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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DIÁRIO ROUBADO / Régine Deforges
O DIÁRIO ROUBADO / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Até onde podia compreender, a jovem Léone não havia cometido nenhum pecado. Apenas um erro: o de registrar num diário os sentimentos e os momentos de prazer compartilhados com outra adolescente, Mélie. Mas a cidadezinha onde moravam era provinciana demais para aceitar um amor dessa natureza - "antinatural", como afirmavam os mais conservadores. Quando o caderno é roubado e seu conteúdo divulgado, Léone é exposta à execração pública, agredida, humilhada... e descobre a força da hipocrisia. O DIÁRIO ROUBADO é mais uma criação da escritora, pintora e cineasta Régine Deforges, autora dos livros da série A BICICLETA AZUL. A história, de cunho assumidamente autobiográfico, foi adaptada para o cinema pela diretora Christine Lipinska.

 


 


Você verá que este verão não será como os outros.
Quem dizia aquilo, agora mesmo, no recreio? A gorda Marie-Josèphe ou a pequena Marie-Thé, sempre inseparáveis? Sorri, pois todos os verões neste solitário recanto
do Poitou, quando se tem quinze anos, se parecem: banhos de rio, piqueniques, bailes nos clubes sob a vigilância dos pais ou das irmãs mais velhas, trabalhos
no campo para as que moram no interior, o cinema uma vez por semana, cujos filmes mais recentes têm cinco ou seis anos. A mesma coisa acontece com os noticiários
cinematográficos, o que provoca infalivelmente risadas na sala, que descobre assim as incoerências dos que nos governam e a relatividade das coisas humanas. Além
disso, duas ou três visitas à cidade mais próxima, Poitiers ou Limoges; para as mais favorecidas, uma temporada na praia ou na montanha.

Irmã Saint-André não pára de se confundir em seu curso de moral cristã, misturando sem corar Santo Agostinho e a

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"pequena Thérèse de Lisieux", o quietismo e o jansenismo. E perde-se em observações a respeito do amor a Deus e ao próximo e sobre a submissão à vontade divina!
A pobrezinha me dá pena; se eu estivesse em melhor forma ter-lhe-ia falado da concepção de Deus e do que resulta daí. Para quê? Mais uma vez seria expulsa da
sala de aula por insolência. Prefiro continuar divagando, envolta por um raio de sol que me torna lânguida. A poeira dança e cintila em meu raio de sol, como que
obedecendo a uma música imperceptível aos ouvidos humanos. Uma mosca, por sua vez, pôs-se a esvoaçar no mesmo raio de sol. Ela parece ter enlouquecido, subindo
e descendo pelo raio luminoso como que dominada por um ritmo infernal. Uma outra se junta a ela. Ambas se entregam a um balé de rebuscada coreografia

- Senhorita Léone, se isto não lhe interessa, posso mudar para outra coisa!

Sobressalta-me a voz seca da professora. Devo ter uma expressão de profundo alheamento, pois toda a sala cai na risada.

- Silêncio, meninas. Se a senhorita Léone acordou, e se não se opuser, prosseguirei.

"Deus é amor e os sinais que ele nos envia são provas de sua preocupação... aceitar... submeter-se... divina providência... Oremos, crianças.

Ufa, acabou! Ergo o tampo da carteira a fim de guardar livros e cadernos.

- Jean-Claude está à sua espera- sussurra Joêlle, ao meu lado, a cabeça escondida sob a carteira.

Fico ruborizada, vergonha e prazer misturados. Há muitos dias que o evito. Por duas razões: tenho medo que Mélie saiba que o vejo, faça uma cena e se ponha a chorar.
Não quero causar-lhe dissabores, e escândalos me enchem de raiva. A outra razão, talvez mais verdadeira, embora preferisse ter a lingua

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arrancada a confessá-lo, é que quando Jean-Claude me abraça tenho vontade de ficar nua, apertada contra ele, sendo acariciada e beijada por todo o meu corpo.
Ele é afetuoso e desajeitado, terno e brutal, tímido e ousado. Sabe que jamais fiz amor com um rapaz, o que o excita e atemoriza. Além do mais, eu lhe disse
que
é de Mélie que eu gosto, não dele. JeanClaude limitou-se a rir, afirmando que os amores entre garotas não eram sérios, que eu podia amar Mélie o quanto quisesse,
desde que ele pudesse continuar me namorando.

- Imbecil, será que não entende? Eu a A.M.O. Odiei sua gargalhada. Desde então, não o encontrei mais.

Saímos para o pátio numa algazarra infantil. A proximidade das férias torna as irmãs indulgentes. Elas batem palmas, formamos fila e deixamos a escola quase dignamente.

As ruas da cidadezinha subitamente se animam e se transformam, em instantes, no universo de crianças e adolescentes. Os adultos desapareceram, como que repelidos
por tanta juventude.

Joëlle junta-se a mim, tentando obter informações sobre meus amores, a fim de comentá-los com Maguy, sua melhor amiga. Ela me irrita, detesto perguntas, principalmente
sobre esse assunto. Joëlle insiste, estou prestes a afastá-la com um safanão, mas ela me faz parar, segurando-me o braço.

- Olhe, ele está na outra calçada. Sorria, ele é um rapaz lindo.

É verdade que ele não é nada mal, mas isso não é motivo para que eu retribua ao aceno e corra a seu encontro, sob os olhares zombadores das colegas.

- Vá até ele - insiste Joëlle. Acerto-lhe um violento pontapé que a fez calar-se e ficar dando pulinhos enquanto esfrega a canela.

- Você é completamente louca! Danem-se você e suas histórias, só estava querendo ajudar.

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Me ajudar... Ela realmente pensa que sou uma idiota. Depois de quatro anos no colégio Saint-M., não tenho nenhuma amiga, pelo menos ninguém que eu chame assim.
Tenho colegas com quem partilho tolices e risadas inconseqüentes, deveres escolares ou santinhos, mas nada de confidências. Isso já me fez muita falta, mas, não
encontrando ninguém digno de meus segredos, achei melhor continuar confiando-os às minhas bonecas, às árvores, à água que corre, ao vento que passa, e até mesmo
a Deus, do que a alguém em quem não teria confiança.

É verdade que existe Mélie. Poderia dizer tudo a ela. Por gostar de mim, me compreenderia, aliviaria minhas aflições e riria dos meus cuidados. Entretanto, não
consigo contar-lhe o que estou sentindo, o que realmente penso. Não confio, como que temendo uma traição. E, no entanto, eu a amo, disto estou segura; na verdade,
é a única certeza que tenho. Ela também me ama, e deveríamos confiar uma na outra totalmente. Entretanto, não consigo.

Jean-Claude caminha na outra calçada, olhando-me com ar triste e sonhador, quase me enternecendo.

Joëlle e suas amigas me deixam no jornaleiro. Prossigo, tomando a direção da casa de Mélie. Vendo-me só, Jean-Claude atravessou a rua. Tento andar mais rápido,
mas ele me alcança.

- Por que está fugindo? Estou sentindo sua falta. Sábado haverá um baile na Trimouille com uma boa orquestra. Quer ir comigo?

- Não posso, vou dançar no cassino de La Roche-Posay. É quase verdade. Mas é nos domingos, depois do almoço, que Mélie e eu costumamos ir até o cassino com os
pais dela. Enquanto eles jogam bacará, dançamos, comemos sequilhos ou corremos pelo parque como adolescentes que somos. Em geral os pais de Mélie nos encontram
afogueadas, sem fôlego, despenteadas, as roupas manchadas do verde da relva em cujo tapete havíamos rolado e, às vezes, trocado carícias, depois de

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terem procurado por todo o cassino, que conhecemos como a palma da mão, ou nos recantos mais afastados do parque.

Levamos a bronca de costume e, na volta, freqüentemente dormimos coladas uma na outra no enorme automóvel que nos embala.

- Deixe-me, eu o verei esta noite depois da janta. Venha me apanhar em casa.

Ele se afasta cantarolando, todo animado. Chego correndo diante da casa de Mélie, onde ela conversa com uma professora, Sra. B. Não me atrevo a beijá-la na frente
da outra. A Sra. B. passa a mão pelos meus cabelos, eriçando-os, do mesmo modo que afagamos um cão peludo para demonstrar-lhe nosso carinho. Sempre soube que a Sra.
B. gostava de mim, porém minha timidez e a dela, naturalmente, impediram-nos de nos confessar nossa mútua atração.

- Que cabelos bonitos, Léone. Como espera fechar o ano escolar?

Faço uma careta, ela solta um riso jovial e animado. - Era o que eu imaginava. Mélie tampouco foi bem. Se vocês se vissem menos, sem dúvida estudariam mais.

Baixamos a cabeça, ruborizadas e embaraçadas, tal como ficaríamos diante de qualquer professora. Ela percebeu nosso constrangimento e a sua falta de tato.

- Eu estava brincando. Na idade de vocês é importante ter uma amiga. Vocês se sairão melhor no próximo ano.

E se despede com um ligeiro aceno de mão. Seguro Mélie pelo ombro. Ela empurra a cancela vermelha e branca do jardim, coloca o material da escola nos degraus
da cozinha e me arrasta para o quarto. Lá, abraçamo-nos com todas as nossas forças, machucando-nos, para ver quem apertava mais a outra. Ela desiste.

- Pare, você está me machucando. Solto-a e rolamos pela cama rindo muito. Ficamos alguns instantes imóveis. Mélie apóia-se no cotovelo e olha-me, os

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pequenos olhos azuis ficando mais e mais brilhantes, quase cruéis. Conheço esse olhar. Diante dele, respiro mais depressa, meus braços e minhas pernas doem um pouco,
minha boca fica ressecada, meu ventre se contrai. Puxo seu rosto para junto do meu e começo a lambê-lo devagarinho, principiando pelos olhos, o nariz, a boca,
mordisco-lhe as orelhas, o côncavo tão macio do pescoço. Ela me desabotoa a blusa, ergue meu sutiã e suga meus seios, indo de um para o outro com uma habilidade
que me faz gemer.

Temos, entretanto, de nos separar, pois acaba de soar meio-dia e meia no campanário de Notre-Dame. Mais uma vez atrasada para o almoço, o que provocará, da parte
de mamãe ou de vovó, censuras que considero excessivas.

Despedimo-nos com um último beijo molhado. Corri tão velozmente que cheguei na hora em que a família estava indo para a mesa.


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Jean-Claude chega na hora para o nosso encontro. A noite é tão suave que nem penso em vestir um casaco, contrariando os conselhos de mamãe.

- Não volte muito tarde - diz ela, com um olhar meio cúmplice, portanto deslocado vindo de sua parte.

- E se fôssemos pela estradinha até o reservatório do velho Néchaud?

Dou de ombros, tanto faz. Tudo que lhe peço é que não fale muito, não perturbe o silêncio da noite que se aproxima, que se mostre atento aos odores subindo da
terra, ao vôo pungente das andorinhas e ao vôo sedoso e rasante dos primeiros morcegos. Ainda está muito claro, mas tudo em redor prepara-se para dormir, e para
alguns, os noctívagos, os madrugadores, os enamorados das sombras, são os preparativos de um sabá ao qual somos convidados, porém poucos dentre nós irão, por falta
de imaginação.

A noite no campo exige que o ser humano se integre totalmente à sua movimentação, que é lenta e profunda; que respire

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conforme o ritmo da terra; que atente, junto à agitação das folhas dos álamos, ao cambiante murmúrio do vento; que reconheça o crocitar do corvo noturno e o
pio da coruja, o grito de medo e de morte do arganaz capturado pelo mocho. Esta noite é feita de suspiros, murmúrios, rugidos, roçadelas, gritinhos de prazer
ou de pavor, pesados batimentos de asas dos pássaros da noite e, de quando em vez, o ladrar longínquo de um cão incomodado em seu sono. Uma vida sufocando os
seus ruídos, como se temesse ser desarranjada, toma posse da natureza até o alvorecer, quando cederá o lugar a uma outra vida, mais ruidosa, mais segura, mais
vulgar, saudada pelo canto do galo, imbecil e triunfante.

O aroma entontecedor da madressilva me provoca um começo de enxaqueca. Caminhamos devagar, de mãos dadas. Ele quase não fala, sinto-o excitado, na iminência de
alguma coisa grave ou importante. A sua timidez me seduz, pois sei em que está pensando. Ele me leva para um desvio do caminho. Percebo, pelo odor de menta e de
limo, que estamos perto do reservatório. Ele senta-se sobre o musgo e puxa-me para si. Eu me estiro, saboreando a maciez de nosso leito. As árvores formam um sobrecéu
movente e murmurante. Que bem-estar! Não sair mais dali, esperar o fim dos tempos, deixar-me levar pelo murmúrio da água e do vento que se ergue.

Sinto o hálito quente de Jean-Claude em meu rosto, seus lábios procuram os meus, sua língua insinua-se entre meus dentes. Tento rechaçá-lo, mas um longo estremecimento
de prazer me empurra de encontro a ele, retribuo-lhe o beijo com arrebatamento e falta de jeito, tenho vontade de mordê-lo. Ele se afasta, rindo.

- Está me machucando, sua bruta. Você é digna do sobrenome que tem.

Esfrego-me nele como um animalzinho no cio. Sinto, apertado contra meu ventre, seu sexo endurecido. Tenho uma vontade louca de tocá-lo, retê-lo em minhas mãos, mas
não me

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atrevo. Sua mão se infiltra sob meu vestido e distende o elástico de minha calcinha branca de algodão. Quando seus dedos alcançam a fenda úmida, solto um gritinho.
Ele pára, pensando ter me machucado. Sacudo a cabeça, empurrando o ventre na direção dele. Seus dedos tornam-se mais e mais hábeis, arrancando-me gemidos de felicidade.
Ele mordisca meus seios com crescente intensidade, me machuca, porém adoro essa dor que leva até meu ventre uma onda de prazer. Logo ele me faz gozar.

Fico ofegante, colada nele. Seu sexo perdeu a rigidez e JeanClaude olha para mim com o olhar mortiço.

- Foi ótimo - disse ele, passando o lenço na calça. Ficamos um longo momento respirando o ar da noite, sentindo nossos corpos apaziguados e felizes. Pouco a pouco,
todavia, a friagem da terra nos invade e nos levantamos tiritando. Lamento não ter ouvido mamãe e deixado em casa o agasalho. Voltamos andando rápido para nos aquecer.

- Eu te amo - diz ele, diante de minha porta. Mando-lhe um beijo com a ponta dos dedos.

Subo direto para o quarto. Lavo-me superficialmente, quase vencida pelo sono. Mal me deitei e já estava dormindo.


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Chega de frio na barriga devido às lições que não foram aprendidas e aos deveres feitos às pressas. Chega de repreensões das professoras, de detenções, de castigos,
de colegas de turma cheirando a colégio e a xereca
mal lavada. Chega de frio pela manhã, de sonolência logo depois do almoço, de dores nas costas provocadas pelo tédio, de dedos manchados de tinta, de lápis roídos,
de borrachas perdidas. Chega de receios melancólicos, de orações sem fé. Estamos de férias, as férias de meio de ano!

Esta noite haverá festa. Haverá o desfile solene por toda a cidade e, em seguida, baile na praça da prefeitura. Mélie, JeanPierre, Michel e Francis ficamos felizes
por participar dessa vigília revolucionária, pois amanhã a festa continua: fogos de artifício e baile na praça do mercado. É preciso aproveitar todas as oportunidades
de distração, pois elas não são assim tão freqüentes.

Ao anoitecer, precedidos pela fanfarra, percorremos as ruas da cidade alta à cidade baixa. Há muita gente, as crianças carregam

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lanternas multicores, e as que nada trazem pulam e batem palmas em torno da fanfarra. Mélie e eu vamos abraçadas pela cintura. Jean-Claude reuniu-se a nós com
um rapaz que não conheço, por quem logo sinto uma violenta antipatia. É velho, tem no mínimo dezenove anos.

- Este é Alain, vai passar suas férias aqui. Seu olhar tem uma tal crueldade quando encara nós duas que instintivamente me afasto de Mélie.

Ao passarmos diante do café do Commerce, saio com Mélie do desfile.

- Estou cansada. Vamos beber uma limonada? Os dois nos acompanharam. - Sou eu quem convida - declara Jean-Claude. - Vão beber o quê?

Depois de cada um ter falado do que ia fazer nas férias, a conversa esmorece e morre. A presença de Alain não nos deixa à vontade.

Ouvimos ao longe sons de acordeão. - Vamos dançar? - perguntam ao mesmo tempo JeanClaude e Francis.

A sugestão me reanima e, saltitante, dirijo-me para o baile. Ainda não há muita gente. Francis tira Mélie para dançar, enquanto Jean-Claude me arrasta no que supõe
ser um voluptuoso tango. Ele me cansa, não gosto de tango, tenho sempre uma perna que não consegue acompanhar. Chegamos a um acordo, fazemos uma parada prudente.
Ele tenta me beijar no pescoço. Intercepto o olhar dolorido de Mélie. Afasto-o.

- Você não estava assim naquela noite, lembra-se? Se eu quisesse...

Tenho vontade de esbofeteá-lo. - Aquela noite foi outra noite. Deixe-me em paz ou irei embora.

Ele se contenta em apertar-me mais forte contra si com um sorriso pretensioso. A música pára, os pares se separam, volto

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ao encontro de Mélie, que me encara com olhar duro e inquisidor. Beijo-a, tenho a impressão de que fica mais tranqüila.

- Vamos, garotas, basta de namoricos, dêem lugar aos homens - diz Alain, enlaçando-me para uma valsa. Tento escapar, furiosa diante do que qualifico de "inacreditável
audácia", de uma "canalhice inominável". Ele se limita a rir e a apertar-me, machucando-me. Adoro valsas, e ele dança bem. Contra minha vontade, meu corpo se deixa
levar, e a pouco e pouco sou dominada pelo prazer da dança. Os pares se afastaram para nos observar, um círculo se formou à nossa volta. Rodopiamos cada vez mais
rápido. Tenho a impressão de que meus pés já não tocam o chão. Ergo o rosto para ele. Um sorriso contido e malicioso revela-lhe os dentes, o que me faz pensar
nesses cães que nos espiam maldosamente, arreganhando os dentes, prontos para morder. Sinto que meu corpo volta a ficar tenso. Ele também percebeu, pois leva sua
mão até minha nuca e a mantém presa, o que me obriga a erguer a cabeça. Esse gesto! Eu só o tolero daqueles a quem amo e que me amam, pois deles nada receio,
mas não desse rapaz que não conheço e me atemoriza. Ele tenta me dominar, mas eu resisto.

- Você resiste inutilmente. Você gosta da mão dos homens e não a das garotas. Tudo em você atrai o macho e você sabe disso. Jean-Claude e seus coleguinhas são muito
tolos e muito jovens para compreendê-la. Você foi feita para trepar assim como outros foram feitos para ser acrobatas, paraquedistas, mães de família, párocos
ou boas moças, mas você é feita para gozar como uma boa putinha que é. Não percebeu que estou de pau duro, sua galinhazinha?

Sinto o rosto em brasa, nunca falaram comigo assim antes. Meu coração pôs-se a bater em disparada, a cabeça gira, sinto medo, sinto vergonha. Estou furiosa, mas
nem por isso meu corpo deixa de esfregar-se contra o seu volume duro. Seu risinho de zombaria me traz de volta à realidade.


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- Putinha, não tinha me enganado. Afasto-me dele impetuosamente no momento em que pára a dança e corro, apressada, ruborizada e com lágrimas nos olhos, na direção
do pequeno grupo. Nem Jean-Claude nem Mélie parecem satisfeitos, porém nada dizem.

- Estou de saco cheio. Vou embora. Eles tentam dissuadir-me, mas - diante de minha recusa me acompanham até a casa. Mélie tem expressão infeliz quando fecho a
porta.

Mamãe parece surpresa ao ver-me retornar tão cedo. - Que é que você tem? Parece cansada. Está com os olhos no meio da cara. A montanha vai lhe fazer bem.

É mesmo, tinha esquecido. Partimos dentro de dois dias para os Pireneus ao encontro de papai, que está fazendo um tratamento. Que saco! Quer coisa mais chata que
as estações termais? Bem que tentei escapar este ano, mas foi inútil, eles afirmam que é bom para minha saúde.

Custo a pegar no sono. Relembro as palavras de Alain e esmurro o travesseiro com raiva. Como pude ser tão transparente! É verdade que tenho vontade de fazer amor
com um homem. Não sei muito bem como isso acontece, a despeito de minha curiosidade e da leitura de Colette ou de Vernon Sullivan. Tudo que sei é que um sexo
de homem entrará no meu e que estou morrendo de vontade. Não posso falar sobre isso com Mélie, que encararia a coisa como uma traição. Mas sinto de alguma forma
que o prazer que obtenho ao ser acariciada por ela é incompleto em relação ao que antevejo das carícias e do sexo de um homem. Só que não quero que seja um garoto
de minha idade ou mesmo um pouco mais velho. Quero ter certeza de estar fazendo a coisa com um homem que saberá realmente me conduzir até onde eu desejo chegar.


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Essas férias em Cauterets me pareceram intermináveis.

Decididamente não gosto de montanha, sinto-me prisioneira dessas massas sombrias, os precipícios me angustiam, os cursos d'água estão congelados, as noites frias,
os montanheses são caladões, em resumo, detesto montanhas.

Mélie e eu nos correspondemos quase todos os dias; recebi igualmente duas ou três cartas de Jean-Claude, a que respondi apenas através de um cartão-postal com "lembranças
de Cauterets". Estou aflita por retornar, rever minha águafurtada, meus livros, o campo do Poitou tão cheio de encantos no verão, o rio Gartempe cujas águas jamais
ficam efetivamente frias, meu barco, o aroma do trigo, as festinhas americanas e, principalmente, Mélie. Como ela me fez falta nessas três semanas! Quantas cartas
apaixonadas nos trocamos! Mas é principalmente no meu caderno que lhe falo como jamais ouso fazê-lo.

Este caderno é o meu verdadeiro companheiro. A ele confio dores, cóleras ou alegrias. Mantenho um Diário desde a idade

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de onze anos. Ninguém sabe disso, nem mesmo Mélie. Normalmente eu o escondo atrás de um dos quadros da sala de jantar. Quando termino um caderno, eu o guardo com
os outros em uma caixa fechada a chave. Coloco a chave num dos vasos da parte que me é reservada na água-furtada, dentro do qual há um buquê de flores secas. Com
todas essas precauções, sinto-me bastante tranqüila; meus cadernos estão protegidos dos olhares indiscretos. É melhor assim, pois eu morreria de vergonha se alguém
os lesse. Às vezes, temendo essa improvável eventualidade, proíbo-me de narrar uma ou outra coisa que considere extremamente íntima. De quando em quando, porém,
transcorridos alguns dias ou meses, ocorre-me registrar o acontecimento. Foi o que aconteceu com meu amor por Mélie. Durante semanas e semanas, sem deixar de escrever,
não toquei no assunto. Tanto pelo confuso temor de proceder mal, de cometer um pecado, quanto, talvez, e acima de tudo, pela dificuldade em expressar meu deslumbramento
diante dessa descoberta extraordinária, o prazer dado por uma outra. Fiquei de tal maneira entediada em Cauteretá que, para passar o tempo, tentei reviver por
escrito a felicidade de nos amarmos de corpo e alma. Essa evocação devia ser muito precisa, pois, em muitas oportunidades, transtornada pelas recordações, tive
de interromper o que escrevia para me acariciar. E foi com o coração batendo forte, as faces vermelhas, mas o corpo apaziguado, que voltei a pegar a caneta.

Faz um tempo maravilhoso e vamos nos banhar quase todos os dias. Nosso pequeno grupo foi ampliado com amigos parisienses com quem vivemos, da manhã até o escurecer,
num estado de festa, risos, danças e, algumas vezes, raras e pequenas discussões. As ruas desertas da pequena cidade repercutem nossos cantos e nossos gritos,
quando passamos, ocupando toda a largura da via, empoleirados em nossas bicicletas.

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Consegui evitar Jean-Claude e Alain; aliás, eles pertencem a um outro grupo de rapazes e moças um pouco mais velhos que nós.

É um belo verão, e eu gostaria que ele jamais terminasse, que a vida, assim, se passasse suavemente entre os braços de Mélie e as brincadeiras de nossa idade.
Nós duas temos quinze anos, somos belas e nos amamos.

É verdade, esse verão não é como os outros; é o verão da felicidade.


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- Que andou fazendo? - grita minha mãe, entrando de repente na escura sala de jantar.

Fecho o caderno em que venho escrevendo e encaro-a sem compreender.

- Que andou fazendo para que os policiais tenham vindo intimar seu pai e a mim?

Continuo sem compreender: alguém me surpreendeu roubando os pêssegos ainda verdes do velho Blanchard? Ou subindo o muro do jardim da velha Arthaud para pilhar
as últimas groselhas? Ou me esgueirando pela adega de meu tio Chauvet a fim de subtrair-lhe algumas garrafas para a festinha americana? Então, por que os policiais?

Sacudo a cabeça energicamente, sem compreender, porém meu coração pôs-se a bater muito depressa e senti que minhas pernas bombeavam.

- Que foi que Mélie e você fizeram? Mélie!... meu coração bate mais e mais forte, comprimo a mesa com as mãos, que ficaram molhadas, a cabeça gira, devo estar
muito pálida. Ela me fala com voz suave.

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- Que é que vocês fizeram? Não estou entendendo, eu não fiz nada, Mélie muito menos. - Vamos, minha querida, diga-me. Não digo nada e, desta vez, não minto. Levanto-me
e grito: - Não fiz nada, já estou farta de ser sempre acusada injustamente.

As duas bofetadas que ela me deu foram as piores que já recebi. Eu a odeio.

- Você vai ver quando seu pai chegar. É sempre assim que tudo termina, seja qual for a relevância da falta, o recurso à autoridade de um pai que não tem quase nenhuma
e está se lixando pra isso.

Eu a empurro e dirijo-me apressadamente para a rua. Faz um tempo lindo! - Aonde você vai? Volte aqui, me ouviu, volte aqui!...

Corro. Nunca corri tão depressa. - Mélie, minha pequena Mélie, que lhe fizeram esses safados? Tenho medo, tenho medo!

Os transeuntes, espantados diante de minha correria, param e me olham, dois garotos tentam me impedir de passar, eu os empurro rudemente.

- Ei, tigresa! Aonde vai tão depressa? Desço a rua principal. Mélie, Mélie... Diviso a ruela, a casa, a cancela. Dou um perverso pontapé em Samy, o canzarrão tão
manso que eu amo, o único que não me mete medo.

