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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DOCUMENTO HOLCROFT / Robert Ludlum
O DOCUMENTO HOLCROFT / Robert Ludlum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Março de 1945
O casco do submarino estava amarrado aos grandes pilares como um animal monstruoso aprisionado, com as extensas linhas de proa a arquear-se sob a luz matinal do mar do Norte.
A base ficava na ilha de Scharhörn, no golfo de Heligoland, a algumas milhas da costa alemã e da foz do rio Elba. Era um posto de reabastecimento jamais descoberto pelo serviço secreto aliado e, no interesse da segurança, pouco conhecido até dos estrategistas do Alto Comando alemão. Os assaltantes do fundo do mar chegavam e partiam na escuridão da noite, subindo à superfície ou mergulhando a algumas dezenas de metros do ancoradouro. Eram os assassinos de Netuno, que chegavam ao seu covil para descansar ou partir a fim de desfechar os seus ataques.
Naquela manhã, porém, o submarino atracado ao cais nem descansava nem se preparava para outras incursões. Para ele, a guerra estava terminada e a sua missão se relacionava com as origens de outra guerra.
Dois homens estavam na torre do submarino. Um deles vestia a farda de comandante da Marinha alemã e o outro era um homem alto, à paisana, com um longo sobretudo escuro, de gola levantada a fim de protegê-lo dos ventos do mar do Norte, mas sem chapéu, como se estivesse a desafiar o inverno. Ambos olhavam para a comprida fila de passageiros que lentamente se encaminhavam para a prancha estendida a meia-nau. À medida que cada passageiro chegava à prancha, o seu nome era conferido numa lista e então a pessoa era levada ou carregada para bordo do submarino.
Algumas pessoas caminhavam com os próprios pés, mas eram exceções. Eram as mais velhas, algumas tendo atingido doze ou treze anos de idade.
Os outros eram crianças, bebês nos braços de enfermeiras militares de rosto severo que entregavam os jovens aos seus cuidados a turmas de médicos navais colocados ao lado da prancha. Eram alunos do jardim de infância e do curso primário, que levavam mochilas de viagem idênticas e davam as mãos uns aos outros, olhando para o estranho barco negro onde iriam viver algumas semanas.
- É incrível, simplesmente incrível - disse o oficial.
- Isto é o começo - disse o homem de sobretudo, sem alterar a rigidez das feições angulosas. - De toda parte chegam notícias. Dos portos e dos caminhos das montanhas, dos aeroportos restantes, de todo o Reich. O número chega a milhares. Vão para todas as partes do mundo, onde há gente à espera deles. Em todos os lugares.
- Uma realização extraordinária - disse o oficial, sacudindo a cabeça para acentuar a sua admiração.
- Esta é apenas uma parte da estratégia. A operação em seu conjunto é extraordinária.
- É uma honra tê-lo aqui.
- Fiz questão de estar aqui. Este é o último embarque. O Terceiro Reich está morrendo. Estes são o Quarto Reich. Livres da mediocridade e da corrupção. Estes são os Sonnenkinder[1]. Através do mundo.
- Os filhos...
- Os Filhos dos Condenados - disse o homem alto, interrompendo-o. - São os Filhos dos Condenados, como milhões serão. Mas não haverá outros como estes. E estes estarão por toda parte.

 

 


 

 


1

Janeiro de 197-

"Attention! Le train de sept heures à destination de Zurich partira du quai numéro 12.[2]"

O americano alto e embrulhado numa capa azul-escura estendeu os olhos pela cavernosa cúpula da estação ferroviária de Genebra, procurando os alto-falantes ocultos. A expressão do seu rosto enérgico e anguloso era de confusão. A comunicação era feita em francês, língua que ele falava mal e entendia ainda menos. Conseguira, entretanto, distinguir a palavra "Zurich". Era o seu sinal. Afastou os cabelos castanho-claros que lhe caíam com irritante insistência pela testa e se encaminhou para a parte norte da estação.

Havia muita gente. As pessoas passavam correndo pelo americano de um lado e de outro, ansiosas por chegar aos portões e tomar diferentes rumos. Nenhuma delas parecia dar qualquer atenção à ríspida comunicação que ressoava através dos pavimentos superiores, num tom contínuo, metálico e maquinal. Os viajantes da Bahnhof de Genebra sabiam para onde iam. Era um fim de semana. Tinha havido novas nevadas nas montanhas e o ar lá fora era cortante e frio. Havia lugares aonde ir, prazos a cumprir e gente para ver. Qualquer tempo perdido era tempo roubado. Todos tinham pressa.

O americano também estava com pressa, pois tinha como os outros um prazo a cumprir e uma pessoa para ver. Soubera antes de ouvir a comunicação pelo alto-falante que o trem de Zurique sairia da plataforma 12. De acordo com o plano, tinha de descer a rampa até a plataforma, contar sete vagões a começar do último e entrar pela primeira porta. Uma vez lá dentro, devia contar cinco compartimentos e bater duas vezes na quinta porta. Se tudo estivesse em ordem, a porta seria aberta por um diretor de La Grande Banque de Genève, e isso representaria o desfecho de doze semanas de preparativos. Os preparativos tinham compreendido telegramas propositadamente truncados, telefonemas transatlânticos feitos e recebidos em telefones que o banqueiro suíço tinha determinado que nada revelassem e um compromisso de segredo total.

Ele não sabia o que o diretor de La Grande Banque de Genève tinha para dizer-lhe, mas julgava saber por que tantas precauções tinham sido consideradas necessárias. O nome do americano era Noel Holcroft, mas este não era o nome com que nascera. Fora em Berlim que nascera, no verão de 1939, e o nome que constava dos registros da maternidade era "Clausen". O pai dele era Heinrich Clausen, grande estrategista do Terceiro Reich, o mago das finanças que operara a fusão de forças econômicas dispersas, assegurando assim a supremacia de Adolf Hitler.

Heinrich Clausen ganhou o país, mas perdeu a esposa. Althene Clausen era americana. Para caracterizá-la melhor, devia-se dizer que era uma mulher teimosa, com padrões pessoais de decência e moral. Ela chegou à conclusão de que os nacional-socialistas não possuíam nem uma coisa nem outra, não passando de um bando de paranoicos, sob as ordens de um maníaco e apoiados por financistas que só se interessavam por lucros.

Althene Clausen deu o ultimato ao marido numa tarde quente de agosto: "Afaste-se. Tome posição contra os paranoicos, antes que seja tarde demais". O nazista ouviu-a incredulamente e atribuiu o ultimato ao espírito conturbado de uma jovem mãe. Ou talvez visse em tudo a opinião absurda de uma mulher criada num regime fraco e desmoralizado, que em breve acompanharia o ritmo da Nova Ordem ou seria esmagado pela sua bota.

Naquela noite, a jovem mãe arrumou as malas e partiu para Londres com o filho num dos últimos aviões, completando a primeira etapa de sua viagem de volta aos Estados Unidos.

Uma semana depois, a Blitzkrieg era desfechada contra a Polônia. O Reich dos Mil Anos havia iniciado a sua jornada, que duraria mil e quinhentos dias a partir do primeiro tiro.

Holcroft entrou pelo portão, desceu a rampa e continuou pela longa plataforma cimentada. Quatro, cinco, seis, sete... O sétimo vagão tinha um pequeno círculo azul pintado abaixo da janela à esquerda da porta aberta. Era o símbolo de acomodações superiores às da primeira classe, com compartimentos mais amplos e especialmente preparados para conferências em trânsito ou para encontros clandestinos de natureza mais pessoal. O sigilo era assegurado. Logo que o trem estivesse em marcha, as portas do vagão, de um lado e do outro, eram protegidas por guardas armados.

Holcroft entrou e virou para a esquerda no corredor. Passou por várias portas fechadas até que chegou à quinta e bateu duas vezes.

- Herr Holcroft? - disse uma voz firme e tranquila do outro lado da porta, e, embora as duas palavras fossem uma pergunta, a inflexão fazia delas uma afirmação.

- Herr Manfredi? - replicou Noel, subitamente consciente de que o estavam observando pelo olho-mágico da porta.

Era um sentimento um pouco irreal, atenuado pelo aspecto cômico. Sorriu consigo mesmo e imaginou se Herr Manfredi não se pareceria com o sinistro Conrad Veidt num dos seus filmes ingleses da década de 30.

Houve dois estalos de um trinco, seguidos por um correr de ferrolhos. A porta se abriu e a imagem de Conrad Veidt se desvaneceu. Ernst Manfredi era um homem baixo e gordo que devia estar beirando os setenta anos. Era inteiramente calvo, tinha um rosto simpático, mas os grandes olhos azuis aumentados pelas lentes dos óculos eram frios. De um azul bem claro e bem frio.

- Entre, Herr Holcroft - disse Manfredi, sorrindo.

Mas a sua expressão mudou de repente e o sorriso desapareceu.

- Perdão. Devia ter dito Mister Holcroft. O Herr pode parecer-lhe ofensivo. Desculpe.

- Não é necessário pedir desculpas - disse Holcroft, entrando no compartimento.

Estava tudo muito bem arrumado. As paredes eram revestidas de madeira. Havia uma mesa, duas poltronas e nenhuma cama visível. Cortinas de veludo vermelho-escuro cobriam as janelas e amorteciam os rumores das pessoas que passavam do lado de fora. Na mesa, havia um pequeno abajur com franjas.

- Dispomos de vinte e cinco minutos até a partida do trem - disse o banqueiro. - Devem ser suficientes. Não se aflija, pois seremos avisados a tempo. Não terá de viajar para Zurique.

- Nunca estive lá.

- Espero que tudo esteja mudado - disse o banqueiro enigmaticamente, fazendo sinal a Holcroft para sentar-se na cadeira à frente dele.

- Não posso contar com isso - disse Noel, sentando-se e desabotoando a capa, mas sem tirá-la.

- Sinto muito que tenha havido presunção da minha parte - disse Manfredi, sentando-se e recostando-se na cadeira. - Mais uma vez, tenho de pedir-lhe desculpas. Vou precisar da sua identificação. Tenha a bondade de entregar-me seu passaporte e também sua carteira internacional de motorista. Quero também os documentos que tragam sinais físicos, atestados de vacina e assim por diante.

Holcroft sentiu um assomo de cólera. Além do contratempo que tudo aquilo representava em sua vida, não gostava do ar de superioridade e proteção assumido pelo banqueiro.

- Por que tenho de fazer isso? Sabe muito bem quem sou eu. Não teria aberto aquela porta se não soubesse. Deve ter mais fotografias minhas e mais informações a meu respeito do que o Departamento de Estado.

- Faça a vontade de um velho, meu amigo - disse o banqueiro, encolhendo os ombros e pondo em ação a sua simpatia pessoal. - Tudo lhe será esclarecido.

Noel, com evidente má vontade, meteu a mão no bolso do paletó e tirou a carteira de couro que continha o seu passaporte, o atestado de saúde, a carteira internacional de motorista e duas cartas do Instituto Americano de Arquitetos, que relacionavam as suas qualificações como arquiteto. Entregou a carteira a Manfredi.

- Está tudo aí. Sirva-se.

Com relutância aparentemente maior, o banqueiro abriu a carteira.

- Sinto-me como se estivesse bisbilhotando, mas creio...

- Fique à vontade - disse Holcroft. - Não solicitei este encontro. Para dizer a verdade, isto ocorre numa ocasião muito inoportuna. Gostaria de voltar para Nova York o mais depressa possível.

- Compreendo - disse o suíço calmamente, examinando os documentos. - Escute, qual foi o primeiro trabalho de arquitetura que executou fora dos Estados Unidos?

Noel dominou a sua irritação. Tinha ido tão longe que pouco adiantava negar-se a responder.

- No México. Para a cadeia de hotéis Álvarez, ao norte de Puerto Vallarta.

- E o segundo?

- Em Costa Rica. Para o governo. Um edifício dos Correios, em 1973.

- Qual foi a renda bruta de sua firma em Nova York no ano passado? Sem ajustamentos.

- Não é da sua conta.

- Pode ficar certo de que sabemos.

Holcroft sacudiu a cabeça numa resignação zangada.

- Cento e setenta e três mil dólares e alguns quebrados.

- Deduzindo os aluguéis dos escritórios, os salários, o material e as despesas gerais, esse total não é muito impressionante, não acha? - perguntou Manfredi, ainda com os papéis nas mãos.

- A companhia é minha e o pessoal é pequeno. Não tenho sócios, nem esposa, nem dívidas pesadas. Podia ser muito pior.

- Podia ser muito melhor, especialmente nas mãos de um homem de talento.

- Sim, podia ser muito melhor.

- É o que acho - disse o banqueiro, guardando os papéis na carteira e devolvendo-os a Holcroft. Curvou-se para a frente e perguntou: - Sabe quem foi seu pai?

- Sei quem é meu pai. Legalmente, é Richard Holcroft, de Nova York, o marido de minha mãe. E está muito vivo.

- E aposentado - completou Manfredi. - Um banqueiro como eu; mas não se pode dizer que fosse um banqueiro dentro da tradição suíça.

- Foi respeitado e continua a ser.

- Graças ao dinheiro da família ou à sua competência profissional?

- Por ambas as coisas. Quero muito bem a ele, e, se tem reservas, pode ficar calado.

- É muito leal. É uma qualidade que admiro, a lealdade. Holcroft apareceu quando sua mãe, que é uma mulher notável, sem dúvida, estava muito deprimida. Mas não discutamos essas coisas. Não é de Holcroft que estou falando, mas de seu pai natural.

- É evidente.

- Há trinta anos, Heinrich Clausen tomou certas providências. Viajou muito entre Berlim, Zurique e Genebra, sem supervisão oficial, é claro. Foi preparado então um documento a que nós - Manfredi fez uma pausa e sorriu -, como neutros parciais, não nos poderíamos opor. Anexa ao documento, há uma carta escrita por Clausen em abril de 1945. Essa carta lhe é dirigida, como filho dele.

O banqueiro estendeu a mão para um grande envelope em cima da mesa.

- Um momento - disse Holcroft. - Essas providências envolviam questões de dinheiro?

- Sem dúvida.

- Não me interessa. Distribua o dinheiro em esmolas.

- Pode não pensar assim depois que souber o total.

- Qual é ele?

- Setecentos e oitenta milhões de dólares.


2

Holcroft, subitamente muito pálido, olhou para o banqueiro. Lá fora, os rumores da grande estação eram uma cacofonia de acordes abafados, que mal penetravam as espessas paredes do vagão.

- Não tente absorver tudo de vez - disse Manfredi, colocando a carta de lado. - É claro que há condições, mas nenhuma delas é proibitiva, tanto quanto sabemos.

- Condições? - exclamou Holcroft, procurando recuperar a voz. - Que condições são essas?

- Estão expostas com muita clareza. Essa vasta quantia deverá ser empregada para o bem de pessoas em toda parte. É claro que há certos benefícios para você, pessoalmente.

- Por que foi que disse que nada havia de proibitivo, tanto quanto sabia?

O banqueiro desviou os olhos com a expressão um pouco perturbada. Abriu a sua pasta de couro marrom que estava num canto da mesa e tirou dela um envelope comprido e fino com algumas marcas muito curiosas nas costas. Eram quatro círculos que pareciam moedas escuras coladas no fecho do envelope. Manfredi estendeu o envelope sobre a mesa até a luz do abajur incidir sobre ele. Os círculos escuros não eram moedas, mas selos de lacre. Estavam todos intactos.

- Seguindo as instruções que nos foram dadas há trinta anos, este envelope, ao contrário da carta de seu pai, não devia ser aberto pelos nossos diretores em Genebra. É separado do documento que preparamos e, ao que sabemos, Clausen nunca teve conhecimento dele. As próprias palavras dele a você devem confirmar isso. Foi-nos entregue horas depois que o correio nos trouxe a carta de seu pai, que foi a nossa última comunicação com Berlim.

- Que é isso?

- Não sabemos. Disseram-nos que foi escrito por vários homens a par das atividades de seu pai, que acreditavam fervorosamente na causa dele e o consideravam em muitos sentidos um verdadeiro mártir da Alemanha. Recebemos instruções para entregar-lhe o envelope com os selos intactos. Deve ler o que está no envelope antes de ler a carta de seu pai. Há algumas palavras em alemão escritas na frente do envelope. Terá de assinar seu nome embaixo para declarar que recebeu o envelope em perfeitas condições.

Noel pegou o envelope e leu as palavras que não podia compreender.

"DIESER BRIEF IST MIT UNGEBROCHENEM SIEGEL

EMPFANGEN WORDEN. NEUAUFBAU ODER TOD."

- Que quer dizer isso?

- Que você examinou os selos e está satisfeito.

- Como posso saber disso?

- Meu caro, está falando com um diretor de La Grande Banque de Genève. - O suíço não elevou a voz, mas a censura foi clara. - Dou-lhe minha palavra. E, de qualquer maneira, que diferença faz?

Nenhuma, pensou Holcroft, mas havia ainda uma pergunta óbvia.

- Se eu assinar o envelope, que é que vai fazer com ele?

Manfredi ficou em silêncio durante alguns minutos, pensando na resposta. Tirou os óculos, pegou um lenço de seda no bolso do paletó e limpou cuidadosamente as lentes. Respondeu por fim:

- Trata-se de informação privilegiada...

- Minha assinatura também é privilegiada - disse Noel.

- Deixe-me acabar - disse o banqueiro, colocando novamente os óculos. - Trata-se de informação privilegiada, mas que talvez não tenha mais importância depois de tantos anos. O envelope deverá ser enviado à agência postal de Sesimbra, em Portugal. É uma localidade ao sul de Lisboa, no cabo Espichel.

- Acha que não tem mais importância?

- Talvez as pessoas que deviam receber o envelope não existam mais. Nesse caso, ao fim de algum tempo, o envelope nos será devolvido.

- Tem certeza?

- Pelo menos, creio que sim.

Noel tirou a caneta do bolso e virou o envelope ainda uma vez para examinar os lacres. Estavam intactos, mas, ainda assim, que importância tinha isso? Tornou a virar o envelope e assinou o nome.

Manfredi levantou a mão.

- Deve compreender que seja o que for que estiver nesse envelope não pode ter relação alguma com a nossa participação no documento preparado por La Grande Banque de Genève. Não fomos consultados e não fazemos a menor ideia do seu conteúdo.

- Parece preocupado. Entretanto, disse que não fazia a menor diferença, pois tudo isso aconteceu há muito tempo.

- Os fanáticos sempre me preocupam, Mr. Holcroft. O tempo e as circunstâncias não podem alterar essa opinião. É uma precaução de banqueiro.

Noel começou a quebrar os lacres. Tinham-se endurecido com os anos e foi preciso empregar um pouco de força para fazê-los cair. Por fim, abriu o envelope e tirou a folha de papel que estava lá dentro.

O papel estava frágil e amarelado com a idade. Era escrito em inglês, mas numa caligrafia que lembrava o velho estilo do gótico alemão. A tinta estava descorada, mas o documento era legível. Holcroft procurou uma assinatura e não encontrou. Começou a ler.

Era um documento macabro, nascido do desespero trinta anos antes. Parecia que alguns homens desequilibrados se haviam reunido numa sala escura, procurando sombras nas paredes como se fossem sinais do futuro e examinando um homem e uma vida que ainda não tinham adquirido forma.

Dizia a carta:

"A partir deste momento, o filho de Heinrich Clausen passará a ser experimentado. Há em Genebra quem possa saber da obra e tente detê-lo, quem tenha como objetivo único na vida matá-lo e assim destruir o sonho concebido pelo gigante que era o pai dele.

Isso não deve acontecer, pois que fomos traídos, todos nós, e o mundo tem de saber quem realmente éramos e não como os traidores nos apresentaram, retratando-nos como traidores que nunca fomos, especialmente Heinrich Clausen.

Somos os sobreviventes da Wolfsschanze. Aspiramos à reabilitação dos nossos nomes, à recuperação da honra que nos foi roubada.

Por isso, os homens da Wolfsschanze protegerão o filho enquanto o filho lutar pelo sonho do pai e pela restauração de nossa honra. Mas se o filho abandonar o sonho, trair e negar a nossa honra, não terá vida. Assistirá à angústia dos entes amados, de parentes, filhos e amigos. Ninguém será poupado.

Ninguém deve interferir. Que seja devolvida a nossa honra. É nosso direito e nós o exigimos."

Noel empurrou a cadeira para trás e levantou-se.

- Que quer dizer isso?

- Não faço a menor ideia - disse Manfredi com voz calma, mas revelando nos frios olhos azuis o alarma que sentia. - Como lhe disse, nada nos comunicaram...

- Receba então a comunicação! Leia isto! Quem são esses homens? Um punhado de dementes?

O banqueiro começou a ler. Sem tirar os olhos do papel, disse com voz suave:

- Quase dementes, homens que perderam a esperança...

- Que é Wolfsschanze? Que significa isso?

- Era o nome do posto de comando do estado-maior de Hitler, na Prússia Oriental, onde houve a tentativa de assassinato dele. Foi uma conspiração de generais. Von Stauffenberg, Kluge, Höpner estavam todos implicados e foram fuzilados. Rommel se suicidou.

- Acha então que esse papel foi escrito há trinta anos por gente assim?

O banqueiro assentiu, mas arregalou os olhos de espanto.

- Sim, mas não é essa a linguagem que se poderia esperar dessa gente. Trata-se a rigor de uma ameaça absurda. E aqueles homens não eram absurdos, embora os tempos em que viviam o fossem. Eram homens corretos e bravos que foram forçados a ultrapassar os parâmetros do senso comum. Viviam num inferno que nenhum de nós pode sequer compreender hoje.

- Acha mesmo que eram homens corretos?

- Tem porventura uma noção do que era fazer parte de uma conspiração como a da Wolfsschanze? Houve depois extenso morticínio e milhares de homens foram massacrados em toda parte, sem que a grande maioria jamais tivesse ouvido falar na Wolfsschanze. Foi outra solução definitiva, como a dos judeus, um pretexto para eliminar toda a dissidência dentro da Alemanha. O que começou como uma tentativa de livrar o mundo de um alucinado terminou num holocausto. Os sobreviventes da Wolfsschanze viram tudo isso acontecer.

- Esses sobreviventes foram por muito tempo partidários do alucinado - disse Holcroft.

- É preciso compreender. Esses homens estavam desesperados. Viam-se colhidos numa armadilha que julgavam catastrófica. Tinham ajudado a criar um mundo que se revelava muito diferente daquele que haviam imaginado. Tiveram conhecimento de horrores que nunca tinham julgado possíveis e sentiam a sua responsabilidade. Estavam apavorados com o que viam, embora não pudessem negar a participação que tinham tido na origem dos crimes.

- Os nazistas bem-intencionados - murmurou Noel. - Já ouvi falar nessa raça difícil de se encontrar.

- Seria preciso, para compreender, recuar um pouco na história e estudar o desastre econômico, o Tratado de Versalhes, o Pacto de Locarno, as incursões dos bolchevistas e muitas outras forças.

- Mas posso compreender o que acabei de ler! Os seus pobres nazistas não hesitaram em ameaçar alguém a quem não conheciam, dizendo que ninguém seria poupado, nem parentes, nem amigos. Para mim, o nome disso é crime. Não me venha falar em assassinos bem-intencionados.

- Foram palavras de homens velhos, aflitos e desiludidos. Não têm mais sentido. Foi o meio que encontraram de exprimir a sua angústia e de procurar expiação. Já desapareceram. Deixe-os em paz. Leia a carta de seu pai...

- Ele não é meu pai!

- Leia a carta de Heinrich Clausen. Leia e as coisas se tornarão mais claras. Mas leia logo. Temos muita coisa que discutir e há muito pouco tempo.

Um homem com um sobretudo marrom de tweed e um chapéu tirolês escuro estava junto a uma coluna em frente ao sétimo vagão. À primeira vista, nada havia nele de característico, salvo talvez as sobrancelhas. Eram bem espessas e pareciam duas arcadas grisalhas na parte superior de um rosto indistinto.

Isso à primeira vista. Mas quem olhasse com mais atenção veria nele as feições simples mas não sem finura de um homem determinado. Não pestanejava, apesar das rajadas de vento que sopravam na plataforma. A sua concentração no sétimo vagão era absoluta.

Segundo pensava o homem junto à coluna, o americano sairia por aquela porta como um homem muito diferente daquele que ali havia entrado. Durante os últimos minutos, a vida dele mudara de tal maneira como a bem poucos homens no mundo era dado experimentar. Entretanto, estava apenas no início da jornada que ia empreender e que estava muito além de tudo o que o mundo atual pudesse conceber. Por isso, era muito importante observar a sua reação inicial. Não apenas importante, mas vital.

"Attention! Le train de sept heures..."

A comunicação final se fez ouvir pelos alto-falantes. Ao mesmo tempo, um trem procedente de Lausanne estava chegando à linha ao lado. Daí a momentos, a plataforma estaria repleta de turistas que iam passar o fim de semana em Genebra.

O trem parou, os passageiros começaram a desembarcar e a estação regurgitou de novo de gente.

O vulto do americano alto apareceu de repente na entrada do sétimo vagão. A sua saída pela porta foi bloqueada por um empregado que chegava com algumas bagagens. Era um momento desagradável que poderia ter provocado uma troca de palavras em condições normais. Mas as condições não eram normais para Holcroft. Não externou qualquer aborrecimento. O seu rosto estava impassível e não esboçou a menor reação. Os olhos mostravam conhecimento da confusão à sua volta, mas sem preocupação. Havia nele um ar de alheamento que o mostrava ainda tomado de prolongado espanto. Isso era revelado no modo como apertava contra o peito o grosso envelope, com a mão curvada sobre a borda e os dedos apertando o papel com tanta força que o punho estava cerrado.

Aquele documento preparado havia tanto tempo era a causa da sua preocupação. Era o milagre que tinham esperado e pelo qual tinham vivido o homem da coluna e os que o haviam antecedido. Mais de trinta anos de espera. E, naquele momento, tudo subia afinal à tona.

Começara a jornada.

Holcroft misturou-se à multidão e tomou o caminho para o portão de saída. Embora levasse encontrões dos que o cercavam, a nada prestava atenção, com os olhos fitos em frente, sem ver coisa alguma.

De repente, o homem da coluna ficou alarmado. Anos de preparação lhe haviam ensinado a atentar para o inesperado, para o desvio infinitesimal de um padrão comum. Viu esse desvio naquele momento. Dois homens, com os rostos sérios, diferentes de todos em volta, sem curiosidade ou expectativa, tinham entretanto uma intenção hostil.

Estavam abrindo caminho por entre a multidão, um deles um pouco à frente do outro. Não perdiam de vista o americano. Estavam no encalço dele! O homem que ia à frente tinha a mão direita metida dentro do bolso. O que vinha atrás levava a mão esquerda escondida por baixo do sobretudo desabotoado, à altura do peito. Tinham armas naquelas mãos ocultas! O homem da coluna não tinha a menor dúvida a esse respeito.

Saiu de onde estava e também foi abrindo caminho por entre a multidão. Não podia perder nem um segundo. Os homens estavam se aproximando de Holcroft. Queriam o envelope! Era a única explicação possível. E, se fosse esse o caso, era evidente que a notícia do milagre tinha transpirado de Genebra. O documento dentro daquele envelope era precioso, inestimável mesmo. Comparada com ele, a vida do americano era de tamanha inconsequência que ninguém iria pensar em matá-lo. Os homens que se aproximavam de Holcroft poderiam matá-lo sem querer, como se mata um inseto pousado numa barra de ouro. O que eles não sabiam era que sem o filho de Heinrich Clausen o milagre não se produziria!

Estavam já a alguns metros dele! O homem das sobrancelhas grisalhas passou por entre os turistas como um animal enfurecido. Esbarrou em pessoas e bagagens, jogou para o lado tudo e todos os que lhe tomavam a frente. Quando estava a poucos passos do assaltante que tinha a mão escondida embaixo do sobretudo, levou a mão ao bolso, agarrando a pistola que estava lá, e gritou diretamente para o assaltante:

- Du suchst Clausen Sohn! Das Genfe Dokument![3]

O assassino estava quase no alto da rampa, separado do americano por algumas pessoas apenas. Ouviu as palavras que lhe eram gritadas por um desconhecido e se voltou, com os olhos espantados.

A multidão fazia pressão na subida da rampa, contornando os óbvios antagonistas. Atacante e protetor estavam agora na sua arena em miniatura, de frente um para o outro. O observador apertou duas vezes o gatilho da pistola que tinha no bolso. Os tiros mal foram ouvidos, abafados pelo pano do sobretudo. Duas balas penetraram no corpo do homem que ia assaltar Holcroft, uma na base do estômago, outra muito mais acima, no pescoço. O primeiro fê-lo cair de bruços numa convulsão; o segundo lhe jogou a cabeça para trás, com o pescoço estraçalhado.

O sangue jorrava do pescoço com tamanha força que borrifou os rostos das pessoas próximas e as roupas e malas dessas pessoas. A rampa se encheu de gritos de horror.

O observador-protetor sentiu que o agarravam pelo ombro, com dedos que se cravavam na sua carne. Voltou-se e viu à sua frente o outro assaltante. Não havia pistola em suas mãos, mas a lâmina de uma faca de caça era brandida contra ele.

O homem julgou o outro um amador quando as suas reações instintivas, resultantes de muitos anos de treinamento, entraram em jogo. Deu um pulo rápido para o lado, como um toureiro que se esquiva dos chifres de um touro, e fechou a mão esquerda acima do pulso do assaltante. Tirou a mão direita do bolso e agarrou os dedos crispados no cabo da faca. Dobrou o pulso do outro para baixo, prendendo os dedos em torno do cabo, despedaçando as cartilagens da mão do assaltante e forçando a lâmina para dentro. Fê-la mergulhar nos tecidos moles do estômago e subir em diagonal até a caixa torácica, cortando as artérias do coração. O rosto do homem se contorceu e um terrível grito de agonia começou, cortado pela morte.

A confusão dentro da estação havia degenerado num pandemônio, em que quase todos gritavam e corriam. A profusão de sangue no centro da correria agravava o nervosismo. O observador-protetor sabia muito bem o que tinha de fazer. Abriu os braços em consternação apavorada, exprimiu todo o horror que sentia de ver as suas roupas ensanguentadas e saiu correndo com a multidão alarmada para bem longe do local do morticínio.

Correu pela rampa e passou pelo americano cuja vida acabava de salvar.

Holcroft tinha ouvido os gritos. Penetraram a névoa que lhe envolvia o espírito, toldando a visão e inibindo os pensamentos.

Tentou voltar para o centro da agitação, mas a multidão que vinha correndo lhe tomou a frente. Foi arrastado pela rampa, indo bater numa mureta de cerca de um metro de altura que servia de amurada à rampa. Agarrou-se à mureta e olhou para trás, sem poder ver claramente o que estava acontecendo. Viu mais abaixo um homem caído, com o sangue a jorrar-lhe do pescoço. Havia outro homem caído, com a boca deformada pela agonia. Não pôde ver mais, desde que a pressão do povo que subia o arrastou para o alto da rampa.

Um homem passou correndo e lhe roçou os ombros. Holcroft encarou-o e viu dois olhos apavorados sob sobrancelhas grisalhas.

Tinha havido um ato de violência. Uma tentativa de roubo se havia transformado em assalto e morte. A pacífica Genebra não estava mais imune à violência. Era como as ruas perigosas de Nova York à noite ou como as vielas pobres de Marrakech.

Mas Noel não queria pensar nessas coisas. Não podia envolver-se nelas. Tinha muito em que pensar. A névoa de entorpecimento voltou. Dentro dela, compreendeu vagamente que sua vida nunca mais seria a mesma.

Agarrou com mais força o envelope e correu com a multidão que gritava para o portão de saída.


3

O grande avião sobrevoou a ilha do Cabo Bretão e inclinou a asa um pouco para a esquerda, descendo para nova altitude e novo rumo. A sua rota agora era para o sudoeste, na direção de Halifax, Boston e depois Nova York.

Holcroft havia passado a maior parte da viagem na saleta de cima, sentado numa poltrona no canto direito, com a sua pasta preta encostada à parede. Era mais fácil concentrar-se ali. Um passageiro vizinho não poderia voltar os olhos curiosos para os papéis que ele lia e relia incessantemente.

Começara pela carta de Heinrich Clausen, presença desconhecida mas dominante. A carta era por si só um documento inacreditável. A informação nela contida era tão alarmante que Manfredi, como porta-voz de todos os diretores do banco, externara o desejo de que fosse destruída. Ela descrevia de uma maneira geral as fontes dos milhões depositados nos bancos de Genebra trinta anos antes. Embora na sua maioria essas fontes fossem intocáveis - pois ladrões e assassinos haviam roubado os fundos nacionais de um governo dirigido por ladrões e assassinos -, outras fontes não eram tão imunes assim a uma investigação moderna. Durante a guerra, a Alemanha havia saqueado. Roubara interna e externamente. Os dissidentes internos tinham sido despojados. Os conquistados externamente tinham sido pilhados impiedosamente. Se a lembrança desses roubos fosse desencavada, a Corte Internacional de Haia poderia bloquear os fundos anos e anos em prolongados litígios.

"Destrua a carta", havia-lhe dito Manfredi em Genebra. "É preciso apenas que compreenda por que ele fez o que fez. Não dê atenção aos métodos; representam uma complicação sem qualquer solução visível. Mas haverá quem tente detê-lo. Outros ladrões devem entrar em ação. Estamos diante de centenas de milhões."

Noel releu a carta umas vinte vezes. De cada vez, procurava imaginar o homem que a escrevera, que era seu pai natural. Não tinha ideia da aparência física de Heinrich Clausen. Sua mãe destruíra todas as fotografias, todas as comunicações, todas as referências possíveis ao homem a quem odiava com todo o seu ser.

A carta dizia:

"Berlim, 20 de abril de 1945.

Meu filho:

Escrevo esta carta no momento em que os exércitos do Reich se desagregam em todas as frentes. Berlim cairá dentro em breve e será uma cidade cheia de incêndios e morte por toda parte. Que seja. Não vou perder tempo com o que era ou com o que poderia ter sido. Não vou falar de ideais traídos e do triunfo do mal sobre o bem por meio da traição de chefes moralmente falidos. As recriminações que nascem no inferno são suspeitas, pois podem ser facilmente atribuídas ao Diabo.

Ao invés disso, deixarei que meus atos falem por mim. Neles, poderá encontrar algum vislumbre de orgulho. É essa a minha prece.

É preciso corrigir. Essa é a convicção de que cheguei a me imbuir. O mesmo acontece com os dois caros amigos e companheiros cujos nomes são identificados no documento anexo. É preciso corrigir a destruição que fizemos, pois traições tão odiosas o mundo nunca as esquecerá. Ou perdoará. Foi com vistas a um perdão parcial que fizemos o que fizemos.

Há cinco anos, sua mãe tomou uma decisão que eu não pude compreender, cego como estava pela minha lealdade à Nova Ordem. Há dois invernos - em fevereiro de 1943 - as palavras que ela proferiu em cólera e que eu arrogantemente repeli como mentiras infundidas nela pelos que desprezavam minha pátria se me revelaram como verdadeiras. Nós, que trabalhávamos nos círculos rarefeitos das finanças e da política, tínhamos sido enganados. Há dois anos, era claro que a Alemanha se encaminhava para a derrota. Dizíamos o contrário, mas no fundo do coração sabíamos que a verdade era essa. Outros também sabiam disso. Tornaram-se descuidados. Os horrores subiram à superfície e os enganos ficaram visíveis.

Há vinte e cinco meses, elaborei um plano e consegui o apoio de meus caros amigos no Ministério das Finanças. Esse apoio foi dado voluntariamente. O nosso objetivo era desviar somas imensas de dinheiro para a Suíça neutra. Esses fundos poderiam ser utilizados um dia para ajudar e socorrer milhares de pessoas cujas vidas tinham sido despedaçadas em nome da Alemanha por animais que nada sabiam da honra alemã.

Temos agora conhecimento dos campos. Os seus nomes pairarão sinistramente na história: Belsen, Dachau, Auschwitz.

Sabemos das execuções em massa, dos homens, mulheres e crianças indefesos, alinhados em frente a valas abertas com as suas próprias mãos e massacrados.

Ficamos sabendo dos fornos crematórios - santo Deus! - para seres humanos, dos banheiros que expeliam não água para lavar mas gases mortíferos, das experiências intoleráveis e imorais cometidas em seres humanos conscientes pelos praticantes dementes de uma ciência médica desconhecida pelos homens. Sentimos o coração sangrar diante das imagens e os olhos se dilatarem, mas as nossas lágrimas nada podem fazer. Nossos espíritos não são, porém, tão impotentes assim. Podemos fazer planos.

É preciso reparar os erros cometidos.

Não podemos restaurar a vida. Não podemos trazer de volta o que foi tão brutal e criminosamente tirado. Mas podemos procurar todos os que sobreviveram e os filhos tanto dos sobreviventes quanto dos massacrados e fazer o que for possível. Devem ser procurados através do mundo e ficar sabendo que nós não esquecemos. Sentimos vergonha e queremos ajudá-los de qualquer maneira viável. Foi por isso que fizemos o que fizemos.

Não acredito nem por um momento que esses atos possam ser uma expiação dos nossos pecados, desses crimes de que participamos inconscientemente. Mas podemos fazer o que for possível. Eu pelo menos faço o possível, guiado a cada momento pelas percepções de sua mãe. Por que, meu Deus, não ouvi aquela mulher grande e boa?

Mas voltemos ao plano.

Usando o dólar americano como unidade cambial equivalente, pretendíamos remeter dez milhões por mês, importância que pode parecer excessiva, mas não é quando se leva em consideração o fluxo de capital através do labirinto econômico do Ministério das Finanças no auge da guerra.

Usando o Ministério das Finanças, apropriamo-nos de fundos de uma centena de fontes dentro do Reich e em grande extensão no exterior, graças às fronteiras em constante expansão da Alemanha. Impostos foram desviados, assim como enormes despesas do Ministério dos Armamentos, para compras inexistentes; folhas de pagamentos da Wehrmacht foram manipuladas e o dinheiro remetido dos territórios ocupados foi constantemente interceptado. Os fundos provenientes de propriedades desapropriadas e das grandes fortunas, fábricas e companhias foram encaminhados não para os cofres do Reich, mas para as nossas contas. As vendas de objetos de arte em dezenas de museus nas terras conquistadas foram convertidas em dinheiro para a nossa causa. Foi um plano magistral executado magistralmente. Fossem quais fossem os riscos que assumíssemos e os terrores que enfrentávamos todos os dias, não tinham importância em comparação com a nossa convicção de que tudo tinha de ser reparado.

Entretanto, nenhum plano pode ser considerado bem-sucedido enquanto o seu objetivo não estiver permanentemente assegurado. Uma estratégia militar que capture um porto e o perca um dia depois em consequência de um ataque marítimo não é absolutamente uma estratégia. Cumpre considerar todos os assaltos possíveis, todas as interferências capazes de anular a estratégia. É preciso projetar, tão profundamente quanto os cálculos o permitirem, as mudanças produzidas pelo tempo e proteger o objetivo até essa altura atingido. Em resumo, deve-se usar o tempo a favor da estratégia. Foi o que tentamos fazer com as condições expostas no documento anexo.

Se Deus quisesse, poderíamos ajudar as vítimas e seus sobreviventes antes do tempo previsto em nossos cálculos, mas, se isso acontecesse, chamaríamos a atenção para as quantias de que nos apropriamos. E tudo poderia estar perdido. Deve passar o tempo de pelo menos uma geração para que a estratégia tenha êxito. Ainda que haja risco, este deve ter diminuído consideravelmente.

As sirenas que anunciam os ataques aéreos uivam sem cessar. Isso e tudo o mais mostram que nos resta muito pouco tempo. Eu e meus companheiros esperamos apenas a confirmação de que esta carta chegou a Zurique por intermédio de um correio clandestino. Logo que tivermos essa confirmação, poremos em ação o nosso pacto com a morte, cada qual por suas próprias mãos.

Atenda à minha súplica. Ajude-nos a fazer as reparações necessárias. É preciso reabilitar-nos.

É esse o nosso pacto, meu filho, meu filho único, a quem não cheguei a conhecer, mas a quem dei tanta tristeza. Faça o que lhe rogo e cumpra o pacto, pois é uma coisa honrosa o que lhe estou pedindo.

Seu pai,

Heinrich Clausen."

Holcroft colocou a carta virada para baixo sobre a mesa e olhou pela janela para o céu azul acima das nuvens. Ao longe, via-se a descarga de outro avião. Seguiu o rastro de vapor até ver o breve brilho prateado da fuselagem.

Pensou mais uma vez na carta. Era sentimental, antiquada, melodramática. Isso, porém, em lugar de enfraquecer a carta, dava-lhe algum poder de convicção. A sinceridade de Clausen era indiscutível e as suas emoções, genuínas.

O que apenas parcialmente se revelava, apesar de tudo, era o brilho do próprio plano. Era brilhante na sua simplicidade, excepcional no uso que fazia do tempo e das leis das finanças para assegurar não só a execução mas também a proteção. Os três homens haviam compreendido que somas tão vultosas como as que haviam roubado não podiam ser jogadas no fundo de um lago ou escondidas num subterrâneo. As centenas de milhões tinham de existir no mercado financeiro, livres das flutuações da moeda e dos corretores que teriam de converter e vender títulos incertos.

O dinheiro em espécie tinha de ser depositado e a responsabilidade pela sua segurança confiada a uma das mais conceituadas instituições do mundo, La Grande Banque de Genève. Era uma instituição que não permitiria o menor deslize em questões de liquidez; tratava-se de uma fortaleza econômica internacional. Todas as condições dos seus contratos com os seus depositantes seriam cumpridas. Tudo seria legal aos olhos das leis suíças. Em sigilo, conforme o costume bancário, mas intransigentemente em relação às leis existentes e, portanto, de acordo com a época. A intenção do contrato - o documento - não podia ser deturpada; os seus objetivos seriam cumpridos à risca.

Permitir qualquer espécie de deturpação ou incorreção era coisa em que não se podia nem pensar. Trinta anos, cinquenta anos no calendário financeiro eram na verdade bem pouco.

Noel abriu a sua pasta. Guardou a carta num dos compartimentos e pegou os documentos de La Grande Banque de Genève. Estava tudo encadernado numa capa de couro, como se costumava fazer com os testamentos, e aquilo, de certo modo, era um testamento. Recostou-se na cadeira e abriu o fecho.

Era o "pacto", refletiu Holcroft.

Correu os olhos pelos parágrafos que já conhecia tão bem. Queria concentrar-se nos pontos essenciais.

Os dois companheiros de Clausen no roubo colossal eram Erich Kessler e Wilhelm von Tiebolt. Os nomes eram importantes, não apenas para identificar os dois homens, mas para procurar o filho mais velho de cada um deles. Era a primeira condição do documento. Embora o titular expressamente designado da conta numerada fosse Noel C. Holcroft, americano, os fundos só poderiam ser liberados mediante a assinatura dos três filhos mais velhos. Ainda assim, cada um desses filhos devia declarar aos diretores do banco que aceitava as condições e os objetivos estabelecidos pelos proprietários originais relativamente à aplicação dos fundos da conta.

Entretanto, se esses descendentes não satisfizessem aos diretores suíços ou fossem julgados incompetentes, seus irmãos ou irmãs seriam examinados, fazendo-se novos julgamentos. Se todos os filhos fossem considerados incompetentes e incapazes de assumir a responsabilidade, os milhões da conta esperariam outra geração, quando novas instruções lacradas seriam abertas pelos executores e por descendentes que ainda não tinham nascido. A solução iria passar por outra geração.

"O filho legítimo de Heinrich Clausen é agora chamado de Noel Holcroft, americano, que vive com a mãe e o padrasto nos Estados Unidos. Em data a ser determinada pelos diretores de La Grande Banque de Genève, no mínimo dentro de trinta anos e no máximo dentro de trinta e cinco anos, o dito filho legítimo de Heinrich Clausen deve ser procurado, tomando então conhecimento das suas responsabilidades. Deverá ele então procurar os coerdeiros e movimentar a conta de acordo com as condições estabelecidas. Ele deverá ser o intermediário para a distribuição dos fundos às vítimas do holocausto e aos seus descendentes sobreviventes."

Os três alemães davam as suas razões para a escolha do filho de Clausen como intermediário. O menino fazia parte de uma família americana rica e prestigiosa, acima de qualquer suspeita. Todos os vestígios do primeiro casamento e da fuga de sua mãe da Alemanha tinham sido quase apagados pela dedicação de Richard Holcroft. Sabia-se que entre as coisas que fizera estava um atestado de óbito emitido em Londres no dia 17 de fevereiro de 1942, em nome de um menino chamado Clausen, e que um registro de nascimento fora feito posteriormente em Nova York em nome de um menino chamado Holcroft. Com o correr dos anos, esses fatos seriam ainda mais apagados. O menino Clausen tornar-se-ia o homem Holcroft, sem qualquer relação visível com as suas origens. Contudo, essas origens não podiam ser negadas e isso fazia dele o homem perfeito, em condições de satisfazer tanto às exigências quanto aos objetivos do documento.

Seria criada em Zurique uma organização internacional, que serviria de centro para a distribuição dos fundos, cujas fontes seriam mantidas perpetuamente em sigilo. Se houvesse necessidade de um porta-voz da organização, este seria o americano Holcroft, pois os outros nunca poderiam ser mencionados nominalmente. Eram filhos de antigos nazistas e, se os seus nomes fossem revelados, isso determinaria inevitavelmente exigências de um exame da conta e de apuração das suas várias fontes. E, se a conta fosse examinada e houvesse ao menos uma suspeita a respeito de suas fontes, haveria quem se lembrasse de velhos confiscos e desapropriações. Seguir-se-iam inúmeras demandas nos tribunais internacionais.

Mas, se o porta-voz fosse um homem que não pudesse ser acusado de origens nazistas, não haveria motivos para alarmas e não se verificariam exames, exumações ou demandas. Ele agiria de acordo com os outros descendentes. Cada qual teria direito a um voto em todas as decisões, mas só ele apareceria à frente de tudo. Os filhos de Erich Kessler e de Wilhelm von Tiebolt permaneceriam anônimos.

Noel pensou em quem seriam os filhos de Kessler e Von Tiebolt. Dentro em breve, iria saber.

As conclusões do documento não eram menos espantosas do que tudo que as precedia. Todas as quantias deviam ser distribuídas dentro do prazo de seis meses a partir da liberação da conta. Essa imposição exigiria a atividade total dos descendentes, e era isso mesmo o que os depositantes desejavam: adesão total à causa. Haveria necessidade de uma interrupção da vida normal de cada um e seria imperioso fazer sacrifícios. Mas esses encargos seriam pagos. Para isso, ao fim do período de seis meses e da bem-sucedida distribuição dos fundos às vítimas do holocausto, a agência de Zurique seria dissolvida e cada descendente receberia a importância de dois milhões de dólares.

Seis meses. Dois milhões de dólares.

Dois milhões.

Noel pensou no que isso representaria para ele pessoal e profissionalmente. Era a liberdade. Manfredi tinha dito em Genebra que ele era um homem de talento. Acreditava que isso era verdade, mas julgava que muitas vezes o seu talento era relegado a segundo plano. Tinha de aceitar projetos que preferiria recusar, tinha de transigir com plantas que o seu senso arquitetônico repelia e recusava trabalhos pelos quais sentia entusiasmo porque as pressões financeiras lhe ocupavam todo o tempo com realizações menores. Estava se tornando um homem sem consciência.

Nada era permanente. Obras planejadas para durar pouco sofriam as pressões da depreciação e das exigências monetárias. Ninguém sabia mais disso do que um arquiteto que outrora tivera ideais. Talvez pudesse recuperar a consciência e os ideais com a sua liberdade, graças aos dois milhões de dólares.

Holcroft se admirou com a progressão de seus pensamentos. Já havia decidido, coisa que ele só pretendia fazer depois de ter estudado a fundo todas as coisas. Apesar disso, já estava recuperando a sua consciência profissional com um dinheiro que pensara a princípio poder rejeitar.

Como seriam os filhos mais velhos de Erich Kessler e de Wilhelm von Tiebolt? Já sabia que um deles era uma mulher; o outro era um homem, um intelectual. Mas, além das diferenças de sexo e de atividades, tinham feito parte de uma coisa que ele não conhecera. Tinham estado presentes, tinham visto tudo. Nenhum deles era jovem demais para não poder lembrar-se. Cada um deles tinha vivido no mundo estranho e demoníaco do Terceiro Reich. Teria muitas perguntas para fazer.

Perguntas para fazer? Perguntas?

Dissera a Manfredi que precisava de tempo, de alguns dias no mínimo, para tomar uma decisão.

"Julga mesmo que ainda tem liberdade para decidir?", perguntara o banqueiro.

"Claro. Não estou à venda, sejam quais forem as condições. E não tenho medo de ameaças feitas por maníacos trinta anos atrás."

"Não deve ter medo, mesmo. Converse com sua mãe."

"Como assim? Não me disse que..."

"Segredo absoluto? Claro que falei nisso. Mas sua mãe é a única exceção..."

"Por quê? Penso que ela devia ser a última..."

"É a primeira e única. Merece essa confiança."

Manfredi tinha razão. Se aceitasse, teria de interromper as suas atividades profissionais e iniciar viagens para entrar em contato com os filhos de Kessler e Von Tiebolt. A curiosidade de sua mãe seria despertada e ela não era capaz de deixar a sua curiosidade insatisfeita. Faria indagações, e se por acaso, por mais difícil que isso fosse, viesse a saber dos milhões existentes em Genebra e do papel de Heinrich Clausen no grande roubo, a reação dela poderia ser violenta. A lembrança dos gângsteres paranoicos do Terceiro Reich lhe ficara indelevelmente gravada no espírito. Se ela dissesse publicamente alguma coisa, os fundos ficariam interditados durante muitos anos nos tribunais internacionais.

"E se eu não conseguir convencê-la?"

"Terá de ser convincente. Esta carta é convincente, e, se houver necessidade, poderemos entrar em ação. De qualquer maneira, convém saber desde o início a opinião dela."

Qual seria essa opinião? Althene não era uma mãe comum, tal como esse filho em particular compreendia as mães. Desde o começo da vida, sabia que Althene era diferente. Não se ajustava ao molde das matronas ricas de Nova York. Todos os acessórios estavam ou tinham estado presentes. Havia os cavalos, as lanchas, os fins de semana em Aspen ou em Hamptons, mas não havia a procura desesperada de aceitação e de controle social.

Nada disso era novo para ela. Vivera na turbulenta Europa da década de 30, quando era uma jovem americana despreocupada cuja família ficara com alguma coisa depois da crise e vivia com mais conforto longe dos seus iguais menos felizes. Havia conhecido a corte de St. James, os salões dos exilados em Paris... e os impetuosos herdeiros da nova Alemanha. De tudo isso lhe ficara uma serenidade feita de amor, cansaço, ódio e raiva.

Althene era uma pessoa especial, tanto como amiga quanto como mãe. A amizade era profunda e sem necessidade de constante reafirmação. A rigor, pensava Holcroft, era mais amiga do que mãe; não se sentia muito à vontade nesse último papel.

"Já cometi tantos erros, meu querido", dissera ela um dia, rindo, "que não posso assumir uma autoridade baseada em circunstâncias biológicas."

Ele ia agora pedir-lhe que enfrentasse a lembrança de um homem que ela passara grande parte da vida tentando esquecer. Ficaria amedrontada? Era pouco provável. Duvidaria dos objetivos expostos no documento que lhe fora entregue por Ernst Manfredi? Isso não seria possível depois que ela lesse a carta de Heinrich Clausen. Fossem quais fossem as suas recordações, a mãe de Noel era uma mulher cheia de inteligência e compreensão. Todos os homens eram sujeitos a mudanças e podiam sentir remorsos. Ela teria de aceitar essa verdade, por mais desagradável que lhe fosse naquele caso particular.

Estavam num fim de semana. O dia seguinte era um domingo. A mãe e o padrasto passavam os fins de semana na casa de campo de Bedford Hills. Pela manhã, iria de carro até lá e conversaria com ela.

Na segunda-feira, tomaria as providências para uma viagem que o levasse de volta à Suíça. Iria para uma agência ainda desconhecida em Zurique. Na segunda-feira, daria início à procura.

Noel recordou a sua conversa com Manfredi. Tinham sido as últimas palavras trocadas entre eles antes que Holcroft saísse do trem.

"Os Kessler tiveram dois filhos. O mais velho, Erich, o mesmo nome do pai, é professor de história na Universidade de Berlim. O mais moço, Hans, é médico em Munique. Do que sabemos deles, são ambos muito respeitados nas comunidades a que pertencem. São muito amigos os dois. Logo que esteja inteirado da situação, Erich poderá insistir na inclusão do irmão."

"E isso é permitido?"

"Nada há no documento que o proíba. Mas o pagamento final será o mesmo e cada família terá direito a apenas um voto nas decisões."

"E os Von Tiebolt?"

"O caso deles é inteiramente diferente. Pode constituir um sério problema para você. Depois da guerra, sabe-se que a mãe e dois filhos fugiram para o Rio de Janeiro. Há cinco ou seis anos, desapareceram literalmente. A polícia não tem informações. Não há endereços, ligações comerciais ou qualquer registro em outras grandes cidades. E isso é muito estranho, pois a mãe viveu bem durante algum tempo. Mas ninguém parece saber o que aconteceu, ou, se sabe, não quer dizer."

"Falou em dois filhos. Quem são eles?"

"Na realidade, há três filhos. A mais nova, uma menina chamada Helden, nasceu no Brasil, depois da guerra, tendo sido concebida evidentemente nos últimos dias do Reich. Há outra filha, de nome Gretchen, que é a mais velha. Entre as duas, um menino, Johann."

"Desapareceram então?"

"O termo talvez seja exagerado. Somos banqueiros e não investigadores. Nossas pesquisas não foram extensas e o Brasil é um país muito grande. Mas as suas pesquisas terão de ser exaustivas. Os descendentes dos três homens têm de ser encontrados e examinados. É a condição básica do documento. Se não for cumprida, a conta não poderá ser liberada."

Holcroft dobrou o documento e tornou a guardá-lo na sua pasta. Assim fazendo, tocou na folha de papel que tinha sido escrita trinta anos antes naquela caligrafia estranha pelos homens da Wolfsschanze. Manfredi tinha razão. Eram homens desesperados que tentavam desempenhar ainda um papel no drama de um futuro que mal podiam compreender. Se tivessem compreendido, teriam apelado para "o filho de Heinrich Clausen". Teriam feito um pedido e não uma ameaça. Esta é que era o enigma. Por que fora formulada? E com que finalidade? Mas, como dizia Manfredi, o estranho papel não tinha mais sentido. Havia outras coisas em que pensar.

Holcroft conseguiu chamar a atenção da aeromoça que conversava em outra mesa com dois homens e lhe pediu outro scotch. Ela sorriu e disse que dentro em pouco o atenderia. Noel voltou aos seus pensamentos.

As dúvidas tornaram inevitavelmente a assaltá-lo. Estaria mesmo disposto a gastar talvez um ano de sua vida na execução de um projeto tão importante que as suas qualificações pessoais tinham sido examinadas antes mesmo da dos filhos de Kessler e Von Tiebolt, dado que este último pudesse ser encontrado? Manfredi duvidara de que ele tivesse liberdade para decidir. A verdade é que tinha e não tinha. Os dois milhões, que representavam a sua liberdade pessoal, eram uma tentação muito difícil de rejeitar, mas ele poderia rejeitá-la. Vivia insatisfeito, sem dúvida, mas as coisas não lhe corriam tão mal assim do ponto de vista profissional. A sua reputação se expandia e a sua competência era reconhecida por um número crescente de clientes, que decerto falariam dele a outros possíveis clientes. Que aconteceria se ele de repente deixasse de trabalhar? Qual seria o resultado de sua retirada abrupta de várias concorrências em que estava empenhado? Eram assuntos que tinham de ser examinados com muito cuidado. Não era só o dinheiro que o governava.

Entretanto, Noel não deixava de compreender a inanidade dessas considerações. Comparadas com o seu "pacto", todas essas questões eram insignificantes. Fossem quais fossem os seus contratempos pessoais, a distribuição de milhões aos sobreviventes de uma desumanidade sem paralelo na história já chegava atrasada. Era uma obrigação a que não era possível esquivar-se. Uma voz tinha apelado para ele através dos anos, a voz de um homem em agonia que era o pai a quem jamais conhecera. Por motivos que não era capaz de explicar, não podia ser surdo a essa voz, não podia dar as costas a esse homem em agonia. Iria a Bedford Hills na manhã seguinte e conversaria com sua mãe.

Holcroft levantou os olhos, estranhando que a aeromoça estivesse demorando tanto a trazer-lhe o drinque pedido. Ela estava no balcão iluminado por uma luz fraca que servia de bar na saleta do 747. Os dois homens da mesa haviam-na acompanhado e lá havia ainda outro homem. Um quarto homem estava sentado numa poltrona aos fundos e lia um jornal. Os dois homens em companhia da aeromoça tinham evidentemente bebido demais, ao passo que o terceiro, talvez para criar laços de camaradagem, fingia haver também bebido demais. A aeromoça viu Noel olhar para ela e arqueou as sobrancelhas, simulando aborrecimento. Ela já servira o scotch, mas um dos bêbados havia entornado o copo e ela enxugava o balcão com um pano. O companheiro dos bêbados cambaleou de repente e foi bater numa poltrona, tendo perdido o equilíbrio. A aeromoça saiu do balcão para ajudar o passageiro caído. O amigo dele ria, apoiando-se a uma poltrona. O terceiro homem estendeu a mão para um drinque no bar. O quarto homem olhava para tudo com aborrecimento, agitando o jornal para mostrar a sua reprovação. Noel olhou pela janela, sem querer participar daquela confusão.

Alguns minutos depois, a aeromoça aproximou-se dele.

- Desculpe, Mr. Holcroft. Essa gente é assim mesmo. Não sabe comportar-se, principalmente nos voos transatlânticos. Foi scotch on the rocks que pediu, não foi?

- Foi. Muito obrigado.

Noel tomou o copo das mãos da bela aeromoça e notou o olhar dela que parecia dizer: "Muito obrigada, cavalheiro, por não proceder como esses mal-educados". Em circunstâncias normais, teria puxado conversa com a aeromoça, mas tinha muito em que pensar. Estava relacionando as coisas que tinha de fazer na segunda-feira. Não lhe seria difícil fechar o escritório no que se referia aos empregados. Tinha apenas uma secretária e dois desenhistas, que poderia colocar no escritório de amigos, provavelmente com salários mais altos. Mas como iria explicar que a Holcroft, Inc., em Nova York, fosse fechar as portas justamente quando tinha sido procurada para projetos que poderiam triplicar o seu pessoal e quadruplicar a sua renda bruta? A explicação tinha de ser plausível e impenetrável a qualquer curiosidade.

De repente, o terceiro passageiro, do outro lado da saleta, deu um pulo da poltrona em que estava sentado, ao mesmo tempo que um tremendo grito de dor lhe saía da garganta. Dobrou o corpo convulsivamente como se lhe estivesse faltando ar e levou as mãos ao estômago e depois ao peito. Foi cair na estante de madeira em que havia revistas e folhetos com horários e itinerários da companhia de aviação. Torcia o corpo desesperadamente, com os olhos arregalados e as veias inchadas no pescoço arroxeado. O corpo descambou para a frente e ele se estendeu no chão.

Era o homem que se juntara no bar aos dois bêbados e à aeromoça.

Os instantes seguintes foram de confusão. A aeromoça correu para o homem caído e observou-o atentamente. Deu então instruções aos outros três passageiros na saleta para que não saíssem dos lugares em que estavam, colocou uma almofada sob a cabeça do homem e voltou ao balcão, onde havia um aparelho de intercomunicação. Segundos depois, um comissário subia a escada circular e, quase imediatamente, o comandante da British Airways emergiu da cabina de comando. Os dois conversaram com a aeromoça ao lado do corpo inconsciente do homem. O comissário subiu rapidamente a escada circular e voltou pouco depois com alguns papéis presos a uma tábua por um grampo. Era evidentemente o manifesto do avião.

O comandante disse aos outros passageiros na saleta:

- Façam o favor de voltar para os seus lugares lá embaixo. Há um médico a bordo e já foi chamado. Muito obrigado.

Quando Holcroft se encaminhava para a escada, uma aeromoça com um cobertor passou por ele. Ouviu então o comandante dar uma ordem pelo aparelho de intercomunicação:

- Fale com o Aeroporto Kennedy pedindo equipamento de emergência. Uma ambulância também. Um passageiro de nome Thornton parece ter tido um ataque cardíaco.

O médico se curvou sobre o homem estendido no sofá e pediu uma lanterna elétrica. Um oficial foi logo buscá-la na cabina. O médico levantou as pálpebras do homem chamado Thornton e chamou o comandante, a quem disse:

- Está morto. É difícil afirmar sem o material necessário, sem exame dos tecidos e do sangue, mas não creio que tenha sido um ataque cardíaco. Esse homem foi envenenado. Com estricnina, se não estou enganado.

O escritório do inspetor da alfândega ficou de repente em silêncio. Diante da mesa do inspetor, estava sentado um detetive de homicídios da Administração do Porto de Nova York, tendo à sua frente uma prancheta com papéis da British Airways. O inspetor, com a fisionomia contrafeita, estava ao lado dele. Sentados em duas cadeiras encostadas à parede, estavam o comandante do 747 e a aeromoça que servia na saleta da primeira classe. A porta era guardada por um policial fardado. O detetive olhou cheio de espanto para o inspetor da alfândega.

- Quer mesmo que eu acredite que duas pessoas desembarcaram do avião, atravessaram corredores bem-guarnecidos, chegaram ao local da alfândega cheio de guardas e desapareceram?

- É uma coisa que não posso explicar - disse desanimadamente o inspetor. - É a primeira vez que isso acontece.

O detetive voltou-se para a aeromoça:

- Tem certeza de que estavam bêbados?

- Não tenho mais. Não sei bem como foi, pois beberam muito. Eu mesma os servi. Pareciam bem altos. Inofensivos, mas altos.

- Poderiam ter jogado fora os drinques sem bebê-los?

- Onde?

- Não sei. Dentro de cinzeiros. Embaixo das almofadas das poltronas. O chão como é?

- Atapetado.

O detetive falou ao guarda da porta:

- Chame a equipe técnica pelo rádio. Mande investigar os cinzeiros, as almofadas, os tapetes. Do lado esquerdo da área dividida. Basta que encontrem alguma coisa molhada. Comuniquem-me imediatamente o que encontrarem.

O guarda saiu, fechando a porta.

- É claro que a resistência ao álcool varia de pessoa para pessoa - disse o comandante.

- Mas ninguém tem resistência para superar as quantidades mencionadas pela aeromoça - disse o detetive.

- Mas, pelo amor de Deus, por que dá tanta importância a isso? - exclamou o comandante. - É evidente que os dois homens são os culpados que o senhor procura. Desapareceram, como disse. É claro que não poderiam fazer isso sem algum plano.

- Tudo é importante - explicou o detetive. - Os métodos podem ser comparados com os de crimes anteriores. Estamos à procura de qualquer coisa. Pessoas desequilibradas. Pessoas ricas e desequilibradas que andam pelo mundo em aviões a jato em busca de emoções. Sinais de psicose, procura de emoções quando sob a ação do álcool ou de entorpecentes, pouco importa. Tanto quanto sabemos, os dois homens nem conheciam o tal Thornton. A aeromoça disse que se apresentaram ao homem. Por que é que o matariam? E, aceitando o fato de que tivessem feito isso, por que o matariam de maneira tão cruel? Foi estricnina, comandante, e pode ter certeza de que não se trata de uma morte fácil.

O telefone tocou. O inspetor da alfândega atendeu, escutou e passou o fone ao detetive da Administração do Porto.

- É o Departamento de Estado. Querem lhe falar.

- Departamento de Estado? Fala o Tenente Miles, da polícia da Administração do Porto. Têm a informação que eu pedi?

- Temos, mas não vai gostar dela...

- Espere um minuto - disse Miles, interrompendo-o. A porta se abrira e o guarda tinha voltado. - Que é que há?

- As almofadas e o tapete do lado esquerdo da saleta estão encharcados de bebida.

- Estavam então em seu juízo perfeito - murmurou o detetive. Em seguida, voltou ao telefone: - Pode falar, Departamento de Estado. De que é que eu não vou gostar?

- Os dois passaportes em questão foram declarados nulos há mais de quatro anos. Pertenciam a dois homens de Flint, no Estado de Michigan, que eram vizinhos e trabalhavam para a mesma companhia em Detroit. Em junho de 1973, fizeram juntos uma viagem de negócios à Europa. Nunca mais voltaram.

- Por que os passaportes foram declarados nulos?

- Os dois desapareceram dos quartos do hotel onde estavam. Dois dias depois, os seus corpos foram encontrados no rio. Tinham sido mortos a tiros.

- Que rio? Onde foi isso?

- O rio foi o Isar. O caso aconteceu em Munique, na Alemanha.

Um por um, os furiosos passageiros do voo 591 passaram pela porta da sala onde tinham esperado. Os nomes, os endereços e os telefones de cada um foram conferidos com o que constava do manifesto do 747 por um funcionário da British Airways. Ao seu lado, estava um homem da polícia da Administração do Porto, fazendo anotações numa lista em duplicata. A quarentena havia durado quase quatro horas.

Saindo da sala, os passageiros foram encaminhados por um corredor para uma grande área de carga, onde receberam as suas bagagens já inspecionadas e se dirigiram para as portas do terminal. Houve, porém, um passageiro que não se dispôs a deixar a área de carga. Esse homem, que não levava bagagem e tinha uma capa pendurada no braço, foi diretamente a uma porta sobre a qual se liam as seguintes palavras:

"CENTRO DE CONTROLE DA ALFÂNDEGA.

EXCLUSIVO DO PESSOAL DE SERVIÇO".

Mostrou a sua identificação e entrou.

Um homem de cabelos grisalhos vestido com a farda de um alto funcionário da alfândega estava junto a uma janela, fumando um cigarro. Voltou-se ao ver o homem e disse:

- Estava à sua espera. Nada podia fazer enquanto você estivesse de quarentena.

- Eu tinha o cartão do serviço secreto pronto, caso não o encontrasse - disse o passageiro, guardando no bolso o cartão de identificação.

- Fique com ele à mão. Por aqui está cheio de gente da polícia. Que é que você quer fazer?

- Ir até aquele avião.

- Acha que estão lá?

- Claro que estão. Não há outra explicação.

Os dois homens saíram da sala e atravessaram rapidamente a área de carga, passando pelas diversas correias transportadoras até chegarem a uma porta com os dizeres: "PROIBIDA A ENTRADA". O oficial da alfândega abriu a porta com uma chave que levava no bolso e passou à frente do homem da capa. Seguiram por um longo túnel que levava à pista. Pouco depois estavam diante de outra porta de aço, guardada por um homem da alfândega e outro da Administração do Porto. O funcionário de cabelos grisalhos foi reconhecido pelo primeiro.

- Alô, capitão. Que noite horrível, hein?

- E está apenas no começo. Podemos todos ser envolvidos ainda. Este homem que está comigo é um agente federal. Vou levá-lo até o voo 591. Há uma suspeita de que o caso tenha alguma relação com o contrabando de entorpecentes.

O homem da polícia pareceu indeciso. Decerto tivera ordem de não deixar ninguém passar por aquela porta. O guarda da alfândega interveio.

- Deixe disso. O capitão manda em todo o Aeroporto Kennedy.

O policial encolheu os ombros e abriu a porta.

Do lado de fora, a chuva caía incessantemente enquanto rolos de névoa corriam dos lados da Jamaica Bay. O homem que acompanhava o funcionário da alfândega vestiu a capa. Tirou do bolso uma pistola que colocou no cinto, desabotoando então o colete.

O 747 aparecia à luz dos refletores, com a chuva escorrendo da fuselagem. A polícia e as turmas de manutenção estavam em toda parte e só se distinguiam pelo preto e pelo laranja das capas que uns e outros vestiam.

- Tratarei de protegê-lo da polícia lá dentro - disse o homem da alfândega, fazendo um gesto para a escada de metal que subia de um caminhão para uma porta na fuselagem. - Boa caça.

O homem da capa fez um gesto de assentimento e correu os olhos pela área. O 747 era o ponto central de todas as atividades. A cerca de trinta metros dele corria um cordão de isolamento mantido de espaços a espaços por estacas e guarnecido em toda a sua extensão por policiais. O homem da capa estava do lado de dentro do cordão de isolamento e podia mover-se à vontade. Virou-se para a direita e se encaminhou para a retaguarda do avião. Acenava para os policiais que estavam nos seus postos e tinha o seu cartão de identificação na mão para mostrá-lo quando percebia algum olhar mais curioso. Observava através da chuva os rostos de todos os que entravam no avião ou dele saíam. Quando quase completava a volta em torno do avião, ouviu o grito zangado de um homem da manutenção.

- Que diabo está fazendo aí? Mantenha esse guincho firme!

O homem a quem o grito fora dirigido era outro elemento da manutenção que estava na plataforma de um caminhão de abastecimento. Esse homem não trazia capa e o seu macacão branco estava todo molhado. Na boleia do caminhão estava sentado outro homem, também sem proteção contra a chuva.

Era isso, pensou o homem da capa. Os assassinos tinham vestido macacões por cima dos ternos. Mas não tinham contado com a possibilidade de chuva. A não ser por esse erro, a fuga deles tinha sido brilhantemente planejada.

O homem se aproximou do caminhão, com a pistola escondida por baixo da capa. Olhou para o homem encostado à janela do caminhão e sentado ao volante. O outro homem estava acima dele um pouco à direita na plataforma, virado para o outro lado. O homem da boleia olhou incredulamente para o homem da capa e escorregou no mesmo instante para o outro lado do banco. Mas o homem da capa foi mais ligeiro. Abriu a porta, puxou a pistola e atirou, com o tiro amortecido por um silenciador. O homem caiu sobre o painel de instrumentos com o sangue a jorrar-lhe da testa.

Ao ouvir o movimento, o homem que estava no alto chegou à beira da plataforma e olhou.

- Você! O homem do jornal!

- Entre no caminhão! - ordenou o homem da capa, falando claramente através da chuva que caía, com a pistola oculta atrás da porta.

O homem da plataforma hesitou. O homem da capa olhou em torno. Os guardas estavam preocupados com o seu desconforto sob o aguaceiro que desabava e sentiam-se meio ofuscados pela luz forte dos refletores. Ninguém estava observando o que acontecia. Agarrou então o macacão do outro assassino e puxou-o para baixo, empurrando-o a seguir pela porta aberta do caminhão.

- Vocês falharam. O filho de Heinrich Clausen ainda está vivo - disse ele calmamente.

Deu então outro tiro e o segundo assassino caiu morto no banco.

O homem da capa fechou a porta do caminhão e guardou a pistola. Afastou-se tranquilamente, passou sob a asa do avião e seguiu pela área cercada pelo cordão de isolamento até a porta da entrada do túnel. No meio do caminho, o oficial da alfândega desceu a escada do avião e foi ao encontro dele.

- Que aconteceu? - perguntou o oficial.

- Minha caçada foi boa. A deles não foi. A questão agora é saber o que vamos fazer com Holcroft.

- Não temos nada com isso. O caso é da alçada do Tinamou. É preciso que ele seja informado.

O homem da capa sorriu, sabendo que com aquela chuva não era possível ver o seu sorriso.


4

Holcroft saltou do táxi em frente ao seu apartamento na East 73rd Street. Estava exausto. A tensão dos últimos três dias fora agravada pela tragédia a bordo do avião. Tinha pena do pobre homem que morrera do coração, mas estava furioso com a polícia da Administração do Porto, que procedera como se se tratasse de um caso internacional. Que coisa! Tivera de ficar esperando com os outros quase quatro horas. E todos os passageiros de primeira classe tinham sido intimados a comunicar à polícia o seu paradeiro durante sessenta dias.

O porteiro recebeu-o dizendo:

- A sua viagem desta vez foi curta, Mr. Holcroft. Mas chegou uma porção de correspondência para o senhor. E um recado.

- Um recado?

- Sim, um homem veio procurá-lo ontem à noite e deixou este cartão. Parecia muito agitado, sabe o que eu quero dizer?

- Exatamente, não.

Noel recebeu o cartão e leu o nome: "Peter Baldwin". O nome nada significava para ele. Sob o nome havia o seguinte: "Sistemas de Segurança Wellington Ltda. The Strand, Londres, W1A". Havia um número de telefone embaixo. Holcroft nunca ouvira falar na companhia inglesa. Nas costas do cartão estava escrito: "St. Regis Hotel, quarto 411".

- O homem insistiu em que eu telefonasse para seu apartamento caso o senhor voltasse e eu não o visse entrar. Não pude deixar de dizer-lhe que isso era uma tolice.

- Ele mesmo podia ter-me telefonado - disse Noel, encaminhando-se para o elevador. - Meu nome consta da lista.

- Ele me disse que tentou falar com o senhor, mas o telefone estava enguiçado.

A porta do elevador se fechou e Holcroft não ouviu o resto do que dizia o porteiro. Tornou a ler o nome do cartão enquanto o elevador subia para o quinto andar. Peter Baldwin... Quem era ele? E desde quando o seu telefone estava enguiçado?

Abriu a porta do apartamento e estendeu a mão para o comutador na parede. Dois abajures de mesa se acenderam simultaneamente. Noel deixou cair a mala e olhou para a sala sem poder acreditar no que via.

Nada mais estava como ele havia deixado dois dias antes. Nada mais. Todos os móveis, cadeiras, mesas, vasos e cinzeiros haviam mudado de lugar. O sofá, que sempre estivera no centro da sala, estava atirado no canto direito. Tinham trocado o lugar de todos os quadros e gravuras. O estéreo não estava mais na prateleira de costume; fora cuidadosamente arrumado em cima de uma mesa. O bar, que sempre estivera no fundo da sala, tinha passado para a parede à esquerda da porta. A prancheta de desenho, que ficava sempre ao lado da janela, estava agora à sua frente... O banco... não sabia mais onde estava o banco. Era a sensação mais esquisita que já tivera em toda a sua vida. Tudo era o mesmo, mas irreconhecível, fora do lugar e de foco.

Continuou parado à porta, sem ânimo de entrar. Lembrava-se a todo instante das imagens anteriores da sala, mas só para vê-las substituídas pelas imagens novas.

- Que aconteceu? - exclamou ele em voz alta, admirando-se logo de ter falado.

O telefone ficava sempre numa mesinha, ao lado direito do sofá. Mas não viu mais nem sofá nem mesinha nem telefone. Passeou os olhos bem abertos pelo centro da sala. Onde estava a mesinha? Havia uma poltrona no lugar onde ela costumava estar. O telefone não estava na poltrona. Onde estava o telefone? Onde estava a mesinha? Onde estava o telefone?

Estava perto da janela. Tinham levado a mesa da cozinha para perto da janela da sala e o telefone estava em cima dela. A grande janela dava para outro edifício de apartamentos do outro lado de um grande pátio. Os fios do telefone tinham sido arrancados de baixo do tapete e levados para perto da janela. Era uma verdadeira loucura! Quem teria levantado o tapete preso por tachas no chão para remover os fios?

Foi até a mesa da cozinha e apertou o botão do interfone para falar com a portaria. Apertou repetidamente o botão sem ninguém atender. Ouviu afinal a voz um tanto irritada de Jack, o porteiro.

- Pronto, pronto! É a portaria...

- Jack, quem está falando é Holcroft. Quem foi que esteve no meu apartamento durante a minha ausência?

- Quem esteve onde?

- Aqui no meu apartamento!

- Foi roubado, Mr. Holcroft?

- Não sei ainda. Mas encontrei tudo virado de pernas para o ar. Quem foi que esteve aqui?

- Que eu saiba, ninguém. E meus colegas não me disseram nada. Ed fica de quatro da manhã até o meio-dia e Louie...

- Pode telefonar para eles?

- Quer que chame a polícia?

A sugestão era desagradável. A polícia ia fazer perguntas... "Onde esteve? Com quem esteve?" Noel não sabia se queria responder a essas perguntas.

- Não, não chame a polícia por enquanto. Tenho de ver primeiro se falta alguma coisa. Talvez seja alguma brincadeira de mau gosto de alguém. Chamo você depois.

- Vou falar com os meus colegas.

Holcroft desligou. Sentou-se no peitoril da janela e olhou para a sala. Tudo fora do lugar. Não havia uma só peça que estivesse no lugar de costume!

Viu então que ainda tinha na mão o cartão do tal Peter Baldwin, o homem que, segundo o porteiro, estava muito agitado e insistira em ligar para o apartamento dele... mas o telefone estava enguiçado...

"St. Regis Hotel, quarto 411."

Noel pegou o telefone e discou. Conhecia bem o número, pois almoçava quase sempre no grill do hotel.

- Sim? É Baldwin.

A voz era inglesa e o tom, meio áspero.

- Mr. Baldwin, quem fala é Noel Holcroft. Soube que me procurou.

- Graças a Deus! Onde é que está?

- Em meu apartamento. Acabo de chegar.

- De onde foi que chegou?

- Desculpe, mas isso só a mim interessa.

- Pelo amor de Deus! Viajei mais de cinco mil quilômetros para vê-lo! Isso é da maior importância, acredite! Onde é que estava?

Podia-se ouvir pelo telefone a respiração entrecortada do inglês. A sua ansiedade parecia ter alguma relação com o medo.

- Sinto-me decerto lisonjeado de que tenha viajado tanto só para ver-me, mas não creio que isso lhe dê o direito de fazer perguntas pessoais...

- Tenho todo o direito! - exclamou Baldwin. - Passei vinte anos com o MI Seis e temos muito o que conversar! Não tem a menor ideia do que está fazendo! Só quem sabe sou eu.

- Que quer dizer com tudo isso?

- Só lhe vou dizer o seguinte: Cancele Genebra. Cancele tudo até nos falarmos, Mr. Holcroft!

- Genebra?...

Holcroft sentiu de repente um frio no estômago. Como aquele inglês sabia de Genebra? Como poderia saber?

Uma luz brilhou do lado de fora da janela. Alguém num apartamento em frente estava acendendo um cigarro. Apesar da sua agitação, os olhos de Holcroft se voltaram para lá.

- Estão batendo à porta - disse Baldwin. - Não desligue o telefone. Vou atender e já volto.

Noel ouviu Baldwin depositar o fone. Em seguida, uma porta se abriu e ele ouviu vozes que não pôde distinguir. Do outro lado do pátio, na janela do apartamento que ficava bem em frente, riscaram de novo um fósforo e a luz mostrou os longos cabelos louros de uma mulher por trás de uma cortina transparente.

Holcroft percebeu que havia silêncio ao telefone. Não ouvia mais as vozes. O tempo foi passando sem que o inglês voltasse.

- Baldwin! Alô! Alô, Baldwin!

Pela terceira vez, um fósforo brilhou na janela do outro lado. Noel olhou para lá. Aquilo lhe parecia desnecessário. Viu a brasa de um cigarro nos lábios de uma loura. Viu então o que estava na outra mão da mulher, silhuetado na cortina transparente. Era um telefone. A mulher tinha um telefone ao ouvido e olhava para a janela dele. Tinha certeza de que olhava para ele.

- Baldwin! Alô! Alô!

Houve um estalo e não ouviu mais nada.

- Alô, Baldwin!

A mulher na outra janela baixou lentamente o fone, fez uma breve pausa e desapareceu.

Holcroft olhou para a janela e depois para o telefone que tinha na mão. Desligou, esperou o ruído de linha de novo e tornou a discar para o St. Regis Hotel.

- Desculpe, mas do quarto 411 não atendem. Deve ser algum defeito do telefone. Vou mandar alguém lá. Tenha a bondade de dar-me o número do seu telefone para que eu possa transmiti-lo a Mr. Baldwin.

O telefone estava enguiçado...

Estava acontecendo alguma coisa que Noel não conseguia compreender. Sabia apenas que não ia dar nem o seu nome nem o seu telefone à telefonista do St. Regis. Desligou e olhou de novo para a janela em frente. Se tinha havido luzes lá, estavam apagadas. A janela estava às escuras e só se via a brancura da cortina.

Saiu da janela e andou a esmo pela sala, olhando para coisas conhecidas em posições desconhecidas. Não sabia ao certo o que fazer. Supunha que daria por falta de alguma coisa. Mas tudo parecia estar ali, embora fosse difícil ter certeza.

O telefone tocou. Era da portaria.

- É Jack, Mr. Holcroft. Já falei com Ed e com Louie. Nenhum deles sabe de ninguém que tenha ido ao seu apartamento. Pode confiar neles. Não diriam isso se não fosse verdade.

- Obrigado, Jack. Acredito no que me está dizendo.

- Quer que chame a polícia?

- Nada disso, Jack. Não é preciso... Alguns amigos meus têm a chave do apartamento e algum deles pode ter querido fazer uma brincadeira.

- Mas nenhum de nós viu ninguém...

- Deixe estar, Jack. Na noite de minha partida, fizemos uma pequena festa e alguns dos amigos ficaram aqui...

Foi só isso que ocorreu a Noel dizer. Pensou de repente que ainda não estivera no quarto. Foi até lá e acendeu a luz.

Apesar de esperar alguma coisa, não deixou de levar um choque. A confusão se completava, por assim dizer.

Ali também tudo tinha sido mudado de posição. A cama foi a primeira coisa que notou. Era de amedrontar. Estava afastada da parede sem tocá-la em ponto algum, isolada no centro do quarto. A cômoda estava em frente à janela e a pequena secretária, encostada à parede nua da direita, parecia ainda menor. Como acontecera momentos antes na sala, as imagens do quarto como o deixara três dias antes lhe ocorriam em vislumbres rápidos, logo substituídas pelas coisas que naquele momento estava observando.

Viu então atônito, suspenso do teto e envolto em fita adesiva preta, o seu segundo telefone. O fio da extensão subia pela parede e pelo teto até o gancho, do qual o aparelho estava suspenso.

O telefone girava lentamente.

A opressão lhe passou do estômago para o peito. Os olhos se fixaram no telefone a rodar lentamente no ar. Tinha medo de olhar mais adiante, mas sabia que era preciso, pois tinha de compreender.

Por fim, compreendeu. O telefone ficava bem em frente à porta aberta do banheiro. Viu as cortinas que o vento balançava na janela acima da pia. Era o vento que fazia o telefone girar.

Entrou no banheiro e fechou a janela. Já ia correr as cortinas quando viu um breve clarão do lado de fora. Um fósforo fora riscado em outra janela do outro lado do pátio.

Lá estava de novo a mulher! Era a mesma loura com a parte superior do corpo silhuetada por outra cortina transparente. Olhou para o vulto da mulher como se estivesse fascinado.

Ela se voltou como fizera anteriormente e desapareceu como alguns minutos antes. A fraca luz da janela se apagou.

Que estava acontecendo? Que significava tudo aquilo? Estavam orquestrando as coisas para amedrontá-lo. Mas quem estaria fazendo isso e com que finalidade? Que acontecera a Peter Baldwin, o homem de voz ansiosa que o aconselhara a cancelar Genebra? Seria Baldwin um dos agentes ou uma vítima do terror?

Vítima? Estava pensando numa estranha palavra. Por que tinha de haver vítimas? Que quisera Baldwin dizer ao afirmar que passara vinte anos com o MI Seis?

MI Seis? Devia ser uma seção do serviço secreto inglês. Se não estava enganado, o MI Cinco tratava dos casos internos. O Seis devia interessar-se por problemas no exterior. Era mais ou menos a CIA inglesa.

Meu Deus! Os ingleses sabiam então do documento de Genebra? Tinha o serviço secreto inglês conhecimento do grande roubo cometido trinta anos antes? Era o que à primeira vista parecia... Entretanto, Peter Baldwin dera a entender coisa diferente, dizendo que ele, Noel, não tinha ideia do que estava fazendo, mas ele, Baldwin, sabia...

Depois, tinha havido silêncio e um telefone desligado.

Holcroft saiu do banheiro e ficou embaixo do telefone pendurado. O movimento giratório era menor, mas não havia cessado. Era uma coisa de certo modo sinistra, agravada pela profusão de fita adesiva preta que prendia o aparelho. Era como se o telefone tivesse se mumificado e nunca mais pudesse ser usado.

Continuou em direção à porta do quarto, mas instintivamente parou e voltou-se. Avistara alguma coisa em que até então não havia reparado. A gaveta do centro da pequena secretária estava aberta e dentro dela havia uma folha de papel.

Perdeu o fôlego ao olhar para o papel.

Não podia ser. Era uma coisa de enlouquecer. A folha de papel estava amarelecida pelo tempo. Era idêntica ao papel que ficara trinta anos nos subterrâneos do banco em Genebra. A caligrafia era a mesma da carta dos fanáticos que reverenciavam um mártir chamado Heinrich Clausen. Era o mesmo velho processo alemão de grafar palavras inglesas e a tinta era do mesmo modo descorada mas legível.

E o que se lia era espantoso, pois devia ter sido escrito há mais de trinta anos.

Dizia ela:

"Noel Clausen-Holcroft:

Nada é mais o mesmo para você. Nada pode ser mais o mesmo..."

Antes de continuar a ler, apertou uma borda do papel e sentiu-a esfarelar-se.

Meu Deus! Aquilo fora mesmo escrito trinta anos antes!

Esse fato fazia o resto da carta apavorante.

"O passado não foi mais que preparação. O futuro é consagrado à memória de um homem e ao seu sonho. O que ele fez foi um ato de audácia e lucidez dentro de um mundo alucinado. Nada deve obstar a concretização desse sonho.

Somos os sobreviventes da Wolfsschanze. Os que vivermos dedicaremos a vida e o corpo à proteção do sonho desse homem. Terá de ser realizado, pois é tudo o que resta. Será um ato de misericórdia que mostrará ao mundo que fomos traídos e que não éramos o que o mundo julgou que fôssemos.

Nós, os homens da Wolfsschanze, sabemos o que os melhores entre nós eram, como Heinrich Clausen sabia.

Cabe a você agora, Noel Clausen-Holcroft, completar o que seu pai começou. Você é o caminho. Seu pai assim o queria.

Muitos tentarão detê-lo, abrir as comportas e destruir o sonho. Mas os homens da Wolfsschanze sobrevivem. Você tem a nossa palavra de que todos aqueles que interferirem serão detidos.

E quem atravessar o seu caminho, quem tentar dissuadi-lo, quem procurar enganá-lo com mentiras será eliminado.

Como você será, com os seus, se hesitar ou falhar.

É esse o juramento que lhe fazemos."

Noel apertou o papel que tirara da gaveta e ele se esfarelou em suas mãos. Deixou os fragmentos caírem no chão.

- Malditos maníacos! - exclamou ele, fechando a gaveta e saindo do quarto.

"Maníacos!", tornou a gritar a ninguém.

Mas, na realidade, gritava para alguém, para um homem com quem se encontrara em Genebra, num trem que ia para Zurique. Alguns maníacos tinham escrito aquele lixo trinta anos antes, mas agora, trinta anos depois, outros maníacos haviam entregue aquilo! Tinham entrado em sua casa, violado a sua intimidade, tocado no que lhe pertencia... Ninguém sabia o que mais tinham feito, pensou ele, lembrando-se de Peter Baldwin. Um homem viajara milhares de quilômetros para vê-lo e tinha acabado talvez no silêncio de um telefone desligado.

Olhou para seu relógio. Quase uma hora da madrugada. Que horas seriam em Zurique? Seis? Sete? Os bancos na Suíça abriam às oito horas. La Grande Banque de Genève tinha uma filial em Zurique. Manfredi devia estar lá.

A janela. Estava diante da janela onde estivera alguns minutos antes à espera de que Baldwin voltasse ao telefone. Do outro lado do pátio, no apartamento em frente. Os três breves clarões de um fósforo... a mulher loura à janela!

Holcroft levou a mão ao bolso para verificar se estava com as chaves. Estava. Saiu correndo pela porta e foi até o elevador. Apertou o botão. O indicador mostrava que o elevador estava no décimo andar, mas a flecha não se movia.

Desceu pela escada, pulando os degraus de três em três. Chegou ao térreo e entrou na portaria.

- Mr. Holcroft! - exclamou Jack. - Palavra que me assustou!

- Você conhece o porteiro do edifício vizinho?

- Qual deles?

Holcroft apontou para a direita.

- O 380? Claro que conheço.

- Vamos até lá então.

- Não posso sair daqui, Mr. Holcroft.

- Um minuto apenas. Vai ganhar vinte dólares por isso.

- Só um minuto, veja lá...

O porteiro do 380 recebeu-os bem e se dispôs a dar todas as informações que o amigo de Jack quisesse.

- Infelizmente, não há ninguém naquele apartamento. Está desocupado há quase um mês. Mas sei que já está alugado e os novos inquilinos chegam na semana que vem.

- Há alguém no apartamento - disse Holcroft. - É uma mulher loura e eu tenho de saber quem é.

- Loura, de estatura mediana, bonita e que fuma muito?

- Essa mesmo! Quem é ela?

- O senhor está há muito tempo no seu apartamento?

- Como assim?

- Estou perguntando se voltou há muito tempo para o apartamento.

- E que é que tem uma coisa com outra?

- É que pode ter bebido...

- Não compreendo nada do que está dizendo. Quem é aquela mulher?

- Quem é, não, quem era. A loura de que está falando era Mrs. Palatyne. Morreu há um mês.

Noel sentou-se numa poltrona diante da janela e ficou olhando para o pátio. Alguém estava tentando enlouquecê-lo. Mas, por quê? Tinha de haver uma lógica em tudo isso. Fanáticos, maníacos de trinta anos atrás tinham reaparecido através do tempo, comandando gente mais nova e desconhecida trinta anos depois. Por quê?

Tinha telefonado para o quarto 411 do St. Regis Hotel. O telefone estava funcionando, mas dava sinal de linha ocupada. Uma mulher a quem vira com a maior clareza não existia. Mas existia e fazia parte de tudo aquilo, não havia a menor dúvida.

Levantou-se, foi até o bar fora do lugar e preparou um drinque. Olhou para o seu relógio. Uma e cinquenta. Tinha dez minutos para esperar até que a telefonista completasse a sua ligação para o exterior. O banco só atenderia às duas horas da manhã, hora de Nova York. Levou o seu drinque para a poltrona em frente à janela. No caminho, passou pelo rádio de frequência modulada. Só o notou porque não estava no lugar de costume. Ligou-o distraidamente. Um pouco de boa música poderia fazer-lhe bem.

Mas foram palavras e não música o que ouviu. O rádio estava ligado numa dessas estações de noticiário contínuo. Tinham mudado o dial do aparelho. Devia ter sabido. Nada mais seria o mesmo para ele...

O que diziam pelo rádio lhe atraiu a atenção. Voltou-se abruptamente na poltrona, derramando um pouco do drinque...

"A polícia bloqueou todas as portas do hotel. Nosso repórter, Richard Dunlop, está no local, chamando do nosso caminhão de reportagem. Pode falar, Richard. Que foi que apurou?"

Houve alguma estática, logo seguida pela voz nervosa de um repórter.

"O nome da vítima é Peter Baldwin, inglês. Chegou ontem ou, pelo menos, se hospedou ontem no St. Regis, mas a polícia está procurando colher outras informações com as companhias de aviação. Tanto quanto se sabe, estava em férias. Não há referência a qualquer companhia no seu registro no hotel."

"Quando foi que descobriram o corpo?"

"Há cerca de meia hora. Um empregado da portaria foi verificar o telefone que estava desligado e encontrou o homem morto em cima da cama. Há muitos boatos e eu não sei em que devo acreditar, mas não pode haver dúvidas quanto ao método do crime, que foi brutal e cruel. Baldwin foi garroteado, segundo dizem, com um arame apertado no pescoço. Uma camareira do quarto andar disse em gritos à polícia que o quarto estava encharcado de..."

"Acha que o móvel do crime foi o roubo?", perguntou o outro repórter, para interromper talvez uma narração muito realista do primeiro.

"Não se sabe ainda. A polícia ainda não disse nada. Acho que estão esperando a chegada de algum representante do consulado inglês."

"Obrigado, Richard Dunlop. Mantenha-se em contato conosco... Acabaram de ouvir Richard Dunlop falando do St. Regis Hotel, na 55th Street, em Manhattan. E, assim, comunicamos um crime brutal ocorrido esta madrugada num dos mais tradicionais hotéis de Nova York. Um inglês chamado Peter Baldwin..."

Holcroft deu um pulo da cadeira, correu para o rádio e desligou-o. Não queria acreditar no que tinha acabado de ouvir. Não era alguma coisa em que ele tivesse pensado. Não era simplesmente possível.

Mas era possível, era real e tinha acontecido. Era morte. Os maníacos de trinta anos atrás não eram caricaturas, nem personagens de melodrama. Eram assassinos perversos e não estavam brincando.

Peter Baldwin lhe havia dito que cancelasse Genebra. Baldwin interferira no sonho, no pacto. E fora brutalmente assassinado com um arame em volta do pescoço.

Com dificuldade, Noel voltou para a poltrona e sentou-se. Levou o copo à boca e bebeu vários goles grandes. O uísque não deu resultado algum. Só serviu para acelerar-lhe as batidas do coração.

A chama de um fósforo! Do outro lado do pátio, na janela. Lá estava a loura silhuetada por trás das cortinas transparentes pela débil luz que vinha do interior do apartamento. Estava olhando para ele! Levantou-se da poltrona, atraído para a janela, com o rosto a poucos centímetros da vidraça. A mulher estava movendo a cabeça, fazendo lentamente um sinal afirmativo com a cabeça! Estava querendo dizer alguma coisa. Talvez dissesse que o que ele estava percebendo era verdade! Mas o porteiro havia dito que a loura de que ele falava era Mrs. Palatyne, que morrera fazia um mês.

Uma morta aparecia silhuetada contra uma janela do outro lado do pátio na escuridão e lhe mandava uma terrível mensagem. Estava ficando louco!

O telefone tocou, assustando-o. Prendeu a respiração e foi atender. Não podia deixar que a campainha tocasse de novo. O som era horrível dentro do silêncio.

- Mr. Holcroft, é a telefonista do serviço transatlântico. Está pronta a sua ligação para Zurique.

Noel ouviu, cheio de incredulidade, a voz sombria que lhe falava da Suíça. O homem que estava ao telefone era o gerente da filial de Zurique da Grande Banque de Genève, um directeur, como disse duas vezes, para acentuar a sua posição.

- Estamos profundamente consternados, Mr. Holcroft. Sabíamos que Herr Manfredi não vinha passando bem, mas não suspeitávamos de que a doença tivesse progredido tanto...

- De que é que está falando? Que foi que houve?

- Uma doença mortífera afeta as pessoas de maneira diversa. O nosso colega era um homem dinâmico e tais homens nem sempre podem tolerar uma alteração do seu ritmo de vida. Sofrem por isso grande depressão.

- Mas o que foi que houve?

- Suicídio, Mr. Holcroft. Herr Manfredi não pôde suportar a diminuição de sua capacidade.

- Suicídio?

- Não podemos esconder a verdade. Ernst se atirou da janela de seu hotel. Morreu imediatamente. Às dez horas, La Grande Banque interromperá todas as suas atividades para um minuto de homenagem e meditação.

- Meu Deus! - exclamou Holcroft.

- Entretanto - continuou o homem de Zurique -, todas as contas a cargo de Herr Manfredi receberão atenção de pessoa igualmente qualificada. Esperamos...

Noel desligou o telefone, cortando as palavras do homem. Pessoa igualmente qualificada... Os negócios continuavam. Um homem fora assassinado, mas os assuntos financeiros suíços não podiam sofrer solução de continuidade. Manfredi fora assassinado!

Ernst Manfredi não se atirara da janela de um hotel em Zurique. Fora impelido para a morte, assassinado pelos homens da Wolfsschanze.

Mas, por quê? Então Holcroft se lembrou. Manfredi tinha desprezado os homens da Wolfsschanze. Dissera a Noel que aquelas ameaças não tinham mais sentido e eram apenas a angústia de homens doentes e velhos, roídos de remorsos.

Tinha sido esse o erro de Manfredi. Talvez tivesse falado a outros diretores do banco do recebimento da estranha carta lacrada e talvez, diante deles, tivesse rido dos homens da Wolfsschanze.

O fósforo! Do outro lado do pátio, a mulher à janela assentia. Como se lesse os seus pensamentos, estava confirmando a verdade! Uma mulher morta lhe dizia que ele tinha razão!

Ela se voltou e saiu da janela, que tornou a ficar às escuras.

- Volte! Volte! - gritou Holcroft com as mãos crispadas na vidraça. - Quem é você?

O telefone tocou às suas costas. Noel olhou-o como se fosse uma coisa terrível num lugar estranho. E não deixava de ser. Atendeu com as mãos trêmulas.

- Mr. Holcroft, é Jack quem fala. Acho que sei o que aconteceu em seu apartamento. Só pensei nisso há alguns minutos...

- Pode falar.

- Há duas noites, apareceram aqui dois caras. Disseram que vinham mudar a fechadura da porta de Mr. Silverstein, aí no seu andar. Louie já me havia falado nisso e eu deixei os homens subirem. Daí, comecei a pensar. Por que é que os homens vinham trabalhar à noite? Não era muito melhor para eles trabalhar durante o dia? Telefonei para Louie e ele me disse que a fechadura já fora mudada no dia anterior. Quem eram então aqueles outros caras?

- Lembra-se deles?

- Claro que me lembro. Um deles especialmente. Seria capaz de identificá-lo numa rua cheia de gente. Tinha...

Houve um barulho seco do outro lado da linha.

Um tiro!

Houve, depois, um baque. O telefone da portaria tinha caído!

Noel desligou e correu para a porta, puxando-a com tanta força que ela foi bater numa gravura na parede da sala, quebrando o vidro. Não havia tempo de pensar em elevador. Desceu as escadas correndo, sem querer pensar, cuidando apenas de não tropeçar e rolar pela escada. Entrou impetuosamente pela portaria.

Olhou, estarrecido. O pior acontecera. Jack, o porteiro, estava caído sobre a cadeira, com o sangue a escorrer-lhe do pescoço, onde fora baleado.

Havia interferido. Ia identificar um dos homens da Wolfsschanze e morrera por isso.

Baldwin, Manfredi, um porteiro inocente, todos mortos...

Manfredi lhe perguntara se ele realmente tinha liberdade para decidir. Não tinha mais.

Estava cercado pela morte.


5

Althene Holcroft estava sentada diante da mesa no seu escritório e lia uma carta. As feições bem-modeladas - os malares salientes, o nariz aquilino, os olhos grandes abaixo de sobrancelhas arqueadas e bem-desenhadas - mostravam-se tão rígidas como o seu corpo aprumado na cadeira. Os lábios finos e aristocráticos estavam comprimidos e a respiração era compassada, mas tão controlada e profunda que não podia ser considerada normal. Lia a carta de Heinrich Clausen como se lesse um boletim estatístico que contrariasse informações tidas como indiscutíveis.

Do outro lado da sala, Noel estava junto a uma janela curva que dava para o gramado e para os jardins nos fundos da casa de Bedford Hills. Vários arbustos estavam cobertos de aniagem e a geada matinal cobria trechos alternados de grama cinzenta e verde.

Holcroft deu as costas ao cenário e voltou-se para a mãe, procurando por todos os meios dissimular o seu medo e controlar o tremor que o invadia quando pensava nos fatos da noite anterior. Não podia deixar que a mãe percebesse o terror que sentia. Gostaria de saber em que ela estava pensando ao ter as suas recordações despertadas pela leitura de uma carta escrita pelo homem a quem ela outrora amara e que depois havia desprezado. Fossem quais fossem os seus pensamentos, só seriam comunicados quando ela quisesse. Althene falava apenas o que queria deliberadamente transmitir.

Como se percebesse o olhar do filho, levantou um instante os olhos para ele. Continuou a ler a carta, afastando uma madeixa dos cabelos grisalhos que lhe emolduravam a testa. Noel caminhou sem rumo certo pela sala, olhando as estantes e as fotografias nas paredes. A sala era um reflexo da pessoa. Graciosa, elegante, mas com um subtom não de repouso, mas de atividade. As fotografias mostravam homens e mulheres a cavalo numa caçada, em barcos a vela com mau tempo, esquiando na neve das montanhas. Não se podia negar que houvesse uma ponta de masculinidade naquela sala tão feminina. Era o escritório, o santuário de sua mãe, ao qual ela se recolhia nos seus momentos de solidão e reflexão. Mas poderia ser o escritório de um homem.

Sentou-se na cadeira de couro do outro lado da mesa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro, presente de despedida de uma mulher que se mudara havia um mês do apartamento dele. A mão estava trêmula e ele teve de segurar com força o isqueiro.

- É um mau hábito esse de fumar - disse Althene sem levantar os olhos da carta. - Pensei que já o tivesse deixado.

- E deixei mesmo. Uma porção de vezes.

- Quem disse isso foi Mark Twain. Ao menos, seja original.

Holcroft mudou de posição na cadeira, sentindo-se constrangido.

- Já deve ter lido essa carta várias vezes. Que é que acha?

- Não sei o que devo pensar - disse Althene, colocando a carta em cima da mesa, diante dela. - Foi ele quem a escreveu. A caligrafia é dele e também a maneira de se exprimir. Mostra-se arrogante até quando sente remorsos.

- Julga então que se trata de remorsos?

- Tudo o indica, ao menos à primeira vista. Entretanto, gostaria de saber um pouco mais. Tenho muitas perguntas a fazer sobre essa operação financeira. Trata-se de coisa quase inconcebível.

- Perguntas geram perguntas, mamãe. Os homens de Genebra não querem isso.

- Que importa o que eles queiram ou deixem de querer? Segundo entendo, embora você esteja sendo muito reservado sobre o assunto, estão querendo que você gaste nesse empreendimento seis meses de sua vida, ou talvez ainda mais.

Noel sentiu-se de novo pouco à vontade. Resolvera não mostrar à mãe o documento da Grande Banque. Se ela insistisse, talvez ele mudasse de ideia. Se não insistisse, nada diria. Quanto menos ela soubesse, melhor. Tinha de afastar dela os homens da Wolfsschanze, pois não tinha a menor dúvida de que Althene iria interferir.

- Não lhe estou escondendo qualquer dos pontos essenciais - disse ele.

- Não estou dizendo o contrário. Disse que estava sendo reservado. Refere-se a um homem em Genebra a quem não identifica, alude a condições que só descreve pela metade, fala nos filhos mais velhos de duas famílias que não diz quais são. Está calando sobre muita coisa.

- Para seu bem.

- Está sendo condescendente e, em face dos termos da carta, insultuoso.

- Não quis ser nem uma coisa nem outra. Ninguém quer que a tal conta bancária se relacione mesmo remota e indiretamente com você. Leu a carta e sabe o que está em jogo. Milhares e milhares de pessoas, centenas de milhões de dólares. Não se pode saber quem poderia considerá-la responsável. Você foi a esposa que disse a ele a verdade e que o deixou porque ele não a quis aceitar. Quando ele finalmente compreendeu que você tinha dito a verdade, começou a agir. Talvez haja homens ainda vivos que seriam capazes de matá-lo por isso. Não quero colocá-la nessa posição.

- Compreendo - disse Althene, que se levantou da cadeira e deu alguns passos pelo quarto. - Tem certeza de que essa foi a preocupação externada pelos homens de Genebra?

- Sim... Deram a entender isso...

- Creio que não tenha sido essa a única preocupação deles.

- Não.

- Vamos falar de outras?

Noel sentiu-se disposto a resistir. Não subestimava as percepções da mãe - raramente fazia isso -, mas, como sempre, era-lhe desagradável que ela as proferisse antes que ele tivesse tempo de expô-las.

- Estão muito claras - disse ele.

- Acha mesmo? - perguntou Althene.

- Tudo está na carta. Se as fontes da conta fossem reveladas publicamente, haveria problemas judiciários. Seriam apresentadas reivindicações perante os tribunais internacionais.

- Está bem. Tudo está claro então. Muito me espanta que lhe permitissem dizer-me alguma coisa.

Noel recostou-se na cadeira, apreensivo e perturbado com as palavras da mãe.

- Por quê? Você seria capaz de fazer alguma coisa?

- A tentação seria muito grande. Parece que nunca se perde a vontade de desforrar-se, de atacar alguém ou alguma coisa que muito nos fez sofrer. Ainda que o sofrimento nos tenha melhorado a vida. Só Deus sabe como minha vida, nossa vida, se modificou. Passamos de um inferno para uma felicidade com a qual eu nem sonhava mais.

- Papai? - perguntou Noel.

- Sim. Não faz ideia dos riscos que ele enfrentou para proteger-nos. Eu tinha sido uma idiota e ele aceitou a idiota e o filho dela. Deu-nos mais do que amor, pois nos restituiu a vida e nunca pediu em troca senão amor.

- E isso você lhe deu.

- E lhe darei até a morte. Richard Holcroft é o homem que um dia pensei que Clausen fosse. Estava errada, terrivelmente errada... O fato de Heinrich estar morto há tantos anos não quer dizer nada. Quero desforrar-me.

Noel não deixou que sua voz se alterasse. Tinha que desviar a mãe dessas ideias. Os sobreviventes da Wolfsschanze não a deixariam viver.

- Está querendo desforrar-se do homem que lhe ficou na lembrança e não do homem que escreveu essa carta. Talvez o que tivesse visto a princípio nele nunca tivesse desaparecido e, no fim, voltou a manifestar-se.

- Seria reconfortante, não acha?

- Creio que essa é a verdade. O homem que escreveu essa carta não estava mentindo. Estava sofrendo.

- E bem que merecia sofrer pelos sofrimentos que causou. Foi o homem mais impiedoso que já conheci. Mas, na superfície, era tão diferente, tão cheio de ideais! E em que se transformaram esses ideais, meu Deus?

- Ele mudou, mamãe. Você contribuiu para essa mudança. No fim da vida, ele não queria senão ajudar a corrigir o mal que havia feito. Era preciso haver reparações. Pense no que ele, no que os três fizeram para tornar isso possível.

- Não posso deixar de levar isso em conta. Mas também não posso esquecer as palavras dele quando era jovem, impetuoso e tinha uma mulher também jovem e impetuosa ao lado dele. Escute, Noel. Por que me mostrou essa carta? Por que veio reviver tudo?

- Porque resolvi aceitar. Isso quer dizer que vou fechar o escritório, viajar muito, talvez trabalhar fora da Suíça durante vários meses. Como disse o homem de Genebra, você não aceitaria tudo isso sem fazer muitas perguntas. Ele tinha medo de que você ficasse sabendo de algum fato prejudicial e cometesse um ato impensado.

- Com prejuízo para você?

- Acho que sim. Ele achava que isso era uma possibilidade. Disse que as suas recordações eram fortes e estavam indelevelmente gravadas.

- Indelevelmente, sim - disse Althene.

- Ele era de opinião que não devia haver soluções judiciárias. O melhor seria usar o dinheiro conforme as intenções dos depositantes, à guisa de reparações.

- É possível que tenha razão. Se isso ainda pode ser feito, já chega com atraso. Em tudo que Heinrich tocava, restava muito pouco de valor e de verdade. Você foi a única exceção. Talvez essa carta seja outra.

Noel levantou-se da cadeira, foi até onde estava a mãe e abraçou-a.

- O homem de Genebra disse que você era incrível. E é mesmo.

- Ele disse isso? Incrível?

- Disse.

- Ernst Manfredi - murmurou ela.

- Conhece-o?

- É um nome que me faz recordar muitos anos passados. Ainda está vivo então?

Noel não respondeu à pergunta.

- Como soube que se tratava dele?

- Numa tarde de verão, em Berlim, ele apareceu. Ajudou a mim e a você a sairmos da Alemanha. Embarcou-nos no avião e deu-me dinheiro... Meu Deus!... Foi nessa tarde que me chamou de "incrível". Disse-me que eu seria procurada e me orientou sobre o que eu deveria fazer e dizer. Ele, por sua vez, faria tudo que fosse possível. Um pequeno banqueiro suíço, mas que foi um gigante naquela tarde. E depois de todos esses anos...

Noel olhou a mãe, espantado.

- Por que foi que ele não me disse nada?

Althene voltou-se para o filho, mas sem vê-lo. Estava olhando para coisas que ele não podia ver.

- Creio que ele quis que eu descobrisse por mim mesma. Não seria capaz de cobrar velhas dívidas... Agora, fique descansado. Não lhe vou dizer que me esqueci das perguntas que tenho para fazer. Se um dia resolver agir, você será avisado com muita antecedência. Mas por enquanto não vou interferir.

- Quer dizer que, por ora, fica tudo em suspenso.

- É o máximo que posso prometer. As recordações são de fato indeléveis.

- Mas não vai fazer nada sem me dizer?

- Dou-lhe minha palavra. Não estou falando impensadamente e você não deve entender isso impensadamente.

- Alguma coisa a faria mudar de ideia?

- O seu desaparecimento, principalmente.

- Ficarei em contato com você.

Althene Holcroft viu o filho sair da sala. O rosto dela, tão cheio de tensão havia apenas alguns momentos, se descontraiu. Um sorriso se lhe esboçou nos lábios e os olhos se iluminaram com uma calma satisfação e energia.

Em seguida, pegou o telefone, apertou um botão e segundos depois disse:

- Quero falar com a telefonista do serviço transatlântico. Desejo fazer uma ligação para Genebra, na Suíça.

Era preciso encontrar um motivo profissionalmente aceitável para fechar a firma. Não podia dar margem a perguntas muito curiosas. Os sobreviventes da Wolfsschanze eram assassinos que interpretavam todas as perguntas como interferências. Tinha de desaparecer legitimamente. Mas ninguém desaparecia legitimamente. Era preciso descobrir explicações plausíveis que dessem uma aparência de legitimidade.

Uma aparência de legitimidade.

Sam Buonoventura.

Isso não queria dizer que Sam não fosse legítimo. Era um dos melhores engenheiros civis do setor. Mas tinha seguido tanto o sol que às vezes ficava ofuscado. Era um profissional de cinquenta anos, que, depois de formado, achara a vida mais agradável nos climas quentes.

Depois de prestar serviço na Engenharia Militar, Buonoventura convenceu-se de que a vida era mais agradável ao sul das fronteiras dos Estados Unidos. Só se exigia competência em obras em que grandes somas eram investidas. E durante as décadas de 50 e 60 a febre de construções na América Latina e no Caribe foi tão grande que parecia criada para um homem como Sam. Ganhou fama entre as empresas e os governos como um homem capaz de fazer as coisas.

Depois de estudar plantas, mercado de trabalho, abastecimento de material e verbas, Sam dizia aos homens que o haviam contratado em quanto tempo um hotel, um aeroporto ou uma represa ficariam prontos e entregava a obra com uma margem de erro que nunca ia além de quatro por cento. Era também um sonho para os arquitetos, pois não se considerava um arquiteto.

Noel tinha trabalhado com Sam em dois projetos fora dos Estados Unidos, um deles na Costa Rica, onde, se não fosse Sam, Noel teria perdido a vida. O engenheiro tinha insistido em que o elegante arquiteto que fazia parte do lado grã-fino de Manhattan aprendesse a usar uma pistola e não apenas uma espingarda de caça. Estavam construindo um prédio para os Correios e o lugar estava muito longe de se parecer com os salões de coquetéis do Plaza e do Waldorf, e de San José. O arquiteto julgara ridículos os treinos do fim de semana com a pistola, mas a gentileza o obrigava a obedecer. A gentileza e a voz trovejante de Sam Buonoventura.

Mas, no fim da semana seguinte, o arquiteto ficou profundamente grato. Alguns ladrões tinham descido das montanhas para roubar os explosivos da obra. Dois homens haviam chegado ao acampamento à noite e tinham ido dar na cabana onde Noel dormia. Quando descobriram que os explosivos não estavam ali, um dos homens correra para fora, dando instruções ao seu cúmplice.

- Matemos el gringo!

Mas o gringo entendia a língua e, pegando na pistola que lhe fora dada por San Buonoventura, atirou e matou o homem que queria matá-lo.

O comentário de Sam foi o seguinte:

- Foi bom assim. Em alguns lugares, eu teria de tomar conta de você pelo resto de sua vida.

Noel descobriu o paradeiro de Sam por intermédio de uma companhia de navegação em Miami. Sam estava nas Antilhas holandesas, na cidade de Willemstad, na ilha de Curaçau.

- Como vai você, Noley? - gritou Sam pelo telefone. - Puxa, já deve fazer uns quatro ou cinco anos que nós não nos vemos! Ainda atira bem com a pistola?

- Não. Não dei nem mais um tiro desde que estive nas montanhas e espero nunca mais dar. Como vai a vida para você?

- Menos mal. Aqui há dinheiro em penca e boas perspectivas de casamento. Está querendo trabalhar?

- Não. Quero um favor seu.

- Pode falar.

- Vou ficar fora do país durante alguns meses resolvendo casos particulares. Quero um motivo para a minha ausência de Nova York, para o fato de ninguém me encontrar. Por isso, tive uma ideia, Sam, e não sei se você poderá me ajudar.

- Se estamos os dois pensando na mesma coisa, claro que posso.

Estavam pensando na mesma coisa. Não era raro, nesses projetos prolongados em lugares distantes, empregar como consultores arquitetos cujos nomes não apareciam nos esquemas ou nas plantas, mas cujos serviços eram utilizados.

- Você tem alguma sugestão?

- Tenho, sim. Escolha meia dúzia de países em desenvolvimento, na África, na América do Sul ou numa dessas ilhas ou países do Caribe. As companhias internacionais estão em expansão e os lugares de consultores técnicos são garantidos e bem pagos.

- Não quero um emprego, Sam. Quero uma cobertura. Quero um lugar que possa apontar como o meu local de trabalho e alguém que não me desminta se houver indagações.

- Eu não sirvo? Vou ficar nesta mina mais um ano, pois querem que eu construa duas marinas e um iate clube quando acabar o hotel. Conte comigo, Noley.

- Não esperava outra coisa de você.

- Então está certo. Telefone depois para me dar os detalhes e dizer onde poderei encontrá-lo, se algum dos seus amigos curiosos aparecer por aqui convidando-o para um chá.

Holcroft conseguiu na quarta-feira novos empregos para a secretária e para os dois desenhistas. Como tinha esperado, não teve dificuldades, pois eram bons elementos. Deu catorze telefonemas a companhias que tinham projetos seus em estudos e teve a surpresa de saber que em oito desses lugares os seus projetos estavam à frente nas preferências dos que os haviam examinado. Oito! Se tudo corresse bem, poderia ganhar com esses projetos mais do que ganhara nos cinco anos anteriores.

Mas isso estaria muito longe de dois milhões de dólares, quantia que não lhe saía da cabeça. E quando não eram os dois milhões de dólares, eram os sobreviventes da Wolfsschanze.

Deu instruções especiais ao serviço de atendimento de telefones. Deviam dizer que a firma Holcroft, Inc. estava impedida até segunda ordem de aceitar serviços de arquitetura. A companhia estava empenhada numa obra muito importante no estrangeiro. Deviam anotar o nome e o endereço de quem telefonasse...

Se alguém quisesse mais informações, poderiam dar o número de uma caixa postal em Curaçau, nas Antilhas holandesas, pertencente a Sam Buonoventura. E se alguém, além disso, quisesse um telefone, poderia ser dado o de Sam.

Noel combinara telefonar para Buonoventura uma vez por semana. Faria o mesmo com o serviço de atendimento de telefones.

Na manhã da sexta-feira, sentiu-se inquieto a respeito de sua decisão. Estava saindo de um jardim conhecido, que ele mesmo havia plantado, para embrenhar-se numa floresta desconhecida.

Nada mais seria o mesmo para ele, tinham dito aquelas forças misteriosas e mais ou menos hostis.

E se ele não encontrasse os filhos de Von Tiebolt? Se estivessem mortos, com os seus restos em repouso em algum cemitério brasileiro? Tinham desaparecido cinco anos antes no Rio de Janeiro e não havia motivo algum para supor que fossem reaparecer. E se não os pudesse descobrir, seria atacado pelos homens da Wolfsschanze? Era esse o seu receio. Mas o medo, por si só, não abrangia tudo, pensou Holcroft ao encaminhar-se para a esquina da 73rd Street com a Third Avenue. Havia meios de enfrentar o medo. Poderia levar o documento de Genebra às autoridades, ao Departamento de Estado, e dizer o que sabia de Peter Baldwin, de Ernst Manfredi e de um porteiro chamado Jack. Denunciaria o roubo colossal cometido trinta anos antes e milhares de pessoas reconhecidas através do mundo tomariam providências para que ele fosse protegido.

Era a coisa mais sensata que poderia fazer, mas de certo modo a sensatez e a segurança tinham perdido a importância. Trinta anos antes, um homem em agonia lançara um apelo, e era esse apelo que determinava a sua maneira de agir.

Chamou um táxi e teve uma ideia estranha que lhe vinha do fundo da imaginação. Era o motivo a mais que o fazia entrar pela floresta desconhecida.

Estava assumindo uma culpa que não tinha. Estava tomando sobre sua cabeça os pecados de Heinrich Clausen.

Era preciso fazer reparações.

- Fifth Avenue, 630 - disse ele ao chofer, entrando no táxi.

Era o endereço do consulado do Brasil. Começara a caçada.


6

- Deixe ver se o compreendo, Mr. Holcroft - disse o funcionário do consulado, recostando-se na cadeira. - Deseja descobrir o paradeiro de uma família que não quer identificar. Afirma que essa família emigrou para o Brasil na década de 40 e, de acordo com informações mais recentes, deixou de ser vista há alguns anos. É isso mesmo?

Noel viu a expressão um pouco zombeteira do homem e compreendeu. O jogo era talvez absurdo, mas Holcroft não sabia praticá-lo de outra maneira. Não ia falar no nome dos Von Tiebolt antes de chegar ao Brasil. Do contrário, poderia complicar uma pesquisa que já apresentava de saída várias desvantagens. Sorriu amistosamente e disse:

- Não disse exatamente isso. Perguntei apenas como seria possível encontrar uma família assim, dentro dessas circunstâncias. Não disse nem que era eu quem estava procurando.

- É uma pergunta hipotética então. O senhor é jornalista?

Holcroft pensou na pergunta do homem. Seria muito simples responder afirmativamente e ter uma explicação conveniente para as perguntas que iria posteriormente fazer. Mas, por outro lado, iria tomar o avião para o Rio de Janeiro dentro de poucos dias. Teria de preencher fichas e ter o seu passaporte visado. Uma resposta falsa poderia depois tornar-se um problema.

- Não. Sou arquiteto.

O homem mostrou nos olhos a sua surpresa.

- Nesse caso, creio que dará um pulo até Brasília. É uma exposição permanente de arquitetura.

- É uma coisa de que eu gostaria muito.

- Fala português?

- Falo apenas um pouco de espanhol. Trabalhei no México. E na Costa Rica também.

- Mas estamos divagando - disse o homem do consulado. - Quando eu lhe perguntei se era jornalista, teve um momento de hesitação. Sentiu a tentação de dizer que era, pois isso lhe seria conveniente. Francamente, isso mostra que é o senhor mesmo quem está procurando a família que desapareceu. Por que não me conta o resto?

Se tinha de pregar mentiras na sua viagem através da floresta desconhecida, era preciso começar pela análise das pequenas respostas. Lição número um: preparação.

- Não há muito para contar. Vou fazer uma viagem ao Brasil e prometi a um amigo que procuraria essa gente que ele conheceu intimamente há alguns anos.

Era uma variante da verdade, pensou Holcroft, e não de todo má. Talvez por isso tinha podido falar convincentemente. Lição número dois: basear a mentira num aspecto da verdade.

- E esse seu amigo tentou descobrir a família e não conseguiu?

- Estava a milhares de quilômetros de distância. Não é a mesma coisa...

- Sem dúvida. Por isso, em vista da distância e do receio desse seu amigo de que possam ter surgido complicações, prefere guardar sigilo sobre o nome da família?

- Exatamente.

- Não me parece tão exato assim. Seria muito mais simples esse seu amigo encarregar um escritório de advocacia aqui nos Estados Unidos de entender-se com um escritório de advocacia no Brasil e deixar que este fizesse as pesquisas. Não sei se sabe, mas isso é muito comum. A família em que seu amigo está interessado desapareceu e ele quer saber do paradeiro dela. Por que dar esse trabalho ao senhor?

O homem sorriu e encolheu os ombros como se tivesse exposto um simples problema de aritmética.

Noel olhou-o com crescente irritação. Lição número três: não se deixar cair numa armadilha em virtude de coisas ditas aereamente.

- Sabe de uma coisa? - disse ele. - O senhor é uma pessoa muito desagradável.

- Sinto muito que o senhor pense assim. Estou apenas querendo ajudá-lo. É essa a minha função aqui. E só lhe falei assim por um motivo. O senhor não é o primeiro nem será o último a procurar pessoas que chegaram ao Brasil na década de 40. Para falar com mais exatidão, essas pessoas eram, na maioria, alemães que levavam para o Brasil grandes importâncias em dinheiro transferidas por intermédio de neutros comprometidos. O que lhe estou tentando dizer é muito simples. Tenha muito cuidado. Essa gente não desaparece sem motivo.

- Que quer dizer com isso?

- Às vezes, essa gente tem de desaparecer, Mr. Holcroft. Sem falar nos tribunais de Nuremberg e nos caçadores israelenses, muitos desses homens possuíam fundos, às vezes consideráveis fortunas, roubadas dos povos conquistados, das suas instituições e até dos seus governos, e pode haver agentes que procurem recuperar esse dinheiro.

Noel sentiu uma contração no estômago. Havia uma relação, talvez abstrata e injustificada dentro das circunstâncias, mas havia. Os Von Tiebolt estavam implicados num roubo tão grande e tão complexo que fugia até dos processos normais de contabilidade. Mas não podia ser esse o motivo do desaparecimento deles. Lição número quatro: fique preparado para coincidências imprevistas; por maior que seja a tensão, não deixe transparecer as suas reações.

- Não creio que essa família possa estar envolvida em qualquer coisa dessa espécie - disse ele.

- Mas não tem certeza, pois sabe muito pouco dela.

- Está bem, vamos supor que eu tenha certeza. O que eu quero saber é como posso encontrá-los ou saber o que lhes aconteceu.

- Há advogados que podem contratar detetives.

- Mas eu não sou advogado. Os advogados são, por isso, meus inimigos naturais. Têm-me feito perder muito tempo. Além disso, posso fazer sozinho tudo o que um advogado pode fazer. Falo espanhol e darei um jeito de falar português.

- Compreendo - disse o funcionário, abrindo uma caixa de charutos que tinha em cima da mesa e estendendo-a para Holcroft. - Tem certeza disso?

- Tenho. E tenho pressa também.

- Vê-se.

O homem pegou um isqueiro de prata de mesa e acendeu o charuto. Depois da primeira baforada, encarou Holcroft.

- Não posso convencê-lo a dizer-me o nome dessa família?

- Oh, pelo amor de Deus! - exclamou Noel, levantando-se.

Bastava. Descobriria outras fontes de informação.

- Faça o favor de sentar-se - disse o homem do consulado. - Mais um minuto ou dois. Pode ficar certo de que não perderá seu tempo.

Noel viu a urgência nos olhos do homem e sentou-se.

