos para começar.   Quer ouvir comigo, Maggie?

— Não, preciso correr para a redação.   Ouvirei do meu carro.   Também está estacionado na rua.

Voltou-se, com um cumprimento de cabeça, eficiente, quase lacônico.

Ele ficou a vê-la entrar num Odsmobile de pára-lamas dentado, com uns dez anos de idade, e sair como uma flecha, deixando o meio-fio como um policial. McCall subiu para o Ford, ainda sorrindo. Ligou o motor, deixou-o em ponto morto, torceu o botão do rádio e sintonizou rapidamente a freqüência da BOKO.

Um disco estava chegando ao fim. Foi seguido pelo comercial de uma loja de roupas em liquidação. Então, o locutor, com o nome inacreditável de Cubbage, entrou:

— Interrompemos o show de Dave Banner para trazer--lhes um boletim de notícias que será seguido de informações especiais.

"O líder da "Corações Negros", Harlan James, não compareceu ao início de seu julgamento por sedição, na corte distrital 2A, no tribunal do condado, marcado para esta manhã. Há alguns momentos a redação da BOKO soube que a fiança de dez mil dólares estabelecida para garantir a presença do líder da "Corações Negros" foi confiscada, e que o Juiz Wendell Graham, que presidiu o tribunal, emitiu ordem de prisão contra o Sr. James.   Agora, a informação especial:

"Às 8:30 desta manhã um embrulho foi entregue a esta emissora por um mensageiro negro que não se identificou. O embrulho continha um carretel de fita para gravador, e também uma carta assinada a tinta por Harlan James. A carta, escrita à máquina e endereçada ao "Departamento Noticioso, Estação BOKO" dizia o seguinte:

"Cópias desta carta e duplicatas da fita gravada fo­ram enviadas a todas as emissoras de rádio e TV desta área. Eu anuncio aqui, publicamente, que não me submeterei a julgamento, no tribunal dos suínos racistas do distrito do suíno racista Juiz Wendell Graham, sob a falsa acusação de sedição, levantada contra mim pelo suíno racista que é o promotor do distrito, Volper.

Ocultei-me para me proteger. Contudo, planejo permanecer na área geral de Banbury.

Desejo que fique absolutamente claro que nenhum de meus parentes de sangue, nem a irmã em cuja casa tenho morado, nem qualquer irmão da organização "Corações Negros", nem nossos funcionários, sabem onde estou. Estou-lhes ocultando, de propósito, meu refúgio, de forma a impedir que sejam perturbados pelos suínos racistas da polícia, que de outro modo os poderiam molestar a fim de obter a revelação do meu paradeiro. Eles o ignoram.

A fita gravada anexa contém mensagem dirigida a meus irmãos e irmãs de côr, a qual peço, seja levada ao ar. Enviarei à emissora outras fitas gravadas, contanto que esta vá ao ar; esta é uma forma de me manter em contacto com meu povo, que acredita em mim.

Não creio realmente que alguma das emissoras às quais estou enviando estas fitas as leve ao ar, porque as estações de rádio e de TV da área de Banbury têm, com freqüência, demonstrado preconceito racial contra os negros.   Por que não levá-las ao ar? — por quê?

Do fundo do meu negro coração, Harlan James."

 

O locutor continuou:

"A despeito da natureza inflamada da gravação de Harlan James, a estação BOKO resolveu levá-la ao ar. Nossa decisão é fruto da convicção da BOKO de que o público, branco e negro, tem o direito — realmente o dever cívico — de ouvir dos próprios lábios de James a espécie de homem que êle é, e que espécie de violenta doutrina revolucionária está pregando. Acreditamos que essa mensagem gravada em fita, longe de ganhar para a causa de James alguns convertidos — e esta é, evidentemente, a razão pela qual êle no-la enviou — alertará os cidadãos decentes e respeitadores da lei contra o perigo exposto por esta mensagem e por este homem.

"A voz que ouvirão a seguir é a de Harlan James, na fita gravada que nos enviou, que será transmitida na íntegra, a não ser por certas obscenidades que não podem, naturalmente, ir para o ar, que nossos técnicos cortaram:

Houve uma pausa. Então, uma voz vibrante, com registro de baixo, disse;

"Meus irmãos e irmãs negros, eu vos saúdo do fundo do meu negro coração. Aqui fala Harlan James, presidente da "Corações Negros".

Os quinze minutos da arenga que se seguiu pareceram a McCall material muito fraco. Era a habitual lista de queixas contra o mau trato honky que se dava ao homem de côr, tudo verdadeiro bastante, e uma exortação amarga aos negros para "Erguerem-se e lutar" pelos seus direitos. A linguagem estava deliberadamente salpicada de cortes, mas nada, no discurso de James, apelava para a revolução violenta, conforme o locutor Cubbage insinuara. Se algo de subversivo havia na linguagem de James, McCall não o percebeu. Sua objeção principal contra isso estava em nada haver de novo, ali, e no fato de ser com freqüência desconexa e difícil de seguir, e de os líderes de outros movimentos negros militantes terem dito as mesmas coisas com muito mais clareza e imaginação.

Uma passagem típica foi a seguinte:

"Os dias em que os negros podiam ser despedidos como "pretos" pelo Sr. Charlie, foram-se para sempre. Agora o homem de côr caminha pelo meio da calçada e deixa que o honky se afaste de seu caminho! Agora, não oferecemos a outra face, quando somos esbofeteados: reagimos com redobrada força! Quando Whitey usa um cabo da vassoura em você, rebente-o com ambos os canos de um revólver, antes que êle possa apertar o gatilho. Meus irmãos e irmãs negros, querem romper as cadeias da escravidão? Não recuem uma pole­gada sequer diante da ameaça".

Seria necessário ter o espírito de um segregacionista branco para interpretar isso como perfeita recomendação à violência, pensou McCall. Se um branco advogasse as mesmas táticas contra negros ameaçadores, isso seria considerado, pela sociedade dominante, como autodefesa permitida.

A descrição feita por James de desaforos e opressões já tinha sido feita dezenas de milhares de vezes tanto por negros como por brancos. Os clichês de "honky", "escravagista", "suíno racista", "explorador", "opressor" estavam todos ali. Mesmo as palavras cortadas podiam ser identificadas, pelo contexto em que eram usadas, como as obscenidades estéreis empregadas como valor chocante, agora já gasto, pelos grupos radicais, tanto negros como brancos.

Não se apresentavam soluções. "Fiquem firmes em seu lugar. Respondam aos ataques. Cuspam na cara de Whitey". Como se o simples desafio fosse um fim em si mesmo. Era a estática filosofia da cólera, nada oferecendo, a não ser satisfação à masculinidade.

Talvez, pensou McCall, isso seja suficiente para um negro, que foi moldado para ser algo menos do que um homem pelas forças da sociedade branca. Talvez seja esse um passo necessário na evolução de uma comunidade realmente integrada. Mas oferecia, sem dúvida alguma, pouca esperança de que a paz fosse estabelecida para breve.

Com toda a sua falta de criatividade, o discurso de Harlan James latejava de poder. O homem era, naturalmente, um animador do povo, intenso, emocional, pessoalmente magnético. Era fácil compreender, depois de ouvir-lhe a fala, como James reunira o apoio leal da sua "Corações Negros".

Depois que a fita terminou, McCall deixou-se ficar ali sentado por alguns momentos, meditando. Então, dirigiu-se para a Prefeitura.

 

Não havia ninguém na sala de espera do escritório do Prefeito Potter, na Prefeitura, a não ser a recepcionista.

E era bastante.

Toda a sua vida — pelo menos tanto quanto podia recordar — McCall tivera um fraco pelos cabelos castanho-averme­lhados. Isso era curioso, porque sua mãe fora loira, e êle não podia se lembrar de nenhuma mulher importante da sua infância, inclusive professoras, com cabelos daquela tonalidade que jamais deixava de fazer com que êle se voltasse. Talvez o caso viesse de uma viagem esquecida a algum museu, e a lembrança de um quadro de Ticiano, embora houvesse uma diferença sutil entre o cabelo da côr chamada ticiânica — um castanho-alaranjado — e o castanho-avermelhado. Contudo, aquilo tivera início, e êle nunca pudera ver uma jovem de cabelos castanho-avermelhados que não considerasse atraente, por muito que suas feições fossem insípidas. Tal fenômeno era um dos mistérios pequenos de sua vida, como a paixão por haggis.*

A moça que estava à mesa da recepção tinha cabelos cas­tanho-avermelhados autênticos, pintados pela natureza, e não pela química. Mesmo sem cabelo de tal côr êle a teria considerado atraente: olhos verde-mar, pele clara, sem manchas, busto com um desenvolvimento que os fuzileiros navais dos Estados Unidos chamariam de "saliente".

No momento em que êle pousou pela primeira vez os olhos nela, as mãos da moça estavam abaixo do nível do topo de sua mesa.

McCall disse:

— Posso ver sua mão esquerda?

A moça ergueu os olhos, surpreendida.

— Desculpe...

A voz combinava com o resto — nível alto, um tantinho para rouca, sem ser corrompida pela inflexão provinciana.

— Sua mão esquerda, por favor.   Gostaria muito de vê-la. Ela ergueu as mãos, olhando para elas, espantada.

—   Graças a Deus! — exclamou McCall, adiantando-se. — Meu nome é Mike McCall.   Você é a secretária do Pre­feito Potter?

— Isso mesmo.   E também sua recepcionista e moça de recados.   Sabe-se até que o prefeito chora no meu ombro.

— Êle não é tolo, em sua idade, e menos seria na metade dela.

McCall observava a moça com prazer.

— Gostaria muito de saber seu nome.

— Laurel Tate.

— Laurel Tate — repetiu êle, como um gourmet que provasse uma deliciosa receita nova.

A moça tornou a olhar para a própria mão esquerda, as sobrancelhas franzidas. Subitamente, atirou a cabeça para trás, e riu.

— Senhor McCall.   Eu o atenderia imediatamente se lhe dissesse que sempre deixo minha aliança em casa.

— Verdade?

—   Não, por isso é que não posso dizer-lhe tal coisa, honestamente.   Não uso aliança.

— Porque não é casada?

— Essa é a razão habitual.

— Não sei.     As coisas   mudam   depressa hoje   em   dia. Seja como fôr, eu quis ter certeza.

—   Sr. McCall, eu adoraria ouvir mais coisas desse tipo — disse Laurel Tate — mas tenho trabalho a fazer para meu patrão, portanto devo indagar em que lhe posso servir.   E não me dê a resposta habitual! — acrescentou, rapidamente. — Eu não o disse com essa intenção.

McCall aproximou-se e descansou uma nádega na ponta da escrivaninha dela.

— Não me parece possível lembrar-me do que vim fazer aqui.

— O senhor é irlandês, não é?

O sorriso dela era enceguecedor. Êle jamais vira dentes tão belos.

— Pela metade.   A outra metade é escocesa.

— Felizmente, a parte lisonjeira é só de cinqüenta por cento!     Se fosse cem por cento, o senhor seria uma ameaça à saúde pública.   Obviamente, Sr. McCall, veio até aqui para ver o Prefeito. . .   McCall — disse ela, subitamente. — Não disse Mike McCall? Mike McCall!   O senhor é o...

— Sou o...                                          

— Oh!

O rosto pálido da moça se fizera vermelho-coral.

— Lamento muito, Sr. McCall!   Se eu tivesse sabido!... O prefeito está em conferência, exatamente agora, mas acho que não demorará senão alguns minutos mais...     Por favor, sente-se.

— Não podia chamar-me Mike?

O tom coral se acentuou.

— Não acho, realmente...

— Mike, ou queixo-me de você ao governador.

— Não faça isso. . . Mike...   preciso do meu emprego. — Tinha uma covinha, também. — Mas, por favor, não diante do prefeito.   Êle é antiquado, no que se refere às suas secretárias.

— Está bem, só quando estivermos a sós.   A propósito, seis e meia da tarde é cedo demais para você?

— Cedo demais para quê?

— Jantar.     Virei buscá-la.

— Tem certeza de que é o McCall do Governador Hol-land? — perguntou Laurel. — Parece mais o intermediário de uma organização em busca de escravas brancas.

— Não respondeu à minha pergunta.

— Eu diria que é muito apressado.

— E é.   Mas estamos numa idade apressada.   Estou correndo impetuosamente, em linha reta e a toda velocidade, para cobrir todo o território que puder antes que algum biruta deixe cair a bomba.   Não me diga, Laurel, que você vai bancar a arisca.

Ela tornou a rir.

— Às seis e meia será ótimo. Como quer que eu me vista?

— Algo simples.   Sou um homem simples.   Onde apanho você?

A moça bateu rapidamente à máquina numa folha de papel de rascunho: "Ap. 2C, 3217 Ralston Road, 884-1796". McCall meteu o papel no bolso, confirmou com a cabeça, e encaminhou-se para uma das cadeiras alinhadas contra a parede mais distante.   Mal se havia sentado quando três homens saíram, de rosto taciturno, e enfileirados, do escritório interno.   E se foram.

Laurel levantou uma alavanca de seu intercomunicador.

— O Sr. McCall, da Capital, está aqui, Senhor Prefeito.

Uma voz alta e calorosa gritou:

— Mande-o entrar!

Heywood Potter estava esperando diante de sua grande escrivaninha oval quando McCall entrou no santuário do prefeito. Era um tipo de homem parecido ao Humpty-Dumpty *, que mal demonstrava ter setenta anos, muito menos oitenta e quatro. Seu rosto cheio, quase sem rugas, estava coroado por um montículo de profunda neve. As sobrancelhas fartas erguiam-se nas pontas, como chifres. Só seus olhos, azuis e estutos, o traíam — eram congestionados, lacrimejantes, de as­pecto muito cansado.

— Mike! — Sacudiu a mão de McCall como se estivesse acionando a bomba de um poço. — Como vai o Sam?

— Melhor do que nunca, Senhor Prefeito — disse McCall. — Mandou-lhe lembranças, e disse-me que lhe contasse que um dos dias mais tristes da vida dele foi aquele em que soube que o senhor vai-se retirar da política.

— Ninguém é eterno.

O velho trotou em redor da escrivaninha e deixou-se cair na cadeira giratória em que se apequenava.

— Um charuto, Mike?

— Não, obrigado, deixei de fumá-los.   Mas ainda gosto de sentir o cheiro, com os outros fumantes.

— Não há razão para que eu deixe — disse o prefeito, mordendo a ponta de um longo charuto verde. — Não na minha idade, depois de setenta anos como fumante.   Sente-se, Mike,   sente-se.

Usou o isqueiro que estava sobre a escrivaninha, aspirou o fumo até considerar-se satisfeito, e recostou-se. Seus velhos olhos pousaram-se em McCall.

— Foi por essa estória de raças, não foi? — perguntou de repente.

— Sim, senhor — disse McCall. — Penso que o senhor sabe que Harlan James não se apresentou esta manhã ao tribunal.

O Prefeito Potter fêz um movimento afirmativo.

— Não apanhei a emissão da BOKO, mas um dos meus auxiliares ouviu.   A propósito, fiz meu pessoal verificar as outras estações de rádio e TV da área.   Todas receberam a mesma carta e a mesma gravação, esta manhã, conforme foi anunciado, só que as outras as receberam através do correio.   A BOKO foi a única cuja entrega foi feita por mensageiro.

— Não é estranho, isso?

— Não, realmente, Mike.   O julgamento estava marcado para começar às nove horas.     E acontece que a distribuição postal aos estúdios é feita entre nove e dez horas.   James deve ter querido que pelo menos uma estação recebesse a carta e a fita gravada antes do início do julgamento.   A única maneira seria servir-se de um mensageiro.

— Mas, por que a BOKO?   Por que não uma das estações de TV, por exemplo?

— Porque a BOKO — disse o velho político, secamente — é a única estação neste lugar onde Judas perdeu as botas com a qual James podia estar certo de que suas palavras imor­tais seriam levadas ao ar.     Não se esqueça que o dono da BOKO é o Gerry Horton, e o que quer que seja de sedicioso por parte de um homem de côr, só pode resultar em votos para Horton.   O que sei é que nenhuma das outras estações pretende levar ao ar aquelas palavras.   Estão dando apenas um resumo, em seus noticiosos habituais.

— O mensageiro foi identificado?

O prefeito fêz, com a cabeça, um movimento negativo:

— Falei com o Chefe Condon.   Ninguém, a não ser o gerente da emissora, Cordes, viu o mensageiro.   Além de afirmar, positivamente, que o homem não era o próprio Harlan James, Cordes não pôde fazer à polícia uma descrição muito viva.

— Levar ao ar o discurso de James parece-me política bastante irresponsável — disse McCall — especialmente nesta ocasião. É coisa destinada a aumentar a tensão na cidade.

— Naturalmente, Mike.   Conforme eu disse, quanto maior fôr a tensão racial, maior a atração do lema "lei-e-ordem" de Horton, para os brancos mortos de medo.

— Que maneira diabólica de ganhar uma eleição!

— As campanhas políticas não costumam ser realizadas nos mais altos níveis éticos — fêz sentir o prefeito. — E duvido que Gerry Horton conheça   sequer a significação dessa palavra.   Sim, Laurel?

A voz adorável da moça dos cabelos castanho-avermelhados veio do interfone:

— O Sr. Cunningham na linha um, Senhor Prefeito.   Diz que é importante.

— Com licença, Mike.

O velho apanhou um dos três fones e apertou um botão:

— Sim, Marsh?

Suas sobrancelhas algodoadas juntaram-se, em preocupação, conforme ouvia. Depois de um momento tirou o charuto da boca, e trovejou:

— Se tivéssemos qualquer dúvida quanto aos motivos do promotor, ela teria levado um pontapé no traseiro agora.   Volper quer distúrbio, é isso.. . — Âh? Não, êle não me ouvirá.   Mas o Mike McCall está no meu escritório, e talvez possa fazer alguma coisa.   Obrigado, Marsh.

O Prefeito Potter bateu com o telefone e, colérico, atirou a cinza do seu charuto mais ou menos na direção do cinzeiro.

—   Foi um elemento do meu pessoal.     Acaba de saber que o sabidão do nosso promotor maquinou uma autorização para a prisão de LeRoy Rawlings, acusando-o de conspiração. Isso pode acender o estopim, que o diabo o leve!

—   Rawlings?   — McCall buscava em   sua memória,   e então recordou-se de onde ouvira aquele nome.   O advogado de Harlan James, Wade, referira-se a LeRoy Rawlings como vice-presidente da   "Corações Negros"   e o   amigo mais   chegado de James.

— Conspiração para fazer o quê? — perguntou McCall.

— Ajudar um criminoso a fugir.

— Sob que fundamento?

O prefeito sacudiu a cabeça.

— Volper declara que há provas de que Rawlings não só tem conhecimento do local onde James está, como foi quem o instalou nesse esconderijo.

— A carta de James à BOKO dizia que nenhum membro da "Corações Negros" sabe onde êle está.

— Não se pode considerar James como parte desinteressada.     Êle desejaria, naturalmente, proteger seus associados. Seja como fôr, Volper prefere não acreditar nele.   Eu próprio mal chego a acreditar.

— Acha que o promotor tem provas de cumplicidade de Rawlings?

— Duvido — disse o velho secamente. — Penso que o jogo de Volper é dar à comunidade negra algo que faça brotar um inferno, agora que James se refugiou, removendo as razões que teriam para se amotinar por causa dele.   Sim, senhor, é isso que eu penso.

— Bela cidade tem o senhor aqui, Senhor Prefeito.

McCall levantou-se:

— Penso que vou trotando daqui para a delegacia de polícia. Que espécie de recepção o senhor imagina que terei ali?

— Distante, meu rapaz.   Oh!   Você vai adorar o meu chefe de polícia. Se eu não achatasse regularmente Jay Condon, êle andaria patrulhando em   ronda noturna pela   zona oeste, alvoroçando o local com brigas   armadas e gás lacrimogênio.

— Parece-me que o maior problema de Banbury é o pessoal que aqui deve fazer cumprir as leis.

O Prefeito Potter cuspiu um fragmento de fumo.

— Por que pensa você que vou afastar-me da política?

O Governador Holland sacudira-se de riso ao dizer que o motivo que levava o Prefeito Potter a deixar a arena política era o desejo de ter mais tempo para cultivar o boudoir. Depois da morte da esposa o octogenário tinha sido visto pela cidade, freqüentando os pontos noturnos, acompanhado de senhoras altamente atraentes — na verdade algumas maduras, mas mesmo essas com a metade de sua idade. Diziam os boatos que Sua Excelência estava gozando um segundo rejuvenescimento. A falecida Sra. Potter não fora o tipo, física ou psicologicamente, capaz   de nutrir   a   libido de   um homem. Olhando para o homem vigoroso ali em sua grande cadeira, McCall bem podia acreditar nos boatos.

Careteou um sorriso, acenou um adeus, e saiu da sala, passando para a da formosa Senhorita Laurel Tate, cuja escolha como secretária do prefeito pareceu tomar, subitamente, uma nova   significação.

Então, McCall envergonhou-se dos próprios pensamentos, beijou o alto dos cachos castanho-avermelhados da surpreendida Senhorita Tate, en passant, e disse:

— Lembre-se, às seis e meia.

E saiu.

 

Passava das onze horas e McCall resolveu instalar-se, antes de visitar a delegacia de polícia. Escolheu o Banbury Plaza. Ficava no coração do distrito central, a curta distância do tribunal do condado, da Prefeitura, e da delegacia de polícia.

Em conseqüência de seu trabalho com o Governador Holland fazê-lo freqüentar estradas, e viver em hotéis ou motéis a maior parte do tempo, McCall adquirira um cordial desagrado pelas acomodações habituais de um quarto de dormir. Instalou-se num apartamento de dois aposentos, que tinha bar e refrigerador na sala de estar.

Quando acabou de se instalar, de tomar um banho de chuveiro e mudar de roupa, já passava meia hora de meio-dia. Almoçou no Salão Revolucionário (riu para si próprio pensando que tinha os olhos voltados para outra espécie de revolução quando planejaram a sala em vermelho, azul e branco) comendo um bife medíocre e torta de rins. Garantiu-se, engolindo duas tabletes de um digestivo, contra um futuro quase certo, e foi para o edifício da polícia às 13:15 hs.

A instalação da polícia ocupava um prédio quadrangular, com quatro andares, datado de 1915, cheio de arabescos de pedra e fragmentos de douradura. O vestíbulo era estreito, de teto alto e ladrilhado sujo. Num arco, à direita, lia-se, em dourado: DISTRITO CENTRAL. À esquerda estendia-se um comprido balcão e uma única porta.   A placa sobre a porta dizia SALA DE IMPRENSA. A placa sobre o balcão anunciava: INFORMAÇÕES. Um funcionário fardado presidia, atrás do balcão. Lia um exemplar do Playboy* , escondido atrás de um jornal da tarde.

Diretamente à frente de McCall, ao fundo do vestíbulo, ficavam os elevadores.

Seria uma pena perturbar o funcionário do balcão de informações, portanto McCall caminhou pelo vestíbulo e consultou o quadro informativo, entre os elevadores. Tomou um deles para o quarto andar.

A porta da sala 401 estava aberta, e McCall entrou. Havia um balcão comprido e diante dele um banco também comprido, totalmente desocupado. Do outro lado do balcão uma porta anunciava no universal letreiro dourado: CHEFE DE POLICIA.

Atrás do balcão havia uma escrivaninha, uma máquina de escrever, colocada sobre uma mesinha, alguns fichários e uma mulher. A mulher usava o uniforme azul da polícia e estava escrevendo à máquina. Vendo McCall entrar, levantou-se e veio até o balcão.

O primeiro pensamento foi que os burocratas de Banbury tinham um gosto discriminatório notável, no que se referia às secretárias. O segundo foi que o cabelo dela era exatamente do tom louro do cabelo de sua mãe. (Ó Freud! Ó Adler!) Tudo o mais, entretanto, era diferente nela. Seus olhos eram de um quente azul-violeta (os de sua mãe eram antes de um frio cinza-verde-mar). Seu corpo, o que êle podia ver sob o fardamento da polícia, era substancial, generoso, mesmo, em todos os lugares indicados, e vigoroso, de uma forma feminina. Garota atlética, sem dúvida. Confirmada pelo profundo tanado da pele, que ia tão bem com o cabelo claro. Provavelmente, a moça nadava como um delfim, cavalgava como uma vaqueira, e fazia proezas no golfe.

Era, também, e McCall o notou com profundo desapontamento, intocável, pelo menos segundo o seu catecismo, que lhe riscava a possibilidade de cortejar qualquer mulher ligada a outro homem por laços legais.   A moça estava usando um brilhante e uma aliança.     E devolvia-lhe a inspeção com ar divertido.

— De início pensei que o senhor fosse um vendedor de aspiradores — disse a jovem policial. — Por causa do olhar número dois que me fêz.   Mas agora compreendo que é um amador, estritamente dessa classe.   Não reparou que os anéis estão na minha mão direita e não na esquerda?

— Desculpe — disse McCall. — Não percebi que estava sendo tão transparente nesse caso.     Não costumo ser assim. Quanto aos anéis, eu estava justamente chegando à conclusão correta.

Conclusão de que, indubitavelmente, a moça era viúva, mas que êle não explicou. Sentia-se bem demais com tudo aquilo.

A jovem corou. Provavelmente êle a ofendera. McCall gostou disso.

—   Senhor? — disse ela.

McCall mostrou sua identificação. O rubor cresceu e espalhou-se para território que êle não podia ver.

— Oh! — disse ela, em voz fraca. — Sinto muito... Eu não sei o que o senhor... — Interrompeu-se e empertigou a cabeça: — Não sinto muito!   Acho que não deveria ser tão abespinhada, Sr. McCall, mas certos olhares que os homens me lançam deixam-me com vontade de subir pelas paredes!

— E com muita razão, sem dúvida — disse McCall. — Peço-lhe desculpas, novamente.   Mas é algo assim como um choque, esbarrar com uma pessoa como você metida num fardamento da polícia.   Vamos fazer de conta que não aconteceu nada, sim?

— Está bem — disse ela, e sorriu.   Êle retribuiu o sorriso. — Penso que quer ver o Chefe Condon, Sr. McCall. Êle ainda não voltou do almoço.   Deve chegar a qualquer momento, entretanto; se o senhor não se importa em esperar.

— Esperarei — disse McCall. — Enquanto espero, talvez você me possa informar: LeRoy Rawlings já foi localizado?

— Há alguns minutos.   O Chefe pediu à Seção de Comunicações que o mantivesse informado, e acabam de telefonar que uma equipe de investigadores comunicou pelo rádio que tinha feito o cerco.

— Então não sabe se realmente o trouxeram?

— Acho que ainda não houve tempo.

— Para onde levarão Rawlings?

— Depende do   que resolverem,   se   registrá-lo   primeiro ou começar pelo interrogatório.   As prisões são registradas no distrito central, no andar principal.   Provavelmente o interrogarão no gabinete dos investigadores.   É no segundo andar.

—   Obrigado, guarda.

McCall balançou   a   cabeça:

— Não consigo me acostumar a chamar de guarda uma mulher tão feminina.

Os cílios loiros da moça baixaram-se sobre as faces.

—   Eu própria detesto isso.   A única coisa que detesto ainda mais é ser chamada Fuzzy.   Meu nome é Beth McKenna.

—   Outra irlandesa?

McCall sacudiu a cabeça:

—   Dois terços das   mulheres   desta cidade parecem   ser irlandesas.

—   Errou outra vez — disse a Policial Beth McKenna com uma risadinha. — Meu nome de solteira era Svensen. Meu falecido marido é que era irlandês.

— Falecido?   Lamento.

Tinha acertado, então.

— Há cinco anos, e a ferida já vai cicatrizando — disse ela, em tom ligeiro. — Agora posso até falar nisso.   Era um tenente da polícia e entrava num depósito de bebidas no momento em que se dava um assalto.   Estava de folga.   Êle e o assaltante dispararam   suas armas   ao mesmo tempo e   mataram um ao outro.   Foi o que aconteceu.

— Você não podia ter estado casada por muito tempo.

— Sete meses.

McCall tornou a sacudir a cabeça.

— Não quero perturbar seu trabalho. Vou-me sentar ali...

— O senhor não me está perturbando em nada, Sr. McCall.

— Eu a ofenderia se lhe pedisse que me chamasse Mike?

— Ofender-me?   Céus, não!     Chamo a metade dos ho­mens deste departamento pelo seu nome de batismo.

"Só para que eu não ponha idéias na cabeça" — pensou McCall, rindo consigo mesmo.   Cada vez gostava mais dela.

— Se você detesta "guarda",   como devo chamá-la?

— Não deveria ser problema — disse a moça.   Também ela tinha uma covinha. — Eu acabo de lhe dizer meu nome.

— Sra. McKenna ou Beth?

— Depende.

— De quê?

A moça olhou firme para êle:

— Chame Beth — disse, subitamente. — Incidentalmente, dois terços   das mulheres da cidade não são irlandesas.   Quase quarenta por cento compõem-se de polonesas, italianas, ou boê­mias, e talvez vinte e cinco por cento são representados pelas negras.     Onde o senhor arranjou as suas estatísticas?

—   Investigação pessoal.     Até o presente momento encontrei três mulheres, incluindo você.     Uma das outras duas chamava-se Maggie Kirkpatrick.

E a outra, pensou êle, é Laurel Tate, e eu tenho um encontro com ela para hoje à noite. Talvez tenha cometido um erro.

— A jornalista?

— Sim.

— Oh!

Era um "oh!" dos mais equívocos.

— É pessoa agradável.

— Isso parece assim como o beijo da morte.. .

— Oh!   Não! Digo isso sinceramente.

— Sei que diz.   Que há de errado com ela?

— Eu disse que há alguma coisa de errado com a Senhorita Kirkpatrick?

— Claro que disse.

— Bem, eu não disse.     Eu disse que era pessoa agradável, e é mesmo.

A coisa correu dessa maneira durante os quinze minutos mais que se escoaram antes que o Chefe de Polícia Condon voltasse do seu almoço. E exatamente antes da entrada do chefe, McCall propôs e a Policial Beth McKenna aceitou, um jantar para a noite seguinte.

O Chefe Condon era um tipo de aspecto coriáceo, costas retas, olhos sombrios e queixo beligerante. Estaria-se aproximando dos sessenta. Não havia em sua cabeça um só cabelo branco. McCall era capaz de apostar que êle ainda podia enfrentar qualquer homem de seu departamento, fosse de que idade fosse.

A Policial McKenna apresentou McCall e informou o chefe sobre o chamado da Secção de Comunicações. Condon grunhiu algo em resposta à informação quanto à prisão de LeRoy Rawlings, apertou a mão de McCall da maneira regulamentar,   e,   corretamente,   conduziu-o   para   seu   escritório particular.

O escritório era maior do que o do prefeito, e continha uma grande escrivaninha. McCall expressou, silenciosamente, a esperança de que esse contraste não refletisse a importância relativa que o americano moderno dava ao policiamento e ao governo de sua comunidade.

— Sente-se, Sr. McCall — disse o chefe.   Sua cadeira giratória, de encosto alto, era maior do que a do prefeito, também.   E forrada em couro autêntico, e não em sintético.

— Em   que  posso servi-lo?

— Servir ao Governador Holland, senhor.   Eu sou apenas   seu moço de recados.

— É muito mais do que isso, segundo tenho ouvido di­zer — falou Condon, secamente. — Ouça, Sr. McCall, não vou discutir com o senhor sobre a divisa "lei e ordem" ou sobre pretos versus brancos.   Diga-me o que deseja.

—   Está sendo bastante franco — disse McCall. — Há alguma pista do mensageiro que entregou a fita gravada e a carta à BOKO?

Condon fêz um movimento negativo com a cabeça:

— Êle entrou no escritório do gerente da estação, colocou a encomenda sobre a escrivaninha e saiu sem dizer palavra.   Ninguém mais o viu, e quando o gerente, um homem que se chama Ben Cordes, abriu o pacote, o mensageiro já se fora.   Cordes calcula que êle tivesse entre 1,75 a 1,80 de altura e 75 & 80 quilos de peso.   Mas não pôde ir além em sua descrição, exceto para afirmar que o mensageiro era um negro retinto.   Diz que, para êle, todos os negros se parecem.

— Então, como sabia que êle não era o próprio Harlan James?

— Diz êle que James esteve na estação várias vezes, o suficiente para que êle pudesse reconhecê-lo.

Os   olhos glaciais do   homem   penetraram   profundamente nos de McCall.

— Mas o senhor não pode estar em Banbury por causa dessa história do James, McCall.     O   governador está preocupado com isso?

—   Está   preocupado   com   uma   possível agitação   racial, Chefe Condon.

O chefe disse, friamente:

—   Podemos manter a lei e a ordem sem interferência da capital,

McCall sorriu e disse, consigo mesmo: "Naturalmente.'"

Em voz alta, respondeu:

— Então o senhor acha que não há qualquer perigo de violência?

— Talvez alguns negros arrogantes possam tentar algo. Não pretendo deixar que isso vá além do estágio de tentativa de incitamento.

— Sim?   E qual é o seu plano para evitar isso?

— O bom e antiquado processo de controlar tumulto, McCall — disse o chefe, em voz arrastada. — O emprego da força que fôr necessária para manter ou restaurar a ordem.

— Gás lacrimogênio?   Armas contra tumultos? — perguntou McCall, com o mesmo sorriso.

— Está claro.   Se necessário.

McCall deslizou o corpo na cadeira, com os pés esticados à frente.

—   O senhor leu o relatório do presidente da Comissão sobre Violência, Chefe?

— Li notícias   a respeito.

— Então deve ter perdido a parte que sugeria a cura das causas da intranqüilidade entre grupos minoritários como abordagem mais sensata na prevenção de tumultos, do que a reação impulsiva que leva a chocar a violência   da   multidão com a violência da polícia.     Naturalmente, de um ponto de vista de longo   alcance, isso   envolve   a   solução do problema duro da pobreza e das sórdidas favelas, mas a Comissão fêz sentir que os tumultos chegam a estourar através de incidentes que poderiam ter sido evitados. A prisão de LeRoy Rawlings, sob acusação de conspiração, por exemplo. O senhor tem, realmente, alguma prova de que Rawlings ajudou Harlan James a se ocultar?

__ Não   fui   eu que obtive   a   ordem, McCall —   disse, bruscamente, o Chefe Condon. — Foi o Promotor Volper. Pergunte-lhe qual é a prova. Para sua informação, a função da polícia é coletar e preservar provas para uso do promotor público, e efetuar as prisões necessárias. Não nos compete garantir a validade da prova. É trabalho do promotor público julgar se a prova é suficiente para solicitar acusação ou para arquivar a informação.

— Tenho diploma de advogado, Chefe — disse McCall, secamente. — Conheço perfeitamente os limites constitucionais a que a polícia se submete. Mas o outro papel da polícia, com demasiada freqüência negligenciado, é evitar o crime. Nesse papel o senhor tem todo o direito legal de indagar do promotor público qual é a prova de que dispõe para solicitar uma prisão, sob pretexto de incitamento possível do tumulto público. Essa simples providência, de sua parte, pode evitar que uma porção de gente seja assassinada.

Numa voz de iceberg, o chefe de polícia disse:

— Dirigimos esta cidade pelos nossos regulamentos, McCall e não pelos de Sam Holland.   Pode dizer ao governador que agradecemos seu interesse por Banbury, mas não precisamos de seus conselhos.

McCall encarou o Chefe Condon durante vários segundos. Então, encolheu as pernas e levantou-se.

— Direi isso ao governador, naturalmente, Chefe.   Mas sugiro que mantenha à mão o número do telefone dele.   Pode precisar, uma dessas noites.

— Será, então, o dia.   Ou noite. — Rapidíssimo sorriso ergueu os cantos da boca de Condon.   Mas perguntou: — Para quê?

— Para lhe pedir que convoque a Guarda Nacional. Foi um prazer conhecê-lo, Chefe. O senhor é, exatamente, o que me tinham dito.

E McCall sorriu amistosamente para o chefe, acenou um adeus e saiu da sala. A Policial Beth McKenna olhou rapidamente para êle, ao vê-lo deixar o escritório do chefe. McCall ergueu os olhos para o céu, e se foi.

Então, enfiou de novo a cabeça pela porta:

— Lembre-se — disse êle. — Amanhã à noite.

"Foi mesmo por aqui que eu entrei?" — pensou êle.

 

McCall tomou o elevador para o segundo andar. O gabinete dos investigadores ficava logo do outro lado do vestíbulo onde êle tinha descido. Um arco encaminhou-o para um longo corredor que terminava à porta do posto policial. Do lado esquerdo do corredor havia um balcão onde estava um sargento fardado, desta vez homem. Uma porta, do lado oposto, anunciava, em letras douradas: INVESTIGADOR-CHEFE.

McCall fêz brilhar seu emblema de ouro, deslumbrando o sargento, a quem perguntou se já haviam trazido LeRoy Rawlings.

— Não, senhor.   A não ser que o tenham levado para o distrito central a fim de registrá-lo.   Quer que verifique?

— Por favor.

Telefonando para o andar de baixo o sargento foi informado de que o vice-presidente da "Corações Negros" ainda não tinha chegado. Pediu, então, que se dissesse ao pessoal encarregado de sua prisão, que notificasse o gabinete dos investigadores, se aparecessem no distrito central.

—   Agora nós os encontraremos, não importa onde apareçam.   A propósito, a Sra. Franks está aí.   Outro grupo a trouxe.

— Quem é ela?

— Isobel Franks, irmã de Harlan James. O homem morava na casa dela e ali viveu até romper a fiança. Ê viúva, e tem uns bons quinze anos mais do que James, que recolheu quando os pais morreram e êle ainda era adolescente. James é solteiro.

— A Sra. Franks está ali? — indagou McCall, indicando a porta do posto policial.

— Sim, senhor.   Está com o Sargento Nixon e o Oficial Spera.

O posto ficava numa sala imensa, cheia de mesas e cadeiras simples. Havia três telefones para cada mesa, um em cada ponta e o terceiro no centro.

Quatro homens, em trajes civis estavam sentados nas diferentes mesas, dois telefonando, dois estudando pastas do arquivo. Outro par estava a um canto, com uma mulher negra, de meia-idade, magra, a boca amarga. Um dos homens sentava-se na beirada de uma mesa, sacudindo a perna. O outro instalara-se ao lado da mulher. Nenhum dos dois falava nem olhava para ela. Apenas sentados. McCall reconheceu a técnica. Ele próprio sentiu-se freado, e fêz um esforço consciente para controlar-se.

Adiantou-se e exibiu sua identificação. O homem sentado na ponta da mesa era grande, loiro, de pescoço taurino. Seu companheiro era pequeno e trigueiro, com líquidos olhos latinos. Não era difícil perceber quem respondia por Sargento Dixon e quem era o Oficial Spera.

O grandão loiro grunhiu:

— Então?