- Mélie... Mélie... Mélie... Françoise, a irmã mais velha de Mélie, vem até o jardim: - Mélie não está, saiu quando os policiais chegaram. Que é que vocês fizeram?
Papai está na delegacia, e mamãe chora. Que é que vocês fizeram? - Mas eu não fiz nada, Françoise. Por favor, acredite em mim, não estou entendendo nada. E Mélie,
que é que ela diz?

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- O mesmo que você, que nada fez, que não está entendendo. Ela me segura pelo braço no momento em que começo a cair, me põe sentada nos degraus e sai para apanhar
um copo d'água. Minha cabeça zumbe, sinto náuseas, não consigo fazer descer uma gota sequer. Tremo, e meus dentes estão batendo. Mas o que foi que fiz?

- Vou procurar Mélie! Torno a sair em disparada. No Caveau, ninguém; no Commerce, tampouco. Onde estão os colegas? Onde está Mélie?

As pessoas fazem chacotas. É verdade que devo ter um aspecto bizarro, com meu short branco muito curto, a blusa azul com um nó na cintura, os cabelos ruivos desordenados,
as longas pernas bronzeadas, esfoladas, cheias de manchas roxas, os pés descalços e as sandálias na mão.

Vou à casa de Jeanine, Gérard, François, Bernard: ninguém. Cambaleio, fatigada, tenho a impressão de que estou correndo há horas pela cidade. Sinto dores nos pés
e no joelho que machuquei ainda há pouco. Meu coração pára de bater; estão todos lá, sentados nos degraus da casa de Marcelle. Desabo no chão diante deles, esgotada.
Ergo a cabeça, sem entender o silêncio deles. Olham-me friamente. Encaro-os atônita. Mélie irrompe em soluços.

- Que é que você fez desta vez? Ah! Não, é demais! É uma coisa de louco! Levanto-me, gritando:

- Merda, merda, merda... Não estou entendendo, não fiz nada.

- Você está zombando da gente - disse Jeanine. - Se não tivesse feito nada, os policiais não teriam vindo.

Distancio-me alguns passos, desanimada. Percebo que, não importa o que eu diga, eles não acreditarão em mim. Vão me fazer pagar pelo amor que Mélie sente por mim.
Vão me fazer pagar: os rapazes, porque não quis namorar com eles; as

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moças, por eu ser a mais bonita de nosso pequeno grupo. Não sei o que está acontecendo, mas sinto que não poderei contar com eles. Todos têm muito medo dos pais,
dos moradores da cidadezinha, e ainda aparecem aqueles policiais.

- Pare de rir dessa maneira. Quer dizer que eu estava sorrindo! Sorrio sempre que me censuram, quando me ofendem, quando me agridem. Isso punha as freiras num
estado de cólera total.

"Saia, senhorita! Você é uma insolente, um coração insensível. Deus a punirá."

Deus! Se elas soubessem! Eu o amo e ele me ama. Falo com ele. É o meu único confidente.

Aproximo-me de Mélie e abraço-a ternamente. - Não tenha medo, minha querida. - Basta de abraços, não é o momento. Seria melhor que voltassem para suas casas a
fim de saber o que está acontecendo.

Marcelle tem razão. Mélie recomeça a chorar. Estamos parecendo, as quatro moças e os três rapazes ali sentados nos degraus, menores abandonados.

Quase uma hora da tarde, as ruas da cidadezinha estão vazias. Devemos voltar pra casa para ouvir nossos pais desfiando suas reflexões desalentadoras sobre a juventude,
a civilidade perdida e nossas péssimas companhias.

- Ainda zanzando com aqueles vadios! Mélie veio de bicicleta. Ela vai embora, apressando-se para não causar desgosto ao pai que adora.

Caminho lentamente sob o calor de esplendoroso verão e me debruço no parapeito da ponte sobre o rio buliçoso. Como a água deve estar morna! Como seria delicioso
descer ali e deixá-lo levar-me para não importa onde, primeiro para o estuário, depois para o mar. Espessas lágrimas correm-me pelo rosto, e esfolo os punhos de
tanto esmurrar com força o parapeito. Morrer! Oh, morrer! Eu queria tanto morrer!

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Os sinos de Notre-Dame batem uma hora. Ainda vou acabar me machucando.

Todos estão à mesa: vovó, respeitável e severa; mamãe, triste e carrancuda; meus irmãos, Lucas e Catherine.

Sento-me tremendo. Dispenso a entrada, com dificuldade engulo um pouco de queijo branco.

- Coma, vamos, quer ficar doente? - diz minha mãe. Ninguém fala. Detesto as refeições em familia, é sempre a mesma tensão, a mesma impossibilidade de falar. Gostaria
tanto de poder dizer a minha mãe o quanto estou atemorizada, o quanto preciso dela, que os seus silêncios e os meus me sufocam, que sem Mélie eu não teria podido
viver. No entanto, se eu começasse a falar, ela se retrairia. Sua boa educação impede-a de simplesmente me ouvir discorrer sobre o amor e dizer-me o que ele significa.
Mas será que ela mesma sabe o que é isso?

Levanto-me da mesa para preparar o café; adoro fazer café, é uma tarefa meio mágica; sou muito ciosa quanto à qualidade do café; isso faz meu pai rir, diverte
minha mãe e irrita minha avó.

Catherine me olha de soslaio; é impressionante como essa menina pode ser dissimulada; jamais consegui me habituar a ela nem a ninguém desta família. Só me sinto
tranqüila quando estou perto de minha avó paterna, que vive num vilarejo a alguns quilômetros de nossa cidade. Oh! Ali só se conversa o indispensável - "Vá buscar
água no poço ou vá até o galinheiro e veja se as galinhas puseram algum ovo" -, mas sinto-me bem perto dela e acredito que sob seus gestos bruscos de camponesa
ela me ama profundamente. O que nos aproxima e nos torna diferentes aos olhos da pequena comunidade é provavelmente nossa paixão pela leitura. Ela lê todos esses
fascículos de cinco centavos, muito comuns no interior; aí encontramos o melhor e o pior; os autores clássicos, as mais lacrimejantes histórias de amor ou os crimes
mais sórdidos. Nós duas nos entendíamos através dos livros.

Daqui a pouco meus pais devem ir à delegada.

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Minha mãe tem os olhos vermelhos, está com medo. Minha irmã demonstra um júbilo que não prenuncia nada de bom. Que fazer? Subo para o sótão, tento ler, caminho
de um lado para o outro. Torno a descer, pego meu maiô e uma toalha.

- Penteie esses cabelos antes de sair. Obedeço a minha mãe. Saio vagarosamente, admirada que me deixe ir para rua. Pego minha velha bicicleta e dou o fora.

Cruzo as ruelas em direção à casa de Mélie; me escondo. Samy late de alegria ao me ver. Subo direto para o quarto de Mélie, abro a porta com estrépito: ela está
com o pai. Ela chora. Ele nos encara com tristeza e bondade. Não ouso falar.

- Houve uma queixa-crime contra vocês por atentado ao pudor; foi o abade C. quem a apresentou. Os policiais dizem que há provas, um caderno no qual você escreve
o que faz - disse ele, olhando-me.

Cambaleio diante do golpe. Meu caderno! Eles tocaram em meu caderno! O pai de Mélie me ampara, eu ia quase caindo.

- Vamos, vamos, calma, vamos dar um jeito em tudo. O cabo está disposto a suspender tudo se recuperarmos o caderno.

- Quem pegou meu caderno? - Alain. Não, não é verdade. Não esse rapaz vulgar e cheio de si, que nos dizia na quadra de tênis que na natureza os casais normais
eram constituídos de um macho e de uma fêmea, ao passo que todos os outros eram monstruosidades que convinha destruir. Volto a experimentar a mesma repugnância
e revolta que tinha sentido ao ouvir isso.

- Quem deu o caderno para ele? - Acho que foi sua irmã. Minha irmã, minha irmãzinha... Agora compreendo seu sorrisinho maldoso. Ela nunca diz nada. Com certeza
veio lendo, a cada dia, tudo que eu escrevia na véspera, e eu, na minha inocência, acreditando que o caderno estava bem escondido!

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O pai de Mélie acaricia-lhe os cabelos. Gosto de observálos, tão bonitos nesse amor partilhado. Invejo Mélie por ter um pai assim, tão bom, tão tranqüilizador.

- Não chore, tudo acabará bem. Vou ver sua mãe, que ficou abalada com tudo isso.

Ficamos sozinhas, Mélie funga e assoa o nariz ruidosamente; tem placas vermelhas no rosto, pois sua tez clara fica com nódoas facilmente. Pela forma como me olha,
percebo que me reprova: ela não estava a par do caderno. Digo-lhe muitas coisas, mas tenho meus segredos. Sob seu olhar sinto-me culpada, culpada de quê? Jogo-me
de bruços na cama e soluço nervosamente. Sinto o corpo de Mélie apertado contra o meu, mas que pouco a pouco se distende e afrouxa. Ela me segura pelos ombros e
faz com que a encare. Beija-me os olhos, suavemente; depois o nariz, o pescoço, força meus lábios com sua língua pontiaguda. Não choro mais, estou concentrada
nas carícias. Ela desabotoa minha blusa, solta o sutiã de meu maiô; sua boca apossou-se de um de meus mamilos e mordisca-o gentilmente; com a outra mão, abaixa
meu short e me livra da parte inferior do maiô. Estou nua! Nua no quarto! Nua na cama! Nua sob a luz estival! Adoro estar nua, ser vista nua. Sinto-me livre e
solta. Sinto-me acanhada, mas é delicioso. Suavemente Mélie afasta minhas pernas (nunca tomo a iniciativa de abrir as pernas; adoro que alguém faça isso, inclina-se
sobre meu ventre, que sinto vibrar timidamente, e sua língua se insinua, se infiltra, seus dentes mordem meus lábios vaginais, depois o clitóris tão sensível, solto
um grito.

- Estou te machucando? Pressiono com força sua cabeça contra meu sexo. Gostaria que ela me comesse, que me fizesse desaparecer em sua boca, nela gostaria de
me aniquilar pelo sexo, não ser mais que um poço vasto e profundo onde se engolfariam todos os sexos do mundo, todas as línguas, todas as mãos, estar aberta a
todos e a todas, humanos e animais, sentir pontaços, garras, úmidos focinhos me vasculhando, me dilacerando, me matando de prazer!

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Solto suaves gemidos. Lentamente, os dedos de Mélie afundam em mim, me exploram, me descobrem, arrancam de mim um prazer que me causa contorções e me faz gritar.

Mélie deita sobre mim, está tremendo. Seus olhos brilham cheios de lágrimas e de alegria. Eu a aperto contra mim.

Devo ter dormido, pois quando abro os olhos a luz não é a mesma. Mélie, apoiada num dos cotovelos, me observa.

- Os outros acabam de chegar, vou descer. Você vem? Não tenho vontade de me mexer, recuso com um movimento de cabeça e me espreguiço profundamente. Adoro ficar
sozinha após o amor a fim de o refazer em minha imaginação.

Todos estão aqui, sombrios e taciturnos no recanto em que nos reunimos para dançar ou quando chove.

Mélie certamente contou-lhes a entrevista de seu pai com os tiras, pois Michel diz:

- É absolutamente necessário recuperar esse caderno. Isso me parece evidente, mas conheço Alain suficientemente para saber que não vai ser fácil e que ele exigirá
alguma coisa em troca. Bolamos os planos mais complicados, os menos realistas, declaramos guerra à sociedade, aos burgueses, aos padres, aos mais velhos. Investimos
contra todos os preconceitos, todas as bobagens, espezinhamos a moral convencional provinciana, abaixo os tabus, a intolerância, os espíritos mesquinhos! Somos
os mais belos, os mais fortes, os mais generosos, nada resistirá a nós. O mais velho do grupo não tem 17 anos! O tempo passa, sinto-me cada vez mais cansada,
cada vez menos atenta, ausente. De que estão falando? Desligo. Sonho... - Não podia pelo menos fingir que está nos escutando? Afinal de contas, foi você quem nos
colocou neste atoleiro - declaraJeanine, recriminadora. Como ela me irrita, com sua bunda enorme e seu tom autoritário!

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Levanto-me e dirijo-me para o recanto mais afastado do jardim. Observo o rio passando. Está bem raso agora. Em alguns trechos é possível atravessá-lo a pé. Libélulas
azuis e verdes esvoaçam em todas as direções. Extensos tapetes de plantas em floração alegram a água. Soam as quatro horas em Notre-Dame. Passo de uma alameda
a outra, arrastando os pés. Como um pouco de salsa, alguns rabanetes, uma pêra verde, um broto de alface. Subo ao muro para colher avelãs, mas com certeza já
comi todas, pois não havia mais nenhuma. Estou ficando aborrecida.

Volto apensar no que está acontecendo. Não compreendo por que isso parece provocar tantas histórias. Antevejo o jantar desta noite. Papai lá estará. Ou não dirá
nada ou fará um escarcéu.

- Venha, vamos jogar tênis - grita Mélie. Todos, com exceção de mim que não sei jogar e prefiro ler, têm suas raquetes enfiadas nos alforjes de suas bicicletas.

Desço na direção de Trimouille. Os outros pedalam sem se sentarem no selim. Faz calor, e nada me apressa. No alto da encosta, olho para trás, e meu olhar alcança
toda a nossa velha cidade e Notre-Dame, enganchada, como que suspensa no penedo. Gosto muito dessa igreja romana onde se acha enterrada, segundo dizem, Santa Filomena,
embora outros garantam que ela jamais existiu. Para mim, dá no mesmo; verdadeira ou falsa, lá está ela, estirada em seu relicário, as mãos estreitadas entre si,
segurando uma flor-de-lis empoeirada. Longos fios de aranha estendem-se de seu nariz aos pés ornados com flores outrora douradas; sua longa túnica esbranquiçada
possui pregas escurecidas e quebradiças; as traças devoraram parte de sua cabeleira; sua cabeça repousa sobre uma almofada que deve ter sido de veludo escarlate,
mas há tanta poeira que já não se consegue identificar a cor. Vou muitas vezes conversar com essa enorme boneca de cera, tão presente para mim e cujo silêncio
me tranqüiliza.

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Torno a subir na bicicleta. Chego ao tênis, porém todas as quadras estão ocupadas. Os demais já lá se encontram, imobilizados, olhando para Alain e Jean-Claude
que riem ao vê-los. Suas risadas param quando percebem minha presença. JeanClaude baixa a cabeça. Alain me olha com surpresa e irritação. Meu coração bate muito
forte à medida que caminho em sua direção. - Devolva meu caderno. - Seu caderno, que caderno? - Não se faça de idiota. Quero o caderno que você roubou de mim.
- Não roubei nada, foi sua irmã que o deu a Yves, e Yves por sua vez entregou-o a mim.

- Por quê? - Porque eu pedi. - Por quê? - Para que você parasse de "andar" com Mélie e para punila por ter traído Jean-Claude.

Sinto-me aliviada, agora entendi. Com um pouco de habilidade, acho que posso contornar a situação. Dirijo-me aJean-Claude:

- Jean-Claude, quero meu caderno. Seja gentil e peça a Alain que o devolva. Se lhe causei algum desgosto, perdoe-me.

Que modos desajeitados tem esse rapaz de 18 anos! Como pude me interessar por ele? Deixar que me beijasse e tocasse em meus seios!

Ele olha para mim, meio sonso. - Tudo bem. Mas abandone Mélie e fique comigo. Eu te amo. - Ele me diz isso em voz baixa, puxando-me para si.

Vejo Mélie prestes a saltar, Jeanine segura-a. Deixo-me levar por ele, seu olhar se desanuvia, em seus lábios nasce um sorriso de satisfação. Afasto-me violentamente
dele e lhe dou socos e pontapés. Ele ergue os braços para se proteger, tento mordê-lo, mas me puxam brutalmente por trás. É Alain, rubro de cólera, vomitando insultos:

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- Piranhinha, puta, safada, não se envergonha de levantar a mão para um homem?

E me esbofeteia brutalmente, minha cabeça oscila de um lado para o outro, sangro pelo nariz, as lágrimas jorram, mas eu o encaro desafiadoramente, debato-me com
todas as minhas forças, uso os dentes, os pés, consigo me livrar dele. JeanClaude coloca-se entre nós dois:

- Proíbo-o de tocá-la. - Idiota! Ela precisa de uma lição. Se fosse minha, eu a humilharia, eu a dobraria, eu a faria ajoelhar-se diante de mim.

Fico louca de raiva e de ódio. Sinto-me fraca diante desse rapaz de 19 anos. Arranco a raquete das mãos de Mélie e ataco Alain, que recua, porém não tão depressa,
pois o atinjo no ombro. Ele cai gritando. Quero matá-lo, seguro a raquete com as duas mãos, bem acima dele...

- Basta - grita Bouvard, o responsável pelo tênis. - Vão brigar em outro lugar!

E retira, rispidamente, a raquete de minhas mãos. Saio dali correndo. Jogo-me sobre a relva de um prado próximo e solto gritos prolongados, a boca de encontro
à terra, movida pela dor, pela vergonha, pela cólera. Estou tremendo, tenho frio e sinto náuseas; vomito sem me mexer. Alguém me ergue, é Mélie, em lágrimas, que
enxuga meu rosto, me chama de seu amor, seu amiguinho, e que me embala delicadamente. O tremor diminui, porém estou em pedaços pela afronta. Não consigo subir
na bicicleta. É Gérard quem a conduz. O pequeno grupo retorna a pé, cabeça baixa. Nada dizem, meus acessos de raiva sempre lhes causaram medo. Minhas pernas doem,
tenho dificuldade em caminhar, estou batendo os dentes.

- Por que ficou tão irada? Ainda se podia dar um jeito. Agora está tudo perdido.

Jeanine tem razão, Alain não me devolverá o caderno depois do que aconteceu.

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Chegamos à casa de Mélie, subo até seu quarto a fim de lavar o rosto e as mãos. Vejo no espelho alguém que não conheço.

Essa pessoa apavorada, sem idade, as narinas delgadas e brancas, lábios pálidos e fechados, desagradável à vista! Isso não pode ser eu, estou parecendo
saída de
uma lamentável tragédia. Na verdade estou entrando numa sem ter consciência disso, porém meu corpo já o adivinhou e por isso treme.

Não sei que os dias que se seguirão serão para mim determinantes e me deixarão para sempre uma ferida que ninguém poderá curar; que perderei em poucas horas minha
infância, meus amigos, minhas crenças; que conhecerei a covardia, a maldade das pessoas que entretanto me viram crescer; que sequer uma vez ao longo desses dias
e meses que se seguirão encontrarei compreensão, indulgência, bondade. Que serei discriminada como se criminosa fosse e por isso mesmo, moralmente abandonada,
terei de sobreviver; que a pena a que eles tacitamente me condenarão será a mais dura que se possa infligir a uma menina de 15 anos; que procurarei refúgio na morte,
mas, não a considerando suficientemente vingativa, buscarei o escândalo; que eles vão me condenar à exceção, me excluir da grande família; que se afastarão de
mim como se fazia outrora em relação a um leproso; que me cobrirão de injúrias, me atirarão pedras, me agredirão nos desvãos das ruas, seus filhos pulando a minha
volta e gritando:

- Vagabunda, vagabunda! E que suas mães, puxando meus cabelos, me tratarão de puta; que meu pai, minha mãe, meus tios e minhas tias, os primos, as primas, todos
me rejeitarão; que ninguém tentará compreender, nem mesmo falará comigo; que eu ficarei só, SÓ!...

Pressinto tudo isso, mas ainda não sei. Inclino-me sobre a pia, implorando que Deus venha em meu socorro, mas ele também me abandonou. Deus morreu para mim.


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O jantar prossegue em silêncio, perturbado apenas pelo ruído dos garfos, do copo chocando-se com o prato... Ninguém dá bola para os tomates recheados de mamãe,
que os prepara tão bem. Faço inúteis esforços para engolir
o alimento, porém nem água passa. Minha mãe chorou; vovó me lança olhares pesarosos; Catherine, o nariz enfiado no prato, parece bem enfastiada; meu pai abre
e fecha as mãos nervosamente, sinal de que está furioso. É sobre meu irmãozinho Lucas que uma delas se faz sentir, na forma de uma bofetada, porque o garoto deixou
cair o copo. Seus gritos diminuem a tensão dos demais, possibilitando que desfiem uma série de comentários sobre "as crianças insuportáveis". A refeição acaba
sem que se tenha falado de coisa alguma. Sinto-me ao mesmo tempo inquieta e aliviada. Mamãe e vovó tiram a mesa. Eu subo para o sótão.

No meu cantinho existe uma enorme viga sobre a qual escondo a caixa contendo os cadernos dos anos anteriores. Quatro, no total. Gosto muito dos meus cadernos.
Releio ocasionalmente algumas passagens. Isso me faz voltar a minha

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infância ainda tão próxima. Temi que já não estivessem lá. Pelo contrário, estão direitinho em seu lugar, meus confidentes, meus amigos. Foram as palavras escritas
ao passar dos dias monótonos da adolescência que me ajudaram a suportar uma vida que não me agradava, cercada por familiares e amigos a quem nada podia dizer,
por timidez e receio. Atraída pelo OUTRO que, entretanto, sempre foi meu inimigo, aquele de quem recebemos, com maior freqüência, mais pancadas do que carícias,
mais palavras ríspidas do que palavras ternas, que nos rejeita quando dele nos aproximamos, que nos importuna quando nos fazemos de indiferentes. Assim, inventei
um amigo: meu caderno. Disse tudo a ele: minhas angústias face à morte, meu desejo de Deus, tão constantemente ausente, meu desgosto por não ser amada por meus
pais como gostaria, de não amá-los como eu quereria. Eu me via, para desculpar-me pela falta de amor, como uma criança perdida, recolhida por caridade, nem por
isso era menos "filha de rei". Que rei? E daí? O que contava não era saber minha origem, mas sua certeza. Atitude provavelmente pueril mas que me ajudava a suportar
uma vida familiar sem alegrias.

Reponho os cadernos encapados em marrom e verde no lugar. Acomodo-me na velha cama dobrável de criança que me serve de canapé. Recobri o velho colchão de lã com
almofadas de cores desbotadas, bordadas de pierrôs e colombinas por minha mãe e minhas tias quando eram meninas. Gosto especialmente de uma enorme cabeça de pierrô
recortada sobre um fundo de cetim azul entrelaçado.

Tento ler La Difficulté d'être, de Cocteau, mas não consigo fixar minha atenção num texto difícil como esse para uma jovem de minha idade. Leio sem qualquer problema
o último número do Mickey e em seguida passo à pilha das Nous Deux que a empregada de Mélie me emprestou. As desventuras das belas heroínas me fazem esquecer
as minhas.

Na verdade, não esqueço nada, tento abrandar minha cólera

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em relação a Catherine. Ah, se eu a pego! A porta do sótão é aberta lentamente, é ela. Atiro-me com um uivo de raiva. Seguro-a pelo braço, forçando-a a olhar
para mim.

- Por que fez isso? Por que roubou meu caderno? - Não o roubei. Apenas mostrei-o um dia a Yves, para me divertir...

Para se divertir! Dou um rugido, bato nela com todas as minhas forças, ela se põe a chorar gritando.

- Cale essa boca ou eu te mato. Ela grita ainda mais forte. - Não o roubei. Foi Alain que o pegou, num dia em que veio com Yves me apanhar para irmos ao banho
de rio.

Pobre imbecil! Largo-a. Deve ter acontecido assim mesmo como está dizendo. Mas por que ela, apesar de suas lágrimas, tem esse ar de contentamento malicioso?

Nós nos odiamos atualmente. Como a antipatia em nossa infância pôde se transformar em ódio recíproco?

- Vá embora. Você me dá nojo. Ela se afasta quase sorridente. Aliviada... acabou se saindo bem dessa. Deito-me mais cedo que de costume e pego logo no sono.
Acordo. Um feixe de luz sai pela porta entreaberta do quarto de meus pais. "Ué, eles não estão dormindo?" levanto-me e, na ponta dos pés, vou escutar. Minha mãe
está chorando.

- Mas, enfim - diz meu pai -, não entendo por que os policiais se envolvem nessa história de crianças. Que fizeram elas?

- Fizeram coisas imundas juntas - soluça minha mãe. - Coisas imundas?... - Sim, será que você não entende nada? Elas fizeram juntas o que fazem os homens e as
mulheres. É o que está naquele caderno. É nojento!

Recebo essas palavras como uma pancada. Imundo o meu amor por Mélie? Nojento o seu amor por mim? A cabeça põe-se

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a girar. Volto vacilante para a cama. Não vejo em que nosso amor é mais sujo, mais nojento que o deles. Não compreendo. Será que é apenas porque somos duas
jovens que isso os incomoda tanto? Chego à conclusão de que é muita discussão para pouca coisa. Que importa o sexo, se as pessoas se amam? Intenso desejo de rir
me domina. Enfio a cabeça sob o travesseiro para abafar esse riso nervoso.

Ouço a porta do quarto de meus pais ser totalmente aberta e percebo que minha mãe se aproxima de meu leito.

- Você não está dormindo? Não respondo, as lágrimas substituíram o riso. Mamãe ergue o travesseiro. Encaramo-nos. Como anseio que ela me estreite em seus braços,
que me console, que me diga que não é nada, que não há gravidade alguma, que tudo vai dar certo.

- Vamos, procure dormir. Como eu clamo por ela! Todo o meu ser grita: MAMÃE! Mas ela não me escuta.

Adormeço, então, ao som carregado de menosprezo das palavras que ela pronunciou: "IMUNDO, NOJENTO, IMUNDO, NOJENTO, IMUNDO, NOJENTO, IMUNDO, IMUNDO, IMUNDO, IMUNDO,
IMUNDO...


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O sol já está alto quando desperto. Dormi mais que o habitual. Sinto dor de cabeça. De repente me lembro: é hoje pela manhã que meus pais vão à delegacia. Oh!
Como gostaria de voltar a dormir e não acordar mais.

- Léone, seu desjejum vai esfriar - grita vovó ao pé da escada.

- Já vou. Levanto-me e visto o que me cai nas mãos. Penteio vigorosamente meus cabelos embaraçados, escovo os dentes, lavo o rosto, pego o primeiro livro que
encontro e desço os degraus de quatro em quatro, tentando ganhar a solidariedade de vovó. Sou a última, a louça dos demais está empilhada na pia. Apenas vovó
está em casa. Dou-lhe um beijinho. Ela me serve o café. Como é ruim! Tem gosto de requentado, odeio café requentado. Não digo nada. Não é o momento de resmungar.
Como muitas fatias de pão torrado com generosas porções de manteiga.