- Que é?

- La comunidad alemana. Estou falando em espanhol, língua que conhece.

- A colônia alemã? Deve haver, sem dúvida, uma colônia alemã no Rio. E daí?

- Há, sim, e não é apenas geográfica. Há uma concentração de alemães num certo distrito, um bairro alemão, se quiser, mas não é disso que eu estou falando. Falo do que se poderia chamar la otra cara de los alemanes.

- A outra cara... o que está abaixo da superfície, é isso?

- Exatamente. O outro lado. O que faz deles o que são e os leva a fazer o que fazem. É importante que o senhor compreenda.

- Creio que compreendo. Já explicou tudo. Muitos eram nazistas que conseguiram fugir das malhas dos julgamentos de Nuremberg, trazendo um dinheiro que não lhes pertencia, e tinham de se ocultar, mudando até de identidade. Naturalmente essas pessoas são muito unidas.

- Naturalmente - disse o homem do consulado. - Mas não acha que depois de tantos anos devia haver maior assimilação?

- Por quê? Trabalha aqui em Nova York. Vá ao East Side, à Mulberry Street ou ao Bronx. Encontrará enclaves de italianos, poloneses e judeus. Moram aqui há vinte e cinco ou trinta anos.

- Há semelhanças, sem dúvida, mas não é a mesma coisa. Essas pessoas de quem fala em Nova York se associam abertamente com os americanos. Usam as suas tradições superficialmente. Não é como no Brasil. A colônia alemã finge estar assimilada, mas não está. Nas relações comerciais há alguma aproximação, mas pouca coisa além disso. Há um sentimento dominante de medo e de raiva. Muitos foram caçados durante muito tempo. Mil identidades são ocultas diariamente, menos dos outros alemães. Têm a sua organização própria. Três ou quatro famílias dominam a colônia e têm vastas propriedades no interior. É claro que se dizem suíços ou bávaros. Começa a entender o que eu estou dizendo?

- Francamente, não - disse Noel. - Nada do que disse me surpreende. Falou-se muito em Nuremberg de "crimes contra a humanidade". Isso pode provocar profundos sentimentos de culpa, e a culpa gera medo. É claro que essa gente que vive num país que não é o seu tem de manter-se unida.

- A culpa gera de fato medo. E o medo por sua vez produz desconfiança e a desconfiança pode degenerar em violência. É isso que deve compreender. Um desconhecido que chega ao Rio de Janeiro procurando alemães desaparecidos está empreendendo uma pesquisa muito perigosa. Os alemães se protegem entre si. Diga o nome, Mr. Holcroft. Vamos procurar essa família juntos.

Noel olhou para o homem que fumava o seu charuto e se sentiu de repente, sem saber por quê, muito inquieto. Não se deixar cair numa armadilha em virtude de coisas ditas aereamente.

- Não posso. Creio que está exagerando e é evidente que não vai me ajudar - disse ele, levantando-se.

- Muito bem. Vou lhe dizer o que pode descobrir pessoalmente. Quando chegar ao Rio de Janeiro, vá ao Serviço de Imigração. Se tiver nomes e datas aproximadas, isso o ajudará muito.

- Muito obrigado - disse Noel, encaminhando-se para a porta.

O homem que falara com Holcroft saiu da sala para uma grande antecâmara que servia de área de recepção. Um homem jovem sentado numa poltrona levantou-se rapidamente ao ver seu superior.

- Pode voltar para sua sala, João.

- Obrigado, Excelência.

O outro homem continuou, passou por uma recepcionista e entrou por uma porta com as armas do Brasil e os dizeres: "República Federativa do Brasil - Escritório do cônsul-geral".

O cônsul-geral falou com sua secretária numa sala menor e entrou no seu gabinete.

- Ligue-me para a embaixada em Washington. Quero falar com o embaixador. Se ele não estiver, devem procurá-lo até achá-lo. Digam-lhe que é um assunto confidencial e ele saberá se pode ou não falar.

O mais categorizado representante do Brasil na maior cidade dos Estados Unidos foi até a porta, fechou-a e sentou-se à sua mesa. Pegou um maço de papéis grampeados juntos. As primeiras páginas eram fotocópias de notícias de jornais a respeito do crime a bordo do avião da British Airways, voo 591, de Londres para Nova York, com a descoberta posterior de dois assassinatos na pista do aeroporto. As duas últimas páginas eram uma cópia do manifesto dos passageiros do avião. O diplomata leu os nomes até que encontrou o de Holcroft, Noel, que partira de Genebra no voo 577 da British Airways e se transferira em Londres para o voo 591 da mesma companhia com destino a Nova York. Olhou a informação como se estivesse satisfeito de encontrá-la ainda ali.

O telefone tocou e ele atendeu.

- Pronto.

- O embaixador está na linha.

- Obrigado.

O cônsul-geral ouviu um ruído, que indicava que um aparelho eletrônico estava em ação para causar interferências nas ligações telefônicas.

- Senhor embaixador?

- Alô, Geraldo. Que é que há de tão urgente e confidencial?

- Há poucos minutos, esteve aqui um homem querendo saber como poderia descobrir no Rio uma família que não conseguiu encontrar por meios normais. O nome do homem é Holcroft, Noel Holcroft, um arquiteto de Nova York.

- Isso não significa nada para mim - disse o embaixador. - Deve significar?

- Só se passou os olhos pela lista de passageiros do avião da British Airways que partiu no sábado de Londres.

- Voo 591? - perguntou o embaixador.

- Sim. O homem partiu de Genebra de manhã pela British Airways e se transferiu em Heathrow para o voo 591.

- E agora quer descobrir gente no Rio. Que gente é essa?

- Não quis dizer. Naturalmente, falou comigo sem saber que eu era o cônsul-geral.

- Claro. Conte-me tudo, que eu vou telegrafar para Londres. Acha que é possível...

- Acho, sim. É muito possível que esteja procurando os Von Tiebolt.

- Conte-me tudo - disse o homem de Washington. - Os ingleses acreditam que esses assassinatos foram obra do Tinamou.

Noel teve uma sensação de déjà vu viajando no bar do voo 747 da Braniff. As cores eram mais vivas, os uniformes do pessoal da companhia, mais elegantes. Excetuando isso, o avião parecia idêntico ao do voo 591 da British Airways. Havia também uma diferença de atitude. Aquele era um voo de carreira do Rio que começava no céu e ia terminar nas praias douradas da cidade.

Mas para ele, pensou Holcroft, a ocasião nada tinha de festiva. A única satisfação só poderia ser a da descoberta, quando se inteirasse do paradeiro dos Von Tiebolt ou se convencesse do desaparecimento irremediável da família.

Já estavam no ar havia mais de cinco horas. Ingerira um almoço dispensável, dormira durante quase toda a exibição de um filme mais que dispensável e resolvera subir para o bar.

Demorara o mais possível a subir. A lembrança do que acontecera uma semana antes ainda era muito desagradável. O incrível sucedera. Um homem fora assassinado a pouco mais de um metro do lugar onde ele estava sentado. Em dado momento, poderia ter estendido a mão e tocado o homem que se contorcia. A morte estivera a centímetros dele, a morte por envenenamento, o crime.

Estricnina. Tratava-se de um alcaloide incolor e cristalino que causava paroxismos de dor insuportável. Por que havia acontecido isso? Seria ele responsável e como? Os fatos eram específicos e as hipóteses, pura especulação.

Dois homens tinham estado fisicamente perto da vítima no bar do voo 591. Qualquer deles poderia ter colocado o veneno no copo da vítima. Era de presumir que um deles tivesse feito isso. Mas por quê? De acordo com a polícia da Administração do Porto, não havia sequer provas de que os dois homens conhecessem Thornton. E os dois homens, suspeitos do crime, tinham sido assassinados pouco depois a bala, num caminhão de abastecimento que estava na pista. Tinham desaparecido do avião, da área de inspeção da alfândega, da sala de quarentena, lugares esses bem vigiados, e tinham sido assassinados. Por quê? Por quem?

Ninguém sabia. Só havia dúvidas e, ainda assim, essas dúvidas cessaram, à míngua de alimento. O caso desaparecera dos jornais e das estações de rádio e televisão tão repentinamente quanto aparecera, como se houvesse uma ordem de silêncio. Por quê? Quem era responsável por ela?

- Foi scotch on the rocks, não foi, Mr. Holcroft?

A sensação de déjà vu era completa. A outra aeromoça lhe fizera a mesma pergunta. A que naquele momento colocava o seu copo na mesinha redonda de fórmica era bem bonita. A do voo 591 também era bonita. O seu olhar era semelhante ao da outra. E as palavras pronunciadas, até com o uso do seu nome, eram as mesmas, apenas com a variação do sotaque. Tudo era muito igual. Estaria o seu espírito - os olhos, os ouvidos, os sentidos - preocupado com a lembrança do que acontecera uma semana antes?

Agradeceu à aeromoça, quase com medo de olhar para ela, pensando que a qualquer momento iria ouvir um grito e ver um homem contorcer-se em convulsões incontroláveis ao lado da divisão.

Noel percebeu então mais alguma coisa que agravou, a sua inquietação. Estava sentado na mesma cadeira que ocupara durante aqueles terríveis momentos do voo 591. A saleta era idêntica àquela em que estivera uma semana antes. Não havia nada de extraordinário. Preferia realmente uma mesa nessa posição e quase sempre se sentava ali. Mas naquele momento isso lhe parecia ter uma significação macabra.

"Foi scotch on the rocks, não foi, Mr. Holcroft?"

Uma mão estendida, uma carinha bonita, um copo.

Imagens, sons.

Sons. Risos roucos de bêbados. Um homem que bebera muito perdendo o equilíbrio e caindo para trás sob a borda da cadeira. O seu companheiro rindo do amigo desastrado. Outro homem - o homem que dali a momentos estaria morto - querendo a todo custo participar da alegria dos outros dois. A aeromoça enxugando o balcão porque um copo fora derramado. E o terceiro homem estendendo a mão para o copo, querendo ainda participar...

Um copo. O copo! O único copo que restava no bar.

O terceiro homem tinha estendido a mão para esse copo!

Havia nele scotch on the rocks. O drinque se destinava ao passageiro sentado do outro lado da saleta diante da mesinha de fórmica. Meu Deus, pensou Holcroft, com as imagens a se lhe atropelarem no cérebro, o drinque do bar, o que o desconhecido chamado Thornton havia tomado, era a ele, Holcroft, que se destinava!

A estricnina era para ele! Ele é que devia ter aquelas terríveis convulsões de agonia! Aquela pavorosa morte ia ser a sua!

Olhou para o copo à sua frente, entre os seus dedos.

"Foi scotch on the rocks, não foi?"

Empurrou o copo para o lado. Sentiu que não podia mais ficar naquela mesa, naquele bar. Tinha de sair, de varrer do espírito aquelas imagens, que eram muito claras, muito reais, muito horríveis.

Levantou-se e se encaminhou a passos rápidos e incertos para a escada. Os sons de risos de bêbados se entremeavam com um grito incessante de tormento que era o estertor da morte súbita. Ninguém mais podia ouvir aqueles sons que lhe martelavam a cabeça.

Desceu a escada. Embaixo, a luz estava amortecida. Alguns passageiros liam sob a luz forte de pequenos focos, mas quase todos dormiam.

Noel estava atordoado. Nem o martelar em seus ouvidos nem as imagens cessavam. Teve vontade de vomitar, de livrar-se do medo que lhe apertava o estômago. Onde era o banheiro? Na cozinha... atrás da cozinha? Por trás da cortina, decerto. Ou não? Abriu a cortina.

De repente, sentiu os olhos atraídos para a direita, para a primeira cadeira da segunda seção do 747. Um homem se movera no sono. Era um homem robusto cujo rosto ele já vira em algum lugar. Não lembrava onde, mas já o vira. Uma face cavada pelo pânico passara bem perto dele. Que havia naquele rosto? A impressão fora breve, mas forte. Qual fora?

As sobrancelhas! Era isso. Sobrancelhas espessas e grisalhas. Onde tinha sido? Por que a visão daquelas sobrancelhas estranhas lhe despertava recordações imprecisas de outro ato de violência? Não podia lembrar-se, e essa impossibilidade fez-lhe o sangue subir à cabeça. O martelar tornou-se mais forte e as têmporas começaram a latejar.

De repente, o homem das espessas sobrancelhas acordou, talvez percebendo que estava sendo observado. Os olhares se encontraram e o reconhecimento foi absoluto.

E havia violência nesse reconhecimento. Mas, de quê? Onde? Onde?

Holcroft fez um gesto com a cabeça, sentindo-se incapaz de pensar. A dor no estômago era lancinante e na cabeça ressoavam barulhos de trovoada. Por um momento, esqueceu-se de onde estava. Mas logo se lembrou e as imagens voltaram. Tornou a sentir as visões e os ruídos de um crime de que só por acaso não fora a vítima.

Tinha de voltar para o seu lugar. Teve de controlar-se para dominar a dor, o trovejar e a opressão no peito. Voltou-se e passou rapidamente além da cortina e da cozinha, para chegar à sua cadeira.

Sentou-se dentro da semiescuridão, satisfeito de que não houvesse ninguém ao lado dele. Pousou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos, procurando com toda a sua energia livrar-se da visão terrível de uma máscara grotesca, a contorcer-se nos seus derradeiros arrancos de vida. Mas não pôde.

O rosto do homem transformou-se no seu rosto.

Depois, as feições se desvaneceram, como se estivessem a derreter-se para assumir nova forma. Não reconheceu o rosto que então lhe apareceu. Era estranho e anguloso. Em algumas coisas parecia conhecido, mas não em conjunto.

Teve uma exclamação involuntária. Nunca tinha visto aquele rosto, mas de repente soube de quem era. Reconheceu instintivamente Heinrich Clausen. Um homem em agonia trinta anos antes. O pai desconhecido com quem tinha um pacto.

Holcroft abriu os olhos, que ardiam da transpiração que lhe descera pelo rosto. Havia outra verdade e ele não sabia se queria reconhecê-la. Os dois homens que haviam tentado matá-lo com estricnina tinham sido mortos. Haviam interferido.

Os homens da Wolfsschanze tinham estado a bordo daquele avião.


7

O homem da portaria do Hotel Porto Alegre tirou da estante a reserva de Holcroft. Um pequeno envelope estava preso ao cartão por um grampo. O homem entregou-o a Noel.

- Este telegrama chegou para o senhor esta noite, depois das sete horas.

Holcroft não conhecia ninguém no Rio de Janeiro e não dissera a ninguém em Nova York para onde ia. Abriu o envelope e tirou o telegrama. Era de Sam Buonoventura. Devia telefonar-lhe o mais depressa possível, fosse qual fosse a hora.

Holcroft olhou para o seu relógio. Era quase meia-noite. Assinou o registro de hóspedes e disse com a maior calma do mundo, pensando em Sam:

- Quero telefonar para Curaçau. Haverá algum problema a esta hora?

O homem do hotel sorriu.

- Da parte de nossas telefonistas, é claro que não. Não sei é se haverá em Curaçau.

Fossem quais fossem as dificuldades, à uma e quinze da madrugada Noel ouviu o vozeirão de Sam do outro lado da linha.

- Parece que está com um problema, Noley.

- Um só? Qual é?

- O serviço de atendimento de telefones deu meu telefone a um policial em Nova York, um tal Tenente Miles, que é detetive. Estava furioso. Disse que você tinha obrigação de informar a polícia se deixasse a cidade, quanto mais se saísse do país.

Ih, tinha esquecido! E só agora compreendia como eram importantes aquelas instruções. Era a ele que se destinava a estricnina. Teria a polícia chegado à mesma conclusão?

- Que foi que você disse a ele, Sam?

- Encrespei também. É a única maneira de lidar com gente da polícia quando está zangada. Disse que você estava numas ilhas afastadas, fazendo um levantamento para uma possível instalação pela qual havia muito interesse em Washington. Um pouco ao norte, mas não muito longe da Zona do Canal. Devia compreender que eu não podia dizer mais do que isso.

- Ele aceitou isso?

- Isso é que eu não sei. Quer que você telefone para ele. Mas fiz você ganhar um bocado de tempo. Disse que você tinha falado comigo pelo rádio hoje de manhã e que só iria falar de novo dentro de três ou quatro dias. Antes disso, eu não me poderia comunicar com você. Ele então gritou como um porco sangrado.

- Mas se conformou?

- Que jeito? Disse que todos nós por aqui éramos uns idiotas e eu respondi que ele estava esquentando no caminho da verdade. Ele me deu dois telefones para você. Quer tomar nota?

- Pode dizer.

Holcroft tomou nota dos telefones. Um era da polícia da Administração do Porto e o outro, da casa de Miles. Depois, agradeceu a Sam e disse que lhe telefonaria na semana seguinte.

Noel tinha aberto as malas durante a prolongada espera pela ligação de Curaçau. Sentou-se numa cadeira de encosto de vime diante da janela e olhou para a noite - a praia branca e as águas escuras nas quais se refletia o crescente da lua. Embaixo, na parte isolada da rua ao lado da calçada do mar, ficavam as linhas paralelas e curvas, pretas e brancas, que eram Copacabana, a costa dourada da Guanabara. Havia em tudo um vazio que não decorria do fato de estar a rua deserta. Tudo era muito perfeito, muito belo. Nunca teria projetado as coisas daquela maneira, pois para ele havia uma ausência de personalidade. Voltou o olhar para as vidraças. Nada tinha para fazer senão pensar, descansar e esperar que pudesse dormir. O sono tinha sido muito difícil na semana anterior. Seria ainda mais naquela noite em que ele sabia o que havia ignorado até então: tinham tentado matá-lo.

Esse conhecimento produzia uma sensação estranha. Era duro crer que alguém quisesse vê-lo morto. Mas alguém tomara a decisão e dera a ordem. Por quê? Que tinha ele feito? Alguma coisa em Genebra? O pacto?

"Estamos lidando com milhões." Essas palavras do falecido Manfredi tinham sido uma advertência. Era a única explicação possível. A informação havia transpirado, mas não se podia saber até que ponto, nem quem fora afetado ou se sentira revoltado com ela. Não se podia também saber a identidade da pessoa ou das pessoas que queriam impedir a liberação da conta para submetê-la à decisão dos tribunais internacionais.

Manfredi tivera razão em julgar que a única solução moral era o cumprimento das intenções do documento redigido por três homens extraordinários, por entre a devastação produzida pelo monstro que haviam criado. É preciso fazer reparações. Fora essa a convicção de Heinrich Clausen. Era uma atitude honrosa e correta. À sua maneira desorientada, os homens da Wolfsschanze assim entendiam.

Noel serviu-se de um drinque, foi até a cama e sentou-se nela, olhando para o telefone. Ao lado, estava o papel com os números de telefone dados por Sam Buonoventura. Eram os seus elos com o Tenente Miles, da polícia da Administração do Porto. Mas Holcroft não se podia decidir a falar com ele. Havia começado a caçada, dera o primeiro passo para a procura da família de Wilhelm von Tiebolt. Passo era uma maneira de dizer. Tinha sido um imenso pulo de milhares de quilômetros e não havia mais jeito de recuar.

Restava ainda tanto por fazer! Noel duvidou de que tivesse forças para fazer tudo que era preciso e abrir caminho pela floresta desconhecida.

Sentiu as pálpebras pesadas. O sono estava chegando e era uma coisa muito boa. Largou o copo, tirou os sapatos e pouco se importou com a roupa. Deixou-se cair na cama e durante alguns segundos olhou para o teto branco. Sentia-se muito só, mas sabia que não era exatamente assim. Do passado, um homem em agonia estendia as mãos para ele. Pensou nesse homem até o sono chegar.

Acompanhando o tradutor, entrou no cubículo mal-iluminado e sem janelas. A conversa entre eles fora breve. Noel procurava informações específicas. Queria saber da família Von Tiebolt, natural da Alemanha, mãe e dois filhos - uma moça e um rapaz - que tinham emigrado para o Brasil por volta de 15 de junho de 1945. Havia ainda outra filha, que nascera poucos meses depois, provavelmente no Rio de Janeiro. Os registros não podiam deixar de conter alguma informação. Ainda que houvesse um nome falso, bastaria um simples exame dos imigrantes duas ou três semanas antes e depois daquela data para fornecer a informação desejada. Devia encontrar-se uma mulher grávida com dois filhos. Se houvesse mais de uma, o problema seria procurá-las. Um nome ou alguns nomes seriam encontrados.

Não, não se tratava de uma pesquisa oficial. Não havia acusações penais contra as pessoas procuradas. Não se tratava também de uma procura com vistas a vingar crimes cometidos trinta anos antes. Era, ao contrário, uma busca animada por boas intenções.

Noel sabia que lhe seria pedida uma explicação e se lembrava de uma lição aprendida no consulado em Nova York: basear a mentira num aspecto da verdade. A mentira que arquitetou foi que os Von Tiebolt tinham parentes nos Estados Unidos. Eram gente que havia emigrado para lá nas décadas de 20 ou de 30. Restavam poucos desses parentes e havia muito dinheiro deixado por alguns que tinham morrido. Os funcionários da Imigração haviam de querer decerto ajudar a descobrir os herdeiros. Era bem possível que os Von Tiebolt se mostrassem gratos à cooperação e ele, como intermediário, não deixaria de ressaltar esse fato.

Consultaram-se velhos registros. Centenas de cópias fotostáticas de outras épocas foram examinadas. Havia muitas cópias envelhecidas e desbotadas de documentos, muitos dos quais eram evidentemente falsos e comprados em Berna, Zurique e Lisboa. Passaportes.

Mas não havia documentos relativos aos Von Tiebolt, nem qualquer descrição de uma mulher grávida com dois filhos que tivesse chegado ao Rio em junho ou julho de 1945. De resto, nada parecia referir-se à mulher de Wilhelm von Tiebolt. Havia mulheres grávidas e até mulheres grávidas acompanhadas de filhos, mas nenhuma delas era da família Von Tiebolt. Segundo Manfredi, a filha, Gretchen, tinha em 1945 doze ou treze anos de idade e o menino, Johann, dez anos. Todas as mulheres que haviam entrado no Brasil naquelas semanas estavam acompanhadas de um marido verdadeiro ou falso, e, quando havia crianças, nenhuma delas tinha mais de sete anos de idade.

Holcroft considerou esse fato não só excepcional mas também matematicamente impossível. Examinou as páginas escritas com tinta já desbotada por funcionários apressados há trinta anos.

Havia algum erro para a sua visão de arquiteto. Teve a impressão de que estava estudando plantas inacabadas, nas quais estavam intercaladas pequenas alterações, como linhas apagadas e modificadas, mas com muito cuidado para não dar na vista.

Apagadas e modificadas. Apagadas quimicamente e modificadas cuidadosamente. Foi isso o que lhe chamou a atenção. Os anos de nascimento! Através de páginas e páginas, os algarismos tinham sido alterados. Um 3 se tornava um 8, um 1 um 9 e um 2 um 0, a curva conservada, uma linha acrescentada, um 0 a mais. Nas semanas de junho e julho de 1945, os anos de nascimento de todas as crianças entradas no Brasil tinham sido alterados, de modo que nenhuma delas nascera antes de 1938!

Era um artifício muito hábil, que devia ter sido elaborado meticulosamente. Destinava-se a estancar de saída todas as pesquisas. Mas isso tinha de ser feito de maneira a evitar suspeitas. Algarismos reproduzidos fiel ou apressadamente por funcionários já desaparecidos havia mais de trinta anos. A base tinham sido documentos depois destruídos, pois eram na sua maioria falsos. Não havia meio de confirmar ou negar a exatidão dos registros. O tempo tinha concorrido para que isso fosse impossível. E nem sinal dos Von Tiebolt. Que decepção!

Noel tirou do bolso o isqueiro. A sua chama proporcionaria mais luz para o exame de uma página onde pareciam ser mais numerosas as alterações.

- Não faça isso! - exclamou imediatamente o tradutor. - É expressamente proibido. Com tanto papel velho aqui, um incêndio destruiria tudo num instante. Não podemos correr esses riscos.

Holcroft compreendia. Isso explicava a luz insuficiente, o cubículo sem janelas.

- É claro - disse ele, guardando o isqueiro. - E, segundo creio, os livros não podem sair daqui.

- Não, não podem.

- E, sem dúvida, não há lâmpadas mais fortes e o senhor não tem uma lanterna elétrica, não é mesmo?

- Meu caro - disse o tradutor num tom cortês -, desculpe, mas já passei três horas com o senhor. Procurei cooperar sinceramente, mas deve compreender que tenho outras obrigações a atender. Assim, se já terminou...

- Creio que tomou providências para que eu terminasse antes mesmo de começar. Já acabei, sim. Pelo menos, aqui.

Saiu sob o luminoso sol da tarde, tentando coordenar os fatos, e sentindo o vento fresco do mar que lhe acariciava o rosto, acalmando-lhe a raiva e a frustração. Caminhava pelo passeio sobre as areias brancas da baía da Guanabara. De vez em quando, parava e ficava olhando as pessoas que corriam e jogavam na praia. Eram pessoas belas, queimadas de sol e admiráveis. Mas a graça e a arrogância coexistiam com o artifício. O dinheiro era evidente em toda parte, nos corpos dourados e lustrosos, quase sempre muito belos e perfeitos, com todas as falhas ocultas. Mas que havia, na verdade, de característico? Alguma coisa estava ausente de Copacabana naquela tarde.

Passou pela parte da praia defronte do seu hotel e olhou para as janelas, tentando localizar seu quarto. Por um momento, pensou que o havia encontrado, mas viu que se enganara. Havia dois vultos atrás das vidraças e das cortinas.

Acendeu um cigarro. O isqueiro fê-lo pensar nos registros de trinta anos atrás tão laboriosamente alterados. Teriam sido alterados expressamente para ele? Ou outras pessoas através dos anos haviam procurado os Von Tiebolt? Fosse qual fosse a verdade, tinha de recorrer a outras fontes.

La comunidad alemana. Recordou-se das palavras do homem que o atendera no consulado em Nova York. Dissera ele que três ou quatro famílias decidiam os destinos da colônia alemã. Depreendia-se daí que esses homens tinham de saber os mais bem-guardados segredos. Escondem-se identidades todos os dias... Um estrangeiro que chegar ao Rio procurando alemães desaparecidos estará empreendendo uma tarefa muito perigosa... "la otra cara de los alemanes". Protegem-se uns aos outros.

Havia uma maneira de eliminar o perigo. Podia estar na explicação que ele dera ao tradutor do Serviço de Imigração. Viajava muito, de modo que era perfeitamente plausível que alguém, sabendo que ele vinha para o Brasil, se tivesse aproximado dele e lhe pedisse que procurasse os Von Tiebolt. Tinha de ser uma pessoa que tratasse legitimamente de coisas sigilosas como, por exemplo, um advogado ou um banqueiro. Devia ser alguém cuja reputação estivesse acima de qualquer suspeita. Sem analisar detidamente o assunto, Holcroft sabia que essa é que tinha de ser a chave de sua explicação.

A pessoa em que pensou, compreendendo os riscos e percebendo a ironia do caso, foi Richard Holcroft, o único pai que havia conhecido. Corretor, banqueiro, oficial da Marinha... pai. O homem que tinha dado a uma jovem mãe inquieta e a seu filho uma oportunidade de viver de novo sem medo e sem pecha.

Noel olhou para o seu relógio. Eram cinco e dez, pouco depois das três horas em Nova York. O meio da tarde de uma segunda-feira. Todas as segundas-feiras à tarde, Richard Holcroft ia ao New York Athletic Club, onde velhos amigos jogavam um calmo squash e depois se sentavam em torno de mesas de carvalho no bar e trocavam reminiscências. Noel podia telefonar para o clube e falar-lhe em particular, pedindo a sua ajuda. A ajuda tinha de ser confidencial, pois o sigilo era não só a essência da ajuda mas também a base de sua proteção. Alguém, um homem de posição, tinha procurado Richard Holcroft e lhe pedira que descobrisse o paradeiro no Brasil de uma família de nome Von Tiebolt. Sabendo que o filho dele ia ao Rio, a pessoa pedira logicamente que o filho fizesse algumas pesquisas. Era um assunto confidencial, que não devia ser discutido. Ninguém era capaz de afastar os curiosos com mais autoridade do que Richard Holcroft.

Mas Althene não devia saber. Essa era a parte mais difícil. Richard adorava Althene. Não havia segredos entre eles. Mas seu pai - vá lá, seu padrasto - não lhe recusaria um pedido, desde que baseado numa necessidade legítima. Nunca recusara.

Caminhou pelo vestíbulo ladrilhado de mármore do hotel a caminho dos elevadores, sem dar atenção ao que o cercava e pensando no que iria dizer ao padrasto. Por isso, levou um susto quando um homem gordo lhe bateu no ombro.

- Estão chamando você, amigo - disse o homem, apontando para a portaria.

Por trás do balcão, o homem da portaria olhava para Noel, tendo na mão um papel que entregou a um boy. Este levou o papel às mãos de Holcroft.

O nome constante do papel era desconhecido. Havia também um número de telefone, sem nenhum recado ou esclarecimento. Holcroft se espantou. Era uma coisa fora do comum para um latino. Bem, o tal Carrara teria de telefonar de novo. No momento ele tinha de telefonar para Nova York, a fim de conseguir outra cobertura.

Mas, chegando ao quarto, tornou a ler o nome e teve a sua curiosidade espicaçada. Quem seria esse Carrara que esperava ser chamado apenas na base de um nome que nada significava para Holcroft? Na América do Sul, o procedimento era tão descortês que chegava a ser insultuoso. Seu padrasto podia esperar. Dentro de alguns minutos, saberia de que se tratava. Discou o número.

Carrara não era um homem, mas uma mulher, e, a julgar pela sua voz cheia de tensão, uma mulher assustada. O inglês dela não era muito bom, embora fosse aceitável. Isso não importava. A mensagem era tão clara quanto o medo que ela transmitia.

- Não posso falar agora, cavalheiro. Não torne a ligar para este telefone. Não é necessário.

- Mas deixou o número com a telefonista. Que esperava que eu fizesse?

- Foi um erro.

- Um erro?

- Sim. Telefonarei depois. Telefonaremos.

- Sobre quê? Quem é você?

- Mais tarde!

A voz da mulher descambou para um sussurro e deixou de ser ouvida quando a ligação foi interrompida.

Mais tarde... A mulher voltaria a telefonar. Holcroft sentiu um súbito vazio no estômago, tão súbito quanto o desaparecimento do sussurro amedrontado da mulher. Não se lembrava de já haver ouvido uma voz de mulher mais cheia de medo.

A primeira ideia que lhe ocorreu foi que ela estava de algum modo relacionada com os desaparecidos Von Tiebolt. Mas como? E de que maneira podia ela saber da existência dele? O sentimento de terror de novo o empolgou... e lhe reavivou a imagem do rosto horrivelmente contorcido na agonia da morte a nove mil metros de altura. Estava sendo observado; desconhecidos estavam a vigiá-lo.

Ouviu um chiado no telefone e percebeu que havia se esquecido de desligá-lo. Apertou o gancho, soltou-o e pediu a ligação para Nova York. Precisava de proteção o quanto antes, tinha certeza disso.

Foi até a janela e ficou esperando que a telefonista o chamasse. A rua lá embaixo estava inundada de luz. Os cromados de um carro brilharam quando um raio de sol incidiu sobre eles. O carro tinha passado pelo local da praia onde ele estivera momentos antes. Ficara justamente parado ali, tentando localizar a janela de seu quarto.

As janelas do hotel... O ângulo de visão. Noel se aproximou das vidraças e procurou calcular a diagonal do ponto onde estivera ao lugar onde estava no momento. O seu olho de arquiteto era treinado e os ângulos não o enganavam. Por outro lado, as janelas não ficavam muito perto umas das outras como era natural, dada a separação dos quartos de frente para o mar em Copacabana. Olhara de baixo, pensando que não era seu quarto porque vira vultos dentro dele atrás das vidraças. Mas era mesmo seu quarto. E tinha havido gente lá dentro.

Foi até o armário e olhou para as suas roupas. Confiava na sua memória para detalhes tanto quanto confiava em sua vista para linhas e ângulos. Lembrava-se do armário diante do qual tinha trocado de roupa naquela manhã. Tinha adormecido com o terno com o qual viera de Nova York. Às calças cinzentas tinham ficado do lado direito, quase encostadas à parede do armário. Era seu hábito: calças à direita, paletós à esquerda. As calças ainda estavam à direita, mas não encostadas à parede; estavam muitos centímetros para o centro. O blazer azul estava no centro e não do lado esquerdo.

Tinham dado uma busca nas suas roupas.

Foi até a cama e pegou a sua pasta do tipo 007. Era o seu escritório quando viajava. Conhecia o seu espaço até os últimos milímetros, todos os compartimentos e a posição de todos os artigos e papéis. Não foi preciso olhar muito. Tinham dado uma busca também em sua pasta.

O telefone tocou e o som lhe pareceu uma intrusão. Atendeu e ouviu a voz da telefonista do Athletic Club, mas ele sabia que não podia mais falar com Richard Holcroft, não podia envolvê-lo. As coisas de repente se haviam complicado muito e ele tinha de pensar.

- New York Athletic Club. Alô? Alô?... Alô, telefonista do Rio? Não há ninguém na linha, Rio. Alô? New York Athletic Club...

Noel colocou o fone no gancho. Ia fazer uma coisa insensata. Tinham revistado o seu quarto! Na sua necessidade de uma cobertura no Rio de Janeiro, estivera a ponto de apontar a pessoa mais próxima de sua mãe, que tinha sido a esposa de Heinrich Clausen. Onde é que estava com a cabeça?

Compreendeu então que nada estava perdido. E tinha aprendido outra lição. Deve-se insistir na mentira logicamente e depois examiná-la, aproveitando a parte mais digna de crédito. Se ele podia inventar uma razão para que um homem como Richard Holcroft ocultasse a identidade dos que procuravam os Von Tiebolt, podia então inventar o próprio homem.

Noel estava espantado. Havia quase cometido um erro terrível, mas já sabia o que devia procurar na floresta desconhecida. Os caminhos estavam infestados de armadilhas e era preciso manter-se vigilante e caminhar cautelosamente. Não podia incorrer num erro tal como aquele em que por pouco ia incorrendo. Chegara quase a arriscar a vida do pai que conhecia por um pai que não chegara a conhecer.

A mãe lhe dissera que muito pouco de valioso ou verdadeiro restava daquilo em que Clausen tocava. As palavras dela, como as de Manfredi, eram uma advertência. Mas a mãe, ao contrário de Manfredi, estava errada. Heinrich fora mais uma vítima do seu tempo do que um homem mau. A carta angustiosa que escrevera enquanto Berlim estava caindo confirmava isso, e o que ele tinha feito fora uma confirmação a mais. E o filho ia de certo modo provar isso mesmo.

La comunidad alemana. Três ou quatro famílias tomavam as decisões pela colônia alemã. Uma delas seria a sua fonte. E ele sabia exatamente onde tinha de procurar.

O homem velho e corpulento, com grande papada e cabelos de um cinzento de aço, cortado à maneira dos Junker, olhou para o intruso da grande mesa de jantar a que estava sentado. Comia sozinho e não havia lugares postos para pessoas da família ou convidados. Parecia estranho, pois quando a porta foi aberta para o intruso ouviram-se algumas vozes. Podia haver pessoas da família e convidados na grande casa, mas não estavam sentados à mesa.

- Temos novas informações sobre o filho de Clausen, Herr Graff - disse o intruso, aproximando-se da cadeira do velho. - Já sabe do telefonema para Curaçau. Mais dois telefonemas foram feitos hoje à tarde. Um para uma mulher de nome Carrara e o outro para um clube em Nova York.

- Os Carrara farão bem o seu serviço - disse Graff, com o garfo levantado e a carne balofa em volta dos olhos franzida. - Que clube é esse em Nova York?

- Um lugar chamado New York Athletic Club. É...

- Eu sei o que é. Um clube de gente rica. Para quem foi que ele telefonou?

- A ligação foi feita para o clube e não para uma pessoa determinada. Nossos homens em Nova York estão tentando descobrir de quem se trata.

O velho depositou o talher e falou em voz baixa, mas com absoluto desprezo.

- Nossos homens em Nova York são muito vagarosos. E você também é.

- Perdão...

- É claro que entre os sócios do clube se encontrará alguém com o nome de Holcroft. Neste caso, o filho de Clausen faltou à sua palavra e falou a Holcroft a respeito de Genebra. Isso é muito perigoso. Richard Holcroft é velho, mas não é fraco. Sempre soubemos que, se ele vivesse por muito tempo, poderia ser um obstáculo. O envelope que chegou a Sesimbra não dá margem a desculpas. Os acontecimentos daquela noite deviam ser muito claros para o filho. Telegrafe ao Tinamou. Não confio no seu representante aqui no Rio. Use o código da águia e diga o que penso. Nossos homens em Nova York terão outra tarefa, a eliminação de um velho intrometido. Richard Holcroft tem de ser afastado. O Tinamou vai exigir isso.


8

Noel sabia que estava à procura de uma livraria que era mais que um lugar onde se compravam livros. Em todas as grandes cidades, havia sempre uma livraria que atendia às necessidades de uma nacionalidade determinada. No Rio, havia, pois, uma livraria alemã. De acordo com o empregado do hotel, vendia livros e periódicos alemães e os últimos jornais trazidos pela Lufthansa. Era essa a informação que Holcroft procurava. Uma livraria assim devia ter fregueses com contas abertas ou, pelo menos, alguém que conhecesse as principais famílias alemãs estabelecidas no Rio. Se pudesse conseguir um ou dois nomes, já teria um ponto de partida.

A livraria ficava a menos de dez minutos do hotel.

- Sou um arquiteto americano - disse Noel a um empregado que estava no alto de uma escada arrumando livros numa prateleira. - Estou verificando a influência bávara em grandes residências. Tem alguma obra sobre o assunto?

- Não chega a ser propriamente um assunto - respondeu o homem num inglês fluente. - Há algumas construções em estilo de chalé alpino, mas não creio que haja nisso influência bávara.

Lição seis ou talvez sete: Ainda que a mentira seja baseada num aspecto da verdade, ter certeza de que a pessoa sabe ainda menos do que nós.

- Alpino, suíço ou bávaro, é tudo a mesma coisa.

- Acha? Pois eu creio que há consideráveis diferenças.

Lição oito ou nove: Não discuta. Não perca de vista o objetivo.

- Escute, para lhe dizer a verdade, um casal de milionários em Nova York me pagou para vir até aqui e desenhar algumas fachadas. Estiveram no Rio há alguns meses e viram casas de que gostaram muito e descreveram como de estilo bávara.

- Devem estar no interior. Há várias casas maravilhosas por lá. A mansão dos Eisenstat, por exemplo. Mas creio que são judeus, e, por isso talvez, há uma estranha mistura de traços mouriscos. E há a mansão Graff. Quase excessiva, mas espetacular. Mas isso não é de admirar, pois Graff é muitas vezes milionário.

- Como é o nome do homem? Graff?

- Maurice Graff. É um importador, mas, afinal de contas, que é que são todos eles?

- Quem?

- Não seja ingênuo. Se ele não foi um general ou um figurão do Alto Comando, sou um homem que urina vinho do porto.

- Você é inglês.

- Sou inglês, sim.

- Mas trabalha numa livraria alemã.

- Ich spreche gut Deutsch[4].

- Por que não escolheram um alemão para o lugar?

- Creio que há vantagens em ter alguém como eu aqui.

- Sério? - perguntou Noel, fingindo surpresa.

- Claro - disse o outro, subindo mais um degrau da escada. - Ninguém me faz perguntas.

O empregado viu o americano sair da livraria e desceu prontamente da escada, empurrando-a então pelos trilhos com um rápido impulso da mão. Era um gesto de realização, um pequeno triunfo. Caminhou rapidamente por entre as estantes e virou-se tão abruptamente ao dobrar uma estante que colidiu com um freguês que examinava um volume de Goethe.

- Verzeihung[5] - disse o empregado, um pouco sem fôlego, mas de modo algum preocupado.

- Schwesterchen[6] - disse o homem que tinha espessas sobrancelhas grisalhas.

Ao ouvir essa referência à sua falta de masculinidade, o empregado voltou-se para o homem e exclamou:

- Você!

- Os amigos do Tinamou nunca estão muito longe - disse o homem.

- Seguiu-o?

- Ele nem desconfiou. Vá dar o seu telefonema.

O inglês se encaminhou para o escritório nos fundos da livraria. Entrou, pegou o telefone e discou. Quem atendeu foi um auxiliar do alemão mais poderoso do Rio.

- Residência do Sr. Graff. Boa tarde.

- Nosso homem no hotel merece uma boa gratificação - disse o empregado da livraria. - Ele estava certo. Quero falar com Herr Graff. Fiz precisamente o que combinamos e de maneira espetacular. Não tenho dúvida de que ele vai telefonar. Quero falar agora com Herr Graff, sim?

- Transmitirei o seu recado, está bem?

- Não está bem coisa nenhuma! Tenho outras notícias que só poderei dar a ele.

- A respeito de quê? Não é preciso dizer que ele é um homem muito ocupado.

- Quero falar sobre um patrício meu. Estou sendo claro ou não estou?

- Sabemos que ele está no Rio. Já fez contato conosco. Sabe mais alguma coisa?

- Ainda está aqui na livraria. Pode estar esperando para falar comigo.

O auxiliar falou com alguém que estava perto. As suas palavras foram perfeitamente audíveis.

- É o ator, mein Herr. Insiste em falar-lhe. Tudo se passou como estava previsto, mas parece que há uma complicação. O patrício dele ainda está na livraria.

O telefone passou para outras mãos.

- Que é que há? - perguntou Maurice Graff.

- Queria dizer-lhe que tudo correu exatamente como estava previsto...

- Sei disso. Você fez um bom trabalho. Que é que há com o Engländer[7]? Ainda está aí?

- Seguiu o americano. Não estava a mais de três metros dele. Ainda está aqui e deve querer saber o que está acontecendo. Que é que eu vou fazer?

- Nada - respondeu Graff. - Somos muito capazes de tratar das coisas aqui sem interferência. Diga-lhe que estamos preocupados com a possibilidade de que ele seja reconhecido e que, portanto, deve sair de circulação. Diga-lhe também que não estou de acordo com os métodos dele. Pode dizer que ouviu isso pessoalmente de mim.

- Obrigado, Herr Graff! Será um prazer para mim!

- Sei disso.

Graff devolveu o telefone ao seu auxiliar e disse:

- O Tinamou não deve deixar isso acontecer. Tudo começa de novo.

- O quê, mein Herr?

- Tudo recomeça - continuou o velho. - A interferência, as observações silenciosas, uns sobre os outros. A autoridade se divide e todos são suspeitos.

- Não compreendo.

- Claro que não compreende. Você não estava presente. Mande outro telegrama para o Tinamou. Diga-lhe que solicitamos que ele ordene que o seu lobo volte ao Mediterrâneo. Ele está assumindo muitos riscos. Somos contrários e, dentro das circunstâncias, não podemos ser responsáveis.

Depois de vários telefonemas e um intervalo de vinte e quatro horas, teve notícia de que Graff afinal o receberia pouco depois das duas horas da tarde seguinte. Holcroft alugou um carro numa agência e saiu da cidade à procura da mansão Graff. Parava de quando em quando para consultar o mapa fornecido pela agência. Encontrou finalmente a casa e entrou pelo portão de ferro para subir a ladeira que levava à casa no alto de um morro.

A estrada se ampliava numa grande área de estacionamento de concreto branco, rodeada de sebes verdes interrompidas por alguns caminhos calçados de lajes que passavam por entre árvores frutíferas.

O homem da livraria dissera a verdade. A mansão Graff era espetacular. A vista era maravilhosa: planícies próximas, montanhas ao longe e muito a leste a névoa azulada do Atlântico. A casa tinha uma altura de três andares. Dos dois lados da entrada alteava-se uma série de balcões, com grandes portas duplas de madeira envernizada, tendo como dobradiças grandes peças triangulares de ferro. O efeito geral era alpino, como se os desenhos geométricos de muitos chalés suíços se tivessem fundido num só para serem depositados no alto de um morro tropical.

Noel parou o carro à direita dos degraus da entrada e desceu. Havia mais dois carros no local de estacionamento, uma limusine Mercedes branca e um Maserati baixo, vermelho. A família Graff se locomovia bem. Holcroft pegou a sua maleta 007 e a sua máquina fotográfica e subiu os degraus de mármore.

- Fico muito satisfeito de que os meus modestos esforços arquitetônicos sejam apreciados - disse Graff. - Creio que é natural que homens transplantados como eu tentem reconstituir um pouco da terra natal no seu novo ambiente. Minha família é natural da Floresta Negra e as recordações nunca desaparecem de todo...

- Muito agradeço ter-me recebido, senhor.

Noel guardou na maleta cinco desenhos feitos às pressas e tornou a fechá-la.

- Falo em meu nome e no dos meus clientes.

- Tem tudo de que precisa?

- Um rolo de filme e cinco desenhos da fachada. É mais do que eu esperava. O cavalheiro que me serviu de guia avisou-me de que as fotografias deviam limitar-se aos detalhes estruturais externos.

- Por que está me dizendo isso?

- Para que não pense que eu tive a ideia de fotografar qualquer dos aspectos particulares de sua casa.

Maurice Graff sorriu.

- Minha casa é muito bem protegida, Mr. Holcroft. Além disso, nunca me passou pela cabeça a ideia de que o senhor estivesse observando a casa com intuito de roubá-la. Faça o favor de sentar-se.

- Muito obrigado - disse Noel, sentando-se diante do velho. - Nestes tempos, algumas pessoas podem parecer suspeitas.

- Bem, não vou enganá-lo. Telefonei para o Hotel Porto Alegre e verifiquei que o senhor está de fato hospedado lá. É um homem chamado Holcroft, procedente de Nova York, e a sua reserva foi feita por uma agência de turismo conceituada, que sem dúvida o conhece. Usa cartões de crédito de validade apurada pelos computadores. Entrou no Brasil com um passaporte legítimo. Que mais era necessário? Os tempos são tecnicamente muito complicados para que um homem se faça passar por alguém que não é. Estou certo ou não estou?

- Sem dúvida - murmurou Noel, pensando que talvez fosse aquele o momento de passar ao verdadeiro objetivo de sua visita. Já ia falar quando Graff continuou como para preencher um silêncio desagradável.

- Quanto tempo vai ficar no Rio?

- Mais alguns dias apenas. Já tenho o nome do seu arquiteto e procurarei conversar com ele logo que tiver tempo disponível para mim.

- Mandarei minha secretária telefonar. Não haverá demora. Não sei como se arrumam essas coisas financeiramente, mas tenho certeza de que ele lhe fornecerá cópias das plantas de minha casa, se precisar delas.

Noel sorriu, todo profissional.

- Não se trata disso, senhor. Minha visita seria mais uma questão de cortesia do que outra coisa. Poderia perguntar-lhe a origem de certos materiais de construção, ou como determinados problemas foram resolvidos, e só. Não lhe pediria as plantas, pois ele teria todo o direito de as recusar.

- Não haveria essa recusa - disse Graff com uma intensidade que era um reflexo do seu passado militar.

Se ele não foi um general ou um figurão do Alto Comando...

- Mas isso não é importante para mim, senhor. Já consegui o que queria.

- Compreendo.

Graff ajeitou o corpanzil na cadeira. Era o movimento de um velho ao fim de uma longa tarde. Mas os olhos não estavam cansados. Pareciam, ao contrário, muito vivos.

- Uma hora será então suficiente, Mr. Holcroft?

- Sem dúvida alguma.

- Vou tomar providências.

- É muita gentileza sua.

- Depois disso, poderá voltar para Nova York.

- Decerto.

Era o momento de mencionar os Von Tiebolt.

- Para dizer a verdade, há outro assunto de que tenho de tratar enquanto estiver aqui no Rio. Não é de muita importância, mas prometi fazer alguma coisa e não sei por onde começar. A polícia, talvez...

- A polícia? Por quê? Algum crime?

- Muito ao contrário. Estou falando do departamento da polícia que se encarrega de procurar pessoas desaparecidas. O nome não consta da lista telefônica. Procurei mesmo nomes que não constam da lista. As pessoas a quem procuro não têm telefone.

- Tem certeza de que estão no Rio?

- Na última vez em que se teve notícias delas, estavam. E eu sei que foram procuradas em outras cidades brasileiras, também por meio das listas telefônicas.

- Isso me interessa, Mr. Holcroft. Julga tão importante assim encontrar essa gente? Que foi que fizeram? Mas já me disse que não se trata de crime.

- Crime, não. Mas, na realidade, sei muito pouco. Um amigo meu em Nova York, que é advogado, sabendo que eu vinha ao Brasil, pediu-me que fizesse o possível para descobrir essa família. Parece que uns parentes deixaram algum dinheiro no centro-oeste.

- Uma herança?

- Sim.

- Então talvez deva procurar um advogado aqui no Rio.

- Meu amigo se comunicou com vários colegas brasileiros, mas não conseguiu uma resposta satisfatória.

- Como ele explicou isso?

- Não explicou. Limitou-se a ficar aborrecido. Creio que o dinheiro da herança não foi suficiente para interessar três advogados.

- Três advogados?

- Sim - disse Noel, espantado consigo mesmo. Estava preenchendo as lacunas instintivamente, sem pensar. - Há um advogado em Chicago ou St. Louis, meu amigo em Nova York e o advogado aqui no Rio. Não creio que o que é confidencial para estranhos seja confidencial entre advogados. Podem ter achado que havia muito pouco dinheiro para dividir.

- Mas esse seu amigo é um homem de consciência - disse Graff, levantando as sobrancelhas em admiração.

- É o que eu penso.

- Talvez eu possa ajudar. Tenho alguns amigos.

- Não, eu não poderia pedir-lhe isso. Já fez muito por mim esta tarde e, como eu disse, o caso não é tão importante assim...

- Naturalmente, eu não pensaria em me intrometer em assuntos confidenciais - disse Graff, encolhendo os ombros.

O alemão olhou para as janelas, apertando os olhos. O sol desaparecia por trás das montanhas a oeste e raios de luz alaranjada entravam pelas vidraças, dando um tom novo e mais rico às madeiras da sala.

- O nome da família é Von Tiebolt - disse Noel, olhando para o rosto do homem. Mas, fosse o que fosse que tivesse visto, estava inteiramente despreparado para o que aconteceu.

Os olhos de Graff se arregalaram e pareceram envolver Holcroft num olhar carregado de ódio e desprezo.

- Você é um porco - disse o alemão numa voz tão baixa que mal podia ser ouvida. - Usou um truque, um expediente vergonhoso para entrar em minha casa e chegar até a mim.

- Está errado, senhor. Pode telefonar para o meu amigo em Nova York...

- Porco! - exclamou o velho. - Os Von Tiebolt! Verräter![8] Imundo! Covarde! Schweinhunde![9] Como se atreveu?

Noel estava perplexo. A raiva descorava o rosto de Graff. As veias do pescoço pareciam a ponto de saltar da pele, os olhos estavam injetados e as mãos tremiam, agarrando os braços da cadeira.

- Não compreendo - disse Holcroft, levantando-se.

- Compreende, sim, sujo! Está procurando os Von Tiebolt! Quer dar-lhes vida de novo.

- Estão mortos?

- Tomara que estivessem!

- Escute, Graff! Se sabe de alguma coisa...

- Saia da minha casa! - O velho se levantou e gritou para a porta fechada da sala. - Werner! Komm’ hier![10]

O auxiliar de Graff entrou impetuosamente.

- Mein Herr? Was ist[11]...

- Leve este impostor daqui! Ponha-o para fora de minha casa!

O auxiliar olhou para Holcroft.

- Por aqui, depressa!

Noel apanhou a sua pasta 007 e se encaminhou rapidamente para a porta. Parou e voltou-se para olhar uma vez mais para o enfurecido Graff. O velho alemão parecia um manequim grotesco, mas não podia controlar o seu tremor.

- Saia! Você é desprezível!

Esse último insulto abalou a calma de Noel. O desprezível não era ele. Era aquela figura arrogante à sua frente, a própria imagem da inconsciência e da brutalidade. Era um homem, um monstro que traíra e depois destruíra há trinta anos um homem em agonia... e milhares como ele. Era um nazista!

- Não está em condições de me insultar.

- Vamos ver quem está ou não está em condições. Saia!

- Vou sair, general ou seja lá que diabo for, e já saio tarde para o meu gosto, pois agora compreendo tudo. Para você não sou diferente do último cadáver que vocês queimaram, mas bastou que eu mencionasse um nome para que não pudesse suportá-lo. Está assim exaltado porque sabe, e eu sei também, que Von Tiebolt compreendeu quem vocês eram há trinta anos. Quando os cadáveres estavam se empilhando, ele viu quem vocês realmente eram!

- Nunca escondemos o que éramos! O mundo sabia. Não houve mentira do nosso lado!

Holcroft parou e deglutiu involuntariamente. Na sua explosão de cólera, tinha de procurar justiça para o homem que lhe gritava do fundo da sepultura. Tinha de reagir diante daquele símbolo de um poder outrora tremendo e que se tornara decadente, mas que lhe roubara um pai. Não podia agir de outro modo.

- Fique sabendo de uma coisa! Vou achar os Von Tiebolt e você não me vai impedir. Não pense que pode fazer alguma coisa contra mim. Não pense que está me marcando, porque não pode fazer isso. Eu é que o estou marcando exatamente pelo que você é! Você usa a sua Cruz de Ferro um tanto ostensivamente!

Graff tinha recuperado o domínio de si mesmo.

- Quando encontrar os Von Tiebolt, nós estaremos lá!

- Eu os encontrarei, e, quando encontrar, se alguma coisa lhes acontecer, saberei quem é o responsável. Eu o denunciarei pelo que é. Pode ficar aqui em seu castelo, dando as suas ordens, fingindo que ainda está vivo. Você estava liquidado, muitos anos antes do fim da guerra, e homens como Von Tiebolt sabiam disso. Eles compreenderam, mas você não compreendeu e jamais compreenderá.

- Fora!

Um guarda entrou na sala e prendeu por trás os braços de Noel. Um braço foi passado por cima do seu ombro direito e do peito. Foi levantado um pouco do chão e puxado para fora da sala. Sacudiu a sua pasta 007 e sentiu o impacto no corpo do homem que o arrastava pela porta. Meteu o cotovelo esquerdo com toda a força no estômago do homem que o pegava pelas costas e deu um pontapé para trás, atingindo com o calcanhar a canela do homem. A reação foi imediata. O homem deu um grito e afrouxou momentaneamente a pressão sobre o corpo de Holcroft. Foi o bastante.

Holcroft levantou a mão esquerda. Agarrando a manga do braço estendido, puxou-o para a frente com toda a sua força. Dobrou o corpo para a direita. Com o ombro direito, fez força contra o peito do homem que se elevava às suas costas. O assaltante tropeçou. Noel deu mais um golpe com o ombro no peito levantado, jogando o atacante sobre uma cadeira antiga encostada à parede. Houve um impacto do corpo do homem na delicada peça de madeira, que desabou com o peso do corpo. O guarda ficou atordoado, com os olhos por um momento parados.

Holcroft olhou para o homem. Era grande, mas o seu volume era a parte mais ameaçadora dele. E esse volume era, como o do velho Graff, uma montanha de carne dentro de um paletó apertado.

Pela porta aberta, Holcroft viu Graff pegar no telefone em cima de sua mesa. O auxiliar, a quem ele tinha chamado de Werner, deu um passo na direção de Noel.

- Não faça isso! - gritou Holcroft.

Atravessou o grande vestíbulo a caminho da porta. Do outro lado, numa sala, estavam reunidas várias pessoas, homens e mulheres. Ninguém se dirigiu a ele nem sequer ergueu a voz. Noel pensou, não sem satisfação, que a mentalidade alemã era coerente. Aquela gente não agiria sem ordens.

- Proceda de acordo com as minhas instruções! - dizia Graff pelo telefone com voz calma, sem o menor vestígio da fúria que o empolgara alguns minutos antes. Passara a ser o general que dá ordens a um subordinado atento. - Espere até que ele esteja no meio da ladeira e então ligue o interruptor do portão. É essencial que o americano pense que conseguiu fugir.

Desligou então e voltou-se para o seu auxiliar.

- O guarda ficou machucado?

- Apenas atordoado, mein Herr. Está dando alguns passos para recuperar-se.

- Holcroft está furioso - disse Graff. - Está exaltado e cheio de determinação. Isso é muito bom. Deve ser agora amedrontado e levado a tremer diante do inesperado, da pura brutalidade do momento. Diga ao guarda que espere cinco minutos e então inicie a perseguição. Terá de fazer o serviço muito bem.

- Já recebeu as ordens e é um atirador perito.

- Muito bem.

O antigo general da Wehrmacht foi até a janela e olhou para os últimos raios do sol.

- Palavras suaves, palavras de amor... e então as ásperas reprimendas nervosas. O abraço e o punhal. É preciso que um siga o outro em rápida sucessão para deixar Holcroft desorientado, não sabendo mais distinguir aliados de inimigos, sabendo apenas que tem de prosseguir. Quando por fim se desmoronar, estaremos presentes e ele será nosso.


9

Noel bateu a pesada porta e desceu os degraus de mármore em direção ao carro. Manobrou o automóvel, voltando-o para a ladeira. Pisou no acelerador e dirigiu-se para a saída.

Várias coisas lhe ocorreram. A primeira foi que o sol da tarde estava desaparecendo atrás das montanhas, estendendo bolsões de sombra pelo chão. A noite estava caindo e ele ia precisar dos seus faróis. Outra preocupação era que a reação de Graff ao nome dos Von Tiebolt só podia significar duas coisas. Os Von Tiebolt estavam vivos e constituíam uma ameaça. Mas ameaça a que e a quem? E onde estavam eles?

Em terceiro lugar, havia mais um sentimento do que um pensamento específico. Era a sua reação à luta que pouco antes havia enfrentado. Através da vida, sempre aceitara sem discussão o tamanho e a força que possuía. Sendo grande e relativamente bem-coordenado, nunca sentira a necessidade de afirmar-se fisicamente, salvo numa competição contra si mesmo, para melhorar a sua atuação numa quadra de tênis ou descer melhor uma encosta em cima dos esquis. Em consequência disso, evitava lutas, que sempre lhe haviam parecido desnecessárias.

Essa atitude geral é que o tinha feito rir quando seu padrasto insistira para que ele fizesse um curso de defesa pessoal no clube. A cidade estava se tornando uma selva e o jovem Holcroft devia aprender a proteger-se.

Fez o curso e prontamente se esqueceu de tudo. Se havia absorvido alguma coisa, assim o fizera subconscientemente.

Mas havia absorvido alguma coisa, refletiu Noel com satisfação, lembrando-se do jeito parado dos olhos do guarda.

O último pensamento que lhe passou pela cabeça quando já ia ladeira abaixo foi muito vago. Tinha a impressão de que faltava alguma coisa no banco da frente do carro. A atividade febril daqueles últimos minutos havia embotado a sua acuidade habitual para perceber essas coisas. Mas alguma coisa no estofamento do banco o preocupava.

Terríveis sons lhe interromperam a concentração. Eram cachorros que latiam ferozmente. De repente, ameaçadores pastores pretos de pelo longo pularam ao lado das janelas de um lado e do outro do carro. Os olhos escuros dos animais brilhavam de raiva e de frustração. As goelas se escancaravam e os dentes batiam furiosamente. Os animais emitiam o grito rouco dos cães de ataque que chegavam à vista da presa e não conseguiam lhe cravar os dentes. A matilha de cães ferozes - pareciam seis ou sete - pulava e latia já em todas as janelas, arranhando os vidros com as patas. Um deles pulou em cima do capô e procurava alcançá-lo pelo para-brisa.

Por trás do cachorro, ao fim da ladeira, Holcroft viu o grande portão começar a mover-se, com o movimento ampliado pela luz dos seus faróis. Estavam começando a fechar o portão! Pisou ainda mais o acelerador, segurando o volante com tanta força que as mãos lhe doeram, e correu a toda velocidade, desviando-se um pouco para a esquerda. Passou por entre os portais de pedra, a centímetros apenas das duas pesadas partes de ferro do portão. O cachorro em cima do capô caiu para a direita, ganindo.

Os outros animais tinham ficado na ladeira, parando antes do portão. A única explicação possível era que um apito de alta frequência, além da capacidade dos ouvidos humanos, os fizera parar. Noel continuou com o acelerador rente à tábua e desceu pela estrada.

Chegou a uma bifurcação. Viera pela direita ou pela esquerda? Não se lembrava e distraidamente estendeu a mão para pegar o mapa em cima do banco.

Era isso que ele havia notado! O mapa não estava mais ali. Olhou para o chão a fim de ver se o mapa não tinha caído e não o encontrou. Tinham tirado o mapa do carro!

Não se lembrava da estrada por onde viera, e, de qualquer maneira, se tivesse guardado na memória algum ponto de referência, a escuridão obliterava tudo. Entrou pela direita, pois sabia que não podia parar. Conservou o carro em grande velocidade, esforçando-se por ver alguma coisa que lhe indicasse que estava no caminho certo para o Rio. Entretanto, não podia ver mais nada. A estrada fazia uma curva fechada para a direita e, em seguida, havia uma subida muito íngreme. Não se lembrava nem da curva, nem da subida. Estava perdido.

Subiu a ladeira e viu-se numa espécie de esplanada de uns cem metros de largura. À esquerda, havia um mirante com uma área de estacionamento e um muro à altura do peito. Junto do muro viam-se telescópios, do tipo que funciona por meio de moedas. Holcroft se aproximou do muro e parou o carro. Não havia outros automóveis, mas a qualquer momento podia aparecer algum. Talvez se olhasse em volta pudesse orientar-se. Saltou e foi até o muro.

Muito embaixo, ao longe, estavam as luzes da cidade. Mas do ponto onde estava até elas, havia apenas escuridão. Não... Teve a impressão de ver em certo ponto as curvas iluminadas de uma estrada. Noel foi até um dos telescópios. Colocou uma moeda, focalizando o tênue rastro de luz que presumira que fosse uma estrada. Era-o de fato.

As luzes da estrada eram bem afastadas umas das outras. Se ele pudesse chegar até aquela estrada... O telescópio parava em determinado ponto à direita. Onde começava aquela estrada?

Ouviu então o barulho de um carro que subia a ladeira em direção à esplanada. Felizmente! Faria parar o carro, nem que tivesse de ficar no meio da estrada a fazer sinais, e perguntaria o caminho. Correu do muro para a beira da estrada e ficou gelado. O carro que vinha subindo era o Mercedes branco que vira diante da casa de Graff!

Parou abruptamente, fazendo os pneus rangerem. O homem que saltou era perfeitamente reconhecível à luz dos faróis: o guarda de Graff!

O homem levou a mão à cinta. Holcroft ficou paralisado. O homem levantava uma pistola para atirar nele. Era incrível! Aquilo não podia estar acontecendo!

O primeiro tiro estrondou, indo bater surdamente no chão. Outro tiro. A estrada explodiu a alguns passos de Noel numa nuvem de pedras e de terra. Fossem quais fossem os instintos que o paralisavam, um instinto mais forte o levava a correr para salvar-se. Ia morrer! Ia ser assassinado num mirante deserto nas cercanias do Rio de Janeiro. Era uma loucura!

Sentia uma fraqueza tremenda nas pernas, mas sobrepujou-a com esforço e correu para o carro alugado. Os pés lhe doíam. A sensação de ser perseguido por um homem empenhado em matá-lo era a mais estranha que já experimentara na vida. Mais dois tiros repercutiram no silêncio da noite e houve mais duas nuvens de asfalto e concreto.

Chegou ao carro e abaixou-se logo que entrou, para proteger o corpo. Estendeu a mão para puxar a porta.

Outro tiro, mais alto que os outros, com uma vibração ensurdecedora. Depois da detonação, houve uma explosão diferente, de que sobressaía o barulho de vidros quebrados. O assassino acertara a janela traseira do carro.

Não havia mais nada a fazer senão fugir o mais depressa possível. Girou a chave e sentiu o motor pegar. Levantando o corpo, pisou no acelerador. O carro deu um pulo para a escuridão. Desviou-se para o lado a fim de não bater no muro. Por uma prudência instintiva, não acendeu os faróis. Avistou vagamente a estrada que descia e se precipitou por ela.

A descida era cheia de curvas. Passou-as todas em grande velocidade. Às vezes, derrapava e tinha dificuldade em controlar o carro. Os braços lhe doíam terrivelmente. Esperava a qualquer momento despedaçar-se numa derrapagem e morrer numa explosão final.

Não se lembrou depois de quanto tempo isso durou, mas afinal foi dar numa estrada iluminada. Era uma estrada plana que levava para leste, o caminho para a cidade!

Estava num corte profundo entre árvores. Dois carros se aproximaram pela outra pista e ele teve ímpetos de dar gritos de alegria ao vê-los. Estava perto dos arredores da cidade, nos subúrbios. Os postes de luz eram mais próximos uns dos outros e de repente viu mais carros correndo pelas duas pistas, fechando, entrando para os lados, ultrapassando. Nunca pensara que ver tantos carros lhe pudesse dar tanta satisfação.

Parou diante de um sinal fechado e isso era muito bom, pois lhe dava alguns momentos de descanso. Levou a mão ao bolso da camisa para tirar um cigarro. Como estava precisando de um cigarro!

Um carro parou à esquerda dele. Arregalou de novo os olhos de espanto. Um homem sentado ao lado do motorista, um homem a quem nunca vira na vida, estava levantando uma pistola na direção dele. Em torno do cano havia um cilindro perfurado, um silenciador! O desconhecido ia matá-lo!

Holcroft baixou a cabeça. Ao mesmo tempo, pisou no acelerador. Ouviu o terrível sibiliar e um barulho de vidros quebrados atrás de si. Tocou para a frente no cruzamento, enquanto outros carros buzinavam e ele escapava por poucos centímetros de uma batida.

O cigarro lhe caíra dos lábios e começava a queimar o banco do carro.

Correu para a cidade.

O telefone estava molhado de suor na mão de Noel.

- Está escutando ou não está? - gritou ele.

- Tenha calma, Mr. Holcroft - dizia com incredulidade um adido da embaixada americana. - Faremos tudo o que for possível. Já estou a par dos fatos principais e dentro em breve começaremos a tomar providências. Mas já são mais de sete horas e é difícil encontrar as pessoas...

- Difícil? Parece que não compreendeu o que eu disse. Quase fui assassinado! Veja as janelas do carro! Foram despedaçadas a bala!

- Vamos mandar um homem ao seu hotel para ver o veículo e tomar posse dele.

- Estou com as chaves. Mande o homem subir ao meu quarto para pegá-las.

- Muito bem. Vamos fazer isso. Fique aí no hotel que nós lhe telefonaremos depois.

O adido desligou. Arre! O homem parecia que queria livrar-se de um parente importuno e sair do telefone para poder jantar!

Noel sentia mais medo do que jamais sentira em toda a sua vida. Era uma coisa que lhe tirava toda a calma e fazia até a respiração difícil. Entretanto, apesar desse medo, alguma coisa lhe estava acontecendo que ele não compreendia. Uma parte de seu ser estava com raiva e ele sentia essa raiva crescer. Não queria que sucedesse isso, mas nada podia fazer. Fora atacado e queria atacar também.

Queria atacar principalmente Graff. Queria atirar-lhe à cara os insultos que ele merecia: monstro, mentiroso, corrupto... nazista!

O telefone tocou. Teve um sobressalto como se fosse um alarma que indicasse outro ataque. Agarrou os pulsos para dominar o seu tremor e encaminhou-se para o telefone.

- Mr. Holcroft?

Não era o homem da embaixada.

- Quem é?

- Tenho de falar-lhe. É muito importante que eu fale imediatamente com o senhor.

- Quem fala?

- Meu nome é Carrara. Estou na portaria do seu hotel.

- Carrara? Uma mulher que deu esse nome me telefonou ontem.

- Foi minha irmã. Estamos juntos agora. Temos de falar com o senhor agora. Podemos subir para o seu quarto?

- Não! Não vou ver ninguém!

Os tiros, as nuvens de concreto e asfalto, tudo isso ainda lhe estava muito vivo na lembrança. Não ia mais servir de alvo para ninguém.

- Mas é preciso, Mr. Holcroft!

- Deixe-me em paz, senão eu chamo a polícia!

- A polícia não pode ajudá-lo em nada. Nós podemos. Gostaríamos de ajudá-lo. Está procurando informações sobre os Von Tiebolt. Nós temos informações.

Noel ficou sem fôlego. Era uma cilada. O homem ao telefone estava tentando colhê-lo numa armadilha. Mas, se assim era, por que ele anunciara a armadilha?

- Quem foi que o mandou? Quem lhe disse que me telefonasse? Foi Graff?

- Maurice Graff não fala com gente como nós. Minha irmã e eu não merecemos nem o desprezo dele.

Graff chamara-o de desprezível também... Tinha desprezo pelo resto do mundo. Holcroft procurou respirar calmamente e perguntou:

- Ainda quero saber quem foi que o mandou procurar-me. Como sabe que estou interessado nos Von Tiebolt?

- Temos amigos no Serviço de Imigração. Simples funcionários, nada de gente importante. Mas tudo ouvem e tudo observam. - O homem começou a falar atropeladamente, de tal maneira que as suas palavras não pareciam estudadas nem ensaiadas. - Por favor, fale conosco. Temos informações que lhe interessam. Queremos ajudá-lo porque assim ajudaremos a nós também.

Noel pensou rapidamente. A entrada do hotel vivia cheia de gente. Como se costuma dizer, gente dava segurança. Por outro lado, se os Carrara sabiam realmente de alguma coisa a respeito dos Von Tiebolt, não podia deixar de vê-los. Mas não falaria com eles sozinho. Disse então lentamente:

- Fique de pé a uns três metros do balcão da portaria com as duas mãos fora dos bolsos. Sua irmã deve estar à sua esquerda com a mão direita em seu braço. Vou descer agora mesmo, mas não pelo elevador. E você não me verá. Eu o verei primeiro.

Desligou, espantado consigo mesmo. Estava aprendendo novas lições. Deviam ser básicas para os homens anormais que viviam num mundo clandestino, mas eram novas para ele. Carrara não devia estar empunhando uma arma dentro do bolso e a irmã - ou o que quer que fosse dele - não poderia meter a mão na bolsa sem que ele percebesse. Estariam prestando atenção às portas e não aos elevadores, por onde ele ia descer, e ele sabia exatamente quem eram os dois.

Saiu do elevador no meio de um grupo de turistas. Ficou um momento com eles como se fizesse parte do grupo e observou o homem e a mulher perto do balcão da portaria. De acordo com as instruções, as mãos de Carrara pendiam ao longo do corpo e a mulher tinha a mão direita passada pelo braço do irmão, como se receasse perdê-lo. E devia ser mesmo irmão dela, pois havia certa semelhança entre eles. Carrara devia ser um homem de pouco mais de trinta anos e a irmã aparentava ser alguns anos mais moça. Ambos eram morenos, com cabelos e olhos pretos. Nenhum deles tinha boa aparência ou estava bem vestido. Pareciam deslocados entre a gente bem-vestida que se hospedava no hotel e tinham consciência disso, pois era evidente a timidez que se lhes registrava nos olhos assustados. Inofensivos, foi a primeira reação de Holcroft. Mas logo refletiu que talvez o seu julgamento fosse muito apressado.

Sentaram-se num compartimento do bar do hotel. Os Carrara ficaram de um lado da mesa e Holcroft do outro. Mas, antes disso, Noel se lembrou de que tinham ficado de lhe telefonar da embaixada. Disse na portaria que, se houvesse qualquer telefonema para ele, deveria ser transferido para o bar. Mas só se o telefonema fosse da embaixada americana.

- Digam-me primeiro como foi que souberam que eu estava interessado nos Von Tiebolt - disse Holcroft, logo que as bebidas chegaram.

- Já lhe disse. Um funcionário da Imigração. Soube-se ali na sexta-feira que um americano ia aparecer por lá querendo saber de uma família alemã, os Von Tiebolt. A pessoa a quem fosse feito o pedido devia chamar outro homem, um elemento da polícia secreta.

- Eu sei. O homem se apresentou como tradutor. Mas quero saber por que ficaram sabendo disso.

- Os Von Tiebolt eram nossos amigos. Amigos muito íntimos.

- Onde estão eles?

Carrara olhou para a irmã, que disse:

- Por que está à procura deles?

- Já disse isso na Imigração. Não há nada de extraordinário no caso. Alguns parentes nos Estados Unidos deixaram algum dinheiro para eles.

Os dois irmãos se entreolharam de novo e mais uma vez foi a irmã que falou:

- Muito dinheiro?

- Não sei. O assunto é confidencial. Sou um simples intermediário.

"Escute", continuou Noel, olhando para a mulher. "Por que estava tão amedrontada ao telefone ontem? Deixou o seu número, mas quando liguei disse que eu não devia ter feito isso. Por quê?"

- Cometi um erro. Foi o que o meu irmão disse. Eu não devia ter deixado meu nome e o número do meu telefone.

- Os alemães poderiam ficar zangados - explicou Carrara. - Se o estivessem vigiando e interceptando os seus telefonemas, saberiam que nós havíamos ligado para o senhor. E isso poderia ser perigoso para nós.

- Se estão me vigiando agora, sabem que vocês estão aqui.

- Conversamos sobre isso - disse a mulher. - E chegamos à conclusão de que tínhamos de enfrentar o risco.

- Que risco?

- Os alemães nos desprezam. Entre outros motivos porque somos judeus portugueses - disse Carrara.

- Pensam assim ainda hoje?

- Claro que sim. Eu disse que éramos muito ligados aos Von Tiebolt. Devo esclarecer que Johann era meu melhor amigo e que ele e minha irmã queriam casar-se. Os alemães não permitiriam isso.

- Como poderiam impedi-lo?

- Poderiam, com uma bala na cabeça de Johann.

- Meu Deus, que absurdo!

Mas não era absurdo e Holcroft sabia disso. Tinha servido de alvo nas montanhas e os tiros ainda lhe ressoavam nos ouvidos.

- Para alguns alemães, esse casamento seria um insulto imperdoável - disse Carrara. - São os que dizem que os Von Tiebolt foram traidores da Alemanha. Essa gente ainda luta na guerra trinta anos depois. Grandes injustiças foram feitas aos Von Tiebolt aqui no Brasil. Eles merecem tudo o que puder ser feito em favor deles. A vida deles foi dificultada por coisas que deviam ter morrido há muitos anos.

- Calcularam então que eu poderia fazer alguma coisa por eles. Por que pensaram assim?

- Porque homens poderosos se atravessaram em seu caminho, pois os alemães exercem grande influência. Portanto, o senhor era também um homem poderoso, alguém que os Graff do Brasil queriam afastar dos Von Tiebolt. Para nós, isso significava que o senhor não queria fazer mal a nossos amigos, e, não querendo fazer mal, só poderia querer o bem deles. Um americano poderoso poderia ajudá-los.

- Falou nos Graff do Brasil. Referiu-se a Maurice Graff, não foi? Quem é ele? O que é ele?

- O pior dos nazistas. Devia ter sido enforcado em Nuremberg.

- Conhece Graff? - perguntou a mulher a Holcroft.

- Fui vê-lo, usando como pretexto um cliente em Nova York que, segundo disse, queria que eu visse a casa de Graff, pois sou arquiteto. Em dado momento, mencionei os Von Tiebolt e Graff ficou alucinado. Começou a gritar e me mandou sair da casa. Quando eu descia a ladeira, meu carro foi atacado por um bando de cães ferozes. O guarda de Graff me seguiu e tentou matar-me. Mais tarde, em pleno tráfego dos subúrbios aconteceu a mesma coisa. Um homem tentou matar-me da janela de um carro.

- Virgem Maria! - exclamou Carrara.

- Não devemos ser vistos com ele - disse a mulher, agarrando o braço do irmão. Olhou firmemente para Noel e acrescentou: - Se ele está dizendo a verdade.

Holcroft compreendia. Se podia saber de alguma coisa por intermédio dos Carrara, eles tinham de estar convencidos de que ele era exatamente quem dizia ser.

- Estou dizendo a verdade. E disse isso mesmo à embaixada americana, que vai mandar buscar o carro como prova.

Os Carrara se entreolharam e em seguida se voltaram para Holcroft. A declaração dele era a prova de que precisavam; isso se lhes refletia nos olhos.

- Acreditamos no senhor - disse a irmã. - Mas temos de nos apressar.

- Os Von Tiebolt estão vivos?

- Estão - disse o irmão. - Os nazistas pensam que eles estão no sul, em Santa Catarina. Há por lá várias cidades alemãs onde os Von Tiebolt poderiam facilmente mudar de nome e desaparecer.

- Mas não estão lá.

- Não... - murmurou Carrara, ainda hesitante.

- Diga-me, por favor, onde estão eles.

- É alguma coisa boa que vai dar a eles? - perguntou a irmã, ainda preocupada.

- Muito melhor do que possam imaginar. Digam-me.

Mais uma vez, os irmãos se entreolharam e chegaram a uma decisão.

- Estão na Inglaterra - disse Carrara. - Como sabe, a mãe deles morreu.

- Não sabia. Não sei de nada...

- Estão usando o nome de Tennyson. Johann é conhecido como John Tennyson. É jornalista e trabalha para o Guardian. Fala várias línguas e cobre as capitais europeias como correspondente do seu jornal. Gretchen, a irmã mais velha, é casada com um oficial da Marinha inglesa. Não sabemos onde ela mora, mas o nome do marido dela é Beaumont e ele é comandante na Marinha Real. De Helden, a caçula, não sabemos nada. Ela sempre foi um pouco reservada e obstinada.

- Helden é um nome estranho.

- Disseram-nos que o registro de nascimento dela foi feito por um escrivão que não sabia alemão. A mãe deu à menina o nome de Helga, mas o homem escreveu Helden e esse foi o nome que ficou.

- Tennyson, Beaumont - repetiu Holcroft. - Como foi que eles conseguiram sair do Brasil e ir para a Inglaterra sem Graff saber? Disseram que os alemães têm influência. Tiveram de tirar passaportes, tomar providências sobre transporte... Como se arranjaram?

- Johann, isto é, John, é um homem notável, muito brilhante.

- Um homem de grande talento - murmurou a irmã, amaciando a voz. - Amo-o muito. Depois de cinco anos, ainda nos amamos.

- Têm tido então notícias deles?

- De vez em quando - disse Carrara. - Homens que vêm da Inglaterra nos procuram e nos dão recados. Nada, porém, por escrito.

Noel olhou para aquele homem tolhido pelo medo.

- Em que espécie de mundo você vive?

- Num mundo em que não há segurança para mim - respondeu Carrara.

Era verdade, pensou Noel, sentindo uma contração no estômago. Uma guerra terminada trinta anos antes ainda estava sendo travada por aqueles que a tinham perdido. Aquilo tinha de acabar.

- Mr. Holcroft? - disse um homem, chegando à mesa e ainda sem certeza de estar falando com a pessoa que desejava.

- Sim, sou Holcroft.

- Anderson, da embaixada americana. Posso falar-lhe?

Os Carrara se levantaram.

- Adeus - disse Carrara num sussurro.

- Adeus - disse a mulher também em voz baixa, estendendo a mão para tocar o braço de Noel.

Os dois irmãos saíram rapidamente sem olhar para o homem da embaixada.

Holcroft estava sentado ao lado de Anderson num carro da embaixada. Tinham menos de uma hora para chegar ao aeroporto. Se a viagem demorasse mais, poderia perder o avião para Lisboa, de onde passaria para o voo da British Airways com destino a Londres.

Anderson tinha concordado em dirigir o carro.

- Se eu conseguir levá-lo ao aeroporto, pagarei com prazer todas as multas por excesso de velocidade. Você nem sabe o trabalho que me tem dado, Holcroft.

Noel fez uma careta.

- Você não acredita numa só palavra do que eu disse, não é mesmo?

- E posso acreditar? Creio que não é preciso dizer-lhe tudo de novo. Não havia carro de espécie alguma no hotel, e muito menos com as vidraças despedaçadas. Em nenhuma agência de aluguel de carros constava o seu nome.

- Mas acontece que aluguei o carro e fui com ele à casa de Graff.

- Telefonou para ele. Graff diz que recebeu seu telefonema, dizendo que queria ver a casa, mas que lá você não apareceu.

- Mentira! Eu estive lá! Depois que eu saí, dois homens tentaram matar-me. Com um deles eu tinha lutado dentro da casa de Graff!

- Nesse dia, você abusou do scotch...

- Graff é um nazista imundo! Trinta anos depois, ainda é nazista, e vocês todos o tratam como se ele fosse um herói!

- Nisso você tem razão. Graff é um homem muito especial e tem de ser protegido.

- É uma vergonha. Não diga isso a ninguém...

- Você está entendendo tudo errado, Holcroft. Graff estava num lugar da Alemanha chamado Wolfsschanze em julho de 1944. Foi um dos homens que tentaram matar Hitler.


10

Não havia um sol ofuscante lá fora. Diante das janelas do hotel não desfilavam os corpos morenos, lustrosos e lindos que ele vira nas areias de Copacabana. Ao invés disso, as ruas de Londres estavam empapadas de uma chuvinha fina e rajadas súbitas de vento corriam entre os edifícios e através das vielas. Os pedestres corriam das portas para as filas dos ônibus, para as estações dos trens e para os bares. Era a hora em Londres em que os ingleses fogem dos tentáculos da labuta cotidiana, ganhando a vida sem viver. Na opinião de Noel, não havia outra cidade no mundo em que houvesse tanto prazer ao fim de um dia de trabalho. Notava-se nas ruas um sentimento de alegria controlada, apesar da chuva e do vento.

Saiu da janela e dirigiu-se para a mesa e para a sua garrafa de prata. Viajara quase quinze horas de avião para chegar a Londres e, ali chegando, não sabia como devia agir. Tinha tentado pensar a bordo dos aviões, mas o que lhe havia acontecido no Rio de Janeiro fora tão desconcertante e as informações que conseguira eram tão contraditórias que ele se sentia perdido num verdadeiro labirinto. A floresta desconhecida era por demais densa. E ele estava apenas no início.

Graff, sobrevivente da Wolfsschanze, um dos homens da Wolfsschanze? Não era possível. Os homens da Wolfsschanze estavam comprometidos com Genebra, empenhavam-se na concretização do sonho de Heinrich Clausen, do qual os Von Tiebolt eram parte integrante. Graff queria destruir os Von Tiebolt e ordenara a morte do filho de Heinrich Clausen num mirante deserto nos arredores do Rio e da janela de um carro em plena rua à noite. Graff não fazia parte da Wolfsschanze. Não podia fazer.

Os Carrara eram também extremamente complicados. O que os impedia de sair do Brasil? Não se podia dizer que os aeroportos e os portos estivessem fechados para eles. Acreditava no que os dois lhe haviam contado, mas havia muitas questões elementares que eles não tinham esclarecido. Por mais que ele tentasse afastar a ideia, havia alguma coisa falsa em torno dos Carrara. Que era?

Noel serviu-se de um drinque e passou a mão no telefone. Tinha um nome e um local de trabalho: John Tennyson e o Guardian. As redações dos jornais não se fecham ao fim do dia. Saberia dentro de alguns minutos se a informação inicial dada pelos Carrara era verdadeira. Se houvesse um John Tennyson que trabalhasse no Guardian, teria encontrado Johann von Tiebolt.

Nesse caso, a providência seguinte, de acordo com o documento de Genebra, seria pedir a John Tennyson que o levasse até a irmã, Gretchen Beaumont, casada com o Comandante Beaumont, da Marinha Real. Era a ela que teria de procurar como a descendente mais velha de Wilhelm von Tiebolt.

- Sinto muito, Mr. Holcroft - disse alguém polidamente ao telefone na redação do Guardian. - Infelizmente, não podemos fornecer os endereços ou os telefones dos funcionários do jornal.

- Mas John Tennyson trabalha para o jornal - disse Holcroft.

Não era uma pergunta. O homem já havia dito que Tennyson não estava na redação. Holcroft queria apenas uma confirmação direta.

- Mr. Tennyson é um dos nossos homens no continente.

- Como posso comunicar-me com ele? É um assunto urgente!

O homem do outro lado do fio pareceu hesitar.

- É difícil dizer. Mr. Tennyson viaja muito.

- Deixe disso. Posso chegar à rua num instante, comprar seu jornal e ver de onde a correspondência dele é datada.

- É claro. Mas acontece que Mr. Tennyson não assina os seus comunicados diários. Só as suas resenhas...

- Como é que vocês se comunicam com ele, quando é necessário? - perguntou Holcroft, convencido de que o homem estava de má vontade.

Houve de novo a hesitação e uma tosse forçada. Por quê?

- Bem... Mandamos de vez em quando uma carta. Mas isso pode demorar alguns dias.

- Eu não posso esperar vários dias. Tenho de vê-lo sem demora.

O silêncio que se seguiu foi de exasperar. Era claro que o homem do Guardian não ia propor solução alguma. Noel tentou outro meio.

- Escute... Acho que não lhe devia dizer isso, pois é um assunto confidencial, mas há uma questão de dinheiro em jogo. Há uma herança para Mr. Tennyson e sua família.

- Não sabia que ele era casado.

- Estou me referindo às duas irmãs dele. Será que as conhece? Sabe se moram em Londres? A mais velha...

- Nada sei da vida particular de Mr. Tennyson. Creio que deve procurar um advogado...

Depois de dizer isso, o homem desligou abruptamente.

Um pouco desconcertado, Holcroft repôs o fone no gancho. Por que essa falta de cooperação deliberada? Tinha se identificado, dissera em que hotel estava hospedado e em alguns momentos o homem do Guardian o escutara como se estivesse disposto a ajudá-lo. Mas, por fim, nada fizera e desligara bruscamente. Tudo isso era muito estranho.

O telefone tocou. Mais admirado ficou. Ninguém sabia que ele estava naquele hotel. No cartão de imigração que preenchera ao desembarcar tinha de propósito declarado como sua residência em Londres o Dorchester Hotel e não o Belgravia Arms, onde realmente se hospedara. Não queria que ninguém, especialmente se viesse do Rio de Janeiro, soubesse do seu paradeiro em Londres. Atendeu, sentindo um frio no estômago.

- Alô?

- Mr. Holcroft? É da gerência do hotel. Só agora verificamos que a cesta com os nossos cumprimentos não chegou em tempo ao seu quarto. Aceite as nossas desculpas. Ficará em seu quarto ainda por algum tempo?

Pelo amor de Deus! pensou Holcroft. Milhões sem conta parados em Genebra e um gerente de hotel preocupado com uma cesta de frutas.

- Sim, vou ficar no quarto.

- Muito bem. O nosso auxiliar estará aí dentro em pouco.

Holcroft desligou, já com o frio no estômago atenuado. Viu as listas telefônicas numa prateleira da mesa de cabeceira. Folheou-as até encontrar a letra T.

Havia quase três centímetros de Tennyson, cerca de vinte nomes. Nenhum era John, mas havia três J.J. Começaria por eles. Levantou o fone e fez a primeira ligação.

- Alô! John?

O homem que atendeu se chamava Julian. Os outros dois J.J. eram mulheres. Havia uma Helen Tennyson, mas não Helden. Discou o número. A telefonista lhe disse que o aparelho fora desligado.

Voltou à lista e procurou a letra B. Havia seis Beaumont com telefone em Londres, mas sem nenhuma indicação de relacionamento com a Marinha Real. Noel nada tinha a perder e começou a discar.

Antes da quarta ligação, bateram na porta. Devia ser a cesta de frutas com os cumprimentos da gerência. Aborrecido com a interrupção, desligou e foi abrir a porta, procurando nos bolsos uma gorjeta para dar ao homem.

Encontrou à porta dois homens, nenhum deles com a farda do hotel. Estavam de chapéu na mão. O mais alto devia ter cinquenta anos e mostrava cabelos brancos sobre um rosto sulcado de rugas. O outro era mais ou menos da idade de Noel e tinha olhos azuis, cabelos avermelhados anelados e uma pequena cicatriz na testa.

- Que desejam?

- Mr. Holcroft?

- Sim.

- Noel Holcroft, cidadão norte-americano, passaporte número 20478F?

- Sou Noel Holcroft. Mas nunca decorei o número do meu passaporte.

- Podemos entrar?

- Depende... Quem são os senhores?

Os dois homens apresentaram carteiras de identificação pretas que abriram discretamente.

- Serviço secreto militar inglês. Seção Cinco - disse o mais velho.

- Que querem comigo?

- Assunto de serviço, Mr. Holcroft. Podemos entrar?

Noel assentiu sem muita convicção, sentindo de novo o frio no estômago. Peter Baldwin, o homem que o aconselhara a "cancelar Genebra", dissera que fazia parte do MI Seis (Inteligência Militar - Seção Seis). E Baldwin fora morto pelos homens da Wolfsschanze porque havia interferido. Saberiam aqueles dois agentes ingleses a verdade a respeito de Baldwin? Saberiam que Baldwin havia telefonado para ele? Claro! Era muito fácil descobrir a procedência dos telefonemas por intermédio das mesas telefônicas dos hotéis. Não podiam deixar de saber... Lembrou-se então de que Baldwin não telefonara para ele. Fora ao seu apartamento e depois Noel telefonara para ele.

Havia dito que ele não sabia o que estava fazendo, mas que ele, Baldwin, sabia.

Se Baldwin merecia crédito, nada tinha dito a ninguém. Nesse caso, qual era a ligação com aqueles dois homens? Por que o serviço secreto militar inglês se interessava por um americano chamado Holcroft? Como tinham conseguido encontrá-lo? Como?

Os dois ingleses entraram. O mais moço deles foi até o banheiro, olhou em volta e depois foi até a janela. O mais velho ficou de pé junto à mesa, olhando para as paredes, o chão e o armário aberto.

- Está bem, já entraram. Que é que há? - perguntou Holcroft.

- O Tinamou, Mr. Holcroft - disse o mais velho.

- O quê?

- Já disse. O Tinamou.

- Que quer dizer isso?

- De acordo com qualquer enciclopédia, o tinamou é uma ave que vive no solo e tem um colorido protetor que a confunde com o ambiente em que se encontra e que faz voos rápidos e breves de um lugar para outro[12].

- Isso pode ser muito instrutivo, mas eu não faço a menor ideia do que está falando.

- Achamos que faz - disse o homem mais moço da janela.

- Estão enganados. Nunca ouvi falar de uma ave assim e não há qualquer motivo para que eu saiba da sua existência. É evidente que devem estar se referindo a outra coisa, mas não consigo descobrir a relação.

- É claro que não estamos falando de uma ave, mas de um homem - disse o agente mais velho.

- Continua a não significar nada para mim.

- Posso dar-lhe um conselho?

- Sem dúvida. Mas decerto não o compreenderei também.

- É melhor cooperar conosco. É possível que esteja sendo usado, mas francamente não cremos. Entretanto, se nos ajudar agora, afirmaremos que estava sendo usado. Nada poderia ser mais justo.

- Eu não disse que não ia entender? - exclamou Holcroft.

- Nesse caso, vou esclarecer alguns detalhes que o farão compreender. Andou fazendo indagações a respeito de John Tennyson, cujo verdadeiro nome é Johann von Tiebolt e que imigrou para o Reino Unido há seis anos. Trabalha atualmente como correspondente poliglota do Guardian.

- Foi o homem do Guardian! - exclamou Holcroft. - Telefonou para os senhores ou mandou alguém telefonar. Foi por isso que ele hesitou tanto e acabou desligando o telefone de repente. E da gerência só me falaram numa cesta de frutas para que houvesse certeza de que eu não ia sair. Que quer dizer tudo isso?

- Podemos saber por que está procurando John Tennyson?

- Não.

- Afirmou, tanto aqui quanto no Rio de Janeiro, que havia em jogo uma certa importância em dinheiro.

- Rio de Janeiro? Meu Deus!

- Disse que era o "intermediário" - continuou o inglês. - Foi esse o termo que usou.

- Esse assunto é confidencial.

- Nós achamos que é um assunto internacional.

- Por quê?

- Porque está procurando fazer entrega de uma importância em dinheiro. Se as regras básicas forem seguidas, essa quantia deve corresponder a três quartos do pagamento integral.

- Pagamento por quê?

- Por um assassinato.

- Assassinato?

- Sim. Nos arquivos de metade do mundo civilizado, o nome do Tinamou é seguido desta simples qualificação: "Assassino". E temos todos os motivos para acreditar que Johann von Tiebolt, que também usa o nome de John Tennyson, é o Tinamou.

Noel se sentiu inteiramente perturbado. Assassino! Seria isso então que Peter Baldwin tinha querido dizer-lhe? Que um dos herdeiros de Genebra era um assassino?

Baldwin tinha dito que só ele sabia.

Se isso fosse verdade, ele não poderia em nenhuma hipótese revelar o verdadeiro motivo pelo qual procurava John Tennyson. O caso de Genebra explodiria numa controvérsia. A conta seria congelada, a questão seria submetida aos tribunais internacionais e o seu pacto estaria desfeito. Sabia agora que não poderia absolutamente deixar que isso acontecesse.

Entretanto, era também importante que as suas razões para procurar Tennyson estivessem acima de qualquer suspeita, sem qualquer relação com o Tinamou.

O Tinamou! Um assassino! Era a pior notícia possível. Se houvesse alguma verdade no que os homens do serviço secreto diziam, os banqueiros em Genebra encerrariam todas as discussões, fechariam os seus cofres e ficariam à espera de outra geração. Apesar disso, qualquer decisão contra a execução do pacto seria apenas para salvar as aparências. Se Tennyson fosse realmente o Tinamou, poderia ser desmascarado, capturado, isolado de qualquer ligação com a conta de Genebra, depois do que o pacto permaneceria intacto. As reparações seriam efetuadas. De acordo com o documento, a irmã mais velha era a chave e não o irmão.

Um assassino, ora essa!

Mas, em primeiro lugar, Holcroft sabia que tinha de desarmar as convicções dos dois homens que estavam no seu quarto. Sentou-se numa cadeira e disse aos agentes:

- Escutem, eu lhes disse a verdade. Nada sei sobre o Tinamou ou sobre qualquer assassino. O meu interesse é pela família Von Tiebolt e não por determinada pessoa dessa família. Procurei Tennyson porque fui informado de que ele era Von Tiebolt e trabalhava no Guardian. Só isso.

- Nesse caso - disse o homem ruivo -, talvez possa explicar a natureza desse seu interesse.

Basear a mentira num aspecto da verdade.

- Vou dizer o que está ao meu alcance, que não é grande coisa. Só vim a saber mais um pouco através de fatos que chegaram ao meu conhecimento no Rio. Em suma, o assunto é confidencial e se refere a dinheiro. Sei que alguém deixou uma herança para os Von Tiebolt. Mas não me perguntem quem foi que deixou o dinheiro porque eu não sei e o advogado não me disse.

- Como é que se chama esse advogado? - perguntou o agente de cabelos grisalhos.

- Eu teria de ser autorizado por ele a revelar-lhe o nome - disse Holcroft, acendendo um cigarro e pensando na pessoa em Nova York para quem podia telefonar, sem ser vigiado, de algum bar em Londres.

- Podemos querer que faça isso - disse o agente. - Continue.

- Descobri no Rio que os Von Tiebolt não eram bem-vistos pela colônia alemã. Tenho a ideia, mas é apenas uma hipótese, de que outrora eles se opuseram aos nazistas na Alemanha e alguém, talvez um alemão antinazista, tenha deixado o dinheiro para eles.

- Nos Estados Unidos? - perguntou o agente ruivo.

Noel sentiu a armadilha e estava preparado para ela. Tinha de ser coerente.

- É claro que quem deixou o dinheiro para os Von Tiebolt estava, havia algum tempo, vivendo nos Estados Unidos. Se chegou àquele país depois da guerra, podemos presumir que se livrou de muitos riscos. Mas podia ser também algum parente que chegou aos Estados Unidos há muitos anos. Francamente, não sei.

- Por que foi escolhido como intermediário? Não é advogado.

- Não sou realmente, mas o advogado é meu amigo. Sabe que viajo muito e eu lhe disse que estava de viagem para o Brasil por conta de um cliente. Embora eu seja arquiteto, pediu que colhesse informações e me deu alguns nomes, inclusive do Serviço de Imigração do Rio.

Procurar a simplicidade, evitando complicações.

- Não acha que esse advogado estava abusando de sua amizade? - perguntou o ruivo, mostrando com isso a sua incredulidade.

- De certo modo, não. Já me fez muitos favores e eu não tive dúvidas em fazer-lhe também um favor. Infelizmente, o que começou como uma coisa muito simples está virando um pesadelo...

- Soube que Johann von Tiebolt tinha adotado o nome de John Tennyson e estava trabalhando em Londres. E, só para fazer um favor, veio do Brasil para o Reino Unido a fim de procurá-lo? Isso parece realmente coisa de pesadelo, Mr. Holcroft - disse o velho, a olhá-lo, com as mãos nos bolsos do sobretudo.

Noel encarou-o e lembrou-se de Sam Buonoventura ter-lhe dito que encrespara, pois era essa a única maneira de enfrentar policiais zangados.

- Calma, sim? Não fiz uma viagem especial do Rio a Londres só para procurar os Von Tiebolt. Estou a caminho de Amsterdam. Se investigarem meu escritório em Nova York, ficarão sabendo que estou fazendo alguns serviços em Curaçau. Trata-se de uma ilha holandesa, caso não saibam disso, e eu vou à Holanda participar de algumas conferências sobre os projetos em andamento.

O velho pareceu ficar mais calmo.

- Compreendo - murmurou ele. - Talvez tenhamos tirado conclusões erradas, mas tem de convir que os fatos as autorizavam. É possível que tenhamos de pedir-lhe desculpas.

Satisfeito consigo mesmo, Noel dominou a sua vontade de sorrir. Seguindo as lições, sustentou a sua mentira em posição de guarda.

- Não tem importância - murmurou. - Mas agora estou curioso. Como sabem que esse Tinamou é Von Tiebolt?

- Certeza não temos - disse o agente mais velho. - Tínhamos a esperança de que o senhor nos desse essa certeza. Parece que nisso erramos...

- Sem dúvida. Mas por que John Tennyson? Afinal de contas, é uma coisa que terei de explicar a meu amigo, o advogado de Nova York.

- Não! Não faça isso - exclamou o inglês. - Não deve falar disso com ninguém.

- É um pouco tarde para dizer isso, não acha? - disse Holcroft, jogando. - O caso já foi discutido. Não tenho obrigações para com os senhores, mas tenho obrigações para com o advogado, que é meu amigo.

Os agentes se entreolharam, no seu interesse mútuo pela conversa.

- Além da sua obrigação para com um amigo - disse o mais velho -, creio que tem uma responsabilidade muito maior. Essa responsabilidade pode ser corroborada pelo governo do seu país. Trata-se de uma investigação supersecreta e extremamente delicada. O Tinamou é um assassino internacional. As suas vítimas são alguns dos homens mais ilustres do mundo.

- E acreditam que esse assassino seja Tennyson?

- As provas são circunstanciais, mas muito fortes.

- Mas não são conclusivas?

- Não, não são conclusivas.

- Há alguns minutos, estavam falando de uma maneira muito positiva.

- Há alguns minutos, estávamos querendo pegá-lo numa armadilha. Era simplesmente uma técnica.

- Mas terrivelmente ofensiva.

- De fato - disse o agente com a cicatriz na testa.

- Quais são as provas circunstanciais contra John Tennyson?

- Manterá tudo no mais rigoroso sigilo? - perguntou o agente mais velho. - Esse pedido pode ser transmitido pelas mais altas autoridades policiais de seu país, se assim o desejar.

Holcroft pensou um pouco e disse:

- Está bem. Não vou telefonar para Nova York. Não direi nada. Mas quero informações.

- Não costumamos negociar - disse o agente mais jovem com um jeito áspero que o seu companheiro cortou com um olhar.

- Não é questão de negociar - disse Noel. - Prometi que procuraria uma pessoa da família Von Tiebolt e acho que isso eu devo fazer. Portanto, quero saber onde poderei encontrar as irmãs de Tennyson. Sei que uma delas é casada com um oficial da Marinha chamado Beaumont. O advogado de Nova York sabe disso e deverá procurá-la, se eu não a encontrar. Posso muito bem ser eu a encontrá-la.

- É muito melhor que seja o senhor - disse o agente mais velho. - Estamos convencidos de que nenhuma das duas mulheres tem conhecimento das atividades do irmão. Tanto quanto pudemos apurar, os três irmãos vivem desunidos. Se muito ou pouco não sabemos, mas as comunicações entre eles são escassas ou inexistentes. Francamente, o seu aparecimento em cena é uma complicação que preferiríamos evitar. Não queremos que haja alarmas, e julgamos muito melhor controlar a situação.

- Não haverá alarmas - disse Noel. - Darei o meu recado e irei tratar de minha vida.

- Em Amsterdam?

- Sim, em Amsterdam.

- Muito bem. A irmã mais velha é casada com o Comandante Beaumont, de quem é a segunda mulher. O casal vive perto de Portsmouth, vários quilômetros ao norte da base naval, num subúrbio de Portsea. O nome dele consta da lista telefônica. A mais moça se mudou recentemente para Paris. Trabalha como tradutora nas Edições Gallimard, mas não tem endereço registrado na editora. Não sabemos onde ela mora.

Holcroft aproximou-se da mesa e escreveu os nomes num pedaço de papel.

- Anthony Beaumont... Portsmouth... Edições... Como é que se escreve Gallimard?

O agente ruivo informou-lhe.

Noel acabou de escrever.

- Farei as visitas amanhã de manhã e escreverei uma carta para Nova York - disse ele, pensando no tempo que levaria para ir de carro até Portsmouth. - Direi ao advogado que entrei em contato com as irmãs, mas não pude encontrar o irmão. Está certo assim?

- Não poderia desistir de tudo isso?

- Não. Teria de explicar a minha desistência e isso os senhores não querem que eu faça.

- Muito bem. Só nos resta esperar pelo melhor.

- Agora, digam por que pensam que John Tennyson é esse tal Tinamou. Estão me devendo isso.

- Talvez tenha razão - disse o agente mais velho. - Mas tenho de acentuar de novo o caráter secreto das informações.

- Com quem eu iria falar? Minha linha de trabalho é bem diferente da dos senhores.

- Certamente. Mas, embora, como disse, nós lhe devamos isso, o simples fato de lhe comunicarmos as nossas suspeitas lhe deu um conhecimento do caso que muito pouca gente tem.

Holcroft reagiu veementemente.

- Creio também que muito pouca gente tenha visto dois homens entrarem-lhe pela porta adentro e acusarem-no de trazer dinheiro para pagamento de um assassino. Se estivéssemos em Nova York, eu os chamaria aos tribunais. É claro que me devem uma compensação.

- Muito bem. Descobrimos certas coincidências por demais evidentes para justificarem um exame mais detido, mas resolvemos observar o homem. Durante vários anos, Tennyson sempre apareceu nos lugares onde havia assassinatos. Fazia reportagens sobre crimes para o Guardian, datando os seus comunicados do local. Por exemplo, há um ano mais ou menos, ele noticiou o assassinato de um americano em Beirute, que era funcionário da embaixada americana e naturalmente agente da CIA. Três dias antes, tinha estado em Bruxelas; de repente, apareceu em Teerã. Começamos então a observá-lo e descobrimos coisas espantosas. Cremos que ele é o Tinamou. Tem uma inteligência privilegiada e é, ao mesmo tempo, inteiramente louco.

- Que foi que descobriram?

- Para começar, o pai dele foi um dos nazistas mais cruéis e sanguinários...

- Tem certeza disso? - perguntou Noel rapidamente. - O que eu quero dizer é que uma coisa não implica a outra...

- Claro que não. Mas há outros fatos que são, na pior das hipóteses, fora do comum. Tennyson tem a mania de empenhar-se a fundo em tudo. Conquistou no Brasil dois diplomas universitários numa idade em que os estudantes comuns ainda estão se matriculando. Aprendeu cinco línguas que fala fluentemente. Dedicou-se a negócios na América do Sul e ganhou muito dinheiro. Esses antecedentes não são propriamente as credenciais de um correspondente jornalístico.

- As pessoas mudam e os seus interesses também. Isso é puramente circunstancial e muito fraco também.

- Entretanto, as circunstâncias em que ele começou a trabalhar no jornal reforçam as conjecturas. Ninguém no Guardian sabe quando ou como ele foi contratado. O nome dele apareceu na folha de pagamento de repente, uma semana antes do recebimento do seu primeiro comunicado de Antuérpia. Até então, ninguém sabia da existência dele.

- Ele tinha de ser empregado por alguém.

- E foi. O homem cuja assinatura constava do contrato foi morto num desastre excepcional que fez cinco vítimas, no metrô de Londres.

- Lembro-me de ter lido a notícia desse desastre no metrô de Londres...

- O desastre foi atribuído a um erro do maquinista do metrô - disse o agente ruivo. - Mas o maquinista tinha dezoito anos de experiência no serviço. Foi assassinato puro e simples. Gentileza do Tinamou.

- Não se pode ter certeza. Um erro é um erro. Quais foram as outras coincidências nos lugares onde houve assassinatos?

- Falei em Beirute. Houve um crime também em Paris. Uma bomba explodiu no carro do ministro do Trabalho da França, na Rue du Bac, matando-o instantaneamente. Tennyson estava em Paris; tinha estado em Frankfurt no dia anterior. Há sete meses, durante alguns distúrbios em Madri, um homem do governo foi assassinado com um tiro dado de uma janela de quarto andar acima da multidão. Tennyson estava em Madri. Tinha chegado horas antes de avião, de Lisboa. Há outros casos ainda.

- Já conseguiram interrogá-lo?

- Duas vezes. Não como suspeito, é claro, mas como um técnico em assuntos internacionais. Tennyson é a personificação da arrogância. Afirmou ter analisado as zonas de agitação social e política e obedecido a seus instintos, sabendo que a violência e o assassinato irromperiam fatalmente nesses lugares. Teve até a audácia de criticar-nos, dizendo que deveríamos aprender a antecipar os fatos e a não ser colhidos de surpresa com tanta frequência.

- Não estaria ele dizendo a verdade?

- Se está dizendo isso com a intenção de insultar, o fato fica anotado. Em vista do que aconteceu esta noite, talvez o insulto seja merecido.

- Desculpe. Mas, quando se levam em consideração as coisas que o homem faz, é preciso reconhecer essa possibilidade. Onde está Tennyson atualmente?

- Desapareceu há quatro dias em Bahrain. Nossos agentes estão à procura dele, de Cingapura a Atenas.

Os dois agentes entraram no elevador vazio. O ruivo perguntou ao outro:

- Que foi que achou dele?

- Não sei... Nós lhe demos bastante corda para fazê-lo entrar em ação. Talvez venhamos a saber alguma coisa. O procedimento dele é de um amador e é impossível que se trate de um contato verdadeiro. Os que estão pagando por um assassinato seriam loucos se escolhessem Holcroft para trazer o dinheiro. O Tinamou rejeitaria o pagamento, se eles assim fizessem.

- Mas ele estava mentindo.

- Sem dúvida. E muito mal.

- Então ele está sendo usado.

- É possível. Mas, em quê?


11

De acordo com a agência de aluguel de carros, Portsmouth ficava a cerca de cento e dez quilômetros de Londres, as estradas estavam em boas condições e não era provável que o trânsito estivesse muito pesado. Eram seis e cinco. Poderia estar em Portsmouth antes das nove, pensou Noel, se comesse um sanduíche em vez de jantar.

Tinha pensado em esperar até o dia seguinte, mas um telefonema que dera para verificar a informação dos agentes secretos fizera-o mudar de ideia. Falara com Gretchen Beaumont e o que ela lhe dissera o convencera a partir sem demora.

O marido dela, o comandante, estava em serviço nas águas do Mediterrâneo. No dia seguinte, ao meio-dia, ela iria sair de casa para passar as "férias de inverno" no sul da França, onde ficaria um fim de semana em companhia do marido. Se Mr. Holcroft queria vê-la para tratar de assuntos de família, teria de ser naquela noite.

Noel disse que iria o mais depressa possível e pensou, ao desligar, que a mulher tinha uma das vozes mais estranhas que ele já ouvira. Não se tratava da estranha mistura de alemão e português que se podia perceber no seu sotaque, pois isso de certo modo era natural. Era o tom flutuante e hesitante da voz de Gretchen. Hesitante ou vazia? Era difícil dizer. A esposa do comandante esclareceu, ao seu jeito entrecortado, que, embora os assuntos que iam discutir fossem confidenciais, um ordenança naval estaria numa sala ao lado. Essa preocupação suscitou a imagem de uma Hausfrau de meia-idade e comodista, com uma opinião exagerada de sua beleza.

A oitenta quilômetros de Londres, verificou que estava fazendo a viagem em menos tempo do que julgara possível. O movimento de carros era reduzido e a placa que os faróis iluminavam à beira da estrada indicava que Portsea ficava a trinta quilômetros de distância.

Eram apenas oito e dez. Podia diminuir a velocidade e tentar coordenar as suas ideias. As informações dadas por Gretchen Beaumont tinham sido claras e ele não teria dificuldade em encontrar a casa.

Apesar da hesitação de sua voz, ela fora muito específica nas instruções que dera. Havia nisso uma contradição como se o impacto da realidade houvesse de súbito dissipado densas nuvens de névoa sonhadora.

Estava em dúvida. Era um intruso, um desconhecido que telefonava e aludia a um assunto da maior importância de que só podia falar pessoalmente.

Como poderia definir a situação? Como iria explicar à mulher de meia-idade de um oficial da Marinha inglesa que ela era a chave capaz de abrir a casa-forte de um banco na qual estavam guardados setecentos e oitenta milhões de dólares?

Estava nervoso e isso não convinha, pois, mais que tudo, tinha de ser convincente. Não podia mostrar-se receoso, inseguro ou artificial. Pensou então que devia dizer a verdade, tal como Heinrich Clausen a entendia. Era o melhor caminho e a sua convicção.

Permita Deus que ela compreenda!

Venceu as duas últimas curvas da estrada à esquerda e passou rapidamente pela pacífica área suburbana arborizada de dois quilômetros e meio de extensão, de acordo com as instruções. Encontrou a casa com facilidade, parou o carro diante dela e saltou.

Abriu o portão e caminhou até a porta. Não havia campainha. Viu uma aldrava de bronze que bateu sem muita força. A casa era projetada com simplicidade. Largas janelas na sala de estar, janelas menores do outro lado, onde ficava o quarto; uma fachada de tijolos sobre uma fundação de pedra. Coisa sólida, duradoura, mas sem ostentação e certamente de construção pouco dispendiosa. Tinha projetado muitas casas daquelas na praia ou no campo para casais ainda incertos do dinheiro de que podiam dispor. Era a casa ideal para um militar. Decente, barata e adaptável.

Foi Gretchen Beaumont quem abriu a porta. A ideia que formara dela ao falar-lhe pelo telefone se desvaneceu de súbito, numa onda de espanto, que lhe repercutiu no peito com o impacto de um soco. Sem qualquer possibilidade de erro, a mulher que lhe abria a porta era uma das mais belas que ele já vira em toda a sua vida. O fato de que ela fosse mulher era quase secundário. Era como se ela fosse uma estátua, o sonho realizado de um escultor, aperfeiçoado incessantemente no barro antes que o cinzel cortasse a pedra. Era de estatura mediana, com longos cabelos louros a enquadrar um rosto de feições finamente modeladas e perfeitamente proporcionadas. Tudo era perfeito, mas também extremamente frio. Entretanto, a frieza era atenuada pelos grandes olhos azuis ansiosos, nem amistosos nem hostis.

- Mr. Holcroft? - perguntou ela na voz ressoante e vaga que lembrava ao mesmo tempo a Alemanha e o Brasil.

- Sim, Mrs. Beaumont. Muito obrigado por receber-me. Peço desculpas pelos transtornos que lhe possa causar.

- Faça o favor de entrar.

Ela recuou para deixá-lo passar. Na porta, ele havia admirado principalmente o rosto de extraordinária beleza, que os anos não tinham conseguido absolutamente amortecer. Depois de entrar, não pôde deixar de notar o corpo, realçado por um vestido quase transparente. O corpo era extraordinário também, mas de uma maneira diferente da do rosto. A frieza desaparecera e só havia calor. O vestido leve estava colado à pele e era manifesta a ausência de um sutiã, acentuada por uma gola desabotoada a meio entre os seios fartos. Por outro lado, no centro da carne ondeante podiam ver-se os dois bicos dos seios claramente, fazendo pressão sobre o pano fino, como se estivessem excitados.

Quando ela se moveu, o ritmo fluido e lento das coxas, do ventre e dos quadris se combinou numa espécie de dança sensual. Ela não caminhava. Deslizava, como se aquele corpo excepcional estivesse clamando por observação como um prelúdio à invasão e à satisfação.

Mas o rosto continuava frio e os olhos se mostravam distantes; curiosos mas distantes. E Noel estava perplexo.

- Fez uma longa viagem - disse ela, indicando um sofá ao fundo da sala. - Tenha a bondade de sentar-se. Aceita um drinque?

- Certamente. Muito obrigado.

- Que é que prefere?

Ela se colocou diante dele, bloqueando por um momento o caminho para o sofá, com os olhos azuis cravados nos dele. Os seios muito próximos se mostravam claramente sob a fazenda transparente. Os bicos estavam rígidos e se moviam com a respiração, aumentando a impressão de uma dança erótica.

- Scotch, se houver.

- Na Inglaterra, é uísque que se diz, não é? - perguntou ela, encaminhando-se para um bar encostado à parede.

- Uísque, sim - disse ele, deixando-se cair nas macias almofadas do sofá e tentando concentrar-se no rosto de Gretchen. A situação era difícil para ele, e Noel não tinha dúvida de que isso era deliberado da parte dela. A mulher do comandante não tinha motivos para provocar nele uma reação sexual. Não tinha motivos para vestir-se de maneira tão provocante. Mas se vestira assim e o estava provocando. Por quê?

Ela lhe levou o uísque. Tocou na mão dela ao receber o copo e notou que ela, ao contrário de afastar prontamente a mão, fazia uma leve pressão sobre os seus dedos estendidos. Gretchen fez então uma coisa estranha. Sentou-se num pufe de couro a poucos passos de distância e olhou para ele.

- Não vai beber também? - perguntou Noel.

- Não bebo.

- Nesse caso, talvez prefira que eu não beba também.

Ela riu.

- Não tenho objeções morais à bebida. Seria muito estranho para uma mulher de oficial. Acontece, porém, que não posso nem beber nem fumar. Tanto uma coisa quanto outra me sobem à cabeça.

Noel olhou para ela acima da borda do copo. Os olhos continuaram fixos nos dele, firmes mas ainda distantes, fazendo-o desejar que ela desviasse o olhar.

- Disse-me pelo telefone que um dos ordenanças de seu marido estaria numa sala ao lado. Gostaria que eu o conhecesse?

- Ele não pôde vir.

- Oh, sinto muito...

- Sente mesmo?

Era alucinante. Aquela mulher estava procedendo como uma prostituta incerta da sua posição ou como uma prostituta de alta classe que procura avaliar o conteúdo da carteira de um novo cliente. Curvou-se para a frente no pufe, para limpar uma poeira imaginária no tapete aos seus pés. O gesto era leviano e o efeito muito óbvio. O alto da blusa se abriu, mostrando-lhe quase inteiramente os seios. Ela não podia deixar de ter consciência do que estava fazendo. Esperava naturalmente que ele reagisse. Mas Noel não reagiu como ela esperava. Um pai apelava para ele e nada podia interferir, nem mesmo uma prostituta inesperada.

E essa prostituta inesperada era a chave para Genebra.

- Mrs. Beaumont - disse ele, colocando o copo de uísque numa mesinha ao lado do sofá. - Acho-a uma mulher muito graciosa e nada me agradaria mais do que passar mais algumas horas aqui e tomar mais alguns drinques, mas temos de conversar. Disse que queria vê-la porque tenho notícias muito importantes para a senhora. Essas notícias se referem a nós dois.

- Nós dois? Por que então não fala, Mr. Holcroft? É a primeira vez que o vejo e não o conheço. Que pode haver que interesse a nós dois?

- Há muitos anos nossos pais se conheceram.

Ao ouvir essas palavras, a mulher mudou de atitude e disse:

- Não tenho pai.

- Mas teve. E eu também. Na Alemanha, há mais de trinta anos. Seu nome é Von Tiebolt. É a filha mais velha de Wilhelm von Tiebolt.

Gretchen respirou fundo e desviou o olhar.

- Acho que não quero mais ouvir o que tem para me dizer.

- Compreendo o que está sentindo. Tive a mesma reação, mas estava errado. A senhora também está errada.

- Errada? - exclamou ela, sacudindo violentamente a cabeça, o que fez os compridos cabelos louros lhe baterem no rosto. - Não seja presunçoso! Não deve ter tido a vida que tivemos. Não diga que eu estou errada. Não tem autoridade para dizer isso!

- Permita que lhe diga o que sei. Quando eu terminar, poderá decidir. Mas o seu conhecimento dos fatos é importante. E o seu apoio também.

- Apoio a quê? Conhecimento de quê?

Noel se sentia estranhamente comovido, como se as palavras que ia proferir fossem as mais importantes de sua vida. Com uma pessoa normal, a verdade seria suficiente. Mas Gretchen Beaumont não era uma pessoa normal. As suas cicatrizes ainda estavam muito vivas. Seria preciso mais do que dizer a verdade. Teria de ter um extraordinário poder de persuasão.

- Há duas semanas, tomei o avião para Genebra a fim de encontrar-me com um banqueiro chamado Manfredi...

Contou tudo, só não falando nos homens da Wolfsschanze. Contou tudo com simplicidade, até com eloquência, sentindo a sinceridade de sua voz e o seu profundo entrosamento mental com todo o caso, que chegava a confranger-lhe o coração.

Disse a Gretchen que havia setecentos e oitenta milhões de dólares para os sobreviventes do holocausto e para os seus descendentes necessitados espalhados pelo mundo. A cada um dos filhos mais velhos dos três homens caberiam dois milhões de dólares, que poderiam ser gastos sem quaisquer restrições. Haveria necessidade apenas de seis meses, talvez um pouco mais, de trabalho coletivo.

Por fim, falou do pacto de morte dos três homens, que se haviam suicidado depois que todos os detalhes estavam confirmados e firmemente estabelecidos em Genebra.

Quando terminou, sentiu a testa banhada de suor.

- Tudo agora depende de nós - disse ele. - E de um homem que está em Berlim, o filho de Kessler. Nós três temos de acabar o que eles começaram.

- Tudo isso parece inacreditável - disse Gretchen calmamente. - Mas a verdade é que não sei em que isso pode interessar-me.

Noel ficou espantado com a calma de Gretchen, com a sua completa serenidade. Ela o escutara em silêncio durante quase meia hora, ouvira revelações que deviam ser arrasadoras para ela e, contudo, não mostrara qualquer reação. Nada.

- Será que não compreendeu uma só palavra do que eu disse?

- Compreendo apenas que está muito abalado, Mr. Holcroft. Mas acontece que tenho vivido abalada durante toda a minha vida e tudo por culpa de Wilhelm von Tiebolt. Ele nada representa para mim.

- Ele sabia disso e foi por esse motivo que tentou oferecer uma compensação.

- Com dinheiro?

- Com dinheiro só, não.

Gretchen inclinou-se para a frente e estendeu a mão para tocar a fronte dele. Enxugou com as pontas dos dedos as gotas de suor. Noel ficou imóvel, mas sem conseguir quebrar o contato entre os olhares de ambos.

- Sabia que eu sou a segunda mulher do Comandante Beaumont?

- Sabia, sim.

- O divórcio foi um tempo muito difícil para ele. Para mim também, porém mais para ele. Mas tudo para ele passou. Para mim não passou.

- Como assim?

- Eu sou a intrusa, a estrangeira, a destruidora de lares. Ele tem o seu trabalho e vai para o mar. Eu vivo entre pessoas que não vão. A vida de mulher casada com um oficial da Marinha em geral é isolada e sacrificada. A coisa torna-se mais difícil quando a mulher vive no ostracismo.

- Devia ter sabido que teria de enfrentar isso.

- É claro.

- Nesse caso...

Deixou a frase em suspenso, mas era fácil saber o que ele queria dizer.

- Quer saber por que me casei com o Comandante Beaumont, não é?

Noel se conservou calado. Não tinha interesse pelos detalhes íntimos da vida de Gretchen Beaumont. Só Genebra e o pacto lhe interessavam. Mas precisava da cooperação dela.

- Presumo que os motivos foram emocionais, como em geral acontece quando as pessoas se casam. Mas poderia ter tomado providências para atenuar a tensão. Poderia viver mais longe da base naval e ter amizades diferentes.

Estava quase falando a esmo, desordenadamente, querendo apenas quebrar aquela reserva irritante da mulher.

- Minha pergunta é mais interessante. Por que me casei com Beaumont? Tem razão. Os motivos foram emocionais. Isso foi fundamental.

Ela lhe tocou de novo a fronte, inclinando-se para a frente, e os belos seios nus ficaram outra vez à mostra. Noel estava cansado, nervoso e aborrecido. Tinha de fazê-la compreender que os seus casos pessoais não tinham a menor importância diante de Genebra. Para isso, tinha de fazê-la gostar dele. Ainda assim, não podia tocar nela.

- Decerto que é fundamental. Ama seu marido, não ama?

- Detesto!

As mãos de Gretchen tinham descido para o seu rosto e os dedos dela eram vistos fora de foco nos cantos dos seus olhos, pois continuavam a olhar-se firmemente e ele não tinha coragem nem de desviar o olhar nem de tocar nela.

- Por que então se casou com ele? Por que continua a viver com ele?

- Já lhe disse. É fundamental. O Comandante Beaumont tem um pouco de dinheiro e é um oficial de muito boa reputação a serviço do seu governo. Trata-se de um homem medíocre e desinteressante, que se sente mais à vontade a bordo de um navio do que em qualquer outro lugar. Tudo isso representa um cantinho muito seguro para mim. Vivo dentro de um casulo confortável.

Ali estava o caminho fornecido por Genebra!

- Dois milhões de dólares podem assegurar um casulo muito seguro, um abrigo melhor que o que tem, Mrs. Beaumont.

- Talvez. Mas eu teria de deixar o abrigo que construí com tanto trabalho e enfrentar o mundo exterior.

- Só por algum tempo...

- E que aconteceria à minha segurança? - continuou ela como se não o tivesse ouvido. - Lá fora, eu teria de tomar decisões. Tudo isso é muito desagradável e eu não quero pensar mais nessas coisas. Sabe de uma coisa, Mr. Holcroft? Tenho sido infeliz quase toda a minha vida, mas não estou pedindo a compaixão de ninguém.

Era de enfurecer. Teve ímpetos de bater nela.

- Gostaria que voltássemos a falar do caso de Genebra - disse Noel.

Ela se acomodou de novo no pufe, cruzando as pernas. A saia subiu acima dos joelhos, mostrando-lhe as coxas. A atitude era sedutora, mas o que ela disse não o era.