O tom do Sargento Dixon era deliberadamente insolente, mesmo provocante. Com que então a notícia já correra, pensou McCall. O rapaz do governador anda bisbilhotando por aí. Voltem-lhe as costas.

— Então é isto — disse McCall.   Apontou para a mulher, rígida em sua cadeira. — Qual é a estória dessa senhora?

— Ela? — disse o Sargento Dixon e disse-o de tal maneira que McCall teve vontade de esmurrar-lhe a boca. — É a irmã de James.

— Sei disso.   Pergunto o que está ela fazendo aqui?

— O promotor público quis apanhá-la.   Êle deve chegar a qualquer momento.

— Qual é a acusação?

— Não há acusação — falou o homem, arrastando as palavras. — Êle só quer conversar com ela.

A mulher negra e magra, em voz sem tonalidade especial, disse:

—   Nada tenho a dizer ao suíno Volper.   Pela décima vez, quero telefonar para o meu advogado.

McCall olhou para o sargento e depois para o seu companheiro.

—   Os senhores estão impedindo que esta senhora telefone ao seu advogado?

— Ela não é suspeita — disse o Oficial Spera. Tinha uma voz surpreendentemente profunda. — O Supremo Tri­bunal nada disse sobre testemunhas que não são acusadas de coisa alguma terem direito a advogados.   O senhor quer que comecemos a dar direitos a todas as testemunhas de assaltos com as quais falamos?

— A Sra. Frank não é testemunha de assalto.   O promotor   público,   sem   dúvida alguma,   deseja   fazer-lhe   perguntas sobre o paradeiro de seu irmão, e a resposta que ela der poderá incriminá-la.     Assim, ela tem, positivamente, direito a orientação legal.   Por que lhe estão recusando esse direito?

—   Porque Art Volper nos esfolaria vivos se não o fizéssemos — declarou o Sargento Dixon, careteando um sorriso. — Qual é a pergunta seguinte, Sr. McCall?

McCall ouviu a porta do posto abrir-se e relanceou os olhos para ela. Dois investigadores, brancos, estavam trazendo um negro para a sala. Um dos investigadores era alto e esgrouvinhado e seu rosto ossudo tinha um ar melancólico. O outro era baixo e troncudo e mostrava o aspecto de pessoa atormentada. O homem que estava entre eles, negro, magro, mais de 1,90 de altura, tinha a pele bem retinta e o cabelo arranjado à moda africana. Todos os três pareciam estar pelos trinta anos.

Impressionou a McCall o fato de o negro corresponder à vaga descrição do mensageiro, fornecida pelo gerente da BOKO.

Os detetives levaram o homem para o canto. O negro desceu os olhos para a mulher e disse:

— Apanharam você também, heim, Issy?

— Ôi, Roy — disse ela. — Eles não querem deixar que eu chame o Sr. Prentiss Wade.

— Comigo é o mesmo — disse LeRoy, olhando em volta de si para o círculo de rostos brancos.   E acrescentou, com ar natural: — Que esperava você de suínos?

Lançou a invectiva sem veneno, como se fosse um ritual que dele já se esperasse. Aquilo trouxe um brilho furioso ao loiro Dixon, e Spera saltou sobre os pés.

Nenhum dos investigadores que tinham trazido o prisioneiro pareceu preocupado. O esgrouvinhado de expressão lutuosa, disse, em tom de tédio:

— Oh! Sente-se, Spera.   Ainda não se acostumou com esse palavrório?

Spera tornou a sentar-se, lentamente. O detetive esgrouvinhado olhou para Isobel Franks e indagou:

— Quem é ela?

— A irmã de Harlan James — respondeu o   Sargento Dixon.

O homem ficou a olhar:

— Volper perdeu a cabeça?

Dixon ergueu os ombros:

— Eu só trabalho aqui, Tenente. Êle disse que trouxéssemos a mulher, e nós a trouxemos.

O esgrouvinhado sacudiu a cabeça e voltou a atenção para McCall.

— O homem do balcão disse que o senhor desejava falar conosco, Sr. McCall.   Eu sou o Tenente Cox e meu companheiro, aqui, é o Sargento Fenner.

Estendeu a mão, e seu troncudo parceiro fêz o mesmo. Os apertos de mão foram amistosos. Então nem toda a polícia de Banbury dança conforme a música do Chefe Condon, pensou McCall. A não ser que eles ainda não tivessem ouvi­do a música...

McCall fêz um movimento de cabeça, indicando LeRoy Rawlings:

— Qual é   o caso daquele homem, Tenente?

— Talvez   seja melhor conversarmos   em particular, Sr. McCall. Dixon, vigie o homem um pouco, sim?

Dirigiu-se para o canto oposto, seguido de seu companheiro. O Tenente Cox observava McCall com o aspecto de quem sofria de dispepsia crônica.

— Não se importa de nos dizer qual é a sua missão em Banbury, Sr. McCall?   Ou será coisa confidencial?

McCall sacudiu a cabeça.

— Não há segredo.   O governador está preocupado com um possível tumulto racial.     Mandou-me para tentar evitar que isso acontecesse.

O tenente teve um gesto de confirmação.

— Eu esperava que fosse esse o motivo de sua presença aqui.     Talvez possa meter alguma sensatez na cabeça do Promotor Volper.   Esta prisão de LeRoy Rawlings é estúpida. A comunidade de côr vai estourar quando souber que a irmã de James foi detida.

— Ela não está presa, foi o que Dixon me informou — disse McCall. — O promotor público apenas pretende interrogá-la.

— Isso é alguma coisa, seja como fôr.   A não ser que Volper seja capaz de metê-la em cana,   se resolver que ela sabe onde está o irmão.

— Então vamos ver as teorias do Chefe Condon sobre controle de tumultos levadas a efeito — resmungou o Sargento Fenner. — Porque a tampa vai saltar direitinho lá na zona oeste.

— Zona oeste, Sargento? É a zona do gueto?

Fenner confirmou com um movimento de cabeça:

—   Também conhecida como Bairro Negro.     Pelas mesmas pessoas que os chamam "nigger".

A porta do posto abriu-se de novo, dessa vez impetuosamente. O homem gorducho e rosado, de cabelos cortados à moda da Marinha e com olhos de lêsma, que McCall vira na mesa da promotoria do tribunal, naquela manhã, entrou. O Promotor Público Volper alcançou o canto ocupado, um passo antes deles.

Relanceou os olhos para McCall; aparentemente imaginou que êle fosse um novo membro do gabinete de investigadores, e ignorou-o.   McCall teve vontade de esmurrá-lo.

O homem disse, abruptamente, ao Tenente Cox:

—   Já obtiveram alguma coisa de Rawlings?

— Não lhe fizemos pergunta alguma, Sr. Volper — informou Cox. — Acabamos de trazê-lo.

Volper olhou para Dixon, que se erguera e estava perfilado como um soldado:

— Ouviu alguma coisa dela?

— Pensamos que o senhor quisesse interrogá-la pessoalmente, Sr. Volper — respondeu o Sargento Dixon.

O promotor público fêz um gesto de aprovação. Voltou seus olhos úmidos para Isobel Franks:

— Sabe onde está seu irmão, Sra. Franks?

— Você não tem que responder nenhuma pergunta de suínos, Issy — disse LeRoy Rawlings. — Olhe aqui, Volper. Exijo meu direito de telefonar para o meu advogado, o Sr. Wade.

— Cale a boca até que eu fale com você.

— Esqueceu-se de dizer "rapaz", — falou Rawlings.

Algo como que sopro de vida insinuou-se nos olhos mortos.

— Mais   um comentário como   esse, Rawlings, e eu o mando arrastar daqui para o xadrez.

— E mandará bater-me?

— Penso que é melhor lhe fazermos a vontade, Sr. Volper — disse o sargentão loiro, com um sorriso careteado.

— Cale a boca! — disse o promotor público. — Rawlings, você vai ou não ficar de boca fechada?

Antes que o preto pudesse responder, a Sra. Franks disse:

— Roy, por favor.   Não faça com que o arrastem daqui. Eu gostaria que você ficasse.

— Está certo, Issy.   Só por você, eu não chamarei mais este suíno de suíno.

Volper resolveu ignorar aquilo.

— A senhora não respondeu minha pergunta, Sra. Franks!

Ela sacudiu a cabeça:

—   Não vou responder pergunta alguma, senhor.     Não, enquanto não tiver falado com o Sr. Prentiss Wade.

— Mas a senhora não está presa!

— Então, que estou   fazendo   aqui?   —   perguntou   ela, calmamente.   — Não queria vir.     Eles me obrigaram.

— Daqui a pouco vai dizer que nós a espancamos para vir, — disse o Sargento Dixon. — Não é, Issy?

— Meu   nome é   Sra.   Franks!   —   disse-lhe   a   mulher, furiosa.

— Dixon, que lhe disse eu?

O rosado do promotor público agora se estava fazendo vermelho.

— Sra. Franks, sabe que ajudar e abrigar uma pessoa que esteja sob acusação de romper fiança é felonia neste Es­tado quando a fiança é de mais de mil dólares?

—   Desculpe-me — disse McCall. — Essa lei não tem sido invocada desde que foi promulgada.   O senhor pode lançar sobre a Sra. Franks a mesma acusação que está levantando contra o Sr. Rawlings que aqui está, se puder provar que ela ajudou na fuga de seu irmão, mas qualquer outra coisa não será mais que jogar verde para colher maduro, não concorda, Sr. Promotor Público?

Volper tinha rodopiado nos calcanhares e contemplava o moço como se se tivesse transformado num sapo-intanha do tamanho de um homem.

— Quem é você, com os diabos?

O Tenente Cox tossiu.

—   É o Sr. McCall, Assistente Especial do Governador Holland, Sr. Volper.

Volper pestanejou. Depois de um momento resmungou:

—   Pensei que pertencesse ao escritório.     Ainda assim, não preciso de qualquer conselho sobre leis, Sr. McCall.

— Parece-me que poderia usar alguns — disse, docemente, McCall. — O Supremo Tribunal tornou muito claro que as pessoas detidas têm direito a orientação legal desde o momento da prisão, antes de serem interrogadas, a não ser que reconhecidamente renunciem a esse direito.     Seu prisioneiro acaba de pedir permissão para chamar um advogado, e sua resposta foi dizer-lhe que se calasse.     O senhor já preparou o terreno para a anulação de qualquer prova que possa obter contra êle, Sr. Volper.

Volper começou a bufar.

— O senhor fala como um advogado.

— Sou advogado.

— Oh? Em que foro?

— Illinois.

— Estou vendo.

Volper parecia estar considerando suas opções. Finalmente, disse:

— Acontece que como ainda não interroguei o Sr. Rawlings seus direitos constitucionais não foram violados. E a Sra Franks, conforme me ouviu dizer, não está presa.

McCall encolheu os ombros.

— Eu   poderia   dar-lhe um argumento   sobre   o   direito que ela tem a um advogado, também, mas a comarca é sua, Sr. Volper.   Espero que não se importe que eu observe?

A expressão de Volper sugeria que se importava, e muitíssimo. Nesse momento, um homem pequeno, meio calvo, usando óculos enormes de aro de tartaruga, meteu a cabeça, timidamente, pela porta do posto. Ao ver o Promotor Pú­blico Volper pareceu aliviado e apressou-se a entrar. Parecia um funcionário subalterno, e McCall calculou que fosse dez anos mais moço do que parecia, e o homem parecia um cinqüentão.

— Vim o mais depressa que pude, Sr. Volper — arquejou êle, sempre se apressando através da sala. — Quero dizer, depois   que recebi seu recado.

— Oh! Sr. Cordes — disse o promotor público. — Obrigado por ter vindo.   Embora eu o esperasse mais cedo.

— Eu estava fora do estúdio quando o senhor telefonou e só voltei agora há pouco.

Seu aspecto preocupado acentuou-se:

— Que é que o senhor queria comigo?

O homenzinho não tirava os olhos do chão, e McCall quase esperava que Volper lhe agarrasse o queixo e desse um safanão em sua cabeça, para erguê-la. Mas tudo quanto Vol­per disse foi:

— Reconhece alguém aqui, Sr. Cordes?

O recém-chegado desprendeu os olhos do estudo que fazia quanto ao piso da sala e olhou, inquieto, de rosto para rosto. Quando chegou ao rosto de LeRoy Rawlings, recuou, num movimento de surpresa:

— É êle! — exclamou, com a voz trêmula. — É êle!

— Êle quem, Sr. Cordes?

— O mensageiro que entregou o pacote de Harlan James!

— Tem certeza disso, Sr. Cordes?

— Oh! Sim! Sim!

— Nunca vi este suíno em toda a minha vida — disse LeRoy Rawlings.

— Eis uma identificação bastante positiva, Rawlings — disse Volper, com um sorriso. — Mas eu vou-lhe dizer o que vou fazer.     Diga-me onde está Harlan James escondido, e penso que lhe posso prometer que a acusação contra você será anulada.

—   Sabe que mais, suíno? — disse Rawlings, cuspindo no sapato de Volper. — Vá à...

 

Jamais McCall testemunhara uma identificação oficial como aquela. Um homem de côr devia ser identificado, e só um homem de côr estava presente. Aparentemente, a técnica da acareação não fazia parte do sistema de aplicação das leis, em Banbury.

Resolveu, por enquanto, conservar-se na posição de observador.

— Você é louco, Roy — disse a Sra. Franks. — Não sabe que está exatamente fazendo o jogo dele?

— Sou homem!   — disse   Rawlings.

— Você é um idiota!

Volper tornou a sorrir. Ordenou ao Tenente Cox e ao Sargento Fenner que levassem Rawlings para o andar inferior a fim de ser registrado, enquanto interrogava a Sra. Franks.

O homenzinho   chamado   Cordes,   perguntou,   aflito:

— Não precisa mais de mim, Art. . .   quero dizer,   Sr. Volper.

Interessante distração, pensou McCall. O gerente da estação BOKO não era muito inteligente. Naturalmente, êle, e seu patrão, Gerald Horton, eram unha-e-carne com o promotor público.

—   Por enquanto não,   Sr.   Cordes,   por   enquanto   não. Irei   chamá-lo   ao   tribunal,   naturalmente,   mais   tarde,   como testemunha.

— Bem, com certeza.

O homenzinho esfregava os pés.

— Bem, nesse caso, acho que vou embora.

— Pode ir — falou Volper.

Seria Cordes parte de uma armadilha da policia, ou sua identificação teria sido autêntica? Esse era o caso, e difícil de dizer. Fosse como fosse, merecia ser seguido. McCall ergueu a mão, numa despedida geral, e pôs-se atrás de Cordes, conseguindo alcançar o homenzinho no elevador.

Cordes relanceou os olhos para êle, encabulado.

McCall estendeu-lhe a mão:

— São muito mal-educados lá dentro, Sr. Cordes.   Meu nome é McCall.

O aperto de mãG do gerente da emissora era tão frouxo quanto McCall antecipara que seria.

— O meu é Bcnjamin Cordes, Sr. McCall. O senhor está no escritório dos investigadores ou no do promotor público?

— Nem num nem noutro — disse McCall. — Trabalho para o Governador Holland.

— Oh! É aquele McCall!   Prazer em conhecê-lo, Sr. McCall.

A porta do elevador à esquerda abriu-se. Um oficial fardado estava no elevador. McCall observou, com interesse, que Cordes não tentou continuar a conversa enquanto o elevador não chegou ao vestíbulo da entrada. O homenzinho mostrou-se visivelmente aliviado quando o oficial os deixou.

— É uma coisa engraçada — confidenciou êle a McCall. — Desde menino tenho medo de policiais.   Não é uma tolice?

— Nem sempre — disse McCall.   E Cordes riu, um riso incerto.

— A propósito, Sr. Cordes — continuou McCall enquanto iam caminhando para a porta da rua — ouvi dizer que em sua descrição do mensageiro que entregou a fita gravada e a carta só lhe foi possível dar à polícia uma ligeira aproximação de seu peso e altura, e da pele do homem, que, segundo disse, era bem escura.   Contaram-me, também, que o senhor dissera que todos os negros lhe pareciam iguais.   Ou informaram-me erradamente, Sr. Cordes?

— Oh!   Eu não quis dizer bem isso — disse o gerente da estação, apressadamente. — Nada disso!   Eu só quis dizer que é difícil, bem, descrever um rosto negro.     Quero dizer, diferenciá-lo de outros rostos negros.

— Por quê? — indagou McCall.

— Bem, eu não sei.

Cordes parecia ofendido.

— Seja como fôr, conforme o senhor diz, eu não tive, com certeza, dificuldade alguma para reconhecer o rosto dele, quando o vi, ainda há pouco.

—   Então o senhor nunca tinha visto Rawlings antes de êle lhe ter entregue aquela fita gravada?

— Não.

Agora estavam de frente para o arco do distrito central. O Tenente Cox, o Sargento Fenner, e LeRoy Rawlings estavam enfileirados atrás do balcão a uns seis metros para além do arco.

McCall disse:

— O senhor não poderia ter-se enganado em sua identificação?

— Não, definitivamente não, Sr. McCall.   Positivamente, esse é o homem.

À saída da porta de vidro, meio dentro e meio fora dela, McCall parou:

—   Suponhamos   que   LeRoy   Rawlings consiga um   álibi para esta manhã.   O senhor ainda sustentaria que êle é o homem que entregou a carta e a fita gravada?

Cordes começou a se mostrar desconfiado.

— Eu acabo de dizer que fui positivo, Sr. McCall.   Não sei o que o governador está tentando fazer, mas o que me parece é que o   mandou aqui para   inocentar os   elementos negros.. .

— Eu não diria isso — tornou McCall secamente.

— O senhor sabe o que eu quero dizer!   Quanto a um álibi, eu ficarei surpreendido se Rawlings não apresentar algum. Toda vez que um membro da "Corações Negros" tem um embaraço com a lei, vem-se a saber que êle estava na companhia de uma dúzia de outros membros da "Corações Negros" na ocasião da transgressão.   Um álibi apresentado por LeRoy Raw­lings, ou por qualquer membro   da   "Corações Negros",   não me impressiona.   Não, senhor.   Estou certo de que é êle o mensageiro.

— A propósito, eu não estou em Banbury para inocentar ou   culpar   quem   quer   que seja.     O interesse   do   governador está em ver que a cidade se mantenha em paz, sejam quais forem os problemas.

— Naturalmente, naturalmente, Sr. McCall.   Lamento ter-me zangado.

Cordes estendeu a mão.

— Gostaria de ter o senhor num programa de estúdio, na BOKO.   Estaria interessado?

McCall sacudiu aquele punhadinho de carne.

— Não exatamente agora, Sr. Cordes.     Estou ainda na fase de observação.   Prazer em conhecê-lo.

— Da mesma forma.

Cordes desceu, em trote, a escadaria de mármore. McCall tornou a entrar no edifício. O trio ainda estava no balcão de registro, Rawlings esvaziando o conteúdo dos bolsos.

McCall foi para o outro lado, para o balcão de informações. Perguntou onde poderia encontrar um telefone público, e o funcionário lhe disse que havia "um montão deles" lá fora, na sala da imprensa.

MacCall encontrou as cabinas, mas antes que telefonasse para Maggie Kirkpatrick, relanceou os olhos pela sala da imprensa.   Estava vazia.

Procurou o número do telefone do Post-Telegram e discou.   Teve de esperar sete minutos até ouvir a voz dela.

— Vocês têm um maravilhoso sistema de telefones, Mag­gie.   Eu poderia ter falado com De Gaulle em menos tempo.

— Eu estava naquele lugar que as moças eufemisticamente, chamam de toalete.   Um dos rapazes teve de bater na porta. O que há?

— Dou-lhe uma dica em troca de um favor.

— Chute, Mike — disse Maggie, prontamente.

— LeRoy Rawlings está sendo registrado exatamente agora sob acusação de ajudar um fugitivo em sua fuga à prisão. Há dez minutos atrás Benjamin Cordes, gerente da estação BOKO, identificou Rawlings, positivamente,   como o mensageiro   que entregou a fita gravada e a carta.

— Você é um amor! — disse Maggie.

— Espere, há mais.     Volper mandou buscar a irmã de Harlan James, Sra. Isobel Franks, para interrogá-la sobre o paradeiro do irmão.   Até o momento nada obteve, nem dela nem de Rawlings, a não ser alguns insultos por parte deste último. Aparentemente, Maggie estaria tomando notas.

— É tudo, Mike?

— É tudo.   Agora, o quid pro quo.

— Que posso fazer por você?   E fale claro.

— Quero que telefone a Prentiss Wade e conte o que acaba de ouvir de mim.   Não lhe dê a fonte de informação.

— Volper não deixou Rawlings usar o telefone?

— Nem êle nem a Sra. Franks.   Você telefonará ao Wade agora mesmo?

— Antes de escrever a história, Mike.

Quando McCall voltou ao vestíbulo, os três homens já não estavam no balcão. Relanceando os olhos para os elevadores teve tempo de ver uma porta fechar-se atrás do Tenente Cox e do Sargento Fenner. Rawlings não estava com eles. Era de presumir que tivesse sido levado a uma cela.

McCall deu consigo voltando à Prefeitura e ficou a cogitar por quê. Não tinha qualquer razão para procurar o Prefeito Potter tão cedo... Laurel Tate. Aqueles cabelos castanho-avermelhados fazem isso sempre, censurou-se êle, virando à direita na Grande Avenida e dirigindo o carro para o seu hotel. Fosse como fosse, iria vê-la naquela noite.

O pensamento levou-o a recordar Beth McKenna, a moça que era o Sexta-Feira* do Chefe Condon. E recordando seu cabelo louro foi levado a pensar em Maggie Kirkpatrick, que não era o Sexta-Feira de ninguém e além disso tinha os cabelos pretos.

O mal com você, McCall, disse McCall para seu alter ego, ao espelho do quarto de banho, é que tem fome com demasiada freqüência.

Fêz um esforço para afastar as moças da cabeça e telefonou para o Governador Holland, usando a linha particular do governador. Contou-lhe, com pormenores, os acontecimentos do dia.

— Parece-me que o velho Heywood Potter estava com toda razão — disse Holland. — A oposição está, realmente, tentando arranjar tumulto racial para garantir sua divisa de lei e ordem.

— Tenho certeza de que é esse o motivo do Promotor Público Volper, Governador. Não sei, ainda, se Gerald Horton está ou não no jogo, embora não deixe de ser possível que esteja.   Ainda não vi o candidato a prefeito.

— Bem, fique firme aí, Mike. Conte com o meu apoio para o que quer que tenha de fazer para impedir um conflito aí, mesmo que isso nos prejudique politicamente. Nossa primeira consideração é manter a paz.   A qualquer custo.

Eram ordens como essa, e mais um salário substancial, que de há muito haviam obtido a total lealdade de Mike McCall. Não poderia ter trabalhado para a maioria dos políticos. Seu código pessoal, modelado na tumultuosa zona sul de Chicago durante sua meninice, as duras lições do corpo de fuzileiros navais durante sua primeira juventude, e seus estudos de leis no Noroeste, exigiam honestidade absoluta no serviço público. Sam Holland era o mais raro dos políticos: recusava-se a comprometer seus princípios morais.

Conheceram-se quando Holland era senador pelo seu Estado e McCall detetive particular. O caso, envolvendo a morte de um colega de legislação e amigo íntimo de Holland, estava enredado em teias de venalidade, e cada um daqueles dois homens pôde ter conhecimento das virtudes do outro, tornando-se amigos. Um dos primeiros atos de Holland, ao vencer as eleições para a governança, foi oferecer a Mike McCall um lugar como seu assistente para assuntos confidenciais — seu quebra-galhos particular. O seu salário, muito alto, saía do bolso do governador. "Não quero você na folha de pagamento" — dissera êle. — "Isso o tornaria sujeito a toda a sorte de pressões. Assim, só tem de dar satisfações a um homem, Mike: a mim."

Os anos os haviam unido com muita firmeza. Holland tinha a seu lado um homem honesto no qual podia confiar completamente, e McCall encontrara um homem honesto, ao qual podia servir com a consciência limpa.

Tinham dito, pelo Estado, que um multimilionário podia dar-se ao luxo de ter um código moral que para outros políti­cos seria uma excesso desastroso.   Para McCall essas eram palavras de oposição. Na verdade, Samuel Holland poderia banhar-se em seus milhões. McCall, entretanto, fizera trabalho por sua conta sobre as origens de Holland, e a verificação aritmética deu certo: também quando pobre êle fora homem honesto, intransigente em sua moral.

McCall despiu-se, ficando de shorts, fechou as lâminas das persianas, e estendeu-se na cama. Levantara-se às 4 horas, a fim de apanhar o avião matutino, e estava cansado. Olhou para o relógio: um quarto para as três. Havia ainda bastante que fazer antes de seu encontro com Laurel. Acertou o seu despertador mental para as quatro horas, e trinta segundos depois adormecia.

 

Três minutos antes das quatro horas McCall despertou.

Espreguiçou-se, bem alerta e repousado. Então, apanhou o telefone de cabeceira e chamou a delegacia de polícia, pedindo a sala dos investigadores e o Tenente Cox.

O tenente deu uma risadinha:

— Hank Fenner e eu gozamos a lição de Direito que o senhor deu ao nosso destemido promotor público esta tarde, Sr. McCall.

— Que aconteceu depois que eu saí?

— Volper recebeu um não bem grande e gordo, tanto da Sra. Franks como de Rawlings.   Um pouco depois das três aquele   advogado   de   côr, Prentiss   Wade,   apareceu   com   um habeas corpus para os dois.   Como Wade descobriu que eles estavam em custódia é coisa que eu não compreendo, porque Volper também não fêz qualquer chamado telefônico.

— Foram soltos? — indagou McCall com a maior cara de pau.   "Boa camarada Maggie!", pensou.

— A Sra. Franks foi.   Volper não tinha motivos para detê-la.   Mas carregou o Rawlings para o Tribunal Municipal, diante do Juiz Edmundson para um interrogatório preliminar. Acho que o senhor não sabe grande coisa sobre os juizes aqui da terra, sabe?

— Muito pouco.   Vi o juiz do Tribunal do Distrito, Juiz Graham, em ação durante alguns minutos, e tive a impressão de que se mostrava justo, mesmo diante de provocação. Só chega até aí o meu conhecimento.

— Graham é um bom juiz, e foi por isso que Volper escolheu Edmundson. Edmundson é homem de Horton e camaradão de Volper.

O tenente não acrescentou o nome do Chefe Condon, mas McCall suspeitou que a omissão derivava mais do desejo de ser discreto do que de uma carência de conhecimento.

— Além disso, Edmundson é racista.   No seu tribunal, perturbação da ordem pode dar três meses de prisão na cadeia local, se a pele do sujeito fôr preta. Se fôr branca, sai de lá apenas com uma multa.

— Não diga mais nada. Conheço esse tipo — disse McCall. — E que aconteceu, tenente?

— Edmundson tornou a mandar Rawlings para a cadeia, por falta de uma fiança de cinqüenta mil dólares.

— Cinqüenta mil dólares por uma acusação dessas?

— E nesse caso, naturalmente, isso significaria que Raw­lings teria de levantar pessoalmente a quantia. Já que Harlan James rompeu sua fiança de dez mil dólares, nenhum fiador aceitará agora um telefonema de um membro da "Corações Negros".

Irritado, McCall disse:

— Isso pode, realmente,   deflagrar   algo na zona oeste. Há alguma possibilidade de o Juiz Edmundson reconsiderar e reduzir a fiança de Rawlings para uma soma razoável, se alguém fizesse sentir que sua ação poderia evitar um tumulto?

— Não, se esse alguém fosse o senhor ou eu, Sr. McCall. Êle tratou Prentiss Wade como se o homem fosse lixo, naquele tribunal. . . não o quis ouvir de maneira nenhuma.   Wade está como louco.   Oh! Edmundson age sob recomendação de Volper, porque   foi   pelos   argumentos   do   promotor   público que êle estabeleceu, antes de mais nada, aquela ridícula fiança. Mas o que Volper quer é tumulto.   O único homem em Banbury que poderia influenciar o meretíssimo é Gerald Horton. O senhor sabe, aquele vereador por todos os distritos.   E candidato a prefeito.

— Sei.   Acha que Horton me ouviria?

— Êle é mais esperto do que Volper, e político. ..   Mas não sei, Sr. McCall.   O homem tem escritório na Prefeitura, e o número do telefone é Emerson 3-1000.   Um minuto, por favor. . . o ramal de Horton é 123.

— Obrigado, Tenente.   Faça figa.

— E enquanto faço figa, tenho duas pernas, também.

McCall chamou o número da Prefeitura e pediu o ramal 123.   A campainha tocou e tocou.   Finalmente a telefonista do PBX falou, em voz aborrecida:

— O Sr. Horton foi para casa, provavelmente. São quase quatro e meia. Quase todos por aqui estão indo embora.

— Ligue para a sala do prefeito, por favor — disse McCall. — Quem está falando é McCall.

— Sim, senhor!

Ela sabia quem êle era. Percebeu-o pelo tom, que mudara.

— Duvido que haja alguém lá, senhor.   Mas tentarei.

Não houve resposta.   McCall disse:

— Nesta cidade retiram-se cedo, não?     Por acaso você sabe qual é o número do telefone da casa do Vereador Horton, boneca?

— Não tenho lista especial, Sr. McCall.

Êle quase podia vê-la afofando o penteado.   A moça continuou:

— Sei que está no guia.   Na Passagem Waxman.

— Obrigado.

McCall ia desligar quando a telefonista disse:

— Senhor?

— Sim...

— Acho que não vai encontrar o Vereador Horton em casa, agora.   Acontece que a esposa dele está fora da cidade.

McCall parou de pensar em outras coisas.

— O Sr. Horton não vai para casa quando sua esposa está fora da cidade?

— Não para o jantar.   Quase sempre telefona a um restaurante e reserva mesa.

— Fêz isso esta tarde?

— Não comigo.     Mas pode ter sido atendido por uma das outras telefonistas.

— Obrigado.

McCall desligou, cogitando se os ocupantes da Prefeitura, do menor até o Prefeito Potter, inclusive, sabiam da leviandade com que a sua telefonista particular fornecia informações. A cidade inteira estava à solta.

Não havia Gerald Horton no guia telefônico, mas havia vários G. Horton. Um deles ficava na Passagem Waxman. McCall discou o número.   Não houve resposta.

Talvez Horton estivesse em sua estação de rádio. Era cedo demais para estar jantando. McCall consultou o guia telefônico de novo, procurando o número da BOKO. Estava memorizando o número quando notou que a estação tinha como endereço o número 412 N. Grande. O endereço do Banbury Plaza era um número baixo na Grande. McCall folheou de novo o guia e encontrou o número da porta do hotel: 325 N. Grande. A estação de rádio ficava a menos de um quarteirão de distância. Escovou os dentes, tomou um banho de chuveiro, penteou obliquamente, sobre a testa, uma mecha de cabelo, vestiu-se, e deixou a suíte.

A estação de rádio ocupava o andar superior de um prédio de dois andares, sobre uma loja de móveis e outra de roupas. A escada de madeira que levava ao andar superior erguia-se entre as duas lojas.

Dentro havia um vestíbulo que levava ao fundo. Letreiros luminosos designavam ESTÚDIOS A, B, e C, PRODUÇÃO, CONTINUIDADE, SALA DE CONTROLE. À sua esquerda, ao alto da escada, havia uma porta com uma placa em letras de aço: BENJAMIN CORDES, GERENTE.

McCall compreendia, agora, por que ninguém, a não ser Cordes, vira o mensageiro. O homem que entregara a carta e a fita gravada de Harlan James não tivera de passar por outras portas para ter acesso ao escritório do gerente da estação.

A porta estava um tantinho estreaberta. McCall escancarou-a com um movimento do cotovelo e olhou dentro.

Era um escritório bastante amplo, contendo uma mesa de conferências corretamente rodeada pelas cadeiras de couro sintético, e, colocada em diagonal num canto, uma escrivaninha cujo topo era recoberto de vidro. Cordes estava sentado à essa escrivaninha, escrevendo num bloco. Havia do lado opos­to uma cadeira para visitantes.

Um homem alto e musculoso, usando slacks e uma camisa esporte espalhafatosa, estava de pé numa escada dupla, trabalhando com uma chave de fenda num alto-falante do teto. Relanceou os olhos para McCall e continuou trabalhando. Pela sua estrutura e feições — tinha, como um pugilista, o nariz achatado e a boca de lábios engrossados pelos golpes. — McCall percebeu que outrora aquele homem ganhara a vida num ta­blado de boxe. Parecia estar próximo dos cinqüenta anos, ou mal passara deles, o que fazia dele, relativamente, um dos ve­teranos.   McCall teve a impressão de que o conhecia.

O homenzinho que estava à escrivaninha ergueu os olhos.

— Oh! Sr. McCall, não o ouvi chegar.   Entre, entre.   Não o esperava ver de novo tão depressa.

— Nem eu — disse McCall.

— Entre.   Sente-se...

— Estou realmente procurando o Sr. Horton, Sr. Cordes. Ele está aqui?

— Ora, não...

— Tem alguma idéia de onde possa encontrá-lo?

Cordes levantou os olhos para o relógio de parede.

— Provavelmente está a caminho de casa, Sr. McCall. Costuma sair do escritório, na Prefeitura, entre quatro e quatro e meia.

— Pensei que poderia ter passado aqui pela emissora.

— Não; se êle tivesse essa intenção, a esta hora já estaria aqui.   Você não o viu, não é mesmo, Andy?

O homem que estava na escada, e tinha cabelos ruivos e flamejantes, sacudiu a cabeça.

— A telefonista do PBX da Prefeitura parece pensar que êle não foi para casa, Sr. Cordes.   Disse-me que habitualmente êle come fora, quando a esposa não está na cidade.

— É mesmo!...

Cordes parecia consternado.

— Wilma está fora, em Carson Springs, numa clínica de emagrecimento.   Eu tinha esquecido.   Ela passa duas semanas lá, duas vezes por ano.   Duvido que Gerry vá para casa antes das oito ou nove horas.   Posso ajudá-lo em alguma coisa, Sr. McCall?

— Acho que não — disse McCall. — Trata-se de assunto político.

O homenzinho sorriu beatificamente.

— Acontece que eu sou o chefe da campanha política de Horton.

McCall olhou para êle, atônito. Cordes fêz um movimento de cabeça em direção do bloco onde cstivera escrevendo.

— Este é o discurso dele para amanhã à noite. __

— O senhor escreve os discursos dele?

— Reescrevo apenas, Sr. McCall.   Eu apenas... bem... dou polimento aos pensamentos do Sr. Horton.   A substância é dele, não minha.   Nosso próximo prefeito não é fantoche de ninguém, Sr. McCall.   É um homem que sabe liderar e jamais se furtará às suas responsabilidades.

McCall sentou-se na cadeira dos visitantes.

— Francamente, estou surpreendido, Sr. Cordes.   Jamais suspeitei que o senhor fosse político.

Benjamin Cordes franziu o rosto. McCall chegou mesmo a achar que o homem inchara em sua cadeira atrás da escrivaninha.   Sintoma revelador do belicoso galo garnisé.

— Sinto muito — disse McCall, desculpando-se. — Não quis dizer isso como uma alfinetada.   Já era tempo de eu aprender a não julgar pelas aparências.

— Esperaria isso do senhor — disse Cordes, claramente ofendido. — Nós não podemos fugir à maneira pela qual o bom Deus nos fêz.   Há ocasiões — disse êle, um tantinho hesitante, quase   timidamente —   em que penso   em   mim   como. . . bem. . .   acho que todos temos nossos devaneios.   O que sou, Sr. McCall, é um partidário, estritamente.   Não me iludo pensando que possa ser algo mais do que isso.   Gerald Horton é diferente.   Homem dinâmico, autoconfiante, com ímpeto e vigor, e cheio de idéias políticas criativas.

— Êle é assim? — disse McCall, fascinado.

— Eu só posso ter por êle o maior respeito e admiração, e estou fazendo o que posso para levar adiante sua carreira política.   Sei que algum dia Gerald Horton será um nome conhecido em cada casa,   até os confins   desta cidade e   deste Estado.   Êle pode vir a ser.. . bem! — Cordes pareceu encabulado: — Estou fazendo um discurso de campanha!

— Uma lealdade assim, Sr. Cordes, tem de ser merecida — disse McCall.

 

— Sim — disse Cordes. — Bem. Estava abrandado.

— Então, talvez o senhor me diga sobre que deseja falar com o Sr. Horton?

— Naturalmente — disse McCall. — Como seu chefe de campanha, redator de seus discursos, e assim por diante, deve estar bem a par do que Horton pensa.   Eu queria falar com êle sobre LeRoy Rawlings.   Talvez o senhor me possa dar uma idéia de qual seria a reação dele.

— Reação a propósito de quê?

— Depois que o senhor e eu saímos do gabinete dos investigadores, ontem, apareceu um advogado com mandado de habeas corpus para Rawlings e a Sra. Franks.   Volper mandou soltar a Sra. Franks, mas levou Rawlings perante o Juiz Edmundson para uma audiência preliminar.   Edmundson tornou a mandar Rawlings para a cadeia por falta de uma fiança de cinqüenta mil dólares.

O homem que Cordes chamara de Andy havia descido da escada dupla e veio postar-se atrás da escrivaninha do gerente da emissora. Havia, ali, um painel com um interruptor e um botão de controle de volume no topo da escrivaninha. O sujeito ruivo acionou o interruptor.

Um estrondo de som veio do alto-falante estereofônico colocado do outro lado da sala. — "... ouvindo Bart Wheeler na Estação BOKO, em Banbury..." — numa voz rica, masculina e retumbante. — "14-10 em seu aparelho. São, exatamente, quatro horas e cinqüenta e sete minutos."

— Você precisava fazer isso agora, Andy? — zangou-se Cordes.

— Desculpe. — O homem reduziu o volume.   — Eu não sabia que estava sintonizado tão alto, Ben.   Agora está funcionando direito.

Entrou um comercial, e o ruivo desligou o aparelho. O nome, e o rosto familiar do ruivo despertaram, subitamente, a memória de McCall.

— Você é Andy Whalen — disse êle.

O homem pareceu satisfeito.

— Isso mesmo.   Como é que se recorda de mim?   Pensei que ninguém mais se lembrasse da minha existência.

— Vi você lutar com Kid Cooley, em Chicago.   Quando êle estava à frente no campeonato de pêso-médio.

O ex-pugilista remexeu o maxilar inferior.

— Foi quando rebentei a cara.   O garoto tinha o punho de um marciano.   Eu tinha idade demais para tentar dar-lhe o troco, mas precisava do dinheiro.

— Lutou muito bem, para a sua idade — disse McCall, com um sorriso. — Levou-o duas vezes à lona.

— E êle se levantou as duas vezes — disse Whalen, com um sorriso careteado. — Mas eu, quando o homem me atirou ali, no décimo segundo, ali fiquei.