- Vejo que nada tira o seu apetite.

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Prefiro não responder. Mergulho na leitura de Os dez negrinhos. Engolindo o último bocado, tiro a mesa, arrumo-a, sob o olhar atônito de vovó, que não costuma me
ver fazendo essas coisas.

- Onde estão papai e mamãe? Não devia ter feito a pergunta. Saiu sem querer. - Como se você não soubesse! Sempre disse a seus pais que você acabaria mal. Claro,
eles não me dão ouvidos, deixam você fazer o que quer, zanzar à noite não se sabe com quem, ler esses livros impróprios, andar na casa dos outros. Veja no que
deu. Ah, bela educação! Você precisa é de um reformatório. Ele vai dar um jeito em você, minha pequena. Pare de rir assim e de me olhar com esse ar insolente,
não tem vergonha, sua descarada? A Sra. Renaud me perguntou se os policiais tinham me trazido más notícias. Eu não soube o que lhe responder. Que vergonha! Meu
Deus, que vão dizer suas tias! Pare de rir!

Ela ergue a mão para mim. Esquivo-me rapidamente. - Eu a proíbo de me tocar. Eu detesto você, eu detesto você...

Saio da cozinha batendo a porta com todas as minhas forças. Escuto seus gritos.

- Você não pode sair com essa roupa - diz vovó, debruçada na janela da cozinha... Que tem minha roupa? Meu short vermelho, que tenho há dois anos, é um pouco justo
e usado, mas está limpo e reformado. O mesmo acontece com a camiseta azul, um pouco desbotada, que me foi dada por Yves no tempo em que éramos amigos. Estou até
de sandálias, coisa que geralmente não faço. Lavei-me e penteei-me. Que mais ela quer?

- Sua bunda está aparecendo, sua indecente! Quanto ódio nessas palavras. O short é um pouco curto, é verdade, adoro exibir minhas pernas. E daí? Todas as garotas

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da minha idade fazem a mesma coisa, apesar dos comentários azedos dos mais velhos e das piadinhas nojentas dos rapazes da cidade.

- Espere pelo menos seus pais voltarem. Ora, quanto mais tarde, melhor! Monto em minha bicicleta. Tomo a direção da casa de Mélie. No meio do caminho, mudo de
idéia. Pego a estradinha que leva ao reservatório. É um caminho aprazível e poeirento, todo margeado de carvalhos que formam uma espécie de dossel. Deito a bicicleta
à beira da valeta. Passo por um campo de chão macio e agradável. Abaixo há um pequeno regato onde se apanham caranguejos. Deito-me ao longo da margem, uma das
mãos na água, a outra arrancando capim. Vejo o céu muito azul através da folhagem. Apóio todo o meu peso na terra, como se quisesse afundar. Seu frescor me apazigua.
Não me mexer mais, até transformar-me suavemente em água, terra, árvore ou vento. Incorporar-me à natureza em sua forma mais bruta, mais primitiva. Ser limo.
Escuto-me a gemer docemente.

Toda vez que me deito sobre a relva, no campo, tenho vontade de ser acariciada, mordida, sugada por tudo que é vivo. Comprimo minhas coxas nuas, mantendo entre
elas meus dedos. Esse gesto me leva a pensar em Mélie. Um doce langor me invade. Penso nos lábios de Mélie, em seus dedos, em seus seios, nas enlouquecidas tardes
que passamos na fresca penumbra de seu quarto, postigos fechados, em nossas risadas, em nossos beijos, nas partidas de monopólio, de pôquer ou de burro que disputávamos
duramente entre duas carícias. Preciso ir vê-la.

É de má vontade que abandono meus devaneios campestres.


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Todos estão sentados no fundo do jardim, no muro
desaprumado à beira-rio ou nos velhos bancos sob as magnólias. Não parecem muito alegres.

- Até que enfim você apareceu! - resmunga, entre dentes, Jeanine. - Onde estava? Passei em sua casa para apanhála, e sua avó me disse que você havia saído.

- Fui passear perto do Allochon. - Passear... essa garota é uma inconsciente... Tem a polícia nos calcanhares e vai passear.

Ora, é isso mesmo, tinha me esquecido deles. - Não pensei mais neles. Diante dos gestos bruscos, dos olhares raivosos e das exclamações, compreendi que ainda desta
vez deveria ter ficado de bico calado. Mas por que nunca podemos dizer a verdade aos amigos? Se realmente me amassem, teriam achado maravilhoso que eu pudesse,
por alguns instantes, esquecer o que tanto me faz mal e me atemoriza. Até mesmo Mélie me diz:

- Você está exagerando.

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Que chateação! Que querem que eu faça? Sei lá o que querem os próprios policiais!

- Toda a cidade só fala nisso, foi o que me disse minha mãe. Inclusive não queria que eu viesse hoje - declara Jeanine.

- A minha também não - acrescenta Gérard. - A minha muito menos - prossegue François. - Nem a minha - finaliza Bernard. Apenas Marcelle nada disse. É verdade
que ela tem 19 anos, e sua mãe já quase não se preocupa com o que ela faz.

Mélie desata a chorar. Olho para todos com mais espanto que preocupação. Que fiz eu para que os pais deles não queiram que andem mais comigo? Pois está me parecendo
que sou a única na berlinda. Sou eu a culpada, não Mélie. Mas somos nós duas que nos amamos. Deve existir outra coisa, mas não sei o quê.

Yvette chega correndo, esbaforida. - Alain está no café Europa com uma turma de colegas lendo o caderno de Léone. Está cheio de segredos cabeludos, ao que parece.
Todos gracejam, dizendo: "Ah! a putinha, a vagabundazinha, a puta, a galinha..." Paro por aqui.

Ela interrompe o que diz, vermelha como um tomate, ergue o braço para se proteger de uma agressão. Acaba de se dar conta de minha presença.

Levanto-me penosamente, meu corpo parece de repente pesado e rígido. Faço um esforço extraordinário para dirigirme até Yvette, que não se mexeu, como se estivesse
petrificada. Olho bem no fundo de olhos, tentando através do olhar dizer-lhe o que meus lábios sentem-se incapazes de pronunciar. Ninguém se mexe a nossa volta.
Sinto que todos estão tensos. O ar imobilizou-se numa expectativa, cheio no entanto de forças maléficas que não almejam senão ser liberadas. Françoise, a irmã
de Mélie, rompe o encanto que nos mantinha em transe.

- Papai está chamando, Mélie.

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Mélie sai dali correndo, como se estivesse fugindo de alguma coisa. Ouço os outros sussurrarem às minhas costas. Meu corpo está cada vez mais tenso. Gostaria de
me voltar, enfrentá-los. Sinto-me incapaz de me mover.

- Não fique aí parada como uma estaca, faça qualquer coisa - diz Jeanine.

- Deixe-a em paz - intervém Marcelle, pegando-me pelos ombros.

É o único gesto de carinho que se terá para comigo durante longos meses. Meus olhos se enchem de lágrimas. Não quero que me vejam chorar. Afasto Marcelle mansamente.
Seu gesto liberou meu corpo. Preciso ficar só, refletir ou esquecer. Não posso mais vê-los ou ouvi-los. Desço vagarosamente a escada que leva ao rio, solto minha
pequena canoa, tiro o short e a camiseta, embolando-os e colocando-os atrás do pequeno banco; sento-me; pego o remo e empurro a embarcação para o meio do rio.
Sinto-me sem forças para subir a fraca corrente. Contendo-me em guiar o barco que desce lentamente. Dispo a minúscula peça de cima do meu velho biquini azul.
Ofereço-me
ao sol.

Os outros ficam me chamando de longe, algumas palavras chegam até mim: louca, doente, inconsciente, os peitos de fora, evidentemente, policiais, Mélie...

Mélie... Preciso falar com ela, explicar-lhe que não tenho nada com isso, que está havendo um mal-entendido. Mas acreditará em mim? Ela me ama; sinto entretanto
que ela não confia totalmente em mim, que se acha ressabiada comigo, que eu a atemorizo. Por quê? É curioso, agora me dou conta de que quase todos têm essa atitude
em relação a mim: meus pais, meus colegas, moças e rapazes, as freiras da escola Saint-M., os amigos de meus pais. Observam-me. É como se, permanentemente, tentassem
me pegar em flagrante delito. Mas flagrante delito de quê?

Agora que tenho idade para pensar, faço tudo para não me

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parecer com eles. Não me parecer com as crianças de minha idade que têm cara de patetas, criançolas demais com suas brincadeiras estúpidas. Sei muito bem que ainda
brinco com bonecas. Não às escondidas, isso não seria digno de mim, mas sozinha. Pois, afinal, quem poderia compreender a ternura que sinto por essas bonecas
de trapos que eu mesma faço e para quem tricoto toda espécie de roupa? Mas às vezes passo semanas inteiras sem pensar nelas. Isso não me parece incompatível com
o amor que sinto por Mélie, as minhas leituras da Bíblia ou os românticos alemães que acabo de descobrir. E agora que estou crescendo, que vejo os adultos, nossos
modelos, digo para mim mesma que não, não e não, não devo parecer-me com eles. Acima de tudo porque são repugnantes. Repugnantes pela autocomplacência, pela sujeição
às leis e àqueles que detêm o poder, dignos portanto de escárnio, nestes lados do Poitou. Eles vivem no temor de chocar, de serem julgados. "Que vão pensar de
nós?" e "Que vão dizer as pessoas?" são as frases que mais freqüentemente ouvi a minha volta. Eles não possuem nenhuma liberdade. Logo descobri que o homem não
ama a liberdade, que ela não passa para ele de um tema de conversação. Que, livre, se sentirá tão perdido quanto uma criança sem o pai. Ele exige a liberdade em
altos brados, mata em seu nome, tortura, humilha. A liberdade não foi feita para eles. É uma palavra que, pelo menos em mim, libera a imaginação. Ser livre, para
mim, significa ser suficientemente crescida para ir embora, para escapar ao domínio de meus pais, desta cidade dissimulada onde cada gesto é espreitado e comentado,
onde os rostos e os corpos, que refletem a alma, são igualmente repugnantes. Para eles, a nudez é uma coisa vergonhosa. Eu adoro ficar nua. Sinto orgulho de meu
corpo esguio e ágil.

O sol está quente, sinto a pele ardendo. A canoa desliza vagarosamente. Que bem-estar! Como se pode ser ruim com

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um tempo desses, pensar em dinheiro, no trabalho, na polícia? Bem, a polícia, até que eu devia estar preocupada com ela. Essa lembrança desestruturou minha frágil
felicidade por existir. Oh! Afastei-me muito mais do que poderia imaginar! Escuto soar o campanário de Saint-Martial. Doze pancadas. É meio-dia. Não vai dar para
estar em casa na hora do almoço. A perspectiva de sentar-me à mesa com aquelas pessoas tristes, mal-humoradas ou rabugentas me desencoraja. Pouco importa, não
vou voltar. Melhor apanhar por qualquer coisa que valha a pena.

Passo diante do jardim do tio Chauvet. A esta hora certamente não há ninguém. Atraco suavemente. Prendo minha canoa ao enorme barco de pesca e desço à sombra das
aveleiras.

Encontro deliciosos tomates maduros, no ponto ideal, frescos; alguns rabanetes picantes, abricós, duas ou três ameixas e um pouco de água na bomba. Eis uma refeição
que adoraria fazer com maior freqüência. Falta-me apenas um livro para que eu me sinta perfeitamente bem.

Estiro-me sobre a relva, debaixo de uma tília, e adormeço. A voz do tio Chauvet me acorda. Ele não gosta de mim e eu lhe pago na mesma moeda.

- Mas isso são roupas!? Se sua avó visse você! É verdade, esqueci que estava com o busto nu. Levanto-me estremunhada e me encaminho para a canoa sem dizer uma

palavra.

- E que não a veja mais aqui! Mostro a língua para ele, desencadeando sua cólera. Ele bate os pés com raiva.

Recomeço o passeio, procurando um lugar onde possa parar a fim de continuar meu cochilo interrompido.

Paro algumas centenas de metros adiante. Mi conheço um recanto ensombreado por um carvalho secular. Venho aqui freqüentemente, no inverno e no verão, quando me
sinto triste e deprimida. A árvore é minha confidente, envolvo-a com

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meus braços, esfrego minhas faces e minha fronte em seu tronco rugoso, imitando as cabras. Aperto-me de encontro a ela, parece-me que sinto sua vida através da
casca e que um pouco de sua força passa para mim. Converso com ela, conto-lhe meus dissabores, a vida tristonha que ando levando, falo de Deus e de Mélie.

Este carvalho me impressiona pela força e imponência. Não é uma árvore comum. Ele viu tantas coisas, tantas estações passaram por ele, embelezando-o em vez de danificá-lo.
É tão grande, tão copado, de folhas tão verdes, glandes tão espessas, que ele é o dono inconteste do lugar, o sábio onde se abrigam os pássaros, os esquilos, mil
insetos e até mesmo uma certa jovem que à sua sombra encontra a paz. Desde que o vejo na curva do caminho ou do rio, experimento o mesmo sentimento de alegria
que sentimos à aproximação de um amigo muito querido.

Hoje, como das outras vezes, sinto-me feliz ao vê-lo. Saúdo-o em voz alta, atraco a canoa e corro para enlaçá-lo. Beijo as fendas de sua rude casca onde minúsculas
aranhas douradas correm. Esfrego os seios e o ventre contra seu corpo de madeira. Frêmitos de prazer percorrem todo o meu corpo. Acelero os movimentos, esfolando
os bicos dos seios. Sinto um prazer agudo e violento me invadir. Caio ao pé da árvore gemendo. Espreguiço-me bocejando e adormeço.

Uma comichão desagradável me acorda. Jean-Claude acha-se ao meu lado, debruçado sobre mim. Levanto-me de um salto. Pronta a saltar-lhe nos olhos. Ele me pega por
uma perna e me faz cair perto dele. Toma-me em seus braços, tenta me beijar, amassar meus seios. Eu me debato, arranho-o, dou mordidas, de tal modo que ele me
larga, ora rindo, ora resmungando.

- Se você fosse boazinha, eu poderia pedir a Alain que devolvesse seu caderno.

Encaro-o com tamanho desprezo que ele baixa os olhos. E

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pensar que flertei com esse cara, permitindo que me beijasse e acariciasse, que até poderia ter feito amor com ele, se tivesse sido menos brutal e mais ousado.
Sua vulgaridade salta-me aos olhos. Falo de meu nojo, de meu amor por Mélie, maldosamente faço pouco dele e de seus sentimentos por mim. Ele ficou muito pálido
e avança em minha direção, os lábios comprimidos. Percebo que fui longe demais. Mas por nada neste mundo retiraria o que disse. Subo na canoa, pego o remo e o ataco.
Ele consegue se esquivar à primeira investida, à segunda, na terceira acerto-lhe em cheio o supercílio. Não há uma quarta investida, pois a visão do sangue me
acalma.

- Suma daqui! Não quero mais vê-lo. Vá dizer ao seu amigo que prefiro morrer a lhe pedir seja lá o que for.

Ele vai embora, um lenço sujo apertado contra o local ferido. Eu gostaria de tê-lo matado. Minha fúria acalma-se pouco a pouco graças à presença tranqüilizadora
do carvalho.

- Eu tinha razão, não é? Não sei se ele aprova o que fiz. Ele sabe, como eu, que mais uma vez perdi a oportunidade de recuperar o caderno e que o ferimento em
Jean-Claude despertará a raiva de todos os garotos de sua turma. Seremos, meus amigos e eu, o objeto de suas troças. Pouco importa, vamos à luta. Qualquer coisa
me diz, entretanto, que serei a única a combater. E, de repente, apesar do calor deste fim de tarde estival, sinto frio.


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Voltei a subir lentamente o rio, pensativa. São quase seis horas da tarde quando avisto o jardim de Mélie.

Eles continuam lá. Ouço a voz de Jeanine, que se sobrepõe à dos outros. Deviam estar à minha espera, pois correm e se debruçam no muro, gritando as coisas mais
díspares:

- Até que enfim! Já não era sem tempo. - Mas por onde você andava? Mélie não pára de chorar. - Você vai apanhar; sua mãe veio à sua procura. Isso é que é o
mais
aborrecido; para que mamãe tivesse vindo até aqui, é que as coisas vão mal.

Mélie joga-se em cima de mim, pouco faltando para me fazer cair nos degraus escorregadios que levam ao rio. Ela me estreita em seus braços, beija-me como uma louca
nos olhos, no nariz, na boca. Nunca a vi assim tão expansiva. Ela chora e ri.

- Tive tanto medo. Você é tão esquisita às vezes. Não gosto que ande sozinha pelo rio. Onde se meteu?

Pensei em lhe dizer a verdade, isto é, que passeava, que estava farta das caras tristes do grupo e das lamúrias de Mélie,

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mas sinto que é melhor encontrar alguma coisa mais séria, se não quiser que eles se voltem contra mim.

- Pensava numa maneira de recuperar o caderno. - Mas isso é ótimo! - diz Jeanine. - São suas primeiras palavras depois de dois dias. Descobriu algum jeito?

Balanço a cabeça negativamente e conto-lhes o que aconteceu entre mim e Jean-Claude. Enquanto vou narrando, seus rostos se tornam tensos, eles temem as represálias
da turma rival.

- É horrível, agora vamos tê-los atrás da gente, e, como são mais velhos do que nós... não é com esses magrelas - acrescenta Jeanine, apontando para os três garotos
de fraca compleição - que poderemos contar para nos defender.

Pelo menos desta vez sou da mesma opinião. Jeanine e eu somos muito mais fortes em corridas e brigas que nossos três companheiros juntos.

- Poderíamos pedir a Jean-Pierre e a Milou que nos dessem uma mãozinha - sugere Michel.

- E naturalmente - resmunga Jeanine - Yves e Marc também, não é mesmo?

Todos os quatro são antigos flertes de Jeanine, que não quer mais ouvir falar deles.

Do outro extremo do jardim, a irmã de Mélie grita para que nos aproximemos, que seu pai quer nos falar. O rosto de Mélie fica iluminado de felicidade. Como ela
ama o pai! Como os dois se amam! Isso me dá prazer e desgosto.

Ele nos espera no salão que recende a poeira e cera. Os postigos ainda estão baixados devido ao calor da tarde.

- Sentem-se. Acomodo-me na beirada de um sofá de veludo alaranjado, um pouco passado. Mélie agacha-se aos pés do pai. Ele acaricia-lhe os cabelos. Lágrimas me
sobem aos olhos. Como invejo Mélie neste momento. Cometer todas as bobagens do mundo para ser perdoada com tamanha doçura, tamanha ternura. Ele parece compreender.

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- Venha você também, aproxime-se. Mélie, feliz, me consegue um lugar perto dela. Ele nos fala lentamente, a voz quase baixa. Não ouço as palavras, percebo apenas
seu sentido. Essa bondade tranqüila, essa tolerância solícita, esse amor que envolve nós duas. Minha face, inundada de lágrimas serenas, pousou em sua mão. Gostaria
de lhe dizer o que vai dentro de mim, o que sinto por Mélie, por ele. Minhas dificuldades no relacionamento com os outros, meu viver inadequado, minha incompreensão
face a uma sociedade que parece me rejeitar, meus medos, minhas ignorâncias, essa angústia que por vezes me invade a ponto de me deixar sem forças e sem movimentos
diante de um futuro que entrevejo sem acesso. Mas sinto-me intimidada por esse homem bom, muito pouco habituada a ser escutada, portanto a falar. Minhas lágrimas
redobram em vista de minha impotência.

- Vamos, acalme-se, filha, vamos tentar dar um jeito em tudo. Sua mãe veio falar comigo e nós dois achamos que é preciso recuperar o caderno o mais rápido possível.
Foi o conselho que lhe deram na delegacia. Ela vai procurar a mãe de Alain a fim de que esta peça ao filho esse famoso caderno. Agora, volte para casa e seja boazinha
com sua mãe. Essa história a aborrece muito, se bem que eu lhe tenha dito que tudo isso não era nada de muito grave e que tudo ia retornar aos eixos bem depressa.

Tenho ímpeto de beijá-lo, mas falta-me coragem. Mélie me acompanha até a porta. Ela me beija no pescoço, dizendo:

- Até amanhã!


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É com o coração leve que subo o caminho que leva a casa.

Caras fechadas me acolhem. Mamãe prepara o jantar; vovó lê o jornal local, meu irmão implica com o gato, minha irmã borda uma pequena toalha e meu pai cuida das
linhas e anzóis para sua pescaria no dia seguinte.

Ele põe linhas e chumbadas de lado. - Por que não veio almoçar? Oh, havia esquecido! É preciso encontrar uma explicação. Mas não gosto de mentir, então fico calada.

- Responda à pergunta de seu pai - diz mamãe, rudemente.

Responder o quê? Falar-lhes do perfume da água, do carvalho meu amigo, da suavidade do sol sobre minha pele, da água tépida em que deslizei nua para lavar-me das
mãos de JeanClaude, das andorinhas que me acompanharam, voando em todas as direções, até a casa de Mélie, das libélulas que adoram pousar na popa da canoa, das
palavras de conforto do pai de Mélie? Não, eles são muito fechados em si mesmos para

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compreender essas coisas banais e simples. Bem que gostaria de lhes dizer alguma coisa que lhes desse prazer, mas não sei o quê.

- Viram você completamente nua no rio, seu próprio tio ficou chocado.

- Pobre-diabo, não lhe falta muito para isso! A bofetada que recebo de meu pai é uma das raras que me aplicou. Papai costuma deixar com mamãe a tarefa de nos corrigir.

Não digo nada, não choro, não grito. Uma grande lassidão me invade. Como gostaria de ir embora, estar longe daqui. Sinto-me, subitamente, muito cansada. Desabo
na cadeira baixa que minha tia tanto aprecia.

- Essa criança está doente - grita minha mãe -, vejam o rosto dela.

Ela dá tapinhas em minhas faces, me faz cheirar vinagre. - É teatro - declara meu pai. Não, papai, não é nenhum teatro, mas a dor que me vem de sua incompreensão,
de sua falta de interesse pelas coisas que amo: a natureza, os livros, os risos, meus amigos. Você não gosta de nada. Você não me ensina nada, nem mesmo a viver.

Mamãe me deita no divã da sala. - Descanse um pouco antes de jantar. Como gosto quando ela me fala com voz doce e inquieta! Fecho os olhos para conservar essa
sensação.

É a voz de Catherine que me arranca da sonolência. O jantar é lento, como todas as refeições em família. Não vão me contar o que aconteceu na polícia? Não. Papai
avisa, sob o olhar estarrecido de mamãe, que precisa partir mais cedo que o previsto para a África e que a empresa quer que ele esteja de volta o mais rápido possível.
Vejo perfeitamente em seu rosto que ele mente e que essa partida precipitada tem outra razão que eu não ouso confessar.

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- Não é possível! Você não vai me deixar sozinha com toda essa situação! O que vou fazer com os policiais, o que vou dizer a eles? - exalta-se mamãe à beira do
choro.

Oh! Como o odeio neste momento! Canalha! Covarde! Abandonar-nos agora! Deixar mamãe sozinha!

- Não é tão grave, você se sairá bem sem mim. As mulheres são mais hábeis que os homens nesse tipo de coisa. Você é mais calma, eu ficaria logo com raiva.

Mamãe baixa a cabeça. Tenho vergonha por ele. Ele não chega a compreender que nunca poderei perdoar-lhe o que está tentando fazer, tanto por mim quanto por mamãe.
Nesse momento, sinto por essa mulher que é mãe uma intensa ternura. Como gostaria de lhe poupar os dissabores que lhe causo por ser sua filha.

Ponho minha mão sobre a dela. Ela não recusa o gesto. Opressivo silêncio cai sobre nós. Ninguém consegue encarar ninguém.

Acho que todos pensam a mesma coisa, exceto talvez meu irmãozinho. Ficamos sentidas por ver que o homem da casa não está à altura de seu papel: proteger-nos, estar
conosco na hora de perigo. Mas ele só quer saber do lado fácil da vida em família, deixa as responsabilidades para mamãe que em geral se sai muito bem. É ela
a força da casa, mas é a do homem que necessitamos.

Como todas as vezes em que está errado, ele se põe a gritar, dizendo que está farto da família, da cidade, do país, que felizmente precisa fazer essa viagem à
África, do contrário faria mesmo uma viagem qualquer.

Mamãe levanta-se chorando e vai para o quarto. Papai, de repente, assume um ar penalizado. Levanta-se por sua vez, e sobe ao encontro dela.

Estou aturdida. Sou eu quem deve partir. Partir? Para onde? - Tudo por sua causa - sibila minha avó. Levanto-me, pego um velho suéter pendurado próximo a

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entrada e saio batendo a porta. Tomo maquinalmente o caminho que leva à casa de Mélie. Ao chegar diante da porta, grito seu nome:

- Mé-lie, Mé-lie! Ela sai pela porta da cozinha. - Há um jantar esta noite aqui em casa. Já estamos indo para a mesa. - Ora, mas é a nossa pequena Léone - diz
o Dr. Martin, que acaba de chegar. - Cada vez mais bela - acrescenta ele, dando um tapa em minha bunda -, cada vez mais selvagem - continua, diante de meu gesto
de recuo. - Andam contando coisas muito interessantes a seu respeito.

Fico vermelha e encaro-o duramente. - Você não tem moral para dizer nada. É a sua vez de ficar vermelho. Mélie ensaia um gesto enraivecido na direção dele.

- Será que não pode deixá-la em paz? - Em paz? Essa vagabundazinha que se exibe nua no rio, que passeia pela cidade com a bunda de fora? Que olha pra gente com
ar malicioso e dois minutos depois quer nos arranhar com essas unhas afiadas? Uma provocadora, eis o que ela é. Que vagueia sozinha à noite, à procura não se sabe
de quê, nem de quem. Sempre com um livro nas mãos. Ah, devem ser coisas muito interessantes essas leituras! E ainda se faz de ofendida quando se passa a mão em
sua bunda. Pois que procure ser uma menina decente e se comporte como alguém de sua idade, se quiser se dar ao respeito - declara ele, rindo com desprezo.

Ele não me perdoou pela vez em que o mordi, em seu consultório, quando me fez ficar nua da cintura pra cima, a fim de tirar uma suposta radiografia. Recordo a nossa
curta luta.

"Mas por que não quer? No outro dia, quando dançamos no baile do tênis, você não parou de se esfregar em mim como uma cadela no cio, ainda que me mostrasse constrangido."