- Mas eu voltei a falar em Genebra. Talvez sem muita habilidade porque estava tentando explicar. Saí de Berlim ainda criança. Estive sempre fugindo até que minha mãe, meu irmão e eu achamos no Brasil um refúgio, que depois se tornou um inferno para nós. Flutuei através da vida durante todos esses anos. Segui tudo, instintos, oportunidades e homens. Não tive iniciativa. Tomei o mínimo de decisões que era possível.

- Não compreendo aonde quer chegar.

- Se tem assuntos que interessam à minha família, deve falar com meu irmão Johann. Ele é que toma as decisões. Foi ele que me trouxe da América do Sul, depois que minha mãe morreu. É ele o Von Tiebolt com quem deve entender-se.

Noel reprimiu o desejo de gritar com ela. Em lugar disso, deu um suspiro, dominado por um sentimento de cansaço e frustração. Johann von Tiebolt era a única pessoa da família a quem tinha de evitar, mas não podia dizer isso a Gretchen Beaumont, nem explicar-lhe os motivos.

- Onde está ele? - perguntou por perguntar.

- Não sei. Trabalha na Europa para o jornal Guardian.

- Em que ponto da Europa?

- Também não sei. Ele se movimenta muito.

- Disseram-me que ele foi visto em Bahrain.

- Então sabe mais do que eu.

- Tem uma irmã.

- Tenho. Helden. Está em Paris. Onde, não sei.

Todos os filhos terão de ser examinados... para se tomarem decisões.

Johann fora examinado, e o julgamento feito, certo ou errado, o inabilitava em relação a Genebra. Era uma complicação que não poderiam permitir. Chamaria muito a atenção e isso não era conveniente.

Olhou então espantado para Gretchen Beaumont. A mulher do comandante se levantara do pufe e desabotoara o vestido até a cintura. Afastou lentamente as dobras da seda. Os seios ficaram soltos e ela avançou para ele com os bicos rígidos, túmidos de tensão. Levantou a saia com as duas mãos, prendendo-a acima das coxas, e se colocou bem na frente dele. Noel tomou conhecimento da fragrância que exalava dela, um perfume delicado e tão sensual quanto a visão da sua carne nua. Ela se sentou ao lado dele, com o vestido descido até a cintura e o corpo todo trêmulo. Gemeu e agarrou-lhe a cabeça, puxando-lhe os lábios para os dela. Ao mesmo tempo que o beijava, desceu a mão para as calças dele e procurou-lhe o sexo, apertando-o convulsivamente. Tornou-se de repente incontrolável. Os seus gemidos eram febris e todo o seu corpo se encostava ao dele.

Os lábios se afastaram um instante e ela murmurou:

- Vou amanhã para o Mediterrâneo, para um homem que odeio. Não diga nada. Dê-me uma noite de amor! Só esta!

Ela moveu ligeiramente o corpo, com os lábios cintilantes e os olhos tão arregalados que pareciam dementes. Pouco a pouco, ergueu-se acima dele e a sua pele branca se estendeu por toda a parte. O tremor diminuiu. Ela fez deslizar a perna nua sobre ele e levantou-se. Puxou o rosto dele para a sua cintura e tomou-lhe a mão. Ele se levantou e abraçou-a. Gretchen lhe segurou então a mão e os dois se dirigiram para a porta do quarto. Ao entrar, ouviu-a dizer, na sua voz estranha:

- Johann disse que um dia um homem apareceria para falar-me de um acordo esquisito. Eu devia ser gentil com ele e me lembrar de tudo o que ele dissesse.


12

Holcroft despertou sobressaltado e durante alguns segundos não soube onde estava. Por fim, lembrou-se. Gretchen Beaumont levara-o para o quarto, ao mesmo tempo em que fazia aquela estranha declaração. Tentara ver se extraía mais alguma coisa dela para saber o que o irmão tinha dito, mas ela não estava em condições de pensar com clareza. Estava num delírio, precisando desesperadamente de sexo, e não podia pensar em nada mais.

Tinham-se amado freneticamente. Ela era a agressora, a contorcer-se na cama num ritmo febril, ora embaixo dele, ora em cima, ora ao lado. Tinha sido insaciável e não havia qualquer espécie de exploração ou penetração capaz de satisfazê-la. Em determinado momento, com as pernas trançadas em torno da cintura dele, tinha gritado e lhe cravara as unhas nos ombros, muito depois que ele tivesse capacidade para qualquer reação. Por fim, a exaustão o vencera e ele havia mergulhado num sono profundo mas agitado.

Naquele momento, porém, estava acordado e não sabia o que lhe interrompera o sono. Tinha havido um barulho não forte, mas agudo e penetrante, e ele não sabia o que era, nem de onde vinha.

De repente, percebeu que estava sozinho na cama. Levantou a cabeça. O quarto estava às escuras e com a porta fechada. Abaixo dela, havia uma tênue réstia de luz.

- Gretchen...

Não houve resposta. Não havia mais ninguém no quarto.

Jogou as cobertas, para o lado e se levantou, procurando firmar as pernas enfraquecidas. Sentia-se esgotado e desorientado. Foi até a porta e abriu-a. Na pequena sala de estar, havia um abajur aceso, que enchia de sombras as paredes e o chão.

De novo o barulho! Era um som metálico, que repercutia pela casa, mas não tinha origem nela. Correu para uma janela e olhou pela vidraça. À luz de um lampião da rua, avistou um homem ao lado do carro que alugara, com uma lanterna elétrica na mão.

Antes que ele compreendesse o que estava acontecendo, ouviu uma voz abafada do lado de fora e a luz da lanterna foi acesa na direção da janela. Levou instintivamente a mão aos olhos para protegê-los da claridade. A lanterna se apagou e ele viu o homem correr para um carro parado do outro lado da rua. Não havia percebido esse carro, tão atento estava ao carro em que viera e ao desconhecido com a lanterna. Viu então que havia alguém sentado no banco da frente do outro carro. Não podia ver senão os contornos da cabeça e dos ombros.

O homem que corria chegou ao outro carro, abriu a porta e tomou posição ao volante. Deu partida no carro e saiu, fazendo manobra para mudar a direção do veículo antes de partir.

Por um instante, graças à luz do lampião da rua, Noel viu a pessoa sentada ao lado do homem que dirigia. Durante menos de um segundo, o rosto dessa pessoa no carro em movimento esteve no máximo a vinte metros do lugar onde ele estava.

Era Gretchen Beaumont. Os olhos dela estavam voltados para a frente através do para-brisa e sua cabeça se movia para cima e para baixo, como se estivesse falando rapidamente.

Várias luzes se acenderam nas casas vizinhas. O barulho do motor e dos pneus eram uma intrusão incômoda na tranquila rua de Portsea. Rostos preocupados apareceram às janelas.

Holcroft afastou-se da janela. Estava nu e percebia que ser visto nu na sala de estar do Comandante Beaumont, na ausência deste, não seria vantajoso para ninguém, principalmente para ele.

Para onde Gretchen tinha ido? Que estava ela fazendo? Que som fora o que tinha ouvido?

Não havia tempo de pensar nessas coisas. Tinha de sair o quanto antes da casa de Beaumont. Voltou ao quarto e procurou ajustar os olhos à luz fraca que vinha da sala, ao mesmo tempo em que procurava um interruptor ou um abajur. Lembrou-se de que, em dado momento do seu frenesi amoroso, Gretchen dera com a mão no abajur da mesinha e o derrubara no chão. Abaixou-se e procurou-o até que o encontrou. Estava caído, com a lâmpada protegida pela armação forrada de seda que a cercava. Ligou-o e a luz encheu o quarto. Viu então suas roupas arrumadas nas costas de uma cadeira perto da cama.

Vestiu-se com a maior rapidez possível. Onde estava o paletó? Lembrou-se de que Gretchen o tirara do corpo dele e o deixara cair perto da porta. Sim, lá estava ele. Atravessou o quarto para apanhá-lo, olhando de passagem para o grande espelho que havia em cima da cômoda.

Parou de súbito ao ver uma fotografia numa moldura de prata em cima da cômoda. Era um homem com um uniforme naval.

Conhecia aquele rosto! Não era de muito tempo. Havia semanas, talvez dias... Não sabia de onde, mas tinha certeza de que conhecia aquele rosto. Aproximou-se da cômoda e examinou a fotografia.

Eram as sobrancelhas! Pareciam estranhas, diferentes, como se tivessem vida própria... Eram como uma cornija incongruente acima de uma tapeçaria indefinida. Eram espessas e apresentavam uma profusão de cabelos brancos e pretos misturados... Os olhos por baixo daquelas sobrancelhas tinham-no de repente encarado. Lembrou-se então!

Fora no avião para o Rio de Janeiro! E não era só isso. O rosto, no momento em que o vira no avião em viagem para o Brasil, lhe despertara outra lembrança, uma lembrança de violência. Mas um vulto indistinto a correr era tudo o que lhe ficara na memória.

Noel virou a moldura de prata e procurou com os dedos até encontrar o fecho. Abriu-o e tirou a fotografia. Havia alguma coisa escrita nas costas. Aproximou-se da luz e por um momento perdeu o fôlego. As palavras eram em alemão e eram as seguintes: "Neuaufbau oder Tod".

Já havia visto essas palavras, como havia visto o rosto da fotografia. Mas eram em alemão e não lhe diziam nada... Entretanto, já as tinha visto!

Confuso, dobrou a fotografia e guardou-a num dos bolsos das calças.

Abriu a porta de um armário e jogou a moldura de prata entre as roupas dobradas numa prateleira. Pegou o paletó e encaminhou-se para a sala de estar. Tinha de sair dali o mais depressa possível, mas a curiosidade em torno do homem da fotografia o dominava. Tinha de saber alguma coisa sobre ele.

Havia duas portas na sala de estar. Uma estava aberta e dava para a cozinha. A outra estava trancada. Abriu-a e entrou no escritório do comandante. Acendeu a luz. Havia por toda parte fotografias de navios e de homens, ao lado de citações e condecorações emolduradas. O Comandante Beaumont era um oficial de carreira de grande prestígio. Um processo de divórcio seguido de um casamento discutível poderia ter criado alguns difíceis problemas pessoais para o homem, mas a Marinha Real não dera evidentemente muita importância a nada disso. A última citação datava de algumas semanas apenas e elogiava Beaumont pelo seu comando das patrulhas costeiras ao largo das ilhas Baleares durante uma semana de mares tempestuosos.

Um exame sumário dos papéis em cima da mesa e nas gavetas não esclareceu coisa alguma. Dois talões de cheques com saldos de menos de três mil libras, uma carta do advogado de sua ex-mulher, reclamando a transferência de algumas propriedades na Escócia, e cópias de diários de bordo e de ordens de serviço.

Holcroft queria demorar-se um pouco mais na sala para procurar mais informações sobre o estranho homem das sobrancelhas, mas não quis arriscar-se. Já ultrapassara os limites da prudência e tinha de sair.

Deixou a casa, olhando para as janelas que pouco antes tinham estado acesas e cheias de rostos curiosos. Não havia mais luzes e não se via ninguém. O sossego voltara a descer em Portsea. Abriu o portão e ficou aborrecido por ouvi-lo ranger nas dobradiças. Chegou ao carro que alugara e se sentou ao volante. Ligou a chave e pisou o acelerador.

Nada. Insistiu mais duas ou três vezes. Nada.

Abriu o capô e olhou, lembrando-se então do barulho que tinha ouvido. Pensou que tinha havido alguma coisa muito mais séria. Mesmo que a bateria estivesse descarregada, o que não era provável, devia ter havido ao menos um leve estalo na ignição. Examinou o motor à luz da lâmpada da rua e viu o que receava.

Os fios tinham sido cortados nos pontos de onde emergiam com uma exatidão cirúrgica. Não havia a menor possibilidade de ligá-los para dar partida ao motor. O carro teria de ser rebocado.

E quem fizera aquilo sabia que o americano não teria meios de sair daquela região que desconhecia no meio da noite. Se houvesse táxis naquele subúrbio afastado, o que era bem duvidoso, não estavam mais circulando àquela hora. Já passava das três da manhã. Quem sabotara o carro queria que ele ficasse onde estava. Era de esperar que outros viessem à procura dele. Tinha de fugir a pé. Muito e tão depressa quanto pudesse... até chegar à estrada e pegar talvez uma carona para sair dali.

Fechou o capô. O barulho metálico repercutiu através da rua.

Começou a andar pela quadra em direção ao sinal de trânsito, que não estava funcionando àquela hora. Depois do cruzamento, andou mais depressa e dentro em pouco estava correndo. Faltavam dois quilômetros e meio para a estrada. Tinha o corpo coberto de suor e um bolo voltava a formar-se em seu estômago.

Viu as luzes antes de ouvir o barulho do motor. À frente dele, na estrada em linha reta, a luz dos faróis do carro rasgava a escuridão. Aproximava-se com tanta rapidez que a velocidade do carro devia ser bem grande.

Noel viu uma abertura à direita, um espaço numa sebe cerrada. Correu para lá e deixou-se cair no chão, sem saber se fora visto. Compreendeu nesse momento que era da maior importância para ele não ser envolvido com Gretchen Beaumont. Era um enigma dispensável, uma mulher profundamente erótica e bela. Mas representava uma ameaça a Genebra, do mesmo modo que o irmão dela.

O carro passou. Ele não fora visto. Pouco depois, o barulho do motor cessou e houve um ranger de freios. Holcroft foi até a abertura da sebe e olhou.

O carro tinha parado bem em frente à casa de Beaumont. Dois homens saltaram do carro e correram para a casa. Noel ouviu o ranger do portão. Pouco lhe adiantava ficar onde estava. Era hora de correr. Ouviu nesse momento a cem metros de distância a aldrava de bronze da casa ser batida. Moveu-se então por trás da sebe até encontrar nova abertura longe de um lampião. Aprumou então o corpo e saiu correndo.

Corria para a frente pela rua mal-iluminada e arborizada, de esquina a esquina, na esperança de poder descobrir sem dificuldade o ponto em que devia virar para chegar à estrada. Amaldiçoou os cigarros quando começou a perder o fôlego e viu-se penosamente a arfar. O suor lhe escorria pelo rosto e a opressão no peito se tornou quase insuportável. O tropel rápido dos seus passos na calçada o assustava. Era apenas um homem que fugia apavorado dentro da noite.

Passos. Passos que corriam! Eram os dele, mas havia outros. Vinham às suas costas e se aproximavam. Havia alguém a persegui-lo! Era alguém que corria em silêncio, sem chamá-lo e sem lhe ordenar que parasse... Seria uma ilusão auditiva? A opressão no peito fazia as suas vibrações repercutirem-lhe através do corpo. Eram os seus passos que lhe ecoavam aos ouvidos? Não tinha coragem de voltar-se para ver, para certificar-se. Ia bem depressa, ora na escuridão ora sob a luz.

Chegou ao fim de outra quadra, correu para outra esquina e dobrou então para a direita, embora soubesse que aquele não era o caminho que o levaria à estrada. Tinha de saber se havia de fato alguém atrás dele. Correu pela rua.

Os passos continuaram num ritmo diferente dos seus passos. Estavam cada vez mais próximos. Não podia mais suportar a tensão, nem correr mais depressa. Virou o corpo, tentando olhar por cima do ombro.

Estava ali, sim. Era um homem visto em silhueta à luz de uma lâmpada da rua. Era corpulento e continuava a correr, diminuindo a distância entre eles. Estava apenas a poucos metros.

Com as pernas doendo, Noel saiu pelo passeio num ímpeto final de velocidade. Voltou-se então, dominado inteiramente pelo pânico.

As pernas lhe faltaram no caos e no terror da perseguição. Projetou-se na rua, com o rosto arranhando o asfalto e as mãos geladas e doloridas. Virou imediatamente o corpo, levantando instintivamente as pernas para afastar o assaltante, o vulto silencioso que emergia das sombras e vinha diretamente sobre ele.

Tudo era uma espécie de mancha indistinta. Só um vulto, braços e pernas destacados, penetrou-lhe os olhos toldados pelo suor. Foi então imprensado no chão. Um peso enorme lhe oprimiu o peito e um braço que parecia uma barra de ferro lhe pesou sobre o pescoço, impedindo-o de gritar.

A última coisa que viu foi a mão do homem, erguida como uma garra negra contra o céu noturno, a empunhar um objeto. Depois não houve mais nada. Só um abismo cheio de trevas. Ele rolava para profundezas escuras.

Sentiu primeiro o frio. Depois, a umidade que cobria tudo. Abriu os olhos e viu imagens deformadas de grama e de terra. Estava cercado de grama molhada e montões de terra fria. Rolou o corpo, satisfeito de ver o céu noturno. Do lado direito estava mais claro do que do lado esquerdo.

A cabeça lhe doía, o tosto ardia e as mãos estavam doloridas. Levantou-se com dificuldade e olhou em volta. Estava num campo, numa longa faixa plana de terreno que parecia um pasto. Via a alguma distância uma cerca de arame farpado, com as estacas grossas plantadas a intervalos de cerca de quinze metros. Era um pasto.

Sentiu cheiro de uísque ordinário ou vinho azedo.

As suas roupas estavam ensopadas com isso e o cheiro horrível lhe enchia o nariz. Pensou logo na sua carteira, no seu dinheiro. Meteu mais que depressa as mãos nos bolsos.

A carteira, o clipe de metal com o dinheiro, o relógio, tudo estava ali. Não fora roubado. Tinham-no apenas deixado inconsciente e bem longe da área onde os Beaumont viviam. Era incrível!

Apalpou a cabeça. Havia um galo enorme, mas a pele estava intacta. Tinham batido nele com algum cassetete ou algum cano. Deu uns poucos passos e verificou que podia andar. No momento, era só o que importava. E podia enxergar melhor. Dentro em breve, estaria amanhecendo.

Além da cerca, havia uma pequena elevação que se estendia, tanto quanto ele podia ver, nos dois sentidos. Depois da elevação, avistou as luzes da estrada. Atravessou o campo na direção da estrada, na esperança de que algum motorista lhe desse uma carona. Depois de passar a cerca, lembrou-se de uma coisa e tornou a procurar nos bolsos.

A fotografia tinha desaparecido!

Um caminhão de leite parou e ele entrou. O sorriso do motorista se extinguiu de repente quando o cheiro impregnou a boleia do carro. Noel tentou explicar o caso com bom humor, dizendo-se um americano inocente que se deixara levar pela conversa de alguns marinheiros ingleses em Portsmouth, mas o motorista não pareceu achar nada de interessante no caso. Holcroft saltou na primeira aldeia por que passaram.

Era uma aldeia bem inglesa. A arquitetura Tudor da praça era prejudicada por uma profusão de caminhões de entrega numa cantina à beira da estrada.

- Há um telefone lá dentro - disse o homem do leite. - E podem arranjar-lhe um bom quarto, se quiser descansar. E, aqui para nós, acho que um banho não lhe faria mal algum.

Noel entrou por entre os motoristas de caminhão madrugadores e se sentiu mais ou menos reconfortado com o cheiro do café. O mundo continuava, a vida prosseguia e os pequenos confortos eram aceitos com particular agrado. Foi ao lavatório e fez o possível para atenuar os efeitos da noite. Depois, sentou-se perto de um telefone público na parede e pediu café simples, enquanto esperava que um motorista de caminhão muito zangado acabasse de discutir com um despachante no outro lado da linha. Quando a discussão acabou, Noel chegou ao telefone, com o número do aparelho de Gretchen Beaumont na mão. Tinha de saber o que havia acontecido e talvez argumentar com ela, se tivesse voltado.

Discou.

- Da casa do Comandante Beaumont - disse uma voz de homem ao telefone.

- Quero falar com Mrs. Beaumont.

- Posso saber quem está falando?

- Um amigo do Comandante Beaumont. Soube que a senhora dele vai viajar hoje para encontrar-se com ele e gostaria de mandar um recado para o comandante.

- Tenha a bondade de dizer seu nome.

Noel desligou. Não sabia quem tinha atendido o telefone. Sabia apenas que precisava de ajuda, e ajuda profissional. Talvez isso fosse perigoso para Genebra, mas era necessário. Seria cauteloso, extremamente cauteloso, e aprenderia o que pudesse.

Procurou nos bolsos do paletó o cartão que o homem do serviço secreto lhe dera no Belgravia Arms. Havia apenas um nome - Harold Payton-Jones - e um número de telefone.

O relógio marcava sete horas menos dez. Noel não sabia se àquela hora haveria alguém para atender ao telefone. Fez a ligação para Londres.

- Alô?

- É Holcroft quem fala.

- Ah, sim. Estávamos esperando o seu telefonema.

Noel reconheceu a voz. Quem estava ao telefone era o agente de cabelos grisalhos.

- Estava esperando que eu telefonasse. Posso saber por quê?

- Teve uma noite um pouco agitada, não?

- Quer dizer então que estava lá e viu tudo?

Payton-Jones não respondeu diretamente.

- O carro que alugou está numa oficina em Aldershot. Deve estar pronto ao meio-dia. O nome da garagem é Boot’s. É fácil de lembrar. Não terá de pagar nada. Não haverá nem conta nem recibo.

- Espere um pouco! Seguiu-me! Não tinha o direito de fazer isso!

- Pois saiba que foi muito bom que tivéssemos feito isso.

- Estava naquele carro às três horas da manhã! E foi à casa de Beaumont!

- Fomos e não fomos. E, se acredita que fomos nós, isso mostra que não viu bem quem estava no carro.

- Não vi, de fato. Quem eram eles?

- Gostaríamos de saber. Nosso homem chegou lá quase às cinco horas.

- Quem foi que me perseguiu, me deu uma pancada na cabeça e me deixou naquele pasto?

- Não sabemos de nada disso. Ficamos sabendo apenas que o senhor tinha saído da casa. Às pressas, evidentemente, desde que seu carro estava imobilizado.

- Tudo foi encenado e eu fui o alvo premeditado.

- Sem dúvida. Aconselho-o a ter mais cuidado. É uma coisa indelicada e perigosa aproveitar-se da mulher de um comandante da Marinha Real quando o marido está no mar.

- Conversa! Ele está tanto no mar quanto eu! Ele estava num avião em viagem para o Rio há menos de duas semanas. Há alguma conexão entre ele e os Von Tiebolt!

- É claro, pois ele é casado com uma Von Tiebolt. Quanto ao fato de que ele estivesse num avião comercial há duas semanas, é absurdo. Há três meses ele está no Mediterrâneo.

- Não! Eu o vi! Escute, havia uma fotografia no quarto. Era ele! E havia nas costas alguma coisa escrita em alemão.

- Que é que dizia?

- Não sei. Não falo alemão. Mas é um bocado estranho, não acha?

- Estranho por quê? O alemão é a língua materna de Mrs. Beaumont, a que falou em família durante anos. Com certeza, alguma dedicatória carinhosa do marido ou uma frase afetuosa dela. Não vejo nada de estranho nisso.

- Acho que tem razão.

Mal disse isso, Noel percebeu que havia recuado precipitadamente. O agente secreto podia ficar desconfiado. Noel sentiu isso no que o homem disse a seguir.

- Pensando bem, seria conveniente que nos trouxesse a fotografia.

- Não posso. Não está comigo.

- Não disse que a apanhou?

- Mas não está mais comigo... Não está mais comigo.

- Onde é que está, Holcroft? Creio que deveria vir até aqui falar conosco.

Sem que isso fosse uma decisão consciente de sua parte, Noel baixou o gancho e interrompeu a ligação. O ato precedeu a deliberação, porque, logo depois de fazer isso, compreendeu por que o fizera. Não poderia aliar-se à Seção Cinco da Inteligência Militar, nem estabelecer com ela qualquer espécie de relacionamento. Ao contrário, devia afastar-se o mais possível do serviço secreto inglês. Não podia haver qualquer associação. A Seção Cinco havia-o seguido depois de ter dito que o deixaria em paz. Os agentes secretos tinham faltado à sua palavra.

Os sobreviventes da Wolfsschanze tinham dito que, entre os que soubessem da obra que ele tinha de fazer em Genebra, haveria quem tentasse detê-lo, enganá-lo e até matá-lo.

Holcroft duvidava de que aqueles ingleses pudessem matá-lo; mas queriam, sem dúvida, detê-lo. Se o conseguissem, isso equivaleria a matá-lo. Os homens da Wolfsschanze não hesitariam. Peter Baldwin, Ernst Manfredi, Jack... todos mortos...

Os homens da Wolfsschanze poderiam matá-lo, se ele falhasse. E era essa a terrível ironia. Ele não queria falhar. Por que não podiam compreender isso? Talvez mais do que os homens da Wolfsschanze, ele queria ver realizado o sonho de Heinrich Clausen.

Pensou em Gretchen Beaumont, seguidora de instintos, de oportunidades e de homens. E no irmão dela, o jornalista arrogante, brilhante e poliglota de quem se suspeitava que fosse um assassino. Nenhum dos dois seria nem remotamente aceitável para Genebra.

Restava apenas uma pessoa, Helden von Tiebolt, agora Helden Tennyson, que vivia em Paris. Não sabia o endereço dela. Tinha apenas um nome, Gallimard.

Paris.

Tinha de ir a Paris. Tinha de esquivar-se da Seção Cinco.


13

Havia em Londres um homem que trabalhava para o teatro como cenógrafo. Por breve tempo, fora famoso como decorador entre os milionários dos dois lados do Atlântico. Noel desconfiada de que Willie Ellis era mais contratado pela sua personalidade irreverente e pelo seu espírito do que pelas suas qualidades como decorador. Havia trabalhado com Willie em quatro ocasiões e sempre, ao fim de cada trabalho, jurava que nunca mais trabalharia com ele, sabendo no entanto que quebraria o juramento. Na verdade, Noel gostava imensamente de Willie. O irrequieto inglês não era só artifício e elegância. No íntimo, nos seus momentos tranquilos, era um homem de talento que conhecia mais do que ninguém a história do teatro e a evolução dos cenários. Chegava às vezes a ser fascinante.

Em muitas outras ocasiões, porém, era apenas irritante.

Tinham-se mantido em contato através dos anos, e, sempre que ia a Londres, Noel reservava algum tempo para Willie. Pensara que naquela viagem não teria tempo para isso, mas havia mudado de ideia. Precisava de Willie. Obteve o número ligando para a telefonista e discou para Willie.

- Noel, amigo velho, está no seu juízo perfeito? Só quem está acordado a estas horas em Londres são os pássaros que sujam as ruas e os garis que as limpam.

- Estou com um problema, Willie, e preciso de sua ajuda.

Ellis conhecia a aldeia de onde Noel estava telefonando e prometeu ir buscá-lo o mais depressa possível, tempo que calculou em cerca de uma hora. Chegou meia hora depois, insultando os motoristas de todos os carros que havia encontrado na estrada. Noel entrou no carro e Willie estendeu-lhe a mão, ao mesmo tempo que destravava a língua, como de costume.

- Você está uma verdadeira obra-prima em matéria de sujeira e com um fedor pior do que o do sovaco de uma garçonete de bar. Baixe a vidraça e conte o que aconteceu.

Noel deu uma explicação simples, silenciando os nomes e obscurecendo os fatos.

- Tenho de ir a Paris e há gente que está querendo impedir-me de fazer isso. Não lhe posso dizer muita coisa, mas lhe asseguro que nada fiz de errado, nem de ilegal.

- Ora, Noel, o erro é sempre uma coisa muito relativa e a ilegalidade é uma coisa em geral sujeita a interpretações e a um bom advogado. Trata-se de um caso de uma bela fada e de um marido que é um dragão furioso?

- Mais ou menos.

- Isso me deixa tranquilo. É sempre uma boa causa. Mas que é que o impede de ir para o aeroporto e tomar o primeiro avião rumo a Paris?

- Minhas roupas, minha pasta e meu passaporte estão no meu hotel em Londres. Se eu aparecer por lá para pegar tudo isso, as pessoas que querem impedir-me de viajar me descobrirão.

- Pelo jeito em que você está, parece uma gente bem determinada, hein?

- Tem toda a razão, Willie.

- A solução é simples - disse Willie. - Irei buscar as suas coisas e pagarei a sua conta no hotel. Direi que você é um velho amigo que eu conheci nas colônias e encontrei jogado numa sarjeta no Soho. Quem se atreverá a contestar as minhas amizades?

- Pode haver problemas com a gerência...

- Não sei por quê. Pagarei sua conta em dinheiro corrente e você me dará uma nota autorizando-me a recolher a sua bagagem. Poderão conferir as suas assinaturas. Não deve haver paranoicos como os que se encontrariam entre os nossos primos do outro lado do Atlântico.

- Espero que tenha razão, mas creio que os empregados do hotel já tenham sido procurados pelas pessoas que estão à minha procura. Podem querer saber onde eu estou antes de entregarem a minha bagagem.

- Nesse caso, eu direi a eles - disse Willie, sorrindo. - Darei um endereço para onde possam mandar sua correspondência e um número de telefone, no qual a sua presença será confirmada.

- Como assim?

- Deixe comigo. E agora, pelo amor de Deus, há um vidro de água-de-colônia no porta-luvas. Use-a, sim?

Ellis tomou providências para que um tintureiro fosse pegar as roupas ensopadas de uísque e as devolvesse lavadas e passadas à tarde. Depois, saiu do seu apartamento de Chelsea para o Belgravia Arms.

Holcroft fez a barba, tomou banho, colocou as roupas sujas numa cesta do lado de fora da porta e telefonou para a agência de aluguel de carros. Calculava que, se fosse buscar o carro em Aldershot, o serviço secreto estaria à espera dele. E, quando saísse no carro, seria seguido.

A agência não ficou satisfeita com a notícia, mas Noel não deu outra solução. Se queriam o carro de volta, teriam de ir buscá-lo em Aldershot. Desculpassem, mas era um caso de força maior. Podiam mandar a conta para o escritório dele em Nova York.

Tinha de sair da Inglaterra o mais discretamente possível. Com toda a certeza, o serviço secreto mantinha sob vigilância todos os aeroportos e todos os portos onde havia barcos para a travessia da Mancha. Talvez a solução fosse uma passagem de última hora num avião já lotado para Paris. Com um pouco de sorte, poderia chegar ao Aeroporto de Orly antes que o serviço secreto soubesse que ele saíra da Inglaterra. Havia uma ponte aérea entre Londres e Paris, na qual quase não havia a presença da alfândega. Podia também comprar duas passagens - uma para Amsterdam e outra para Paris -, entrar pelos portões da KLM e, depois, sob um pretexto qualquer, voltar e ir para a área de embarque para a França, onde Willie estaria com a sua bagagem.

Em que é que estava pensando? Em truques, em subterfúgios, em artimanhas. Era um criminoso sem crime, um homem que não podia dizer a verdade, pois essa verdade acarretaria a destruição de muita coisa.

Começou de novo a transpirar e a dor lhe voltou ao estômago. Sentia-se fraco e desorientado. Deitou-se no sofá de Willie, vestido com um roupão do amigo. Fechou os olhos.

Acordou de repente, sentindo que havia alguém ao lado dele. Teve um momento de alarma, mas respirou tranquilizado ao ver Willie junto ao sofá.

- Descansou um pouco e isso foi muito bom. Já está com outro aspecto e outro cheiro, felizmente.

- Pegou minha bagagem?

- Peguei, sim, e você tinha razão. Estavam ansiosos por saber onde você estava. Quando eu paguei a conta, o gerente apareceu e procedeu como uma versão mambembe de detetive da Scotland Yard. Falou-me todo untuoso e confuso. Ficou com o número do telefone do lugar onde você está provisoriamente internado.

- Internado?

- Sim. Infelizmente, não pude proteger a sua reputação. Muita gente poderá, ficar alarmada. O telefone é de um hospital em Knightsbridge que não recebe um pêni do Serviço Nacional de Saúde. Destina-se a casos graves de doenças venéreas. O diretor de lá é meu amigo e já foi avisado.

- Você é o maior, Willie. Onde estão minhas coisas?

- No quarto de hóspedes. Quando quiser mudar de roupa, já pode.

- Obrigado - disse Noel, encaminhando-se para a porta.

- Escute, conhece um homem chamado Buonoventura?

Noel parou. Tinha mandado a Sam, do aeroporto de Lisboa, um telegrama que dizia: "Belgravia Arms, Londres".

- Conheço, sim. Ele telefonou para o hotel?

- Várias vezes. As telefonistas disseram que as ligações eram feitas de Curaçau.

- Vou ligar para ele - disse Holcroft. - Usarei o meu cartão de crédito.

Cinco minutos depois, ouvia a voz ressoante de Sam pelo telefone e compreendia que não podia mais pedir ao amigo que continuasse a mentir.

- Miles não está mais com rodeios, Noley. Disse que vai esperá-lo quando você voltar para Nova York com um mandado judicial. Vai intimar os proprietários disto aqui, pensando que são americanos. Sabe que não pode forçar você a voltar, mas quer que todos saibam que você é um foragido da justiça. A coisa é um pouco difícil, Noley, porque seu nome não consta das folhas de pagamento.

- Esse Miles disse por que está tão ansioso pela minha presença em Nova York?

- Porque precisa de informações que só você tem.

Noel pensou que, se pudesse chegar a Paris, queria que Sam pudesse comunicar-se ali com ele.

- Escute, Sam. Ainda hoje, vou sair daqui para Paris. Há um escritório do American Express nos Champs-Élysées, perto da Avenue George Cinq. Se houver alguma coisa, telegrafe-me para lá.

- Que é que eu digo a Miles se ele telefonar outra vez? Não quero meter-me em encrencas com ele.

- Diga que falou comigo e me disse que ele estava procurando falar comigo. Diga que eu lhe assegurei que falaria com ele o mais depressa possível. Diga-lhe também que fui forçado a vir à Europa. Não fale espontaneamente no escritório do American Express, mas, se ele insistir, diga que ele pode telefonar para lá e deixar qualquer recado para mim.

- Há mais uma coisa, Noley. Sua mãe telefonou e eu me senti como um verme mentindo para ela. Você não deve mentir para sua mãe, Noley.

Holcroft sorriu. Toda uma vida de aventuras e desvios não tinham acabado com o que havia de basicamente italiano na alma de Sam.

- Vou telefonar para ela logo que chegar a Paris. Mais alguma coisa?

- Não acha que já chega?

- E sobra. Falarei com você dentro de alguns dias, mas já sabe para onde pode me telegrafar.

- Está bem. Mas, se sua mãe telefonar de novo, vou dar a ela também o endereço do American Express.

Desligou o telefone e só então notou que Willie Ellis tinha ido para a cozinha, onde ligara o rádio. Um dos atributos de Willie era ser um gentleman, no sentido amplo do termo. Noel sentou-se por algum tempo ao lado do telefone, procurando coordenar os fatos. O telefonema de sua mãe nada tinha de surpreendente. Não falava com ela desde a manhã de domingo em que fora a Bedford Hills, fazia já quinze dias.

Miles era, porém, um caso diferente. Não pensava no detetive como uma pessoa, com rosto ou voz. Mas Miles tinha chegado a certas conclusões. E essas conclusões ligavam Noel às três mortes verificadas em conexão com o voo 591 da British Airways, de Londres para Nova York. Miles não ia desistir. Se persistisse, iria criar um problema que Noel não sabia se poderia resolver. O detetive poderia pedir a cooperação da polícia internacional. Nesse caso, haveria exagerada atenção às atividades de um cidadão dos Estados Unidos que se esquivara a uma investigação de homicídio.

Genebra não toleraria essa atenção e o pacto seria desfeito. Miles tinha de ser contido. Mas como?

A floresta desconhecida estava cheia de armadilhas. Todos os seus instintos de autodefesa mandavam-no recuar. Genebra precisava de um homem muito mais ardiloso e experiente do que ele. Apesar disso, não podia recuar. Os sobreviventes da Wolfsschanze não o permitiriam. Além disso, no fundo de sua consciência, sabia que não queria voltar atrás. Um rosto emergia das trevas. Tinha de encontrar seu pai e, depois de encontrá-lo, mostrar ao mundo um homem que tivera a bravura e a percepção suficientes para saber que deviam ser feitas reparações e que, além disso, tivera inteligência para dar vida à sua convicção.

Noel foi até a porta da cozinha. Willie estava diante da pia lavando as xícaras do chá.

- Deverei pegar minhas roupas dentro de duas semanas, Willie. Vamos para o aeroporto.

Ellis se voltou com olhos preocupados, ao mesmo tempo em que pegava um jarro de porcelana numa prateleira.

- Posso poupar-lhe um pouco de tempo, Noel. Você vai precisar de algum dinheiro francês antes que possa trocar o seu dinheiro americano numa casa de câmbio. Tenho alguns francos aqui para as minhas viagens quinzenais a Paris a fim de saciar a carne. Sirva-se à vontade.

- Obrigado - disse Noel, aceitando o dinheiro.

Olhou para os braços de Willie com as mangas arregaçadas. Eram talvez os braços mais musculosos que já vira. Pensou que ele poderia facilmente partir um homem ao meio.

A loucura começou em Heathrow e tomou impulso em Orly.

Em Londres, comprou uma passagem na KLM para Amsterdam com a ideia de que a história que havia contado aos agentes secretos fora verificada e considerada plausível. Suspeitou de ambas as coisas quando viu um homem vestido com uma capa olhá-lo com espanto quando ele saiu correndo da área de embarque da KLM para a da Air France. Encontrou Willie à espera dele com uma passagem comprada para um avião já lotado com destino a Paris.

O exame da Imigração em Orly foi superficial, mas as filas eram enormes. Enquanto esperava, Noel teve tempo de observar a multidão que se comprimia na sala da alfândega e além das portas de vaivém que davam para o terminal. Viu perto dessas portas dois homens, com alguma coisa que lhe chamou a atenção. Talvez fosse a expressão carrancuda dos dois, um pouco deslocada num local em que as pessoas se reviam alegremente. Conversavam descansadamente com as cabeças imóveis, como se estivessem observando todas as pessoas que saíam da sala da alfândega. Um deles tinha um pedaço de papel na mão. Uma fotografia? Sim, a fotografia dele.

Não eram homens da Wolfsschanze. Estes deviam conhecê-lo de vista e, além do mais, nunca eram vistos. A Seção Cinco devia ter dado ordens aos seus agentes em Paris. Aqueles homens estavam à espera dele.

O homem da alfândega carimbou sem qualquer exigência os papéis de Holcroft. Noel pegou a sua bagagem e se encaminhou para a saída. Sentia o pânico de quem marcha para uma armadilha inevitável.

Logo que saiu, viu os dois homens se voltarem para o lado a fim de não serem vistos. Compreendeu então que não iam abordá-lo. Tinham ordem apenas de segui-lo.

Essa certeza gerou imediatamente uma estratégia confusa e difícil. Difícil porque era uma coisa completamente estranha ao seu procedimento normal; confusa, porque não tinha muita certeza da maneira como devia agir. Sabia vagamente que tinha de ir do ponto A para o ponto B e voltar ao ponto A, despistando os seus perseguidores nas imediações do ponto B.

Havia um cartaz no terminal do aeroporto que dizia: "Lignes aériennes intérieures[13]".

As linhas internas da França ligavam todo o país com esplêndida regularidade. As cidades estavam relacionadas em três colunas: Rouen, Le Havre, Caen... Orléans, Le Mans, Tours... Dijon, Lyon, Marselha.

Noel passou rapidamente pelos dois homens, como se não estivesse prestando atenção senão aos seus problemas. Chegou a um guichê das linhas internas. Havia quatro pessoas à sua frente.

Chegou a sua vez. Indagou dos voos para o sul, para o Mediterrâneo, para Marselha. Queria saber quais eram as várias horas de partida.

Havia um voo que tocava em cinco cidades num arco para sudoeste, de Orly até o Mediterrâneo, segundo lhe disse o homem do guichê. As escalas eram em Le Mans, Nantes, Bordeaux, Toulouse e Marselha.

Le Mans. O tempo de voo para Le Mans era de quarenta minutos. De automóvel, o percurso seria feito em três ou três horas e meia. Faltavam vinte minutos para as quatro.

- Irei nesse avião - disse Noel. - Chegarei a Marselha na hora exata.

- Pardon, monsieur, mas há voos mais diretos.

- Vão esperar-me no aeroporto. Não adiantará nada chegar mais cedo.

- Como queira, monsieur. Vou ver quais os lugares que ainda estão vagos. O avião parte daqui a doze minutos.

Cinco minutos depois, Holcroft estava no portão de embarque, com o Herald Tribune aberto à sua frente. Olhou por cima da página. Viu um dos ingleses carrancudos chegar ao guichê onde ele havia comprado a passagem.

Quinze minutos depois, o avião estava no ar. Noel se levantou duas vezes, foi até o lavatório e olhou os passageiros, um por um. Nenhum dos dois homens estava a bordo e não havia um só passageiro mesmo remotamente interessado nele.

Em Le Mans, esperou que os passageiros que iam desembarcar saltassem do avião. Foram sete ao todo. Os novos passageiros que os iam substituir começaram a chegar a bordo.

Pegou a sua maleta, dirigiu-se calmamente para a porta de saída e desceu a escada de metal até chegar à pista. Foi até o terminal e olhou pela janela.

Ninguém saiu do avião; ninguém o estava seguindo. Olhou o relógio. Faltavam dezessete minutos para as cinco. Talvez ainda tivesse tempo de falar com Helden von Tiebolt. Tinha apenas o nome e o local de trabalho. Era o essencial. Falou pelo telefone público mais próximo, grato a Willie pelo dinheiro francês que lhe tinha dado.

No seu francês rudimentar, disse à telefonista:

- Le numéro de Gallimard à Paris, s’il vous plaît...

Ela estava lá. Mlle Tennyson não tinha um telefone em sua mesa, mas se ele quisesse esperar, dentro em pouco ela estaria na linha. A telefonista da Gallimard falava inglês melhor do que muitos texanos.

A voz de Helden von Tiebolt tinha em seu sotaque a mesma estranha mistura de alemão e português da irmã, mas com um pouco mais de suavidade. Havia também um traço daquela ressonância de que Noel se lembrava tão bem na voz de Gretchen, mas não com a mesma qualidade entrecortada e distante. Helden von Tiebolt - Mlle Tennyson - sabia o que queria dizer e o dizia.

- Por que tenho de falar-lhe? Não o conheço, Mr. Holcroft.

- É um assunto urgente, acredite.

- Já tive muitos casos urgentes na vida. E estou cansada deles.

- Nenhum foi igual a este de agora.

- Como foi que me encontrou?

- Pessoas na Inglaterra, a quem não conhece, disseram-me onde trabalhava. Mas não sabiam do seu endereço particular, e tive de telefonar para o seu local de trabalho.

- Essas pessoas estavam tão interessadas em mim que procuraram saber o meu endereço?

- Isso faz parte do que eu tenho para lhe dizer.

- Por que se interessavam por mim?

- Dir-lhe-ei pessoalmente. Tenho de dizer-lhe.

- Diga-me agora.

- Pelo telefone, não.

Houve uma pausa. Quando afinal falou, as suas palavras foram enérgicas, precisas, claras... e receosas.

- Exatamente por que deseja ver-me? Que pode haver de tão urgente entre nós?

- É um assunto que se relaciona com sua família. E com a minha também. Já falei com sua irmã. E tentei encontrar seu irmão...

- Não falo com nenhum deles há mais de um ano - disse Helden von Tiebolt. - Não posso auxiliá-lo em nada.

- O assunto de que temos de falar data de mais de trinta anos.

- Não!

- Há dinheiro em jogo, muito dinheiro.

- Não preciso de dinheiro. Vivo bem com o que tenho...

- O dinheiro não se destina só às suas mãos, mas a milhares de pessoas espalhadas por toda parte.

Houve novamente uma pausa. Quando ela falou, foi com voz baixa e contida.

- O assunto a que se refere tem relação com fatos e pessoas... do tempo da guerra?

- Exatamente.

Estaria afinal estabelecida a comunicação com ela?

- Está bem. Vamos nos encontrar - disse Helden.

- Podemos combinar o encontro de maneira... de maneira...

Ele não sabia como poderia falar sem amedrontá-la.

- Não quer que sejamos vistos por aqueles que nos poderiam vigiar, não é isso? Sim, é possível.

- Como?

- Tenho experiência. Faça exatamente o que eu disser. Onde está?

- No aeroporto de Le Mans. Posso alugar um carro e chegar a Paris dentro de três horas.

- Deixe o carro numa garagem. Tome um táxi para Montmartre. Entre no Sacré-Cœur. No fundo da igreja, procure a capela de Luís IX. Acenda uma vela e coloque-a num suporte. Mude então de ideia e coloque a vela em outro suporte. Um homem se aproximará e o levará para um dos cafés da rua. Ali receberá instruções.

- Não acha que é muita complicação? Não nos podemos encontrar num bar ou num restaurante?

- Mr. Holcroft, essas complicações não se destinam à sua proteção, mas à minha. Se não for quem diz que é, e se não estiver sozinho, não me verá. Partirei de Paris esta noite e nunca mais me encontrará.


14

O esplendor granítico do Sacré-Cœur se elevava no céu da noite como um vibrante cântico de pedra. Além das enormes portas de bronze, uma caverna infinita estava amortalhada em penumbra e a luz vacilante das velas executava uma sinfonia de sombras nas paredes.

Perto do altar, subiam os compassos de um te-déum. Um coro de frades em visita cantava em solitária solenidade.

Noel entrou no círculo iluminado por uma luz frouxa onde ficavam as capelas dos reis. Ajustou os olhos às sombras ondulantes e caminhou ao lado das balaustradas que flanqueavam as entradas para os pequenos recintos. As velas esparsas forneciam luz apenas suficiente para que ele lesse a inscrição: "Luís IX, Luís, o Pio, Luís, o Justo, Filho da Aquitânia, Rei da França, Árbitro da Cristandade".

Pio... Justo... Árbitro...

Tentara Helden von Tiebolt dizer-lhe alguma coisa?

Colocou uma moeda na caixa, tirou uma vela e acendeu-a na chama de outra. Seguindo as instruções, colocou-a num suporte, mas, segundos depois, tirou-a e levou-a para outro suporte a alguma distância.

Tocaram-lhe nesse momento no braço e agarraram-lhe o cotovelo. Em seguida, uma voz de homem lhe falou das sombras às suas costas.

- Volte-se devagar, monsieur. Não levante os braços.

Holcroft obedeceu. O homem não era muito alto e tinha uma testa larga e cabelos pretos que escasseavam. Devia ter pouco mais de trinta anos e tinha um rosto simpático e um pouco pálido. Se havia alguma coisa que se notava de imediato nele eram as roupas. Até à luz fraca da igreja, era evidente que eram da melhor qualidade.

Uma aura de elegância emanava do homem, acentuada por um leve aroma de água-de-colônia. Mas os seus atos não foram elegantes, nem suaves. Antes que Noel compreendesse o que estava acontecendo, o homem plantou as mãos em seu peito e passou-as pelo corpo em movimentos rápidos, descendo até o cinto e os bolsos das calças.

Holcroft inclinou o corpo para trás.

- Não se mexa! - sussurrou o homem.

À luz das velas, na capela de Luís IX, no Sacré-Cœur, no alto de Montmartre, Noel estava sendo revistado à procura de alguma arma.

- Siga-me - disse por fim o homem. - Subirei a rua até a praça. Fique bem atrás de mim. Encontrar-me-ei com dois amigos numa mesa do lado de fora de um dos cafés, provavelmente o Bohème. Dê a volta pela praça, olhando os trabalhos dos artistas. Não tenha pressa. Aproxime-se então da mesa e sente-se conosco. Fale com todos como se fôssemos conhecidos, não necessariamente amigos. Compreendeu?

- Compreendi.

Se era esse o meio de falar com Helden von Tiebolt, vá lá. Noel ficou a uma distância discreta do homem. O seu sobretudo bem-talhado não era difícil de seguir entre as roupas menos elegantes dos turistas.

Chegaram à praça repleta de gente. O homem parou um momento a fim de acender um cigarro e então continuou, chegando a uma mesa no passeio, atrás de uma banqueta cheia de plantas. Como ele dissera, havia duas pessoas sentadas à mesa. Uma delas era um homem com um paletó surrado; a outra era uma mulher com uma capa escura e uma echarpe branca em torno do pescoço. A echarpe fazia contraste com os cabelos negros e lisos, quase tão escuros quanto a capa que ela vestia. Usava óculos de aros de tartaruga, que se destacavam no rosto pálido, no qual não se via sinal de maquilagem. Noel ficou sem saber se a mulher tão desinteressante era Helden von Tiebolt. Se fosse, era bem diferente da irmã. Deu a volta pela praça, fingindo interessar-se pelas obras de arte expostas por toda parte. Havia telas com audaciosas manchas de colorido e grossas linhas inesperadas, em que apareciam crayons de crianças com olhos esbugalhados... coisas hábeis, rápidas e artificiais. Muito pouca coisa de mérito, e isso não era mesmo de esperar. Aquilo era uma feira para turistas, onde se vendia o bizarro.

Holcroft pensou que nada havia mudado em Montmartre e encaminhou-se para o café.

Passou pela banqueta, cumprimentou com a cabeça os dois homens e a mulher e se sentou à mesa.

- Sou Noel Holcroft - disse ele, sem olhar para ninguém.

- Nós sabemos - disse o homem de paletó surrado com os olhos voltados para a gente que enchia a praça.

Noel olhou para a mulher.

- É Helden von... Perdão, Helden Tennyson?

- Não - disse a mulher de cabelos pretos, olhando atentamente para o homem de paletó surrado. - Não a conheço, mas poderei levá-lo até ela.

O homem elegante dirigiu-se a Holcroft.

- Está sozinho?

- É claro. Podemos começar? Helden... Tennyson disse que me seriam dadas instruções. Eu gostaria de vê-la, conversar um pouco com ela e depois ir para um hotel. Tenho dormido muito pouco nestes últimos dias.

Começou a levantar-se da mesa.

- Sente-se! - disse a mulher.

Noel sentou-se mais de curiosidade que em obediência à ordem. Teve de repente a impressão de que aquelas três pessoas não o estavam examinando; estavam amedrontadas. O homem elegante mordia a junta do indicador, olhando para alguma coisa no outro lado da praça. O outro, do, paletó surrado, agarrava-lhe o braço e tinha os olhos voltados para o mesmo lado. Estavam olhando para alguém que os alarmava profundamente.

Holcroft olhou também e procurou ver entre as pessoas que passavam de um lado para outro de quem se tratava. Ficou atônito. Lá estavam os dois homens que ele julgava haver despistado em Le Mans. Era absurdo. Ninguém o havia seguido quando saltara do avião.

- São eles! - exclamou.

O homem elegante virou a cabeça rapidamente. O do paletó surrado foi mais lento e teve nos olhos uma expressão de incredulidade. A mulher olhou-o atentamente.

- Eles, quem?

- Aqueles dois homens ali perto da porta do restaurante. Um está com um sobretudo claro e o outro, com uma capa no braço.

- Quem são eles?

- Estavam em Orly hoje à tarde à minha espera. Tomei o avião para Le Mans a fim de livrar-me deles. Tenho quase certeza de que se trata de agentes ingleses. Mas como souberam que eu estava aqui? Não estavam no avião. Ninguém me seguiu. Posso jurar!

Os três trocaram olhares. Acreditavam nele e Holcroft sabia por quê. Ele mesmo apontara os dois ingleses e dera todas as informações antes que lhe perguntassem alguma coisa.

- Se são ingleses, que querem com sua pessoa? - perguntou o homem do paletó surrado.

- Isso eu só direi a Helden von Tiebolt.

- Julga então que eles são ingleses? - insistiu o homem do paletó.

- Creio que são.

O homem do sobretudo inclinou-se para a frente.

- Disse que tomou o avião para Le Mans. Que foi que aconteceu?

- Pensei que poderia desvencilhar-me deles. Comprei passagem para Marselha. Disse ao homem do guichê que ia até Marselha e escolhi um avião que fizesse muitas paradas pelo caminho. A primeira parada foi Le Mans e ali eu saltei. Vi depois os homens interrogando o funcionário do guichê. Mas eu não disse uma só palavra a respeito de Le Mans!

- Não se exalte - disse o homem do paletó surrado. - Isso pode chamar a atenção.

- É claro que eles encontraram minha pista. Mas como?

- Não foi difícil - disse a mulher.

- Alugou um carro? - perguntou o homem elegante.

- Naturalmente. Eu tinha de vir para Paris.

- No aeroporto?

- É claro.

- E naturalmente pediu um mapa. Ou então perguntou o caminho, falando em Paris. Mostrou assim que não ia para Marselha.

- Mas muitas pessoas devem fazer a mesma coisa.

- Decerto, mas não num aeroporto que tem voos para Paris. E nenhuma pessoa com seu nome. Quero crer que não tenha documentos falsos.

Holcroft estava começando a compreender.

- Eles só tiveram o trabalho de verificar...

- Uma pessoa junto a um telefone - disse o homem do paletó surrado. - Menos ainda, depois que souberam que você tinha desembarcado do avião em Le Mans.

- Os franceses não iriam perder a oportunidade de vender um lugar vago - disse o homem do sobretudo. - Compreende? Não há muitas cidades onde se podem alugar carros nos aeroportos. A marca, a cor, a placa, tudo isso era fácil de saber. O resto foi ainda mais simples.

- Simples como? Tinham de encontrar um carro na cidade de Paris.

- Na cidade de Paris, não, monsieur. Na estrada para Paris. Há uma estrada principal e é a mais provável de ser seguida por estrangeiros. Foi reconhecido pelos homens antes de chegar a Paris.

O espanto de Noel cedeu o passo a uma depressão incontrolável. A sua incapacidade era por demais manifesta.

- Sinto muito. Perdoem-me.

- Não fez nada intencionalmente - disse o homem elegante, que naquele momento concentrava a atenção nos dois ingleses que se haviam sentado a uma mesa perto da porta do restaurante.

Tocou no braço do homem do paletó surrado e disse:

- Sentaram-se.

- Estou vendo.

- Que é que vão fazer? - perguntou Holcroft.

- Já está sendo feito - disse a mulher de cabelos pretos. - Faça exatamente o que nós mandarmos.

- Agora! - gritou o homem elegante.

- Levante-se! - ordenou a mulher. - Venha comigo para a rua e dobre à direita. Depressa!

Atarantado, Holcroft levantou-se e saiu do café, com a mulher a agarrar-lhe o braço. Pararam à beira da calçada.

- Para a direita! - repetiu ela.

Noel voltou-se para a direita.

- Ande mais depressa!

Ouviu às suas costas um barulho de vidros que se quebravam e depois gritos encolerizados. Os dois ingleses tinham se levantado da mesa, colidindo com um garçom. Os três estavam cobertos de vinho.

- Vire de novo para a direita! - ordenou a mulher. - Entre por aquela porta!

Obedeceu e abriu caminho por entre uma porção de gente à entrada de outro café. Depois que entraram, a mulher fê-lo parar. Noel voltou-se instintivamente para ver o que estava acontecendo na praça.

Os ingleses estavam tentando livrar-se do garçom exasperado. O homem do sobretudo estava jogando dinheiro em cima da mesa. O seu companheiro tinha feito maior progresso. Avançara até a banqueta e estava olhando freneticamente para a esquerda, na direção que Holcroft e a mulher tinham tomado.

Noel ouviu gritos e arregalou os olhos de espanto ao ver de onde partiam. A uns cinco metros do lugar onde estavam os agentes ingleses, uma mulher de cabelos pretos vestida com uma capa escura, com grossos óculos de aros de tartaruga e uma echarpe branca em volta do pescoço, gritava com alguém em tão altos brados que chamava a atenção de todos os que a cercavam.

Até dos ingleses.

Parou de gritar de repente e começou a correr pela rua cheia em direção à parte sul de Montmartre. Os ingleses correram no encalço dela. Tiveram o seu caminho impedido inesperadamente por vários rapazes de jeans e blusões, que pareciam deliberadamente bloquear os ingleses. Houve gritos furiosos e pouco depois ouviram-se os apitos estridentes dos gendarmes.

Montmartre se transformou num pandemônio.

- Venha!

A mulher de cabelos pretos, a que estava ao seu lado, tornou a agarrar Noel pelo braço e levá-lo para a rua.

- Vire à esquerda! - disse ela, empurrando-o pelo meio da multidão. - Volte para o lugar onde estávamos.

Aproximaram-se da mesa atrás da banqueta. Só o homem do sobretudo ainda estava lá. Levantou-se quando eles chegaram.

- Pode ser que haja outros - disse ele. - Não sabemos. Depressa!

Holcroft e a mulher continuaram a correr. Chegaram a uma rua transversal bem estreita. Havia pequenas lojas de um lado e do outro e eram as luzes delas que iluminavam a rua.

- Por aqui! - disse a mulher, que segurava a mão de Noel, correndo ao lado dele. - O carro está na primeira esquina à direita.

Era um Citroën, que parecia possante, mas sem nada de excepcional. A carroçaria estava coberta de poeira e as rodas, sujas de lama. Até os vidros estavam cobertos de uma camada espessa de poeira.

- Dirija! - ordenou a mulher, entregando-lhe uma chave. - Vou ficar no banco de trás.

Holcroft entrou no carro e procurou orientar-se. Ligou o motor. As vibrações fizeram o chassi tremer. Era evidente que tinham adaptado ao Citroën o motor de um carro maior.

- Desça diretamente a ladeira - disse a mulher atrás dele. - Eu lhe direi onde terá de virar.

Seguiram-se quarenta e cinco minutos confundidos numa série de descidas e curvas fechadas. A mulher dava instruções de trás, forçando Noel muitas vezes a rodar bruscamente a direção a fim de obedecer. Entraram por uma estrada ao norte de Paris, por um caminho tortuoso, que fez o carro inclinar-se para o lado, passando por um montinho de relva que era a ilha do centro. Holcroft segurou o volante com toda a sua força, aprumando o carro e depois passando por entre dois automóveis à frente.

- Mais depressa! - disse a mulher de cabelos pretos no banco traseiro do carro. - Não pode ir mais depressa?

- Pelo amor de Deus! Estamos a mais de cem quilômetros!

- Controle a estrada pelos espelhos. Eu vigiarei os lados. E vá mais depressa!

Viajaram em silêncio durante dez minutos. O barulho do vento e dos pneus na estrada era de enlouquecer. Tudo o que estavam fazendo era de enlouquecer, pensou Holcroft, olhando sem parar do para-brisa para o espelho retrovisor e para o espelho lateral, totalmente coberto de poeira. Que estavam fazendo? Já se achavam longe de Paris. De quem é que estavam fugindo ainda? Não havia tempo de pensar. A mulher gritava de novo:

- Vire na primeira estrada!

Mal teve tempo de frear e virar o carro para a estrada. Parou diante de um sinal fechado.

- Continue! Para a esquerda!

Aquela fração de segundo de imobilidade foi a única pausa naquela corrida alucinada. Tudo recomeçou: a marcha acelerada pelas estradas escuras do campo, as curvas súbitas, as ordens gritadas aos seus ouvidos.

O luar que banhara o esplendor do Sacré-Cœur revelava terras agrícolas entrecortadas de pedras. Celeiros e silos mostravam-se em silhuetas irregulares e casas cobertas de colmo apareciam e desapareciam.

- Lá está a estrada! - gritou a mulher.

Era uma estrada de terra que partia da superfície macadamizada por onde vinham viajando. As árvores a teriam ocultado a quem não soubesse o caminho. Noel entrou por ela e reduziu a marcha. Mas a voz no banco traseiro não permitiu que ele dirigisse com cuidado.

- Depressa! Temos de subir aquela ladeira para que não vejam a luz dos faróis!

A ladeira era íngreme e a estrada, muito estreita para mais de um carro. Holcroft pisou no acelerador. O Citroën deu um arranco para a frente. Chegaram ao alto da ladeira. Noel segurava o volante como se este fosse incontrolável. A descida foi rápida. A estrada curvou-se para a esquerda e ficou plana.

- Falta apenas um quilômetro agora - disse a mulher.

Holcroft estava exausto. Tinha as palmas das mãos ensopadas de suor. Ele e a mulher estavam no lugar mais deserto e escuro que era possível imaginar, numa floresta densa e numa estrada que não devia constar de qualquer mapa.

Viu então uma casinha coberta de colmo num terreno plano, na orla da floresta. Uma luz fraca brilhava lá dentro.

- Pare aqui.

A ordem não foi dada, porém, na voz áspera que havia quase uma hora ressoava aos ouvidos de Noel.

Parou o carro bem à frente do caminho que levava à casa. Respirou fundo e enxugou o suor do rosto, desejando que a sua dor de cabeça passasse.

- Agora, faça o favor de voltar-se, Mr. Holcroft - disse calmamente a mulher.

Obedeceu. Olhou através das sombras para a mulher no banco traseiro. Não se viam mais os cabelos pretos, nem os óculos grossos. A echarpe branca ainda estava passada pelo pescoço, mas era parcialmente coberta pelos cabelos louros que rolavam até os ombros. O rosto era belo e ele teve a impressão de que já o conhecia. Não precisamente aquele rosto, mas outro em que as feições delicadas pareciam também modeladas em barro antes que o cinzel do escultor cortasse a pedra. Mas o rosto não era frio e os olhos não se mostravam distantes. Havia naquele rosto vulnerabilidade e interesse. Ela falou então calmamente, olhando-o dentro da sombra.

- Sou Helden von Tiebolt e estou com uma pistola na mão. Pode dizer o que quer de mim.


15

Noel viu o cano da automática. Estava apontada para a sua cabeça apenas a alguns centímetros de distância e um dedo estava curvado em torno do gatilho.

- A primeira coisa que eu quero é que guarde essa pistola.

- Não posso.

- Deus me livre de que algum mal lhe aconteça. Nada tem a temer de mim.

- As suas palavras são tranquilizadoras, mas não é a primeira vez que ouço palavras assim. E nem sempre são sinceras.

- As minhas são.

Olhou-a com firmeza e sentiu a tensão no rosto de Helden atenuar-se.

- Onde estamos? - perguntou ele. - E havia necessidade dessa confusão toda? Os distúrbios em Montmartre e essa correria louca pelas estradas? De quem é que está fugindo?

- Posso fazer-lhe a mesma pergunta. Está fugindo também, pois tomou o avião até Le Mans.

- Queria livrar-me de dois homens. Mas não estou com medo deles.

- Quero também livrar-me de algumas pessoas e tenho medo delas.

- De quem?

O fantasma do Tinamou insinuou-se por um momento nos pensamentos de Noel.

- Pode ou não saber disso. Depende do que tenha para me dizer.

- Está certo. Neste momento exato, você é a pessoa mais importante em minha vida. As coisas podem mudar quando me encontrar com seu irmão, mas agora a mais importante é você.

- Não posso imaginar por quê. Não nos conhecemos. Disse que queria falar comigo sobre assuntos que datavam do tempo da guerra.

- Os assuntos se relacionam com seu pai, especificamente.

- Não conheci meu pai.

- Também não conheci meu pai. Mas o caso se relaciona com ambos, com seu pai e com o meu.

Contou então a ela o que tinha contado a Gretchen, mas também silenciou sobre os homens da Wolfsschanze, pois ela já estava suficientemente amedrontada. E as suas palavras ressoaram dentro da noite como haviam ressoado um dia antes em Portsea, mas com a diferença de que a mulher que o ouvia naquele momento só em aparência era igual à irmã. Gretchen Beaumont escutara a tudo em silêncio; Helden, não. De vez em quando o interrompia calmamente para esclarecer dúvidas perfeitamente lógicas.

- Esse Manfredi lhe apresentou provas de sua identidade?

- Não era preciso. Ele estava de posse dos papéis do banco. Eram autênticos.

- Como se chamam os diretores?

- Que diretores?

- Os diretores de La Grande Banque de Genève. Os homens encarregados da guarda do extraordinário documento.

- Não sei.

- Deviam ter-lhe dito.

- Poderei perguntar.

- Quem se encarregará dos aspectos jurídicos da agência em Zurique?

- O advogado do banco, eu acho.

- Mas não tem certeza?

- Acha que isso tem importância?

- Claro que tem importância. Afinal, vai dedicar ao caso seis meses de sua vida.

- E da sua também.

- Isso é o que resta ver. Eu não sou a filha mais velha de Wilhelm von Tiebolt.

- Quando lhe telefonei de Le Mans, disse que já tinha estado com sua irmã.

- E então?

- Creio que sabe. Ela não tem capacidade para tratar do caso. Os diretores de Genebra não vão aceitá-la.

- Há ainda meu irmão Johann. É o segundo da família.

- Sei disso. E quero conversar sobre ele.

- Agora não. Depois.

- Por que depois?

- Disse-lhe pelo telefone que tinha havido um excesso de casos urgentes em minha vida. Houve também um excesso de mentiras. Sou perita nesse particular. Conheço um mentiroso de longe. Você não está mentindo.

- Muito obrigado por essa opinião.

Noel estava tranquilizado. Tinham já uma base para conversar. Era o primeiro passo concreto que dava. De certo modo e apesar de tudo, estava contente.

Ela deixou a pistola cair no colo.

- Agora, vamos entrar. Há lá dentro um homem que quer falar com você.

O contentamento de Noel foi destruído. Não podia falar sobre Genebra com quem não fosse da família Von Tiebolt.

- Não é possível - disse ele, sacudindo a cabeça. - Não vou falar com ninguém. O que lhe disse deve ficar entre nós. Nenhuma outra pessoa deve saber de nada.

- Dê uma oportunidade ao homem. Ele tem de saber que você não pretende fazer-me mal algum. Nem a mim, nem a outros. Terá de convencê-lo de que não faz parte de outra coisa.

- Que coisa?

- Ele lhe explicará.

- Ele vai fazer perguntas.

- Diga somente o que acha que pode dizer.

- Não! Deve compreender que eu não posso dizer coisa alguma a respeito de Genebra, e você também não pode. Procurei explicar...

Calou-se ao ver Helden levantar a automática.

- A pistola ainda está em minha mão. Saia do carro!

Foi adiante dela no breve caminho que ia até a porta da cabana. Estava às escuras, embora se visse uma luz fraca pelas janelas. As árvores coavam de tal maneira o luar que os poucos raios que chegavam até ali pareciam diluir-se antes de tocar no chão.

Noel sentiu a mão da moça em sua cintura e o cano da arma foi encostado ao seu corpo.

- Tome a chave. Abra a porta. O homem tem dificuldade em se mover.

A sala era como qualquer outra que se pudesse imaginar numa cabana perdida no interior da França, com uma diferença. Duas paredes estavam cobertas de cima a baixo por prateleiras de livros. O resto era simples a ponto de parecer primitivo. Havia móveis rústicos e sólidos, uma mesa antiga e pesada, várias lâmpadas apagadas com abajures simples e grossas paredes caiadas. Os livros pareciam deslocados naquele lugar.

Num canto da sala, um homem emaciado estava sentado numa cadeira de rodas. Tinha um abajur numa mesinha à sua esquerda e um livro no colo. Os cabelos brancos estavam cuidadosamente penteados. Holcroft calculou que devia ter no mínimo setenta anos. Apesar da magreza, o rosto era enérgico e os olhos pareciam vivos por trás dos óculos de aros de metal. Vestia um suéter abotoado até o pescoço e calças de veludo cotelê.

- Boa noite, Herr Oberst - disse Helden. - Espero que não o tenha feito esperar demais.

- Boa noite, Helden - disse o velho, deixando o livro em cima da mesinha. - Você está aqui e em segurança. O resto não importa.

Noel olhou o homem que se apoiou nos braços da cadeira e se levantou com dificuldade. Era extremamente alto e continuou a falar com um sotaque evidentemente alemão e aristocrático.

- É então o homem que telefonou para Miss Tennyson. Chamam-me Oberst, que significa "coronel". Não é minha patente, mas poderá chamar-me assim.

- Este aqui é Noel Holcroft. É americano e é o homem de quem lhe falei - disse Helden, dando um passo para a esquerda e ainda empunhando a arma. - Está aqui contra a vontade. Não queria falar com o senhor.

- Muito prazer, Mr. Holcroft. Posso saber por que não desejava falar com um velho?

- Não sei quem é o senhor - disse Noel com a maior calma possível. - Além disso, os assuntos sobre que conversei com Miss... Tennyson... são absolutamente confidenciais.

- Ela concorda com isso?

- Por que não lhe pergunta?

Holcroft prendeu a respiração. Dentro de segundos, ia saber se tinha sido convincente.

- Os assuntos devem ser confidenciais se são verdadeiros e eu creio que são verdadeiros - disse Helden.

- Compreendo. E você deve ficar convencida. Serei o advogado do diabo sem qualquer ponto de partida - disse o velho, tornando a sentar-se na cadeira.

- Que quer dizer com isso? - perguntou Holcroft.

- Você não quer discutir esses assuntos confidenciais. Entretanto, tenho de fazer-lhe perguntas capazes de atenuar-nos as ansiedades. Mr. Holcroft, não tem razão alguma para recear qualquer coisa de nós. Mas nós, ao contrário, temos muito que recear do senhor.

- Por quê? Não o conheço e o senhor não me conhece. Aquilo em que estiver envolvido nada tem a ver comigo.

- Nós todos devemos estar convencidos disso - murmurou o velho. - Pelo telefone, falou a Helden de urgência, de uma grande importância em dinheiro e de fatos que datam do tempo da guerra.

- Sinto muito que ela lhe tivesse dito até isso.

- Disse muito pouco mais - continuou o Coronel. - Apenas que tinha ido procurar a irmã dela e gostaria de falar com o irmão.

- Torno a dizer que tudo isso é confidencial.

- Disse mais - prosseguiu o velho como se ele não tivesse dito coisa alguma. - Manifestou o desejo de encontrar-se secretamente com ela ou, pelo menos, deu a entender isso.

- Por motivos próprios que não lhe interessam.

- Acha mesmo que não?

- Acho.

- Façamos então um breve resumo dos fatos - disse o Coronel, juntando os dedos das mãos, sem tirar os olhos de Holcroft. - Há urgência, há uma grande importância em dinheiro, assuntos que datam de trinta anos atrás, interesse por uma descendente de uma figura importante do Alto Comando do Terceiro Reich e, o que é talvez mais importante, um encontro clandestino. Tudo isso não sugere alguma coisa?

Noel se negou a entrar em especulações.

- Não posso absolutamente saber o que isso lhe sugere.

- Vou ser então mais específico. Sugere uma armadilha.

- Armadilha?

- Quem é na verdade, Mr. Holcroft? Faz parte do ODESSA? Ou do Rache?

- ODESSA... ou... o quê? - perguntou Noel.

- O Rache! - repetiu o velho alemão com ênfase.

- Não. Não sei nem de que é que está falando.

O Coronel olhou para Helden e voltou-se para Holcroft.

- Nunca ouviu falar de nada disso?

- Do ODESSA já ouvi falar, mas não sei ao certo o que é... Da outra coisa, nunca.

- Os homens do ODESSA e do Rache são recrutadores e assassinos. Ambos os grupos recrutam e assassinam. Perseguem os filhos...

- Perseguem os filhos? - exclamou Noel. - Desculpe, mas terá de ser mais claro, pois não entendo uma só palavra do que está dizendo.

O velho olhou de novo para Helden. Noel não pôde decifrar o olhar que trocaram, mas o Coronel encarou-o, como se quisesse descobrir nele qualquer sinal de mentira ou dissimulação.

- Vou lhe falar então com muita clareza. É por acaso um desses homens que andam procurando os filhos dos nazistas e os perseguem, matando-os por vingança, matando os inocentes por crimes que não cometeram e de que não tiveram nem conhecimento? Quando não os matam, procuram recrutá-los para as suas organizações, ameaçando-os com a publicação de documentos que provem que os pais deles foram uns monstros. Prometem denunciá-los como filhos de psicopatas e assassinos quando eles não aderem e assim os destroem para servir à insânia de sua causa. São eles que perseguem os filhos dos nazistas. É um deles, Mr. Holcroft?

- Não sei dizer como está errado, Coronel. Não lhe direi mais que isso, mas está tão errado que chega a ser incrível.

- Temos de ter certeza.

- Podem ter certeza. Não ia me envolver em coisas assim. Não sabia nem da existência dessas coisas. Esses homens são uns doentes.

- São doentes, sim - disse o Coronel. - Não se engane. Os verdadeiros monstros ainda estão impunes, rindo de Nuremberg, e nós nada podemos fazer. Mas essa perseguição aos filhos tem de acabar.

Noel voltou-se para Helden.

- Era disso que estava fugindo? Depois de tantos anos ainda a perseguem?

- Há atos de violência todos os dias em toda parte - disse o velho.

- Por que é então que não se sabe disso? Por que os jornais não divulgam esses atos de violência? Por que fica tudo em sigilo?

- E acha que há realmente interesse em proteger os filhos dos nazistas? - perguntou o Coronel.

- Pelo amor de Deus! Eram garotos naquele tempo! - disse Noel, e se voltou para Helden. - O que houve esta noite faz parte disso? Têm de proteger-se mutuamente? A coisa está tão generalizada assim?

- Somos chamados de "Filhos do Inferno" - disse a filha de Von Tiebolt. - Somos condenados pelo que somos e pelo que não somos.

- Não compreendo - disse Noel.

- Não é essencial que compreenda - disse o velho Coronel. - O importante é ficarmos convencidos de que não faz parte de nenhum desses grupos. Está satisfeita, Helden?

- Estou.

- Não há mais nada que deseje saber?

- Não.

- Então, eu também estou satisfeito.

O Coronel estendeu a mão para Noel.

- Muito obrigado por ter vindo. Como Helden lhe explicará, a minha existência não é muito conhecida e eu não quero que seja. Nós lhe agradeceríamos o seu silêncio.

Noel apertou a mão do velho e se surpreendeu com a força daquela mão.

- Posso contar também com o seu silêncio?

- Tem a minha palavra.

- Dou-lhe também a minha.

Seguiram no carro em silêncio, rompendo a escuridão com os faróis. Helden ia dessa vez no banco da frente, ao lado dele, indicando-lhe de vez em quando o caminho. Não havia mais gritos, nem ordens ásperas que lhe ressoassem aos ouvidos. Helden parecia exausta pelos acontecimentos daquela noite e ele também. Mas a noite ainda não acabara e era preciso falar.

- Havia necessidade de tudo isso? Era tão importante assim que o Coronel me visse?

- Muito importante. Ele tinha de convencer-se de que você não fazia parte de nenhum dos grupos.

- Que grupos são esses exatamente? O Coronel falou como se eu estivesse na obrigação de conhecê-los, mas eu não compreendi bem o que ele disse.

- São duas organizações extremistas que se odeiam entre si e nos perseguem fanaticamente.

- Perseguem a quem?

- A nós, que somos filhos dos líderes do Partido Nazista. Perseguem-nos em toda parte onde nos encontram.

- Por quê?

- O grupo ODESSA procura fazer reviver o Partido Nazista. Tem processos de recrutamento que vão da chantagem à violência física. São pura e simplesmente gângsteres.

- E o Rache?

- Rache. A palavra em alemão significa "vingança". Começou como uma sociedade formada pelos sobreviventes dos campos de concentração. Caçavam os milhares de assassinos e sádicos que nunca foram julgados.

- É então uma organização de judeus?

- Há judeus no Rache, mas agora estão em minoria. Os israelenses formaram seus próprios grupos e agem agora de suas sedes em Tel-Aviv e Haifa. O Rache é agora basicamente comunista. Há quem diga até que é dirigido pelo KGB soviético. Outros dizem que revolucionários e terroristas do Terceiro Mundo gravitaram para o movimento. A "vingança" dos primeiros tempos se transformou. O Rache é agora um abrigo para os terroristas.

- Mas por que a perseguem?

- Perseguem-nos para recrutar-nos. Como todos os grupos humanos, temos a nossa porção de revolucionários. Esses elementos são atraídos pelo Rache, que representa o contrário daquilo de que estão fugindo. Para muitos de nós, entretanto, o Rache não é diferente do Partido Nazista no que tinha de pior. E emprega táticas mais cruéis contra aqueles que se negam a ser recrutados. Somos os bodes expiatórios, os fascistas que eles estão eliminando. Usam os nossos nomes, e às vezes nossos cadáveres, para mostrar que o nazismo ainda está vivo. Do mesmo modo que no caso do ODESSA, a regra é muitas vezes "ser recrutado ou morrer".

- Mas isso é uma loucura!

- Uma loucura bem real. Não dizemos nada, não queremos chamar a atenção para nós. Por outro lado, quem se interessaria? Somos filhos de nazistas.

- ODESSA, Rache... Ninguém que eu conheça sabe nada desses grupos...

- Ninguém a quem conheça tem qualquer razão para saber deles.

- Quem é o Coronel?

- Um grande homem que tem de terminar os seus dias escondido porque tem consciência.

- Como assim?

- Ele fazia parte do Alto Comando e viu os horrores que eram cometidos. Sabia que era inútil opor-se. Outros haviam protestado e foram mortos. Preferiu ficar anulando certas ordens sempre que podia e assim salvando só Deus sabe quantas vidas.

- Nada há de desonroso nisso.

- Ele agiu da única maneira que lhe era possível. Trabalhava calmamente, dentro da burocracia do Alto Comando, sem chamar a atenção. Quando a guerra terminou, os Aliados o condenaram, em vista da posição que ele ocupava no Reich, a dezoito anos de prisão. Quando por fim foi posto em liberdade e se soube o que ele fizera, milhares de alemães o desprezaram. Chamaram-lhe traidor, e os remanescentes do Corpo de Oficiais puseram-lhe a cabeça a prêmio.

Lembrando-se das palavras de Helden, Noel disse:

- Condenado pelo que foi e pelo que não foi.

- Exatamente - disse Helden, chamando-lhe a atenção para uma curva da estrada.

- Ao seu jeito, o Coronel se parece com os três homens que assinaram o documento de Genebra. Já pensou nisso?

- É claro que pensei.

- Deve ter tido vontade de contar tudo a ele.

- Não podia contar. Não me pediu segredo?

Noel olhou para ela. Helden estava olhando diretamente para a frente através do para-brisa. Tinha o rosto cansado e abatido e a sua palidez lhe acentuava as olheiras. Parecia sozinha e ele sabia que não devia invadir levianamente esse isolamento. Mas a noite ainda não terminara. Havia assuntos a serem discutidos entre eles e decisões a serem tomadas.

Noel estava começando a pensar que aquela filha mais moça de Wilhelm von Tiebolt devia ser a escolhida para representar a família em Genebra.

- Podemos ir a algum lugar sossegado? Creio que um drinque seria bom para nós dois.

- Há uma pequena hospedaria a alguns quilômetros daqui. Fica afastada da estrada e não seremos vistos.

Quando saíram da estrada, Noel olhou com muita atenção o espelho ao ver nele os faróis de um carro. O desvio para a hospedaria era pouco conhecido e não era marcado por qualquer sinal de trânsito. O fato de que algum motorista tivesse alguma razão para entrar por aquele desvio justamente àquela hora era uma coincidência por demais alarmante. Holcroft ia dizer alguma coisa quando ocorreu um fato ainda mais estranho.

Os faróis do carro que vinha atrás se apagaram e ele não os viu mais no espelho.

A hospedaria tinha sido uma casa de fazenda e era cercada de um estacionamento de saibro fechado por uma cerca e um peitoril de madeira. A pequena sala era separada do bar por um arco. Havia mais dois casais na hospedaria. Eram evidentemente parisienses que comiam tranquilamente com pessoas com quem não podiam ser vistos em Paris. Quando Helden e Noel entraram, os olhos dos presentes se voltaram para eles, mas não houve sinais de reconhecimento. Uma lareira cheia de troncos acesos aparecia no fundo da sala. Era um bom lugar para conversar.

Foram levados para uma mesa à esquerda da lareira. Pediram conhaque.

- Isto aqui é muito agradável - disse Noel sentindo o calor do fogo e do conhaque. - Como foi que descobriu este lugar?

- Fica no caminho para a cabana do Coronel. Meus amigos e eu paramos quase sempre aqui para conversar.

- Posso fazer-lhe algumas perguntas?

- À vontade.

- Quando foi que deixou a Inglaterra?

- Há mais ou menos três meses. Quando me ofereceram o lugar onde agora trabalho.

- Na lista telefônica de Londres, o seu nome figurava como Helen Tennyson?

- Era. O nome Helden sempre exigia alguma explicação e eu me cansei disso. Em Paris é diferente. Os franceses não são muito curiosos a respeito de nomes.

- Mas você não usa o sobrenome Von Tiebolt.

Holcroft percebeu um toque, de ressentimento no rosto dela.

- Não.

- Por que Tennyson?

- É claro. Von Tiebolt era um nome alemão demais. Quando viemos do Brasil para a Inglaterra, a mudança nos pareceu lógica.

- Só uma mudança? Nada mais que isso?

- Nada mais que isso - disse Helden, tomando um gole de conhaque e olhando para o fogo.

Noel olhou-a e percebeu que ela estava mentindo. Helden não sabia mentir. Estava escondendo alguma coisa, mas não queria provocá-la e deixou passar.

- Que é que sabe a respeito de seu pai, Helden?

- Muito pouco. Minha mãe o amava, e pelo que ela dizia ele era um homem melhor do que sua posição no Terceiro Reich parecia indicar. Mas você acaba de confirmar isso. No fundo, era um homem de boa formação moral.

- Fale-me de sua mãe.

- Ela foi uma sobrevivente. Conseguiu fugir da Alemanha, levando apenas algumas joias, dois filhos e a mim, que já estava em gestação. Não dispunha de nenhum preparo ou formação profissional, mas tinha muita vontade de trabalhar e era muito convincente. Trabalhou em lojas que vendiam artigos para senhoras e nisso a experiência e o bom gosto de minha mãe lhe serviram de muito. Nossa casa no Rio de Janeiro era bem confortável.

- Sua irmã me disse que o Brasil foi um abrigo que se transformou num inferno.

- Minha irmã sempre foi exagerada. Não foi tanto assim. Se não fomos tratados com muita consideração, houve sem dúvida motivo para isso.

- Que motivo foi esse?

- Minha mãe era muito bela.

- As filhas também o são - disse Noel.

- Talvez sejam. Isso nunca me preocupou. Nunca me serviu de nada a beleza que eu talvez tenha. Mas à minha mãe serviu.

- No Rio?

- Sim. Ela teve ligações com vários homens. Fomos uma família sustentada por homens, dois ou três deles desquitados, cujos lares foram desfeitos. Mas minha mãe não viveu com nenhum deles. Arrancou deles muito dinheiro e interesses em negócios. Quando ela morreu, estávamos muito bem de vida. Mas a colônia alemã a execrava e, por extensão, aos filhos dela.

- A história é fascinante - murmurou Noel, sorrindo. - De que foi que ela morreu?

- Foi assassinada. Levou um tiro na cabeça quando estava dirigindo o seu automóvel à noite.

O sorriso desapareceu dos lábios de Noel. Lembrou-se imediatamente de um mirante deserto nos arredores do Rio, dos tiros, das explosões do asfalto e dos vidros quebrados. Uma vidraça despedaçada por um tiro de pistola com silenciador que fora apontada para a sua cabeça...

Lembrou-se então de palavras que ouvira num bar e que, na ocasião, considerara absurdas, produtos apenas do medo.

Os irmãos Carrara. A irmã se dissera noiva de Johann von Tiebolt.

Tinham afirmado que os alemães não permitiriam o casamento e que tudo poderia terminar com uma bala na cabeça de Johann...

Os Carrara tinham sido amigos dedicados dos desprezados Von Tiebolt. Noel pensou que Helden, depois de saber como os Carrara o haviam ajudado, poderia mostrar-se mais cooperativa. Os Carrara tinham arriscado a vida para mandá-lo pra os Von Tiebolt. Ela teria de corresponder a essa confiança com a sua.

- Creio que lhe devo dizer, Helden. Quando estive no Rio, fui procurado pelos Carrara. Foram eles que me disseram onde eu poderia começar a procurar a família e que o novo nome dos Von Tiebolt era Tennyson.

- Quem?

- Os Carrara. A noiva de seu irmão.

- Os Carrara? No Rio de Janeiro?

- Sim.

- Não os conheço. Nunca ouvi falar nos Carrara.


16

A frase de Helden explodiu no espírito de Noel com o impacto de um contragolpe. De repente, Helden se tornara cautelosa e com receio de dizer mais alguma coisa sobre sua família.

Quem eram os Carrara?

Por que tinham dito coisas que não eram verdade?

Quem os mandara procurarem-no? O irmão de Helden não tinha noiva nem um amigo íntimo de quem ela se pudesse lembrar.

Não estava certo de compreender, mas ninguém o impedia de esmiuçar o assunto e chegar o mais perto possível da verdade. Ninguém mais o havia procurado. Só os Carrara, por motivos só deles conhecidos, tinham criado um relacionamento que não existia. Não fazia sentido, porém, considerá-los inimigos dos Von Tiebolt. Tinham-se aproximado dele com o intuito ostensivo de ajudar os três irmãos que tinham sido forçados a sair do Brasil. Havia gente no Rio - em primeiro lugar, um homem poderoso chamado Graff - que pagaria um bom dinheiro para saber onde estavam os Von Tiebolt. Os Carrara, que tinham muito a ganhar e bem pouco a perder, não tinham dito nada.

- Queriam ajudar-me - disse ele. - Não estavam mentindo a respeito disso. Disseram que os Von Tiebolt tinham sido perseguidos e queriam ajudá-los.

- É bem possível - disse Helden. - No Rio, ainda há gente que está empenhada na guerra e à caça daqueles a quem chamam de traidores. Nunca se sabe entre os alemães do Rio quem é amigo e quem é inimigo.

- Conheceu Maurice Graff?

- É claro que ouvi falar dele, pois todo mundo o conhecia. Mas nunca cheguei a vê-lo pessoalmente.

- Estive com ele - disse Noel. - Ele chamou os Von Tiebolt de traidores.

- Não tenho dúvidas disso. Éramos párias, mas não no sentido nacionalista.

- Em que sentido então?

A moça desviou o olhar e levou o copo de conhaque aos lábios.

- Outras coisas...

- Sua mãe?

- Sim, minha mãe. Já disse que a colônia alemã a execrava.

Holcroft teve de novo a impressão de que ela não lhe estava dizendo toda a verdade. Não ia insistir naquele momento. Se conquistasse a confiança de Helden, ela lhe contaria tudo depois. Ela teria de contar-lhe tudo o que tivesse algum efeito sobre o caso de Genebra e quase tudo a partir daí estava nessas condições.

- Você disse que sua mãe desfez lares. Sua irmã usou quase as mesmas palavras falando de si mesma. Disse que era evitada pelas famílias dos oficiais em Portsmouth.

- Se está procurando semelhanças, não tentarei dissuadi-lo. Minha irmã é bem mais velha do que eu. Conheceu mais minha mãe, observou tudo o que ela fazia e soube das vantagens que conseguia. E havia outras coisas que nunca lhe saíram da memória. Ela conheceu os horrores de Berlim depois da guerra. Aos treze anos de idade, dormiu com soldados em troca de comida. Com soldados americanos, sabe?

Era tudo o que ele tinha de saber sobre Gretchen Beaumont. O quadro estava completo. Uma prostituta, fossem quais fossem as razões, aos treze anos. Uma prostituta, por outras razões sem dúvida, aos quarenta e cinco. Os diretores do banco em Genebra não a aceitariam, em vista da sua instabilidade e incompetência.

Mas Noel sabia que havia razões mais fortes. Gretchen Beaumont vivia com o homem a quem dizia que odiava. Era o mesmo homem de sobrancelhas estranhas que seguira Noel na viagem ao Brasil.

- Que tal o marido dela?

- Quase não o conheço.

Helden voltou os olhos para o fogo. Estava amedrontada e escondia alguma coisa. As palavras dela eram muito elaboradamente displicentes. Não queria falar sobre Beaumont. Mas não adiantava mais evitar o assunto. A verdade entre eles tinha de ser uma rua de mão e contramão e quanto mais depressa ela se compenetrasse disso melhor para ambos.

- Sabe alguma coisa dele? De onde foi que ele veio? Que é que ele faz na Marinha?

- Nada sei além do fato de que ele comanda um navio.

- Creio que ele é mais do que isso e você sabe que é. Por favor, não minta para mim.

Os olhos dela se encheram de raiva, mas, quase no mesmo instante, a raiva desapareceu.

- Disse uma coisa muito estranha. Por que iria eu mentir?

- Gostaria de saber. Disse que quase não o conhecia, mas ficou terrivelmente amedrontada.

- Qual é sua intenção?

- Se sabe de alguma coisa, diga-me. Se já sabia do documento de Genebra, conte-me o que foi que lhe disseram.

- Não sei de nada. Não soube de nada.

- Vi Beaumont há duas semanas num avião em viagem para o Rio. Foi o mesmo avião que tomei em Nova York. Ele estava me seguindo.

Podia ver o medo nos olhos de Helden.

- Creio que está enganado.

- Não estou, não. Vi a fotografia dele em casa de sua irmã. Era o mesmo homem. Roubei a fotografia e depois ela me foi tirada, após me darem uma surra.

- Meu Deus! Deram-lhe uma surra para tirar-lhe a fotografia?

- Não dei por falta de mais nada, nem minha carteira, nem meu dinheiro, nem meu relógio. Só a fotografia dele. Havia alguma coisa escrita nas costas.

- Que era?

- Não sei. Estava escrito em alemão e eu não sei alemão.

- Não pode lembrar-se de qualquer das palavras?

- Lembro-me, sim. Da última. Era T-O-D. Tod.

- "Ohne dich sterbe ich." Não seria isso?

- Não sei. Que quer dizer isso?

- "Sem ti eu morro." É uma frase em que minha irmã pensaria. Como já lhe disse, ela é exagerada.

Era evidente que Helden estava mentindo de novo.

- Uma frase de amor?

- Sim.

- Foi o que os ingleses disseram e eu também não acreditei neles. Beaumont estava naquele avião. A fotografia me foi roubada porque havia nela alguma espécie de mensagem. Que é que está acontecendo?

- Não sei.

- Não. De alguma coisa sabe.

Noel procurou controlar-se. Falavam em voz baixa, mas poderiam ser ouvidos das outras mesas. Estendeu a mão por cima da mesa e pegou a mão dela.

- Mais uma vez lhe peço que me diga. Você sabe de alguma coisa.

Noel sentiu a mão de Helden tremer dentro da sua.

- O que sei é uma confusão tão grande que nem chega a fazer sentido. É mais o que eu sinto do que o que eu sei. Há alguns anos, Anthony Beaumont era adido naval no Rio de Janeiro. Não o conhecia bem, mas me lembro de tê-lo visto várias vezes em nossa casa. Nessa ocasião, era casado, mas se interessava por minha irmã. Era um divertimento, se se pode dizer assim. Minha mãe estava de acordo. Era um oficial da Marinha de alta patente e podia fazer favores. Entretanto, minha irmã tinha violentas discussões com minha mãe. Não gostava de Beaumont e não queria nada com ele. Mas, alguns anos depois, nós nos mudamos para a Inglaterra e ela se casou com ele. Foi uma coisa que nunca entendi.

- Pode não ser tão difícil de entender quanto você diz - disse Noel. - Ela me disse que se casou com ele pela segurança que ele podia dar-lhe.

- E acreditou nela?

- O procedimento dela pareceu confirmar o que dizia.

- Então não posso acreditar que tenha conhecido minha irmã.

- Ela era sua irmã. São muito parecidas. Ambas são belas.

- É a minha vez então de fazer-lhe uma pergunta. Acha realmente que, bela como ela é, se sujeitaria ao ordenado de um oficial da Marinha e à vida limitada de uma mulher de oficial? Nunca pude acreditar nisso.

- Que é que acha então?

- Creio que ela foi forçada a se casar com Anthony Beaumont.

Noel recostou-se na cadeira. Se Helden estava certa, a relação devia estar no Rio de Janeiro. Com a mãe dela talvez, com o assassinato da mãe dela.

- Como poderia Beaumont forçá-la a casar-se com ele? E por que motivo?

- Já me fiz essas mesmas perguntas centenas de vezes e não sei.

- Chegou a perguntar a ela?

- Ela se nega a falar comigo.

- Que aconteceu a sua mãe no Rio?

- Já lhe disse. Ela extorquia dinheiro dos homens. Os outros alemães a desprezavam, chamando-a de imoral. Pensando bem no caso, tinham razão.

- Foi por isso que a mataram?

- É o que eu penso, mas nunca se pôde ter certeza, pois o assassino não foi descoberto.

- Não podia ser isso uma explicação? Não é possível que Beaumont soubesse de algum fato tão escandaloso a respeito de sua mãe que, com isso, tivesse feito chantagem com sua irmã, obrigando-a a casar-se com ele?

- Que podia haver de tão escandaloso assim? Admitindo que tudo o que se dizia sobre minha mãe fosse verdade, que efeito poderia isso ter sobre Gretchen?

- Depende do que fosse.

- Nada podia ser tão grave assim. Ela estava na Inglaterra, sem nenhuma responsabilidade pelos atos da mãe a milhares de quilômetros de distância. Por que iria preocupar-se com alguma coisa, fosse lá o que fosse?

- Não faço a menor ideia - disse Noel. - Mas, espere, usou a expressão "Filhos do Inferno", que eram condenados pelo que eram e pelo que não eram. Não podia isso aplicar-se a sua irmã?

- Beaumont não se interessa por essas coisas. O caso é inteiramente diferente.

- Será mesmo? Você não tem certeza. Em sua opinião, ele a forçou a casar-se com ele. Se não foi isso, que foi?

Helden desviou o olhar, perdida em pensamentos e não numa mentira.

- Alguma coisa muito mais recente.

- O documento de Genebra? - perguntou Noel, lembrando-se da advertência de Manfredi e pensando no espectro da Wolfsschanze.

- Como Gretchen reagiu quando você lhe falou em Genebra?

- Como se não estivesse interessada.

- E então?

- Poderia ter sido um despistamento. Mostrou-se por demais displicente, exatamente como você quando lhe falei em Beaumont há poucos minutos. Ela poderia estar esperando isso e preparou-se para resistir.

- Está fazendo suposições?

Era aquele o momento, pensou Noel. Ela o mostraria nos olhos e silenciaria sobre o resto da verdade. Tudo se relacionaria por fim com Johann von Tiebolt?

- Não eram propriamente suposições. Sua irmã disse que o irmão a avisara da chegada de um homem que apareceria um dia fazendo estranhas propostas. Foram essas as palavras dela.

O que ele estava esperando - um sinal de reconhecimento ou de medo - não apareceu. Entretanto, havia alguma coisa que ele não podia compreender. Helden tinha o aspecto de quem estava querendo entender as coisas. Havia nela uma inocência fundamental e era isso que ele não podia compreender.

- Essa história de um homem aparecer um dia não faz muito sentido - murmurou Helden.

- Fale-me de seu irmão.

Ela nada disse durante alguns momentos. Voltou os olhos para a toalha vermelha da mesa, com os lábios entreabertos de espanto. Afinal, falou como se estivesse emergindo de um transe.

- Johann? Que há para dizer sobre ele?

- Sua irmã me disse que ele trouxe os três do Brasil. Foi difícil?

- Houve problemas. Não tínhamos passaportes e houve quem quisesse impedir-nos de obtê-los.

- Eram imigrantes. Pelo menos, sua mãe, sua irmã e seu irmão eram. Não podiam deixar de ter papéis.

- Os papéis que havia naquele tempo eram queimados depois de terem cumprido os fins a que se destinavam.

- Quem queria impedi-los de sair do Brasil?

- Os homens que queriam submeter Johann a julgamento.

- Por que motivo?

- Depois que minha mãe foi morta, Johann assumiu a direção dos negócios dela. Ela em vida nunca lhe permitira fazer muita coisa. Muitas pessoas julgavam que ele era impiedoso e até desonesto nos negócios. Foi acusado de fraudes em relação a lucros e a impostos. Não creio que isso fosse verdade. Ele era apenas mais rápido e mais vivo do que os outros.

- Compreendo - disse Noel, lembrando-se do que haviam dito os agentes secretos. - Como foi que ele conseguiu livrar-se das acusações e sair do país?

- Com dinheiro. E com longas reuniões em lugares estranhos com homens a quem nunca identificou. Um dia, chegou a casa e disse a Gretchen e a mim que arrumássemos as malas para uma viagem curta. Fomos para o aeroporto e embarcamos num pequeno avião para o Recife, onde um homem nos esperava. Entregou-nos os passaportes com o nome de Tennyson. Pouco depois, Gretchen e eu estávamos a bordo de um avião em viagem para a Inglaterra.

Não havia em nada disso qualquer sinal de mentira.

- Começaram então vida nova com o nome de Tennyson?

- Completamente nova. Tínhamos deixado tudo no Brasil. Saímos, se não estou enganada, bem em cima da hora.

- Ele é um homem notável. Por que não permaneceram juntos? É evidente que você não odeia seu irmão.

Helden franziu a testa, como se não tivesse certeza dos seus sentimentos.

- Não, não o odeio. Tenho talvez algumas queixas dele, mas não o odeio. Como quase todos os homens muito inteligentes, ele pensa que é capaz de encarregar-se de tudo. Quis dirigir a minha vida e com isso eu não pude concordar.

- Por que ele trabalha como jornalista? Pelo que sei dele, poderia ser dono de um jornal, se quisesse.

- Será, talvez, um dia. Conhecendo Johann como conheço, creio que ele pensou que, trabalhando durante algum tempo para um jornal de prestígio, acabaria tendo uma certa projeção, especialmente no setor político, em que ele é muito bom. E isso ele conseguiu.

- Conseguiu mesmo?

- Sem dúvida alguma. Em apenas dois ou três anos, já é considerado um dos melhores correspondentes da Europa.

"Deve ser agora", pensou Noel. A Seção Cinco do serviço secreto nada significava para ele. Só Genebra é que importava.

- Escute, Helden, ele é considerado mais alguma coisa... Eu lhe disse em Montmartre que lhe diria depois, e só a você, por que os ingleses me haviam interrogado. Pensam que eu estou procurando encontrar-me com seu irmão por motivos que não têm relação alguma com Genebra.

- Que motivos são esses?

Noel encarou-a firmemente.

- Já ouviu falar de um homem a quem chamam o Tinamou?

- Certamente. O assassino? Quem ainda não ouviu falar nele?

Nada havia nos olhos dela, além de um relativo espanto.

- Eu não tinha ouvido falar nele, por exemplo. Li muita coisa sobre assassinos mercenários e sindicatos criminosos, mas nunca tinha ouvido falar no Tinamou.

- É porque é americano. As façanhas do Tinamou são mais comentadas na imprensa da Europa do que na dos Estados Unidos. Mas que relação pode isso ter com meu irmão?

- O serviço secreto inglês pensa que ele pode ser o Tinamou.

Uma expressão de dolorosa surpresa se estampou no rosto de Helden. Os olhos dela perderam de repente toda a vida, como se fossem os de um cego. Os lábios tremeram-lhe e ela tentou falar, mas não pôde articular as palavras. Por fim, murmurou numa voz que mal se podia ouvir:

- Não pode estar falando a sério.

- Asseguro-lhe que não estou brincando. E, o que é mais importante, os ingleses também não estão.

- Mas é um absurdo! Nunca ouvi tamanha monstruosidade! Em que é que os ingleses se baseiam para chegar a essa conclusão?

Noel repetiu os pontos mais importantes acentuados pela Seção Cinco.

- Meu Deus! - exclamou Helden quando ele acabou. - Ele cobre toda a Europa e o Oriente Médio também. Os ingleses poderiam verificar tudo com os homens do jornal. É claro que ele não escolhe os lugares para onde o mandam! Isso é um verdadeiro absurdo!

- Os jornalistas têm toda a liberdade de escolha nos lugares que lhes são atribuídos. É o caso de seu irmão. É quase como se ele soubesse que dentro de pouco tempo teria prestígio e, portanto, flexibilidade de movimentos.

- Não pode estar acreditando nisso!

- Não sei mais em que posso acreditar ou não. Só sei é que seu irmão pode ameaçar a situação em Genebra. O simples fato de estar ele sob suspeita do serviço secreto inglês poderia ser suficiente para amedrontar os banqueiros. Não querem que essa espécie de suspeita paire em torno da conta de Clausen.

- Mas isso é uma coisa injustificada.

- Tem certeza?

- Claro que tenho! Johann pode ser muitas coisas, mas não é um assassino! A coisa continua. É a perseguição de sempre contra os filhos dos líderes nazistas.

Noel se lembrou de que os agentes secretos tinham manifestado, como um dos argumentos contra Johann, a posição do pai dele trinta anos antes... Teria Helden razão? Afinal de contas, era bem possível que as suspeitas do serviço secreto inglês não tivessem outra origem...

- Johann se interessa por política?

- Muito, mas não do modo comum. Não é partidário de ideologia alguma e até censura a todas pelas suas fraquezas e pela sua hipocrisia. É por isso que muitas pessoas do governo não o podem tolerar. Mas ele não é assassino!

Se Helden tivesse razão, Johann von Tiebolt poderia ser um auxílio inestimável para o projeto de Genebra. Era um jornalista poliglota, cujas opiniões eram acatadas, tinha experiência em assuntos financeiros e poderia, portanto, ter todas as qualidades necessárias para distribuir milhões através do mundo.

Se a sombra do Tinamou pudesse ser dissociada de Johann von Tiebolt, não haveria razão para que os diretores da Grande Banque de Genève soubessem das desconfianças do serviço secreto inglês. O segundo filho de Wilhelm von Tiebolt seria eminentemente aceitável aos olhos dos banqueiros. Talvez não fosse um homem muito simpático, mas Genebra não estava patrocinando um concurso de beleza masculina. E ele poderia representar um trunfo precioso para o empreendimento. Mas antes seria preciso afastar a sombra do Tinamou e desarmar as suspeitas do serviço secreto inglês.

Holcroft sorriu. Ele tinha dito a Gretchen que um homem iria aparecer um dia com estranhas propostas... Johann von Tiebolt estava à espera dele.

- Por que está sorrindo? - perguntou Helden.

- Tenho de falar com seu irmão. Pode tomar providências para o encontro?

- Creio que sim. Mas pode demorar alguns dias, pois não sei onde ele está. Que é que vai dizer a ele?

- A verdade. Espero que ele me pague na mesma moeda. Tenho a impressão de que ele já sabe do caso de Genebra.

- Ele me deu um telefone para o qual eu poderia ligar, se precisasse dele. Nunca usei esse telefone.

- Faça o favor de usá-lo agora.

Ela fez um sinal de assentimento. Noel sabia que havia muitas questões ainda sem solução, especialmente a existência de um homem chamado Beaumont e um fato no Rio de Janeiro que Helden não queria discutir. Era um fato relacionado com o oficial da Marinha de sobrancelhas estranhas. Era possível também que Helden nada soubesse sobre a relação.

Talvez John Tennyson soubesse. Com certeza, sabia muito mais do que tinha dito a qualquer das irmãs.

- Seu irmão se dá bem com Beaumont?

- Não o tolera. Não quis nem assistir ao casamento de Gretchen.

Por quê? Quem seria o enigma com o nome de Anthony Beaumont?


17

Do lado de fora da hospedaria, num canto da área de estacionamento, um carro preto estava parado à sombra de um alto carvalho. No banco da frente, dois homens estavam sentados. Um deles usava a farda de oficial da Marinha inglesa. O outro trajava um terno cinza-escuro e o sobretudo preto aberto deixava ver sob o paletó desabotoado um coldre de couro marrom com uma pistola.

O oficial estava sentado ao volante. O rosto mostrava tensão e as sobrancelhas grisalhas se contraíam de quando em quando, como sob o efeito de um tique nervoso.

O homem ao seu lado devia ter quase quarenta anos. Era esbelto, mas nada tinha de magro. Possuía a rigidez que é um produto de disciplina e treinamento. Os ombros largos, o pescoço musculoso e a linha convexa de um tórax que estofava a camisa eram sinais de um corpo mantido em forma de precisão física e de energia. As feições eram refinadas e não destoavam do corpo. O conjunto era marcante, mas frio como se o rosto fosse talhado em granito. Tinha os olhos quase retangulares e azul-claros, e seu olhar era firme e imperioso. Eram os olhos de um animal confiante, de reação pronta e imprevisível. A cabeça bem-modelada era coberta de uma basta massa lustrosa de cabelos louros que refletiam as luzes distantes do estacionamento e tinham a aparência de gelo amarelado. O homem se chamava Johann von Tiebolt e nos últimos cinco anos tinha sido conhecido como John Tennyson.

- Está satisfeito? - perguntou o oficial da Marinha. - Não há ninguém.

- Havia alguém - disse o homem louro. - Levando em conta as precauções tomadas desde Montmartre, não é muito surpreendente que não haja ninguém agora. Helden e os outros são muito eficientes.

- Correm como uns idiotas - disse Beaumont. - O Rache está cheio de marxistas subumanos.

- Quando chegar a hora, o Rache cumprirá os seus fins. Nossos fins. Mas não é com o Rache que eu estou preocupado. Quero saber quem foi que tentou matá-lo. - Tennyson voltou-se na escuridão e bateu com raiva no alto do painel de instrumentos. - Quem tentou matar o filho de Clausen?

- Juro que lhe disse tudo o que sabemos! Não foi um engano da nossa parte.

- Foi um engano porque quase ia acontecendo - replicou Tennyson, já então com a voz calma.

- Foi Manfredi, não podia deixar de ser Manfredi - disse Beaumont. - É a única explicação, Johann...

- Meu nome é John. Não se esqueça disso.

- Desculpe. Como eu estava dizendo, é a única explicação. Não sabemos o que Manfredi disse a Holcroft naquele trem em Genebra. É possível que ele tenha tentado convencer Holcroft a desistir. Como Holcroft recusou, ele ordenou a sua execução. Falharam na estação graças a mim. Creio que se lembra disso.

- Você não permite que eu me esqueça. Pode ser que tenha razão. Manfredi esperava controlar a agência de Zurique, a qual poderia nunca existir. E a remoção de fundos no valor de setecentos e oitenta milhões de dólares seria muito dolorosa.

- Talvez do mesmo modo que a promessa de dois milhões de dólares constitui uma tentação irresistível para Holcroft.

- Esses dois milhões ele só receberá em sua imaginação. Mas a morte dele tem de vir por nossas mãos e de mais ninguém.

- Manfredi agiu sozinho, fique certo disso. Os homens dele não têm mais ninguém de quem receber ordens. Depois do quarto de hotel em Zurique, não houve outras tentativas.

- Aí está uma afirmação com a qual Holcroft não concordaria.

- Lá estão eles! - disse Tennyson.

Podia ver do outro lado do estacionamento Noel e Helden que saíam da hospedaria.

- Os rapazes do Coronel encontram-se aqui frequentemente?

- Encontram-se, sim - disse Beaumont. - Quem me disse foi um agente do ODESSA que os seguiu um dia.

O louro teve um breve riso, acompanhado de palavras ásperas.

- O ODESSA! Caricaturas de homens que choram em porões sobre canecas de cerveja! Como são ridículos!

- Mas são persistentes.

- E podem ser úteis também - disse Tennyson, vendo Noel e Helden entrarem no carro. - Como dantes, serão os mais baixos soldados de infantaria que servirão de carne de canhão para o inimigo. Serão os primeiros a serem vistos e os primeiros sacrificados. Serão uma diversão perfeita para assuntos mais sérios.

Ouviu-se o barulho do motor possante do Citroën. Holcroft manobrou o carro e saiu do estacionamento para a estrada.

Beaumont rodou a chave de ignição.

- Irei a uma boa distância atrás deles. Ele nem perceberá.

- Não se preocupe com isso - disse Tennyson. - Estou satisfeito. Leve-me para o aeroporto. Tomou as providências?

- Tomei. Você seguirá para Atenas num Mirage. Os gregos o levarão de volta a Bahrain. Tudo em transportes militares, na categoria de correio da ONU, com imunidade do Conselho de Segurança. Os seus papéis estão com o piloto do Mirage.

- Muito bem, Tony.

O oficial da Marinha sorriu, satisfeito com o elogio. Pisou no acelerador e o carro saiu do estacionamento para a escuridão da estrada.

- Que vai fazer em Bahrain?

- Justificarei a minha presença com um comunicado sobre as negociações em torno de um campo de petróleo. Um príncipe de Bahrain tem se mostrado muito cooperativo. Não tinha outro jeito. Fez um acordo com o Tinamou e vive em verdadeiro terror de que a notícia transpire.

- Você é extraordinário.

- E você é um homem dedicado. Sempre foi.

- E depois de Bahrain?

O homem louro recostou-se no banco e fechou os olhos.

- Voltarei para Atenas e depois para Berlim.

- Berlim?

- Sim, as coisas estão correndo bem. Holcroft irá agora para lá. Kessler está à espera dele.

Houve alguns súbitos estalos de estática num alto-falante ao lado do painel de instrumentos. Os estalos foram seguidos de quatro silvos breves e estridentes. Tennyson abriu os olhos. Os quatro silvos foram repetidos.

- Há cabinas telefônicas na estrada. Leve-me a uma delas. Depressa!

O inglês pisou no acelerador. O carro correu pela estrada, atingindo mais de cem quilômetros em questão de minutos. Chegaram a um cruzamento.

- Se não estou enganado, há um posto de gasolina por aqui.

- Depressa!

- Tenho certeza - disse Beaumont, e, de fato, pouco depois, o posto de gasolina apareceu às escuras. - Oh! Está fechado.

- Que é que você esperava?

- O telefone está lá dentro.

- Mas há um telefone?

- Há, sim...

- Pare o carro.

Beaumont obedeceu. O homem louro saltou e encaminhou-se para a porta do posto. Puxou a pistola e quebrou com o cabo o vidro da porta.

Um cachorro apareceu latindo e arreganhando os dentes para ele. Era um animal velho, de raça indeterminada, que era deixado no posto mais para assustar do que para qualquer espécie de proteção. Tennyson tirou do bolso um cilindro perfurado que colocou no cano da sua pistola. Levantou a pistola e atirou através do vidro na cabeça do animal. O cachorro caiu para trás e Tennyson acabou de quebrar os vidros da porta para abrir o trinco acima da maçaneta.

Acomodou os olhos à luz e passou por cima do animal morto para chegar ao telefone. Falou com uma telefonista e deu-lhe o número de Paris que podia ligá-lo a um homem que, por sua vez, transferiria o seu telefonema para um aparelho na Inglaterra.

Vinte segundos depois, ouviu a voz ofegante e ressoante:

- Desculpe incomodá-lo, Johann, mas há uma situação de emergência.

- Que é?

- Uma fotografia foi roubada.

- Que fotografia?

- Um retrato de Tony.

- Quem foi que o roubou?

- O americano.

- Isso mostra que ele o reconheceu. Graff tinha razão. O seu querido marido não merece confiança. O entusiasmo dele supera a discrição. Onde Holcroft o teria visto?

- Talvez no avião. Ou pela descrição do porteiro. Mas não importa onde. Mate-o.

- É claro. - Pensou um pouco e acrescentou: - Tem os talões de cheques do banco?

- Tenho.

- Deposite dez mil libras. Faça a transferência via Praga.

- O KGB? Muito bem, Johann.

- Os ingleses vão sofrer outra defecção. Os diplomatas amigos discutirão muito, acusando-se mutuamente de falta de sinceridade.

- Ótimo!

- Estarei em Berlim na semana que vem. Fale comigo lá.

- Já vai para Berlim?

- Sim, Kessler está esperando. Neuaufbau oder Tod.

- Oder der Tod, meu irmão.

Tennyson desligou e olhou para o cachorro morto estendido no chão. Não tinha pena nem daquele montão inerte de pelos, nem do homem que o esperava no carro. Os sentimentos tinham de ser reservados para coisas mais importantes e não para animais ou desajustados, por mais dedicados que fossem.

Beaumont era um idiota, de acordo com um dossiê enviado da Escócia para o Brasil alguns anos antes. Mas tinha a energia de um idiota e uma capacidade de idiota para realizações superficiais. Chegara a tornar-se um destacado oficial da Marinha. Era filho de um Reichsoberführer[14], tinha subido de posto em posto na Marinha Real de Sua Majestade até ser investido de importantes responsabilidades. Era demais para a sua inteligência, que tinha de ser dirigida. Com o tempo, tinham planejado que ele obtivesse poder dentro do Almirantado, um perito consultado pelo Foreign Office. Era uma situação ótima, e grandes vantagens podiam ser conseguidas por intermédio de Beaumont. Ele tinha permanecido um Sonnenkind e tinha permissão para viver.

Mas isso tinha acabado. Com o roubo da fotografia Beaumont estava liquidado, pois nesse roubo havia a ameaça de uma investigação. Não podia haver qualquer investigação, pois ainda havia muito a ser feito, por mais perto que estivessem. Se Holcroft entregasse a fotografia às pessoas erradas na Suíça e lhes falasse da presença de Beaumont em Nova York e no Rio, as autoridades militares ficariam de sobreaviso. Por que estava aquele oficial da Marinha tão interessado no documento de Genebra? Não era possível deixar que a questão fosse levantada. Aquele filho de um Reichsoberführer tinha de ser afastado de cena. De certo modo, era uma pena. O comandante faria falta. Tinha havido momentos em que ele fora inestimável.

Gretchen tinha consciência desse valor. Gretchen era a professora, a mentora, a inteligência de Beaumont. Orgulhava-se imensamente de sua obra e agora estava exigindo a morte de Beaumont. Que se ia fazer? Encontrariam alguém para tomar o seu lugar.

Estavam em toda parte, pensou Johann von Tiebolt, encaminhando-se para a porta. Em toda parte. Die Sonnenkinder, os Filhos do Sol, que nunca podiam ser confundidos com os condenados. Os condenados eram destroços ambulantes, que a nada tinham direito.

Die Sonnenkinder. Em toda parte. Em todos os países, em todos os governos, nos exércitos e nas marinhas, nas indústrias e nos sindicatos, comandando seções dos serviços secretos e da polícia. Todos calmamente à espera. Filhos adultos da Nova Ordem. Milhares. Tinham sido mandados em navios, em aviões e submarinos para todos os pontos do mundo civilizado. Estavam muito acima da média em toda parte e o seu progresso era uma prova a mais de que o conceito da superioridade racial era indiscutível. A raça era pura e a excelência, marcante. E o mais superior entre todos era o Tinamou.

Von Tiebolt abriu a porta e saiu do posto de gasolina. Beaumont tinha levado o carro cinquenta metros mais adiante na estrada e apagara os faróis. O comandante sempre observava as regras e o seu bom treinamento era evidente em tudo o que ele fazia, salvo quando o seu entusiasmo superava a sua discrição. E esse entusiasmo ia agora custar-lhe a vida.

Tennyson dirigiu-se em passos lentos para o carro. Pensou displicentemente em como tudo começara para Anthony Beaumont. O filho do Reichsoberführer fora mandado para uma família na Escócia; Tennyson nunca havia indagado além disso. Sabia da tenacidade de Beaumont, de sua obstinação e da sua determinação, mas não sabia como ele fora retirado da Alemanha. Não era preciso saber. Tinham sido milhares e todos os registros haviam sido destruídos.

Milhares. Escolhidos dentro de um rigoroso critério genético, com pais rigorosamente examinados e famílias investigadas por várias gerações à procura de defeitos psicológicos ou orgânicos. Só os mais puros eram mandados para o exterior, e essas crianças eram em toda parte vigiadas de perto, guiadas, treinadas, doutrinadas, mas sem saber de nada até a idade adulta. E, ainda assim, não sabiam de tudo. Os que não se mostravam à altura de sua origem apresentavam fraquezas ou davam sinais de compromisso, ficavam na ignorância e eram excluídos.

Os restantes eram os verdadeiros herdeiros do Terceiro Reich. Ocupavam cargos de confiança e autoridade em toda parte. Esperavam o sinal que viria da Suíça, preparados para usar imediatamente os milhões.

Milhões canalizados judiciosamente, com critério político. As nações entrariam em linha uma por uma, condicionadas internamente pelos Sonnenkinder, que teriam à sua disposição somas extraordinárias para consolidar a sua influência. Dez milhões aqui, quarenta milhões ali, cem milhões onde fosse necessário.

No mundo livre, os processos eleitorais seriam comprados e os eleitorados teriam cada vez menores possibilidades de escolha. Não havia nada de novo nisso. Já se tinham feito experiências coroadas de êxito. O Chile custara menos de vinte e sete milhões. O Panamá no máximo seis milhões. Nos Estados Unidos, cadeiras de senadores e representantes podiam ser conseguidas por algumas centenas de milhares de dólares. Mas, quando chegasse o sinal da Suíça, os milhões seriam gastos cientificamente, com o emprego da arte demográfica. O mundo seria então governado pelos filhos adultos do Reich, os Sonnenkinder.

O bloco oriental viria em seguida. A União Soviética e seus satélites sucumbiriam aos afagos de sua burguesia emergente. Quando viesse o sinal, seriam feitas promessas e as organizações coletivas do povo em toda parte compreenderiam de súbito que havia um meio melhor. Fundos avultados seriam subitamente proporcionados e a austeridade seria substituída pelo simples deslocamento das lealdades.

Nasceria então o Quarto Reich, não mais limitado pelas fronteiras de dois ou três países, mas espalhado pelo mundo inteiro. Os Filhos do Sol seriam os legítimos senhores do mundo. Die Sonnenkinder.

Poder-se-ia dizer que era absurdo, inconcebível. Mas não era. Estava acontecendo em toda parte.

Deu a volta ao carro e chegou ao lado de Beaumont, que estava ao volante.

- Que foi? Algum problema? - perguntou o comandante.

- Nada que não se possa resolver. Chegue para lá. Vou dirigir. Você me dirá o caminho.

- Para onde?

- Disseram-me que há um lago por aqui, a uns oito ou dez quilômetros de distância. Não pude ouvir bem, pois a ligação estava bem ruim.

- O único lago que existe por estes lados fica a leste de Saint-Gratien, a uns quinze quilômetros daqui.

- Deve ser esse. Há florestas?

- Muito densas.

- Então vamos - disse Tennyson, sentando-se ao volante. - Sei as regras para os faróis. Mostre-me o caminho.

- Parece estranho.

- Não tem nada de estranho. Apenas um tanto complicado. Podem alcançar-nos no meio do caminho. Sei o que devo procurar. Qual é o caminho?

- Dê marcha à ré e vire à esquerda.

- Muito bem - disse Tennyson, ligando o motor.

- Que será? Deve ser um caso muito grave. A única vez em que ouvi um chamado com quatro silvos foi quando houve aquele caso com o nosso homem em Entebbe.

- Não era nosso homem, Tony. Era nosso instrumento.

- É claro. O terrorista do Rache. Mas era nosso elemento de ligação.

- Eu sei. Viro agora para a esquerda?

- Sim. Mas, pelo amor de Deus, diga-me o que está acontecendo!

Tennyson acelerou o carro e disse:

- Bem, o caso é com você. Não temos certeza, mas é uma possibilidade.

- Comigo?

- Sim. Holcroft chegou a notá-lo? Viu você mais de uma vez? Percebeu que você o estava seguindo?

- Nunca, nunca! Posso jurar!

- Em Genebra? Pense bem.

- Claro que não.

- Em Nova York?

- Nunca me aproximei dele sequer! Impossível!

- No avião para o Rio de Janeiro?

- Não... Ele saiu de trás de uma cortina. Estava inteiramente embriagado. Mas nem olhou para mim. Eu o vi, mas ele não me viu.

Era isso, pensou Tennyson. Aquele dedicado filho do Reich acreditava no que queria acreditar. Não adiantava discutir mais o assunto.

- Tudo é então um engano, Tony. Meia hora perdida. Falei com sua mulher e minha cara irmã pelo telefone. Ela disse que você é tão discreto que uma coisa dessas não poderia ter acontecido.

- Ela tem razão. Como sabe, ela sempre tem razão. É uma mulher notável. A despeito do que possa pensar, nosso casamento não foi puramente de conveniência.

- Sei disso, Tony, e é uma coisa que me faz muito feliz.

- Entre à direita. A estrada vai diretamente para o lago.

Fazia frio na floresta e, à beira da água, ainda estava mais frio. Pararam ao fim de uma estrada de terra e tomaram o atalho estreito até a margem do lago. Tennyson levava uma lanterna que apanhara no porta-luvas do carro. Na mão de Beaumont havia uma pequena pá, pois tinham resolvido acender uma fogueira para espantar o frio.

- Vamos demorar muito aqui? - perguntou Beaumont.

- É possível. Há outros assuntos para discutir e eu gostaria que você estivesse presente para dar sua opinião. Estamos na margem leste do lago?

- Estamos, sim. É um bom lugar para um encontro. Ninguém aparece por aqui nesta época do ano.

- Quando é que você vai voltar para o seu navio?

- Já esqueceu? Vou passar o fim de semana com Gretchen.

- Vai voltar então na segunda-feira?

- Talvez na terça. Meu comandante é camarada. Deve pensar que estou resolvendo algum negócio. Nunca se incomoda com um atraso de um dia ou dois.

- Por que iria incomodar-se? É um dos nossos.

- Sem dúvida, mas há uma escala de serviço que tem de ser observada.

- É claro. Cave aqui, Tony. Não vamos fazer a fogueira muito perto da água. Vou para a estrada esperar os sinais.

- Está certo.

- Cave bem fundo. Assim, ninguém verá a fogueira de longe.

- Muito bem.

Fogo. Água. Roupas queimadas, carne carbonizada e espalhada juntamente com os dentes. John Tennyson foi até a estrada e esperou. Alguns minutos depois, tirou a pistola da capa e apanhou uma faca de caça de lâmina comprida que estava no bolso do sobretudo. Seria uma tarefa prolongada e suja, mas necessária. A faca tinha estado na mala do carro juntamente com a pá. Eram instrumentos de emergência, sempre guardados ali.

Descobrira-se um erro. Cabia ao Tinamou corrigi-lo.


18

Holcroft tomava café e olhava para a luminosa manhã de Paris. Já fazia dois dias que se encontrara com Helden e ela ainda não conseguira comunicar-se com o irmão.

- Sei que ele vai me telefonar - dissera ela pelo telefone alguns minutos antes.

- E se eu tiver de sair por um instante?

- Não se preocupe que eu o encontrarei.

Era estranho Helden dizer que ele não se preocupasse, considerando o lugar onde ele estava e como havia ali chegado ou, melhor, como haviam chegado.

Tudo tinha sido um prolongamento das alucinações daquela noite. Tinham deixado a hospedaria, voltando a Montmartre, onde um homem surgira de uma porta e tomara conta do Citroën. Tinham caminhado pelas ruas movimentadas, passando por muitos cafés com mesas nas calçadas, onde sucessivos sinais tinham mostrado que podiam voltar ao carro que Noel alugara.

De Montmartre, Helden o havia orientado através de Paris, passando o Sena, até Saint-Germain-des-Prés, onde pararam num hotel, assinaram o registro de hóspedes e pagaram um quarto por uma noite. Mas não subiram para o quarto. Foram dali para outro hotel na Rue Chevalle, onde o anúncio de um refrigerante forneceu a Noel um nome para o registro: N. Fresca.

Helden havia-o deixado na entrada do hotel, dizendo que lhe telefonaria logo que tivesse notícias do irmão.

- Dê-me alguma explicação - tinha dito ele. - Por que estamos fazendo tudo isso? Que diferença faz o hotel onde eu fique ou o uso do meu verdadeiro nome?

- Você foi visto comigo.

Helden. Estranho nome, estranha mulher. Uma mistura muito curiosa de vulnerabilidade e força. Podia ter sofrido muito no passado, mas não se queixava. Reconhecia a sua origem e compreendia que os filhos dos nazistas eram perseguidos pelo ODESSA e pelo Rache, condenados pelo que eram e pelo que não eram.