— Este é o Sr. McCall, Andy — disse Cordes. — Mike McCall, da capital.

— O músculo do governador?   Estou honrado porque se recorda de mim, Sr. McCall.

Whalen deu a volta à escrivaninha, limpando as mãos nas calças e McCall apertou-lhe a mão.

— Andy é o nosso eletricista-chefe e homem da manutenção geral — informou Cordes.

— Faço por Ben o que o senhor faz pelo governador, Sr. McCall.   Sou quebra-galhos.

Cordes disse, delicadamente:

— Dan quer que você dê uma olhada naquele microfone mudo do Estúdio C, antes de ir para casa, Andy.

— Sim, Ben, já vou lá.

Whalen tornou a estender a mão.

— Prazer em conhecê-lo, Sr. McCall.

McCall apertou-lhe a mão e acenou-lhe um adeus.     O ruivo dobrou sua escada dupla e apressou-se a sair dali com ela.

— Não é completamente biruta — disse Cordes — mas... Não terminou.

— Onde estávamos, Sr. McCall?

— Tínhamos Rawlings na cadeia, com uma fiança fixada em cinqüenta mil dólares.   Já que Harlan James se escafedeu, naturalmente nenhum fiador se responsabilizará por um membro da "Corações Negros".

— Não se pode censurá-los.

— Não, mas a comunidade de côr não vai aceitar calmamente uma fiança tão despropositada.     Se esta cidade está próxima de uma explosão racial, isso pode ser o detonador. Nosso homem Horton é o líder local para seu partido político. Deve ter alguma influência sobre o promotor público.   Pensei que êle poderia usar essa influência para obter uma redução da fiança de Rawlings para uma soma razoável.

Cordes parecia desalentado.

— Não é o promotor quem estabelece a fiança, Sr. McCall.

— Sei disso — disse McCall. — Mas, segundo me informaram, é êle quem recomenda que quantia deve ser fixada. Também, na opinião de alguém que conhece tanto o juiz como o promotor   público,   Edmundson   provavelmente   reduziria   a soma exigida para qualquer outra que Volper sugerisse. O promotor público precisa ser persuadido a mudar de opinião, Sr. Cordes.

Cordes franziu seus lábios retos.

—   Um telefonema direto ao juiz obteria isso, sem que Horton tivesse de usar Volper como intermediário. Conforme já lhe disse, Gerry Horton é um líder forte. Dirige bastante bem o partido local.

— Acredita que êle faça isso?

Cordes encolheu a cabeça, como tartaruga assustada.

— Eu quis dizer que êle podia fazer Edmundson mudar de opinião, se assim o quisesse.   Mas não acredito que queira. Gerry não acredita nisso de estar amimando esses militantes negros.

— Amimando? — disse McCall. — O homem foi acusado de uma transgressão que pode custar-lhe dezoito meses. Um branco sob idêntica acusação com certeza teria sido solto como seu próprio fiador.     Oferecer   aos homens de côr o mesmo tratamento que se dá aos brancos não é amimá-los.

— É, quando haja notícia de um rompimento de fiança — disse o homenzinho.

McCall fitou os olhos nele.

— Um "Coração Negro" escapando à fiança constitui uma notícia? Pertence a alguma organização, Cordes? Aos Elks, por exemplo?

— Sou rotariano.

— Se algum seu companheiro do Rotary fosse preso por um crime e rompesse a fiança, isso impediria o senhor de prestar fiança se mais tarde tivesse algum transtorno com a lei?

Cordes fungou.

— Não se pode comparar a "Corações Negros" com o Rotary, Sr. McCall.   Seja como fôr, o senhor está argumentando com a pessoa errada.   Pediu-me que lhe dissesse qual seria a reação de Gerry Horton, e eu lhe disse.   Nada do que me diga irá modificar a atitude de Horton.

—   Acho que não.     Mas, em particular, Cordes, e   só porque eu sou um xerêta, até que ponto sua atitude se iguala à dele?

O homenzinho pensou no caso, muito cuidadosamente.

—   Como já lhe disse, Sr. McCall,   sou um partidário. Acredito que Horton tem um grande futuro político, e pretendo devotar minhas energias propiciando esse futuro, como quer que me seja possível.   Penso que Gerry não precisa tanto de mim quanto eu dele.   Acredito nele; penso que o senhor chamaria a isso um caso antiquado de veneração do herói.   Seja como fôr, nosso relacionamento impede-me de manifestar opiniões   políticas   divergentes.     Portanto, sua   pergunta   não   é pertinente.

— Então é um Boswell de Banbury? — sorriu McCall. — Não tem opiniões próprias?

—   Nenhuma — confirmou Cordes — que eu chegasse jamais a expressar.   Ao senhor ou a qualquer outra pessoa, enquanto Gerald Horton precise dos meus serviços.

McCall levantou-se:

—   A lealdade, certa ou errada, é rara em nossos dias, Sr. Cordes — disse êle. — Espero que Horton compreenda que possui uma jóia.

— Obrigado, Sr. McCall — disse o homenzinho, fervorosamente.

De volta ao apartamento no hotel, McCall discou o número da casa de Horton, novamente. Ainda não havia resposta. Depois de se vestir para o jantar marcado com a jovem Laurel, tentou mais uma vez, sem resultado. A estimativa de Cordes quando à hora em que Horton estaria em casa era correta, provavelmente.     Não adiantava insistir, até oito ou nove horas.

O quarteirão 3200 da Avenida Ralston era uma zona de casas de apartamento de altura média, e pequenas residências. O número 3217 referia-se a uma casa de tijolos expostos, com dois andares. Não havia elevador, e o bloco de caixas do correio, no vestíbulo, indicava dez unidades em cada andar.

McCall subiu um lance de escadas de concreto e procurou o 2C, apertando a campainha. A porta abriu-se imediatamente.

Laurel Tate estava usando um vestido sem mangas, moderadamente mini, apropriado para tudo, desde um bar das vizinhanças até um clube noturno. O tom verde-pinho da roupa combinava com seu olhos e aureolava seus cabelos castanho-avermelhados.

O rosto pálido da moça fêz-se rosado sob o olhar de admiração de McCall. Depois de um momento sacudiu seus brilhantes cabelos.

— Bem, vai ficar de pé aí fora, Sr. McCall?     Eu não mordo.

— Mas eu sim — disse McCall.

— Vai-me   achar dura   de   mastigar, Sr.   McCaçador — disse Laurel, docemente. — Como disse a imortal senhorita West, gosto de um homem que sabe esperar.   Mas obrigado pelo que eu sei que pretendia ser um cumprimento.

Afastou-se, e êle entrou em sua minúscula sala de estar. Nada havia de original ali, e o moço sentiu uma picada de desapontamento. Aquele tom de cabelo de vez em quando o enganava. Tudo era novinho em folha e comprado em loja de liquidações. Mas a poltrona parecia confortável, a lâmpada que ficava atrás dava boa luz para leitura, e havia livros, bem como um rádio de alta fidelidade, e TV. Saberia um pouco mais quando tivesse a oportunidade de verificar os títulos dos   livros.

Tentou ignorar a instalação falsa da lareira, com seu queimador a gás imitando lenha.

— Quer tomar alguma coisa? — perguntou Laurel.

— Posso esperar — disse McCall. — E você?

— Está bem.     Vou buscar minhas coisas.

Entrou no que êle imaginou que devia ser seu dormitório e fechou a porta. McCall dirigiu-se à estante. Imediatamente sentiu-se melhor. Manuais de psicologia e sociologia, vários volumes da Corporação da Paz, um punhado de obras de ficção — Malamud, Cheever, The Ugly American, um velho exemplar de Yama: The Pit, de Kuprin. Uma seleção bastan­te ampla. A falta de distinção em seu apartamento era, provavelmente, resultado de economia, não de gosto. A moça devia ter comprado aquilo tudo a prestações.

Laurel voltou trazendo uma capa de veludo preto e bolsa combinando. A noite estava fria demais para braços nus. Entregou a capa a McCall, com um gesto natural, como se tivesse sido educada para aguardar as cortesias tradicionais. Êle envolveu-lhe os ombros, sentindo que a noitada ia ser cálida e satisfatória.

Não pôde deixar de pensar na secretária de Condon, ao fazer Laurel entrar no carro. Laurel era inteiramente mulher. Assim também era a Policial Beth McKenna, mas o moço suspeitava que a Policial Beth McKenna teria saído do quarto com a capa já vestida.

 

O recepcionista do hotel, que, aparentemente, não se sentia particularmente leal ao Salão Revolucionário do Banbury Plaza, tinha recomendado a comida do Clube Capri como a melhor da cidade. A caminho, McCall contou a Laurel sobre a prisão de LeRoy Rawlings e sobre a fiança despropositadamente alta que o Juiz Edmundson estabelecera.

A primeira reação dela foi de indignação, mas depois pareceu intrigada:

— Como é que o juiz de um tribunal municipal toma jurisdição num caso de delito grave? Pensei que esses tribunais cuidassem apenas de contravenções.

McCall explicou que um mandado de habeas corpus exigia que a pessoa detida fosse solta imediatamente ou levada de imediato à frente do magistrado mais próximo disponível.

— O termo "mais próximo disponível" dá ao funcionário que recebe o habeas corpus uma margem de escolha considerável.   O que acontece é que êle pode ir ao juiz que quiser. E todos os juizes, naturalmente, têm autoridade para presidir uma audiência preliminar e fixar a fiança. O julgamento terá de ser realizado no tribunal do distrito, e desde que Rawlings seja citado, o juiz do tribunal do distrito poderá reduzir a fiança, se assim o quiser.     Quando o grande júri funcionar, ou o promotor se puser a instruir os autos, seja qual fôr o   caminho   que   escolher,   Rawlings   pode   já ter   estado   na cadeia há um mês ou mais.

No Clube Capri, que já se ia enchendo, o maître-d'hotel olhou para McCall, estalou os dedos para a garçonete que servia os coquetéis e colocou-os a uma mesa de canto, marcada com a etiqueta RESERVADA. Pelo que, McCall compreendeu que o recepcionista do Banbury Plaza era um indicador daquele clube.

Laurel pediu um vodca-martini. McCall, cuja fama como grande bebedor era inteiramente imerecida — seu trabalho às vezes exigia beber muito, socialmente, mas suas defesas eram antes químicas do que preferenciais — antes tolerava do que apreciava o álcool, e pediu um gin-tônica "com muito gelo". O gelo derretia e se transformava em água, assim sua bebida se tornava progressivamente mais fraca, o que lhe convinha muitíssimo.

O garçom chegou com enormes e elegantes cardápios, e McCall percebeu que Laurel estava observando a margem direita deles.

— Não se preocupe com os preços — disse   êle. —Tenho carta branca para trapacear com as despesas.

— Pensei que você fosse um sujeito honesto.

— E sou.   Mas o governador diz-me as últimas se eu não lhe apresentar as despesas que julga apropriadas para a minha posição como seu representante.   Que tal essa combinação de filé e lagosta?

— Oh! Meu Deus! — disse Laurel. — Não me recordo mais da última vez que comi qualquer dessas   duas coisas. Quero, sim!

— Os tempos foram duros? — indagou McCall, quando o garçom se afastou. 64

— Bem — e Laurel brincava com seu cálice de coquetel. — Nem tudo foi um mar de rosas e plumas. Venho de uma família imensa, e cada qual tinha uma boca, cada boca tinha sempre fome, e nunca havia bastante do que quer que fosse.

—   Sei bem como isso é — falou McCall. — A propósito, reparei em alguns livros da Corporação da Paz em sua biblioteca.   Esteve pensando em alistar-se?

— Fiz mais do que pensar — falou Laurel. — Alistei-me.

— Realmente?   Você é a primeira moça que eu conheço que esteve na Corporação da Paz.   Fale-me a respeito.

— Receio que a estória não seja muito estimulante — riu ela. — Não fui uma dessas valentes moças que viveram nas selvas da Bolívia e atendiam "índios" enquanto lutavam contra as fervorosas investidas dos médicos bolivianos. Passei dois anos na República Dominicana, trabalhando como secretária.

— Onde freqüentou a universidade?

Os olhos verdes se dilataram.

— Como soube disso?

— Já fui detetive.

— Não, fale sério.   Como soube?

— Aqueles livros de psicologia e sociologia. São manuais.

— Ganhei uma bolsa do Estado.   Precisei deixar ao fim do primeiro semestre.   Meu pai morreu.   Eu pensava entrar no serviço social.

A garçonete dos coquetéis trouxe nova dose para Laurel — McCall ainda estava às voltas com seu gin-tônica — e o moço deixou de parte um assunto que era evidentemente penoso para sua companheira.

— Como foi que se alistou na Corporação da Paz?

— Como é que os homens se alistam na Legião Estrangeira? Perdi o rapaz que era meu noivo.   Vietname.

— Oh!     Que coisa lamentável!

—   Não é o que pensa, não — disse Laurel, animadamente. — Êle se casou com uma enfermeira do exército.   Está desligado do serviço, agora, e, segundo sei, mora na cidade de Nova Iorque, criando família como um doido.

— Êle não passa de um idiota.

— Porque está criando família como um doido?

— Por ter deixado você por outra moça.

— Que gentileza dizer-me isso! A propósito, a decisão de Lou foi questão de honra.   Tinha engravidado a garota.

— Bem, Lou perdeu e eu ganhei — disse McCall, galantemente.

Perguntou, então, como conseguira apoderar-se do prestigioso cargo de secretária do prefeito.

— Quando a secretária do Prefeito Potter pediu demissão porque ia ter bebê, eu me apresentei para o lugar.   Os maiores acontecimentos da minha vida — disse Laurel, pensativamente — parecem derivar da gravidez de outras mulheres. Fico a pensar se não haverá nisso alguma mensagem.

McCall sacudiu-se de riso e começou a sentir-se culpado. Tinha uma premonição quanto àquele encontro, e isso o fazia tão eufórico que a gravidade de sua missão para o governador parecia correr risco.

Procurou a mão de Laurel, sob a mesa, e a moça permitiu que êle a segurasse por alguns momentos, retirando-a a seguir, com toda a firmeza. Começou, então, a fazer perguntas sobre êle próprio.

— Tal como ensina o compêndio — disse McCall. — Quero dizer: a moça levando o moço a falar de si mesmo. Como posso resistir?

E contou-lhe tudo a seu respeito. Laurel ficou espantada ao saber que êle fora detetive particular, trabalhando primeiro para uma agência nacional, depois por conta própria, até deixar tudo para ser o Sexta-feira do Governador Holland.

— O Prefeito Potter disse que você é advogado.

— Formei-me, mas descobri que um jovem advogado fica sentado em cubículos preparando resumos ou percorrendo assuntos em mal cheirosos livros de Direito.   Não posso suportar o trabalho a uma escrivaninha.

A moça dos coquetéis veio saber se queriam mais algum e Laurel sacudiu a cabeça:

— Dois é o meu limite. Com três fico idiota e com quatro adoeço.   Mas você não precisa-me acompanhar, Mike.

— Não quero mais — disse MaCall à garçonete. — Pode dizer ao garçom que sirva o jantar, senhorita, logo que possa.

Durante o jantar McCall referiu-se a suas inúteis tentativas para se comunicar com Gerald Horton.

— Acha que há alguma possibilidade de conseguir que êle use de sua influência para reduzir a fiança de Rawlings?

— Não o conheço muito bem — disse Laurel. — Como vereador por todos os distritos entra e sai, naturalmente, do gabinete do prefeito, mas não se pode dizer que êle e o Prefeito Potter sejam camaradas. Acredito que se respeitem mutuamente, mas é claro, são adversários, na política, e seu relacionamento é mais correto do que cordial. E é dessa mesma maneira que o Sr. Horton me trata. Nunca foi além da polidez.

McCall disse, desalentado:

— Ben Cordes não ofereceu muita esperança quanto à cooperação de Horton.

— Aquele homenzinho que dirige a estação de rádio do Sr. Horton?

— Sim.   E gerente da campanha política do homem.

Laurel se deteve no ato de mergulhar uma garfada de lagosta na manteiga.

— Êle é isso? — indagou, parecendo surpreendida.

— Para não dizer que escreve os discursos de Horton.

— Então é por isso que vai tanto à Prefeitura!   Algumas das moças chamam-no "O Sombra", por causa do jeito como êle vai trotando atrás do Sr. Horton.   Jamais deixaremos de ter surpresas?

Estava claro que a moça nada sabia da organização de Horton, ou que considerava confidencial o que sabia — de modo que McCall levou a conversa para outros assuntos.

Eram quase oito e meia quando chegaram ao café. Enquanto Laurel ainda o bebericava, McCall desculpou-se e se levantou. O maître-d'hôtel mostrou-lhe a cabina telefônica e êle tentou novamente o número de Gerald Horton.

Dessa vez teve êxito. Uma voz profunda, agradável, empostada, disse:     "Residência Horton".

— É o Sr. Gerald Horton?

— Ele mesmo.

— Meu nome é Mike McCall, Sr. Horton. ..

— Oh! Sim. Estava esperando notícias suas, Sr. McCall. Acabei de falar com Cordes nesse instante.

— Então sabe por que estou telefonando?

67

— Ben e eu discutimos o caso por um bom bocado.   Receio que a minha decisão seja aquela que Ben lhe disse que seria.

— Há   um   fator   envolvido   que   eu   mencionei   de passagem mas não debati com o Sr. Cordes em profundidade — disse McCall.   — Minha firme opinião,   Sr.   Horton,   é   que aquela fiança despropositada provocará tumulto racial na cidade.   O senhor não pode desejar que isso aconteça.

Houve um silêncio. Então, Horton disse, bruscamente:

— Não concordo, Sr. McCall. Uma demonstração, talvez.   Banbury, entretanto, não tem motins raciais.

McCall disse, então, no mesmo tom brusco:

— Sei que não, desde a década de 1920.   Li o relatório da sua Câmara de Comércio.   No ano que vem talvez tenham de publicar uma edição revista.

— Sr. McCall: tem certeza de que não há motivos políticos nesse seu pedido?

Foi a vez de McCall silenciar.   Quando falou, sua voz não tinha timbre:

—   Se o senhor sabe alguma coisa sobre o meu relacionamento com o Governador Holland, sabe que meu trabalho está inteiramente fora da política.   O governador mandou-me para aqui com o único propósito de evitar violência entre brancos e negros, e não fiz segredo da razão de minha presença. Se há política envolvida, é sua gente quem a está fazendo, Sr. Horton.

— Que quer dizer com isso?

O tom de Horton era indulgente.

— Vou-lhe dizer com todas as letras, Sr. Horton.   Estou convencido de que a acusação contra Harlan James   e essa agora contra LeRoy Rawlings são, ambas, manobras políticas, feitas, calculadamente, pelo Promotor Público Volper.   Penso que Volper quer aumentar a já tensa situação racial nesta cidade a fim de atrair os votos dos trabalhadores brancos para a sua plataforma de lei e ordem.   Não acuso o senhor de estar tomando parte nisso, Sr. Horton. . .

— Obrigado — disse Horton, secamente.

—   ... mas, por outro lado, não estou convencido de sua inocência, também.

— Quem o nomeou juiz do meu caráter, Sr. McCall?

— Eu não o estou julgando, senhor.     Estou aqui como investigador, e qualquer investigador que valha o que come não aceita suposições sem provas.

— Toda a minha carreira. . .

— O verme político, Sr. Horton, invade a economia humana de maneiras estranhas. Contudo, não é disso que se trata. O caso é que a razão óbvia de Volper ao recomendar aquela inconcebível fiança a um juiz escolhido a dedo foi a de instigar aqui uma revolta racial. O senhor poderá ganhar a eleição se não levantar um dedo para obter a redução daquela fiança, Sr. Horton, mas não terá uma comunidade tão grande para governar, porque muitíssimos eleitores estarão mortos.

Horton já não falou em tom indulgente:

— Encaro isso, Sr. McCall, como difamação de caráter!

— Então,   processe-me — sugeriu McCall.   — Mas   enquanto não o faz, tratemos do assunto em pauta.   O que eu lhe disse afetou de qualquer maneira sua posição em relação àquela fiança exorbitante?

— Nem um pingo! — retrucou Horton, desligando num repelão o telefone.

Quando McCall voltou à mesa, Laurel perguntou:

— Conseguiu alguma coisa?

— Oh! Sim! — disse   McCall. — Tudo que há   de ruim.   Falei com êle, mas não erguerá um dedo. Acha que o Prefeito Potter, ou seu advogado, Duncan, que êle está apoiando para sucedê-lo, teriam alguma influência sobre o juiz?

Laurel teve uma expressão de incredulidade.

— Você deve estar brincando, Mike.   Edmundson é homem de Horton.   Além disso, é segregacionista.

McCall ergueu os ombros.

— Esqueça, garota.   Enquanto a cidade se incendeia, toquemos harpa.

Assim, passaram o resto da noitada divertindo-se. Viram o show das nove horas, que foi de primeira ordem, e dançaram durante algum tempo. Depois do Capri passaram por dois outros clubes. Tomaram vários goles mais. Laurel não se tornou idiota nem doente. McCall só lhe ofereceu anêmicos gin-tônicas.

Levou-a para casa depois da uma hora da madrugada. Laurel desculpou-se, com uma atitude que êle esperava fosse de pesar, por não o convidar a entrar — tinha de estar de pé dentro de seis horas — disse ela — e havia um dia cheio pela frente.

— Sou uma dessas sombrias pessoas que precisam de oito horas de sono para funcionar.     Espero que não se importe, Mike?

— Isso é como perguntar a um condenado se acha que a corda que tem no pescoço lhe parece confortável — falou McCall. — Pelo menos posso receber um beijo de boa-noite?

O que aconteceu então, rápido como foi, fêz com que McCall amaldiçoasse a si próprio durante todo o caminho de volta ao hotel por não ter levado Laurel mais cedo para casa.

 

Às oito horas estava de pé. Apanhou um Post-Telegram para ler com o pequeno almoço. A prisão de LeRoy Rawlings não era a notícia principal — uma comoção do Oriente Médio suplantara aquele caso — mas êle aparecia na primeira página.

A notícia trazia como manchete: CORAÇÃO NEGRO N.° 2 ACUSADO DE CONSPIRAÇÃO. Um subtítulo dizia: Fiança Fixada em $ 50,000. A notícia, em si mesma, era um insulso relato dos fatos.

McCall voltou a página e leu o editorial. O Post-Telegram deplorava vivamente a fiança excessiva. Nada tinha a dizer sobre a acusação em si. Nem havia qualquer comentário sobre a possibilidade de que a prisão viesse a provocar violência racial. Talvez — pensou McCall — isso fosse bom.

Depois do café foi para o gabinete do Prefeito Potter. A Prefeitura abria para o público às nove, e já passava quase um quarto quando McCall dobrou a Rua Primeira.

Mesmo a dois quarteirões de distância pôde ver a multidão que enchia a calçada, transbordando para a rua, diante da Prefeitura. Aproximando-se reparou que tal multidão era, predominantemente, composta de gente de côr. Os raros bran­cos pareciam jovens, e, geralmente, cabeludos.   Calculou que ali estivessem umas 500 pessoas. Talvez uma em cada cinco estivesse usando a jaqueta da "Corações Negros".

A multidão cantava: "Libertem LeRoy! Libertem LeRoy!"

Aquele cântico era ameaçador. McCall havia observado cenas assim com demasiada freqüência para saber sentir a disposição de um grupo humano pelo seu tom. Qualquer faísca incendiaria aquele.

A polícia tinha bloqueado a Rua Primeira diante da Prefeitura, tendo abandonado, ao que parecia, o esforço para mantê-la livre. Um guarda de trânsito fazia com que os veículos virassem na Avenida Douglas, que tinha mão única àquela altura.

McCall manobrou para a outra pista, de forma a poder virar à esquerda, a meio caminho entre as Ruas Primeira e Segunda, até o estacionamento municipal que ficava do outro lado do grande edifício.

Quando saiu do estacionamento, caminhando até a Rua Primeira, a multidão tinha parado de cantar para ver o que se estava passando ao alto da escadaria da Prefeitura. Ali estava o Prefeito Potter, rotundo, as guedelhas brancas, tendo a um lado um homem de côr, muito escuro, alto, de seus trinta e cinco anos, que usava óculos e um terno marrom, de corte conservador. Do outro lado estava um homem de seus cinqüenta anos, branco, volumoso, rosado e de cabelos grisalhos. Um trabalhador de macacão instalara um microfone e um par de alto-falantes ali.

O silêncio da multidão ainda era mais agoureiro que o seu canto. McCall só podia desejar que os homens que estavam na escadaria fossem convincentes.

Decidiu permanecer do outro lado da rua, em vez de forçar passagem através da aglomeração.

O homem de macacão desviou-se para um lado. Imediatamente o Prefeito Potter disse, ao microfone:

— Os que estão lá no fundo podem-me ouvir bem?

As coléricas respostas da multidão foram pouco tranqüilizadoras.

— Meus amigos de Banbury, estou certo de que todos conhecem estes dois cavalheiros, mas vou apresentá-los a quem quer que ainda não os conheça.   À minha esquerda está o can­didato a prefeito, Sr. Jerome Duncan.

Voltou-se em direção do advogado negro. Houve alguns vivas e algumas palmas. Não se poderia chamar àquilo uma ovação. McCall disse consigo mesmo que tal reação não era necessariamente, um índice do morno apoio que a gente de côr de Banbury dava à candidatura de Duncan. Provavelmente, significava que a multidão não estava disposta a dar vivas a ninguém.

O Prefeito Potter fêz um movimento de cabeça para o outro lado.

— À minha direita está o vereador por todos os distritos e candidato a prefeito pela oposição, Sr. Gerald Horton.

Alguns apupos. Nenhuma palma. A multidão estava excitada demais pelo caso Rawlings, para se interessar por apresentações políticas.

— O Sr. Duncan, o Sr. Horton e eu, acabamos de ter uma reunião — continuou o velho prefeito. — Concordamos em que é essencial para o bem-estar desta cidade que nós três estejamos ombro a ombro num caso, apesar das diferenças políticas.   O nosso acordo é o seguinte: que a violência não deve ter permissão para destruir a paz em nossa cidade.   Queremos que saibam que nos solidarizamos com a sua causa, e empenhamos nossa influência legítima, e reunida, para obter o que pedem.     Se tiverem paciência,   meus   amigos, nós falaremos com o Juiz Edmundson e pediremos a imediata redução da fiança do Sr. Rawlings.   Faremos isso assim que o Juiz Ed­mundson chegue ao seu escritório.

Então a vista e o alarido da multidão mudaram a opinião de Horton. McCall sorriu de si para si. Aquele cântico fora mais convincente, consideravelmente mais, do que a simples voz pelo telefone de um emissário do governador.

McCall ficou impressionado com a astúcia de Heywood Potter. O único homem que poderia exercer qualquer influência sobre o Juiz Edmundson, entre os três que ali estavam, era Gerald Horton. Mas, através da manobra do velho, o povo, incensado, daria a Potter e ao homem que êle apoiava para sucedê-lo, o mesmo crédito que desse a Horton.

Alguém gritou:

— Isso não basta, prefeito!   Queremos que retirem todas as acusações feitas a LeRoy!   E as de Harlan também!

— Vamos, vamos, falem sensatamente — replicou o prefeito. _Todos sabem que uma promessa dessas, partida de mim, nada significaria. Sou o prefeito, não um juiz — não tenho autoridade para suspender acusações contra quem quer que esteja em processo legal. Não tenho controle sobre o promotor público, que é um funcionário deste condado, não da cidade. E, certamente, não tenho controle sobre o tribunal distrital, que está sob jurisdição do Estado. Nenhum desses dois cavalheiros que aqui estão teriam mais influência no assunto do que eu. Contudo, deixo registrado, aqui e agora, que me oponho à acusação feita tanto contra Harlan James como contra LeRoy Rawlings.

Houve muito mais aplausos dessa vez, misturados a algumas vozes contrárias. Um homem que usava a jaqueta da "Corações Negros" berrou:

— Então por que não traz o promotor público e o juiz até aqui?

Outro trovejou:

— Queremos ação, não conversa mole!

Uma voz profunda suplantou as duas primeiras:

— Que acham Duncan e Horton?

O prefeito relanceou os olhos para o candidato de côr e deu um passo atrás. A multidão silenciou quando Jerome Duncan aproximou-se do microfone:

— Acho o mesmo que o prefeito. Sou pela anulação das acusações feitas contra o Sr. James e contra o Sr. Rawlings. Não por ser homem de côr como eles.   Eu diria a mesma coisa se a côr deles fosse cardeal... ou branca.   Aqueles dois homens nada fizeram de errado.   Sou contra a perseguição de inocentes.   Estou certo de que todos os cidadãos decentes de Ban­bury também pensam assim.

O aplauso foi prolongado.

— Sr. Horton? — disse o prefeito.

Horton aproximou-se.   McCall ficou a cogitar em como ele iria retorcer-se. Mas o vereador proprietário da estação de rádio tomou calmamente o microfone e disse:

— Eu acredito aa lei e na ordem, com justiça.     Esses homens foram acusados de certos delitos, e eu defendo seu direito constitucional a um rápido e justo julgamento, de acordo com a lei.

Ia dizer mais alguma coisa, mas os apupos engrossaram e abafaram-lhe a voz. Alguns brancos estavam aplaudindo, mas não tinham possibilidade contra a algazarra dos negros. McCall viu o Prefeito Potter puxar Horton pela aba do casaco, quando Laurel Tate veio apressadamente de dentro do edifício e sussurrou algo no ouvido de Sua Senhoria.

O prefeito adiantou-se para o microfone e gritou:

— Por favor, minha gente!   Por favor!

Era surpreendente ver como sua velha voz se elevava. Sobre o rumor que ia cedendo, êle gritou:

— Estou informado de que o Juiz Edmundson acaba de chegar.   Se ficarem por aqui, nós conferenciaremos com êle e voltaremos logo para lhes informar a decisão final!

Potter foi tangendo Horton e Duncan diante de si, como um pastor atabalhoado tange suas ovelhas. Laurel fechava a fila.   Os quatro desapareceram no interior da Prefeitura.

O zum-zum da multidão e o arrastar de pés se fez ouvir. Houve até algumas risadas. McCall sentiu um grande alívio.

Caminhando até a esquina, fêz a volta pela aglomeração, e entrou na Prefeitura por uma das portas laterais. Encontrou uma placa que o informou ficar o tribunal municipal no segundo andar.

Subiu os sujos degraus de mármore. A sala do tribunal estava vazia, mas um oficial de justiça postara-se de pé, à porta. Quando McCall relanceou os olhos para dentro o homem disse:

— O tribunal só abrirá às dez horas, esta manhã.

— Eu estava procurando o prefeito.

— Está na sala de audiências, com o Juiz Edmundson, o Sr. Horton e o Sr. Duncan.   Não pode ser incomodado agora.

McCall poderia ter-se reunido a eles como observador, mas resolveu não fazer tal coisa. Sua presença nada acrescentaria à reunião, e, realmente, qualquer sugestão de que estavam sendo pressionados pelo representante do governador poderia transtornar os entendimentos. Desceu novamente as escadas e foi esperar no gabinete do prefeito.

Laurel estava sozinha. Seus olhos, naquela manhã, pareciam de vidro verde: não dormira suficientemente. McCall deu um sorriso. A moça estava tomando café numa xícara de plástico.

— ôi! — disse êle. — Você está parecendo muito bonita, depois de todas aquelas extravagâncias da noite passado.

— Está sofrendo de ilusões, Sr. McCall, ou teve maus sonhos a noite passada.   Café?

Uma cafeteira e uma pilha de xícaras plásticas estavam sobre uma mesa do canto.

— Se estiver bom.

— Está muito bom.   Fui eu mesma que fiz.

Êle serviu-se de uma xícara de café e foi sentar-se à beira da escrivaninha de Laurel enquanto bebia. Estava realmente muito bom, tal como ela dissera.

— Você tem muitas virtudes, ó Flama do Ocidente — disse McCall. — Posso decidir-me a lutar por você.

— Bem, isso é honesto — disse Laurel, calmamente — Embora a honestidade não o vá levar a parte alguma.   Quero dizer: não, necessariamente.

— Você também gosta de arreliar a gente.

— Que mulher não gosta?   Eu gosto que meus homens bamboleiem.

Assim estiveram por algum tempo. Quando estava à altura de duas xícaras mais, McCall ouviu a voz do prefeito, amplificada, atravessar as janelas.

— Senhoras e senhores!   Podem dar-me atenção?

Os dois correram para a janela mais próxima. O prefeito o vereador por todos os distritos, e o advogado, estavam de volta à escadaria.

—   O tribunal está anulando a exigência de fiança no caso de LeRoy Rawlings e vai soltá-lo aceitando apenas seu próprio   compromisso.

Selvagem aclamação, assobios. O velho ergueu a mão e a multidão tornou a aquietar-se.

— O funcionário do tribunal já telefonou para o oficial da polícia que está de serviço, a fim de que o Sr. Rawlings seja trazido aqui para o tribunal às dez horas, menos de meia hora a partir de agora, de modo a ser posto oficialmente em liberdade.

Mais   aclamações.

McCall disse a Laurel:

— Para um velho guerreiro como o Prefeito Potter, essa não foi boa tática. Em lugar de se dispersar, eles vão ficar por aqui até ver Rawlings e carregá-lo em triunfo.

Mostrou ter dons de profecia.   O prefeito esganiçou:

— Apelo para este bom povo a fim de que se disperse agora.   Vocês já interromperam o trânsito há algum tempo, portanto, por favor, vão para casa e deixem os negócios da zona da Prefeitura prosseguirem normalmente.

Ninguém se moveu. A disposição do povo se havia transformado de colérica para festiva. Os negros, pelo menos, não queriam que lhes negassem a visão de seu herói.

O Prefeito Potter hesitou, olhando para os policiais que estavam nas barricadas. Então, sacudiu a cabeça, sorriu, acenou para a multidão, e fêz um gesto de chamada para Horton e Duncan.

O homem de macacão, imperturbável, começou a desmontar o aparelhamento de som para discursos em público.

 

Alguns momentos depois, Potter, o vereador por todos os distritos e o advogado que era seu opositor, entraram no escritório do prefeito. Jerome Duncan ofereceu a mão negra e cordial ao ser apresentado a McCall, mas o aperto de mão de Horton foi perfuntório. O homem estava usando sua fisionomia inescrutável de político.

—   O Sr. McCall e eu tivemos uma conversa telefônica na noite passada — disse ele ao prefeito.

—   Ao que parece o senhor acabou por chegar ao meu ponto de vista, Sr. Horton — sorriu McCall.

—   Sobre a faísca para tumulto que seria aquela fiança tão alta, sim.   Na noite passada pensei que o senhor estava exagerando o perigo.   Mas tinha razão.   Aquela multidão que aí estava mostrava-se pronta a estourar. Contudo, ainda me ressinto de seus impertinentes comentários sobre o promotor público.

McCall olhou para Horton, bem dentro dos olhos.

— Não retiro uma só vírgula de tudo quanto disse sobre Volper, Sr. Horton. Aquela alta fiança, provocadora, foi estabelecida por insistência dele. A não ser que seja completamente idiota, devia saber o que estava fazendo: acendendo um fósforo junto de um depósito de gás. Esta cidade estava a ponto de ir pelos ares, Sr. Horton. E ainda pode ir, se Volper não fôr contido.

— Quem vai estourar — disse Jerome Duncan — é Vol­per. O escritório do   promotor   terá   que   ser representado na audiência da fiança, de forma que o funcionário do tribunal sem dúvida alguma telefonou para o escritório de Volper.

— Ouçam — disse Gerald Horton, com frieza. — McCall acusa Art Volper de estar incitando o povo ao tumulto, deliberadamente, por motivos políticos.   Acredita que Volper seja capaz disso, Duncan?

O negro sorriu, sem alegria.

— Não iria tão longe sem prova res gestae.   Mas tem que confessar, Horton, que Volper não é objetivo quando se refere à "Corações Negros".

— Nem eu sou — retrucou Horton. — Qualquer cidadão respeitador da lei tem o dever de se opor a uma organização que prega a revolução.

— Não está provado que a "Corações Negros" pregue a revolução — disse o Prefeito Potter, delicadamente. — Harlan James ainda não foi levado a julgamento.

O vereador fêz um gesto de impaciência.

— Ouviu o discurso de James ontem, em fita gravada?

McCall falou:

— Ouvi.   James não terá lugar nos livros de História, ao lado de Tom "Paine, mas seu discurso de forma alguma pregava a revolução.

— Pregava a violência! Quando um homem de côr publicamente insiste com outros homens de côr para que espanquem os brancos com bastões de baseball e os rebentem com tiros de revólver, que nome lhe podemos dar senão de revolucionário?

—   Espere um minuto — disse Duncan, em tom mais firme. — Êle recomendou essas coisas apenas como forma de revide contra ataques dos brancos.   Isso é recomendar defesa própria.

— Ora, vamos, Duncan!     Aquele sujeito tem estado a pregar violência em suas reuniões com a "Corações Negros" desde que formou a organização.

—   A quantas reuniões da "Corações Negros" o senhor assistiu?

— Bem, a nenhuma.   Ben Cordes, entretanto, foi a várias delas, quando estava ensaiando o programa especial que fizemos sobre os militantes negros, no mês passado.   O relatório de Cordes sobre o que se disse naquelas reuniões convenceu-me de que a organização é perigosa.

O telefone que ficava sobre a mesa de Laurel tocou. Ela atendeu.

—   Sr. Cunningham para o senhor, Senhor Prefeito.

— Vou atender lá dentro, Laurel — disse o prefeito. — Os cavalheiros querem entrar?

Ambos os candidatos tendo dito que precisavam sair, o prefeito fêz-lhes um gesto de adeus e entrou em seu gabinete particular. Jerome Duncan apertou amistosamente a mão de McCall.

—   Receio que não tenha visto muito da melhor parte de nossa cidade, Sr. McCall — disse êle. — Há uma parte melhor, saiba.   O Prefeito Potter fêz um grande trabalho para os pobres, aqui, conseguindo ajuda federal para projetos desesperadoramente necessários,   e   o   senhor bem   sabe   que   isso é, em nossos dias, como que um passe de mágica.   Espero, se fôr eleito, continuar o seu bom trabalho.

— Eu devo estar politicamente neutro, Sr. Duncan — disse McCall, o rosto franco. — Mas posso dizer, sem hesitação, que o governador é totalmente pelos bons trabalhos.

— Sei disso — sorriu Duncan.   Tinha um sorriso que valia um milhão de dólares, e que fêz McCall pensar de novo em Carl Stokes.

— Sendo esse o caso, Sr. McCall, pode fazer lembrar ao governador que Banbury tem uso para bastante dinheiro do Estado, também.   Até a próxima vez.

Fêz um polido cumprimento de cabeça a Horton e saiu.

— Bem — disse Gerald Horton. — Preciso ir, também.