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Era verdade, só que ele esqueceu de dizer que me dera bebida. Mas e daí se me agrada esfregar-me nos homens, conhecêlos através de pequenos toques, desfrutar de
mansinho a força e a ternura de suas mãos, habituar-me a sentir o sexo deles crescer de encontro ao meu durante uma dança, respirar o cheiro de macho tão diferente
do das moças. É claro que tenho vontade de fazer amor. Mas nenhum dos que de mim se aproximaram me afetou ou excitou suficientemente para que eu o seguisse até
um quarto ou até o bosque. Mélie, a quem amo, aplaca minha sede de carícias. Além disso, já faz algum tempo que os homens me provocam um pouco de medo, seus olhares
são mais difíceis de suportar, suas palavras, mais cruas, os gestos, mais precisos. Sinto-me encurralada, e isso não me agrada.

Nossas vozes tumultuadas atraíram a mãe de Mélie. - Ah, é o senhor, doutor! Nós o aguardávamos para sentarmo-nos à mesa. Ah, Léone! Venha cumprimentar nossos amigos!

Abro os braços em sinal de resignação me dirigindo a Mélie e entro no salão onde há pouco estive em paz.

Algo em torno de dez pessoas. Conheço todas. Todas me conhecem, alguma desde meu nascimento. As conversas pararam. Sou observada sem contemplação pelas mulheres
e com um ar zombeteiro pelos homens. Sinto-me terrivelmente intimidada. Todos estão bem-vestidos. Eu continuo com meu short curtíssimo, minha camiseta muito cavada,
os cabelos ruivos embaraçados. Sinto que estão pensando no que já passaram a chamar de "a história", no que não deve haver de escabroso em meu caderno para que
até a polícia tenha se ocupado do assunto. Eles me imaginam no centro da libertinagem, vejo isso em seus olhos e em seus lábios levemente umedecidos, sinto-me
despida
por seus olhares concupiscentes ou invejosos.

- Quer beber alguma coisa? - pergunta a irmã de Mélie. Recuso com um movimento de cabeça e estendo a mão aos pais de Mélie.

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Uma vez no jardim, respiro melhor. Mélie me acompanha. - Tenho medo, Léone, tenho medo. E eu também. Não tenho um pai como ela para me proteger. Minha família
não tem a mesma importância da sua, e isso conta numa cidade pequena.

Tomo-a nos braços, digo-lhe coisinhas bobas, ela sorri. - Então, meninas, se esfregando pelos cantos. Não querem uma ajuda?

É o Dr. Martin, se afastando com um riso seboso. Ele surgiu às nossas costas sem que o tivéssemos percebido.

Acalmo Mélie, que treme, e digo-lhe que volte para a mesa. Afasto-me lentamente, arrastando um pouco os pés. A noite prenuncia ser de excepcional doçura. Não tenho
vontade de retornar à casa. Levanto a cabeça e aprecio o campanário de Notre-Dame. E se fosse até a torre?

A torre? É um dos meus lugares. Vou até lá feliz ou infeliz. Dali domino a cidade, o rio e o campo. Fico mais perto de Deus. Para chegar, é preciso atravessar uma
parte da cidade. Passo diante de velhotas sentadas em cadeiras na frente das casas, tomando a fresca, fazendo tricô e mexericos. Ouço seus comentários sobre
minha roupa. Faço de conta que não é comigo. Cruzo a velha ponte, debruço-me para observar o rio correndo. É curioso, não posso atravessar uma ponte sem me deter
para olhar as águas passando. Subo a ladeira íngreme que chamamos, não sei por que, de Brouhar, ladeada de casas datando às vezes da Idade Média. No alto da rua,
paro para respirar. Soam nove horas em Notre-Dame. Dobro à esquerda e chego diante da grade que veda a entrada para a torre. Essa grade nunca está fechada. E,
se bem que o acesso à torre seja proibido, esgueiro-me pelo estreito caminho afastando ramos de lilases. Na primavera, este recanto é um paraíso perfumado. Há profusão
de lilases brancos e violeta. Colho enormes braçadas deles que perfumam a casa durante dias. Chegando ao pé da torre, subo os três pequenos degraus que

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levam à porta proibida e sento-me de costas apoiadas na madeira nodosa.

Deixo que a paz da noite me invada. As andorinhas voam alto, amanhã fará um belo dia. A noite cai lentamente, liberando seus perfumes. Algumas luzes são acesas.
Diviso a casa de Mélie. Parece-me escutar seu riso. Abraço minhas pernas nuas com os braços, apertando fortemente. Sinto-me bem. Como sempre acontece quando
um
bem-estar sem razão me domina, ponho-me a pensar em Deus, depois a lhe falar, a tentar compreender os movimentos do mundo, do pensamento. Amo esses momentos abstratos
de onde sempre ou quase sempre saio, com a impressão de ter aprendido alguma coisa, de ter avançado um passo na direção do conhecido e do desconhecido. Sinto-me
humilde nessas ocasiões, à escuta com todos os meus sentidos do que estão tentando me fazer ouvir. O ar está cheio de fantasmas que me falam. Ouço seus murmúrios,
sinto seus toques sutis. Eles tentam transmitir-me o que aprenderam e o que a passagem do tempo lhes inculcou. Falo com eles. Peço-lhes que me ajudem a adquirir
sabedoria e conhecimento.

"Dirija-se àqueles que a precederam, às grandes almas, aos que realizaram grandes feitos. Peça. Você é daquelas que podem obter tudo. Peça-lhes que a ajudem. Eles
a ajudarão."

Quem me disse isso um dia perto da mamãe, que ficou sorrindo? Uma vidente, uma astróloga? Eu sabia que ela tinha razão, mas nunca ousei dizer-lhe isso, com receio
de parecer ridícula.

Quando estou sozinha, em contato, se posso usar o termo, com um lugar-qualquer, os conceitos que expresso, por vezes em voz alta, não carecem de grandiloqüência,
nem de pretensão, nem de ranço literário e filosófico mal digeridos. Sei de tudo isso. Ainda acredito que sejam necessárias palavras pomposas, frases bombásticas,
efeitos vocais para falar aos espíritos da noite. Mais tarde, bem mais tarde, virei a saber que

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é no silêncio de meu coração que ouvirei melhor suas vozes. As primeiras estrelas aparecem. Espero que sejam muitas, mas conto apenas nove. No meu Poitou, acredita-se
que se contarmos nove estrelas durante nove dias, no nono dia veremos em sonho o homem de nossa vida. Ainda não consegui ver nove noites estreladas.

Desde quando estou aqui? O céu está maravilhoso, a lua cheia em pouco surgirá. Não gosto muito das noites de lua cheia. Em geral fico bastante nervosa, durmo mal.
Pouco falta para que uive à lua como os lobos e, dizem, como certas moças enfeitiçadas pelo demônio. Essa luz branca que desbota os tecidos de modo mais eficaz
que o sol faz mal aos meus olhos e ao meu coração. Amo as noites sem lua, cheias de estrelas.

Soa uma pancada no campanário da igreja de Saint-Martial, Notre-Dame responde. Meia hora, mas de que hora? A noite caiu completamente. Devo voltar o mais depressa
possível se não quiser ser repreendida. Desço correndo a Brouhar. Corro até a casa. Ufa! Ainda há luz na cozinha. Empurro a porta, mamãe lá está sob a luz da
lâmpada, fazendo tricô.

- Você voltou bem tarde. Onde esteve? Eu lhe digo. Ela dá a impressão de ter acreditado. - O que há naquele caderno? Sua pergunta me surpreende. Percebo que é
preciso que lhe responda, que é importante para ela.

- Falo dos livros que leio, do que faço durante o dia, dos meus amigos, do que acontece na cidade, da vida, coisas assim.

- Não fala dos segredinhos entre você e Mélie? Sinto que fico ruborizada. Oh! não pela maldade da pergunta, mas pelo que ela disse no outro dia: "Elas fazem juntas
coisas imundas, nojentas..." Tento abrandar a cólera que cresce em mim. Prefiro não responder.

Ela não insiste. - Compreenda, preciso saber o que existe naquele caderno para poder defendê-la.

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- Que disseram os policiais? Ousei por fim fazer a pergunta que me corroia. - Eles dizem que isso são coisas de crianças, mas que se vêem obrigados a investigar,
porque o abade C. comunicoulhes que apresentaria queixa se eles não pusessem um fim nessas relações antinaturais. Querem que recuperemos o caderno que é, parece,
o único motivo de escândalo, visto que ele circula pela cidade e que Alain mostra-o a todo mundo. O pai de Mélie me aconselhou a procurar a mãe desse rapaz.

- Não vá. São pessoas vulgares, pretensiosas e maldosas. Farão tudo para nos humilhar e não nos devolverão o caderno.

- Talvez, mas é preciso tentar. Ela tem razão. Ficamos um longo momento caladas. - Você já é uma moça crescida. Deveria vestir-se de outra maneira, principalmente
nesta época.

Ah, agora não! Não vou capitular, não neste momento! Diante de minha atitude contrariada, ela me disse: - Ouça, sempre deixei que você fizesse o que queria depois
que cresceu. Sai quando quer, mesmo à noite. Vai dançar com seus amigos, lê todos os livros que deseja, usa a roupa que bem entende, e até hoje eu nunca disse
nada. Sofri tanto quando era jovem por não ter podido fazer nada que prometi a mim mesma que meus filhos não teriam a mesma juventude que eu tive. Não me faça
lamentar por tê-la deixado livre.

Livre? É verdade que sou muito mais livre do que os colegas de minha idade. Mesmo Jeanine, a grandona, que tem um ano a mais do que eu, não pode sair à noite, exceto
aos sábados para ir ao cinema. Acho que mamãe preferiu me deixar sair quando eu quisesse - vendo que, apesar de suas proibições, eu pulava pela janela à noite
para
ir aos bosques ou aos prados - a repreender-me ou fechar-me em casa. Ela deve compreender essa minha necessidade de solidão. Pois ela sabe que na maior parte do
tempo é sozinha que vou sonhar à beira da água ou pelos caminhos ermos.

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- Quando é que papai vai partir? - Depois de amanhã. Eu o acompanho até Paris. Olhamo-nos sem ânimo para dizer mais nada. - Vá se deitar. É tarde. Beijo-a com
um pouco mais de ternura do que o habitual. Nós nos falamos. Mesmo que não tenhamos dito grande coisa, nós tentamos.


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Já é a feira anual na cidadezinha. Há muita gente,
sobretudo camponeses vindos das aldeias próximas. Adoro essas feiras. Vou de uma barraca a outra, esquadrinhando as mercadorias, desdobrando os cortes de tecidos,
alisando os novelos de lã rude da região, que cheiram tão fortemente e lambuzam os dedos de suarda malcheirosa; a barraca de especiarias também se encontra aqui
e nela compro uma barra de alcaçuz. Nunca deixo de parar um longo tempo nos dois ou três "bazares" que vendem de tudo: bonecas horríveis de celulóide, de cabelos
pretos e amarelos, que algumas mulheres vestem com imensos e execráveis vestidos de lã de cores sempre berrantes e que ficam bem à mostra sobre uma cama; brinquedos
de pacotilha: serviços de jantar para crianças, pequenos móveis, veículos que logo perdem uma das rodas, cassetetes de borracha como os usados por policiais, pás
e ancinhos que enferrujam rapidamente, utensílios de cozinha, papéis para cartas , péssimas reproduções de quadros horríveis, jarros de formas esdrúxulas, que
mais ainda? Toda uma

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produção medíocre que todavia me encanta. Dou uma volta pelo mercado de animais. Acaricio os novilhos castanhos e brancos; compro de uma camponesa, sentada num
banco dobrável posto à frente de sua bancada de ovos, frangos e coelhos recentemente abatidos, um queijinho de cabra bem seco, do jeito que eu gosto. Ponho-me
a comê-lo continuando meu passeio.

Isso me ocupou durante toda a manhã. Mesmo assim, vou até a casa de Mélie a fim de saber o que faremos hoje. Sua irmã me diz que ela deve estar no café do Commerce
com os outros. Vou para lá correndo.

Todos se encontram sob o caramanchão, apreciando com um olhar apagado a agitação incomum.

- Mas que tristeza é essa? - Por quê? Por que você está satisfeita? Há algum motivo secreto para a sua alegria?

Dou de ombros e acomodo-me aos pés de Mélie. Seguro sua mão.

- Alain esteve aqui. Ele quer que você, publicamente, peça perdão a Jean-Claude pelas pancadas que lhe deu ontem. Você deve ir hoje à tarde, ao tênis, às cinco
horas. Iremos com você. Alain, Jean-Claude, a turma toda vai estar lá.

Encaro Jeanine sem compreender muito bem. Volto-me para Mélie:

- É verdade o que ela está dizendo? Como resposta, Mélie começa a chorar. Puxo-a para os meus braços.

- Não chore. Ele quer é nos fazer medo. Não irei. Pedir perdão a Jean-Claude! Ele está delirando. Perdão por quê? Por não ter permitido que me beijasse. Tenho
o direito de beijar quem eu quiser e de me defender se um rapaz pretende me estuprar.

- É o que prometem fazer se você não for - explica Marcelle, baixando a cabeça.

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Mélie chora cada vez mais, os rapazes viram o rosto, constrangidos, a própria Jeanine parece chateada.

Dou uma gargalhada. - São tão covardes e cagões que é preciso que se juntem para estuprar uma garota. Não acredito nisso, eles estão blefando. Os rapazes da turma
de Alain sabem muito bem que sou boa de briga, que mais de um deles tentou me encurralar nos caminhos desertos, mas nenhum deles se gabou da surra que recebeu.
Vocês se lembram da cabeça de Jean-Claude? Andou dizendo por aí que tinha caído da bicicleta numa moita de espinhos. Era eu os espinhos. E o Paul que durante muitos
dias exibiu um curativo na mão, dizendo que seu cão o tinha mordido, um pobre vira-lata que mete o rabo entre as pernas quando se ergue a voz para ele, pois fui
eu quem lhe arrancou metade da mão com os dentes; e Yves, com o olho roxo, foi com minha atiradeira. Não tenho medo deles. Não irei.

- Sim, você vai - disse-me Mélie com uma voz ríspida que me surpreende. - Se você não for, nunca mais a verei.

Não é Mélie quem me diz isso, não é possível. - Ela tem razão. Você precisa ir - insiste Marcelle. - Por quê? Vocês sabem que isso não mudará nada e que eles
não devolverão o caderno.

- Temos novidades. O pai de Mélie foi outra vez à delegacia. Todos estão muito aborrecidos, pois isso está assumindo proporções inimagináveis. Não apenas toda a
cidade comenta, exagerando os fatos, dizendo que seus pais são complacentes, que além disso você vai para a cama tanto com homens quanto com mulheres. As beatas
estão se metendo, falam em formar uma delegação para ir ao arcipreste e às freiras do colégio. Chegam a declarar que, para impedir sua influência perniciosa,
você devia ser mandada para o reformatório, ou melhor, para a prisão.

Estou apavorada. Tanto ódio! Recordo-me dessas mulheres devotas na missa, voltando-se para a porta toda vez que ela se abria e inclinando-se uma para as outras
para comentar o traje

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da recém-chegada ou a presença de uma outra. Suas expressões beatíficas quando vão comungar. A ostentação que demonstram ao rezarem. Os olhares maldosos com que
à saída da missa espiam as garotas que descem rindo os degraus da igreja. Dessas não posso esperar nenhuma misericórdia. Tudo em mim as incomoda: minha juventude,
minha liberdade, minha maneira de me vestir e meu tipo físico. São muitas coisas a perdoar numa só pessoa. Se eu ainda fosse uma dessas garotas bonitas um pouco
idiotas que se encontram com freqüência por aí, mas não, passo por intelectual, pois sempre tenho um livro nas mãos, e habitualmente topam comigo à beira dos caminhos,
tão absorta em minhas leituras que não vejo ninguém passar. Quem pode aturar tal coisa? Além disso, insolente, ladra, provocante, os homens honestos sentem-se
obrigados a desviar o olhar de minhas pernas de fora, meus peitos muito oferecidos; as mães receiam pelos filhos. Sou um monstro, uma feiticeira, uma dessas criaturas
que é preciso eliminar, pois sua singularidade é um ultraje à sociedade, um perigo, como certos livros e certas imagens que convém destruir. Como cheguei a esse
ponto? Não é possível que um belo rosto, a paixão pelos livros, pela liberdade, a ausência de submissão às regras habituais, meu amor por Mélie me leve à prisão
da cidadezinha. É absurdo demais. Tanta estupidez e tanta maldade me arrasam. Sinto-me completamente desarticulada. Não sei por onde começar para atacar o problema.
Estou encurralada, como num beco sem saída cercado por altos muros onde a única chance de escapar é o ataque. É o que decido fazer.

- Tudo bem, eu irei. Um suspiro de alivio escapa de todos os pulmões. Apenas Jeanine me observa, desconfiada. Abaixo a cabeça para que ela não me veja sorrindo.
Ela poderia entender. Separamo-nos depressa, está na hora do almoço.

- Até logo - despede-se Mélie. - Até logo!


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O almoço é um pouco mais animado que de costume devido à proximidade da partida de papai.

- Acho que no começo do ano poderei mandar buscá-las. A empresa está construindo bangalôs. Prometeram-me um.

Há três anos que ele promete a mamãe levar-nos. Sou como ela, não acredito mais.

- Visto que está adequadamente trajada - para agradar mamãe, uso o vestido rosa-claro que ela tanto aprecia e que realça minha pele bronzeada - você irá a Poitiers
conosco - diz meu pai. - Sua mãe tem compras a fazer.

- Não, obrigada. Sinto-me enjoada do estômago. Disse-lhe exatamente o que era preciso para que ele não insistisse. Ele tem horror a parar na estrada quando não
posso mais conter a ânsia de vômito.

Terminada a refeição, subo com uma xícara de café para o sótão e pego um livro. As letras não ficam paradas na página, elas também me provocam náuseas. Não consigo
ler, extremamente

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preocupada com o encontro desta tarde. Deito-me, as pernas apoiadas nas laterais da cama de armar, tentando pensar no que farei e direi. Ainda estou confusa.
Está fora de questão pedir desculpas a Jean-Claude. No entanto, se eu concordasse, Alain e Jean-Claude, magnânimos, me perdoariam e talvez me devolvessem o caderno.
Sei exatamente como agir para obter isso. Ouvir suas lições de moral, prometer que não procurarei mais Mélie, namorar com Jean-Claude, permitir que me humilhem
com as palavras duras que não hesitarão em dizer, tanto a Mélie quanto a mim. Mélie não conta para eles, sou eu quem deve curvar-se e submeter-se. Se Jean-Claude
estivesse sozinho, eu faria o que quisesse dele, mas, apoiado por Alain, torna-se tão mal quanto este. Sei que não tenho nenhuma chance de convencê-los, mostrar-lhes
como estão sendo injustos e grosseiros, que estão se valendo da força e da aprovação da cidadezinha. Que aquilo de que me acusam, amar Mélie, não tem importância,
pois não prejudicamos ninguém. Mas para quê? Se eu fizesse o que me pedem, não poderia mais voltar a me olhar ao espelho, não poderia mais ter respeito por mim
mesma. De modo algum devo aceitar humilhações. Nunca.

A voz de Catherine me tira de meus pensamentos. - Yves quer falar com você. Yves é o nosso vizinho mais próximo e aquele que pela primeira vez me beijou durante
nossas animadas brincadeiras de esconde-esconde. Ele é três anos mais velho que eu e continua apaixonado. Não faz parte da nossa turminha nem da turma de Jean-Claude.
Já trabalha, o que o deixa de fora de nossas brincadeiras, que ele considera infantis. Às vezes vou dançar e tomar banho de rio com ele. É um belo rapaz, ele tem
um dos mais belos sorrisos que já conheci e olhos zombeteiros. Não aceito mais seus beijos desde que passei a amar Mélie, e isso tornou-o amargo. Tem andado
muito
com Alain ultimamente e, portanto, é sem prazer e sem confiança que o vejo.

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Ele senta-se perto de mim, no velho tapete à beira da cama. - Queria lhe dizer que é lastimável o que está acontecendo com Mélie e você. O que vai fazer? Não posso
ajudar?

As lágrimas surgem em meus olhos; é o primeiro rapaz a ter uma atitude generosa em relação a mim. Nego com a cabeça, sorrindo.

- Você é gentil, mas nada pode fazer. Sou eu que devo me desembaraçar disso.

- Eu poderia falar com Alain, ele me ouve. Se lhe disser que você está comigo, será suficiente para ele. O que ele quer é tirar você disso que ele chama de devassidão
e recolocá-la no caminho certo.

Então é isso. Torno-me a "amiguinha", como eles dizem, de Yves ou de Jean-Claude, e tudo acaba. Estou arrasada. Yves deve ter entendido meu silêncio como concordância,
pois levanta-se e me puxa para si.

- Canalha! Você é como os outros, não quer me ajudar, quer é dormir comigo! Eu não amo você, eu amo Mélie, ouviu? Eu amo Mélie.

Ele se esquiva a uma bofetada. - Sua putinha! Pois bem feito!, foi você quem procurou! Eu queria ajudá-la. Até agora tinha defendido você, agora vou ficar do
lado deles. Alain tem razão, garotas como você devem ser domadas como cavalos selvagens.

Enrosquei-me toda na cama, chorando silenciosamente. Sinto-me muito só, uma criancinha quase.

Tocam-me no ombro. Endireito-me rispidamente. É Yves, que está me olhando, aturdido.

- Não chore, não suporto vê-la chorando. Você bem sabe que sou incapaz de lhe fazer mal.

Invisto contra ele, bato-lhe com todas as minhas forças. Ele me mantém presa pelos punhos.

É muito mais forte que eu. Fechou os braços em torno de mim e tenta me beijar. Balanço a cabeça em todas as direções.

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Isso o faz rir. Ele me aperta mais. Um calor repentino irradia-se de meu ventre, sinto meu corpo enlanguescer contra o dele. Revivo a perturbação que me dominava
quando brincávamos de esconde-esconde, ocultados na luzerna aparada de pouco. Nossa ignorância se igualava à violência de nosso desejo. Sentia-me totalmente abandonada.
Mas ele, além dos longos e violentos beijos que me deixavam ofegante, não ousava senão caricias muito castas. Ele não compreendia por que eu lhe martelava o peito
com socos quando, depois que nossas mães nos mandavam ir para a cama, eu tinha de deixá-lo, o corpo em fogo, insatisfeita. Ele me respeitava... Como os garotos
são bobos!

Naquele momento, o mesmo desejo de ser agarrada me invadiu. Mélie revelou-me os segredos de meu corpo, sei como aplacar essa deliciosa dor que me morde o ventre.
Imagino que um homem seja capaz de provocar uma sensação ainda mais intensa. Correspondo a seus beijos, suas mãos percorrem todo o meu corpo, pressionam meus
seios. Ouço meu próprio gemido. Por que essa palavra tão inadequada?

- Mélie não poderia provocar isso em você. Imbecil. Ele estragou tudo! Afasto-me dele. Pronta para lutar. - Vá embora, está me aborrecendo. Seus olhos brilham
com um fulgor maligno. Ele ficou muito pálido, os lábios cerrados. Faz um movimento em minha direção, mas logo desiste e se retira sem dizer uma só palavra. Estou
aliviada e chorosa. Lamento que tenha partido. Tenho tanta vontade de fazer amor. Tento imaginar como será a primeira vez. Imagens deliciosamente obscenas desfilam
em minha mente. O calor no côncavo de meu ventre retomou. Levanto o vestido e, no sótão, de pé, atendo freneticamente a minha ânsia por carícias. Um prazer brutal
e sem alegria me domina. Retiro minha mão úmida. Levo-a às narinas, aos lábios, amo o sabor e o odor de meu prazer, recendendo a ramos de madeira recém-cortados.

Batem as três horas no campanário. É hora de ir ao encontro de Mélie.


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Mélie está sozinha em seu quarto com Gérard, cada qual lendo num canto. Eu os beijo, instalo-me na cama e ponho-me a ler para ela o livro que trouxe. Ficamos assim
até a chegada de Jeanine e dos outros. Nenhum de nós
parece em boa forma, estamos jogados pela cama, pelas cadeiras, pelo chão, nessa atitude mortiça que leva nossos pais a dizer que somos molengões e que no tempo
deles da juventude mostravam mais ânimo. Alguém sugere jogarmos monopólio, outro, um passeio de barco ou umas partidas de pingue-pongue no café Europe.

- Se fôssemos dançar, isso desentorpeceria nossas pernas e nos daria alguma idéia.

A proposta de Jeanine é aceita unanimemente mas sem grande entusiasmo. Descemos para o depósito que nos serve de salão de danças e que decoramos conforme imaginamos
os cabarés de Saint-Germain-des-Prés. Nas paredes, fotografia de Juliette Gréco, Georges Ulmer, Charles Trénet, Edith Piaf, Sydney Bechet, Louis Armstrong, Mouloudji,
cuja canção, Comme un p'tit coquelicot, deixa minha avó irritada quando a canto, pois

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segundo ela é uma música nojenta. Mélie liga a vitrola e põe Eperdument, a nossa música, olhando-me ternamente. Dançamos amorosamente enlaçadas. Mas o sentimento
está longe, pensamos em outra coisa. Terminado o disco, alguém põe Petite fleur. Entretanto, nem mesmo o saxofone de Sydney Bechet nos tira de nosso torpor.
Jogados
sobre as almofadas, fumamos, perdidos em nossos pensamentos. Os discos se sucedem, Gérard cuida disso, mas ninguém dança. Escutamos soar quatro e meia.

- Temos de ir - diz Gérard. Levantamo-nos penosamente. Subo até o quarto de Mélie para me pentear. Mélie me acompanha. Na escada, ela me puxa para si. - Você
vai ver, tudo vai dar certo. Mas é claro, sem dúvida. Tudo entrará nos eixos. Talvez não como você deseja, Mélie. Para que explicar? Você não entenderia. Você
está menos envolvida que eu nesse caso. Não se preocupe. Nós nos beijamos. Seria tão bom se fôssemos namorar em sua cama. Digo-lhe isso ao pé do ouvido.

- Você é louca, não é o momento de se pensar nisso. Parece-me, pelo contrário, que é exatamente este o momento. Deveríamos sempre fazer amor quando temos um problema,
um desgosto, chateações, porque depois do prazer as coisas mais graves se mostram menos sombrias.

Sentimo-nos tão cansadas que não encontramos forças para subir a ladeira de bicicleta. É a pé que nos dirigimos ao tênis, na mesma atitude dos burgueses de Calais,
exceto pela dignidade.