Genebra podia e devia ajudá-los. Noel tinha chegado a essa conclusão. Identificava-se sem esforço com eles. Se não fosse a coragem de uma mãe extraordinária, podia ser um deles.

Mas havia outras e mais imediatas preocupações. Eram questões que diziam respeito a Genebra. Onde andaria o esquivo Anthony Beaumont? Qual seria o papel dele em tudo aquilo? Que havia realmente acontecido aos Von Tiebolt no Brasil? Que saberia Johann von Tiebolt sobre o pacto?

Se alguém podia responder a essas questões era Johann, aliás John Tennyson.

Holcroft foi até a janela e viu um bando de pombos que levantavam voo de um telhado próximo, ao sol da manhã.

Havia apenas três semanas que ouvira falar nos Von Tiebolt e já se via indissoluvelmente envolvido com a família.

Helden. Estranho nome, estranha mulher. Cheia de complicações e contradições. Jamais conhecera alguém como Helden. Era como se fosse de outra época e de outros céus, a lutar em torno dos legados de uma guerra que havia passado à história.

Rache, ODESSA, Wolfsschanze, todos bandos de fanáticos. Eram adversários nas consequências de um morticínio que não tinha mais sentido. Tudo tinha acabado havia mais de trinta anos. Era tudo um passado morto, liquidado.

Os pombos voltaram em revoada ao telhado vizinho. De repente, Noel percebeu uma coisa que estava com ele desde o encontro com o coronel alemão e que ele não conscientizara.

Não, a guerra não tinha acabado. Fora revivida pelo documento de Genebra.

Tinham-lhe dito que haveria quem quisesse detê-lo, enganá-lo, matá-lo...

O ODESSA e o Rache eram inimigos de Genebra. Grupos de fanáticos que tudo fariam para destruir o pacto. Outros poderiam contestar a conta recorrendo aos tribunais internacionais, mas não os homens do ODESSA ou do Rache. Helden estava errada, pelo menos parcialmente errada. Fosse qual fosse o interesse que os dois grupos tivessem pelos filhos dos líderes do Partido Nazista, seria interrompido para combater a causa de Genebra, para detê-lo. Tinham sabido de algum modo da conta na Suíça e estavam empenhados em bloqueá-la. Se fosse necessário matá-lo, não hesitariam. Ele podia ser facilmente sacrificado.

Isso explicava a estricnina a bordo do avião - uma morte horrível que visava a ele. As táticas terroristas do Rache. Isso esclarecia o que havia acontecido no Rio de Janeiro - o assalto num mirante deserto e a vidraça do carro despedaçada a bala dentro do trânsito noturno. Maurice Graff e os psicopatas que participavam do ODESSA no Brasil. Sabiam, todos eles sabiam de Genebra!

E, se sabiam de Genebra, também sabiam dos Von Tiebolt. E assim era claro o que havia acontecido no Brasil. A causa de tudo não fora a mãe deles, mas, sim, Johann von Tiebolt. Ele fugira do ODESSA de Graff. Fora o irmão protetor que salvara o que restava da família e saíra do Rio com as duas irmãs.

Fugira para viver e cumprir o pacto de Genebra.

Dissera à irmã que um homem lhe apareceria com propostas estranhas... Essas propostas estranhas eram o dinheiro e o poder de destruir o ODESSA e o Rache, pois certamente era esse um dos objetivos legítimos do pacto.

Noel compreendia tudo claramente. Ele, John Tennyson e um homem chamado Kessler e que se achava em Berlim controlariam Genebra e dirigiriam a agência em Zurique. Fariam debandar o ODESSA, onde quer que estivesse, e esmagariam o Rache. Entre as reparações que tinham de ser feitas estaria a eliminação dos fanáticos, pois estes geravam assassinatos e genocídio.

Queria telefonar para Helden e dizer-lhe que em breve poderiam deixar por completo de fugir e deixar de viver com medo. Queria dizer-lhe isso e tornar a vê-la.

Mas prometera não telefonar para ela nas Edições Gallimard e não a procurar por motivo algum. Era de enlouquecer; Helden era de enlouquecer, mas ele não podia quebrar a sua promessa.

Tinha, porém, de telefonar para o American Express, nos Champs-Élysées. Dissera a Sam Buonoventura que procuraria lá os telegramas dele.

Era uma coisa simples receber telegramas pelo telefone. Não era a primeira vez que fazia isso. Ninguém tinha de saber onde ele estava. Acabou de tomar o café e foi ao telefone, pensando em telefonar para a sua mãe. Ainda era muito cedo para falar com ela em Nova York. Ligaria mais tarde.

- Desculpe, monsieur - disse o homem com quem falou no American Express -, mas terá de vir assinar pessoalmente os recibos dos telegramas. Sinto muito.

Telegramas! Noel desligou aborrecido, mas não zangado. Seria bom sair um pouco do hotel e não esperar com tanta ansiedade o telefonema de Helden.

Desceu pela Rue Chevalle, recebendo um vento frio no rosto. Um táxi o levou para o outro lado do rio e entrou nos Champs-Élysées. O ar e o sol estavam muito agradáveis e ele baixou a vidraça do carro. Pela primeira vez em muitos dias, sentia-se confiante; sabia para onde estava indo. Genebra estava mais perto e as linhas indistintas entre amigos e inimigos estavam mais definidas.

O que o esperava no American Express parecia-lhe sem importância. Nada havia em Nova York ou Londres que ele não pudesse resolver. As suas preocupações no momento estavam em Paris. Encontrar-se-ia com John Tennyson e traçaria planos com ele, antes de mais nada para ir a Berlim e falar com Erich Kessler. Sabia quem eram seus inimigos; tudo era uma questão de esquivar-se deles. Os amigos de Helden poderiam ajudar.

Ao descer do táxi, teve uma ideia diante do edifício de vidraças escuras do American Express. Seria uma armadilha a recusa de ler-lhe o texto dos telegramas pelo telefone? Queriam forçá-lo a apresentar-se? Neste caso, era tudo muito evidente e devia tratar-se de uma tática do serviço secreto inglês.

Noel sorriu. Sabia exatamente o que devia dizer, se os ingleses o encontrassem. John Tennyson era tão assassino quanto ele e com certeza muito menos do que alguns homens da Seção Cinco.

Poderia até dar um passo a mais e sugerir que a Marinha Real investigasse a vida de um dos seus mais destacados oficiais. Tudo indicava a possibilidade de que o Comandante Anthony Beaumont fizesse parte do grupo ODESSA, tendo sido recrutado no Brasil por um homem chamado Graff.

Sentiu que estava se despencando no espaço, sem poder recuperar o fôlego. Sentia uma dor lancinante que lhe subia do estômago para o peito. Estava dominado pela tristeza, pelo medo e pela raiva. O telegrama dizia:

"SEU PAI MORREU HÁ QUATRO DIAS PT SÓ HOJE PUDE COMUNICAR-LHE PT TELEFONE QUANTO ANTES PARA BEDFORD HILLS PT

MAMÃE"

Havia outro telegrama, este do Tenente David Miles, da polícia da Administração do Porto, e dizia o seguinte:

"A MORTE DE RICHARD HOLCROFT TORNA INDISPENSÁVEL QUE SE COMUNIQUE IMEDIATAMENTE COMIGO PT RECOMENDO PROFISSIONALMENTE QUE FALE COMIGO ANTES DE PROCURAR QUALQUER PESSOA PT"

Havia os mesmos dois números de telefone que Buonoventura lhe tinha dado no Rio de Janeiro e mais seis telefonemas de Miles para o American Express a fim de saber se Noel recebera o telegrama dele. Miles tinha telefonado duas vezes por dia.

Noel subiu a pé pelos Champs-Élysées, tentando coordenar os seus pensamentos e dominar o seu pesar.

Richard Holcroft era o pai que ele havia conhecido. Tratara-o sempre com amor, carinho e bom humor, pois Richard Holcroft era um homem de muitas qualidades, e uma das maiores era a sua capacidade de rir de tudo, especialmente de si mesmo. Tinha guiado o enteado, enteado, não, filho, sem interferência, salvo quando a interferência era imprescindível.

E estava morto!

Parte da dor que sentia - a dor estava ligada ao medo e à raiva - decorria do que o telegrama de Miles dava a entender. Alguém era responsável pela morte de Richard Holcroft? Seria possível que a morte dele estivesse relacionada com um vidro de estricnina derramado num copo de uísque a quase três mil metros acima do Atlântico? Haveria algum envolvimento na trama de Genebra?

Teria ele sacrificado o pai que conhecera por aquele a quem nunca havia visto?

Chegou à esquina da Avenue George V. Do outro lado do amplo cruzamento atravancado pelo trânsito, viu nos toldos que se estendiam por todo o comprimento do café na calçada a palavra "Vouquet". Conhecia bem tudo aquilo. Ao lado, ficava o Hôtel George V. Hospedara-se no hotel cerca de um ano antes, graças à gentileza de um hoteleiro extremamente rico, que tinha o sonho de reproduzir a fachada do hotel parisiense em Kansas City e nunca havia passado do sonho.

Holcroft fizera amizade com um funcionário da gerência do hotel. Se ainda estivesse lá, talvez o deixasse falar ao telefone. Se a origem dos telefonemas fosse identificada como o George V, seria fácil saber deles e mais fácil ainda dar informações despistadoras sobre o seu paradeiro.

- Mas naturalmente, Noel. É um prazer. É uma alegria revê-lo. Sinto muito que não esteja conosco, mas, com os preços que estão cobrando, compreendo perfeitamente. Fale de minha sala.

- Vou debitar os telefonemas no meu cartão de crédito.

- Isso não me preocupa, amigo. Depois, aceita um aperitivo?

- Boa ideia.

Eram dez e quarenta e cinco, hora de Paris. Um quarto para as seis em Nova York. Se Miles estava tão ansioso quanto o seu telegrama mostrava, a hora não tinha a menor importância. Pegou o telefone e pediu a ligação à telefonista.

Olhou para o telegrama de Miles.

"A MORTE DE RICHARD HOLCROFT... RECOMENDO PROFISSIONALMENTE QUE FALE COMIGO ANTES DE PROCURAR QUALQUER PESSOA..."

A recomendação tinha um tom estranho. "Qualquer pessoa" parecia referir-se à mãe dele.

Tirou do bolso o telegrama de Althene.

"SEU PAI MORREU HÁ QUATRO DIAS... SÓ HOJE PUDE COMUNICAR-LHE..."

A culpa que sentia de estar longe dela naquele momento difícil era agravada pela cólera e pelo medo que o acometiam quando pensava na possibilidade de que ele fosse responsável por aquela morte. Possibilidade? Tinha quase certeza.

Teria Miles falado com Althene, e que teria dito a ela?

O telefone tocou.

- É Noel Holcroft?

- Sou eu. Desculpe-me se teve alguma dificuldade em encontrar-me.

- Não vamos perder tempo com essas coisas - disse Miles. - Quero dizer-lhe apenas que violou as leis federais.

- Espere um pouco! - exclamou Noel, irritado. - Qual é a minha culpa? Encontrou-me, não encontrou? Não estou me escondendo.

- Encontrá-lo depois de procurá-lo durante quase uma semana equivale a flagrante ignorância e desrespeito à lei. Não podia sair de Nova York sem nos comunicar.

- Havia assuntos pessoais urgentes. Deixei recado. Não pode me acusar de nada.

- Exceto de "obstrução da justiça".

- O quê?

- Você estava a bordo daquele avião inglês e nós dois sabemos o que aconteceu. Talvez fosse melhor dizer o que não aconteceu...

- Não estou entendendo.

- Aquele uísque se destinava a você, não a Thornton.

Holcroft sabia o que o outro ia dizer, mas o fato de saber não atenuava o impacto. Achou, porém, que não devia concordar sem um protesto.

- Foi a coisa mais absurda que já ouvi, isso que acabou de dizer, tenente!

- Vamos deixar disso! É um homem inteligente e de boa família, mas seu procedimento nos últimos cinco dias tem sido imbecil e muito pouco sincero.

- Está me insultando, mas sem dizer coisa com coisa. No seu telegrama...

- Já vamos chegar lá. Quero apenas que saiba de que lado está, Holcroft. Quero que você coopere e lute.

- Continue.

- Seguimos a sua pista até o Rio. Falamos com...

- Com quem?

Séria possível que Sam o tivesse traído?

- Não foi difícil. Devo dizer que seu amigo Buonoventura não sabe de nada disso. Deu-lhe toda a cobertura possível. Disse que você tinha saído de Curaçau num vapor, mas nós consultamos as autoridades de imigração holandesas e dos registros delas não constava a sua presença no território. Tivemos uma relação dos telefonemas de seu amigo para o exterior. Procuramos nas companhias de aviação. Você saiu de Nova York num voo da Braniff e se hospedou, no Rio, no Hotel Porto Alegre.

Não era possível competir com os profissionais.

- Sam disse que você telefonou várias vezes.

- Claro que sim - disse Miles. - Você tinha saído do Rio e eu queria saber onde é que estava. Sabíamos que ele se mantinha em contato com você. Não recebeu meu telegrama no hotel de Londres?

- Não.

- Acredito. Os telegramas às vezes se extraviam.

Mas aquele telegrama não se extraviara. Fora roubado pelos homens da Wolfsschanze.

- Está bem. Já sei qual é a minha posição. Entre logo no assunto.

- Acontece que você não sabe ao certo qual é a sua posição. Falamos com um homem chamado Anderson, na embaixada, no Rio. Ele disse ter ouvido de você uma história estapafúrdia, segundo a qual você fora perseguido e assaltado. O tal Anderson não acreditava em nada disso. Considerou você um problema e ficou muito contente quando o viu partir do Brasil.

- Eu sei. Ele me levou de carro ao aeroporto.

- Quer me contar o que foi que aconteceu? - perguntou o detetive.

Noel pensou um pouco. Seria muito fácil desabafar e procurar proteção oficial. O Tenente Miles era um símbolo de autoridade. Mas era um símbolo errado, num lugar errado e numa hora errada.

- Não. Não há nada que possa fazer, e esse caso já está resolvido.

- Está mesmo?

- Estou lhe dizendo.

Durante alguns segundos, nenhum deles falou.

- Está bem, Holcroft. Espero que mude de ideia, porque penso que posso ajudá-lo e sei que precisa de ajuda. Agora, estou fazendo um pedido formal para que volte a Nova York. É considerado uma testemunha importante num caso de homicídio sujeito à nossa jurisdição.

- Sinto muito, mas não posso voltar agora.

- Não esperava que pudesse. Vamos deixar de lado o aspecto oficial e falemos de seu pai.

A terrível notícia se aproximava e nada havia que ele pudesse fazer. Procurou falar com muita calma:

- Ele foi assassinado, não foi?

- Não ouvi o que disse. Se tivesse ouvido, teria de comunicar o fato aos meus superiores. Garanta-me que disse isso espontaneamente, sem que nada do que eu disse o tivesse levado a essa conclusão. Do contrário, eu teria de pedir a sua extradição.

- Pare com isso, Miles. O seu telegrama deu a entender isso. Que é que você acha que eu poderia pensar?

Houve uma pausa do lado de Nova York e afinal o detetive disse:

- Tem razão.

- Foi assassinado, não foi?

- É o que pensamos.

- Que foi que disse à minha mãe?

- Nada. O caso está fora da minha alçada e ela nem sabe meu nome. E isso responde antecipadamente à minha próxima pergunta. É claro que ainda não falou com ela.

- Não falei, decerto. Que foi que houve?

- Seu pai foi vitimado pelo que pode ser descrito como um acidente muito estranho. Morreu, uma hora depois, num hospital, em consequência dos ferimentos recebidos.

- Como foi o acidente?

- Um velho do Bronx perdeu a direção do carro que guiava, perto do Plaza Hotel. O carro subiu o passeio cheio de gente. Três pessoas morreram instantaneamente. Seu pai foi imprensado de encontro a uma parede e quase ficou esmagado.

- Acha que o carro visava à pessoa dele?

- É difícil dizer. Houve naturalmente muita confusão.

- Qual é sua opinião?

- Creio que o carro visava a seu pai.

- Quem é que estava dirigindo?

- Um contador aposentado de setenta e dois anos, que tinha problemas cardíacos, usava um marca-passo. Não tinha família e a sua carteira de motorista perdeu a validade há alguns anos. O marca-passo foi atingido no desastre e o homem morreu a caminho do hospital.

- Havia alguma relação entre ele e meu pai?

- Até agora, não pudemos encontrar nada. Mas eu tenho uma hipótese. Quer ouvi-la?

- Sem dúvida!

- Vai voltar para Nova York?

- Deixe de fazer pressão sobre mim. Qual é sua hipótese?

- Creio que o velho foi recrutado para fazer o serviço, contra a sua vontade. Na minha opinião, havia outra pessoa no carro, provavelmente no banco de trás, com uma pistola apontada para a cabeça do velho. Durante a confusão, essa pessoa quebrou o marca-passo e fugiu. Foi uma execução encenada como um acidente e em que houve mais vítimas do que o pretendido.

Noel prendeu a respiração. Tinha havido um acidente parecido no metrô de Londres, com cinco vítimas, entre elas o único homem que podia esclarecer a contratação de John Tennyson para o Guardian. A ideia de uma conexão entre os dois casos era apavorante.

- Não está levando muito longe a sua imaginação, Miles? - perguntou Holcroft.

- Disse que se tratava de uma hipótese, mas ela encontra alguma base nos fatos. Quando vi o nome de Richard Holcroft entre as vítimas, fiz algumas pesquisas. O velho do Bronx tinha uma história muito interessante. Veio para os Estados Unidos em 1947, na condição de imigrante judeu indigente, vítima do campo de concentração de Dachau. Mas nada tinha de indigente. Encontraram-se no seu apartamento talões de cheques de cinco bancos e a casa era uma verdadeira fortaleza. Além disso, desde que chegou aos Estados Unidos, fez treze viagens à Alemanha.

Gotas de suor apareceram na fronte de Noel.

- A que conclusão quer chegar, Miles?

- Creio que o velho nunca esteve nem perto de Dachau. Ou, se esteve, fazia parte da administração do campo. Quase ninguém o conhecia no prédio em que morava e nunca foi visto numa sinagoga. Para mim, era um nazista.

- E que relação poderia ele ter com meu pai?

- A relação era você. Não sei como, mas era você.

- Eu? - perguntou Noel, sentindo o coração bater com mais força.

- Isso mesmo. Você disse no Rio a Anderson que um homem chamado Graff era nazista e tentou matá-lo. Anderson disse que você estava enganado nas duas suposições, mas eu não penso assim. Acredito em você.

- Eu estava fora de mim e não sabia mais o que estava dizendo. Foi um mal-entendido... Graff é um paranoico, um alemão desequilibrado. Foi por isso que eu disse que ele era nazista. Só isso. Ele pensou que eu estava fazendo desenhos e tirando fotografias da casa dele...

- Eu disse que acreditava em você, Holcroft. E tenho as minhas razões.

- Quais são elas?

Noel teve de repente muito medo. A morte de seu pai era uma advertência. O Rache ou o ODESSA. Fosse qual fosse o grupo, era outra advertência. A mãe dele tinha de ser protegida!

Miles estava falando, mas Holcroft não o escutava. Havia pânico em seu espírito. Era preciso deter os passos de Miles. Ele não poderia sequer aproximar-se de Genebra!

- Os homens que estavam no avião e tentaram matá-lo eram alemães - explicava Miles. - Tinham passaportes tirados de dois americanos, mortos em Munique há cinco anos, mas eram alemães. Isso foi revelado pelo exame dos dentes deles. Foram mortos a bala no Aeroporto Kennedy. Os corpos foram encontrados num caminhão de abastecimento de gasolina. As balas que os mataram foram disparadas de uma pistola alemã Heckler e Koch de nove milímetros. O silenciador foi feito em Munique. Sabe a que cidade o velho do acidente foi quando esteve na Alemanha, ao menos em seis viagens que conseguimos investigar?

- Munique?

- Exatamente. Onde tudo começou e ainda prossegue. Os nazistas estão lutando uns contra os outros, trinta anos depois da guerra, e você está metido nessa briga. Quero saber por quê.

Noel sentiu-se tomado de exaustão e medo.

- Não pense mais nisso, Miles. Não há nada que você possa fazer.

- Nada disso! Posso impedir outro crime de morte, está ouvindo?

- Não pode compreender? Posso dizer isso porque ele era meu pai. Nada pode ser resolvido em Nova York. A solução só pode estar aqui. Dê-me tempo, pelo amor de Deus. Voltarei então para aí.

- De quanto tempo precisa?

- Um mês.

- É muito tempo. Corte isso pela metade. Esperarei duas semanas.

- Escute, Miles...

Houve um estalo na linha. A ligação com Nova York fora cortada.

Duas semanas. Não era possível!

Mas tinha de ser possível. Em duas semanas, ele devia estar em condições de impedir que Miles fosse adiante. Poderia fazer isso com os recursos de Genebra. Uma organização filantrópica com reservas de setecentos e oitenta milhões seria ouvida, calmamente e em confiança. Depois que a conta fosse liberada, seriam feitos acordos e a cooperação seria possível. O ODESSA seria desmascarado e o Rache, destruído.

Tudo isso só poderia acontecer quando três descendentes aceitáveis se apresentassem ao banco em Genebra. Noel tinha certeza de que isso iria acontecer. Mas até então tinha de proteger sua mãe. Tinha de falar com Althene e convencê-la a desaparecer durante algumas semanas.

Que poderia dizer-lhe? Ela nunca o escutaria, se pensasse por um instante que o marido fora assassinado. Que poderia dizer-lhe?

- Allo? Allo, monsieur? O seu telefonema para Nova York...

Desligou prontamente. Não podia ainda falar com Althene. Talvez daí a uma hora. Tinha muito em que pensar e muito que agir.

Estava ficando louco.


19

- Ele vai ficar louco - disse o homem louro ao telefone, no Aeroporto Hellenikon, em Atenas. - Já deve ter sabido da notícia. Sofrerá uma tensão capaz de arrasá-lo. Ficará sem saber o que fazer. Diga a nosso homem em Paris que não se afaste dele nas próximas vinte e quatro horas. Não deverá voltar para os Estados Unidos.

- Não voltará - disse Gretchen Beaumont a milhares de quilômetros de distância.

- Não pode haver tanta certeza assim. As tensões psicológicas estão aumentando de maneira conveniente e a estrutura mental do homem é bem delicada atualmente. Entretanto, ele pode ser dirigido. Está à minha espera. Vê em mim uma solução para muitas coisas, mas é preciso aumentar a pressão. Quero que ele vá antes a Berlim. Um dia ou dois antes, para falar com Kessler.

- Devemos usar a mãe dele? Poderíamos insinuar a ideia no espírito dela.

- Não. Ela não deve ser tocada em hipótese alguma. Seria muito perigoso.

- Como vai então sugerir Berlim? - perguntou Gretchen Beaumont da Inglaterra.

- Não vou sugerir - disse John Tennyson de Atenas. - Convencerei nossa irmã a fazê-lo chegar a essa conclusão. É claro que ela está tentando falar comigo.

- Tenha cuidado com ela, Johann.

- Fique descansada.

Holcroft caminhava pela margem cimentada do Sena, sem dar atenção aos ventos cortantes que vinham do rio. Uma hora antes, sentia-se cheio de confiança; naquele momento, julgava-se perdido. Sabia apenas que tinha de continuar a caminhar para esclarecer as ideias e poder tomar decisões.

Tinha também de efetuar uma nova análise de alguns pontos. Uma hora antes, acreditava firmemente que o homem com quem podia contar era o irmão de Helden. Essa convicção passara a ser precária. Um carro desgovernado numa rua de Nova York tirara a vida do único pai a quem conhecera, num desastre muito semelhante ao ocorrido no metrô de Londres e que não tivera explicação.

O encontro com Tennyson deixara de ser a solução para tudo. A sombra do Tinamou tinha reaparecido. Tennyson estava à espera dele, mas talvez as suas razões não fossem as que deviam ser. Era possível que ele tivesse vendido o pacto por um preço mais alto.

Nesse caso, ele era culpado da morte de Richard Holcroft tão seguramente quanto se estivesse pisando no acelerador e manobrando o volante do carro do desastre. Se fosse esse o caso, John Tennyson não sairia vivo do encontro com ele. Mataria pelo pai. Devia pelo menos isso a Richard Holcroft.

Noel parou e encostou as mãos no muro de cimento, espantado com os seus pensamentos. Estava pensando em ser um assassino. O pacto estava exigindo dele um preço bem maior do que ele jamais pensara.

Enfrentaria Tennyson com os fatos de que dispunha. Observaria de perto o filho de Wilhelm von Tiebolt. Descobriria a verdade ou a mentira nas palavras e nos olhos de Tennyson. Esperava apenas que fosse capaz de reconhecer e interpretar a reação do homem.

Uma coisa de cada vez. Havia mais lucidez em suas ideias. Cada movimento tinha de ser projetado cuidadosamente. Entretanto, esse cuidado não deveria tolhê-lo.

Tinha de tratar das coisas na ordem da sua prioridade e em primeiro lugar havia o fato indiscutível de que ele não podia mais mover-se com liberdade e despreocupação. Fora-lhe feita a mais grave de todas as advertências, o assassinato de um ente querido. Aceitava essa advertência cheio de medo e de raiva. O medo o faria tomar cuidado; a raiva lhe daria coragem. Ambas as coisas eram necessárias e ele dependia delas.

Depois, havia sua mãe. Que poderia dizer-lhe que ela fosse capaz de aceitar sem ficar com suspeitas? Fosse como fosse, ela tinha de acreditar nele. Se ela pensasse por um só instante que a morte do marido fora obra dos homens gerados pelo Terceiro Reich, levantaria a voz na sua fúria. E o primeiro grito dela poderia ser também o último. Que poderia ele dizer que fosse plausível?

Continuou a caminhar distraidamente com os olhos sem alvo. Por isso, esbarrou num homem baixo que caminhava em sentido contrário.

- Pardon, monsieur - disse Noel.

O francês, que estava passando os olhos por um jornal, encolheu os ombros e sorriu.

- Rien.

Noel parou. Aquele francês lhe lembrava alguém. O rosto redondo e simpático, os óculos.

Ernst Manfredi.

Sua mãe respeitara Manfredi e tinha muita gratidão pelo que ele fizera por ela. Talvez ele pudesse falar a Althene invocando Manfredi e inventando uma argumentação que lhe teria sido formulada pelo banqueiro. Por que não? Não havia receio de um desmentido, pois Manfredi estava morto.

Manfredi estava preocupado com sua velha amiga Althene Clausen. Tinha receio de que, nas próximas semanas, quando a extraordinária conta em Genebra fosse liberada, o nome de Clausen pudesse vir à tona. Podia haver gente que se lembrasse de que uma mulher enérgica e jovem deixara o marido, revoltada, e que as suas palavras tinham sido a base da conversão moral de Heinrich Clausen, resultando daí o roubo de centenas de milhões. Hostilidades adormecidas poderiam despertar e procurar vingar-se dessa mulher.

Eram os receios de Manfredi que ela devia respeitar. O velho banqueiro sabia mais do que qualquer deles e achava melhor que ela desaparecesse por algum tempo até que o impacto da liberação da conta se amortecesse. Ela aceitaria esse conselho. Um velho doente e no fim da vida não iria chegar a conclusões frívolas.

A explicação era lógica e condizia com a conversa que tinham tido em Bedford Hills três semanas antes. Sua mãe veria a coerência e daria ouvidos às "palavras" de Ernst Manfredi.

Noel olhou para trás instintivamente para ver se alguém o estava seguindo. Isso era já um hábito dele. O medo tornava-o cauteloso e a raiva dava-lhe energia. Queria muito ver um inimigo. Estava se habituando à sua floresta desconhecida.

Voltou ao hotel. Saíra do George V em pânico, evitando seu amigo da gerência, pois precisava urgentemente do ar frio das ruas para assentar a cabeça. Ia agora aceitar um aperitivo e pedir licença para dar outro telefonema para os Estados Unidos. Ia falar com sua mãe.

Caminhou mais depressa, parando duas vezes de repente a fim de olhar para trás. Havia alguém atrás dele?

Era possível. Um Fiat verde-escuro tinha diminuído a marcha uma quadra à retaguarda. Muito bem.

Atravessou rapidamente a rua, entrou num café e saiu, segundos depois, pela porta dos fundos, que dava para a Avenue George V. Parou numa banca para comprar um jornal.

Viu o Fiat verde dobrar a esquina perto do café e parar de repente. O motorista encostou o carro ao meio-fio e baixou a cabeça. Noel decidiu o que ia fazer depois do aperitivo e do telefonema para Althene.

Iria procurar Helden. Precisava de uma pistola.

Von Tiebolt olhou para o bocal do telefone público no aeroporto de Atenas, com o rosto franzido de espanto.

- Que foi que você disse? - perguntou ele.

- Isso mesmo, Johann - disse Helden em Paris. - O serviço secreto inglês julga que você talvez seja o Tinamou.

- Que coisa ridícula! - disse o homem louro. - E, ainda por cima, insultuosa!

- Foi o que eu disse a Holcroft. Disse que só o estavam perseguindo pelas coisas que você escrevia e pelo que você é, pelo que nós somos.

- Também acho - murmurou Von Tiebolt sem prestar atenção ao que a irmã dizia. A raiva fazia tremerem-lhe as mãos. Tinha havido um erro em algum ponto e era preciso tomar providências imediatas para corrigi-lo. O que fizera a Seção Cinco chegar até ele? Todas as pistas tinham sido destruídas. Mas, afinal de contas, ele poderia apresentar o Tinamou à vontade. Era a sua estratégia definitiva. Ninguém merecia mais confiança do que o suspeito que desmascarava o assassino procurado. Era a tática suprema de sua criação. Pelo visto, teria de empregá-la mais cedo do que esperava.

- Alô, Johann? Alô?

- Alô, Helden? Desculpe.

- Você tem de encontrar-se com Holcroft o mais depressa possível.

- É claro. Estarei em Paris dentro de quatro ou cinco dias.

- Não pode ser mais cedo? Ele está muito ansioso.

- Mais cedo é completamente impossível.

- Tenho tanta coisa para lhe contar...

Ela falou então da conta em Genebra, da agência em Zurique encarregada de distribuir centenas de milhões de dólares, do filho americano de Heinrich Clausen, de Erich Kessler em Berlim e dos Von Tiebolt no Rio. Por fim, repetiu as palavras que ele teria dito a Gretchen a respeito de um homem que ia aparecer com propostas estranhas...

- Você disse isso mesmo, Johann?

- Disse. Há muita coisa que você não sabe, Helden. Quando falei, não sabia quando, nem como isso iria acontecer. Falei ainda agora com Gretchen. Ela foi procurada por esse Holcroft, mas creio que não o ajudou muito. Mas eu sei que temos esse compromisso, e é a coisa mais importante a ser feita na história recente. É preciso fazer reparações.

- Foi o que Holcroft disse.

- Deve ter dito mesmo.

- Ele está apavorado. Tenta disfarçar, mas eu sei que está com medo.

- Não é de admirar. A responsabilidade é enorme. Tenho de ser informado do que ele sabe para poder ajudá-lo.

- Venha então logo para Paris.

- Não posso. Só daqui a alguns dias.

- Estou muito preocupada. Se Noel é o que diz, e eu não vejo razão para duvidar dele...

- Noel?

- Gosto dele, Johann.

- Continue.

- Se é ele quem deve levar os três descendentes a La Grande Banque, nada poderá acontecer em Genebra sem ele.

- E daí?

- Outras pessoas sabem disso. Creio que têm conhecimento da conta de Genebra. Terríveis coisas têm acontecido. Têm tentado detê-lo.

- Quem?

- Creio que o Rache. Mas pode ter sido também o ODESSA.

- Isso é duvidoso - disse John Tennyson. - Nenhum desses dois grupos é capaz de guardar segredo sobre coisas assim. Quem lhe está dizendo é um jornalista.

- Tanto o Rache quanto o ODESSA matam. E tentaram matar Noel.

Tennyson sorriu. Tinha havido erros, mas a estratégia básica estava dando resultado. Holcroft estava levando golpes de todos os lados. Quando tudo chegasse a uma decisão em Genebra, ele estaria exausto e completamente maleável.

- Neste caso, ele deve tomar muito cuidado, Helden. Tanto quanto puder, ensine-lhe as coisas que você sabe. Os truques que aprendemos entre nós.

- Ele já viu alguns desses truques - disse ela com um riso suave. - Detesta ter de usá-los.

- É melhor usá-los do que morrer - disse Tennyson, fazendo uma pausa bastante longa para que a transição fosse natural. - Gretchen me falou numa fotografia, num retrato de Beaumont. Ela pensa que Holcroft levou a fotografia.

- Levou, sim. Está convencido de que viu Beaumont a bordo de um avião que ia de Nova York para o Rio. Acredita que ele o estava seguindo. Era uma das coisas que eu lhe queria contar.

Fora então no avião, pensou Tennyson. O americano era mais observador do que Beaumont tinha querido acreditar. O desaparecimento de Beaumont seria explicado dentro de alguns dias, mas seria difícil explicar a fotografia em poder de Holcroft se ele a mostrasse na Suíça. O comandante fanático tinha deixado uma pista muito clara, do Rio para o Almirantado. Era preciso reaver a fotografia.

- Não sei mesmo o que dizer, Helden. Nunca pude gostar de Beaumont. Jamais confiei nele. Mas ele está há meses no Mediterrâneo. Não sei como ele poderia deixar o seu navio e embarcar num avião em Nova York. Holcroft deve estar enganado. Apesar de tudo, gostaria que ele trouxesse a fotografia quando viesse falar comigo. Não deve andar muito com ela, nem deve falar sobre Beaumont com ninguém. Diga-lhe que isso poderia chamar a atenção de certas pessoas para Gretchen. E para nós também. Por isso, penso que seria uma boa ideia Holcroft trazer-me a fotografia.

- Isso ele não pode fazer. Roubaram-lhe a fotografia.

O homem louro ficou gelado. Era impossível. Nenhum deles havia tirado a fotografia. Nenhum Sonnenkind. Se acontecesse isso, ele seria o primeiro a saber. Quem teria sido? Perguntou então:

- Roubaram dele como?

- Um homem perseguiu-o, bateu nele até deixá-lo inconsciente e roubou a fotografia. Não levou nada mais. Só a fotografia.

- Quem foi esse homem?

- Ele não sabe. Era noite e ele não pôde ver bem. Voltou a si num campo, distante quilômetros de Portsmouth.

- Ele foi atacado em Portsmouth?

- A uns dois quilômetros da casa de Gretchen, se não estou enganada.

Alguma coisa estava errada, terrivelmente errada.

- Tem certeza de que Holcroft não está mentindo?

- Por que iria mentir?

- Que foi exatamente que ele lhe disse?

- Que foi perseguido por um homem que vestia um suéter preto. O homem tinha um cassetete ou coisa parecida e lhe tirou a fotografia do bolso quando ele estava inconsciente. Só a fotografia. Não levou o dinheiro, nem nada mais.

- Compreendo...

Mas não compreendia. E o incompreensível o perturbava. Não podia dar parte dos seus receios a Helden, pois tinha de parecer, como sempre, senhor da situação. Mas era forçado a investigar a ocorrência incompreensível e desconhecida.

- Helden, quero que faça alguma coisa para... para todos nós. Pode afastar-se por um dia do trabalho?

- Acho que sim. Por quê?

- Temos de descobrir quem se interessa tanto por Holcroft. Talvez você possa sugerir-lhe um passeio no campo e ir até Fontainebleau ou Barbizon.

- Por quê?

- Tenho um amigo em Paris que frequentemente me presta alguns serviços. Vou pedir-lhe que siga vocês, muito discretamente, é claro. Talvez assim saibamos quem mais faz a viagem.

- Um dos nossos homens poderia encarregar-se disso.

- Não. Não meta seus amigos nisso. O Coronel deve ficar longe de tudo.

- Está muito bem. Vamos partir às dez horas do Hôtel Douzaine Heures, na Rue Chevalle. Como é que vou reconhecer o homem?

- Não é preciso que você o reconheça. Ele saberá encontrá-los e segui-los. Não diga nada a Holcroft para ele não ficar nervoso desnecessariamente.

- Muito bem. Telefone-me logo que chegar a Paris.

- No momento em que chegar, meine Schwester[15].

- Danke, mein Bruder[16].

Tennyson colocou o fone no gancho. Havia ainda um telefonema a fazer antes de tomar o avião para Berlim. Não era para Gretchen. Não queria falar com ela. Se as ações de Beaumont se revelassem tão desastrosas quanto pareciam, se com a sua imprudência prejudicara a causa da Wolfsschanze, nesse caso os laços que levavam a ele e, por intermédio dele, a Genebra, tinham de ser cortados. Não era uma decisão fácil. Amava Gretchen como poucos homens na terra amavam as irmãs, de uma maneira que o mundo reprovava porque não era capaz de compreender. Ela cuidava de suas necessidades, saciava-lhe as fomes, de modo que nunca houvesse quaisquer complicações externas. O seu espírito ficava livre para concentrar-se em sua extraordinária missão na vida. Mas também isso teria talvez de terminar. Gretchen, sua irmã, sua querida, talvez tivesse que morrer.

Holcroft escutou as últimas palavras de Althene, atônito com o equilíbrio dela, espantado de que tivesse sido tão fácil. O enterro fora no dia anterior.

- Faça o que tiver de fazer, Noel. Um homem bom morreu desnecessariamente, absurdamente, e isso é inconcebível. Mas tudo isso passou e não há nada que você ou eu possamos fazer.

- Há alguma coisa que você pode fazer para mim.

- Que é?

Noel falou então da morte de Manfredi, tal como os suíços julgavam que tivesse ocorrido. Um homem velho lacerado por dores, que preferira a morte súbita aos prolongados sofrimentos da doença.

- A última coisa que ele fez como banqueiro foi conversar comigo em Genebra.

Althene ouvia em silêncio, pensando num amigo que em outros tempos representara muito para ela.

- Ele era assim. Fez questão de cumprir um acordo importante como o que lhe confiou. Não deixaria esse dever para os outros.

- Disse alguma coisa mais e se referia a você. Afirmou-me que você compreenderia.

Holcroft falou tão convincentemente quanto lhe foi possível. Externou as "preocupações" de Manfredi de que algumas pessoas se lembrassem de uma mulher enérgica a quem se devia a conversão de Heinrich Clausen e a sua decisão de trair o Reich. Explicou que era inteiramente possível que ainda houvesse alguns fanáticos dispostos a procurar vingança. Manfredi, o velho amigo de Althene Clausen, não queria que ela servisse de alvo a esses fanáticos. Ela devia afastar-se durante algum tempo, para onde ninguém pudesse encontrá-la, caso o nome de Clausen viesse à tona.

- Pode compreender isso, mamãe?

- Posso, pois Manfredi me disse a mesma coisa há muitos anos. Numa tarde quente em Berlim, disse-me que os fanáticos poderiam procurar-me. Tinha razão naquela época e tem razão agora. O mundo sempre esteve cheio de dementes.

- Para onde irá?

- Não sei ainda. Talvez faça uma viagem. A oportunidade é boa, não acha? Todos são embaraçosamente solícitos quando há uma morte.

- Prefiro que vá para um lugar onde ninguém a veja. Por algumas semanas apenas.

- Deixar de ser vista é fácil. Tenho alguma experiência disso. Dois anos depois de deixarmos Berlim, viajamos muito, você e eu. Até Pearl Harbor, exatamente. As atividades do Bund eram muito intensas naquele tempo e não davam margem a tranquilidade. Recebia ordens diretamente da Wilhelmstrasse.

- Eu não sabia disso - murmurou Holcroft.

- Há muita coisa... Não importa. Richard acabou com tudo isso. Graças a ele, deixamos de fugir e de esconder-nos. Eu mandarei dizer-lhe o lugar onde estou.

- Como?

- Por intermédio do seu amigo Buonoventura. Ele sempre me atendeu muito bem. O que houver direi a ele.

- Está bem. Telefonarei depois para Sam.

- Nunca lhe falei daquele tempo, Noel, antes que Richard chegasse às nossas vidas. Talvez ainda lhe conte um dia. Sei que você se interessaria muito.

- Claro que sim, mamãe. Manfredi tinha razão. Você é incrível.

- Não, meu querido. Nada tenho de incrível. Sou apenas uma sobrevivente.

Despediram-se então rapidamente e Noel saiu da sala da gerência. Atravessou a portaria do hotel a caminho do bar, onde seu amigo estava esperando com os aperitivos. Antes, foi à grande janela ao lado da entrada e olhou por entre os reposteiros de veludo vermelho. O Fiat verde ainda estava parado mais embaixo na rua.

Dirigiu-se para o bar. Passaria um quarto de hora em conversa amena com o amigo, durante a qual daria várias informações específicas e errôneas e pediria dois ou três favores.

- Quatro ou cinco dias? - exclamou Holcroft pelo telefone. - Não quero esperar quatro ou cinco dias. Irei encontrar-me com ele em qualquer lugar. Não posso perder tempo.

- Disse que só poderia vir a Paris dentro desse tempo, mas sugeriu que no intervalo você fosse a Berlim. Isso só lhe tomaria um dia ou dois.

- Ele sabia de Kessler?

- Talvez de nome, não, mas sabia que havia alguém em Berlim.

- Onde é que ele estava?

- No aeroporto de Atenas.

Noel se lembrou de que os agentes secretos haviam dito que Tennyson desaparecera em Bahrain e que estava sendo procurado de Cingapura a Atenas. O serviço secreto inglês encontraria em breve John Tennyson, se ainda não o encontrara.

- Que disse ele sobre os ingleses?

- Ficou furioso, como eu esperava. Não me espantaria se John escrevesse um comunicado capaz de criar problemas ao Foreign Office. Ficou insultado.

- Seria melhor que não tivesse ficado. Não é aconselhável que haja uma repercussão de qualquer espécie nos jornais. Pode falar com ele pelo telefone? Ou posso telefonar para ele? Seu irmão poderia tomar um avião esta noite e eu iria esperá-lo em Orly.

- Infelizmente, não. Ele ia embarcar num avião em Atenas. Há apenas um telefone em Bruxelas que recebe os recados para ele. Ele levou quase dois dias para receber o meu recado.

- Que coisa!

- Está muito nervoso...

- Estou é com pressa...

- Escute, Noel... Não tenho trabalho amanhã. Podemos encontrar-nos e dar um passeio de carro. Temos de conversar.

Holcroft ficou surpreso. Queria tanto estar com ela...

- Para que esperar até amanhã? Vamos jantar juntos hoje?

- Não posso. Tenho uma reunião esta noite. Estarei em seu hotel amanhã, às dez horas. À tarde, você poderá tomar o avião para Berlim.

- Vai encontrar-se com seus amigos?

- Vou.

- Helden, quero um favor seu. Nunca pensei que fosse pedir isso a ninguém... Mas preciso de uma pistola. Não sei como é que se faz para conseguir isso, nem quais são as regras...

- Compreendo. Vou trazer-lhe a pistola. Até amanhã.

- Até amanhã.

Holcroft desligou e olhou para a sua maleta 007 na cadeira do hotel. Via o envelope do documento de Genebra e lembrou-se da ameaça dos homens da Wolfsschanze. Nada mais será o mesmo para você... Compreendia toda a verdade disso. Uma vez, em Costa Rica, tomara uma arma emprestada. Matara um homem que ia matá-lo e jurara a si mesmo nunca mais pegar numa arma enquanto vivesse. Isso tinha mudado. Tudo tinha mudado, porque um homem, a quem não conhecera, apelara para ele do fundo da sepultura.


20

- Gosta de trutas? - perguntou Helden, ao mesmo tempo que entregava a automática a Noel, sentada no banco da frente do carro que ele alugara.

- Gosto muito - respondeu ele, rindo.

- Em que é que está achando graça?

- Não sei. Entrega-me uma pistola, coisa que não é muito normal, e no mesmo instante me pergunta o que eu quero almoçar.

- Uma coisa não tem nada com a outra. Creio que seria muito bom você esquecer os seus problemas por algumas horas.

- Julguei que você estava disposta a falar sobre eles.

- E estou. Por outro lado, queria conhecê-lo melhor. Naquela noite em que estivemos juntos, só você é que fez as perguntas.

- Antes que eu fizesse as perguntas, você deu todas as ordens.

Helden riu.

- Desculpe. Eu estava um bocado nervosa, não estava?

- E como! Mas que riso bonito você tem! Não sabia que era capaz de rir.

- Pois saiba que rio com frequência. Duas vezes por mês, pelo menos, pontual como um relógio.

- Eu não devia ter dito isso, Helden. Imagino que você não deve ter muito de que rir.

- Talvez mais do que você pensa. E não fiquei ofendida. Tenho certeza de que me acha um pouco séria demais.

- A nossa conversa daquela noite nada teve de humorística.

- Claro que não.

Helden tinha as mãos pousadas nos joelhos sob a saia branca pregueada estendida no banco. Havia nela uma qualidade genuína que até então Noel não percebera. Ela reforçou essa qualidade com as suas palavras seguintes.

- Pensa alguma vez neles?

- Neles quem?

- Nesses pais que você e eu não conhecemos. O que eles fizeram foi incrível, como um ato de coragem.

- Não foi só um ato, Helden. Foram centenas, milhares deles. Cada qual era diferente e complexo, estendendo-se por alguns meses. E isso durou três anos.

- Devem ter vivido em verdadeiro terror.

- Tenho certeza disso.

- Que é que os impelia?

- Apenas... - murmurou Noel e fez uma pausa sem saber por quê. - Apenas pelo que Heinrich Clausen declarou na carta que me escreveu. Ficaram escandalizados além de tudo o que possamos imaginar quando souberam do que realmente acontecia nos "campos de recuperação" como Auschwitz e Belsen. Pode parecer-nos incrível agora que eles não soubessem, mas não se esqueça de que estavam em 1943 e havia uma conspiração de silêncio.

Helden tocou no braço dele. Foi um contato breve, mas firme.

- Você fala em Heinrich Clausen. Não pode chamá-lo de pai, não é?

- Tive um pai - disse Noel, sabendo que não estava na hora de discorrer sobre Richard Holcroft. - Está morto. Foi assassinado há cinco dias em Nova York.

- Meu Deus! - exclamou Helden e era visível a intensidade do seu pesar. - Assassinado? Por causa de Genebra?

- Não sei.

- Mas acha que foi?

- Acho.

Noel crispou as mãos no volante e ficou calado. Uma couraça estava se formando, e isso era uma coisa terrível.

- Sinto muito, Noel. Não sei mais o que dizer. Queria consolá-lo, mas não sei como.

Ele olhou para ela, para o rosto lindo e para os claros olhos castanhos cheios de preocupação.

- Com todos os seus problemas, basta dizer isso. Você é uma ótima pessoa, Helden. Não conheço muita gente como você.

- Posso dizer o mesmo... Você é uma boa pessoa, Noel.

- Dissemos a mesma coisa os dois. Agora, onde estão as trutas de que você falou? Se vamos ter algumas horas de folga, por que não me diz para onde é que vamos?

- Vamos a Barbizon. Há um restaurante muito bom no centro da cidade. Já esteve em Barbizon?

- Muitas vezes - disse Noel, olhando fixamente para o pequeno espelho retangular ao lado da direção.

Havia um Fiat verde-escuro atrás deles. Não sabia ao certo se era o mesmo carro que o havia esperado no dia anterior na Avenue George V, mas pretendia apurar isso sem alarmar Helden. Diminuiu a marcha, mas o Fiat não o ultrapassou. Ao invés disso, passou para outra pista, deixando outro carro ficar entre eles.

- Algum problema? - perguntou Helden.

Holcroft levantou um pouco o pé do acelerador. O carro continuou em menor velocidade.

- A bem dizer, nada. Já notei que há alguma coisa com esse carro desde ontem. Talvez precise de um ajustamento no carburador. Com um pouco de jeito, vai.

- Parece que entende muito de carros.

- Bem, sou um mecânico de carros sofrível. Não é possível trabalhar em certos lugares sem saber mexer em carros.

Pisou no acelerador e tocou de novo o carro para a frente em boa velocidade.

Continuava a ver o Fiat verde pelo espelho. Tinha aumentado também a velocidade, mudou de pista e ultrapassou o outro carro.

Não havia mais dúvida. O Fiat verde os estava seguindo.

O medo tornava-o cauteloso. Tinha certeza de que o homem que ia naquele carro estava indiretamente envolvido na morte de Richard Holcroft. E ia surpreender aquele homem.

- Pronto! O motor está em boas condições agora, Helden. E sua ideia de um almoço em Barbizon foi ótima. Deixe ver se me lembro do caminho.

Errou o caminho de propósito. Entrou em estradas erradas, corrigiu os erros rindo e afirmando que tudo tinha mudado desde que estivera por aqueles cantos. Tudo se tornou uma brincadeira, mas com um objetivo muito sério. Noel queria ver o rosto do homem que ia no Fiat. Em Paris, o camarada se escondera atrás do para-brisa e da fumaça de um cigarro. Noel estava disposto a ver o rosto e marcá-lo a fim de reconhecê-lo onde quer que o encontrasse.

No entanto, o homem que dirigia o Fiat não era um amador. Se ficou desconcertado com os rodeios inexplicáveis e as mudanças de marcha frequentes de Noel, não deu a menor mostra disso. Continuou a manter uma discreta distância, sem nunca permitir que o intervalo entre os dois carros fosse muito reduzido. Havia um carro enguiçado numa estreita estrada ao sul de Corbeil-Essonnes. Holcroft freou ao lado do carro enguiçado e o motorista do Fiat não teve outro jeito senão passar rapidamente ao lado dos dois carros. Holcroft olhou. O homem tinha cabelos castanho-claros e apresentava uma marca distintiva: manchas ou cicatrizes de varíola na face.

Noel seria capaz de reconhecer aquele rosto. Era só o que importava.

O motorista do carro enguiçado agradeceu a ajuda oferecida por Noel, dizendo que o socorro já estava a caminho.

Noel prosseguiu viagem, sem saber se ainda veria o Fiat verde. Podia estar numa estrada lateral à espera dele ou talvez fosse aparecer de repente no espelho do seu carro.

- Foi muito gentil o que você fez - disse Helden.

- Às vezes, nós, os americanos arrogantes, fazemos coisas assim.

Se o Fiat verde tinha ficado à espera numa estrada lateral, Noel não chegou a saber. Olhou de repente pelo espelho e lá estava ele à mesma distância na estrada. Entraram pela estrada do Seine-et-Marne e chegaram a Barbizon. O Fiat verde ficou muito para trás, mas ainda estava presente.

O almoço foi uma estranha mistura de intimidade e reserva, entre breves momentos de animação e silêncios abruptos. Havia conversas que, mal iniciadas, se interrompiam, sem que eles soubessem ao certo por que tinham começado a falar. Havia, entretanto, bem-estar na proximidade deles, no fato de estarem juntos, e Noel tinha a impressão de que ela sentia isso tanto quanto ele.

Essa impressão era fortalecida por uma coisa que Helden fazia, evidentemente sem pensar. Tocou repetidamente nele. Estendia a mão e a deixava descansar por um momento ora no braço, ora na mão dele. Fazia isso para acentuar alguma coisa que estivesse dizendo ou para fazer uma pergunta a Noel, mas fazia-o como se fosse a coisa mais natural do mundo. E era natural que ele aceitasse o gesto e às vezes o retribuísse.

- Seu irmão não falou sobre Beaumont? - perguntou ele.

- Falou, sim. E ficou muito zangado. Tudo o que se refere a Beaumont o aborrece. Acha, porém, que você está enganado, pois não podia tê-lo visto no avião. Queria que você levasse a fotografia para ele. Quando eu disse que você não estava mais com ela, ficou furioso.

- Com o desaparecimento da fotografia?

- Sim. Disse que pode ser perigoso. Ela podia servir de pista a alguém para chegar a Gretchen, a nós, a Genebra.

- Pois eu não creio que haja perigo. A Marinha Real não deve ser diferente das outras organizações militares do mundo. Os seus homens se protegem uns aos outros.

- E essa proteção abrange minha irmã promíscua?

Holcroft assentiu. Não queria falar sobre Gretchen Beaumont, especialmente com Helden.

- Mais ou menos...

- Tudo está bem, Noel. Nunca me arroguei o direito de julgar minha irmã... Não tenho esse direito... Como não tenho o direito de julgar qualquer coisa relacionada com você...

- Sei o que você quer dizer. E lhe dou o direito de me julgar. Sinto-me feliz com isso...

- Você me deixa desconcertada.

- É mesmo? Pois saiba que não quero absolutamente que se sinta assim.

Pegou na mão dela e lhe seguiu o olhar através da janela do restaurante. Ela olhava o pequeno tanque de pedra no centro do terraço, mas o olhar de Noel foi mais adiante, fixando-se em vários grupos de turistas que passeavam pelas ruas de Barbizon. O homem de cabelos castanho-claros e rosto marcado estava parado no passeio do outro lado. Tinha um cigarro no canto da boca e um livro na mão. Mas não estava lendo o livro. Tinha os olhos um pouco levantados e observava a porta do restaurante.

Estava na hora de entrar em ação, pensou Noel. A sua raiva se acendera de novo. Ele queria aquele homem.

- Tenho uma ideia - disse ele tão calmamente quanto lhe foi possível. - Vi um cartaz perto da porta que falava de uma fête d’hiver, se o meu francês não está enganado, num lugar chamado Montereau. É uma espécie de feira, não é?

- Mais ou menos. Montereau fica a uns dez quilômetros daqui.

- Que é que há por lá?

- Essas festas são muito comuns por aqui. Em geral, são realizadas pelas igrejas locais no dia do santo padroeiro. É uma feira onde se vendem coisas usadas.

- Vamos até lá?

- Você quer mesmo?

- Claro. Se houver alguma coisa que preste, eu lhe darei um presente.

- Está bem. Vamos.

O sol forte da tarde batia em cheio no espelho do carro e a reverberação fazia Holcroft piscar os olhos repetidamente para não ficar ofuscado. O Fiat verde aparecia de vez em quando. Estava bem atrás, mas nunca ficava por muito tempo invisível.

Parou o carro atrás da igreja, que era o ponto central da aldeia. Ele e Helden deram volta à igreja e se misturaram com o povo.

A praça da aldeia era tipicamente francesa. As ruas calçadas com pedras irregulares se estendiam como os raios irregulares de uma roda imperfeita. Havia prédios velhos e vielas tortuosas por toda parte. Viam-se barracas espalhadas sem qualquer aparência de ordem. Os toldos se mostravam em vários estados de negligência, com peças de artesanato e comestíveis arrumados nos balcões. O sol se refletia em pratos cintilantes e numa profusão de oleados. A feira não se destinava aos turistas. Para estes, havia as que se realizavam nos meses de primavera e verão.

O homem de rosto marcado se postara em frente a uma barraca no meio da praça. Estava comendo algum doce de pastelaria, com os olhos voltados na direção de Holcroft. O homem não sabia que fora notado, Noel tinha certeza disso. Estava muito tranquilo, interessado apenas em comer o seu doce. Tinha os seus objetivos sob vigilância e tudo estava bem. Holcroft disse a Helden, que estava ao seu lado:

- Já vi o presente que lhe quero dar.

- Nem pense nisso...

- Espere-me aqui que eu já volto.

- Vou esperar ali - disse ela, apontando uma barraca onde se vendiam objetos de estanho.

- Está bem. Até já.

Noel começou a abrir caminho por entre a multidão. Se ele conseguisse dissimular suficientemente a sua presença, poderia chegar à orla da feira sem ser visto pelo homem. Uma vez no passeio, não teria dificuldade em aproximar-se lentamente da barraca de doces.

Chegou ao passeio. O homem não o tinha visto. Comprara outro doce e o comia distraidamente, ao mesmo tempo em que se erguia nas pontas dos pés e olhava para o povo que enchia a praça. De repente, pareceu descontrair-se. Tinha avistado Helden a alguma distância e chegara certamente à conclusão de que Noel devia andar por perto.

Noel fingiu que estava com algum problema no pé e começou a coxear, meio curvado. Não havia meio de ser visto pelo homem.

Aproximou-se assim a alguns metros apenas da barraca de doces. Ficou ali algum tempo, observando bem o homem. Havia nele alguma coisa de primitivo e rude. Estava parado, comendo, levantando de vez em quando a vista para certificar-se de que Helden continuava no mesmo lugar. Holcroft teve a impressão de que estava diante de um animal predatório. Não podia ver-lhe os olhos, mas calculava que fossem frios e vigilantes. Foi tomado de raiva ao lembrar-se de que um homem como aquele, com uma pistola apontada para a cabeça de um velho que dirigia um carro, tinha esperado o momento em que Richard Holcroft surgisse num passeio de Nova York. Era a ideia da frieza e da covardia da manobra que o enchia de raiva.

De repente, Noel se viu bloqueado. Bloqueado! Logo que separou um homem e uma mulher à sua frente para passar, um homem surgiu diante dele com o rosto virado para o lado, a impedir-lhe deliberadamente a passagem com o corpo.

- Saia da minha frente! Deixe-me passar!

Viu então que os seus gritos e o seu inglês tinham alarmado o homem louro, que deixou cair a torta que comia e se voltou. Os olhos dele estavam desvairados e o rosto, vermelho. Rodou nos calcanhares e saiu pelo meio da multidão, afastando-se de Noel.

- Saia da minha frente!

Holcroft sentiu mais do que viu alguma coisa rasgar-lhe o paletó, fazendo o forro cair sobre seu bolso esquerdo. Olhou incredulamente. Uma faca fora brandida contra ele. Se não tivesse virado o corpo naquele instante, a faca lhe teria entrado na carne.

Agarrou o punho que segurava a faca, afastando-o do seu corpo, ao mesmo tempo que empurrava com o ombro ó peito do atacante. O homem continuava com o rosto virado para o lado. Quem era ele? Não havia tempo para pensar nesse problema. Tinha de mandar para longe aquela terrível faca!

Noel deu um grito. Curvou-se, com o punho do inimigo apertado nas duas mãos. A lâmina era torcida pelo homem que procurava feri-lo, mas Noel virava o corpo no seu esforço, batendo nas pessoas que estavam próximas. Puxou a mão com a faca para baixo e caiu, arrastando o homem na queda. A lâmina caiu ruidosamente nas pedras do calçamento.

Alguma coisa lhe bateu no pescoço. Embora atordoado, percebeu que fora atingido por um cano de ferro. O terror e a confusão o invadiam, mas ele sabia que não podia ficar indefeso no chão. O instinto fê-lo levantar-se. O medo deu-lhe a decisão de resistir. Preparou-se para um ataque e procurou os seus inimigos.

Mas tinham desaparecido! O homem de quem não pudera ver o rosto não estava mais ali. A faca no chão também desaparecera. E a multidão fazia um claro em volta dele, como se ele estivesse desequilibrado.

De repente, uma ideia terrível lhe surgiu no espírito. Se estavam dispostos a matá-lo, podiam também matar Helden! Se os homens que protegiam o homem de rosto marcado sabiam que Noel o havia visto, presumiriam que Helden também o vira e haviam de querer matá-la!

Saiu correndo, desvencilhando-se de uns e de outros, na direção onde Helden devia estar.

Foi difícil encontrar a barraca de objetos de estanho, mas Helden não estava lá, nem nas imediações. Correu ao balcão da barraca.

- Uma mulher! Uma loura que estava aqui!

- Pardon. Je ne parle pas...

- Une femme... Aux cheveux blonds! Elle a été ici!

O homem da barraca deu de ombros e continuou a polir um vaso de estanho.

- Où est-elle?

- Vous êtes fou! Voleur! Police!

- Non! S’il vous plaît! Une femme aux...

- Ah! Une blonde. Dans ce sens - disse o homem da barraca, apontando para a esquerda.

Holcroft afastou-se da barraca e voltou a abrir caminho por entre a multidão. Tinha certeza de que matara Helden. Procurava com os olhos vigilantes por toda parte, em todos os corredores, em cada cor de olhos, em cada tom de cabelos.

- Helden!

De repente, deram-lhe um murro por trás no lado direito dos rins, ao mesmo tempo em que lhe passavam um braço em volta do pescoço, tirando-lhe o ar. Atingiu com toda a força o assaltante, com o cotovelo direito. O homem o arrastava para trás no meio da multidão. Já estava sentindo falta de ar, mas continuou a golpear o desconhecido desesperadamente com os cotovelos. Devia ter acertado o outro em cheio nas costelas, pois a pressão do braço em seu pescoço se afrouxou por um instante. Esse instante foi bastante. Virou o corpo para a esquerda e agarrou o braço que lhe cingia o pescoço, fazendo pressão para baixo e derrubando o assaltante. Caíram ambos ao chão.

Noel viu então o rosto! Abaixo dos cabelos ruivos desgrenhados, a pequena cicatriz na testa e, mais abaixo, os coléricos olhos azuis. Era o mais moço dos dois agentes secretos da Seção Cinco que o haviam interrogado no hotel de Londres. A raiva de Noel foi completa e a sua loucura se baseava num terrível erro que não fora corrigido. O serviço secreto inglês se imiscuíra no caso e isso podia ter custado a vida de Helden.

Mas, por quê? Por que ali, naquela obscura aldeia francesa? Não sabia. Sabia apenas que aquele homem, cuja garganta passara a apertar, era seu inimigo, tão perigoso para ele quanto os terroristas do Rache ou do ODESSA.

- Levante-se!

Holcroft levantou-se e puxou o homem. O seu erro foi soltar momentaneamente o agente. Sem aviso, um golpe terrível lhe martelou o estômago. Sentiu tudo turvo diante dos olhos e, durante alguns instantes, só teve consciência de ser arrastado através de um mar de rostos espantados. Foi então arremessado de encontro a uma parede e ouviu a batida de sua cabeça na superfície dura.

- Idiota! Que é que você pensava que estava fazendo? Quase que o matam!

O agente secreto não gritou, mas bem podia fazê-lo, tão intenso era o seu tom. Noel conseguia afinal enxergar direito. O homem o agarrava de novo e tinha outra vez o braço passado pelo seu pescoço.

- Cachorro! - exclamou ele. - Quem me quis matar foi você!

- Você é doido varrido, Holcroft! O Tinamou não vai tocar em você. Tenho de tirá-lo daqui.

- O Tinamou está aqui?

- Vamos!

- Não! Onde está Helden?

- Certamente não está conosco. Acha que somos loucos?

Noel olhou para o homem e compreendeu que ele estava dizendo a verdade.

- Levaram-na, então, pois ela desapareceu!

- Se desapareceu foi porque quis. Tentamos avisá-lo. Deixe para lá.

- Não! Havia um homem com o rosto marcado de varíola...

- Num Fiat?

- Sim. Ele estava me seguindo. Tentei atacá-lo, e os homens dele me interceptaram e quase me mataram.

- Venha comigo - ordenou o agente, agarrando o braço de Holcroft e levando-o pelo passeio.

Chegaram a uma viela sombria e estreita entre dois prédios. Nenhum raio de sol ali penetrava. Tudo estava mergulhado em sombra. A viela estava cheia de latas de lixo. Adiante da terceira lata de lixo, à direita, viam-se as pernas de uma pessoa sentada. O rosto estava oculto pela lata.

O agente entrou com Noel pela viela e em quatro ou cinco passos puderam ver quem estava sentado ali.

À primeira vista, o homem com o rosto marcado parecia embriagado. Tinha na mão uma garrafa de vinho tinto que se tinha derramado pelas suas calças. Mas a mancha que se lhe espalhava pelo peito era de um vermelho diferente.

O homem fora morto a bala.

- Aí está o seu assassino - disse o agente. - Vai escutar-nos agora? Volte para Nova York. Diga-nos o que sabe e desista do resto.

A cabeça de Noel ferveu, envolta em névoa de confusão. Tinha havido morte violenta nos céus, morte em Nova York, morte no Rio, morte naquela pequena aldeia francesa. O Rache, o ODESSA, os sobreviventes da Wolfsschanze...

Nada mais será o mesmo para você...

Olhou para o homem da Seção Cinco e disse numa voz que era um simples sussurro:

- Será que não compreende? Não posso...

Houve uma súbita agitação no fundo da viela. Dois vultos passaram correndo, um empurrando o outro. Ouviram-se gritos guturais, ásperos. Não se podiam distinguir as palavras, mas a violência era evidente. Gritos de socorro foram abafados por golpes repetidos. Por fim, os dois vultos desapareceram, mas Holcroft ouviu o grito.

- Noel! Noel!

Era Helden! Holcroft teve um assomo de energia e soube o que tinha de fazer. Com toda a sua força, meteu o ombro no corpo do agente, que caiu sobre a lata de lixo atrás da qual estava o cadáver do homem de rosto marcado. Correu, saindo da viela.


21

Os gritos continuaram, não era possível saber a que distância, pois a multidão na praça confundia tudo, fazendo muito barulho. Havia muita música de concertinas e pistões. No centro de um espaço, alguns pares dançavam.

- Noel! Noel!

Era do passeio que fazia uma curva ao lado esquerdo da praça que vinham os gritos. Holcroft corria a toda velocidade e colidiu com um casal de namorados encostados a uma parede.

- Noel!

Entrou por uma rua marginada de prédios de três andares. Embarafustou por ela, ouvindo de novo o grito, mas sem palavras, nem nome. Só um grito, interrompido pelo impacto de um golpe que produziu um grito de dor...

Oh! Ele tinha de encontrar Helden!

Uma porta! Era uma porta parcialmente aberta no quarto prédio à direita. Dali é que tinha vindo o grito!

Correu para a porta e se lembrou de que tinha uma pistola no bolso, mas nunca a havia examinado. Parou um instante na entrada e olhou a pistola.

Entendia pouco de pistolas, mas conhecia aquela. Era uma automática Budischowsky TP-70, do mesmo tipo da que Sam lhe emprestara em Costa Rica. A coincidência não lhe deu confiança; ao contrário, fê-lo sentir-se mal. Aquele não era o seu mundo.

Verificou a trava de segurança e entrou num longo corredor, estreito e mal-iluminado. Na parede do lado esquerdo, talvez a seis metros uma da outra, havia duas portas. Do que sabia daquele tipo de estrutura, devia haver duas portas também no lado direito. De onde estava não podia vê-las.

Puxou a pistola e avançou. Quatro portas. Helden devia estar atrás de uma delas. Mas qual? Encostou o ouvido à primeira porta à esquerda.

Havia um som áspero, vago, difícil de identificar. Estavam rasgando pano? Torceu a maçaneta e abriu a porta com a pistola em posição de fogo.

Do outro lado da sala escura, uma velha esfregava o chão. Estava de perfil, tinha as feições magras e bambas e passava o braço em círculos na madeira do assoalho. Era tão velha que não o viu nem ouviu. Holcroft fechou a porta.

Uma fita preta estava pregada na porta à direita. Uma morte tinha ocorrido por trás daquela porta; uma família devia estar reunida para o velório. A ideia era enervante. Escutou.

Era ali! Estava havendo uma luta. Respirações precipitadas, movimento, desespero. Era ali que Helden estava!

Noel recuou um pouco, com a automática levantada, o pé erguido. Respirou fundo e meteu o pé na porta à esquerda da maçaneta. Com a força do pontapé, a porta se despedaçou.

Dentro, numa cama suja, estavam dois adolescentes nus, um rapaz de cabelos pretos e uma moça de pele clara. O rapaz estava por cima dela com as duas mãos nos seios da moça, que tinha as pernas levantadas. Ao ouvir o barulho da porta arrombada e ao ver o desconhecido, a moça deu um grito. O rapaz deu um salto da cama com a boca aberta de espanto.

O barulho da porta arrombada fora um alarma! Holcroft saiu pelo corredor e chegou à segunda porta à esquerda. Não se preocupava mais com coisa alguma a não ser encontrar Helden. Meteu o ombro na porta, ao mesmo tempo que girava a maçaneta. Não era preciso fazer força. A porta se abriu.

Noel parou junto à porta, envergonhado. Encostado à parede, junto à uma janela, estava um cego. Era velho e tremia ante a violência desconhecida que lhe invadia a intimidade.

- Nom de Dieu... - murmurou ele, estendendo as mãos para a frente.

Holcroft ouviu um tropel de passos no corredor. Voltou-se rapidamente a tempo de ver passar o agente da Seção Cinco. Logo depois, houve um barulho de vidros quebrados. Noel saiu do quarto do cego e olhou para a esquerda, de onde tinha vindo o barulho de vidros quebrados. A luz do sol entrava por uma porta aberta ao fundo do corredor. Os seus vidros estavam pintados de preto e, por isso, ele não vira a porta à luz fraca do corredor.

Como o agente sabia que havia uma porta ali? Por que a arrombara e correra para fora? Julgaria o homem da Seção Cinco que ele passara por ali? O instinto lhe dizia que o agente secreto não lhe dava muita importância, julgando-o um amador. Devia estar no encalço de outra pessoa.

Só podia ser Helden! Mas Helden estava na porta fronteira ao quarto do cego. Era o único lugar que restava. Tinha de estar ali. O agente estava errado. Holcroft deu um pontapé na porta. O ferrolho cedeu, a porta se abriu e ele entrou correndo.

O quarto estava vazio desde muito tempo. Havia camadas de poeira por toda parte e não se viam marcas de pés. Ninguém entrara ali havia muitas semanas.

O agente secreto estava certo. O amador não vira alguma coisa que o profissional percebera.

Noel saiu correndo do quarto vazio. Foi pelo corredor e saiu pela porta despedaçada. Foi dar num pátio. À esquerda, havia uma pesada porta de madeira que dava para a viela. Estava aberta, e Holcroft passou por ela. Ouviu o barulho da feira na praça, mas a viela estava em silêncio. Ouviu então ao longe, na rua deserta, um grito abafado como das outras vezes. Correu na direção do grito e de Helden, mas não viu ninguém.

- Volte!

A ordem vinha de uma porta.

Houve um tiro, alguma coisa se despedaçou acima dele e ele ouviu o silvo alarmante de uma bala em ricochete.

Noel jogou-se ao chão, sobre as pedras irregulares do calçamento. Quando estendeu a mão para amortecer a queda, tocou com o dedo o gatilho da pistola. A arma disparou perto do seu rosto. Alarmado, rolou pelo chão até a porta de onde lhe viera a ordem. Alguém o agarrou e puxou-o para a sombra. O homem da Seção Cinco levou-o para a entrada de pedra.

- Torno a dizer que você é um idiota! Devia era matá-lo e evitar uma porção de problemas.

O agente estava agachado e olhava cautelosamente para a rua.

- Não acredito em você! Não acredito em nada disso! Onde está ela?

- O sujeito está com ela a cerca de vinte metros daqui. Tenho a ideia de que ele tem um rádio e falou com um carro.

- Vão matá-la!

- Agora, não. Não sei por quê, mas creio que é porque ela é irmã dele.

- Pare com isso! Você está errado! Ele não é o Tinamou coisa nenhuma! Mas é louco como o diabo. É capaz de escrever no jornal dele um artigo que fará o Foreign Office e todo o governo inglês ficarem furiosos.

O agente secreto olhou para Holcroft. Parecia um homem a observar os delírios de um psicopata, com partes iguais de repulsa e espanto.

- Ele, você... Que é que está dizendo?

- Ouviu muito bem o que eu disse.

- Ora... Seja você quem for, esteja envolvido no que estiver, não está nem remotamente relacionado com isso.

- Foi o que eu lhe disse em Londres. Pensou que eu estivesse mentindo?

- Sabíamos que você estava mentindo. Só não sabíamos por quê. Pensamos que estava sendo usado por pessoas que queriam entrar em contato com Von Tiebolt.

- Para quê?

- Para fazer um contrato cego, sem que nenhum dos lados se expusesse. Tinha uma boa cobertura: dinheiro deixado nos Estados Unidos para a família.

- Mas, para quê?

- Deixe isso para depois. Você quer a moça, eu quero o sujeito que está com ela. Sabe usar essa pistola que está em sua mão?

- Tive de usar uma vez uma pistola como esta. Mas não sou perito.

- Não é preciso que seja, pois o alvo será muito grande. Se não estou enganado, estão aí com um carro.

- Não tem um carro também?

- Não. Estou sozinho. Agora, escute. Se um carro entrar por aqui, terá de parar. Nesse momento, vou correr em direção àquela porta. Enquanto eu estiver correndo, você me dará proteção, atirando diretamente no carro. Aponte para o para-brisa. Atinja os pneus, o radiador, pouco importa, mas tente acertar no para-brisa. Atire e imobilize o carro, se puder, e reze para que a polícia local não saia da sua festança na praça.

- E se a polícia vier, se alguém...

- Procure não acertar ninguém, cretino! - exclamou o inglês. - E concentre o fogo no lado direito do carro, isto é, no seu lado direito. Exponha-se o menos possível.

- Do meu lado direito?

- Claro, a menos que você queira acertar a moça, o que, aliás, pouco me interessa. O que eu quero é o homem. É claro que, se eu estiver errado, nada disso terá cabimento, e nós teremos de pensar em outra coisa.

O rosto do agente estava colado à pedra do portal. Esticou a cabeça um pouco para a frente, a fim de olhar para a rua. A floresta desconhecida pertencia a homens assim e não a arquitetos bem-intencionados.

- Você não se enganou naquele prédio velho - disse Noel. - Sabia que havia uma saída.

- Claro. Ninguém que valha o sal que come ia deixar-se cair numa armadilha lá dentro.

Mais uma vez, o profissional estava certo. Noel ouviu o ranger dos pneus de um carro numa esquina invisível aproximando-se rapidamente. O agente aprumou o corpo e fez sinal a Holcroft para que o seguisse. Olhou para a rua, com o braço dobrado sobre o peito e a pistola na mão.

Houve outro ranger de pneus e o carro parou. O agente gritou para Holcroft, ao mesmo tempo que saltava no meio da rua. Disparou duas vezes na direção do carro e saiu correndo pela rua.

- Agora!

Foi um breve pesadelo, intensificado na sua realidade pelos barulhos de coisas quebradas e pela movimentação frenética. Noel teve consciência de que estava mesmo fazendo aquilo. Via a automática na extremidade do seu braço, segura por sua mão. Sentia as vibrações que lhe percorriam o corpo todas as vezes que apertava o gatilho. Tinha de atirar no carro do seu lado direito, a menos que... Tentou desesperadamente ser certeiro na sua pontaria. Atônito, viu o para-brisa rachar-se e despedaçar-se. Ouviu balas que batiam na porta. Ouviu os gritos de um ser humano... e viu essa criatura sair do carro e cair nas pedras da calçada. Era o motorista. Ficou com os braços estendidos à frente dele, com o sangue a escorrer-lhe da cabeça. Estava imóvel.

Do outro lado da rua, viu o homem da Seção Cinco sair de uma porta todo encolhido, levando a pistola à frente. Ouviu então a ordem:

- Deixe a moça! Você não pode sair!

- Nie und nimmer![17]

- Então ela pode ir com você. Pouco se me dá! Corra para a direita, moça! Agora!

Duas explosões quase simultâneas e um grito de mulher ecoaram através da rua. Noel ficou inteiramente perturbado. Correu pela calçada, com medo de pensar, com medo do que poderia ver, com medo de encontrar o que não queria encontrar.

Helden estava de joelhos, tremendo e sacudida por incontroláveis soluços. Olhava para o homem morto, estendido ao seu lado no chão. Mas ela estava viva. Era só o que interessava a Noel. Correu para ela e abaixou-se a seu lado, apertando contra o peito a cabeça trêmula.

- Ele... Ele - murmurou ela, afastando Noel. - Depressa!

- O quê? - perguntou Noel, acompanhando-lhe o olhar.

O agente da Seção Cinco se arrastava pelo chão. Abria e fechava a boca tentando falar, mas não articulava qualquer palavra. Na frente de sua camisa havia uma mancha vermelha que se alastrava.

Uma pequena multidão se reunia na esquina que dava para a praça. Três ou quatro homens deram alguns passos tímidos pela rua.

- Pegue-o - disse Helden. - Pegue-o depressa.

Ela era capaz de pensar e ele não; ela podia tomar uma decisão e ele se sentia paralisado.

- Que é que vamos fazer? Que é que vamos fazer?

Era só o que ele podia dizer, e não sabia nem ao certo se era ele mesmo que falava.

- Essas ruas são todas ligadas. Temos de levá-lo daqui.

- Por quê?

Helden arregalou os olhos.

- Ele me salvou a vida! Salvou sua vida também! Depressa!

Tinha de fazer o que ela mandava. Não podia pensar por si mesmo. Levantou-se e foi até onde estava o agente, curvou-se sobre ele com o rosto perto do dele. Viu os olhos azuis desgarrados, a boca que lutava para dizer alguma coisa e não podia.

O homem estava morrendo.

Noel levantou o corpo do homem, mas ele não pôde ficar em pé. Noel carregou-o então, espantado da sua força. Viu Helden encaminhar-se para o carro parado, cujo motor ainda funcionava. Levou para lá o agente.

- Vou guiar - disse Helden. - Acomode-o no banco de trás.

- Com esse para-brisa quebrado, você não poderá ver direito.

- Você não aguentará carregá-lo por muito tempo.

Os minutos seguintes foram tão irreais para Holcroft como a visão da pistola que ainda levava na mão. Helden fez uma curva completa com o carro, passando com as rodas por cima do passeio e tomando o centro da rua. Sentado ao lado dela, Noel começava a compreender alguma coisa, apesar de toda a confusão. Percebia desapaixonadamente que principiava a adaptar-se àquele terrível mundo novo. A sua resistência à situação estava desaparecendo, como o confirmava o fato de que ele havia agido pouco antes, em lugar de correr. Tinham tentado matá-lo. Tinham tentado matar a moça que estava ao lado dele. Talvez isso explicasse tudo.

- Pode chegar à igreja, Helden? - perguntou ele, admirado da sua calma.

- Acho que sim. Por quê?

- Não podemos seguir neste carro, ainda que você possa ver o caminho. O radiador foi furado pelas balas. Vamos para a igreja.

Ela seguiu com o carro, orientando-se mais por instinto no labirinto de ruas e vielas que se irradiavam da praça. Os últimos momentos foram terríveis. Muitas pessoas corriam ao lado do carro, gritando nervosamente. Durante alguns momentos, Noel pensou que era o para-brisa despedaçado pelas balas que atraía a atenção das pessoas, mas não era. Alguns homens correram para a praça, espalhando a notícia:

- Des gens assassinées! La tuerie![18]

Helden entrou na rua que dava para os fundos da igreja e foi parar ao lado do carro alugado. Holcroft olhou para o banco de trás. O agente secreto estava encolhido no canto e ainda respirava. Fez um gesto como se estivesse pedindo que Noel se aproximasse.

- Vamos trocar de carro e levá-lo a um médico - disse Holcroft.

- Escute primeiro, idiota - murmurou o inglês. Olhou para Helden. - Diga a ele que escute.

- Escute-o, Noel.

- Que é?

- Payton-Jones... Tem o telefone dele?

Holcroft se lembrou do nome no cartão que o agente mais velho lhe dera no hotel de Londres e disse:

- Tenho, sim.

- Telefone para ele... e diga tudo o que aconteceu...

- Você mesmo pode dizer a ele - disse Noel.

- Deixe de conversa. Diga a Payton-Jones que há uma complicação que não conhecíamos. O homem que pensávamos que fora mandado pelo Tinamou, o homem de Von Tiebolt...

- Meu irmão não é o Tinamou - disse Helden.

O agente olhou-a por entre as pálpebras semicerradas.

- Talvez tenha razão, moça. Eu não pensava assim, mas pode estar certa. Só sei que o homem que os seguiu no Fiat trabalha para Von Tiebolt.

- Ele nos seguiu para proteger-nos. Para saber quem estava seguindo Noel.

Holcroft voltou-se para ela.

- Você sabia disso?

- Sabia. Nosso almoço de hoje foi ideia de Johann.

- Muito obrigado!

- Por favor, você não compreende essas coisas. Meu irmão compreende. E eu também.

- Tentei preparar uma armadilha para aquele homem, Helden! Ele foi assassinado!

- Como? Oh, meu Deus!

- É essa a complicação - disse o agente a Noel. - Se Von Tiebolt não é o Tinamou, que é ele? Por que mataram o homem dele? E por que aqueles dois homens tentaram sequestrar a moça e matá-lo? Quem eram aqueles homens? Temos a pista do carro. Deve ser seguida.

O inglês deu um suspiro. Noel aproximou-se dele, mas o inglês fez sinal que se afastasse.

- Escute apenas. É preciso apurar de quem é aquele carro. É essa a complicação.

O agente quase não podia mais manter os olhos abertos. O que dizia mal podia ser ouvido. Era evidente que estava nos seus últimos instantes. Noel curvou-se sobre ele.

- Essa complicação tem alguma coisa que ver com um homem chamado Peter Baldwin?

Foi como se o moribundo tivesse levado um choque elétrico. Arregalou os olhos e as pupilas amortecidas recobraram uma chispa de vida.

- Baldwin?

- Ele telefonou para mim em Nova York. Disse-me que não fizesse o que estava fazendo. Disse que sabia de coisas que ninguém mais sabia. Foi morto uma hora depois.

- Baldwin estava dizendo a verdade. Nunca acreditamos nele. Estava agindo no vácuo. Tínhamos certeza de que ele estava mentindo...

- Mentindo sobre quê?

O homem da Seção Cinco olhou para Noel e depois para Helden, dizendo com voz arquejante:

- Há muito pouco tempo... Você merece confiança... senão não teria dito o que disse... Confio nos dois... Procurem Payton-Jones com urgência... Digam que veja a pasta de Baldwin... Código Wolfsschanze... É a Wolfsschanze...

A cabeça do agente descambou para a frente. Estava morto.


22

Correram para o norte pela estrada de Paris, enquanto o fim de tarde banhava o campo de raios alaranjados e amarelos. O sol de inverno era o mesmo em toda parte. E Holcroft era grato a essa constância.

Código Wolfsschanze. É a Wolfsschanze.

Peter Baldwin tinha sabido de Genebra. Tinha tentado dizer tudo à Seção Cinco, mas os céticos do serviço secreto inglês não haviam acreditado nele.

Estava agindo no vácuo!

Que é que ele estava fazendo? Que é que ele procurava? Quem era Peter Baldwin?

Quem tinha sido Peter Baldwin?

Quem era Von Tiebolt... Tennyson?

Se Von Tiebolt não é o Tinamou, que é ele? Por que mataram o homem dele? E por que aqueles dois homens tentaram sequestrar a moça e matá-lo?

Por quê?

Ao menos, um problema estava posto à margem. John Tennyson não era o Tinamou. Fosse o que fosse o filho de Wilhelm von Tiebolt - e podia ser muito perigoso para Genebra -, não era um assassino. Mas então quem era ele? Por que se envolvera com assassinos? Por que havia homens no encalço de Noel e, por extensão, da irmã de Tennyson?

Essas perguntas impediam Noel de pensar nos acontecimentos daquelas últimas horas. Explodiria se pensasse. Três homens tinham sido mortos, um pelas suas mãos. Fora morto num tiroteio, numa viela de uma remota aldeia francesa durante uma feira local. Era uma verdadeira loucura.

- Que é que você acha que a Wolfsschanze representa? - perguntou Helden.

- Eu sei o que a Wolfsschanze representa - disse ele.

Ela o olhou, surpresa.

Noel contou-lhe então tudo o que sabia sobre os sobreviventes da Wolfsschanze. Pouco adiantava a essa altura ocultar os fatos. Quando ele acabou, Helden ficou em silêncio. Pensou que talvez a tivesse levado muito longe num conflito de que ela não queria participar. Ela dissera havia poucos dias que, se ele não procedesse de acordo com as instruções dela, deixaria Paris e ele nunca mais a veria. Iria fazer isso agora? Seria a ameaça da Wolfsschanze uma carga que ela não podia aceitar?

- Está com medo? - perguntou ele.

- É uma pergunta sem sentido, essa.

- Creio que você sabe o que eu quero dizer.

- Sei, sim. Você quer saber se eu vou desistir e fugir, não é isso?

- Creio que sim. E então?

Ela levou alguns instantes para responder. Noel esperou calmamente. Quando ela afinal falou, havia uma tristeza ressoante em sua voz, tão parecida com a da irmã e ao mesmo tempo tão diferente.

- Não posso desistir, do mesmo modo que você não pode. Deixando de lado o senso moral e o medo, um gesto desses nada teria de prático, não acha? Eles nos encontrariam e nos matariam.

- É definitivo isso.

- É realista. Estou cansada de fugir. Não me resta energia para isso. O Rache, o ODESSA e agora a Wolfsschanze. Três grupos de caçadores que se perseguem uns aos outros e a nós. Isso tem de acabar. Dou razão nisso ao Coronel.

- Cheguei à mesma conclusão ontem à tarde. Refleti que, se não fosse por minha mãe, eu fugiria com você.

- O filho de Heinrich Clausen - murmurou Helden pensativamente.

- E de alguém mais - disse Noel. - Estamos de acordo então? Não vamos procurar esse Payton-Jones?

- Não. Estamos de acordo.

- A Seção Cinco nos procurará. Não pode deixar de fazer isso. Tinham um homem encarregado de vigiar-nos e esse homem foi morto. Hão de querer fazer perguntas.

- A que nós não podemos responder. Fomos seguidos, não seguimos ninguém.

- De que grupo seriam aqueles dois homens, Helden?

- Creio que eram do Rache. O estilo é o deles.

- Ou do ODESSA?

- Talvez. Mas o alemão do homem que me capturou era estranho. Não consegui reconhecer o dialeto. O homem não era nem de Munique nem de Berlim. Era muito estranho.

- Como assim?

- Era um alemão muito gutural e, apesar disso, muito suave. Faz sentido?

- Muito, não. Acha então que ele era do Rache?

- Tem importância isso? Devemos proteger-nos de ambos os grupos. Nada mudou. Ao menos para mim. Mas sinto por você - disse ela, tocando-lhe no braço.

- Por quê?

- Porque você agora é um dos nossos, die verwünschte Kinder, os condenados. E você não teve preparação para isso.

- Parece que estou recebendo uma preparação intensiva.

- Você tem de ir a Berlim.

- Eu sei. Temos de andar depressa. Tenho de falar com Kessler e de envolvê-lo em tudo isso, como o último dos descendentes.

Helden sorriu tristemente.

- Você e meu irmão estão prontos e são responsáveis. Agora, é preciso incluir Kessler. O resultado será Zurique, uma solução para muita coisas.

Noel olhou para ela. Não era muito difícil adivinhar em que era que ela estava pensando. Zurique significava recursos inimagináveis que certamente seriam utilizados em parte para enfraquecer e talvez eliminar o ODESSA e o Rache. Holcroft havia testemunhado pessoalmente esses horrores. Ela daria um terço dos votos com a maior facilidade. O irmão concordaria.

- Faremos a agência de Zurique funcionar - disse Holcroft. - Dentro em pouco, você não terá mais de fugir. Nenhum de nós.

Ela olhou para ele pensativamente. Em seguida, aproximou-se e passou a mão pelo braço de Noel. Depois, descansou a cabeça no ombro dele e os seus longos cabelos louros se lhe derramaram pelo paletó.

- Chamei você e você veio para mim - disse ela na sua fria voz flutuante. - Quase morremos hoje à tarde. Um homem deu a vida por nós.

- Era um profissional, Helden. Nossas vidas eram secundárias para ele. Estava em busca de informações e de um homem, que, segundo julgava, poderia dá-las.

- Sei disso. Tenho conhecido homens assim, esses profissionais. Mas até o fim ele foi decente, o que muitos não são. Sacrificam os outros com muita facilidade em nome do seu profissionalismo.

- Como assim?

- Você não tem essa espécie de adestramento e teria feito o que lhe mandassem fazer. Poderia ter sido usado como isca. Teria sido mais fácil para ele deixar você e eu depois de sermos baleados. Eu não era importante para ele. Na confusão, ele poderia ter salvo a própria vida e capturado o homem que procurava. Mas preferiu salvar-nos.

- Para onde iremos em Paris?

- Não vamos para Paris e sim para Argenteuil. Há um pequeno hotel muito agradável à margem do rio.

Noel tirou uma das mãos do volante e lhe acariciou os cabelos.

- Você é linda.

- Estou amedrontada. Tenho de afugentar o medo.

- Argenteuil? Um pequeno hotel em Argenteuil? Você parece conhecer uma porção de lugares, embora só esteja há alguns meses na França.

- É preciso conhecer os lugares onde não fazem perguntas. Aprende-se depressa. Tome a estrada de Billancourt, e ande depressa.

O quarto deles dava para o Sena, com uma pequena varanda de portas envidraçadas bem acima do rio. Ficaram alguns minutos na varanda ao ar da noite, acima das águas escuras. Noel tinha o braço passado pelo corpo dela e nenhum dos dois falava. Havia segurança e conforto naquela proximidade.

Bateram na porta do quarto. Ela teve um sobressalto. Noel sorriu e tranquilizou-a.

- Calma. Enquanto você estava no banheiro, eu pedi uma garrafa de conhaque.

Ela retribuiu o sorriso e disse:

- Devia deixar isso para mim, sabe? Seu francês é intolerável.

- Posso dizer "Remy Martin". Foi uma das primeiras coisas que aprendi na escola.

Holcroft foi até a porta, recebeu a bandeja das mãos do garçom e ficou por um momento contemplando Helden. Ela fechara as portas da varanda e olhava da sacada para o céu noturno. Era uma mulher retraída e solitária, mas estava estendendo as mãos para ele. Compreendia perfeitamente isso.

Gostaria de compreender outras coisas. Helden era bela; essa era a verdade simples, sem qualquer complicação. Não podia deixar de ter consciência de sua beleza. Era muito inteligente, também um atributo tão evidente que não havia necessidade de qualquer comentário. Além de ser inteligente, tinha pleno conhecimento das particularidades do mundo de sombras em que vivia. Era sedutora num sentido amplo, num sentido internacional. Os seus movimentos ágeis e desembaraçados indicavam isso. Não tinha a menor dúvida de que ela usara o sexo muitas vezes para conseguir alguma vantagem, mas sempre de maneira fria e calculada. Dizia claramente que só podia dar o corpo. Os pensamentos eram dela e estes não os daria a ninguém.

Ela saiu da varanda, com os olhos meigos, o rosto sorridente, mas ainda distante, ainda observando.

- Você está com o jeito de um maître d’hôtel impaciente por levar-me à minha mesa.

- Por aqui, mademoiselle - disse Noel, colocando a bandeja em cima da mesa. - Ou prefere uma mesa na varanda? O conhaque vai ser servido e os fogos de artifício vão começar. Os homens com os archotes aguardam apenas a sua presença.

- Mas onde se sentará o meu solícito garçom?

- A seus pés, senhora.

Colocou as mãos nos ombros dela e beijou-a, sem saber se ela ia afastar-se ou repeli-lo.

De qualquer maneira, não estava preparado para o que aconteceu. Os lábios dela eram macios e úmidos e estavam entreabertos, atraindo os lábios dele. Prendeu-lhe o rosto entre as mãos e começou a acariciar-lhe delicadamente as faces, as pálpebras, as têmporas, enquanto os lábios sôfregos se moviam em círculos, atraindo-o. Noel sentia a pressão dos seios em sua camisa e as pernas encostadas à suas, numa doce excitação.

Em seguida, aconteceu uma coisa estranha. Helden começou a tremer. As mãos desceram e se crisparam nas suas costas como se ela tivesse medo de que ele fosse fugir. Podia ouvir-lhe os soluços, sentir as convulsões que lhe sacudiam o corpo. Com as mãos na cintura dela, afastou-lhe um pouco o rosto, forçando-a a olhar para ele.

Estava chorando. Olhou para ele um momento com tamanho sofrimento estampado nos olhos que Noel se sentiu um intruso, invadindo a intimidade dela.

- Que é?

- Faça o medo ir-se embora - sussurrou ela.

Começou a desabotoar a blusa e exibiu a plenitude dos seios.

- Não posso ficar sozinha. Livre-me do medo, Noel.

Ele a abraçou ternamente.

- Você não está sozinha, Helden. Nem eu.

Estavam nus sob as cobertas. Noel tinha o braço passado pelo corpo dela e a cabeça de Helden descansava em seu peito. Com a mão livre, ele começou a levantar os longos cabelos louros e a deixá-los cair sobre o rosto dela.

- Não posso ver nada quando você faz isso - disse ela, rindo.

- Fica parecendo um cãozinho lanzudo.

Helden ergueu o indicador e bateu nos lábios dele. Ele pegou o dedo, mordeu-o de leve e rugiu.

- Você não consegue me assustar, Noel. É um leão covarde. Ruge, mas não morde.

- Leão covarde? Como o do Mágico de Oz?

- Sim, adorei O mágico de Oz. Fui ver o filme uma porção de vezes, no Rio. Foi então que comecei a aprender inglês. Queria que me chamassem Dorothy e dei a um cachorrinho que eu tinha o nome de Toto.

- É difícil imaginar você como uma menina.

- E era bem pequena, sabe? Não me desenvolvi depressa...

Ela riu e parou. Tinha levantado o corpo e os seios estavam à altura do rosto de Noel. A mão dele se dirigiu instintivamente para o bico do seio esquerdo Ela deu um gemido de prazer e manteve a mão dele sobre o seio enquanto descia o corpo para descansar de novo a cabeça no peito dele.

- De qualquer maneira, fui uma menina que às vezes era muito feliz.

- Quando?

- Quando estava sozinha. Tive sempre meu quarto. Minha mãe nunca deixou de cuidar disso. Era sempre nos fundos da casa ou do apartamento. Quando estávamos num hotel, eu sempre tinha meu quarto separado de minha irmã e meu irmão. Minha mãe dizia que eu ainda era pequena e não podia ser perturbada por eles, que gostavam de ficar acordados até bem tarde.

- Devia sentir-se bem, sozinha...

- Nada disso! Nunca ficava sozinha... Na minha imaginação, eu tinha muitas amigas, que ficavam no meu quarto, sentavam-se em minha cama e contavam-me os segredos...

- Não tinha amigas de verdade na escola?

Helden ficou em silêncio por um momento.

- Algumas, mas eram poucas. Pensando naquele tempo, não as posso culpar. Eram todas meninas e tinham de fazer o que os pais mandavam. Bem entendido, aquelas que ainda tinham pais.

- Que é que os pais diziam a elas?

- Que eu era uma Von Tiebolt. Uma menina de nome esquisito, filha de uma mãe que... Bem, creio que a má reputação de minha mãe se refletia sobre a minha pessoa.

Podia ser a reputação da mãe dela. Mas o ODESSA de Maurice Graff devia ter motivos mais importantes, como, por exemplo, incontáveis milhões desviados do seu amado Reich por traidores como Wilhelm von Tiebolt.

- As coisas melhoraram quando você cresceu?

- Certamente. Ajustei-me, amadureci, passei a compreender algumas atitudes que não compreendia quando era criança.

- Fez mais amigas?

- Mais íntimas, sim, mas não mais numerosas. Eu nunca fui muito sociável. Compreendia por que não me convidavam para festas e jantares, ao menos nas casas mais respeitáveis. Os anos reduziram as atividades sociais de minha mãe, mas não os seus interesses comerciais. Ela era evitada pelos próprios alemães. E, na verdade, os alemães não eram muito bem-vistos no Rio, naquela época.

- Por quê? A guerra já não havia acabado?

- A guerra, sim, mas não as consequências. Os alemães eram uma preocupação constante, com transações ilegais, criminosos de guerra escondidos, pesquisadores israelenses... Isso se estendeu por muitos anos.

- Você é tão bela que é difícil pensar que pudesse viver isolada.

Helden se levantou e olhou para ele. Sorriu e puxou os cabelos para trás.

- Eu era muito carrancuda, querido. Usava os cabelos corridos e presos num coque, óculos enormes e vestidos sempre maiores do que o meu manequim normal. Naquele tempo, você não teria olhado duas vezes para mim. Não acredita?

- Não estou mais pensando nisso.

- Em que é que está pensando?

- Você me chamou de "querido"...

Ela o olhou bem nos olhos.

- Chamei, sim. Pareceu-me bem natural. Você se importa?

Ele lhe abriu os braços como única resposta.

Ela estava sentada na poltrona, bebericando conhaque. Noel estava sentado no chão ao lado dela, encostado no pequeno sofá, de cuecas e camisa desabotoada. Davam-se as mãos e olhavam as luzes dos barcos que passavam no rio.

Ele olhou para ela e perguntou:

- Está se sentindo melhor?

- Muito melhor, querido. Você é um homem muito gentil. Não tenho conhecido muitos em minha vida.

- Não acredito.

- Não, não me leve a mal. Para seu governo, sou chamada, nos círculos do Coronel, de Fräulein Eiszapfen.

- Que quer dizer isso?

- Srta. Pedaço de Gelo. E no lugar onde eu trabalho todo mundo está convencido de que sou lésbica.

- Mande essa gente falar comigo.

- Prefiro não mandar.

- Direi que você é ainda por cima masoquista e que adora surras de chicote e de correntes de bicicleta. Todos fugirão de você, e é o que eu quero.

- Você é um amor - disse ela, beijando-o. - Ardente, gentil e bem-humorado. Estou gostando muito de você, Noel Holcroft, e não sei se isso é uma boa coisa.

- Por quê?

- Porque depois nos despediremos e eu não poderei deixar de pensar em você.

Noel pegou a mão dela e se mostrou alarmado.

- Despedir-nos por quê? No máximo, diremos "até já" um ao outro.

- Você tem o que fazer. Eu também tenho o que fazer.

- Nós dois temos Zurique.

- Você tem Zurique. Eu tenho minha vida em Paris.

- Uma coisa não impede a outra.

- Isso você não pode saber, querido. Você não sabe nada de minha vida. Onde eu vivo, como eu vivo...

- Sei apenas de uma menina que tinha um quarto para ela só e que viu O mágico de Oz uma porção de vezes.

- Pense bem dela. Ela pensará bem de você. Sempre.

- Escute aqui, Helden, que é que você está querendo me dizer? Obrigada por uma noite agradável e agora adeus?

- Não, meu querido. Isso não. Agora não.

- Que é então que está dizendo?

- Não sei ao certo. Talvez esteja pensando em voz alta... Podemos ter muitos dias, até semanas, se você quiser.

- Quero, sim.

- Prometa então que não tentará saber onde eu moro e não me procurará. Eu o procurarei.

- Você é casada!

Helden riu.

- Não.

- Vive então com alguém?

- Vivo, mas não do jeito que você pensa.

- Que é que acha que eu devo dizer depois de ouvir isso?

- Diga que promete.

- Deixe ver se compreendo. Fora do seu trabalho, não há lugar onde eu possa falar com você. Não posso saber onde mora, nem comunicar-me com você.

- Vou dar-lhe o telefone de um amigo. Numa emergência, poderá falar comigo.

- Pensei que era seu amigo.

- E é, mas de maneira diferente. Por favor, não se zangue. Só faço isso para protegê-lo.

Holcroft se lembrou do que acontecera três noites antes. Helden se preocupara com ele, pensando que ele fora mandado por outras pessoas.

- Você disse no carro que Zurique era a solução para muita coisa. Isso se aplica também a você? Poderá Zurique modificar o seu jeito de viver?

- É possível. Há tanto para fazer.

- E tão pouco tempo... Mas, antes que o dinheiro seja liberado, há o banco em Genebra e condições específicas que têm de ser preenchidas.

- Compreendo. Você explicou essas condições e eu tenho certeza de que Johann sabe delas.

- Isso é que eu não sei. Há sobre ele tantas especulações que ele pode ser derrubado.

- Derrubado como?

- Pode ser considerado sem as qualificações necessárias. Se os homens de Genebra tiverem algum receio, fecharão os cofres. Falarei dele daqui a pouco. Agora, quero falar de Beaumont. Creio que sei o que ele é, mas preciso de sua ajuda para a confirmação.

- Como posso ajudar?

- Quando Beaumont esteve no Rio, teve qualquer relacionamento com Maurice Graff?

- Não faço a menor ideia.

- Podemos apurar isso? Há alguém no Rio que possa informar-nos?

- Que eu saiba, não.

- Mas temos de saber tudo o que for possível a respeito dele.

Helden franziu a testa.

- Isso vai ser difícil.

- Por quê?

- Há três anos, quando Gretchen disse que ia casar-se com Beaumont, eu tive um choque. Já lhe disse isso. Eu estava trabalhando nessa época numa pequena firma de investigação na Leicester Square. Era uma dessas firmas meio clandestinas que recebem cinco libras e fornecem em troca todas as informações desejadas pela pessoa. As informações são superficiais, mas a firma sabe utilizar as fontes de que dispõe.

- Você tentou conseguir informações sobre Beaumont?

- Tentei. Não sabia o que estava procurando, mas tentei. Consultei os registros universitários e examinei todas as informações possíveis sobre a carreira naval do homem. Só encontrei elogios, citações, prêmios e promoções. Não sei por quê, mas tive a impressão de que havia em tudo aquilo certa incoerência. Procurei então descobrir o que pudesse sobre a família dele na Escócia.

- Qual era a incoerência?

- Bem, de acordo com os seus assentamentos navais, os pais dele eram muito comuns. Tive a impressão de que eram muito pobres. Tinham uma mercearia ou uma loja de flores numa vila chamada Dunheath, ao sul de Aberdeen, na costa do mar do Norte. Mas, quando ele cursou a Universidade de Cambridge, foi como um estudante comum.

- Naturalmente. Poderia ser de outra forma?

- Sendo filho de pais pobres, só poderia estudar na universidade mediante uma bolsa. Mas não houve pedido de bolsa, e isso me pareceu estranho.

- Foi então procurar a família na Escócia? Que foi que apurou?

- Aí é que está a coisa. Não apurei quase nada. Era como se os pais dele tivessem desaparecido. Não havia endereços, nem registros ou qualquer maneira de encontrá-los. Fiz várias investigações no lugar, por exemplo, na prefeitura e nos correios, pontos óbvios em que pouca gente pensa. Pude saber apenas que os Beaumont eram uma família inglesa que tinha chegado à Escócia logo depois da guerra, passou ali alguns anos e depois saiu do país.

- Teriam morrido?

- De acordo com os registros, não. A Marinha mantém esses dados em dia para saber a quem se dirigir no caso de morte ou acidente de qualquer elemento naval. Os pais de Beaumont constavam ainda como residentes em Dunheath, mas já haviam saído de lá e não tinham deixado o seu novo endereço em lugar algum, nem mesmo no correio.

- Parece muito estranho - disse Holcroft.

- Há mais alguma coisa. Um oficial do mesmo navio de Beaumont esteve presente ao casamento de Gretchen. O homem era um ou dois anos mais moço do que Beaumont e evidentemente seu subordinado, mas havia entre eles, como direi, um intercâmbio, que ia além da simples amizade e do relacionamento de um oficial com outro.

- Intercâmbio como?

- Era como se os dois pensassem exatamente da mesma maneira em todas as ocasiões. Um começava uma frase e o outro a concluía. Um se voltava para um lado e o outro dizia para o que o primeiro estava olhando. Sabe o que eu quero dizer? Nunca encontrou pessoas, homens assim?

- Claro. Há irmãos que são assim ligados, ou amantes. Às vezes, isso acontece com pessoas que serviram muito tempo juntas. Que foi que você fez?

- Fiz investigações sobre o outro homem. Empreguei os mesmos processos que tinha usado no caso de Beaumont. E o que apurei foi extraordinário. Os dois eram iguais em tudo. Só os nomes eram diferentes. Os registros escolares e militares de ambos eram quase idênticos e excepcionais em qualquer dos casos. Vinham ambos de cidades pequenas, eram filhos de pais obscuros e pobres. Entretanto, cada um deles frequentara uma universidade importante sem ajuda financeira, e cada um deles se tornara um oficial sem qualquer indicação anterior de pretender seguir uma carreira militar.

- Conseguiu localizar a família do amigo de Beaumont?

- Também não. Constava dos papéis que viviam numa cidade mineira do País de Gales, mas não estavam mais lá. Tinham-se mudado alguns anos antes e ninguém tinha qualquer espécie de informação sobre eles.

O que Helden dizia ajustava-se à hipótese de Noel, segundo a qual Anthony Beaumont era um agente do ODESSA. O que era importante no momento era afastar de cena Beaumont e os seus "associados". Não se podia mais deixar que interferissem com Genebra. Talvez ele e Helden estivessem errados. O melhor seria procurar Payton-Jones e transferir para ele o problema de Beaumont. Mas havia outras consequências a considerar, entre elas o perigo de que o serviço secreto inglês reabrisse o caso de Peter Baldwin e voltasse ao Código Wolfsschanze.

- O que você me disse está de acordo com o que eu tenho pensado - disse Noel. - Voltemos a seu irmão. Tenho uma ideia do que aconteceu no Rio. Quer falar sobre isso?

Helden arregalou os olhos.

- Não sei do que é que você está falando.

- Seu irmão descobriu alguma coisa no Rio, não foi? Ficou sabendo de Graff e do grupo do ODESSA no Brasil. Foi por isso que o perseguiram, a tal ponto que ele teve de sair do país. Os caso não teve relação alguma com sua mãe ou com as transações comerciais de seu irmão. Tudo partiu de Graff e do ODESSA.

- Pode crer que eu nunca ouvi falar disso - murmurou Helden.

- Foi isso, não foi? Diga-me, Helden.

- Por favor, Noel. Devo-lhe muito. Não me faça pagar dessa maneira. O que aconteceu a Johann no Rio nenhuma relação tem com você ou com Genebra.

- Você não sabe. Eu não sei. Mas você tem de me dizer para que eu possa estar preparado. Há muita coisa que eu não compreendo. Escute, hoje à tarde eu entrei à força no quarto de um cego. Arrombei a porta fazendo um barulho enorme. É claro que o homem era velho e cego. Não podia ver o medo em meus olhos. Estou apavorado, Helden. Não sou o tipo de pessoa que arromba os quartos dos outros, dá tiros e é alvejado. Sei que não posso recuar, mas estou assustado. Você tem de me ajudar.

- Você bem sabe que eu não quero outra coisa.

- Diga-me então o que aconteceu no Rio, o que aconteceu a seu irmão.

- Acontece que isso não tem importância.

- Tudo tem importância.

Noel encaminhou-se para a cadeira onde havia deixado o paletó. Mostrou a Helden o forro cortado pela faca.

- Veja isto. Alguém tentou esfaquear-me esta tarde. Não sei de você, mas a mim é a primeira vez que me acontece uma coisa dessas. E tudo isso por coisas que desconheço. Não entendo, fico petrificado e louco da vida. Há cinco dias, em Nova York, o homem que me criou, o único homem a quem chamei de pai, foi morto por um carro que subiu no passeio e o imprensou numa parede. A morte dele foi uma advertência a mim! Não me fale, portanto, do Rache, do ODESSA ou dos homens da Wolfsschanze. Estou começando a saber de tudo sobre esses canalhas e quero ver todos fora de cena. Com o dinheiro de Zurique podemos fazer isso. Sem esse dinheiro, ninguém nos dará ouvidos. É uma pura razão econômica. Não se deixa de lado uma pessoa que dispõe de setecentos e oitenta milhões de dólares. Uma pessoa com tanto dinheiro tem de ser escutada. A única maneira de chegar a Zurique é passar por Genebra, e só chegaremos a Genebra se usarmos a cabeça. Não há ninguém que esteja do nosso lado, só nós. Os Von Tiebolt, os Kessler e um Clausen. Agora, que foi que houve no Rio?

- Johann matou alguém.

- Quem foi?

- Não sei ao certo quem foi. Mas foi uma pessoa muito importante.


23

Holcroft escutou Helden, atento a qualquer nota falsa. Não percebeu coisa alguma. Ela lhe contou o que sabia e não era grande coisa.

- Cerca de seis semanas antes de sairmos do Brasil, voltava eu para casa de carro uma noite depois de um seminário na universidade. Morávamos nessa época nos arredores da cidade. Parei meu carro atrás de uma limusine escura diante da casa. Quando me encaminhei para a porta, ouvi vozes encolerizadas lá dentro. Houve uma tremenda luta e eu não pude perceber quem era o outro homem. O homem chamava meu irmão de assassino. Quando entrei e Johann me viu, mandou que o homem se calasse. Meu irmão pegou o homem pelos pulsos e arrastou-o para a porta. O homem disse que outros sabiam que Johann era um assassino e que, se a justiça não agisse contra ele, havia muita gente disposta a matá-lo pelo que havia feito. Caiu na escada ainda gritando coisas. Correu depois para a limusine e Johann foi atrás dele. Disse alguma coisa ao homem pela janela do carro. O homem cuspiu no rosto de meu irmão e foi-se embora no carro.

- Fez perguntas a seu irmão a respeito do caso?

- Naturalmente. Mas Johann se limitou a dizer que o homem estava louco. Perdera muito dinheiro numa transação comercial e ficara fraco do juízo.

- Acreditou nele?

- Queria acreditar, mas Johann começou a proceder anormalmente. Ausentava-se de casa durante muitas horas, às vezes durante dias. Semanas depois, fomos de avião para o Recife com um nome novo e saímos do país. O homem que ele matou devia ser muito rico e poderoso. Do contrário, não teria amigos como aquele que fora à casa de meu irmão.

- Não sabe quem era o homem que esteve em sua casa naquela noite?

- Não. Já o vira antes, mas não me podia lembrar de onde, e Johann nunca me disse nada. Ordenou-me que nunca mais tocasse no assunto. Havia coisas que eu não podia saber.

- Conformou-se com isso?

- Claro que sim. Procure compreender. Éramos filhos de nazistas e sabíamos que em muitos casos era melhor não lazer perguntas.

- Mas você tinha de saber o que estava acontecendo.

- Éramos todos bem-ensinados, não se iluda. Aprendemos a esquivar-nos das perguntas de algum israelense, a identificar de longe um homem do Rache ou do ODESSA e a usar de vários truques para nos livrarmos deles.

- Eram assim treinados ainda na escola. Uma verdadeira loucura!

- Era uma coisa que você poderia ter dito há três semanas. Depois do que aconteceu hoje à tarde, não.

- Por quê?

- No carro, eu lhe disse que tinha pena de você por estar enfrentando tudo sem o treino necessário.

- E eu disse que estava recebendo um treino intensivo.

- Mas muito escasso e muito tardio. Johann me disse que lhe ensinasse tudo o que eu pudesse. Quero que você me escute, Noel. Tente lembrar-se de tudo o que lhe disser.

- Pode falar - disse Noel, sentindo a preocupação nos olhos dela.

- Você vai a Berlim. Quero que você volte.

Com essas palavras, ela começou. Havia momentos em que Noel tinha vontade de sorrir ou até de rir, mas se continha, pois ela lhe estava falando com toda a seriedade possível. Naquela tarde, três homens tinham sido mortos. Ele e Helden poderiam ser a quarta e a quinta vítimas. Por isso, escutava e tentava lembrar-se de tudo.

- Não há tempo de conseguir documentos falsos. Isso pode levar alguns dias. Você tem dinheiro. Compre dois lugares juntos no avião. Não deixe ninguém sentar-se ao seu lado. Não se deixe cercar de gente. E não coma nem beba coisa alguma que não levar com você.

Noel pensou brevemente num voo 747 da British Airways e num vidro de estricnina.

- Isso é uma recomendação de que não me esquecerei - murmurou ele.

- Não deve se esquecer mesmo. É muito fácil pedir um café ou um copo de água. Não faça isso.

- Não farei. Que vai acontecer quando eu chegar a Berlim?

- Quando chegar a qualquer cidade, procure um pequeno hotel num bairro bem povoado, cujo principal comércio seja pornografia e onde haja muita prostituição e muito tráfico de drogas. As portarias dos hotéis nessas áreas nunca exigem identificação. Sei de alguém que nos dará o nome de um hotel em Berlim.

E Helden continuou descrevendo táticas, definindo métodos e ensinando como ele poderia introduzir as suas modificações pessoais.

Era preciso usar nomes falsos, mudar de quarto diariamente, mudar de hotel duas vezes por semana. Só podia telefonar de telefones públicos, nunca de quartos de hotel ou de casas particulares. Devia haver um mínimo de três mudas de roupas externas, inclusive chapéus, bonés e óculos. Os sapatos deviam ter solas de borracha. Eram melhores para correr com um mínimo de barulho, para partir e parar com rapidez, bem como para caminhar em silêncio. Se interrogado, devia mostrar-se indignado mas não arrogante, sem nunca erguer a voz. Essa atitude provocava hostilidade e a hostilidade gerava demoras e novas perguntas. Enquanto estivesse em voo, de um aeroporto para outro, tinha de desarmar a pistola que levasse, separando o cano do cabo e removendo o percursor. Esse processo em geral satisfazia os guardas aduaneiros europeus. Não se interessavam por armas que não podiam funcionar; procuravam contrabando. Mas, se quisessem apreender a arma, não devia fazer qualquer objeção. Era fácil comprar outra. Se deixassem passar a arma, devia montá-la imediatamente no primeiro banheiro que encontrasse.

A rua... Disse a Helden que sabia alguma coisa de ruas e de multidões. Ela replicou que nunca se sabia o bastante e lhe disse que devia sempre andar perto do meio-fio para correr para o meio da rua e misturar-se com o trânsito ao menor sinal de hostilidade ou vigilância.

- Nunca se esqueça de que você é amador e eles são profissionais. Aproveite essa posição. Transforme essa desvantagem num lucro. O amador procede de maneira inesperada, não porque seja hábil ou experiente, mas porque não pode fazer outra coisa. Faça o inesperado rapidamente, como se estivesse confuso. Pare depois e espere. O confronto é em geral o que a vigilância menos deseja. Mas, se o adversário quiser isso, faça-lhe a vontade. Atire. Você precisa de um silenciador. Sei onde poderei conseguir-lhe um amanhã.

Ele estava atônito, incapaz de falar. Ela viu o espanto nos olhos dele e sorriu tristemente, beijando-o em seguida.

- Desculpe, Noel.

Conversaram durante grande parte da noite como professora e aluno às vezes, outras vezes como amantes. Helden imaginava situações e então perguntava como ele iria resolvê-las.

- Você está num trem, passando por um corredor estreito. Está levando papéis importantes. Um homem se aproxima em direção contrária. Você o reconhece como um inimigo. Há gente atrás de você e não lhe será possível recuar. Que fará?

- O outro homem, o inimigo, está disposto a atacar-me?

- Não sabemos. Que é que você deve fazer? Depressa!

- Continuar o meu caminho. De sobreaviso, esperando o pior.

- Não, querido! Os papéis! Terá de protegê-los. Deverá fingir que tropeça e atirar-se ao chão.

- Por quê?

- Para atrair a atenção para a sua pessoa. As pessoas que estiverem por perto no trem procurarão ajudá-lo e o inimigo não terá coragem de atacá-lo. Você criou assim uma tática diversiva.

- Com minha pessoa - disse Noel, compreendendo.

- Exatamente.

A instrução continuou até que professora e aluno ficaram exaustos. Amaram-se calmamente e ficaram nos braços um do outro, com o resto do mundo bem distante. Por fim, Helden adormeceu com a cabeça no peito dele e com o rosto coberto pelos cabelos.

Noel ficou ainda algum tempo acordado, sem saber como uma menina que se emocionara outrora com O mágico de Oz podia crescer e se tornar tão entendida nas artes da fraude e da fuga. Ela pertencia a outro mundo, e ele ingressara nesse mundo com alarmante rapidez.

Acordaram tão tarde que Helden perdeu a hora de entrar no trabalho.

- Não faz mal - disse ela, pegando o telefone. - Temos compras para fazer. Meu chefe aceitará mais um dia de doença. Tenho a impressão de que ele está gostando de mim.

- Acho que estou na mesma situação - disse Noel, acariciando-lhe a nuca. - Onde é que você mora?

Ela sorriu depois de dar o número à telefonista. Cobriu então o fone e disse:

- Não conseguirá qualquer informação minha apelando para os meus instintos. Já se esqueceu de que eu sou bem treinada?

- Estou falando sério. Onde é que você mora?

- Não posso dizer.

Tirou então a mão do fone e falou rapidamente com a telefonista das Edições Gallimard.

Uma hora depois, tomavam de carro o caminho de Paris. Passaram primeiro pelo hotel de Noel para pegar a bagagem dele e, depois, foram para um bairro onde havia muitas lojas de roupas usadas. Uma vez mais, Helden estabeleceu a sua autoridade. Escolheu as roupas com uma segurança baseada na experiência. As roupas eram comuns, difíceis de chamar a atenção numa multidão.

Um casaco e um sobretudo marrom foram juntar-se à sua capa, um chapéu de feltro com a copa toda amassada e um boné preto cuja pala não se prendia mais ao colchete. Tudo estava bastante usado. Mas os sapatos eram novos. Um par tinha solas de crepe de borracha e outro tinha solas de couro, às quais um sapateiro mais adiante na rua adaptou um solado de borracha.

A loja do sapateiro ficava a quatro quadras de uma loja de aspecto sórdido. Helden entrou sozinha, e ele ficou esperando a alguma distância. Dez minutos depois, ela saía com um cilindro perfurado, que era o silenciador para a automática de Noel.

Estava equipado com uniformes e uma arma conveniente. Ia ser mandado para a linha de frente depois do mais breve período de treinamento básico que seria possível imaginar. Ele tinha visto o inimigo vivo e a segui-lo, depois morto nas vielas de uma aldeia chamada Montereau-faut-Yonne. Onde estava o inimigo naquele momento?

Helden tinha confiança de que se haviam desvencilhado dele por algum tempo. Pensava que ele podia encontrá-lo no aeroporto, mas, uma vez em Berlim, Noel poderia facilmente livrar-se dele.

Tinha de fazer isso. Não podia deixar de voltar, pois ela estaria à espera dele.

Pararam num pequeno café, onde almoçaram com vinho. Helden telefonou para alguém e voltou com o nome de um hotel em Berlim. Era no Hurenviertel, um bairro da cidade onde o sexo era a mercadoria corrente.

Ela lhe segurou ternamente a mão. Dali a minutos, ele estaria sozinho na rua e tomaria um táxi para o Aeroporto de Orly.

- Tenha cuidado, querido.

- Fique descansada.

- Lembre-se das coisas que lhe ensinei. Podem ser-lhe úteis.

- Não me esquecerei de nada.

- O mais difícil será compenetrar-se de que tudo isso é real. Você se sentirá muitas vezes espantado de que as coisas estejam acontecendo e justamente com você. Não se espante com as coisas. Aceite-as.

- Tenho de aceitar, porque também encontrei você.

Ela olhou para o lado e então disse:

- Logo que chegar a Berlim, pegue uma prostituta perto do hotel. Será uma boa proteção. Fique com ela até estabelecer contato com Kessler.

O voo 707 da Air France fez as manobras finais para pousar em Tempelhof. Noel estava sentado no lado direito do avião, na terceira poltrona a contar do corredor, com a poltrona ao seu lado vazia.

Seguira as instruções de Helden, as maneiras de sobreviver ensinadas por uma sobrevivente. Lembrou-se então de que sua mãe havia se chamado também de sobrevivente. Althene mostrara um certo orgulho ao dizer isso, embora a sua voz estivesse a mais de seis mil quilômetros de distância pelo telefone.

Ela havia dito que ia fazer uma viagem. Era a sua maneira de esconder-se durante várias semanas, servindo-se dos métodos de evasão e dissimulação que aprendera trinta anos antes. Gostaria de saber para onde iria ela e o que faria. Telefonaria daí a alguns dias para Sam Buonoventura em Curaçau. Ele talvez tivesse alguma notícia dela.

A passagem pela alfândega em Tempelhof foi rápida. Holcroft entrou num banheiro do terminal e montou de novo a pistola.

Conforme as instruções recebidas, tomou um táxi até o parque do Tiergarten. Dentro do táxi, abriu a mala e vestiu o sobretudo marrom e o velho chapéu amassado. O táxi parou. Saltou, pagou a corrida e entrou no parque, desviando-se das pessoas até encontrar um banco vazio, onde se sentou. Olhou as pessoas que passavam. Não viu ninguém que parasse ou hesitasse. Levantou-se rapidamente e saiu por um dos portões. Havia um ponto de táxis ali e ele entrou na fila, depois de olhar em torno à procura do inimigo. Era difícil ver alguém ou alguma coisa especificamente. As sombras da tarde se tornavam cada vez mais densas.

Deu ao motorista um endereço, um cruzamento de duas ruas. Ficava três quadras ao norte e quatro quadras ao sul do hotel. O motorista sorriu e disse num inglês carregado, mas perfeitamente compreensível:

- Quer se divertir? Tenho umas amiguinhas, Herr Amerikaner. Não há risco de doença.

- Está muito enganado. Estou fazendo uma pesquisa sociológica.

- Wie?[19]

- Vou me encontrar com minha mulher.

Atravessaram em silêncio as ruas de Berlim. A cada curva que faziam, Noel observava os carros que vinham atrás e faziam a mesma curva. Alguns logo tomavam outro rumo. Lembrou-se das palavras de Helden: Às vezes, usam rádios. Coisas simples como a mudança de um sobretudo ou o uso de um chapéu poderão despistá-los. Receberam ordens para procurar um homem de paletó sem chapéu e não terão jeito de encontrá-lo.

Haveria homens invisíveis à espera de determinado táxi e de determinado passageiro com determinadas roupas? Não sabia, mas o certo é que ninguém parecia segui-lo.

Durante os vinte e tantos minutos necessários para chegar ao cruzamento, a noite havia caído. As ruas estavam cheias de letreiros de neon e cartazes sugestivos. Jovens louros se misturavam com prostitutas de saias abertas do lado e blusas decotadas. Era uma espécie de feira, pensou Holcroft, ao caminhar as três quadras onde viraria à esquerda, de acordo com as instruções.

Viu no vão de uma porta uma prostituta que passava batom nos lábios grossos. Estava numa faixa de idade desafiadoramente dissimulada pelas prostitutas e por certas mulheres suburbanas - entre os trinta e cinco e os quarenta e oito anos -, quando é muito fácil perder a luta. Tinha cabelos pretos, rosto muito branco e pálido, olhos fundos acentuados por forte camada de pintura. Além dela, na quadra seguinte, via o hotel indicado, em cujo letreiro de neon uma letra estava apagada.

Aproximou-se dela, sem saber ao certo o que devia dizer. O seu alemão deficiente não era o único obstáculo. Nunca abordara uma prostituta na rua.

- Boa noite, Fräulein. Fala inglês?

A mulher olhou para ele, a princípio com frieza ao ver-lhe o sobretudo surrado. Depois, desceu o olhar e viu a maleta e a pasta 007. Sorriu, mostrando os dentes amarelos.

- Ja, meu amigo americano. Falo bem. Vai se divertir.

- Gostaria disso. Quanto?

- Vinte e cinco marcos alemães.

- Acho que o negócio está fechado. Quer vir comigo?

Holcroft tirou o maço de dinheiro do bolso, destacou três notas e entregou-as à mulher.

- Trinta marcos alemães. Vamos para aquele hotel ali.

- Wohin?[20]

Noel apontou para o hotel na outra quadra.

- Ali - disse ele.

- Gut[21] - disse a mulher, tomando-lhe o braço.