Não estendeu a mão:

— Adeus, Sr. McCall.

— Adeus — disse McCall. — Lamento que não concordemos em relação a Volper, Sr. Horton. Eu desejaria que o senhor pudesse vê-lo como eu o vejo.

— Não poderia estar em maior desacordo — falou Horton. Parecia muito irritado.

—   Nosso promotor público é um consciencioso servidor do povo e um cidadão patriota que está atingindo duramente um grupo fora da lei, que precisa ser atingido.   Vou fazer um grande discurso político hoje à noite, a propósito, e se o senhor fôr ouvi-lo, verá que apoio o Sr. Volper e suas ações da maneira mais positiva.

— Benjamin Cordes falou-me algo acerca de um comício seu esta noite.   Onde vai ser, Sr. Horton?

— No Salão do Sindicato dos Metalúrgicos, na zona sul.

— A que horas?

— Oito.

— Farei o possível para estar lá.

— Sim — disse Horton, em tom gelado. — Faça isso.

Girou nos calcanhares e saiu.

— Preciso ligar todos os termostatos — disse Laurel. — A voz dele é o que sempre imaginei que seria o toque da mão de um morto.   Que tal levar-me a esse comício, Mike?

— Oh! — disse McCall, rapidamente. — Eu gostaria de poder, Laurel, mas já estou comprometido em outro lugar. Não condenaria você a ouvir um discurso político, seja como fôr — pelo menos não um discurso de Horton.

Ficou a pensar por que ela o olhava de maneira tão estranha. Na verdade, quase se esquecera de seu encontro, naquela noite, com a loura secretária do Chefe Condon, Beth McKenna.

— Bem-feito, para eu não estar-me oferecendo a você — disse Laurel despreocupadamente. — Agora, preciso realmente voltar ao trabalho.

E começou a tamborilar na máquina de escrever.

McCall entrou no gabinete do Prefeito Potter.   O velho acabava de desligar o telefone.

—   Um funcionário meu — disse Potter. — A BOKO anunciou que nova fita gravada de Harlan James chegou pelo correio, esta manhã.   Vão transmiti-la às dez horas.

McCall olhou para o relógio. Faltavam cinco para as dez.

— Não vou poder ouvir, Senhor Prefeito.   Quero estar no tribunal quando Rawlings tiver sua audiência pela fiança.

A escadaria de mármore estava entupida de gente que de­sejava entrar na sala do tribunal. A polícia estava afastando a aglomeração com dificuldade. O ânimo daquela gente era dócil, até mesmo bem-humorado.

O emblema de McCall permitiu-lhe novamente, entrar na sala. Calculou que entre os espectadores havia noventa por cento de negros e cerca da metade dos homens usava a jaqueta da "Corações Negros".

Embora passasse alguns minutos das dez, o juiz ainda não estava presente. Também o réu não aparecia. Seu advogado, Wade, sentava-se à mesa da defesa, rosto inescrutável. McCall pensou, contudo, que êle devia estar satisfeito.

Arthur Volper não estava presente. Um jovem assistente da promotoria sentava-se, solitário, à mesa própria. Parecia nervoso.

Alguns minutos depois, LeRoy Rawlings foi trazido pelo Sargento Fenner. Os homens das jaquetas pretas fizeram, de pé, uma ovação ao seu vice-presidente, quando êle entrou. Sorrindo, Rawlings juntou as mãos erguidas acima da cabeça, como um pugilista costuma fazer ao ser aplaudido.

O Sargento Fenner entregou o prisioneiro a um oficial de justiça e se foi, lançando um amistoso gesto de adeus a McCall, ao passar.

Mal Rawlings se sentou junto de seu advogado, o juiz entrou e todos se levantaram. Edmundson era um sujeito de seus cinqüenta anos, pequeno, crispado, cabelos ralos e côr de areia, sofrendo de acne e exibindo uma expressão azeda. Bateu com o martelo e disse, em voz irritada:

"Sentem-se-o-tribunal-está-em-sessão-os-advogados-queiram-aproximar-se."

A audiência levou alguns minutos. O assistente do promotor entrou com uma objeção erudita quanto a qualquer redu­ção da fiança do acusado e o juiz fê-lo calar-se depressa:

— Isto não é um processo entre adversários. O assunto fica à discrição do tribunal e minha decisão já está tomada.   Não vamos perder tempo, Sr. Browning!

Anulou, então, a fiança, libertou o réu sob confiança própria, e mandou que o caso seguinte entrasse em pauta. Quando Rawlings começou a andar pela ala central com seu advogado, a maioria dos espectadores ergueu-se atrás dêle. O Juiz Edmundson bateu na mesa com o martelo, e gritou:

— Os espectadores permaneçam sentados!   Não quero a sala do meu tribunal   alvoroçada   por um êxodo em   massa! Poderão sair no primeiro recesso.

McCall já estava no vestíbulo. Quando a porta da sala do tribunal se fechou atrás dos dois homens de côr, disse:

— Um minuto, Sr. Rawlings.

Ambos os homens voltaram-se. Rawlings disse, em tom neutro:

— Ôi, McCall.

— Este é Mike McCall?

O advogado estendeu a mão.

— Roy disse-me que o senhor deu uma lição a Volper em matéria de Direito Constitucional, Sr. McCall. Eu gostaria de estar lá para assistir.

McCall pôs o assunto de lado, sorrindo.

— Penso que o promotor público conhece a lei, Sr. Wade. Êle só estica um pouco os regulamentos.   Prazer em conhecê-lo.

Rawlings estava olhando para êle.

— Afinal, que interesse tem Sam Holland na "Corações Negros"?   Se êle não tivesse água para levar ao seu moinho o senhor não estaria xereteando por aqui.

— LeRoy! — disse Wade.

— Não foi apenas a "Corações Negros" que me trouxe aqui — disse McCall. — Foi a ameaça de um tumulto racial. O governador quer que eu afaste esse perigo, se puder.

— Mas é muito simples — disse Rawlings, em voz arrastada. — Ordene a Volper que retire as acusações contra Harlan e contra mim, e diga ao Juiz Granam que revogue o rompimento da fiança por parte de Harlan.

McCall olhou o líder negro dentro dos olhos.

— Ora, vamos, Rawlings!     Não está falando com um idiota e eu não estou falando com um idiota.     Sabe que o governador não tem autoridade para fazer essas coisas.   O senhor e a "Corações Negros" estão inclinados a fazer o jogo de Volper?   Ao que parece nada pareceria melhor ao homem do que uma situação de motim em grande escala aqui na cidade.     Isso polarizaria,   sem dúvida,   a   reação   dos brancos. E se fosse bastante grave, mereceria manchetes e notícias radiofônicas, em todo o território nacional, dando a Volper uma notoriedade como não poderia obter nem numa centena de anos.   Vocês não podem ser tão estúpidos.

— Não me chame de estúpido, homem — disse Rawlings. O branco de seus olhos se injetou de sangue. — Nunca faça isso! Não estou fazendo jogo nenhum! São os irmãos negros e a comunidade negra que sofrem todo o castigo quando um gueto se incendeia. Os poucos e sórdidos comerciantes honky que perdem alguns aparelhos de TV e um pouco de vidro laminado mal contam, considerando os lucros que espremeram dos negros durante gerações. Quando Whitey esbarra pesado demais, homem, ninguém vai impedir que os negros empurrem de volta! Compete a vocês, honkies, evitar os barulhos.

— LeRoy — disse o advogado negro, outra vez.   Estava desolado.

— Não quero entrar em discussão sobre de quem será a culpa se esta cidade pegar fogo — disse McCall. — Só quero evitar que o fogo venha.   E se você tivesse visto a multidão diante da Prefeitura, esta manhã, compreenderia quanto esta cidade esteve próxima de se reduzir   a cinzas.     Acha que Harlan James desejaria usar sua influência para moderar os ânimos, no caso de que outro incidente   como   o   desta manhã venha a surgir?

— Que influência pode ter um fugitivo que se oculta? — perguntou Rawlings, amargamente.

— Eu gostaria de discutir isso com o Sr. Harlan, pessoalmente.   Pode conseguir que eu o veja?

A resposta de Rawlings foi imediata e automática:

— E como posso saber onde êle está?

— Sr. McCall — disse Wade, — mesmo que LeRoy soubesse, o fato de conseguir que o senhor visse Harlan re­presentaria confissão   de que o   delito   de que o   acusam verdadeiro. Pelo menos, seria essa a interpretação do promotor público.     Seja razoável.

— Os senhores têm a minha palavra, como emissário do Governador Holland, de que ninguém saberia disso por mim. Não preciso sequer saber onde está o Sr. Harlan. Estou perfeitamente disposto a ter os olhos vendados. Tudo quanto quero é uma conversa face a face com êle.

— Não, LeRoy, espere um momento — disse o advogado negro. — Que iria acontecer se visse Harlan, Sr. McCall?

— Êle continua mandando discursos gravados em fita para a BOKO.   Outro estava programado para as dez horas desta manhã.

Olhou para o relógio e continuou:

— Deve ter acabado, agora.   Eu tenho a esperança de persuadi-lo a fazer um apelo público ao comedimento.

Rawlings mostrou os dentes.

— Já lhe disse que não sei onde êle está.

— Acho difícil acreditar nisso, Sr. Rawlings.

— Não me importa que não acredite, honky, está ouvindo?

Os olhos de McCall estreitaram-se.

— Até agora considerei que esta era uma conversa entre homens razoáveis. Por que, de repente, essa xingação, Raw lings? Deve conhecer minha reputação quanto à sinceridade no trato...

— Não gostou, heim? "honky" põe vocês tensos, não é? Agora sabe como um irmão se sente quando o chamam de "nigger".

— Nunca em minha vida chamei alguém por nome racial ou étnico — disse McCall, friamente. — E que o diabo me leve se deixar que você me ponha na defensiva!   Ouvi dizer que era um homem inteligente.   Estou começando a duvidar disso.

O rosto negro avançou para junto do dele.

— Que patranha é essa que está querendo impingir, Mc­Call? Não cantou mani, mani, mu, quando era garoto? Nunca chamou aquela castanha grande de castanha do Pará? Não?

Sua mão enorme agarrou o paletó de McCall.

— Responda!

— LeRoy, quero que você tire as mãos de cima do Sr. McCall — disse o advogado negro, calmamente. — E já.

— Não se incomode, Sr. Wade — falou McCall. — Eu poderia derrubar seu cliente sem piscar um olho, se quisesse, grande como êle seja. Ouça-me, Rawlings. Oh! Primeiro largue meu casaco.

Rawlings expeliu ruidosamente o ar e sua mão afrouxou-se.

— Obrigado.   Eu cresci na zona sul de Chicago.   O primeiro garoto com quem me envolvi numa briga a socos era de côr.   Sangramos o nariz um do outro, e não sei qual de nós ficou mais surpreendido ao ver que ambos tínhamos sangue vermelho.   Tornamo-nos amigos íntimos.   Eu nunca chamaria você de nigger, Rawlings.   Mas não estou certo de que não o chamaria de esquentado.

Subitamente, Rawlings teve um sorriso carteado.

— Okay, McCall, retiro o honky.   Mas ainda assim não o posso ajudar.     Ontem recebi uma carta de Harlan, pelo correio, e era quase que a mesma coisa que êle escreveu às estações de rádio e TV.   Disse que recomendasse aos outros membros da "Corações Negros" que não se preocupassem com êle, que estava bem, mas que não ia deixar que nenhum de nós   soubesse onde estava para que os suínos não   fizessem pressão sobre nós para contar.

O advogado Prentiss Wade franziu as   sobrancelhas.

— Você não me falou nisso, LeRoy.    Onde   está   essa carta?

— Rasguei.

— Rasgou? — Wade gritou. — Essa carta poderia ter ajudado na sua defesa contra essa acusação!

Rawlings pareceu desapontado. Depois ergueu os ombros.

— Tarde demais agora, Prentiss.   Recebemos nosso correio pela manhã e eu fui preso à tarde.   Como poderia saber que ia precisar me defender?

McCall falou:

—   Deixem-me combinar uma coisa.     Se Harlan James fizer saber a vocês onde está, podem perguntar se êle falaria comigo?

— Vou   pensar nisso —   disse   Rawlings.   —   Onde   o encontro?

— Estou no Banbury Plaza.  

Rawlings   voltou-se:              

— Vamos, Prentiss, quero tomar um banho para tirar do corpo a fedentina da prisão.

Afastou-se sem um olhar. Prentiss Wade sorriu para McCall, fêz um gesto de desespero risonho com as mãos, e apressou-se a seguir o seu cliente.

 

A policial Beth McKenna morava num bairro residencial de prédios de apartamentos de melhor categoria do que o de Laurel Tate. Seu edifício tinha doze unidades, num só andar, e era construído como um C desenhado em linhas retas, as pontas voltadas para a rua, com um pátio gramado entre elas. Havia portas externas para cada apartamento, dando para um terraço com parapeito que corria ao longo da linha interna do C.

O apartamento de Beth era o número 3, do lado esquerdo do terraço. A moça veio à porta usando uma blusa branca, de mangas compridas, de colarinho masculino e gravata de laço, combinando com sua saia azul. O conjunto conseguia ser tudo, menos masculino. A saia era tipo mini, os sapatos da moda, e as meias pretas e rendadas.

Tendo visto a moça, da última vez, em seu uniforme, com a saia no comprimento regulamentar, McCall não lhe reparara nas pernas. Reparou, então — se "reparar" é a palavra — no instante em que ela abriu a porta. Eram longas, esbeltas, como num desenho de Vargas.   Sua inspeção demorou-se.

— Também tenho um rosto — observou-lhe Beth, do limiar da porta.

— E adorável, também — disse McCall, distraidamente. — Minha especialidade não são as pernas. Oh! Gosto de pernas, está certo, mas sou uma espécie de homem de todos os   pontos,   quero   dizer, de todas as curvas,   sem   qualquer fanatismo anatômico particular. Posso entrar?

— Do jeito com que olhava para elas — falou Beth, sem se mover — não estou segura de deixá-lo entrar.

— Sou perfeitamente inofensivo —   protestou   McCall. O caso é que elas estavam aí, às claras, para serem vistas, e eu enxergo muito bem.   Se a intenção é de não deixar que sejam vistas, por que não tentar a maxissaia?

Ela riu:

— Pelo menos você não se chafurda em clichês. O comentário original da pessoa com quem saí da última vez foi: "Puxa, você tem belas hastes".   Entre.

O apartamento parecia ser de três aposentos, como o de Laurel, mas os dois que McCall podia ver eram maiores do que os da outra moça e mobiliados com melhor gosto.   As policiais de Banbury deviam ganhar mais do que as   secretárias, o que era improvável.   Com certeza o tenente da polícia com quem ela fora casada deixara-lhe um bom seguro. A sala de estar tinha lareira de verdade e um balcão de almoço separava a sala de uma cozinha completa, grande bastante para incluir mesa e quatro cadeiras.   A porta do lado oposto deveria levar ao dormitório e banheiro.

— Eu não tinha ainda acabado de me vestir — disse Beth. — Quer beber alguma coisa?

— Posso esperar — disse McCall.

— Volto num momento.

A moça saiu do dormitório usando uma jaqueta de mangas compridas que combinava com a saia.   Não se demorara mais de dez minutos.

— Que espécie de comida a está tentando? — perguntou McCall.

— Esta noite sinto-me italiana.

— Então será italiana.   Alguma recomendação?

Ela hesitou.

— Bem, há o Luiggi, na parte italiana da cidade, mas...

— Tenho carta branca para despesas — disse McCall. — É o melhor que existe em Banbury?

— Positivamente.

— Então, iremos ao Luiggi.

Tiveram excelente espaguete, lulas passáveis, e Chianti impossível. McCall gabou tudo aquilo, como se tivesse sido preparado pela própria Mama Leone.

Quando tomavam o café expresso, McCall perguntou quem era o candidato da moça para a Prefeitura.

— Como policial e como cidadã — disse êle.

— A maioria está apoiando Horton — disse Beth. — Eu estava, também.   Por causa de seu grito de lei e ordem, naturalmente.   Mas comecei a ter dúvidas...   O Chefe Condon está sempre dizendo que precisamos de um prefeito que não faça tolices em relação aos militantes negros, mas talvez que um homem de côr na Prefeitura aquietasse a agitação racial, e assim não teríamos perturbações da ordem.

— Já ouviu Horton falar? — perguntou McCall.

Beth sacudiu a cabeça negativamente.

— Gostaria de ouvir?     Êle tem um comício esta noite.

Beth pousou a   xícara.

— Você está insinuando alguma coisa delicadamente, não está? Todo o tempo teve a intenção de assistir a esse comício.

Êle deu um sorriso.

— Eu preciso,   realmente, ouvir o que Horton tem a dizer.   Não se importa, Beth?

—   Esta é a história da minha vida — suspirou Beth McKenna. — Outras moças são levadas aos clubes noturnos e eu, nos meus encontros, acabo ouvindo gaitas de fole.

Empurrou a cadeira para trás:

— Não seja assim tão tolo, Mike.   Isso faz parte do seu trabalho.   Eu vou adorar Horton.

O Salão do Sindicato dos Metalúrgicos ficava na esquina de South Nevins com Kosciusko, no centro da Pequena Polônia. Era um edifício de dois andares, cujo interior tinha sido raspado como uma abóbora. Provavelmente fora depósito de armas da Guerra Civil ou academia de equitação. Parecia bastante antigo, e era mais usado para acontecimentos sociais e reuniões da comunidade.

Cerca de 500 cadeiras dobráveis tinham sido instaladas, e a maioria estava ocupada. Os dirigentes já estavam no palco quando McCall chegou com Beth McKenna, mas o programa não tivera início.

Duas entre a meia dúzia de cadeiras que ficavam ao fundo do palco estavam ocupadas por Gerald Horton e Ben Cordes. Três outros homens, e uma mulher, todos robustos, transbordavam das outras quatro cadeiras — e pertenciam, sem qualquer dúvida, à categoria do partido trabalhista. O rosto rubro de Horton fulgurava, positivamente, de amor por aquela gente sobre a qual passeava os olhos, fazendo acenos de cumprimento e sacudindo a cabeça. Técnicos tinham instalado o aparelhamento de emissão radiofônica e estavam fazendo os ajustamentos   derradeiros.

Os dois encontraram cadeiras nas filas do fundo, e McCall examinou o auditório de Horton. Era composto quase que inteiramente do pessoal do zuarte — trabalhadores de fábrica com suas esposas ou namoradas. Não era de surpreender. O surpreendente era ver, aqui e ali, um rosto negro.

McCall comentou:

—   Não esperava que Horton tivesse partidários de côr.

— Por que não? — retorquiu Beth. — Alguns   deles sentem-se tão preocupados com a "Corações Negros" quanto os brancos.   As urnas dão a Horton dez por cento de votos de negros.

McCall duvidava que um candidato da "lei e ordem" como Horton, pudesse dirigir algo com essa proporção de apoio dos negros, mas não fêz comentários.

O minúsculo Ben Cordes saltou de sua cadeira em direção da estante. Gesticulou com o microfone, sorrindo e cumprimentando as pessoas que estavam na primeira fila. Finalmente, ergueu as mãos e a tagarelice dos espectadores cessou.

— "Senhoras e senhores, não vou submetê-los a um longo palavrório para apresentar nosso orador desta noite.   Todos conhecem aquele que vieram ouvir hoje, e todos conhecem sua folha de serviços prestados à nossa querida cidade.   Se há um   servidor público   que   tenha trabalhado mais   duramente do que este homem, para fazer desta cidade um lugar seguro e decente a fim de que suas esposas e filhos possam caminhar pelas ruas, eu jamais     conheci — estou falando de tempos bem recuados.     Assim, senhoras e senhores, sem mais conversa eu passo a palavra ao vereador por todos os distritos há quatro anos, e futuro prefeito de Banbury — o ilustre Gerry Horton!"

O candidato levantou-se, e seu auditório quase o precedeu no movimento.

Houve um trovejar de aplausos e bater de pés no vasto salão cheio de ecos. McCall levantou-se com os outros, fazendo com que Beth também se levantasse. Relanceando os olhos para êle, curiosamente, a moça o viu aplaudindo.   Assim, percebendo o que havia, ela aplaudiu também. Não era, aquele, o lugar, nem a hora, de estar em evidência como minoria.

Cordes recuou para sua cadeira, batendo palmas com suas mãozinhas pequenas, e depois, levantando-as, quando Gerald Horton inclinou-se sobre a estante, dando, assim, sinal ao povo. O que Cordes estava fazendo, McCall interessou-se em reparar, era insistir em mais aplausos. Isso referia-se às câmaras e microfones, naturalmente. E o povo atendeu. Horton mantinha-se sorrindo, cumprimentando, fazendo acenos, voltando-se para este e aquele lado, para a câmara de televisão. O rumor do aplauso cresceu. . . Incrivelmente, acima do ruído, McCall ouviu o que lhe pareceu como uma rolha expelida de uma garrafa de champanhe.

— É estranho — pensou êle. — Como pude ouvir uma rolha em meio a esta balbúrdia?

Beth McKenna levara a mão esquerda à boca. Estava com os olhos pregados na tribuna. Com a mão direita sacudia o braço de McCall.

Uma pequena flor, como que uma zínia vermelha anã, brotara em meio a testa de Gerald Horton. O vereador, ainda com um meio sorriso, estava deslizando e desaparecendo aos olhos do público, atrás da estante.

Baleado — pensou McCall.

Baleado!

Virou-se nos calcanhares. Um homem vestido de preto — roupa preta, camisa preta de gola olímpica, luvas pretas (McCall não pôde ver os sapatos, mas deviam ser pretos também, foi o que êle se viu pensando) estava exatamente baixando o que parecia ser uma pistola de precisão Woodsman, calibre 22, do lugar onde a tinha apoiado, isto é, da curva de seu braço esquerdo. O homem era tenso e magro, e uma máscara preta, de dominó, cobria a parte superior de seu rosto. Abaixo dela McCall viu pele preta, narinas largas, lábios grossos. Sobre a máscara, o penteado à moda africana.

Um casal de meia-idade estava entre McCall e a passagem. Quando conseguiu espremer-se, passando por êle, o negro correra como uma flecha para a porta de saída, batendo-a atrás de si. Um momento depois McCall escancarava-a.   Ninguém mais, no auditório, se tinha movido. Era burlesco, como que o final de um filme, todos congelados.

Eu devo ser um alvo fácil, em silhueta nesta porta — pensou McCall. Fechou a porta atrás de si. O assassino de Horton estava correndo a toda velocidade pela Rua Kosciusko e em direção de uma alameda. McCall correu atrás dele. O homem girou nos calcanhares, à entrada da alameda e puxou novamente a pistola.

McCall atirou-se de bruços. Dessa vez o tiro pareceu uma tábua que cai em superfície dura. A bala passou-lhe por cima da cabeça.

O mascarado desapareceu na alameda. McCall rolou para levantar-se e quase foi apanhado por um carro. O motorista viu-o no último momento, desviou violentamente, e xingou, tomado de pânico, continuando seu caminho. McCall perdera alguns segundos cruciais.

O quarteirão era curto, da Kosciusko para a próxima rua. McCall chegou à alameda ainda em tempo de ver o homem sair correndo pela outra esquina. Um momento mais tarde ouviu um motor funcionar e o guincho dos pneus. Quando saiu da alameda, o carro que arrancara já desaparecia. McCall voltou em passo rápido, inalando o ar em grandes arquejos, e dirigindo-se à sala do comício.

As portas estavam abertas e agora havia homens correndo para a rua.

— Calma, — disse McCall — êle fugiu, êle fugiu. Entrou na sala.   As pessoas que tinham estado sentadas ao fundo do palco rodeavam então Gerald Horton. Alguém o arrastara de junto da estante, e êle estava estendido no chão, deitado de costas, seu rosto que fora vermelho mostrando agora um tom cinza-esverdeado obscuro. Tinha os olhos abertos, fixos num renque de luzes. Ben Cordes, de joelhos, tentava ressuscitá-lo.

Alguns membros da polícia especial tentavam evitar que o povo subisse ao palco. Havia algumas mulheres chorando. Era uma cena estranhamente ordenada.

Beth McKenna agarrou o braço de McCall, quando este se apressava pela passagem.

— Mike? Você...?   Êle...?

Êle sacudiu a cabeça e a moça calou-se.

Um homem meio calvo, que estava no auditório, procurava abrir caminho para os degraus de madeira que levavam ao palco, gritando:

— Passagem, por favor.   Por favor, passagem!   Sou médico!   Por favor?

McCall conseguiu, retorcendo-se, chegar à frente dele, conseguindo-lhe passagem. Um momento depois ambos estavam sobre a plataforma.

— Este homem é médico. Saiam do caminho. Cordes! Se não se importa...

O homenzinho levantou-se e desviou o corpo. Parecia estonteado. Deixou-se cair numa cadeira e ficou a olhar para o chão.

McCall olhou para o orifício na testa de Horton e fez Beth voltar-se para o outro lado. Não esperou pelo veredicto do médico.

— Está morto? — arquejou Beth.

— Está.

Levou-a pela passagem até uma porta que parecia ser de um escritório. A porta não estava fechada à chave. McCall encontrou o interruptor e acendeu a luz. Fechou a porta atrás deles, depois, apontando para o telefone sobre uma escrivaninha, disse a Beth, que olhava para êle, os olhos dilatados:

— Você é da polícia.   Telefone.

 

Beth não se moveu.   Ao contrário, tremia. Eu, realmente, sou apenas uma secretária, Mike.     Não entendo nada de coisas assim.   Telefone você.

McCall recordava-se do número porque na véspera falara com o Tenente Cox.   Discou.

— Você ganhará tempo se pedir Comunicações — disse Beth.

— Central de Polícia.

— Comunicações, por favor.

Um momento mais tarde uma voz de mulher falou:

— Comunicações.   Tomey falando.

— Aqui é Micah McCall, Assistente do Governador Holland para Assuntos   Especiais.     Estou   telefonando do   Salão do Sindicato dos Metalúrgicos, na esquina de South Nevins com Kosciusko.

— Sim, Sr. McCall?

—   O vereador por todos os   distritos,   Gerald Horton, acaba de ser assassinado com um tiro.   O assassino foi um negro, 1,70 a 1,75 de altura, 70 a 75 quilos, vestido com um conjunto preto, camisa preta de gola olímpica, provavelmente sapatos pretos, sem chapéu.   Usa o cabelo no estilo africano. Idade indeterminada.   Tinha o rosto coberto com meia máscara preta.     A única descrição facial que posso dar é que tem a pele muito escura, nariz e lábios tipicamente negróides. A arma foi uma pistola de precisão Woodsman calibre 22. Tomou nota?

— Sim, senhor.

A voz de "Comunicações" parecia chocada.

— O assassino foi visto pela última vez correndo para o sul, por uma alameda do outro lado da rua, do Salão do Sindicato entre South Nevins e seja qual fôr a outra rua que fica a leste dessa.   Dirigiu-se para oeste, creio, na rua que ficava logo ao sul da Kosciusko, de automóvel.   Só ouvi a partida do carro, não o vi e não posso descrevê-lo.     É melhor mandar essa notícia para o ar.

— Sim, senhor — disse a despachante. — Havia outras testemunhas?

— A senhora acreditaria em cerca de quinhentas?

— Obrigada por telefonar, Sr. McCall.   Por favor, fique aí até a polícia chegar.

Êle desligou, e Beth disse:

— Você sabe a quem corresponde a descrição, não sabe?

— A LeRoy Rawlings, Jerome Duncan, e talvez a mil outros negros da cidade. Essas cabeleiras africanas parecem tão populares em todos os tipos de classes de negros, seja qual fôr sua filosofia política. Os lábios do homem pareciam um pouco grossos para Duncan, mas Rawlings tem lábios assim.

— O mesmo se dá com Harlan James. Depois, êle tem um metro e setenta e cinco e pesa mais ou menos 70 quilos.

McCall pareceu interessado.

— Acha que os transtornos que o fundador da "Corações Negros" tem tido acabaram por fundir-lhe a cuca?

— Êle é humano, não é? Comunicações deu-lhe alguma instrução?

— Apenas que ficasse aqui até que a lei chegue. Desculpe-me.   Tenho de dar outro telefonema.

Maggie Kirkpatrick provavelmente não estaria na redação àquela hora da noite. McCall procurou o número do telefone de sua residência.

— Mike McCall.   É Maggie?

— Sim, realmente, Grande Cavalheiro — disse a voz de Maggie. — Que tem em mente que não dê bode com a telefonista, se ela estiver ouvindo?

— Ahá! — disse McCall.   Tenho outro furo para você.

— Sim? — falou Maggie.

— Quer o furo?

— Entre os olhos.   Atire.

— Gerald Horton acaba de ser baleado e morto por um preto.   Entre os olhos, por coincidência.

— Oh! Não! — exclamou ela. — Não. . .

Depois disse:

— Mais informações.   Mike.

McCall contou-lhe tudo.

— Muitíssimo obrigada!   Sou sua credora.   Posso fazer alguma coisa por você?

— Nada no momento, Maggie.   Isto é apenas fruto do meu coração bondoso.

— Já me falaram sobre seu coração — disse Maggie Kirk­patrick, pensativamente. — Algo me diz que vou pagar por isto.   Obrigada, Mike, e desocupe a minha linha.   Tenho uma notícia para passar.

Algo estava acontecendo no salão.    O zum-zum não parecera saudável aos ouvidos de McCall.

—   Por que,   com   os   diabos,   não   havia   policiamento normal no comício? — resmungou êle. — Pensei que todas as   cidades tivessem um regulamento   para   esse caso.     Que adianta essa polícia especial?     Olhe para eles...   estão apavorados.   Que está acontecendo?

Beth disse, nervosamente:

— Há apenas alguns minutos souberam o que se passava, Mike.   Por que está tão nervoso?   Tudo está tranqüilo.

— Por isso mesmo é que estou nervoso.

Fora o prelúdio do transtorno. Porque agora uma discussão ia crescendo no palco, vozes de homens, trêmulas de paixão.   McCall agarrou o braço de Beth e levou-a para o salão.

A não ser por Ben Cordes, as pessoas, no palco, ainda estavam perto da boca de cena, mas já não se amontoavam junto do corpo. Todas elas, inclusive o médico, agora se reuniam à beira da plataforma, olhando para os que discutiam. Cordes ainda estava sentado em sua cadeira dobrável, a cabeça entre as mãos.

A discussão se fazia entre um homenzarrão de côr e um robusto branco que tinha o rosto veiado e intumescido de grande bebedor. McCall notou, com inquietação, que as pessoas de côr do auditório se haviam instintivamente agrupado na parede, por trás do preto que discutia, enquanto várias dezenas de brancos se reuniam atrás do seu opositor.

O branco estava dizendo, acaloradamente:

— Não estou falando de pessoas como você e esses outros negros que estão aqui esta noite, Eddie. Sabemos que vocês são direitos. Ora, são companheiros do sindicato.   Mas você viram o que nós vimos... foi um negro que o matou.

— E daí?   — exclamou o homem chamado Eddie. — Que tem a côr da pele dele a ver com o que quer que seja? Não venha-me encher com esse assassino, seja êle quem fôr!

— É um "Coração Negro", Eddie. . .

— Como sabe disso?   Nunca o vi antes em minha vida, e nenhum de vocês também o viu!

— Ah! Por que está discutindo com esse sujeito — um branco berrou. — Por que está desperdiçando fôlego, Joe...

— Você é do tipo que começa os tumultos — gritou em represália o negro. — Estou surpreendido por você não ter vindo esta noite metido no seu camisolão.*

— Ouça aqui, Eddie — começou o branco que discutia, ameaçadoramente.

— Para o diabo com êle, Joe — o que o apoiava gritou. — Como vamos poder mostrar a esses Corações Negros que não vão arranjar nada com assassínios, nesta cidade?

Uma voz estrangeira e profunda, trovejou:

— Os niggers querem guerra, rapazes.   Eu digo que devemos arranjar armas e arrastar o Bairro Negro!

Quem falava era um loiro magricela, de faces esbranquiçadas e ferozes olhos cinzentos. O negro, Eddie, deu um passo na direção dele:

— Você é que quer guerra, Zablonski, e vai tê-la agora mesmo.

Armou um punho imenso, enquanto o homem chamado Joe dizia, como quem pensou segunda vez:

— Espere um momento,   Eddie, não é a você que o Zablonski está chamando de nigger.   Está-se referindo a eles, aos que mataram Horton.

— Vocês nem mesmo sabem quem são esses "eles"! Só sabem que é um homem.   Vocês são tão maus quanto o Klan, gente.   Sua idéia de justiça é despertar motins no gueto dos negros e enforcar o primeiro negro que virem!     Bem, não vamos deixar que isso aconteça!     Nós...

— Calem a boca!

A enérgica autoridade da voz que vinha do palco fêz parar tudo completamente.

— Ouçam-me, vocês todos!

Por incrível que pudesse parecer, era Benjamin Cordes quem falava. Estava agora de pé, olhando furioso da beirada do palco. Seu rosto mostrava-se pálido de raiva e seus olhos ardentes varreram o grupo com desprezo.

— Vocês tratem de me ouvir! — gritou êle. — Gerry Horton, nosso líder, ali jaz, morto, e vocês só pensam em brigas sobre quem deve levar a culpa.   Para seu governo, saibam que Gerry ainda hoje evitou um   tumulto racial,   e o diabo me leve se consentir que sua morte provoque outro.   Ajudei-o no discurso desta noite, de modo que sei o que êle ia dizer. Parte de sua fala ia ser um apelo em favor de uma entendimento racial. Êle acreditava em lei e ordem, mas acreditava também em amor fraternal!

A voz dele crescia:

— Ninguém vai apanhar armas e se dirigir para a zona oeste do gueto. Portanto; cale a boca, Zablonski; e você também, Rozak!

Os dois homens a quem êle se dirigia olhavam-no, embasbacados.   Cordes voltou-se para o negro.

— Eddie, eu não o censuraria, se deixasse o partido, depois disto. Mas tente compreender que esses homens não pensavam realmente no que diziam. Estão apenas terrivelmente perturbados com o que aconteceu. Vamos todos ficar calmos e ser amigos outra vez. Com o pobre Gerry morto, há muito que pensar e planejar e todos nós temos de pensar e planejar juntos, para reunir os pedaços rompidos.

Algo como um frêmito passou pela turba, que a seguir silenciou.   No silêncio, o homem cujo rosto o álcool estava devastando fêz um sorriso encabulado para o preto e deu-lhe um leve soco amistoso no ombro.   O polaco magricela aproximou-se e disse algo.   Eddie conseguiu sorrir.

— Acho que Ben está certo — disse êle.

E os três homens apertaram-se as mãos. Imediatamente a tensão afrouxou.   Uma conversação amistosa, em voz baixa, começou por todo o salão, sóbria e séria.

McCall respirou.

—   Eu não teria   acreditado. Aquele pequenino   acaba de matar no nascedouro uma desordem e tanto. Para não falar que garantiu os votos dos negros que o partido perderia.

— Cordes venerava Horton — disse Beth. — Você acaba de ver o gatinho transformar-se em tigre.

McCall estava olhando em torno de si:

— Com quinhentas outras testemunhas aqui não vale a pena ficarmos.

— Mas   Comunicações   lhe   disse   que   esperasse   aqui a polícia.

— Eu não prometi esperar.   Já disse tudo que sabia, no telefone.

— Mas aonde quer ir?

— A um telefone particular.   Tenho de contar isto ao governador.

— Pode usar o meu — disse Beth. — Seja como fôr, prefiro passar o resto da noite em casa, Mike. Isto não me colocou   exatamente em   disposição para   me   divertir.

Quando deixavam o edifício ouviram as sereias. Uma ambulância municipal vinha chegando, velozmente. Dois carros da polícia surgiram, rápidos, de direções opostas.

McCall ajudou Beth a entrar em seu carro alugado, sacudindo a cabeça.

McCall ainda estava esperando que lhe fizessem a ligação quando Beth saiu do quarto de dormir. Tinha-se livrado da jaqueta e da bolsa, chutara os sapatos, removera a gravata de laço, e desabotoara a gola da blusa.

— Fico molenga assim que chego em casa — disse, passando por êle para se dirigir à cozinha.

— Gin-tônica?

— Pouco gin.   A noite pode ser longa.

— Eu vou cuidar para que você fique confortável, também, depois que preparar as bebidas.

O comentário dela não foi ouvido. A telefonista escolheu aquele momento para localizar Sam Holland na mansão governamental.

— "Alguma coisa errada, Mike?"

— Um desastre, Governador.   Há meia hora Gerald Hor­ton foi baleado por um negro mascarado, num comício político.   Morreu antes de chegar ao chão.

Conforme êle recontava o que acontecera, Maggie puxou a gola de seu paletó. McCall curvou-se para a frente na banqueta — o telefone dela ficava sobre o balcão de almoço — e deixou que ela puxasse a manga direita, depois a esquerda, mal percebendo o que a moça estava fazendo. Ela levou o paletó para a cozinha, pendurando-o numa cadeira.

Quando McCall acabou de falar, o Governador Holland ficou silencioso.   Depois, disse:

— A discussão entre brancos e negros no salão, conforme você acaba de descrever, Mike, parece-me augúrio de coisas que_ virão. Se o assassínio despertar forte reação da ala direitista, pode deparar com o inverso daquilo que foi evitar que acontecesse, brancos em tumulto contra negros e não o contrário.   E se a reação dos brancos tiver apoio substancial, será preciso mais do que o gerente de uma estação de rádio para debelar a crise.

Beth estava tirando a gravata de McCall. Desabotoou a gola de sua camisa, e ajoelhou-se, desamarrando-lhe os sapatos.

McCall tomou um gole da bebida, remexendo os dedos do primeiro pé que foi libertado.

— Mesmo que não haja choque racial, Governador, isso pode acabar com as possibilidades do partido, nas eleições de Banbury. Com as eleições a menos de um mês de distância, ainda têm tempo de arranjar outro candidato.   E com o ímpeto que a expressão lei e ordem ganhou esta noite, podem até vencer, praticamente com qualquer pessoa.

Beth arrancou o outro sapato.

— Tem alguma idéia de quem possa ser escolhido?

— Não.   Mas Cordes deve saber.   Passarei amanhã pela BOKO e tentarei descobrir o que temos pela frente.

— Okay, Mike.   Mantenha-me informado.

A voz do governador estava fúnebre, ao desligar. Beth estava-se levantando da posição de   ajoelhada,   naquele exato momento.   McCall puxou-a para si.

— Você abusou de um homem indefeso.   Gostaria que eu começasse a tirar as suas roupas?

—   Eu poderia gritar por socorro por estar sendo violentada — disse Beth.   Não fêz qualquer tentativa para afastar-se e seus olhos azul-violeta mostravam-se doces.