Soam as cinco horas quando chegamos. Estão todos lá, inclusive Yves, nos olhando com um ar de satisfação. Estão sentados diante de sucos de fruta. Não há meninas
com eles. Adianto-me, pálida em meu vestido rosa, o coração batendo em disparada, as mãos gélidas.

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- Vocês queriam me ver? - Você não só é uma lésbica imunda - me diz Alain -, como ainda acha tempo para bater nos garotos. Ontem, pouco faltou para que matasse
Jean-Claude. Pare de rir dessa maneira. Porra, ela está nos sacaneando! Quem você pensa que é? Acha que por ser uma garota vamos nos incomodar com uma sacana como
você? A gente devia era te levar nua pelas ruas para que todos vissem seu cuzinho imundo.

- Deixe-a em paz - interrompeu Yves -, o que você está dizendo não vai fazer com que ela mude.

- Você deve ter razão. Eu e os companheiros aqui achamos que essa história já se estendeu bastante. Não é bom para a moralidade que esfreguemos na cara das pessoas
honestas as sacanagens de uma putinha da sua laia. Vamos lhe dizer o que decidimos.

- Onde pensa que está? No tribunal? - perguntei, sentando-me.

- Cale o bico! Continue de pé! Como não me mexo, ele faz um sinal a dois de seus companheiros, que me põem de pé com brutalidade e me mantêm nessa posição, apertando-me
fortemente os braços. Olho na direção de meu pequeno grupo. Eles estão de pé, as mãos descaídas, mas não fazem nenhum gesto em meu favor. Imenso sentimento de
solidão me invade.

- Deixem-me, estão me machucando! Ficarei de pé. - Tudo bem. Soltem-na! Eles me largam, seus dedos deixaram marcas vermelhas em minha pele. Esfrego-me, tentando
apagá-las.

- Você vai deixar Mélie e só poderá tornar a vê-la com nossa autorização. Não irá mais à casa dela. Voltará para JeanClaude depois de lhe pedir perdão. Ele está
disposto a perdoála. Não compreendo por quê. Uma vagabunda como você, eu já teria dado um chute na sua bunda. Mas, enfim, é problema dele. Se nos prometer tudo
isso, se jurar que vai manter sua

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palavra, aqui, diante de todos, eu devolverei seu caderno e os policiais abandonarão o caso.

- Caso contrário... - Caso contrário? Você se arrependerá de ter nascido. Seus pais poderão fazer as malas. Você será chutada de todas as escolas, de todos os
colégios da região. Até agora os jornais do lugar nada mencionaram, mas estão ansiosos por isso, que é que você acha?, essas histórias de sexo entre garotas! Se
ficar por aqui, ninguém vai lhe dirigir a palavra, as pessoas insultarão você nas ruas, você terá vontade de morrer.

- E o caderno? Se eu prometer tudo isso, quando o entregará?

- Amanhã, ao meio-dia, no café Europe. Ouve-se apenas o barulho das bolas nas quadras próximas. Todos me olham. Vou até Mélie, acaricio os cabelos dela, beijo-a
apesar dos murmúrios reprovadores de meus inimigos.

- Você quer mesmo que eu aceite tudo que eles me pedem? Não vê-la mais? É o que quer?

Mélie baixa a cabeça e chora copiosamente. Eu a ergo com energia.

- Responda, é isso que você quer? O medo que leio em seus olhos é a resposta. Afasto-a brutalmente. Volto-me para os "juízes". Não tenho mais medo, meu coração
bate normalmente. Caminho na direção deles sorrindo. Sinto-me como uma prisioneira posta em liberdade.

- Vão se foder. Diante do ar espantado deles, dou uma gargalhada. - Mas o que estão pensando que eu sou? Como puderam achar, todos vocês, que eu ia admitir uma
só dessas propostas ridículas? Acham que sou covarde como vocês? Imaginaram que poderiam me atemorizar com suas ameaças? Pelo contrário, vocês me deram coragem.
Se não tenho mais medo nem dos policiais (claro, estou exagerando um pouco), não seriam miseráveis como vocês que me fariam tremer. Querem me

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separar de Mélie? Pois agora eu a amo ainda mais. Vocês só conseguiram uma coisa: fizeram com que eu odeie os homens. Jamais ficarei com Jean-Claude nem com qualquer
um de vocês. Vocês me dão nojo. São uns infelizes. Não estou nem com raiva de vocês, pois só merecem o meu desprezo.

Dou-lhes as costas, meio orgulhosa de mim. Uma pancada violenta na cabeça me derruba. Em meio à névoa, ouço o grito de Mélie, entrevejo o rosto de Yves, e tudo
escurece.

- Esses garotos são completamente loucos. Julgo reconhecer a voz do Dr. Martin. Abro os olhos, é ele mesmo quem está debruçado sobre mim. Veste uniforme de tenista,
há sangue em sua camisa Lacoste. É engraçado, parece-me que o crocodilo verde zomba de mim. Tento levantar-me, mas ele não deixa, tratando-me de modo amável, mas
com firmeza.

- Não se mexa, acabo de aplicar um curativo de emergência. Quem fez isso?

Acho que sei quem foi, mas prefiro não dizer nada. Quero eu mesma ajustar as contas.

- Foi o Alain quem lhe atirou uma garrafa de Roc-Sain pelas costas - informou Mélie, muito pálida.

- Onde está ele? - Quando viram Léone cair e sangrar, todos fugiram, exceto Yves, que nos ajudou a deitá-la no chão. Felizmente o senhor apareceu, doutor.

- Ainda essa história do caderno, não é? Venha, vou levála até meu consultório para examiná-la melhor.

- Não, não foi nada. Quero voltar para casa. Tento levantar-me, mas uma súbita turvação da vista me impediu.

- Viu? Não banque a tola. Mélie irá com você ao consultório.

Ele me ajuda a caminhar até seu carro. É incrível como me sinto sonolenta.

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- Bem, não é tão grave assim. Nem mesmo foi necessário dar pontos.

Há um curativo enorme em volta de minha cabeça. Estou parecendo com Apollinaire.

- Vou acompanhá-la. - Não, obrigada, não é preciso, prefiro caminhar. Mélie irá comigo.

- Como quiser. Cuide-se, garota - acrescenta ele, após uma pausa, dando um tapinha em minha bochecha.

Sorrio, erguendo os ombros. - Obrigada, doutor.

- Vamos até minha casa - sugere Mélie -, ainda não é tarde.

- Não, acho melhor voltar para a minha. Estou cansada. Subimos a rua do correio enlaçadas pelos ombros. Os raros transeuntes que encontramos voltam-se para nos
observar, espantados: pareço estar muito ferida.

Mamãe solta um forte grito ao ver-nos chegar. Até mesmo vovó mostra-se solícita em relação a mim.

- Como essa menina está pálida! Elas me levam até o divã da sala de visitas. Mélie observa os movimentos das duas, os braços arriados, inúteis. Ao me deitar,
um grande torpor me invade, depois uma imensa fadiga, imediatamente secundada por tamanha tristeza que as lágrimas correm, apesar de meus esforços, inundando meu
rosto como faz a maré cheia com os cascalhos. Com essas lágrimas parece escoar de mim o veneno do ódio; um grande desejo de resignação, de renúncia toma conta de
mim. Uma pancada na cabeça pode provocar tais mudanças? Sinto-me sorrindo através de minhas lágrimas. As vozes de Mélie e de mamãe se distanciam. Adormeço.


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Na manhã do dia seguinte, o delicioso cheiro de café me desperta. Mamãe está aqui, ao lado de minha cama, bemdisposta e sorridente; uma bandeja com o meu desjejum
foi colocada na beira do leito. Sinto-me de repente muito fraca, pois minha irmã e eu somente temos direitos ao desjejum na cama quando estamos doentes. Ela se
inclina e me beija suavemente.

- Dormiu bem, querida? A porta é entreaberta. Vejo aparecer uma parte do rosto de meu pai.

- Podemos entrar? Agora é a vez de vovó, depois surgem minha irmã e meu irmãozinho. Tanta solicitude me alvoroça e me inquieta. Por pouco acreditaria estar em
meu leito de morte.

- Eu não estou doente. - Beba o seu café que ele vai esfriar - aconselha mamãe, pondo a bandeja sobre meus joelhos.

Hum! Fatias de pão levemente tostadas. Adoro! Se bem que

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vovó afirme que elas não são boas para a saúde, que "estragam o sangue".

Por que estão me olhando assim? Que querem comigo? Vou logo saber. Mamãe faz um sinal para que os outros saiam.

- Vou ver a mãe de Alain hoje à tarde. Você tem alguma coisa a me dizer antes disso?

Encaro-a, balançando a cabeça. Ela quer que eu diga o quê? Que desaprovo essa tentativa que servirá apenas para humilhála? Que não obterá nada dessa mulher, mãe
de um cara como aquele? Como se acha desamparada, às voltas com algo que não compreende. Sufocou de tal forma em si mesma todo sentimento pessoal que já não sabe
interpretar os movimentos de seu coração. Como gostaria de tomá-la em meus braços, dizer-lhe que essas coisas perdem toda a importância, se nós duas conseguirmos
nos amar o suficiente para enfrentar os outros! Que se os encararmos com a cabeça erguida serão eles que baixarão os olhos! Que me sinto forte e enérgica em relação
a ela e, ao mesmo tempo, tão fraca, tão frágil, pois aos olhos de todos não passo de uma criança.

- Por favor, não vá! Ela retira bruscamente a mão, que eu tinha guardado entre as minhas a fim de tentar lhe transmitir através do calor delas tudo que eu gostaria
de lhe dizer, e que meu pudor e minha falta de jeito me impediam de formular.

- Quem é a culpada por termos chegado a este ponto? Oh! A acusação me faz mal! Pelo jeito, nunca me farei entender. Ela se levanta e deixa o aposento sem nada
acrescentar. Magoada, sem dúvida, pelo que acredita ser "minha falta de compreensão", como diz minha avó.

Saio impetuosamente da cama. Um pouco impetuosamente demais, pois desabo novamente sobre os lençóis, aturdida. Havia esquecido minha cabeça.


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Sinto enorme dificuldade para pôr-me de pé, apesar da hostilidade que percebo a minha volta e que me leva a deixar a cama e a casa. Caminho de um cômodo a outro,
indo do sótão à cozinha, entrando, saindo, e com isso irritando vovó, que, para ficar tranqüila por alguns momentos, me manda comprar o pão. Vou sem resmungar,
feliz por essa interrupção em meu tédio.

Dispenso o padeiro próximo de casa e decido ir até aquele que, segundo dizem, faz o melhor pão da cidade, o Sr. Rouly na cidade alta.

Caminho lentamente, ainda um pouco aturdida pelo golpe, mas principalmente pelo frescor desta manhã de verão. Uso um vestido que já foi verde, agora quase branco
de tanto ser lavado. Ele é bastante folgado e comprido e ondula voluptuosamente, pelo menos é assim que o vejo, em volta de minhas pernas; sandálias de couro
legítimo,
quase novas, uma velha sacola bordada, achada num brechó, é assim que estou trajada, e me sinto bem.

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Encontro duas de minhas tias, que me beijam sem muita vontade, perguntando aonde vou. Parecem aliviadas quando se inteiram de que meu passeio tem um objetivo.
Deixo-as bruscamente e prossigo, com pressa.

Cruzo a velha ponte e paro, como de hábito, para apreciar a água que corre. De onde estou posso ver o jardim e o primeiro andar da casa de Mélie. Julgo divisá-la
no banco do terraço. Uma inesperada lufada de ternura aperta-me o coração. Como eu a amo! Como seria delicioso viver com ela, morar na mesma casa, dormir na mesma
cama, acordar juntas, ser acariciada sempre que o desejo o exigisse, ouvi-la falar a respeito do pai, do ciúme de sua mãe, das irmãs, dela mesma, comparar nossas
leituras, admirar as mesmas paisagens, sentir o tempo passar sem amargura, sem medo.

- Quando eu for adulta, me casarei com ela. Dou uma gargalhada, disse essa frase em voz alta e, transportada pelo devaneio, pus-me a pensar em casamento como se
uma de nós fosse um rapaz que pudesse desposar a outra. Além do mais, sinto-me confusa por por ter colocado, pelo menos em pensamento, o problema: amor + desejo
= casamento. Logo eu que, nos bate-papos com os colegas, defendia a união livre e a liberdade para cada um de expressar seu desejo a quem quer que lhe despertasse
o interesse; logo eu que lhes dizia que o casamento era uma abominação, uma escravidão contínua, tanto para o homem quanto para a mulher. E eis que pensando em
Mélie e em mim pensava em casamento. Recomeço a caminhada, descontente comigo mesma. Encontro a mãe de Jeanine, ela finge que não me vê. É portanto verdade que
os pais de meus amigos não querem mais que eles me vejam. Isso me provoca uma aflição que logo se transforma em cólera.

Chego à padaria pouco antes do meio-dia. O padeiro me pede notícias de toda a família, que ele conhece bem, pois tinha começado como aprendiz numa das panificadoras
da cidade baixa.

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- Pessoas boas e nada arrogantes, senhorita. Respondo maquinalmente às perguntas, sorridente e paciente, o que me deixa surpresa, pois sempre evito esse tipo de
conversa, que considero rigorosamente inútil, para não dizer estúpida.

Posso, finalmente, ir embora, a pequena loja enchendo-se pouco a pouco de fregueses felizmente sem pressa.

O pão quente apertado contra o corpo, desço correndo o Brouhar, volto a cruzar a velha ponte, desta vez sem parar. Tiro um pedaço de pão. Como é gostoso! Quando
chego a casa, o pão diminuiu sensivelmente de tamanho, e a família está me esperando sentada à mesa.

- Você não poderia chegar na hora, se não fosse pedir demais? - grita meu pai.

- Por onde andou? - pergunta minha mãe. - O pão, olhem só o pão, não valeu a pena ir tão longe para trazer tão pouco - exclama vovó, retirando de minhas mãos
o que resta do pão.

Sento-me em silêncio. Não tenho fome. A refeição transcorre em silêncio. Cada qual pensando na visita de mamãe à mãe de Alain.

Tão logo o almoço termina, levanto-me, dobro meu guardanapo e me dirijo para a porta. Mamãe me lança um olhar de censura, tento um movimento em sua direção, mas
o reprimo, consciente de que isso não servirá de nada.

- Bem que eu gostaria de um café - diz papai, olhando para mim. Ponho a água para ferver, pego o café no aparador em cima da chaminé, o moedor de café no aparador
ao lado, despejo os grãos no moedor e, sentando-me, o moedor preso entre minhas coxas, começo lentamente a girar a manivela. Sinto os sobressaltos do moedor contra
meu ventre; o ruído dos grãos sendo triturados invade minha cabeça; o forte aroma do café

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recém-moído enche minhas narinas; meu braço fica aos poucos entorpecido. Levo um susto quando a voz seca de vovó diz:

- Acorde. Ainda não percebeu que está girando a manivela no vazio?

Puxo a gavetinha, tomando cuidado para não derramar o excesso de pó moído; retiro do armário na parede a velha cafeteira de terracota, bem queimada pelos numerosos
anos de uso. Despejo a quantidade suficiente no filtro e, a água na chaleira começando a ferver, viro o equivalente a duas colheres de sopa a fim de tumescer
o café. O pó agita-se, parecendo lutar contra a invasão da água, estremece e por fim se acomoda. Nesse momento despejo a água necessária ao preparo de café para
quatro pessoas. A sala fica perfumada. Parece-me que cada qual relaxa graças ao cheiro agradável. Vou apanhar as xícaras de porcelana branca, com dourado por dentro,
marcadas com as iniciais da família de vovó. Não restam mais do que quatro ou cinco. Gosto muito dessas xícaras, argumentando que o café servido nelas fica muito
melhor. É também a opinião de meu pai, e ainda mais a de vovó, sempre temerosa de que se quebrem essas sobreviventes de sua infância. Coloco o açucareiro sobre
a mesa, colheres de chá fora de aparelho, e, uma vez passado o café, retiro o filtro e despejo o líquido quente nas xícaras.

- Hum! Excelente! - exclama meu pai. - Um pouco forte, talvez - declara mamãe. - Com um pinguinho de leite ficará perfeito - conclui vovó.

Quanto a mim, não digo nada, contentando-me em desfrutar a aromática bebida e a aprovação de que, ao menos por esta vez, sou objeto. Realizei esses procedimentos
meio desligada. Muito voltada para o que anda me acontecendo e que não compreendo bem. Beijo mamãe e ponho um livro, um caderno e um lápis, uma maçã e uma barra
de chocolate em minha bolsa e saio.

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Não tenho vontade de ver Mélie. Preciso pensar. Caminho ao acaso pelas ruas vazias e silenciosas deste começo de tarde. Logo me vejo fora da cidade e sigo os caminhos
paralelos à estrada de Saint-Savin. Ando cada vez mais devagar, chutando pedras e folhas. Desço até um prado onde se encontram as ruínas de uma pequena ponte
que me serve de abrigo nos dias de chuva, o regato embaixo praticamente seco, exceto por dois ou três meses no final do inverno. Há musgo seco trazido por mim
quando de precedentes visitas, a fim de tornar o local mais confortável. Faço uma espécie de colchão sobre o qual me deito, as mãos sob a nuca.

Sobre a abóbada lesmas haviam deixado seus traços luzentes, imitando bordados transparentes ou prateados; imensas teias de aranhas e líquenes enegrecidos ou ressecados
pendiam da abóbada, formando uma espécie de forro com desenhos fantásticos e venenosos. O lugar era bastante sinistro e, após o calor da luz externa, frio e sombrio
como um poço. Eu me deleitava nesse cenário de romance de terror, onde minha frenética imaginação não era detida pelo menor pensamento de coerência ou otimismo,
mas, pelo contrário, ali vagueava por regiões mórbidas, exacerbada por um clima de tensão, de antipatia, de suspeita, de incompreensão e de ódio. Dominada pela
penetrante umidade do local, tremendo de frio, de medo e de tristeza, deixava-me invadir por uma melancolia romântica que me fazia derramar lágrimas bem amargas.
Contorcia-me de dor em meu leito de musgo, clamando por todos os deuses e gênios dos meus livros, suplicando que me poupassem ou me matassem ali mesmo. Em meu
delírio, reconhecia nos outros, em meus pais, nos amigos e habitantes da cidadezinha todos os motivos por que deveriam desprezar-me e odiar-me. Não era o objeto
de vergonha para a cidade? Um deplorável exemplo para os adolescentes de minha idade? Tudo em mim recendia a vício e pecado, eu era uma feiticeira, aquela a quem
se persegue,

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a quem se caça, a quem se mata a pedradas ou pelo fogo? Sentia as chamas subirem por minhas pernas, oferecia minha alma ao diabo pedindo perdão aos que havia
pervertido, orando a Deus para que me tomasse sob a sua santa proteção. Entretanto, uma exagerada risada de escárnio advertia-me que Satã não deixaria escapar
uma presa tão digna do inferno. É evidente que eu merecera tamanho castigo. O cárcere teria sido bom demais para uma criatura tão perversa quanto eu. Eu batia
em meu peito, balbuciando palavras sem pé nem cabeça. Por muito pouco teria arrancado os cabelos, como as heroínas dos romances ingleses, ou arranhado o rosto.
Mas não exageremos; estou realmente em pleno delírio romântico, porém faço questão de conservar minha bela aparência.

Mantive portanto no meio desses gritos e dessas lágrimas uma acentuada lucidez a respeito de minha condição física, não moral, ai de mim, visto que meu sofrimento,
ainda que expresso de modo excessivo, era real. Acalmei-me aos poucos, enxuguei os olhos com a barra da saia, toda amarrotada. Tinha fome. Fiquei toda feliz por
encontrar a maçã e o chocolate em minha bolsa. Esse lanche ligeiro me fez bem. Saí trêmula de meu soturno abrigo e comecei a procurar uma fonte que havia por ali.
Encontrei-a bem escondida pelos espinheiros e lavei o rosto com sua água fresca. Bebi um pouco. Tinha um gosto de menta. Sentei-me ali por perto sob um enorme
carvalho, as costas apoiadas no tronco rugoso, atenta ao leve rumor da pequena fonte. Pouco a pouco fui tomada por uma intensa e triste sensação de paz e tentei,
sem raiva, sem parcialidade, pensar no que estava acontecendo em torno de mim e de Mélie. Aparentemente, nada justificava a intromissão dos policiais. Até onde
eu podia saber, nenhuma queixa tinha sido apresentada. Contra quem, contra o que seria apresentada? Somos duas menores que a maledicência do lugar classificava como
lésbicas. Não conseguia identificar onde estava o crime. Nenhum adulto

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estava envolvido. É uma história de adolescentes, conforme ouvi o Dr. Martin comentar. Não provocávamos ninguém com nosso comportamento nem com nossas palavras.
Mélie pertencia a uma conceituada família burguesa da cidade, bem-situada e pouco se incomodando com os mexericos de maneira geral; quanto a mim, minha família
era
mais modesta, porém conhecida pela honradez; nunca qualquer de seus membros criou o menor escândalo. Então? Quais os motivos? Eu não podia acreditar que essa
demonstração de malevolência e de baixeza fosse dirigida apenas a mim. O alvo não me parecia suficientemente interessante. Que reprovavam em mim? Tentava, com
toda honestidade, encontrar as razões. Não identificava nenhuma. Não podia sequer imaginar que minha beleza (bem relativa), meu gosto pela liberdade, pelos livros,
pelas respostas na ponta de língua (nem sempre), meu amor por uma garota de minha idade, meus namoros inconseqüentes, minhas pernas de fora, meus biquínis sumários,
meu caderno bastassem para mobilizar os policiais, os pais de meus amigos, um padre e, não tardaria a descobrir, as religiosas de minha escola, as professoras da
escola freqüentada por Mélie e uma boa parte dos habitantes da cidadezinha, jovens e velhos. Alguma coisa me escapava, mas eu era incapaz de saber o quê. Decidi
ir conversar com Mélie, talvez seu pai pudesse me dar alguma resposta.

Mélie estava em seu quarto, cercada pelos membros de nossa turma. Ao entrar, tenho a impressão de causar-lhes constrangimento, pois param de falar e, depois de
um breve olhar em minha direção, desviam os olhos. Mélie está sentada em sua cama, com Jeanine, que a segura pelos ombros. Sinto uma pontinha de ciúme. Vejo que
Mélie andou chorando, seu rosto de loura não resiste às lágrimas e fica logo marcado. Vou até ela, cheia de ternura e de agastamento - tinha desejado tanto encontrá-la
sozinha -, e empurro Jeanine com brutalidade.

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- Que aconteceu, minha querida? Soube de alguma novidade?

Ela meneia a cabeça, suspirando. - Mas que novidades ela pode ter? - diz Jeanine. - É você quem deve trazer novidades, boas ou más. Não é hoje que sua mãe vai
procurar a mãe de Alain? Você deveria ir para casa a fim de saber o que aconteceu.

- Vou saber de tudo daqui a pouco - respondi, dando de ombros.

Essa simples reflexão teve a capacidade de encolerizá-la e enervar os outros.

- Se você não pensa em si mesma nem em seus pais, pense em Mélie, em nós, em nossos pais. Parece que você ainda não acordou. Dizem horrores de você, aliás, talvez
verdadeiros em grande parte; que você dorme com Pierre e Paul; que lê livros pornográficos; que fica nua na janela de seu quarto para excitar as pessoas; que enfeitiça
todos os homens... bem, nisso estão exagerando; em resumo, que não devemos mais falar com você, que tudo em você é pernicioso e que deveria ser internada.

Jeanine pára, como se tivesse perdido o fôlego; ela despejou tudo isso sem respirar, à pressa, como se quisesse livrarse de um peso excessivo ou de um ódio muito
forte. Pesado silêncio reina no quarto. Os batimentos de meu coração parecem encher o aposento.

- Pare de rir - grita ela, erguendo-se. - Se você realmente amasse Mélie, você a deixaria, não a veria mais. Pare de rir, estamos fartas de você, dos seus ares
de mulher liberada, de moleque de província, de intelectual de meia tigela, de seus trejeitos de garotinha quando os homens lhe falam ou olham para você, de seu
pretenso amor por Mélie! Ah! Que belo amor! Um amor que não a impede de flertar com Jean-Claude, Yves e tantos outros que não conhecemos. E será que é só flerte
mesmo? Eu sei que você é capaz de tudo quando deseja alguma coisa, quando alguém desperta seu interesse... Pare de rir...

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Ela ergueu a mão para mim, eu me desvio do ataque e me coloco atrás dela. Com esmero, mas rapidamente, bato com força em sua nuca com o lado da mão, seguindo todas
as noções aprendidas nos livros e nos filmes policiais. Ela cai toda mole. Tomara que morra.

Mélie vem para o meu lado. - Você é louca - alarma-se ela, debruçando-se sobre Jeanine que, infelizmente, recupera os sentidos. Esfrega a nuca, olhando-me com
medo. As lágrimas enchem seus olhos.

- Sua vaca, poderia ter me matado. - Suma daqui! - digo para ela, abrindo a porta. - Saiam todos! Sou eu quem não quer mais vê-los. Vocês são muito covardes,
muito desprezíveis.

Eu os expulso violentamente. Jeanine está muito aturdida para resistir, os demais são muito frouxos. Ao sair o último, bato a porta. Arrasto Mélie até a cama e
obrigo-a a sentar-se. Um louco desejo de surrá-la toma conta de mim. Aperto tão fortemente suas mãos que ela geme.

- Pare, está me machucando! Modero-me, um pouco envergonhada. - Não é verdade o que Jeanine falou, eu amo você. Essas histórias com os rapazes são muito antigas.
(Sei que estou mentindo, mas o importante é que ela acredite em mim.) Eu a amo e não quero deixá-la. Você também não, não é?

Ela vira a cabeça, voltando a chorar. Súbita angústia me assalta: e se fosse ela que quisesse me deixar? Não, não por sua própria decisão, mas ela é tão frágil
em relação às pressões dos outros. E além disso, deve ter muito medo de causar algum desgosto ao pai.

Estiro-me na cama, abatida. Quero lutar com Mélie, não contra ela. É a minha vez de chorar, tento reter as lágrimas. Minha confusão é muito grande, muito grande
também a lassidão que se abate sobre mim. Deixo que as lágrimas corram suavemente.

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Um hálito quente me faz voltar à realidade. Mélie me beija na parte interna das coxas. Já observei que sempre que choro isso lhe dá vontade de me acariciar. Ergo-me
na cintura para ajudá-la a retirar minha calcinha e abro as pernas. É delicioso. Sua língua pontiaguda brinca com o meu desejo, seus dedos me separam. Deixo-me
ir e ser transportada pelo prazer. Gemo fracamente. Afasto sua cabeça de meu ventre e beijo-lhe os lábios repletos de meu perfume. Ela pega minha mão e a conduz
até seu sexo. Meus dedos se fecham sobre uma pequena moita rechonchuda, voltada para mim, porém Mélie empurra com brutalidade minha mão no momento em que a porta
se abre.

- Não me ouviu chamando? A janta está na mesa. Dou um pulo. A hora do jantar; já estou atrasada. Hoje não é um dia bom para isso. Beijo Mélie às pressas, esbarro
em Françoise ao passar e saio correndo para casa. Sou interceptada no caminho por Jean-Claude, que me agarrou pelo braço. Tenta me puxar para si. Diz que me ama,
que fará o que eu quiser, mas que eu o beije pelo menos uma vez. Ele me segura firmemente. Beijo-o para conseguir passar, mas isso não é suficiente, ele me aperta
cada vez mais contra si. Dou-lhe uma violenta mordida para obrigá-lo a me soltar. Retomo minha corrida com um gosto de sangue nos lábios.

Como previa, todos já estão à mesa, porém ainda não começaram a refeição.

- Vá pentear esse cabelo e lavar as mãos - ordena vovó. Obedeço-lhe e retorno em seguida para ocupar meu lugar. Mamãe chorou, vovó também. Apenas papai parece
normal. Amanhã ele partirá. O jantar é servido depressa, pois os tios e as tias vêm passar o resto da noite conosco para se despedirem de papai.

- Você pode ir ao cinema ou dormir - diz mamãe, visivelmente pouco desejosa de que eu esteja em presença da família. - Catherine irá com você.

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Pelo menos é divertido. Pego o dinheiro que ela me estende. - Não voltem muito tarde. A noite é suave. As pedrinhas do chão crepitam sob nossas sandálias. Sinto-me
aliviada. Ninguém falou da visita de hoje à tarde, e amanhã mamãe parte com papai por dois ou três dias. Sei que este momento de trégua é ilusório, que de qualquer
maneira terei de enfrentar esse assunto mais cedo ou mais tarde, contudo tenho a impressão de que o tempo que passa sem dramas já é para mim uma grande vantagem.

Surpresa, ao chegar ao cinema, é um bom filme que está sendo exibido: O fantasma da ópera. Li o livro e sinto-me alegre em ver essa história posta em imagens.
Compro os ingressos. As pessoas me olham estranhamente, ninguém vem falar comigo, nem os colegas nem os rapazes que habitualmente dão em cima de mim. Mulheres sussurram
entre si, olhando-me com raiva, nojo ou desdém, seus maridos desviam o olhar, incomodados. Sinto-me o foco de todos os olhares, o tema de todas as conversas. Não
consigo tolerar esse clima. Vou para a rua esperar a campainha que avisa o início da sessão. Catherine não me acompanhou, fica de conversa, rindo, com a encarregada
pela porta, que é também a filha dos proprietários do cinema. Por fim, a campainha. Subo os degraus, mas me empurram, me puxam. Um garoto me faz descer três degraus.

- Então, santinha, vai ficar parada aí? Eu o enfrento. À minha volta, um círculo de rostos hostis, bocas convulsas em suas injúrias e gritos de ódio.

- Se não é uma vergonha esse tipo de casais! Quem disse isso? Ora, é a Sra. C., cujo marido vai à missa da tarde todos os domingos e que bolina as meninas do catecismo.
Ergo os ombros e afasto a beatona, cuja voz áspera me persegue: - Olhem só, acha que é a dona do mundo. Fora, sua puta!

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Eu me viro, mostrando-lhe a língua, e ela ergue o punho em minha direção.

Sentamo-nos em nossos lugares, Catherine e eu. O cinema está lotado, porém ninguém se senta ao nosso lado. Percebo que Catherine está a ponto de chorar. Belisco-lhe
o braço, maldosamente. Ah, não! Essa imbecil não vai chorar diante deles, principalmente porque em parte é por sua culpa que nos achamos em tal situação! Felizmente,
as luzes são apagadas. Temos direito a um documentário insípido, a um noticiário com vários meses de atraso e a um intervalo. Contrariamente aos meus hábitos,
não deixo meu lugar. Catherine retorna com um bastão de chocolate. Peguei meu livro e tento pensar apenas no que leio. Não é fácil.

"Ela quer fazer gênero; não ser como as outras; a vida se encarregará de acabar com sua arrogância; ela acredita ser mais bonita do que as outras; ela dorme com
todo mundo, foi meu cabeleireiro quem o disse. Mulherengo como é, deve saber o que está dizendo."

Sinto-me afogada numa uma onda de lama. Tenho náuseas, tenho vontade de gritar que sou virgem, que o sexo de um homem nunca penetrou no meu, que apenas Mélie conhece
o sabor que ele tem. No momento em que ia me levantar, as luzes são apagadas, e me acho felizmente mergulhada na obscuridade, podendo esconder minhas lágrimas.
Percebo o nervosismo de Catherine. Tenho certeza de que está arrependida pelo que fez. Mas é tarde demais. Estamos envolvidas num turbilhão que tragará nós duas,
pois ela também pagará por sua covardia e sua complacência. Não temos ainda consciência disso, mas pela primeira vez em nossas vidas damo-nos as mãos a fim de
nos sentirmos mais seguras.

No estado de nervosismo em que nos encontramos, não seria esse de fato o filme a que deveríamos assistir. Durante longo tempo fui atemorizada pelas perseguições
ao longo dos

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esgotos de Paris e nos desvãos da Ópera, bem como pelo rosto do fantasma devastado pelo vitríolo.

Terminado o filme, retornamos a casa sem incidentes. Sons de vozes me advertem que a família toda ainda se achava reunida.

Subimos para dormir sem fazer o menor ruído. Apesar de meus temores, pego logo no sono.


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Um rebuliço incomum me acorda cedo na manhã do outro dia. Mamãe entra e sai à procura de objetos espalhados por papai. Catherine e eu a observamos, cheias de sono.
Papai vem nos beijar e quer nossa promessa
de que vamos nos comportar.

- Principalmente você, que é a mais velha. Conto com você.

Ele me beija carinhosamente. Fico irritada. Ele conta comigo! E eu, posso contar com quem? Meu olhar deve ser eloqüente, pois ele acrescenta:

- Não se preocupe. Prometo que mando buscá-las bem depressa. Tudo vai se arranjar.

Mamãe também me beija. - Não faça bobagens, por favor. Voltarei dentro de três dias. Não aborreça sua avó.

Eles descem a escada, a porta bate, as portas do carro, cujo motor começa a funcionar, também. Depois, silêncio.

Volto a deitar-me, enfio-me sob os lençóis, toda encolhida,

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tentando ficar a menor possível. Um peso enorme oprime meu peito, sinto dores nas costas, na barriga, no coração, sinto falta de ar, porém não quero sair de sob
os lençóis. Tenho medo de vê-los à volta da cama, todos eles, com seus olhares perversos, os dedos me denunciando aos policiais, as palavras de fel, as faces horrorosas
desfiguradas pelo ódio, tornadas estúpidas pela ruindade gratuita, suas convicções de pessoas honestas exibidas com ostentação em suas tristes figuras, seus desejos
de destruir o outro porque o sentem como diferente. Todos estão aqui, para me prender, para me fazer mal: os policiais com aspecto bovino e mãos vermelhas, o quepe
solidamente enfiado na cabeça, Alain zombando de mim, Yves com aquele ar de "eu bem que te avisei", Jeanine, os olhos brilhando, Catherine sorrindo maliciosamente,
o Dr. Martin tendo o sexo entre as mãos e o brandindo contra mim, o arcipestre e seu jeito finório, esfregando com um ruído de papel de seda suas mãos magras
uma contra a outra, meu pai e o seu "conto com você", minha mãe, os olhos vermelhos, declarando com voz histérica: "coisas nojentas, nojentas, nojentas, no-jen-tas,
tias, tias, tias"; as tias aqui se encontram, elas também, falsamente compadecidas, secretamente satisfeitas com o que acontece a essa sobrinha que "não é como as
outras"; vovó, os lábios cerrados; as bondosas irmãs do colégio Saint-M, tendo à frente a irmã Saint-Emilien: "Senhorita D copie trezentas vezes - não devo
perturbar a aula de matemática. Saia, você é uma insolente"; a irmã superiora, olhar frio e maldoso, que jamais me perdoou por tê-la surpreendido namorando; a
Sra. C., brandindo o punho contra mim; a açougueira, cujo marido adora rapazinhos; a mulher do mecânico de automóveis, que se encontra com o marido da vendedora
de jornais nos recantos escondidos perto do Allochon; a mulher do ourives, que conta para quem quiser ouvir a última trapalhada do marido; o abade C., aspecto
de jovem e virtuoso padre, que se apaixonará por uma mulher casada e renunciará ao sacerdócio.

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Jean-Claude, segurando ostensivamente uma jovem pela cintura e... oh, não!... isto não é possível... aqui... não... Mélie. Mélie zombeteira, numa dança de roda
obscena
com eles, rindo enquanto me aponta com o dedo, se esfregando nas meninas, nos garotos, perdendo-se na multidão que não pára de crescer, invadindo o quarto, as
paredes, carregando minha cama como um barco em águas revoltas, as ondas subindo e descendo, turbilhonantes, cada vez mais altas, cada vez mais profundas...

- Mélie, Mélie... Catherine me sacode. - Acorde, acorde! Cale-se, vovó vem aí. Estou mergulhada em suores e lágrimas em minha cama devastada, no auge do terror.

- Que está acontecendo? Vovó não acrescenta nada, sai e volta com uma toalha molhada. Ela me obriga a esticar o corpo e aplica o pano úmido sobre minha testa.
Alisa meus cabelos emaranhados, meus soluços diminuem, tremo menos. Tenho a impressão de haver retornado à infância. Vejam, estou com oito anos de idade, tive
uma congestão pulmonar e vovó cuida de mim, faz com que eu beba um pouco de água com açúcar, ajeita minhas cobertas, me passa meu brinquedo favorito, conta uma
história para mim.

- Conte uma história. Meu pedido não parece surpreendê-la, e, sem soltar minha mão, ela reconta a história que eu amava tanto, ainda que me causasse medo e lágrimas:
Pele de asno.

Quando abro os olhos, ela está ao meu lado com uma tigela de caldo fumegante.

- Beba, isto lhe fará bem.

Sento-me com dificuldade. A luz mudou, podia jurar que estava anoitecendo.

- São seis horas da tarde. Você dormiu o dia todo.

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Meu corpo está dolorido, mas me sinto bem, em segurança. Eles não virão me apanhar aqui. Não podem arrancar uma neta de sua avó.

Volto a dormir, um sorriso nos lábios. Fico sabendo, ao acordar no outro dia, que Mélie veio perguntar por mim diversas vezes. Vovó despachou-a, dizendo-lhe que
eu estava doente.

Um toque na campainha da porta de entrada, tenho certeza que é Mélie.

- Mélie, suba, estou em meu quarto. Resmungando, vovó deixa-a subir. Mélie não está sozinha, Jeanine veio com ela.

- Vá embora. Já disse que não quero mais vê-la nem aos outros.

- Não banque a idiota, lamento o que disse no outro dia, estava com raiva devido a sua indiferença. Você parece não se dar conta de como essa história é séria.

Dou de ombros. - Não estou brincando. A leitura do seu caderno deixou todo mundo histérico. O motivo não sei muito bem, mas, pelo que contaram a minha mãe, você
teria posto ali todas as histórias imundas da cidade.

- Todas... É puro exagero! Só as que eu conhecia ou que ouvi contar. Mas usei palavras dúbias, quase em código, nada que as pessoas saibam.

- Talvez, mas só de saber que estavam escritas ou lidas por outros ficaram furiosas. Tanto que a narração de seus amores com Mélie parece casta e romântica. Passeios
ao luar, poemas declamados de mãos dadas, reflexão sobre o amor (o sentimento) e sua duração. Em suma, amores de colegiais. Nada com que se preocupar. Você sabe
como foi o encontro entre sua mãe e a mãe de Alain?

- Mamãe viajou, acompanhando papai até Paris, ela não me disse nada.

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Mélie acaricia meu rosto, me dá beijinhos. - Como você está pálida, minha querida! Como parece cansada!

- Você realmente não está com boa aparência. Precisa de ar livre. Vamos fazer um piquenique às margens do Gartempe, a gente pode pescar, tomar banho... Vai lhe
fazer bem. Sua avó está de acordo, caso você se sinta bem. Os outros estão aí na porta com as cestas. Só está faltando você.

Fico feliz por terem pensado em mim. Já me sinto menos cansada. Cuido ligeiramente da toalete, a água do rio me lavará. Visto meu biquíni, depois o short e uma
velha camiseta vermelha que eu adoro. Beijo vovó na passagem. Ela me detém e me obriga a beber uma xícara de café.

- Não vai sair de estômago vazio. Os outros lá estão, um pouco envergonhados. Beijo todo mundo, provocando gritos de alegria. Eles cuidaram de minha bicicleta.

- Tome - diz Francis, estendendo-me um livro. - O Arsène Lupin que prometi lhe emprestar.

Com esse gesto, compreendo que estamos reconciliados. Coloco o livro num dos alforjes da bicicleta, e o pequeno grupo dá a partida, cantando sob o olhar quase indulgente
de vovó.


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Estou morta, que ótimo dia tivemos. Felizmente, o local previsto para o piquenique não era muito longe, do contrário não teria podido chegar até ele. Devia estar
parecendo bem cansada, pois me trataram com gentileza e atenções que desconhecia neles. Adormeci muito rapidamente à sombra de um velho carvalho, a cabeça apoiada
nas roupas dos colegas. Ao despertar, senti-me tão bem que fui me banhar. Quantos gritos, quantos risos na água transparente e fresca do Gartempe, embora jeanine
teimasse que estávamos espantando os peixes. Devia ser verdade, pois nem os peixes mais comuns da região vieram morder nossos anzóis.

Já era quase noitinha quando retomamos a estrada de Montmorillon.

Dois dias depois, passei também horas agradáveis e tranqüilas. Ninguém me falou da história, do caderno, dos policiais, nem outras coisas desagradáveis. As horas
transcorriam sem problemas. Há muito que não experimentávamos, entre nós,

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tamanha harmonia. Entretanto, à noite, um frio intenso apoderou-se de mim na cama e dormi em lágrimas.

Mamãe voltou, está com um aparência triste e cansada. Alguém, à tarde, trouxe uma carta da superiora do colégio Saint-M. onde ela pede a mamãe que a procure o
mais depressa possível.

Mamãe me mostra a carta. Encaramo-nos sem nada dizer. Nós duas pensamos na mesma coisa.

Tomo coragem para perguntar-lhe: - Qual foi o resultado de sua visita à mãe de Alain? Ela balança a cabeça, desalentada, os olhos subitamente marejados de lágrimas.

- Você tinha razão. Foi inútil e humilhante. Ela me disse que eu era a grande culpada pelo fato de você ser má filha, que não fui suficientemente dura com alguém
como você, que se você fosse filha dela... ela tem a mesma opinião do filho, que deseja que você seja encaminhada a um reformatório para ser educada e castigada.
Alain somente devolverá o caderno em presença da mãe e de mim e apenas se você prometer nunca mais ver Mélie e se modificar.

Um grunhido de fúria escapa de meus lábios cerrados. O lixo, o imundo, o que é que ele tem na cabeça e no coração para imaginar que pode ditar aos outros como
se conduzir? Ele é um inquisidor, o miserável. Só um pobre coitado pode assumir esse tipo de atitude. Que horror! Uma louca vontade de matá-lo se apodera de mim.
Em meu desconcertado estado de espírito, mil suplícios, mil mortes, cada uma mais refinada e mais cruel do que a outra, desfilam em minha imaginação. Determinadas
cenas particularmente assustadoras do Jardim dos suplícios vêm à minha memória. Vou reler esse livro a fim de encontrar outras idéias.

- Vou matá-lo. - Pare de dizer bobagens.


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Minha mãe voltou de sua reunião com a superiora, o rosto pálido e transtornado. Não fui nadar com Mélie e os outros, a fim de aguardar o resultado dessa entrevista
e também para não dar a impressão de tê-la abandonado nessa prova cujo desenlace prevejo. Gostaria de lhe dizer que estou ao lado dela, que pode contar comigo,
mas sinto que não serei bem-vinda, já que sou a responsável pelo que está acontecendo: diligências humilhantes, partida precipitada do marido, ásperas observações
feitas pela mãe e pelas suas irmãs a meu respeito e agora essa visita ao colégio Saint-M. Ela sobe penosamente a escada que leva ao seu quarto. Ajeita maquinalmente
as luvas e a bolsa. Sigo-a com o olhar, não ousando tomar a iniciativa de falar. Ela senta-se sobre a cama, aspecto tão abatido, expressão tão infeliz que mal
consigo reprimir as lágrimas.

- Você e sua irmã foram expulsas do colégio. Isso não me surpreende, já esperava pela expulsão, mas Catherine..., não compreendo.

- Por que Catherine?

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- Elas não querem a irmã de uma jovem como você, afirmando que o mau exemplo que você lhe deu é o suficiente para pervertê-la. Que, de qualquer maneira, após o
escândalo feito em torno de você, elas não podem aceitar ninguém da família. Se fizessem uma exceção em favor de Catherine, os pais dos outros alunos viriam se
queixar, aliás, já estão se queixando. A superiora aconselhou-me a colocar você num estabelecimento muito estrito, fora da região, pois segundo ela nenhuma escola
decente daqui aceitaria você.

- Iremos para o colégio. - Ficaria espantada se a diretora, a Sra. F aceitasse. Você sabe muito bem que ela não gosta nem um pouco de você; e que fez todo
o possível no ano passado para que você e Mélie deixassem de se ver.

- Ela não tem o direito de nos recusar. - Você se engana. Ela tem esse direito. E ainda que não o tivesse! Você já se deu conta de como seria sua vida no colégio
se fosse matriculada contra a vontade dela? Seria um rosário de punições e trotes que a levaria à revolta, dando a ela a oportunidade de expulsá-la. No entanto,
vou tentar matricular você no colégio, bem como sua irmã, mas sem ilusões. É preciso agora que seu pai nos mande buscar o mais rápido possível.

A volta às aulas se dará em menos de um mês. Isto nos dá algum tempo.

- Ela disse mais alguma coisa? O olhar que mamãe me lança é tão duro que retorna a vontade de chorar.

- Ela me disse que não se surpreendia com o que estava acontecendo, que desde cedo havia identificado em você uma natureza maligna e profundamente perversa. Que
seu caráter estava de tal maneira malformado que as religiosas, uma após outra, vinham se queixar, afirmando que nada conseguiam com você, que não somente era
distraída, preguiçosa, mentirosa e insolente, mas que impedia os colegas de estudar, distraindo-os

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com palhaçadas, com caricaturas dos professores e perguntas fora de propósito.

- Não é sem propósito uma pergunta para pedir explicação sobre um texto literário ou um teorema. Para cada uma de minhas perguntas, elas me respondiam: você apenas
precisa refletir ou prestar atenção ou escutar; quando não vinham com: "Saia, senhorita, está perturbando a aula." Passei mais tempo fora de classe do que dentro.
E posso jurar que a maioria desses castigos não se justificava.

- Talvez, mas isso agora não importa. De qualquer modo, não foi esse o motivo de sua expulsão. Aliás, se a mantiveram por tanto tempo, foi por nos estimar e sobretudo
por sua avó "Uma mulher tão decente, tão corajosa."

- Que coisa mais chata! Vovó, sempre vovó! - Proíbo-a de falar assim de sua avó. Toda essa história a deixa doente. Quanto às suas tias, elas me disseram...

- Dane-se o que disseram. Só pensam em si mesmas, no disse-me-disse: que dirão a Sra. Fulana e a Srta. Beltrano, quem vai falar disso primeiro durante o chá na
casa da Sra. X., quem moverá a cabeça com aquele jeito de "bem que avisei"; todas essas velhas tagarelas que só sabem falar mal dos vizinhos. Nunca uma palavra
gentil, nunca um gesto amigo. Eu poderia explodir sob os olhos delas que nada fariam. Detestam tudo o que é jovem, novo, alegre. Nenhuma que diga: "Pobre menina!"
Pois, em toda essa história, quem é que pensa em mim, no que estou passando? Quem me ajuda a compreender o que está acontecendo? Quem pode me explicar por que
vocês adultos são tão tacanhos? Por que complicam tudo? Por que maculam o amor dos outros? Por que tudo se torna mesquinho e indecente quando falam disso? Não quero
ficar igual a vocês, é horrível!

Jogo-me sobre a cama, chorando, socando-a com os punhos. Mamãe me levanta brutalmente, o rosto ainda mais pálido e sério, muito sério.

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- Talvez não sejamos muito belos, inteligentes, bons, caridosos. Mas você acha que a vida é fácil? Você verá em que se transformarão seus grandes sentimentos e
suas belas palavras. Será obrigada a se dobrar, como os outros.

- NÃO, NÃO, NÃO! - meus gritos dolorosos dominam a casa. - Oh! não, prefiro morrer! Não quero viver a vida de vocês.

Um par de bofetadas pára os meus gritos. Subo, abatida e feita em pedaços, rumo ao sótão. Vou até meu armário secreto à procura da garrafa de um licor verde que
preparei segundo as orientações de meu tio Jean. Digo que é absinto, não é verdade, não tem sequer o gosto do absinto, mas é muito forte, muito doce e muito aromático.
Bebo pelo gargalo mesmo, em grandes goles. Penso nisso e me engasgo, mas esvazio a garrafa. Deito na cama de armar e adormeço em companhia de dragões de todos
os tipos
e de todas as cores. Ao acordar, já é noite. Um estrondo forte e prolongado de trovão me sobressalta. Oh, como me dói a cabeça! Levanto-me às apalpadelas no escuro.
Um clarão ilumina o sótão, fazendo surgir sombras fantasmagóricas. Sinto a boca pastosa e estou vagamente nauseada. Arrasto-me com dificuldade até a porta. Há
luz
na escada. A porta do quarto de mamãe está entreaberta. Empurro a porta, mamãe está sentada sobre a cama, um livro aberto diante dela. Aproximo-me, vejo que ela
dorme. Como ela é bonita assim! Beijo-a suavemente numa face, puxo as cobertas e apago a luz. Ela não se mexeu, não acordou. Ela, que tem o sono tão leve, deve
estar muito cansada. Desço até a cozinha para beber um copo com água. Com exceção da tempestade que diminui e da chuva que cai indolente em grossos pingos, não
se ouve nenhum ruído na casa e nem na rua. Pego no cabide a velha capa de chuva de mamãe, calço minhas botas de borracha e saio na noite. Todas as luzes estão apagadas!
Deve ser mais de meia-noite. A noite é muito escura, não vejo nada. Caminho pelas ruas apoiando as mãos nas paredes a fim

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de me orientar. Tento me lembrar onde acabam as calçadas, onde há degraus. Esse passeio no escuro, que concentrou minha atenção nas possíveis armadilhas do caminho,
me fez bem. A chuva lava minha dor de cabeça, lambo a água que escorre pelo meu rosto e mata minha sede com o seu frescor. Batem as três horas nos campanários
da cidade. Como tudo está calmo. Nem uma luz sequer. Todos dormem. Adoraria encontrar alguém que como eu amasse a noite, a chuva e a solidão, não para conversar,
isso poderia incomodá-lo, mas para saber que não sou a única a perambular assim no escuro. Ficaria mais tranqüila se reconhecesse um companheiro. Mas as ruas ecoam
apenas meus passos. Ninguém é suficientemente louco ou bastante infeliz para procurar paz de espírito nesta noite chuvosa de fim de verão. Batem as quatro horas.
Estou cansada e tenho frio. Prossigo, procurando saturar meu corpo a fim de acalmar meu espírito. Batem as cinco horas, quando chego à porta da casa. Ninguém reparou
em minha ausência. Penduro o impermeável, sob o qual imediatamente se forma uma poça d'água que vai se alargando. Descalço as botas, provocando um forte ruído de
água. No quarto, dispo-me no escuro e me deito tiritando. Sinto-me bem, terrivelmente distante, indiferente. Pouco importa o que me espera. "Amanhã será outro
dia." Adormeço com esse pensamento. Sim, amanhã será outro dia.


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Ao abrir as venezianas das janelas, sou tomada pela pureza do ar cujo frescor banha meus olhos com uma suavidade que apaga os horríveis sonhos noturnos. Sinto
um
leve formigamento ao respirar. Não me enganei, o outono
aí está, com suas manhãs frescas onde a bruma, como um véu rasgado, flutua sobre os campos, parece prender-se nos galhos das árvores, tornando irreais e vagamente
maléficos os recantos próximos aos tanques. Uma estação em que da noite para o dia surgem pequenos cogumelos marrons, rosa, amarelos e brancos; em que os lírios-verdes
deixam uma tintura funérea nos prados guarnecidos de orvalho, como se fossem pérolas; em que o campo repercute os tiros de fuzil dos caçadores e os latidos de
seus cães. Mais do que qualquer outra estação, o outono é a que me convém, aquela que aguardo e temo, aquela cujos movimentos secretos - de putrefação, de vida
subterrânea, de expectativa - sinto no mais profundo de meu corpo. O outono tem sobre mim um efeito estimulante. Parece-me que corro mais depressa, que

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compreendo melhor (é por isso, sem dúvida, que o mês de outubro é o único mês do ano em que estudo mais e não tiro notas baixas, apesar do desprazer que me causa
a volta às aulas), que meu corpo e minha inteligência ficam na mais completa harmonia com a natureza.

Adoraria morrer no outono e que meu corpo, enterrado diretamente na terra úmida e ainda quente do sol de verão, entrasse rapidamente em decomposição, tomando parte
dessa forma no amplo trabalho de putrefação que acompanha toda renovação.

Apesar da falta de sono e da lassidão provocada pela chuva, sinto-me pronta para atacar o mundo, para enfrentar os dias que se anunciam difíceis.

Visto-me e desço para o desjejum cantarolando. - Você parece bem alegre esta manhã - comenta vovó, beijando-me na testa.

Pego-a pela cintura, fazendo-a girar e rir. - Pare, sua louquinha! Vai me fazer cair. Pare! Seus olhos são risonhos e inquietos. Paro minha dança e ponho-a sentada
na cadeira mais próxima. Olhamo-nos, afogueadas e sorridentes. Seria maravilhoso se todas as manhãs fossem como esta.

Engulo o café - requentado, ai de mim! - e corro para a rua. Está muito mais fresco que nos últimos dias. Fiz bem em
vestir um casaco de lã.

São onze horas quando chego à casa de Mélie. Sou recebida pela expressão carrancuda de Françoise, o olhar reprovador da mãe de Mélie e a atenção curiosa da empregada.
Mal respondem ao meu bom-dia. Ora, não são essas tristes figuras que vão estragar meu bom humor! Subo de quatro em quatro os degraus da escada.

Estão todos no quarto de Mélie, caras zangadas, mas tão

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zangadas que meu altissonante e alegre "Bom dia para todos!" parece, se tal fosse possível, ter tornado mais zangadas ainda.

Feliz por estar vivendo uma manhã tão bela, brinco com um e outro na esperança de vê-los descontraídos. Em vão. Diante daquele mutismo carrancudo, paro, vagamente
inquieta.

- Mas o que está havendo com vocês? Aconteceu alguma coisa?

Todos falam ao mesmo tempo, fica difícil compreender o que dizem. Jeanine consegue restabelecer o silêncio.

- Se não é uma louca..., ainda nos pergunta o que está havendo! Só se fala dela em toda a cidade e ela pergunta o que está havendo! Não apenas em todas as esquinas
as matronas só comentam sua exclusão da escola, mas também a leitura que Alain irá fazer do seu caderno no café do Commerce hoje à tarde.

Súbito, o céu parece menos luminoso. Intenso frio, pontuado pelos batimentos de meu coração, me envolve. Aperto as mãos, gélidas, uma na outra, um espelho a minha
frente reflete a imagem de um rosto tornado pálido pelo repeútino frio.

Mélie pendura-se em meu pescoço, dizendo que não agüenta mais, que tudo isso devia terminar. Afasto-a delicadamente e me estiro sobre a cama, os olhos bem abertos,
fixos no teto. Penso no que acabo de ouvir. Que falem de minha expulsão não me preocupa, o que realmente me aborrece é essa leitura pública do caderno. Chego
à conclusão de que há apenas uma coisa a fazer.

- Irei esta tarde ao café do Commerce pegar o meu caderno. Pesado silêncio domina o quarto. Jeanine toma a palavra: - Acho que você tem razão, mas é preciso ter
cuidado. Mélie diz que não quer que eu vá, que irão me bater, fazerme mal, que estarei sozinha, que ninguém irá me acompanhar... Ora, isso eu sei, e até prefiro
que seja assim. Eles presentes, especialmente Mélie, complicariam as coisas e me

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deixariam menos livre em relação aos meus gestos e intenções. Dizem-me que a leitura está prevista para as quatro horas. Lá estarei. Beijo Mélie, que tenta me
reter.
Só tenho uma vontade: estar só. Prometo vir vê-la depois.

Volto para casa arrastando os pés, pois meu corpo parece estar mais pesado. Parece-me que cada pessoa com quem cruzo me observa com olhar velhaco, que todos param
de falar quando passo perto deles. Tento convencer-me de que se trata de imaginação minha, que vejo inimigos em toda parte, que estou sofrendo de mania de perseguição,
que essa história toda está me deixando louca... Aí acabo de receber uma pedrada na cabeça. Surpresa, paro e, olhando a minha volta, vejo um guri que se afasta
rindo. Continuo a andar, dando de ombros. Uma outra pedra me atinge nas costas. Desta vez, compreendo, estão deliberadamente me jogando pedras. Abaixo-me e pego
duas ou três, que não são grandes, ora!, e me volto, pronta para responder ao ataque. Os garotos são agora quatro ou cinco, me atiram pedras, gritando: "Puta!
Puta!" Uma raiva louca me invade, pego um pelos cabelos e lhe dou um pontapé na barriga. Ele consegue escapar e volta à carga com seus pequenos asseclas. Adultos
nos observam, divertindo-se. Ninguém interfere, nem mesmo quando uma pedra maior me atinge no rosto e provoca sangramento. Uma outra, na ponta de meu nariz, me
deixa atordoada. Eles aproveitam para me atacar com chutes e socos. Arranho, mordo, machuco. Agora não mais sinto medo, sei me defender e acerto meus golpes. Prefiro
no entanto abandonar a luta quando vejo pessoas adultas, até então espectadoras, aproximando-se de nós. Delas, tenho medo. Têm o rosto de meus pesadelos de criança.
Rostos entrevistos durante a liberação, rostos de ódio que jamais pude esquecer. Procuro sair correndo dali, sob os gritos e as injúrias:

- Puta, canalha, imunda, puta, canalha, imunda! E com o coro das vozes agudas dos guris:

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- Galinha... galinha...! Chego, sem fôlego, a casa. Vovó solta exclamações confusas. Mamãe, sem uma palavra, apressa-se a lavar meu rosto e examinar minha cabeça
à procura de um outro ferimento. Deixo-me despir e ser tratada com curativo. Minha roupa está rasgada em muitas partes, tenho as costas, os braços e as pernas
cobertas de manchas roxas e arranhões. Mamãe me prepara um banho, lavo a cabeça, apesar das dificuldades em erguer os braços e do desagradável formigamento provocado
pelo xampu em meu couro cabeludo dolorido. Ao sair do banho, sinto-me melhor. Visto meu velho penhoar e peço para não descer à hora do almoço. Mamãe concorda,
desde que eu tome um pouco do caldo de ontem. Olho-me ao espelho. Ah! eles fizeram um estrago! Eu, que pretendia estar sedutora para o encontro à tarde, fico
frustrada. Acima do curativo em minha bochecha, meu olho assumiu uma coloração azul, uma enorme marca sai da altura do nariz até meus cabelos, e tudo isso num
rosto pálido de meter medo.

Tomo meu caldo em pequenos goles sob o olhar triste e inquieto de mamãe. Conto-lhe sobre a briga, minimizando-a. Ela fica excessivamente preocupada por temer que
eu seja atacada em cada esquina. Balança a cabeça com ar desalentado. Eu fecho os olhos.

O rosto dói. Não consigo pensar. Tento ler, as linhas dançam diante de meus olhos. Adormeço.

Acordo assustada. Já são três e meia, visto-me às pressas. Terrível enxaqueca provoca náuseas em mim, pego alguns comprimidos que engulo fazendo careta. Escovo
os cabelos ainda úmidos. Como são macios e brilhantes! Felizmente, pois o resto não está nada bom. A màrca no rosto fica ainda mais visível, e meu olho, meio fechado,
ganha um azul mais escuro. Uso um vestido alegre. Mas para quê? Eu que tanto contava com os meus encantos para convencê-los a devolverem o caderno e pararem de
brigar comigo. Sei no entanto que preciso

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ir e que, seja lá o que aconteça, é importante para mim tomar essa resolução.

Cruzo com mamãe na escada, ela não tenta me reter. Não me pergunta mais aonde vou, limitando-se a me olhar tristemente.

A manhã manteve suas promessas, faz um tempo esplêndido, cálido e suave ao mesmo tempo. Nenhuma nuvem empana o azul absoluto do céu. Apenas as evoluções das andorinhas
riscam-no com efêmeras tarjas negras.

As ruas estão quase desertas. Há muita gente no café do Commerce, todavia menos do que eu pensava, unicamente homens, jovens em sua maioria, exceto a mãe de Alain,
sentada ao lado do filho, lábios cerrados.

Ao entrar, escutei diversos comentários: - Não foi nada demais. - Não devemos nos preocupar com uma vagabundazinha como essa.

- São histórias de crianças. - Não valeu a pena vir até aqui. - A garota é precoce! Aqui estou eu, os braços pendentes, à porta do café. Meu coração bate tão
forte que parece cobrir o barulho no salão.

Foi a mãe de Alain quem me viu primeiro e me aponta com o dedo. O silêncio substitui o burburinho. Alain soergue-se e volta a cair pesamente na cadeira. Pelo jeito,
ninguém esperava minha vinda. Ergo os pés do chão com dificuldade. Caminhar exige de mim extrema força de vontade; o tempo parece ter parado. Desloco-me com uma
lentidão pontuada apenas pelas batidas do peito. Meu sangue circula com louca velocidade, provocando vertigens que acentuam minhas dores de cabeça. Cerro os dentes
para não gemer. Não sei mais onde me encontro, um zumbido terrível ecoa em meus ouvidos. A

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cada lado meu ergue-se uma espécie de parede brumosa. Só consigo enxergar a mesa onde se acha o caderno, aberto. Tenho a impressão de que ele me chama, me atrai
para si. Cada uma das palavras escritas no caderno emite um pequeno sinal, mostrando-me que ele realmente está ali, muito meu e que sou a única que pode dispor
dele a minha vontade. Como é longa a distância que me leva até essas palavras, preciso afastar os maus pensamentos dos outros, lutar contra suas expressões de ódio
e de raiva. Sinto-me tão cansada que o desejo de ali deixar minhas próprias palavras torna-se cada vez mais forte.

"Você não tem esse direito," dizem elas, "você é responsável por nós, devemos a você nosso nascimento; foi você que, reunindo-nos deste modo, colocou-nos nesta
situação. Não nos agrada sermos lidas por quem quer que seja, pois você escreveu apenas para si mesma. Fomos testemunhas de suas lágrimas, algumas de nós ainda
guardamos lembrança delas, outras foram parcialmente apagadas. Proporcionamos também a você alegria, mesmo quando, por vezes, nos utilizava inadequadamente ou
nos obrigava a alguma bizarra contorção devido a uma ortografia um pouco fantasiosa. Você tinha uma tendência, talvez um pouco exagerada, pelo lado pomposo, estrepitoso,
um pouco pedante de alguma de nós. Mas isso teria passado com o tempo. Coragem, você já percorreu metade do caminho. Não nos abandone. Nós a ajudaremos, você verá.
Graças a nós, você poderá exprimir a beleza deste dia e o sofrimento, o medo, a vergonha que está passando neste momento. Nós a consolaremos. Pois escrever, por
mais difícil que seja, a levará, se não ao sucesso, pelo menos à paz consigo mesma. Este será possivelmente seu único meio de comunicação com os outros, levando-os
a compreendê-la e amá-la como você é. Você encontrará sua própria verdade no ato de escrever, mesmo se, diante da folha branca, não veja senão a opacidade do papel
e a nebulosidade de seu pensamento. Não nos abandone

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neste caderno, pois você precisará de muitíssimo tempo para nos esquecer e, até que você consiga fazer-nos reviver toda a sua vida, consciente ou não, estará
voltada para nós. É importante para você, hoje, assumir-nos inteiramente."

- Vim buscar o caderno que você roubou de mim. Pego o caderno e o aperto contra mim. Não vejo quem o tira de minhas mãos, pois uma bofetada me obriga a fechar
os olhos. Minha cabeça dói tanto que me sento, gemendo. Consigo reabrir os olhos apesar da dor que me obriga a fechá-los. Apoiando-me na mesa, consigo levantar-me.
Dou as costas a Alain e a sua mãe e encaro aqueles homens. Alguns baixam a cabeça, outros viram o rosto. Se não estivesse tão cansada, iria até cada um deles,
forçando-os a me olhar; talvez então compreendessem a estúpida maldade de suas atitudes. Uma voz me sussurra: "Chore, peça-lhes perdão, diga que você não sabia,
que você não se deu conta." Outra voz me grita: "Nunca!"

Consigo pronunciar de modo mais ou menos claro: - Quero este caderno, ele me pertence! Percebo uma hesitante movimentação na assembléia, mas a mãe de Alain se
levanta:

- Não se deixem impressionar pela aparência dessa menina, por sua expressão pálida, por suas escoriações, tudo nela é mau, como afirmam as freiras do colégio e
o abade C. Ela precisa de uma lição, pois é um exemplo perigoso para nossos filhos...

Não escuto a continuação, sinto-me como se fosse surda, não vejo senão o buraco de sua boca deformada sob a pressão das palavras de ódio. Viro-me, dando de ombros,
e saio do café, sem dúvida transportada pelos anjos.

Foi Yves quem me descobriu, tarde da noite, completamente estirada no fundo de uma vala, tendo espalhado sobre mim capim e gravetos arrancados ao talude, para
melhor esconderme dos olhares. Foi chorando que ele me ajudou a levantar, a

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caminhar, acompanhando-me a casa. Cruzamos com vizinhas, nenhuma teve um gesto de compaixão. Essa indiferença foi o pior para mim.

Mamãe e Catherine irrompem em lágrimas ao me verem. Mamãe, sentada, me faz beber um líquido quente, escova meus cabelos cheios de terra e de grama. Ela põe Yves
para fora. Sei que está falando comigo, mas não compreendo uma só palavra do que diz. Tento sorrir-lhe, mas isso lhe redobra as lágrimas. Ela me toma pela mão e
me conduz até meu quarto. Deixo que ela me dispa como se estivesse no meio de um nevoeiro. Ela me dá um comprimido e um copo com água. Eu os engulo. Ela me enfia
na camisola, me deita, ajeita as cobertas, passa a mão em minha testa. E fecha meus olhos. É muito melhor. Sinto-me bem no escuro.


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Fiquei muitos dias de cama, sem forças, quase sem falar. Mélie veio ver-me todos os dias, trazendo guloseimas que adoro mas que recuso, enjoada. O Dr. Martin
receitou-me fortificantes.

- A senhora devia mandar a menina para a casa de amigos, não lhe fará bem continuar aqui.

Mamãe respondeu que não tinha amigos nem parentes que pudessem me receber.

Ele saiu, dando de ombros, como se dissesse: "São coisas do destino!"

Hoje sinto-me um pouco mais forte, levantei-me e dei uma volta no quarteirão. À tarde, Mélie e eu jogamos monopólio. Ganhei. Ela me contou os últimos acontecimentos:
a partida de Jeanine para Paris, recomendando Mélie de me dizer adeus, pois sua mãe não lhe permitira despedir-se de mim. Falamos muito sobre o que aconteceu
no café. Alguns admitem que as coisas já foram suficientemente longe e que se deve me deixar em paz, porém Alain e a mãe pensam de maneira diferente. Ela também

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me informou que a diretora do colégio recusou-se a aceitar a mim e a Catherine, apesar da intervenção do pai dela. Lágrimas me vêm aos olhos. É evidente que eu
esperava por isso, mas trata-se de algo ainda mais mortificante do que eu imaginava. Ponho-me a deplorar furiosamente a escola, principalmente porque sei que meus
pais não têm meios para nos colocar num internato. Como vou aprender tudo o que não sei? Mélie me consola dizendo que me dará aulas, que estudaremos juntas.

Concordo para agradar-lhe, mas sei que isso não será possível.

Mamãe vem nos dizer que está na hora do jantar. Mélie me beija e sai. Mamãe senta-se na cama e me olha longamente.

- Vejo que você está melhor. Hoje fui procurar a mãe de Alain... - Oh, não! - Deixe-me continuar. Eles concordam em devolver o caderno mediante certas condições:
que você o destrua diante deles e de mim, assim como os outros que estão escondidos no sótão, e que você prometa nunca mais ver Mélie. Eu lhes disse que você
faria o que eles exigem.

O NÃO! que eu grito é tão forte que me afeta a garganta, a qual doeu durante três ou quatro dias.

Um suor frio me domina da cabeça aos pés; sinto tanto frio que bato os dentes. Mamãe me oferece um copo com água. Enfio-me na cama, clamando pela morte com todas
as minhas forças.

Catherine traz meu jantar, não consigo comer nada. Com grande esforço, engulo a tisana e o comprimido que vovó me dá. Felizmente adormeço depressa.

No dia seguinte mamãe me informa que a entrega do caderno está prevista para a manhã de sexta-feira, isto é, dentro de dois dias. Não digo nada, mas percebo que
sorrio vagamente. Visto-me.

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- Use roupas quentes, faz frio esta manhã. Vesti minhas velhas calças de flanela cinzenta, meias, tênis e o enorme pulôver jacquard que tricotei no último inverno.
Enquanto escovo os cabelos, observo-me no espelho. Com exceção de profundos círculos azulados sob os olhos e uma cicatriz ao longo da testa, não tenho má aparência,
considero-me até mais bonita.

O frescor do ar me surpreende. É normal, já estamos no mês de outubro. Tenho medo de descer à cidade. Não me sinto suficientemente forte para enfrentar os olhares.
Dirijo-me para o Allochon, para Néchaud, recantos de minha predileção. Logo sou obrigada a parar de tão cansada e sem fôlego. Sento-me à beira do caminho, esforçando-me
em pensar em qualquer outra coisa que não seja essa história do caderno. Não consigo. Os pensamentos insistem e me conduzem a essa horrível manhã em que com certeza
vou me humilhar.

Volto para casa, esgotada. Deito-me sem poder comer.

À tarde vou à casa de Mélie, utilizando as ruas menos freqüentadas. Ela está sozinha no quarto, lendo. Beijamo-nos tristemente. Falo-lhe sobre o encontro marcado
para sextafeira. Ela me diz que é melhor assim. Eu a encaro sem compreender. - Mas nunca mais verei você! É o que significa tudo isso. - Isso durará pouco tempo.
O tempo suficiente para as pessoas esquecerem essa história. Depois nos veremos como antes. O importante é que sempre nos amaremos - declarou ela, atirando-se
em mim.

Provavelmente, ela tem razão, mas não estou convencida. Deixo-a despir-me, mordiscar-me os seios, acariciar-me, tudo na mais completa indiferença. Meu corpo está
morto. Nem sua língua nem seus dedos poderão mais despertá-lo. Afasto-a com delicadeza. Ela me olha aturdida, com uma grande dúvida no fundo de seus olhos azuis.
Volto a vestir-me, apesar

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de suas inquirições e, logo a seguir, suas lágrimas. Pobre Mélie. Parece-me que um grande fosso nos separa. Proponho-lhe uma partida de canastra. Ela gosta tanto
de jogar que isso a consola rapidamente. Volto para casa bem cedo. Tenho vontade de escrever. Vou à procura de um caderno. Bruscamente, porém, diante do papel
delicadamente pautado, um imenso medo me invade. Tento dominá-lo, nada consigo, até mesmo minha mão se recusa a segurar a caneta, meu braço direito está tão rígido
que, se fosse tocado agora, ele se quebraria. Desabo chorando sobre o caderno virgem e daqui por diante inútil. Compreendo que levará muito tempo, anos talvez,
antes que eu possa voltar a escrever. Acabo de perder o único recurso contra a solidão, o medo e a angústia. Entretanto com quem falar? Em quem confiar? Estou
sozinha, completamente sozinha, murada por um silêncio que, embora não seja total, nem por isso é menos absoluto.


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Quase não dormi durante a noite, um medo mole e penetrante me mantinha desperta. Levanto-me com dificuldade, tenho náuseas e dor de barriga. Estou com uma cara
horrorosa. Mamãe também não está com boa aparência. Sua noite deve ter sido tão ruim quanto a minha. Gostaria que ela me tomasse em seus braços, que me consolasse.
Seu olhar duro e frio, no entanto, e o rosto carrancudo inibem qualquer impulso. Não sei se vovó está a par do que acontece; ela me olha com uma tristeza comovedora.
Perambulo pela casa, o coração batendo descompassadamente sem outro motivo do que o medo da hora fatídica. Refugio-me no sótão para tentar me concentrar, acalmar
o horror que me domina. Rôo furiosamente as unhas. Ponho-me de joelhos, tentando rezar. Entretanto, nenhuma palavra de prece chega a meus lábios, nem mesmo à
minha mente. É o mais completo bloqueio. Sinto-me enclausurada dentro de mim mesma, gostaria de gritar. Fico com raiva por causa de minha impotência. Tudo em
mim uiva, chora, geme, exige indulgência. Exceto por uma certa

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agitação, nada revela o drama que estou vivendo. Brutal desejo de fugir me invade, logo submerso entre imagens de policiais, de prisão, de multidão ululante. Tenho
medo, um medo hediondo, aviltante, irreprimível. Sinto-me como um animal deixado aos abutres, para onde me viro não vejo senão caras contraídas, olhares hostis,
gestos brutais. Minhas mãos mostram-se ora ardentes, ora gélidas. Daria tudo, até mesmo minha vida, para não estar só neste momento.

"Mélie, Mélie! Venha, não me deixe só. É agora que preciso de você. Devíamos enfrentá-los juntas, pois é o nosso amor que eles reprovam. Fui abandonada, inclusive
por você."

Esforço-me para não chorar. Não quero que percebam que eu chorei.

Conto os minutos que se escoam. Jamais o tempo transcorreu tão lentamente e, todavia quereria pará-lo. Cada ruído de porta me causa um sobressalto, um gosto de
bílis sobe-me aos lábios.

A campainha soa ferozmente. Sei que são eles. Decorre um longo instante, parece-me, antes que mamãe me chama.

- Léone! Desça! A cada degrau tenho a impressão de cair, apóio-me com as duas mãos no corrimão. Só um condenado à morte deve experimentar terror semelhante ao
que sinto.

A porta do cômodo onde eles se encontram está entreaberta. Nenhum ruído. Eles não falam. Eles me esperam.

À custa de tremendo esforço, empurro a porta e entro. Todos os três estão sentados à mesa da triste sala de jantar. As luzes estão acesas, levando-me a reparar
que o tempo está bastante sombrio e que chove. Um fogo aconchegante queima no forno a lenha, o que me surpreende, pois não faz frio.

A mãe de Alain me encara com dureza; ele me parece, pela primeira vez, constrangido, mas isso não deve durar. Mamãe está muito pálida, aperta convulsivamente uma
das mãos contra a outra. Seus olhos estão vermelhos de chorar.

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- É unicamente porque tivemos piedade de sua pobre mãe que estamos lhe devolvendo este caderno e recebendo sua promessa de que não voltará a ver essa menina, e
que logo deixará a região. Você é uma vergonha para a sua família, você não merece nossa bondade.

Não escuto mais nada, porém, para minha enorme vergonha, as lágrimas escorrem pelo meu rosto.

- Tome, rasgue você mesma este caderno e o queime - diz Alain, estendendo-o para mim.

Recuo. Oh! Eu, não! Volto-me para mamãe, implorando com o olhar. Ela vira a cabeça, os olhos cheios de lágrimas.

- Vamos, rasgue estas imundícies, queime-as, para que elas não sujem mais ninguém!

As lágrimas duplicam. - Mas antes vá buscar os outros cadernos. - Que outros? Não há outros! Ele se ergue brutalmente, pálido de contida cólera. - Não me obrigue
a ir buscá-los, sei em que lugar estão. Tenho certeza de que neste momento mamãe irá intervir, pondo-os porta afora. Não, ela me faz um sinal para que eu obedeça.
Não é possível, ela vai lhes dizer que me deixem em paz, que não se metam em nossos assuntos. Ela não se move, abatida. Sinto crescer no peito uma cólera que me
sufoca.

- Canalhas! Canalhas! Um par de bofetadas de mamãe acalma meus gritos. - Basta! Suba! Tenho ganas de matá-la. - Obedeça, suba! - Mas antes jure que não verá
mais Mélie, que não terá mais relações desnaturais com ela. Jure, senão levo o caderno - ameaça Alain.

- Não, você não tem o direito. Isso não!

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- Por favor, Léone, faça o que ele pede. - Jure, JURE. - Eu juro. - Jura o quê? - Que nunca mais verei Mélie. As lágrimas correm abundantes. Sinto-me mal,
muito mal. - Muito bem! Agora vá buscar os outros cadernos.

Subo de quatro em quatro os degraus. Retiro os cadernos de seu ridículo esconderijo. Desço depressa, ansiosa para terminar com tudo. Jogo os cadernos sobre a mesa.
Um deles cai.

- Pegue-o - ordena Alain. Sufoco em mim um movimento de revolta e, sem esperar uma nova ordem, começo a rasgar os cadernos. As capas cartonadas são difíceis de
arrancar, as fotografias, as pétalas secas de flores, os artigos de jornais, imagens religiosas escapam das páginas; enraivecida, eu também as rasgo. Abri a grade
do forno, jogo as folhas que se contorcem sob as chamas, as palavras parecem querer saltar do fogo mas tombam consumidas. A cada página arrancada e queimada é
um pouco de mim que é ferido ou morre. Apesar de meus esforços, as lágrimas se põem a escorrer. Ouvem-se apenas o ruído do papel despedaçado e o surdo rumor das
chamas. Jogada a última folha ao fogo, fecho lentamente a grade como se deve fechar um túmulo. Recuo, ligeiramente entorpecida pelo forte calor que exala do forno.
Sei agora que nunca mais me deixarei humilhar. Que é preciso que eu consiga uma desforra estrondosa para esquecer. Pressinto também, ai!, que sempre terei medo
dos outros, o que me levará a mostrar-me dura, frívola, inconstante, para tentar, apesar disso e apesar de tudo, ser amada por eles.

Quando me volto para eles, não choro mais e calmamente lhes digo:

- Agora, saiam! Eles nada dizem e me olham com uma espécie de receio.

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Sinto-me assustadora em meu tranqüilo desespero, o atiçador enegrecido ainda em minha mão.

- Saiam! Eles se levantam e saem sem uma só palavra. Faço um sinal para que mamãe também saia. Fico sozinha. Sento-me diante das chamas que vão diminuindo.


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Nos dias que se seguiram mamãe fez com que eu mantivesse minha promessa, impedindo-me de ver Mélie. Curiosamente, isso me foi indiferente. Vivia num estado de
hibernação mental e afetiva que não me deixava sofrer com sua ausência.

As aulas tinham recomeçado. Quatro vezes por dia os gritos, os risos das crianças dirigindo-se à escola faziam-me recordar que estava, daqui em diante, excluída
para sempre do mundo da infância. As primeiras semanas não me incomodaram. Permaneci fechada em meu quarto ou no sótão, lendo ou dormindo. Só via os outros moradores
da casa durante as refeições. A atmosfera na casa era tensa e triste. Percebia a situação, mas isso não me afetava. Estava como que ausente. Vovó não ousava falar
abertamente de sua reprovação por nós, Catherine e eu, totalmente inativas. Apenas meu irmãozinho provocava alguma animação na casa.

No primeiro domingo depois da volta às aulas, mamãe exigiu que eu fosse passear com ela a fim de tomar um pouco de

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ar. O passeio foi melancólico e silencioso sob um belo sol de outono. Eu a seguia, arrastando os pés, cabeça baixa, nada vendo da beleza dos bosques Ungidos do
púrpura de sua morte próxima. Cruzamos com poucas pessoas, mamãe tendo tido o cuidado de escolher uma área afastada, tamanha era sua vergonha. Não tínhamos trocado
dez frases desde a destruição do caderno, mas não que eu me tivesse recusado a conversar. Mas haveria muito a dizer ou nada, o que dava no mesmo. Não me mostrava
zangada, não chorava, não falava, estava como que morta, indiferente.

Mamãe encurtou o passeio, visivelmente agastada com minha atitude. De volta a casa, após o chá, ela nos sugeriu uma partida de monopólio. Pareceu surpresa quando
aceitei. Joguei por jogar, desligada. Perdi, claro, mas isso pouco importava.

O tédio e a tristeza desse primeiro domingo do ano letivo iam se repetir durante meses.

Por uma bela tarde ensolarada e um pouco fria, mamãe consentiu que eu fosse passear sozinha, com a condição de estar de volta antes das quatro e meia, hora em que
os estudantes saem das aulas, a fim de que não pudesse encontrar Mélie. Voltei à hora combinada e adquiri o hábito, todos os dias, qualquer que fosse o tempo,
de fazer longos passeios pelo campo. Obtive igualmente permissão para ir de bicicleta visitar minha avó paterna, que morava num lugarejo a uma dezena de quilômetros.

Se esses passeios fizeram com que eu recobrasse a cor, entretinham em mim uma melancolia acentuada por um outono fulgurante que se transformava pouco a pouco, sob
meus olhos desolados, num inverno frio e despojado. Os dias chuvosos eram particularmente sinistros. Ficava durante horas abrigada sob uma ponte ou numa granja
abandonada, transida demais do frio para ler o romance que continuava enfurnado no bolso de minha capa. Retornava pálida e tiritante, bebendo prazerosamente o
chá ou o chocolate que mamãe tinha preparado para mim.

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Mélie passava quatro vezes por dia diante de minha casa para ir à escola. Eu aguardava esses momentos angustiada e impaciente. Levantava-me cedo, pela manhã, para
vê-la. Apoiava minha testa no vidro da janela e esperava. Ela sempre erguia a cabeça, ameaçando parar. A mesma coisa às onze e meia, à uma e às quatro horas da
tarde. Um dia joguei pela janela um bilhetinho em que lhe dizia que a amava. Adquirimos o hábito de nos comunicarmos dessa maneira. Ela me dizia que não podia
viver sem mim, que no colégio mantinham-na à parte e que era muito infeliz.

Mamãe logo descobriu nossa artimanha, porém nada disse. Provavelmente, dava-se conta de que eu não podia continuar assim isolada.

Tinha retomado meus livros escolares, tentando estudar sozinha. Não conseguia. Sentia-me às vezes invadida pela crença de que nada sabia, de continuar vergonhosamente
ignorante. Ia à biblioteca municipal duas vezes por semana refazer meu estoque de livros. Vasculhei a prateleira de filosofia, na verdade bem reduzida, mas a leitura
de Spinoza, fazendo-me mergulhar em difíceis reflexões, me desencorajou bem depressa. Descobri os místicos e neles encontrei alimento para a minha melancolia.
Vivi durante semanas num estado de exaltação religiosa e sensual que me deixava esgotada, sonhando com o esposo divino e balbuciando as apaixonadas palavras do
amor celestial. Devo a Teresa de Ávila, João da Cruz, Francisco de Sales, Teresa de Lisieux, a solitária dos Rochedos e a religiosa portuguesa, meus mais belos
tormentos eróticos.

Diante de minha calma e de minha submissão, a vigilância de mamãe afrouxou. Não me vali disso de imediato, de tal modo o medo viscoso havia anulado em mim toda
veleidade de rebelião. Os dias sucediam os dias, somente um pouco mais sombrios, um pouco mais frios. Pela manhã acendia o forno a lenha no sinistro aposento onde
fora destruído o caderno. Odiava esse lugar, mas era o único da casa onde podia me refugiar e

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ficar sozinha. Sempre que entrava ali, meu coração ficava apertado. Precisava caminhar um pouco, lentamente, tocando os objetos, ajeitando um quadro, abrindo as
cortinas ou atiçando o fogo para apaziguar minha angústia. Sentava-me à mesa, sob a luz acesa, e lia, desenhava ou jogava paciência. Também tricotava e fazia tapeçaria.
Por vezes, acariciava o gato. Com maior freqüência, porém, permanecia imóvel no escuro, o olhar fixo no fogo, iluminada apenas pelo fulgor dançante das chamas,
até que mamãe ou vovó entrasse no aposento e me dissesse invariavelmente:

- Que está fazendo aí no escuro? Minha apatia deixava-as desconcertadas. Constantemente surpreendia-as olhando pensativas para mim. Mas nada diziam.

Um dia, sem que tivesse premeditado coisa alguma, não voltei para casa depois do passeio, fui à casa de Mélie. Era a primeira vez que "descia à cidade" depois daquilo
que Mélie e eu passaríamos a chamar de "a história".

Àquela hora do dia havia pouca gente nas ruas, mas foi com o coração disparado que cheguei à casa de Mélie. Samy me fez festa, pouco faltando, em sua alegria canina,
para me derrubar. Subi até o quarto de Mélie sem encontrar ninguém. Deitei-me na cama, acendi um cigarro, retirado de um maço que ali estava, e aguardei.

Em meio ao barulho de vozes agudas de garotas, reconheci seu riso. Então ela ria, ela ainda podia rir. Aquilo me deu o que pensar. Ela subiu, seguida pelas amigas.
Sua surpresa foi tanta, ao me ver, que ficou um longo momento sem reagir. Depois, soltando um grito, jogou-se sobre mim cobrindo-me de beijos, sob os olhares
reprovadores das outras, que saíram após algumas reflexões do gênero: "Já percebemos que somos demais por aqui."


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Eu a olhava, aturdida. Dizia a mim mesma - eis aquela a quem amo, estou em seus braços, seus lábios mordiscam os meus, nossas línguas, nossos braços, nossas pernas
se entrelaçam. Repentino calor domina meu corpo, sinto-me
tremer de encontro a ela. Estou doida para ter sua boca em meu sexo. Puxo sua cabeça até meu ventre, gemo.

- Me chupa. Ela obedece, dócil, hábil. Oh! Tão hábil que logo me sinto submergir num prazer que havia esquecido!

Mélie ri de felicidade, corada e despenteada, o rosto umedecido pelo meu prazer. Ela se deita em cima de mim, envolvendo-me com seus braços murmurando palavras ingênuas
e ternas. Chego a ronronar de bem-estar. Não tenho mais medo.

Adormecemos sob a cálida felicidade do reencontro. Ao despertar, combinamos que nos veremos todas as tardes.

- Mas que vai dizer sua mãe? - Não se preocupe, darei um jeito.

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Soam as sete da noite no campanário da Notre-Dame quando deixo Mélie.

Retorno a casa vagarosamente, passando pelas ruazinhas. Mamãe está à porta, vigiando minha chegada, inquieta.

- Onde você estava? - Na casa de Mélie. Ela não parece surpreendida, antes aliviada. É mais para constar que acrescenta:

- Você estava proibida de ir até lá. Abusou da minha confiança.

Dou de ombros. Pode dizer o que quiser, decidi rever Mélie e a reverei.

Ela compreendeu o meu olhar e, ainda para constar, prosseguiu:

- Amanhã você não irá passear. Sento-me à mesa, sorridente e calma. Falo de mil coisas, sob os olhares surpresos de vovó e de Catherine, que respondem por monossílabos.
Isso me é totalmente indiferente, pois falo pelo prazer de escutar minha voz, que achava haver perdido, e para evitar os comentários inconvenientes de mamãe e
de vovó. Após o jantar, sugiro um jogo de cartas a Catherine. Ganho e vou me deitar contente.

Durmo como uma pedra.


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Choveu durante toda a noite. O dia é muito sombrio e faz frio. Não me levanto para ver Mélie passar, fico no quentinho da cama, sonhando.

Dois meses se passaram desde aquele dia do caderno. Alain e seus pais deixaram a cidade, que se ajusta a sua monotonia invernal. Somente agora começo a poder pensar
em outro assunto que não a história do caderno. Tento me projetar no futuro. É preciso que de algum modo retome meus estudos. Trabalhar está fora de questão, não
sei fazer nada, e além disso Catherine e eu fomos educadas para sermos esposas; nosso único futuro é o casamento. Tenho de estudar para poder, o mais depressa
possível, deixar esta família que mal me suporta e esta cidade que me rejeita. Sinto-me afogar pouco a pouco em minha impotência. Que fazer? Aonde ir? Não tenho
dinheiro nem para pegar o trem até Poitiers. A angústia do futuro me aflige o coração. Preciso conversar a respeito com Mélie. É um bom sinal. Vejo-me sucessivamente
como atriz de cinema, repórter famosa, espiã, exploradora, cortesã. De fato, imagino

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que somente esta última profissão seja acessível a mim. Minha ignorância mascara o horror que ela é e minhas recordações literárias a idealizam. Paro com o devaneio,
pois isso seria trair Mélie.

Prudentemente, passo uma parte da tarde lendo diante do forno a lenha. Mamãe, de tempos em tempos, vem verificar o que estou fazendo, espantada com minha docilidade.

Batem quatro horas e meia no campanário de Saint-Martial. Calmamente pego o casaco no cabideiro. Abro a janela e pulo: já estou na rua, correndo para a casa de
Mélie. Como na véspera, chego antes dela. Encontro sua mãe, que me fala gentilmente, espantada por não me ter visto nos últimos tempos. Ela, visivelmente, esqueceu-se
do que havia ocorrido. Um sentimento de desgosto me invade: como pode acontecer que uma coisa tão importante, tão dolorosa para nós seja tão completamente esquecida
ou desdenhada, ainda que pelo menor dos instantes, justamente por aqueles que nela estiveram envolvidos? Somos negados pela indiferença dos outros. É o que aprendo
neste momento. Tenho raiva dessa mulher, superprotegida e egoísta, nem para manifestar uma terna compaixão, ainda que fingida. É de mau humor que subo para esperar
Mélie em seu quarto. Sua felicidade ao ver-me apaga um pouco a desagradável impressão.

Deixo que me dispa, me beije, me acaricie. Entretanto, não recupero nem a alegria nem o prazer de ontem. Procedo de forma que Mélie nada perceba.

Quantas coisas temos a nos dizer... falamos, falamos. O pai de Mélie nos interrompe. Mostra-se feliz ao me ver, preocupa-se com minha saúde e com o uso que faço
do tempo. Balança a cabeça, entristecido, diante de minhas respostas.

- Volte rápido. São quase oito horas. Tenho certeza de que serei repreendida. Beijo apressadamente Mélie. Desço a escada de quatro em quatro degraus. Já é noite,
e uma chuva fina e glacial cai sobre meu rosto como

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alfinetadas. Ao chegar, sem fôlego, a família já se encontra à mesa.

- Desculpem-me, o pai de Mélie me reteve. É apenas meia mentira. Diante da falta de reação, prossigo de um só jato:

- Mélie vai me passar a matéria da escola e me explicar o que eu não entender. Seu pai está de acordo.

Nenhuma reação. Uma inesperada ajuda vem da parte de vovó:

- Já não é sem tempo que essa pequena faça algo de sério. Não será ficando com o nariz enfiado nos livros durante todo o dia ou passeando pelos campos que se instruirá.

Querida vovó, que vontade de beijá-la!, embora no fundo, ela esteja errada. Aprendi muito mais com minhas leituras desordenadas e observando a natureza que durante
todos os meus anos escolares.

Mamãe, que nunca lhe deu explicações verdadeiras sobre nossa expulsão do colégio Saint-M., teve apenas que concordar.

Todos vão se deitar sem que nada mais tenha sido dito a respeito do assunto.

Ufa! Dessa me safei!

Começa então para mim um período ativo. Mélie passa todos os dias, às onze e meia, para deixar a matéria de aula, que ela me explica, ou melhor, tenta explicar,
pois não é muito forte em francês nem em matemática, o que dá lugar a estrondosas gargalhadas diante dos resultados diferentes a que chegamos. À noite, vou à casa
dela.

Muito rapidamente, porém, ficamos desanimadas. Ela, porque não compreendo suas explicações; eu, porque acho que ela mesma não entendeu nada. Chego a bater-lhe
de tão furiosa e frustrada. Tento, sozinha, raciocinar sobre este ou aquele problema de álgebra ou de aritmética, mas é muito difícil para mim. Contento-me em
ler os livros de história, de geografia,

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de ciências naturais ou dos grandes autores clássicos, como Racine, Cornelle ou Molière. Voltei a freqüentar a biblioteca e leio, desordenadamente, Delly e Pascal,
Max du Veuzit e Joseph de Maistre, Myonne e Voltaire, Henry Bordeaux e Rousseau. Como se vê, algo bastante eclético, e, se acrescentarmos as publicações semanais
ou mensais, como Nous Deux, Historia, Mickey, Confidences e Spirou, ter-se-á uma idéia da cultura de uma jovem de quinze anos entregue a si mesma.

Cada dia que passa fica mais frio, a noite começa a cair mais cedo. Às cinco horas já está escuro. Sinto-me agora com coragem de passar pela rua principal rumo
à casa de Mélie. Ninguém fala comigo. As mexeriqueiras, que me conhecem, sussurram a minha passagem. Passo empertigada, o olhar distante, tentando parecer indiferente.

Discutimos com freqüência, Mélie e eu, por ninharias. Na verdade, sinto ciúme da vida que ela leva. Para ela, a história pouco a afetou: continua indo ao cinema,
ao colégio, a sair para encontrar os amigos, seus pais cercam-na de carinhos. Diante de tudo isso, sinto-me estranhamente carente e pobre, muito pobre. Os dias
transcorrem cada vez mais lentos. Nem os livros nem Mélie conseguem dar um fim a minha melancolia. Tudo me parece fechado. A tentação de morrer retorna, muito
forte.

Chegam as férias de Natal. Habitualmente, esse período que precede as festas é de muita atividade para mim. Preparo presentes para cada um de nós e, como não tenho
dinheiro, são presentes inteiramente confeccionados por mim: luvas, meias, bonés, echarpes, tricotados com sobra de lã, ou pequenas tapeçarias com votos de Feliz
Natal, bonecas de trapo, de enxoval mínimo, desenhos - em suma, essas pequenas coisas que uma jovem com mãos hábeis pode oferecer. Este ano não fiz praticamente
nada - um pulôver de lã grossa que Mélie me pediu, luvas para mamãe e vovó, e foi tudo.

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Na noite de Natal, minha sensação de solidão torna-se maior. Recusei-me a acompanhar a família, que vai cear na casa de uma tia antes da missa do galo. Não tenho
coragem de enfrentá-los reunidos. Estou sozinha em frente a um belo prato preparado por mamãe, pasta de foie gras, um pedaço de peru com castanhas, um pequeno
bolo de Natal só para mim. Instalei-me na sala de jantar; o fogo ronrona suavemente, no rádio há canções natalinas. Como em todos os anos, fui eu quem decorou
a árvore de Natal e montou o presépio. Ao prender a última guirlanda, observo minha obra. É muito bonito meu pinheiro, refletido no espelho que também devolve
minha imagem. Olho curiosa essa jovem que não reconheço. Parece-me que cresci, meu rosto afinou-se, não tenho mais as bochechas redondas da infância, tenho olheiras,
porém o que mais me surpreende é o meu olhar: impossível, desiludido de tudo, nenhuma esperança de luz, nem o mais tênue clarão, velho, morto.

Meus cabelos ruivos, brilhantes e crespos, são a única massa viva, como se não pertencessem a este rosto, a estes olhos. Pensamentos caóticos tumultuam minha cabeça,
uma palavra surge e transforma-se em grito: "Não!" E desfaleço, gritando esta palavra:

- NÃO!

 

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Durante as últimas férias vimo-nos todos os dias, Mélie e eu. Seus pais nos levaram a Tours, Poitiers e Limoges. Mamãe deu-me um pouco de dinheiro para essas saídas,
o que me permite comprar bugigangas. Mélie me cobre
de pequenos presentes, de guloseimas. Gosto muito dessas quebras de rotina.

Como sempre ocorre nesta época do ano, há um parque de diversões, durante a feira, na praça do mercado. Este ano ainda não fui até lá, com medo de encontrar Jean-Claude
e seus companheiros. Hoje, porém, estou com vontade de me perder na multidão, como nas outras festas. Desço a rua principal por volta das quatro da tarde, o tempo
mostra-se úmido e frio, as luzes das vitrines já estão acesas. Há pouca gente a esta hora na festa. Compro um doce, olho os carrinhos da autopista, as barracas
de tiro ao alvo, as loterias, os carrosséis para crianças que me recordam quando eu batia os pés para não descer, gritando:

- Mais uma volta, mais uma volta!

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As carroças e a mulher que lê o futuro, um pequeno zoológico, balanços foram suficientes para encher o local.

Tenho frio, e nada disso tem graça. Decido ir à casa de Mélie. Foi num cruzamento de ruas, em frente à loja de tecidos, que fui apanhada por uma manzorra brutal.
É a Sra. R., que me agarra e se põe a me sacudir violentamente:

- Não tem vergonha de se exibir, sua prostituta ordinária? Não se pode mais passear sem encontrar vagabundas da sua espécie - diz ela, dirigindo-se a três ou quatro
mulheres que pararam para olhar.

- Quem diria, uma jovem de boa família agindo dessa forma - declara por sua vez a Sra. V.

- Deveriam internar semelhantes aberrações - acrescenta a Sra. B.

- Tome, sua imunda! Não vejo de onde vem a agressão, mas a bofetada que recebo é da Sra. R. Quanto à Sra L., ela me pega pelos cabelos. Tento, como posso, aparar
os golpes, mas agora elas são cinco ou seis a minha volta. Um crescente ajuntamento forma-se ao redor, surgem garotos, que zombam e tentam me atingir com pontapés:

- Vagabunda, vagabunda! A manga do meu casaco novo é rasgada, começo a sangrar pelo nariz, e isso deve excitá-las, pois me sacodem com mais força. Ninguém interfere.
Hediondo medo me assalta, revejo as moças tosquiadas da Liberação, meu pai e sua metralhadora, as risadas nojentas e as caretas de ódio praguejando contra as pobres
jovens.

- NÃO! NÃO! Deixem-me! Ali se acham jovens, velhos, homens e mulheres comuns, que não fariam mal a uma barata, mas que assistem impassíveis a essa cena cruel.
Jean-Claude, muito pálido, não ousa intervir. Francis, Michel, Bernard, os colegas do verão, observam sem se mexer. Vejo uma de minhas tias, que prefere mudar

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de calçada. Ninguém virá em meu auxilio? Caio para o lado da vitrine protegendo a cabeça com as mãos.

- Basta, deixem-na, parem! É monstruoso! Uma mão firme me ergue e afasta as megeras. - Vocês seriam processadas se os pais da pequena fossem apresentar queixa
pelas pancadas e ferimentos!

Isso acalma as fúrias mais eficientemente do que as palavras de piedade, e elas se dispersam rapidamente, sem nada dizer. O homem enxuga meu rosto com seu lenço.
Tem enormes olhos castanhos, doces e tristes. Eu o conheço de vista. Ele não mora na cidade, mas aparece por aqui de vez em quando para visitar os pais, que possuem
um pequeno negócio de bicicletas na rua principal. Imensa gratidão me invade, foi a primeira e será a última pessoa a ter, em relação a mim, algum gesto de compaixão.
Ele me ampara pelos ombros.

- Você deveria voltar para casa, pequena. As ruas não são seguras para você.

Gostaria de agradecer-lhe, mas não consigo pronunciar uma palavra sequer; encaro-o intensamente, tentanto passar, através dos olhos, o que sinto. Ele parece compreender,
um sorriso afável ilumina-lhe o rosto.

- Coragem! O tempo passa e tudo se esquece. Balanço a cabeça. Não, não esquecerei, nem este solitário gesto de amizade, nem as pancadas, nem as humilhações, nem
as lágrimas. Eu o vejo se afastando. Enxugo os olhos, assôo o nariz e me dirijo à casa de Mélie para pôr um pouco de ordem em minhas roupas antes de voltar para
casa.

Ela não diz uma só palavra ao me ver, ajuda-me a tirar a roupa, prepara-me um banho, lava meu rosto, cobrindo-o mansamente com seus beijos. Enquanto a água alivia
meu corpo dolorido, ela entrega meu casaco à irmã para que esta costure sua manga. Ela me enrola num longo penhoar à saída

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do banho e faz com que eu beba uma xícara de chá fervente. Toma-me em seus braços e então, e só então, me pede:

- Conte! Assim, em voz baixa, entrecortada por soluços, eu lhe conto a cena de há pouco, sinto suas lágrimas mornas escorrendo ao longo de meu pescoço. Calo-me,
ela nada diz. Além do mais, que podemos acrescentar, aliás? Estou no centro de acontecimentos que nos ultrapassam. Não há o que compreender. Somos joguetes das
circunstâncias, os outros também. O que hoje os revolta poderá ser-lhes indiferente amanhã. Estamos num mau momento, é tudo.

Volto a casa, acalmada. No caminho encontro mamãe, que chegou antes de mim. Ela está a par do que se passou. Julgo-a hesitando entre a hostilidade e a ternura.
Tenho
vontade de me jogar em seus braços, mas, devido a sua atitude, que não compreendo, não ouso fazer isso. Caminhamos em silêncio uma ao lado da outra.

A refeição é silenciosa. Terminado o jantar, mamãe retira uma carta do bolso. Pelos selos e pelo envelope, vejo que é uma carta de papai. Ela a lê para nós.

Se compreendi bem, dentro de três meses, quatro no máximo, estaremos em Conakry. Durmo sonhando com palmeiras, com pessoas negras e gentis.


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Após a cena daquele dia, não retornei à casa de Mélie.

Foi ela que, não me vendo, veio saber o que se passava. Digo-lhe que prefiro que seja ela a vir, pelo menos durante um certo tempo. No decorrer de um mês ela apareceu
todos os dias a fim de passar duas horas comigo. Jogamos cartas ou lemos, cada qual em seu canto. Deixamos de estudar juntas, o que evitou brigas entre nós. Falamos
de minha partida, em breve, e que se torna inevitável. Ela me diz que é o melhor para mim e que um ano passa depressa. Ela tem razão, sem dúvida, porém não é
sem
angústia e aperto no coração que penso nessa longa ausência. Ainda me amará quando eu voltar?

Retomei, apesar do tempo frio, minhas longas caminhadas pelo campo e meus passeios de bicicleta. Pouco a pouco, os dias ficam mais longos. A primavera se anuncia
prematura. Não é que já colhi minhas primeiras violetas? Volto novamente à casa de Mélie. É verdade que sua casa é mais agradável que a minha, e seus pais, mais
acolhedores que os meus. Vez por outra, nas ruas, cruzo com antigas colegas de escola. Todas, sem

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exceção, viram a cabeça quando me vêem. Seus pais fizeram as coisas bem direitinho. Ocorre o mesmo quando encontro uma das freiras do colégio Saint-M. São elas
que baixam os olhos, por pudor, sem dúvida, como se estivessem diante de uma visão vergonhosa. O que eu represento é tão feio assim? Não consigo acreditar nisso.
As férias da Páscoa trazem Jeanine, que agora está parecendo uma verdadeira mulher. Ela trouxe um monte de discos novos de Paris. Não cansamos de escutálos. Francis,
Michel, Bernard e até mesmo Yves vêm ficar alguns momentos conosco. Ninguém fala da história. De início, eles me olhavam com certa desconfiança, temendo, quem sabe,
recriminações ou queixas. Todos eles receberam apenas um silêncio um pouco desdenhoso, e foi tudo.

Apesar de meus esforços, não consigo mais interessar-me pelo que em geral constitui a vida dos adolescentes. Alguma coisa em mim foi rompida ou quebrada. Apenas
o tempo me dirá. Assisto, indiferente, aos preparativos de mamãe que manda confeccionar para Catherine e eu vestidos para regiões quentes. Será por muito pouco
se escaparmos ao chapéu colonial.

Nossa partida é adiada, o que faz com que eu tenha a alegria e a tristeza de ir procurar Mélie, ao descer do trem que a traz de Poitiers, onde fora receber o diploma
juntamente com sua turma. Na plataforma da estação há alunos da escola laica e da escola livre. Os professores dos campos opostos cumprimentaram-se com leve movimento
de cabeça; quanto aos alunos, fazem chacotas disfarçadamente. Minha chegada provoca imediato silêncio. As religiosas, lançando-me olhares espantados, dirigem suas
ovelhinhas brancas para tão longe quanto podem; os laicos me olham de alto a baixo, ultrajados com tamanha audácia. Caminho pela plataforma, em direção a Mélie,
que não parece muito confiante. Pego-a pela mão e conduzo-a para a saída. Minha presença ali não lhe deu nenhum prazer, ela me disse com brutalidade:

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- Como se já não tivéssemos tido suficientes contrariedades!

Sorrio, dando de ombros. Estou muito contente comigo mesma. Pois, para essa pequena provocação, precisei de coragem. Queria confirmar a ruptura entre as pessoas
de minha idade e eu. Pois aí está. Vou acabar de crescer sem elas.


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As despedidas entre Mélie e mim foram horríveis. Até o último momento ela realmente não acreditou em minha partida. Ela se pendura em mim, chorando, jura que vai
me amar para sempre, escrever-me todos os dias, só
pensar em mim. Eu também choro, claro. Mas tenho pressa em acabar com aquilo. O motorista do táxi buzina em curtos intervalos, mamãe se impacienta e deve estar
lamentando ter permitido esse último adeus. Pelo vidro traseiro do carro observo a silhueta de Mélie, que diminui pouco a pouco.

Estamos bem acima das nuvens num deslumbrante céu azul. Mamãe tem no rosto um ar de contentamento que me faz bem, Catherine folheia uma revista ilustrada, Lucas
brinca com seus carrinhos. Tudo está calmo. Fecho os olhos, atenta aos batimentos de meu coração, à vida que circula em mim. Vez por outra a imagem de Mélie
se interpõe, afasto-a serenamente. Cada minuto que passa me distancia dela, preciso me habituar a sua ausência desde agora, se quiser poder suportá-la.

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Espero, curiosa, o primeiro contato com a terra africana, prometo a mim mesma nela encontrar; se não o esquecimento, pelo menos a paz. Sinto que vou encontrar
nesse
continente desconhecido as respostas a determinadas perguntas; que lá, entre pessoas que não me conhecem, não haverá preconceitos. Adormeço, um tênue sorriso nos
lábios.

Quando desperto, o avião prepara a aterrissagem, a aeromoça pede-me que aperte o cinto. Pela vigia, vejo o mar, depois uma intensa massa verde, a terra vermelha,
um porto, a cidade.

Ao aterrissarmos, sei que já mudei de vida. Logo terei dezesseis anos.

 

 

                                                                  Régine Deforges

 

 

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