O quarto era como qualquer quarto de hotel barato numa grande cidade. Se havia um traço positivo, estava na lâmpada elétrica sem abajur que pendia do teto. A luz era tão fraca que quase não se podiam ver os móveis manchados e quebrados.

- Dreissig Minuten[22] - disse a mulher, tirando o casaco e deixando-o no encosto de uma cadeira. - Tem meia hora à sua disposição, e nem um minuto a mais. Sou uma mulher de negócios, como vocês dizem, e meu tempo é precioso.

- Sei disso - disse Holcroft. - Descanse ou leia um pouco. Sairemos daqui a quinze ou vinte minutos. Você vai ficar comigo e me ajudar a falar ao telefone.

Abriu a pasta e tirou a informação relativa a Erich Kessler. Havia uma cadeira encostada à parede. Sentou-se nela e começou a ler sob a luz fraca.

- Ein Telephonanruf?[23] - disse a mulher. - Você me paga trinta marcos para eu não fazer nada senão ajudar você a falar pelo telefone?

- Isso mesmo.

- Mas é verrückt![24]

- Não falo alemão. Posso ter dificuldade em chamar a pessoa com quem quero falar.

- Para que veio então até aqui? Há um telefone na esquina.

- Para guardar as aparências, creio eu.

A prostituta sorriu.

- Já sei. Sou sua Deckung[25].

- O quê?

- Se você está comigo no quarto, ninguém faz perguntas.

- Não é bem assim - disse Noel, inquieto.

- Não é da minha conta, meu caro senhor. Mas, já que estamos aqui, por que não se distrai um pouco? Já pagou. Não sou tão má assim. Já fui muito melhor, mas ainda hoje não sou má...

Holcroft sorriu para ela.

- Não tem nada de má. Mas muito obrigado. Tenho uma porção de coisas em que pensar.

- Está bem. Faça o seu trabalho - disse a mulher.

Noel leu as informações que lhe tinham sido dadas havia muito tempo por Manfredi, em Genebra.

"Erich Kessler, professor de história na Universidade Livre de Berlim. Distrito de Dahlen. Fala fluentemente inglês. Telefones: universidade - 731-426; residência - 824-114. Tem um irmão chamado Hans, que é médico. Mora em Munique..."

Seguia-se um breve currículo de Kessler, com os graus obtidos e as láureas conferidas. Eram superabundantes. O professor era um homem culto e os homens cultos são em geral céticos. Como reagiria Kessler ao telefonema de um americano desconhecido que viajara para Berlim sem avisá-lo a fim de tratar de um assunto do qual não podia falar pelo telefone?

Eram quase seis e meia. Estava na hora de saber. E de trocar de roupa. Abriu a maleta e tirou o blusão e o boné.

- Vamos - disse Noel.

A prostituta ficou ao lado da cabina telefônica enquanto Holcroft discava. Era necessário isso, pois o telefone poderia ser atendido por alguma pessoa que não falasse inglês.

A linha estava ocupada. Podia ouvir em torno os sons da língua alemã - conversas enfáticas de casais e jovens em busca de prazeres rodeando a cabina.

Pensou que, se sua mãe fosse outra e não Althene, ele seria um dos que passavam naquele momento ao lado da cabina. Não exatamente ali, mas em outro ponto de Berlim, em Bremerhaven ou em Munique. Noel Clausen. Alemão.

Como teria sido a sua vida? Era um sentimento fantástico, fascinante e repulsivo ao mesmo tempo, e obsessivo. Era como se ele tivesse regredido no tempo através das camadas do seu eu e encontrasse uma bifurcação numa estrada nevoenta que poderia ter seguido. Examinava essa bifurcação. Para onde ela o teria levado?

Helden? Poderia tê-la conhecido se a sua vida fosse diferente? De qualquer maneira, conhecia-a e sabia que queria voltar para junto dela o mais depressa possível, para abraçá-la e dizer-lhe que tudo estava em ordem. Queria vê-la rir e levar uma vida em que três mudas de roupas usadas e uma pistola com silenciador não fossem essenciais para a sobrevivência. E em que o Rache ou o ODESSA não constituíssem mais ameaças.

Um homem atendeu ao telefone.

- Mr. Kessler? Dr. Kessler?

- Não sou médico - disse o homem em inglês. - Mas o título é correto, embora haja algum abuso. Que deseja?

- Meu nome é Holcroft, Noel Holcroft, de Nova York. Sou arquiteto.

- Holcroft? Tenho muitos amigos americanos, colegas com os quais mantenho correspondência, mas não creio que me lembre do nome.

- Não pode mesmo lembrar-se do meu nome, pois não me conhece. Entretanto, só estou em Berlim para falar com o senhor. Há um assunto confidencial sobre que lhe quero falar e que interessa a nós dois.

- Confidencial?

- Digamos que é um assunto de família.

- Hans? Aconteceu alguma coisa a Hans?

- Não...

- Não tenho outros parentes, Mr. Holcroft.

- É uma coisa do passado. Infelizmente, não lhe posso dizer mais pelo telefone. Confie em mim. O assunto é urgente. Podemos encontrar-nos esta noite?

- Esta noite? Chegou a Berlim hoje?

- Esta tarde.

- E já me quer ver esta noite... O assunto deve ser mesmo urgente. Tenho de voltar ao meu escritório por uma hora mais ou menos esta noite. Nove horas seria conveniente para o senhor?

- Perfeitamente. Onde o senhor marcar.

- Devia pedir-lhe que viesse até minha casa, mas estou com visitas. Há um café na Kurfürstendamm. Está sempre cheio, mas há compartimentos muito sossegados nos fundos e o gerente me conhece.

- Ótimo.

O professor deu-lhe o nome e o endereço do café.

- Pergunte por minha mesa ao gerente.

- Muito bem. E muito obrigado.

- Não há de quê. Tenho de avisar-lhe uma coisa. Digo sempre ao gerente que a comida lá é muito boa. Não é nada disso, mas o homem é muito simpático e amigo dos estudantes. Até as nove horas.

- Até as nove. Mais uma vez, obrigado.

Holcroft desligou, sentindo uma onda súbita de confiança. Se o homem correspondesse pessoalmente à sua voz pelo telefone, Erich Kessler era inteligente, bem-humorado e digno de toda a confiança. Que alívio!

Sorriu para a mulher.

- Obrigado - disse ele, dando-lhe mais dez marcos.

- Auf wiedersehen[26].

A mulher se afastou e Noel ficou a olhá-la por um instante, mas teve logo a sua atenção atraída por um homem com um blusão de couro preto, mais abaixo na rua. Estava em frente a uma livraria, mas não se interessava pelos livros pornográficos em exposição na vitrina. Estava olhando diretamente para Noel. Quando os olhares se encontraram, o homem virou o rosto.

Era um elemento do inimigo? Um fanático do Rache? Um maníaco do ODESSA? Ou alguém designado pela Wolfsschanze para segui-lo? Tinha de saber.

Um confronto é o que menos deseja a vigilância. Mas se o adversário quiser...

Isso lhe dissera Helden. Procuraria lembrar-se da tática. Apalpou os bolsos. Levava a pistola e o silenciador. Puxou a pala do boné para cima dos olhos, segurou com força a alça da pasta 007 e se afastou do homem do blusão de couro preto.

Desceu a rua perto do meio-fio, pronto para correr por entre os automóveis. Chegou à esquina e virou à direita, incorporando-se rapidamente a um grupo de curiosos que viam dois manequins de plástico de tamanho natural fazerem o ato sexual sobre uma pele preta de urso. Nesse momento, Holcroft levou um empurrão. A sua pasta 007 foi violentamente puxada de suas mãos, como por alguém que tivesse levado uma pancada de suas arestas finas.

A pasta foi puxada, mas não foi tomada. Podia ser tomada e o seu conteúdo lido por quem não devia. Não fora totalmente imprevidente. Havia tirado dela a carta de Heinrich Clausen e as partes mais informativas do documento de Genebra. Não havia dados, nem fontes, mas apenas alguns papéis com o timbre do banco e alguns textos que nada diriam a um ladrão comum, mas seriam outra coisa bem diferente para quem entendesse.

Helden havia-o aconselhado a não levar nem isso, mas ele tinha contado com a possibilidade de que Erich Kessler o julgasse um louco se ele não tivesse algum documento para justificar as suas palavras.

Mas, se o estavam seguindo, tinha que deixar a pasta num lugar onde não pudesse ser roubada. Onde? Evidentemente não podia ser no hotel. Um armário numa estação ferroviária ou rodoviária? Inaceitável, pois eram lugares de fácil acesso, e abrir um desses armários seria uma brincadeira para um ladrão experiente.

Além disso, precisava daqueles papéis, daqueles fragmentos, para convencer Erich Kessler. Pensou então no bar que ele lhe havia indicado.

O bar na Kurfürstendamm, onde o gerente era amigo de Kessler. Ir até lá podia ter duas finalidades. No caminho, poderia ver se o estavam mesmo seguindo. Uma vez lá, poderia ficar ou deixar a pasta com o gerente.

Começou a andar pela rua à procura de um táxi. Ao mesmo tempo, olhava para trás em busca de sinais de vigilância. Havia um táxi no meio da quadra. Correu para ele.

No momento em que ia embarcar, olhou em volta e viu o homem do blusão de couro preto. Não estava caminhando. Montava uma pequena bicicleta motorizada, impulsionando-a rente ao meio-fio com o pé esquerdo no passeio. Havia outras bicicletas semelhantes na rua, atravessando de um lado para outro entre os automóveis.

O homem do blusão de couro preto deixou de impulsionar a sua máquina. Parou e fingiu estar falando com alguém no passeio. O fingimento era óbvio, pois não se via ninguém com quem ele pudesse estar conversando. Noel deu ao motorista do táxi o nome e o endereço do bar. Partiram imediatamente.

O homem do blusão de couro preto partiu também com a sua bicicleta. Noel observava-o da janela traseira. Como o homem do Fiat verde em Paris, o berlinense era perito. Ficou a vários carros de distância do táxi, acelerando de vez em quando para verificar a localização do táxi.

Era inútil ficar observando. Holcroft recostou-se no banco do táxi e começou a pensar no que devia fazer.

Helden tinha dito que as pessoas que vigiavam outras não queriam saber de um confronto...

Mas ele não era assim. Estaria preparado para um confronto? Tinha suas dúvidas. Nunca fora homem para pôr à prova deliberadamente a sua coragem. Mas não podia esquecer-se de Richard Holcroft imprensado contra uma parede num passeio de Nova York.

O medo impunha cautela; a cólera proporcionava energia. Queria apanhar o homem do blusão de couro preto. E ia apanhá-lo.


24

Pagou ao motorista e saltou do táxi, tendo o cuidado de deixar-se ver pelo homem da bicicleta, que havia parado a alguma distância.

Encaminhou-se para o café e entrou. Viu-se numa escada, como numa plataforma de onde se podia ver todo o estabelecimento. Os tetos eram altos e o restaurante ficava em nível inferior. A casa estava quase cheia. A fumaça pairava no ar e o cheiro da cerveja aromática chegava até a escada. Uma rede de alto-falantes transmitia o que se chamava de Biermusik[27] da Baviera. As mesas estavam dispostas em fila na área central, A decoração era pesada.

Viu os compartimentos de que Kessler havia falado. Estavam nos fundos e nos lados: mesas flanqueadas por bancos de espaldar alto. Diante de cada um dos compartimentos, estendia-se uma barra de metal, da qual pendia uma cortina xadrez vermelha. Cada compartimento podia ser isolado completamente pela cortina. Mas, se esta estivesse aberta, uma pessoa podia ficar num compartimento e observar tudo que se passava a partir da porta no alto da escada.

Noel desceu a escada e se aproximou de um homem robusto que estava atrás de uma pequena tribuna nos fundos.

- Queira desculpar, mas o senhor fala inglês?

O homem levantou a vista.

- Qual o homem que trabalha num restaurante em Berlim e não fala?

- Ótimo. Quero falar com o gerente.

- Estou às suas ordens. Que deseja? Uma mesa?

- Creio que a mesa já foi reservada. O nome é Kessler.

- Ah, sim! Ele me telefonou há um quarto de hora. Mas a reserva foi feita para as nove horas.

- Eu sei. Cheguei antes da hora. Mas quero pedir-lhe um favor. Trouxe esta pasta para o Professor Kessler. São alguns documentos históricos emprestados ao professor pela universidade em que eu leciono nos Estados Unidos. Tenho de falar ainda com algumas pessoas e gostaria de saber se posso deixar a pasta aqui.

- Mas é claro - disse o gerente, estendendo a mão para pegar a pasta.

- Devo dizer-lhe que esses documentos são muito valiosos, não em matéria de dinheiro, mas do ponto de vista universitário.

- Vou trancá-los no meu escritório.

- Muito obrigado.

- Bitte schön[28]. Quer me dizer seu nome?

- Holcroft.

- Muito obrigado, Mr. Holcroft. A mesa estará às suas ordens às nove horas.

O gerente levou a pasta para uma porta fechada embaixo da escada.

Noel ficou parado um instante, pensando no que devia fazer em seguida. Ninguém havia entrado depois da sua chegada. Isso significava que o homem do blusão de couro estava do lado de fora à espera dele. Estava na hora de enfrentar o homem.

Subiu a escada, assaltado subitamente por um pensamento que o desconcertou. Fizera a coisa mais imbecil que era possível imaginar. Tinha levado o homem do blusão de couro diretamente ao lugar onde ia encontrar-se com Erich Kessler. E, agravando o erro, dera ao gerente o seu verdadeiro nome.

Kessler e Holcroft. Holcroft e Kessler. Estavam associados. Tinha revelado um dos nomes de Genebra, tão claramente quanto se houvesse publicado tudo num jornal.

Depois disso, não se tratava mais de saber se ele podia ou não preparar uma armadilha. Era uma coisa que tinha de fazer. Era preciso imobilizar o homem do blusão de couro preto.

Abriu a porta e saiu para o passeio. A Kurfürstendamm estava toda iluminada. O ar estava frio e, no alto, a lua mostrava-se cercada de um halo de névoa. Começou a andar para a direita, com as mãos nos bolsos, para proteger-se do frio. Passou pela bicicleta encostada ao meio-fio e seguiu o seu caminho. À frente, talvez a três quadras de distância, no lado esquerdo da Kurfürstendamm, elevava-se o vulto da enorme igreja do Cáiser Guilherme, com os refletores a iluminar a torre bombardeada e que nunca mais seria consertada. Um lembrete a Berlim do Reich de Hitler. Usaria a igreja como um ponto de referência.

Continuou a caminhar pela calçada arborizada, mais lentamente do que a maior parte dos transeuntes, olhando de vez em quando as vitrinas. Consultava frequentemente o relógio, na esperança de dar a impressão de que os minutos eram importantes para ele e de que estava apenas fazendo hora para um encontro importante.

Bem em frente à Igreja do Cáiser Guilherme, parou um instante à beira do passeio, diretamente sob a luz de um lampião. Olhou para a esquerda. A trinta metros de distância, o homem do blusão de couro virou-se, dando as costas para Holcroft e olhando para o trânsito.

Ele estava ali; era só o que importava.

Noel voltou a caminhar, dessa vez em passos mais rápidos. Chegou à outra esquina e olhou para a placa da rua: Schönbergstrasse. Cruzava com a Kurfürstendamm e tinha lojas dos dois lados. Os passeios pareciam mais cheios e os transeuntes, menos apressados que os da Kurfürstendamm.

Esperou uma oportunidade no trânsito de carros e atravessou a rua. Virou para a direita no passeio, rente ao meio-fio, abrindo caminho por entre os pedestres. Chegou ao fim da quadra, atravessou para a quadra seguinte e retardou o passo. Parou de vez em quando, como fizera na Kurfürstendamm, para olhar as vitrinas e consultar o relógio com crescente concentração.

Viu o homem de blusão de couro duas vezes.

Noel passou à terceira quadra. A cerca de quinze metros da esquina, havia uma rua estreita entre a Schönbergstrasse e uma rua paralela a cerca de cem metros de distância. A rua era escura e muitas portas davam para ela. A escuridão e o comprimento da rua não eram atraentes e dificultavam a passagem dos pedestres à noite.

Mas aquela rua era nessa hora um campo de caça, uma extensão de cimento e tijolos para a qual atrairia o homem que o estava seguindo.

Seguiu pela quadra, passando pela rua estreita, em direção à esquina, acelerando o passo a cada instante, com as palavras de Helden a ressoarem-lhe nos ouvidos.

O amador procede de maneira inesperada, não porque seja hábil ou experiente, mas porque não pode fazer outra coisa. Faça o inesperado rapidamente, como se estivesse confuso...

Continuou pela quadra e parou de repente sob a luz de um lampião. Como em sobressalto, olhou em volta e rodou nos calcanhares, como um homem indeciso, mas que sabia que era preciso tomar uma decisão. Olhou para a rua estreita e começou de repente a correr, esbarrando em algumas pessoas, e entrou na rua, como se estivesse dominado pelo pânico.

Correu até que a escuridão fosse quase completa. Estava no centro da rua estreita e via ao longe as luzes de um lado e do outro. Havia a um lado uma espécie de portão, reforçado com metal. Correu para lá, encostando-se ao aço e à parede. Levou a mão ao bolso do paletó e agarrou o cabo da automática. Não colocou o silenciador, pois não julgava necessário. Não tinha a menor intenção de disparar a arma. Seria uma ameaça visível e, a princípio, nem mesmo isso.

A espera não foi grande. Ouviu passos apressados e compreendeu que o inimigo usava também sapatos com solado de borracha.

O homem entrou na rua correndo. Em dado momento, parou como se desconfiasse de alguma coisa. Noel saiu do vão da porta, com a mão no bolso do paletó.

- Estava à sua espera. Fique onde está.

Falava intensamente, assustado com as suas palavras.

- Tenho uma pistola na mão. Não quero usá-la, mas terei de atirar, se você tentar fugir.

- Você não hesitou há dois dias na França - disse o homem com o sotaque carregado e uma calma enervante. - Por que iria esperar que você se detivesse agora? Você é um porco. Pode matar-me, mas nós o faremos parar.

- Quem é você?

- Que importância tem isso? Basta você saber que nós o faremos parar.

- Você é do Rache, não é?

Apesar da escuridão, Noel pôde ver uma expressão de desprezo no rosto do homem.

- O Rache? Terroristas sem causa, revolucionários cuja companhia ninguém deseja. São simplesmente assassinos. Não faço parte do Rache!

- Do ODESSA então?

- Gostaria disso, não é mesmo?

- Como assim?

- Você utilizará o ODESSA quando chegar a ocasião. O grupo pode levar a culpa. Podem matar com facilidade em nome dele. A ironia do caso é que poderemos matar a gente do ODESSA. Mas são vocês que nós queremos. Sabemos a diferença entre palhaços e monstros. Acredite no que estou dizendo. Nós os faremos parar.

- Não estou entendendo. Não é possível que você faça parte da Wolfsschanze.

O homem baixou a voz.

- Todos nós fazemos parte da Wolfsschanze, não acha? De uma forma ou de outra, torno a lhe dizer. Pode matar-me, que outro tomará o meu lugar. Se matar esse, outro aparecerá. Pode atirar, Herr Clausen. Ou será melhor dizer filho do Reichsführer Heinrich Clausen?

- Que diabo está você dizendo? Não quero matar ninguém. Não quero matá-lo.

- Mas matou na França.

- Se matei um homem, foi porque ele tentou matar-me.

- Aber natürlich[29], Herr Clausen.

- Pare de me chamar assim!

- Por quê? Não é esse seu nome?

- Não! Meu nome é Holcroft.

- É claro. Isso faz parte do plano. O americano respeitável, sem laços visíveis com o seu passado. E quando alguém descobrisse esses laços seria tarde demais.

- Tarde demais para quê? Quem é você? Quem foi que o mandou?

- Não há meio de me forçar a dizer essas coisas. Não fazemos parte do seu plano.

Holcroft tirou a pistola do bolso e se aproximou.

- Que plano? - perguntou ele, na esperança de saber alguma coisa.

- Genebra.

- Que é que tem Genebra? É apenas uma cidade suíça.

- Sabemos de tudo e está acabado. Você não deterá as águias desta vez. Nós é que o faremos parar.

- Águias? Que águias? Quem são vocês?

- Nunca saberá. Pode puxar o gatilho. Nada direi e você não descobrirá coisa alguma.

Noel estava transpirando, embora a noite de inverno estivesse fria. Nada que o inimigo dizia fazia sentido. Era possível que um grande erro tivesse sido cometido. O homem diante dele estava preparado para morrer, mas não era um fanático. Havia muita inteligência no brilho dos seus olhos.

- Você não é do Rache, nem do ODESSA. Pelo amor de Deus, por que quer deter Genebra? Não é isso o que quer a Wolfsschanze. Deve saber disso.

- A sua Wolfsschanze, não. Mas nós podemos dar um bom uso a essa fortuna.

- Nunca! Se interferirem, não vai haver nada. Nunca terão o dinheiro.

- Nós dois sabemos que não tem de ser assim.

- Está errado! O dinheiro ficará guardado durante mais trinta anos.

O inimigo desconhecido ergueu o corpo na escuridão.

- Aí é que está a falha, não é? Você diz com a maior calma do mundo que o dinheiro ficará de novo guardado. Mas, se me permite, não vai haver terra arrasada nessa época.

- Não vai haver o quê?

- Terra arrasada. Bem, já falamos o bastante. Teve a sua oportunidade e ainda tem. Pode matar-me, mas isso não adiantará nada. Temos a fotografia e estamos começando a compreender.

- A fotografia? Em Portsmouth? Você?

- Um respeitável comandante da Marinha Real. Foi muito interessante que você tivesse apanhado aquela fotografia...

- Quem é você, afinal de contas?

- Um homem que o combate, filho de Heinrich Clausen!

- Já lhe disse...

- Já sei. Não devo dizer isso - disse o alemão. - Na realidade, não vou dizer mais nada. Vou dar meia-volta e sair desta rua. Atire, se acha que deve. Estou preparado. Todos nós estamos preparados.

O homem virou-se lentamente e começou a andar. Era mais do que Noel podia tolerar.

- Pare! - disse ele, correndo atrás do alemão. Agarrou-o pelo ombro com a mão esquerda.

O homem olhou para Noel e disse:

- Nada mais temos a dizer!

- Temos, sim! Vamos ficar aqui a noite inteira se for preciso. Mas você vai me dizer quem é, de onde veio e como é que sabe de Genebra e de Beaumont...

Não pôde prosseguir. O homem estendeu a mão e agarrou o pulso direito de Noel, torcendo-o para dentro e para baixo, ao mesmo tempo que batia com o joelho entre as pernas de Noel. Holcroft dobrou o corpo para a frente em agonia, mas não largou a pistola. Meteu o ombro no corpo do homem, procurando fazê-lo afastar-se, enquanto a dor nos testículos se irradiava pelo estômago e pelo peito. O homem deu um murro na base do crânio de Holcroft, fazendo ondas de choque irradiarem-se pelas costelas e pela espinha. Mas Noel nem assim abandonou a pistola! Apegava-se a ela como se fosse o último gancho de aço de um barco salva-vidas. Levantou o corpo com toda a força que ainda tinha nas pernas, afastando a pistola da mão do homem.

Houve uma explosão que ressoou na rua estreita. O braço do homem caiu e ele cambaleou, segurando o ombro. Fora ferido, mas não caiu. Firmou-se de encontro a uma parede e disse com a voz entrecortada:

- Nós o faremos parar e à nossa maneira. Tomaremos Genebra.

Com essas palavras, saiu pela rua, apoiando-se nas paredes. Holcroft viu que já havia um ajuntamento na esquina da Schönbergstrasse. Ouviram-se os apitos da polícia em meio dos fachos das lanternas elétricas. A polícia de Berlim estava a caminho.

Mas ele não podia ser preso. Havia Kessler; havia Genebra. Não o podiam deter naquele momento.

Noel guardou a pistola no bolso e se encaminhou para a Schönbergstrasse, para as duas lanternas elétricas que se aproximavam, empunhadas por dois guardas.

- Sou americano! - exclamou ele numa voz amedrontada. - Alguém aí fala inglês?

Um homem se aproximou.

- Eu falo. Que foi que houve?

- Estava caminhando por aqui e um homem tentou roubar-me. Ele tinha uma pistola. Empurrei-o e não sei como a arma disparou.

O berlinense traduziu rapidamente as suas palavras para a polícia.

- Para onde ele foi? - perguntou o homem.

- Acho que ainda está por aí numa dessas portas. Tenho de me sentar...

O berlinense tocou no ombro de Holcroft e levou-o através da multidão para o passeio.

O policial gritou para a rua escura. Ninguém respondeu. O inimigo desconhecido tinha conseguido fugir. Os guardas continuaram pela rua estreita.

- Muito obrigado - disse Noel ao homem que o acompanhara. - Gostaria de tomar um pouco de ar e de acalmar-me. Compreende?

- Compreendo. Foi uma coisa terrível que lhe aconteceu.

- Acho que prenderam o homem - disse Holcroft, olhando para onde estavam os guardas.

O berlinense voltou-se para olhar e Holcroft correu para o meio da rua. Passando por entre os carros, chegou ao outro lado. Correu então o quanto pôde para a Kurfürstendamm.

Sem sobretudo e sem chapéu, tremendo de frio num banco vazio de onde se avistava a Igreja do Cáiser Guilherme, Holcroft pensava em tudo o que havia acontecido. Absorvera as lições recebidas e soubera utilizá-las, introduzindo variações próprias. Fugira da armadilha que lhe haviam preparado e a transformara em outra contra o inimigo. Além disso, pudera imobilizar o homem do blusão preto, pelo menos até que ele procurasse um médico.

Sabia principalmente que Helden estava errada, como o estivera o falecido Manfredi, que não tinha dito os nomes. Não eram os homens do ODESSA, nem do Rache, os piores inimigos de Genebra. Era outro grupo, infinitamente mais consciente e mais mortífero. Era um grupo misterioso que tinha entre os seus partidários homens capazes de morrer calmamente, com olhos rebrilhantes de inteligência e palavras razoáveis nos lábios.

A corrida para Genebra se desenvolvia entre três forças violentas que queriam destruir o pacto e uma delas era muito mais engenhosa do que as outras duas. O homem do blusão de couro preto falara do Rache e do ODESSA com tamanho desprezo, que não podia ser impulsionado pela inveja ou pelo medo. Tinha-os classificado como assassinos e palhaços incompetentes, com os quais não queria qualquer espécie de relacionamento, pois fazia parte de outro grupo muito superior.

Holcroft olhou o relógio. Estava sentado no banco frio havia quase uma hora. As virilhas e a base do crânio ainda lhe doíam. Havia jogado o casaco e o boné numa lata de lixo distante. Essas coisas facilitariam a sua identificação se a polícia de Berlim estivesse à procura dele.

Estava na hora de ir andando. Não havia o menor sinal da polícia, nem de qualquer pessoa interessada nele. O ar frio não lhe aliviara a dor, mas o ajudara a esclarecer as ideias. Podia andar finalmente. Eram quase nove horas. Estava na hora do encontro com Erich Kessler, a terceira chave de Genebra.


25

Como era de esperar, o café estava repleto. A fumaça era mais densa e a música bávara, mais estridente. O gerente recebeu-o cordialmente, mas a sua estranheza se refletiu no olhar. Era evidente que alguma coisa acontecera ao americano. Noel sentiu-se confuso e pensou que talvez estivesse com o rosto arranhado ou sujo.

- Onde posso lavar o rosto?

- Por aqui, tenha a bondade - disse o gerente, indicando-lhe o lavatório dos homens. - O Professor Kessler já chegou e está à sua espera. Entreguei-lhe a sua pasta.

- Muito obrigado - disse Holcroft, encaminhando-se para o lavatório.

Olhou para o seu rosto no espelho. Não havia manchas, nem sujeira, nem sangue. Mas havia alguma coisa em seus olhos, que podia ser atribuída a dor, a choque e a cansaço. E também a medo. Era isso que o gerente tinha visto.

Lavou o rosto, penteou os cabelos e desejou poder tirar aquela expressão dos olhos. Voltou aonde estava o gerente e este o levou a um dos compartimentos dos fundos, bem afastado das outras atividades da casa. A cortina de tecido xadrez vermelho estava corrida diante da mesa.

- Herr Professor?

A cortina foi aberta e mostrou um homem de mais de quarenta anos, corpulento e de rosto grande, que usava uma barba curta e cabelos castanhos penteados para trás. Era um rosto simpático, de olhos vivos e bem-humorados.

- Mr. Holcroft?

- Dr. Kessler?

- Sente-se, sente-se.

Kessler fez um breve esforço para levantar-se quando estendeu a mão, mas o contato da barriga com a mesa impediu o movimento.

- Na semana que vem, hein, Rudi? Nossos regimes!

- Ach, natürlich, Professor.

- Este aqui é meu novo amigo dos Estados Unidos, Mr. Holcroft.

- Já nos conhecemos.

- É claro que se conhecem. Você me entregou a pasta. Estou bebendo scotch, Mr. Holcroft. Quer também?

- Será ótimo. Só com gelo.

O gerente saiu e Noel sentou-se. Kessler irradiava uma aura de cordialidade, embora houvesse nele uma certa dose de tolerância de uma inteligência em contato constante com cérebros inferiores, mas que se abstinha piedosamente de fazer comparações. Holcroft conhecera vários homens assim, entre eles alguns dos seus melhores professores. Sentia-se à vontade com Erich Kessler e isso era um bom começo.

- Muito obrigado por haver concordado em falar comigo. Tenho muito para lhe dizer.

- Recupere o fôlego antes. Tome um drinque e acalme-se.

- Como?

- Teve um momento difícil. É uma coisa estampada em seu rosto.

- É tão evidente assim?

- Vê-se que está profundamente perturbado, Mr. Holcroft.

- Chame-me de Noel. Temos de nos conhecer melhor.

- Nada poderia ser mais agradável. Meu nome é Erich. Está fazendo frio lá fora. O tempo está muito frio para andar sem agasalho. É claro que chegou aqui sem agasalho. Não há chapelaria aqui.

- Eu tinha um agasalho, mas tive de livrar-me dele. Vou explicar.

- Não é obrigado a explicar coisa alguma.

- Mas tenho de explicar porque faz parte do que tenho para lhe dizer.

- Compreendo. Ah! Seu scotch está aí.

Um garçom depositou o copo de uísque diante de Noel. Em seguida, saiu e correu a cortina.

- Como disse, isso faz parte de minha história - disse Noel, tomando um gole de uísque.

- Calma. Não há pressa.

- Não disse que tinha visitas em casa?

- Uma visita só. Um amigo de meu irmão de Munique. Muito simpático, mas fala demais, o que não é uma qualidade pouco comum entre os médicos. Para dizer a verdade, você me salvou a noite.

- E isso não vai aborrecer sua mulher?

- Não sou casado. Fui em outros tempos, mas parece que a vida universitária era muito monótona para ela.

- É uma pena.

- Para ela, não. Casou-se com um acrobata. Já imaginou? Passar da rotina da vida escolar para as alturas rarefeitas dos saltos mortais nos trapézios. Somos ainda bons amigos.

- Creio que seria difícil não ser amigo seu.

- Nada disso. Sou um terror numa sala de aula, um verdadeiro leão!

- Que ruge mas não morde - murmurou Noel.

- Que foi que disse?

- Nada. Estava me lembrando de uma conversa que tive ontem à noite com outra pessoa.

- Sente-se melhor?

- É engraçado.

- O quê?

- O que eu disse ontem à noite.

- À outra pessoa? - perguntou Kessler, sorrindo. - Parece mais calmo.

- Acha?

- Quer comer alguma coisa?

- Ainda não. Gostaria de começar a falar. Tenho muito para dizer e haverá muitas perguntas.

- Escutarei com toda a atenção. Ah! Ia-me esquecendo. A sua pasta.

O alemão colocou a pasta em cima da mesa e Holcroft soltou os fechos, mas não abriu a pasta.

- Há aqui dentro papéis que terá de estudar. Não estão completos, mas servirão para confirmar algumas das coisas que vou lhe dizer.

- Confirmar por quê? As coisas que me vai dizer são tão difíceis assim de aceitar?

- Podem ser - disse Noel, sentindo pena do homem, pois o mundo pacífico em que até então vivera ia desmoronar-se por completo em torno dele. - O que lhe vou dizer vai transformar a sua vida, como transformou a minha. Mas não creio que isso possa ser evitado. Eu, pelo menos, não pude evitar. Em parte por egoísmo, pois estava em jogo uma grande importância em dinheiro que me viria ter às mãos, como acontecerá com o senhor. Mas há também outros fatores da maior importância não só para mim como para o senhor. Se não fossem, eu já teria desistido há muito tempo. Mas não vou desistir. Vou continuar a fazer o que me foi pedido, pois sei que é uma coisa justa. Continuarei também porque há pessoas a quem odeio e que pretendem impedir-me. Mataram alguém a quem eu muito amava. Tentaram matar outra pessoa.

Holcroft se calou de repente. Não tivera a intenção de ir tão longe. O medo e a raiva empolgavam-no por igual. Perdera o controle e estava falando demais.

- Desculpe. Talvez eu esteja falando em coisas que nada têm a ver com o caso. Não quero amedrontá-lo.

Kessler colocou a mão no braço de Noel.

- Não se preocupe com o fato de amedrontar-me. Mas está nervoso e exausto, meu amigo. Tenho a impressão de que lhe aconteceram coisas terríveis.

Noel tomou vários goles de uísque, tentando atenuar a dor que sentia nas virilhas e na nuca.

- Não vou mentir. Houve coisas terríveis. Mas eu não queria começar assim. Não foi muito brilhante de minha parte.

- Vou lhe dizer uma coisa, Holcroft. Conheço-o há menos de cinco minutos e não creio que ser brilhante seja importante. É sem dúvida um homem muito inteligente e honesto e tem estado sujeito a tremendas tensões. Por que não tenta simplesmente começar do início, sem se preocupar com as minhas reações?

- Muito bem. Vou começar perguntando se já ouviu falar nos nomes Von Tiebolt... e Clausen.

Kessler olhou Noel por um instante e respondeu:

- Já ouvi, sim. Há muitos anos, quando eu era garoto, ouvi falar em Clausen e Von Tiebolt. Eram amigos de meu pai. Eu devia ter nessa época dez ou onze anos. Os dois iam muito à nossa casa, no fim da guerra. Lembro-me muito bem de Clausen. Era alto e tinha uma presença impressionante.

- Fale-me dele.

- Não me lembro de muita coisa.

- Diga tudo o que lhe for possível, sim?

- Se bem me recordo, Clausen dominava o lugar onde estivesse, sem qualquer esforço. Quando ele falava, todos o escutavam, mas eu não me lembro de tê-lo ouvido levantar a voz. Parecia muito bom e preocupado com os outros, mas tinha uma força de vontade extraordinária. Parecia ter sofrido muito na vida, mas não se esqueça de que lhe estou falando das impressões que me ficaram da infância.

- Que espécie de sofrimento?

- Não sei dizer ao certo. Era preciso vê-lo pessoalmente para compreender isso. Fosse qual fosse a pessoa com quem ele falava, moça ou velha, importante ou não, dava a essa pessoa absoluta atenção. Não era uma coisa muito comum naquele tempo. De qualquer maneira, recordo a figura de Clausen com mais clareza do que a de meu pai e sem dúvida mais que a de Von Tiebolt. Mas por que se interessa tanto por ele?

- Clausen era meu pai.

- Não me diga! É filho de Clausen?

- Ele foi meu pai legítimo, não o pai que eu conheci.

- Então sua mãe era...

- Althene Clausen. Ouviu alguém falar dela?

- Nunca ouvi o nome dela e nunca na presença de Clausen. Falavam em voz baixa da mulher que abandonara o grande homem, da americana que fugira da Alemanha com o filho... É você! O filho que ela tirou dele.

- Tirou, não. Salvou dele, conforme ela diz.

- Ainda é viva?

- Claro que sim.

- É incrível - murmurou Kessler, sacudindo a cabeça. - Depois de tantos anos... É um homem de quem me lembro bem. Era extraordinário.

- Todos eles eram extraordinários.

- Eles quem?

- Os três, Clausen, Von Tiebolt e Kessler. Diga-me uma coisa, sabe como foi que seu pai morreu?

- Suicidou-se. Não era uma coisa excepcional naquele tempo. Quando o Reich se desmoronou, muitas pessoas se suicidaram. Julgaram que era mais fácil.

- Para alguns, era a única saída.

- Para livrar-se de Nuremberg?

- Não. Para proteger Genebra.

- Não estou compreendendo.

- Já vai compreender.

Holcroft abriu a pasta, tirou os papéis que havia grampeado e entregou-os a Kessler.

- Há um banco em Genebra, no qual uma certa conta só pode ser liberada com o consentimento de três pessoas...

Como já fizera duas vezes, Noel contou a história do roubo colossal de trinta anos antes. Mas a Kessler disse tudo. Não omitiu fatos específicos, tal como fizera com Gretchen, nem contou a história por etapas, como fizera com Helden. Não esqueceu coisa alguma.

- O dinheiro foi interceptado nos países ocupados, obtido com a venda de objetos de arte e com o saque dos museus. Folhas de pagamento da Wehrmacht foram encaminhadas para outros destinos, milhões foram roubados das verbas do Ministério dos Armamentos e do complexo industrial, como consta da carta. Tudo foi depositado num banco da Suíça, em Genebra, com a ajuda de um homem chamado Manfredi.

- Manfredi? O nome não me é desconhecido.

- Não é de surpreender, embora eu não acredite que fosse mencionado com frequência. Lembra-se de onde foi que o ouviu?

- Não sei... Acho que foi depois da guerra.

- Foi sua mãe que falou nele?

- Não me parece. Minha mãe morreu em julho de 1945 e passou no hospital a maior parte dos seus últimos dias. Foi outra pessoa, mas não me lembro quem.

- Onde morava, depois da morte de seu pai e de sua mãe?

- Eu e meu irmão fomos morar com meu tio, irmão de minha mãe. Foi uma sorte para nós. Meu tio era velho e nunca simpatizara muito com os nazistas. Foi bem tratado pelas forças de ocupação. Mas, por favor, continue.

Noel especificou as condições estabelecidas pelos diretores de La Grande Banque de Genève, as quais o haviam levado a excluir Gretchen Beaumont de suas cogitações. Falou a Kessler da confusa emigração dos Von Tiebolt para o Brasil, do nascimento de Helden, do procedimento irregular da mãe e da fuga da família do Rio.

- Adotaram o nome de Tennyson e há cinco anos passaram a viver na Inglaterra. Johann von Tiebolt é conhecido como John Tennyson e trabalha como correspondente para o Guardian. Ainda não o conheço, mas fiz amizade com Helden e a considero uma pessoa notável.

- É ela a pessoa com quem esteve ontem à noite?

- É, sim. Quero falar-lhe dela, das coisas por que tem passado e ainda está passando. Ela e milhares de pessoas como ela fazem parte da história.

- Talvez eu saiba. Die Verwünschte Kinder.

- Como?

- Os Verwünschte Kinder. Verwünschung, em alemão, quer dizer "malditos" ou "condenados".

- Os Filhos dos Condenados - disse Noel. - Ela usou essa expressão.

- É o nome que eles se dão. Trata-se de milhares de jovens, não mais tão jovens assim, que fugiram do país porque se convenceram de que não poderiam viver com a culpa da Alemanha nazista. Rejeitaram tudo o que era alemão e adotaram novas identidades e um novo estilo de vida. Tiveram muita semelhança com os jovens americanos que deixaram os Estados Unidos e foram para o Canadá e para a Suécia por não concordarem com a política americana em relação ao Vietnam. Esses grupos formam subculturas, mas nenhum pode na realidade rejeitar as suas raízes. Continuam a ser alemães, continuam a ser americanos. Emigram em bloco e se mantêm coesos, recebendo força justamente do passado que rejeitam. O peso da culpa é muito opressivo. Pode compreender isso?

- Não, não posso - disse Noel. - Meu feitio é diferente. Não posso assumir uma culpa que não é minha.

Kessler encarou Noel.

- Isso é que eu não sei. Diz que não vai desistir desse pacto, embora terríveis coisas lhe tivessem acontecido.

Noel pensou nas palavras do professor.

- Pode haver alguma verdade nisso, mas as circunstâncias são diferentes. Não abandonei nada. Creio que fui escolhido.

- Em vez de fazer parte dos condenados, faz parte dos eleitos?

- Dos privilegiados, talvez.

O professor sorriu.

- Há um termo para isso também. Talvez já o tenha ouvido. São os Sonnenkinder, os Filhos do Sol.

- Sonnenkinder? Talvez tivesse ouvido. Mas não fui muito brilhante no meu curso de antropologia.

- Ou de filosofia. Trata-se de um conceito filosófico desenvolvido na Inglaterra em 1920 por Thomas J. Perry e, antes dele, por Bachofen na Suíça e por seus discípulos em Munique. Segundo essa teoria, os Sonnenkinder, os Filhos do Sol, têm estado conosco através dos séculos. São eles os homens que fazem a história, os que governam, os privilegiados...

- Lembro-me agora - disse Holcroft. - Foram arruinados justamente por esses privilégios. Depravaram-se e tiveram, se não me engano, um procedimento incestuoso.

- Isso não passa de uma teoria - disse Kessler. - Estamos fugindo do assunto. Estava falando de como era difícil a vida para a filha de Von Tiebolt.

- Para todos os que são como ela. Fogem constantemente. Têm de viver como perseguidos.

- São uma presa fácil para os fanáticos - disse Erich.

- Como os do ODESSA e do Rache?

- Sim. Essas organizações não podem funcionar eficientemente dentro da Alemanha, onde não são toleradas. Operam, por isso, em outros países, para onde os expatriados dissidentes como os Verwünschkinder gravitaram. Querem apenas permanecer vivos, à espera de uma oportunidade de voltar para a Alemanha.

- Voltar?

- Não o permita Deus, mas eles não podem aceitar isso. Houve um tempo em que o Rache queria que o governo de Bonn fosse um braço do Komintern, mas até Moscou os rejeitou, e eles se tornaram pura e simplesmente terroristas. O ODESSA sempre quis reviver o nazismo. É um grupo desprezado na Alemanha.

- Apesar disso, perseguem os filhos dos nazistas - disse Noel. - Estes, segundo diz Helden, são condenados pelo que foram e pelo que não foram.

- É a pura verdade.

- Essa gente devia ser contida. Uma parte do dinheiro de Genebra poderia ser usada para desmantelar tanto o ODESSA quanto o Rache.

- Não posso discordar dessa opinião.

- Fico satisfeito em saber disso. Voltemos a Genebra.

- De acordo.

Noel já havia falado nos objetivos do pacto e definira as condições exigidas dos herdeiros. Passou então a falar do que lhe acontecera.

Começou pelo crime a bordo do avião, falando depois do terror em Nova York, da transformação em seu apartamento, da carta dos homens da Wolfsschanze, do telefonema de Peter Baldwin e do subsequente assassinato do inglês. Aludiu à viagem de avião para o Rio e a um homem de espessas sobrancelhas grisalhas, Anthony Beaumont. Mencionou os registros adulterados do Serviço de Imigração e o seu estranho encontro com Maurice Graff. Acentuou a intrusão do serviço secreto inglês em Londres e a convicção dos agentes de que Johann von Tiebolt era o assassino a que davam o nome de Tinamou.

- O Tinamou? - perguntou Kessler, surpreso e com o rosto afogueado. Era a primeira vez que interrompia a narração de Holcroft.

- Sim, o Tinamou. Sabe alguma coisa sobre ele?

- Só o que tenho lido nos jornais.

- Há quem pense que ele é responsável por dezenas de assassinatos.

- E os ingleses pensam que ele é Johann von Tiebolt?

- Mas estão errados - disse Noel. - Tenho certeza de que agora já sabem disso. Ocorreu ontem à tarde um fato que o prova. Saberá dele quando eu chegar lá.

- Continue.

Contou rapidamente o que acontecera na sua visita a Gretchen e falou na fotografia de Anthony Beaumont. Falou depois de Helden e do Coronel, passando então à morte de Richard Holcroft. Relatou as conversas que tivera pelo telefone com um detetive de Nova York chamado Miles e com sua mãe.

Falou do Fiat verde que os tinha seguido até Barbizon e do homem com o rosto marcado.

Falou então da loucura da fête d’hiver. Contou como tentara surpreender o homem do Fiat e quase fora morto.

- Eu lhe disse ainda há pouco que os ingleses estavam enganados a respeito de Tennyson.

- Tennyson? Ah, sim, o nome adotado por Johann von Tiebolt.

- Isso mesmo. A Seção Cinco estava convencida de que tudo o que aconteceu em Montereau, inclusive o homem de rosto marcado que nos estava seguindo, tinha sido preparado pelo Tinamou. Mas esse homem foi morto. Ele trabalhava para Von Tiebolt. Eles sabiam disso e a própria Helden o confirmou.

- E acha que o Tinamou não iria matar o seu próprio homem? - perguntou Kessler.

- Exatamente.

- O agente dirá então a seus superiores...

- Não pode. Foi morto quando tentava salvar a vida de Helden. Haverá identificações e os ingleses relacionarão os fatos.

- E os ingleses vão descobrir que o agente morreu?

- Não podem deixar de descobrir. Havia polícia por toda parte e o corpo dele foi certamente encontrado.

- Você pode ser envolvido no caso?

- É bem possível. Lutamos na praça e há pessoas que devem lembrar-se disso. Mas, como disse Helden, nós fomos seguidos; não seguimos ninguém. Não há motivo para que saibamos de coisa alguma.

- Parece ter alguma incerteza.

- Antes que o agente morresse, mencionei o nome de Baldwin para ver se ficaria sabendo de alguma coisa. Ele reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Pediu a Helden e a mim que procurássemos um homem chamado Payton-Jones. Devíamos dizer a esse homem tudo o que havia acontecido, comunicar-lhe quem nos atacara e quem matara o homem de Von Tiebolt e, principalmente, dizer que ele acreditava que tudo se relacionava com Peter Baldwin.

- Com Baldwin? Ele era da Seção Seis, não era?

- Era. Tinha dado antes informações à Seção Cinco sobre os sobreviventes da Wolfsschanze.

- Da Wolfsschanze? Foi a carta escrita há mais de trinta anos que Manfredi lhe entregou em Genebra.

- Justamente. O agente disse que devíamos dizer a Payton-Jones para examinar a ficha de Baldwin e usar o Código Wolfsschanze. Foi a expressão que ele usou.

- Quando Baldwin lhe falou pelo telefone em Nova York, mencionou a Wolfsschanze?

- Não. Disse apenas que eu devia afastar-me de Genebra e que ele sabia coisas que ninguém mais sabia. Nesse instante, bateram na porta e ele nunca mais voltou ao telefone.

Os olhos de Kessler estavam mais frios.

- Isso mostra que Baldwin sabia de Genebra e do empenho da Wolfsschanze no caso.

- Ignoramos o que ele sabia. Talvez fosse muito pouco. Apenas rumores.

- Mas esses rumores foram suficientes para impedi-lo de procurar a Seção Cinco. Até a vantagem de poder avisá-los de que Beaumont era do ODESSA não valia a pena. Os ingleses interrogariam você e a moça. Há mil maneiras de interrogar, e eles são peritos. O nome de Baldwin poderia vir à tona e eles iriam examinar-lhe a ficha. Você não pode correr esse risco.

- Cheguei à mesma conclusão - disse Holcroft.

- Talvez haja outro meio de afastar Beaumont do seu caminho.

- Como?

- O ODESSA é detestado aqui na Alemanha. Bastaria uma palavra com as pessoas certas e ele seria afastado. Você não teria de procurar diretamente os ingleses, arriscando-se a que o nome de Baldwin fosse ventilado.

- E isso pode ser conseguido?

- Sem dúvida. Se Beaumont é realmente um agente do ODESSA, uma breve nota do governo de Bonn ao Foreign Office seria suficiente. Conheço vários homens que poderiam encarregar-se disso.

Holcroft sentiu uma onda de satisfação. Mais um obstáculo era removido.

- Estou muito contente de nos conhecermos e de você ser quem é e não uma outra pessoa.

- Não tenha muita pressa em formar uma opinião. Quer minha resposta, não é? Quer saber se eu me juntarei a você? Francamente...

- Não quero ainda sua resposta - disse Noel. - Tem sido honesto comigo e eu tenho de ser honesto também. Ainda não acabei. Houve alguma coisa esta noite.

- Esta noite?

- Sim, nas últimas duas horas.

- Que foi que aconteceu?

- Sabemos do Rache e do ODESSA. Desconhecemos o que eles conhecem a respeito de Genebra, mas calculamos o que poderiam fazer se soubessem o suficiente. Sabemos também da Wolfsschanze. É um grupo de fanáticos, não muito melhores do que os outros, mas, por isto ou por aquilo, estão do nosso lado e querem que Genebra tenha êxito. Mas há mais alguém. Há um grupo, talvez mais poderoso do que os outros. Foi o que descobri esta noite.

- Que é que está dizendo? - perguntou Kessler sem alterar o tom de voz.

- Um homem numa bicicleta motorizada seguiu-me hoje logo que saí do hotel. Perseguiu o táxi que tomei através de Berlim.

- Um homem numa bicicleta motorizada?

- Sim. E como um idiota eu o trouxe até aqui. Quando percebi o meu erro, compreendi que tinha de detê-lo. Consegui, mas não queria que acontecesse o que aconteceu. O homem não fazia parte do Rache, nem do ODESSA. Odiava ambos os grupos e os chamou todos de assassinos e palhaços...

Kessler ficou por um instante em silêncio. Continuou então, recuperando parte da calma que havia perdido.

- Diga-me tudo o que aconteceu e tudo o que foi dito...

Holcroft não teve dificuldade em lembrar-se de tudo. Quando ele acabou, Kessler lhe pediu que repetisse as palavras que ele e o homem do blusão de couro tinham trocado. Depois, tornou a pedir a repetição das palavras.

- Quem era ele? E a que grupo pertence? - perguntou Holcroft.

- Há várias possibilidades, mas é evidente que se trata de nazistas, mais exatamente de neonazistas. Descendentes do partido, uma facção que não se une aos homens do ODESSA.

- Como é que sabem de Genebra?

- Milhões roubados dos países ocupados, das folhas de pagamento da Wehrmacht e das verbas dos ministérios, tudo depositado num banco da Suíça. Essas coisas não podiam ser completamente secretas.

Alguma coisa que Kessler tinha dito preocupava Noel, mas ele não podia saber ao certo o que era.

- Mas que é que adianta isso a eles? Não poderiam receber o dinheiro. O máximo que poderiam conseguir seria encalhar tudo nos tribunais durante anos a fio. Que benefício isso traria para eles?

- Você não conhece a fundo a mentalidade nazista. É importante para eles beneficiarem-se com as coisas, mas é igualmente importante impedir que outros se beneficiem delas. Essa determinação negativa é essencial para eles.

De repente, houve grande agitação no interior do café. Ouviram-se barulhos de coisas quebradas e um grito de mulher seguido de muitos outros gritos.

A cortina do compartimento foi então violentamente aberta. Um homem apareceu e deu um pulo, caindo sobre a mesa, com os olhos arregalados e com o sangue a correr-lhe da boca e do pescoço. Tinha a boca apertada e o seu corpo se contorcia em convulsões. Agarrou-se às quinas da mesa e murmurou quase sem poder respirar:

- Wolfsschanze! Soldaten von Wolfsschanze![30]

Levantou a cabeça para um último grito. Mas o fôlego lhe faltou por completo e ele bateu com a cabeça na mesa. O homem do blusão de couro estava morto.


26

Os momentos seguintes foram de confusão e tumulto para Noel. Os gritos aumentaram e o pânico dominou o restaurante. O homem ensanguentado havia escorregado da mesa e estava estendido no chão.

- Rudi! Rudi!

- Venha comigo, Herr Kessler!

- Depressa! - disse Erich.

- Como?

- Por aqui, meu amigo. Você não pode ser visto aqui.

- Mas foi esse o homem!

- Não diga nada, Noel. Por favor, segure meu braço.

- Para onde?

- Sua pasta! Os papéis!

Holcroft pegou os papéis e guardou-os na pasta. Sentiu-se então puxado por entre um grupo de curiosos. Não sabia para onde o estavam levando, mas bastava que fosse para bem longe do corpo do homem do blusão de couro.

Kessler puxava-o através da multidão, enquanto o gerente ia à frente, abrindo caminho, até que chegaram a uma porta fechada atrás e à esquerda da escada. O gerente tirou uma chave do bolso, abriu a porta e os três entraram. Trancou a porta e voltou-se para Kessler.

- Francamente, não sei nem o que dizer. Uma briga de bêbados.

- São coisas que acontecem, Rudi. Muito obrigado!

- Um homem de sua posição não se pode envolver nessas coisas.

- Muita bondade sua. Há uma saída para a rua?

- Decerto. A minha entrada particular. Venham.

A entrada dava para uma área de serviço.

- Vamos. Meu carro está na rua.

Foram sair na Kurfürstendamm e viraram à esquerda no passeio. Havia já um grande ajuntamento em frente ao restaurante. Um policial corria para lá.

- Depressa! - disse Kessler.

O carro era um velho Mercedes. Embarcaram nele e Kessler deu imediatamente a partida, saindo na direção oeste.

- Aquele homem do blusão foi o mesmo que me seguiu - murmurou Holcroft.

- Calculei isso. Apesar de tudo, ele seguiu a sua pista.

- Que foi que eu fiz, meu Deus? - exclamou Noel.

- Não foi você que o matou, se é isso que o está preocupando.

- Como assim?

- Estou dizendo que não foi você quem matou aquele homem.

- Mas a pistola disparou e ele levou o tiro.

- Não duvido. Mas não foi sua bala que o matou.

- Que foi então?

- É claro que você não olhou para o pescoço dele. O homem foi garroteado.

- Como Baldwin em Nova York!

- Foi a Wolfsschanze em Berlim - disse Kessler. - A morte do homem foi planejada até uma fração de segundo. Alguém no restaurante conseguiu levá-lo até perto de nossa mesa e se aproveitou do barulho e da sala cheia para perpetrar a execução.

- Oh! Então quem foi...

Noel não pôde concluir a frase. O medo convulsionava-o e ele sentia vontade de vomitar.

- Quem foi sabe agora que eu faço parte de Genebra - disse Kessler. - E é essa a minha resposta. Não tenho alternativa. Estou com você.

- Oh, não! Eu queria que pensasse no caso e decidisse com toda a liberdade.

- Sei disso e lhe agradeço. Mas aceito, embora deva insistir numa condição.

- Qual é?

- Meu irmão Hans, em Munique, deve participar do pacto.

Noel recordou as palavras de Manfredi. Não havia restrições a esse respeito. A única determinação era que cada uma das três famílias só teria direito a um voto.

- Não há nada que o impeça, desde que ele queira.

- Vai querer, sim. Somos muito unidos. Você vai gostar dele.

- Não tenho a menor dúvida disso.

- Escute, estou dirigindo meio sem rumo. Gostaria de levá-lo para minha casa, mas em face das circunstâncias não acho conveniente.

- Já causei transtornos demais. Mas acho que deve voltar ao restaurante.

- Por quê?

- Se tivermos sorte, ninguém terá dado o seu nome à polícia e a sua volta ao local não terá a menor importância. Mas, se um garçom ou alguém que o conhecesse deu o seu nome, poderá alegar que estava de saída quando tudo aconteceu.

Kessler sacudiu a cabeça.

- Sou um homem pacífico. Essas ideias nunca me teriam ocorrido.

- Nem a mim, três semanas atrás. Por favor, deixe-me num ponto de táxi. Tenho de ir ao hotel pegar a minha mala.

- Nada disso. Vou levá-lo até o hotel.

- Não devemos mais ser vistos juntos. Será provocar perigos.

- Tenho de escutá-lo. Quando nos veremos de novo?

- Eu lhe telefonarei de Paris. Devo encontrar-me com Von Tiebolt dentro em pouco. Depois, teremos os três de ir juntos a Genebra. Resta-nos bem pouco tempo.

- E o homem de Nova York, Miles?

- Isso eu lhe explicarei depois, com outras coisas. Há um táxi ali na esquina.

- Que vai fazer agora? Acho que não há mais aviões a esta hora.

- Esperarei no aeroporto. Não quero ficar isolado num quarto de hotel.

O carro parou e Holcroft abriu a porta.

- Muito obrigado por tudo, Erich. Desculpe.

- Não há de quê, Noel. Telefone-me.

O homem louro estava sentado rigidamente diante da mesa na biblioteca de Kessler. Os seus olhos fuzilavam e a voz estava carregada de tensão.

- Conte-me tudo de novo. Não esqueça nada.

- Que adianta isso? - perguntou Kessler do outro lado da sala. - Já lhe disse tudo dez vezes, sem esquecer coisa alguma.

- Neste caso, vai contar mais dez vezes, trinta, quarenta! - exclamou Johann von Tiebolt. - Quem era ele? De onde veio? Quem eram os dois homens de Montereau? Estavam ligados! De onde vieram os três?

- Não sabemos - disse o professor. - Não há jeito de sabermos.

- Mas tudo está aí, não vê? A solução está no que o homem disse a Holcroft naquela rua estreita! Tenho certeza disso! Já ouvi as palavras e tudo está aí!

- Ora essa, você teve o homem nas mãos! - disse Kessler com firmeza. - Se não pôde saber nada dele, por que julga que podemos extrair alguma coisa do que Holcroft disse? Você devia ter forçado o homem.

- Não foi possível. O estado dele não permitia qualquer ação de nossa parte.

- Por isso, matou-o com um arame no pescoço e jogou-o para o americano. Foi uma loucura!

- Loucura, não; coerência - disse Tennyson. - Holcroft tem de ficar convencido de que a Wolfsschanze está em toda parte. Instigando, ameaçando, protegendo... Voltemos ao que foi dito. Segundo Holcroft, o homem não estava com medo de morrer. Disse, mais, que estava preparado, que todos estavam preparados. Que iriam fazê-lo parar e fazer parar Genebra. Se fosse morto, outro tomaria o lugar dele. Se esse também fosse morto, apareceria um terceiro. Foram palavras de um fanático. Mas ele não era um fanático. Vi isso pessoalmente. Não era um agente do ODESSA, nem um revolucionário do Rache. Holcroft está certo nisso. O homem era outra coisa.

- Chegamos então a um impasse.

- Totalmente, não. Tenho um homem em Paris para apurar a identidade dos homens mortos em Montereau.

- A Sûreté?

- Sim. É um perito. - Deu um suspiro e continuou: - Tudo isso é incrível. Ao fim de trinta anos, fazem-se os primeiros lances a descoberto e, em duas semanas, os homens aparecem como por encanto. Parece até que ficaram à nossa espera durante trinta anos. Entretanto, não agiram abertamente. Por quê? É o ponto capital. Por quê?

- O homem disse a Holcroft, na rua estreita, que podiam utilizar a fortuna de Genebra. Só poderão fazer isso se revelarem as fontes do dinheiro.

- A coisa é muito simples. Se fosse só o dinheiro, nada os impediria de procurar-nos ou aos diretores do banco e entrar em negociações com uma posição muito forte. Quase oitocentos milhões. Do ponto de vista deles, poderiam exigir dois terços dessa quantia. Morreriam em seguida, mas não sabem disso. Não, Erich, não é só o dinheiro. Devem estar à procura de mais alguma coisa.

- Devemos dar atenção a outra crise, Johann. Fosse quem fosse o homem, fossem quem fossem os homens de Montereau, o problema maior não é esse. Os ingleses sabem que você é o Tinamou. Não despreze mais esse fato: sabem que você é o Tinamou!

- Não é bem assim. Apenas suspeitam disso e, como Holcroft disse, em breve se convencerão de que estavam errados, se já não estão convencidos. Na verdade, a posição é muito favorável.

- Você está louco! - exclamou Kessler. - Assim vai pôr tudo em perigo!

- Ao contrário. Isso consolidará tudo. Que melhor aliado poderemos ter que a Seção Cinco? Sem dúvida, temos nossos homens no serviço secreto inglês, mas nenhum está em posição melhor do que Payton-Jones.

- De que é que você está falando? - perguntou o professor, incrivelmente agitado.

- Sente-se, Erich.

- Não!

- Sente-se!

Kessler sentou-se.

- Não posso tolerar isso, Johann!

- Não tolere o que bem quiser, mas escute. Por alguns minutos, vamos inverter os papéis e o professor serei eu.

- Não faça pressão sobre mim. Podemos enfrentar intrusos que agem na sombra, pois têm alguma coisa para esconder. Mas isso não podemos enfrentar. Se você for apanhado, que restará?

- Isso é muito lisonjeiro, mas não deve pensar dessa maneira. Se me acontecer alguma coisa, há as listas com os nomes de nossa gente em toda parte. Entre eles um nome poderá ser encontrado e o Quarto Reich terá um chefe de qualquer maneira. Mas nada me acontecerá. O Tinamou é meu escudo, minha proteção. Com a captura do Tinamou, eu ficarei livre de suspeitas e, além disso, merecerei grande respeito.

- Você não está em seu juízo perfeito! O Tinamou é você.

Tennyson sorriu.

- Vamos examinar nosso assassino, está bem? Há dez anos, você disse que o Tinamou era a minha melhor criação. E, se não estou enganado, disse também que o Tinamou poderia vir a ser a nossa arma mais importante.

- Em teoria, apenas em teoria. Disse também que era uma opinião puramente intelectual.

- É verdade. Você de vez em quando corre para a sua torre de marfim e assim é que deve ser. Mas você está certo, sabe disso? Em última análise, os milhões que estão na Suíça nada valem se não puderem ser usados. Há leis por toda parte. É preciso passar por cima delas. Não é mais tão simples como já foi comprar um Reichstag, um bloco de cadeiras no Parlamento inglês ou uma eleição nos Estados Unidos. Mas para nós a ação não é em parte alguma tão difícil quanto seria para outros. Foi essa sua opinião há dez anos e ainda é mais válida hoje. Estamos em condições de fazer exigências extraordinárias aos homens mais influentes dos principais governos. Eles pagaram ao Tinamou para assassinar os seus adversários. De Washington a Paris e ao Cairo, de Atenas a Beirute e a Madri, de Londres a Varsóvia e até a Moscou. O Tinamou é irresistível. É a nossa bomba nuclear.

- E pode envolver-nos na poluição atômica.

- Pode, mas não vai envolver. Há alguns anos, Erich, assumimos o compromisso de não ter segredos um para o outro, e eu mantive esse compromisso, salvo num caso. Não lhe peço desculpas porque foi, afinal de contas, uma decisão de comando e eu a julguei necessária.

- Que foi que você fez?

- Assegurei aquela arma importante de que você falou há dez anos.

- Como?

- Ainda há pouco, você foi bem específico. Levantou a voz e disse que eu era o Tinamou.

- E é.

- Não sou.

- Que é que está dizendo?

- Sou apenas a metade do Tinamou. É claro que sou a melhor metade, mas apenas a metade. Treinei durante anos outro homem, que é meu substituto nesse setor. Aprendeu sua perícia, adquiriu sua habilidade e, depois do verdadeiro Tinamou, é o melhor da terra.

O professor olhou Tennyson com assombro e respeito.

- Esse homem é um dos nossos? Um Sonnenkind?

- Claro que não. É um assassino assalariado. Não sabe de nada, mas vive em grande estilo e tem todos os seus desejos satisfeitos, graças às grandes quantias que recebe. Sabe também que um dia terá de pagar o preço pela vida que leva e está conformado. É um profissional.

Kessler sentou-se e desabotoou o colarinho.

- Devo dizer que você nunca deixa de me espantar.

- Ainda não acabei - disse Tennyson. - Em breve, deverá realizar-se em Londres uma importante reunião de chefes de Estado. Será a oportunidade perfeita. O Tinamou será capturado.

- Será o quê?

- Você ouviu muito bem o que eu disse - murmurou Tennyson, sorrindo. - Será capturado com uma arma do mesmo calibre e das mesmas marcas de cano dos assassinatos anteriores. Será capturado e morto pelo homem que anda na pista dele há quase seis anos. Trata-se de um homem que, para sua proteção, não quer recompensas nem sequer menção do seu nome. Esse homem está em entendimento com os serviços secretos do seu pais de adoção. Chama-se John Tennyson, correspondente do Guardian, na Europa.

- Meu Deus! - exclamou Kessler. - Como conseguirá fazer isso?

- Nem você poderá saber. Mas haverá lucros tão grandes quanto os de Genebra. Saber-se-á pela imprensa que o Tinamou tinha arquivos particulares. Esses arquivos não serão encontrados e todos pensarão que foram roubados por alguém. Mas os arquivos ficarão em nosso poder. E assim, até na morte, o Tinamou nos servirá ainda.

Kessler meneou a cabeça, admirado.

- Você pensa de maneira estranha. É a sua qualidade essencial.

- Entre outras. E nossa nova aliança com a Seção Cinco poderá ser-nos muito útil. Talvez haja serviços secretos mais complexos, mas nenhum é melhor do que a Seção Cinco. Mas vamos voltar ao nosso inimigo desconhecido. A sua identidade está nas palavras que proferiu naquela rua. Já as ouvi e sei disso.

- Já esgotamos esse ângulo.

- Ainda nem começamos - disse Tennyson, pegando papel e uma caneta. - Agora, do princípio. Vamos escrever tudo o que ele disse e tudo de que você se lembra.

O professor deu um suspiro.

- Está bem. Do começo. Segundo Holcroft, as primeiras palavras do homem referiram-se às mortes na França e ao fato de que Holcroft não hesitara nessa ocasião em disparar a sua pistola...

Kessler falava. Tennyson escutava e o interrompia de vez em quando, pedindo a repetição de palavras e frases. Escrevia febrilmente. Quarenta minutos se passaram.

- Não posso prosseguir - disse Kessler. - Não há nada mais para dizer.

- De novo as águias - replicou Tennyson asperamente. - Repita as palavras exatamente como Holcroft as disse.

- Águias? "Não deterão as águias. Desta vez, não." Referia-se ele à Luftwaffe? Ou à Wehrmacht?

- Não é provável - disse Tennyson, olhando para as laudas escritas à sua frente. Bateu com o dedo em alguma coisa que escrevera. - Aqui diz: "A sua Wolfsschanze". A Wolfsschanze... Queria dizer que a nossa não era a deles.

- Que é que está dizendo? - exclamou Kessler. - Nós somos a Wolfsschanze. Os homens da Wolfsschanze são os Sonnenkinder!

Tennyson não deu importância à interrupção.

- Von Stauffenberg, Olbricht, Von Falkenhausen e Höpner. Rommel dizia que eles eram as verdadeiras águias da Alemanha. Eram os insurretos, os homens que tentaram matar Hitler. Todos eles foram fuzilados. Rommel recebeu ordem de suicidar-se. Foi a essas águias que o homem se referiu. A Wolfsschanze era a deles e não a nossa.

- Aonde isso nos levará? Escute, Johann, estou exausto! Não posso continuar.

Tennyson tinha escrito cerca de doze laudas e as repassava, sublinhando frases e destacando palavras com um círculo.

- Pode ser que você tenha dito o bastante. Tudo está aqui... nesta parte... Usou as palavras "assassinos e palhaços". E depois: "Não deterão as águias". Segundos depois, Holcroft disse que a conta seria bloqueada durante muitos anos, pois havia condições, e que o dinheiro seria guardado de novo. O homem disse que aí é que estava a falha, pois não haveria "terra arrasada"... Terra arrasada...

O rosto de Tennyson ficou muito sério. Recostou-se na cadeira, com os olhos fixos no papel.

- Não pode ser! Depois de tantos anos! A Operação Barba-Roxa. A "terra arrasada" da Operação Barba-Roxa! Meu Deus! É o Nachrichtendienst!

- Que é que está dizendo? A Operação Barba-Roxa foi a primeira invasão de Hitler no norte, uma vitória magnífica!

- Ele a considerou uma vitória. Os prussianos consideraram-na um desastre. Uma vitória vazia, conseguida à custa de muito sangue. Divisões inteiras despreparadas e dizimadas. Os generais disseram que tinham tomado a terra, mas foi só a terra inútil e arrasada de Barba-Roxa. Foi então que surgiu o Nachrichtendienst.

- O que era?

- Uma unidade de serviço secreto, exclusivamente junker, um corpo de aristocratas. Houve depois quem pensasse que se tratava de uma operação destinada a suscitar desconfiança entre os russos e o Ocidente. Mas não foi. Trabalhava por conta própria e detestava Hitler. Desprezava os camisas-pardas das SS, chamando-os de "lixo das SS", e odiava os comandantes da Luftwaffe. Eram todos chamados de "assassinos e palhaços". Estava acima da guerra, acima do partido. Reconhecia apenas a Alemanha, a Alemanha deles.

- Conclua o seu pensamento, Johann! - disse Kessler.

- O Nachrichtendienst sobrevive. É o intruso que quer destruir Genebra. Tudo fará para matar ainda no nascedouro o Quarto Reich!


27

Noel esperava na ponte, vendo as luzes de Paris tremeluzirem como feixes de pequenas velas. Tinha falado com Helden nas Edições Gallimard e ela combinara encontrar-se com ele depois do trabalho no Pont Neuf. Tinha tentado convencê-lo a irem para o hotel em Argenteuil, mas ela se recusara.

- Você me prometeu dias e semanas, se eu quisesse, Helden.

- Prometi a mim e a você, querido. E nós vamos ter tudo isso, mas não em Argenteuil. Explicarei tudo quando nos encontrarmos.

Eram apenas cinco e um quarto. A noite de inverno descia rapidamente sobre Paris e o vento frio que vinha do rio o penetrava. Levantou a gola do seu sobretudo de segunda mão para proteger-se da friagem. Olhou de novo o relógio. Os ponteiros estavam no mesmo lugar onde os vira dez segundos antes.

Sentia-se como um adolescente à espera de uma mocinha num clube de campo sob um luar de verão e sorriu nervosamente, sem querer reconhecer a ansiedade em que estava. Não havia luar, nem era uma noite quente de verão. Estava numa ponte de Paris, fazia frio, ele vestia um velho sobretudo usado e tinha uma pistola no bolso.

Viu-a chegar à ponte. Vestia a capa escura e tinha sobre os cabelos um lenço vermelho que lhe emoldurava o rosto. O andar dela era firme, nem apressado, nem distraído. Era apenas uma moça que voltava para casa sozinha depois do trabalho. Salvo pelas suas feições características, por ele vislumbradas de longe, não se distinguia de milhares de outras moças que voltavam para casa no começo da noite.

Ela o viu. Noel começou a caminhar ao encontro dela, mas Helden fez-lhe com a mão sinal para que ficasse onde estava. Ele não se incomodou com o sinal, ansioso pelo encontro com ela, e correu de braços abertos. Ela se aninhou entre eles e os dois se abraçaram. Noel sentiu a alegria de estar com ela de novo. Ela olhou para ele, sorrindo, e disse:

- Nunca se deve correr numa ponte. É uma coisa que chama muito a atenção. Devia andar normalmente, sem correr.

- Estava com saudades. O resto não interessa.

- Você ainda tem muito que aprender, querido. Como foi em Berlim?

Noel passou o braço pelos ombros dela e os dois caminharam juntos para o Quai Saint-Bernard e para a Rive Gauche.

- Tenho muitas coisas para lhe contar, algumas boas, outras não tanto. Mas, se aprender alguma coisa é progresso, creio que dei alguns passos muito importantes. Já soube de seu irmão?

- Já. Telefonou-me uma hora depois de você. Alterou os seus planos e poderá estar em Paris amanhã.

- Essa é a melhor notícia que você me poderia dar. Escute, sentiu saudades?

- Noel, você é louco? Não deu tempo. Você partiu ontem à tarde. Eu mal tive tempo de chegar em casa, tomar um banho, dormir, acordar e ir para o trabalho.

- Foi para casa? Para o seu apartamento?

- Não, eu... Muito bem, Noel Holcroft, novo recruta. Seja mais hábil.

- Não tenho a menor vontade de ser hábil...

- Você me prometeu não fazer essa pergunta.

- Não prometi coisa nenhuma. Perguntei se você era casada ou se vivia com alguém. Recebi uma resposta negativa à primeira pergunta e uma resposta equívoca à segunda. Mas nunca na verdade prometi não querer saber onde você morava.

- Isso estava implícito, querido. Um dia, eu lhe direi e você verá como é absurda a sua ansiedade.

- Diga-me tudo agora. Estou apaixonado e quero saber onde meu amor vive.

O sorriso desapareceu por um instante dos lábios dela.

- Você é como um garotinho praticando uma palavra nova. Você não me conhece o suficiente para estar tão apaixonado. Já lhe disse isso.

- Esqueci-me. Você gosta de mulheres.

- Tenho algumas boas amigas.

- Mas não poderá casar-se com nenhuma delas.

- Não vou me casar com ninguém.

- Ótimo. Assim será menos complicado. Viva comigo durante dez anos com opções válidas para ambas as partes.

- Você às vezes diz coisas simpáticas.

Pararam numa esquina. Ele voltou Helden para si e murmurou, com as mãos nos braços dela:

- Digo essas coisas porque as sinto.

- Acredito - disse ela com os olhos curiosamente cheios de interrogação e de medo.

Noel percebeu o medo e ficou preocupado. Sorriu e perguntou:

- Será que me ama um pouco?

Ela não pôde voltar a sorrir.

- Creio que o amo mais do que um pouco. Você é um problema que eu não queria, Noel. Não sei bem se poderei resolvê-lo.

- Isso é bem melhor do que eu esperava - disse ele, tomando-a pela mão para atravessar a rua. - É bom saber que você não possui soluções para todos os casos.

- Pensou mesmo isso?

- Não, mas julgava que você pensava assim.

- Pois não penso.

- Sei disso.

O restaurante estava meio lotado de fregueses. Helden pediu uma mesa nos fundos, que não fosse visível da entrada. O proprietário assentiu. Era evidente que estranhava como aquela belle femme podia tolerar a companhia de um homem tão malvestido. Nos seus olhos, havia o comentário tristonho de que as coisas não estavam correndo bem naquele tempo para as mulheres de Paris.

- O homem não simpatizou comigo - disse Holcroft.

- Não perca a esperança. Você subiu na estima dele quando pediu um uísque bem caro. Viu como os olhos dele brilharam?

- Ele estava olhando para o meu paletó. Saiu de um cabide melhor que o meu sobretudo.

Helden riu.

- A finalidade do sobretudo não foi exatamente conferir-lhe elegância. Usou-o em Berlim?

- Claro. Estava vestido com ele quando abordei uma prostituta. Está com ciúmes?

- Não posso estar com ciúmes de alguém que aceitou uma proposta de um homem vestido como você estava.

- Ela era linda.

- Você teve sorte. Devia ser uma agente do ODESSA, e você contraiu uma doença social, como estava planejado. Procure um médico antes de falar de novo comigo.

Noel segurou-lhe a mão e não havia qualquer traço de humor na sua voz quando ele falou.

- O ODESSA não nos deve preocupar, nem o Rache. Foi uma das coisas que aprendi em Berlim. Talvez nenhum dos dois grupos saiba de coisa alguma a respeito de Genebra.

- Espere um pouco. E Beaumont? Você disse que ele era do ODESSA e que o seguiu quando você viajou para o Rio.

- Creio que ele é do ODESSA e que me seguiu na viagem ao Rio, mas não por causa de Genebra. Ele é ligado a Maurice Graff. Soube que eu estava à procura de Johann von Tiebolt. Foi por isso que me seguiu e não por qualquer motivo relacionado com Genebra. Saberei mais depois de falar com seu irmão amanhã. De qualquer maneira, Beaumont estará afastado de tudo dentro de alguns dias. Kessler está cuidando disso. Assegurou-me que telefonaria para uma pessoa influente no governo de Bonn.

- É tão simples assim?

- Seja como for, não será difícil. Qualquer vislumbre do ODESSA, principalmente entre os militares, é bastante para desencadear uma sucessão de inquéritos. Beaumont será afastado.

- Se não é o ODESSA, nem o Rache, de que é que se trata?

- Isso se relaciona com o que lhe vou contar. Eu tinha de me desembaraçar do blusão e do boné.

- Sim? - perguntou Helden, confusa com a aparente incongruência.

Contou então o que acontecera na rua estreita e escura, atenuando um pouco a violência. Falou então da sua conversa com Kessler, sabendo, quando chegou ao fim, que não poderia omitir o assassinato do desconhecido do blusão de couro. Contaria tudo ao irmão dela no dia seguinte, e esconder os fatos de Helden não teria sentido. Quando ele terminou, ela estremeceu, cerrando os punhos.

- Tudo isso é horrível. Kessler tinha alguma ideia de quem era o homem e de onde ele vinha?

- A bem dizer, não. Examinamos tudo o que o homem havia dito, procurando uma pista, mas não chegamos a qualquer conclusão válida. Na opinião de Kessler, o homem fazia parte de algum grupo neonazista, de descendentes do partido, como ele disse. Trata-se de uma facção dissidente que não se utiliza do ODESSA.

- Como é que essa gente tem conhecimento da conta em Genebra?

- Foi o que eu perguntei a Kessler. Ele disse que as manobras necessárias para fazer tanto dinheiro sair da Alemanha não poderiam ter sido tão secretas quanto nós julgávamos. Outras pessoas poderiam ter sabido delas.

- Mas Genebra se baseia no sigilo. Sem isso, irá por água abaixo.

- Tudo é uma questão de graus. Quando um segredo é realmente um segredo? Que é que distingue informações confidenciais de dados absolutamente secretos? Algumas pessoas descobriram a existência de Genebra e querem impedir-nos de receber o dinheiro e usá-lo da maneira pela qual deve ser usado. Querem o dinheiro para elas e, portanto, não vão revelar coisa alguma.

- Mas, se sabem tanto, devem saber também que não vão conseguir o dinheiro.

- Pode não ser necessariamente assim.

- É preciso então dizer-lhes a verdade.

- Tentei dizer isso ao homem da rua estreita, mas ele não ficou convencido. Ainda que tivesse ficado, pouca diferença isso faria agora.

- Mas não vê que é preciso alguém procurar essa gente, seja ela quem for, e convencê-la de que não poderá ganhar nada em opor-se a você, a meu irmão e a Erich Kessler?

- Não tenho tanta certeza assim de que devamos fazer isso, Helden. Kessler disse uma coisa que desde então muito me preocupa. Disse que nós, englobando decerto nesse plural todos os que havíamos estudado de perto o assunto, jamais compreenderíamos o nazista fanático. Para este, não é apenas uma questão de auferir benefícios. É também da maior importância que outros não se beneficiem. Kessler disse que se tratava de uma tendência essencial à destruição.

- Nesse caso, se souberem - murmurou Helden -, matarão os três, pois sem vocês não poderá haver Genebra.

- Só daqui a mais uma geração. É um motivo suficiente. O dinheiro permanecerá nos cofres do banco por mais trinta anos.

Helden levou a mão à boca.

- Espere um pouco. Há uma coisa terrivelmente estranha em tudo isso. Tentaram matá-lo. Desde o início... você.

- Não podemos ter certeza disso, Helden...

- Certeza? Que certeza mais quer você? Houve a estricnina a bordo do avião, os tiros no Rio. Que mais você quer?

- Quero saber o que há por trás dessas coisas. É por isso que tenho de falar com seu irmão.

- Que poderá Johann dizer-lhe?

- A quem foi que ele matou no Rio. Vou explicar. Estamos no meio... eu, pelo menos, estou... de duas lutas que não têm a menor relação entre si. O que aconteceu a seu irmão no Rio não tem qualquer ligação com Genebra. Foi nisso que eu errei. Liguei tudo a Genebra. Mas não. As coisas são distintas.

- Tentei dizer-lhe isso.

- Meu raciocínio foi lento. Mas a verdade é que até então ninguém tentara envenenar-me, ninguém disparara uma arma contra mim ou tentara cravar-me uma faca no corpo. Essas coisas alteram os processos mentais. Pelo menos, foi o que aconteceu comigo.

- Johann é um homem de múltiplos interesses, Noel. Pode ser encantador e muito simpático, mas pode ser também extremamente reticente. É uma característica dele. A vida de Johann tem sido muito estranha. Às vezes, penso nele como um besouro reluzente. Voa rapidamente de um lugar para outro, de um interesse para outro, sempre brilhantemente, sempre deixando sua marca, mas nem sempre querendo que essa marca seja reconhecida.

- Aqui, ali, em toda parte. Está me descrevendo seu irmão como uma espécie de Pimpinela Escarlate.

- Exatamente. Johann pode não lhe dizer o que aconteceu no Rio.

- Mas é preciso. Eu tenho de saber.

- Desde que isso não tenha relação com Genebra, ele poderá discordar.

- Procurarei convencê-lo. Temos de saber o quanto ele é vulnerável.

- Digamos que ele seja vulnerável. Que vai acontecer então?

- Ele não terá condições de participar de Genebra. Sabemos que matou alguém e você ouviu um homem rico e influente dizer que queria vê-lo condenado como assassino. Sei que ele teve divergências com Graff e, portanto, com o ODESSA. Fugiu para salvar a vida. Levou sua irmã e você, mas era a si mesmo que estava protegendo. Desde então, envolveu-se em muitas complicações. Há pessoas à caça dele e não é absurdo supor que possa ser alvo de chantagens. Tudo isso pode abalar e desvirtuar Genebra.

- Será preciso dizer tudo isso aos homens do banco?

- Sim, eu teria de dizer a eles. Estamos falando de setecentos e oitenta milhões de dólares e de três homens que fizeram uma coisa notável. Foi um gesto histórico o deles, segundo creio. Se seu irmão puser isso em perigo ou prejudicar de qualquer maneira a operação, será melhor que esses milhões fiquem guardados à espera da próxima geração. Mas não terá de ser assim. De acordo com as regras estabelecidas, você terá de ser a executora por parte de Von Tiebolt.

- Não posso aceitar, Noel. Deve ser Johann. Não só ele tem mais qualidades para participar de Genebra, mas também merece essa participação. Não posso tomar o lugar dele.

- E eu não poderei dar-lhe o lugar, se ele for capaz de quebrar o pacto. Conversaremos sobre isso depois que eu falar com ele.

Helden olhou-o demoradamente e perguntou:

- Você é um homem muito moralista, não é, Noel?

- Não, pois não sou intransigente. Estou apenas revoltado e cansado dos rarefeitos círculos financeiros. Há muito disso em minha terra.

- Rarefeitos círculos financeiros?

- Foi uma frase usada por meu pai na carta que me escreveu.

- É estranho - murmurou Helden.

- Que é que você acha estranho?

- Você sempre chamou seu pai de Clausen ou Heinrich Clausen, de um modo formal e distante.

Holcroft fez um sinal de assentimento, reconhecendo a verdade da observação de Helden.

- É curioso, pois não sei mais sobre ele agora do que sabia a princípio. Mas ele me foi descrito e eu sei da aparência dele, de sua maneira de falar, do império que ele exercia sobre as outras pessoas.

- Sabe então mais sobre ele.

- Na realidade, não. Apenas impressões. As impressões que ele deixou num menino; mas, em parte, parece que o encontrei.

- Quando foi que seus pais lhe falaram dele?

- Meus pais, não. Meu padrasto nada me disse. Só Althene. Foi algumas semanas depois de eu ter completado vinte e cinco anos. Eu já estava trabalhando como um profissional diplomado.

- Profissional?

- Sou arquiteto, não sabe? Às vezes, até eu me esqueço.

- Sua mãe esperou vinte e cinco anos para lhe dizer isso?

- Ela fez bem. Eu não poderia saber da verdade quando era mais moço. Pense bem. Eu era Noel Holcroft, garoto americano. Cachorro-quente e batatas fritas. Beisebol e cinema, com colegas cujos pais haviam lutado na guerra. Imagine um garoto assim saber que seu verdadeiro pai tinha sido um daqueles sádicos que batiam os calcanhares nos filmes de guerra.

- Por que foi então que ela lhe disse?

- Porque havia a remota possibilidade de que um dia eu descobrisse tudo por mim mesmo e isso ela não queria. Ela e meu pai tinham apagado todos os vestígios, chegando ao extremo de ter uma certidão de nascimento segundo a qual eu era filho deles. Mas havia outra certidão de nascimento na Alemanha que dizia: "Clausen, Noel, sexo masculino. Mãe, Althene. Pai, Heinrich". E havia gente que sabia que minha mãe se separara de meu pai e saíra da Alemanha. Ela queria que eu estivesse preparado se, por acaso, isso um dia viesse à tona, pois podia ser que alguém se lembrasse e quisesse usar a informação. Queria preparar-me até para negar o fato e dizer que tinha havido outro filho, nunca mencionado em minha casa, que morrera ainda criança, na Inglaterra.

- Havia então outra certidão. Uma certidão de óbito.

- Exatamente. Devidamente registrada em Londres.

Helden recostou-se no banco e disse:

- Não somos, afinal de contas, muito diferentes. Nossas vidas são cheias de documentos falsos. Como deve ser bom não viver assim!

- Documentos não têm muito valor para mim. Na minha firma, nunca contratei ou despedi ninguém na base dos papéis de que as pessoas eram portadoras. Tinham apenas de responder às perguntas que eu fazia. E espero que seu irmão tenha as respostas que eu quero ouvir.

- É o que espero também.

Ele se inclinou por sobre a mesa e perguntou:

- Gosta um pouco de mim?

- Mais do que um pouco, já lhe disse.

- Demonstre isso esta noite.

- Está bem. Em seu hotel?

- No da Rue Chevalle, não. Mr. Fresca, que inventamos naquela noite, mudou-se para alojamentos melhores. Acontece que tenho alguns amigos em Paris. Um deles é um auxiliar da gerência do Hôtel George V.

- Um pouco extravagante.

- Nada mais natural. Você é uma pessoa muito especial e nós não sabemos o que é que vai acontecer de amanhã em diante. Por falar nisso, por que não podemos ir para Argenteuil? Você disse que me explicaria.

- Fomos vistos lá.

- Por quem?

- Fomos vistos ou, melhor, você foi visto. Não sabemos o nome do homem, mas era um elemento da Interpol. Temos um informante lá e ele nos disse que foi transmitido um boletim da sede em Paris com os seus sinais e o seu nome. Estão à sua procura, a pedido da polícia de Nova York, em nome de um oficial chamado Miles.


28

John Tennyson saiu da movimentada área de desembarque do aeroporto londrino de Heathrow. Encaminhou-se para um Jaguar preto que esperava junto ao passeio. O motorista estava fumando um cigarro e lendo um livro. Ao ver o homem louro que se aproximava, saiu do carro e disse com forte sotaque galês:

- Boa tarde, Mr. Tennyson.

- Está esperando há muito tempo? - perguntou Tennyson sem muito interesse.

- Muito, não - disse o motorista, tomando a pasta e a maleta de Tennyson. - Naturalmente, deseja dirigir o carro.

- Sim, deixarei você no caminho. Em algum lugar onde possa pegar um táxi.

- Posso pegar um táxi aqui mesmo.

- Não. Quero falar com você um pouco.

Tennyson entrou no carro ao volante e o motorista abriu a porta de trás, deixando ali a bagagem. Minutos depois, transpunham os portões do aeroporto e tinham tomado o caminho de Londres.

- Fez boa viagem? - perguntou o galês.

- Movimentada.

- Li o seu artigo sobre Bahrain. Muito interessante.

- Bahrain é interessante. Os negociantes indianos são os únicos economistas do arquipélago.

- Mas falou bem dos xeques.

- Eles me trataram bem. Quais são as notícias do Mediterrâneo? Tem falado com seu irmão a bordo do navio de Beaumont?

- Constantemente. Falamos pelo rádio ao largo do cabo Camarat. Tudo está correndo de acordo com as previsões. Circularam rumores de que o comandante foi visto saindo com uma mulher de Saint-Tropez num pequeno barco. Não há notícias do barco ou do casal há quarenta e oito horas. Meu irmão comunicará o fato às autoridades amanhã. Assumirá naturalmente o comando.

- Decerto. Tudo vai bem então com a morte de Beaumont. Tudo claro e resolvido. Um acidente no mar. Ninguém porá em dúvida a história.

- Não me quer dizer o que realmente aconteceu?

- Não. Seria incômodo para você esse conhecimento, mas, na verdade, Beaumont se excedeu. Foi visto em lugares onde não devia estar por pessoas que não deviam vê-lo. Houve quem pensasse que o nosso destacado oficial tivesse ligações com o ODESSA.

A expressão do galês mostrou a sua revolta.

- Como ele foi imbecil! Uma coisa tão perigosa!

- Há uma coisa que eu lhe quero dizer - murmurou Tennyson. - Está quase na hora.

- Aconteceu então? - disse o galês, emocionado.

- Dentro de duas semanas, creio eu.

- Nem posso acreditar!

- Por quê? Tudo está acontecendo dentro das previsões. Os telegramas vão começar a ser expedidos. Em toda parte.

- Em toda parte... - repetiu o homem.

- O código é "Wolfsschanze".

- Wolfsschanze? Oh! Chegou afinal!

- Exatamente. Atualize uma lista completa dos chefes de distrito. Pegue todos os microfilmes, país por país, cidade por cidade, e cada uma das conexões políticas, e tranque-os no arquivo de aço. Traga-me pessoalmente o arquivo, juntamente com a lista completa, de hoje a oito dias, na quarta-feira portanto. O encontro será na rua, na frente do meu apartamento, em Kensington. Às oito horas da noite.

- Quarta-feira, às oito horas da noite. Com o arquivo.

- E a lista dos chefes.

- É claro. Realmente chegou a hora!

- Há ainda um pequeno obstáculo, mas daremos um jeito.

- Se há alguma coisa que eu possa fazer, estou pronto para tudo.

- Sei disso, Ian. Você é um dos melhores. Direi alguma coisa a você na semana que vem.

- Conte comigo!

- É claro - disse Tennyson, diminuindo a marcha ante a aproximação de um carro. - Poderia levá-lo a Londres, mas tenho de ir à casa de Margate. É da maior importância que eu chegue lá o quanto antes.

- Não se preocupe comigo. Deve ter muitas coisas em que pensar.

Ian olhou para o rosto do Tennyson, no qual havia tanta promessa e tanto poder.

- Estar aqui agora é ter a satisfação de estar presente ao início, ao renascimento! Não há nenhum sacrifício que eu não fosse capaz de fazer por isso!

O homem louro sorriu.

- Muito obrigado.

- Deixe-me em qualquer lugar. Eu pegarei um táxi... Não sabia que tínhamos gente em Margate.

- Temos gente em toda parte - disse Tennyson, freando o carro.

Tennyson acelerou o carro pela estrada de Portsea, que conhecia tão bem. Chegaria à casa de Gretchen antes das oito horas e assim é que devia ser, pois ela o esperava às nove. Ele se certificara de que ela não teria visitas e que nenhum vizinho amistoso passaria pela casa dela para tomar um drinque.

O homem louro sorriu satisfeito. Com mais de quarenta anos, a irmã ainda atraía os homens como a luz atrai as mariposas. Aqueciam-se insaciavelmente ao calor e só se livravam de morrer queimados porque não podiam atingir a própria chama. Na verdade, Gretchen não cumpria as promessas de sua sexualidade a menos que recebesse ordem nesse sentido. Era uma arma que só devia ser usada com discrição, como todas as armas potencialmente mortíferas.

Tennyson não sentia prazer algum no que ia fazer, mas não tinha outro remédio. Todas as pistas que levavam a Genebra tinham de ser cortadas e sua irmã era uma delas. Como Anthony Beaumont o fora. Gretchen sabia demais. Os inimigos da Wolfsschanze fariam-na falar com toda a certeza.

Havia três informações que o Nachrichtendienst não possuía: o cronograma, os métodos de distribuição dos milhões e as listas. Gretchen estava a par do cronograma e conhecia os métodos de distribuição. Desde que os métodos de distribuição dependiam dos nomes dos que tinham de receber através do mundo, ela também tinha amplo conhecimento das listas.

Gretchen tinha de morrer.

Embora falasse com muito entusiasmo, o galês também devia ser sacrificado. Depois que entregasse o arquivo e as listas, as suas contribuições estavam encerradas. Seria apenas um entrave, pois, além dos filhos de Erich Kessler e Wilhelm von Tiebolt, ninguém mais veria aquelas listas de milhares de nomes em todos os países, que eram os verdadeiros herdeiros da Wolfsschanze, a raça perfeita, os Filhos do Sol, os Sonnenkinder.

PORTSEA - 25 KM

O homem louro pisou o acelerador, impulsionando o Jaguar.

- Afinal, você está aqui - disse Gretchen Beaumont, sentada ao lado de Tennyson no sofá. Acariciava-lhe o rosto, passando os dedos pelos lábios dele, excitando-o, como costumava fazer quando eram crianças. - E você é tão bonito! Nunca houve nem haverá outro homem igual...

Ela se inclinou para a frente com a blusa desabotoada, expondo os seios às carícias dele. Abriu a boca e beijou-o com um gemido no fundo da garganta que sempre o alucinava.

Mas ele não podia sucumbir. Quando o fizesse, seria no último ato de um ritual secreto que o tinha mantido puro e sem ligações desde os seus tempos de criança. Colocou as mãos nos ombros dela e delicadamente a empurrou para o sofá.

- Tenho de saber tudo o que aconteceu enquanto ainda estou pensando lucidamente - disse ele. - Temos tempo de sobra. Partirei às seis da manhã para Heathrow, a fim de tomar o primeiro avião para Paris. Agora, quero que me diga se se esqueceu de me contar alguma coisa a respeito do americano. Tem certeza de que ele nunca a relacionou com Nova York?

- Nunca. A mulher que morava defronte do apartamento dele quando era viva se distinguia pelo fato de ter sempre um cigarro na boca. Eu não fumo e deixei isso bem claro quando ele esteve aqui. Disse também que havia semanas que eu não saía de casa. É claro que, se ele tivesse alguma dúvida, eu poderia dar provas. Além disso, estava evidentemente bem viva.

- Quer dizer que, quando ele saiu, não tinha a menor ideia de que a esposa erótica e carente que foi para a cama com ele fosse a mulher de Nova York?

- Sem dúvida. E ele não saiu, fugiu - disse Gretchen, rindo. - Fugiu daqui em pânico, convencido de que eu era desequilibrada, como fora planejado, deixando o caminho de Genebra aberto para você como meu sucessor. Infelizmente, levou também a fotografia de Tony, coisa que não estava nos nossos planos. Mas você está recuperando a fotografia, não é?

- Claro.

- Que é que você vai dizer a Holcroft?

- Ele pensa que Beaumont era agente do ODESSA e que eu tive uma divergência com Graff, sendo forçado a fugir do Brasil para não morrer. Foi o que ele disse a Kessler. A verdade é que ele não sabe ao certo o que aconteceu no Rio. Pensa que eu matei alguém e está preocupado com isso. Vou agir de acordo com as presunções dele. Pensarei em alguma coisa fantástica, que o assombrará e o convencerá a colocar-me uma auréola de santo na cabeça. E, decerto, mostrarei a minha satisfação pelo fato de que nosso sócio tenha provocado a remoção do terrível Beaumont das nossas preocupações.

Gretchen colocou a mão dele entre suas pernas, esfregando as meias para cima e para baixo contra a carne dele.

- Você não é apenas bonito. É brilhante também.

- Depois disso, mudarei de rumo e o farei sentir que deve convencer-me de que é digno de Genebra. Ele é que terá de justificar a sua participação no pacto. É psicologicamente da maior importância que ele seja colocado nessa posição e passe a depender cada vez mais de mim.

Gretchen prendeu a mão dele entre as pernas, de maneira convulsiva e sensual, dizendo:

- Você pode excitar-me apenas com sua voz... Mas já sabe disso, não sabe?

- Claro que sei, meu amor. Mas espere um pouco. Temos ainda que conversar. É claro que eu saberei melhor o que devo dizer a Holcroft depois de conversar com Helden.

- Vai vê-la então antes do seu encontro com Holcroft?

- Telefonarei para ela e lhe direi que tenho de vê-la sem demora. Pela primeira vez na vida, ela me verá incerto e receoso, precisando desesperadamente de ser convencido de que estou agindo corretamente.

- Brilhante também. E nossa irmãzinha? Ainda está ao lado dos refugos, dos Verwünschkinder convictos, com suas barbas e seus maus dentes?

- É claro. Ela tem de sentir-se necessária. Foi sempre essa a fraqueza de Helden.

- A verdade é que ela não nasceu no Reich.

Tennyson riu com desdém.

- Para satisfazer o anseio que tem de sentir-se necessária e adequada, acabou como enfermeira. Mora na casa do Coronel e cuida daquele patife aleijado. Faz duas mudanças de carro todas as noites para não levar até o Coronel os assassinos do Rache e do ODESSA.

- Um ou outro dos dois grupos pode matá-la um dia - disse Gretchen. - É uma coisa em que devemos pensar. Logo depois de liberada a conta pelo banco, ela terá de desaparecer. Ela não é cega, Johann. Será mais uma morte atribuída ao ODESSA ou ao Rache.

- Já pensei nisso... E, por falar em morte, Holcroft, quando esteve aqui, aludiu a Peter Baldwin?

- Não disse uma só palavra a esse respeito. Não esperei que dissesse desde que eu representasse bem o meu papel. Fui uma esposa desequilibrada e queixosa. Não quis perturbar-me, nem dar informações que fossem perigosas para Genebra.

Tennyson fez um sinal de assentimento. Haviam planejado tudo acertadamente.

- Qual foi a reação dele quando você falou de mim?

- Não lhe dei muito tempo para reagir. Limitei-me a dizer que era você quem falava em nome dos Von Tiebolt. Mas, escute, sabe por que Peter Baldwin tentou interceptá-lo em Nova York?

- Apurei tudo pouco a pouco. Baldwin trabalhava em Praga para a Seção Seis, mas muitos diziam que ele realmente fazia o que fosse preciso para quem lhe pagasse mais. Vendia informações a qualquer lado até que a sua gente começou a desconfiar dele. Foi demitido e a sua punição não passou disso, porque não havia certeza. Alegou em sua defesa que tinha trabalhado como agente duplo no passado e jurou que estava formando uma rede de espionagem de mão dupla. Sabia os nomes de todos os contatos ingleses na Europa central e disse claramente aos seus superiores que esses nomes viriam à tona, caso lhe acontecesse alguma coisa. Afirmou a sua inocência e disse que o estavam punindo por fazer bem o serviço que lhe cabia.

- Que é que isso tem a ver com Holcroft?

- Para compreender isso, você tem de ver Baldwin como ele realmente era, um bom espião que dispunha das melhores fontes. Além disso, era um especialista em correios e podia seguir a pista de qualquer coisa. Quando estava em Praga, ouviu rumores de uma grande fortuna depositada em Genebra. O dinheiro era de despojos nazistas e o fato nada tinha de excepcional. Muitas histórias assim circularam depois da queda de Berlim. A diferença neste caso era que se mencionava o nome de Clausen. Também isso não era inteiramente de admirar. Clausen tinha sido o gênio financeiro do Terceiro Reich. Mas Baldwin investigou tudo exaustivamente, como sempre fazia quando trabalhava.

- Tratou de correr os arquivos - murmurou Gretchen.

- Exatamente. Descobriu no Ministério da Fazenda que centenas de remessas tinham sido feitas para Manfredi. Uma vez de posse do nome de Manfredi, precisou apenas observar com paciência e distribuir dinheiro cautelosamente dentro do banco. Teve a sua oportunidade quando soube que Manfredi estava entrando em contato com um americano até então desconhecido, chamado Holcroft. Por quê? Investigou Holcroft e descobriu a mãe dele.

- Ela tinha sido a estratégia de Manfredi - disse Gretchen.

- Desde o começo. Foi Manfredi que convenceu Clausen a deixá-la sair da Alemanha. Ela possuía algum dinheiro e, vivendo em círculos financeiros, poderia ser-nos muito útil nos Estados Unidos. Com a ajuda de Clausen, ela veio a concordar com isso, mas foi essencialmente uma criação de Manfredi.

- Por trás daquela aparência benigna de gnomo, Manfredi era maquiavélico.

- Sem aquela sua bondosa inocência, duvido muito de que ele tivesse tido êxito. Mas a comparação com Maquiavel não é correta. O único interesse de Manfredi era o dinheiro; era esse o poder que ele queria. Estava amarrado de pés e mãos ao padrão ouro. Tinha a intenção de controlar a organização de Zurique e foi por isso que o matamos.

- Que foi que Baldwin conseguiu apurar?

- Nunca o saberemos exatamente. Mas, fosse o que fosse, seria a sua reabilitação perante o serviço secreto inglês. A verdade é que ele não era um agente duplo. Era exatamente o que se dizia, o homem eficiente da Seção Seis em Praga.

- Ele chegou a falar com Manfredi?

- Claro que sim. Deu a entender isso com o conhecimento que teve do encontro de Genebra. Chegou apenas um pouco atrasado. Posso muito bem imaginar o que houve entre ele e Manfredi. Dois especialistas em confronto, cada qual querendo uma coisa desesperadamente. Um queria informações, o outro não queria fornecê-las, sabendo que estava diante de uma situação que poderia tornar-se catastrófica. Houve, naturalmente, algum acordo. Como era de esperar, Manfredi faltou à sua palavra. Apressou o encontro com Holcroft e nos alertou a respeito de Baldwin. Previu todas as hipóteses. Se seu marido fosse apanhado quando matou Baldwin, o caso não teria relação alguma com Ernst Manfredi. Era um homem que devia ser respeitado. Poderia ter vencido.

- Mas não contra Johann von Tiebolt - disse Gretchen, levando a mão de Tennyson para o seu seio. - Ah! Por falar nisso, recebi outro telegrama cifrado de Graff, no Brasil. Está aflito e queixa-se de que não está sendo informado dos fatos.

- Graff está ficando velho demais. Ele também já preencheu a sua finalidade. É uma imprudência da parte dele estar mandando telegramas para a Inglaterra. Creio que chegou a hora do unser Freund[31] do Brasil.

- Vai dar a ordem?

- Amanhã de manhã. Mais um braço do execrado ODESSA será cortado. Ele me preparou bem. Mas basta de conversa. Como sempre, conversar com você me esclarece as ideias, mas não me lembro de coisa alguma mais para dizer ou para perguntar.

- Peça-me então alguma coisa. Atenderei você como sempre.

- Desde que éramos crianças - murmurou Tennyson.

Gretchen estava deitada nua ao lado dele, respirando tranquilamente, com o corpo esgotado e saciado. O homem louro levantou a mão e olhou para o mostrador luminoso do seu relógio. Eram duas e meia da madrugada. Tinha de fazer a coisa terrível exigida pelo pacto da Wolfsschanze. Todas as pistas para Genebra tinham de ser obliteradas.

Procurou os sapatos ao lado da cama. Apanhou um deles, apalpando o salto no escuro. Havia um pequeno disco de metal no centro. Rodou o disco para a esquerda até acionar uma mola. Colocou o disco na mesa de cabeceira e virou o sapato, tirando dele uma agulha de vinte e cinco centímetros, escondida numa cavidade que ia do salto à sola. A agulha era flexível, mas inquebrável. Introduzida certeiramente entre a quarta e a quinta costelas, perfurava o coração, deixando uma marca que raramente era percebida, mesmo numa autópsia.

Segurou cuidadosamente a agulha entre o polegar e o indicador da mão direita, enquanto com a esquerda procurava Gretchen. Tocou-lhe o seio direito e depois o ombro nu. Ela abriu os olhos e murmurou, sorrindo:

- Insaciável...

- Só com você - disse ele, puxando-a para si e estendendo o braço por trás dela, a cerca de trinta centímetros da espinha. Virou o pulso para dentro. A agulha estava em posição. Calcou-a então.

Aquelas estradas rurais eram confusas, mas Tennyson sabia o caminho que levava à cabana escondida onde morava o enigmático Coronel, o traidor do Reich. O próprio título de "Oberst" ou "Coronel" era um comentário irônico. O traidor não era coronel. Tinha sido general da Wehrmacht, o General Klaus Falkenheim, que chegara a ser o quarto homem na hierarquia da Alemanha. Fora fartamente elogiado pelos seus colegas militares e até pelo Führer. E durante todo o tempo uma alma de chacal se alojara naquele invólucro brilhante e vazio.

Como Johann von Tiebolt odiava o aleijado que era o Coronel! Mas John Tennyson não podia deixar transparecer esse ódio. Ao contrário, adularia o velho, mostrando-lhe admiração e respeito, porque, se havia um meio de conseguir a cooperação total de sua irmã mais moça, era esse o procedimento.

Havia telefonado para Helden na Gallimard e lhe dissera que precisava vê-la no lugar onde ela morava. Acrescentou que sabia que era na cabana do Coronel e que sabia onde ficava.

- Sou agora jornalista. E não seria bom jornalista se não tivesse fontes de informação seguras.

Helden ficara perplexa. Ele insistira em vê-la no final da manhã, antes do encontro com Holcroft, à tarde. Não se encontraria com o americano antes de falar com ela. Talvez o velho Coronel pudesse contribuir para esclarecer a situação e dissipar alguns receios que tinham surgido.

Chegou à estrada de terra que passava pelo vale coberto de mato que protegia a cabana do Coronel. Três minutos depois, parou o carro no caminho da cabana. A porta se abriu e Helden apareceu. Achou-a muito bonita e muito parecida com Gretchen.

Abraçaram-se. Estavam ambos ansiosos pela conversa com o Coronel. Os olhos de Helden mostravam o seu espanto. Levou o irmão para o interior da casa espartana. O Coronel estava de pé ao lado da lareira. Helden apresentou os dois homens um ao outro.

- Nunca mais me esquecerei deste momento - disse Tennyson. - O senhor merece a gratidão imorredoura de todos os alemães, Coronel. Quando puder servi-lo em alguma coisa, será uma honra para mim.

- Muita bondade sua, Herr von Tiebolt - disse o velho. - Mas, segundo sua irmã Helden, o senhor é que quer alguma coisa de mim, embora eu não possa imaginar de que se trata. Posso saber o que é?

- Meu problema é o americano Holcroft.

- Que é que há com ele? - perguntou Helden.

- Há trinta anos, ocorreu uma coisa maravilhosa, uma façanha inacreditável, elaborada e executada por três homens extraordinários que queriam fazer reparações pelos sofrimentos causados por assassinos e fanáticos. Graças a circunstâncias que na ocasião pareceram corretas, Holcroft é agora guindado à posição de um elemento decisivo para a distribuição de milhões através do mundo e eu sou solicitado a encontrar-me com ele, cooperar com ele...

Tennyson se calou como se as palavras lhe tivessem faltado.

- E então? - perguntou o Coronel.

- Acontece que eu não confio nele. Ele teve encontros com nazistas, com homens capazes de matar-nos, como Maurice Graff, no Brasil.

- Que é que você quer dizer com isso?

- Os laços do sangue reaparecem. Holcroft é um nazista.

Helden contraiu o rosto, com os olhos cheios de cólera e incredulidade.

- Que absurdo, Johann!

- É mesmo? Eu não acho.

Noel esperou que Helden saísse para o trabalho para pedir a ligação com Miles em Nova York. A noite deles tinha sido cheia de amor e de carinho. Ele sabia que tinha de convencê-la a ficarem juntos, sem um termo predeterminado para essa união. Não podia concordar com a separação.

O telefone tocou.

- Sim, telefonista. É Mr. Fresca querendo falar com o Tenente Miles.

- Eu sabia que só podia ser você - disse Miles pelo telefone. - Como é? A Interpol já o encontrou?

- Há muitos homens me seguindo. É isso que você chama encontrar? Foi você quem pediu essa vigilância?

- Certo.

- Você me deu quinze dias de prazo. Por que está roendo a corda?

- Nada disso. Estou procurando você apenas para dar-lhe uma informação relativa a sua mãe.

Noel sentiu um baque no coração.

- Que é que há com minha mãe?

- Fugiu. Devo reconhecer que agiu com muita habilidade. Tomou o caminho do México e, quando menos se esperava, estava de viagem para Lisboa com outro nome e um passaporte falso que conseguiu em Tulancingo. Infelizmente, essas táticas estão superadas. Nós as conhecemos todas.

- Talvez ela julgasse que você a estava perseguindo e só tivesse feito isso para livrar-se de você.

- Não a persegui coisa nenhuma. Mas, sejam quais forem as razões dela, sua mãe precisa ter muito cuidado.

- Como assim?

- Há mais alguém interessado nos movimentos dela. E, ao que tudo indica, alguém muito perigoso.

- Quem é?

- Estava sendo seguida por um homem cuja procedência não conseguimos apurar. Tinha papéis tão falsos quanto os dela. Nós o surpreendemos no aeroporto da Cidade do México. Antes que qualquer pessoa pudesse interrogá-lo, o homem ingeriu uma cápsula de cianureto.


29

Escolheu-se um local para o encontro. Havia um apartamento vazio em Montmartre, no último andar de um velho prédio, cujo proprietário, um artista, estava no momento na Itália. Helden telefonou e deu a Noel o local e a hora. Ela estaria presente para apresentar o irmão, mas não ficaria lá.

Noel acabou de subir as escadas e bateu na porta. Ouviu passos apressados e a porta se abriu. Helden estava na estreita entrada.

- Alô, querido.

- Alô - disse ele e beijou-a, com os olhos voltados para trás dela.

- Johann está na varanda - disse ela, rindo. - Não tenha receio. Pode beijar-me à vontade. Ele sabe como gosto de você.

- Era preciso dizer a ele?

- Por mais estranho que pareça, era. Não sei explicar bem. Não vejo meu irmão há mais de um ano. Mas ele está mudado. Acho que o caso de Genebra teve repercussão sobre ele. Está empenhado no sucesso da operação, mas nunca o vi tão... tão reservado.

- Ainda tenho perguntas a fazer, Helden.

- Ele também. Quer saber de coisas sobre você.

- É mesmo?

- Ainda hoje de manhã, não queria encontrar-se com você. Não confiava em você e acreditava que você estava recebendo dinheiro para sabotar Genebra.

- Eu?

- Pense bem, Noel. Soubemos que você esteve no Rio com Maurice Graff. De Graff, foi diretamente para a Inglaterra e procurou Anthony Beaumont. Estava certo a respeito dele. Ele é do ODESSA. Johann disse também que... você passou a noite com Gretchen e foi para a cama com ela.

- Espere um pouco, meu bem!

- Não, Noel, isso não tem importância. Já lhe disse que conheço minha irmã. Mas você não compreende que há uma regra? Para o ODESSA, as mulheres são apenas instrumentos convenientes. Você era amigo do ODESSA e tinha feito uma viagem longa e exaustiva. Era muito natural que suas necessidades fossem satisfeitas.

- Está dizendo disparates.

- É assim que Johann vê as coisas.

- Ele está errado.

- Já sabe disso. Ao menos, penso que sabe. Contei-lhe as coisas que lhe aconteceram, que nos aconteceram, e que quase resultaram na sua morte. Ele ficou surpreso. Pode ainda fazer-lhe algumas perguntas, mas creio que ficou convencido.

Holcroft sacudiu a cabeça. Lembrava-se de que lhe haviam dito que nunca mais as coisas seriam as mesmas para ele. E não apenas isso. As coisas não eram nem o que pareciam não ser. Não era mais possível traçar uma linha reta do ponto A para o ponto B.

- Vamos logo acabar com isso - disse ele. - Podemos encontrar-nos depois?

- É claro.

- Não vai voltar para o trabalho?

- Não fui trabalhar hoje.

- Esqueci-me. Você estava com seu irmão. Disse que ia trabalhar e foi para onde ele estava.

- Foi uma mentira necessária.

- Todas as mentiras são necessárias, não acha?

- Por favor, Noel... Quer que eu volte para pegá-lo, digamos, daqui a duas horas?

Holcroft pensou. Ainda pensava na notícia que Miles lhe dera. Tentara falar com Sam em Curaçau, mas o amigo não estava no escritório.

- Escute, Helden, você pode fazer-me um favor? Já lhe falei de meu amigo Sam Buonoventura no Caribe. Pedi ligação para ele, mas Sam estava ausente. Se você não tem nada para fazer, quer esperar no meu quarto até que completem a ligação? Não lhe pediria isso se não fosse urgente. Aconteceu uma coisa que depois lhe direi. Fará isso?

- Decerto. Que é que você quer que eu diga a ele?

- Diga-lhe que espere um telefonema meu dentro de algumas horas. Ou que dê um número para onde eu possa telefonar para ele depois. De seis às oito da noite, hora de Paris. Diga-lhe que é muito importante. Tome a chave do quarto. Lembre-se de que meu nome é Fresca.

Helden pegou a chave e tomou-lhe o braço, levando-o para o interior do apartamento.

- E não se esqueça de que o nome de meu irmão é Tennyson, John Tennyson.

Holcroft avistou Tennyson através das portas envidraçadas que davam para a varanda. Usava um terno preto listrado e não tinha sobretudo nem chapéu. Estava com as mãos apoiadas na balaustrada e olhava para o panorama de Paris. Era alto e esbelto, bem-proporcionado como um atleta que estivesse com os músculos retesados e contidos. Voltou-se um pouco para a direita, revelando um rosto como Noel nunca tinha visto. Era um rosto que parecia a concepção de um artista, idealizado demais para ser de carne e osso. E desde que não admitia imperfeição, o rosto era frio. Era um rosto esculpido em mármore, encimado pelos lustrosos cabelos louros, tão cuidadosamente penteados que pareciam continuar a ilusão do mármore.

Então Von Tiebolt-Tennyson viu-o através da vidraça, os olhares se encontraram e a imagem do mármore se desfez. Os olhos do homem eram vivos e penetrantes. Afastou-se da balaustrada e se encaminhou para a porta da varanda.

Estendeu a mão.

- Sou filho de Wilhelm von Tiebolt.

- E eu sou Noel Holcroft... Meu pai era Heinrich Clausen...

- Eu sei. Helden me falou muito de você. Tem passado por muita coisa, não é mesmo?

- Passamos, isto é, sua irmã e eu. E calculo que deva ter tido também os seus problemas, não?

- Infelizmente, foi o legado que recebemos - disse Tennyson sorrindo. - É um pouco sem jeito nós nos encontrarmos assim, não acha?

- Confesso que podia haver menos constrangimento de parte a parte.

- E eu não disse uma só palavra - murmurou Helden. - É evidente que dispensam as minhas apresentações. Vou sair.

- Não é preciso - disse Tennyson. - Creio que o assunto de nossa conversa lhe interessa também.

- Não estou muito certa disso, ao menos neste momento. Além disso, tenho o que fazer. Creio que é da maior importância para muitas pessoas que os dois confiem um no outro. Espero que possam conseguir isso.

Assim dizendo, Helden abriu a porta e saiu.

Durante vários momentos, ambos ficaram calados, com os olhos fixos na porta por onde Helden tinha saído.

- Ela é notável - disse Tennyson. - Eu a amo muito.

- E eu também.

- Espero que isso não venha a ser uma complicação para você.

- Para mim não é - disse Holcroft. - Mas talvez seja para ela.

- Compreendo - disse Tennyson, indo até a janela e olhando para fora. - Não estou em condições de dar a minha aprovação, pois Helden e eu temos vivido muito afastados, mas, ainda que estivesse em condições, não sei se aprovaria.

- Obrigado pela franqueza.

- Sim, estou sendo franco. Não o conheço. Só sei de você o que Helden me disse e o que soube por mim mesmo. O que ela me disse é basicamente o que você disse a ela, com os floreios dos sentimentos de minha irmã. O que eu soube não é tão claro assim. E não creio que o conjunto corresponda ao relato entusiástico de Helden.

- Ambos temos interrogações e dúvidas. Quer começar?

- Isso não tem grande importância. Minhas perguntas são poucas, mas muito diretas. Que contato teve com Maurice Graff?

- Pensei que Helden lhe tivesse dito isso.

- Como já salientei, o que ela me disse foi o que você contou a ela. Eu tenho mais experiência do que minha irmã. Não posso aceitar as coisas apenas porque você as diz. Aprendi através dos anos a não proceder assim. Por que foi procurar Maurice Graff?

- Estava à sua procura.

- À minha procura?

- De você, especialmente, não. Dos Von Tiebolt. Queria informações sobre qualquer pessoa da família.

- Por que esperou essa informação de Graff?

- Deram-me o nome dele.

- Quem foi que lhe deu o nome dele?

- Não me lembro.

- Não se lembra? De milhões de homens no Rio de Janeiro, o nome que lhe deram casualmente foi o de Maurice Graff.

- É a verdade.

- É ridículo.

- Espere um pouco - disse Noel, tentando reconstituir a série de fatos que o tinham levado até Maurice Graff. - Tudo começou em Nova York...

- Como? Graff esteve em Nova York?

- Claro que não. Fui ao consulado do Brasil. Queria saber como poderia encontrar uma família que havia emigrado para o Brasil na década de 1940. O homem do consulado calculou que eu estivesse à procura de alemães e me citou uma frase em espanhol, la otra cara de los alemanes, aludindo ao outro lado dos alemães, ao que está por baixo dos seus pensamentos.

- Compreendo. Continue.

- Disse-me que havia no Rio uma colônia alemã forte e unida, sob a chefia de alguns homens poderosos. Avisou-me que podia ser perigoso procurar uma família alemã desaparecida. Talvez estivesse exagerando, mas eu não mencionei seu nome.

- Graças a Deus que não fez isso.

- Quando cheguei ao Rio, não pude saber de nada; até os registros de imigração estavam adulterados.

- E isso custou muito dinheiro a muita gente - disse Tennyson amargamente. - Era a nossa única proteção.

- Eu estava num impasse. Lembrei-me então de que o homem do consulado dissera que a colônia alemã era dirigida por homens muito poderosos. Fui a uma livraria alemã e perguntei a um empregado se havia por ali grandes mansões em centro de terreno, num estilo que chamei de "bávaro". Sou arquiteto e calculei...

- Compreendo - disse Tennyson. - Procurava nas grandes mansões os homens mais influentes da colônia alemã.

- Isso mesmo. O empregado me apontou dois nomes. Um era judeu, o outro era o de Graff. Disse-me ele que a mansão de Graff era uma das mais belas do Rio.

- De fato, é.

- É isso. Foi assim que eu fui procurar Graff.

Tennyson permaneceu imóvel e murmurou:

- É bem plausível.

- Estou contente de que pense assim - disse Noel.

- Eu disse que era plausível. Não disse que acreditava em suas palavras.

- Não tenho motivos para mentir.

- Ainda que tivesse, não teria o talento necessário. Sou perito em desmascarar mentirosos.

- Foi a mesma coisa que Helden me disse, na noite em que a conheci.

- Ela foi treinada especialmente por mim. A mentira é uma arte. Tem de ser desenvolvida. Você está ultrapassando os seus limites.

- Que é mesmo que está querendo dizer?

- Estou dizendo que você é um amador bem convincente. Construiu bem a sua história, mas não há nela capacidade profissional suficiente. Falta-lhe base. Sendo arquiteto, creio que me compreende.

- Compreenderei, se me explicar.

- Com prazer. Você deixou o Brasil conhecendo apenas o nome de Von Tiebolt. Chegou à Inglaterra e, doze horas depois, estava num subúrbio de Portsmouth em casa de minha irmã, com quem dormiu. Não conhecia nem o nome Tennyson. Como podia ter sabido da existência de Beaumont?

- Mas eu conhecia o nome Tennyson.

- Como? De que maneira o conseguiu?

- Contei tudo a Helden. Um irmão e uma irmã me procuraram no hotel. Disseram que se chamavam Carrara.

- Ah, sim, Carrara. Já os conhecia?

- Claro que não.

- Então esses Carrara surgiram como por encanto e disseram que eram grandes amigos nossos. Mas, como Helden lhe disse, nunca ouvimos falar neles. Ora, Holcroft, arranje coisa melhor...

Ergueu de repente a voz e disse:

- Foi Graff quem lhe deu o nome de Beaumont, não foi? Do ODESSA para o ODESSA.

- Não. Graff não sabia. Para ele, você ainda estava escondido em algum ponto do Brasil.

- Ele lhe disse isso?

- Deu a entender. Os Carrara confirmaram o fato. Disseram que havia algumas colônias ao sul... Santa Catarina, se não estou enganado...

- Pelo visto, decorou bem a coisa. Há colônias alemãs em Santa Catarina. E de novo chegamos aos misteriosos Carrara...

Noel se lembrava claramente do medo estampado no rosto dos dois irmãos, no Rio.

- Talvez sejam misteriosos para você, mas para mim não são. Ou você tem uma memória péssima ou é um amigo péssimo. Disseram-me que mal conheciam Helden, mas que a você conheciam muito bem. Arriscaram a vida para ir falar comigo. Eram judeus portugueses...

- Portugueses? - exclamou Tennyson, subitamente alarmado. - E usaram o nome de Carrara? Por favor, descreva-os.

Holcroft descreveu aproximadamente os dois irmãos. Quando acabou, Tennyson murmurou:

- Não é possível... Do fundo do passado... Tudo se ajusta, Holcroft. O uso do nome Carrara. Judeus portugueses. Santa Catarina... Voltaram ao Rio, então.

- Quem?

- Os Montalegre. É esse o verdadeiro nome deles. Foi há dez ou doze anos... Deram-lhe um nome falso por precaução, para que você nunca lhes pudesse revelar o verdadeiro, mesmo inconscientemente.

- Que foi que aconteceu há doze anos?

- Os detalhes não interessam, mas foi preciso tirá-los do Rio e nós os mandamos para Santa Catarina. Os pais deles ajudaram os israelenses e, por isso, foram mortos. Os dois irmãos foram caçados e seriam mortos também se não tivessem fugido para o sul.

- Há então pessoas em Santa Catarina que sabem de sua existência?

- Há, sim, algumas. A nossa base de operações era em Santa Catarina. O Rio era muito perigoso.

- Que operações? E por que diz "nossa base"?

- A base era dos alemães que combatíamos o ODESSA no Brasil. Tenho de pedir-lhe desculpas. Helden estava certa e eu lhe fiz uma injustiça. Você disse a verdade.

Noel teve a sensação de estar sendo justificado, embora não procurasse justificação. Sentia-se um pouco sem jeito de interrogar um homem que tinha lutado contra o ODESSA, que salvara crianças da morte tão seguramente quanto se as tivesse tirado de Auschwitz ou de Belsen, e que havia treinado para a sobrevivência a mulher que ele amava. Entretanto, tinha perguntas a fazer e não podia esquecê-las.

- É minha vez agora - disse Noel. - Você é muito rápido e sabe de coisas de que eu nunca ouvi falar. Mas não sei se disse muita coisa.

- Se qualquer de suas perguntas se refere ao Tinamou, sinto muito, mas não lhe darei resposta. Não vou nem discutir o assunto.

- Que é que está dizendo?

- Ouviu muito bem. O Tinamou é um assunto que eu não vou discutir. Não é da sua conta.

- Pois eu julgo que é da minha conta. E, para começar, vamos colocar a questão no seguinte pé: se não quiser discutir o Tinamou, nada teremos para discutir.

Tennyson olhou para ele, espantado.

- Está falando sério?

- Absolutamente sério.

- Neste caso, procure compreender-me. Nesta altura, nada mais pode ser deixado ao acaso, sujeito à possibilidade, por mais remota que seja, de que uma palavra imprudente chegue aos ouvidos da pessoa indevida. Acho que estou certo e lhe digo que terá a sua resposta em questão de dias.