— Neste edifício?   Que júri acreditaria em você?   Homem algum poderia violentá-la, a não ser que primeiro a derrubasse, inconsciente, com um soco.

— Então soque — disse Beth. — Tentarei gritar antes que o soco me atinja.

— Faria isso?

— Está claro que você não é um jogador.

— Que quer dizer com isso?

— Por que não vem-me tentar, alguma vez?

Ele passou a noite ali.

 

O mascarado estava cutucando seu ombro com a boca da pistola e cada cutucada causava-lhe um choque que ia até os dentes. McCall abriu os olhos e viu Beth diante dele, cutucando-o, de pé. Estava vestida com seu uniforme de policial.

Um aroma triplo, de toicinho frito, pão torrado e café fresco, subiu-lhe ao nariz como um afrodisíaco.

— Meu Deus — disse McCall. — Estou esfaímado.

— Refeição no zoológico   dentro de   alguns   minutos — disse Beth. — Pus aí uma escova de dentes de reserva, mas não tenho nada para você se barbear, a não ser que queira o barbeador elétrico que uso nas minhas pernas.

—   Não, obrigado!     Vou deixar a barba   até voltar ao meu hotel. Que tal uma beijoca matinal, ou esse uniforme coloca você fora dos limites?

Ela inclinou-se e deu-lhe um beijo maternal, na testa.

— De pé, amor — disse, esquivando-se, num movimento flexível, aos braços estendidos do rapaz.

— Agora, não.   Tenho menos de uma hora para me apresentar ao trabalho e são vinte minutos de caminho.

Despediram-se na porta da frente.

— Verei você de novo, Mike?

Os extraordinários olhos dela estavam sérios e diretos.

— Depois da noite passada, a pergunta não é tola? —murmurou McCall.

— Não, realmente. Alguns homens especializam-se em atropelar e fugir. Como posso saber se você não é um desses?

— Mesmo que fosse, com você eu voltaria, para ter mais.

— Oh! — falou Beth. — E por que isso?

— Quando   eu   era garoto, em   Chicago,   havia um   desgraçado de um policial, um bastardo que costumava bater nos garotos, sobre o assento de suas calças, com seu bastão noturno.   Para ouvi-los gritar.     Estive esperando, desde então, pela minha oportunidade de fazer um policial gritar.

O rosto tanado dela incendiou-se.

— Se está-se referindo ao que aconteceu a noite passada. . .

—   Boneca, — disse McCall — você tem o mais lindo grito que já ouvi em minha vida.

—   E você não é um cavalheiro!     Olhe, Mike, preciso correr. . . telefone-me. . . ou coisa assim.

E lá se foi.

Mike seguiu o carro de Beth para o centro da cidade até a Prefeitura, onde ela fêz a curva em direção da central de polícia. Trocaram buzinadas de adeus, e êle continuou pela Primeira Avenida, fazendo a curva à direita para o Ban-bury Plaza.

Faltavam dois minutos para as nove quando saiu de sob o chuveiro. Ligou o rádio para a BOKO a fim de ouvir as notícias enquanto se barbeava.

O sumário das notícias locais referia-se quase que inteiramente ao assassínio de Gerald Horton. Muitos negros suspeitos tinham sido interrogados pela polícia, dizia o locutor do noticioso, mas todos foram soltos. A polícia, que nada estava dizendo, aparentemente não tinha pista para identificação do assassino. O locutor não identificou os suspeitos interrogados, mas McCall não tinha dúvida de que um deles seria LeRoy Rawlings.

Parou no meio de um movimento do barbeador quando o locutor passou ao problema do partido de Horton para encontrar um novo candidato à Prefeitura.

— "O presidente do partido em Banbury, T. Ellsworth Yates, informou a estação BOKO que uma reunião de emergência de sua comissão executiva foi feita secretamente, em sua casa, na noite passada. A comissão escolheu, por unanimidade, o gerente da emissora BOKO, Benjamin Cordes, como substituto do falecido Gerald Horton na candidatura para prefeito, e o Sr. Cordes foi persuadido a aceitar a indicação, disse o Sr. Yates, depois de longa argumentação da comissão.

"Com a eleição a cinco semanas de distância, ainda há tempo de proceder às providências legais para disputar o cargo trinta dias antes das eleições, fêz ver o Sr. Yates, assim o nome do Sr. Cordes estará, positivamente, na cédula eleitoral. O presidente explicou que se a eleição se fosse realizar apenas uma semana mais cedo, êle teria de confiar numa campanha por escrito.   O Sr. Yates expressou confiança de que o novo candidato venha a obter os votos dos que apoiavam Gerald Horton.

"Em sua explicação oficial, o Sr. Yates declarou que o Sr Benjamin Cordes fora escolhido pela comissão executiva como o substituto mais apropriado do Sr. Horton, por várias razões. Como gerente da campanha de Horton o novo candidato não só está amplamente familiarizado com os fatos da campanha, como teve papel importante na redação da plataforma do partido. Embora não seja tão conhecido do grande público, segundo o presidente do partido, Sr. Yates, é amplamente conhecido e respeitado pelos trabalhadores do partido. O Sr. Cordes foi particularmente ativo, disse o Sr. Yates, na formação de clubes políticos de operários e têm largos conhecimentos entre os que são chamados pessoal do zuarte."

Assim, Ben Cordes tivera o manto da liderança do partido colocado sobre seus enfezados ombros, pensou McCall, recomeçando a barbear-se. Podia imaginar quanta pressão a comissão executiva tivera de exercer sobre o homenzinho, a fim de "persuadi-lo" a aceitar a indicação. Segundo êle próprio confessara, Cordes era homem dos bastidores, que preferia trabalhar à sombra do que ao esplendor da luta política aberta. Mas McCall tinha a impressão de que, uma vez comprometido, Cordes surpreenderia muita gente. O homenzinho tinha potencial.

O telefone tocou quando McCall terminou de vestir-se.

— Por que não esperou que nós chegássemos ao Salão, ontem à noite? — indagou o Tenente Cox, em voz melancólica.

— Tinha negócio urgente em outro lugar — falou McCall. — Além disso, vocês tinham quinhentas outras testemunhas. Ficou com o caso?

— Bloomfield e Speziale, da Homicídios, tiveram o primeiro grito.   Fenner e eu a seqüência.   Os outros quinhentos não telefonaram, Sr. McCall, e o senhor sim.   Tenho de pedir-lhe que passe por aqui esta manhã.

— Está bem.     Digamos, em quinze minutos?

Tinha planejado fazer uma visita à BOKO e a Ben Cordes primeiro, porque a estação de rádio era mais próxima do hotel do que qualquer outro ponto.   Mas a chamada do tenente parecia ter uma nota de prudência. Seria melhor não fazer zangar os locais.

Lá se foi com o carro para a central de polícia.

Encontrou o Tenente Cox e o Sargento Fenner no gabinete dos investigadores do posto policial. O tenente desejava uma declaração assinada.

— Porque foi o senhor quem telefonou — disse Cox, em tom de quem se desculpa. — Conhece o   regulamento, Sr. McCall.

— Nada posso acrescentar ao que disse a Comunicações pelo telefone, mas com prazer repetirei isso para seu arquivo. Traga seu estenógrafo.

—   Quem dispõe de estenógrafos? — grunhiu Cox. — Conte ao Hank, que aqui está.   Mas devagar, Sr. McCall.   Êle não só desconhece taquigrafia, como mal sabe escrever.

— Se eu tivesse de tirar meus sapatos para contar além de dez, como você faz, não falaria nas limitações culturais do próximo — grunhiu o Sargento Fenner, em resposta.

McCall levou apenas alguns minutos para contar sua história, que o sargento gravou numa taquigrafia enigmática, provavelmente de sua própria invenção.

—   Mal sei escrever, heim? — disse êle. — Está bem, Tenente, pode ler.   Tente ler isto!

— Não nos ensinam a ler hieróglifos na escola que freqüentei — disse o tenente, com dignidade.

Fenner datilografou as notas e McCall assinou a folha.

— Mais alguma coisa, tenente?

— O senhor poderia identificar o assassino se o visse outra vez com o mesmo tipo de máscara, Sr. McCall?

— Não sei. Mas duvido. As narinas, o cabelo, os lábios, a côr da pele eram tipicamente africanos — características de grande quantidade de homens de côr.     Posso, talvez, eliminar alguns suspeitos para vocês, contudo hesitaria em fazer uma identificação positiva à base do simples relancear de olhos que fiz para o rosto dele, embora fôsse a parte inferior.

Diante do olhar espantado dos investigadores, McCall disse:

— O que quero dizer é que a metade inferior de um rosto é melhor para identificação do que a metade superior. Os tipos realmente espertos escondem a parte inferior, quando usam máscara parcial. O sujeito de que tratamos não era esperto, ou teve sorte. Seja como fôr, não acredito que possa identificá-lo para além de qualquer dúvida. A propósito, segundo uma notícia de rádio que ouvi, vocês detiveram algumas pessoas para interrogatório.   Alguém que eu conheça?

— Um deles — disse o Tenente Cox. — LeRoy Rawlings. Como sempre, êle tinha um álibi para a hora do assassínio. Estava presidindo uma reunião da "Corações Negros", com a junta executiva, segundo declaração, sob juramento, de cinco membros dessa junta.

O investigador ergueu os ombros:

— O pessoal da "Corações Negros" tem sempre desse tipo de álibi.

— Quem mais vocês interrogaram?

— Alguns tipos turbulentos, que não fariam cerimônia para dar um golpe desse gênero. Também tinham álibis. Estávamos apenas vendo, seja como fôr, se acontecia apanhá-los na rede. Não tínhamos razões particulares para suspeitar deles. Pessoalmente, acho que o assassino foi Harlan James.

— Por quê? — indagou McCall, rapidamente.

— A descrição confere, êle detestava Gerald Horton, e, na minha   opinião, o homem   está com os   parafusos   soltos. Além disso, há o revólver.

— Que há com o revólver?

— Foi Hank quem descobriu isso — disse o tenente. — Pergunte a êle.

O Sargento Fenner explicou:

— Eu tinha idéia de que Harlan James havia pedido licença para porte de arma, há uns dois anos.   Embora me parecesse que esse pedido tinha sido recusado, fui verificar no arquivo, e, sim senhor, lá estava: êle tinha feito o pedido e o pedido fora recusado.

— Então?

— Quando se pede permissão para porte de arma deve-se fazer uma descrição dela. Quando James fêz o pedido, foi para uma pistola de precisão Woodsman, calibre 22.

 

McCall dirigiu diretamente para a BOKO.

O técnico de manutenção do estúdio, Andy Whalen, vinha pelo vestíbulo quando McCall parava diante da porta do escritório de Cordes.

— Oh!   Sr. McCall — disse êle, sacudindo sua grande cabeça ruiva. — Soube do que aconteceu ontem à noite?

— Eu estava lá — respondeu McCall.

— Não foi uma   coisa?     Eles deviam pôr todos   esses Corações Negros contra a parede e matá-los como cães!

—   Acontece que eu gosto de cães — disse McCall. — O que o leva a pensar que a "Corações Negros" tenha qualquer coisa a ver com o assassínio de Horton?

—   Quem mais podia ser?     Sabe o que eu acho?     Foi aquele biruta do Harlan James, em pessoa.   Não acha?

— Podia ter sido qualquer um, entre milhares de pessoas.

O ex-pugilista pareceu incerto. Então, suas feições maltratadas iluminaram-se. — Ôi! Que pensa do nosso moço Ben Cordes sendo escolhido para ficar no lugar do Sr. Horton?

— Não conheço bastante a política de Banbury para dar opinião.

— Sim, mas pode imaginar o pequenino como prefeito?

Riu-se, e continuou:

— Não que êle não seja bastante inteligente,   se o senhor percebe o que quero dizer. . .

— Sei o que quer dizer.   Bem, Whalen, eu estou com alguma pressa...

— Sim, eu também tenho de ir, Sr. McCall.   Os geradores de emergência pifaram.   Se houver falta de energia na cidade vamos ficar fora do ar.   Até mais ver.

McCall fêz um movimento com a cabeça e o homem desceu as escadas. McCall bateu à porta do escritório de Cordes, abriu-a e olhou dentro.

— Está ocupado, Sr. Cordes?

— Sr. McCall.   Entre.   Sente-se.

McCall sentou-se, dizendo:

— Felicitações pela escolha para candidato à Prefeitura.

— Obrigado — disse o homenzinho, com uma careta. — Eu fui a pessoa que teve a maior surpresa, ali. Aceitei apenas porque sabia que Gerry quereria que eu aceitasse. Eu estava mais próximo dele, penso, do que qualquer outra pessoa.

— O senhor não me parece um candidato muito entusiasmado — comentou McCall. — Duncan não me impressiona como galinha morta.

— E não é.   Mas não me julgue mal, Sr. McCall.

O tom de Cordes endureceu.

— Relutei em aceitar a indicação porque detesto exibição pública e todas as campanhas duras que um candidato deve suportar. Mas agora que estou nisto, estou para vencer. E não se engane a esse respeito. Não espero que esta minha declaração o derrote, Sr. McCall — continuou Cordes com um leve sorriso — visto que o governador está apoiando Dun­can e talvez o senhor pense que aqui o homenzinho está assobiando no escuro para manter a coragem. Se é assim, pode dizer a Sam Holland e ao seu partido que estão muito, muitíssimo enganados.   Tal como vocês perceberão.

McCall retribuiu o sorriso:

— Meu relatório para o governador não irá subestimá-lo, Sr. Cordes. Seja como fôr, não me inclua no coletivo "vocês" porque minha política pessoal não está envolvida.

O homenzinho olhou de esguelha para êle, por sobre a escrivaninha:

— Por que está aqui esta manhã, Sr. McCall?

— Quis conversar sobre a noite passada, e sobre o que quer que se tenha dado depois.

—   Sim, eu soube que estava no Salão quando houve o tiro.   E, mesmo, que foi o senhor quem correu atrás do assassino e deu à polícia a descrição dele.

— Isso mesmo.

— Foi muito corajoso da sua parte, Sr. McCall.   Levava alguma arma?

— Nunca levo — disse McCall. — E não foi coragem, foi reflexo. Fui fuzileiro naval. A propósito, admiro a forma pela qual o senhor fêz cessar a discussão que se ia acalorando, na noite passada.

— Ao que parece podemos apelar para reservas que ignorávamos possuir — disse Ben Cordes, com simplicidade — E, falando nisso, ninguém mencionou isso publicamente até agora, tanto quanto sei, mas a descrição que fêz à policia se adapta a Harlan James.

— E a LeRoy Rawlings e a Jerome Duncan.

— Duncan! — o homenzinho inclinou-se para a frente. — O senhor não está falando sério, Sr. McCall.

— Estou apenas apontando uma possibilidade.     Não estou acusando Duncan.     Seria preciso ser maníaco para fazer o que aquele mascarado fêz na noite passada, e Jerome Dun­can me parece tudo, menos amalucado.   O caso é que James não é o único homem de côr em Banbury que corresponde à descrição.

— Oh. . .   incidentalmente...   recebemos outra fita gravada de James, pelo correio esta manhã, com uma nova carta. Veja o que acha disto.

Estendeu uma folha de papel branco, comum. Estava dactilografada corretamente, e endereçada à estação de rádio. Não havia endereço de retorno. A carta era datada do dia anterior:

 

Senhor:

Tive notícia de que Gerald Horton foi baleado por um homem de côr, no inicio da noite de hoje, e morreu. Segundo a descrição do noticioso do rádio, aquele homem de côr poderia ter sido eu. Não fui eu, mas acho que vou ser acusado por aquilo.

Não vou derramar minhas negras lagrimas pela morte de um racista, porque Gerald Horton era inimigo da minha gente. Mas não o matei nem sei quem o matou. Sei que Whitey não acreditará em mim. Vocês, suínos racistas, estão dispostos a apanhar-me, de uma maneira ou de outra, e se não me enquadrarem por isso, me enquadrarão por alguma outra coisa. Isto é, se puderem encontrar-me.

Incluo outra mensagem aos meus irmãos. Já que a BOKO é a única estação que levou ao ar as duas primeiras, esta é exclusiva — só vocês a estão recebendo. No futuro, enquanto continuarem a levar ao ar as minhas fitas gravadas, BOKO continuará a recebê-las com exclusividade.

Não agradeço por as estarem irradiando, porque não o fariam a não ser pelo fato de elas lhes darem mais ouvintes e mais lucros. O falecido proprietário dessa estação era um suíno racista, portanto imagino que o pessoal do departamento de notícias seja composto também de suínos racistas.

Do fundo do meu negro coração

HARLAN JAMES

 

A assinatura era à tinta sobre o nome dactilografado.

McCall devolveu a carta, dizendo:

— O homem sabe escrever.

— E falar também. — disse Cordes. E não é um fantoche, Sr. McCall. O que acontece é que James é um fanático. Não lhe parece que êle está insinuando que matou Gerry, mas expressou-se de tal maneira que isso não constitui uma confissão?

— Não. Eu acho que êle realmente   quis,   com   essa carta, negar culpabilidade. Compreendo que alguns ouvintes a interpretem como uma gabolice, especialmente se esse pensamento lhes fôr sugerido. Pretende fazer isso, Sr. Cordes?

— Não sugerimos coisa alguma aos nossos ouvintes, Sr. McCall — disse o gerente da estação e candidato, rigidamente. — Nosso noticioso das onze e meia apresentará a leitura da carta de James e irradiará sua fita gravada.   Às dez horas, ontem, levamos a fita gravada ao ar, mas hoje o correio se atrasou, de forma que não pudemos insinuá-la no noticiário das dez horas, a não ser que a levássemos ao ar sem antes examiná-la. E não podíamos fazer isso, por causa das obscenidades habituais, que precisamos cortar.

— Tentarei ouvir.   Ontem perdi a irradiação.

— Pois não perdeu nada — disse Cordes, com voz som­bria. — Algumas velhas histórias sobre escravagistas e honkies e suínos racistas que odeiam os negros.

— Por que está irradiando essas fitas? Podem ser apenas incendiárias.

— Estou dirigindo uma estação de rádio, Sr. McCall, e as fitas constituem notícia, e exclusiva, também.

Cordes ergueu os ombros e continuou:

— Não nego que isso me preocupa.   Mas sou político Sr. McCall, e não assistente social.     Para um homem inteligente, Harlan James mostra-se muito estúpido sob certos aspectos.   É essa sua mania dos honkies que o deixa cego para seus próprios e melhores interesses e os interesses da gente de côr de Banbury em geral.   Essas falas estão alienando os votos da classe média e do operariado quanto à candidatura de Jerome Duncan, simplesmente por serem lançadas por um homem de côr radical.     Sendo Duncan um homem de côr, também, fica pichado com o mesmo pincel.

— Não há nada de natural nisso — disse McCall abruptamente. — É preconceito em toda a linha.

— Não é natural? — disse Cordes com um sorriso.   Depois tornou a erguer os ombros. — Seja como fôr, esse voto "pre-conceituoso" vai decidir   esta eleição.

— Mas um quarto da sua população é de côr.   E constitui uma boa fatia do eleitorado.

O homenzinho sacudiu a cabeça:

— Temos garantidos uns dez por cento dos votos dos negros, e o poder dos outros noventa por cento está sendo superestimado. Menos da metade dos eleitores negros aparece para votar em dia de eleições, nesta cidade, contra o comparecimento de setenta por cento de eleitores brancos.   Se o assassino fôr apanhado antes das eleições, e se acontecer que êle seja um membro da "Corações Negros"   (especialmente se esse membro for Harlan James) nós estamos feitos.

—   E se acontecer que os membros da "Corações Ne­gros" nada tenham a ver com o assassínio de Horton?   Toda essa pressão da propaganda contra eles poderá bem modificar a opinião pública e dar a Jerome Duncan, no dia da eleição, o voto de desagravo.

Cordes tornou a sorrir, dessa vez não levemente.

— Li algures, certa vez, que Bismark dissera não ser a política uma ciência exata. Isso é que a torna tão fascinante. Seja como fôr, as vantagens referem-se ao caso liquidado antes do dia da eleição. A polícia parece não ter uma única pista.

— Tem, sim — falou McCall.

— Oh!

O nariz de Cordes remexeu-se coito o de um coelho.

E qual é essa pista?

— Não sei se querem que se comente isso, portanto é dito sem registro oficial. Trata-se da arma. A propósito, eu estarei trabalhando nesse caso com a polícia.

O homenzinho disse:

— Pensei que sua missão aqui fosse evitar tumulto racial.

— E é. Mas descobrir esse assassino pode levar exatamente a isso. No momento estou mais preocupado em desviar violência por parte dos brancos do que em aquietar os de côr. A morte de Horton pelas mãos de um negro, talvez acalme os protestos dos negros, por enquanto, mas tende a provocar um repincho por parte dos brancos. Poderia bem ter começado na noite passada, até o momento em que o senhor os fêz calar.

Cordes fêz um gesto   de quem afasta uma   sugestão de elogio.

— Está claro que a violência dos brancos só pode prejudicar a minha candidatura, enquanto a violência dos negros só poderia ajudá-la.     Não gosto nem de uma coisa nem de outra.   O senhor pode esperar minha integral cooperação, Sr. McCall, a qualquer tempo em que a considere necessária.

McCall sacudiu a cabeça.

— Parece-me que vou precisar de todo o auxílio que puder obter para que esta coisa se esclareça. Quero que esse assassínio fique explicado tão depressa quanto possível, antes da eleição, certamente. Parece-me nosso número um, na prioridade dos negócios. E nada tem a ver com o fato de tornar sua vitória mais fácil ou mais difícil, Sr. Cordes. Eu só procuro paz para Banbury, conforme o governador me ordenou.

— Amém. — O homenzinho sacudiu a cabeça. — E boa sorte.   Conheço algo sobre sua fama de escalpelador.

McCall levantou-se:

— Obrigado por me ter cedido seu tempo, Sr. Cordes. E, quanto ao seu oferecimento, hei de chamá-lo quando precisar de seu auxílio.

Ia para as onze horas quando McCall se encaminhou para a Prefeitura, ligando o rádio do seu carro para a BOKO.

A despeito do que Cordes afirmara, quando o comentarista, um tipo de voz naturalmente nasalada, leu a última carta de Harlan James, empregou um tom insinuador de es­cárnio que conseguiu dar uma impressão bem diferente daquela que McCall sentira ao ler.     A carta,   apresentada naquele tom, parecia tão arrogante e gabola, que McCall ficou convencido de que grande parte dos ouvintes a interpretaria como insultante desafio, velada confissão de que James matara Horton.

Ou Cordes lhe havia cinicamente mentido, ou o locutor do departamento noticioso era superzeloso. Fosse como fosse, o mal estava feito.

A fita gravada com a fala de James foi irradiada imediatamente depois da leitura da carta. Ainda continuava quando McCall chegou à Prefeitura. Parou no estacionamento municipal e ficou sentado no carro, ouvindo o resto.

Durante quinze minutos ela durou, uma arenga de violentas invectivas, com os cortes das obscenidades bem nítidos, tudo contra os brancos que oprimiam os negros, uma lenga-lenga que só poderia inflamar ambas as raças.

Ben Cordes tinha razão quanto ao efeito que aquelas falas teriam sobre as mentes do pessoal das classes média e operária. Serviam para despertar medo e ódio e voltar muita gente contra os "Corações Negros", e, conseqüentemente, contra o candidato Jerome Duncan, pela única razão de que êle era negro como os Corações Negros.

 

Laurel estava sozinha na sala de espera do gabinete do prefeito quando McCall entrou. Datilografava uma carta. Re-lanceou os olhos, o suficiente para lhe dar um breve e gelado olhar, e voltou ao trabalho.

McCall ficou de pé, olhando-a com curiosidade. Vendo que a moça continuava a ignorá-lo, disse:

— Que aconteceu?

Ela continuou escrevendo.

— Aconteceu? Por que acha que aconteceu alguma coisa?

— Não me reconhece?

Laurel continuou escrevendo.

— Sou McCall, recorda-se?

Era como se não estivesse ali.

— Menina!

E êle estalou o polegar sobre o indicador bem na altura da nuca da moça que deu um salto, exclamando, indignada:

— Você me fêz errar!

— Que gelo é esse? — indagou McCall. — Que foi que eu fiz?

Laurel começou a corrigir o erro. Concentrou-se na rasura.

— O Chefe Condon acaba de deixar o prefeito.   Veio até aqui para fazer um relato pormenorizado sobre a noite passada.   Tive de ficar lá para tomar notas.

— E então?

— O chefe disse que você foi o primeiro   a informar sobre o assassínio.

— É verdade.   E que tem isso?

— Também disse que você foi ao comício com a secretária dele, uma policial Mackenzie ou coisa assim.

Parou:

— Um policial de saias.

—   McKenna.   Beth McKenna.   Moça muito gentil. "O Chefe Condon tinha a língua comprida" — pensou McCall.

—   Oh! — disse Laurel pousando o apagador de fibra de vidro e apanhando uma borracha para rasurar a segunda folha. — E quanto é gentil?

— Muito — disse êle. — Você apoiava Horton?              

Aquilo a espantou:

— Naturalmente que não!

— Pois a Policial McKenna apoiava.   Ou, pelo menos, estava pensando em apoiar.   Seu patrão era partidário de Hor­ton, e o mesmo se dava com a maioria dos outros membros da força, e assim ela podia assistir ao comício sem que houvesse repercussões.   Você poderia fazer o mesmo?

Laurel pensou sobre o caso e disse:

— Acho que seria considerado esquisito.     Quero dizer, com o prefeito apoiando um   adversário.

— Exatamente — falou McCall. — Pode imaginar a manchete que algum repórter escreveria, se descobrisse você ali? A Secretária do Prefeito Apóia Inimigo Político.   Deus, o seu cabelo. Você jamais consegue esse castanho-avermelhado num vidro de tintura! Está ocupada esta noite?

—   Estou convidada para um chá de berço *. — Continuou a olhar para êle. — Provavelmente estarei em casa lá pelas nove horas.

— Estarei lá às nove e cinco.

Ela riu, subitamente.

— Acho que estou sendo levada na conversa. Mas não tome minha juvenil risadinha como fraqueza, Sr. McCall.    Posso resolver ficar furiosa outra vez.

— Temos um encontro?

— Temos.   Você queria ver o prefeito?

— É uma das razões pelas quais estou aqui.

— Quer dizer que eu sou a outra, mas não vou insistir na minha sorte.   O Sr. Duncan está com o prefeito.

Ela ligou o interfone:

— Sr. McCall está aqui, Sr. Prefeito. Devo fazê-lo esperar?

— Não, não, Laurel, faça-o entrar.   Estou querendo falar com êle.

Jerome Duncan levantou-se quando McCall entrou e estendeu-lhe a mão.

— O senhor está olhando firme para mim, Sr. McCall — disse o candidato a prefeito, com uma sugestão divertida nos olhos líquidos. — Correspondo à sua descrição?

McCall deu um sorriso:

— Touché.   Leve isso à conta dos hábitos do ofício, Sr. Duncan.

— Negro é negro, não?

— Não, senhor.     Apenas outro ponto de identificação, como olhos azuis.

Aquela conversa mole estava sendo levada em alto nível, mas apesar disso McCall observou pormenorizadamente a parte inferior do rosto de Duncan. A pele era tão escura quanto a do assassino, mas o nariz e os lábios de Duncan eram caucásicos demais para corresponder aos do outro homem — foi o que McCall decidiu.

— Como sou classificado no seu computador, Sr. McCall?

— Em grande estilo, Sr. Duncan.

— Nesse caso, sente-se numa das cadeiras do prefeito.

O candidato sorria para o velho:

— Lamento ter monopolizado a conversa, Heywood, mas precisava saber a quantas andava com o homem do governador.

— Por que não nos sentamos todos? — disse o Prefeito Potter. Sentou-se em sua cadeira giratória de encosto alto e preto, dizendo:

— O Chefe Condon acaba de sair daqui, Mike.     Veio para me fazer um relato do que aconteceu na noite passada.

— Sua secretária acaba de me contar.

— Não sei o que aconteceu a este país — disse o velho, sacudindo a cabeça. — Os Kennedys, o Dr. King, agora Hor-ton, é terrível. Guarda alguma idéia sobre o assassínio de Horton que não tenha comunicado à polícia, Mike?

McCall franziu as sobrancelhas.

— Não.   Por que pergunta?

— Meu chefe de polícia está convencido de que o assassino era Harlan James ou algum outro "Corações Negro" agindo sob as ordens de James.

O prefeito fêz um gesto em direção do aparelho de rádio que estava na estante de livros.

— BOKO recebeu outra carta e outra fita gravada de James, pelo correio da manhã, e ouvimos a irradiação enquanto o Chefe Condon estava aqui.

— Eu ouvi do rádio do meu carro.

— Aquilo nada fêz para mudar o ponto de vista do chefe de polícia sobre a culpabilidade de James — disse o prefeito. — Condon está tão insistente nisso que receio não trate de olhar em volta a fim de ver se distingue outra coisa.

— A questão é saber por que está tão insistente, Heywood — disse o candidato negro. — O homem é racista, você sabe, e já o devia ter substituído há muito tempo.

— Você sabe que isso iria causar um fim de mundo no departamento de polícia, Jerome.   Apesar dos sentimentos fortes daquele departamento, ainda assim é uma força que funciona, e não posso deixar que minha cidade fique sem policiamento efetivo.

— Não sei — disse Duncan. — Pergunte aos seus cidadãos de côr quão efetiva consideram a polícia de Banbury. A definição deles pode ser diferente da sua, Heywood.

— Não adianta argumentar — falou o prefeito. — Sou prefeito tanto dos brancos como dos negros, e tenho de fazer o que considero bom para todos. Quando você fôr prefeito verá de que estou falando. Mesmo agora Condon me preocupa.

— Não deixe que êle o preocupe, prefeito — falou McCall. — Os dois homens aos quais o caso foi entregue são bons policiais. Voltaram-se   para   James   como   primeiro   suspeito, sim, mas isso não os impedirá de indagar sobre outras possibilidades.   E mesmo que não o fizessem, eu estou sondando por minha conta.

Jerome Duncan inclinou-se para a frente:

— O   senhor   vai   dar   assistência   às   investigações,   Sr. McCall?

— Mais do que isso.   Gosto de trabalhar em cooperação com as autoridades locais, mas só até enquanto estão realizando uma tarefa.   A cooperação nunca me impediu de agir por conta própria.

Duncan ficou a estudá-lo, depois disse:

— Quem são os homens encarregados desse caso?

— O Tenente Cox e o Sargento Fenner, do gabinete de investigadores.

O negro confirmou com a cabeça:

— É uma boa dupla. Já têm algo para começar?

— Uma pista que aponta para Harlan James.

— Que pista?

— Acho que eles não querem que se comente — disse McCall. — Mas, embora aponte para James, nem de longe o acusa como culpado.

McCall parou na sala de espera para usar o guia telefônico de Laurel. Harlan James não figurava na lista. McCall procurou o número da irmã de James, Sra. Franks. Vários Franks estavam na lista, mas nenhum tinha como primeiro nome Isobel ou a inicial I.

Chamou a redação do Post-Telegram e encontrou Maggie Kirkpatrick em sua escrivaninha. Sim, disse Maggie, sabia o endereço de Isobel Franks. Estivera na casa da Sra. Franks várias vezes quando ia entrevistar o presidente da "Corações Negros".

— Ela não   mandou   mudar o   nome da   lista   telefônica quando seu marido, Cecil, morreu, há alguns anos — informou Mggie — Está na lista sob o nome de Cecil Franks. Encontrará o endereço sob o nome. É na Rua Ferris.

Havia um Cecil Franks na lista, morando no número 1427 da Rua Ferris.

Quando McCall deixou a Prefeitura já passava de meio--dia. Sentia-se esfaimado, o que costumava ser, nele, um sintoma de perturbação. Seu faro levou-o a um restaurante típico da cidade, logo à esquina, atrás de uma aromática mistura de perna de porco, chucrute, sopa de massa e cerveja. Ao sair precisou fazer um esforço consciente para se recordar do que comera. Passava de uma hora quando se dirigiu para o número 1427 da Rua Ferris.

Essa rua ficava no coração do bairro dos negros, em Banbury, a chamada zona oeste. Um nativo do Harlem não teria reconhecido a zona oeste de Banbury como um gueto, pelos menos através de sua topografia, mas um membro da comunidade Watts sentir-se-ia em casa. Consistia, principalmente, de casas para uma e duas famílias, corretamente tratadas. Seus roedores seriam antes camundongos do campo do que ratos comuns. O prédio ocasional de apartamentos não parecia tão superpovoado nem tão maltratado como as moradias coletivas dos bairros pobres metropolitanos. Sob a direção do Prefeito Potter, segundo McCall soubera, a cidade mantinha os padrões sanitários e as leis de manutenção, rigorosamente.

Mas se a vida no lugar que os racistas brancos de Banbury desdenhosamente chamavam o Bairro Negro era mais decentemente possível do que nos territórios reservados aos negros em outras cidades, nem por isso deixava de ser um gueto. Sob a superfície bramia toda a amargura, o ódio, a inquietação das piores favelas. Poucos tinham conseguido romper os entraves e, a golpes de talento, trabalho, ou sorte, se haviam insinuado, com suas famílias, em "boas" vizinhanças de brancos. A massa dominada continuava prisioneira do Bairro Negro, através de conspirações de corretores de imóveis, da hostilidade da comunidade branca, das iniqüidades dos empregos, ou de sua própria e condicionada submissão e deses­perança.   McCall sentiu um áspero zum-zum sob o ar tranqüilo, como que a incompreendida conversação de um povo, não alheio, mas alienado.

O número 1427 da Rua Ferris era uma casa pequena, branca, com venezianas verdes, rodeada por uma cerca de madeira, também branca. Dois homens saíram da casa e passaram pelo portão quando McCall parou o carro junto ao meio-fio. McCall ficou surpreendido. Eram o Tenente Cox e o Sargento Fenner.

O tenente pareceu também surpreendido ao vê-lo.

— Que está fazendo aqui, Sr. McCall?

— Procurando a Sra. Franks.     Vocês também?

— Estivemos revistando a casa dela, à procura da pistola de propriedade do irmão.   Receio que ela não vá recebê-lo de braços abertos.   Tivemos de trazer um mandado de vistoria para que ela nos deixasse entrar.

McCall indagou:

— Acharam a pistola?

Cox sacudiu lentamente a cabeça:

— James deve tê-la levado consigo quando foi refugiar-se, embora Isobel declare que nunca viu tal arma entre as coisas dele.

—   Ela está mentindo — falou, bravo, o Sargento Fenner. — Harlan mora com ela há quase quinze anos, e o pedido de porte para essa arma tem apenas dois anos.

— É uma arma esquisita para que se peça uma licença de porte — disse McCall. — Tem o cano comprido demais para ser carregada facilmente.

— Calibre muito pequeno para uma defesa decente, também — disse o Tenente Cox. — Para um tiro rápido precisamos de algo que faça parar o outro sujeito, mesmo que só se queira feri-lo na perna ou no braço.   Para isso temos um trinta e oito.     Para tiro de precisão, naturalmente,   nada bate a Woodsman.   Se temos tempo de alvejar, é precisa como um rifle.   De uns cinqüenta metros um bom atirador pode acertar seu alvo entre os olhos.

— Sim — disse o Sargento Fenner. — E isso faz dela uma arma melhor para um assassino do que para defesa.

Os dois policiais se foram, e McCall dirigiu-se para a casa; tocando a campainha, a mulher negra e magra apareceu a atender.

— Que quer o senhor?

— Recorda-se de mim, Sra. Franks?   Eu estava na sala dos investigadores do posto policial, quando o promotor público a estava interrogando sobre seu irmão.

— Lembro-me do   senhor.

— Posso entrar?   Eu gostaria de falar com a senhora.

Isobel Franks disse:

— Ouça, Sr. McCall, eu nada tenho contra o senhor, que parecia estar meio de nosso lado quando o suíno Volper tentava nos maltratar.   Mas meu marido, que descanse em paz, e meu irmão Harlan, sempre disseram que nunca se dê conversa a um branco, de forma nenhuma.

— Mesmo quando o que eu quero é ajudar seu irmão? — perguntou McCall, sem se alterar.

— O regulamento é não dar conversa a homem branco, de forma nenhuma.   Lamento.

E fechou-lhe a porta na cara.

 

McCall parou numa farmácia para consultar o guia telefônico. O endereço de LeRoy Rawlings era Compton, 1632. Olhou para a planta da cidade, que trazia. Ficava apenas a dois quarteirões a leste e a um quarteirão ao sul da casa de Franks.

Era uma residência para quatro famílias, à imitação de tijolos vermelhos, com entradas individuais do lado externo. O nome Rawlings estava numa das caixas de correio do apartamento térreo à direita.

Uma mulher coriácea respondeu, quando McCall bateu à porta.

— Sim, senhor?

— O Sr. Rawlings está em casa? — perguntou ele, delicadamente.

— LeRoy?   Não senhor, não está.

— Tem idéia de onde possa encontrá-lo, minha senhora?

A velha pareceu afrouxar a tensão.

— Nunca sei onde aquele menino está.   Nunca se incomoda de me dizer para onde vai.

— A senhora é a mãe de LeRoy?

— Sim senhor, Anita Rawlings.

— Eu sou Mike McCall, Sra. Rawlings.

E mostrou-lhe seu emblema de identificação. A mulher ficou a olhar para aquilo e McCall percebeu que ela não sabia ler.

— O senhor é da polícia?

— Não, minha senhora.     Sou Assistente do Governador Holland para Assuntos Especiais.

Os olhos dela dilataram-se.

— O governador de todo o Estado!     Oh!     Céus!   Por favor, entre, Sr. McCall.

McCall entrou numa sala que tinha poucos móveis e estava imaculadamente limpa. Pelo nervosismo da velha senhora percebeu que jamais recebera alguém de pele branca na sua sala de visitas. Ela perguntou se êle queria "se sentar-se" e o moço escolheu uma velha cadeira de couro, com braços em nogueira, que parecia ter passado pela Guerra Civil. A mulher empoleirou-se na beirada de uma cadeira, como um pássaro pousado para escapar-se.

McCall clareou a garganta. Procurava, com grande empenho, encontrar alguma coisa que a pusesse à vontade, quando uma chaleira começou a cantar, algures. Ela se pôs em pé dum salto.

— Desculpe, eu estava para fazer café quando o senhor chegou — disse a Sra. Rawlings. — Vou desligar o fogo da chaleira.

Pronunciava "chaléra".

— Não quero impedir que a senhora tome seu café, minha senhora — disse McCall, sorrindo. — Na verdade, eu próprio gostaria de tomar uma xícara.

— Gostaria? — disse a mulher, estupefata.

— Se a senhora não se incomoda que eu mesmo me convide para isso.

— Incomodar! Por Deus! Fique sentado aí, Sr. McCall.

Saiu da sala, toda afobada, dizendo: — Já volto.

McCall olhou em torno. Na mesinha que ficava ao lado do sofá, estava uma fotografia de cavalete, de 22 por 30, em moldura Naugahyde branca, com decoração dourada. O moço levantou-se para vê-la mais de perto.   Era a fotografia de casamento de um jovem casal, mostrando-o dos ombros para cima O noivo metido num rígido smoking e a noiva com um longo véu. A moça era escura, puramente africana. O moço era LeRoy Rawlings.

— Vejo que estava admirando   o retrato do casamento do meu LeRoy — disse a Sra. Rawlings. A senhora estava de volta com uma bonita bandeja, evidentemente a melhor que possuía, e sobre ela duas xícaras, uma cremeira e o açucareiro.   Colocou-a na mesinha de serviço.

— Aqui está, Sr. McCall.   Açúcar e creme?

— Não, obrigado.     Eu prefiro preto.

— Tudo?   — disse   ela,   astutamente, olhando-o.

— Não, nem tudo, sorriu McCall. — Há alguma coisa sem a qual não posso passar: preto e branco.

— Não é mesmo engraçado? — disse ela, animadamente. — Sente-se, Sr. McCall.

E ela começou a bebericar seu café.

— A esposa de LeRoy é uma moça formidável.

— Não é má.   Eu pensava que aquele menino nunca se casasse.   Tem dois anos de casado, agora.   Meu Deus, já tinha vinte e oito anos quando se resolveu.

Riu, um riso cacarejado e tornou a levantar a xícara.

Os lábios e o feitio do queixo do homem da fotografia poderiam ser os do matador de Horton, pensou McCall. Poderiam.   "Poderiam" ficava bem longe de "eram".

— Por que o governador está interessado em meu filho, Sr. McCall?

A súbita interrogação surpreendeu-o.

— Não é em LeRoy que êle está interessado, Sra. Raw­lings.     Quero dizer, como pessoa.     O Governador Holland mandou-me a Banbury para evitar um tumulto racial.   E, como vice-presidente da "Corações Negros" (na presidência,   agora que Harlan   está refugiado)   seu   filho   está   em   boa posição para acalmar seus irmãos de côr.

A velha fêz um entusiástico movimento confirmatório com a cabeça.

— Se LeRoy e Harlan pregassem paz em lugar de pregar guerra todo o tempo eu havia de gostar muito mais.     Não entenda errado, porque eu sou pelos direitos que a gente de cor ganhou nos últimos quinze anos.   Quando eu era moça, os brancos me tratavam de "mulher", ou "Mandy", como se eu fosse lixo. Agora, os caixeiros brancos das lojas dizem "minha senhora", como se eu fosse tão boa quanto as senhoras brancas. LeRoy e Harlan dizem que isso nunca ia acontecer se não fosse pela "Corações Negros" e outras organizações iguais, e reconheço que eles têm razão. Mas agora estão todo o tempo tendo transtorno com a polícia. Eu quase morro de susto.

McCall disse:

—   É aflitivo, realmente, Sra. Rawlings.   Martin Luther King conseguiu obter alguns direitos importantes para a gente de côr, sem violência, mas agora posso ver por que certas pessoas consideram os métodos dele muito lentos.   Na verdade, muitas vezes pensei que se tivesse nascido negro com certeza seria um   militante.

—   Seria? — disse ela.   Considerava-o, com seu olhar direto. — Vejam que coisa interessante!

—   Não estou dizendo que aprove a violência — disse McCall, rapidamente.     Ninguém iria tapear aquela velha. — Estou dizendo, apenas, que penso poder compreender o que leva a gente de côr a isso.   Sei que se fosse empurrado por aí, como a média dos homens de côr é empurrada, quereria empurrar com duplicada força,   também.     Isso   não tornaria o fato necessariamente correto.   O caso é que sou cabeçudo bastante para entender o cabeçudo do seu filho.

— Está vendo? — disse a Sra. Rawlings, sorrindo. — LeRoy e Harlan estão ambos errados.     Dizem sempre que brancos não podem entender como os negros se sentem.   Mais café, Sr. McCall?

—   Já tomei a minha conta, obrigado — disse McCall. — Teve notícias de Harlan depois que êle se escondeu?

— LeRoy recebeu uma carta dizendo que não se preocupasse, mas Harlan não   disse onde   estava.     Ouvimos   êle falar no rádio, todos os dias, naturalmente.   LeRoy liga, e se êle não está em casa a Emily liga. Eu mesma não ligaria.

— Parece que a senhora não gosta muito do Sr. James, Sra. Rawlings — disse McCall, com um sorriso.

— Oh! Gosto, sim. Mas já ouvi essa falação muitas vezes, antes. LeRoy e Emily estão sempre me arrastando para as reuniões da "Corações Negros". Harlan é um discursador apaixonado, como os pregadores   antigos, mas diz sempre e sempre a mesma coisa até dar sono na gente.   Sobre os honkies, escravagistas, e tudo o mais. Acho que isso é verdade, mas a gente acaba cansada de ouvir as mesmas coisas...

A porta da frente foi aberta com uma volta de chave, bruscamente e uma atraente mulher de côr, próxima dos trinta anos, entrou.     Era a moça da fotografia.     Gelou, ao ver McCall.

A velha disse, tranqüilamente:

— Emily, este é o Sr. McCall, do gabinete do governador. Esta é a Emily do meu LeRoy, Sr. McCall.

McCall, que se levantara, cumprimentou.

Os olhos pretos de Emily Rawlings chisparam:

— O senhor é o homem que tentou fazer meu marido dizer onde estava Harlan James escondido, não é?

—   Isso mesmo, Sra. Rawlings.

Ela estava penteada num exagerado estilo africano, e as argolas de cobre que pendiam de suas orelhas tinham oito centímetros de diâmetro.   Seu traje era colorido e vistoso.

— Saia.

A pequenina senhora de cabelos brancos disse:

— Com franqueza, não sei onde você foi educada!   Não lhe dê atenção, Sr. McCall.   A gente moça de hoje não tem respeito por nada nem ninguém.

— Não faz mal, Sra. Rawlings — disse McCall.   Voltou-se para a esposa de LeRoy Rawlings: — Eu vim apenas para conversar com seu marido.

— A "Corações Negros" fêz uma votação a seu respeito. Ficou resolvido que o regulamento de não haver contato com os suínos se aplica também ao senhor.   Portanto, não queremos que fique xereteando a nossa casa.     Como eu já disse. . . saia!

A velha estava furiosa:

— Vou contar isto ao LeRoy!    Estou farta de você e de seus ares de importância!   Falando dessa maneira com um homem do próprio governador!   LeRoy vai saber.. .

— Faça isso — disse a jovem, escancarando a porta e segurando-a nessa posição. — Ouviu-me, Sr. McCall. Fora. Isso é bastante delicado para a senhora, mamãe?

— Está bem, Sra. Rawlings — disse McCall outra vez, para a sogra. — Também isso eu compreendo. Foi um prazer e um privilégio conversar com a senhora.

A mulher levou o avental aos olhos.

Quando deu partida no carro um desfile de automóveis começou a serpear através de Jackson Road, a meio quarteirão de distância. Êle dirigiu até o cruzamento e parou para deixar passagem, supondo, pela lentidão da marcha, que se tratasse de um enterro. Ficou espantado, entretanto, ao observar que a maioria dos quatro ou seis homens que iam em cada carro estava armada de rifles ou carabinas. Eram todos brancos.

A procissão estendia-se até onde sua vista alcançava. Havia bem uns cem automóveis no cortejo, ou força civil.

Jackson Road era estreita demais para êle poder dirigir ao lado da procissão. McCall fêz marcha à ré numa passagem de automóveis, voltou por Compton e tomou a primeira rua paralela à Jackson. Correu três quarteirões, depois voltou ao seu objetivo.

A cabeça da procissão estava a um quarto de quarteirão adiante, quando êle alcançou Jackson Road. McCall virou à direita, girou para a esquerda, fêz parar o carro, de lado para os carros que chegavam, bloqueando ambas as pistas. Desligou o motor e saltou fora.

O carro da frente freou bruscamente e os que vinham atrás pararam, quase engavetando. O motorista e mais três homens saltaram do primeiro automóvel, trazendo rifles. McCall reconheceu dois deles. O motorista era o loiro esgrouvinhado, de sotaque estrangeiro, que Benjamin Cordes chamara Zablonski. O que lhe vinha ao lado era o de rosto intumescido e congestionado, que Cordes chamara Rozak.

— Que história é essa, seu grandão? — rosnou Rozak, brandindo o rifle. — Está bloqueando o trânsito.   Tire essa porcaria do caminho, com os diabos!

McCall ergueu seu emblema de identificação à altura dos olhos de Rozak.

— Aonde é que vocês pensam que vão?   Aonde vai você, Rozak?

O homem pareceu confuso.

— Como sabe meu nome?

— E sei o desse aí também — disse McCall.     Olhou para o loiro alto e continuou: — Zablonski, que quer arrasar o Bairro Negro.   É isso que vocês pretendem?

Com os diabos, onde andaria a polícia do Chefe Condon?

Zablonski pestanejou:

— Como é que esse cara me conhece, Joe?

— Lembro-me agora, Joe — disse o outro homem. — Eu o vi no sindicato, a noite passada. Deve ter ouvido nossos nomes ali.   Quem é êle, afinal?

— Mike McCall — resmungou Joe Rozak. — O moço de recados do governador. Para o inferno com êle.

Girou e levantou o rifle sobre a cabeça:

— Ninguém vai-nos deter, homens! É só mais um quarteirão.   Vamos a pé o resto da caminho.   Desçam e andem!

Começaram a sair homens dos carros, ao longo da linha. Na confusão, McCall interrogou inocentemente um dos homens:

— E que há no próximo quarteirão?

— A sede da "Corações Negros."     Onde o senhor esteve?   Se quiser ser pisado por perto de quinhentos homens, fique de pé bem onde está!

Alguns dos homens faziam gestos ameaçadores em direção do carro.

McCall olhou para a rua. A não ser pela força civil dos brancos, não havia uma alma à vista. Era uma rua de pequenas lojas e escritórios nas sobrelojas, com frentes de vidro laminado ostentando letreiros diversos, muitos deles rusticamente pintados, com ocasionais erros de ortografia. Aqui e ali levantava-se um prédio de apartamento de três andares. Não havia sinal de vida nos estabelecimentos comerciais. Era como se fosse domingo. As persianas dos apartamentos estavam baixadas até os peitoris. As pessoas dali não poderiam ter tido mais do que alguns minutos de alerta, entretanto era como se toda a área tivesse sido evacuada pelos habitantes.

Não havia, também, qualquer veículo em movimento, embora os meios-fios estivessem literalmente ocupados por automóveis.

E a polícia de Banbury estava toda em alguma outra parte.

"Não sou um exército de um homem só" — lembrou McCall a si próprio.

Voltou para o carro, deu à partida, fêz a volta, e saiu. Nenhum dos homens da força civil fêz qualquer tentativa para detê-lo. Joe Rozak estava esgüelando ordens, tentando fazer com que seu exército fizesse uma coluna de quatro elementos, e seus três tenentes, liderados por Zablonski, corriam ao longo a linha para ver que as ordens de Rozak fossem cumpridas.

 

No meio do quarteirão seguinte McCall viu o que estava procurando. Entre uma barbearia e uma mercearia, um lance aberto de escada levava ao segundo andar de um prédio antigo, de madeira, com dois andares. À frente da escadaria pendia uma tabuleta mostrando um círculo branco tendo ao centro um coração negro, com um punhal branco nele cravado.

Havia uma passagem de automóvel ao lado da escada e McCall meteu o carro por ela, saltando depois e subindo a escada de três em três degraus. A porta de cima estava fechada à chave. Esmurrou-a e ela cedeu umas três polegadas. Havia numa corrente de segurança. O rosto de LeRoy Rawlings estava olhando para êle. Tinha um fuzil-metralhadora na mão.

— Está   louco,   homem?   —   disse o   vice-presidente da "Corações Negros". — Por um triz não levou uma saraivada agora mesmo.   Vá embora daqui.

— Deixe-me entrar — disse McCall. — Depressa.

— Que quer aqui?

— Há uma multidão de quinhentos vigilantes se dirigindo para cá e estão armados até os dentes.

— Sabemos disso — tornou LeRoy. — Estamos à espera deles.

— Vocês querem um tiroteio, pelo amor de Deus?

— Isso é com os honkies, homem.     Eles querem isso, nós fazemos a vontade deles.

— Não me deixe de pé aqui — instou McCall. — Pelo menos deixe-me usar o telefone.     Talvez possa ainda evitar essa loucura.

— Chamando   os   suínos?   — disse Rawlings.     Alguém atrás dele riu e Rawlings sorriu, em resposta. — Bem, por que não?   Nós teremos todos carne de porco, também.

McCall ouviu o tilintar da corrente. Meteu o ombro e forçou passagem até junto de Rawlings. Teve muito cuidado em manter suas mãos vazias bem em evidência.

Era uma sala grande, cuja pintura estava descascando. Fora, outrora, amarela, e agora mostrava-se de um mostarda escuro e escorrido. A decoração das paredes era em grafito. Havia grandes cartazes de Malcolm X e Eldridge Cleaver.   O piso era gasto, esfregado, sem tapetes. Havia um estrado muito estreito na parede do fundo, com uma mesa cambaia e três cadeiras. Na parte da frente da sala ficavam as janelas eriçadas de guardas. Mais ou menos vinte outros homens, todos usando as jaquetas do uniforme com a insígnia da "Co­rações Negros", estavam carregando e verificando espingardas, carabinas, fuzis-metralhadoras. Caixas e pentes de balas juntavam-se aos montes sobre o piso.     Ninguém conversava.

Todos os rostos que estavam naquela sala voltaram-se quando McCall entrou, e este último tornou-se muito consciente da côr de sua pele.

— Quem convidou esse honky a entrar? — perguntou um homem de pele mais clara.     Tinha um   lenço amarrado à cabeça e fazia mira pelo cano de uma 30-30 que acontecia estar apontada para McCall.

— Fui eu — disse Rawlings. — Este é o rapaz do governador, Senhor McCall.   Quer chamar os suínos para nos proteger dos honkies.   Um branco que tem realmente um grande coração, o Senhor McCall.   Eu acho que devemos deixá-lo fi­car.     Mais um alvo.

— Vocês têm um megafone? — perguntou McCall.

— Não, senhor, Sr. McCall.

— Sabe onde posso arranjar um, depressa?

— Não, senhor, Sr. McCall.

— Não têm aparelhamento de som, alguma coisa assim?

— Nóis   sêmo pobres   preto,   sinhôzinho.     Nóis só   tem carabina.

Todos riram.

— Onde está o telefone?

— Pode vê, sinhôzinho, tá naquela parede ali — disse o líder negro. — Tem a moedinha?   Se num tem, tá sem sorte.

Alguém cuspiu uma obscenidade.

Havia um telefone público numa das paredes. McCall tinha a moeda na mão antes de alcançar a parede. Meteu-a na fresta e discou para o telefonista. Com o canto dos olhos viu LeRoy tornar a colocar a corrente na porta, dando a volta também à chave.

— Telefonista, é uma emergência, para a polícia.   Dê-me a estação de rádio BOKO, e depressa.

Dentro de vinte segundos tinha o PBX da BOKO.

— Ben Cordes.     Emergência.

Olhou em volta e esperou.   Estava numa gaiola de negros armados, que o ouviam em silêncio.

— Cordes falando.

— Mike McCall.   O senhor disse que eu poderia chamá-lo quando precisasse de auxílio para evitar uma explosão entre brancos e negros nesta cidade.     Sabe onde é a sede da "Corações Negros",   Sr. Cordes?

— Já estive lá.

— Em quanto tempo pode chegar com equipamento de amplificadores?   Preciso falar com uma multidão.   Quero som que pareça a própria voz de Deus.

— Multidão branca?

— Seus amigos Rozak e Zablonski   a   estão   liderando. Penso que estarão aqui dentro de dez minutos.     Estão formando unidade de marcha apenas a um quarteirão daqui.

— Não me é possível chegar aí tão depressa — disse o gerente da estação. — Talvez em quinze minutos.   Chamou a polícia?

— Não.   Ela devia ter dispersado essa força civil e não o fêz. Isso indica que a sua polícia apóia a coisa.   Se eles chegarem aqui haverá matança.   Nossa melhor possibilidade é falar aos homens que voltem a suas casas.   Tentarei segurá-la enquanto o senhor não chega.

— Vou já — disse Cordes, desligando.

McCall desligou também e voltou-se para o semicírculo silencioso. Os rostos negros permaneciam sem expressão. LeRoy Rawlings disse, em tom completamente diferente:

— Discutimos   sua pessoa numa reunião, Sr.   McCall e resolvemos não cooperar com o senhor.

— Eu sei.   Passei pela sua casa e a sua esposa me disse isso. Ouçam, homens, eu tenho de evitar essa guerra.   Para isso foi que o Governador Holland me mandou aqui.     Não é apenas meu trabalho, mas um trabalho em que por acaso eu acredito. Os brancos, lá fora, estão confusos, amedrontados. Estão tão confusos   e amedrontados   quanto vocês   — quanto todos estão.   Pensam que um dos de seu povo matou um do povo deles.   Em sua confusão e medo saíram em busca de sangue.   Não posso acreditar que seu povo queira suicidar-se. São quinhentos, lá fora, e todos armados.

— Eu gostaria de fazê-lo entender — disse Rawlings — que são eles que estão-nos perseguindo, e não nós a eles. Tudo quanto pretendemos fazer, Sr. McCall, é nos defender.

— Talvez não cheguem a isso — disse McCall, rapidamente.

— Se quer   arriscar-se a   ser   apanhado   em fogo cruzado   isso é com o   senhor — disse Rawlings, levantando os ombros.   Mas McCall viu uma ligeira aflição no rosto do negro, que, a não ser por isso, estaria impassível.

— Por que há tão poucos de vocês aqui?   Disseram-me que havia várias centenas de membros ativos.

LeRoy Rawlings sorriu. Fêz um movimento de cabeça em direção das janelas. Alguns guardas moveram-se para um lado e McCall seguiu-ós para olhar.

As janelas tinham persianas, arranjadas para deixarem passar a luz, mas num ângulo tal que os homens não poderiam ser vistos de fora.

— Quase todo este quarteirão tem casas de dois andares — disse Rawlings. — Olhe bem para o telhado do outro lado da rua.

McCall, de início, nada viu. Era uma casa de telhado chato, com um parapeito baixo em redor. As lojinhas habituais ocupavam o nível da rua, e havia apartamentos no andar superior.

Então, um movimento atraiu-lhe os olhos. Um rosto escuro apareceu, por um momento, acima do parapeito. Voltou--se em direção da multidão branca e a seguir desapareceu.

— Vocês têm homens armados naquele telhado?

— Numa porção de telhados — disse Rawlings. — Tivemos aviso há alguns minutos apenas, mas nós, da "Corações Negros"   estamos   habituados   a reagir rapidamente.     Quando aqueles honkies chegarem terão cem ou mais homens armados de rifles olhando-os de cima, dos telhados de ambos os lados da rua.

O estômago de McCall encolheu. Tinha tentado evitar um massacre de negros. Agora, parecia-lhe mais provável que o massacre seria mas era de brancos.

O ruído de pés em marcha veio de leste. McCall viu uma coluna de homens, em fileiras de quatro, avançando pelo meio da rua. Era um exército desengonçado. Alguns dos homens levavam a arma no ombro, outros as arrastavam, e ninguém marcava o passo certo. À frente marchavam Joe Rozak e Zablonski. Pareceu a McCall haver uma significação naquilo de se organizarem em coluna de quatro. Era formação militar, símbolo de disciplina. Rozak ou Zablonski (provavelmente Ro­zak) tinha, então, escrúpulos, embora inconscientes, sobre o que estavam fazendo, pois procuravam imprimir uma aparência de legalidade àquela operação ilegal e perigosa.

— Conhece os   dois   da frente? — indagou McCall de Rawlings.

— Joe Rozak.   Veech Zablonski.

— Veech?   Nunca ouvi um nome assim.

— A quarta parte dos honkies em meu ginásio vinha de famílias polonesas.   Veech é apelido de Vechek, que em polonês vale por Vicente.

—   Veech Zablonski — repetiu McCall, pensativo, olhando lá para baixo, para o loiro amotinador.

Um que estava perto rosnou:

— Nome que pode estar gravado numa lousa de cemitério, daqui a dois dias.

— Não se eu puder evitá-lo, Rawlings.

LeRoy Rawlings ergueu os ombros.

A coluna alcançou a sede da "Corações Negros". Rozak e Zablonski saíram de forma e ficaram de lado, observando o exército marchar. Quando a vanguarda atingiu a esquina, Zablonski berrou:

—   Coluna.. . Alto!

Os homens fizeram um alto desordenado, e, sem esperar outra ordem, voltaram-se de frente para o edifício. Imediatamente perderam toda a aparência de ordem, dissolvendo as fileiras e convergindo para a casa de madeira, em sua ansiedade. Seus dois líderes berraram até enrouquecer, mas os homens não lhes davam atenção. Dentro de alguns segundos os quinhentos estavam aglomerados em torno da frente da sede da "Corações Negros".

"Como atirar num pato", pensou McCall, sentindo-se pior ainda. Tudo quanto os negros tinham a fazer era debruçarem-se nos parapeitos e descarregar armas contra a massa de brancos lá embaixo.

Houve um tiro de rifle, e McCall saltou. Zablonski tinha atirado para o ar a fim de sacudir seus homens e discipliná-los.

No silêncio que se seguiu, o loiro saltou sobre um tambor de lixo a sacudir a arma.

— Quietos! — trovejou êle. — Como podemos falar com os niggers se você parecem um bando de mulheres numa liquidação?

Saltou do tambor para o chão, dizendo:

— Okay, Joe.   É a sua vez.

Rozak subiu ao tambor de lixo. Seu rosto riscado de veias tinha empalidecido, e agora era de um rosado doentio. Tinha a voz vacilante.     Gritou, corajosamente:

— LeRoy Rawlings!   Queremos você! Desça, ou subimos e arrastamos você para baixo!

McCall perguntou a Rawlings:

— Há   possibilidade   de   seus   homens   se   tomarem de pânico?

O líder negro sacudiu a cabeça negativamente, sem tirar os olhos da cena lá embaixo.

—   Eles têm suas ordens.   Não são num bando indisciplinado, como a desses estúpidos honkies que estão lá embaixo. Nós só atiramos em defesa própria.

— Bom — disse McCall. — Agora, deixe-me sair.

— Sair?

— Isso mesmo.   Vou falar com eles.

— Não deixe, Roy — disse uma voz vinda de trás. — Nós o temos e podemos mantê-lo como refém.   O moço do governador.   Vale muito.

— Não para esses honkies aí — tornou Rawlings, com desdém. — Você quer morrer, Jesse?

— Quando mais cedo melhor.   Que posso perder?

— A única vida que tem.   Você é tão idiota quanto eles. Deixe McCall   sair.

— Está me ouvindo, LeRoy? — berrava Rozak. — Você tem sessenta segundos!

Um dos homens retirou a corrente e virou a chave. McCall saiu ao patamar. Zablonski viu-o lá de fora e gritou algo, apontando-o.

Rawlings disse, de dentro da sala:

— Que pretende fazer, McCall?

— Manter esses palhaços quietos até que chegue alguém a quem eles ouçam.   Tem certeza de que seus homens não atirarão a não ser que sejam alvejados?

— Eu lhe disse isso, não disse?

— É melhor trancar de novo a porta.

Começou a descer os degraus. Ouviu a porta bater e o som da corrente e da chave.

McCall parou no sopé da escada. A multidão ficou de boca aberta. Decerto a última coisa que esperariam ver ali era um branco. Rozak e Zablonki olhavam com fúria.

— Bem, vejam se não é McCall — disse Rozak. — Você está sempre por aí, McCall.   Que estava fazendo na sede da "Corações Negros"?   Este é o moço Sexta-Feira do Governa­dor Holland, Veech.

— Deixe o Senhor Nariz Comprido para mim — rosnou Zablonski.

— Espere, espere — falou Rozak. Seguiu para além de Zablonski, ficando a meio caminho dos dois.   McCall reparou, quase divertido, que Rozak era uma grande tapeação, um espalhafatoso que aderia às causas populares que se serviam de tipos assim para liderá-las.   Zablonski é que era o perigoso.

— Por que está sempre metendo o nariz onde não é chamado, McCall?

— Estou tentando evitar que uma porção de gente seja morta — disse McCall, em voz tranqüila, mas dando uma projeção extra para ter certeza de alcançar toda   a turba   que lá estava. — E evitar que vocês, homens, procedam como uns pobres idiotas contra si mesmos.   Isso é assunto para as autoridades, não para um punhado de vigilantes autonomeados.   Aca­bo de falar com a polícia, pelo telefone.   Quis que ela soubesse a quem devia prender por incitamento ao tumulto e ao assassínio, caso alguém dispare uma bala por aqui, e dei seu nome, Rozak, e o seu, Zablonski, como sendo os cabeças desta turba. Vocês serão os primeiros a serem presos.

Zablonski riu, como que em latidos.

— Ouviram isso, rapazes? Este coração sangrento, esse bisbilhoteiro bonzinho, não fêz bem a sua lição de casa.   Pensa que os policiais ligam alguma coisa para o que se possa fazer a um bando de niggers, McCall? Dê uma olhada.   Para ali.

Fêz um movimento amplo com o rifle, para leste.

McCall olhou.

Dois carros da polícia estavam parados no cruzamento, de frente para eles. Os seus ocupantes a não ser que estivessem de olhos vendados, não podiam deixar de ver as armas nas mãos da multidão, ou de compreender a importância de um choque armado diante da sede da "Corações Negros".

— Eles nos localizaram do outro lado da cidade, McCall — disse Zablonski, escarnecedoramente. — Não nos fizeram parar.   Tudo quanto fazem é se acomodarem à sombra.

Estúpido; tudo aquilo era estúpido. Os policiais deviam saber que êle, pelo menos, não hesitaria em testemunhar aquela deliberada omissão. Ou — e McCall sentiu de novo o arrepio — também êle estaria destinado a se omitir?

Zablonski empurrou Rozak fora de seu caminho.

— Okay, McCall, caia fora, ou vai acabar mal.

McCall viu-se tomado de uma de suas raras cóleras.   Havia algo em Zablonski que sugeria um uniforme SS * e polainas. Tinha de lutar para trazê-lo à razão.

— Se você pensa que vai arranjar alguma coisa baleando um homem desarmado em plena vista de centenas de pessoas, Zablonski, você é um idiota maior ainda do que eu pensava. Estou aqui com a autoridade do governador deste Estado, e é como se o próprio Governador Holland estivesse aqui.   Vamos, tente sua sorte, e eu garanto que ela será muito má.   Coisa como a câmara de gás, compreende?

 

O homem arreganhou os dentes amarelos.

Não vamos matar você, McCall.   Apenas vamos passar por cima de você se não sair de nosso caminho.

Virou a cabeça e urrou:

— Vamos,   rapazes!     Não   deixem   esse   piolho assustar vocês.

Travando da arma com ambas as mãos, êle investiu sobre McCall em direção da escada. McCall pôs-se em guarda. Retirar-se faria apenas esquentar ainda mais o sangue já fumegante da multidão, combustível da fraqueza que instiga as matilhas para cima da presa. Tinha que fazer Zablonski parar.

"Veech Zablonski!"

Parecia a voz de Deus, isso mesmo, trovejando e ecoando contra a mesquinha arquitetura. McCall pensou nos fuzileiros navais dos Estados Unidos e deixou sair o fôlego, como válvula de escape. Um caminhão da técnica, com um par de alto-falantes sobre a capota, tinha chegado até a margem da multidão. Do lado havia um letreiro: ESTAÇÃO DE RÁDIO BOKO — 1410 em seu dial.

O motorista do caminhão era o técnico ruivo da estação e homem da manutenção, Andy Whalen, e estava apavorado. Mas a outra porta abriu-se e o pequeno Benjamin Cordes ali estava, acima da aglomeração, um pé sobre o assento e o outro equilibrado no peitoril da janela aberta. McCall reparou que a mão com que o homem agarrava o microfone estava com as juntas brancas. Êle se sentia tão apavorado quanto Whalen, mas o pequenino tinha fibra. Talvez viesse a dar bom prefeito.

— Não estou falando apenas com você, Zablonski, mas com todos os homens que aqui estão.   No caso de que alguns não saibam quem sou eu, meu nome é Ben Cordes, e concorro às eleições para prefeito de Banbury.   E estou aqui para fazer um discurso de campanha.

A voz, amplificada, retumbava, ressoante. Alguém, entre a multidão, gritou:

— Vá para casa, Ben. Estamos com você, mas esta não é ocasião para discursos.

Houve risos, e McCall pensou: "Agora, Ben. Insista, que está com vantagens."

— Não é ocasião? Tenho novidades para você, amigo. Vocês todos estão dispostos a dar este golpe por mim, não é?

Um   silêncio estupefato desceu   sobre a aglomeração.

— Eu tenho a eleição garantida, ou tinha, até há pouco, porque a média dos eleitores me   apóia pela minha plataforma de lei e ordem. Mas se pensam que esse eleitor quer governo de multidão, mesmo   de brancos, não   conhecem   o eleitor americano. Êle simplesmente   não   admite que   uma turba o governe seja branca ou negra. Vão em frente e matem esses cidadãos de côr, agora, e garanto que a opinião pública sofrerá uma reviravolta. Matarão toda a possibilidade que tenho de vencer esta eleição. E, na verdade, garantirão que o próximo prefeito seja o negro que é meu adversário político Se é isso que vocês querem, Zablonski, e você, Ro­zak, e você, Collins, e você, Lennie Smith. . .

E continuou nomeando os homens entre a multidão, espetando para eles um dedo acusador, de modo que cada homem assim apontado começou a esquivar-se dos olhos.

— . . . vão em frente.   Mas quando a sua estupidez de hoje lhes der um chefe de polícia de côr, e uma maioria de policiais de côr, e acima deles um prefeito negro e uma Câmara de negros, governando a cidade toda. . . então não venham chorar no meu ombro!

Zablonski   respondeu,   mal-humorado:

— Foi o seu patrão que aquele nigger matou, Sr. Cordes. Quer que êle fique impune?

— Não.   Quero que seja apanhado, julgado, e castigado — disse Cordes. — Mas de acordo com a lei.   Querem o homem certo, não querem?   Se estourarem a cabeça de cada negro que está nessa casa jamais saberão, positivamente, se apanharam e   puniram   o   assassino de Gerry Horton.     Acabem com isto.     Deixem que a lei cuide do caso.     Ou vão levar Duncan à Prefeitura num arranco, tão certo como dois e dois são quatro.

Houve outro silêncio.

Rozak disse, então, meio incerto:

— Talvez êle tenha razão, Veech.

— Tem, sim! — alguém gritou.

— Que acha, Zablonski?

— Acho que devemos fazer o que o Sr. Cordes diz. . .

— Esperem!     Esperem! — trovejou Zablonski. Ia forçando passagem até o caminhão da técnica, seguido por Rozak. quando o alcançaram, Zablonski disse algo a Cordes, e o pequeno gerente da estação desligou o microfone antes de responder. Zablonski discutia acaloradamente. Rozak continuava vigiando os telhados. Cordes ouvia, com a cabeça inclinada para um lado, e falava em voz baixa. McCall ficou impressionado.

Descobriu alguns rostos negros olhando para baixo, para a turba, mas os "Corações Negros" colocados sobre os telhados permaneciam fora da visão, em sua maior parte. McCall gabou-lhes, silenciosamente, a disciplina.

Finalmente, Cordes tornou a ligar o microfone.

— Veech Zablonski resolveu que eu estou com a razão. É preciso que um homem seja grande para confessar um erro. Quero um viva para Zablonski!

Um clamor subiu de entre os combatentes. Zablonski voltou-se para um lado e para outro, sorridente. Rozak parecia não estar gostando de qualquer coisa.

— Portanto, por favor, voltem para seus carros, de maneira ordenada, e vão para casa da mesma maneira.   E obrigado, homens, do fundo do meu coração.

Deus transformou os bramidos em aplausos, e a premeditada matança morreu no nascedouro. Em grupos de dois e três, os homens dirigiram-se para Jackson Road e para seus carros, conversando animadamente.

McCall ficou a observar os dois carros de polícia que estavam na encruzilhada. Não se moveram, nem para a frente nem para trás.

Observadores. Ali estavam para fazer o relatório do que se passasse.

Estariam desapontados?

Sua inação só podia ter sido o resultado de ordens diretas. Era inconcebível que qualquer dos dois não tivesse informado, pelo rádio, o que estava ocorrendo ou em vias de ocorrer. Teriam, pelo menos, pedido reforço. Banbury tinha um pelotão que controlava tumultos. Onde estava êle? A conclusão, embora perturbadora, era inevitável: alguém em situação mais alta (poderia ter sido o próprio Chefe Condon?) acreditava em controle de tumultos apenas quando os desordeiros eram homens de côr.

Ben Cordes sentou-se no caminhão e fechou a porta. Nem uma só vez dera sinal de perceber a presença de McCall naquela cena. McCall sorriu de si para si. Teria sido má política e Cordes era um espertalhão bastante prudente. Coisa freqüente nos homens pequeninos, pensou McCall.

Cordes fêz com que seu motorista, Whalen, permanecesse onde estava até que o último branco estivesse fora da rua, de volta à Jackson Road. Então o caminhão seguiu, como um vaqueiro após o seu rebanho. E também desapareceu.

Os dois canos da polícia animaram-se de repente. Um fêz marcha à ré e dirigiu-se para oeste, rapidamente. O outro foi por rua abaixo, passando pelo prédio da "Corações Negros", a sereia uivando, e, no cruzamento, dobrou para o norte, com o ruído bem depressa amortecido.

McCall esperava, pacificamente.

Rostos negros começaram a aparecer por sobre o para-peito. McCall calculou ali uns cinqüenta homens, todos armados de rifles, carabinas, espingardas. Não podia ver os telhados do seu lado da rua, mas se havia número igual lá em cima, a estimativa de Rawlings de que mais de uma centena de homens armados estaria em postos elevados quando os brancos chegassem, não tinha sido exagero.

Os homens começaram a espalhar-se para fora da visão de McCall, provavelmente dirigindo-se para a rua. Ouviu passos atrás de si e voltou-se. Era Rawlings, as mãos nos bolsos.

Sorriram um para o outro.

— Ben Cordes avançou talvez um passo ali — disse o negro. — Quem sabe eu devesse ter-me deixado linchar pela multidão, a fim de garantir a eleição de Duncan?

— Não há muitos Nathan Hales   nestes   dias —   disse McCall — seja qual fôr a côr.

— Oh!   Não sei.     Eu daria a minha vida por alguma coisa em que acreditasse muito — por exemplo, homem, pela "Corações Negros".   Mas não por uma pessoa, isso não.

— Qual é sua atitude em relação a Duncan?

Rawlings disse, tranqüilamente:

— Êle é okay.

— Não o quer ver triunfar?

— Contra um honky?   Que é que o senhor acha? ~ Qualquer homem de côr?     Contra qualquer branco?

McCall tinha estado a observar a parte inferior do rosto de Rawlings.

— Estava pensando que tal você pareceria com a metade superior de seu rosto coberta com uma máscara.

Rawlings sacudiu-se de riso:

— Tenho um álibi com cinco testemunhas.

— Isso você teria mesmo que fosse culpado.

— É verdade.   Mas acontece que desta vez a coisa foi na rotina.   Estávamos tendo uma reunião da diretoria na ocasião que Horton foi baleado.

McCall ergueu os ombros. Pudera eliminar Jerome Dun-can imediatamente pela evidência dos lábios do candidato negro. Mas os lábios de Rawlings eram bastante espessos, pensou, como os do assassino. De qualquer maneira, era um absurdo continuar naquela trilha. Lábios, apenas, não identificariam o homem.

Homens de côr estavam começando a aparecer na rua. Subitamente, aquilo era uma rua do gueto de todos os dias, povoada e sussurrante.     Apareceram crianças,   mulheres.

Pudessem todas as guerras terminar assim, pensou McCall. Só que a guerra não havia terminado. Tratava-se apenas de uma trégua.

— Temos que admirar o jeito como Cordes dominou a situação — disse êle. — Tudo quanto eu queria era o equipamento amplificador.   Não negociei a voz de Jeová.

— Êle é um honky — disse Rawlings. — Olhe, McCall, acho melhor você sumir daqui enquanto ainda pode. Eu não gostaria que acontecesse alguma coisa ao rapaz do governador.

— Sabe alguma coisa sobre uma arma, calibre 22, Woodsman? Que fosse propriedade de Harlan James, por exemplo?

O forte maxilar de Rawlings projetou-se de repente.   Suas grandes mãos fecharam-se em bola.

— Foi uma arma dessas que matou Horton?

— Foi.

— Eu não lhe contaria, se êle tivesse essa arma.   Acontece, entretanto, que êle não a tem. Agora, é melhor que aceite meu conselho antes que os irmãos comecem a se atirar em cima de toda essa pele branca que você usa.

Deu as costas a McCall.   McCall resolveu ir-se dali.

Às nove e um quarto daquela noite, McCall enfiou-se sob o volante do Ford. A saída do estacionamento do hotel dava para a Grande Avenida. Virou à direita, deixando a Grande, pretendendo tomar a Primeira Rua, também ao norte.

Ao completar a volta viu, pelo retrovisor, que algo se levantava do fundo do assento traseiro. Um pequeno objeto redondo e frio foi-lhe encostado na nuca. Um 22, pensou McCall.   Seu pé direito, foi instintivamente, para o freio.

A voz disse: — Continue pela Rua Taylor, depois vire para o norte.

Era uma voz de homem, cochichada.

Os faróis de um carro que vinha em sentido contrário deram a McCall a oportunidade de ver, de relance, no espelho, o rosto do seu raptor. O homem era negro, com o cabelo carapinha posto em estilo africano. Usava máscara de dominó na parte superior do rosto. Seria o homem que tinha atirado em Gerald Horton? McCall não tinha certeza disso, a visão fora muito rápida.

— Que vem a ser isto? — perguntou, com voz calma.

— Você não devia ser tão xerêta — sussurrou o outro.

Estava disfarçando a voz. Por que faria isso, ficou a cogitar McCall, a não ser que pense que eu posso identificá-lo? Isso significará que o homem não quer o meu sangue — que seu propósito é outro,   raptando-me?

— Eu não tenho nenhuma pista quanto ao assassínio de Horton, se é isso que o preocupa — disse McCall, da mesma maneira natural.

— Você tem fama de descobridor de pistas — cochichou o outro.   — E nós não vamos facilitar.

A espinha de McCall reagiu imediatamente. Ao que parecia, aquela corrida estava destinada a ser a sua derradeira.

— "Nós" quem? — indagou McCall. — Os "Corações Negros"?