- Não é suficiente!

- Irei então mais adiante. O Tinamou foi adestrado no Brasil pelo ODESSA. Estudei-o tão completamente quanto é possível a qualquer homem na terra. Há seis anos que lhe sigo a pista.

Noel levou vários segundos para poder falar.

- Há seis anos?

- Sim. Está em tempo de um ataque do Tinamou. Vai haver outro assassinato. Foi por isso que os ingleses o procuraram, pois sabem disso também.

- Por que não trabalha então com os ingleses? Sabe o que eles pensam?

- Sei o que procuraram fazê-lo pensar. É por isso que não posso trabalhar com os ingleses. O Tinamou tem fontes em toda parte, que não o conhecem mas são usadas por ele.

- Falou numa questão de dias.

- Se eu estiver errado, contar-lhe-ei tudo. Sou capaz até de ir procurar os ingleses em sua companhia.

- Está bem... Deixemos o Tinamou de lado por alguns dias.

- Tudo mais que quiser saber eu lhe direi. Nada tenho para esconder.

- Você conheceu Beaumont no Rio e sabia que ele fazia parte do ODESSA. Chegou a acusar-me de ter sabido o nome dele por intermédio de Graff. Apesar de tudo isso, ele se casou com sua irmã. Do ODESSA para o ODESSA? Você também faz parte do grupo?

Tennyson não vacilou.

- Foi tudo uma questão de prioridades. Para simplificar as coisas, direi que foi tudo planejado. Minha irmã Gretchen não é mais a mulher que já foi, mas nunca perdeu o ódio que tem aos nazistas. Fez um sacrifício maior do que o de qualquer de nós. Tomamos conhecimento de tudo o que Beaumont faz.

- Mas ele sabe que você é Von Tiebolt! Por que ele não diz a Graff?

- Se quiser, pergunte a ele, que poderá dizer-lhe.

- Quero saber de você.

- Ele tem medo. Beaumont é um covarde. Trabalha cada vez menos para o ODESSA e, ainda assim, só quando é ameaçado.

- Não compreendo.

- Bem, Gretchen tem, vamos dizer, poderes de persuasão muito fortes, e penso que teve uma amostra desses poderes. Além disso, uma grande importância em dinheiro cuja origem não pôde ser apurada foi cair na conta de Beaumont. Dentro dessas circunstâncias, ele tem receio de ser desmascarado por Graff de um lado e por mim do outro. É útil para ambos, mais para mim do que para Graff, é claro, mas está bloqueado.

- Se sabe de tudo o que ele faz, não podia deixar de saber que ele estava no avião em que eu viajei para o Rio. Não podia deixar de saber que ele estava me seguindo.

- Como podia saber? Eu não o conhecia.

- Mas, se ele estava no avião, foi mandado por alguém.

- Quando Helden me falou nisso, procurei descobrir quem foi. O que apurei foi muito pouco, mas suficiente para me alarmar. Na minha opinião, Beaumont foi abordado por um terceiro grupo, que descobriu a ligação dele com o ODESSA e o utilizou, como Graff e como eu.

- Que grupo é esse?

- Gostaria de saber. Sei que em dado momento ele conseguiu uma licença de seu navio no Mediterrâneo e foi a Genebra.

- Genebra?

A memória de Holcroft entrou em ação. Lembrou-se de um momento obscurecido por movimentos rápidos, gritos e gente que corria na plataforma de uma estação. Tinha havido uma luta, um homem caíra para trás com a camisa ensanguentada, outro tinha caído também... Um homem passara por ele correndo com os olhos arregalados sob as sobrancelhas espessas e grisalhas...

- Eu sabia! - exclamou Holcroft, atônito. - Beaumont esteve em Genebra!

- Acabei de dizer-lhe isso.

- Foi onde eu o vi. Só agora me lembrei. Ele começou a seguir-me em Genebra.

- Palavra que não sei ao certo o que é que está dizendo.

- Onde está Beaumont neste momento? - perguntou Noel.

- Voltou para o seu navio. Gretchen partiu há alguns dias a fim de encontrar-se com ele, em Saint-Tropez, se não estou enganado.

Gretchen lhe havia dito realmente que ia para o Mediterrâneo, para a companhia de um homem a quem detestava. As coisas ficavam muito mais claras. Talvez Tennyson não fosse a única pessoa ali a fazer julgamentos injustos.

- Temos de descobrir quem foi que mandou Beaumont seguir-me - disse Holcroft, lembrando-se do homem do blusão de couro.

Tennyson estava certo. As conclusões dele coincidiam com as suas. Havia mais alguém.

- De acordo - disse o homem louro. - Vamos agir juntos?

Holcroft sentiu-se tentado. Mas não havia acabado ainda. Não podia haver dúvidas entre eles. Do contrário, não poderiam assumir o compromisso que pretendiam.

- Talvez. Há mais duas coisas que eu quero lhe perguntar. E devo dizer-lhe que desejo a resposta agora e não daqui a alguns dias.

- Está bem.

- Você matou alguém no Rio.

Tennyson apertou os olhos.

- Foi Helden quem lhe disse.

- Eu tinha de saber e ela compreendeu isso. Há condições em Genebra que não permitem surpresas. Se você pode ser objeto de chantagem, não poderei incluí-lo.

Tennyson assentiu.

- Compreendo perfeitamente.

- Quem foi que você matou?

- Está interpretando mal a minha reserva. Não tenho a menor dúvida em lhe dizer quem foi. Estou pensando é numa maneira de você verificar o que eu lhe disser. Não há possibilidade de chantagem, mas quero que você tenha certeza disso.

- Comecemos então por um nome.

- Manuel Carrara.

- Carrara?

- Sim. Foi por isso que os dois irmãos que o procuraram usaram o nome. Sabiam que eu perceberia a relação. Carrara era um político de muito prestígio. Mas era subordinado a Graff e ao ODESSA. Matei-o há sete anos e seria capaz de matá-lo amanhã.

- Quem sabe disso?

- Apenas alguns velhos sabiam e só um deles ainda vive. Posso dar-lhe o nome dele, mas sei que não dirá uma só palavra sobre o fato.

- Por quê?

- Antes de sair do Rio de Janeiro, procurei-os e fui muito claro. Se fizessem alguma coisa contra mim, eu divulgaria tudo o que sabia a respeito dos Carrara. Seria um escândalo sem precedentes e todos eles seriam envolvidos. Isso eles não queriam.

- Quero o nome do homem.

- Vou escrevê-lo para você.

Tennyson escreveu o nome e entregou o papel a Holcroft.

- Pode falar com ele pelo telefone internacional. Basta falar em meu nome e no de Carrara e ele compreenderá tudo.

- Talvez faça isso.

- Ele confirmará o que eu já lhe disse.

- Houve também um desastre no metrô de Londres - prosseguiu Holcroft. - Foram muitas as vítimas, inclusive um homem que trabalhava para o Guardian. Era a assinatura dele que estava no seu contrato com o jornal. Foi o homem que o ouviu, o único que podia explicar os motivos da sua contratação.

Os olhos de Tennyson voltaram de repente a parecer frios.

- Foi uma coisa horrível! Ainda não me refiz completamente do choque. Qual é a sua pergunta?

- Houve outro acidente em Nova York há poucos dias. Várias pessoas inocentes morreram também, mas só uma delas era a pessoa visada. Alguém a quem eu muito queria.

- Torno a lhe perguntar, Holcroft. Que deseja saber?

- Há uma certa semelhança entre os dois casos, não lhe parece? A Seção Cinco nada sabe sobre o acidente em Nova York, mas tem ideias muito claras sobre o de Londres. Juntei tudo e cheguei a uma conclusão perturbadora. Que é que sabe sobre o acidente que ocorreu há cinco anos em Londres?

- Cuidado! - exclamou Tennyson. - Os ingleses estão indo muito longe. Que é que você quer de mim? Até onde irá no seu propósito de acusar-me?

- Deixe de conversa fiada! - exclamou Holcroft. - Que foi que aconteceu naquele desastre do metrô de Londres?

- Eu estava lá!

Dizendo isso, Tennyson desabotoou o colarinho, abriu a camisa e mostrou uma cicatriz que se estendia da base do pescoço ao meio do peito.

- Nada sei do desastre em Nova York, mas a lembrança do que aconteceu em Charing Cross me acompanhará pelo resto da vida! Está aqui e não há um só dia em que eu não me lembre de tudo. Levei quarenta e sete pontos! Durante alguns instantes, há cinco anos, em Londres, pensei que minha cabeça fora separada do resto do corpo. E o homem de que você fala tão enigmaticamente era meu maior amigo na Inglaterra! Foi ele quem nos ajudou a sair do Brasil. Se alguém o matou, tentou matar-me também. Eu estava com ele.

- Eu não sabia... Os ingleses não me disseram nada disso. Não sabiam que você estava no local.

- Sugiro então que alguém procure apurar os fatos. Deve haver um registro em algum hospital e não será difícil encontrá-lo. Desculpe, eu não devia aborrecer-me com você. Os ingleses é que são capazes de tudo.

- Pode ser que eles também não saibam ao certo.

- Talvez. Centenas de feridos foram socorridos no metrô, naquele dia. Cerca de uma dúzia de hospitais e clínicas de Londres ficaram cheios de pacientes, naquele dia, e é natural que ninguém prestasse muita atenção a nomes. Disse também que uma pessoa a quem muito queria foi morta há poucos dias em Nova York. Que foi que aconteceu?

Noel contou como Richard Holcroft fora atropelado e morto no passeio, falando também da hipótese formulada por Miles. Era absurdo esconder alguma coisa do homem a quem estivera a ponto de julgar tão erradamente.

Chegaram ambos à mesma conclusão.

Beaumont devia ter sido abordado por outro grupo...

Que grupo era esse?

Ninguém sabia...

Outro grupo...

Um homem com um blusão de couro preto. Em atitude de desafio, numa rua estreita de Berlim. Disposto a morrer. Não querendo revelar de onde vinha. Algum grupo mais poderoso e mais bem-informado do que o Rache ou o ODESSA.

Outro grupo...

Noel disse tudo a Tennyson, contente de poder fazê-lo. A satisfação era acentuada pela atenção que o homem louro lhe dava. Nunca afastava de Holcroft os olhos cinzentos, como se estivesse fascinado. Quando acabou, Noel sentia-se exausto.

- É tudo o que sei.

- Por fim nos encontramos - disse então Tennyson. - Tínhamos ambos de dizer tudo o que pensávamos. Cada um de nós julgava que o outro fosse um inimigo e estávamos ambos errados. Agora, temos muito o que fazer juntos.

- Há muito tempo que sabe da existência de Genebra? - perguntou Holcroft. - Segundo sua irmã Gretchen, você disse que ela seria procurada um dia por um desconhecido que lhe faria propostas estranhas.

- Sabia desde os meus tempos de criança. Minha mãe me dizia que havia uma grande quantidade de dinheiro a ser empregado em boas obras, para reparar algumas das coisas terríveis que haviam feito em nome da Alemanha, mas não pelos verdadeiros alemães. Mas é claro que falava nisso vagamente, sem nada de específico.

- Não conhece então Erich Kessler?

- Lembro-me do nome, mas também vagamente. Eu era muito jovem.

- Vai gostar dele.

- Pelo que me disse dele, acho que sim. Disse-me que ele pretende fazer o irmão participar de Genebra. Isso é permitido?

- Sim. Prometi telefonar para Kessler em Berlim e marcar as datas.

- Por que não espera até amanhã ou depois de amanhã? Telefone para ele de Saint-Tropez.

- Beaumont?

- Sim, Beaumont. Creio que devemos ter um encontro com ele. Terá de nos dizer algumas coisas, inclusive quem foi o seu último patrão. Temos de saber quem foi que o mandou para a estação de Genebra, quem lhe pagou, com dinheiro ou por meio de chantagem, para que ele o seguisse até Nova York e depois até o Rio de Janeiro. Quando soubermos dessas coisas, saberemos de onde veio o homem do blusão de couro preto.

Noel olhou para o seu relógio. Eram quase seis horas. Ele e Tennyson tinham falado durante mais de duas horas e ainda restava muito para dizer.

- Quer jantar com sua irmã e comigo? - perguntou ele.

Tennyson sorriu.

- Não, meu amigo. Falaremos na viagem para o sul. Tenho de dar uns telefonemas e bater meus originais a máquina. Não devo esquecer que sou jornalista. Onde é que está hospedado?

- No Hôtel George V. Com o nome de Fresca.

- Telefonarei para você ainda esta noite - disse Tennyson, estendendo-lhe a mão. - Até amanhã.

- Até amanhã.

- Antes que me esqueça. Se minha aprovação fraternal vale alguma coisa, pode contar com ela.

Johann von Tiebolt continuou diante da balaustrada da varanda, ao ar frio do começo da noite. Lá embaixo, na rua, viu Holcroft sair do prédio e continuar pelo passeio.

Tudo tinha sido muito fácil. A orquestração de mentiras, cuidadosamente pensadas e arrumadas, entremeada de convicções ofendidas e súbitas revelações, tinha facilitado a aceitação. Um velho seria avisado no Rio e ficaria sabendo o que tinha de dizer. Um registro médico seria acrescentado ao arquivo de um hospital, com dados e informações correspondentes a um trágico acidente na estação do metrô em Charing Cross, cinco anos antes. E, se tudo corresse de acordo com os planos, os vespertinos divulgariam outra tragédia. Um oficial da Marinha e sua esposa tinham naufragado e morrido num pequeno barco, nas costas do Mediterrâneo.

Von Tiebolt sorriu. Tudo estava correndo como ele planejara trinta anos antes. Nem mesmo o Nachrichtendienst poderia detê-los mais. Em questão de dias, o Nachrichtendienst estaria castrado.

Estava na hora do Tinamou.


30

Noel atravessou apressadamente o vestíbulo do George V, ansioso por chegar ao seu quarto e a Helden. Genebra estava bem perto agora. Estaria ainda mais perto depois que se encontrassem com Anthony Beaumont em Saint-Tropez e arrancassem dele a verdade.

Estava ansioso também por saber se Sam havia telefonado para ele. Sua mãe dissera que comunicaria os seus planos a Sam. Sabia apenas por intermédio de Miles que Althene tinha partido da Cidade do México para Lisboa. Por que Lisboa? E quem a estava seguindo?

A imagem do homem do blusão de couro preto lhe surgiu no espírito. O olhar firme, a aceitação da morte, a convicção de que, se morresse, outro tomaria o seu lugar...

O elevador estava vazio e a subida foi rápida. A porta se abriu. Noel perdeu o fôlego ao ver o homem que o esperava no corredor. Era o Verwünschte Kind do Sacré-Cœur, o homem elegante que fora encontrar-se com ele diante da capela do rei.

- Boa noite, monsieur.

- Que é que está fazendo aqui? Houve alguma coisa com Helden?

- Ela pode responder-lhe pessoalmente.

- Você também pode - disse Holcroft, agarrando-o pelo braço e arrastando-o pelo corredor.

- Tire as mãos de cima de mim!

- Só depois que ela me disser que eu posso largá-lo. Vamos!

Noel levou o homem até a porta do quarto.

Dentro de segundos, a porta se abriu. Helden apareceu e pareceu espantada ao ver os dois homens. Tinha um jornal dobrado nas mãos e mostrava nos olhos, além de espanto, tristeza.

- Que é que há? - perguntou ela.

- Isso é o que eu quero saber, mas ele não me diz - exclamou Holcroft, empurrando o homem para dentro do quarto.

- Por favor, Noel! Ele é um dos nossos!

- Só quero saber o que ele está fazendo aqui.

- Telefonei para ele. Ele tinha de saber onde eu estava. Disse-me que queria ver-me e me trouxe notícias tristes.

- Que foi?

- Leia os jornais. Há jornais franceses e ingleses.

Holcroft apanhou o Herald Tribune na mesa do café.

- Segunda página - disse o homem. - No alto, à esquerda.

Noel abriu o jornal. Leu a notícia e sentiu a raiva dominá-lo... e o medo também...

"OFICIAL DA MARINHA E ESPOSA

PERDIDOS NO MEDITERRÂNEO

St.-Tropez - O Capitão de Fragata Anthony Beaumont, comandante do patrulheiro Argos e destacado oficial da Marinha Real Inglesa, juntamente com sua esposa, que viera ao encontro dele nesta estância de veraneio, perdeu a vida, segundo se acredita, quando o pequeno barco em que viajavam naufragou por ocasião de um temporal ao sul, numa costa rochosa. Aviões de busca avistaram um barco virado que se ajustava à descrição da embarcação naufragada. Há mais de quarenta e oito horas não há notícias do Comandante Beaumont, e o imediato do Argos, Capitão de Corveta Morgan Llewellen, determinou a intensificação das buscas. O Almirantado já chegou à conclusão de que o Comandante Beaumont e sua esposa perderam a vida no trágico acidente. O casal não tinha filhos."

- Meu Deus! - exclamou Holcroft. - Seu irmão lhe contou tudo?

- A respeito de Gretchen? Contou - disse Helden. - Ela sofreu muito e fez muito. Era por isso que ela não queria ver-me, nem falar comigo. Não queria que eu soubesse o que ela fizera, nem descobrisse os motivos do casamento dela. Tinha receio de que eu ficasse sabendo de tudo.

- Se é verdade que Beaumont fazia parte do ODESSA, essa notícia do jornal não merece crédito - disse o homem bem-vestido.

- Ele está se referindo a seu amigo de Berlim - disse Helden. - Eu lhe disse que você tinha um amigo em Berlim que ficou de transmitir a Londres as suas suspeitas.

Noel compreendia. Helden lhe estava dizendo que nada dissera a respeito de Genebra. Noel voltou-se para o homem.

- Que foi que aconteceu, na sua opinião?

- Se os ingleses descobrissem um agente do ODESSA nos altos escalões da Marinha Real, especialmente no comando de um navio da patrulha costeira, o que vem a ser um eufemismo para designar um navio de espionagem, compreenderiam que mais uma vez tinham sido enganados. Seria o máximo que poderiam tolerar. Não haveria inquéritos. Uma execução rápida seria preferível.

- É uma acusação muito dura essa.

- Não se esqueça de que a situação é muito embaraçosa.

- Seriam capazes de matar uma mulher inocente?

- Sem hesitação, com base na hipótese de que ela não fosse tão inocente assim. A mensagem foi clara, entretanto. A rede do ODESSA foi advertida.

Noel voltou-se aborrecido e cingiu Helden nos braços.

- Sinto muito, Helden. Sei como você se sente e gostaria de poder fazer alguma coisa. Mas, além de procurar seu irmão, não sei o que poderá ser.

- Vocês dois confiam um no outro, Noel?

- Sem dúvida. Vamos trabalhar juntos.

- Não há tempo para lamentações, não é mesmo? - Voltou-se para o homem elegante e disse: - Vou passar a noite aqui. Posso ter proteção?

- Claro. Vou tomar providências.

- Obrigada. Você é um bom amigo.

O homem sorriu.

- Não creio que Mr. Holcroft acredite muito nisso, mas acho que ele ainda tem muito o que aprender.

O homem se dirigiu para a porta, mas, já com a mão na maçaneta, voltou-se e disse a Noel:

- Peço desculpas por alguma coisa que lhe possa ter parecido incompreensível, monsieur. Só desejo que seja tolerante. O que há entre o senhor e Helden também me parece incompreensível, mas eu não discuto. Confio. Deve saber, entretanto, que, se essa confiança for injustificada, nós o mataremos. Para seu governo.

O Verwünschte Kind saiu. Noel chegou a dar um passo na direção dele, mas Helden tocou-lhe o braço.

- Por favor, querido. Ele também tem muito o que aprender e não podemos dizer nada a ele. Mas fique certo de que é um bom amigo.

- É um sujeitinho muito insolente - murmurou Noel. - Mas desculpe, querida. Você já tem preocupação de sobra e não precisa de leviandades de minha parte.

- Um homem lhe ameaçou a vida.

- Alguém matou sua irmã. Em face das circunstâncias, eu fui leviano.

- Não temos tempo de pensar nessas coisas. Seu amigo Buonoventura telefonou. Escrevi o número para onde você pode ligar para ele. Está ao lado do telefone.

Noel foi até a mesa do telefone e pegou o papel.

- Seu irmão e eu íamos a Saint-Tropez amanhã. Para obrigar Beaumont a dizer-nos tudo o que sabia. Essa notícia será desconcertante para ele nos dois sentidos.

- Você disse que ia telefonar para ele. É melhor que eu telefone. Ele e Gretchen sempre foram muito unidos. Quando eram mais moços, eram inseparáveis. Onde está ele?

- Não sei. Ele não me disse. Ficou de telefonar para cá esta noite. Temos de esperar.

Tirou o fone do gancho e deu o número de Sam à telefonista.

- Falarei com Johann quando ele telefonar - disse Helden, indo até a janela.

As linhas internacionais estavam desembaraçadas e a ligação para Curaçau foi completada em menos de um minuto.

- Quer saber de uma coisa, Noley? Felizmente não sou eu que tenho de pagar suas contas de telefone. E como você corre mundo!

- E não é só isso que eu estou fazendo, Sam. Escute, minha mãe lhe telefonou?

- Telefonou, sim. Pediu-me que lhe dissesse que estará em Genebra dentro de uma semana, mais ou menos. Você deve hospedar-se no Hôtel d’Accord, mas sem dizer coisa alguma a ninguém.

- Genebra? Vai para Genebra? Por que foi que ela deixou os Estados Unidos?

- Diz ela que foi uma emergência. Você deve ficar calado e não fazer coisa alguma enquanto não falar com ela. Parece muito preocupada.

- Tenho de cuidar dela. Ela lhe deu algum telefone, algum endereço onde eu possa falar com ela?

- Não me deu nada. Não tinha muito tempo para falar e a ligação estava muito ruim. Falou-me do México. Posso saber o que é que está acontecendo?

- Desculpe, Sam. Talvez um dia eu lhe possa contar tudo. Você tem direito a saber.

- Se achar que deve. Cuide-se. Aprecio muito sua mãe. Seja bom para ela.

Holcroft desligou. Sam era um bom amigo, talvez tão bom amigo quanto o homem bem-vestido era de Helden. Ele a estava protegendo. De que e com quem?

- Minha mãe foi para Genebra, Helden.

- Ouvi você dizer. Parece preocupado.

- E estou. Um homem seguiu-a até o México. Miles surpreendeu-o no aeroporto, mas ele tomou veneno e morreu sem que Miles pudesse saber quem era, nem quem o tinha mandado.

- Se alguém o matasse, outro tomaria o lugar dele. Não foram essas as palavras do homem do blusão?

- Foram. Estava pensando nelas.

- Johann sabe?

- Contei-lhe tudo.

- Que é que ele acha?

- Não chegou a uma conclusão. A chave de tudo era Beaumont. Não sei agora para onde podemos ir. Talvez para Genebra, com a esperança de que ninguém nos queira deter.

- Escute, Noel. Que poderão eles, sejam lá quem forem, fazer? Depois que vocês três se apresentarem ao banco em Genebra, de acordo entre si, como homens sensatos, tudo estará encerrado. Que poderão eles fazer ainda?

- Você disse na noite passada o que poderiam fazer.

- Que é?

- Matar-nos.

O telefone tocou e Holcroft atendeu.

- Alô?

- É John Tennyson.

A voz estava um pouco nervosa.

- Espere um pouco, que sua irmã quer falar com você.

- Um momento - disse Tennyson. - Tenho de falar primeiro com você. Ela já sabe?

- Já. E, pelo visto, você também.

- Telefonaram-me do jornal dando a notícia. O secretário da noite sabia como Gretchen e eu éramos unidos. É horrível isso.

- Queria ter alguma coisa para dizer.

- Eu também não pude dizer nada quando você me falou do seu padrasto. Temos de reagir a essas coisas por nós mesmos. Nada se pode dizer quando elas acontecem. Helden compreende.

- Não acredita então na notícia a respeito do barco e do temporal?

- Acredito que os dois tenham saído num barco e nunca mais voltaram. No resto não acredito. Posso até dizer que é absurdo. Beaumont podia não prestar, mas era um marinheiro soberbo. Podia prever um temporal com muitas horas de antecedência e sei que, ante a menor ameaça de temporal, teria recolhido o barco ao primeiro porto.

- Quem teria sido então?

- Ora, meu amigo, nós ambos sabemos. Quem o contratou foi quem o matou. Mandou seguir você até o Rio. No momento em que você o reconheceu, a utilidade dele terminou. Era como se o responsável soubesse que nós íamos acusá-lo em Saint-Tropez. O que é imperdoável é que, para despistar, tenha matado Gretchen também.

- Sabe que me sinto um pouco responsável?

- As coisas estavam inteiramente fora do seu controle.

- Teriam sido os ingleses? - perguntou Holcroft. - Falei a Kessler de Beaumont. Ele me disse que ia agir pelos canais de Bonn para levar tudo ao conhecimento de Londres. Talvez um agente do ODESSA no comando de um desses navios de reconhecimento fosse um fato inaceitável para os ingleses.

- A tentação poderia ser grande, mas não creio que nenhuma autoridade fosse capaz de agir nesse sentido. Os ingleses poderiam desligá-lo do comando e tentar arrancar a verdade dele por meio de interrogatórios implacáveis, mas não o matariam. Ele e Gretchen foram mortos por alguém que poderia ser prejudicado pelo que Beaumont sabia, não por alguém que poderia auferir benefícios disso.

O raciocínio de Tennyson era convincente.

- Tem razão. Isso de nada adiantaria aos ingleses. Tratariam simplesmente de isolá-lo.

- Exatamente. E há outro fator, este de ordem moral. Creio que a Seção Seis está repleta de ambiciosos, mas não creio que chegassem ao ponto de matar para livrar-se de um problema. Não é próprio deles. Poderiam entretanto ir a extremos incríveis para manter a sua reputação ou melhorá-la. Queira Deus que eu esteja certo quanto a isso.

- Por quê?

- Vou tomar o avião para Londres esta noite. Amanhã, procurarei Payton-Jones, na Seção Cinco. Tenho uma proposta a fazer-lhe e penso que ele terá dificuldade em resistir. Posso oferecer-lhe um pássaro esquivo em que há muito tempo ele quer pôr a mão.

Holcroft ficou surpreso.

- Julguei que não queria cooperar com eles.

- Posso cooperar com Payton-Jones, e com ninguém mais. Ele terá de me garantir isso ou não iremos mais adiante.

- Acha que ele concordará?

- Que remédio? O pássaro esquivo constitui uma obsessão para o serviço secreto.

- E se ele concordar? Que terá você em troca?

- Acesso ao material secreto deles. Os ingleses têm milhares de fichas secretas. Abrangem os últimos anos da guerra e contêm coisas desagradáveis para muita gente. Mas nesses arquivos deve estar a resposta que eu procuro. Um homem, um grupo de homens, um bando de fanáticos, não sei bem quem ou o quê, mas deve estar lá. Alguém que tinha ligação com o Ministério das Finanças há trinta anos ou com os nossos pais, alguém em quem eles confiavam e a quem atribuíram alguma responsabilidade. Podia ser até uma infiltração da Loch Torridon.

- Que é isso?

- A Loch Torridon era uma organização de espionagem e sabotagem montada pelos ingleses de 1941 a 1944. Centenas de ex-cidadãos foram mandados de volta à Alemanha e à Itália a fim de trabalhar nas fábricas, nas estradas de ferro e nas repartições públicas. Sabia-se que havia pessoal da Loch Torridon no Ministério das Finanças. A resposta está nos arquivos...

- E você espera encontrar uma identidade nesses milhares de fichas? Ainda que fosse possível, a pesquisa poderia estender-se por alguns meses.

- Não é tanto assim. Sei precisamente o que devo procurar: pessoas que foram ligadas a nossos pais.

Tennyson falava tão depressa e com tal segurança que Noel tinha dificuldade em acompanhá-lo.

- Por que tem tanta certeza de encontrar a informação?

- Porque não pode deixar de estar lá. Você me esclareceu tudo hoje à tarde. O homem que lhe telefonou em Nova York e nessa ocasião foi morto...

- Peter Baldwin?

- Sim. Ele era da Seção Seis e tinha conhecimento de Genebra. Começaremos por ele. É a nossa chave agora.

- Procure então a pasta chamada "Wolfsschanze" - disse Holcroft. - "Código Wolfsschanze." Deve estar nela o que você procura.

Tennyson ficou alguns instantes calado. Noel não sabia se ele estava pensando em alguma coisa ou se estava espantado.

- Onde ouviu isso? Você ainda não havia mencionado essa circunstância. Helden também não.

- Foi então esquecimento nosso - disse Holcroft.

- Devemos ter muito cuidado - disse Tennyson. - Se o nome Wolfsschanze for ligado a Genebra, devemos ter o maior cuidado. Os ingleses não devem saber de nada a respeito de Genebra. Seria desastroso.

- De acordo. Mas que razão poderia dar a Payton-Jones para ter acesso aos arquivos?

- Dir-lhe-ia parte da verdade - respondeu Tennyson. - Quero saber quem foi que matou Gretchen.

- E, em troca disso, você dará... o pássaro esquivo que eles há seis anos procuram?

- Vou fazer isso também por Genebra, com todo o meu coração.

Noel sentiu-se emocionado.

- Quer que eu fale com Payton-Jones?

- Não! Seria muito perigoso. Confie em mim. Faça o que lhe estou pedindo. Você e Helden devem sair de circulação. Por completo. Até eu falar de novo com vocês, Helden não deve voltar ao trabalho. Tem de ficar em sua companhia e os dois devem permanecer invisíveis.

Holcroft olhou para Helden.

- Não sei se ela vai concordar com isso.

- Convença-a. Deixe-me falar com ela. A minha conversa com você já acabou.

- Quando vai me telefonar?

- Daqui a alguns dias. Se mudar de hotel, deixe a informação de onde Mr. Fresca poderá ser encontrado. Helden sabe o meu telefone de recados. Deixe-me agora falar com ela. Apesar das nossas divergências, precisamos um do outro mais que nunca. E, Noel...

- Sim?

- Seja bom para ela. Ame-a. Ela precisa também de você...

Holcroft entregou o fone a Helden.

- Mein Bruder[32]...


31

Código Wolfsschanze!

Von Tiebolt-Tennyson bateu com o punho fechado na mesa do pequeno escritório que tinha em Paris.

Código Wolfsschanze. A sacrossanta expressão fora dada a Peter Baldwin por Ernst Manfredi! O banqueiro fizera um jogo arriscado mas engenhoso. Sabia que o simples uso da expressão por Baldwin seria suficiente para acarretar-lhe a morte. Mas Manfredi não daria ao inglês mais que isso. Não seria do interesse do banqueiro. No entanto, Baldwin possuía um dos espíritos mais brilhantes da Europa. Descobrira mais do que Manfredi tinha julgado possível? Que teria realmente apurado? Que haveria na ficha de Baldwin na Seção Cinco?

Ou não tinha isso qualquer importância? Os ingleses haviam rejeitado o que Baldwin tinha para oferecer. Uma ficha perdida entre milhares, soterrada nos arquivos, como mais uma peça de informação rejeitada.

Código Wolfsschanze. Isso nada significava para os que desconheciam a expressão, e os poucos que a conheciam, apenas os chefes de distrito em cada país, sabiam apenas que se tratava de um sinal. Ao recebê-lo, deviam preparar-se, pois lhes seriam enviados consideráveis fundos que deveriam ser usados pela causa.

Die Sonnenkinder, os Filhos do Sol, no mundo inteiro, se preparariam para agir e afirmar os seus direitos de nascimento.

A ficha não podia conter essa informação; não era possível. Mas as pessoas que estavam de posse da ficha seriam usadas. Mais que tudo, os ingleses queriam o Tinamou. A captura deste pela Seção Cinco reafirmaria a supremacia inglesa em atividades secretas, supremacia perdida através de anos de equívocos e defecções.

A Seção Cinco receberia o Tinamou de mão beijada e assim contrairia uma obrigação para com quem lhe permitisse essa captura. O odiado serviço secreto inglês, monstro solerte e sinuoso, que tantos prejuízos causara ao Terceiro Reich, contribuiria para criar o Quarto Reich.

Isso aconteceria porque a Seção Cinco ficaria sabendo que o Nachrichtendienst estaria envolvido numa tremenda conspiração. E acreditaria porque o homem que dissesse isso seria o mesmo que entregaria o Tinamou à Seção Cinco.

Tennyson passou pelas salas da sede do Guardian em Londres, recebendo os cumprimentos e elogios de seus colegas e subordinados. Como sempre, aceitava os elogios modestamente.

Olhou displicentemente para as mulheres. As telefonistas, secretárias e recepcionistas convidavam o homem a quem achavam belo a reconhecer a existência delas, a tomar delas o que bem quisesse. Pensou que tinha de escolher uma daquelas mulheres. A sua amada Gretchen desaparecera, mas o mesmo não havia acontecido aos seus desejos. Escolheria sem dúvida uma mulher. A sua ansiedade crescia e a intensidade da Wolfsschanze cada vez mais o empolgava. Ia ter necessidade de liberação sexual. Fora sempre assim, e Gretchen havia compreendido isso.

- Prazer em vê-lo, John - disse o redator-chefe ao ver Tennyson entrar em sua sala. - O seu comunicado de Bonn vai sair amanhã. Está muito bom.

Tennyson sentou-se ao lado da mesa do redator-chefe e disse:

- Se as informações que tenho são corretas, e acredito que sejam, um assassinato ou vários assassinatos vão ser tentados e poderão provocar uma crise internacional.

- Meu Deus! Escreveu alguma coisa sobre isso?

- Não. Não podemos publicar nada sobre o caso. Não creio que qualquer jornal criterioso o possa.

- De que se trata, John?

- Há uma conferência econômica de cúpula marcada para a próxima quinta-feira.

- É verdade. Aqui em Londres. Comparecerão os chefes de governo do Oriente e do Ocidente.

- É isso mesmo. Oriente e Ocidente. Virão de avião de Moscou e Washington, de Pequim e Paris. São os homens mais poderosos da terra.

- E então?

- Dois deles serão assassinados.

- O quê?

- Dois serão assassinados. Parece que não terá importância quais sejam eles, contanto que sejam de lados diferentes. Por exemplo, o presidente dos Estados Unidos e o presidente da República Popular da China ou o primeiro-ministro da Inglaterra e o chefe do governo da União Soviética.

- Impossível! As medidas de segurança serão rígidas.

- Não de todo. Haverá multidões de curiosos, desfiles, banquetes, caravanas de carros. Onde poderá haver segurança absoluta?

- Tem de haver segurança!

- Não contra o Tinamou.

- O Tinamou?

- Ele aceitou a mais alta remuneração que lhe foi paga até agora.

- Por quem?

- Por uma organização conhecida como o Nachrichtendienst.

Harold Payton-Jones olhava do outro lado da mesa para Tennyson, na sala mal-iluminada que não tinha outros móveis além da mesa e das duas cadeiras.

- Escute - disse o agente de cabelos grisalhos. - É absurdo pensar que lhe vou dar acesso aos arquivos, aceitando o que está me dizendo expressamente porque deseja conseguir acesso aos arquivos.

- Não tenho provas do que estou dizendo, mas tudo é verdade. Não há mais tempo de ficarmos em posições antagônicas. Cada momento agora é da maior importância.

- Não tenho o menor desejo de ser enganado por um jornalista oportunista, que pode muito bem ser mais que um correspondente. Você é muito esperto e também, segundo creio, um rematado mentiroso!

- Pelo amor de Deus! Se é verdade o que está dizendo, o que é que estou fazendo aqui? Escute, vou lhe falar pela última vez. O Tinamou foi treinado pelo ODESSA nas montanhas do Rio. Tenho combatido o ODESSA toda a minha vida. Isso está documentado, se alguém se der ao trabalho de verificar. O ODESSA nos forçou a sair do Brasil e nos afastou de tudo o que construímos lá! Eu quero o Tinamou!

Payton-Jones olhou firmemente para Tennyson. A discussão tinha sido áspera e já durava havia meia hora. O agente fora implacável e bombardeara Tennyson com um fogo cerrado de perguntas, entremeadas de insultos. Era uma técnica estudada da Seção Cinco, que visava a separar a verdade da falsidade. Era evidente que o inglês já estava satisfeito, pois baixou a voz e disse:

- Está bem, Mr. Tennyson. Creio que podemos encerrar a briga, e decerto nós lhe devemos apresentar desculpas.

- As desculpas são recíprocas. Sempre me convenci de que podia trabalhar melhor sozinho. Tive de fingir que era muita coisa que nunca fui. Se alguém me visse com uma pessoa do seu serviço, a minha eficiência seria prejudicada.

- Sinto muito as ocasiões em que o vigiamos de perto.

- Foram momentos difíceis para mim. Nessas ocasiões, o Tinamou sempre conseguia escapar-me.

- Ainda não o capturamos.

- Pouco falta. Tudo será uma questão de dias. Teremos êxito, se tomarmos todas as decisões necessárias, em todas as ruas que as delegações atravessarem, em todos os locais dos banquetes, das reuniões e das cerimônias. Foi uma vantagem que ainda não tivemos. Saberemos que o Tinamou estará presente.

- Acredita firmemente na sua informação?

- Nunca estive mais convencido de alguma coisa. O homem no restaurante de Berlim foi o correio. Até agora, todo correio mandado para o Tinamou foi morto. As suas últimas palavras foram: "Londres... na semana que vem... a cúpula... um de cada lado... um homem com uma rosa tatuada nas costas da mão... Nachrichtendienst..."

- Procuraremos saber em Berlim a identidade desse homem.

- Duvido que consiga apurar alguma coisa. Do pouco que eu conheço sobre o Nachrichtendienst, sei que costumam agir de maneira muito cautelosa e completa.

- Mas eram neutros - disse Payton-Jones. - E as informações que davam eram sempre exatas. Não poupavam ninguém. Os processos de Nuremberg se basearam muito em dados fornecidos pelo Nachrichtendienst.

- Na minha opinião - disse Tennyson -, os acusadores de Nuremberg só receberam do Nachrichtendienst o que este lhes quis dar. Não se pode saber o que foi sonegado.

- É bem possível - disse o inglês. - Nunca saberemos. A questão agora é: por quê? Qual é o motivo?

- Se me der licença... Penso que se trata de alguns velhos prestes a morrer que querem ter a sua vingança final. O Terceiro Reich teve dois inimigos específicos que se aliaram contra ele a despeito dos seus antagonismos: os comunistas e as democracias ocidentais. Atualmente, estão em luta pela supremacia. Que melhor vingança poderia haver do que um lado acusar o outro de assassinato e estarem os dois empenhados em destruir-se mutuamente?

- Se eu pudesse ter certeza disso - murmurou Payton-Jones -, teria encontrado o motivo de muitos assassinatos ocorridos nos últimos anos.

- Como será possível obter certeza absoluta? Não terá o serviço secreto inglês informações diretas sobre o Nachrichtendienst?

- É claro. Insistimos em apurar as identidades. Mas tudo está trancado em nossos arquivos. Não poderíamos agir às cegas com base em tais informações.

- Há ainda alguns vivos?

- É possível. Há anos ninguém menciona o Nachrichtendienst. Vou verificar, é claro.

- Poderá dar-me os nomes?

O homem da Seção Cinco recostou-se na cadeira.

- Essa é uma das condições de que falou, Mr. Tennyson?

- Decerto, mas esclareci que, dadas as circunstâncias, eu não poderia nunca insistir.

- Nenhum homem civilizado insistiria. Se capturarmos o Tinamou, terá a gratidão dos governos do mundo. Os nomes têm pouca importância. Se os tivermos, tê-los-á também. Tem outros pedidos a fazer? Terei necessidade de um caderno de notas?

- Meus pedidos são limitados - disse Tennyson, sem dar atenção ao remoque. - Creio que vão surpreendê-lo. Por uma questão de lealdade para com o meu jornal, gostaria que as notícias fossem dadas ao Guardian com cinco horas de antecedência.

- De acordo - disse Payton-Jones. - Que mais?

- Até agora, a Seção Cinco tem-se aproximado de várias pessoas dando a entender que eu estava sendo objeto de investigações. Gostaria de ter uma carta do serviço secreto inglês que declarasse não só que a minha ficha pessoal é limpa, mas também que eu fiz uma contribuição eficiente para a manutenção, vamos dizer, da estabilidade internacional.

- Não será preciso. Se, graças à sua informação, conseguirmos capturar o Tinamou, quase todos os governos lhe concederão condecorações e lhe tributarão grandes homenagens. Uma carta nossa seria supérflua. Não vai precisar dela.

- Mas acontece que eu a quero, porque o meu pedido seguinte é que meu nome nunca seja mencionado.

- Como assim? - exclamou Payton-Jones. - É difícil de acreditar!

- Por favor, não confunda os meus esforços profissionais com minha vida particular. Não desejo crédito por coisa alguma. Os Von Tiebolt têm uma dívida. Considere isso como um pagamento parcial.

O agente da Seção Cinco ficou um momento em silêncio.

- Julguei-o mal e de novo lhe peço desculpas. É claro que terá a sua carta.

- Francamente, há ainda uma razão para que eu não queira publicidade em torno do meu nome. Sei que a Marinha Real e as autoridades francesas aceitaram a morte de minha irmã e meu cunhado como um acidente quando passeavam de barco e provavelmente têm razão. Mas julgo que concordará comigo em que a ocasião não foi muito tranquilizadora, para não dizer tudo. Ainda tenho uma irmã. Ela e eu somos os últimos Von Tiebolt. Se alguma coisa acontecesse a ela, eu nunca me perdoaria.

- Compreendo.

- Gostaria de dar-lhe toda a assistência que me for possível. Sei talvez mais sobre o Tinamou do que qualquer outra pessoa. Há anos que o estudo. Examinei todos os seus crimes e projetos antes e depois dos atos. Penso que posso ajudar e gostaria de fazer parte de sua equipe.

- Eu seria um idiota se o recusasse. Qual é o seu último pedido?

- Já vamos chegar lá - disse Tennyson, levantando-se. - O que é preciso compreender a respeito do Tinamou é que a sua técnica é de variações repentinas, numa improvisação, por assim dizer, estudada. Ele não tem uma estratégia única, mas dez ou doze, cada qual metodicamente elaborada e ensaiada para que possa ser adotada no momento necessário.

- Não sei ao certo aonde quer chegar.

- Vou explicar. Lembra-se do assassinato em Madri, há sete meses, durante as arruaças?

- É claro. O tiro foi disparado da janela de um quarto andar, acima da multidão.

- Exatamente. Um edifício oficial, numa praça pública, onde as manifestações iam efetuar-se, como fora anunciado. Um edifício oficial, isso muito me intrigou. Se os guardas fossem mais rigorosos, se as medidas de segurança fossem mais eficientes, se todas as pessoas fossem revistadas à procura de armas, nada teria acontecido. E se ele não tivesse conseguido chegar àquela janela? Era decerto um lugar ideal para ter a vítima sob a mira da arma, mas imagine que houvesse outras pessoas naquela sala.

- Ele se teria transferido para outro lugar.

- Naturalmente. Mas, por mais que escondesse a arma, que foi um fuzil, dissimulada numa muleta, amarrada à perna ou desmontada e com as peças cosidas na roupa, teria sido muito difícil. Além disso, tinha de agir com rapidez. O tempo era importante e as manifestações não iam durar para sempre. O Tinamou devia ter mais de um lugar, mais de uma opção. E teve.

- Como sabe disso?

- Passei dois dias em Madri, correndo todos os prédios, examinando todas as janelas, todos os telhados daquela praça. Encontrei quatro armas intactas e três outros lugares com tábuas do assoalho arrancadas, vidraças de janelas retiradas e reboco despedaçado. Armas sobressalentes estavam escondidas nesses lugares. Cheguei a encontrar um quilo de explosivos plásticos numa lata de lixo no passeio. A quinze metros do centro das manifestações, havia oito posições das quais ele poderia atirar. Tudo à disposição dele para escolher, cada posição designada para ajustar-se a um momento dado num espaço de tempo específico.

Payton-Jones inclinou-se para a frente com as mãos em cima da mesa.

- Isso complica extraordinariamente as coisas. As medidas de proteção normais concentram-se numa localização única. Qual é a mais provável entre centenas de possibilidades? A presunção é de que o assassino se fixe em determinada posição. A estratégia que está descrevendo acrescenta outra dimensão, a mobilidade instantânea. Não um único esconderijo previamente escolhido, mas vários, dependendo a escolha de um deles do que for decidido em dado momento.

- Dentro de um espaço de tempo determinado - disse o homem louro. - Mas, como eu disse, nós levamos uma vantagem. Nós sabemos da presença do Tinamou. Há também outra vantagem, mas desta devemos fazer uso imediatamente.

- Qual é?

- Vou ser mais preciso. Só deveremos usá-la se estivermos de acordo em que a captura do Tinamou é quase tão importante quanto a segurança das pessoas que ele pretende atacar.

O inglês franziu a testa.

- É uma coisa muito perigosa essa. Não pode haver riscos, calculados ou não, para essas pessoas enquanto estiverem em solo britânico.

- Tenha a bondade de escutar-me. Ele já matou outros líderes políticos, gerando com isso desconfianças e até hostilidades entre vários governos. E sempre espíritos mais ponderados prevaleceram e deixaram os ânimos esfriarem. O Tinamou deve ser detido agora, pois pode acontecer que dessa vez a ponderação não seja suficiente. Estou certo de que poderemos detê-lo agora, se todos concordarem.

- Concordarem em quê?

- Em seguir os horários e os programas publicados. Reúna os chefes das delegações e conte-lhes o que sabe. Esclareça que serão tomadas precauções extraordinárias, mas que dependerá do cumprimento exato dos horários e programas a possibilidade de captura do Tinamou. Creio que, se falar com sinceridade, nenhum deles discordará. Afinal de contas, não será muito mais do que o que um líder político tem de enfrentar todos os dias.

O rosto do agente da Seção Cinco tornou-se menos carrancudo.

- E nenhum deles vai querer que o chamem de covarde. E agora, qual é a segunda vantagem?

- A técnica do Tinamou prevê a ocultação de armas em vários pontos. Para fazer isso, ele tem de começar dias, talvez semanas, antes da data do projetado assassinato. Com toda a certeza, já começou a tomar as suas providências aqui em Londres. Acho que devemos iniciar uma busca discreta mas completa em todas as áreas relacionadas com o programa da conferência de cúpula.

Payton-Jones juntou as mãos num gesto de acordo.

- É claro. Temos apenas de achar um esconderijo e teremos não só a localização geral, mas o tempo fixado.

- Exatamente. Saberemos que dentro de um dado número de minutos, durante um acontecimento específico em determinada área, será tentado o crime. Eu gostaria de auxiliar essa busca. Sei o que é preciso procurar e, mais importante ainda, sei onde não se deve procurar. Não dispomos de muito tempo.

- A sua oferta é aceita e apreciada, Mr. Tennyson. A Seção Cinco lhe agradece. Vamos começar esta noite?

- Vamos dar ao Tinamou mais um dia para distribuir o seu arsenal. Isso aumentará as nossas probabilidades de encontrar alguma coisa. Vou precisar também de alguma espécie de uniforme e de documentos que me identifiquem como "inspetor de construções" ou coisa que o valha.

- Muito bem - disse Payton-Jones. - Não me sinto constrangido em dizer-lhe que temos uma boa fotografia sua que servirá para o seu documento de licença. O uniforme é que não sei se será do seu tamanho exato.

- Quando um uniforme militar assenta muito bem, aí é que provoca suspeitas.

- Está muito bem. Tudo lhe será fornecido amanhã de manhã. Mas, se não me engano, disse que ainda tinha um pedido a fazer.

- Desde que saí do Brasil, nunca mais usei uma arma. Não sei mesmo se isso é permitido, mas gostaria de usar uma arma. Apenas durante a realização da conferência, é claro.

- Vou providenciar-lhe uma pistola.

- Eu teria de passar recibo, não?

- Claro.

- Perdão, mas como eu disse, não só não quero crédito pela minha colaboração, mas também não desejo ver meu nome relacionado de maneira alguma como auxiliar da Seção Cinco. Meu nome num recibo de arma podia levar alguma pessoa curiosa à verdade. E essa pessoa poderá ser ligada ao Nachrichtendienst.

- Tem razão - disse o inglês, desabotoando o paletó e tirando um pequeno revólver, que entregou a Tennyson. - Isso é muito irregular, mas as circunstâncias não o são menos. Tome o meu revólver. Comunicarei que mandei repará-lo e pedirei uma substituição.

- Muito obrigado - disse o homem louro, guardando a arma desajeitadamente.

Tennyson entrou num bar repleto, na Soho Square. Olhou por entre as densas nuvens de fumaça que enchiam o recinto e viu o que procurava: um homem sentado a uma mesa dos fundos levantou a mão.

Como sempre, o homem usava uma capa marrom feita especialmente para ele. Era diferente de todas as outras capas, pois continha muitos bolsos e faixas que serviam para guardar várias armas, silenciadores e explosivos. Fora treinado tão bem pelo Tinamou que muitas vezes o substituía em serviços contratados.

O seu último serviço fora executado no Aeroporto Kennedy, numa noite de chuva, quando havia um cordão de isolamento da polícia em torno da fuselagem molhada de um 747 da British Airways. Encontrara as suas vítimas num caminhão de abastecimento e se desincumbira da tarefa.

John Tennyson levou a sua cerveja para a mesa e se sentou ao lado do homem da capa. Ficaram tão juntos na mesa redonda e pequena que as cabeças estavam apenas alguns centímetros distantes uma da outra e eles podiam falar em voz baixa, sem receio de que alguém os ouvisse.

- Tudo já foi colocado? - perguntou o homem louro.

- Tudo. A caravana de carros entrará no Strand pelo lado oeste, dará a volta na Trafalgar Square, entrará pelos portões do Arco do Almirantado e tomará o Mall rumo ao palácio. Haverá sete pontos.

- Dê-me a sequência.

- De leste para oeste, no sentido da marcha, a começar pelo Strand Palace Hotel, defronte do Savoy Court. Terceiro andar, quarto 306. Um fuzil automático com mira telescópica está cosido no colchão da cama mais próxima da janela. Uma quadra para oeste, num quarto andar do lado leste, no banheiro dos homens de um escritório de contabilidade. A arma está escondida no teto, em cima de um tijolo, à esquerda da luz fluorescente. Do outro lado da rua, também no quarto andar... há uma sala de jogos e divertimentos eletrônicos no primeiro andar... existe um serviço de datilografia. A arma e a mira estão escondidas embaixo de uma máquina de fotocópia. Seguindo para Trafalgar...

O homem da capa continuou dando a localização dos esconderijos das armas. Estavam todos na extensão de cerca de um quilômetro do Savoy Court até o Arco do Almirantado.

- Os pontos foram bem escolhidos - disse Tennyson, pondo de lado a cerveja que não tomara. - Compreende bem os movimentos que tem de fazer?

- Sei quais são os movimentos, mas não posso dizer que os compreendo.

- Isso não é muito necessário, não é mesmo? - disse o homem louro.

- Claro que não. Mas estou pensando é em você. Se você for detido ou bloqueado, eu poderei executar o serviço. Por que não me confia um dos pontos?

- Porque nem você tem capacidade para o caso. Não pode haver margem de erro, por menor que seja. Uma única bala perdida seria desastrosa.

- Posso chamar-lhe a atenção para o fato de que fui treinado pelo melhor do mundo?

Tennyson sorriu.

- Tem razão. Muito bem. Faça os movimentos que indiquei e coloque-se no ponto oito. Escolha uma sala no edifício oficial, depois do Arco do Almirantado, e dê-me notícia exata do local. É capaz de fazer isso?

- Que dúvida? - disse o homem, levando à boca o seu copo de cerveja. Tennyson viu a tatuagem de uma rosa nas costas da mão direita dele.

- Posso fazer-lhe uma sugestão? - disse Tennyson.

- Qual é?

- Use luvas - disse o Tinamou.


32

O homem louro abriu a porta e estendeu a mão para o interruptor de luz na parede. Dois abajures se acenderam no quarto 306 do hotel. Convidou com um gesto o homem de meia-idade que o acompanhava a entrar no quarto.

- Tudo bem - disse ele. - Embora o quarto esteja sendo vigiado, as cortinas estão descidas e a hora corresponde àquela em que as arrumadeiras costumam fazer os quartos. Vamos.

Payton-Jones entrou enquanto Tennyson tirava do bolso um detector de metais em miniatura. Apertou o botão, mantendo o aparelho acima da cama. O leve zumbido cresceu de intensidade e a agulha deu um salto para a direita.

Tennyson levantou cuidadosamente os lençóis e disse, apalpando o colchão:

- Está aqui. Pode-se sentir o volume.

- Notável - disse Payton-Jones. - E o quarto foi alugado por dez dias?

- Por telegrama, e o dinheiro foi pago com um vale postal remetido de Paris. O nome do remetente foi Le Fèvre, evidentemente um nome falso. Ninguém se hospedou aqui.

- Tudo está bem? - perguntou Payton-Jones, tirando as mãos da cama.

- Estou sentindo a carabina, mas não posso saber qual é o outro objeto - disse Tennyson.

- Deve ser uma mira telescópica - murmurou o inglês. - Deixaremos tudo como está e colocaremos alguns homens de guarda no corredor.

- O ponto seguinte é mais abaixo na rua, no lavatório dos homens de um escritório de contabilidade, no quarto andar. A arma está no teto, perto de um lustre de luz fluorescente.

- Vamos - disse Payton-Jones.

Uma hora e quarenta e cinco minutos depois, os dois homens estavam no terraço de um edifício na Trafalgar Square. Ambos se ajoelharam diante da mureta que circundava o terraço. Embaixo, estendia-se o caminho que a caravana de automóveis tomaria através do Arco do Almirantado em direção ao Mall.

- O fato de que o Tinamou tenha colocado uma arma aqui - disse Tennyson com a mão numa protuberância do papel alcatroado da parede - me faz pensar que ele talvez use uma farda da polícia.

- Compreendo - disse Payton-Jones. - Um policial estacionado num terraço no ponto em que nós estamos não causaria alarma.

- Exatamente. Ele poderia matar o homem que encontrasse aqui e tomar posição.

- Neste caso, ficaria isolado. Não teria saída.

- Não sei se o Tinamou faria uso de uma saída convencional. Uma corda bamba jogada para outro terraço, confusão na rua, escadas cheias de gente, um verdadeiro pandemônio. Ele já tem fugido em circunstâncias mais difíceis. Não se esqueça de que ele tem mais identidades do que uma lista telefônica. Estou convencido de que ele, em Madri, foi uma das pessoas que interrogaram as testemunhas no meio da rua.

- Colocaremos dois homens aqui neste terraço, um deles bem escondido. E teremos quatro atiradores peritos nos terraços vizinhos.

Payton-Jones se afastou da mureta, acompanhado de Tennyson.

- O seu trabalho foi excepcional, Tennyson. Descobriu todos esses pontos em pouco mais de trinta e seis horas. Tem certeza de que não há outros?

- Ainda não. Mas já estabelecemos os parâmetros. Do Savoy Court ao fim da Trafalgar Square, em algum ponto desse trajeto ele entrará em ação. No momento em que a caravana passar pelo Arco e chegar ao Mall, poderemos respirar aliviados. Até então, não posso ter certeza. As delegações já têm conhecimento do fato?

- Já. Todos os chefes de Estado terão couraças à prova de balas para proteger-lhes o peito, as virilhas, as pernas e a cabeça. O presidente dos Estados Unidos se negou naturalmente a usar qualquer coisa na cabeça, e o chefe do governo russo quer que a couraça seja adaptada ao seu gorro de peles. Mas de qualquer maneira estamos bem preparados. O risco é mínimo.

- Acredita mesmo nisso? - perguntou Tennyson.

- Acredito. Por quê?

- Penso que está errado. A pontaria do Tinamou é alguma coisa fantástica. É capaz de acertar várias balas numa moeda de um xelim a quinhentos metros de distância. Um chapéu blindado não seria obstáculo para ele. Poderia atirar abaixo da aba, e pode ter certeza de que não erraria.

- Disse que o risco era mínimo, Tennyson. Não disse que era inexistente. Ao primeiro sinal de perturbação, cada chefe de Estado será protegido por escudos humanos. Você descobriu cinco pontos. Digamos que haja mais cinco. Ainda assim, os que você já descobriu reduzem a eficiência do Tinamou em cinquenta por cento no mínimo, e mais se ele utilizar um dos pontos já descobertos. As chances são contrárias ao Tinamou. Temos de capturá-lo!

- A captura dele representa muito para você, não é?

- Tanto quanto para você, Tennyson. Será para mim a maior coisa que já aconteceu nos meus trinta anos de serviço.

- Compreendo perfeitamente - disse Tennyson. - Devo muito a este país e farei tudo o que for possível para ajudar. Mas só ficarei completamente tranquilo quando os automóveis chegarem à área do Almirantado.

Às três da manhã de terça-feira, Tennyson havia "descoberto" mais duas armas. Os esconderijos encontrados eram agora sete ao todo e se estendiam em linha reta pelo Strand, do Savoy Court ao terraço na esquina de Whitehall com a Trafalgar Square. Todos os pontos eram vigiados por cinco agentes no mínimo, escondidos em corredores e terraços, preparados para atirar em quem quer que se aproximasse das armas ocultas.

Mas Tennyson não se mostrava satisfeito.

- Há alguma coisa errada - dizia ele a Payton-Jones. - Não sei o que é, mas há um desajuste.

- O que você está é nervoso - disse o agente, no quarto do Savoy que lhes servia de base de operações. - Tem trabalhado demais. E conseguiu resultados magníficos.

- Não é tanto assim. Há alguma coisa errada e eu não consigo atinar com o que seja.

- Acalme-se. Pense no que já conseguiu, sete esconderijos de armas. Muito provavelmente, não há outros esconderijos. Ele tem de chegar perto de uma dessas armas, mostrando que sabe da existência delas. Será então capturado por nós. Descanse. Temos centenas de homens de sobreaviso.

- Mas há alguma coisa fora dos eixos.

A multidão enchia o Strand. Os passeios estavam tomados do meio-fio à frente das casas. Havia cavaletes dos dois lados da rua unidos por grossos cabos de aço. A polícia de Londres formava filas ininterruptas à frente dos cabos, de cassetete em punho, com os olhos a esquadrinharem continuamente os arredores.

Além da polícia e misturados com a multidão, havia mais de cem agentes do serviço secreto, muitos deles chamados com urgência de postos no estrangeiro. Eram os técnicos nos quais Payton-Jones confiava para a vigilância contra um assassino capaz de acertar num xelim a quinhentos metros de distância. Comunicavam-se por meio de pequenos rádios de alta-frequência que não podiam sofrer nem interferência nem interceptação.

O centro de operações no Savoy estava carregado de tensão. Todos ali também eram técnicos. Telas de computadores apresentavam todos os metros do percurso crítico, com linhas e grades mostrando as quadras e os passeios. As telas eram ligadas a rádios do lado de fora. Mostravam pequenos pontos que se iluminavam quando ativados. A hora se aproximava. O cortejo estava a caminho.

- Vou para a rua - disse Tennyson tirando um pequeno rádio do bolso. - Coloquei a flecha verde em posição de receber. É assim mesmo?

- Sim, mas não transmita mensagem alguma, salvo se for absolutamente necessário - disse Payton-Jones. - Quando os automóveis chegarem à Ponte de Waterloo, haverá comunicados de cinquenta em cinquenta metros com intervalos de cinco segundos, exceto para emergências, é claro. É preciso que os canais fiquem livres.

Um agente diante de um computador disse em voz alta:

- Os carros estão a cento e cinquenta metros da Ponte de Waterloo, chefe. A velocidade é de doze quilômetros por hora.

O homem louro saiu apressadamente do quarto. Estava na hora de pôr em ação os movimentos rápidos que destruiriam de uma vez por todas o Nachrichtendienst e consolidariam o pacto da Wolfsschanze.

Quando saiu no Strand, olhou para o seu relógio. Dentro de trinta segundos o homem da capa marrom apareceria numa janela do segundo andar do Strand Palace Hotel. O quarto era o 206, logo abaixo daquele em que a arma estava escondida no colchão. Seria esse o primeiro movimento.

Tennyson procurou com os olhos um dos especialistas de Payton-Jones. Não era difícil encontrá-los. Todos eles tinham nas mãos um rádio igual ao dele. Aproximou-se de um agente que tomava posição junto da parede de uma loja. Falou deliberadamente com ele, como havia falado com muitos outros.

- Alô! Como vão as coisas?

- Como? Ah, é o senhor.

O agente estava observando as pessoas dentro dos limites do seu posto. Não tinha tempo para conversas inúteis.

Houve uma algazarra do povo do lado do Strand, perto da Ponte de Waterloo. O cortejo se aproximava. A multidão correu para a beira do passeio, agitando bandeirinhas. As duas filas de policiais da rua se uniram mais, como se temessem uma irrupção do povo.

- Ali! - exclamou Tennyson, agarrando o braço do agente. - Lá em cima!

- O quê? Onde?

- Naquela janela! Há poucos segundos, estava fechada!

Não podiam ver bem o homem da capa marrom, mas era evidente que havia um vulto nas sombras do quarto.

O agente levantou o seu rádio.

- Possibilidade de um suspeito. Setor 1. Strand Palace Hotel, segundo andar, terceira janela do bloco sul.

Depois de alguma estática, veio a resposta:

- Fica no 306. Busca de segurança imediata.

O homem que estava à janela desapareceu.

- Não está mais lá - disse prontamente o agente.

Cinco segundos depois, outra voz fez-se ouvir pelo rádio.

- Não há ninguém aqui. O quarto está vazio.

- Desculpe - disse o homem louro.

- É melhor prevenir do que remediar - replicou o agente.

Tennyson se afastou para o sul no meio da multidão. Verificou de novo o relógio. Faltavam vinte segundos. Aproximou-se de outro homem com um rádio na mão e mostrou o seu, para estabelecer o relacionamento.

- Sou do seu grupo - disse ele, quase aos gritos para ser ouvido. - Tudo bem?

O agente voltou-se para ele e viu o rádio.

- Ah, sim, estava presente hoje de manhã quando recebemos instruções. Vai tudo bem, sim.

- Aquela porta! - exclamou Tennyson, pondo a mão no ombro do agente. - Do outro lado da rua. Naquela porta aberta. Pode-se ver a escada por cima das cabeças. Naquela porta!

- Naquela porta! O homem que está correndo na escada?

- Sim! É o mesmo homem!

- Quem? Que é que está dizendo?

- O homem que estava ainda há pouco no quarto do hotel. É o mesmo homem! Sei o que estou dizendo. Estava levando uma pasta!

O agente falou pelo rádio.

- Busca de segurança necessária. Setor 4. Lado oeste. Na porta ao lado de uma joalheria. Um homem com uma pasta. Subiu a escada.

- A caminho - foi a resposta.

Do outro lado do Strand, Tennyson viu dois homens que corriam, entravam pela porta e subiam a escada. Olhou à esquerda e viu o homem da capa marrom sair da joalheria e perder-se na multidão. Havia uma porta normalmente fechada, como estava no momento, que ligava os dois prédios.

Ouviu-se uma voz pelo rádio.

- Ninguém com uma pasta do segundo ao quinto andares. Vamos procurar no terraço.

- Não é preciso - disse outra voz. - Estamos aqui e não há sinal de ninguém.

Tennyson deu de ombros pedindo desculpas e se afastou. Tinha mais três alarmas para dar enquanto o cortejo prosseguisse solenemente pelo Strand. O último alarma faria o veículo da frente parar, antes que houvesse autorização para a continuação da marcha rumo à Trafalgar Square. Esse alarma final seria dado por ele. Precederia o caos.

Os dois primeiros ocorreram rapidamente, com três minutos de intervalo um do outro. O homem da capa marrom estava cumprindo o rígido horário, com exatidão e sutil execução. Em nenhum momento, enquanto se dirigia rapidamente para a Trafalgar Square, teve os seus passos embargados por algum homem do serviço secreto. Trazia pendentes sobre o peito duas máquinas fotográficas e um fotômetro, como se fosse um turista à procura do melhor ponto de onde pudesse fixar aquele momento histórico.

Alarma um. Um braço com um rádio foi agarrado.

- Lá em cima! Naquele andaime!

- Onde?

Toda a parede lateral de um prédio defronte da Estação de Charing Cross estava sendo reconstruída. Muitas pessoas tinham subido no andaime e gritavam e aplaudiam, pois o cortejo estava aparecendo na rua.

- À direita. Está escondido atrás daquela parte de madeira compensada.

- Quem?

- O homem do hotel e, depois, da escada, que estava com uma pasta na mão.

- Busca de segurança. Setor 7. Um homem num andaime de construção com uma pasta.

Estática. Uma erupção de vozes.

- Estamos todos nos andaimes, companheiro!

- Ninguém aqui com uma pasta na mão!

- Dezenas de máquinas fotográficas. Mas não há pastas ou maletas de qualquer espécie.

- Na parte de madeira compensada, mais em cima.

- Era um homem mudando o filme da máquina. Já está descendo. Nada de mais.

- Desculpe.

- Sabe que nos deu um susto?

- Perdão.

Alarma dois. Tennyson mostrou a um policial o seu cartão temporário da Seção Cinco e correu pelos cruzamentos para a Trafalgar Square.

- Os leões! Meu Deus! Os leões!

O agente, um daqueles com quem Tennyson tinha falado durante as instruções daquela manhã, olhou para a base do monumento de Nelson. Dezenas de curiosos estavam encarapitados nos leões que cercavam o símbolo da vitória do almirante inglês em Trafalgar.

- Lá está ele de novo! O homem do andaime!

- Ouvi esse comunicado ainda há pouco - disse o agente. - Onde está ele?

- Foi para trás do leão da direita. Não é uma pasta que ele está levando, mas uma bolsa de couro grande demais para uma máquina fotográfica. Não está vendo?

O agente não hesitou. Falou pelo rádio:

- Busca de segurança. Setor 9. Lado norte. Um homem com uma grande bolsa de couro.

A estática deu estalos e as vozes quase se misturaram.

- Um homem com duas máquinas, a maior aos seus pés...

- Um homem conferindo o fotômetro... Não há perigo, não deve ser o suspeito...

- Um homem está descendo, focalizando a máquina. Não é o suspeito.

O agente da Seção Cinco olhou para Tennyson. Em seguida, desviou o olhar, esquadrinhando a multidão.

Era chegado o momento, o início do falso alarma, que seria o começo do fim para o Nachrichtendienst.

- Você está errado! - gritou Tennyson, exasperado. - Todos vocês estão errados!

- O quê?

O homem louro correu o mais que pôde por entre a multidão em direção à borda do passeio, com o rádio colado ao ouvido. Podia ouvir as vozes nervosas que comentavam a sua explosão.

- Ficou alucinado.

- Diz que estamos errados.

- Errados em quê?

- Não faço a menor ideia.

- Saiu correndo!

- Para onde?

- Não sei. Não o estou mais vendo.

Tennyson alcançou o gradil de ferro que cercava o monumento. Avistava o seu colega, o aprendiz do Tinamou, que atravessava a rua em direção ao arco. O homem da capa tinha uma carteira de plástico na mão. Havia nela um cartão de identificação que era uma cópia perfeita do que Tennyson tinha no bolso, exceto pela fotografia, que era outra.

Agora! Tennyson apertou o botão e gritou pelo rádio:

- É ele! Tenho certeza!

- Quem é?

- Responda!

- É do setor 10.

- Agora compreendo e sei o que é que me parecia errado!

- É você, Tennyson?

Era a voz de Payton-Jones.

- Sou eu, sim.

- Onde está você?

- É isso mesmo! Só agora vejo!

- Vê o quê? É você, Tennyson? Que é que há? Responda!

- Está tudo claro agora! Já sei onde foi que nós erramos! Não vai acontecer onde nem quando nós pensávamos!

- Que é que está dizendo? Onde está você?

- Estávamos errados, não compreende? As armas, os sete esconderijos... Foram deixados de propósito para que nós os encontrássemos! Era isso que não estava dando certo!

- O quê? Aperte o botão vermelho, Tennyson. Desembaracem todos os canais... Que é que não estava dando certo?

- Os esconderijos. Não eram bons e nós os descobrimos com a maior facilidade.

- Pelo amor de Deus, que é que você está tentando dizer?

- Não tenho ainda certeza - respondeu Tennyson, encaminhando-se para uma abertura no portão. - Só sei que as armas ficaram em posição de nós as encontrarmos. Está na progressão!

- Que progressão? Aperte o botão vermelho! Onde está você?

- Entre o setor 10 e o setor 9 - disse outra voz. - Lado oeste. Na Trafalgar.

- A progressão de uma arma para outra - gritou Tennyson. - Ela vai de leste para oeste. À medida que cada posição é ultrapassada, nós a eliminamos. Não devíamos fazer isso! Os homens estão em limusines abertas.

- Que quer dizer com isso?

- Mande o cortejo parar! Em nome do que é mais sagrado, faça-o parar!

- Parar o cortejo... A ordem foi dada. Agora, onde está você?

Tennyson agachou-se. Dois homens da Seção Cinco passaram a alguns metros dele.

- Creio que já o avistei! O homem do andaime, da porta, da janela do hotel! É ele, sim! Está voltando agora! Está correndo!

- Descreva-o! Pelo amor de Deus, descreva o homem!

- Está usando um blusão. Um blusão castanho xadrez.

- Alerta a todos os agentes. Capturem um homem com um blusão castanho xadrez. Correndo para o norte, passando pelos setores 9, 8 e 7, lado oeste.

- Não pode deixar de haver outra arma, uma arma que nós não descobrimos. Ele vai atirar de trás. A distância não quer dizer nada para ele. Pode atingir a nuca de um homem a mil metros de distância! Faça o cortejo prosseguir! Depressa!

- Veículo número um, continue. Agentes, subam aos porta-malas de todos os carros. Protejam os alvos de fogo da retaguarda!

- Está parado!

- Onde está você, Tennyson? Dê-nos a sua localização.

- Está ainda entre os setores 9 e 10 - disse uma voz pelo rádio.

- Não está mais usando o blusão. Mas é o mesmo homem! Está atravessando o Strand!

- Onde?

- Não há ninguém atravessando no setor 8.

- Setor 9?

- Ninguém, chefe.

- Mais para trás! Atrás do cortejo!

- Fala o setor 5: A polícia desfez os cordões de isolamento.

- Mande restabelecê-los. Limpem as ruas. Que é que ele está usando agora, Tennyson? Descreva-o!

O homem louro ficou em silêncio. Caminhou pela praça cerca de vinte metros e então falou de novo pelo rádio.

- Está com uma capa marrom. Dirige-se agora de novo para a Trafalgar Square.

- Setor 8, chefe. Transmissão ao setor 8.

Tennyson desligou o rádio, guardou-o no bolso e voltou para o gradil de ferro. O cortejo tinha chegado a Charing Cross, a talvez quatrocentos metros de distância. A sincronização era perfeita. A sincronização do Tinamou era sempre perfeita.

O homem da capa marrom tomou posição numa sala deserta do Edifício do Governo além do Parque do Almirantado, que requisitara fazendo uso do falso cartão de identidade da Seção Cinco. Num dia como aquele, ninguém ia pôr em dúvida um cartão da Seção Cinco. A linha de fogo daquela sala para o cortejo era difícil, mas isso não constituía problema para alguém treinado pelo Tinamou.

Tennyson pulou o gradil e correu em diagonal através da Trafalgar Square para o Arco do Almirantado. Dois policiais tentaram detê-lo, erguendo os cassetetes.

- Emergência! - exclamou o homem louro, mostrando o seu cartão de identidade. - Liguem os rádios, frequência da Seção Cinco, Operação Savoy. Tenho de ir ao Edifício do Governo!

Os policiais ficaram confusos.

- Infelizmente, não temos rádios.

- Então tratem de arranjá-los! - gritou Tennyson e passou correndo.

No Arco, ligou o rádio.

- Vai ser no Mall. Logo que o cortejo passar o Arco, faça todos os veículos pararem. Ele está nas árvores.

- Onde está você, Tennyson?

- Setor 12, chefe. Está no setor 12, lado leste.

- Transmita as instruções dele. Depressa!

Tennyson desligou o rádio e guardou-o no bolso. Continuou através da multidão. Entrou no Mall e virou para a esquerda, correndo em direção à primeira porta do Edifício do Governo. Dois guardas o interceptaram e ele mostrou o cartão da Seção Cinco.

- Muito bem - disse um dos guardas. - A sua gente está no segundo andar, não sei bem em que sala.

- Eu sei - disse Tennyson, correndo para a escada.

A algazarra crescia na Trafalgar Square. O cortejo se aproximava do Arco do Almirantado.

Subiu a escada de três em três degraus, escancarando a porta do corredor do segundo andar e parando um instante para transferir a pistola do bolso para o cinto. Encaminhou-se rapidamente para a segunda porta à esquerda. Não adiantava tentar abri-la; devia estar trancada. Mas, se a arrombasse sem avisar, estaria sujeito a levar uma bala na cabeça.

- Es ist Von Tiebolt! Bleib beim Fenster![33] - gritou ele.

- Herein[34] - foi a resposta.

Tennyson meteu o ombro contra a frágil porta. Arrombou-a no mesmo instante e viu o homem da capa agachado em frente à janela com uma carabina de cano longo nas mãos. Tinha as mãos metidas em finas luvas cor de carne.

- Johann?

- Descobriram tudo! Todas as armas, todos os esconderijos!

- Não é possível! - disse o homem da capa. - Um ou dois talvez, mas todos...

- Todos - disse Tennyson, ajoelhando-se por trás do homem à janela.

O carro de vanguarda da segurança tinha passado pelo Arco do Almirantado. Veriam a primeira limusine daí a segundos. As aclamações da multidão que se enfileirava dos dois lados do Mall cresceram num coro colossal.

- Dê-me a carabina - disse Tennyson. - A mira está calibrada?

- Naturalmente - disse o homem, entregando a arma.

Tennyson passou a mão esquerda por baixo da correia e então levantou a carabina, com a mira telescópica junto ao olho. A primeira limusine entrou no círculo verde-claro e o primeiro-ministro da Grã-Bretanha ficou sob os fios cruzados da mira. Tennyson moveu levemente o fuzil e o rosto sorridente do presidente dos Estados Unidos se colocou sob a mira. O ponto de interseção dos fios passava bem pelo centro da sua têmpora esquerda. Tennyson mudou a arma de posição. Era importante saber que com dois leves apertos do gatilho podia eliminar ambos.

Outra limusine chegou lentamente ao círculo verde. O presidente da República Popular da China estava sob a mira da arma. Os fios se cruzavam logo abaixo da pala do seu boné de camponês. Uma leve pressão no gatilho lhe esfacelaria a cabeça.

- Que é que você está esperando? - perguntou o aprendiz de Tinamou.

- Estou me decidindo - respondeu Tennyson. - O tempo é relativo. Os segundos se tornam horas.

A quarta limusine, com o primeiro-ministro da União Soviética, entrou no mortífero círculo verde.

O exercício estava terminado. Tennyson fizera mentalmente aquilo. A transição entre o desejo e a realidade era insignificante. Teria sido muito simples puxar o gatilho.

Mas esse não era o meio de destruir o Nachrichtendienst. Os assassinatos começariam dentro de algumas semanas e se prolongariam por muitas semanas. Isso fazia parte integrante do pacto da Wolfsschanze. Muitos líderes morreriam, mas não naquela tarde.

O cortejo parou. Payton-Jones havia transmitido as instruções de Tennyson. Nenhuma limusine entrou no Mall. Dezenas de agentes começaram a espalhar-se pelo gramado, empunhando discretamente as armas e com os olhos voltados para as árvores.

Tennyson manteve a carabina em posição na mão esquerda, com a correia passada rigidamente do cano ao ombro. Tirou o dedo do gatilho e baixou a mão direita para a cintura, tirando o revólver do cinto.

- Agora, Johann! Os carros pararam. Se não atirar agora, não vai mais acertar!

- Sim, vai ser agora - disse Tennyson em voz baixa. - E saiba que vou acertar.

Disparou a pistola e o tiro ressoou através da sala deserta. O homem cambaleou desvairadamente com o sangue a jorrar-lhe da testa e caiu com os olhos arregalados.

Era de duvidar que o tiro tivesse sido ouvido de qualquer distância diante da algazarra que havia do lado de fora. Mas isso não tinha a menor importância. Dentro de segundos, haveria tiros que seriam ouvidos. Tennyson levantou-se, baixou a carabina e tirou do bolso um pedaço de papel dobrado. Ajoelhou-se ao lado do morto e empurrou-lhe o papel pela boca ensanguentada e inerte, levando-o tanto quanto pôde para dentro da garganta.

Prendendo em seguida a arma nos braços do outro, arrastou o corpo até a janela. Puxando um lenço do bolso, limpou cuidadosamente a carabina e forçou os dedos do morto a se fecharem sobre o gatilho. Rasgou a luva da mão direita de modo a deixar bem visível a tatuagem.

Agora.

Tirou o rádio e debruçou-se na janela.

- Creio que o avistei! Está no mesmo ponto que em Madri! É isso! Madri!

- Madri? Onde, Tennyson...

- Setor 13, chefe. Lado oeste.

- 13! Especifique, Madrid?

Tennyson afastou-se da janela. Faltavam apenas alguns segundos para que a ligação com Payton-Jones fosse feita.

Escutou as vozes agitadas pelo rádio.

- Setor 13. Lado leste. Depois do Arco, para a esquerda, na direção sul.

- Todos os agentes! Concentrem-se no setor 13.

- Todo o pessoal convergindo, chefe. Setor...

- Madri! O Edifício do Governo! É o Edifício do Governo!

Agora.

O homem louro fez força sobre o dedo do morto quatro vezes, disparando indiscriminadamente contra a multidão ao lado do cortejo. Ouviu gritos de dor e a queda de corpos.

- Saiam. Todos os veículos em marcha. Alerta um. Vamos!

Os motores das limusines entraram em ação e o cortejo prosseguiu. O rumor das sirenas encheu o Parque Saint James.

Tennyson deixou o morto cair de novo no chão e correu para a porta de pistola em punho. Puxou o gatilho repetidamente até não haver mais balas no pente. O cadáver estremecia a cada bala que recebia.

As vozes no rádio não se podiam mais distinguir. Tennyson ouviu o tropel de passos no corredor.

Johann von Tiebolt foi até a parede e deixou-se cair com o rosto abatido pela exaustão. Era o fim do seu número. O Tinamou fora capturado.

Pelo Tinamou.


33

A reunião final se realizou vinte e sete horas e meia depois da morte do desconhecido que se presumia fosse o Tinamou.

Depois do primeiro relato dos sensacionais acontecimentos, inicialmente divulgados pelo Guardian e depois confirmados pelo primeiro-ministro na Downing Street, a notícia havia eletrizado o mundo. E o serviço secreto inglês, que se negava a fazer qualquer comentário sobre a operação, salvo para externar a sua gratidão a fontes de informação que não queria revelar, recuperava todo o prestígio que havia perdido através de muitos anos de defecções e de inépcia.

Payton-Jones tirou dois envelopes do bolso e entregou-os a Tennyson.

- Sentimos que a compensação seria insuficiente. O governo britânico tem para com você uma dívida que nunca poderá ser paga.

- Nunca solicitei pagamento - disse Tennyson, aceitando os envelopes. - Para mim, basta que o Tinamou tenha desaparecido. Presumo que um destes envelopes contenha a carta da Seção Cinco e o outro os nomes tirados da ficha do Nachrichtendienst, certo?

- Exatamente.

- E meu nome foi retirado de toda a operação?

- Nem chegou a constar dela. Nos relatórios, você é indicado como "Fonte Número Um". A carta, uma cópia da qual ficará nos arquivos, declara que a sua ficha no serviço é imaculada.

- E aqueles que ouviram meu nome pelo rádio?

- Podem ser denunciados de acordo com a Lei de Atos Secretos Oficiais. E não tem muita importância o fato. O máximo que podem ter ouvido terá sido o nome "Tennyson" e isso não quer dizer nada. Há no serviço secreto mais de uma dezena de Tennysons que podem ser apontados em caso de necessidade.

- Quer dizer então que os nossos negócios estão encerrados?

- É o que penso - disse Payton-Jones. - Que vai fazer agora?

- Trabalhar, é claro. Como sabe, sou jornalista. Posso, entretanto, pedir uma breve licença. Tenho de ver em que pé ficaram os negócios de minha irmã mais velha. Depois, talvez dê um pulo até a Suíça. Gosto de esquiar.

- A temporada já começou.

- De fato. Calculo que agora não seja mais preciso seguir-me.

- Sem dúvida, a não ser que o solicite.

- Que eu o solicite?

- Para proteção.

Payton-Jones entregou um papel a Tennyson.

- O Tinamou foi um profissional até o fim. Tentou fazer desaparecer isto, engolindo-o. E você estava certo. Era mesmo o Nachrichtendienst.

Tennyson olhou a fotocópia que Payton-Jones lhe apresentava. Lia-se nela, em letras borradas mas legíveis, o seguinte:

"NACHRICHT, 1 360,78 KG AU 23.° 22.°".

- Que quer dizer isso? - perguntou Tennyson.

- É muito simples - disse o agente. - "Nachricht" é claramente uma abreviatura de Nachrichtendienst. "1 360,78 kg" quer dizer 1 360,78 quilos. "Au" é o símbolo químico do ouro. Os números "23.° e 22.°" devem ser as coordenadas geográficas de Johannesburg. O Tinamou estava sendo pago em ouro de Johannesburg pelo trabalho que tinha de fazer. Era uma soma na vizinhança de três milhões e seiscentas mil libras esterlinas, ou mais de sete milhões de dólares.

- É alarmante pensar que o Nachrichtendienst disponha de tanto dinheiro.

- Mais alarmante ainda quando se pensa em como esse dinheiro estava sendo usado.

- Não vai liberar a informação ou divulgar a nota?

- Preferimos não fazer nada disso. Entretanto, sabemos que não temos o direito de impedi-lo de revelar tudo. Na reportagem que escreveu no Guardian, você aludiu a um grupo desconhecido que poderia ter sido responsável pela tentativa de assassinato.

- Especulei sobre essas possibilidades, com base nas características do Tinamou. Tratava-se de um assassino assalariado, não de um vingador ou de um fanático. Apurou alguma coisa sobre o homem?

- Quase nada. A única identificação que encontramos nele foi infelizmente uma falsificação muito bem-feita de um cartão da Seção Cinco. As impressões digitais dele não constam de qualquer arquivo, de Washington a Moscou. O terno que usava era de segunda mão. A roupa de baixo não tinha marcas de lavanderia e até a capa, que conseguimos identificar como vendida por uma loja da Old Bond Street, foi comprada à vista.

- Mas ele viajava muito. Deve ter tido papéis.

- Não sabemos onde procurá-los. Não sabemos nem a nacionalidade do homem. Os laboratórios têm trabalhado sem cessar à procura de alguma pista, trabalhos dentários, marcas de cirurgia, características físicas, qualquer coisa com que se pudesse alimentar um computador. Mas acontece que ainda não se encontrou nada.

- Então talvez não fosse ele o Tinamou. As únicas provas são a tatuagem da mão e o calibre das armas. Será suficiente?

- É, sim. Pode dizer no seu jornal amanhã. Os testes balísticos são irrefutáveis. Dois dos fuzis escondidos que descobrimos, bem como o que foi encontrado com ele, correspondem a três armas usadas em assassinatos anteriores.

- Bem, isso nos tranquiliza um pouco, não acha?

- Sem dúvida - disse Payton-Jones, e em seguida apontou a fotocópia. - Que é que pretende fazer?

- Sobre essa nota?

- Sobre o Nachrichtendienst. Foi você que nos chamou a atenção para ele e agora obtém a confirmação. É uma história extraordinária. Você a desencavou e tem todo o direito de publicá-la.

- Mas prefere que não a publique, não é?

- Como já disse, não podemos impedi-lo.

- Por outro lado - disse Tennyson -, nada os impede de incluir meu nome em seus relatórios e isso é uma coisa que não quero.

O agente da Seção Cinco franziu a testa.

- Acontece que eu lhe dei minha palavra a esse respeito e creio que isso tem alguma validade, Tennyson.

- Decerto, mas talvez o compromisso tenha de ser reavaliado em virtude de circunstâncias novas, quando não por você, por outra pessoa.

- Não é provável. Você só fala comigo e nosso entendimento foi esse.

- Então a "Fonte Número Um" é anônima e sem qualquer espécie de identidade?

- Justamente. E isso não é excepcional nos níveis em que eu trabalho. Tenho passado a vida no serviço e minha palavra, quando é dada, não é discutida.

- Compreendo - disse Tennyson, levantando-se. - Posso saber por que não quer que o Nachrichtendienst seja identificado?

- Preciso de tempo. Um mês ou dois. Quero aproximar-me sem causar alarma.

- Acha que vai conseguir isso? Os nomes que estão nesse envelope ajudá-lo-ão em alguma coisa?

- Não sei. Estou apenas começando. Só há oito nomes relacionados e não temos certeza nem de que estejam vivos. Ainda não houve tempo de verificar.

- Alguém deve estar vivo. Eram todos ricos e poderosos.

- Evidentemente.

- Quer dizer que a necessidade de capturar o Tinamou foi substituída pela obsessão com o Nachrichtendienst.

- Uma transferência lógica, não lhe parece? - disse Payton-Jones. - Além disso, há uma razão profissional, mas também pessoal. Estou convencido de que o Nachrichtendienst matou um moço a quem eu mesmo treinei no serviço.

- Quem era ele?

- Meu assistente. Um dos homens mais dedicados que eu já conheci neste serviço. O corpo dele foi encontrado numa aldeia chamada Montereau, cerca de cem quilômetros ao sul de Paris. Foi até a França para seguir Holcroft, mas descobriu que Holcroft era um beco sem saída.

- Que acha que aconteceu?

- Não acho, eu sei. Não se esqueça de que ele estava no encalço do Tinamou. Quando apurou que Holcroft era apenas o que dizia ser, um homem que procurava você para fazer-lhe entrega de uma pequena herança...

- Muito pequena - disse Tennyson.

- Então o meu assistente começou a agir precavidamente. Era um bom profissional e fez alguns progressos. Mais do que isso, conseguiu uma correlação entre os fatos. O Tinamou, o Nachrichtendienst e Paris, tudo se articula.

- Como assim?

- Há um homem nessa lista. Trata-se de um homem que mora perto de Paris, ainda não sabemos exatamente onde. Chama-se Klaus Falkenheim, era general e fazia parte do Alto Comando alemão. Cremos que foi um dos organizadores do Nachrichtendienst. É chamado de "Coronel".

John Tennyson se empertigou todo.

- Dou-lhe a minha palavra. Não vou publicar coisa alguma.

Holcroft estava sentado no sofá com um jornal na mão. A manchete ia de ponta a ponta da página e dizia:

"ASSASSINO SURPREENDIDO E MORTO EM LONDRES".

Quase toda a página era tomada pelo noticiário sobre a captura e subsequente morte do Tinamou. Havia comentários que abrangiam cerca de quinze anos da história e relacionavam o Tinamou com os assassinatos de Kennedy e Martin Luther King, bem como de Lee Oswald e Ruby. Havia referências também a crimes mais recentes em Madri, Beirute, Lisboa, Praga e até Moscou.

O desconhecido com uma rosa tatuada na mão tornou-se uma celebridade. As tendas de tatuagem em quase todas as grandes cidades tiveram um afluxo de fregueses.

- Como é possível? Ele conseguiu o que queria! - exclamou Noel.

- E o nome dele não é mencionado em lugar algum - disse Helden. - Estranho muito Johann não querer receber homenagens por uma coisa tão extraordinária quanto esta.

- Você diz que ele está mudado, que Genebra o afetou de alguma maneira. Eu também acredito nisso. O homem com quem falei não estava preocupado consigo mesmo. Disse-lhe que o banco em Genebra não queria complicações. Os diretores tomariam em consideração qualquer fato que desqualificasse algum de nós e colocasse o dinheiro em perigo. Um homem em circunstâncias críticas como aquelas em que seu irmão não pode ter deixado de incorrer, para seguir a pista do Tinamou, amedrontaria os banqueiros.

- Mas você e meu irmão julgam que há um grupo, ainda mais poderoso do que o Rache, o ODESSA ou a Wolfsschanze, empenhado em fazê-los parar. Como acha que os homens de Genebra vão aceitar isso?

- Saberão disso na ocasião oportuna. E pode ser que até lá seu irmão e eu já tenhamos apurado tudo.

- Tem essa esperança?

- É bem possível. Johann pensa assim e ele tem mais experiência do que eu nesses assuntos. Tem sido um processo desvairado de eliminação. Primeiro, estávamos convencidos de que era um grupo. Passamos depois a outro. E não era nenhum deles.

- Refere-se ao ODESSA e ao Rache?

- Exatamente. Ambos estão eliminados. Agora, estamos à procura de outra coisa. E só precisamos de um nome, de uma identidade.

- Que é que farão quando o descobrirem?

- Não sei. Estou esperando que seu irmão me diga. Sei apenas que temos de agir rapidamente. Daqui a poucos dias, terei Miles no meu encalço. Vai relacionar-me publicamente com homicídios que vão do Aeroporto Kennedy ao Plaza Hotel. Vai pedir a minha extradição e consegui-la. Se isso acontecer, Genebra estará liquidada e eu também, em todos os sentidos.

- Talvez não o encontrem - disse Helden. - Temos meios de conseguir isso...

- Não! - exclamou Noel. - Não quero viver com três mudas de roupas, sapatos com solas de borracha e pistolas com silenciadores. Quero que você faça parte de minha vida, mas não quero fazer parte da sua.

- Talvez você não tenha outro jeito...

O telefone tocou, assustando a ambos. Holcroft atendeu.

- Boa tarde, Mr. Fresca.

Era Tennyson.

- Pode falar desse telefone? - perguntou Noel.

- Posso. Este telefone não está sob vigilância e eu não creio que a telefonista do George V esteja interessada em escutar um telefonema comum de Londres.

- Compreendo. Parabéns. Fez o que disse que ia fazer.

- Fui muito ajudado.

- Trabalhou com os ingleses?

- Sim. Você estava certo. Já devia ter feito isso há muito tempo. Eles foram esplêndidos.

- Fico muito satisfeito em saber disso. É muito bom estar certo de que temos amigos.

- E não é só. Temos a identidade dos inimigos de Genebra.

- O quê?

- Temos os nomes. Podemos agir contra eles agora. Temos de agir para que as mortes parem.

- Como?

- Explicarei tudo quando nos virmos. Seu amigo Kessler chegou bem perto da verdade.

- Uma facção dissidente do ODESSA?

- Tenha cuidado. Vamos dizer que se trata de um grupo de velhos com muito dinheiro e um espírito de vindita que data do fim da guerra.

- Que vamos fazer?

- Talvez muito pouco. Os ingleses poderão agir por nós.

- Eles sabem de Genebra?

- Não. Querem apenas pagar uma dívida.

- É mais do que poderíamos desejar!

- Mas não é mais do que merecemos, se posso dizer assim.

- Claro que pode. Mas esses velhos... Crê que foram responsáveis por tudo, inclusive o que aconteceu em Nova York?

- Creio.

- Estou livre de tudo então.

- Vai ficar dentro em pouco.

- Graças a Deus! - exclamou Noel e olhou para Helden, que estava no outro lado do quarto, com um sorriso. - Que devo fazer então?

- Hoje é quarta-feira. Esteja em Genebra na sexta-feira à noite. Tomarei o último avião em Heathrow e chegarei lá às onze e meia ou meia-noite. Telefone para Kessler em Berlim e diga a ele que vá juntar-se a nós em Genebra.

- Por que não podemos fazer isso hoje ou amanhã?

- Tenho ainda algumas coisas a fazer que nos podem ser úteis. Vamos marcar tudo para sexta-feira. Você tem algum hotel?

- Tenho. O D’Accord. Minha mãe vai também para Genebra e mandou-me dizer que vai hospedar-se lá.

Houve silêncio do outro lado da linha. Por fim, Tennyson perguntou, quase num sussurro:

- Que foi que você disse?

- Minha mãe vai para Genebra.

- Bem, falaremos depois - disse o irmão de Helden, com um fio de voz. - Tenho de desligar.

Tennyson repôs o fone no gancho, na mesinha do seu apartamento em Kensington. Como sempre, detestava o instrumento, quando era portador de notícias inesperadas. A notícia neste caso podia ser tão perigosa quanto a emergência do Nachrichtendienst.

Que loucura tinha feito Althene Clausen tomar a decisão de ir para Genebra? Isso nunca fizera parte do plano, como ela entendia o plano. Julgaria a velha que poderia viajar para a Suíça, especialmente naquela oportunidade? Ou talvez a idade a tivesse tornado descuidada? De qualquer maneira, não iria viver o tempo suficiente para lamentar a sua indiscrição. Talvez também as suas lealdades estivessem divididas, tal como Althene passara a compreender essas lealdades. Neste caso, era preciso relembrar-lhe as prioridades antes que ela se despedisse de uma vida em que muito havia maltratado tantas pessoas.

Tinha de ser assim. Ele tinha as suas prioridades, entre as quais estava ela. O pacto da Wolfsschanze ia ser cumprido. Tudo se encaminhava para lá.

Primeiro, as listas. Havia duas e eram a chave para a Wolfsschanze. Uma delas se estendia por onze páginas e continha quase mil e seiscentos nomes de homens e mulheres poderosos em todos os países do mundo. Eram a elite dos Sonnenkinder, os líderes à espera do sinal de Genebra para receberem os milhões que comprariam influência, eleições e atitudes políticas. Era a lista primária, e com ela se desenharia o esboço do Quarto Reich.

Esse esboço precisava de substância, de profundidade. Essas coisas viriam com a segunda lista, esta sob a forma de uma centena de rolos de filme. Era a lista básica, registros em microfilme de sua gente em todos os recantos do globo. Milhares e milhares de pessoas, geradas e recrutadas pelas crianças que tinham sido tiradas do Reich por navios, aviões e submarinos.

Operação Sonnenkinder.

As listas, os nomes. Uma cópia apenas, que não podia jamais ser reproduzida e devia ser guardada como coisa sagrada. Durante anos, tinham sido guardadas e atualizadas por Maurice Graff, tendo sido entregues a Johann von Tiebolt, quando este completara vinte e cinco anos. A cerimônia significara a transferência de poder. O novo chefe supremo escolhido havia ultrapassado todas as expectativas.

John Tennyson havia levado as listas para a Inglaterra, sabendo que era necessário encontrar um esconderijo mais seguro que qualquer cofre de banco de Londres. Encontrara esse lugar secreto numa obscura aldeia mineira do País de Gales com um Sonnenkind, que protegeria com a própria vida os preciosos documentos.

Era ele Ian Llewellen, irmão de Morgan, imediato do Argos de Beaumont.

Estava quase em tempo de o galês chegar. Depois que ele fizesse a entrega, o leal Sonnenkind faria o sacrifício a que se comprometera alguns dias antes quando percorriam a estrada de Heathrow. A morte dele era inevitável. Ninguém poderia saber da existência daquelas listas, daqueles nomes. Consumado esse sacrifício, só dois homens na terra teriam a chave da Wolfsschanze. Um deles era um tranquilo professor de história em Berlim, e o outro, um homem reverenciado pelo serviço secreto inglês e, portanto, ao abrigo de qualquer suspeita.

O Nachrichtendienst era a prioridade seguinte.

Tennyson olhou para a folha de papel ao lado do telefone, no lugar onde estava havia várias horas. Era outra lista, a anos-luz de distância da dos Sonnenkinder, e lhe fora dada por Payton-Jones. Era o Nachrichtendienst.

Oito nomes, oito homens. E o que os ingleses não tinham sabido em dois dias, ele apurara em menos de duas horas. Cinco desses homens tinham morrido. Restavam três, um deles às portas da morte num sanatório perto de Stuttgart. Havia então dois. Um era o traidor Klaus Falkenheim, conhecido como "Coronel", e o outro, um ex-diplomata de oitenta e três anos, que vivia calmamente numa aldeia suíça às margens do lago de Neuchâtel.

Mas velhos assim não viajavam em aviões transatlânticos e não punham estricnina em copos de uísque. Não atiravam num homem em uma aldeia francesa, nem assaltavam esse mesmo homem numa viela de Berlim.

O Nachrichtendienst havia doutrinado homens muito mais moços e capazes. E os doutrinara ao ponto da mais fanática dedicação.

Nachrichtendienst! Falkenheim, Gerhardt. Desde quando sabiam eles da Wolfsschanze?

Saberia de tudo amanhã. Tomaria o avião para Paris e faria uma visita a Falkenheim, o odiado Coronel. Refinado ator, refinado montão de lixo. Traidor do Reich.

Amanhã, faria uma visita a Falkenheim e lhe arrancaria todos os seus segredos, depois do quê, matá-lo-ia.

Um carro buzinou na rua. Tennyson olhou para o seu relógio, encaminhando-se para a janela. Oito horas em ponto. Lá embaixo, estava o automóvel do galês e nele, trancadas numa caixa de aço, as listas.

Tennyson apanhou uma pistola numa gaveta e guardou-a na capa que levava ao ombro.

Desejou que o que tinha de ocorrer naquela noite já estivesse acabado e que ele já tivesse tomado o avião de Paris. Estava ansioso por enfrentar Klaus Falkenheim.

Holcroft estava sentado em silêncio no sofá. O quarto achava-se em penumbra e a claridade de uma lua invisível enchia as janelas.

Eram quatro horas da manhã e ele fumava um cigarro. Tinha acordado quinze minutos antes e não conseguira voltar a dormir, pensando na mulher ao seu lado.

Helden era a mulher com quem queria passar o resto da vida. Entretanto, ela ainda não queria dizer-lhe onde morava, nem com quem. Já passara da fase das brincadeiras e não estava mais interessado em jogos.

- Noel? - disse Helden do outro lado do quarto.

- Hein?

- Que é que há, querido?

- Nada. Estou pensando.

- Estou pensando também.

- Pensei que estivesse dormindo.

- Acordei na hora em que você se levantou. Em que é que está pensando?

- Em muitas coisas. Principalmente em Genebra. Mas tudo isso em breve estará acabado. Você poderá deixar de fugir e eu também.

- Era nisso que eu estava pensando, Noel. E quero lhe dizer meu segredo.

- Segredo?

- Não é grande coisa, mas quero ver sua cara quando eu lhe contar. Venha cá.

Ele se aproximou da cama e perguntou:

- Qual é o segredo?

- Vou lhe dizer quem é seu competidor, o homem com quem eu moro. Está disposto a ouvir?

- Estou, sim.

- É o Coronel. Eu o amo.

- O velho? - exclamou Noel.

- Ele mesmo. Está com ciúmes?

- Nem se discute. Vou desafiá-lo para um duelo - disse Noel, tomando-a nos braços.

Helden riu e beijou-o.

- Tenho de ir vê-lo hoje.

- Irei com você. Já tenho a aprovação de seu irmão. Vou ver se consigo a dele também.

- Não, tenho de ir sozinha. Não levarei mais de uma hora.

- Duas horas será o seu limite máximo.

- Duas horas. Chegarei diante da cadeira de rodas dele e direi: "Coronel, vou deixá-lo por outro homem". Acha que ele vai sentir muito?

- Será um golpe de morte para ele - disse Noel, fazendo-a deitar-se de novo.


34

Tennyson entrou no estacionamento do Aeroporto de Orly e viu o Renault cinza. O homem que dirigia o carro era um alto funcionário da Sûreté. Nascera em Düsseldorf, mas fora criado como um francês, tendo sido transferido da Alemanha de avião, num remoto aeroporto ao norte de Essen. Tinha seis anos de idade nessa época - 10 de março de 1945 - e quase não guardava lembranças da Alemanha. Mas tinha um compromisso. Era um Sonnenkind.

Tennyson chegou à porta do carro, abriu-a e entrou.

- Bonjour, monsieur - disse ele.

- Bonjour - disse o francês. - Parece cansado.

- Quase não dormi esta noite. Trouxe tudo o que lhe pedi? Tenho muito pouco tempo.

- Tudo - disse o funcionário da Sûreté, apanhando uma pasta numa prateleira sob o painel de instrumentos e entregando-a a Tennyson. - Acho que tudo está completo.

- Faça-me um resumo. Lerei tudo depois. Quero saber desde já qual é a situação.

- Muito bem. Em primeiro lugar, o homem chamado Werner Gerhardt, que mora em Neuchâtel, não pode ser um participante ativo do Nachrichtendienst.

- Por que não? Von Pappen tinha alguns inimigos no corpo diplomático. Esse Gerhardt poderia ser um deles.

- Poderia ter sido. Mas agora não é mais capaz de nada. Não é apenas senil. Está quase totalmente esclerosado. Há anos vive na sua aldeia como uma sombra de homem. Passa pela rua resmungando ou cantarolando e sua única diversão é dar milho aos pombos na praça do lugar.

- A senilidade pode ser fingida - disse Tennyson. - E, de qualquer maneira, a velhice não pode ser considerada uma condição patológica.

- Há provas. Está matriculado na clínica local e a ficha dele nada tem de favorável. Regrediu a uma mentalidade infantil e mal pode cuidar de si mesmo.

Tennyson sorriu.

- Muito bem quanto a Werner Gerhardt. Qual é o estado do outro traidor em Stuttgart?

- Câncer no cérebro, na fase final. Não tem mais nem uma semana de vida.

- Neste caso, o Nachrichtendienst tem apenas um chefe em atividade, Klaus Falkenheim.

- É o que parece. Entretanto, ele pode ter delegado autoridade a um homem mais jovem. Tem soldados à sua disposição.

- Simplesmente à sua disposição? São os moços que ele protege, os Verwünschte Kinder?

- Claro que não. Há entre eles alguns idealistas, mas não há força substancial em suas fileiras. Falkenheim tem simpatia por eles, mas os separa nitidamente do Nachrichtendienst.

- De onde vêm então os soldados do Nachrichtendienst?

- São judeus.

- Judeus!

- Tanto quanto pudemos apurar, são recrutados à medida das necessidades, para uma missão de cada vez. Não há organização, nem grupo estruturado. Além do fato de serem judeus, só têm uma coisa em comum, a sua procedência.

- Qual é ela?

- O kibbutz Har Sha’alav, no Neguev.

- Har Sha’alav? Mas é perfeito! Trata-se do kibbutz em Israel onde só se faz uma exigência para o ingresso. O candidato tem de ser o único sobrevivente de uma família destruída nos campos de concentração.

- Exatamente - disse o francês. - O kibbutz tem agora mais de duzentos homens que podem ser recrutados.

Tennyson se lembrou do que dissera o homem do blusão de couro de Holcroft. "Se me matar, outro tomará o meu lugar. Se matar este, virá outro." Era um exército invisível, disposto a aceitar uma sentença de morte coletiva. O compromisso era compreensível, mas não se tratava de um exército. Era uma série de patrulhas escolhidas ao acaso.

- Tem certeza disso? - perguntou Tennyson.

- Tenho. A oportunidade de apurar tudo nos foi fornecida pelos dois desconhecidos mortos em Montereau. Nossos laboratórios descobriram uma porção de coisas: roupas, sedimentos nos sapatos e nos poros da pele, as ligas usadas nos trabalhos dentários e especialmente as marcas cirúrgicas. Os dois homens tinham sido feridos e um deles tinha ainda estilhaços no ombro. A guerra do Yom Kippur. A pesquisa foi circunscrita ao sudoeste do Neguev, e então chegamos ao kibbutz. O resto foi fácil.

- Mandou alguém a Har Sha’alav?

- Mandei. O relatório dele está na pasta. Ninguém fala abertamente no kibbutz, mas o que acontece é claro. Alguém manda um telegrama e alguns homens são escolhidos, recebendo então as ordens.

- Pelotões suicidas permanentes empenhados na destruição de tudo o que se relacionar com a cruz gamada.

- Exatamente. E, para confirmar as nossas descobertas, apuramos que Falkenheim fez há três meses uma viagem a Israel. Os computadores captaram o nome dele.

- Há três meses... Foi nessa ocasião que Manfredi entrou em contato com Holcroft para tratar da reunião de Genebra. Isso mostra que Falkenheim não só tinha conhecimento da Wolfsschanze, mas também previa os desenvolvimentos. Recrutou e preparou o seu exército com três meses de antecedência. Já é tempo de nos enfrentarmos como dois filhos do Reich, um verdadeiro e outro falso.

- A que devo atribuir a morte dele?

- Ao ODESSA, é claro. Prepare também um golpe contra o Har Sha’alav. Quero todos os chefes mortos. Prepare tudo com muito cuidado. Culpe os terroristas do Rache. Vamos.

Nos minutos seguintes, o homem louro que caminhava pela sinuosa estrada de terra não seria John Tennyson. Ao invés disso, seria chamado pelo seu verdadeiro nome, Johann von Tiebolt, filho de Wilhelm, líder do novo Reich.

A cabana apareceu. A morte de um traidor estava próxima. Von Tiebolt voltou-se e olhou para a estrada. O homem da Sûreté fez-lhe um sinal. Ficaria bloqueando a estrada até que a tarefa estivesse completada. Von Tiebolt continuou a andar até chegar a dez metros do caminho de pedra que levava à cabana. Parou e, oculto pela folhagem, mudou a pistola do coldre do ombro para o bolso do sobretudo. Agachando-se, passou pela porta e chegou à janela, erguendo então o corpo a fim de olhar.

Embora a manhã estivesse bem clara, um abajur de mesa estava aceso no interior sombrio da sala. Klaus Falkenheim estava além do abajur, sentado na sua cadeira de rodas, de costas para a janela.

Von Tiebolt voltou em silêncio para a porta e pensou por um momento se devia ou não entrar, arrombando a porta como um assassino do ODESSA decerto faria. Resolveu o contrário. O Coronel podia estar velho e decrépito, mas não era idiota. Devia ter alguma arma ao alcance da mão. Ao primeiro barulho na porta, esperaria o atacante de arma em punho.

Johann sorriu. Não havia mal algum num pequeno jogo. Um consumado ator ia contracenar com outro. Quem mereceria mais aplausos? A resposta era óbvia. Ele estaria presente ao cair do pano e Klaus Falkenheim já teria saído de cena para sempre.

Bateu na porta.

- Desculpe, mein Herr. É Johann von Tiebolt. Infelizmente, meu carro não pôde galgar a subida.

A princípio, houve apenas silêncio. Se este se prolongasse, Von Tiebolt sabia que devia tomar providências mais severas. Não podia permitir que o velho desse telefonemas apressados. Ouviu então a voz do Coronel.

- Von Tiebolt?

- Sim, o irmão de Helden. Vim falar com ela. Helden não foi trabalhar e eu presumi que estivesse aqui.

- Não está.

- Não vou então aborrecê-lo. Mas, por favor, poderia falar pelo seu telefone para pedir um táxi?

- O telefone?

O homem louro sorriu. A confusão de Falkenheim se transmitia através da barreira entre eles.

- Será apenas um momento. Tenho de falar com Helden até o meio-dia. Viajarei para a Suíça às duas horas.

Houve de novo um breve silêncio. Von Tiebolt ouviu um ferrolho ser corrido e a porta se abriu. O Coronel estava na cadeira de rodas, impulsionando-a para trás. Havia uma manta sobre os seus joelhos. Momentos antes, a manta não estava lá.

- Obrigado, senhor - disse Von Tiebolt, estendendo a mão. - É um prazer revê-lo.

Espantado, o velho ergueu a mão. Johann agarrou-a mais que depressa e torceu-a para a esquerda. Estendeu a outra mão e tirou a pistola do colo de Falkenheim. Era o que ele esperava: uma Luger entre as pernas emaciadas. Fechou então a porta da cabana.

- Heil Hitler! General Falkenheim, wo ist der Nachrichtendienst?[35]

O velho ficou imóvel e olhou para o intruso, sem mostrar medo nos olhos.

- Não podia saber quando iria descobrir. Nunca pensei que fosse tão depressa. Tenho de elogiá-lo por isso, Sohn des Wilhelm von Tiebolt[36].

- De fato, filho de Wilhelm e alguma coisa mais.

- Ah, sim, o novo Führer. É o seu objetivo, mas isso não vai acontecer. Nós o faremos parar. Se veio matar-me, estou preparado.

- Por que iria matá-lo? É muito valioso como refém.

- Não creio que vá conseguir um grande resgate.

Von Tiebolt empurrou a cadeira para o centro da sala.

- Presumo que seja verdade. Deve dispor, entretanto, de alguns fundos, talvez solicitados pelos jovens errantes de quem gosta tanto. Mas, na verdade, o dinheiro não me interessa.

- Era o que eu pensava. Pode atirar.

- Além disso, é duvidoso que um homem atacado de câncer no cérebro, num sanatório de Stuttgart, possa dar muito. Não acha que isso também é verdade?

Falkenheim dissimulou a sua surpresa e murmurou:

- Era um homem muito bravo.

- Tenho certeza disso. Todos vocês foram bravos. Os traidores, para ter êxito, devem possuir uma certa coragem mal-empregada. Werner Gerhardt, por exemplo.

- Gerhardt? - Dessa vez, o velho não pôde esconder o seu espanto. - Onde foi que ouviu esse nome?

- Gostaria de saber como eu soube, hein? Quer saber como foi que soube de você?

- De mim, não. O risco que assumi foi apenas aparente. Providenciei para que uma pessoa da família Von Tiebolt estivesse perto de mim. Considerei isso um risco necessário.

- Sim, a bela Helden. Mas dizem que todos nós na família somos belos. Isso tem suas vantagens.

- Ela não está ligada a você. Não é nem nunca foi sua cúmplice.

- Ela faz parte do seu lixo ambulante, die Verwünschte Kinder. É uma prostituta de coração fraco. Agora mesmo, está se prostituindo com o americano.

- As suas opiniões não me interessam. Como foi que soube de Gerhardt?

- Não tenho motivo algum para dizer-lhe.

- Vou morrer. Que diferença faz?

- Vamos fazer uma troca. Como foi que soube da Wolfsschanze?

- De acordo. Gerhardt primeiro.

- Por que não? Ele não vale mais nada. É um velho, quase totalmente esclerosado.

- Não faça nada contra ele! - exclamou Falkenheim. - Ele já passou por tanta coisa na vida! Já sofreu tanto!

- O seu interesse é comovente.

- Interrogaram-no durante quatro meses de tortura. Perdeu o juízo. Deixe-o em paz.

- Quem o interrogou? Os Aliados? Os ingleses?

- Os homens do ODESSA.

- Como exceção, fizeram um trabalho útil.

- Onde ouviu o nome dele? Como foi que o descobriu?

Von Tiebolt sorriu.

- Os ingleses têm uma ficha sobre o Nachrichtendienst. Estão interessados na sua organização com o intuito de descobri-la e destruí-la.

- Destruir por quê? Não há razão...

- Há, sim. Têm provas de que vocês contrataram o Tinamou.

- O Tinamou? É um absurdo!

- Nada disso. Seria a vingança final de vocês, a vingança de homens velhos e cansados sobre os seus inimigos. Creia no que lhe estou dizendo. A prova é irrefutável. Fui eu que a dei aos ingleses.

O velho olhou para Johann com uma expressão carregada de repulsa.

- Você é nojento.

- Agora, como foi que soube da Wolfsschanze? Se estiver mentindo, eu saberei.

Falkenheim deixou cair o corpo na cadeira de rodas.

- Isso não tem mais qualquer importância para nenhum de nós. Eu vou morrer e você será detido.

- Agora, quem não está interessado nas suas opiniões sou eu. Fale sobre a Wolfsschanze!

- Althene Clausen - murmurou calmamente o velho. - A estratégia quase perfeita de Heinrich Clausen.

O rosto de Von Tiebolt se contraiu de espanto.

- A mulher de Clausen? Como foi que descobriram o que havia com ela?

- Não foi difícil - disse o velho. - Temos informantes por toda parte. Em Nova York e em Berlim. Sabíamos quem era Mrs. Richard Holcroft e, desde que sabíamos, demos ordens para que fosse protegida. Foi esse o paradoxo: para que fosse protegida. Foi então que soubemos. No auge da guerra, quando o seu marido americano estava nas fileiras, ela tomou um avião particular para a Cidade do México. Do México foi secretamente para Buenos Aires, onde a embaixada alemã fê-la voar, com cobertura diplomática, até Lisboa. Até Lisboa! Por quê?

- Berlim lhe deu a explicação? - perguntou Von Tiebolt.

- Deu, sim. Nossa gente no Ministério das Finanças. Soubemos que grandes importâncias em dinheiro estavam sendo retiradas da Alemanha, mas tínhamos interesse em não interferir. Estávamos de acordo com tudo o que contribuísse para emperrar a máquina nazista. Com isso, a paz e o bom senso poderiam voltar mais cedo. Mas cinco dias depois que Mrs. Holcroft saiu de Nova York para Lisboa, via México e Buenos Aires, Heinrich Clausen, o gênio do Ministério das Finanças, saiu secretamente de avião de Berlim. Passou primeiro por Genebra para falar com um banqueiro chamado Manfredi, e foi depois para Lisboa. Sabíamos que não se tratava de defecção. Mais que os outros, ele acreditava na supremacia alemã e ariana. Por isso mesmo, não podia aceitar as falhas das turmas de gângsteres de Hitler. Tiramos então as nossas simples conclusões. Clausen e a sua ex-mulher, que supostamente o traíra, juntos em Lisboa; milhões depositados nos bancos da Suíça... e a derrota da Alemanha já então assegurada. Procuramos o sentido profundo de tudo isso e fomos encontrá-lo em Genebra.

- Leram os documentos?

- Lemos tudo o que havia em La Grande Banque de Genève. Isso nos custou quinhentos mil francos suíços.

- Pagos a Manfredi?

- Naturalmente. Ele sabia quem éramos e julgava que acreditávamos nos objetivos apresentados naqueles papéis e que os aprovávamos. Deixamos que acreditasse nisso. A Wolfsschanze! Que Wolfsschanze? "Era preciso fazer reparações"... Nada podia estar mais longe das intenções deles. O dinheiro seria usado para fazer reviver o Reich.

- Que foi que fizeram então?

- Voltamos a Berlim e executamos seu pai, Kessler e Heinrich Clausen. Não pretendiam suicidar-se. Esperavam ir para a América do Sul, dirigir de lá o seu plano e vê-lo realizado. Nós os obrigamos ao pacto de morte de que Clausen falou tão emocionantemente na carta ao filho.

- Ficou então a par do segredo de Althene Clausen? - perguntou Von Tiebolt.

- Você falou em prostitutas. Não há nenhuma maior do que ela.

- É espantoso que a deixassem viver.

- Não tínhamos outro remédio. Depois da morte de Clausen, ela era a chave da Wolfsschanze, da sua Wolfsschanze. Sabíamos que ela e Clausen tinham apurado todos os movimentos que deveriam ser feitos nos anos vindouros. Tínhamos de saber. Ela nunca nos diria e devíamos limitar-nos a observar. Quando os milhões seriam retirados de Genebra? Como seriam usados especificamente? E por quem?

- Pelos Sonnenkinder - disse Von Tiebolt.

- Que foi que você disse?

- Não tem importância. Ficaram então esperando que Althene Clausen tomasse a iniciativa, qualquer que fosse.

- Decerto, mas nunca soubemos nada dela. Com o passar dos anos, compreendemos que ela havia absorvido o gênio do marido. Em trinta anos, não traiu a causa uma só vez por palavras ou atos. Não podíamos deixar de admirar-lhe a disciplina. Nosso primeiro sinal ocorreu quando Manfredi entrou em contato com o filho dela. Trata-se de uma criatura tão desprezível que consentiu em sujeitar o filho a tudo isso. Holcroft não sabe de nada.

Von Tiebolt riu.

- Você está tão por fora de tudo! O famoso Nachrichtendienst é uma coleção de idiotas.

- Acha?

- Acho, não, tenho certeza. Vocês vigiaram o cavalo errado na cocheira errada.

- Como?

- Durante trinta anos, vocês concentraram os olhos na única pessoa que não sabia absolutamente nada. A maior prostituta do mundo, como você diz, esteve sempre absolutamente certa de que ela e o filho iam participar de um grande ato de justiça. Nunca pensou de outro modo. A viagem a Lisboa foi o golpe mais brilhante de Clausen. Apareceu como um homem arrependido e regenerado, que estava empenhado numa causa santa. Deve ter sido a maior representação da vida dele. Isso abrangia as instruções finais para que ela não desse a sua aprovação imediata. O filho tinha de ver por si mesmo a justiça da causa de seu pai martirizado e, convencido disso, empenhar-se por completo na causa. Não compreende? Nenhum de nós poderia fazer isso. O documento de Genebra é absolutamente correto a esse respeito. As fortunas roubadas pelo Terceiro Reich são lendárias. Não poderia haver correlação entre a conta de Genebra e um verdadeiro filho da Alemanha.

Falkenheim arregalou os olhos.

- Ela nunca soube?

- Nunca! Ela foi um instrumento ideal, mesmo psicologicamente. O fato de que Heinrich Clausen se revelava um homem justo reafirmou a confiança dela nos seus julgamentos. Casara-se com aquele homem e não com o nazista.

- Incrível - murmurou o Coronel.

- Ao menos - disse Von Tiebolt - ela seguiu literalmente as instruções dele. Todas as contingências foram levadas em conta, inclusive o atestado de óbito de um menino num hospital de Londres. Todos os traços de Clausen foram obliterados. Como vê, vocês não chegam aos pés da Wolfsschanze - disse Von Tiebolt com um riso enervante.

- Sua Wolfsschanze, não a minha - disse Falkenheim, desviando o olhar. - Em todo caso, você merece elogios.

Von Tiebolt parou de rir de repente. Alguma coisa estava errada. Era nos olhos do velho, alguma coisa que brilhara e logo depois se esmaecera e desaparecera no fundo das órbitas.

- Olhe para mim! - gritou Von Tiebolt. - Olhe para mim!

Falkenheim voltou-se para ele.

- Que é?

- Eu disse alguma coisa... alguma coisa que era do seu conhecimento. Você sabia!

- De que é que está falando?

Von Tiebolt agarrou o velho pela garganta.

- Falei de contingências, de um atestado de óbito! Num hospital de Londres! Você já sabia disso!

- Não sei o que é que está querendo dizer.

Os dedos trêmulos de Falkenheim se fechavam em torno dos pulsos de Von Tiebolt e a sua voz era entrecortada em vista da pressão das mãos do outro.

- Acho que sabe. Tudo o que eu disse o surpreendeu. Mas, quando falei no hospital e no atestado de óbito, você apenas fingiu surpresa. Já sabia então!

- Não sabia de nada! - exclamou Falkenheim.

- Não minta! - disse Von Tiebolt, batendo com a Luger no rosto do velho e ferindo-o. - Não sabe mais mentir! Está velho demais para isso! Tem lapsos de memória. Seu cérebro está atrofiado. As suas pausas são erradas, Herr General!

- Você é um louco...

- E você é um mentiroso! E mentiroso pobre ainda por cima. Traidor!

Bateu de novo com o cano da pistola no rosto do velho.

- Mentiu sobre ela! Você sabia!

- Não sabia nada...

- Sabia tudo! É por isso que ela está a caminho de Genebra e eu não sabia por quê.

Bateu outra vez no velho, dilacerando-lhe metade do rosto.

- Na sua última tentativa desesperada de deter-nos, você se comunicou com ela. Ameaçou-a e com essas ameaças disse-lhe o que ela não sabia!

- Está muito enganado!

- Não - disse Von Tiebolt, baixando subitamente a voz. - Não há outra razão para que ela vá a Genebra. É então assim que você pensa que nos vai deter? A mãe procura o filho e lhe diz que desista, pois o pacto é uma mentira.

Falkenheim sacudiu a cabeça ensanguentada.

- Não... Nada do que está dizendo é verdade.

- É tudo verdade e esclarece uma derradeira dúvida. Se você queria tanto destruir Genebra, precisava apenas espalhar a notícia da existência de um tesouro nazista. As reivindicações irromperiam do mar Negro ao norte do Elba, de Moscou a Paris. Mas não fez isso. Por quê? Pensou que poderia dominar Genebra e usar para os seus fins os milhões da conta. Holcroft saberia da verdade e passaria a ser seu soldado, com a sua raiva extremada e o seu empenho triplicado.

- Ele vai saber - disse Falkenheim num sussurro. - Ele é melhor do que você. Nós ambos sabemos disso, não sabemos? Afinal de contas, à maneira dele, Noel Holcroft é um Sonnenkind.

- Sonnenkind... - disse Von Tiebolt, golpeando de novo o rosto de Falkenheim com o cano da pistola. - Você só diz mentiras. Eu é que disse o nome. Você não sabe de nada...

- Como é que não sei, e por que iria mentir agora? Operação Sonnenkinder. De navio, avião e submarino. As crianças foram levadas para toda parte. Nunca tivemos as listas, mas não precisamos delas. Os Sonnenkinder serão obstados, quando você o for. Quando Genebra for obstada.

- Para que isso aconteça, é preciso que Althene Clausen se encontre com o filho. Ela não vai desmascarar Genebra antes de tentar tudo o mais. Mas, se fizer isso, destruirá o filho e revelará ao mundo quem ele é. Ela tudo fará para não deixar que isso aconteça. Tentará encontrar-se com o filho sem alarde. Nós a impediremos.

- Vocês é que serão impedidos! - disse Falkenheim, meio sufocado pelo sangue que lhe corria pelos lábios. - Não haverá grandes quantias para serem entregues aos seus Sonnenkinder. Nós também temos um exército de que você nada saberá. Cada homem dará a vida com prazer para detê-lo.

- Sem dúvida, Herr General, está contando com os judeus de Har Sha’alav...

As palavras foram proferidas em voz baixa, mas tiveram o efeito de uma chicotada no velho.

- Não!

- Sim, os judeus de Har Sha’alav. Doutrinados pelo Nachrichtendienst com tanta eficiência que se tornaram o Nachrichtendienst. Os remanescentes vivos de Auschwitz...

- Você é um animal!

O corpo de Falkenheim tremeu num espasmo de dor.

- Eu sou a Wolfsschanze, a verdadeira Wolfsschanze - disse Von Tiebolt, levantando a Luger. - Antes que você soubesse a verdade, os judeus tentaram matar o americano, e agora os judeus vão morrer. Nesta semana, o Har Sha’alav será destruído e o Nachrichtendienst com ele. A Wolfsschanze triunfará.

Von Tiebolt ergueu a pistola em frente à cabeça do velho e puxou o gatilho.


35

As lágrimas rolavam pelas faces de Helden. Tinha nos braços o corpo de Klaus Falkenheim, mas não sentia coragem de olhar para a cabeça. Por fim, deixou escorregar o corpo para o chão e saiu rastejando para encolher-se num canto, cheia de horror e de culpa. Ali ficou, soluçando descompassadamente. Encostou a cabeça na parede e deixou que as lágrimas corressem livremente. Pouco a pouco, compreendeu que os seus gritos e soluços não tinham sido ouvidos. Chegara sozinha à cena daquele horrível crime e encontrara por toda parte sinais do odiado ODESSA: suásticas riscadas na madeira, desenhadas com sabão na vidraça, traçadas no chão com o sangue de Falkenheim. Além dos desprezíveis símbolos, os assassinos tinham deixado vestígios da sua passagem por toda a sala. Tinham dilacerado livros, quebrado prateleiras, despedaçado móveis; haviam revistado a casa toda. Restavam apenas destroços.

Entretanto, havia ainda alguma coisa, mas não na casa. Lá fora, na floresta. Helden levantou-se, tentando desesperadamente lembrar-se do que lhe dissera o Coronel havia apenas cinco dias. "Se me acontecer alguma coisa, tenha calma e não perca a cabeça... Vá sozinha até a floresta e pare no ponto até onde me levou num breve passeio outro dia. Lembra-se? Pedi-lhe que colhesse algumas flores silvestres e fiquei junto de uma árvore. Apontei-lhe um V perfeito formado pelos galhos. Encontrará nessa árvore, oculta entre as folhas, uma pequena lata. Há nela uma carta que só deverá ser lida por você..."

Helden encontrou a lata e abriu-a. Dentro, havia uma carta e várias notas de dez mil francos. Guardou o dinheiro e leu a carta. Dizia o seguinte:

"Minha caríssima Helden:

O tempo e o perigo não me permitem escrever aqui o que você já deve saber. Há três meses, providenciei para que você viesse até mim, pois acreditava que você fosse um braço do inimigo que há trinta anos espero enfrentar. Vim, porém, a conhecê-la e a amá-la e sei agora, com grande satisfação, que você não faz parte do horror que poderia outrora ter flagelado o mundo.

Se me matarem, será porque fui descoberto. Isso significará ainda que o tempo das catástrofes se aproxima. Devem então transmitir-se ordens aos homens corajosos que estarão a postos na barricada final.

Você deve ir sozinha - veja bem, sozinha - ao lago de Neuchâtel, na Suíça. Não deixe que ninguém a siga. Sei que pode conseguir isso. Recebeu instruções nesse sentido. Na aldeia de Près-du-Lac, há um homem chamado Werner Gerhardt. Procure-o. Transmita-lhe o seguinte recado: ‘A moeda da Wolfsschanze tem duas faces’. Ele saberá o que deve fazer.

Terá de viajar com urgência. Há muito pouco tempo. Recomendo que nada diga a ninguém e que não faça alarma. Diga a seus patrões e às pessoas amigas que tem assuntos pessoais para resolver na Inglaterra, o que será uma coisa lógica, levando-se em conta que você viveu naquele país mais de cinco anos.

E agora, minha cara Helden, parta depressa para Neuchâtel, para Près-du-Lac, para Werner Gerhardt. Guarde o nome na memória e queime esta carta.

Boa viagem,

o Coronel."

Helden encostou-se à árvore e olhou para o céu. Farrapos de nuvens corriam rapidamente pelo céu na direção do leste; os ventos sopravam fortemente. Gostaria de ser carregada na asa dos ventos em vez de correr de um lugar para outro, assumindo um risco a cada passo e vendo em cada pessoa um inimigo potencial.

Noel tinha dito que em breve tudo estaria acabado e eles poderiam deixar de fugir.

Estava muito enganado.

Holcroft falava pelo telefone, tentando dissuadir Helden de fazer a viagem, mas ela resistia. Tinha tido notícia por intermédio da Gallimard de que a sua presença era necessária na Inglaterra para tomar algumas providências relacionadas com a morte de sua irmã.

- Telefonarei para você em Genebra, querido. Vai mesmo hospedar-se no Hôtel d’Accord?

- Vou, sim.

Que é que havia com ela? Apenas duas horas antes, estava tão feliz e tão descontraída! Naquele momento, mostrava-se preocupada. As palavras eram claras, mas havia tensão em sua voz.

- Telefonarei para você daqui a dois ou três dias. Procurarei Mr. Fresca.

- Quer que eu a acompanhe? Só preciso estar em Genebra amanhã à noite. Os Kessler só chegarão às dez horas e seu irmão chegará ainda depois.

- Não, querido, será uma viagem triste e eu prefiro fazê-la sozinha. Johann ainda está em Londres e procurarei comunicar-me com ele.

- Você tem algumas roupas aqui.

- Um vestido, calças compridas e um par de sapatos. Perderei menos tempo passando pela casa do Coronel e pegando algumas roupas mais apropriadas para Portsmouth.

- Perderá menos tempo como?

- No caminho para o aeroporto. De qualquer maneira, tenho de passar por lá para pegar meu passaporte e algum dinheiro...

- Eu tenho dinheiro - disse Noel. - E julguei que a estas horas você já tivesse passado pela casa do Coronel.

- Por favor, querido. Não crie problemas. Não lhe disse que passei antes pelo escritório?

- Não, não disse. Disse apenas que tinha sabido por intermédio do escritório.

Holcroft estava alarmado. Ela estava dizendo coisas sem sentido. A cabana oculta do Coronel não ficava no caminho do Aeroporto de Orly.

- Que é que há, Helden?

- Eu o amo, Noel. Telefonarei amanhã à noite para o Hôtel d’Accord, em Genebra.

Desligou.

Holcroft recolocou o fone no gancho, ainda com a voz de Helden a ressoar-lhe nos ouvidos. Podia ser que ela estivesse viajando para Londres, mas ele tinha as suas dúvidas. Para onde ia ela? Por que estava mentindo? Que é que havia? Que estava acontecendo?

Não tinha mais nada que fazer em Paris. Desde que tinha de ir para Genebra, por que não podia partir desde já?

Não podia arriscar-se num avião ou num trem. Poderia ser observado por homens desconhecidos e era melhor evitá-los. Seu amigo da gerência do hotel alugaria um carro para ele e lhe traçaria o itinerário. Passaria a noite viajando para Genebra.

Althene Holcroft olhou pela janela do avião da TAP para as luzes de Lisboa. Pousariam dentro de minutos. Tinha muito o que fazer nas doze horas seguintes e esperava ter forças para fazer tudo. Sabia que um homem a havia seguido até o México. Mas havia desaparecido no aeroporto, o que indicava que outro tinha tomado o lugar dele.

Ela havia falhado no México. Não conseguira esconder-se. Teria de desaparecer em Lisboa. Não podia falhar de novo.

Lisboa.

Meu Deus, Lisboa!

Tinha sido em Lisboa que tudo começara. A mentira de toda uma vida, concebida com um brilho diabólico. Como ela fora imbecil e como Heinrich agira magnificamente!

Recusara a princípio encontrar-se com Heinrich em Lisboa, tamanho era o seu ódio. Mas fora porque a ameaça tinha sido muito clara. O filho dela seria desmascarado pelo pai. Noel Holcroft nunca poderia viver em paz, pois o nome de Noel Clausen e o fato de ser o filho único do infame prócer nazista o perseguiriam pelo resto da vida.

Como ficara satisfeita ao saber que a ameaça fora apenas um artifício para atraí-la a Lisboa! E como ficara espantada e intimidada quando Heinrich expusera calmamente o plano extraordinário que levaria anos para se concretizar, mas que, quando se concretizasse, tornaria o mundo um lugar bem melhor. Ouvira, ficara convencida e fizera tudo o que lhe fora pedido. Na verdade, era preciso fazer reparações.

Ela o amara de novo naqueles breves dias em Lisboa e num assomo de emoção se oferecera ao ex-marido.

Com lágrimas nos olhos, ele recusara, dizendo que não era digno.

Fora a decepção completa e agora era a ironia extrema.

De fato, naquele momento, o que a levava a Lisboa era a mesma ameaça de, trinta anos antes. Noel Holcroft seria destruído. Tornar-se-ia Noel Clausen, filho de Heinrich, instrumento do novo Reich.

Um homem tinha ido procurá-la no meio da noite em Bedford Hills. Fora um homem que entrara na casa depois de pronunciar o nome de Manfredi do outro lado da porta. Ela o deixara entrar, pensando que seu filho é que o tivesse mandado. Ele dissera que era um judeu de um lugar chamado Har Sha’alav e que ia matá-la. Depois, mataria o filho dela. O espectro da falsa Wolfsschanze não iria se expandir de Zurique e de Genebra.

Althene ficara furiosa. Sabia o homem quem era ela? Sabia o que ela tinha feito e representava?

O homem sabia apenas de Genebra, de Zurique e do que acontecera em Lisboa trinta anos antes. Era só do que ele precisava saber para compreender o que ela representava e compenetrar-se de que a existência dela era uma abominação para ele e os homens como ele através do mundo.

Althene vira a angústia e a cólera nos olhos do homem que a defrontava com tanta nitidez quanto se uma arma estivesse apontada para ela. Em desespero, pediu-lhe que dissesse o que julgava saber.

Ele disse então que consideráveis quantias iam ser encaminhadas a comitês e grupos espalhados por todas as nações, que estavam esperando o sinal havia trinta anos.

Haveria então assassinatos, distúrbios e incêndios nas ruas, e os governos ficariam aturdidos e incapacitados de agir. Haveria por toda a terra clamores por estabilidade e ordem. Homens e mulheres fortes, com muito dinheiro à disposição, se afirmariam então e, dentro de poucos meses, dominariam tudo.

Estavam em toda parte, em todos os países, e aguardavam apenas o sinal de Genebra.

Quem eram eles?

Os Sonnenkinder, os filhos dos fanáticos, transferidos da Alemanha mais de trinta anos antes em navios, aviões e submarinos, por homens que sabiam que a sua causa estava perdida, mas tinham a esperança de fazê-la renascer muitos anos depois.

Estavam em toda parte. Não podiam ser combatidos por homens comuns, com meios comuns, por intermédio dos canais comuns de autoridade, pois na maioria dos casos os Sonnenkinder controlavam esses canais. Mas os judeus do Har Sha’alav não eram homens comuns, nem lutavam com meios comuns. Compreendiam que para deter a falsa Wolfsschanze tinham de lutar secretamente, de maneira violenta, sem nunca deixar os Sonnenkinder saberem onde eles estavam ou onde iam atacar em seguida. E a primeira coisa que tinham de fazer no momento era impedir aquele afluxo imenso de dinheiro.

Deviam ser imediatamente desmascarados!

Mas como? Onde? Quais eram as identidades deles? Que provas seriam fornecidas? Quem poderia dizer que o general, o almirante, o chefe de polícia, o presidente de empresa, o desembargador, o congressista ou o governador era um Sonnenkind? Havia homens que se candidatavam apresentando plataformas de clichês baseados em ódio e, apesar disso, conseguiam aplausos e votos.

Estão em toda parte. Os nazistas estão entre nós e não os vemos, pois se escondem atrás da respeitabilidade e dos ternos bem-passados.

O judeu do Har Sha’alav falava apaixonadamente:

- Até você e seu filho podem ser instrumentos do novo Reich, ainda que não saibam disso.

Não sei de nada. Juro pela minha vida que não sei de nada. Não sou o que está pensando! Se quiser matar-me, mate-me! Mate-me agora mesmo! Vingue-se em mim. Você tem esse direito e eu mereço isso, se o que você está dizendo é verdade. Mas eu lhe imploro que procure meu filho. Explique-lhe tudo e procure detê-lo. Mas não o mate, nem o exponha. Ele não é o que você pensa. Conceda-lhe a vida. Tire a minha, mas poupe a dele.

O judeu do Har Sha’alav disse então:

- Richard Holcroft morreu. Mas a morte dele não foi um acidente.

Ao ouvir isso, ela quase perdera os sentidos, mas conseguira controlar-se. Não se podia permitir a momentânea inconsciência que a aliviaria.

Meu Deus!

- Foi a Wolfsschanze que o matou. A falsa Wolfsschanze. Tão seguramente quanto se o houvessem trancado numa câmara de extermínio em Auschwitz.

Que é a Wolfsschanze? E por que diz que é falsa?

- Procure saber. Nós nos falaremos de novo. Se está mentindo, será morta. Seu filho viverá, pelo tempo que o mundo o deixar viver, mas com uma suástica estampada na cara!

Procure-o. Diga-lhe tudo.

O homem do Har Sha’alav saiu. E Althene ficou sentada ao lado da janela, olhando pelo resto da noite para os campos cobertos de neve. Tinham matado seu querido Richard, o homem que dera uma vida nova a ela e a seu filho... Que tinha ela feito?

Mas sabia o que tinha de fazer no momento.

O avião pousou e Althene voltou à realidade, isto é, a Lisboa.

Ela estava de pé junto à amurada da barca que sulcava as águas do Tejo. Tinha na mão esquerda um lenço de rendas que o vento agitava.

Julgou ver o homem, mas, de acordo com as instruções recebidas, não fez o menor movimento ao vê-lo aproximar-se. Nunca o vira antes, naturalmente, mas isso não tinha a menor importância. Era um velho de terno amarrotado, com grandes costeletas grisalhas que se uniam à barba. Olhou para os outros passageiros furtivamente, como se tivesse receio de que algum deles pudesse chamar a polícia.

- O rio parece muito frio hoje - disse ele.

O lenço de rendas de Althene lhe fugiu da mão e foi cair dentro da água.

- Oh! Perdi meu lenço!

- Não. Encontrou-o - disse o velho.

- Muito obrigada.

- Faça o favor de não olhar para mim. Olhe para as casas do outro lado.

- Muito bem.

- É muito generosa com o seu dinheiro - disse o homem.

- Acontece que estou com muita pressa.

- Traz nomes há tanto tempo esquecidos que não há mais rostos disponíveis. Faz pedidos que há anos não são feitos.

- Não posso acreditar que as coisas tenham mudado tanto.

- Mas acontece que mudaram. As pessoas continuam a viajar secretamente, mas não com instrumentos tão simples como passaportes falsificados. Estamos na era dos computadores. Os passaportes falsos não são mais o que eram. Voltamos ao tempo da guerra, às rotas de fuga.

- Tenho de chegar a Genebra o mais depressa possível. Ninguém deve saber que estou aqui.

- Irá para Genebra, e só aqueles a quem der a informação saberão que está aqui. Mas não pode ser com a presteza que deseja e não será uma coisa tão simples como um voo num avião.

- Quanto tempo?

- Dois ou três dias. Do contrário, não há garantia. Será descoberta pelas autoridades ou pelas pessoas a quem deseja evitar.

- Como posso chegar lá?

- Passando por fronteiras desguarnecidas ou cujos guardas sejam subornados. Irá pela rota do norte. Passará pela serra de Gata e Saragoça, atravessará os Pireneus Orientais. De lá, passará por Montpellier e Avignon. Em Avignon, um pequeno avião a levará até Grenoble e outro até Chambéry e Genebra. Não vai ser barato.

- Posso pagar. Quando vamos começar?

- Esta noite.


36

O homem louro assinou o registro de hóspedes do Hôtel d’Accord e entregou o cartão ao homem da portaria.

- Muito obrigado, Mr. Tennyson. Vai ficar quinze dias conosco?

- Talvez mais, certamente nunca menos. Agradeço ter me reservado uma suíte.

- Recebemos um telefonema de seu amigo, o vice-governador do cantão de Genebra - disse o empregado, sorrindo. - Nós asseguramos a ele que faríamos tudo para tornar a sua permanência agradável.

- Informarei a ele que estou plenamente satisfeito.

- É muita bondade sua.

- Ah, já ia me esquecendo... Estou esperando uma velha amiga nos próximos dias. Chama-se Mrs. Holcroft. Sabe quando ela é esperada?

O homem consultou um livro.

- O nome é Holcroft?

- Sim. Althene Holcroft, americana. Talvez tenha uma reserva também para o filho dela. N. Holcroft.

- Sinto muito, mas não temos reservas com esse nome. E não há hóspede algum atualmente com o nome de Holcroft.

Tennyson cerrou perceptivelmente os maxilares.

- Deve haver algum engano. A informação me foi dada com absoluta certeza. Ela é esperada neste hotel. Se não vier esta noite, talvez venha amanhã ou daqui a dois dias. Não há qualquer lista de reservas confidencial?

- Não.

- Se houvesse, tenho certeza de que meu amigo, o vice-governador, pediria que me deixasse vê-la.

- Se houvesse essa lista, isso não seria necessário, Mr. Tennyson. Compreendemos que temos de cooperar com o senhor em todos os sentidos.

- Talvez esteja viajando incógnita. É uma pessoa um pouco excêntrica.

O empregado virou o livro para Tennyson.

- Quer verificar pessoalmente, Mr. Tennyson? Talvez reconheça algum nome.

Tennyson não examinou o livro. Era de enfurecer.

- Essa lista está mesmo completa? - perguntou.

- Já lhe disse que sim. Acontece que este hotel é pequeno e, se posso assim dizer, um tanto exclusivo. Quase todos os nossos hóspedes já estiveram aqui em outras ocasiões e conheço quase todos esses nomes.

- Quais são os que não conhece? - perguntou Tennyson.

- Só não conheço três nomes. Dois irmãos da Alemanha, de nome Kessler, e um Sir William Ellis, de Londres. Este último fez a reserva há menos de duas horas.

Tennyson encarou o homem da portaria.

- Vou para o meu quarto, mas tenho de pedir-lhe que demonstre na prática essa cooperação de que falou meu amigo, o vice-governador. Tenho absoluta urgência em saber onde Mrs. Holcroft está hospedada. Gostaria que telefonasse para os outros hotéis, mas em nenhuma hipótese mencione meu nome. Procure-a para mim - disse ele, deixando em cima do balcão uma nota de dez francos.

À meia-noite, Noel chegou a Châtillon-sur-Seine, de onde telefonou para o seu espantado amigo Willie Ellis, em Londres.

- Você fará o quê? - perguntou Ellis.

- Você ouviu muito bem. Pagarei a você quinhentos dólares e todas as despesas para que passe um ou dois dias em Genebra. Quero apenas que leve minha mãe para Londres.

- Não tenho vocação para babá. Além disso, pelo que você me contou de sua mãe, não creio que ela precise de um companheiro de viagem.

- Agora precisa. Alguém a estava seguindo. Contar-lhe-ei tudo quando nos encontrarmos em Genebra. Que tal, Willie? Conto com você?

- Claro! Mas guarde seus quinhentos dólares. Creio que sua mãe e eu temos muita coisa em comum. Não olhe, porém, para a conta das despesas. Estas são por sua conta, e, como sabe, gosto de viajar com conforto.

- Já que estamos no assunto, procure não chamar muito a atenção. Quero que telefone para o Hôtel d’Accord, em Genebra, e faça uma reserva para a manhã de hoje. Se tomar o primeiro avião, deverá estar lá às nove e meia.

- Comportar-me-ei da maneira mais britânica possível. Talvez usando um pequeno título...

- Willie...

- Que é que tem? Suíço adora títulos. Querem dizer dinheiro, e suíço é louco por dinheiro.

- Telefonarei para você por volta das dez ou dez e meia. Quero usar o seu quarto até saber o que está acontecendo.

- Isso é extra, Noel. Até Genebra!

Holcroft resolvera telefonar para Willie porque não podia pensar em mais ninguém que não fizesse perguntas, e também porque ele não era o homem leviano e inconsequente que aparentava ser. Althene não poderia achar ninguém melhor para levá-la para fora da Suíça.

E era preciso que ela saísse de lá. O inimigo do pacto já lhe matara o marido e poderia matá-la também. E era em Genebra que isso podia acontecer. Dentro de dois ou três dias, haveria uma reunião, seriam assinados os papéis e o dinheiro seria transferido para Zurique. O inimigo do pacto faria tudo para impedir que essas coisas acontecessem. Sua mãe não poderia ficar em Genebra, pois era quase certo que haveria violência.

Chegou a Dijon pela madrugada e encontrou a cidade adormecida. Passando pelas ruas desertas, pensou que também precisava dormir, pois no dia seguinte teria de estar mais alerta do que nunca em sua vida. Continuou a dirigir até chegar ao campo. Parou o carro num acostamento, fumou um cigarro e, depois de apagá-lo, acomodou-se no banco, encostando a cabeça no vidro, com a capa a servir-lhe de travesseiro.

Dentro de poucas horas, estaria na fronteira e entraria na Suíça, com a primeira onda do trânsito matinal. Uma vez na Suíça... Não pôde pensar mais. A névoa o envolvia e a sua respiração era baixa e pesada. Foi então que o rosto lhe apareceu, enérgico e anguloso, desconhecido e, apesar disso, facilmente reconhecível.

Era o rosto de Heinrich Clausen, que estava apelando para ele, a dizer-lhe que se apressasse. A agonia em breve estaria terminada e as reparações seriam feitas.

Noel adormeceu.

Erich Kessler viu Hans, seu irmão mais moço, mostrar a sua maleta de médico ao oficial de segurança do aeroporto. Desde as Olimpíadas de 1972, quando os terroristas palestinos tinham voado para Munique levando, como se presumia, carabinas e metralhadoras portáteis desmontadas nas malas, as medidas de segurança nos aeroportos eram muito mais severas.

Esforço inútil, pensou Erich. As armas dos palestinos tinham sido levadas para Munique pela Wolfsschanze, a Wolfsschanze deles.

Hans riu de alguma pilhéria contada pelo oficial. Erich pensou que não haveria pilhérias em Genebra, pois não haveria inspeções por parte da polícia, da alfândega ou de qualquer outra autoridade. O vice-governador do cantão de Genebra tomaria providências a esse respeito. Um dos mais famosos médicos de Munique, especialista em clínica médica, estava chegando à cidade como seu convidado.

Hans era tudo isso e muito mais. Era um homem robusto e de estatura média, dotado de grande encanto pessoal. Fora um grande jogador de futebol e tratara depois com eficiência os adversários a quem machucara no campo.

Era estranho, pensou Erich, como Hans tinha muito mais qualidades do que ele para ser o irmão mais velho. Salvo pelo acaso do ano do nascimento, Hans é que devia estar trabalhando com Johann von Tiebolt, enquanto Erich, um calmo intelectual, estaria subordinado aos dois. Certa vez, num momento inseguro, dissera isso mesmo a Johann.

Von Tiebolt não lhe dera ouvidos. Havia necessidade mesmo de um puro intelectual, um homem com uma vida governada inteiramente pela razão, que não se deixasse levar por arrebatamentos sentimentais, nem por desregramentos. Não ficara isso provado naqueles momentos pouco frequentes mas vitais em que ele, o calmo intelectual, fizera frente ao Tinamou e manifestara as suas reservas? Reservas que tinham dado como resultado boas alterações estratégicas?

Era verdade, certamente, mas não era a verdade essencial. Esta verdade era uma coisa que Johann não queria enfrentar. Hans era quase igual a Von Tiebolt. Se entrassem em conflito, Johann poderia morrer.

Era essa a opinião do calmo intelectual.

- Tudo em ordem - disse Hans, enquanto se encaminhavam pelo portão para o avião. - O americano já pode ser considerado morto e não haverá laboratório que possa descobrir a causa.

Helden desembarcou do trem em Neuchâtel. Ficou na plataforma, ajustando a vista aos raios de sol que desciam do teto da estação. Sabia que tinha de misturar-se com a multidão que saía da estação, mas sentia necessidade de parar um pouco a fim de respirar. Passara as últimas três horas dentro da escuridão de um vagão de carga, encolhida entre caixotes de peças de máquina. Uma porta se abrira eletronicamente pelo espaço de sessenta segundos em Besançon e ela havia embarcado. Exatamente ao meio-dia menos cinco minutos, a porta se abrira novamente e ela chegara a Neuchâtel sem ser vista. Tinha as pernas entorpecidas e a cabeça atordoada, mas ela o conseguira. Isso lhe custara um bom dinheiro.

O ar encheu-lhe os pulmões. Apanhou a sua maleta e deixou a estação de Neuchâtel. A aldeia de Près-du-Lac ficava na margem oeste do lago, a trinta quilômetros no máximo para o sul. Encontrou um chofer de táxi disposto a fazer a viagem.

A estrada era esburacada e cheia de curvas, mas foi para ela como um suave deslizar. Olhava pelas janelas para as montanhas e para as águas azuis do lago. O belo cenário teve o efeito de suspender tudo e dar-lhe os momentos preciosos de que necessitava para tentar compreender. Que tinha querido o Coronel dizer quando escrevera que a chamara para junto de si porque acreditava que ela era um "braço do inimigo"? Um inimigo que ele esperava enfrentar havia trinta anos. Que inimigo era esse? E por que a escolhera?

Que tinha ela feito? Ou deixara de fazer? Seria de novo o terrível dilema de ser condenada pelo que era e pelo que não era? Quando aquilo iria finalmente parar?

O Coronel sabia que ia morrer. Havia-a preparado para a morte dele com tanta segurança como se a tivesse anunciado, tomando providências para que ela tivesse o dinheiro para a viagem secreta à Suíça, a fim de ver em Neuchâtel um homem chamado Werner Gerhardt. Quem era ele? Que representava ele para Klaus Falkenheim, para que só fosse procurado depois da morte deste?

A moeda da Wolfsschanze tem duas faces.

O chofer do táxi interrompeu-lhe os pensamentos.

- A hospedaria é ali, perto do lago. Mas não é grande coisa.

- Não faz mal.

O quarto dava para o lago. Era tudo tão pacífico que ela teve vontade de ficar à janela e não fazer nada senão pensar em Noel, pois só assim se sentia bem. Mas tinha de encontrar Werner Gerhardt. A lista telefônica de Près-du-Lac não relacionava o nome; estava tão velha que só Deus sabia quando fora atualizada. A aldeia, porém, era pequena. Talvez o porteiro da hospedaria o conhecesse.

Conhecia, mas de uma maneira que não deu confiança alguma a Helden.

- Gerhardt, o maluco? - disse o gordo porteiro, sentado numa cadeira de vime atrás da mesa. - Quer cumprimentá-lo em nome de velhos amigos dele? Ele não vai compreender uma só palavra do que lhe disser.

- Não sabia disso - murmurou Helden, dominada por um sentimento de desespero.

- Poderá ver por si mesma. O dia está frio, mas o sol já saiu. Deve estar na praça, cantarolando como um idiota e dando comida aos pombos. Os bichos lhe sujam a roupa toda e ele pouco se importa.

Avistou-o sentado na borda de pedra do velho chafariz no centro da praça. Não dava a menor atenção às pessoas que de vez em quando paravam diante dele e o olhavam mais com repulsa que com tolerância. As roupas eram surradas e o velho sobretudo estava todo manchado pelos dejetos dos pombos, como o homem da hospedaria havia dito. Era tão velho e tão doente quanto o Coronel, mas bem mais baixo e mais gordo. Era pálido e tinha o rosto abatido e marcado por finas veias. Tinha óculos de aros de metal que se moviam de um lado para outro, acompanhando os movimentos de sua cabeça trêmula. Trazia nas mãos um saco de papel do qual tirava migalhas de pão que jogava para os pombos. Estes cercavam-no, arrulhando, enquanto ele murmurava desafinadamente alguma canção.

Helden sentiu-se mal. Era um resto de homem. Já estava além da senilidade e era difícil saber o que prendia aquele farrapo de gente à vida.

A moeda da Wolfsschanze tem duas faces. O tempo da catástrofe se aproxima...

Parecia inútil repetir as palavras. Mas ela estava ali justamente para isso e tinha de cumprir os últimos pedidos de um grande homem barbaramente assassinado.

Por isso, aproximou-se do velho e sentou-se ao lado dele, consciente de que várias pessoas na praça olhavam para ela, como se ela também fosse desequilibrada. Falou então em alemão pausadamente.

- Viajei muito para vê-lo, Herr Gerhardt.

- Moça bonita... muito bonita...

- Venho da parte de Herr Falkenheim. Lembra-se dele?

- Falkenheim? A Casa dos Falcões? Os falcões não gostam dos meus pobres pombos... Meus amigos e eu não gostamos deles.

- Gostaria desse homem, se o tivesse conhecido.

- Quer um pouco de pão? Posso dar-lhe, mas sei que meus amigos não vão gostar...

- A moeda da Wolfsschanze tem duas faces - disse então Helden num sussurro.

Ouviu então as palavras. Não houve interrupção no ritmo de sua cantilena monótona, mas passara a haver sentido nas palavras.

- Ele morreu, não foi? Não me responda. Basta mover de leve a cabeça. Está falando com um velho inteiramente esclerosado. Não se esqueça disso.

Helden estava muito espantada e nem se moveu. Respondeu assim ao velho, com a sua imobilidade. Ele continuou com a sua cantilena.

- Klaus está morto. Eles por fim encontraram-no e mataram-no.

- Foi o ODESSA - murmurou Helden. - O ODESSA é que o matou. Havia suásticas por toda a casa.

- A Wolfsschanze quer que acreditemos nisso - disse Gerhardt, jogando o resto das migalhas de pão do saco para os pombos. - Pronto, pombinhos! Acabou-se! O ODESSA, como sempre, é o bode expiatório. É tão fácil...

- Falou na Wolfsschanze - disse Helden. - Uma carta de ameaça foi entregue a um homem chamado Holcroft. Foi escrita há trinta anos e era assinada por homens que se diziam os sobreviventes da Wolfsschanze.

Por um instante, o tremor de Gerhardt cessou.

- Só houve um sobrevivente da Wolfsschanze: Klaus Falkenheim! Outros estavam ali e viveram, mas não eram as águias. Eram lixo. E agora pensam que a hora deles chegou.

- Não compreendo...

- Poderei explicar-lhe tudo, mas não aqui. Depois que escurecer, vá até a minha casa, na margem do lago. Fica ao sul da estrada do cais. Exatamente a três quilômetros da bifurcação, há um caminho...

Ensinou o caminho a Helden como se estivesse recitando palavras escritas para acompanhar uma canção infantil. Quando acabou, levantou-se com dificuldade e jogou o saco no chão.

- Não creio que você seja seguida - disse ele com um sorriso senil. - Mas fique vigilante. Temos muito o que fazer e é preciso nos apressarmos...


37

Um pequeno avião monomotor circulava no céu na noite, acima de um campo, nos arredores de Chambéry. O piloto esperava que a fila dupla de fachos fosse acesa, como sinal para o seu pouso. No chão, havia outro aparelho, um hidravião, com as rodas encaixadas em flutuadores, preparado para a partida. Levantaria voo minutos depois que o outro avião chegasse ao fim da pista e levaria a sua preciosa carga para o norte, seguindo pelo curso oriental do rio Ródano, atravessando a fronteira suíça em Versoix e indo pousar no lago de Genebra, vinte quilômetros ao norte da cidade. A carga não tinha identificação, mas isso não interessava aos pilotos. Ela pagara tanto quanto qualquer traficante de drogas.

Só uma vez a passageira mostrara alguma emoção. Tinham saído quatro minutos antes de Avignon e já sobrevoavam Saint-Vallier, quando o pequeno avião encontrara uma inesperada e perigosa tempestade de granizo.

- O tempo pode ser ruim demais para este avião - dissera o piloto. - Acho melhor voltarmos.

- Voe acima do temporal.

- O avião não aguentaria e eu não posso saber a extensão dessa frente.

- Então continue. Estou pagando não só pelo transporte, mas também pelo horário. Tenho de estar em Genebra esta noite.

- Se formos forçados a descer no rio, poderemos ser capturados pelas patrulhas. Não temos registro de voo.

- Se formos forçados a descer no rio, eu comprarei as patrulhas. Foram compradas na fronteira em Port-Bou. Podem ser compradas de novo. Vá em frente.

- E se cairmos, senhora?

- Procure não cair.

Embaixo, na escuridão, os fachos de Chambéry foram acesos, uma fila depois da outra. O piloto inclinou a asa e baixou para o pouso. Segundos depois, tocavam o solo.

- Você é bom - disse a passageira, afrouxando o cinto. - O próximo piloto é tão bom assim?

- Melhor ainda, pois leva uma vantagem que eu não tenho. Conhece todos os pontos de radar no escuro dentro de um décimo de quilômetro. Uma competência assim custa caro, senhora.

- Estou disposta a pagar.

O hidravião levantou voo contra o vento da noite exatamente às dez e cinquenta e sete. O voo através da fronteira em Versoix seria feito a baixa altitude e levaria muito pouco tempo, no máximo de vinte minutos a meia hora. Era uma etapa da viagem para um especialista e o especialista na carlinga era um homem robusto, de barba e cabelos ruivos. Mascava um charuto meio apagado e falava inglês com o áspero sotaque da Alsácia-Lorena. Não disse coisa alguma durante os primeiros minutos de voo, mas quando falou deixou Althene estarrecida.

- Não sei qual é a mercadoria que transporta, senhora, mas há um alarma em torno de sua pessoa através de toda a Europa.

- Que é que está dizendo? Quem transmitiu esse alarma e como é que você sabe disso? Meu nome não foi mencionado. Isso me foi assegurado.

- O boletim irradiado para toda a Europa é muito descritivo. Provém da Interpol e é muito raro que ela procure uma mulher de sua... idade e sua aparência. Calculo que seu nome seja Holcroft.

- Não calcule nada.

Althene agarrou o cinto da cadeira, tentando controlar a sua emoção. Não sabia por que isso a agitava tanto. O homem do Har Sha’alav tinha dito que eles estavam em toda parte. Mas era enervante a verificação de que a Wolfsschanze dispunha de tamanha influência junto à Interpol a ponto de poder usar o seu aparelhamento. Tinha de livrar-se não só dos nazistas da Wolfsschanze, mas também do sistema legal legítimo. A armadilha fora bem preparada. Os seus crimes eram indiscutíveis. Viajara com um passaporte falso e agora não tinha mais passaporte. E não podia dar explicação para esses crimes. Se o fizesse, implicaria o filho numa trama tão terrível que ele seria destruído. Essa possibilidade tinha de ser encarada e seu filho talvez tivesse de ser sacrificado. E o mais doloroso de tudo era que a Wolfsschanze tivesse como cúmplices as autoridades legítimas... Estavam em toda parte. Depois que pusessem as mão nela, matá-la-iam antes que ela pudesse dizer o que sabia.

Poderia aceitar a morte, mas seria intolerável que a silenciassem. Perguntou ao piloto barbudo:

- Como sabe da existência desse boletim?

O homem deu de ombros.

- Como é que sei dos pontos de radar? A senhora me paga e eu pago a outros. Hoje em dia, não há mais possibilidade de um lucro líquido.

- E o boletim diz que... essa mulher é procurada?

- O alarma é muito estranho, senhora. Diz claramente que ela está viajando com documentos falsos, mas adverte que não deve ser capturada. O paradeiro dela deve apenas ser comunicado à Interpol de Paris, que transmitirá a informação para Nova York.

- Para Nova York?

- Foi de lá que veio o pedido. Da polícia de Nova York, de um tal Tenente Miles.

- Miles? Nunca ouvi falar nesse nome.

- Talvez a mulher procurada o conheça - disse o piloto.

Althene fechou os olhos e murmurou:

- Gostaria de ter um lucro líquido?

- Não sou comunista e a palavra não me ofende. De que se trata?

- Arranje-me um esconderijo em Genebra e me ajude a encontrar alguém.

O piloto olhou para os seus instrumentos e disse:

- Isso vai custar caro.

- Pagarei o que for preciso.

Johann von Tiebolt passeava de um lado para outro da suíte do hotel, como um animal enfurecido. Estavam com ele os irmãos Kessler. O vice-governador do cantão de Genebra saíra momentos antes. A tensão era visível entre os três homens.

- Ela está em Genebra - disse Von Tiebolt. - Não pode deixar de estar!

- É claro que está usando um nome falso - disse Hans Kessler, que tinha aos seus pés a sua maleta de médico. - Nós a encontraremos. É apenas uma questão de espalhar muitos homens pela cidade depois de dar-lhes uma descrição. O nosso vice-governador nos assegurou que isso não é problema.

Von Tiebolt parou no meio da sala.

- Não é problema? Espero que vocês e ele tenham examinado essa inexistência de problema. De acordo com o vice-governador, a polícia de Genebra recebeu um boletim da Interpol a respeito dela. Isso mostra simplesmente que ela viajou seis mil quilômetros sem ser encontrada. Seis mil quilômetros através de baterias de computadores, em aviões que atravessam fronteiras e pousam com manifestos, através de dois pontos de imigração pelo menos. E nada se sabe dela. Não se enganem. Ela é muito melhor do que nós pensávamos.

- Amanhã é sexta-feira - disse Erich. - Holcroft terá de apresentar-se amanhã e procurar-nos. Quando o tivermos conosco, teremos a mãe dele.

- Ele disse que ia hospedar-se no D’Accord, mas mudou de ideia. Não fez reserva até agora e Mr. Fresca já deixou o Hôtel George V. Não estou gostando disso. Deve ter acontecido alguma coisa.

Hans pegou o seu copo de uísque e disse:

- Creio que vocês estão deixando de ver o óbvio.

- Que é?

- Tanto quanto Holcroft sabe, há muita coisa errada. Julga que o estão perseguindo e que ele tem de ser cauteloso e viajar com muito cuidado. Eu ficaria surpreso se ele fizesse uma reserva dando o seu nome verdadeiro.

- É de presumir que o nome dado seja Fresca ou alguma variante do mesmo que eu reconheceria com facilidade - disse Von Tiebolt, repelindo a observação de Hans Kessler. - Não há nada de parecido em qualquer hotel de Genebra.

- E há alguma pessoa com o nome de Tennyson? - perguntou Erich.

- Helden? - murmurou Johann.

- Sim, Helden. Ela estava com ele em Paris. Pode muito bem ser que o esteja ajudando. Você mesmo sugeriu isso.

- Ora, Helden e seus imundos maus-elementos estão muito ocupados no momento, à procura dos homens do ODESSA que assassinaram o Coronel.

- Falkenheim foi assassinado? - perguntou Hans, surpreso.

- Falkenheim era o chefe do Nachrichtendienst ou, melhor, o último elemento ativo do grupo. Com a morte dele, a Wolfsschanze não encontrará mais oposição. O exército de judeus que ele congregou ficará sem chefe e o pouco que sabem será destruído com eles.

- Judeus? Com o Nachrichtendienst? - exclamou Erich. - De que é que você está falando?

- O kibbutz Har Sha’alav vai ser atacado. A culpa será atribuída aos terroristas do Rache. Tenho certeza de que o nome de Har Sha’alav tem sentido para você. Afinal, o Nachrichtendienst recorreu aos judeus de Har Sha’alav. Lixo aliado a lixo.

- Gostaria de uma explicação mais detalhada - disse Erich.

- Mais tarde. Temos de concentrar-nos nos Holcroft. Devemos sempre dar atenção às prioridades. E a prioridade absoluta é o documento em La Grande Banque de Genève, o que quer dizer que o filho está em primeiro lugar. É preciso encontrá-lo, isolá-lo e colocá-lo em absoluta quarentena. Para os nossos fins, não há necessidade de mais de trinta horas.

- Não estou entendendo - disse Hans. - Que é que vai acontecer em trinta horas?

- Nós três nos encontraremos com os diretores do banco - disse Erich. - Tudo será assinado e executado com a presença do advogado de La Grande Banque. Todas as leis suíças serão observadas, o dinheiro será liberado para Zurique e nós assumiremos o controle de tudo na manhã de segunda-feira.

- Mas trinta horas a contar da manhã de sexta-feira serão completadas...

- No sábado ao meio-dia - disse Von Tiebolt. - Nós nos encontraremos com os diretores do banco no sábado, às nove horas da manhã. Nunca houve qualquer dúvida sobre a nossa aceitação, exceto no espírito de Holcroft. Manfredi cuidou disso há muitos meses. Seremos não apenas aceitáveis, mas homens de reputação ilibada. A carta que tenho da Seção Cinco é decisiva. No sábado ao meio-dia, tudo estará pronto.

- O banco está tão ansioso por perder setecentos e oitenta milhões de dólares, que vai abrir num sábado?

- Fiz o pedido em nome de Holcroft - disse Johann, sorrindo -, em vista da necessidade de rapidez e de sigilo. Os diretores não se opuseram, pois ainda esperam receber algumas sobras. Holcroft também não se mostrará contrário quando souber. Ele tem razões para querer tudo terminado quanto antes. Ele se tem esforçado ao limite máximo de sua capacidade. Tem visto em mim e em Erich dois amigos, dois esteios, de que ele precisa desesperadamente. A programação excedeu as nossas esperanças.

- De fato - disse Kessler. - No sábado ao meio-dia, ele terá assinado a condição final.

- Que condição é essa? - perguntou Hans. - Que é que ele vai assinar?

- Nós dois também assinaremos - disse Von Tiebolt. - Trata-se de uma exigência das leis suíças para a liberação de contas dessa espécie. Nós nos encontraremos e declararemos compreender plenamente as nossas responsabilidades. Afirmaremos que nos conhecemos e confiamos uns nos outros. Em consequência disso, na hipótese de um de nós morrer antes dos outros, cada qual transmitirá aos sobreviventes todos os seus direitos e privilégios, com exceção do estipêndio de dois milhões de dólares, que passará, na forma da lei, aos herdeiros do morto. Cada um de nós se comprometerá expressamente a não legar esse dinheiro aos outros executores. Isso afastará qualquer motivo de traição.

O jovem Kessler deu um assobio de admiração.

- Perfeito e brilhante! A condição final, essa cláusula de morte, que os livra a todos de responsabilidade, não foi preciso incluir no documento, desde que é uma exigência legal. Se fosse incluída por sugestão de vocês, Holcroft poderia ter ficado desconfiado desde o início. Mas isso não aconteceu porque é a lei.

- Exatamente. E todas as normas legais terão de ser observadas. Daqui a um mês ou um mês e meio, isso talvez não tenha importância, mas enquanto não houver um progresso substancial não poderemos permitir alarmas.

- Compreendo isso - disse Hans. - Mas, na realidade, a partir do meio-dia de sábado, poderemos dar a Holcroft o fim que bem quisermos, não é?

Erich levantou a mão.

- Será melhor colocá-lo sob a ação de suas drogas por um período de tempo em que ele ainda possa ser visto. Funcionará como um deficiente mental até que uma boa porção do fundo seja distribuída. Depois disso, o caso não terá mais importância. O mundo estará muito preocupado com outras coisas para dar atenção a um mero acidente em Zurique. Neste momento, temos de fazer o que Johann diz. Temos de encontrar Holcroft antes que a mãe dele o encontre.

- E sob um pretexto ou outro - acrescentou Johann -, temos de mantê-lo isolado até a nossa reunião de depois de amanhã. Ela sem dúvida alguma procurará encontrar-se com ele, e assim poderemos saber onde ela está. Temos homens aqui em Genebra que podem encarregar-se do resto. - Hesitou um pouco e prosseguiu: - Como sempre, Hans, seu irmão tem ótimas ideias. Depois do sábado ao meio-dia, não teremos mais necessidade de Holcroft. Acho que a precaução de algumas semanas não é aconselhável.

- Mais uma vez você me inquieta - disse o professor. - Concordo com você em muitas coisas, mas não me parece que um desvio da estratégia nessa altura seja uma boa coisa. Holcroft deve permanecer disponível. Como você mesmo disse, até que se consiga substancial progresso, não deve haver alarmas.

- Não creio que chegue a haver - replicou Von Tiebolt. - A mudança que estou elaborando seria aprovada por nossos pais. Acelerei o cronograma.

- Fez o quê?

- Quando usei a palavra "alarmas", queria referir-me a aspectos legais e não a Holcroft. Os aspectos legais são constantes; uma vida humana nunca o é.

- Que cronograma? Por quê?

- Pense bem na pergunta e você mesmo pode responder. Qual foi a arma de guerra mais eficiente empregada pela Alemanha? Que estratégia teria feito a Inglaterra dobrar os joelhos, se não tivesse havido hesitação? Quais foram os relâmpagos que abalaram o mundo?

- A Blitzkrieg - disse o médico, respondendo pelo irmão.

- Sim. Ataques rápidos, profundos e imprevistos. Homens, armas e máquinas transpondo fronteiras com extraordinária rapidez, deixando no seu rastro confusão e devastação. Povos inteiramente divididos, incapazes de recompor as suas fileiras e até de tomar decisões. A Blitzkrieg, Erich. Devemos adaptar-nos a ela agora e não podemos hesitar.

- Abstrações, Johann! Quero fatos concretos!

- Muito bem. Fato concreto número um: John Tennyson escreveu um artigo que será distribuído amanhã pelas agências telegráficas por toda parte. O Tinamou deixou arquivos e se revelará que os mesmos foram encontrados com os nomes dos homens poderosos que o contrataram, datas e meios de pagamento. O efeito será de choques elétricos intensos nos centros de poder do mundo. Fato concreto número dois: no sábado, o documento de Genebra será executado e os fundos serão transferidos para Zurique. No domingo, nós nos mudaremos para a nossa sede lá. Tudo foi preparado e todas as comunicações estarão funcionando. Se Holcroft ainda estiver conosco, Hans tratará de narcotizá-lo; do contrário, estará morto. Fato concreto número três: na segunda-feira, os fundos serão considerados líquidos e estarão sob nosso controle. Usando a hora de Greenwich, começaremos a remeter fundos pelo telégrafo para os nossos homens, concentrando o nosso esforço nos objetivos primários. Começaremos aqui mesmo por Genebra. Depois, Berlim, Paris, Madri, Lisboa, Londres, Washington, Nova York, Chicago, Houston, Los Angeles e San Francisco. Às cinco, hora de Zurique, passaremos ao Pacífico. Honolulu, as Marshall e as Gilbert. Às oito, passaremos à Nova Zelândia, Auckland e Wellington. Às dez, será a vez da Austrália... Brisbane, Sydney, Adelaide... depois Perth e, passando por Cingapura, o Extremo Oriente. A primeira fase terminará em Nova Delhi, e aí temos financiado no papel mais de três quartos do globo. Fato concreto número quatro: ao fim de mais vinte e quatro horas, na terça-feira, teremos confirmação de que os fundos foram recebidos e convertidos em dinheiro, pronto para ser usado. Fato concreto número cinco: darei vinte e três telefonemas de Zurique para vinte e três homens poderosos que se serviram do braço do Tinamou. Ficarão sabendo que certas exigências lhes serão feitas nas semanas seguintes e que eles deverão atender a elas. Fato concreto número seis: a quarta-feira será o início. O primeiro assassinato será simbólico. O chanceler da Alemanha, o líder do Bundestag. Avançaremos para oeste numa Blitzkrieg. Na quarta-feira, o Código Wolfsschanze entrará em ação.

O telefone tocou. A princípio, pareceu que ninguém ouvira a campainha. Afinal, Von Tiebolt atendeu.

- Alô?

Olhou para a parede enquanto escutava em silêncio.

- Use as palavras que eu lhe dei - disse ele calmamente. - Mate-os.

- Que foi? - perguntou o médico.

Ainda com a mão no telefone, Von Tiebolt disse, sem elevar a voz:

- Era apenas uma possibilidade, mas mandei um homem a Neuchâtel observar uma pessoa e essa pessoa se encontrou com outra. Não faz mal, dentro em pouco ambas estarão mortas. Minha bela irmã e um traidor chamado Werner Gerhardt.

Aquilo não fazia sentido, pensava Holcroft ao ouvir as palavras de Willie Ellis pelo telefone. Tinha telefonado para Willie no Hôtel d’Accord de uma cabina pública na movimentada Place Neuve, em Genebra, esperando que o decorador já tivesse feito contato com Althene. Isso não havia acontecido e ela não estava no hotel. Mas sua mãe tinha dito que se hospedaria no Hôtel d’Accord e que se encontraria com ele lá.

- Você a descreveu, Willie? Disse que era uma mulher de setenta anos, bem alta?

- Naturalmente. Disse tudo o que você mencionou há meia hora. Não há ninguém com o nome de Holcroft nem nenhuma mulher que corresponda à descrição. Não há um só americano hospedado no hotel.

- Não entendo.

Noel tentou refletir. Tennyson e os Kessler só deveriam chegar à noite e ele não tinha ninguém a quem recorrer. Estaria sua mãe fazendo o mesmo que ele estava fazendo? Tentava falar com ele de fora do hotel, pensando que ele estivesse hospedado lá?

- Willie, quer telefonar para a portaria e perguntar se há algum recado para mim? Pode usar meu nome e dizer que fui eu que lhe telefonei pedindo.

- Acho que você não compreendeu bem as regras aqui em Genebra, Noel. Recados entre duas pessoas não são dados a terceiros e o D’Accord não faz exceção à regra. Além disso, quando perguntei por sua mãe, o homem da portaria me olhou de maneira muito esquisita. Falei-lhe da maneira mais britânica possível, mas o sujeito nem esperou que eu acabasse e fechou-se em copas.

- Tente outra vez.

- Acho que há um meio melhor. Posso... Espere um pouco, Noel. Estão batendo na porta. Vou ver quem é e já volto.

Noel ouviu o barulho da porta que se abria. Houve vozes indistintas que pareciam discutir. Depois, passos que se afastavam. Holcroft ficou esperando que Willie voltasse ao telefone.

Ouviu uma tosse, mas não era só tosse. Que era? O começo de um grito? Seria o começo de um grito?

- Willie!

Silêncio. Passos de novo.

- Willie!

Noel sentiu de repente um frio no coração. Lembrou-se então de outras palavras, quase as mesmas que ouvira em Nova York.

Estão batendo. Espere um pouco que eu vou ver quem é...

Outro inglês.

Peter Baldwin...

- Willie! Willie! Onde está você?

Houve então um estalo e o telefone foi desligado.

Meu Deus! Que tinha ele feito?

Gotas de suor brotaram-lhe da fronte e as mãos tremiam.

Tinha de chegar ao Hôtel d’Accord e encontrar Willie o mais depressa possível, socorrê-lo. Se, ao menos, aquela dor deixasse de martelar-lhe a cabeça!

Saiu da cabina telefônica e foi até o seu carro, que deixara parado junto ao passeio. Ligou o motor sem saber ao certo onde estava, nem para onde ia. O Hôtel d’Accord! Ficava na Rue des Granges, perto do Puits-Saint-Pierre, numa rua marginada de velhas mansões. O hotel ficava numa subida... Mas como é que se ia para lá?

Foi até a esquina e parou no sinal fechado. Gritou pela janela para uma mulher que guiava um carro ao lado dele.

- Por favor! Como é que se vai para a Rue des Granges?

A mulher não lhe deu nenhuma atenção. Virou a cabeça e olhou em frente.

- Por favor, há uma pessoa ferida, gravemente ferida. Não falo bem francês, nem alemão, mas quer me fazer essa caridade?

A mulher voltou-se para ele, olhou-o por um instante e perguntou:

- Rue des Granges?

- Sim!

Ela lhe ensinou rapidamente o caminho. Depois de cinco ruas, virar à direita, descer a ladeira e virar à esquerda...

O sinal abriu. Noel agradeceu e pisou no acelerador, tentando guardar o caminho na memória.

Nunca soube como encontrou a velha rua, mas de repente estava lá. Subiu a ladeira e viu o letreiro dourado: "HÔTEL D’ACCORD".

Com as mãos trêmulas, estacionou o carro e saltou. Não conseguiu fechar o carro. A mão tremia tanto que ele não acertava com a fechadura. Teve de comprimir as duas mãos contra o metal e prender a respiração para ter um pouco de firmeza. Mas sabia que tinha de controlar-se. Era preciso agir com muita cautela e muita ponderação. Já vira o inimigo em outras ocasiões e lutara contra ele. Não podia facilitar.

Olhou para a entrada do hotel. Além das portas de vidro, o porteiro estava falando com alguém no vestíbulo. Se o inimigo surpreendera Willie, devia estar à espera dele.

Havia ao lado do prédio do hotel uma estreita entrada, onde se lia na parede a palavra "livraisons"[37].

Levantou a gola da capa e entrou pela passagem, com as mãos nos bolsos, sentindo o metal do revólver sob a mão direita e o cilindro perfurado do silenciador na esquerda. Pensou em Helden, que lhe havia dado aquela arma. Onde estaria ela? Que é que estava acontecendo?

Nada será mais para você o que era...

Nada mesmo.

Chegou ao fim da passagem no momento em que um homem com uma comprida blusa branca ia saindo de uma porta. Estendeu a mão e sorriu para o homem.

- Perdão. Fala inglês?

- Claro, monsieur. Isto aqui é Genebra.

Era uma pilhéria inconsequente, mas o americano do sorriso fácil lhe pagou cinquenta francos pela sua blusa comprida, o dobro do que ela valia quando nova. A troca foi feita rapidamente. Holcroft tirou a sua capa, colocou-a dobrada no braço, vestiu a blusa do homem e entrou.

Willie reservara uma suíte no terceiro andar do hotel. A porta era a última do corredor para o lado da rua. Entrou por um corredor escuro e passou a uma escada mais escura. No patamar, havia um carrinho encostado à parede, três pequenas caixas fechadas de sabão e uma pela metade. Pegou as três caixas cheias, carregou-as ao ombro e transpôs alguns degraus de mármore, na esperança de que pudesse ser tomado ainda que vagamente por um encarregado de entregas.

- Jacques! C’est vous?[38] - perguntou alguém com voz agradável de baixo.

Holcroft voltou-se e encolheu os ombros.

- Pardon. Je croyais que c’était Jacques, qui travaille chez la fleuriste[39].

- Non - murmurou Noel, continuando a subir a escada.

Chegou ao terceiro andar, colocou as caixas de sabão na escada e tirou a blusa. Vestiu a capa, apalpou o revólver e abriu a porta lentamente. O corredor estava deserto.

Foi até a última porta, prestando atenção para algum ruído. Não ouviu nada. Lembrou-se de haver agido do mesmo modo, havia um tempo enorme, num lugar chamado Montereau. Tinha havido nessa ocasião tiros e morte.

Que teria acontecido a Willie, ao bom Willie, que tinha sido seu amigo quando ele não podia contar com mais ninguém? Tirou a pistola e estendeu a mão para a maçaneta, afastando-se o mais possível da porta.

Ao mesmo tempo que torceu a maçaneta, meteu o ombro na porta com toda a força. A porta se escancarou e foi bater com estrondo na parede ao lado; não estava trancada.

Avançou com o corpo encurvado, levando a pistola à frente. Não havia ninguém no quarto, mas uma janela estava aberta e o vento frio do inverno balançava as cortinas. Por que deixavam uma janela aberta com um tempo daqueles?

Viu então as manchas de sangue no peitoril da janela. Alguém tinha sangrado profusamente ali. Do lado de fora da janela, havia uma escada de incêndio, em cujos degraus havia também manchas de sangue. Quem descera por ali estava gravemente ferido.

- Willie! Onde está você, Willie?

Correu para o quarto.

Silêncio. Ninguém.

- Willie!

Viu então marcas estranhas numa porta fechada. Era uma porta muito ornamentada com caneluras douradas e flores-de-lis em relevo, pintada de rosa, branco e azul-claro. Mas o que lhe prendeu o olhar não foi o desenho rococó da porta.

Foram as marcas ali deixadas por mãos ensanguentadas.

Correu para a porta e abriu-a com tamanha violência que ela se soltou um pouco das dobradiças.

O que ele viu encheu-o de horror. O corpo mutilado de Willie Ellis estava dobrado sobre a borda da banheira vazia, inteiramente ensanguentado. O peito e o estômago estavam rasgados por facadas e os intestinos lhe saíam por baixo da camisa empapada de sangue. O pescoço estava cortado e a cabeça quase separada do tronco, enquanto os olhos ainda estavam esgazeados na última agonia.

Noel ficou completamente aturdido, sentindo faltar-lhe o chão sob os pés.

Viu então escrita com sangue nos ladrilhos, acima do corpo mutilado, a palavra

NACHRICHTENDIENST


38

Helden tinha acertado o caminho três quilômetros além da bifurcação na estrada que saía de Près-du-Lac. Pedira ao porteiro da hospedaria que lhe emprestasse uma lanterna elétrica e iluminava à sua frente o caminho para a casa de Werner Gerhardt.

Era menos uma casa, pensou Helden ao defrontar a estranha estrutura, que uma fortaleza de pedra em miniatura. Era muito pequena, menor até do que a cabana do Coronel, mas as paredes pareciam extremamente espessas. A luz da lanterna mostrava grandes pedras que se projetavam das paredes dos dois lados que ela podia ver e o teto também era pesado. As poucas janelas existentes eram bem altas e estreitas. Nunca vira uma casa assim. Parecia sair de um conto de fadas e ser sujeita a múltiplos encantamentos.

Resolvia uma questão provocada pelo que lhe dissera o porteiro depois que ela voltara da aldeia, algumas horas antes.

- Como é? Esteve com o Maluco? Dizem que ele foi em outros tempos um grande diplomata, antes que os parafusos se desarranjassem na cabeça dele. Dizem que alguns velhos amigos ainda se interessam por ele, porém nenhum mais vem vê-lo. Mas cuidaram do homem e mandaram construir para ele uma casa que parece mais um castelo de tão forte. Não há tempestade que a jogue no chão.

Nem tempestade nem neve podia ter abalado aquela casa, pensou Helden. Os amigos deviam ter sido bem dedicados.

Ouviu o barulho de uma porta que se abria e levou um susto. Não havia sinal de portas nas paredes dos lados ou dos fundos. Então, a luz da lanterna caiu sobre Werner Gerhardt, que a chamava do canto da casa que dava para o lago.

Como poderia o homem ter ouvido a aproximação dela?

- Veio, então - disse ele, sem o menor traço de loucura na voz. - Entre depressa, pois essa floresta é muito fria. Venha para a beira do fogo. Vamos tomar chá.

A sala parecia maior do que a estrutura externa fazia supor. Os móveis pesados eram velhos mas confortáveis, numa profusão de couro e de madeira. Helden estava sentada num sofá, bem aquecida pelo fogo e pelo chá.

Tinha falado durante alguns minutos e Gerhardt respondera à primeira pergunta antes mesmo que ela tivesse oportunidade de formulá-la.

- Vim de Berlim para cá há cinco anos, passando por Munique, onde minha proteção foi estabelecida. Eu tinha de passar por uma vítima do ODESSA, um homem desarvorado que tinha de levar o resto da vida na senilidade e na solidão. Sou um tipo ridículo. Um médico na clínica mantém minha ficha em dia. Chama-se Litvak, se algum dia precisar dele. É só quem sabe por aqui que eu estou no meu juízo perfeito.

- E havia necessidade dessa proteção?

- Vai compreender isso à medida que conversarmos. Antes de mais nada, sei que ficou surpresa de eu perceber a sua presença lá fora, não foi? Esta casinha parece primitiva, mas é dotada de muitos requintes técnicos. Posso ouvir um sussurro daqui.

O sorriso desapareceu do rosto do velho e ele perguntou:

- Que foi exatamente que houve com Klaus?

Helden contou tudo e ele ficou por alguns minutos em silêncio, com os olhos cheios de dor.

- Animais! Não podem nem matar um homem com algum espírito de respeito. Ainda por cima têm de mutilar. Malditos!

- Quem são eles?

- A falsa Wolfsschanze. Os animais. Não as águias.

- Águias? Não compreendo.

- O plano para o assassinato de Hitler em julho de 1944 foi uma conspiração dos generais. Os militares, na sua maioria gente inteligente e honesta, não concordavam com os horrores cometidos por Adolf Hitler e os seus sequazes dementes. Não era essa a Alemanha pela qual lutavam. Pretendiam assassinar Hitler, pleitear uma paz justa e denunciar os assassinos e sádicos que governavam em nome do Reich. Rommel chamou esses homens as verdadeiras águias da Alemanha.

- As águias... - murmurou Helden. - Não conseguirão deter as águias...

- Que foi que disse? - perguntou o velho.

- Nada. Continue.

- Como se sabe, os generais falharam e isso desencadeou um grande morticínio. Duzentos e doze oficiais, muitos deles apenas vagamente suspeitos, foram torturados e executados. De repente, o nome Wolfsschanze se tornou o pretexto para eliminar todas as dissidências através do Reich. Milhares de pessoas que tinham externado pequenas críticas políticas ou militares foram presas por meio de provas falsas e executadas. A maioria nunca ouvira falar de uma sede do Estado-Maior chamada Wolfsschanze e, muito menos, de um complô contra Hitler. Rommel recebeu ordem de suicidar-se, como castigo por ter-se negado a participar de cerca de cinco mil execuções a mais. Os piores receios dos generais se realizaram: os fanáticos assumiram o domínio total da Alemanha. Era isso que tinham querido impedir com a Wolfsschanze. Agora a Wolfsschanze real passava a ser a deles.

- A Wolfsschanze deles... - murmurou Helden. - A Wolfsschanze tem duas faces.

- Sim - disse Gerhardt. - Havia outra Wolfsschanze, outro grupo de homens que também queriam ver Hitler morto, mas por uma razão inteiramente diferente. Esses homens pensavam que ele havia falhado. Viam as fraquezas e a capacidade diminuída de Hitler. Mas queriam suplantar a loucura que era ele com outra loucura muito mais eficiente. Dos seus planos não constava pedido de paz, mas apenas o prosseguimento mais encarniçado da guerra. Tinham em projeto táticas militares que não se empregavam desde o tempo em que os mongóis desceram da Ásia há muitos séculos. Povos inteiros presos como reféns, execuções em massa pelas mais leves infrações, um regime de terror tão medonho que o resto do mundo proporia uma trégua simplesmente em nome da humanidade. Era essa a outra Wolfsschanze, a que nunca deveria existir. Mas os componentes dessa Wolfsschanze ainda estão empenhados nela.

- Mas esses homens não fizeram parte da conspiração para matar Hitler? - perguntou Helden. - Como foi que conseguiram escapar?

- Tornando-se os mais fervorosos partidários de Hitler. Reagruparam-se prontamente, fingiram repulsa pela traição e voltaram-se contra os outros. Como sempre, o fanatismo e a ferocidade deles impressionaram Hitler, que era no fundo fisicamente covarde. Encarregou alguns deles das execuções e ficou encantado com a dedicação que demonstraram.

Helden moveu-se para a borda do sofá.

- Diz que esses homens ainda estão empenhados nessa outra Wolfsschanze. Mas muitos deles já devem ter morrido...

O velho deu um suspiro.

- Você não sabe mesmo. Klaus disse que você não sabia.

- Sabe quem eu sou? - perguntou Helden.

- Claro que sei. Era você quem botava as cartas no correio.

- Botei muitas cartas no correio para o Coronel. Nenhuma, porém, para Neuchâtel.

- Recebi todas as que me eram destinadas.

- Ele escrevia a meu respeito?

- Muito. Tinha uma grande amizade por você.

O sorriso de Gerhardt era cordial, mas se desvaneceu quando ele voltou a falar.

- Você me perguntou como os homens da falsa Wolfsschanze podiam estar ainda empenhados nela depois de tantos anos. De fato, quase todos morreram. Mas não são eles que continuam em atividade; são os filhos.

- Os filhos?

- Sim. Estão em toda parte, em todas as cidades, províncias e países, em todas as profissões e todos os grupos políticos. A função deles é exercer uma pressão constante para convencer o povo de que poderia levar uma vida muito melhor se houvesse homens fortes que protestassem contra as fraquezas. Vozes exasperadas estão tomando o lugar dos remédios genuínos; o rancor suplanta a razão. Isso está acontecendo em toda parte e pouca gente sabe que se trata de uma gigantesca preparação. As crianças cresceram.

- De onde vieram?

- Agora nós chegamos ao âmago da questão. Muitas coisas vão ser esclarecidas. Houve em 1945 um movimento que tomou o nome de "Operação Sonnenkinder". Milhares de crianças, entre as idades de seis meses e dezesseis anos, foram transferidas da Alemanha para todos os pontos do globo...

Enquanto Gerhardt contava a história, Helden se sentia fisicamente mal.

- Foi elaborado um plano mediante o qual milhões de dólares seriam postos à disposição dos Sonnenkinder ao fim de certo período, calculado em trinta anos em função de projeções dos ciclos econômicos.

A breve exclamação de Helden interrompeu-o por um momento.

- Foi um plano concebido por três homens...

Helden não pôde conter um pequeno grito.

- Esses três homens tinham acesso a fundos incalculáveis, e um deles foi talvez o maior gênio financeiro do nosso tempo. Foi ele e só ele quem congregou as forças econômicas internacionais que asseguraram o advento de Adolf Hitler. E quando o seu Reich falhou, ele tratou imediatamente de criar outro.

- Heinrich Clausen... - murmurou Helden. - Oh! Não! Noel! Noel!

- Holcroft nunca foi mais que um instrumento necessário para que os outros conseguissem o dinheiro. Pessoalmente, não sabe de nada.

- Então... - murmurou Helden, com uma dor ainda maior espelhada nos olhos claros.

- Sim, um moço foi escolhido, um dos filhos. Um rapaz extremamente brilhante, que fazia parte da Juventude Nazista. Jovem, talentoso e belo. Foi observado, educado e treinado para a sua missão na vida.

- Johann... Meu Deus, é Johann!

- Sim, é Johann von Tiebolt. É ele quem espera levar os Sonnenkinder ao domínio do resto do mundo.

Helden sentiu o rufar de tambor dentro de sua cabeça crescer, até que a vista se turvou, a luz desapareceu e ela mergulhou no vácuo.

Abriu os olhos, sem saber quanto tempo havia ficado inconsciente. Gerhardt deitara-a no sofá e lhe aproximava, dos lábios um cálice de conhaque. Tomou um gole e sentiu o calor percorrer-lhe o corpo, reanimando-a e fazendo-a voltar àquele terrível momento.

- Johann... - murmurou ela, sentindo ainda um espasmo de dor ao pronunciar o nome. - Foi por isso então que o Coronel...

- Foi por isso, sim, que Klaus a atraiu para ele. A filha rebelde de Von Tiebolt, nascida no Rio e separada do irmão e da irmã. Era real essa separação, ou você estava sendo usada para infiltrar-se nas fileiras da mocidade alemã errante e livre?... Era preciso termos certeza a esse respeito.

- Eu era para ser usada e depois morta - disse Helden, estremecendo. - Tentaram matar-me em Montereau. Meu Deus, meu irmão!...

O velho levantou-se com alguma dificuldade e disse:

- Creio que está errada. Aquela foi uma tarde trágica e cheia de erros. Os dois homens que os seguiram eram nossos. As instruções que levavam eram muito claras. Tinham de saber tudo o que fosse possível a respeito de Holcroft, que era então para nós um fator incógnito. Fazia parte da Wolfsschanze, da Wolfsschanze deles? Se era um simples comparsa do pacto que de nada sabia, nós o convenceríamos a ficar do nosso lado. Se fizesse parte da Wolfsschanze, teria de ser morto. Se fosse esse o caso, você deveria ser levada de lá, sem sofrer coisa alguma e antes que se visse implicada no caso. Por motivos que desconhecemos, nossos homens resolveram matar Holcroft.

- Johann mandou um homem seguir-nos naquela tarde. Queria saber quem é que estava tão interessado em Noel.

- Já sei. A nossa gente viu esse homem e calculou que se tratasse de um encontro dele com Von Tiebolt, com um emissário dos Sonnenkinder. Não precisaram de nada mais para atacá-lo.

- A culpa foi minha - disse Helden. - Quando aquele homem me levou para fora da multidão, fiquei apavorada. Ele me disse que eu tinha de acompanhá-lo. Falava alemão e eu julguei que fizesse parte do ODESSA.

- Não era nada disso. Era um judeu de um lugar chamado Har Sha’alav.

- Um judeu?

Gerhardt falou brevemente do estranho kibbutz do deserto do Neguev.

- São o nosso pequeno exército. Manda-se um telegrama e eles despacham alguns homens. Só isso.

Helden pensou na carta do Coronel, segundo a qual deviam ser dadas ordens aos homens corajosos que guarneceriam a barricada final.

Compreendia perfeitamente as palavras do Coronel.

- Vai mandar esse telegrama?

- Você é quem vai mandar o telegrama. Falei há pouco no Dr. Litvak, um médico da clínica. Tem nos seus arquivos a minha ficha médica à disposição de quem sentir alguma curiosidade. É um dos nossos. Tem um equipamento de rádio de grande alcance e me procura diariamente. É muito perigoso ter um telefone aqui. Vá procurá-lo esta noite. Ele sabe os códigos e se comunicará com o Har Sha’alav. Um bom grupo deve ser mandado para Genebra. Tem de dizer a eles o que devem fazer com Johann, com Kessler e até com Noel Holcroft, se não for mais possível recuperá-lo. Aquele dinheiro não pode ser distribuído.

- Eu convencerei Noel.

- Para seu bem, espero que o consiga. Mas pode não ser tão simples quanto lhe parece. Ele foi muito bem trabalhado. Acredita até que está honrando a memória de um pai que não conheceu.

- Como sabe disso?

- Por intermédio da mãe dele. Acreditamos durante muitos anos que ela fizesse parte do plano de Clausen e esperamos todo esse tempo. Por fim, fomos procurá-la e soubemos que ela nunca participara desses planos. Era apenas a ponte e a fonte para a utilização perfeita do dinheiro. Quem senão Noel Clausen-Holcroft, cujas origens tinham sido obliteradas de todos os registros salvo no seu espírito, poderia aceitar as condições de segredo exigidas pelo documento de Genebra? Um homem normal teria procurado assistência legal e financeira. Mas Holcroft, acreditando no pacto, guardou tudo para si.

- Mas era preciso que o convencessem disso!? - exclamou Helden. - Noel é um homem de personalidade forte e de admirável retidão. Como foi que conseguiram convencê-lo?

- Como pode alguém convencer-se de que sua causa é justa? Vendo que há gente desesperadamente empenhada em criar-lhe dificuldades. Soubemos do que houve com Holcroft no Rio, do seu encontro com Maurice Graff e das queixas que fez junto à embaixada. Tudo aquilo foi uma farsa. Ninguém tentou a sério matá-lo no Rio, mas Graff queria que ele pensasse o contrário.

- Graff é do ODESSA.

- Nunca foi. É um dos chefes da falsa Wolfsschanze, infelizmente a única Wolfsschanze agora. Ou, melhor, era. Maurice Graff foi assassinado.

- Como?

- Foi morto a tiros ontem por um homem que deixou um bilhete que dizia tratar-se de uma vingança de judeus portugueses. Mas foi morto por ordem de seu irmão, é claro. Graff estava se tornando muito rabugento e já havia cumprido a sua finalidade.

Helden colocou o cálice de conhaque no chão e sentiu que tinha de fazer uma pergunta.

- Herr Gerhardt, por que não tratou de denunciar publicamente o pacto de Genebra pelo que realmente era?

- Porque a denúncia de Genebra nos deixaria apenas na metade do caminho. Logo que fizéssemos a denúncia, seríamos mortos. Mas isso era o de menos. O resto é que era importante.

- Que resto?

- Escute, quem são os Sonnenkinder? Quais são os seus nomes? Onde estão? Uma lista completa foi organizada há trinta anos e deve estar em poder de seu irmão. É bem grande, com centenas de páginas, e está decerto bem escondida. Von Tiebolt morreria na fogueira sem revelar o esconderijo. Mas há outra lista! É bem menor e talvez não passe de algumas páginas. Deve estar com ele ou perto dele. Nessa lista estão relacionadas, com as suas identidades, as pessoas que devem receber os fundos. São os chefes de confiança da Wolfsschanze. Essa é a lista que tem de ser encontrada. Peça aos soldados do Har Sha’alav que a procurem. Impedir a entrega do dinheiro e encontrar essa lista. É a nossa única esperança.

- Falarei com eles - disse Helden. - E sei que a encontrarão.

Fez uma pausa e murmurou:

- A Wolfsschanze... Até a carta escrita a Noel Holcroft há mais de trinta anos, a carta que continha súplicas e ameaças, fazia parte dela.

- Suplicavam e ameaçavam em nome das águias, mas procediam como animais.

- Ele não podia saber disso.

- Não podia, certamente. O nome da Wolfsschanze merece respeito e é um símbolo de bravura. Era a única Wolfsschanze em que Holcroft podia pensar. Não tinha conhecimento da outra Wolfsschanze, a imunda. Ninguém tinha aliás, salvo uma pessoa.

- O Coronel?

- Sim, Falkenheim.

- Como ele conseguiu escapar em 1944?

- Graças à mais comum das coincidências, uma confusão de identidades. Entre os gigantes da Wolfsschanze, estava o comandante do setor belga, Alexander von Falkenhausen. Falkenhausen, Falkenheim. Klaus Falkenheim havia saído da Prússia Oriental para uma reunião em Berlim. Quando a tentativa de assassinato fracassou, Falkenhausen conseguiu falar com Klaus pelo rádio e avisá-lo. Pediu a Klaus que se mantivesse afastado de tudo. Ele, Falkenhausen, seria o "falcão"[40] capturado. Klaus deveria aparentemente ficar fiel a Hitler; Klaus objetou, mas compreendeu. Havia muito que fazer e alguém tinha de sobreviver.

- Onde está a mãe de Noel? - perguntou Helden. - Que foi que ela soube?

- Agora sabe de tudo. Vamos esperar que ela não tenha perdido a cabeça, tomada de pânico. Nós a perdemos de vista no México, mas pensamos que está tentando comunicar-se com o filho em Genebra. Não deverá conseguir, e, no momento em que for vista pelo outro lado, estará morta.

- Temos de encontrá-la.

- Decerto, mas não pondo em perigo outras coisas. Não se esqueça de que agora só há uma Wolfsschanze, e tudo o que importa é esmagá-la. Quando sair daqui vá procurar o Dr. Litvak. A casa dele fica ao lado da clínica, num morro, dois quilômetros ao norte. O rádio funciona bem lá. Vou lhe dar...

Um zumbido encheu de repente a sala. Helden sentiu a vibração através das paredes e levantou-se, alarmada. Gerhardt olhou por uma das estreitas janelas. Parecia estar examinando as vidraças.

- Há um espelho na vidraça que capta as imagens na escuridão. É um homem que eu reconheço, mas não sei quem é.

Foi até a mesa, apanhou uma pequena pistola e entregou-a a Helden.

- Que é que eu faço?

- Esconda-a debaixo da saia.

- Não sabe quem é? - perguntou Helden, levantando a saia e sentando-se numa cadeira em frente à porta.

- Não. Chegou ontem e eu o vi na praça. Pode ser um dos nossos ou ser um inimigo. Não sei...

Helden ouviu passos do lado de fora. Houve um momento de silêncio e, em seguida, o homem bateu na porta.

- Herr Gerhardt!

O velho respondeu, no tom abobalhado com que falara na praça.

- Quem é a estas horas? Vá-se embora que eu estou rezando...

- Trago-lhe notícias do Har Sha’alav.

O velho deu um suspiro de alívio e disse a Helden:

- É um dos nossos. Ninguém mais sabe do Har Sha’alav.

Gerhardt abriu a porta. Quase no mesmo instante, Helden deu um pulo da cadeira e se jogou ao chão. O homem à porta trazia na mão uma espingarda de cano comprido. O tiro que deu ressoou sinistramente no espaço estreito da sala. Gerhardt cambaleou para trás com o corpo ensanguentado e foi cair em cima da mesa.

Escondida atrás da poltrona de couro, Helden levou a mão à pistola que escondera debaixo da saia.

Houve outro tiro, que foi cravar-se no couro da poltrona. Mais outro, e Helden sentiu uma dor fria na perna, enquanto o sangue se lhe espalhava pela meia.

Levantou a pistola e puxou o gatilho repetidamente, sem fazer pontaria, contra o vulto enorme que tomava toda a porta.

Ouviu o homem gritar. Em pânico, ela se chocou contra a parede, como um inseto perseguido, prestes a perder a insignificante vida. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto quando ela tornou a levantar a pistola e atirou até os tiros cessarem e haver o estalo seco da arma vazia. Gritou aterrorizada. Não tinha mais balas. Só esperava que a morte fosse rápida.

Ouviu os próprios gritos, como se estivesse flutuando muito alto e olhasse para a confusão e para a fumaça embaixo.

Havia fumaça. Enchia a sala, ardia-lhe nos olhos, cegava-a e sufocava-a. Não compreendia nada do que estava acontecendo.

Ouviu então um farrapo de voz.

- Minha filha...

Era Gerhardt! Soluçando, encostou-se à parede e levantou-se. Arrastando a perna ensanguentada, foi até o lugar de onde partira a voz do velho.

A fumaça começava a dissipar-se. Via bem o vulto do assassino. Estava deitado de costas e tinha pequenos círculos vermelhos no pescoço e na testa. Estava morto.

Gerhardt estava morrendo. Helden foi até junto dele e aproximou o rosto do dele, enquanto as lágrimas caíam sobre o corpo do velho.

- Minha filha... Vá procurar Litvak. Ele tem de falar com o Har Sha’alav. É preciso ficar longe de Genebra...

- Longe de Genebra?

- Você... Sabem que você veio me ver... A Wolfsschanze sabe... Você é tudo o que resta...

- Como?

- Você agora é o Nachrichtendienst...

Com essas palavras, a cabeça de Gerhardt descambou para o lado. Estava morto.


39

O piloto ruivo descia rapidamente a Rue des Granges em direção ao carro estacionado. Dentro do carro, Althene viu-o aproximar-se e ficou alarmada. Por que Noel não vinha em companhia dele? E por que estava andando tão depressa?

O piloto entrou no carro, sentou-se ao volante e esperou um pouco até recuperar o fôlego.

- Há uma grande confusão no hotel, senhora. Mataram um homem lá dentro.

- Noel? Foi meu filho?

- Não. Foi um inglês.

- Quem era ele?

- Um homem chamado Ellis, William Ellis.

- Deus do céu! Noel tinha um amigo em Londres chamado Ellis, de quem falava muito. Tenho de saber onde está meu filho!

- No hotel, ele não está. Se há alguma relação entre o inglês e seu filho, pior ainda, porque a polícia está em todos os cantos do hotel. E ainda mais: há um alerta sobre sua pessoa.

- Procure um telefone.

- Está bem. Darei o telefonema e, depois disso, vou pedir desculpas e encerrar meus serviços. Não quero estar metido em crimes de morte. Isso não faz parte do nosso trato.

Rodaram durante quase quinze minutos, até o piloto convencer-se de que não estavam sendo seguidos.

- Por que alguém nos iria seguir? - perguntou Althene. - Ninguém me viu e você não mencionou meu nome, nem o de Noel.

- Não é da senhora que eu tenho receio, senhora. É de mim. Não tenho a menor intenção de ser seguido pela polícia de Genebra. Já tivemos alguns encontros no passado e devo lhe dizer que não nos damos muito bem.

Chegaram ao distrito da margem do lago e o piloto começou a procurar um telefone mais ou menos isolado. Viu afinal uma cabina vazia e parou o carro ao lado. Althene ficou olhando enquanto ele telefonava. Quando o homem voltou, tornou a entrar no carro e ficou alguns segundos de cara fechada.

- Não gosto disso. Não gosto mesmo - murmurou ele.

- Que foi que houve?

- O que houve é que estavam esperando seu telefonema, e isso não é nada bom.

- É claro. Meu filho me deu esse telefone.

- Mas não era a senhora quem estava ao telefone. Era eu.

- Que diferença faz? Pedi a alguém que telefonasse por mim. Que foi que eles disseram?

- Eles, não. Ele, o homem que falou comigo. E o que ele disse foi muito claro e explicado. Nesta cidade, senhora, ninguém dá informações com tanta facilidade assim. Só se dizem as coisas claramente quando se reconhecem as vozes ou quando as pessoas dizem determinadas palavras que indicam que têm o direito de saber.

- Qual foi a informação? - perguntou Althene, um pouco irritada.

- Um encontro o mais depressa possível dez quilômetros para o norte, na estrada de Vésenaz. Fica do lado leste do lago. O homem disse que seu filho estaria lá.

- Vamos, então.

- Vamos, senhora?

- Gostaria de ampliar o meu trato com o senhor.

Ela ofereceu ao homem quinhentos dólares americanos.

- A senhora é louca - murmurou ele.

- Estamos combinados, então?

- Com a condição de que, até o momento em que a senhora e seu filho estiverem juntos, a senhora faça exatamente o que eu disser. Não posso aceitar tanto dinheiro por um fracasso. Entretanto, se ele não estiver lá, não me interessa. Receberei o dinheiro de qualquer maneira.

- Fique descansado. Vamos.

- Muito bem - disse o piloto, engrenando o carro.

- Por que está tão desconfiado? Tudo me parece muito lógico.

- Vou lhe dizer, senhora. Esta cidade tem suas próprias regras de comportamento. O telefone em Genebra é apenas um mensageiro. Nesses casos, sempre se dá um segundo número, e por este a senhora deveria falar diretamente com seu filho. Quando sugeri isso, o homem me disse que não havia tempo.

- É bem possível.

- Talvez, mas não estou gostando da coisa. A telefonista disse que ia me ligar para a portaria, mas o homem com quem eu falei não era da portaria.

- Como é que sabe?

- Os empregados de hotel podem ser arrogantes e muitas vezes o são, mas não falam rispidamente. Esse falou. Além disso, não era gente de Genebra. Tinha um sotaque que eu não pude identificar. Vai fazer exatamente o que eu disser, senhora.

Von Tiebolt recolocou o fone no gancho com um sorriso de satisfação.

- Ela está em nossas mãos - disse ele, encaminhando-se para o sofá onde Hans Kessler aplicava no rosto uma bolsa de gelo, num local onde o médico particular do vice-governador não achara necessário dar pontos.

- Vou com você - disse Hans, com o rosto contorcido de raiva e dor.

- Sou contrário - disse Erich da poltrona em que estava sentado.

- Você não pode ser visto - acrescentou Von Tiebolt. - Diremos a Holcroft que você se atrasou.

- Não! - exclamou o médico, dando um murro na mesinha de café. - Digam o que quiserem a Holcroft, mas eu irei também esta noite. Aquela sujeita é a culpada de tudo isso!

- Acho que o culpado é você - disse Von Tiebolt. - Havia um serviço para ser feito e você quis fazê-lo. Mostrou-se mesmo ansioso por isso. É sempre assim. Você adora a violência.

- Ele não queria morrer! O imundo travesti não queria morrer! - gritou Hans. - Tinha a força de cinco leões. Vejam o que fez em meu estômago.

Levantou a camisa e mostrou na barriga uma série de pontos.

- Despedaçou-me com as mãos! Com as mãos!

- Você ainda teve sorte de sair de lá sem ser visto. E tem de sair deste hotel o quanto antes. A polícia está interrogando todo mundo.

- Não virá aqui - retorquiu Hans, exasperado. - O nosso amigo cuidará disso.

- Apesar disso, um detetive curioso poderia passar pela porta e causar complicações - disse Von Tiebolt. - Você tem de sair daqui. Óculos escuros, um cachecol e chapéu. Se você puder mover-se, terá uma oportunidade com Althene Holcroft. Só assim sentir-se-á melhor.

- Posso mover-me, sim - disse Hans, com o rosto contorcido de dor.

Johann voltou-se para o outro Kessler.

- Você vai ficar aqui, Erich. Holcroft deverá telefonar daqui a pouco, mas não se identificará enquanto não reconhecer a sua voz. Mostre-se cordial e preocupado. Diga-lhe que eu o procurei em Berlim e lhe pedi que chegasse mais cedo a Genebra. Tentei telefonar para ele em Paris, mas não o encontrei mais lá. Diga-lhe que nós dois estamos muito contristados com o que aconteceu aqui, hoje à tarde. O homem assassinado tinha feito perguntas a respeito dele. Por isso, estamos muito preocupados com a sua segurança. Ele não deve aparecer no hotel.

- Poderia dizer que alguém que correspondia à descrição dele foi visto quando saía pela porta de serviço - acrescentou o professor. - Ele deve estar em estado de choque e aceitará isso, ficando ainda mais confuso.

- Excelente. Encontre-se com ele e leve-o para o Excelsior. Registre-o lá com o nome de Fresca. Se ainda tiver qualquer dúvida, esta se dissipará. Nunca usou o nome com você e assim ficará sabendo que nós estivemos juntos e conversamos.

- Muito bem - disse Erich. - Quando chegarmos ao Excelsior, explicarei que, em vista de tudo o que está acontecendo, você se entendeu com os diretores do banco e antecipou a reunião para amanhã de manhã. Quanto mais cedo tudo ficar resolvido, mais depressa poderemos ir para Zurique e tomar ali as medidas de segurança necessárias.

- Ótimo, Herr Professor - disse Von Tiebolt. - Vamos, Hans. Eu o ajudarei.

- Não é preciso - disse o antigo campeão de futebol de Munique com uma expressão que lhe desmentia as palavras. - Basta pegar a minha maleta.

- É claro - disse Von Tiebolt, pegando a maleta do médico. - Estou fascinado. Tem de me dizer qual é a substância que vai injetar. Não se esqueça de que eu quero uma morte, mas não um assassinato.

- Não se preocupe. Tudo está programado. Não haverá enganos.

- Depois do nosso encontro com Althene Holcroft - disse Von Tiebolt, jogando um sobretudo nas costas de Hans - decidiremos onde você deverá passar a noite. Talvez na casa do vice-governador.

- Boa ideia - disse o professor. - Assim o médico poderá ser chamado em caso de necessidade.

- Não preciso de médico - disse Hans, com os dentes cerrados e o passo incerto. - Eu poderia ter dado esses pontos melhor do que ele. Auf wiedersehen, Erich.

- Auf wiedersehen.

A porta se fechou. Erich Kessler se acomodou melhor na poltrona. Era assim que agia a Wolfsschanze. Não havia outra decisão possível. O médico que cuidara de Hans dissera claramente que havia hemorragia interna. Os órgãos tinham sido gravemente lesados, como se tivessem sido lacerados pelas garras de algum animal de força prodigiosa. Se Hans não fosse levado para um hospital, poderia morrer. Mas o irmão não poderia ser levado para um hospital, pois haveria perguntas. Um homem fora assassinado naquela tarde no Hôtel d’Accord e o paciente ferido estivera hospedado no Hôtel d’Accord. Podia haver muitas perguntas. Além disso, as contribuições de Hans estavam naquela maleta que Johann levava. O Tinamou aprenderia tudo o que tinham de saber. Hans Kessler, Sonnenkind, não era mais necessário. Tornara-se um estorvo.

O telefone tocou e Kessler atendeu.

- Erich?

Era Holcroft.

- Alô!

- Estou em Genebra. Chegou cedo.

- Foi, sim. Von Tiebolt me telefonou esta manhã em Berlim e me disse que tinha tentado sem resultado falar com você em Paris. Sugeriu...

- Ele já chegou? - perguntou o americano.

- Já. Saiu para tomar as últimas providências para a reunião de amanhã. Temos muito para lhe contar.

- E eu também. Sabe do que aconteceu aí no hotel?

- Sei, sim. Foi horrível...

Onde estava o pânico? Onde estava a ansiedade de um homem solicitado até o limite máximo de sua capacidade? A voz ao telefone não era a de quem estivesse se afogando, desesperadamente à procura de uma tábua de salvação.

- Ele era seu amigo, Holcroft. Dizem que perguntou por você.

- Perguntou por minha mãe.

- Isso eu não soube. Disseram apenas que ele havia mencionado o nome Holcroft.

- Escute, que quer dizer Nach... Nach-rich... Não sei pronunciar o nome direito.

- Nachrichtendienst?

- Sim. Que é isso?

Kessler estava espantado. O americano procedia com uma calma que ele nunca havia imaginado.

- Que é que lhe posso dizer? É um grupo contrário a Genebra.

- Foi isso o que Von Tiebolt apurou em Londres?

- Foi. Onde é que você está, Noel? Tenho de vê-lo, mas você não pode vir aqui ao hotel.

- Sei disso. Escute. Está com dinheiro?

- Um pouco.

- Mil francos suíços?

- Mil francos?... Bem, talvez seja possível...

- Então desça até a portaria e fale em particular com o encarregado. Procure saber o nome dele e entregue-lhe o dinheiro. Diga-lhe que é para mim e que eu vou telefonar daí a alguns minutos.

- Mas como...

- Deixe-me acabar. Depois que entregar o dinheiro e souber o nome dele, vá até os telefones públicos perto dos elevadores, e espere junto do primeiro telefone a contar da entrada. Logo que tocar, atenda. Serei eu.

- Como é que sabe o número?

- Paguei a uma pessoa para entrar e olhar.

Não era um homem apavorado. Estava calmo, lúcido e tinha um objetivo... Era o que Erich Kessler tinha receado. Se não fosse a disposição dos genes e uma mãe de vontade forte, o homem ao telefone poderia ser um deles, um Sonnenkind.

- Que é que vai dizer ao homem da portaria?

- Depois lhe conto. Não há tempo agora. Vai demorar muito?

- Não sei. Muito não.

- Dez minutos?

- Acho que sim. Mas, Noel, acho melhor esperarmos até Johann voltar.

- Quando é que ele volta?

- Daqui a uma hora ou duas, no máximo.

- Não é possível. Telefonarei para você na portaria daqui a dez minutos. Meu relógio está marcando oito e quarenta e cinco. E o seu?

- Também - disse Kessler, sem se dar ao trabalho de olhar para o relógio. Estava pensando que Holcroft se mostrava firme demais. - Ainda acho que devemos esperar.

- Não posso. Mataram meu amigo! E como o mataram! Querem também a ela, mas não vão achá-la.

- Quem? Sua mãe? Von Tiebolt me disse...

- Não a encontrarão! Encontrarão a mim. É a mim que realmente querem. E eu também os quero. Vou preparar uma armadilha para eles, Erich.

- Acalme-se. Você não sabe o que está fazendo.

- Sei exatamente de tudo.

- A polícia de Genebra está no hotel. Se você falar com o encarregado da portaria, ele poderá dizer alguma coisa. A polícia está à sua procura.

- Poderá prender-me daqui a algumas horas. Para dizer a verdade, eu mesmo irei procurá-la.

- Como? Tenho de falar com você, Noel!

- Dez minutos, Erich. São oito e quarenta e seis.

Holcroft desligou. Kessler repôs o fone no gancho, sabendo que não tinha outro remédio senão seguir as instruções. Seria suspeito proceder de outra forma. Mas que é que Holcroft queria fazer? Que iria dizer ao homem da portaria? Com toda a certeza, não tinha qualquer importância. Com a mãe de Holcroft morta, seria necessário apenas mantê-lo em condições até a manhã seguinte. Ao meio-dia, Holcroft poderia ser descartado.

Noel esperava na esquina escura, no princípio da Rue des Granges. Não sentia qualquer satisfação com o que ia fazer, mas a raiva impedia quaisquer considerações de ordem moral. A visão do corpo massacrado de Willie fizera-lhe alguma coisa estalar dentro da cabeça. Despertara-lhe ainda outras lembranças trágicas: o corpo de Richard Holcroft esmagado por um carro contra a parede de um edifício; o envenenamento por estricnina a bordo de um avião, morte numa aldeia francesa, morte em Berlim. E um homem tinha seguido a mãe dele... Não deixaria que se aproximassem dela. Levaria as coisas pessoalmente a um desenlace.

Tudo era uma questão de usar todos os recursos disponíveis, todas as reservas de força de que dispunha, todos os fatos de que podia lembrar-se, tudo o que pudesse ajudá-lo. E era o assassinato em Berlim que lhe dava o fato isolado capaz de ajudá-lo naquele momento. Em Berlim, ele havia levado os assassinos até Erich Kessler. Levara-os idiota e descuidadamente até um restaurante na Kurfürstendamm. Kessler e Holcroft. Holcroft e Kessler. Se os assassinos estavam à procura de Holcroft, iam conservar Kessler sob suas vistas. E se Kessler deixasse o hotel, seria seguido.

Holcroft olhou para o relógio. Estava na hora de telefonar. Atravessou a calçada para a cabina telefônica.

Esperava que Erich atendesse.

E que depois compreendesse.

Kessler estava na portaria do hotel, diante de um telefone público, tendo um papel na mão. Nele, o atônito empregado da portaria escrevera o seu nome. Recebera o dinheiro com as mãos trêmulas. O Professor Kessler tinha dito que gostaria muito de saber o que Mr. Holcroft tinha para dizer-lhe, no interesse do próprio Holcroft. Para isso, o empregado receberia uma gratificação adicional de quinhentos francos. O telefone tocou. Erich tirou-o imediatamente do gancho.

- Noel?

- Como é o nome do homem da portaria?

Kessler disse.

- Ótimo.

- Insisto em nos vermos, Noel. Há muita coisa que você precisa saber. Amanhã é um dia muito importante.

- Só o será se atravessarmos esta noite. Se eu a encontrar esta noite.

- Onde está você? Temos de nos encontrar.

- Está bem. Ouça cuidadosamente. Espere junto a esse telefone durante cinco minutos. Talvez eu tenha de lhe telefonar de novo. Se eu não telefonar, cinco minutos depois saia do hotel e comece a descer a rua. Quando chegar ao fim da ladeira, vire para a esquerda e continue a andar. Alcançá-lo-ei na rua.

- Muito bem, cinco minutos - disse Kessler, sorrindo.

Esses jogos de amadores eram inócuos. Ele pediria com certeza ao encarregado da portaria que transmitisse um recado ou um telefone a sua mãe, quando ela telefonasse para ele, que era um hóspede não registrado. Talvez Johann tivesse razão. Holcroft devia ter chegado ao limite máximo de sua capacidade. Era possível que o americano não fosse afinal de contas um Sonnenkind em potencial.

A polícia ainda estava no vestíbulo do hotel. Viam-se também vários jornalistas, que sentiam uma boa reportagem através da notícia de assalto e roubo que a polícia havia dado. E havia os curiosos - hóspedes que andavam de um lado para outro, conversando, comentando, uns alarmados, outros intrigados.

Erich ficou de lado, evitando qualquer ajuntamento e procurando passar tão despercebido quanto possível. Não gostava absolutamente de ficar no vestíbulo; preferia o anonimato do seu quarto lá em cima.

Olhou para o relógio. Já passavam quatro minutos do telefonema de Holcroft. Se o americano não telefonasse no minuto seguinte, ele procuraria o homem da portaria e...

O empregado aproximou-se dele e chamou-o:

- Professor?

Kessler pôs a mão no bolso.

- Sim, meu amigo?

A mensagem deixada por Noel não era o que Kessler esperava. A mãe dele tinha de continuar escondida e deixar um telefone pelo qual o filho pudesse falar com ela. O empregado jurara a ele que não revelaria o número do telefone a ninguém, mas, afinal de contas, os compromissos anteriores sempre tinham primazia. Quando a senhora telefonasse, o número seria deixado num pedaço de papel no escaninho do Professor Kessler.

- Mr. Kessler! Professor Erich Kessler!

Um boy caminhava pelo vestíbulo, apregoando o seu nome. Era impossível! Ninguém sabia que ele estava ali!

- Sou o Professor Kessler - disse Erich, chamando o boy. - Que é que há?

- O recado tem de ser dado pessoal e verbalmente. É de Mr. H. Disse que não havia tempo de mandar-lhe um bilhete e que o senhor devia sair agora.

- Como?

- Foi só isso que ele disse. O senhor devia sair imediatamente. Falei pessoalmente com Mr. H.

Kessler prendeu a respiração. A coisa era inesperadamente clara. Holcroft o estava usando como isca.

Segundo o raciocínio do americano, quem matara em Berlim o homem do blusão de couro preto sabia que Noel Holcroft tinha estado em companhia de Erich Kessler.

A estratégia era simples, mas engenhosa. Tratava-se de expor Erich Kessler, de fazê-lo receber um recado de Mr. H. e de fazê-lo sair do hotel para andar pelas ruas escuras de Genebra.

Se ninguém o seguisse, a disparidade entre causa e efeito poderia ser difícil de explicar. Tão difícil que Holcroft poderia examinar todo o caso de novo, com dúvidas que poderiam fazer ir pelos ares o pacto de Genebra.

Talvez Noel Holcroft fosse mesmo um Sonnenkind em potencial.


40

Helden arrastou-se pela casa de Gerhardt, pelo chão cheio de sangue e de móveis quebrados. Abriu apressadamente gavetas e armários, até que encontrou um estojo de socorros urgentes. Tentando empenhadamente não pensar em coisa alguma e não ficar parada, fez o curativo da melhor maneira que pôde e, usando a bengala de Gerhardt para apoiar-se, saiu da casa e caminhou três quilômetros para o norte, até a bifurcação.

Um camponês num velho carro deu-lhe uma carona. Seria possível levá-la até a casa do Dr. Litvak, no morro perto da clínica?

Podia, sim. Não ficava muito longe do caminho dele.

Podia ir um pouco mais depressa?

Walther Litvak era um homem de quase cinquenta anos, calvo, de olhos claros e com tendência a falar em frases breves e concisas. Era magro e movia-se com agilidade, gastando tão poucos gestos quanto palavras. Muito inteligente, dava as respostas quando as perguntas não tinham sido ainda de todo formuladas e, sendo um judeu escondido por holandeses católicos e criado por luteranos simpáticos, tinha pouca tolerância com a intolerância.

Tinha, porém, uma lembrança dolorosa que o acompanharia pelo resto da vida. Sua mãe, seu pai, duas irmãs e um irmão tinham sido mortos nas câmaras de gás de Auschwitz. Se não fosse o apelo de um médico suíço que falara de um distrito na vizinhança de Neuchâtel que não dispunha de assistência médica, ele estaria vivendo no kibbutz de Har Sha’alav, no deserto do Neguev.

A sua intenção era passar apenas três anos na clínica, e já estava lá havia cinco anos. Depois de ter passado alguns meses em Neuchâtel, soubera que o homem que o recrutara para a clínica fazia parte de um grupo que lutava contra o ressurgimento do nazismo. Esse grupo sabia coisas que a maioria ignorava: havia milhares de filhos adultos espalhados pelo mundo e inúmeros milhões estavam de reserva à espera desses desconhecidos quando chegasse o momento oportuno. Havia muito trabalho alheio à medicina para ser feito e o seu contato era um homem chamado Werner Gerhardt. O grupo era chamado o Nachrichtendienst.

Walther Litvak ficou em Neuchâtel.

- Entre depressa - disse ele a Helden. - Vou fazer-lhe um curativo. Tenho um consultório aqui.

Tirou-lhe o casaco e quase a carregou para uma sala onde havia uma mesa de exame.

- Levei um tiro - murmurou Helden.

Litvak fê-la deitar-se na mesa e tirou-lhe a saia.

- Procure não gastar a sua energia falando.

Cortou o curativo feito por ela, examinou o ferimento e tirou uma seringa de injeção de um esterilizador.

- Vou fazê-la dormir durante alguns minutos.

- Não há tempo! Tenho de lhe contar...

- Eu disse alguns minutos - declarou o médico, enfiando a agulha no braço de Helden.

Helden abriu os olhos, sentindo a vista turva e um entorpecimento na perna. Quando enxergou melhor, viu o médico perto. Tentou sentar-se, e ele se aproximou dela.

- Isto aqui é um antibiótico - disse ele com um vidro na mão. - Um comprimido de duas em duas horas no primeiro dia e de quatro em quatro daí por diante. Conte-me o que aconteceu. Irei à casa de Gerhardt para ver o que é preciso fazer.

- Como é que sabe?

- Falou enquanto estava sob a ação do anestésico e depois do choque traumático por que passou. Repetiu "Nachrichtendienst" várias vezes, e falou muito em "Johann". Suponho que se trate de Von Tiebolt e que você seja sua irmã, a que ajudava Falkenheim. As coisas estão acontecendo, não é? Os herdeiros estão se reunindo em Genebra.

- Sim.

- Pensei nisso hoje de manhã. As notícias do Neguev são terríveis.

- Que notícias?

- O Har Sha’alav foi atacado. Casas bombardeadas, gente massacrada, campos incendiados. Ainda não se sabe o número de mortos, mas calcula-se que chegue a cento e setenta. Homens, principalmente, mas também mulheres e crianças.

Helden fechou os olhos. Não tinha o que dizer.

- Os velhos do kibbutz foram todos assassinados nos jardins. Disseram que eram terroristas do Rache, mas não é verdade. Foi a Wolfsschanze. Os homens do Rache jamais atacam o Har Sha’alav. Sabem o que aconteceria. Os judeus de cada kibbutz de Israel, todos os grupos de comandos, tratariam de persegui-los.

- Gerhardt acha que você devia falar com Har Sha’alav pelo rádio.

- Não há mais ninguém com quem falar. Foram todos trucidados. Agora, diga-me o que aconteceu à margem do lago.

Helden contou tudo. Quando ela acabou, o médico ajudou-a a sair da mesa e levou-a para a sala de estar. Fê-la deitar-se no sofá e falou sobre a situação.

- O campo de batalha é Genebra, e não há um minuto a perder. Ainda que eu pudesse falar com Har Sha’alav, pouco adiantaria. Mas há um homem de Har Sha’alav em Londres. Foi ele que seguiu Holcroft a Portsmouth, tirando-lhe a fotografia.

- Era um retrato de Beaumont, um homem do ODESSA - disse Helden.

- Da Wolfsschanze - disse Litvak. - Um Sonnenkind. Um entre milhares, mas um dos poucos que trabalhavam com Von Tiebolt.

- E os assentamentos de Beaumont? Não fazem sentido.

- Como assim?

Helden falou ao médico das informações obscuras e contraditórias existentes nos assentamentos navais de Beaumont, bem como nos de Ian Llewellen, imediato de Beaumont.

Litvak tomou nota do nome.

- Que bom arranjo! Dois homens da Wolfsschanze no comando de um navio de espionagem eletrônica. Quantos mais há com eles? E em quantos lugares?

- Llewellen foi citado outro dia nos jornais, quando Beaumont e Gretchen...

Não pôde concluir.

- Não pense nisso. Os Sonnenkinder têm as suas regras próprias. Llewellen é mais um nome na lista que deve encontrar-se em Genebra. Gerhardt tinha razão. O mais importante de tudo é encontrar essa lista. Mais importante até que impedir o recebimento do dinheiro.

- Por quê?

- O dinheiro é um meio de fundar o Quarto Reich, mas esse Reich continuará a existir com essa gente, quer o dinheiro seja recebido quer não. Temos de saber quem são todos eles.

- Johann von Tiebolt pode ser morto... Kessler também, se for necessário, e até Noel. O dinheiro pode ser impedido. Mas como podemos ter certeza de que essa lista será encontrada?

- O homem de Har Sha’alav em Londres deve ter algumas ideias. É um homem de muitos talentos. Você vai saber, pois terá de trabalhar com ele. É chamado de assassino e terrorista, mas não se considera nem uma coisa nem outra, embora as leis que violou e os crimes que cometeu pudessem merecer esse conceito. Faltam três minutos para as nove. Ele está a um quilômetro de Heathrow. Se eu conseguir entrar em contato com ele, poderá estar em Genebra à meia-noite. Sabe onde é que Holcroft está hospedado?

- Sei. No Hôtel d’Accord. Compreenda que ele não sabe de nada. Acredita sinceramente no que está fazendo. Julga que está certo.

- Compreendo. Infelizmente, isso pode não ter importância em relação à sua segurança pessoal. Mas a primeira coisa a fazer é entrar em contato com ele.

- Eu disse que telefonaria para ele esta noite.

- Muito bem. Vou ajudá-la a telefonar. Tenha muito cuidado com o que disser. Ele deve estar sendo vigiado, e o telefone dele pode estar interceptado.

Litvak levou-a até a mesa onde estava o telefone.

- Hôtel d’Accord, bonsoir - disse a telefonista.

- Boa noite. Mr. Noel Holcroft, por favor?

- Monsieur Holcroft? Um momento, madame.

Houve silêncio, um estalo e depois uma voz de homem.

- Mrs. Holcroft?

- Como?

- É Mrs. Holcroft, não é?

Helden estava surpresa. A telefonista nem tentara ligar para o quarto de Noel.

- Estava à minha espera, então? - perguntou ela.

- Claro que sim, madame - disse o homem da portaria. - Seu filho foi muito generoso. Pediu-me que lhe dissesse que é da mais absoluta necessidade que a senhora não apareça. Deve, porém, deixar um telefone pelo qual ele possa falar com a senhora.

- Um momento, por favor.

Cobriu o fone com a mão e disse a Litvak:

- Está pensando que eu sou a mãe de Noel. Ele pagou ao homem para anotar o telefone dela.

O médico assentiu e encaminhou-se rapidamente para uma mesa.

- Continue a falar. Diga que faz questão de que o telefone não seja dado a ninguém mais. Ofereça dinheiro. Faça tudo para ganhar tempo...

Litvak pegou um velho caderno de endereços.

- Antes de eu lhe dar um número, quero ter certeza...

Helden fez uma pausa. O homem do hotel jurou pela sepultura da mãe que só daria aquele telefone a Holcroft. O médico voltou com um número escrito num pedaço de papel. Helden repetiu o número ao homem da portaria e desligou.

- Onde é esse telefone? - perguntou ela.

- É de um apartamento vazio na Avenue de la Paix, mas não é o endereço constante da lista telefônica. O endereço é este. Guarde tudo na memória.

- Está bem.

- Agora, vou tentar falar com nosso homem em Londres pelo equipamento de rádio lá em cima. Está ligado a um serviço telefônico móvel comum. Farei você chegar a Genebra. Não poderá movimentar-se muito enquanto o ferimento não sarar, mas, ainda assim, poderá falar com Holcroft. Espero que o consiga e que tenha êxito em afastá-lo de Von Tiebolt e de Kessler. Se ele resistir ou mesmo hesitar, deverá ser morto.

- Sei disso.

- Talvez não seja bastante saber. Pode ser que a decisão não lhe caiba.

- Quem decidirá então? Você?

- Não poderei sair de Neuchâtel. Quem tem de decidir é o homem de Londres.

- O terrorista? O homem que basta ouvir falar em "nazista" para disparar uma arma?

- Ele será objetivo - disse Litvak. - Não sofrerá pressões de qualquer espécie. Você se encontrará com ele no apartamento.

- Como poderei chegar a Genebra?

- Como?

- Perguntei como irei para Genebra. De trem?

- Não há tempo para trens. Irá de avião.

- Ótimo. Será mais rápido.

- Muito mais rápido.

E muito melhor, pensou Helden. Em primeiro lugar, tinha deixado de mencionar ao médico a advertência de Gerhardt para que se afastasse de Genebra, pois a Wolfsschanze já a vira.

- Quem vai me levar?

- Há muitos pilotos que fazem voos sobre os lagos à noite.

Althene estava irritada, mas concordara com a condição. O piloto lhe fizera uma única pergunta.

- Conhece de vista as pessoas que estão à sua procura?

Althene respondera negativamente.

- Então talvez as conheça antes que a noite acabe.

Era por isso que ela estava atrás de uma árvore na floresta sombria acima da estrada. Era uma floresta de pinheiros numa encosta que se elevava acima da estrada da margem do lago. Fora levada até ali pelo piloto.

- Se seu filho estiver por lá, eu o mandarei falar com a senhora.

- É claro que ele deve estar lá. Por que não?

- Vamos ver.

Por um momento, as dúvidas do homem a abalaram.

- Se ele não estiver, que faremos?

- Em primeiro lugar, ficará sabendo quem está à sua procura.

- E você? Que é que fará, se meu filho não estiver lá?

- Eu? - disse o piloto, rindo. - Não é a primeira vez que me meto em negociações dessa espécie. Se seu filho não estiver lá, eles devem estar ansiosos por botar as mãos na senhora. Mas sem mim não vão conseguir nada.

Althene ficou esperando atrás da árvore, a cerca de quarenta metros de distância, com a visão razoavelmente desimpedida, levando em conta a profusão de galhos dos pinheiros. O carro estava no acostamento, virado para o norte, com os faroletes acesos. O piloto tinha dito ao homem com quem falara no Hôtel d’Accord que estivesse lá dentro de uma hora, nunca antes, que viesse do sul e que piscasse os faróis repetidamente quinhentos metros antes de chegar ao lugar combinado.

- Está me ouvindo, senhora? - perguntou ele ao lado do carro, falando num tom de voz normal.

- Estou, sim.

- Ótimo. Já vêm aí. Estou vendo os faróis piscarem. Fique onde está. Olhe e escute, mas não se mostre. Se vir o seu filho, não diga nada até que eu o mande para a senhora. Se, por acaso, eles me forçarem a acompanhá-los, vá até o campo de pouso no lado oeste do lago, perto de onde nós descemos. Chama-se Atterrisage Médoc. Irei procurá-la lá. Não estou gostando disto aqui...

- Por quê? Que é que há?

- Vêm dois homens no carro. Um deles tem uma pistola na mão. Talvez a esteja examinando.

- Como é que posso ir até o campo de pouso? - perguntou Althene.

- Há outras chaves do carro escondidas numa caixinha imantada debaixo do capô, do lado direito. Agora, silêncio!

Um grande carro preto parou dez metros à frente do piloto. Um homem saltou, mas não era o filho dela. Era um homem corpulento e baixo, que usava um sobretudo com a gola levantada e um grosso cachecol em volta do pescoço. Grandes óculos escuros davam-lhe a aparência de um enorme inseto. Mancava um pouco ao dirigir-se para onde estava o piloto.

O homem que dirigia não saiu do carro. Althene olhou-o bem, tentando reconhecer Noel. Não era ele. Via o rosto do homem claramente, e os cabelos eram louros.

- Presumo que Mrs. Holcroft esteja naquele carro - disse o homem de óculos escuros ao piloto.

Falava em inglês, mas o sotaque era indiscutivelmente alemão.

- O filho dela está em seu carro, então? - replicou o piloto.

- Diga a Mrs. Holcroft para saltar.

- Diga ao filho dela para fazer a mesma coisa.

- Não crie problemas. Temos um horário muito rígido para observar.

- Nós também. Só há uma pessoa em seu carro, monsieur. E não corresponde à descrição do filho da senhora.

- Vamos levar Mrs. Holcroft à presença dele.

- Nós temos de levá-lo à presença de Mrs. Holcroft.

- Pare com isso!

- Parar com o quê, monsieur? Estou ganhando o meu dinheiro, como o senhor deve estar ganhando o seu. Nós dois fazemos o que temos de fazer, não é mesmo?

- Não tenho tempo para perder com você - disse o alemão, passando pelo piloto e encaminhando-se para o carro.

- Seria melhor encontrar tempo, pois não vai encontrar Mrs. Holcroft.

- Du Sauhund! Wo ist die Frau?[41]

- Posso sugerir também, monsieur, que não me xingue. Sou de Châlons-sur-Marne. Duas vezes vocês venceram lá, e fui criado com uma certa aversão pelos insultos de vocês.

- Onde está a mulher?

- Onde está o filho dela?

O alemão meteu a mão no bolso do sobretudo e tirou uma pistola.

- Por mais dinheiro que você esteja ganhando, sua vida vale mais. Onde está ela?

- Já pensou que, se me matar, não vai ficar sabendo de nada, monsieur? Neste caso, não vai ganhar nada.

O tiro foi ensurdecedor. A terra se levantou numa nuvem aos pés do piloto. Althene se abraçou à árvore em sobressalto.

- Agora, francês, talvez você compreenda que a mulher é mais importante para mim do que qualquer pagamento! Onde está ela?

- Os boches são assim mesmo - disse o piloto com desprezo. - Logo que se veem com uma arma nas mãos, ficam alucinados. Vocês nunca mudam. Se quiser a mulher, traga o filho e eu o levarei até ela.

- Você vai dizer é agora, ouviu? - disse o alemão, levantando a pistola para a cabeça do piloto.

Althene viu a porta do carro abrir-se. Houve um tiro, logo seguido de outro. O piloto atirou-se ao chão. O alemão gritou, com os olhos arregalados:

- Johann? Johann!

Houve ainda outro tiro. O alemão caiu morto na estrada. No mesmo instante, o piloto levantou-se.

- Ele ia matá-lo - disse o homem do carro. - Sabíamos que não estava regulando bem, mas não que estivesse louco. Que é que eu posso dizer?

- Ele poderia ter-me matado? - perguntou o piloto, com a voz cheia de incredulidade. - É uma coisa que não faz sentido.

- Claro que não - disse o homem louro. - A sua exigência é sensata. Mas, primeiro, ajude-me a arrastar o corpo para dentro da floresta e tirar-lhe toda a identificação. Depois, virá comigo.

- Quem é você?

- Um amigo de Holcroft.

- Eu bem que gostaria de acreditar nisso.

- Vai acreditar.

Althene teve de dominar-se para não sair de onde estava. Sentia as pernas fracas, a garganta seca e os olhos doloridos, sendo forçada a fechá-los a cada instante.

O homem louro e o piloto arrastaram o cadáver para a floresta, deixando-o cerca de vinte metros abaixo do lugar onde estava Althene. As instruções do piloto tinham um sentido novo para ela. Estava ciente de que ele tinha razão.

- Devo ir no meu carro, monsieur?

- Não. Apague os faróis e venha comigo. Viremos buscá-lo amanhã bem cedo.

O piloto hesitou.

- Não é conveniente deixá-lo assim tão perto de um cadáver.

- Viremos buscá-lo antes de amanhecer o dia. Tem as chaves aí?

- Tenho.

- Então vamos.

A salvação do piloto estava em seu silêncio. Não disse mais nada, e, segundos depois, afastavam-se do local.

Althene saiu do seu esconderijo entre as árvores. Tentou lembrar-se das instruções do piloto quanto às chaves e quanto ao lugar para onde devia ir.

Atterrisage Médoc, do lado oeste do lago.

Cinco minutos depois, com as mãos sujas de graxa, corria pela estrada da margem do lago, rumo a Genebra. À medida que o tempo passava, guiava com mais segurança e começava a pensar.

Queria quanto antes chegar ao pequeno trecho de cais com as bombas de gasolina.

Queria chegar lá e depois falar com o filho. Tinha de encontrá-lo, depois de uma mentira de trinta anos, de uma traição tão horrível, de um estigma tão medonho...

Helden estava sentada logo atrás do piloto no pequeno hidravião. Sentiu o curativo embaixo da saia. Estava apertado, mas não impedia a circulação. O ferimento latejava de vez em quando, mas os comprimidos atenuavam a dor. Podia caminhar, ainda que com alguma dificuldade.

O piloto voltou-se para ela.

- Meia hora depois do pouso, será levada de carro a um restaurante à beira do lago, onde poderá tomar um táxi para a cidade. Se precisar dos nossos serviços nos próximos quinze dias, nossa base durante esse período é uma marina particular chamada Atterrisage Médoc. Foi um prazer tê-la a bordo.


41

Erich Kessler não era homem dado a violências, embora as aprovasse quando tinham algum objetivo prático. Aprovava-as como observador e como teórico, mas não como participante. Entretanto, naquele momento, não tinha outro remédio senão participar da violência.

Holcroft não lhe deixava outro recurso. O amador tinha estabelecido as suas prioridades e agia em função delas com alarmante percepção. Os cromossomos de Heinrich Clausen se reproduziam no filho. Era preciso controlá-lo de novo, remanejá-lo.

Erich escolheu a pessoa de que precisava entre os que estavam no vestíbulo do hotel. Tratava-se de um jornalista e, a julgar pelo seu desembaraço e pela facilidade com que manejava lápis e papel, um bom jornalista.

Kessler se aproximou do jornalista e perguntou em voz baixa:

- Qual é o seu jornal?

- Genève Soir.

- Foi horrível o que aconteceu. Pobre homem... Estou aqui há algum tempo sem saber se devo dizer alguma coisa que sei. Compreenda que eu não gostaria de ser envolvido no caso.

- Está hospedado aqui no hotel?

- Estou, sim. Sou de Berlim e faço muitas viagens a Genebra. Minha consciência me ordena que procure a polícia e diga tudo o que sei. Mas meu advogado acha que isso poderia ser mal interpretado. Estou aqui a negócios e isso poderia prejudicar-me. Apesar de tudo, acho que a informação deve ser prestada.

- Que espécie de informação?

Erich olhou para o jornalista com a fisionomia compungida.

- Vamos dizer que eu conhecia muito bem o homem que foi assassinado.

- E daí?

- Nada mais. Meu advogado acha que não devo me envolver.

- Quer dizer que está envolvido?

- Não! Nada disso! Acontece apenas que tenho informações. Talvez um nome ou dois. Tenho as minhas razões...

- Bem, se não está envolvido diretamente no caso, eu lhe asseguro da minha parte absoluto sigilo.

- É só o que eu desejo. Vamos fazer o seguinte. Espere alguns minutos enquanto subo ao meu quarto e visto o sobretudo. Sairei então à procura de um lugar sossegado onde possamos conversar. Quero que me siga e só se aproxime de mim quando eu chamar.

O jornalista assentiu. Kessler dirigiu-se para os elevadores. Ia pegar o sobretudo e dois revólveres, cuja propriedade não podia lhe ser atribuída. A pequena demora aumentaria a ansiedade de Holcroft, e isso era muito bom.

Noel esperava numa porta do outro lado da rua, em frente ao Hôtel d’Accord. Kessler já recebera o recado havia cinco minutos. Por que estava demorando tanto?

Lá estava ele! O vulto corpulento que descia devagar a pequena escada da entrada do hotel só podia ser ele. Devia ter ido ao quarto pegar o sobretudo.

Holcroft viu Erich descer a ladeira em passo comedido e solene, cumprimentando gravemente as pessoas que passavam por ele. Noel refletiu que Kessler era uma pessoa distinta e decerto não sabia que estava sendo usado como um engodo. Não sabia e não estava em sua natureza compreender uma coisa como essa. Não era também próprio de Holcroft usar um homem daquela maneira, mas nada era mais para ele como antes. Tudo isso passara a ser natural para ele.

E estava dando certo! Um homem saiu do hotel e olhou para a figura de Kessler que se afastava. Começou a andar lentamente - um pouco demais para alguém que pretendesse ir a algum lugar - e tomou posição bem atrás de Erich para não ser visto.

Agora, era preciso apenas que Kessler seguisse as instruções recebidas. A avenida que passava ao fim da Rue des Granges era formada de prédios de escritórios de três andares, bem-cuidados e luxuosos, mas inteiramente desertos àquela hora. Noel tinha feito bem o seu trabalho. Dependia dele a captura de um assassino do Nachrichtendienst. Um assassino bastava, pois levaria a outros. Não seria fora de propósito quebrar o pescoço do homem para obter a informação. Ou fazer as balas passarem-lhe por entre os olhos.

Noel sentiu a pistola no bolso e desceu também a rua, sem sair do seu lado.

Quatro minutos depois, Kessler chegou ao fim da ladeira e virou para a esquerda. O homem atrás dele fez o mesmo. Holcroft esperou que os carros passassem e os dois homens tivessem desaparecido. Atravessou então a esquina, continuando do mesmo lado.

De repente, parou. Não via mais Kessler.

Não via mais também o homem que o seguia.

Começou então a correr.

Kessler virou para a esquerda numa rua mal-iluminada, caminhou cerca de trinta metros e tirou um espelhinho do bolso. O jornalista vinha atrás dele; Holcroft, não. Era o momento de agir com presteza.

À esquerda, havia uma entrada, destinada a servir de garagem a dois ou três automóveis, fechada com uma corrente para indicar a propriedade particular. Não havia carros e estava tudo muito escuro. Ótimo. Passou pela corrente e caminhou rapidamente para o muro dos fundos. Meteu a mão no bolso direito e tirou a primeira pistola que pretendia usar. Teve de fazer força, pois o silenciador ficou preso por um momento ao forro do bolso.

- Estou aqui - disse ele em voz suficientemente alta para ser ouvido pelo jornalista. - Podemos falar aqui, pois ninguém nos verá.

O jornalista passou pela corrente e avançou, tentando esquadrinhar a escuridão.

- Onde está?

- Aqui - disse Erich, levantando a pistola à aproximação do jornalista.

Quando o homem chegou a alguns metros de distância, Kessler atirou, acertando-lhe o pescoço. O homem caiu. Erich se aproximou e lhe deu um tiro na cabeça.

Tirou o silenciador da pistola. Revistou o corpo do morto e tirou a carteira e um caderno de notas que jogou para longe. Tirou então a outra pistola do bolso esquerdo e colocou a arma na mão do repórter com o dedo no gatilho.

Ainda ajoelhado, Kessler rasgou a frente de sua camisa e arrancou dois botões do seu sobretudo. Esfregou a palma da mão na terra e na graxa do chão e passou tudo no rosto.

Estava pronto. Levantou-se e chegou até a corrente. A princípio, não pôde ver Holcroft. Afinal, viu-o. Corria pela rua e parava por um instante sob a luz de um lampião.

Agora.

Voltou para onde estava o homem morto, inclinou-se sobre ele, levantou para o alto a mão que estava com a arma e, depois, comprimiu o dedo encostado ao gatilho.

O tiro ressoou no espaço estreito. Erich apertou o dedo inerte mais duas vezes, deixou o braço cair e então tirou a pistola do bolso.

- Noel! Noel! - gritou ele, jogando-se no passeio. - Onde está você, Noel?

- Erich! Erich?

A voz de Holcroft não vinha de muito longe.

Kessler apontou a pistola sem silenciador para o vulto caído à sua frente. Seria o último tiro que teria de dar e desfechou-o no instante justo em que a silhueta de Noel aparecia.

- Erich!

- Estou aqui. Ele tentou matar-me. Queria me matar, Noel!

Noel saltou sobre a corrente e correu para onde estava Kessler. Ajoelhou-se no escuro.

- Quem foi? Onde?

- Está ali! Johann me obrigou a usar uma arma e eu tive de atirar! Não podia fazer outra coisa!

- Você está bem?

- Acho que sim. Ele me acompanhou. Sabia de você... Perguntava-me: "Onde está ele? Onde está Holcroft?" Jogou-me ao chão...

- Meu Deus! - exclamou Noel, correndo para o vulto estendido no chão.

Tirou o isqueiro do bolso e acendeu-o para ver o morto. Revistou-lhe os bolsos e então virou o corpo para revistar os bolsos das calças.

- Que coisa! Não há nada!

- Nada? Que quer dizer com isso, nada? Escute, Noel. Temos de sair daqui. Pense no dia de amanhã.

- Não há dinheiro, carteira de identificação, nada!

- Amanhã! Temos de pensar em amanhã!

- Temos de pensar é nesta noite! - replicou Holcroft. - Tenho de agarrá-los esta noite!

Kessler ficou em silêncio durante alguns segundos. Por fim, murmurou, com incredulidade na voz:

- Isso foi planejado por você...

- Desculpe... Não queria que você ficasse machucado. Pensei que tudo estivesse controlado.

- Por que você fez isso?

- Porque eles matarão minha mãe se a encontrarem. Como mataram Willie Ellis... Richard Holcroft e muitos outros.

- Quem?

- Os inimigos de Genebra! O Nachrichtendienst! Eu queria pegar um deles, mas vivo!

- Ajude-me a levantar-me - disse Kessler.

- Não pode compreender? - disse Holcroft, dando a mão para Kessler a fim de ajudá-lo.

- Claro que compreendo. Mas acho que você não devia ter agido sozinho.

- Eu ia capturá-lo e arrancar os nomes dos outros, fosse lá como fosse. Depois, iria entregá-lo à polícia e pediria a ela que me ajudasse a procurar minha mãe e protegê-la.

- Não podemos fazer mais isso. A polícia iria fazer muitas perguntas agora que esse homem está morto, e não poderíamos responder a elas. Mas talvez Johann possa dar um jeito em tudo.

- Von Tiebolt?

- Sim. Eu sei que ele tem um grande amigo aqui em Genebra, que é vice-governador. Ele me recomendou que, quando você aparecesse, eu o levasse para o Excelsior. Você tem de registrar-se no hotel com o nome de Fresca. Não sei por que esse nome...

- Já usamos esse nome - disse Noel. - Ele irá ter conosco lá?

- Decerto. Está tomando as últimas providências para amanhã no banco.

- No banco?

- Sim, tudo estará resolvido amanhã. Foi o que eu tentei dizer-lhe. Mas vamos sair o quanto antes daqui. Alguém pode passar e ver o homem morto. Johann me pediu que lhe dissesse que, se sua mãe está aqui em Genebra, nós a descobriremos e protegeremos.

Holcroft ajudou Kessler a pular a corrente. O professor olhou para trás nesse momento e estremeceu.

- Não pense mais nisso - disse Noel.

- Foi horrível...

- Mas foi necessário.

E como foi, pensou Kessler.

Helden viu a velha sentada num banco perto do cais a olhar para a água, indiferente aos mecânicos e às pessoas que iam e vinham.

Quando Helden se aproximou, notou o rosto da mulher, anguloso e de malares salientes. A mulher estava perdida em pensamentos, parecendo completamente isolada e deslocada...

Quando chegou mais perto do banco e pôde vê-la melhor, percebeu que, se não fosse a idade e o sexo, aquele rosto poderia ser o de Noel Holcroft. Era a mãe dele!

Que é que estava fazendo ali? A resposta era evidente. A mãe de Noel estava chegando a Genebra de avião, escondida!

A velha levantou a vista e, logo, a desviou, desinteressada. Helden se encaminhou tão depressa quanto pôde para uma dependência que era ao mesmo tempo sala de espera e centro de rádio. Falou com um homem que estava por trás de um balcão, em que havia telefone e equipamento de rádio.

- Quem é aquela mulher que está lá fora?

- Aqui não se mencionam nomes - disse o homem. - Deviam ter-lhe dito isso.

- Mas é da maior importância! Se ela é quem eu penso, está correndo um grande perigo. Só lhe digo isso porque sei que conhece o Dr. Litvak.

Ao ouvir o nome, o homem olhou Helden com mais atenção. Era evidente que na Atterrisage Médoc se vivia a um passo do risco e do perigo, mas fazendo tudo o que era possível para evitar tanto uma coisa quanto outra. E o Dr. Litvak era, sem dúvida, um cliente de confiança.

- Ela está esperando um telefonema.

- De quem?

- De um dos nossos pilotos, o Chat Rouge. Será que ela tem problemas com a polícia?

- Não.

- Com os corsos? Com a Máfia?

- Pior.

- Você é amiga do Dr. Litvak?

- Sou. Ele providenciou um voo de Neuchâtel para mim. Se quiser, peça confirmação a ele.

- Não é preciso. Não queremos é complicações aqui. Leve-a.

- Como? Um carro deve levar-me a um restaurante na margem do lago, onde terei de tomar um táxi. Disseram-me que o carro chegará dentro de meia hora.

- Por que não agora? Henri, venha cá. Vá falar com a velha, mademoiselle. Convença-a a sair daqui. Henri vai levá-las.

Helden saiu com a rapidez que a perna lhe permitia. Mrs. Holcroft não estava mais no banco e Helden teve medo. Viu-a, porém, de pé à beira do cais. Helden se encaminhou para ela.

A velha voltou-se ao ouvir os passos de Helden. Ficou no mesmo lugar e não cumprimentou a outra.

- É Mrs. Holcroft, a mãe de Noel, não é? - disse Helden.

Ao ouvir o nome do filho, Althene Holcroft juntou as mãos e pareceu ter perdido o fôlego.

- Quem é você? - perguntou ela.

- Uma amiga. Tem de acreditar nisso. Sou mais amiga do que pode julgar.

- Desde que eu não sei nada a seu respeito, tanto pode ser mais quanto ser menos.

- Meu nome é Von Tiebolt!

- Suma-se de minha vista! - exclamou a velha, como se as suas palavras fossem chicotadas no ar frio da noite. - Há homens aqui a meu serviço que não a deixarão levantar um dedo contra mim. Talvez a matem antes. Vá para junto de seu bando de lobos!

- Não faço parte da Wolfsschanze, Mrs. Holcroft.

- Mas você é Von Tiebolt!

- Se eu fizesse parte da Wolfsschanze, não me aproximaria da senhora. Pode compreender isso, não pode?

- Compreendo apenas a sujeira que você representa...

- Tenho levado pela vida toda o peso desse julgamento, mas está enganada. Tem de acreditar em mim. Não pode ficar aqui, pois não está em segurança. Posso escondê-la, posso ajudá-la...

- Você? Como? Atrás do cano de uma pistola ou sob as rodas de um carro?

- Pelo amor de Deus! Sei o que veio fazer em Genebra. Eu estou aqui pelo mesmo motivo. Temos de falar com seu filho antes que seja tarde demais. É preciso impedir a entrega do dinheiro.

A velha pareceu atônita com as palavras de Helden. Franziu então o rosto como se as palavras fossem uma armadilha.

- É a entrega do dinheiro que deve ser impedida ou sou eu? Bem, nada me poderá impedir. Vou telefonar, e depois disso virão alguns homens. Se a matarem, pouco me interessa! Vocês todos representam trinta anos de mentiras! Não vai falar com ninguém!

- Mrs. Holcroft, amo seu filho. Amo-o muito e sei que, se não conseguirmos falar-lhe, ele será morto. Por um lado ou pelo outro! Nenhum pode deixá-lo viver! Tem de acreditar em mim!

- Mentirosa! - exclamou Althene. - Todos vocês mentem!

- Chega! - gritou Helden. - Fique sabendo que ninguém virá ajudá-la. Querem vê-la fora daqui! E eu não sou aleijada. Levei um tiro na perna! É por isso que estou tentando falar com Noel! Não faz ideia de tudo por que já passamos! Não tem o direito de...

Nesse momento, ouviram-se vozes alteradas na pequena dependência perto do cais. As duas mulheres ouviram as palavras, e algumas delas eram ditas para que elas as ouvissem.

- Não tenho nenhum prazer em recebê-lo aqui, monsieur. E não há qualquer mulher como a que descreve. Faça o favor de retirar-se.

- Não me dê ordens! Ela está aqui!

Helden estava atordoada. Tinha ouvido aquela voz toda a sua vida.

- Isto aqui é um estabelecimento particular. Torno a pedir-lhe que se retire.

- Abra essa porta!

- Que porta?

- Essa às suas costas.

Helden olhou para Althene Holcroft.

- Não tenho tempo de explicar. Só lhe posso dizer que sou sua amiga. Entre na água. Desapareça. Agora!

- Por que devo acreditar em você? - perguntou a velha, alarmada e indecisa. - Você é jovem e forte. Pode facilmente matar-me.

- Esse homem que chegou é que quer matá-la. Já tentou matar-me!

- Quem é ele?

- Meu irmão. E, pelo amor de Deus, silêncio!

Helden agarrou Althene pela cintura e empurrou-a para a borda do cais. As duas rolaram então para dentro da água tão calmamente quanto foi possível. Althene estremeceu, com a boca cheia de água. Tossiu um pouco e bateu as mãos. Helden conservou as mãos na cintura da velha e moveu as pernas dentro da água.

- Não tussa. Não podemos fazer barulho. Passe pelo pescoço a alça de sua bolsa. Eu a ajudarei.

- Deus do céu, que é que você está fazendo?

- Cale a boca.

Havia uma pequena lancha com motor de popa a uns dez metros da margem. Helden empurrou Althene para a sombra protetora do casco da lancha. Estavam no meio do caminho quando ouviram uma porta abrir-se com estrondo e viram a luz de uma possante lanterna elétrica. Lançou sinistros reflexos quando o homem louro correu para o cais e projetou a luz da lanterna para a água. Helden fez um esforço, com a perna a doer-lhe terrivelmente, para alcançar a lancha.

Parecia-lhe impossível conseguir isso. Não tinha mais forças na perna e o peso das roupas molhadas era quase insuperável.

- Procure chegar à lancha - disse ela num sussurro. - Vou voltar... Ele me verá e...

- Fique quieta! - disse a velha, passando a mover os braços em rápidos gestos de flutuação, que atenuavam a carga de Helden. - É o mesmo homem. Seu irmão. Está armado. Depressa!

- Não posso.

- Pode, sim.

Juntas, cada qual sustentando a outra, moveram-se em direção à lancha.

O homem louro estava à beira do cais, a varrer metodicamente a superfície da água com a luz da lanterna. Dentro de segundos, o facho de luz incidiria sobre elas. No instante em que as encontrasse, haveria uma saraivada de balas e tudo estaria acabado.

Johann von Tiebolt atirava muito bem, e Helden sabia disso.

A luz ofuscante chegou. O casco da lancha estava acima delas. Instintivamente, as duas mulheres mergulharam a cabeça na água. O facho de luz passou. As duas mulheres estavam escondidas atrás da lancha, mergulhadas na água, apoiando-se na corrente da âncora. Seguraram-se a ela como se fosse um salva-vidas e trataram de encher de ar os pulmões exaustos.

Silêncio. Houve passos a princípio lentos e, depois, mais rápidos, enquanto Johann von Tiebolt se afastava do cais. Ouviram de novo o estrondo da porta e vozes alteradas.

- Para onde ela foi?

- Você está louco!

- E você vai morrer!

Um tiro ecoou através do cais. Foi seguido de um grito de dor e de outro tiro. Depois, houve silêncio.

Minutos foram passando. As duas mulheres dentro da água se olharam sob a luz pálida da lua. As lágrimas rolavam pelo rosto de Helden von Tiebolt. A velha lhe tocou o rosto em silêncio.

O ronco do motor de um carro quebrou o terror do silêncio. Houve então um ranger de pneus na estrada do lago. As duas mulheres se consultaram em silêncio e, amparando-se mutuamente, partiram para o cais.

Subiram uma escada e se sentaram no chão para recuperar o fôlego.

- É muito estranho - disse Althene. - Houve uma hora em que a única coisa que me preocupava era a perda de meus sapatos.

- E perdeu-os?

- Não. E acho isso ainda mais estranho.

- Pois eu perdi os meus - disse Helden, levantando-se. - Agora, temos de sair daqui. Pode ser que ele volte. Não quero entrar ali, mas creio que é preciso. Temos de pegar as chaves do carro...

Helden abriu a porta e, no mesmo instante, fechou os olhos. O homem estava caído sobre o balcão, com o rosto despedaçado. Pensou na cabeça esfacelada de Klaus Falkenheim e teve vontade de gritar. Mas murmurou:

- Mein Bruder...

- Vamos, minha filha. Temos de andar depressa.

Estranhamente, era a velha que comandava a situação e dava ordens. Tinha encontrado as chaves.

- Vamos tomar o carro deles. Tenho um carro aí, mas já está muito conhecido.

Foi então que Helden viu a palavra escrita em letras grossas a crayon no chão atrás do cadáver do homem.

- Mentira! - exclamou ela.

- Que é? - disse a velha, pegando as chaves.

- Aquilo ali! É uma mentira!

A palavra que estava escrita em grandes letras no chão era:

NACHRICHTENDIENST

Helden abaixou-se no chão e tentou apagar as letras febrilmente, enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto.

- Mentira! Mentira! Eles foram grandes homens!

Althene pegou Helden pelos ombros e procurou levantá-la.

- Não há tempo para isso, minha filha! Foi você mesma quem disse. Temos de sair daqui!

Delicadamente mas com firmeza, a velha levou Helden para fora. Havia uma lâmpada acesa sobre a porta, que dava tanto sombra quanto iluminação. Havia dois carros do lado de fora - aquele em que Althene tinha ido até ali e um automóvel cinzento com uma placa presa ao para-choque. Levou Helden para este.

De repente, pararam. O controle que tinham conseguido se dissipou por completo.

O corpo do piloto ruivo estava estendido no chão. Estava morto, com as mãos amarradas nas costas. Tinha por todo o rosto - em torno dos olhos e da boca - cortes profundos feitos pela lâmina de uma faca.

Fora torturado e depois fuzilado.

Viajaram em silêncio, cada uma entregue a seus próprios pensamentos aflitivos.

- Há um apartamento onde poderemos ficar em segurança - disse por fim Helden. - Um homem veio de Londres para ajudar-nos. Já deve estar lá.

- Quem é ele?

- Um judeu de um lugar chamado Har Sha’alav.

- Um judeu de Har Sha’alav foi procurar-me. É por isso que eu estou aqui - disse Althene.

- Sei disso.

A porta do apartamento foi aberta por um homem magro e moreno, de cabelos bem pretos. Não era alto nem baixo e de seu corpo se irradiava uma aura dominante de força e energia. Isso era acentuado pelos ombros bem largos, pelo pano esticado de sua camisa branca, de gola aberta e mangas arregaçadas, o que lhe deixava à mostra os braços musculosos. Os cabelos eram curtos e o rosto, enérgico e rigidamente solene.

Olhou as duas mulheres e convidou-as a entrar. Não fez comentários sobre a perna ferida de Helden, nem sobre as roupas molhadas das duas mulheres.

- Sou Yakov Ben-Gadíz - disse ela. - Para evitar mal-entendidos, quem toma as decisões sou eu.

- Em que base? - perguntou Althene.

Ben-Gadíz olhou para ela.

- É a mãe?

- Sou.

- Não a esperava.

- E eu não esperava estar aqui. Estaria morta se não fosse essa moça.

- Neste caso, tem mais uma obrigação, além de sua obrigação fundamental.

- Eu lhe fiz uma pergunta. Com que autoridade vai tomar decisões por mim? Ninguém procede assim.

- Comuniquei-me com Neuchâtel. Há muito o que fazer esta noite.

- Só há uma coisa que eu tenho de fazer. Falar com meu filho.

- Isso fica para depois - disse Yakov Ben-Gadíz. - É preciso em primeiro lugar encontrar uma lista. Acho que deve estar no Hôtel d’Accord.

- Isso é essencial - disse Helden com a mão no braço de Althene.

- Tão essencial quanto encontrar seu filho - disse Yakov, olhando para Althene. - E preciso de uma isca.


42

Von Tiebolt estava falando ao telefone, tendo na outra mão o papel com o bilhete de Kessler. Falava com o vice-governador do cantão de Genebra.

- Pois saiba que o endereço está errado! Trata-se de um velho prédio abandonado, onde não há um só telefone. Na minha opinião, o Nachrichtendienst conseguiu invadir a rede telefônica na cidade. Tem de me descobrir o endereço!

Escutou durante alguns momentos e em seguida explodiu.

- Não, idiota, não posso telefonar para esse número! O empregado da portaria jurou que só daria o número a Holcroft. Se eu falasse com ela, poderia dizer o que quisesse que, ainda assim, ela ficaria alarmada. Trate de me conseguir o endereço. Pouco me interessa que tenha de acordar até o presidente do Conselho Federal para conseguir isso. Espero que me telefone no máximo dentro de uma hora.

Bateu o telefone e olhou de novo para o bilhete de Kessler. Já estavam sem dúvida no Excelsior, onde Holcroft se registrara com o nome de Fresca. Poderia telefonar para certificar-se, mas daí talvez resultassem complicações. O americano tinha de ser levado até as raias da loucura. Seu amigo de Londres fora assassinado, a mãe não podia ser encontrada e era possível até que ele já tivesse sabido da morte de Helden em Neuchâtel. Holcroft devia estar arrasado e poderia pedir um encontro com ele.

Johann ainda não estava preparado para concordar com isso. Passava pouco das três da manhã e a mãe ainda não fora localizada. Tinha primeiro de encontrá-la e matá-la. Faltavam ainda seis horas para a reunião no banco. A qualquer momento, destacando-se da multidão, saindo de um táxi, aparecendo numa escada ou numa esquina, ela poderia surgir diante de Holcroft e gritar: "Traição! Pare! Fuja de Genebra!"

Isso não devia absolutamente acontecer! A voz dela tinha de ser silenciada para que a programação do filho prosseguisse sem obstáculos. Tinha de ser naquela noite, quando todos os riscos poderiam ser eliminados com a morte dela. Depois disso, haveria outra morte, sem tropeços nem demoras. O filho de Heinrich Clausen teria cumprido a sua função.

Porém, primeiro a mãe dele. Antes que amanhecesse o dia. O que o enfurecia era saber que ela estava na cidade. Na ponta de uma linha de telefone cujo verdadeiro endereço estava escondido no arquivo de algum burocrata...

Johann sentou-se e tirou uma faca longa e de corte duplo de uma bainha cosida no seu casaco. Tinha de lavá-la. Ainda mostrava o sangue do piloto de barba ruiva.

Noel abriu a maleta em cima do banco e olhou para a confusão de roupas amarfanhadas que havia dentro dela. Correu então os olhos pelas paredes forradas de papel, para as portas envidraçadas que davam para a pequena varanda e para o lustre de cristal pendente do teto. Os quartos de hotel começavam a parecer-se muito uns com os outros e até o faziam lembrar-se com alguma saudade do quarto pobre do hotel de Berlim. Era estranha essa saudade. Afinal, fora lá que ele entrara naquele mundo tão diferente e, quando lá estivera, ainda todas as suas faculdades estavam intactas. Não sabia se fora um mal ou fora um bem, mas assim é que tinha sido.

Erich estava ao telefone, tentando falar com Von Tiebolt no Hôtel d’Accord. Onde podia estar Johann? Eram três e meia da manhã. Kessler desligou e voltou-se para Noel.

- Ele deixou um recado pedindo que não ficássemos alarmados. Está na casa do vice-governador. Os dois estão fazendo tudo o que podem para encontrar sua mãe.

- Quer dizer que ela ainda não telefonou?

- Não.

- Não compreendo. O homem da portaria ainda está lá?

- Ainda. Você deu a ele o equivalente a meio mês de ordenado. O mínimo que ele pode fazer é passar a noite acordado na portaria. Sabe de uma coisa? Na minha opinião, sua mãe sofreu apenas um atraso na viagem. Conexões perdidas, falta de teto num aeroporto, dificuldades com as autoridades de imigração. São coisas que acontecem...

- Tudo isso é possível, mas, ainda assim, não compreendo. Se acontecesse alguma coisa assim, minha mãe se comunicaria comigo.

- Talvez ela tenha sido detida.

- Pensei nisso também e creio que é a melhor coisa que poderia acontecer. Ela está viajando com um passaporte falso. Que seja levada então para uma prisão e passe alguns dias lá. Ao menos, assim estará protegida. Helden também não telefonou?

- Ninguém - respondeu o alemão.

Holcroft se espreguiçou, tendo na mão os apetrechos de barba.

- É essa espera interminável que está me enervando. Vou fazer a barba e tomar um banho.

- Boa ideia. Por que não descansa um pouco depois? Você deve estar exausto. Faltam menos de cinco horas para a reunião, e creio que Johann é um homem bem resistente.

- É com isso que estou contando - disse Holcroft.

Tirou a camisa e abriu ao máximo a torneira de água quente, gerando vapor. Este subiu da banheira e enevoou o espelho e a área em torno da pia. Expôs o rosto ao calor, apoiando-se na borda da pia, e ficou assim até que o suor começou a aparecer-lhe na testa. Tinha aprendido isso com Sam Buonoventura muitos anos antes. Não podia substituir um bom banho, mas ajudava.

Sam, Sam! Por que não havia ainda pensado nele? Se sua mãe tivesse mudado de planos ou se alguma coisa lhe tivesse acontecido, era muito possível que ela tivesse telefonado para Sam, especialmente se não encontrasse ninguém com o nome de Noel Holcroft hospedado no Hôtel d’Accord.

Olhou para o seu relógio. Eram três e trinta e cinco, hora de Genebra; dez e trinta e cinco, hora do Caribe. Se Sam tivesse alguma coisa para dizer-lhe, diria pelo telefone.

Noel fechou a torneira. Ouviu do banheiro a voz de Kessler, mas não havia ninguém mais no quarto. Com quem estaria falando e em voz tão baixa?

Holcroft entreabriu a porta. Kessler estava do outro lado do quarto, de costas para a porta do banheiro, falando ao telefone. Noel ouviu as palavras e saiu.

- Essa é que é a solução. Ela está viajando com passaporte falso. Informe-se junto às autoridades de imigração...

- Erich!

Yakov Ben-Gadíz fechou o estojo de primeiros socorros, levantou-se da cama e olhou o curativo que havia feito. O ferimento de Helden estava inflamado, mas não havia infecção. Tinha substituído as ataduras sujas.

- Pronto - disse ele. - Isto servirá por algum tempo. Mas você deve ficar em repouso, com a perna levantada. A inflamação vai ceder dentro em pouco.

- Não me diga que também é médico - disse Helden.

- Não é preciso ser médico para cuidar de um ferimento de bala. A gente fica habituada a essas coisas. Agora, fique aqui que eu quero conversar com Mrs. Holcroft.

- Não!

Ben-Gadíz parou.

- Que foi que você disse?

- Não a faça sair sozinha. Ela já está muito aflita, não só pelo seu sentimento de culpa, mas também pelo receio do que possa acontecer ao filho. Ela não pode pensar com clareza e não terá chance. Não faça isso.

- E, se eu fizer, você vai impedir-me?

- Há um meio melhor. Quer atrair meu irmão. Por que não me usa como isca?

- Quero a lista dos Sonnenkinder primeiro. Temos três dias para matar Von Tiebolt.

- Três dias?

- Os bancos ficam fechados amanhã e no domingo. Só na segunda-feira poderão encontrar-se com os diretores de La Grande Banque. Mas a lista está em primeiro lugar. Concordo plenamente com Litvak.

- Se é tão importante assim, deve estar com Johann.

- Duvido muito. Homens como seu irmão não se arriscam assim. Se levasse a lista com ele, poderia perdê-la num acidente, num assalto... ou para alguém como eu. Não a guardaria também no cofre do hotel. Deve estar no quarto dele, num cofre mais seguro. Quero ir a esse quarto e quero seu irmão por algum tempo fora de lá.

- Mais uma razão para você me usar! - exclamou Helden. - Ele pensa que eu fui morta. Não me viu no campo de pouso hoje, até porque estava procurando Mrs. Holcroft e não a mim. Ficará espantado quando souber que estou viva. Irá a qualquer ponto em que eu marcar encontro com ele. Bastar-me-á dizer a palavra "Nachrichtendienst". Tenho certeza disso.

- E estou contando com isso - disse Yakov. - Mas para amanhã. Quem ele quer ver esta noite é Mrs. Holcroft e não você.

- Direi a ele que ela está comigo. Será perfeito.

- Ele não vai acreditar em você. Afinal de contas, você foi a Neuchâtel para ver Werner Gerhardt e conseguiu escapar do pistoleiro que ele mandou para lá. Vai julgar que se trata de uma armadilha.

- Ao menos, deixe-me ir com ela. Pegue sua lista. Eu tratarei de matá-lo. Fique certo disso.

- Acredito, mas você se esquece de uma coisa. Dou a seu irmão mais crédito do que você está dando. Sejam quais forem os nossos meios de proteção, ele controlará o encontro com Mrs. Holcroft esta noite. Ele leva todas as vantagens sobre nós em homens e em métodos.

Helden olhou para o israelense.

- Você não vai usá-la; vai sacrificá-la!

- Usarei cada um de nós, sacrificarei cada um de nós para fazer o que tem de ser feito. Se você interferir, eu a matarei!

Yakov saiu do quarto.

Althene estava sentada a uma mesinha no fundo da sala, cuja única iluminação era uma pequena lâmpada. Vestia um roupão de banho vermelho que encontrara num dos armários da casa. Suas roupas molhadas e as de Helden estavam secando, estendidas nos aquecedores. Estava escrevendo. Ao ouvir os passos de Yakov, voltou-se.

- Tirei um pouco do papel de sua mesa - disse ela.

- Nem o papel nem a mesa me pertencem. Estava escrevendo uma carta?

- Estava. Para meu filho.

- Para quê? Com um pouco de sorte, nós o encontraremos e dirá então de viva voz tudo o que quiser.

Althene encarou firmemente Yakov.

- Ambos sabemos que há pouca probabilidade de que eu ainda venha a vê-lo.

- Acha mesmo?

- É claro. Pouco adianta iludir-me ou que o senhor tente iludir-me. Von Tiebolt tem de se encontrar comigo. Quando isso acontecer, ele não me deixará sair com vida. Que motivo teria para isso?

- Tomaremos as maiores precauções possíveis.

- Levarei uma pistola e lhe agradeço. Não pretendo ficar de pé e dizer-lhe que pode atirar.

- Seria melhor se estivesse sentada.

Sorriram um para o outro.

- Somos práticos, não somos? Não é à toa que somos sobreviventes.

Yakov encolheu os ombros.

- É mais fácil assim.

- Escute, essa lista que deseja deve ser enorme. Para conter os nomes dos Sonnenkinder e suas famílias em toda parte não pode deixar de constar de vários volumes.

- Não é essa a lista que procuramos e duvido muito de que um dia cheguemos a vê-la. A lista que poderemos encontrar, que teremos de encontrar, é bem menor e é uma lista prática. Contém os nomes dos chefes que receberão o dinheiro e o distribuirão por zonas estratégicas. Essa lista deve estar num lugar onde Von Tiebolt possa apanhá-la com facilidade.

- E, com ela, terá a identidade dos chefes da Wolfsschanze?

- Em toda parte.

- Por que tem tanta certeza de que está no Hôtel d’Accord?

- Só pode estar lá. Von Tiebolt não confia em ninguém. Pode deixar os outros tratarem de fragmentos, mas quem comanda o conjunto é ele. Não depositaria a lista num cofre, nem a levaria com ele. Deve estar no seu quarto de hotel, no meio de uma porção de armadilhas. E, ainda assim, só a deixaria premido pelas circunstâncias.

- Estamos de acordo em que eu seja uma dessas circunstâncias?

- Exatamente. Ele a teme como não teme a ninguém mais, pois sabe que é a única pessoa capaz de afastar Holcroft de Genebra. Precisam dele como sempre têm precisado. As leis têm de ser observadas para que os fundos sejam liberados. Nunca houve qualquer outro meio.

- Há um terrível paradoxo nisso. A lei tem de ser respeitada para que se cometa a maior ilegalidade imaginável.

- Não é a primeira vez que isso acontece, Mrs. Holcroft.

- E a respeito de meu filho? Vai matá-lo?

- Não o desejo.

- Eu gostaria de alguma coisa mais concreta.

- Não haverá motivo para a morte dele, se ele ficar do nosso lado. Se for possível convencê-lo da verdade sem que ele pense que se trata de um truque, há boas razões para conservá-lo vivo. A Wolfsschanze não terminará com o colapso dos fundos. Os Sonnenkinder continuarão à solta. Ficarão estropiados, mas não desmascarados, nem destruídos. Precisaremos de todas as vozes que puderem levantar-se contra eles. Seu filho terá uma história muito importante para contar. Juntos, poderemos chegar às pessoas que têm de escutar.

- Como conseguirá convencê-lo... se eu não voltar do meu encontro com Von Tiebolt?

O israelense viu a sombra de um sorriso nos lábios de Althene e compreendeu a pausa que ela fizera. A precaução dela estava certa. Não voltaria.

- Como o contato em Neuchâtel e eu vemos as coisas, temos ainda o dia de hoje e o de amanhã. As providências em La Grande Banque só vão começar na segunda-feira. Vão manter seu filho isolado, fora do meu alcance. Cabe-me romper esse isolamento e tirá-lo de lá.

- E, quando fizer isso, que é que vai dizer?

- Dir-lhe-ei a verdade. Exporei tudo o que conseguimos apurar em Har Sha’alav. Helden poderá ajudar muito, se ainda estiver viva. Depois, eu já terei encontrado a lista e a mostrarei a ele.

- Mostre-lhe esta carta que eu estou escrevendo - disse Althene.

- Isso também pode ajudar muito.

- Erich!

Kessler voltou-se, com o corpo obeso subitamente rígido. Começou a desligar o telefone, mas Holcroft fê-lo parar.

- Espere aí! Com quem está falando?

Noel tomou o telefone e falou.

- Alô? Quem é?

Silêncio.

- Quem é?

- Por favor - murmurou Kessler. - Estamos apenas procurando protegê-lo. Você não poderá ser visto nas ruas. Sabe muito bem disso. Seria morto. Você é a chave de Genebra.

- Você não estava falando a meu respeito!

- Estávamos tentando encontrar sua mãe. Você disse que ela partiu de Lisboa com um passaporte falso. Nós não sabíamos disso. Johann conhece gente que fornece tais documentos. Era disso que estávamos falando.

Holcroft tornou a falar pelo telefone.

- É você, Von Tiebolt?

- Sim, Noel - foi a resposta calma. - Erich tem razão. Tenho amigos aqui que estão tentando ajudar sua mãe. Ela pode estar em perigo. Você não pode participar das pesquisas. Deve permanecer escondido.

- Não posso, hein? Devo, hein? Pois vou dizer uma coisa a vocês dois! Eu é que decido o que faço ou deixo de fazer. Entenderam?

O professor fez um sinal de assentimento. Von Tiebolt não disse nada do outro lado da linha.

- Perguntei se tinham entendido!

- É claro que sim - disse então Johann. - Como Erich lhe disse, quero apenas ajudar. Essa informação de que sua mãe está viajando com um passaporte falso pode ser muito valiosa. Conheço homens que tratam desses assuntos. Vou dar alguns telefonemas e depois lhe direi o que apurar.

- Faça-me esse favor.

- Se não nos virmos mais até amanhã, iremos encontrar-nos no banco. Erich já deve ter-lhe explicado.

- Já, sim. E, Johann... desculpe ter perdido a calma. Sei muito bem que você está procurando ajudar. As pessoas que nos combatem são chamadas o Nachrichtendienst, não é? Foi o que você apurou em Londres.

Houve uma pausa na linha. Em seguida:

- Como é que você soube?

- Deixaram um cartão de visita. Quero pegar esses imundos!

- E nós também.

- Obrigado. Telefone-me no momento em que souber de alguma coisa.

Noel desligou e voltou-se para Kessler.

- Nunca mais faça uma coisa dessas!

- Desculpe. Pensei que estava fazendo o que devia. Como creio que você estava fazendo o que achava que era certo quando me seguiu à saída do hotel.

- É uma vida bem complicada a que estamos levando atualmente, não é? - disse Noel, estendendo a mão para o telefone.

- Que é que vai fazer?

- Quero falar com um homem em Curaçau. Ele pode saber de alguma coisa.

- Ah, sim. O engenheiro que retransmite os seus recados.

- Sim, devo muito a ele.

Noel falou com a telefonista internacional e deu-lhe o número do telefone de Curaçau.

- Vai haver alguma demora?

- A esta hora, os troncos estão desembaraçados.

- Vou esperar na linha, então.

Sentou-se na cama e esperou. Noventa segundos depois, ouviu o telefone de Sam chamar.

Uma voz de homem atendeu. Mas não era a voz de Sam.

- Alô?

- Quero falar com Sam Buonoventura.

- Quem quer falar com ele?

- Um amigo pessoal. Estou falando da Europa.

- Não vai poder falar com ele, moço. Sam não atende mais a telefones.

- Que quer dizer com isso?

- Morreu, moço. Alguém o estrangulou esta noite com um arame. Estamos batendo tudo por aí à procura do assassino.

Holcroft baixou a cabeça. Fechou os olhos e prendeu a respiração. Tinham descoberto a ajuda que Sam lhe prestava e isso não podia ser tolerado. Sam era seu centro de informações. Fora morto e não haveria mais recados. O Nachrichtendienst estava procurando isolá-lo. Tinha uma dívida com Sam e essa dívida fora paga com a morte. Tudo aquilo em que ele tocava era ferido de morte. Ele era o veículo da morte.

- Não procurem mais o assassino - gritou ele pelo telefone. - Quem o matou fui eu!


43

- Seu filho mencionou alguma vez o nome "Tennyson"? - perguntou Ben-Gadíz.

- Não.

- Qual foi a última vez em que falou com ele?

- Foi depois da morte de meu marido. Ele estava em Paris.

Yakov descruzou os braços; ouvira o que queria ouvir.

- Foi essa a primeira vez em que falou com ele depois da morte de seu marido?

- Da morte, não. Do assassinato, embora eu não soubesse disso naquela ocasião.

- Responda à minha pergunta, sim? Foi a primeira vez em que falou com ele depois que seu marido morreu?

- Foi.

- Neste caso, foi uma conversa triste.

- É claro. Eu tinha de dizer a ele.

- Muito bem. Nessas ocasiões, a cabeça fica perturbada e é difícil recordar com clareza as coisas que se disseram. Foi aí que ele mencionou o nome "Tennyson". Disse-lhe ele então que estava a caminho de Genebra, provavelmente em companhia de um homem chamado Tennyson. Pode dizer isso a Von Tiebolt?

- É evidente que posso. Mas será que ele vai acreditar?

- Não tem outro remédio. Ele a quer.

- E eu o quero.

- Telefone então para ele. E não se esqueça de que tem de se mostrar muito nervosa, de parecer uma mulher tomada de um pânico incontrolável. Desconcerte-o com sua voz. Grite, sussurre, gagueje. Diga-lhe que a senhora devia procurar o seu piloto no campo de pouso, mas que houve lá um assassinato, o lugar estava cheio de gente da polícia e que a senhora está apavorada. É capaz de fazer isso?

- Se duvida, ouça - disse Althene, pegando o telefone.

A telefonista do Hôtel d’Accord fez a ligação para o quarto do importante hóspede Mr. John Tennyson.

Yakov escutou com admiração o desempenho de Althene.

- Procure controlar-se, Mrs. Holcroft - disse a pessoa que atendera ao telefone no hotel.

- É então o Tennyson de que meu filho falou?

- Sim. Nós nos conhecemos em Paris.

- Pode me ajudar, pelo amor de Deus?

- Sem dúvida. Será uma honra para mim.

- Onde está Noel?

- Infelizmente, não sei... Ele tem negócios em Genebra com os quais não estou envolvido.

- Não está? - exclamou Althene, como se tivesse recebido uma boa notícia.

- Não. Jantamos juntos ontem à noite e ele saiu logo depois para tratar dos seus negócios.

- Disse para onde ia?

- Que eu me lembre, não. Compreenda, estou em trânsito para Milão... Disse em Paris a Noel que me demoraria um pouco em Genebra para mostrar-lhe a cidade que ele não conhecia.

- Pode encontrar-se comigo, Mr. Tennyson?

- Certamente. Onde é que está?

- Devemos ter cuidado. Não posso deixar que se arrisque.

- Para mim, não há riscos, Mrs. Holcroft. Ando por Genebra em plena liberdade.

- Eu, não. Houve comigo aquele terrível caso no Médoc.

- Tenha calma. Está muito nervosa. É compreensível, mas creio que não deve haver nada de pessoal contra a senhora. Onde está? Onde podemos encontrar-nos?

- Na estação da estrada de ferro. Na sala de espera do lado norte. Daqui a quarenta e cinco minutos. Deus lhe pague.

Desligou repentinamente e Yakov Ben-Gadíz sorriu, aprovando.

- Ele terá muito cuidado - disse o israelense. - Tratará de organizar as suas defesas, e isso nos dará mais tempo. Vou para o hotel. Tenho necessidade de todos os minutos.

Von Tiebolt repôs sem pressa o fone no gancho. As probabilidades de uma armadilha eram muito grandes, mas não havia provas. Dissera de propósito que Holcroft não conhecia Genebra. Era uma mentira, e a velha não podia deixar de saber disso. Mas, por outro lado, o seu medo parecia genuíno, e uma mulher de sua idade apavorada preferia ser ouvida, sem prestar muita atenção ao que lhe diziam. Era concebível que não tivesse escutado o que ele dissera ou que, tendo escutado, julgasse o fato insignificante em face das preocupações que a alarmavam.

O uso por Noel Holcroft do nome "Tennyson" não era de estranhar no americano. Era sujeito a efusões emotivas e, nessas ocasiões, falava muitas vezes sem pensar. A notícia da morte de Richard Holcroft em Nova York devia tê-lo emocionado tanto que o nome "Tennyson" lhe saíra irrefletidamente.

Além disso, o americano tinha revelado energias de cuja existência nunca suspeitara. Dar o nome à mãe dele estava em contradição com a disciplina que tinha desenvolvido. Ademais, Johann sabia que estava lidando com uma mulher capaz de obter documentos falsos e que havia desaparecido em Lisboa. Não seria levado a uma armadilha por uma velha em pânico real ou fictício.

O telefone tocou, interrompendo-lhe a concentração.

- Alô?

Era o vice-governador. Ainda estavam tentando descobrir o endereço exato do telefone dado ao hotel por Mrs. Holcroft. Um funcionário de confiança estava a caminho dos escritórios da Telefônica, que iam ser abertos para uma investigação completa. Von Tiebolt replicou friamente:

- Quando ele tiver a informação, não nos servirá mais de nada. Já entrei em contato com a mulher. Mande um homem da polícia com um carro oficial imediatamente ao Hôtel d’Accord. Diga-lhe que sou um hóspede oficial da cidade e mereço tratamento especial. Mande-o esperar por mim na entrada durante quinze minutos.

Von Tiebolt não esperou a resposta. Desligou e voltou à mesa, onde havia duas pistolas. Tinha-as desmontado para limpeza e agora ia montá-las rapidamente. Eram duas das armas prediletas do Tinamou.

Se Althene Holcroft estava tendo a audácia de servir de isca para uma armadilha, iria aprender que não podia enfrentar o chefe da Wolfsschanze. A armadilha se voltaria contra ela e iria esmagá-la entre os seus dentes.

O israelense estava bem escondido num beco próximo do Hôtel d’Accord. Na escadaria do hotel, Von Tiebolt conversava calmamente com um oficial de polícia, dando-lhe instruções.

Quando acabaram de falar, o oficial correu para o seu carro. O homem louro se encaminhou para uma limusine preta encostada ao passeio e embarcou, sentando-se ao volante. Von Tiebolt não queria chofer para a viagem que ia fazer.

Os dois carros desceram a Rue des Granges. Yakov esperou que ambos desaparecessem e então, de pasta na mão, atravessou a rua para o hotel.

Aproximou-se do balcão da portaria, com todo o aspecto de um funcionário público, farto de tudo.

- Sou perito da polícia - disse ele com um suspiro de tédio. - Fizeram-me sair da cama para vir colher novos indícios no quarto do tal Ellis, que foi assassinado. Esses inspetores parece que não sabem que a gente não é de ferro e precisa dormir. Qual é o quarto?

- Terceiro andar. Quarto 31 - disse o empregado. - Há um detetive à porta.

- Obrigado.

Ben-Gadíz entrou no elevador e apertou o botão do quinto andar. John Tennyson estava hospedado no quarto 512. Não estava em tempo de entregar-se a jogos com um detetive de serviço. Precisava de todos os minutos e até de todos os segundos que pudesse conseguir.

O homem com a farda da polícia de Genebra entrou na sala de espera da estação, fazendo ressoar no chão os tacões de suas botas. Aproximou-se da velha sentada na primeira fila de bancos.

- Mrs. Althene Holcroft?

- Sim?

- Tenha a bondade de acompanhar-me, senhora.

- Posso saber para quê?

- Para levá-la até onde está Mr. Tennyson.

- Há necessidade disso?

- Trata-se de uma gentileza da cidade de Genebra.

A velha levantou-se e acompanhou o homem fardado. Quando iam chegando às portas da sala de espera, mais quatro guardas surgiram e tomaram posição em frente às portas. Ninguém passaria por elas até segunda ordem.

Do lado de fora, na plataforma, ao lado de um carro da polícia parado junto ao meio-fio, havia mais dois guardas. Um deles abriu a porta do carro e ela entrou. O homem que a escoltara disse aos seus subordinados:

- De acordo com as ordens recebidas, nem carros particulares nem táxis poderão sair daqui da estação por um período de vinte minutos. Se houver qualquer tentativa em contrário, peça as identificações e transmita as informações pelo rádio para o meu carro.

- Muito bem.

- Se não houver quaisquer incidentes, os homens poderão voltar aos seus postos dentro de vinte minutos.

Em seguida, o homem entrou no carro e ligou o motor.

- Para onde vamos? - perguntou Althene.

- Para uma casa de hóspedes na propriedade do vice-governador de Genebra. Esse Mr. Tennyson deve ser um homem muito importante.

- Em muitos sentidos - murmurou Althene.

Von Tiebolt estava à espera, sentado ao volante da limusine preta, estacionada a cinquenta metros da rampa que subia da estação. Viu o carro da polícia seguir pela rua e esperou até ver os guardas tomarem posição.

Partiu então, seguindo o carro da polícia a uma distância discreta, atento aos outros carros que porventura demonstrassem qualquer interesse pelo veículo que transportava Althene. Todas as contingências tinham de ser previstas, inclusive a possibilidade de que a velha fosse portadora de algum dispositivo eletrônico que informasse a sua localização a terceiros.

O último obstáculo ao Código Wolfsschanze seria eliminado dentro de uma hora.

Yakov Ben-Gadíz estava diante da porta de Von Tiebolt. Havia à porta um cartaz que pedia que não perturbassem. Yakov ajoelhou-se e abriu a pasta. Tirou uma lanterna elétrica de formato estranho e ligou-a, produzindo uma luz verde quase imperceptível. Apontou a luz para a parte inferior da porta, depois para os lados e para a parte superior. Estava à procura de fios de linha ou de cabelos que, se fossem removidos, indicariam que alguém havia entrado no quarto. A luz revelou dois fios estendidos embaixo, depois três colocados verticalmente e mais um em cima. Yakov tirou uma espécie de minúsculo alfinete do cabo da lanterna. Tocou delicadamente a madeira ao lado de cada fio. As marcas do alfinete eram infinitesimais. Invisíveis a olho nu, podiam facilmente ser vistas com a luz verde. Em seguida, tirou da pasta um pequeno cilindro de metal. Era um instrumento eletrônico de abrir fechaduras extremamente complexo, que fora elaborado nos laboratórios antiterroristas de Tel-Aviv.

Yakov colocou o bocal do cilindro sobre a fechadura e acionou o mecanismo. Dentro em pouco, a fechadura se abriu. Ele fez deslizar os dedos da mão esquerda pela borda da porta e retirou cuidadosamente os fios. Abriu devagar a porta. Pegou a pasta, entrou e fechou a porta. Havia uma mesinha junto à parede. Depositou nela os fios, prendendo-os com o cilindro, e tornou a ligar a lanterna. Consultou o relógio. Calculando tudo com otimismo, não dispunha de mais que trinta minutos para desativar os dispositivos de proteção que Von Tiebolt devia ter instalado em torno da lista dos Sonnenkinder. O fato de que os fios estivessem na porta era um bom sinal. Havia um motivo para que estivessem lá.

Percorreu com a luz verde a sala. Havia dois armários e a porta do quarto, tudo fechado. Eliminou primeiro os armários. Não havia fios, nem portas trancadas.

Aproximou-se da porta do quarto e iluminou as bordas com a lanterna. Não havia fios, mas havia outra coisa. A luz verde captou o reflexo de uma fraca luz amarela entre a porta e o batente, a cerca de meio metro do chão. Ben-Gadíz compreendeu imediatamente que se tratava de uma célula fotelétrica em miniatura fazendo contato com outra encaixada na madeira do dorso da porta.

Se a porta fosse aberta, o contato seria interrompido e um alarma seria ligado. Era um dispositivo tão seguro quanto a tecnologia moderna permitia. Não havia meio de imobilizar o mecanismo. Yakov já conhecia aquelas células com reguladores de tempo intercalados. Uma vez colocados, os dispositivos funcionavam pelo espaço de tempo que fosse determinado, raramente inferior a cinco horas. Nem mesmo a pessoa que colocara o dispositivo podia neutralizá-lo antes de decorrido o tempo marcado.

Isso mostrava que Johann von Tiebolt esperava interromper o contato para poder entrar no quarto. Podia haver emergências que tornassem necessário que o alarma fosse liberado por ele.

Que espécie de alarma seria? Não podia ser sonoro, pois isso chamaria a atenção para o quarto. Havia a possibilidade de sinais de rádio, mas o alcance deles não podia deixar de ser limitado.

Não. O alarma tinha de liberar um fator de impedimento na vizinhança imediata da zona protegida. Devia ser alguma coisa capaz de imobilizar um intruso mas que pudesse ser desligada por Von Tiebolt.

Um choque elétrico seria muito aleatório. Um ácido seria incontrolável. Von Tiebolt poderia sofrer alguma lesão permanente ou ficar desfigurado. Seria um gás? Um vapor?

Toxina. Um veneno vaporizado. Vapores tóxicos. Suficientemente fortes para fazer um invasor perder os sentidos. Uma máscara de oxigênio seria uma proteção eficiente para o vapor. Se Von Tiebolt usasse uma máscara, poderia entrar no quarto à vontade.

As máscaras contra gases não eram desconhecidas na esfera de atividades de Yakov. Voltou à sua pasta e tirou dela uma máscara com um pequeno recipiente de oxigênio. Ajustou-a ao rosto, com o bocal, voltou à porta. Empurrou-a e recuou dois passos.

Uma explosão de vapor encheu o quadro da porta. Ficou em suspensão durante alguns segundos e então evaporou rapidamente, deixando o espaço tão claro quanto antes, como se nunca tivesse aparecido. Ben-Gadíz sentiu um leve ardor em volta dos olhos. O gás era irritante e não ofuscante, mas Yakov sabia que, se o inalasse, as substâncias que produziam o ardor lhe inflamariam os pulmões e causariam o seu colapso instantâneo. Era a prova que ele estava procurando. A lista dos Sonnenkinder devia estar naquele quarto.

Transpôs a porta e passou por um tripé com um cilindro de gás preso no alto. Para afastar quaisquer vestígios do gás, abriu uma janela e o vento frio de inverno entrou no quarto, levantando as cortinas.

Ben-Gadíz voltou à sala, pegou a pasta e entrou de novo no quarto para iniciar a procura. Presumindo que a lista seria protegida por alguma caixa de aço resistente ao fogo, pegou um pequeno disco explorador de metal com mostrador luminoso. Começou nas proximidades da cama e foi dando volta ao quarto.

A agulha do detector deu um pulo diante do armário de roupas. A luz verde captou os pontinhos amarelos já esperados na porta.

Encontrara o esconderijo.

Abriu a porta e houve uma onda de vapor, como a que se produzira com a abertura da porta do quarto. Só que era mais densa e demorou mais tempo. O primeiro alarma podia ter funcionado mal, mas aquele continha toxinas suficientes para matar um homem. No chão do armário, havia um saco de couro marrom, macio e claro, mas Yakov percebeu que não se tratava de uma peça comum de bagagem. Não havia dobras dos lados como havia no alto. O saco era de couro reforçado com aço.

Procurou fios e marcas com a luz verde, mas não encontrou coisa alguma. Levou a pasta para a cama e apertou outro botão da lanterna. A luz verde foi substituída por um facho de luz amarelada. Examinou os dois fechos do saco. Eram diferentes e cada um deles devia disparar um alarma diferente.

Tirou uma pequena gazua do bolso e introduziu-a no fecho da direita, tendo o cuidado de manter as mãos à maior distância possível.

Houve um desprendimento de ar e uma comprida agulha se projetou à esquerda do fecho. Um líquido escorreu da ponta da agulha e algumas gotas pingaram no tapete. Yakov tirou um lenço, limpou a agulha e introduziu-a de novo cautelosamente no fecho, empurrando-a com a gazua.

Voltou então a atenção para o fecho da esquerda. Colocando-se de lado, repetiu as manobras com a gazua. O fecho se abriu com outro desprendimento de ar. Em lugar de uma agulha, alguma coisa foi projetada, indo cravar-se no estofo de uma poltrona do outro lado do quarto. Ben-Gadíz correu para lá, fazendo a luz da lanterna brilhar sobre o ponto de impacto. Havia um círculo úmido no local. Yakov retirou o objeto com sua gazua.

Era uma cápsula gelatinosa com ponta de aço. Entraria na carne tão facilmente quanto entrara no pano da poltrona. O líquido devia ser algum poderoso narcótico.

Satisfeito, Yakov guardou a cápsula no bolso e voltou ao saco de couro. Encontrou dentro um estojo de metal preso aos suportes de aço. Tinha atingido a caixa de segurança protegida pelos alarmas, depois de vencer vários dispositivos mortíferos, e ela afinal lhe pertencia. Olhou o relógio. A operação havia levado dezoito minutos.

Levantou a tampa da caixa e tirou os papéis. Havia onze páginas, cada qual com seis colunas de nomes, endereços e cidades. Havia aproximadamente mil seiscentos e cinquenta nomes.

Eram a elite dos Sonnenkinder, os manejadores da Wolfsschanze.

Yakov se ajoelhou ao lado de sua pasta aberta e tirou uma máquina fotográfica.

- Vou êtes très aimable. Nous vous téléphonons dans une demi-heure. Merci[42].

Kessler desligou o telefone, sacudindo negativamente a cabeça para Holcroft, que estava à janela da suíte do Excelsior.

- Nada. Sua mãe não telefonou para o D’Accord.

- Tem certeza?

- Não houve telefonemas de espécie alguma para Mr. Holcroft. Falei diretamente com a telefonista, pois o homem da portaria poderia ter saído por um momento. Você não ouviu?

- Não posso compreender. Onde estará ela? Devia ter telefonado há algumas horas. E Helden? Disse que me telefonaria na sexta-feira à noite e já estamos na manhã de sábado!

- Quase quatro horas - disse Erich. - Acho que você devia descansar um pouco. Johann está fazendo tudo o que é possível para encontrar sua mãe. Chamou os melhores homens de Genebra para trabalharem para nós.

- Não posso descansar. Acabei de matar um homem em Curaçau. Ele estava me ajudando e eu o matei.

- Não foi você que o matou. Foi o Nachrichtendienst.

- Então vamos fazer alguma coisa! Von Tiebolt tem amigos de posição. Deve pô-los em ação! Tem de falar com o serviço secreto inglês, que tem uma dívida com ele, pois Von Tiebolt capturou o Tinamou! Ele tem de cobrar essa dívida! Já! É preciso que o mundo inteiro saiba da existência desses assassinos! Que é que estamos esperando?

Kessler deu alguns passos na direção de Noel.

- Estamos esperando o mais importante de tudo. A reunião no banco, o pacto. Depois disso, não haverá nada que não possamos fazer. E, quando fizermos alguma coisa, o mundo inteiro terá de nos escutar. O nosso pacto é a solução para muita coisa, Noel. Para você, para sua mãe, para Helden... Creio que você sabe disso.

Holcroft assentiu lentamente, com a voz cansada e o espírito exausto.

- Sei, sim. É o desconhecido e essa falta de notícias que estão me arrasando.

- Sei que é muito difícil para você. Mas em breve tudo isso estará terminado e tudo correrá bem. Agora, acho que vou tomar um banho.

Noel foi até a janela. Genebra ainda dormia... como tinham dormido Paris, Berlim, Londres e o Rio. De quantas janelas tinha ele olhado as cidades adormecidas à noite? Tantas... Nada mais será o que era para você...

Nada.

Holcroft franziu a testa. Nada. Nem mesmo o nome. Naquele hotel estava registrado como Fresca. Era esse o nome que Helden deveria procurar.

Fresca.

Correu para o telefone. Não era preciso Erich telefonar. A telefonista do D’Accord falava inglês e ele sabia o número. Discou.

- Hôtel d’Accord. Bonsoir.

- Telefonista, quem fala aqui é Holcroft. O Dr. Kessler falou com a senhorita há poucos minutos sobre os telefonemas que eu estou esperando.

- Perdão, monsieur. Dr. Kessler? Quer falar com o Dr. Kessler?

- Não, creio que não está compreendendo. O Dr. Kessler lhe falou ainda há pouco sobre os telefonemas que eu estou esperando. É sobre outro nome que eu lhe quero falar. Fresca, N. Fresca. Houve algum telefonema para N. Fresca?

- Mr. Fresca não está hospedado aqui, monsieur. Quer que ligue para o quarto do Dr. Kessler?

- Não, ele está aqui. Acabou de falar para aí.

Que coisa! pensou Noel. A moça podia falar inglês, mas decerto não entendia nada. Lembrou-se então do nome do empregado da portaria e deu-o à telefonista.

- Posso falar com ele?

- Sinto muito, monsieur. Ele deixou o serviço à meia-noite.

Holcroft olhou para a porta do banheiro. A água estava correndo e Erich não podia ouvi-lo. E a telefonista entendia perfeitamente o inglês.

- Tenha paciência, senhorita. Deixe-me entender bem as coisas. Não falou com o Dr. Kessler há poucos minutos?

- Não, monsieur.

- Há outra telefonista na mesa?

- Não. Estou sozinha aqui, pois o movimento é bem pequeno durante a noite.

- E o encarregado da portaria saiu à meia-noite?

- Como eu lhe disse.

- E não houve telefonemas para Mr. Holcroft?

- Penso que houve, monsieur. Uma senhora telefonou. Eu tinha recebido instruções para passar o telefonema para o encarregado da portaria. Isso foi logo depois que eu entrei de serviço.

- Muito obrigado - disse Noel, e desligou.

Nesse momento, a água no banheiro deixou de correr e Kessler voltou ao quarto. Viu Holcroft com a mão no telefone e os seus olhos se alteraram.

- Que diabo está acontecendo? - perguntou Noel. - Você não falou com o homem da portaria, nem com a telefonista. Minha mãe telefonou há algumas horas e você não me disse nada! Você mentiu!

- Não fique nervoso assim, Noel!

- Você mentiu para mim! - disse Holcroft, pegando o paletó do encosto de uma cadeira e apanhando na cama a capa com a pistola no bolso que havia atirado ali. - Minha mãe telefonou, cachorro!

Kessler correu para a entrada e se colocou diante da porta.

- Ela não estava onde disse que estaria. Ficamos muito preocupados. Estamos tentando descobri-la e protegê-la. E proteger você! Von Tiebolt compreende essas coisas, pois sempre viveu no meio delas. Deixe-o tomar as decisões.

- Decisões? Que decisões? Ninguém toma decisões por mim! Nem ele nem você! Saia da minha frente!

Kessler não se moveu e Holcroft agarrou-o pelos ombros e jogou-o do outro lado do quarto.

Depois, saiu correndo em direção às escadas.


44

Os portões da propriedade se abriram e o veículo oficial entrou. O policial cumprimentou o guarda do portão e olhou cautelosamente o Doberman, preso a uma correia e pronto para o ataque. Voltou-se para Mrs. Holcroft.

- A casa dos hóspedes fica a quatro quilômetros dos portões. Vou por aquela estrada da direita.

- Tenho de confiar no senhor, não é mesmo?

- Só lhe estou dizendo isso porque é a primeira vez que venho aqui. Espero acertar o caminho no escuro.

- Tenho certeza disso.

- Depois que a deixar lá, voltarei para reassumir os meus deveres na polícia. Disseram-me que não há ninguém na casa dos hóspedes, mas a porta se abrirá.

- Escute, Mr. Tennyson está esperando por mim?

- Creio que sim. De qualquer maneira, ele a levará de volta à cidade.

- É claro. Recebeu ordens diretamente de Mr. Tennyson?

- As instruções atuais, sim. As ordens, não. Estas foram diretas do vice-governador, por intermédio do chefe de polícia.

- O vice-governador? O chefe de polícia? São amigos de Mr. Tennyson?

- É o que parece. Segundo soube, Mr. Tennyson é um homem muito importante. Devem ser amigos, sim.

- Mas o senhor não é?

O homem riu.

- Eu, senhora? Não. Só vejo essa gente de passagem. Tudo isso não passa de gentileza da cidade.

- Compreendo. Acha que poderia estender essa gentileza até a minha pessoa, numa base confidencial? - disse Althene, abrindo a bolsa.

- Depende, senhora.

- É apenas um telefonema para uma amiga, que pode ficar preocupada. Esqueci-me de ligar para ela da estação.

- Com prazer - disse o policial. - Sendo amiga de Mr. Tennyson, deve ser também uma hóspede importante de Genebra.

- Vou escrever o número do telefone. Uma moça atenderá. Diga-lhe exatamente para onde foi que me trouxe.

A casa dos hóspedes era de pé-direito alto e tinha tapeçarias nas paredes e velhos móveis provinciais franceses. Parecia uma miniatura dos castelos do vale do Loire.

Althene se sentou numa cadeira grande, tendo colocado a pistola que Ben-Gadíz lhe dera entre a almofada e a base do braço. O policial saíra havia cinco minutos e ela esperava Johann von Tiebolt.

A quase invencível tentação de atirar no instante em que ele aparecesse tinha de ser dominada. Havia coisas que podia saber e tinha de sabê-las, diante da possibilidade de transmiti-las ao israelense e à moça, de uma maneira ou de outra...

Ele havia chegado. A prova era o barulho baixo e vibrante do motor de um carro. Ouvira o mesmo motor possante algumas horas antes, quando o mesmo carro havia parado num trecho deserto de estrada acima do lago de Genebra. Oculta entre as árvores, vira o homem louro matar cruelmente outro. Horas depois, vira-o de novo matar implacavelmente na Atterrisage Médoc. Matar aquele homem seria uma obrigação. Firme no seu propósito, tocou no cabo da pistola.

A porta se abriu e o homem alto e louro de feições cinzeladas entrou na sala e fechou a porta. Os seus movimentos sob a iluminação suave e indireta eram ágeis e fáceis.

- Como foi gentil em ter vindo, Mrs. Holcroft!

- Quem solicitou o encontro fui eu. A gentileza foi sua em tomar as providências. As suas precauções foram muito louváveis.

- Deve concordar em que eram necessárias.

- Nenhum automóvel poderia ter-nos seguido da estação até aqui.

- E nenhum seguiu. Estamos a sós.

- Esta casa é muito interessante. Meu filho haveria de gostar. Sendo arquiteto, diria que era um exemplo de uma coisa ou outra e apontaria várias influências.

- Tenho certeza disso. A cabeça dele funciona dessa maneira.

- É verdade - disse Althene, sorrindo. - Muitas vezes, ele vai por uma rua e de repente para e olha para uma janela ou uma cornija, vendo um detalhe que passa despercebido aos outros. É inteiramente dedicado à sua profissão. Não sei de quem pode ter herdado isso. Nunca me interessei por essas coisas e seu falecido pai era banqueiro.

- Neste caso, ambos os pais dele foram ligados a dinheiro.

- Sabe, então?

- Claro que sei que ele é filho de Heinrich Clausen. Creio que podemos deixar de mentir um para o outro, Mrs. Holcroft.

- Eu sabia que da sua parte era uma mentira, Herr von Tiebolt. Não pensei que soubesse que era também da minha.

- Para ser franco, não sabia até este momento. Se o seu objetivo era preparar-me uma armadilha, sinto muito tê-la arruinado. Mas devia ter contado com isso e ter contado com o risco.

- Sem dúvida.

- Por que então se arriscou tanto? Devia ter previsto as consequências.

- Decerto que previ. Mas julguei que seria justo dar-lhe conhecimento de uma ação anterior da minha parte. Talvez então um acordo pudesse ser concluído entre nós.

- Sério? Que acarretaria esse acordo?

- O abandono do pacto de Genebra e a dissolução da Wolfsschanze.

- Nada mais? - disse Johann, sorrindo. - Deve estar louca.

- Imagine que eu tenha escrito uma carta muito longa contando uma mentira dentro da qual vivi mais de trinta anos. Essa carta identificaria os participantes, sua estratégia por nome, por família e banco.

- Essa carta destruiria seu filho.

- Ele seria o primeiro a concordar com o que eu fiz, se soubesse.

Von Tiebolt cruzou os braços.

- Disse que escreveu uma carta e chamou-me a atenção para ela. Só lhe posso dizer que escreveu sobre uma coisa de que não tem conhecimento exato. Todas as leis foram rigorosamente observadas e os poucos fatos que possa ter mencionado não passam de elucubrações doentias de uma velha desequilibrada que foi durante muitos anos objeto de vigilância oficial. De qualquer maneira, o fato é inteiramente destituído de importância, porque essa carta nunca foi escrita.

- Não pode saber disso.

- Sei, sim. Temos cópias de todas as cartas, todos os testamentos, todos os documentos legais que escreveu nestes últimos cinco anos. Temos ainda um resumo fiel de todos os seus telefonemas.

- É sério?

- Há um dossiê no FBI com o código "Mamãe Maldita". Esse dossiê nunca poderá ser revelado publicamente por questões de segurança. Ele consta também dos arquivos da CIA e do serviço secreto da Defesa, bem como dos bancos de computadores do G-Dois do Exército. Estamos em toda parte. Pode compreender isso, Mrs. Holcroft? É uma coisa que tem de saber antes de deixar este mundo. Se ficasse aqui, não alteraria nada. Não pode deter-nos. Ninguém pode.

- Serão detidos, pois se baseiam em mentiras. Sempre foi assim. E quando as mentiras falham, vocês matam. Sempre foi essa a sua atitude.

- As mentiras são paliativos. A morte é muitas vezes a única solução para problemas irritantes que estorvam o progresso.

- Esses problemas são pessoas.

- Nunca deixam de ser.

- Você é o homem mais desprezível da terra. Você é um louco!

- Você transforma num prazer o que eu tenho de fazer - disse ele, tirando uma pistola do bolso. - Houve outra mulher que me disse as mesmas coisas. Era tão teimosa quanto você. Meti-lhe uma bala na cabeça, da janela de um carro, uma noite, no Rio de Janeiro. Era minha mãe e ela me chamou de louco e disse que eu era desprezível. Nunca percebeu a necessidade, nem a beleza da nossa causa. Tentou interferir. Alguns velhos, que tinham sido amantes dela, suspeitaram de mim e, ao seu modo fraco e ineficiente, tentaram acusar-me. Pode imaginar uma coisa dessas? Tentaram acusar-me! O que eles não sabiam era que os tribunais estavam em nossas mãos. Ninguém pode deter-nos!

- Noel o fará parar - disse Althene, aproximando a mão da pistola escondida ao seu lado.

- Seu filho morrerá dentro de um ou dois dias. Mas, ainda que não o matemos, outros o matarão. Deixou um rastro de crimes do qual não poderá se livrar. Um homem do serviço secreto inglês foi garroteado em Nova York. A última pessoa com quem ele falou foi seu filho. Graff foi assassinado no Rio depois de ter sido ameaçado por seu filho. Um engenheiro foi garroteado esta noite no Caribe. Ele retransmitia informações confidenciais a Noel Holcroft entre Paris e Nova York. Amanhã de manhã, um oficial de polícia chamado Miles será assassinado nas ruas de Nova York. O nome do criminoso que será encontrado no fichário do tenente será evidentemente Noel Holcroft. Sabe de uma coisa? O melhor que podemos fazer mesmo por seu filho para livrá-lo de tantos problemas é matá-lo. Resta-lhe muito pouco tempo de vida, aliás. - Levantou a pistola e apontou-a para a cabeça de Althene. - Como vê, Mrs. Holcroft, não poderá deter-nos. Estamos em toda parte.

Althene de repente se moveu na cadeira, estendendo a mão para a pistola.

Johann von Tiebolt atirou. Tornou a atirar. E ainda deu outro tiro.

Yakov Ben-Gadíz arrumou a suíte de Von Tiebolt, deixando tudo exatamente como encontrara, de modo que não houvesse vestígio algum de sua entrada.

Se fosse vivo, Klaus Falkenheim ficaria horrorizado com o que ele estava fazendo. A decisão do velho Coronel era a seguinte: consigam a lista. Uma vez de posse dos nomes, revelem publicamente a verdade sobre a conta. Façam a distribuição dos milhões ser interrompida. Quebrem os pés e as mãos dos Sonnenkinder.

Tinham sido essas as instruções de Falkenheim. Mas o assunto fora discutido calmamente entre os chefes de Har Sha’alav. Não tinham tido tempo de submeter, como pretendiam, as suas conclusões à consideração de Falkenheim. Tinham-lhe chamado a opção de Har Sha’alav.

Era perigoso, mas possível. Tinham de conseguir a lista e controlar os milhões. Em lugar de desmascarar a conta, roubá-la e usar essa grande fortuna para combater os Sonnenkinder em toda parte.

A estratégia não tinha sido completada, porque não se sabia o suficiente. Mas Yakov já sabia o suficiente. Dos três filhos que se apresentariam ao banco, um não era como os outros.

A princípio, Noel Holcroft fora a chave para o cumprimento do pacto da Wolfsschanze. No fim, seria a ruína do mesmo.

Falkenheim estava morto. Os diretores de Har Sha’alav também. A decisão seria exclusivamente dele.

A opção de Har Sha’alav.

Seria possível?

Iria saber nas próximas vinte e quatro horas.

Correu os olhos por tudo. Todas as coisas estavam nos seus lugares, exatamente como tinham estado. Entretanto, levava na sua pasta onze fotografias que podiam representar o começo do fim para a Wolfsschanze. Eram onze páginas de nomes dos Sonnenkinder através do mundo, pessoas poderosas e de confiança que encarnavam a mentira nazista havia mais de trinta anos.

Yakov pegou a pasta. Ia repor os fios na porta do quarto, quando...

Parou de repente e concentrou todos os seus pensamentos no movimento que havia do lado de fora. Ouvia distintamente os passos abafados pelo tapete, numa carreira pelo corredor do hotel. Pararam diante da porta. Silêncio. Uma chave rodou na fechadura e abriu o trinco. A porta ficou presa apenas pelo ferrolho a alguns centímetros de onde estava Yakov Ben-Gadíz.

- Abra a porta, Von Tiebolt!

Era o americano. Daí a segundos, arrombaria a porta.

Kessler se arrastou pelo chão, agarrou a cabeceira e levantou o corpanzil. Os óculos lhe tinham voado do rosto ante o ímpeto do ataque de Holcroft. Encontrá-los-ia dentro de poucos minutos. No momento, tinha de pensar no que devia fazer.

Holcroft tinha ido ao D’Accord para enfrentar Johann e nada havia que ele pudesse fazer. Mas Johann não estava no hotel e não havia tempo para o americano fazer escândalo.

Nem poderia, pensou Kessler, sorrindo. Holcroft não poderia conseguir a chave na portaria e subir para a suíte de Von Tiebolt. Se entrasse, correria imediatamente para a porta do quarto. No instante em que fizesse isso, cairia sem sentidos e deixaria por algum tempo de ser um problema.

Um antídoto e várias bolsas de gelo poderiam reanimá-lo suficientemente para que ele comparecesse à conferência no banco. Ser-lhe-iam dadas todas as explicações necessárias. Era preciso apenas que ele pegasse a chave do quarto.

Os empregados do D’Accord não entregariam a chave a Noel a pedido de outro hóspede, mas bastaria que o vice-governador falasse para o hotel. Todos sabiam que Von Tiebolt era seu amigo pessoal e ninguém poderia recusar-lhe nada.

Erich pegou o telefone.

Helden mancava pelo apartamento, forçando a perna a suportar a dor, aborrecida por ter sido deixada em casa, mas compreendendo que não poderia ser de outro jeito. O israelense não esperava que Noel fosse telefonar, mas era uma contingência que tinha de ser tomada em consideração. Yakov estava convencido de que Noel era mantido em isolamento, com todas as suas mensagens interceptadas, mas havia uma possibilidade remota...

O telefone tocou. Helden sentiu um baque no coração. Arrastou-se através da sala para atender.

Meu Deus! Tomara que seja Noel!

Era uma voz desconhecida de homem que não quis se identificar.

- Mrs. Holcroft foi levada de carro a uma casa de hóspedes numa propriedade treze quilômetros ao sul da cidade. Vou lhe dizer o caminho.

O homem disse o caminho. No final, acrescentou:

- O portão é guardado por um homem que tem um cachorro de aspecto feroz.

Yakov não podia deixar que continuassem nem as batidas nem os gritos de Holcroft, que acabariam chamando a atenção.

O israelense abriu o ferrolho e encolheu-se junto à parede. O americano entrou imediatamente pela sala adentro com os braços levantados, preparado para resistir a um assalto.

- Von Tiebolt! Onde está você?

Holcroft estava evidentemente atarantado com a escuridão do apartamento. Yakov deu um passo em silêncio para o lado com a lanterna na mão. Falou rapidamente.

- Von Tiebolt não está aqui e eu não quero fazer-lhe mal. Não estamos em lados opostos!

Holcroft virou-se com as mãos estendidas.

- Quem é você e que é que está fazendo aqui? Acenda a luz!

- Não é preciso. Escute!

O americano avançou, exasperado. Yakov apertou o botão da lanterna. O jato de luz verde cobriu Holcroft, forçando-o a fechar os olhos.

- Desligue isso!

- Não. Escute-me primeiro.

Holcroft sacudiu o pé direito para a frente, atingindo Ben-Gadíz no joelho. Ao contato, Noel avançou, com os olhos fechados, mas estendendo as mãos para agarrar o israelense.

Yakov abaixou-se e meteu o ombro no peito do americano. Nem assim, Holcroft parou. Bateu com o joelho na têmpora de Yakov e deu-lhe um soco no rosto.

Não podia haver lesões, nem traços de sangue no chão! Yakov largou a lanterna e agarrou os braços de Holcroft, espantado com a força do americano. Falou tão alto quanto pôde.

- Você tem de me ouvir! Eu não sou seu inimigo. Tenho notícias de sua mãe. Tenho uma carta dela aqui comigo!

O americano diminuiu a pressão.

- Quem é você?

- Nachrichtendienst.

Ao ouvir o nome, Holcroft ficou furioso. Deu um grito de raiva e acionou impetuosamente os braços e as pernas.

- Vou matá-lo!

Yakov não tinha outro remédio. Avançou apesar do vigoroso ataque, procurando com os dedos o pescoço de Holcroft. Encontrou o nervo que procurava e fez pressão com toda a sua força. Holcroft caiu.

Noel abriu os olhos na escuridão, que, porém, não era completa. Encostado em ângulo junto à parede, havia um facho de luz verde, a mesma luz verde que o ofuscara, e diante disso a sua raiva renasceu.

Estava sendo comprimido contra o chão, com um joelho nos seus ombros e um cano de pistola encostado à sua cabeça. Tinha a garganta dolorida mas, ainda assim, tentava levantar-se, afastando-se da arma. Mas não teve forças e deixou o corpo cair, escutando o que lhe dizia o estranho homem.

- Vamos ser claros. Se eu fosse seu inimigo, já o teria matado. Pode compreender isso?

- Você é meu inimigo! - replicou Noel, quase sem poder falar de tão machucado que tinha o pescoço. - Você disse que era do Nachrichtendienst, que é inimigo de Genebra e, portanto, meu inimigo!

- A primeira parte é absolutamente certa, mas não a segunda. Não sou seu inimigo.

- Mentira!

- Pense bem. Por que não puxei este gatilho? Você estaria acabado, Genebra estaria acabada e não haveria mais liberação do dinheiro. Se eu sou seu inimigo, que é que me impede de espatifar-lhe a cabeça? Não posso usá-lo como refém; isso está fora de cogitações. Você tem de estar presente lá. Que é que eu lucro em deixá-lo vivo... se sou seu inimigo?

Holcroft tentou compreender as palavras e perceber o sentido delas, mas não pôde. Queria apenas atacar o homem que o mantinha prisioneiro.

- Que é que você quer? Onde foi que viu minha mãe? Não disse que tinha uma carta?

- Tudo a seu tempo. O que eu quero em primeiro lugar é sair daqui. Com você. Podemos juntos fazer o que a Wolfsschanze nunca julgou possível.

- Wolfsschanze? Fazer o quê?

- Fazer as leis trabalharem para nós. Fazer reparações.

- Fazer... Seja você quem for, não está bom do juízo...

- É a opção de Har Sha’alav. Controlar os milhões. Combatê-los em toda parte. Estou disposto a oferecer-lhe a única prova que tenho. Aqui está a minha pistola.

Yakov Ben-Gadíz afastou a arma da cabeça de Holcroft e ofereceu-a ao americano.

Noel estudou o rosto do outro dentro das estranhas sombras produzidas pela sinistra luz verde. Viu que os olhos eram de um homem que estava dizendo a verdade.

- Ajude-me a levantar-me - disse ele. - Há uma escada nos fundos. Eu sei o caminho.

- Primeiro, temos de arrumar tudo por aqui. Tudo tem de ficar como estava.

Nada mais será o que era...

- Para onde é que vamos?

- Para um apartamento na Rue de la Paix. A carta está lá. A moça também.

- Que moça?

- A irmã de Von Tiebolt. Ele mandou matá-la e pensa que ela está morta.

- Helden?

- Depois.


45

Saíram da passagem e desceram a Rue des Granges para o lugar onde estava o carro do israelense. Embarcaram e Yakov tomou o volante. Holcroft levou a mão ao pescoço. Alguma coisa devia ter se partido, tão intensa era a dor.

- Você me obrigou a isso. Desculpe - disse Yakov, percebendo o gesto de Noel.

- Mas você me deu chance - murmurou Noel. - Você me entregou a pistola. Como é seu nome?

- Yakov.

- Que espécie de nome é esse?

- Hebreu... Jacob para você. Ben-Gadíz.

- Ben o quê?

- Gadíz.

- Espanhol?

- Sefardita - disse Yakov, descendo a rua para o lago. - Minha família emigrou para Cracóvia no começo do século.

- Pensei que fosse o irmão de Kessler, o médico de Munique.

- Nada sei sobre um médico de Munique.

- Ele anda por aqui. Quando cheguei ao D’Accord, deram-me na portaria a chave de Von Tiebolt e me perguntaram se eu queria também a de Hans Kessler.

- E que é que eu tenho com isso?

- O empregado sabia que os Kessler e Von Tiebolt tinham jantado juntos no apartamento de Johann. Pensou que o irmão de Kessler ainda estivesse lá.

- Espere um pouco! Esse irmão é um homem robusto, baixo e forte?

- Não faço ideia. É bem possível. Erich disse que ele foi campeão de futebol.

- Está morto. Sua mãe nos disse. Ela viu Von Tiebolt matá-lo. Creio que seu amigo Ellis o feriu quando foi atacado por ele.

Noel arregalou os olhos para o israelense.

- Foi ele então que matou Willie, esfaqueando-o daquela maneira?

- É apenas uma suposição.

- Meu Deus! Fale-me mais de minha mãe. Onde está ela?

- Mais tarde.

- Agora!

- Há um telefone. Tenho de ligar para o apartamento. Helden está lá - disse Yakov, encostando o carro ao meio-fio.

- Eu disse agora! - exclamou Holcroft, apontando a pistola para Yakov.

- Se você resolver matar-me agora, eu mereço morrer e você também. Eu lhe pediria que desse o telefonema, mas nós não temos tempo para emoções.

- Temos todo o tempo que quisermos. O banco pode ser adiado.

- O banco? La Grande Banque de Genève?

- Hoje, às nove horas da manhã.

- Meu Deus! - disse Ben-Gadíz, agarrando o ombro de Holcroft e falando com a voz de um homem que pede mais que a própria vida. - Dê uma chance à opção de Har Sha’alav. Isso nunca mais se repetirá. Confie em mim. Matei muitas pessoas e não o matei há vinte minutos. Temos de saber a cada momento qual é a nossa posição. Helden pode ter sabido de alguma coisa.

- Está bem - disse Noel. - Telefone. Diga a ela que eu estou aqui e que quero explicações de ambos.

Correram pela estrada rural e transpuseram os portões da propriedade. Passaram sem dificuldade pelo cachorro subitamente despertado pelo motor do carro. A estrada se curvava para a esquerda e Yakov foi parando pouco a pouco o carro entre os matos.

- O ouvido de um cachorro percebe os motores que param de repente. Os que param rallentando são mais difíceis para eles.

- Você é músico?

- Fui violinista.

- Bom?

- Sinfônica de Tel-Aviv.

- Por que você...

- Encontrei um trabalho que me convinha mais - interrompeu-o Ben-Gadíz. - Saia depressa do carro. Deixe o seu sobretudo, mas leve a pistola. Feche a porta sem bater. A casa de hóspedes deve estar ainda bem longe, mas nós a encontraremos.

Havia um muro de tijolos na borda do terreno, tendo no alto uma rede trançada de arame farpado. Yakov subiu a uma árvore para olhar o muro e o arame farpado.

- Não há alarmas - disse ele. - Se houvesse, pequenos animais os fariam funcionar quase a cada instante. Mas não vai ser fácil. O trançado de arame tem quase meio metro de altura. Temos de saltar.

O israelense se aproximou do muro, agachou-se um pouco e pôs as mãos em concha.

- Suba - disse ele a Noel.

Com grande esforço, Holcroft conseguiu firmar um pé no muro e saltou, indo cair do outro lado. As farpas lhe rasgaram um pouco o paletó e arranharam os tornozelos, mas conseguira pular. Levantou-se, respirando pesadamente, com as dores do pescoço e das pernas reduzidas a simples irritações. Se a informação que o desconhecido dera a Helden pelo telefone estava certa, deviam estar bem perto de Althene.

No alto do muro, o vulto do israelense parecia um grande pássaro no céu noturno. Pulou o arame farpado e caiu, rolando pelo chão para quebrar a força do impacto, depois do que correu para junto de Noel. Levantou o braço para ver o relógio.

- Quase seis horas. Daqui a pouco será dia claro. Depressa!

Seguiram pela floresta, desviando-se de galhos, pulando sobre folhagens, até que chegaram ao caminho que levava à casa de hóspedes. Ao longe, avistaram a claridade que vinha de pequenas janelas da catedral.

- Pare! - disse Ben-Gadíz.

- Que é?

Yakov agarrara Noel pelos ombros e o fizera estender-se no chão.

- Que é que você está fazendo?

- Não se mexa! Há atividade na casa. Gente.

Noel olhou para a casa a cerca de cem metros de distância. Não via movimento, nem vultos nas janelas.

- Não estou vendo nada.

- Olhe para as luzes. Não estão firmes. Há gente passando à frente delas.

Holcroft percebeu sem demora o que Yakov tinha visto. Havia leves mudanças de tom nas luzes. O olho normal, especialmente de uma pessoa ansiosa, não as notaria, mas eram indiscutíveis.

- Tem razão - murmurou Noel.

- Venha. Vamos tentar uma aproximação de lado, pela floresta.

Tornaram a entrar na floresta e foram sair à beira de um campo de croqué, cujos arcos pareciam frígidos na noite de inverno. Além do campo ficavam as janelas da casa.

- Vou atravessar e farei sinal para você me seguir - disse o israelense. - Não faça barulho.

Yakov atravessou e foi agachar-se abaixo de uma janela. Levantou-se lentamente e olhou para dentro. Noel ficou esperando que ele desse o sinal.

O sinal não veio. Ben-Gadíz continuou imóvel junto à janela sem levantar a mão. Que é que havia? Por que ele não dava o sinal?

Noel não pôde mais esperar. Saiu correndo pelo pequeno trecho gramado.

O israelense voltou-se com os olhos muito abertos.

- Saia daqui!

- Por quê? Ela está aí dentro!

Ben-Gadíz agarrou Holcroft pelos ombros, empurrando-o para trás.

- Volte! Temos de sair daqui!

- Nada disso!

Noel se desvencilhou das mãos do israelense e olhou pela janela.

Nesse momento, o universo explodiu em fogo dentro de sua cabeça. Tentou gritar e nenhum som lhe saiu da garganta. Era tudo puro horror, além dos gritos, além da loucura.

Dentro da sala mal-iluminada, viu o corpo de sua mãe arqueado pela morte contra o espaldar de uma cadeira. Da bela cabeça cheia de graça escorriam filetes de sangue pela pele engelhada.

Noel levantou as mãos, os braços, o corpo todo, prestes a explodir. Sentiu a resistência do ar e os seus punhos se ergueram para despedaçar a vidraça.

Não chegou a haver o impacto. Um braço lhe foi passado pelo pescoço, uma mão lhe tapou a boca e, como gigantescos tentáculos, lhe curvaram o corpo, levantando-o do chão e fazendo-o depois descer até unir-se à terra, quando houve de novo a explosão de fogo.

Sabia que estava se movendo, mas não sabia como nem por quê. Galhos lhe batiam no rosto, mãos forçavam as suas costas, empurrando-o para a frente na escuridão. Não podia saber por quanto tempo esteve nesse estado de insensibilidade e confusão, mas afinal se viu diante de um muro e ordens ásperas lhe chegaram aos ouvidos.

- Levante-se! Pule por cima do arame!

A noção das coisas começou a voltar. Sentiu as farpas de metal arranharem-lhe a pele, rasgarem-lhe as roupas. Foi depois arrastado por uma superfície compacta e jogado contra a porta de um carro.

Quando deu por si, estava sentado num automóvel e olhava o mundo através de um para-brisa. O dia estava nascendo.

Sentou-se numa cadeira, esgotado e entorpecido. Leu então a carta de Althene.

"Meu querido Noel:

Não é provável que ainda nos vejamos, mas peço-lhe que não chore por mim. Depois, talvez. Mas não agora, pois não há tempo.

Vou agir como devo, simplesmente porque é preciso e porque eu sou a pessoa mais logicamente indicada para essa tarefa. Ainda que houvesse outra pessoa em condições, não sei se eu lhe permitiria fazer o que foi reservado para mim.

Não vou falar da mentira em que vivi durante mais de trinta anos. Meu novo amigo, Mr. Ben-Gadíz, lhe explicará tudo. É suficiente dizer que eu nunca tive consciência da mentira, nem - Deus é testemunha - do terrível papel que você iria desempenhar nela.

Sou de uma outra era, quando as dívidas eram chamadas pelo seu nome exato e quando a honra não era considerada um anacronismo. Estou disposta a pagar a minha dívida, na esperança de que um resquício de honra possa ser restaurado.

Se não nos virmos mais, quero que saiba que deu grande alegria à minha vida. Se um homem já precisou de provas de ser melhor do que as suas origens, você é disso uma prova cabal.

Uma palavra sobre Helden. Creio que ela é a filha dileta que eu poderia ter tido. Essa verdade está nos olhos dela, na sua energia. Só a conheço há algumas horas, mas nesse tempo ela me salvou a vida e arriscou a dela para isso. É verdade que muitas vezes percebemos toda uma vida num momento de lucidez. O momento existiu para mim e ela tem a minha mais profunda afeição.

Deus o proteja, meu Noel.

Com meu amor,

Althene."

Holcroft olhou para Yakov, que estava de pé junto à janela do apartamento, vendo a luz cinzenta da manhã nascente.

- Que foi que ela não deixou ninguém mais fazer? - perguntou ele.

- Encontrar-se com meu irmão - respondeu Helden do outro lado da sala.

Noel cerrou os punhos e fechou os olhos.

- Ben-Gadíz me disse que ele mandou matar você.

- Foi, sim. Ele causou a morte de muita gente.

Holcroft voltou-se para o israelense.

- Minha mãe disse que você me explicaria a mentira.

- Cedo a palavra a Helden. Conheço parte da história, mas ela sabe de tudo.

- Foi por isso que você foi a Londres, Helden?

- Foi por isso que eu deixei Paris. Mas não fui a Londres. Fui a uma aldeia no lago de Neuchâtel.

Contou então a história de Werner Gerhardt, da Wolfsschanze, da moeda que tinha duas faces. Procurou lembrar-se de todos os detalhes que lhe tinham sido transmitidos pelo último elemento do Nachrichtendienst.

Quando ela terminou, Holcroft se levantou da cadeira.

- E durante todo o tempo eu tenho sido o testa de ferro da mentira, da outra face da Wolfsschanze.

- Você é a chave que abre a torneira dos fundos para os Sonnenkinder - disse Ben-Gadíz. - Fez as leis trabalharem a favor deles. Essa quantia tão grande não poderia sair dos cofres do banco sem uma estrutura. A série de exigências legais tinha de ser observada, pois do contrário eles não iriam conseguir nada. Foi uma brilhante manobra, é preciso reconhecer.

Noel olhou para o papel que cobria as paredes da sala. Na sala mal-iluminada, o padrão do papel, uma série de círculos concêntricos, principiou a girar com extrema rapidez, dissolvendo-se em pontos, que depois se juntavam em novos círculos. Círculos de traição, de perfídia. Não havia uma só linha reta de verdade em tudo aquilo! Só enganos, só mentiras!

Ouviu o grito sair de sua garganta e sentiu o impacto alucinado de suas mãos na parede, na tentativa de destruir os terríveis círculos.

Outras mãos o tocaram, mãos gentis.

Um homem em agonia tinha gritado por ele do fundo do passado. E esse homem era falso!

Onde estava ele? Que tinha ele feito?

Sentiu lágrimas nos olhos e soube que estavam ali porque os desenhos na parede se haviam tornado manchas sem sentido e porque Helden estava ao lado dele, consolando-o e enxugando-lhe as lágrimas.

- Meu querido, meu amor...

- Eu vou matar!

Ouviu de novo o seu grito, impregnado de raiva e de convicção.

- Claro que vai!

Era uma voz clara e firme que ressoava dentro do seu espírito. Era Yakov Ben-Gadíz que tinha empurrado Helden para o lado e virava o corpo de Noel para a frente, reafirmando:

- Claro que vai!

Holcroft voltou para ele os olhos vacilantes, tentando vencer o tremor que lhe agitava o corpo.

- Você não quis que eu visse minha mãe!

- Eu sabia que você não devia. Fui treinado para a luta como poucas pessoas no mundo. Mas há uma coisa em você que eu nunca vi em ninguém. Não sei bem o que é, mas dou graças ao céu por você não ser meu inimigo.

- Não estou compreendendo.

- Dei-lhe a opção de Har Sha’alav. É uma coisa que vai exigir de você a mais extraordinária disciplina de que é capaz. Falando com franqueza, não sei se eu poderia fazer isso, mas creio que você pode.

- Que é?

- Compareça à reunião do banco. Fique ao lado dos assassinos de sua mãe, do homem que ordenou a morte de Helden e de Richard Holcroft. Enfrente-o. Enfrente a ambos. Assine os papéis.

- Não é possível! Você está louco!

- Nada disso! Estudamos as leis e as regras do caso. Vão querer que você assine uma ressalva. Por ela, na hipótese de sua morte, todos os seus direitos e privilégios serão transferidos para os coerdeiros. Quando fizer isso, estará assinando uma sentença de morte. Assine-a. Não será a sua, mas a deles!

Noel olhou para os olhos escuros e suplicantes de Yakov. Ali estava de novo a linha reta da verdade. Ficaram ambos em silêncio durante alguns momentos. Holcroft recomeçou lentamente a recuperar o controle que havia perdido. Ben-Gadíz largou-lhe os ombros. O equilíbrio estava se restabelecendo.

- Devem estar à minha procura - disse Noel. - Pensam que eu fui ao apartamento de Von Tiebolt.

- E foi. A porta não teve os fios repostos. Mas não encontrou ninguém e saiu.

- Para onde fui depois? Vão querer saber.

- Conhece bem a cidade?

- Não muito.

- Neste caso, tomou táxis, passeou pela beira do cais, esteve numa dezena de ancoradouros e marinas à procura de alguém que tivesse visto sua mãe. É muito plausível. Vão pensar que você estava em pânico.

- São quase sete e meia - disse Noel. - Ainda falta uma hora e meia. Vou voltar para o hotel. Nós nos encontraremos depois da conferência no banco.

- Onde? - perguntou Yakov.

- Tome um quarto no Excelsior em nome de um casal. Esteja lá depois das nove e meia, mas muito antes do meio-dia. O número do meu quarto é 411.

Holcroft chegou diante da porta do quarto do hotel. Ouvia vozes alteradas lá dentro. A voz de Von Tiebolt dominava a conversa que pudesse haver com o seu tom incisivo, à beira da violência.

Violência. Respirou fundo e procurou dominar os instintos que ferviam dentro dele. Ia enfrentar o homem que matara seu pai e sua mãe e encarar esse homem sem revelar o seu ódio.

Bateu na porta e viu com satisfação que a mão não tremia.

A porta se abriu e ele olhou firmemente para o assassino louro.

- Noel! Onde é que estava? Temos procurado você por toda parte.

- Procurei muito também - disse Holcroft, com um cansaço que não era difícil fingir, mas sentindo que era quase impossível dominar a sua raiva. - Passei a noite procurando minha mãe. E nada! Tenho a impressão de que ela ainda não chegou a Genebra.

- Vamos continuar a procurar - disse Von Tiebolt. - Tome um pouco de café. Daqui a pouco sairemos para o banco e toda essa luta estará terminada.

- É mesmo, não acha? - murmurou Noel.

Os três estavam sentados a um dos lados da grande mesa de conferências. Holcroft estava no centro, tendo Kessler à sua esquerda e Von Tiebolt à sua direita. Do outro lado, estavam sentados dois diretores de La Grande Banque de Genève.

Diante de cada homem havia uma pilha de papéis, todos idênticos e arrumados em determinada ordem. Os olhos seguiam as páginas datilografadas, que eram viradas cuidadosamente, e mais de uma hora passou até que o precioso documento tivesse concluída a sua leitura.

Havia mais dois registros com as capas marginadas de uma risca azul. O diretor da esquerda falou:

- Como tenho certeza de que é do conhecimento dos senhores, levando em consideração as proporções da conta e os seus objetivos, La Grande Banque de Genève não poderá continuar a assumir responsabilidade pelos fundos, depois que forem liberados e deixarem de estar sob seu controle. Este documento é específico quanto à atribuição da responsabilidade. Será dividida igualmente entre os três participantes. Por isso, a lei exige que cada um dos senhores transfira todos os seus direitos e privilégios, em caso de morte, aos outros dois coerdeiros. Fica entendido, porém, que essa transferência não incidirá sobre as importâncias a que cada qual faz jus pela sua participação. Essas importâncias serão entregues intactas ao espólio de cada um. Tenham a bondade de ler o documento e notem se nele está devidamente consignado o que acabo de dizer. Se estiver conforme, cada qual deverá assinar o documento na presença dos outros e, em seguida, trocar os documentos para que cada cópia contenha as três assinaturas.

A leitura foi rápida. Seguiram-se as assinaturas e depois a troca dos papéis. Quando entregou a sua cópia assinada a Kessler, Noel lhe perguntou casualmente:

- Onde está seu irmão, Erich? Não disse que ele estaria aqui em Genebra?

- Houve tanta coisa que eu até me esqueci de lhe dizer - respondeu Erich, sorrindo. - Hans não pôde sair agora de Munique. Mas tenho certeza de que iremos vê-lo em Zurique.

- Em Zurique?

O professor olhou por um instante para Von Tiebolt.

- Sim, em Zurique. Não combinamos estar lá na segunda-feira pela manhã?

Noel voltou-se para Von Tiebolt.

- Você não me falou nisso.

- Não tivemos tempo de falar sobre isso. Por acaso, a segunda-feira não lhe convém?

- Por que não? Talvez daqui até lá eu tenha tido notícias dela.

- De quem?

- De minha mãe. Ou então de Helden, que já me devia ter telefonado.

- É claro. Tenho certeza de que ambas se comunicarão com você.

O último documento era a transferência formal da conta. Um computador tinha sido preparado. Depois das assinaturas de todos os presentes, os códigos seriam acionados e os fundos líquidos seriam transferidos para um banco de Zurique.

Todos assinaram. O diretor da direita pegou um telefone.

- Atenção! Inscreva os seguintes números no banco onze do computador. Está pronto?... Seis, um, quatro, quatro, dois, barra, quatro. Oito, um, zero, zero, barra, zero... Tenha a bondade de repetir. Certo. Muito obrigado.

- Tudo pronto então? - perguntou o outro diretor.

- Tudo. Meus senhores, a partir deste momento, a importância de setecentos e oitenta milhões de dólares americanos está depositada no nome dos três em La Banque du Livre, em Zurique. Possam os senhores ter a sabedoria dos profetas e ser orientados por Deus nas suas decisões.

Do lado de fora, na rua, Von Tiebolt perguntou a Holcroft:

- Quais são seus planos, Noel? Deve ter ainda muita cautela. O Nachrichtendienst não vai aceitar isso com facilidade.

- Eu sei... Planos? Em primeiro lugar, vou procurar minha mãe. Ela tem de estar em algum lugar.

- Já providenciei junto a meu amigo, o vice-governador, para que nós três tenhamos proteção policial. Uma turma poderá guardar você no Excelsior e outra cuidará de nós no D’Accord. A não ser que você prefira ir para o nosso hotel.

- Não, dá muito trabalho - disse Holcroft. - Já estou acomodado. Prefiro ficar no Excelsior.

- Partiremos então para Zurique na segunda-feira pela manhã? - perguntou Kessler, deixando a decisão para Von Tiebolt.

- Talvez seja melhor viajarmos separadamente - disse Holcroft. - Se a polícia não fizer objeção, prefiro ir de carro.

- Boa ideia, meu amigo - disse Von Tiebolt. - A polícia não vai fazer objeção, e viajar separadamente é uma coisa sensata. Irei de avião. Você, Erich, poderá ir de trem. E Noel irá de carro.

- Está bem - disse Holcroft. - Se eu não tiver notícias de minha mãe ou de Helden até amanhã, deixarei recado para que se encontrem comigo em Zurique. Vou pegar um táxi.

Caminhou rapidamente até a esquina. Mais um minuto e a raiva dele explodiria. Seria capaz de matar Von Tiebolt com as próprias mãos.

- Ele sabe - disse calmamente Johann. - Não sei quanto, mas sabe de alguma coisa.

- Como pode saber? - perguntou Kessler.

- A princípio, senti apenas que havia alguma coisa. Agora, tenho certeza. Ele perguntou por seu irmão e aceitou a resposta de que Hans ainda estava em Munique. Ele sabe que isso não é verdade. Um empregado do D’Accord ofereceu-lhe a chave do quarto de Hans esta noite.

- E essa, agora?...

- Não se preocupe. Nosso colega americano vai morrer na estrada de Zurique.


46

A tentativa contra a vida de Noel - se chegasse a ser feita - ocorreria nas estradas ao norte de Friburgo e ao sul de Köniz. Era essa a opinião de Yakov Ben-Gadíz. A distância era de um pouco mais de vinte quilômetros, com trechos montanhosos nos quais raramente havia movimento naquela época do ano. Era inverno e, embora o clima não fosse alpino, nevadas leves eram frequentes e as estradas não eram das melhores. Tudo isso desanimava os motoristas. Mas Holcroft havia traçado um itinerário que evitava as autoestradas e passava por estradas rurais, onde havia exemplares de arquitetura que ele desejava apreciar.

Ou, melhor, Yakov havia traçado o itinerário, e Noel o havia entregue à polícia, que tinha ordem do vice-governador para escoltá-lo até o norte. O fato de ninguém ter tentado dissuadir Holcroft do itinerário proposto confirmou as desconfianças de Yakov.

O israelense fez ainda conjecturas sobre o processo do ataque. Nem Von Tiebolt nem Kessler estariam perto da área. Ambos estariam muito em evidência em outro ponto. E se fosse haver uma execução, como tudo indicava, esta seria levada a cabo pelo menor número de homens possível, assassinos pagos que de modo algum poderiam ser relacionados com a Wolfsschanze. Não iriam facilitar logo depois da reunião na Grande Banque de Genève. Os assassinos seriam por sua vez assassinados pelos Sonnenkinder e todas as conexões com a Wolfsschanze seriam completamente obliteradas.

Era essa a estratégia que Ben-Gadíz previa e uma contraestratégia tinha de ser montada. O essencial era fazer Noel chegar a Zurique. Uma vez em Zurique, a estratégia passava a ser deles. Havia dezenas de maneiras de matar numa grande cidade e Yakov era perito em todas elas.

A viagem começou e a contraestratégia foi posta em ação. Holcroft dirigiria um carro pesado alugado a Bonfils, em Genebra, a melhor firma suíça de aluguel de carros, que se especializava em carros excepcionais para clientes excepcionais. O carro era um Rolls-Royce, com carroçaria blindada, vidros à prova de balas e pneus que podiam resistir a sucessivas perfurações.

Helden iria dois quilômetros à frente de Noel num Renault comum, mas de manejo fácil. Ben-Gadíz iria atrás, no máximo a dois quilômetros e meio de distância. O seu carro era um Maserati, comum entre os homens ricos de Genebra e capaz de desenvolver grandes velocidades. Entre Yakov e Holcroft, estava o carro da polícia, com dois homens designados para a proteção do americano. A polícia de nada sabia.

- Os homens da polícia serão imobilizados no caminho - tinha dito o israelense enquanto os três estudavam os mapas no quarto de hotel de Noel. - Não serão sacrificados, pois isso iria criar muitos problemas. São mesmo da polícia. Anotei os números dos capacetes deles e telefonei para Litvak. Ele apurou que se trata de homens sem experiência, que não têm ainda nem um ano de serviço na Polícia Central.

- Serão os mesmos homens de amanhã?

- Sim. Receberam ordens de acompanhá-lo até que pudessem entregá-lo em segurança à polícia de Zurique. Isso quer dizer que o carro deles deverá ter um enguiço qualquer e eles telefonarão para os seus superiores em Genebra, recebendo então ordem de voltar. Com isso, a sua proteção vai evaporar.

- Tudo é então aparência?

- Exatamente. Mas serão úteis numa coisa. Enquanto você os estiver vendo, poderá ficar descansado, pois nada irá acontecer.

Ainda eram visíveis naquele momento, pensou Noel, olhando pelo espelho e pisando nos freios do Rolls-Royce ao fazer uma longa curva de descida na encosta da montanha. Bem abaixo, avistava o carro de Helden que já ia saindo da curva. Dentro de mais dois minutos, ela esperaria um pouco até que estivessem bem à vista um do outro. Isso também fazia parte do plano. Ela fizera isso três minutos antes. De cinco em cinco minutos, tinham de manter contato visual. Gostaria de falar com ela... simplesmente falar calmamente com Helden... sem alusões à morte, à expectativa de morte ou à estratégia necessária para livrar-se dela.

Mas essa conversa só se podia realizar depois que chegassem a Zurique. Haveria morte em Zurique, mas não como qualquer morte em que Holcroft houvesse já pensado. O assassino seria ele. Ninguém mais, ninguém. Exigia esse direito. Olharia firme para Johann von Tiebolt e lhe diria que ele ia morrer.

Estava indo muito depressa. A raiva o fizera pisar no acelerador além da conta. Não era tempo de colaborar com Von Tiebolt. Tinha começado a nevar e a estrada estava escorregadia.

Yakov se aborreceu com a leve nevada que caía, não porque dificultasse a direção do carro, mas porque prejudicava a visibilidade. Tinha de confiar na vista. As comunicações pelo rádio estavam fora de cogitações; podiam ser facilmente interceptadas.

O israelense tocou vários artigos estendidos no banco ao seu lado. Havia artigos semelhantes no Rolls-Royce de Holcroft. Faziam parte da contraestratégia e eram a parte mais eficiente dela.

Explosivos. Oito ao todo. Quatro cargas envoltas em plástico e preparadas para detonar três segundos precisamente depois do impacto e quatro granadas antitanques. Havia ainda duas armas: um Colt automático do Exército americano e uma carabina, ambos carregados, destravados e prontos para atirar. Tudo fora comprado por intermédio dos contatos de Litvak em Genebra. Pacífica Genebra, onde tais arsenais podiam ser encontrados em quantidades menores do que os terroristas julgavam, mas muito maiores do que o governo suíço acreditava possível.

Ben-Gadíz olhou pelo para-brisa. Se alguma coisa fosse acontecer, teria de acontecer dentro em pouco. O carro da polícia, várias centenas de metros à frente, seria imobilizado ou em virtude de tacos embebidos em ácido que corroeriam os pneus ou de um radiador defeituoso com um coagulante que entupiria a mangueira... Havia muitos meios. De qualquer maneira, o carro da polícia pararia na estrada e Holcroft ficaria isolado.

Yakov esperava que Noel se lembrasse do que tinha exatamente de fazer se um carro estranho se aproximasse. Devia correr pela estrada em ziguezague enquanto Yakov aceleraria o seu Maserati e lançaria as cargas de plástico contra o automóvel desconhecido. Até que decorressem os preciosos segundos necessários para as explosões, Noel já deveria estar fora do alcance do fogo deles. Se houvesse algum contratempo e alguma carga deixasse de explodir, as granadas entrariam em ação.

Devia ser o bastante. Von Tiebolt não arriscaria mais que um carro. A possibilidade de algum automobilista fortuito, que a tudo observasse sem querer, era considerável. Os assassinos seriam poucos e profissionais. O chefe dos Sonnenkinder não era um idiota. Se a morte de Holcroft não se verificasse na estrada de Köniz, ficaria para Zurique.

Seria o maior erro dos Sonnenkinder, pensou o israelense, cheio de satisfação. Von Tiebolt não sabia da existência de Yakov Ben-Gadíz, que não era idiota e era profissional. O americano chegaria a Zurique, e, uma vez lá, Johann von Tiebolt seria um homem morto, e o mesmo aconteceria a Erich Kessler.

Yakov praguejou. A neve era mais pesada e caía em flocos maiores. Isso significava que a nevada não duraria muito, mas por enquanto era uma interrupção desagradável.

Não estava mais vendo o carro da polícia! Onde estava ele? A estrada era cheia de curvas fechadas e de cortes. Ainda assim, não se justificava que ele fosse perdê-lo de vista.

De repente, avistou o carro e ficou mais tranquilo, aumentando a marcha para chegar mais perto. Não podia deixar que seu espírito se desviasse do que estava fazendo. Não estava no auditório de Tel-Aviv. O carro da polícia era a chave. Não podia perdê-lo de vista nem por um momento.

Estava correndo muito. O velocímetro marcava setenta e três quilômetros, o que era demais para aquela estrada. Por quê?

Compreendeu sem demora por quê. Tentava manter a mesma distância do carro da polícia, mas este estava correndo demais. Acelerava nas curvas, corria por dentro da neve. Aproximava-se de Holcroft.

O chofer seria louco?

Ben-Gadíz olhava para o carro, tentando compreender. Alguma coisa o preocupava e ele não sabia o que era. Que estariam fazendo os homens do carro?

Viu então uma coisa que não estava ali anteriormente.

Havia uma marca de batida no porta-malas do carro da polícia! Nada havia de parecido no carro da polícia que ele seguia há três horas.

Era um carro diferente!

Em um dos taludes no labirinto das curvas, o carro legítimo recebera uma ordem pelo rádio e saíra da estrada. Outro tomara o seu lugar. Isso significava que os homens do novo carro sabiam da presença do Maserati e eram infinitamente mais perigosos. Holcroft não tinha qualquer conhecimento deles.

O carro da polícia entrou numa longa curva. Yakov ouviu as contínuas buzinadas através da neve e do vento. Estavam aproximando-se de Holcroft e fazendo-lhe sinal para que parasse. Acelerou o Maserati de uma distância de cinquenta metros, gritando:

- Não, Holcroft! Não faça isso!

De repente, o seu para-brisa se despedaçou. Pequenos círculos de morte apareceram em toda a extensão do vidro. Podia sentir os cacos de vidro atingirem-lhe o rosto e as mãos. Tinham atirado no Maserati com uma metralhadora portátil da janela traseira do carro.

Um rolo de fumaça se elevou do capô; o radiador explodiu. Um instante depois, os pneus foram atingidos e deles se desprenderam tiras de borracha. O Maserati derrapou e foi chocar-se contra as paredes do talude.

Ben-Gadíz gritou de raiva e meteu o ombro na porta empenada. Atrás dele, a gasolina começava a incendiar-se.

Holcroft viu o carro da polícia aproximar-se pelo espelho. Estava piscando os faróis e buzinando. Não sabia por quê, mas queriam que ele parasse.

Não havia lugar para parar na curva. Mais adiante, havia na estrada uma tangente de algumas centenas de metros. Diminuiu a marcha do Rolls-Royce quando o carro da polícia emparelhou com ele e Noel pôde ver o rosto do guarda através da neve.

As buzinadas e as piscadelas dos faróis continuavam. Baixou o vidro do seu lado.

- Posso parar logo que...

Viu então o rosto e a expressão do homem. Não era um dos jovens guardas que tinham vindo com ele de Genebra. Era um homem a quem nunca tinha visto. Percebeu então um cano de fuzil na janela do outro carro.

Tentou desesperadamente levantar o vidro. Era tarde demais. Ouviu os disparos, viu os clarões dos tiros e sentiu centenas de lâminas que lhe rasgavam a pele. Viu seu sangue salpicar o para-brisa e ouviu os seus gritos ressoarem dentro de um carro sem direção.

Houve choques de metais contra metais, retinindo com a força de mil impactos. O painel de instrumentos virou de cabeça para baixo. Os pedais estavam onde devia estar o teto e ele se viu atirado para o alto e depois para trás. Foi empurrado para a frente e para trás contra o para-brisa, viu-se imprensado contra o volante e, por fim, lançado no espaço, para um vácuo cada vez maior.

Havia paz nesse vácuo. A dor dos cortes desapareceu e ele caminhou e desapareceu por entre as névoas do seu espírito.

Yakov quebrou com a sua pistola o que restava do vidro do para-brisa. A carabina estava presa no chão. Os explosivos plásticos permaneciam amarrados na sua caixa, mas não sabia aonde tinham ido parar as granadas.

Todas as armas se haviam tornado inúteis, menos uma, porque estava em sua mão. Iria atirar com ela enquanto houvesse munição e enquanto ainda tivesse vida.

Havia três homens no falso carro da polícia. O terceiro, o atirador, estava de novo entrincheirado na traseira do carro. Ben-Gadíz podia ver-lhe o alto da cabeça. Agora! Fez cuidadosamente a pontaria e puxou o gatilho. O rosto do homem saltou para o alto e foi cair entre os cacos dos vidros da janela.

Yakov meteu de novo o ombro na porta do carro. Tinha de sair sem demora. O fogo não tardaria a atingir o tanque de gasolina. À sua frente, o homem que guiava o carro da polícia estava atirando-o contra o Rolls-Royce. O outro homem tinha saído para a estrada e, com a mão por dentro da janela de Holcroft, virava a direção, para fazer o carro rolar por um precipício.

Ben-Gadíz fez pressão com toda a parte superior do corpo sobre a porta do carro e conseguiu abri-la. O israelense mergulhou pela estrada coberta de neve, deixando um rastro vermelho de sangue. Levantou a pistola e deu um tiro após outro, com a visão turva e a pontaria imperfeita.

E então duas coisas terríveis aconteceram ao mesmo tempo.

O Rolls-Royce rolou da estrada para o precipício e uma saraivada de balas cortou o ar carregado de neve. Uma fila de balas pontilhou a estrada e passou pelas pernas de Yakov. O corpo lacerado deixou de sentir dor.

Não havia mais sensibilidade, mas ele torceu, rodou e virou o corpo tanto quanto era possível. Tocou a borracha despedaçada dos pneus, retalhos de aço e trechos frios de vidros e de neve.

Houve a explosão. O tanque de gasolina do Maserati voou pelos ares em chamas. E Ben-Gadíz ouviu as palavras que alguém gritava, muito longe.

- Estão mortos! Vire o carro! Vamos sair daqui!

Os atacantes fugiram.

Helden diminuíra a marcha do carro havia mais de um minuto. Noel já devia ter aparecido. Onde estava ele? Parou à beira da estrada e esperou. Mais dois minutos se passaram e ela não pôde mais esperar.

Deu marcha à ré e tornou a subir a ladeira. Passou a marca de um quilômetro e nem sinal dele. Começou a ficar com as mãos trêmulas.

Devia ter acontecido alguma coisa. Sabia disso; estava sentindo.

Viu o Maserati em chamas, destruído.

Onde estava o carro de Noel? Onde estava Noel? E Yakov?

Parou o carro e saiu correndo, aos gritos. Caiu na estrada escorregadia sem saber que a sua perna ferida causara a queda, levantou-se e tornou a gritar e a correr.

- Noel! Noel!

As lágrimas lhe desciam pelo rosto no ar frio e, pouco depois, as cordas vocais nem puderam mais gritar.

Nisso, ouviu uma ordem que não sabia de onde vinha.

- Pare, Helden! Aqui!

Era a voz de Yakov! Onde é que ele estava? Ouviu de novo.

- Helden! Desça aqui!

A beira da estrada. Correu para lá, olhou e o seu mundo se desmoronou. Lá embaixo, estava o Rolls-Royce, virado, fumegante e todo amassado e retorcido. Viu, horrorizada, o vulto de Yakov Ben-Gadíz estendido no chão, perto dos destroços do Rolls-Royce. Viu o rastro de sangue que Yakov deixara na neve, da estrada até o lugar onde estava.

Helden desceu o precipício, rolando pela neve e pelas pedras, com o coração confrangido pelo espetáculo de morte que a esperava lá embaixo. Caiu ao lado de Yakov e olhou pela porta aberta do Rolls-Royce para o seu amado. Estava estendido, imóvel, com o rosto todo ensanguentado.

- Não! Não!

Yakov agarrou-a pelo braço. Quase não podia falar, mas suas ordens foram claras.

- Volte para o seu carro. Há uma aldeia ao sul de Treyvaux, a cinco quilômetros daqui. Telefone para Litvak. Près-du-Lac não fica muito longe daqui, uns vinte quilômetros no máximo. Peça-lhe que venha depressa. De carro ou de avião!

Helden não podia tirar os olhos de Noel.

- Ele está morto! Morto!

- Talvez não esteja. Ande depressa!

- Não posso deixá-lo assim!

- Neste caso, vamos morrer todos, porque eu a matarei - disse Ben-Gadíz, levantando a pistola.

Litvak entrou no quarto em que Yakov estava deitado na cama com toda a parte inferior do corpo envolta em ataduras. Yakov estava olhando para os campos cobertos de neve e para as montanhas remotas e não tomou conhecimento da chegada do médico.

- Quer saber da verdade?

O israelense voltou lentamente a cabeça.

- Que adianta fugir da verdade? Aliás, eu a estou vendo plenamente em sua cara.

- Creio que lhe poderia dar notícias piores. Nunca mais vai andar muito bem. As lesões foram muito grandes. Mas, com o tempo, poderá arranjar-se com muletas e até, muito depois, com uma bengala, apenas.

- Não é exatamente o prognóstico de que eu precisava para o meu tipo de trabalho.

- Não. Mas o seu espírito está incólume e suas mãos vão sarar por completo. Isso não afetará a sua música.

Yakov sorriu tristemente.

- Nunca fui bom músico. A minha capacidade de concentração era bem pequena, incomparavelmente menor do que a que eu dava ao meu outro trabalho.

- A capacidade de adaptação do espírito é infinita - disse o médico.

- Bem, veremos o que poderei fazer com o que me resta. Temos de saber primeiro o que está acontecendo lá fora.

- Tudo está mudando, Yakov. E com incrível rapidez.

- E Holcroft?

- Não sei o que dizer. Devia ter morrido. Mas ainda está vivo. Entretanto, isso não faz muita diferença para ele. Nunca mais poderá voltar a ser o que era. Está sendo processado por assassinato em meia dúzia de países. A pena de morte está sendo restabelecida em toda parte para toda espécie de crimes. Pode ser fuzilado sumariamente onde quer que apareça.

- Eles venceram - disse Yakov, com os olhos cheios de lágrimas. - Os Sonnenkinder venceram.

- Isso é o que eu não sei - disse Litvak. - Ainda não sabemos com que podemos contar.


Epílogo

Imagens. Sem forma, sem foco, sem sentido e sem definição. Contornos que se esvaíam em fumaça. Havia apenas um início de consciência. Nem pensamento nem qualquer lembrança ou experiência. Só a consciência. Depois, as imagens começaram a tomar forma. As névoas se dissiparam e começou a haver reconhecimento. O pensamento viria depois. Por ora, bastava ver e recordar.

Noel viu o rosto acima dele, emoldurado pelos cabelos louros. Havia nos olhos dela lágrimas que lhe desciam pela face. Tentou enxugar aquelas lágrimas, mas não pôde alcançar aquele rosto belo e cansado. A mão caiu e foi tomada entre as dela.

- Meu querido...

Ele a ouviu. Já podia ouvir. A visão e o som tinham sentido. Fechou os olhos sabendo que, de algum modo, o pensamento em breve chegaria.

Litvak estava à porta e via Helden passar a esponja no peito e no pescoço de Noel. Tinha um jornal debaixo do braço. Olhou o rosto de Holcroft, que tinha sido tão massacrado pelas balas dos assassinos. Havia cicatrizes na face esquerda, na fronte e em todo o pescoço. Mas o processo de cura começara. Do interior da casa vinha o som de um violino tocado por um músico profissional.

- Gostaria de lhe pedir um aumento para a sua enfermeira - disse Noel com voz fraca.

- Por que serviços? - perguntou Litvak, rindo.

- Médico, cura-te a ti mesmo.

Helden riu também.

- Eu bem que gostaria. Se pudesse, trataria de curar uma porção de coisas - respondeu o médico, deixando o jornal ao lado de Holcroft. Era a edição parisiense do Herald Tribune.

- Peguei isto para você em Neuchâtel. Não sei se vai querer ler.

- Qual é a lição de hoje?

- Creio que "As consequências da dissidência" seria um bom título. A Suprema Corte dos Estados Unidos proibiu aos redatores do New York Times a publicação de quaisquer notícias referentes ao Pentágono, por motivos de segurança nacional, é claro. Manteve também a legalidade das execuções múltiplas no Estado de Michigan. A decisão expressa a profunda ideia de que, quando as minorias ameaçam o bem-estar do grande público, é preciso demonstrar por meio de castigos rápidos e eficazes que isso não pode ser tolerado.

- Hoje em dia, o homem comum é minoria e, por isso, tem de morrer - murmurou Noel, descansando a cabeça no travesseiro.

"Eis o noticiário internacional da BBC de Londres. Depois da onda de assassinatos que tirou a vida de várias figuras políticas através do mundo, severas medidas de segurança foram tomadas em várias capitais. É sobre as autoridades policiais e militares de todos os países que recai a maior responsabilidade, e, para que a cooperação internacional no mais alto nível possa ser conseguida, uma organização internacional acaba de ser criada em Zurique, na Suíça. Essa organização, que terá o nome de Forja, facilitará o intercâmbio rápido, exato e confidencial de informações entre elementos das forças policiais e militares."

Yakov Ben-Gadíz estava executando o scherzo do Concerto para violino de Mendelssohn quando notou que a sua concentração era deficiente. Noel estava estendido no sofá do outro lado da sala e Helden, sentada no chão ao lado dele.

O cirurgião plástico que chegara de avião de Los Angeles para operar um paciente que não fora identificado tinha feito um trabalho notável. O rosto era ainda o de Holcroft, mas não inteiramente. As cicatrizes resultantes dos ferimentos faciais tinham desaparecido, deixando em seu lugar pequenas depressões que davam ao rosto um modelado novo. Não havia inocência no rosto levemente alterado e restaurado. Havia, ao contrário, um toque de crueldade. Talvez até mais que um toque.

Além dessas mudanças, Noel parecia ter sofrido um processo de envelhecimento, rápido e difícil. Só quatro meses eram decorridos desde que o haviam recolhido no fundo do precipício da estrada de Friburgo, mas, olhando para ele, a impressão que se tinha é de que haviam passado no mínimo dez anos.

Entretanto, recuperara a vida e também o corpo graças aos cuidados de Helden e aos intermináveis exercícios ordenados por Litvak e executados sob a direção do ex-comando de Har Sha’alav.

Yakov tinha prazer com essas sessões. Exigia excelência e Holcroft atendia a suas exigências. Havia necessidade de uma saúde perfeita e de uma forma física impecável antes que o verdadeiro treinamento começasse.

Ia começar no dia seguinte. No alto das montanhas, longe dos olhos curiosos, o treinamento começaria sob a rigorosa supervisão de Yakov. O aluno faria o que o mestre não podia mais fazer; passaria por todas as provas até que superasse o mestre.

DEUTSCHE ZEITUNG

"Berlim, 4 de julho. - O Bundestag aprovou hoje formalmente a criação de centros de recuperação, nos moldes dos que já existem nos Estados Unidos, nos Estados do Arizona e do Texas. Esses centros serão, como os americanos, de natureza basicamente educativa e estarão sob direção militar.

Os elementos sentenciados aos centros de recuperação serão julgados pelos tribunais quando forem acusados de crimes contra o povo alemão."

- Arame! Corda! Corrente!

"Use os dedos. Não se esqueça de que os dedos são armas!

"Torne a subir naquela árvore. Foi lento demais...

"Escale aquele morro e desça sem que eu o veja!

"Eu o vi! Teria a cabeça despedaçada!

"Comprima o nervo e não a veia. Há cinco pontos nervosos. Encontre-os com os olhos vendados. Sinta-os.

"Role o corpo. Não se agache.

"Toda ação deve ter duas opções diferentes que se possam tomar numa fração de segundo. Adestre-se para pensar nessas condições instintivamente.

"Boa pontaria é uma questão de mira, imobilidade e respiração. Atire de novo. Sete tiros. Devem estar dentro de um diâmetro de cinco centímetros.

"Fuja, fuja! Use o ambiente, desapareça nele. Não tenha receio de ficar parado. Um homem parado é a última pessoa vista..."

Os meses de verão passaram e Yakov Ben-Gadíz estava satisfeito. O aluno já era melhor do que o mestre. Estava pronto.

E a sua companheira também. Formavam juntos uma boa equipe.

Os Sonnenkinder estavam marcados. A lista foi estudada.

THE HERALD TRIBUNE

"Paris, 10 de outubro. - A organização internacional com sede em Zurique conhecida como Forja anunciou hoje a formação de uma junta de chanceleres independentes, eleita por votação secreta das nações participantes. O primeiro congresso da Forja será realizado no dia 25 do corrente mês..."

O casal desceu a rua no distrito de Lindenhof, em Zurique, na margem esquerda do rio Limmat. O homem era bem alto, mas caminhava um pouco encurvado e mancava acentuadamente. Levava na mão uma velha maleta que ainda mais lhe dificultava a marcha. A mulher segurava-lhe o braço e o guiava, demonstrando mais irritação com a responsabilidade do que afeição. Caminhavam ambos calados. Eram um casal de idade indeterminada, que vivia em mútua aversão.

Chegaram a um edifício de escritórios e entraram. O homem seguiu a mulher até os elevadores. Embarcaram e a mulher perguntou ao ascensorista num alemão inconfundível da classe média qual era o número do escritório de uma pequena firma de contabilidade.

O ascensorista disse que o número da sala da firma ficava no último andar, o décimo segundo, mas, como era hora do almoço, não devia haver ninguém por lá. A mulher disse que não fazia mal; estavam dispostos a esperar.

Saltaram do elevador no décimo segundo andar. O corredor estava deserto. No instante em que a porta do elevador se fechou, o casal correu para a escada ao fim do corredor, do lado direito. O andar de ambos passara a ser firme e os rostos não tinham mais o seu aspecto sombrio. Subiram para a porta do terraço no patamar. O homem se abaixou e abriu a maleta. Dentro dela havia o cano e a coronha de um fuzil, com uma mira telescópica presa ao cano e com uma alça presa à coronha.

Tirou as duas partes da arma e encaixou-as uma na outra. Tirou depois o chapéu onde estava presa uma peruca e jogou tudo na maleta. Levantou-se e ajudou a mulher a tirar o casaco, virando as mangas e o casaco pelo avesso. A mulher vestiu-o e ficou então com um casaco bege bem-talhado, comprado numa das melhores lojas de Paris.

A mulher ajudou também o homem a virar o sobretudo pelo avesso e este se transformou num casaco elegante com debruns de camurça. Ela tirou o lenço da cabeça, removeu alguns grampos e deixou os cabelos louros rolarem até os ombros. Abriu a bolsa e tirou um revólver.

- Vou ficar aqui - disse Helden. - Boa caça.

- Obrigado - disse Noel, abrindo a porta do terraço.

Agachou-se ao lado de uma chaminé fora de uso. Passou o braço pela alça e firmou-a. Tirou três balas do bolso e colocou-as na câmara. Colocou o fecho em posição de tiro. Lembrou-se do conselho das duas opções numa fração de segundo.

Não precisava delas, pois não ia errar.

Chegou à mureta e ajoelhou-se. Colocou o fuzil em posição e olhou pela mira telescópica.

Doze andares abaixo, do outro lado da rua, a multidão aclamava vários homens que saíam das grandes portas de vidro do Hôtel Lindenhof. Encaminharam-se para a rua cheia de sol sob as bandeiras desfraldadas que saudavam o primeiro congresso da Forja.

Lá estava ele. Na mira telescópica, os fios se cruzavam sobre o belo rosto bem-cinzelado, abaixo dos cintilantes cabelos louros.

Holcroft apertou o gatilho. Doze andares abaixo, o rosto bem-cinzelado explodiu numa massa ensanguentada de carne despedaçada.

O Tinamou fora morto afinal.

Pelo Tinamou.

Estavam em toda parte. Tudo havia apenas começado.

 

 

 


[1] "Filhos do Sol." Em alemão no original. (N. do T.)
[2] "Atenção! O trem das sete horas com destino a Zurique partirá da plataforma número 12." Em francês no original. (N. do T.)
[3] "Está procurando o filho de Clausen! O documento de Genebra!" Em alemão no original. (N. do T.)
[4] "Falo bem alemão." Em alemão no original. (N. do T.)
[5] "Perdão." Em alemão no original. (N. do T.)
[6] "Irmãzinha." Em alemão no original. (N. do T.)
[7] "Inglês." Em alemão no original. (N. do T.)
[8] "Traidor!" Em alemão no original. (N. do T.)
[9] "Patife!" Em alemão no original. (N. do T.)
[10] "Venha cá!" Em alemão no original. (N. do T.)
[11] "Que foi, senhor?" Em alemão no original. (N. do T.)
[12] Tinamou é o nome genérico em inglês das aves da família dos tinamídeos, de que fazem parte os macucos, os jaós, as perdizes e as codornas. (N. do T.)
[13] "Linhas aéreas internas." Em francês no original. (N. do T.)
[14] "Major-general das SS." Em alemão no original. (N. do T.)
[15] "Minha irmã." Em alemão no original. (N. do T.)
[16] "Obrigado, meu irmão." Em alemão no original. (N. do T.)
[17] "Nunca!" Em alemão no original. (N. do T.)
[18] "Gente assassinada! Uma matança!" Em francês no original. (N. do T.)
[19] "Como?" Em alemão no original. (N. do T.)
[20] "Para onde?" Em alemão no original. (N. do T.)
[21] "Muito bem." Em alemão no original. (N. do T.)
[22] "Trinta minutos." Em alemão no original. (N. do T.)
[23] "Um telefonema?" Em alemão no original. (N. do T.)
[24] "Uma coisa louca." Em alemão no original. (N. do T.)
[25] "Cobertura." Em alemão no original. (N. do T.)
[26] "Até a vista." Em alemão no original. (N. do T.)
[27] "Música de cerveja." Em alemão no original. (N. do T.)
[28] "Não há de quê." Em alemão no original. (N. do T.)
[29] "Mas naturalmente..." Em alemão no original. (N. do T.)
[30] "Wolfsschanze! Soldados da Wolfsschanze!" Em alemão no original. (N. do T.)
[31] "Nosso amigo." Em alemão no original. (N. do T.)
[32] "Meu irmão." Em alemão no original. (N. do T.)
[33] "É Von Tiebolt! Fique junto da janela!" Em alemão no original. (N. do T.)
[34] "Entre!" Em alemão no original. (N. do T.)
[35] "Viva Hitler! General Falkenheim, onde está o Nachrichtendienst?" Em alemão no original. (N. do T.)
[36] "Filho de Wilhelm von Tiebolt." Em alemão no original. (N. do T.)
[37] "Entregas." Em francês no original. (N. do T.)
[38] "É você, Jacques?" Em francês no original. (N. do T.)
[39] "Perdão. Pensei que fosse Jacques, que trabalha na florista." Em francês no original. (N. do T.)
[40] "Falken" = "falcão". (N. do T.)
[41] "Cachorro! Onde está a mulher?" Em alemão no original. (N. do T.)
[42] "Muita amabilidade sua. Telefonaremos daqui a meia hora. Obrigado." Em francês no original. (N. do T.)

 

 

                                                                  Robert Ludlum

 

 

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