— Continue dirigindo.

Cruzaram a Rua Primeira e McCall disse:

— Isso é por causa da minha visita à mamãe esta tarde?

O homem respirou forte:

— Mamãe? — repetiu êle, em tom de espanto.

— A Sra. Anita Rawlings.

Aos ouvidos de McCall chegou uma risadinha.

— Você pensa que eu sou LeRoy Rawlings?     É engraçado, isso.   Taylor é no próximo quarteirão.

McCall fêz a curva cautelosamente, na esquina. Taylor era uma rua secundária, com pouco trânsito, e mal iluminada. A escolha que o sujeito armado fazia, quanto ao itinerário nada tinha de tranqüilizador.

— Está certo, você não é LeRoy Rawlings — disse McCall. — Mas esse rapto é porque fiz perguntas   à Sra. Rawlings sobre Harlan James? — E acrescentou, subitamente: — Ou é por que perguntei a LeRoy sobre a pistola de precisão?

— É porque você tem um nariz maior do que o do Jimmy Durante.*   Que pista é essa que os polícias têm a respeito da   arma?

— Não confiam em mim — queixou-se McCall. — Você é Harlan James?

De novo a risadinha.

— Se os policiais não confiam em você no caso da arma, nada temos que conversar. Portanto, cale o bico e dirija.

 

O homem que estava atrás dele mandou que McCall continuasse para Telegraph Road. McCall lembrava-se dessa rua, porque estudara a planta da cidade, da Grande Banbury. A Telegraph Road ficava no limite extremo ao norte da cidade. A periferia das cidades costuma ser pouco povoada. Aquela viagem prometia cada vez menos.

A caminho passaram a uma distância de dois quarteirões da casa de apartamentos onde Laurel morava. Foi com nostalgia que McCall pensou nisso.

Uma vez viu um carro da polícia de Banbury sair de uma rua lateral, diante dele,   e   continuar numa velocidade que excedia em dez milhas o limite permitido. McCall aumentou a pressão sobre o acelerador. Mas o negro sussurrou:

— Seja o que fôr que está planejando fazer, desista. Fique atrás e não cometa enganos.

Meia milha depois, o carro da polícia virou numa esquina. McCall passou pela esquina com grande pesar.

Na Telegraph Road o homem armado ordenou-lhe que virasse à direita.   McCall era a própria encarnação da obediência.

Uma milha para baixo da Telegraph Road, passaram pelo marco do limite da cidade de Banbury. O ambiente depressa se fêz rural. Densos bosques apareceram. As luzes da cidade de há muito tinham ficado para trás.

Tudo aquilo parecia absurdo. Acabar daquela maneira, nas mãos daquele piolho. . . McCall, você teve rápida e gloriosa carreira!

Um pouco depois de duas milhas além dos limites da cidade, o negro ordenou que McCall virasse numa estrada de terra, estreita, aberta entre os bosques. Os faróis do carro iluminaram um letreiro: DOVER ROCK AND GRANITE CO. — PASSAGEM PROIBIDA — VIOLADORES SERÃO PROCESSADOS.

— Não dê atenção ao letreiro — sussurrou o homem. — Continue dirigindo.

O caminho estava sulcado pelas rodas de caminhões, mas mostrava-se seco e batido. O mato crescia, alto, entre os sulcos. Árvores fechavam, muito juntas, de ambos os lados, os galhos reunindo-se acima para formar uma cobertura que repelia a luz do luar.

Um quarto de milha depois saíram, de repente, daquele túnel de folhagem para uma grande clareira. A noite estava enevoada, mas havia luar suficiente para que McCall percebesse ser aquele lugar o de uma antiga pedreira, mostrando todos os sinais de ter sido abandonada havia muito.

_ A estrada de terra terminava a uns dez metros da escavação. Imediatamente ficou evidente a razão do abandono do local. Os que cavavam tinham   alcançado   uma vertente subterrânea. A escavação estava cheia   d'água,   criando  um poço que media cerca de 45 metros quadrados.   A água subia a uma distância de uns cinqüenta centímetros   do  nível do chão.

— Eu costumava nadar aqui, quando garoto — disse o negro, em seu disfarçado tom sussurrante. — Este poço tem mais de 40 metros de profundidade.

McCall jamais se sentira tão vivo.

— Desligue o motor e apague as luzes.   Deixe a chave no contacto.

McCall fêz exatamente o que lhe dizia o outro. O que o intrigava era o motivo que o homem teria para disfarçar a voz. Isso não parecia, com certeza, indicar intenções homicidas. Por outro lado, se não pretendia matá-lo, por que aquela pedreira deserta, naqueles bosques onde Judas perdeu as botas? Talvez fosse uma tática. Tinha o assassínio em mente, mas disfarçava a voz para o caso de algo sair errado. Não parecia tratar-se de homem com tais sutilezas de imaginação, entretanto aquela era a única conclusão a que McCall podia chegar.

Aquela série de pensamentos levou-o a se sentir vibrante, com um senso de realização. Viva você, disse para si mesmo, lugubremente.   É melhor que comece a recordar suas orações.

— Vamos.   Preste atenção.

Teve consciência de um cutucão no pescoço. Depois, a pressão da boca da arma cedeu, e êle ouviu abrir-se a porta, atrás dele. Isso, automaticamente, acendeu a luz da capota. O homem da pistola disse:

— Desça.   Com muito cuidado.

Tinha recuado, bem para longe do alcance do braço, quando McCall abriu a porta de seu lado e deslizou para fora. À luz da lâmpada da capota viu que a arma naquela mão negra era um Woodsman de precisão, calibre 22. O homem estava vestido como McCall o vira na noite anterior: terno preto, camisa preta de gola olímpica. E tinha mesmo sapatos pretos, coisa que na véspera era apenas uma suposição. E aquela maldita máscara...

— Encoste-se ao carro com ambas as mãos. Os pés afastados, as pernas abertas.

A mão esquerda do homem fêz uma desajeitada revista no corpo de McCall.   Não tinha treinamento da polícia, ou paramilitar, então. Pelo menos, não parecia. Engraçado, como o cérebro continua funcionando como um computador, tentando tirar conclusões.     Com a morte a   alguns   segundos apenas.

— Não uso arma — disse McCall. — Estou começando a achar que isso foi um erro.

— Cale a boca. Arraste agora aquelas coisas que estão no fundo do carro, no assento traseiro. As correntes primeiro.

Então, era assassínio.     O sussurro, a precaução.

McCall encolheu as pernas, afastou-se do carro, moveu-se para abrir a porta de trás. No chão, onde o homem armado pusera os pés durante o trajeto, estava um par de enferrujadas correntes de pneus   e um pequeno rolo   de cordas   de piano.

— Se isso quer dizer que pretende atirar em mim — disse McCall — você deve estar bem ruim da bola. Sabe o que o Governador Holland fará, se eu fôr assassinado? Quando em trabalho oficial para êie? Todas as agências mantenedoras da lei, neste Estado, irão trabalhar no caso. Você não escapará.   Sam Holland tratará disso.

— Terão   de   encontrar você,   primeiro   —   sussurrou   o homem.

— Por que você está cochichando?   Os mortos não identificam vozes.

— Você ainda não está morto — disse o homem, com uma intensidade que   surpreendeu McCall.     Ainda   cochichava. — Se não arrastar já já, essas correntes prego-lhe uma bala nas costas aqui mesmo.

McCall inclinou-se para as correntes. Ficou meio voltado para o seu raptor, enquanto arrastava as correntes para fora do carro, esperando por uma oportunidade de usá-las como armas ou apoderar-se da pistola. O mascarado, porém, recuara o bastante para tornar qualquer daquelas tentativas um suicídio. A boca da arma estava bem firme, na direção da cabeça de McCall.

A luz do carro iluminava o rosto dele. De sua posição inclinada, McCall podia ver um pouco acima da máscara. As narinas eram inteiramente diferentes das de LeRoy Rawlings, Jerome Duncan ou de qualquer outro negro que êle vira em Banbury.

Vira fotografias de jornal, representando Harlan James o líder da "Corações Negros" que se refugiara, e, embora as fotografias das notícias não correspondessem habitualmente à realidade, McCall estava certo de que aquelas narinas não pertenciam a James. Nas fotos que vira, o presidente da "Corações Negros" tinha o nariz mais comprido.

McCall deixou cair no chão as correntes e endireitou o corpo. A pistola permanecia firme. Agora, fazia mira para seu   estômago.

— Agora, atire-me esse rolo de arame.

O homem estendeu a mão esquerda. À luz escassa do carro aquela mão brilhava como couro preto, coberta de suor. Êle está nervoso, pensou McCall.   E quase riu.

Não podia recordar-se de outra ocasião em que se tivesse sentido com o cérebro funcionando tão viva e rapidamente. E tão inutilmente. "Atire-me esse rolo de arame." Se eu pudesse atirá-lo ao rosto dele e saltar depressa para um lado no mesmo momento. . . O mal era ser o rolo pequeno demais para se transformar em arma eficaz. Mesmo que batesse no homem não impediria que êle apertasse o gatilho. Poderia agarrá-lo, naquela distância, e meter uma bala na barriga de seu prisioneiro.

Assim, McCall voltou ao carro, apanhou o rolo de cordas de piano, recuou, endireitou-se, e atirou o rolo para a mão que o esperava, tão delicadamente como uma enfermeira dá os instrumentos ao operador, numa sala de cirurgia.

— Agora, feche as portas.

McCall bateu ambas as portas do carro.

— Não adianta fazer barulho — disse o outro.   Ainda cochichava. — Eu poderia lhe fazer um furo na testa, aqui, e ninguém ouviria.   Só os corvos.

Estavam no escuro, agora. Quase no escuro. Havia um pouco de luar, não muito. "Talvez eu possa-me valer disso..."

— Leve as correntes para perto do poço.

McCall   disse:

— Se de qualquer maneira vai-me dar um tiro, por que devo fazer seu trabalho por você?

— Está bem, se quer que seja agora — disse o outro.

O cano da arma levantou-se de novo, firme.

— Nada disso!

McCall inclinou-se, rapidamente. Agarrou uma corrente de pneu em cada mão e começou a arrastá-las para junto da margem, andando tão depressa que o negro gritou:

— Pare ou atiro!

McCall estava a menos de um metro da margem. Deixou cair as correntes e mergulhou na água escura. Atrás dele a pistola espocou e McCall sentiu uma picada no ombro direito. Depois, a água fechou-se sobre êle.

Estava fria. Estava maravilhosa. Minha amiga, a água, pensou êle.

Nadou, com poderosos movimentos subaquáticos dirigindo-se à margem oposta. Despido, ou de calção de natação, poderia fazer uns quarenta e cinco metros sem vir à superfície, mas as roupas dificultavam-lhe os movimentos. Tinha que subir para respirar.

A pistola estourou de novo e houve um borrifar de água junto da cabeça de McCall. O tiro viera do lado leste do poço, não do sul, onde McCall mergulhara. O homem armado estava dando a volta ao poço para estar na outra margem quando êle saísse da água.

McCall mergulhou de novo antes que o homem pudesse atirar pela terceira vez. Êle continuaria dando a volta ao poço? Ou perceberia que o nadador voltaria ao ponto de partida e estaria à espera para quando McCall aparecesse à superfície?

Não havia tempo para longos raciocínios. A única coisa de que razoavelmente êle poderia estar certo era que o negro não permaneceria onde estava. McCall nadou para o lugar de onde o homem tinha atirado da última vez.

Sabia que não teria tempo para olhar em torno, quando saísse da água, alcançando a margem. Se tivesse calculado erradamente, e o homem, com a sua arma, estivesse onde estava, seria o seu fim.   Não adiantava preocupar-se com isso.

A parede lateral do poço era de sólido granito, quando McCall subiu. Cortava-se em linha reta, como a beira de uma piscina.     As   mãos do moço   agarraram-se   à   borda   achatada da margem e êle içou-se para fora da água, numa manobra espontânea. Saltou em pé e pôs-se a correr em ziguezague pelos bosques próximos, antes que ouvisse um tiro atrás de si. Pela direção do tiro percebeu que o homem fizera o que êle antecipara: tinha tornado ao ponto em que McCall mergulhara. Marque um ponto para o seu rapaz, governador. Corria a toda a velocidade, esparrinhando água a cada passo, quase gozando o ruído chapinhante. E então, achou-se sob a proteção das árvores.

McCall abraçou-se a um álamo maciço, arquejante. Olhou, por trás do tronco, para o lado do poço. A luz velada do luar mostrou-lhe que o homem armado fora para o canto a sudeste do poço e estava olhando para o seu caminho, sem dúvida tentando calcular em que direção sua vítima estava fugindo. McCall ficou onde estava, retomando o fôlego, esperando para ver o que o homem armado iria fazer em seguida.

Podia ter ocorrido àquele homem que se corresse cegamente atrás de McCall, a vantagem de ter uma arma poderia ser anulada pelo fato de McCall poder vigiar-lhe a aproximação, criando um perigoso beco sem saída. Aquilo tinha ocorrido a McCall. Estava procurando um pedaço de galho seco de que se pudesse servir como de um porrete — a idéia de ficar à espera atrás de uma árvore até o homem passar por êle, e então abrir-lhe a cabeça com uma cacetada não deixava de ter os seus encantos — quando o negro resolveu tudo.

Meteu a pistola na cinta, arrastou as correntes de volta para o carro de McCall, apanhou o rolo de cordas de piano, atirou tudo aquilo para o assento traseiro, saltou para o volante, e lá se foi.

McCall esperou por algum tempo.

Quando viu que estava seguro, deixou a árvore protetora e caminhou para a clareira. Teve, de repente, consciência de que havia algo com o seu ombro direito. Estava ardendo de novo, ou, pelo menos, êle de novo se sentia consciente desse ardor. Sondou o caso, cautelosamente. Havia um rasgão no paletó, e a pressão fêz surgir um choque doloroso no pescoço e no braço direito. Percebeu que não passava de uma esfoladura. A roupa, em torno do rasgão, não estava pegajosa: mal sangrara, aquela ferida.

Voltou sua atenção para o problema de retornar à cidade.

O caminho cheio de sulcos para Telegraph Road era arriscado: demasiado perigo de cair em alguma emboscada. O negro poderia ter dirigido para a saída exatamente com esse plano em mente — levar McCall a pensar que êle já tinha desistido, só para meter o carro entre as árvores, a uma certa altura do caminho de terra, e dali sair, à espera de seu alvo. McCall resolveu ficar no bosque.

Aquilo era, em sua maioria, plantação para madeira, já em segundo corte, sem muita vegetação sob as árvores, de modo que não haveria dificuldade para andar, se êle pudesse fazê-lo. Mas a visibilidade era praticamente nula. O dossel de folhagem afastava a claridade da lua ali nos bosques com tanta eficiência como no caminho de terra. E McCall teve de seguir sua caminhada, todo molhado debaixo de uma escuridão quase que total. Sempre tivera excelente senso de direção — insistia êle em dizer a si próprio, como para tranqüilizar-se — e percorreu um caminho mais ou menos paralelo à passagem de terra, ou por onde sua memória lhe dizia que tal passagem ficava. Foi ajudado pela feliz circunstância de se tratar de um caminho reto, aberto diretamente para a pedreira, através do bosque.

Mantinha os braços estendidos para a frente, como um cego, a fim de proteger-se contra os galhos baixos. Meia dúzia de vezes tombou, tropeçando em troncos de árvores mortas e em galhos arrancados pelos temporais.

Quando, por fim, tocaiou-se atrás de uma moita alta e espessa, à margem da Telegraph Road, não podia acreditar em sua boa sorte. Tinha saído ali, apenas a uns cem metros da entrada do caminho para a pedreira. Podia ver o grande letreiro: PASSAGEM PROIBIDA, brilhando sob a luz da lua, dali de onde se tocaiava.

Se o homem tivesse estacionado para pegá-lo de emboscada, estaria na estrada de terra. O Ford de McCall não aparecia em parte alguma. Faróis aproximavam-se, vindos da direção de Banbury. Não havia outros veículos em Tele­graph Road.

Esperou até que o carro passasse, depois atravessou correndo para o bosque do outro lado.   Manteve-se dentro da linha das árvores, de forma a ter a estrada à vista, até que as árvores foram rareando e finalmente deram lugar ao campo aberto, sem ponto algum onde alguém se pudesse esconder, a não ser a valeta que acompanhava o caminho. McCall atirava-se de bruços para dentro delas, a cada vez que apareciam faróis em   qualquer   direção.

Quando alcançou os limites da cidade, viu que estava a menos de três quilômetros do apartamento de Laurel Tate em Ralston Road. Dirigiu-se para lá, andando pelas ruas laterais, e evitando tanto pedestres como motoristas. Seu aparecimento, se fosse visto, poderia apenas despertar curiosidade ou receio, e qualquer dessas coisas levaria a um chamado para a polícia.   Êle ainda não desejava isso.

Observou o vestíbulo do apartamento de Laurel por trás de uma cerca de buxo, e quando teve certeza de que estava vazio, deslizou para lá. Seu relógio à prova d'água marcava vinte e três horas e dez minutos.

Laurel estava usando um roupão rosa, de veludo frisado, que terminava a meio caminho entre os joelhos e as ancas. Tinha os pés descalços.

— Mike! — e os olhos dela dilataram-se.

— Você sempre abre a porta assim, para qualquer pessoa que toque a campainha? — indagou McCall.

— Meu Deus, Mike, que aconteceu com você?

— Feche essa porta com o trinco.

McCall ficou de pé, na minúscula entrada, deixando tombar ainda uma ou outra gota ocasional. A caminhada fizera evaporar a maior parte da água.

— É dessa   maneira   que você aparece   a   um   encontro marcado?

— Lamento estar atrasado, mas tive de nadar numa pedreira abandonada, esquivar-me de alguns tiros, tropeçar em galhos secos, e acabo de caminhar a pé pelo menos quase mil e duzentos quilômetros, e todo molhado.

— Ora essa, — disse Laurel — nunca ouvi desculpa mais esfarrapada para deixar uma jovem à espera.   Ou seria isso, se eu não enxergasse muito bem.     Entre nesse banheiro e tire essas roupas sujas e molhadas.

— Não me diga que você tem um guarda-roupa masculino completo, para uma emergência deste tipo.

— Não tenho nem um roupão que lhe sirva.   Mas arranjo-lhe um cobertor.   E agora, fora daqui, que acaba tendo uma pneumonia em cima do meu melhor tapete!

 

Ao sair do chuveiro McCall recordou, de repente, certa ocasião em que lhe acontecera coisa idêntica no apartamento de uma jovem, em Tisquanto, cidade universitária ao norte do Estado. O substituto para roupão, daquela vez, fora uma toalha gigante, de banho. Agora, era um cobertor côr-de-rosa, mas, sob outros aspectos, as circunstâncias mostravam-se agradàvelmente semelhantes. Em Tisquanto chegara atrasado para um encontro, após conflito com delinqüentes juvenis, duros e insensíveis. Aquela noite tratava-se de um atentado contra a sua vida. Em ambos os casos as moças tinham levado suas roupas para lavar e passar, enquanto êle estava sob o chuveiro.

Lembrando-se do que se seguira, com a moça de Tisquan­to, McCall surpreendeu-se pensando se os acontecimentos posteriores ao seu banho de chuveiro seriam igualmente agradáveis.

Quando saiu do banheiro, envolto no cobertor côr-de-rosa, Laurel tinha armado na sala de estar a tábua de passar roupa e estava passando seu terno com um ferro a vapor, elétrico.

— Passei sua gravata — disse ela, apontando para onde a gravata estava pendurada sobre as costas de um cadeira. — Suas outras coisas estão na máquina de lavar.   Coloquei os sapatos no secador elétrico, com pouco calor, sem ser de bruços, e recheados com papel de jornal.

—   Não posso me queixar do   serviço do camareiro — disse McCall. — Vejam...   você tem muito jeito para lidar com esse ferro.

— Sua carteira, e tudo o mais que havia em seus bolsos estão na pia da cozinha. Talvez queira espalhar as coisas da carteira no secador da pia, para que enxuguem.

— Menina prática!

E êle encaminhou-se para a cozinha.

— Olá, Grande Chefe...

McCall parou sob o arco divisório:

— Se vai fazer más piadas sobre o meu cobertor, livro-me dele...

A moça torceu o nariz para êle, dizendo:

— Eu só queria chamar sua atenção.   Você poderia preparar duas bebidas enquanto está aí.     As bebidas estão no armário sob a pia e o misturador está no refrigerador.   Eu tomo bourbon e soda.   E você?

— Qualquer coisa, — respondeu McCall, continuando seu caminho.

Estava mentindo. Fosse qual fosse a razão — jamais tentara sondar a causa subjacente — bebidas fortes não o atraíam. Não gostava do gosto, nem do que sentia ao tomá-las, uma espécie de desumanização, uma infiltração de fria ausência de emoção, coisas que o tornavam receoso de si próprio, do que podia fazer ou não fazer sob tal influência. Conseqüentemente, bebia tão pouco quanto lhe fosse possível beber sem atrair a atenção. Seu trabalho às vezes obrigava-o a competir com um bebedor. Em tais casos, não encontrava dificuldade em fazer isso, ficando sempre estupefato com sua capacidade de suportar. Mas sentia-se aliviado quando a coisa terminava. Aceitava beber moderadamente, para ser sociável, como no momento, e isso lhe parecia uma das pequenas irritações da vida. Sempre era mais fácil beber um par de goles com alguém do que explicar que não fazia caso de bebidas. As pessoas olhariam para êle como se fosse uma anomalia, ou, pior, como se não fosse de todo um homem.

Seu troco e sua caneta estavam sobre o secador da pia, com a carteira. Êle rasgou vários pedaços de papel, tirando-os do rolo que havia acima da pia, e espalhou o conteúdo de sua carteira sobre eles, para secar. Enxugou a carteira, e pendurou-a no porta-toalhas.

Preparou para Laurel um bourbon com soda, bem forte, e para si próprio um gin-tônica, com pouco gin. Uma das vantagens do gin era o fato de não ter côr, e não trair a fraqueza   relativa   nas   suas   bebidas,   quando   êle próprio as preparava.

A moça terminara de passar-lhe as calças e as estava pendurando num cabide quando êle veio com as bebidas para a ala de estar. Colocou a dela sobre uma mesinha de café, junto de onde ela estava passando a roupa.

— Acho que não vão encolher — disse Laurel, bebericando o seu bourbon e depois dedicando-se valentemente ao paletó. E agora, suponhamos que me conte em que espécie de espremedor caiu esta noite.

Êle estendeu-se no sofá, com seu cobertor côr-de-rosa, e contou sua aventura noturna. Quando chegou ao ponto da narrativa em que o homem armado atirara sobre êle no momento do mergulho no poço da pedreira, ela parou de repente de passar.

— Quer dizer que você está ferido?   Pensei que aquele rasgão que consertei. . .

— Uma esfoladura, apenas.

Fêz deslizar o cobertor de sobre o ombro direito para mostrar um vergão de uns cinco centímetros, que parecia queimadura.

— Eu usei sua caixa de socorro de urgência e fiz um curativo.

A moça inclinou-se para examinar-lhe o ombro, e, subitamente, abaixou-se mais e tocou a esfoladura com os lábios:

— Mamãe costumava beijar o lugar ferido, para curá-lo.

— Mordi meus lábios, também — disse McCall, estendendo os lábios.

Ela desviou-se, e recuou, rindo.  

—   Mais tarde.. .   talvez.     No momento estou ocupada, passando roupa.

McCall terminou de contar sua estória.

Laurel ficou a olhá-lo:

— Que vem a ser tudo isso, Mike?     Parece não fazer sentido algum.

— Tenho uma suspeita.   Preciso fazer algumas verificações, amanhã, antes de expressá-la.   Porque, se estiver errado, ficaria amplamente exposto a um processo por difamação de caráter.

Laurel   sacudiu os cabelos castanho-avermelhados.

— Quer dizer que pensa que eu vou sair tagarelando por ai, contando algo que você me disser confidencialmente?

—   Quero dizer que não desejo que você me considere um idiota — replicou McCall — o que você sem dúvida consideraria, se minha suspeita se revelasse errada.   Trata-se desse tipo de suspeita.

— Agora, estou curiosa!

— Não seria humana, se não estivesse.

— Não seria mulher, é o que quer dizer.

— E isso seria uma calamidade.   Você sabe?   Com seu roupão côr-de-rosa e eu com o meu cobertor côr-de-rosa, parecemos Êle e Ela.

— Não, ainda, Sr. McCall — disse Laurel, com firmeza. — Fique quieto nesse sofá.

Terminou de passar o paletó, pendurou-o no cabide onde estava a calça, e levou o cabide e a gravata para o dormitório. Voltou, calçando um par de minúsculas pantufas multicoloridas.

— Vai a algum lugar? — indagou McCall, interessado. Tinha dado um mergulho na cozinha   para esvaziar o copo, enquanto ela estava no dormitório.

— Tenho que ir lá embaixo, à sala de serviço.   O ciclo da lavadora deve ter acabado.

— Eu descerei.

— Desse jeito?   Eu perderia meu contrato de aluguel, se algum dos vizinhos o visse assim.     Pode desarmar a tábua de passar e colocá-la ao lado da geladeira.

Êle tinha voltado para o sofá quando a moça voltou com os sapatos. Levou-os para o dormitório, dizendo, ao passar por êle, que sua roupa de baixo estava agora no secador elétrico.

Quando voltou, de novo descalça, apanhou o copo com a bebida e, sem cerimônia alguma, acomodou-se no colo dele.

—   Sabe que faltam apenas alguns minutos para a meia--noite e eu tenho de me levantar às sete horas? Portanto, acho que ninguém roubará suas roupas se nós as deixarmos no secador a noite inteira.   Que é isso, Sr. McCall, que está fazendo?

— Apenas atendendo   ao seu   amável   convite — disse McCall.

Laurel passou os braços pelo pescoço dele.

— Gostaria de caprichar?

— Vamos caprichar no outro quarto.

De manhã, Laurel disse-lhe onde havia um barbeador e êle se barbeou e vestiu, enquanto ela preparava o café. A seguir levou-o em seu carro até o hotel, voltando do caminho para dirigir-se à Prefeitura.

— Você volta aos encontros ou é estagiário de uma noite só? perguntou ela, sob a marquisa.

Beth McKenna lhe havia feito a mesma pergunta essencial. Teria êle um odor psicológico que o traía, ou haveria um radar embutido em todas as mulheres, ligando-as?

Resolveu fazer-se enigmático: isso obrigava a discrição.

— Estou convidado a voltar?

Ela teve estratégia igual:

— Está brincando?

— Isso não é resposta — disse McCall, não sem respeito.

— Sua resposta também não foi.

Ambos riram.

— Voltarei — disse êle.

— Estarei esperando junto do telefone.

— Não terá que esperar muito.

Houve a recordação de coisas recentes passando pelos olhos verdes da moça.

— Eu não disse que esperaria muito.

Quando Laurel se foi, McCall resolveu ir examinar o estacionamento do hotel. Não ficou grandemente surpreendido ao encontrar ali o seu Ford, com as chaves no lugar. Havia boa possibilidade de que aquele homem armado tivesse deixado seu próprio carro no estacionamento, ou nas imediações, antes de entrar no Ford e ali ficar à espera. Se assim fora, teria de voltar para buscá-lo. Se McCall não tivesse encontrado o carro no estacionamento do hotel, teria esperado encontrá-lo abandonado nas vizinhanças.

As correntes de pneus e o rolo de cordas de piano não estavam no Ford. Algumas manchas de ferrugem, das correntes, se haviam fixado no tapete.

McCall dirigiu o carro para a central da polícia. Encontrou o Tenente Cox e o Sargento Fenner no vestíbulo, quando iam sair.

— Vocês, camaradas, estão com muita pressa?

— Temos que ir dizer à vítima de um assalto, que foi o seu próprio   filhinho mimado   quem lhe   roubou   o   cofre de jóias — disse o tenente, em sua voz nasalada. — Posso esperar um pouco, se tem algo mais interessante para nós.

— Levaram-me para um passeio ontem à noite.   Foi o assassino de Gerald Horton, e, com os diabos, quase que eu próprio fui assassinado. Isso é suficientemente interessante?

Os dois investigadores não tiravam os olhos dele. O Sargento Fenner murmurou: — Isto é que é uma cartada e tanto.   Conte a história, sim?

Quando McCall terminou, os dois investigadores ficaram silenciosos.   Finalmente, o Tenente Cox disse:

—   Só porque estava sendo bisbilhoteiro?     O tipo deve ser biruta.   Ou acha que a coisa é outra, Sr. McCall?

—   Não   faço   cálculo   algum   enquanto não   tiver   mais elementos.     Vocês, rapazes, têm alguma carta aqui na sede, daquelas que Harlan James mandou pelo correio para as estações de rádio e TV de Banbury?

— Todas elas.     E mais os discursos gravados em fita, que vieram junto.   Confiscamos, como provas.

McCall voltou-se para o sargento: — Ontem você falou num pedido para porte de arma, feito por Harlan James, e que está no arquivo.   Penso que está assinado, não?

O sargento confirmou com um movimento de cabeça.

— Vocês têm um técnico em caligrafia, em seu laboratório criminal, naturalmente?

— Estes Clayton, um dos melhores — disse o Tenente Cox. — Onde está querendo chegar?

— Vamos fazer Clayton comparar a assinatura de Harlan no pedido para porte de arma com as das suas cartas.

Os investigadores entreolharam-se, e o Sargento Fenner disse:

— A coisa parece mais interessante do que isso de levar a notícia àquela zinha grã-fina.

— Você sabe que é muito inteligente, Hank? — falou o tenente. — Está bem, Sr. McCall, tentemos isso.

 

O arquivo do registro de armas ficava no distrito central. Fenner retirou o pedido e mostrou a assinatura de Har­lan James. Foram ao posto policial, à sala dos detetives, a fim de comparar as assinaturas.

McCall ficou desapontado. As assinaturas pareciam ser da mesma pessoa.

— Não desanime por isso — disse o tenente. — Só um perito pode descobrir, mesmo uma falsificação mal feita.

Levaram o material de comparação para o laboratório criminal que ficava no quarto andar. Estes Clayton era um tipo dogmático, de óculos com as lentes quadradas, e cabeça calva que o tornava parecido com Benjamin Franklin.

Em dois minutos, com o uso de lente de aumento, chegou a uma conclusão: — Falsificação grosseira.

— Grosseira? — disse McCall. — Eu nem mesmo diria que eram falsificações.

—   As assinaturas, em todas essas cartas, são idênticas — disse o perito. — Ninguém escreve sua assinatura da mesma maneira duas vezes.   Estas foram traçadas pelas mesma amostra, provavelmente uma assinatura  autêntica.

E acrescentou: — Não por esta do pedido para porte de arma, entretanto.

Cox e Fenner olharam para McCall.

— Está bem — disse o tenente. — Estamos de acordo quanto ao que isto significa?

— Eu considero a coisa como óbvia — disse McCall. — Onde encontramos material para guinchar?

— No Corpo de Bombeiros.

— O assassino disse que o poço tem uns quarenta metros de profundidade.     Eles podem alcançar esse ponto?

—   Isso   é   conversa   fiada,   provavelmente,   Sr.   McCall. Aposto que não tem nem mesmo vinte metros.   Acha, mesmo, que James está escondido ali?

— Penso que pretendiam que eu fosse fazer-lhe companhia.

O Tenente Cox disse, melancòlicamente:

— Posso usar seu telefone, Estes?   Tenho que chamar o chefe dos bombeiros.

Antes de deixar o quarto andar, McCall meteu a cabeça no 401 para dizer um alô à Beth McKenna. Infelizmente, dois nervosos policiais estavam esperando para falar com o Chefe Condon e não houve oportunidade para uma conversa ampla.

Beth comentou que tinha esperado ter notícias dele na noite da véspera.

—   Eu estive ocupado no caso do assassínio de Horton — disse êle.   Afinal, era meia-verdade o que dizia.

— Sim? — disse ela.   E esperou.

McCall sentiu o arrepio que indicava precaução que a experiência faz crescer em solteirões de tipo veterano. A cabeça inclinada, toda a atitude daquele corpo adorável, fêz lembrar ao rapaz um caçador à espreita da presa, pronto a disparar o tiro matador. O horrível daquilo era o fato de estar êle quase gozando a sensação de ser perseguido.

— Não sei em que situação estarei esta noite, Beth.   As coisas estão começando a tomar forma, e depressa.   Se eu es­tiver   livre,   você estará   disponível?

—   Oh!     Sim! — disse Beth, num sussurro. — Estou realmente estupefata comigo mesma.   Parece-me que perdi de todo a vergonha.

McCall relanceou os olhos para os dois policiais, mas eles estavam demasiadamente mergulhados em suas próprias preocupações com o chefe, atual e futuro, para dar a menor atenção à tagarelice no escritório.

O moço recuou rapidamente: aquelas expressões sussurradas de Beth tinham toda a promessa letal da evaporação de gasolina numa fábrica de fósforos.

— Tentarei telefonar para você antes que termine o seu expediente.   É às cinco, não?

— Sim.

— A essa altura deverei saber como estão as coisas.

— Vou ficar fazendo figa — cantarolou ela.

Quando se reuniu a Cox e Fenner, no vestíbulo, tentou recordar qual tinha sido a conversa com Laurel, quando a moça o deixara à porta do hotel. Lembrou-se de que prometera telefonar-lhe, mas teria dito que telefonaria naquela noite?

— Se tinha dito tal coisa, estava metido em grande trapalhada.

McCall foi à frente, fazendo caminho para a pedreira abandonada, em seu carro alugado. Cox e Fenner viajaram com êle. Atrás, vinha o carro vermelho do chefe dos bombeiros, e atrás desse carro o caminhão com o guincho e seu equipamento. Ao chegarem, passou-se algum tempo até que a equipe de guinchamento se organizasse para o trabalho. Já era quase meio-dia quando a operação teve início.

Aconteceu que a estimativa do Tenente Cox quando à profundidade do poço era boa. A equipe comunicou que tocara o fundo aos 23 metros.

Na primeira dragagem içaram detritos que iam de pneus de caminhão a vasilhame de cerveja. Nenhum corpo. A segunda tentativa parecia fadada a produzir resultados igualmente insatisfatórios. McCall estava começando a duvidar de si próprio quando os ganchos do guincho se enredaram em alguma coisa pesada. O chefe dos bombeiros, aflitivamente, fêz sinal ao homem que manobrava o guindaste sobre o caminhão, a fim de pô-lo em movimento, e o objeto foi lentamente trazido à superfície.

Era o corpo de um homem, envolvido em correntes. Um negro.

As correntes tinham sido ligadas com cordas de piano.

— Não tem graça alguma — disse McCall, olhando para o corpo, com desagrado.   Tinham depositado o corpo na margem. — Estas correntes de pneus e as cordas de piano parecem   ser o processo padrão   de   operação   daqueles   palhaços. É Harlan James, tenente?

— Exatamente — falou o Tenente Cox.

— Está tremendamente bem conservado. Não pensei que a água estivesse tão fria quando da minha natação forçada.

— Deve ser muito mais fria no fundo — comentou o sargento. — Onde existe a vertente que alimenta o poço.

Ficaram a olhar para o cadáver do negro, sem satisfação.

— Alguém tem estado a fazer brincadeiras tremendamente engraçadas — murmurou o Tenente Cox. — As assinaturas tarjadas naquelas cartas eu posso compreender, mas como conseguiram os discursos   gravados? Para mim,   era   a voz de Harlan James.

— E era — disse McCall. — Só que tinham sido gravados há muito tempo.   Os discursos de James nunca foram muito diferentes. Tinha aquele tipo de mente dirigido para um só ponto, e ficava batendo na mesma tecla, usando a mesma linguagem. Alguém gravou suas discurseiras nas reuniões da "Corações Negros", juntou pedaços de quinze minutos, e fêz novas gravações para entrega nas estações de rádio e TV.

— Rawlings — disse o tenente. — Tem de ser LeRoy Rawlings.   Foi êle quem entregou a primeira carta e a primeira fita na BOKO.   Isso significa que se não matou James pessoalmente, pelo menos sabia que James estava morto.

McCall nada disse.

— Não aceita isso, Sr. McCall?

— Vocês   têm,   certamente,   bastante   base   para   chamar Rawlings a interrogatório.   Mas eu gostaria de verificar um outro ângulo antes de me dirigir a Rawlings.

— Que ângulo?

— Um que pode pôr a sereia a tocar nesta cidade.   Não quero, porém, estar atirando acusações a torto e a direito, sem poder prová-las primeiro.

O Sargento Fenner franziu a testa para seu superior:

— Eu lhe disse, tenente.   Este camarada não confia em nós.

— É uma questão   de princípio — disse McCall — e não de confiança.   Vocês dois serão os segundos a saber, quando eu tiver certeza.

— Os segundos?   E quem é o primeiro?

— Maggie Kirkpatrick, do Post-Telegraph.     Eu lhe prometi uma notícia exclusiva.     Vocês têm que ficar por aqui, ou podemos voltar para a cidade?

— Espertinho, não? — disse o Sargento Fenner, azedamente.

— Cale a boca, Hank — falou o Tenente Cox. — Temos que esperar o pessoal do delegado, Sr. McCall.   Estamos sob a jurisdição do condado, isto fica fora dos limites de Banbury.   Hank, vá usar o rádio de transmissão e recepção do Chefe Menoski, e peça que alguns representantes do delegado apareçam por aqui.

Fenner dirigiu-se para o carro do chefe dos bombeiros.

Passava de uma hora quando a dupla do gabinete do delegado chegou.     O carro do chefe e o caminhão do guincho tinham ido embora. Foi uma espera solitária, na velha pedreira com o corpo do líder de côr. Porém, comentou McCall, aquilo ainda era mais solitário para James.

A ambulância do necrotério do condado parou ali enquanto o Tenente Cox e o Sargento Fenner faziam o resumo do acontecimento aos homens do delegado. Quando os dois policiais ficaram livres para se irem dali, eram treze horas e meia, e só às duas horas McCall e os investigadores chegaram à central de polícia.

— Já repararam como se tem fome depois de ter passado um bocadinho de tempo junto de um tipo de paletó abotoado? — perguntou o tenente. — Estou esfaimado.

— Também eu — disse o sargento. — É como nos velórios.   Todo o mundo se entope de comida.

—   Vamos   comer   — falou   McCall,   rapidamente,   e   lá desceram para a cantina da polícia.     Enquanto enchiam suas bandejas,   McCall comentou   que tinha   pensado   que os   dois iriam fazer convocar LeRoy Rawlings no momento em que chegassem.

— Por que não fêz isso, tenente?

— Aquele ângulo misterioso que o senhor vai verificar desencorajou-me — disse Cox. — Iremos conversar com Le­Roy, mas o senhor quase me convenceu de que êle não é o nosso homem.

—   Não deixe   que   eu influencie   suas investigações   — disse McCall.

— Ha! Ha! — ganiu Fenner. — O senhor ajuda muitíssimo, Sr. McCall, ajuda, sim.   Se não está interessado nesse presunto, senhor, quer, com os diabos, deixar de trancar a minha passagem?

Passava um bocadinho das quinze horas quando McCall parou diante da estação de rádio. Encontrou o gabinete do gerente da estação, ao alto da escada, inteiramente desocupado. Os alto-falantes monitores estavam ligados, entretanto, de forma que Ben Cordes deveria estar algures, no edifício. Um disk-jockey estava exibindo sua personalidade para o ar, através da BOKO.

McCall dirigiu-se ao vestíbulo que dava para os três estúdios. Ficavam do lado direito, agrupados de forma que a janela da sala de controle desse para os três.

Um técnico de som, usando fones, estava sentado diante do painel de controle. Através da janela, McCall viu o Estúdio B, onde o disk-jockey estava trabalhando. O homem sentava-se numa cadeira giratória, fumando um cigarro após outro. Seus pés estavam sobre a mesa onde o disco ia girando.

A porta para o Estúdio A ficava à direita do Estúdio B, e a porta do Estúdio C à esquerda da sala de controle. Os letreiros sobre ambos estavam apagados.

McCall tentou primeiro o Estúdio A: estava vazio. Atravessou o vestíbulo em direção do Estúdio C e abriu a porta, sem fazer ruído.

Cordes e Whalen, o ruivo técnico da manutenção, estavam sentados em lugares opostos de uma longa mesa. Entre eles ficavam dois gravadores. A voz reboante de Harlan James estava saindo de um deles, fulminando Whitey por oprimir os negros. Já que os carretéis do outro gravador também estavam girando, tratava-se, obviamente, de uma regravação do discurso.

Ambos levantaram imediatamente os olhos quando McCall entrou. Cordes mais que depressa desligou um gravador e Andy Whalen desligou o outro.

— Sr. McCall — disse o gerente da estação e candidato político. — Recebemos outra fita gravada de Harlan James pelo correio de hoje.     Estávamos agora mesmo regravando, para cortar os palavrões.

— O senhor não vai receber mais fitas gravadas de Harlan James, Sr. Cordes — disse McCall. — Êle está morto.

— Morto?

Cordes parecia surpreendido. — Harlan James?

— Sim, Harlan James.

Andy Whalen umedeceu seus grossos lábios.

— Morto pelos polícias, é?

— Nada disso — falou McCall. — Foi baleado pelo mesmo crápula que matou Gerald Horton, e teve o corpo ligado a correntes, para fazer peso, sendo mergulhado em vinte metros de água de pedreira. . . na mesma noite em que desapareceu.

 

Houve um longo silêncio.     Então, Cordes disse:

— Não é possível, Sr. McCall.   Desde o dia em que se escondeu, James nos está mandando essas cartas e fitas gravadas, diariamente.

McCall puxou uma cadeira à cabeceira da mesa e cavalgou-a.

— As assinaturas das cartas são falsificadas, e as gravações foram montadas de velhos discursos feitos por êle em várias reuniões da "Corações Negros".

Whalen disse, excitadamente:

— LeRoy Rawlings!   Deve ser êle, porque foi ele quem entregou o primeiro pacote!

— Acho que Andy tem razão — disse o gerente da estação, em voz meditativa. — Rawlings também estava em posição de gravar os discursos de James, Sr. McCall.

— Outras pessoas   também podiam fazer   isso — disse McCall — e muitíssimas. Por exemplo, alguém que fizesse pesquisas sobre a "Corações Negros" para estudar o movimento dos militantes de côr neste país. Ou ainda alguém que desejasse gravar as inflamadas falações de James para uso futuro delas pela polícia, promotores, ou políticos interessados em atirar lama sobre a "Corações Negros". A propósito, Sr. Cordes, como lhe aconteceu não reconhecer Rawlings, quando êle veio entregar o pacote aqui em seu escritório?

Cordes pestanejou.

— Eu lhe disse. Nunca tinha visto Rawlings na televisão.

— Talvez seja.   Mas dificilmente poderia deixar de vê-lo pessoalmente. Seu   falecido patrão,   Horton, disse-me que o senhor foi a várias reuniões da "Corações Negros" a fim de preparar o programa especial da BOKO   sobre o movimento militante da gente de côr em Banbury, programa que foi para o ar no mês passado.   É inconcebível que Rawlings, vice-presi­dente da "Corações Negros", não estivesse presente pelo menos em uma dessas ocasiões.   E tem mais, porque Rawlings, como principal lugar-tenente de James, deveria estar sentado no estrado, junto de seu chefe, tal como o senhor estava sen­tado no estrado junto de seu chefe Gerald Horton, na noite em que êle foi assassinado. No seu papel executivo, Rawlings, na verdade, provavelmente discursou numa dessas reuniões, pelo menos no que se refere à apresentação de James. O senhor deve tê-lo visto, Sr. Cordes, deve tê-lo conhecido de vista.

— Vamos, McCall.   Que está pretendendo?

Havia uma rouquidão sensível na voz de Cordes, e ele deixara de parte o "Senhor". McCall sentiu-se aliviado. Moveu-se   bem   levemente   em   sua   cadeira,   apoiando-se na   ponta dos pés.

— Ninguém entregou a primeira gravação e a primeira carta a você, Cordes.   Você "entregou-as" a si próprio.   E enviou pelo correio as fitas gravadas e as cartas recebidas pelas outras estações, bem como a carta para Rawlings, supostamente escrita por James.     A propósito, onde arranjou a assinatura de James, que falsificou?

Os olhos do homenzinho começaram a movimentar-se de um lado para o outro.

— Imagino que êle teria alguma coisa com a sua assinatura em sua carteira, quando você se apoderou dele. Devia ter carteira de motorista, um cartão de crédito. . .

Parou de falar. Cordes se levantara subitamente e caminhara até a divisão de vidro que ficava entre o estúdio e a sala de controle. Fêz descer a persiana, cortando a visão do técnico de som. McCall ocupava-se em vigiar Whalen: o ex-pugilista era uma ameaça física.

Cordes não tornou a sentar-se. Ficou de pé, olhando com ar furioso para McCall, que fêz um movimento de cabeça para os dois gravadores que estavam sobre a mesa.

— Vocês estavam montando outro discurso que deveria "chegar pelo correio" amanhã, quando eu entrei. Não há necessidade de regravar um discurso em outra fita para cortar uma palavra indesejável, aqui e ali. Basta, simplesmente, apagá-las na fita original. Eu os apanhei de surpresa e não houve tempo para você pensar em outra explicação melhor para aquilo que eu os encontrei fazendo. Foi falta de cuidado sua não dar volta à chave da porta do estúdio.

O gerente da estação olhou com ferocidade para seu técnico de manutenção e este devolveu-lhe o olhar feroz.

— Eu entrei aqui primeiro — disse Whalen, mal-humorado. — Pensei, naturalmente, que o senhor...

— Cale-se! — disse Cordes.   Suas mãozinhas agora eram punhos, e êle plantou-as sobre o topo da mesa, transferindo a ferocidade de seu olhar de Whalen para McCall.

— Estou compreendendo, McCall, que está tentando implicar-me no que quer que tenha acontecido a Harlan James?

— Não estou tentando — disse McCall. — Impliquei-o já.

— O senhor está fora   de si!     Daqui   a   pouco vai-me acusar de o ter assassinado!

— Não, Cordes, eu o acuso apenas de ter planejado o assassínio dele.   E, naturalmente, de estar por trás do assassínio de Gerald Horton, também.

— Você está simplesmente louco varrido!

— Na verdade, fui um pouco lento nessa descoberta.   Se não fosse por essa sua cara inocente, eu lhe teria dado pelo menos um pensamento de passagem, quando pensava nos possíveis motivos para o assassínio de Horton.   Mas você mostrou--se tão lindamente relutante em tomar o lugar dele como candidato à Prefeitura. . . Tenho de admirar, se essa é a palavra,   seu   senso   cronométrico, Cordes. Acontecendo apenas uma semana antes do prazo fatal para inscrição de candidatos, o assassínio de Horton não deixou tempo para o partido arranjar alguém, a não ser o tímido e leal braço direito do figurão morto, seu gerente da campanha, seu estrategista e escritor de seus discursos. Você tinha, mesmo, ajudado a redigir a plataforma do partido. Quem mais poderia entrar no esquema, no último momento, e esperar fazer uma honrosa corrida pelo cargo, contra o candidato negro? Você sabia que por muito fortemente que procurasse se esquivar à convocação, a comissão executiva do partido o forçaria a aceitar a candidatura, já que se constituía na única escolha possível.

—   Palavras — disse Cordes, cujo nariz se encolhera, e estava branco até as narinas. — Palavrório!   Despropósitos!

— O assassínio de Horton foi lindamente cronometrado, por outra razão, Cordes. A forma pela qual você herdou a posição dele na lista dos candidatos, compensou, e muitíssimo, a desvantagem de não ser muito conhecido do eleitorado.   Você sabia que a maioria dos eleitores brancos, apavorados   com aquele assassínio, não suportariam   que os   militantes   negros levassem seu candidato   (afinal, um homem de côr)   à vitó­ria, matando seu opositor. Estavam   dispostos a votar contra Jerome Duncan, nem que fosse apenas para mostrar à comunidade de côr que tais táticas não a levariam ao poder. Seu plano de levar o candidato branco a ser morto por negro, foi diabólico, Cordes. Poderia ter produzido um dos mais sangrentos motins raciais desse século.

— Você deve estar doido! Dopado, com certeza. Seria bem melhor para você, McCall, se não fizesse essas ridículas acusações com testemunha presente. Andy, quero que você se recorde de cada palavra que este lunático disse, porque vou processá-lo, (e a esse inescrupuloso político estadual para quem êle trabalha!) por difamação de caráter. Por Deus, McCall, vou processá-lo por uma indenização de um milhão de dólares.

— Por que os dois não me processam?

— Quê? — disse Cordes.

— Quê? Quê? — falou Whalen. — Que quer dizer?

— Você também vai ter razões para isso.

— Que está querendo dizer?

— Você deveria ter feito um curso de maquilagem para ser ator de qualidade, Andy. Ou alguma pesquisa entre os membros da "Corações Negros". Quando você estendeu a mão na pedreira para pegar o rolo de cordas de piano, sua palma suada brilhava como couro. Não sabe que há muito menos pigmento na pele de um homem de côr nas palmas das mãos e nas solas dos pés, do que no resto do corpo?

O silêncio tornou-se penoso.

Whalen disse, em voz fraca:

— Não sei de que você está falando...

— Você está acusando meu técnico de manutenção   de se ter disfarçado de negro para matar Gerald Horton? — ga­niu Benjamin Cordes. — Quem   acreditaria numa história dessas?

McCall, entretanto, continuou, plàcidamente:

— Por instigação sua, Cordes. E então mandou-o atrás de mim, embora deva ter tido alguma dúvida quanto à capacidade de Andy para fazer o trabalho, porque tratou de que êle se disfarçasse outra vez de negro, para o caso de não levar a cabo o seu intento e eu sobreviver e dar à polícia uma descrição do meu raptor e assaltante.

— Está querendo fazer adivinhações!

— Não.   No caminho para a pedreira meu raptor "negro" perguntou-me   que   pista   a polícia   obtivera   através   da   arma usada pelo assassino de Horton.   Eu só tinha falado na existência de uma pista a três pessoas: o Prefeito Potter, Jerome Duncan, e você.   Ao prefeito e a Duncan nada disse sobre o revólver, apenas fiz uma declaração simples de que a polícia tinha uma pista.   É verdade que o prefeito poderia ter sabido sobre o relatório quanto ao pedido de porte de armas de Ja­mes   através   do   Chefe   Condon,   imaginando-se   que   Condon tivesse o relatório do caso através do Tenente Cox e do Sar­gento Fenner, mas, ainda que tivesse, o prefeito é uma velha raposa   astuta que não   anda   por   aí   deixando escapar coisas para ouvidos de assassinos em potencial.     E é verdade que, teoricamente, Duncan poderia estar envolvido com o assassino, mas como poderia ter   sabido   que   a pista   de que falei   re­feria-se à   arma,   que nem mesmo chegou a   ser encontrada? Isso levou o caso até você, Cordes, e com você eu tinha tido um deslize e especificado que a pista se referia à arma.   Assim, calculei: quem está junto de Ben Cordes, um homem branco, de lábios grossos e narinas amplas?   Ora essa, o seu factótum: Andy Whalen.

Whalen disse, a voz pastosa:

— Vou processá-lo também.

— Terá de tentar isso de uma cela na cadeia, receio. — disse McCall. — Desde que Cox e Fenner descubram tudo isso não terão dificuldade alguma para prender você, Whalen. Não pode haver muitos lugares em Banbury ou arredores onde se possa comprar ou alugar uma cabeleira de estilo africano, e o fato de que você é branco deve ter fixado seu rosto na memória do vendedor. E quantos lugares há nesta cidade onde se possa comprar material de maquilagem para teatro? Além disso, provavelmente guardou isso tudo em casa, inclusive aquela camisa de gola olímpica e a pistola Woodsman, para o caso de que seu patrão precisasse que tornasse a usar tudo. E, a propósito, aquela pistola era a pistola de precisão de James?

O rosto de Whalen estava tão vermelho quanto seus cabelos.

— Não tenho que ouvir essas coisas. . .

E êle se pôs em pé.  McCall ficou de pé diante dele:

— Se pensa que vai correr para casa e destruir as provas, Andy, desista da idéia.   O único lugar para onde você vai é a delegacia de polícia.

— Você é que vai-me impedir? — trovejou Whalen. — Pensa que é tão bom quanto Kid Cooley?

— Isso é história, Andy, história antiga. Olhe para a sua barriga. Seja como fôr, não vou entrar numa luta de boxe com você: seus punhos, provavelmente, ainda serão tidos como armas letais pelos livros da lei. Estou apenas fazendo lembrar que fugir não resolve seu problema. A lei irá buscá-lo pelo colarinho onde estiver, por mais que você corra e por muito longe que vá. Portanto, use a cabeça e venha por bem.

Whalen teve um ímpeto e atirou sibilante golpe de cotovelo, com a esquerda, para o queixo de McCall. Este, porém, fora sempre fiel aos seus exercícios ginásticos. Viu o murro do pançudo ex-pugilista vindo em câmara lenta, e enfrentou-o sem perigo, mandando um golpe, com os dedos rígidos da mão direita à axila exposta do homem. Whalen ga­niu, e seu braço esquerdo tombou como o tronco de uma árvore, temporariamente paralisado pelo golpe de judô. Berrou um palavrão e tentou atingir a cabeça de McCall com um golpe da mão direita em diagonal. McCall que era o menor, mergulhou para dentro do gesto do outro, novamente, agarrando-se com ambas as mãos, como quem se afoga, ao pulso que êle pusera em evidência. Girou rapidamente, deu um sacão, e atirou Whalen por cima do ombro. O ex-pugilista foi tombar de costas, com tremendo ruído.

E ali ficou, arquejando para conseguir ar.

—   Eu disse que não ia ter luta de boxe com você — falou McCall. — Mas não prometi que não me defenderia. Está bem?

— Levante as mãos, McCall — disse a voz de Benjamin Cordes atrás dele. — Devagar e certo.

McCall pensou que a melhor parte do valor seria obedecer implicitamente. Cordes tinha a voz fria, amarga, e convincente. Voltou-se, com os braços erguidos. O gerente da estação de rádio e candidato devia ter uma arma na gaveta de sua escrivaninha. Era um revólver 38, que parecia bastante eficiente, e estava voltado para a barriga de McCall.

— Acha, realmente, que isto vai-lhe adiantar em alguma coisa, Cordes?   A polícia sabe de tudo quanto lhe falei.

—   Duvido disso — falou o homenzinho. — Acho que veio aqui primeiro, para ver qual seria a nossa reação, minha e do Andy.   Estamos acabados, se realmente contou alguma coisa à polícia,   seja como fôr,   de modo que podemos   bem operar na esperança de que nada tenha sido contado.   Incline-se sobre a beirada dessa mesa, com ambas as mãos. Não, McCall, você não é tolo para fazer isso.   Pés separados e bem para trás.

Cordes veio postar-se atrás de McCall, correu a mão esquerda pelo corpo do moço, fazendo, nisso, trabalho de profissional. McCall ficou a cogitar sobre onde êle o teria aprendido.

— Não uso arma — disse McCall. — Poderia ter poupado seu trabalho, e a mim esta atitude pouco digna, se me tivesse interrogado a respeito.

— Pode endireitar-se e voltar-se de frente, agora.

No tom de Cordes não havia abrandamento.

Quando McCall se voltou, Cordes estava de pé a uns dois metros de distância, fora do alcance do braço dele. McCall sentiu que o respeito pelo know-how *de Cordes aumentava. O mesmo se dava quanto ao 38 apontado para a sua barriga. Êle até isso sabe, pensou McCall. Um homem pode sobreviver a uma bala no peito ou na cabeça: isso acontece com muitos. Mas as vísceras baleadas a curta distância com grande calibre fazem uma pessoa quieta, quase sempre permanentemente. E entre uma coisa e outra, o ferimento era muitíssimo doloroso.

Andy Whalen estava sentado no chão. Parecia estonteado. Ou seria incredulidade diante do que se passava? Penosamente,   ergueu-se, massageando o braço   esquerdo.

— Ficará bom dentro de um ou dois minutos — disse McCall.

— Sua frieza me dá náusea — falou Benjamin Cordes. Cale a boca! Andy, seu braço direito está bom?

Whalen resmungou algo. Olhava furiosamente para McCall, e havia promessas de lesões corporais em seus olhos.

— Então, tome este revólver.

O homenzinho deu a arma a Whalen, dizendo:

— Armas   me põem nervoso.

McCall duvidava daquilo. O tímido cordeirinho era uma representação. Muito mau, pensou êle, que eu não tivesse descoberto isso quando poderia ter feito alguma coisa nesse caso.

Cordes abriu com ruído a porta e relanceou os olhos pelo vestíbulo.

— Acho que não há ninguém no prédio, a não ser Banner e seu auxiliar do som.   Você fica vigiando McCall a cada segundo, Andy: êle é cheio dos truques.   Eu vou na frente.

Desceram a escada dos fundos. Essa escada terminava numa porta que tinha um painel superior de vidro. Cordes examinou longamente o estacionamento.

— Espere aqui com êle — ordenou o candidato a prefeito ao seu homem de ação. — Vou trazer o caminhão da técnica, de marcha à ré, até a porta, para o caso de que alguém venha para o estacionamento, saindo dos fundos da loja de móveis ou da de roupas.   Deixe essa porta fechada, Andy, até que eu abra a porta de trás do caminhão.   Então, empurre o homem para dentro, e depressa.

 

Através do painel de vidro McCall viu Cordes subir para o assento do motorista no caminhão da técnica. O letreiro que havia do lado do carro: ESTAÇÃO DE RÁDIO BOKO — 1410 Em Seu Dial, não o tranqüilizou.

Cordes fêz marcha à ré com o carro até a porta do edifício. Desceu, e veio abrir a porta traseira do caminhão. Relanceou disfarçadamente os olhos em torno e disse, em tom instante:

McCall esperara poder evadir-se naquela ocasião. A pressão da boca do 38 entre suas quinta e sexta vértebras dissuadiu-o   da   idéia.     Qualquer   tentativa   naquele   sentido seria festejada pelos seus captores, não por êle.   Moveu-se para o caminhão e Cordes bateu a porta atrás dele.

Dentro, o caminhão conservava-se bem iluminado. Não só havia a janela traseira, mas uma ampla área sobre a cabina estava aberta, admitindo também a luz que vinha da frente. O lado esquerdo do interior era completamente tomado por um painel de equipamento eletrônico, dials, medidores, e suporte para fones de cabeça. O caminhão, McCall viu, devia ser utilizado como unidade móvel de transmissão, para noticiar acontecimentos no próprio local onde eles se dessem.

O lado direito estava ocupado por um banco. McCall sentou-se nele, na extremidade mais próxima da cabina. Os fones de cabeça, que estavam ligados no painel, do outro lado, tinham ficado sobre o banco, naquele lugar. O corpo de McCall escondia-os dos olhos de Whalen. O moço descansou a mão direita sobre eles, e quando o homenzarrão voltou-se a meio para fechar o trinco da porta traseira, McCall, rapidamente, suspendeu os fones. Pousou-os sem ruído, e imediatamente.

Os fones eram pesados bastante para enraivecer o ruivo assassino e fazê-lo disparar a arma, se levasse com ambos diretamente sobre o rosto. As possibilidades contra incapacitar o homem com aquele aparelho eram grandes demais.

Whalen sentou-se na outra extremidade do banco, junto das portas. Sentava-se sobre a nádega direita, meio virado, o 38 apontado para McCall, e seu olhar furioso dizendo: — Tente bulir comigo!

A saída do estacionamento ficava do lado da rua. Cor­des virou à direita na Grande Avenida, depois de novo à direita. Guiou durante um par de quarteirões antes de virar à direita pela terceira vez. Estava, portanto, dirigindo em direção norte.

Sobre o ombro, Cordes disse a Whalen:

— Você terá que me dar a direção para a pedreira, quando alcançarmos Telegraph Road.

— Não podemos usar aquele lugar.     Se encontraram o corpo do negro, lá deve estar cheio de policiais.

O caminhão diminuiu a velocidade. — Sim — disse Cordes, e sua voz mostrava preocupação. — Conhece algum outro lugar, Andy?

— Continue por aqui mesmo, seja como fôr.   Há uma outra estrada   de   terra que entra pelo bosque e   quase ninguém usa.

O caminhão tornou a tomar velocidade.

— Tome a Rua Taylor para o norte — disse Whalen. — Há menos trânsito.

Cordes sacudiu a cabeça, friamente:

— A Primeira Rua faz caminho mais rápido.

Interessante. Aparentemente, ele parecia estar envergonhado por ter cometido o erro de se dirigir para a pedreira. Num momento como aquele, quando estava lutando por sua vida, ainda se preocupava com a afirmação de sua liderança. Um homem precisa ser perigoso para demonstrar tal coisa.

Viajaram em silêncio. Em poucos minutos tinham entrado na Primeira Rua. No trânsito apertado McCall viu o queixo de Cordes endurecer. Relanceou os olhos para Whalen, que tinha um ar triunfante. O homenzarrão, entretanto, nada disse.

— Você deveria ter trazido um revólver como esse a noite passada,   Andy   —   disse McCall.   — Não   aquela   tola pistola de espoleta.

Whalen olhou para o revólver que tinha na mão.   Careteou um sorriso para McCall e disse:

—   Aquele negro da "Corações Negros", Harlan James, carregava a pistola de precisão,   na noite do   agarra,   quando fiz o homem virar sorvete.   Pensamos que talvez James tivesse uma pistola daquelas, por isso resolvemos usar a mesma para o Horton.

— Por que não aprende a ficar com essa boca calada? — disse Cordes.

— Que diferença faz isso, agora? — resmungou Whalen. — Êle não vai conversar com mais ninguém.   Só com São Pedro.

Cordes abriu a boca. Depois, fechou-a. Após um momento riu, e era a espécie de risada sem a qual McCall passaria muito bem.

— Isso é verdade — disse o homenzinho.

— Confesso que não fui muito esperto usando ela outra vez em você — disse Whalen.     Estava-se sentindo melhor agora, começando a divertir-se. — Com êste aqui nas patas, na noite passada, como você disse, a estas horas havia de estar no fundo de mais de trinta metros de água.

— Estaria mergulhado em vinte metros.

Aquilo irritou Whalen.

— Você já disse isso!   Onde lhe disseram que eram vinte metros?

— As pessoas que mediram o poço — disse McCall — quando pescaram o corpo de James.

— Malditos!

Aquela   notícia   oficial   pareceu   aborrecer   Whalen,   que murmurou:

— Sempre disseram que era mais de trinta metros.

— Esqueça o poço!   — gritou Cordes, subitamente. — Sabe que tem de me dar a direção.   Vigie o caminho!   E vi­gie McCall.

— Estou vigiando êle — disse Whalen, mal-humorado.

— E o caminho.

— Acho bom! É a sua pele que está em jogo, agora, e não se esqueça disso.

Houve outro silêncio.   McCall disse, de repente:

—   Como foi que Cordes levou você para esse estúpido jogo, Andy?     Está certo, êle queria ser prefeito de Banbury e não o gerente de uma reles estação de rádio do tipo que fica nos bastidores da política.   Mas o que ia ganhar você em tudo isso?     Coisa que valesse a pena, para   arriscar-se a rapto e assassínio?

— Eu vou ganhar um emprego público na moleza, e quando êle fôr governador, eu vou ter um belo emprego estadual, ganhando um dinheirão.

— Seu. . . boca rota! — berrou Cordes.

— Ora, isto é como estar falando com um cadáver — disse Whalen. — Não se esquente, Ben.   Que mal faz uma conversinha com um morto?

— E que emprego — continuou McCall — êle lhe prometeu quando fosse presidente? O de Secretário da Defesa?

— Se você não fechar essa tramela, McCall, pode estar certo de que mando Whalen lhe estourar a cabeça e espalhar seus miolos pelo caminhão todo!

McCall, sensatamente, fechou a tramela. Estivera tagarelando mais para desviar a atenção do que para informar-se. A dinheirama prometida a Whalen era bastante de se prever. Já havia algum tempo que êle estava reparando, por cima do ombro de Whalen, através da janela da porta traseira, num sedã cinzento, velho de uns dois anos, um Pontiac, que parecia muito comum. Mas o que êle estava fazendo não era comum. Atravessava o trânsito de maneira muito persistente, conservando-se vários carros atrás do caminhão da técnica, e conseguindo manter sua posição, apesar dos cruzamentos.

McCall ficara muito interessado no Pontiac cinzento. Quase tanto, pensou êle, quando Sir Galaad pelo Santo Graal. Quando entraram na Telegraph Road, o Pontiac os seguiu. McCall ficou a pensar se o desespero e a necessidade de desejar um milagre, não o estavam fazendo crer que o se­dã cinzento os seguia, quando a razão mais provável para o seu comportamento era que ambos os veículos estavam, simplesmente,   viajando   para   a mesma   direção e em   velocidade idêntica.

Whalen olhava para trás, de vez em quando, mas parecia estar procurando marcos da estrada. Não dava a impressão de ter reparado no sedã cinzento.

No limite da cidade êle disse:

— A estrada para a pedreira fica a uns três quilômetros daqui.   Observe uma tabuleta à esquerda, Ben, dizendo Dover Rock and Granite Co.

— Pensei que não íamos para lá — disse Cordes.   Parecia fatigado.

— Falei na tabuleta como sinal do caminho.     Mais, ou menos a uns quatrocentos metros depois dela há uma estrada de terra à direita.   Os garotos usam o lugar para as poucas vergonhas.   Precisa prestar bastante atenção, para não passar sem ver.

McCall tornou a firmar a mão sobre os fones. Um fio de quase um metro terminado em plug estava ligado a eles. McCall tocou o plug e desanimou. Oferecia menos utilidade como arma do que os fones.

Cordes murmurou:

— Ali está a tabuleta da Dover Company.

— Então comece a vigiar a tal estradinha do amor.   Devagar, devagar.

O caminhão diminuiu a marcha. McCall sentiu uma fisgada de esperança quando o carro cinzento também diminuiu a marcha. Por que fazia isso o Pontiac, ao mesmo tempo que o caminhão da técnica, se não estava acompanhando? Numa rua deserta,   com   pequeno   trânsito?

— Estou vendo a estrada! — e Cordes diminuiu ainda mais a marcha.

O coração de McCall como que mergulhou verticalmente. O sedã cinzento tomou velocidade, ultrapassou-os, e seguiu caminho rápido.

Adeus, acompanhante.

Adeus mundo, era melhor dizer.

O caminhão da técnica desviou-se e entrou na estrada de terra. Era uma estrada cheia de calombos. Mesmo firmes em seus traseiros, êle e Whalen davam saltos sobre o banco... não havia muito tempo de sobra agora.

De repente, McCall sentiu-se infinitamente calmo. Jamais tivera a cabeça tão despejada em sua vida. Talvez fosse porque houvesse tão pouco dela. . . esqueça tudo isso. Concentre-se no presente imediato.

Com as guinadas do caminhão para disfarçar, enrolou a extremidade do fio onde ficava o plug, em torno de sua mão direita.

Que tenho a perder? Talvez dois ou três minutos de vida. Teria sido ridículo preocupar-se. A morte não podia vir daquela maneira. Não para Mike McCall. Morte era coisa que vinha para outras pessoas. Um mundo sem Mike McCall seria inconcebível. Mais fácil era imaginar Mike McCall sem um mundo.

Através da janela traseira estudou o terreno. A estrada era idêntica à que ia para a velha pedreira. Sulcada. Estreita. Bordeada   de árvores cujos galhos   formavam   abóbada. . .

— Aqui deve estar suficientemente distante — disse Cordes. Parecia ter a garganta   seca.   Aquilo   quase   divertiu McCall.   Pensou: êle está mais nervoso do que eu.

Andy Whalen virou o rosto escalavrado para olhar de esguelha pela janela traseira.

Agora.

McCall sacudiu o fio de um metro num arco, como um vaqueiro. Os fones, na extremidade do cabo, zumbiram. Êle curvou-se para a frente e deixou voar. O fio apanhou o pulso da mão direita de Whalen, que segurava o 38, a uns trinta centímetros dos fones. Enrolou-se no pulso três vezes mais depressa do que um campeão de rodeio laçando as pernas de um novilho. Imediatamente, McCall atirou-se para trás, repuxando o fio com ambas as mãos.

Whalen fora puxado para a frente, caindo de joelhos. O revólver disparou uma vez. O ruído, naquele espaço confinado, pareceu o de uma explosão.

McCall pôs-se em pé de um salto e atingiu a parte de trás do espesso pescoço do homem com um golpe de judô, de mão esquerda.   Whalen desabou, de bruços, sobre o rosto, e ficou imóvel.

Desenrolando rapidamente a corda da mão, McCall apoderou-se do 38, e girou sobre si mesmo, acocorado.

Mas Benjamin Cordes ainda olhava para a frente, ainda se agarrava ao volante com ambas as mãos.

Então, lentamente, tombou sobre o assento. Uma mancha crescente, vermelha, como a imagem cinematográfica acelerada de um botão de rosa, surgiu, nitidamente, no meio de suas costas.

O tiro perdido do 38 tinha atravessado o encosto do assento do motorista, e a bala enterrara-se na espinha de Cordes.

McCall estava de pé ao lado do caminhão da técnica quando o Pontiac cinzento veio em alta velocidade pelo caminho. O Sargento Fenner saltou do volante, e o Tenente Cox saltou em terra pela outra porta. Ambos tinham na mão armas de uso especial dos investigadores e ambos olharam primeiro para o 38 que McCall empunhava.

— Então vocês nos estavam seguindo — disse McCall. — Afinal.

— Vejo que resolveu a coisa bem e sozinho — grunhiu o sargento.     Inclinou-se para dentro da cabina,   enquanto Cox olhava pela traseira do caminhão, através da porta que McCall abrira. Whalen   ainda   estava desacordado, e   McCall   tinha amarrado as mãos dele nas costas, com o fio.

— Estivemos seguindo o senhor desde que saiu da central de polícia — disse o tenente. — Teríamos perdido de vista se o caminhão não tivesse passado por nós na Grande Avenida.   Estávamos esperando o senhor na frente, observando o seu Ford.   Ben Cordes dirigindo um caminhão da BOKO com suas duas próprias mãozinhas nos intrigou, por isso resolvemos segui-lo.     Cordes está ferido?

— Cordes — disse o Sargento Fenner, endireitando o corpo — é agora um peixe gelado.   Eles vão ter que arranjar um terceiro candidato para a sua chapa.

Era quase dezessete horas quando McCall acabou de telefonar a Maggie Kirkpatrick, dando-lhe a notícia exclusiva prometida. Andy Whalen fora registrado na central, e êle próprio completara e assinara suas declarações no posto policial, sala dos investigadores.

McCall não ficou surpreendido ao receber o recado do Chefe Condon, que lhe pedia que passasse pelo seu escritório assim que terminasse.

McCall encontrou o Prefeito Potter com Condon, na sala de espera. Beth McKenna estava datilografando em sua escrivaninha, tentando não parecer superalegre.

O rosto do Chefe parecia mapa de região montanhosa.

— Coisa terrível! Coisa terrível! — rosnava êle. — Ah! McCall. Eu lhe digo, Sr. Prefeito, isto vai despedaçar esta cidade, como uma bomba. McCall, pedi-lhe que viesse para explicar pessoalmente ao prefeito. Não quero que êle tenha de esperar pela transcrição oficial de suas declarações.

McCall sentou-se numa cadeira, ao lado da escrivaninha do prefeito.

—   Desculpe-me por me sentar, Senhor Prefeito,   é que estou um tanto esfalfado. . .

O velho sacudiu a mão, impaciente: — Não está ferido, está?

— Só o meu ego.

E McCall fêz um relato lacônico dos acontecimentos do dia. Beth parara de datilografar e escutava, desavergonhadamente.

— Cordes e aquele ruivo, seu técnico de manutenção?

O idoso prefeito sacudia a cabeça.

— Há provas bastantes para condenar Whalen e implicar Cordes como instigador?

— Sei que o Tenente Cox e o Sargento Fenner acabam de encontrar o disfarce que transformava Whalen em homem de côr, na casa dele. E Whalen cantou como uma estrela de ópera. A coisa está bem cercada, Senhor Prefeito.

— Eu ainda digo que é uma coisa terrível — resmungou o Chefe Condon.

— Por que, Chefe? — perguntou o prefeito. — Isso vai esfriar os brancos de cabeça quente. Talvez chegue mesmo a fazer com que alguns deles sintam vergonha quando souberem que foram brancos os que tentaram culpar um negro pelo seu crime. Também, certamente, vai elevar o moral da comunidade de côr, que verá um branco ser castigado pelo menos uma vez. Ou está preocupado, Chefe, com o fato de o acontecido levar Jerome Duncan a ser o próximo prefeito?

— Não acha, então, que isso vai despedaçar a cidade? — exclamou o chefe. — O senhor não me apanhará servindo um prefeito negro!

— Não há problema, Chefe — disse o prefeito, secamente. — Sempre pode demitir-se e partir para a América do Sul.

— Não   pense   que   eu   não   faça   isso!   —   berrou   o Chefe Condon. — Da maneira com que este país está indo para o inferno. . .

O resto perdeu-se na batida da porta que dava para o seu gabinete particular.

— Eu há muito tempo deveria ter despedido este homem — disse o prefeito, com ar muito satisfeito. — Oh! Laurel!

— Finalmente o alcancei — arquejou Laurel. Tinha entrado a correr, trazendo uma pequena pilha de papéis e envelopes, datilografados.

— Lamento ter feito você me caçar pela cidade toda — disse o velho. — Mas estas cartas têm que seguir no correio desta noite.

— Quer usar a minha escrivaninha, Senhor Prefeito? —perguntou Beth, levantando-se.

— Obrigado.

Êle sentou-se com as cartas, e começou, calmamente, a assiná-las. Laurel ficou de pé ao lado dele, dobrando as folhas e metendo-as nos envelopes, conforme êle assinava. Tinha dado a McCall um breve sorriso, que se desvaneceu quando seus olhos voltaram-se para Beth.

— Bem, Mike — disse o prefeito, sempre assinando. — Acho que agora, que a excitação passou, você não ficará por muito mais tempo conosco?

— Não há razão oficial para me demorar — disse McCall, cuidadosamente — uma vez que já fiz meu relatório ao Governador Holland, por telefone.

— Eu ainda não tive possibilidade de lhe oferecer uma refeição.   Como agradecimento público oficial, gostaria de terminar   minha   incumbência   com   uma   nota   histórica,   brindando ao homem que salvou Banbury.     Você poderia jantar comigo esta noite?

McCall relanceou furtivamente os olhos para Beth, esperando que Laurel não reparasse nisso. Beth deu-lhe um rapidíssimo movimento confírmatório, libertando-o de seu encontro marcado.   McCall poderia dar um beijo no velho.

— Sim, senhor — disse. — Terei muita honra.

Ao que o Prefeito Potter prontamente respondeu:

— Já convidei uma velha amiga minha para jantar comigo esta noite, Mike. De forma que é melhor você trazer uma jovem para sua companhia. Conhece alguma, na cidade?

McCall fechou os olhos contra os olhares de expectativa em dois adoráveis pares de olhos femininos, os verdes e os azul-violeta.

"Como saio desta?", pensou. Feliz Sam Holland! O que eu preciso é de um quebra-galhos para resolver os meus problemas.

Então, ocorreu-lhe a solução:

— Eu, realmente,   devo a uma repórter da cidade um convite — disse McCall.

— Maggie Kirkpatrick — confirmou o prefeito. — Excelente moça, Mike. E inteligente, também. Em todos os sentidos.

E, quem sabe? pensou McCall, sorrindo para os quatro olhos furiosos voltados contra êle.   Talvez depois...

 

 

 

* Honky — Palavra intraduzível, sem equivalente em português, usada por homens de côr americanos contra os brancos, com intenção depreciativa, como que réplica do "nigger" usada por brancos americanos contra o cidadão de raça negra. (N. da T.)

* Líder   carismático norte-americano.   (N. da T.)

** National Association for Avance of Colored People. (N. da T.)

* Produtos Heinz — Referência a uma conhecida marca de grande variedade de produtos alimentícios.

* Haggis — Iguaria escocesa, onde entram miúdos de carneiro ou bezerro, que são cozidos no próprio estômago do animal.

* Humpty-Dumpty — Personagem de conhecido livro infantil inglês, que tinha o feitio de um ôvo. (N. da T.)

* Revista norte-americana,   considerada erótica. (N. da T.)

* Sexta-Feira — Nome do acompanhante de Robinson Crusoe, personagem do famoso livro do mesmo nome, de Da­niel Defoe.

* Camisolão — Referência ao traje usado pelos membros do Ku Klux Klan, organização secreta política, religiosa e ra­cista do Sul dos Estados Unidos, em atividade após a Guerra Civil, pretendendo manter a supremacia dos brancos através de perseguições das mais cruéis contra a comunidade de côr.

* Chá de berço — Reunião em que aa amigas oferecem à futura mamãe várias peças para o enxoval do bebê. Equivalente do Chá de Cozinha, oferecido às noivas.

* Schutzstafell (= patrulha protetora). Era o nome da força policial nazista. (N. da T.)

* Jimmy Durante — Referência a um antigo ator comico do cinema norte-americano, notável pelo enorme nariz que tinha.

* Know-How,   literalmente   "saber   como". A expressão é hoje usada, universalmente, no original, para "conhecimento técnico" (N. da T.)

 

 

                                                                  Ellery Queen

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades