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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ECO / Scott Nicholson
O ECO / Scott Nicholson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O sol de setembro castigava os telhados em um calidoscópio de dourados, vermelhos e roxos em tons tão característicos do Juízo Final que a floresta parecia queimada aqui e acolá.
O ar estava limpo, com a maior parte da névoa confinada ao horizonte atrás deles, a leste, onde Charlotte e Winston-Salem se reduziram a cinzas. Como ninguém avisou aos pássaros que o mundo acabara, suas melodias e chilreios soavam dos galhos mais altos. De modo geral, Rachel Wheeler achava aquele só mais um dia do Depois.
Isso sem contar com os mortos, os mutantes e as próximas tempestades solares que podem fritar a gente até a loucura.
As pernas dela doíam, mas ficaram mais fortes depois de tantos quilômetros. DeVontay Jones, o negro com olho de vidro, andava atrás dela e mal conseguia acompanhá-la.
Ou talvez ele estivesse retardando um pouco para Stephen explorar o ambiente como um garoto normal, abaixando-se para pegar uma flor aqui ou espetando um graveto em uma poça de lama ali. Stephen deu um chute nas primeiras folhas caídas do outono, divertindo-se com o barulho alto do arrastar dos pés.
— Falta quanto? — perguntou DeVontay a Rachel.
— É você quem está com o mapa.
— Não ligo pros números — comentou ele com aquele sotaque da Filadélfia, embora esses limites tenham se atenuado depois que a tempestade solar apagou todas as fronteiras seis semanas antes. — Estou perguntando quanto tempo vamos viver no meio da floresta.
— O resto da vida — respondeu Rachel. Com Stephen fora do alcance da voz, ela acrescentou: — Que talvez nem dure tanto.
— Miss Otimismo — disse DeVontay com sarcasmo. — Cadê aquela vibração, as orações, toda aquela fé?

 

 

 

 

 


Rachel não queria confrontar a fé. Em algum lugar pelo caminho, os corpos, a carnificina e o horror implacável rasgaram-lhe as fibras do coração. Toda luz que ainda restava vazara por ele com a inevitabilidade de um balão furado. No lugar da fé que a abandonara, a teimosia pegou a cruz e a colocou em marcha para as montanhas.
No lugar da fé que morrera, o rancor entrou em formação de batalha.
— Eu ainda acredito — disse ela sem vergonha de mentir. Ela simplesmente acreditava em algo diferente.
Sobrevivência.
— Bem, acho que é melhor nos sentarmos um pouco — sugeriu DeVontay. — Você pode saber onde está, mas eu acho melhor dar uma olhada no mapa.
— Não ouse fazer a piada de mulher no volante — advertiu Rachel.
— Eu nem sonharia com isso. — Ele tentou piscar, mas a pálpebra só baixou até a metade do percurso no olho de vidro, fazendo da expressão um soslaio estranhíssimo.
— Stephen! — chamou Rachel.
O garoto entrou no bosque, quebrando a regra de que todos deviam sempre ficar à vista uns dos outros. Não que Rachel estivesse preocupada. Desde que deixara a casa
cinco dias antes, eles ficaram nas estradas pela floresta, ocasionalmente interceptando uma rodovia ou passando por uma casa. Eles não viram nenhum sequelado desde
então, embora ouvissem às vezes um cacarejo estranho que chegava de longe com a brisa.
— Esse garoto não escuta muito bem — disse DeVontay.
Rachel sabia que ele estava incomodado com alguma coisa porque tirou do ombro a alça do rifle e se preparou para a ação. — Estamos seguros aqui — disse Rachel. —
Não tem nada pros sequelados caçarem.
Ela excluiu da memória os sequelados que encontrou em Charlotte e o modo com que se aglomeraram nos sobreviventes, motivados a destruir qualquer criatura viva que
lhes cruzasse o caminho. No entanto, os sequelados — assim chamados por blogueiros nos primeiros estágios das tempestades solares, antes de o termo ser adotado pela
mídia — se fixaram grandemente em áreas populosas, o que Rachel atribuía à ausência de inteligência deles. Na falta de um motivo para migrar, eles ficaram onde o
cérebro deles fritou completamente.
DeVontay, no entanto, tinha outra teoria: era onde a carne estava mais disponível.
— Stephen! — chamou Rachel novamente. A estrada seguia uns cem metros para a direita, entulhada de carros e cadáveres inchados de gás. Stephen sabia bem que não
era para ir naquela direção.
— Pessoal! — chamou Stephen logo depois de uma parede de bordos e plátanos outonais. — Encontrei uma coisa.
As costelas de Rachel lhe apertaram o coração. Ela estava imersa na rotina entorpecida da caminhada e meio cansada de novas descobertas. Ela descobrira que o sol
tinha o poder invisível de fazer do mundo um inferno, matando bilhões e transformando o restante em assassinos mentecaptos. Descobrira que estava entre os poucos
sobreviventes mergulhados em um mundo em que a infraestrutura tecnológica desenvolvida em décadas fora dizimada. Descobrira que Deus não era nem um pouco benevolente
e constante quanto ela sempre acreditava (ou acreditara?).
No momento, ela descobriu que não queria dar mais nenhum passo. Nada de surpresas, nada de desafios a superar. Ela, no entanto, deu um passo, e depois mais outro.
Logo estava correndo.
Depois de encontrar o rifle na fazenda, DeVontay lhe dera a pistola e eles praticaram tiro até que ela se sentisse confiante com a arma. Ela lutara contra os sequelados
a curta distância e — em outra descoberta indesejada — descobrira que o sangue deles também era vermelho e que eles, apesar da selvageria, não eram muito diferentes
dos sobreviventes humanos.
Ainda assim, se alguém ameaçasse a ela ou a Stephen, ela derramaria mais sangue novamente, tantas vezes quanto fossem necessárias.
Esse pensamento não a horrorizava mais. A raiva era sua última fonte de motivação, inflamava-lhe o ventre e ardia na alma.
DeVontay, com passadas mais largas, acabou ultrapassando Rachel; ele entrou na clareira uns dez segundos antes dela. Quando ela o viu desacelerar e baixar o rifle,
percebeu que não havia perigo.
— Avião — disse Stephen, e Rachel se surpreendeu perscrutando o céu involuntariamente, mas só viu uma camada desigual de nuvens de fim de tarde.
As copas das árvores foram aparadas em uma grande linha, os galhos estavam retorcidos e descascados, com a madeira branca exposta ao sol. Cinquenta metros adiante,
uma fuselagem de um avião estava enterrada no chão, deixando um rastro de solo marrom-avermelhado marcando o trajeto do pouso forçado. Uma das asas estava amassada
no tronco de um imenso carvalho, mas nem sinal da outra — talvez tivesse rolado até os pinheiros mais distantes.
O avião tinha uma hélice despedaçada, por isso Rachel sabia que não era um jato. Era um avião de ponte aérea com capacidade para trinta ou quarenta passageiros que
os viajantes a negócios chamavam de “pula-poça”. Ele provavelmente estava no ar quando as tempestades solares o atingiram e cortaram a alimentação e o contato por
rádio. O piloto se atracara nos controles manuais com habilidade o bastante para evitar um mergulho de nariz, mas era muito improvável que alguém tivesse sobrevivido
à queda.
— Droga — disse DeVontay.
— Talvez eles sejam os sortudos — opinou Rachel. Stephen não mostrava sinais de choque — só uma admiração pueril. Considerando que ele quase enlouquecera depois
da morte da mãe, Rachel considerou um bom sinal de que ele estava quase normal.
Tão normal quanto se poderia estar no Depois.
— Que pena que não dá pra gente voar nele — lamentou Stephen. — Aí a gente chegava mesmo no Mi’ssippi.
Rachel e DeVontay alimentaram a ilusão de que levariam mesmo Stephen até o pai, que muito provavelmente estava morto — ou coisa pior. Rachel não sentia a menor culpa
por enganá-lo. A culpa era um luxo dos civilizados.
— Quantas pessoas será que estavam aí quando o Clarão aconteceu? — perguntou DeVontay.
— O pulso eletromagnético deve ter acertado eles igual a um mata-moscas gigante — disse ela — como estavam falando nos noticiários quando era tudo só uma teoria.
— Sem paraquedas — observou DeVontay. — Mas acho que, se você acha que vai cair, nem chega a entrar no avião.
— Que jeito horrível de morrer.
Rachel nunca tivera medo de voar, mas nunca passara por uma plataforma sem pensar na possibilidade de um desastre. Ela decidira que não era da morte que tinha medo:
era da possibilidade de saber que estava caindo e dos vários minutos para apreciar o impacto vindouro.
Mas não é o que aconteceria com todos no fim das contas? É o destino de todos nós. Só mantemos uma negação plausível. Sabemos que vamos morrer um dia, mas não hoje.
Todos queremos ir pro céu, mas não agora. Enxágue e, se necessário, repita a operação.
Stephen continuou em direção ao avião, pasmo como se fosse a primeira vez que estivesse tão perto de um, ou talvez tomado por uma fascinação pueril pela destruição.
Rachel tentou agarrá-lo pela manga, mas ele se soltou e aproximou-se ainda mais. Um pequeno círculo de grama chamuscada cercava a traseira do avião, mas a fuselagem
estava relativamente intacta. A bagagem estava espalhada em volta do acidente; uma das malas estava aberta e exibia um vestido vermelho vivo, de outra despontavam
tacos de golfe.
Rachel não viu nenhum movimento atrás das janelas de cantos arredondados e não queria que Stephen se expusesse ao fedor de dezenas de corpos decompostos. Mesmo à
sombra, o interior do avião deveria ter ultrapassado os quarenta graus, tostando os corpos presos lá dentro.
— Eu quero ver — declarou Stephen.
— Deixa o DeVontay ver antes — disse Rachel.
DeVontay baixou as sobrancelhas e o olho de vidro cintilou na luz do sol. — Ah, muito obrigado.
— Ei, você é o homem da casa — disse ela.
Eles não discutiram o estranho relacionamento, mas se tornaram uma família talvez no sentido mais verdadeiro da palavra. Nada que a Bíblia reconhecesse, decerto,
mas juntos eles enfrentaram tribulações para as quais nem as pragas do Velho Testamento seriam páreo. Eles estavam ligados pela sobrevivência mútua.
DeVontay marchou em direção ao acidente com o rifle de prontidão. Stephen começou a segui-lo, mas Rachel o alcançou e o agarrou firme pela camiseta. — Calma aí,
intrépido escoteiro.
DeVontay olhou por uma das janelas de cantos arredondados. Em seguida, passou pela dianteira, onde o nariz do avião se destacara do corpo. Rachel se ajoelhou sobre
uma mala verde que se abrira no acidente. Uma etiqueta na alça revelou que a bagagem viera de Atlanta. Rachel por um momento pensou na privacidade do proprietário
da mala. Será que ela teria o direito de vasculhar a história pessoal de alguém?
Ela olhou para o avião. Pouco além dele, na mata, havia um pedaço de pano úmido terminava em um nó torcido. Na ponta do nó, um sapato de couro apontava para as copas
das árvores.
Nesse caso, eu desejaria que qualquer pessoa usasse o que eu pudesse oferecer.
Quando ela abriu a mala, Stephen se juntou a ela e mergulhou nas roupas, livros e uma bolsinha de maquiagem fechada por zíper. Stephen puxou um par de calcinhas;
ele contorceu o rosto enojado e atirou-as para longe. — Eca.
A reação dele foi tão típica de um garoto comum — um garoto do Antes — que Rachel quase sorriu. Mas sorrir era quase um sacrilégio naquela cena de carnificina.
Ela encontrou uma blusa de mangas longas de tom rosa velho. Ela a experimentou por sobre a camisa de flanela que vestia desde que saíram da fazenda. Pelo jeito,
serviria. — O que você acha? — perguntou ela a Stephen.
Ele deu de ombros. — Acho bonita, se é que você gosta desse tipo de coisa.
Ela a amarrotou e atirou-a de volta à mala. — Você tá certo. Não tem sentido nenhum melhorar a aparência.
Stephen pegou a blusa e ofereceu-a para ela. Os grandes olhos castanhos estavam abertos e esperançosos — talvez não fosse assim tão mau fingir que as coisas não
tinham mudado tanto assim. — É bonita. É bem o tipo de roupa que minha mãe usaria.
Dessa vez ela sorriu. — Tá bem — disse ela levantando um braço e dando uma fungada exagerada na axila. — Acho que esta aqui tá ficando fedida.
DeVontay emergiu da fuselagem destruída com o rifle pendendo casualmente do ombro. — Tudo limpeza — assegurou ele. — Acho que conseguimos um teto pra passar a noite.
Uma onda de horror tomou conta de Rachel. Será que ele queria dormir em meio a um monte de cadáveres?
DeVontay apontou para o nariz do avião, que estava rachado como um ovo e virado para cima. — Tá vazio — explicou ele.
Rachel começou a refazer a mala e, em seguida, percebeu o quanto era ridículo aquele instinto. Ela segurou a blusa sob o braço. — Acomodações cinco estrelas?
DeVontay olhou para o sol poente. — Não gosto de estrela. Especialmente daquela.
Stephen, provavelmente vendo que os adultos estavam vasculhando a bagagem, correu até uma mochila e abriu-a, jogando roupas e papéis pelo ar. Ele caiu e ficou lá,
quieto, olhando para a bagunça.
Rachel e DeVontay se entreolharam e ele franziu a testa e sacudiu a cabeça. — Vai lá. Faz o teu aconselhamento aí.
— Sim, senhor capitão.
Rachel foi até Stephen e viu a boneca bebê dentro da mochila. Stephen superara a ligação com Molly, deixando-a com o corpo de uma garota para confortá-la em sua
jornada até o além. Mas naquele momento a perda da mãe era visível no rosto como uma dor muda e oca.
— Vamos — disse ela, pegando-o pelo ombro e guiando-o até o nariz do avião onde eles pernoitariam acampados. Logo ela estaria juntando roupas para fazer camas improvisadas
e acenderia uma fogueira para aquecer umas latas de sopa para tomar com biscoito. DeVontay estava ocupado limpando a área do acidente próxima ao nariz do avião.
Eles dormiriam cercados de mortos.
Só mais um dia no Depois.
Enquanto Rachel confortava Stephen, ela não notou o movimento na floresta ao redor, nem os olhos que os observavam enquanto eles preparavam o acampamento para pernoitar.
CAPÍTULO 2
— Preciso matar isso — disse Franklin.
Jorge não gostou do jeito que o velho pegou a espingarda, como se não conseguisse se decidir se atirava ou se jogava a arma na floresta abaixo. Eles estavam empoleirados
em uma plataforma a seis metros do chão no complexo de Franklin nas montanhas, um terreno de oito mil metros quadrados reivindicados da natureza que ele chamava
de Carroção.
Desde que Franklin abrigou Jorge e a esposa Rosa e ajudou na recuperação da saúde de Marina, Jorge buscava uma maneira de lhe agradecer. Mas Franklin estava mais
interessado em contribuição que agradecimento. Jorge trabalhara muito para cuidar do jardim e dos rebanhos de Franklin, que parecia feliz com a ajuda.
Depois que Jorge resgatara a mulher e o bebê e levou-os para lá, no entanto, eles descobriram que a criança fora afetada pelas fortíssimas tempestades solares que
eliminaram a infraestrutura do mundo.
O bebê era um sequelado, o nome pitoresco que a mídia disseminou para os que tiveram a personalidade alterada pelas primeiras ondas de radiação eletromagnética.
Logo as ondas ficaram mais intensas, até que os âncoras e todos da TV foram substituídos por estática e, em seguida, por trevas, eliminando de vez a eletricidade
e fazendo com que os motores dos carros morressem com milhões e milhões de pessoas.
Agora Franklin queria matar mais.
— É só uma criança — argumentou Jorge.
— Não gosto dela no complexo. O velho cuspiu da plataforma, olhando a saliva percorrer um caro até as folhas amareladas abaixo. — Vai atrair mais deles.
— Eles ainda não nos atacaram. — Quando Jorge e Franklin resgataram a jovem, os sequelados a estavam perseguindo. Naquele momento, Jorge não tinha certeza se os
outros queriam matar a mulher ou se queriam tomar-lhe o bebê.
— Eles estão por aí. À espreita. Esperando.
— Você acha que eles são inteligentes pra ficar esperando? Os sequelados… — Jorge ainda se sentia desconfortável de usar o termo porque, em outra situação, podia
ser muito bem “latino” ou “cucaracha” — que nos atacaram eram uns matadores desmiolados, nem sabiam o que estavam fazendo.
— Eles estão agindo de forma estranha. Não dá pra confiar neles. Eu preferia quando eles eram malucos. Pelo menos a gente sabia o que era o quê.
Franklin levou o binóculo até o rosto e olhou os morros em volta. — Fumaça.
— Onde?
Franklin passou o binóculo e apontou para longe. Jorge ajustou as lentes até ver a fina coluna de fumaça cinza subindo cerca de cem metros mais ao sul. — Será que
são os sequelados?
— Nada — respondeu Franklin. — Aposto que é uma patrulha de reconhecimento do exército. Eu disse que eles tinham um abrigo por ali.
— E você não encontrou o abrigo?
— Eles se escondem muito bem. São seus impostos em ação. — Franklin o olhou com olhos entreabertos e a pele grossa da testa enrugou. — Quer dizer, se é que você
já pagou impostos.
Jorge não gostou da insinuação de que era um estrangeiro ilegal em vez de um lavrador com visto de trabalho agrícola. — Eu tenho até seguro saúde.
— Burlar o fisco é a mais pura forma de patriotismo — disse Franklin. — Mas acho que isso não importa mais. Nem o seu seguro saúde.
Jorge ficou feliz pelo velho ter mudado de assunto para outro além do bebê. Jorge mesmo estava em conflito com a presença do bebê. Os sequelados que o atacaram na
fazenda tinham a intenção de matar Jorge e a família e ele não sofrera de remorsos por tê-los matado.
Mas os que perseguiram a jovem Cathy e o bebê agiam com menos malevolência e mais curiosidade e precaução. Ele não sabia articular a diferença e tinha certeza de
que Franklin não se importava.
O bebê era pequeno demais para oferecer perigo e os sequelados não pareciam portadores de alguma infecção que pudesse alterar os que não foram afetados pelas tempestades
solares. Ainda assim, a presença do bebê de alguma forma deve ter atraído outros sequelados e colocaria Rosa e Marina em risco. Eles estavam na cabine naquela hora
com Cathy e a criaturinha de olhos brilhantes.
Jorge estava prestes a perguntar a Franklin o que ele achava que deviam fazer com o bebê, mas o velho levantou a mão aberta para silenciá-lo e, em seguida, apontou
para a floresta.
No começo, Jorge nada viu, mas, logo depois, a folhagem marrom-dourada começou a se mexer e desfazer seu padrão. Ele achou a princípio que pudessem ser os cavalos
que fugiram da fazenda de Wilcox para as montanhas. Eles tiveram de soltar os animais na natureza porque o complexo não geraria comida o bastante para eles.
Mas aquele movimento não era a agitação de uma cauda nem o estampido de um casco.
Uma forma humana se movia silenciosamente entre os troncos a passos lentos e calculados, como se estivesse evitando o farfalhar do tapete de folhas. Eles avistaram
uma flanela vermelha com padrão xadrez e, em seguida, o vulto desapareceu nas sombras.
— Será um deles? — perguntou Jorge a meia voz.
Franklin levantou o rifle e olhou pela alça de mira. — Ou isso, ou um hippie pegou a trilha errada para curtir a natureza.
— Se você atirar, eles vão saber onde estamos.
Franklin sorriu com aqueles dentes amarelos e tortos. — Bom, as tropas federais já sabem que estamos aqui e os sequelados vão nos achar mais cedo ou mais tarde.
— Achei que você não gostasse de matar.
Franklin firmou o cano por mais alguns segundos e, em seguida, o baixou. — Não tem linha de visão.
Jorge analisou a colina mais ao sul, onde havia cordas gigantes de sumagre venenoso que serpenteavam pelos troncos das faias e dos choupos que exibiam o vermelho
brilhante de suas folhas. Outro vulto se moveu, novamente com uma furtividade calculada. Jorge não apontou aquele para Franklin, mas falou entre os dentes.
— E não é que tem mais deles aí? — Franklin apontou para o leste e Jorge distinguiu claramente uma mulher com uma capa impermeável marrom e pernas nuas, descendo
até os musgos abaixo dela enquanto atravessava um monte de pedras. Ela andava paralelamente à cerca do complexo, mas a cinquenta metros de distância.
Jorge olhou para o sul e viu outro vulto.
— Estão nos cercando — deduziu Franklin. — Mas vai saber por quê…
— Então eles sabem que estamos aqui.
Franklin assentiu com a cabeça. — Então é temporada de caça.
— Você não sabe o que eles querem.
— Se formos perguntar, talvez morramos todos.
— Você disse que eles não conseguiriam passar a cerca.
Franklin franziu a testa em direção ao interior do complexo, onde a horta ainda estava verde. A cabine e o galpão foram construídos nas árvores e eram difíceis de
se notar de longe, mesmo desfolhadas pelo outono. A parte mais baixa da cerca de correntes estava cheia de trepadeiras e roseiras-bravas em touceiras grossas, protegendo
ainda mais as estruturas.
— Eu carreguei o material pra cá com um carroção — disse Franklin. — Levou dois anos pra eu construir esse lugar. Eu não vou desistir sem lutar.
Jorge se irritou. — Por que os sequelados querem o seu complexo? Eles não estão nem aí.
— Talvez eles saibam que o bebê está aqui.
— Mas você disse que eles não nos seguiram.
— Você viu o comportamento deles agora. Logo depois que o sol vomitou na gente, vi um deles na estrada perseguindo um cara que saiu do carro logo depois de um bater
no outro. Na hora, achei que era só um cara injuriado por alguém ter batido no carro dele, mas era um sequelado. O outro cara era grandão e pesado, mas o sequelado
pulou no cara e o derrubou igual um gato selvagem e bateu a cabeça dele no chão até ela ficar igual a um melão que caiu duma empilhadeira.
— E você não ajudou ele?
Franklin olhou de soslaio com um dos olhos sob a espessa sobrancelha grisalha. — Tá brincando? Eu não me meto em assunto alheio. Além do mais, já tinha acabado antes
sequer de eu pensar. Você não se lembra de como foi que tudo começou?
O começo. Era como o Gênesis, um novo mito da criação; — Todas as pessoas na fazenda Wilcox caíram mortas. Menos a gente.
— Então vocês não viram os pirados?
— Demorou dias. Aí… — Jorge se lembrou de quando descobriu Willard, um colega trabalhador, no sótão do celeiro da fazenda Wilcox. A força do aperto e os olhos ensandecidos
e faiscantes do homem foram primeiro chocantes, depois perigosos, e Jorge teve que cortar o braço do homem na altura do pulso para se soltar. Jorge, no entanto,
não ligava de recontar a história porque os detalhes vívidos ajudariam a afastar a inércia da memória. — É. Nós vimos a mudança.
— Pois é — disse Franklin satisfeito com o rosto empalidecido de Jorge. — Mudança. Lembra daquelas campanhas políticas idiotas usando “Mudança” no slogan? Aí, depois
de eleitos, eles mudam pra “Sem mudança”. É, nós vimos mudanças, tá certo. Espero que todas essas raposas estejam queimando no inferno. Mas eu tenho a sensação de
que eles estão entocados no bem-bom igual ao pessoal do Exército.
Jorge perscrutou a floresta e detectou um movimento em meio aos sumagres. Era outro sequelado circulando o perímetro, também à distância como os outros. — O que
eles estão fazendo?
—Parece que estão nos cercando.
— Mas eles não estão atacando, não estão nem se aproximando.
— Se eles tivessem cérebro, talvez estivessem nos esperando lá fora.
— Esperando o quê?
— A gente fazer alguma burrice. Chegar lá fora, onde eles podem nos pegar, ou tomar a cabine de assalto.
— Então eles não sabem que você tem comida e suprimento o bastante pra anos?
— Bom, presumindo que eles tenham algum cérebro. Pode ser que eles sejam tão idiotas quanto parecem e não sabem como chegar no portão da frente.
Jorge achava que o portão não aguentaria se três ou quatro sequelados forçassem entrada por ele, mas Franklin não parecia muito preocupado.
— Nós temos munição suficiente pra mantê-los afastados? — A ideia de atirar neles não agradava a Jorge. Seria praticamente um massacre. Se Rosa e Marina estivessem
sob ameaça, porém, ele teria o prazer de atirar em qualquer coisa que entrasse no complexo.
— Acho que não chegará a tanto — opinou Franklin.
— Por que não?
— Se eles vierem bater aqui, vou dar o bebê pra eles.
CAPÍTULO 3
Eles estão atrás de mim.
Campbell não tinha certeza se os perseguidores eram sequelados, soldados desgarrados ou sobreviventes do tipo que comemoraria a total ruína das leis e da ordem no
advento do colapso.
Desde que o melhor amigo Pete foi morto a bala, Campbell evitava contato com todo tipo de pessoa, o que não era nada tão difícil — os mortos pareciam superar os
vivos em pelo menos mil para um.
Além disso, ele não tinha certeza se os sequelados contavam como vivos ou mortos, já que pareciam ser algo entre um e outro.
Campbell estava agachado à sombra de um SUV, um daqueles mostrengos de ferro e plástico que fariam arqueólogos alienígenas do futuro se perguntarem se os objetos
seriam ou não câmaras mortuárias. A julgar pelo chorume fétido do interior, Campbell achou que era uma família de quatro pessoas — não que ele quisesse conferir.
Em vez disso, inclinou-se para baixo e olhou sob o veículo para perscrutar a estrada atrás dele. Ele estava andando pelo acostamento da estrada para evitar o amontoado
de tráfego parado e para sacrificar menos os joelhos. Ele se comprometera em sair a céu aberto ao descobrir que poderia abranger certa área rapidamente se houvesse
necessidade.
E a necessidade pode estar surgindo.
Vasculhou a mochila para pegar a pistola Glock que ele recuperara do corpo de um policial em Taylorsville. Ele não usava coldre porque podia ser tomado como sinal
de agressão. Campbell não queria terminar como Pete, morto por um atirador escondido, mas Pete não estava ostentando nenhuma arma além de uma garrafa de cerveja.
Estes são tempos em que podem nos matar só por estarmos de pé e respirando, só porque mancamos um pouco e parecemos sequelados. Ou talvez só porque podem matar.
Campbell ouvia gritos ocasionais ao longe e gritava expressões que não pudessem ser proferidas por sequelados. Até onde sabia, os sequelados só murmuravam ruídos
estranhos de cacarejos e silvos. Embora os gritos humanos lhe deixassem mais aliviados por não estar totalmente sozinho, ele tinha medo dos outros sobreviventes.
Toda vez que via movimento, deitava-se ou afastava-se sem se preocupar se a atividade era causada por sobreviventes, sequelados, cães abandonados ou animais selvagens.
Pelo mesmo motivo, ele não ousava praticar tiro ao alvo com a Glock. Além do treinamento que ele e Pete tiveram com o grupo de carniceiros do Arnoff, ele tinha pouca
experiência com armas.
Portanto, se alguém tentasse persegui-lo, ele teria que correr ou atirar. No entanto, bem lá no fundo, uma vozinha dentro da cabeça dele lhe garantia que ele estava
sendo só paranoico. O problema principal, porém, era que a vozinha interior se parecia muito com Pete e, por isso, não era confiável.
Campbell não via nada atrás dele na estrada, mas os perseguidores podiam facilmente ter-se escondido entre os inúmeros veículos que se acumulavam na estrada. Os
sequelados, porém, não se preocupavam em se esconder: eles só chegavam.
No entanto, nada apareceu. Depois de talvez meio minuto, ele se encostou em um pneu. Talvez tenha fantasiado a perseguição só para quebrar a rotina. Uma melancolia
profunda abatera sobre ele nos últimos dias e as noites que passou nos veículos abandonados resultaram em um sono inquieto e interrompido. Ele estava exausto, mas
era mais que isso: Pete foi o último vínculo com o mundo normal, quando Xbox, fins de semana no Clyde’s e a maré de azar dos Panthers eram habituais.
Campbell colocou a arma no colo e olhou para ela. Uma bala no céu da boca, como nos filmes.
Ele até tentou levantar a arma, abrindo tentadoramente os lábios e imaginando o gosto metálico, mas era covarde demais.
Ele deu uma olhada para cima e acabou passando os olhos no espelho lateral do SUV…
Movimento.
Na floresta que margeava a rodovia.
Com o coração sobressaltado, Campbell rolou para a frente do veículo e acabou ralando o cotovelo no asfalto.
Três homens saíram das árvores, dois deles de uniforme militar, embora parecessem relaxados, com movimentos que denotavam pouco treinamento. Eles ladeavam um homem
de mãos amarradas na frente que vestia uma camiseta imunda. Cingia-lhe a cabeça um trapo que lhe servia de venda improvisada, com cachos louros saindo pelos lados.
— Acho que, pra mim, já chega de andar — disse o soldado da esquerda, que enfiou a mão no bolso e pegou um cigarro.
O outro soldado, que parecia fazer a maior parte do serviço de escoltar o prisioneiro, retrucou: — O sargento não tá nem aí pro que você acha. — Mesmo assim, parou
e deixou o companheiro acender o cigarro. O prisioneiro estava cabisbaixo, como se estivesse resignado ao destino que os soldados lhe impusessem.
Campbell avaliou a situação. O soldado que fumava tinha uns 25 anos, rosto aquilino e olhos cruéis. Nas costas, carregava um rifle. O soldado segurou o cigarro para
o prisioneiro e logo se lembrou de que o cativo estava vendado.
— Quer fumar? — zombou.
O prisioneiro tremeu a cabeça.
— Que pena. — O soldado deu uma forte tragada no cigarro, virou a ponta brilhante e alaranjada e enfiou a brasa na testa do homem, que se desviou contorcendo o rosto
e sibilando de dor, embora o calor só tenha chamuscado um pouco o cabelo. O soldado riu como um cavalo com laringite.
O outro soldado, de meia idade e o cabelo meio grisalho cortado à escovinha, repreendeu-o: — Pare de bobagens. Precisamos levar um desses vivos.
Um desses? Campbell ficou pensativo. Quantas pessoas será que eles encontraram e o que vai acontecer com elas?
— É só um sequelado — disse o soldado magrelo. — Ele é idiota demais pra sentir dor.
Aquilo não fazia sentido. O prisioneiro não agia como um sequelado. Mesmo se ele fosse um daqueles de comportamento alterado pela tempestade solar, por que os soldados
não deram logo um tiro na cabeça dele?
— Eu vou fazer você sentir dor se não ficar na linha — disse o Escovinha. Ele ostentava uma arma de assalto semiautomática que, pelo jeito, poderia transformar manteiga
em queijo suíço.
O soldado magrelo deu uma tragada hesitante no cigarro, quase queimando a bochecha do prisioneiro. Depois deu um passo à distância para apreciar o tabaco e olhou
para o oeste, onde o sol começava seu curso descendente vespertino.
O prisioneiro finalmente abriu a boca e emitiu um ruído grosso e cacarejou. O Escovinha deu-lhe um safanão para frente. — Não quero ouvir.
Campbell correu para a sombra assim que dois deles se aproximaram da estrada. Ele considerou as opções. O Escovinha parecia ser o mais competente, logo ele seria
o primeiro a ser eliminado. Em seguida, enquanto Campbell ainda pudesse se beneficiar do elemento surpresa, ele pegaria o fumante.
Ele olhou a pistola no colo. O Escovinha estava a uns quarenta metros de distância. Se Campbell tivesse sorte, o tiro passaria de raspão e os dois soldados iriam
atirando para cima dele.
E mesmo que ele, por um milagre, abatesse os dois, o que aconteceria?
— Espera — gritou o magrelo enquanto jogava o cigarro fora e dava uma corridinha meio mal-humorada.
— Zimmerman, vou te falar, você é lerdo igual à minha avó.
— Tua avó é sequelada.
— Ah, é? Bom, eu mandei ver na tua irmã antes de ela morrer. E aí, o que você me diz?
O fumante deu uma gargalhada meio hostil. — E daí? Você ficou com a minha sobra.
— Você é doente — disse o Escovinha. — Eu gosto disso num companheiro de trincheira.
O fumante alcançou os outros dois e acertou o homem vendado com um soco nas costas. O prisioneiro não grunhiu, embora Campbell tivesse escutado o ar saindo dos pulmões
dele.
Campbell não conseguiria atirar nem se quisesse, pois eles estavam a uns setenta metros dali. Eis que ele percebeu que não queria machucar ninguém. O sofrimento
já era demais. Ele não tinha certeza nem se conseguiria matar um sequelado em autodefesa.
E a vozinha do Pete na cabeça dele disse: Tá, e você não tem muito o que defender, não é? Uma caixa de arroz instantâneo. Um pacote de canetas. Um kit de primeiros
socorros de viagem. Três latas de atum. Um pacote de biscoito. Meio rolo de papel higiênico. Sim, coisas pelas quais VALE A PENA lutar.
Campbell resistiu em responder à vozinha do Pete. Aí já seria atravessar a barreira da loucura, e Campbell não estava louco.
É o que todos dizem, comentou a vozinha do Pete.
Quando Campbell tinha doze anos, o pai dele o levou a Nova Iorque — os contrafortes da Carolina se transformaram na Virgínia Ocidental, terra do carvão, depois no
coração da classe trabalhadora da Pensilvânia, até a imensidão urbana a nordeste. Em todo posto de gasolina ou lanchonete, o pai sempre advertia antes de eles saírem
do carro: “Cuidado, o povo aqui é doido.”
Na cabeça do pai, o mundo todo era doido, exceto o lago James, na Carolina do Norte, onde os peixes mordiam a isca e as mulheres não perturbavam. O pai se chamava
Norman, um nome normal de um cara pé-no-chão, cujos amigos chamavam de “Norm”.
“Quando alguém me chama de Norman, já sei que o assunto é dinheiro”, dizia o pai.
Campbell se envergonhava de mal pensar na família depois das tempestades solares. O lago James distava pouco mais de quatro horas e meia de estrada de Chapel Hill,
mas, em um mundo sem carros, era como se fosse o outro lado da lua.
Quando Campbell saiu de casa para estudar na universidade, o pai lotou a caminhonete com a mudança e deixou-o no alojamento com um conselho: “Cuidado, o povo aqui
é doido.”
E agora o tempo e a circunstância — com um épico acesso do sol — provaram que o pai estava certo. Ele ficou pensando se Norm ainda estava vivo, sentado na canoa,
lançando latinhas de cerveja para trás, enquanto o mundo ruía atrás de si.
Por algum motivo, ele não conseguia visualizar a situação. A ideia de que o pai e a mãe morreram não o deixava triste. Em vez disso, deixava um oco no peito dele.
Campbell não queria mais ficar sozinho com aquela vozinha de Pete. Ele não ligava para o grau de loucura das pessoas.
Ele levantou a cabeça por cima do capô do SUV. Os três vultos estavam caminhando no acostamento da estrada, como Campbell estava havia pouco tempo. O soldado magrelo
acendeu outro cigarro e uma fumaça cinza-azulada se encaracolou sobre a cabeça dele. O prisioneiro vendado caminhava com dificuldade entre eles, com o Escovinha
dando-lhe umas cutucadas de vez em quando para estimulá-lo.
Campbell olhou para trás para certificar-se de que não estavam sendo seguidos. Do jeito que eram barulhentos, qualquer sequelado em um raio de quilômetros os teria
escutado. Mas os soldados não pareciam nada contidos. Talvez eles já tivessem lidado com muitos sequelados e botavam fé nas armas que levavam.
Campbell meteu a Glock em um bolso com zíper da mochila e foi em direção ao trio, desviando-se cuidadosamente dos carros, passando pela estrada meio abaixado. Ele
se esforçava o dobro em relação aos soldados para percorrer a mesma distância, mas os perdeu de vista.
É confusão da boa, dizia a vozinha de Pete.
— Cala a boca.
Campbell ficou horrorizado quando percebeu que respondera em voz alta.
CAPÍTULO 4
— Enxágue isso, querido — disse Rachel.
Stephen olhou para ela surpreso. — Tem uma caixa inteira disso bem ali — contou ele acenando em direção à clareira próxima. A luz do ocaso cobriu tudo com um manto
lilás que escureceu até um tom azul-elétrico, como se o sol estivesse saindo para dar uma risada no lado oposto do globo, onde outros sobreviventes deviam estar
à beira de fogueiras gordurosas.
— Precisamos tomar conta do que temos. Não é hora de desperdiçar.
DeVontay balançou a cabeça resignado no banco do piloto. — O garoto tem todas as chapas que quiser. Não dá pra fazer uma visitinha rápida e pegar a porcelana chinesa.
Rachel estava incerta quanto aos motivos dela. Ela queria dizer a eles que, se quisessem uma civilização, o requisito mínimo era agir civilizadamente. Mas talvez
fosse mais simples que isso: concentrar-se nas pequenas tarefas afastava as preocupações maiores.
E tem um monte de preocupações maiores por aí.
— Até nós encontrarmos o seu pai, seremos os responsáveis por você — explicou Rachel. — Por isso a gente tem que fazer coisas que às vezes não gosta.
— Meu pai ia dizer pra eu jogar isso fora. — Stephen olhou para o prato de plástico, que nem estava sujo; eles tinham comido um enlatado de feijão com carne de porco
e maçãs, e ele tinha lambido o molho de tomate. DeVontay não ligaria se todo mundo comesse direto das latas, mas Rachel insistia em manter uma rotina com pratos
e talheres.
— Vou perguntar pra ele quando nós o encontrarmos — disse ela. DeVontay balançou a cabeça de novo, mas dessa vez com um franzir de testa em vez de um sorriso afetado.
— Mas até lá…
— Tá booooom — disse Stephen impacientemente. — A Bruxa Má do Oeste. Meu Deus.
Rachel deu uma gargalhada que reverberou na cavidade do avião acidentado. — Hiii hii hii hii. Vou pegar você e o seu cachorrinho também! — Em seguida, voltou à voz
normal e ordenou: — Mesmo assim você vai limpar o prato.
Stephen derramou a água de uma garrafa no prato e começou a limpar com a manga da camisa. Nem foi preciso que Rachel dissesse alguma coisa: a cara fechada foi o
suficiente. Ele tirou uma camiseta de uma mala aberta atrás de si, limpou o prato com cuidado e atirou a camiseta de volta à pilha.
DeVontay limpou o canivete na perna das calças sem comentar e olhou pela janela do avião. O vidro estava pela metade e o ar frio da noite passava por ele, pelo buraco
onde o nariz tinha se soltado da fuselagem. A maior parte do painel estava intacta — o rádio pendia de cima no fio espiralado. Um dos bancos dos pilotos estava sumido;
DeVontay pegou o que restara e fez fogo com a ajuda das garrafinhas de uísque que ele pegou da cozinha destruída. Ele abriu uma delas e verteu o conteúdo no fogo,
alimentando-o com chamas azuis e acetinadas.
Rachel não perguntou sobre os cadáveres que ele encontrara. Ela só sabia que devia haver dezenas. Mesmo se tivessem sido atirados do avião como pipocas, certamente
muitos deles deviam ter seguido as instruções finais e permanecido no interior da nave. DeVontay se tornara insensível: a morte nada mais era do que uma companheira
de viagem no Depois. Rachel não tinha certeza se essa equanimidade dele era um mecanismo de sobrevivência necessário ou se era mais uma prova de que qualquer estrutura
que ela lhe impusesse seria um fracasso.
Ela olhou para a escuridão mais além, que parecia emergir dos limites da floresta como um predador aquático. — Estamos seguros aqui? — perguntou ela, odiando ter
de fazê-lo na frente do menino.
— Como em qualquer lugar. — O rifle de DeVontay estava atrás dele, encostado na parede distorcida da cabine do piloto. — Não vimos nenhum sequelado por esses dias.
Era verdade. Eles também não viram nenhum sobrevivente e Rachel se perguntava se as tempestades solares causaram danos prolongados que aumentaram o número de vítimas
nas semanas seguintes ao evento. Naquele momento, os três poderiam estar em mutação, com as microscópicas sinapses cerebrais derretendo como fusíveis e fazendo os
sinais elétricos caírem na escuridão.
Como saber?, perguntou-se Rachel. Uma hora a gente está andando, logo depois vira um mentecapto ambulante.
Stephen esfregou os olhos vermelhos por causa da fumaça e do sono. Rachel estendeu um casaco felpudo marrom no piso desabado da cabine e o confortou. — A gente andou
muito hoje — disse-lhe ela. — Por que você não dorme um pouco?
Stephen abriu a boca para protestar, mas acabou bocejando. — Falta muito?
— Muito — respondeu DeVontay. — Mas estamos mais perto do que estávamos de manhã.
Rachel entendeu a resposta em um nível metafórico. Talvez o propósito deles não fosse tão grande — o dela certamente não era, não depois que ela virou as costas
para o Deus que a vira em tempos mais tranquilos —, mas Rachel os convencera que o complexo do avô nas montanhas era o único destino desejável. Stephen acreditava
que eles sairiam de lá para encontrar o pai dele no Mississippi, mas Rachel não conseguia prever o próximo dia de caminhada.
O que acontece depois do Depois?
— Vocês vão gostar das montanhas — disse ela, ajudando Stephen a se envolver na roupa de cama improvisada.
— Canta pra eu dormir? — pediu ele, prestes a ceder à exaustão.
DeVontay percebeu a necessidade de deixá-los em um momento de mais intimidade e pegou o rifle. — Vou dar uma olhada por aí.
Ele passou pela abertura recortada onde o nariz fora arrancado do corpo da aeronave e penetrou na escuridão crescente. Rachel acariciou o cabelo castanho de Stephen.
A rotina da hora de dormir começara havia uma semana, quando Stephen informou que a mãe costumava cantar para ele dormir. Desde que eles a deixaram naquele quarto
de hotel em que Stephen ficara preso com o cadáver dela por três dias, Rachel assumira uma crescente função maternal.
Até isso, no entanto, estava poluído pela culpa. Ela se tornara “a responsável” quando a irmã mais nova Chelsea se afogara e, depois disso, passou a vida tentando
remediar. Rachel treinara para ser conselheira de classe porque não era católica o bastante para se tornar freira. Naquele momento, não havia mais escolas e a única
pessoa a aconselhar era um garoto de dez anos que vira a mãe morrer em um piscar de olhos.
— Que música você quer ouvir?
Stephen se aninhou no casaco. Ele parecia alguns anos mais novo, quase uma criancinha mesmo com aqueles cílios grossos e lábios apertados. — Beatles.
A informação não fora muito específica, mas era tarde demais para a esfuziante Yellow submarine. Help! soaria meio sentimentalista. Ela tomou fôlego e começou a
cantar Blackbird.
Mesmo não sendo grande cantora, cantou direitinho o refrão daquela cançãozinha animada. A melodia parecia mesmo a de um pássaro, descendo e subindo, testando o vento
até voar bem alto. No verso final, a voz dela fraquejou com olhos marejados tentando enxergar. Ela conseguiu transformar o fraquejo em ornamento e se recuperou no
final, perguntando-se se era aquele o momento pelo qual eles estiveram esperando a vida toda.
— Canta de novo — pediu Stephen em um murmúrio, com os olhos fechados.
— Daqui a pouco, querido. Vou ver onde está o DeVontay. Eu já volto. — Deu-lhe um beijo na testa e ele adormecera antes de ela chegar à abertura na fuselagem.
Lá fora, o ar de outono estava fresco e uma constelação brilhava no azul-petróleo do firmamento. As auroras verde-limão, tão profundas e assustadoras no despertar
dos picos eletromagnéticos, tinham diminuído, mas ainda apareciam lá em cima como um fantasma. A fumaça de cidades distantes ficara mais esparsa na última semana,
dando-lhes a esperança de que o pior já tivesse passado.
Esperança, no entanto, era algo em que ela não confiava mais, e a menor tentação de invocar forças divinas além da muralha de estrelas desaparecera quando ela viu
a área de passageiros destruída no acidente.
— A música estava bonita — elogiou DeVontay em meio à escuridão atrás dela.
Ela se virou sem conseguir distinguir-lhe o vulto através das árvores. — Não era pra você ouvir.
— É que não dá pra colocar o fone e ligar o MP3.
— É impressionante o silêncio aqui.
Os dois ouviam o rechino abafado dos insetos, a orquestra de pernas esfregando-se em aquecimento para uma apresentação noturna.
— Dá pra ver as estrelas também — completou DeVontay. — Ali a Ursa e a Cassiopeia.
A Ursa Maior era evidente, mas Rachel apertou os olhos para tentar distinguir a profundidade do céu acima. Ela tentou relembrar os trabalhos de faculdade no laboratório
de astronomia. O parceiro de laboratório dela era um cara alto chamado Randy Woodard, que cheirava a cigarro de cravo, e ela passara muito tempo no laboratório naquela
conversinha do dia a dia, torcendo para que se tornasse um papo de verdade. No fim, Randy acabou saindo com uma assistente da biblioteca e ela terminou o período
com 6,8.
Ela se odiava por não saber onde ficava Cassiopeia, como se essa informação pudesse lhe dar algum controle sobre seu lugar no universo. — Não tô vendo.
DeVontay, então, chegou mais perto e, respirando perto do pescoço dela, passou o braço por trás para pegar-lhe o punho. Ele guiou a mão dela até que ambos estivessem
apontando para o céu e desenhando a forma de um W. — Ali — apontou, com uma voz quase inaudível. — Aqueles cinco pontos.
Ele segurou-lhe a mão por um instante a mais e ela enrijeceu, hesitante quanto a recostar-se nele. Ela sentia os músculos dele rígidos como os de um tigre, embora
incerta se um tigre se poria a correr ou pularia sobre a presa. Ele respirava rápida e pesadamente.
Ela nunca pensara nele daquele jeito — também não pensava assim de Randy Woodard. Mas DeVontay não era um pai para Stephen da mesma forma que ela era a mãe? Não
seria natural se eles… se juntassem… qualquer que fosse o propósito daquele novo mundo?
Não era dever dela crescer e multiplicar-se?
Apesar de negar um Deus superior, ela não conseguia deixar de pensar que se tratava de uma grande piada dEle. E se Deus não fosse uma força onisciente com um plano
predestinado, mas uma entidade pueril que colocara o universo em movimento e ficava observando as maravilhas de seu desdobramento? Um Deus assim não estaria rindo
do absurdo daquilo tudo?
DeVontay se retesou e se afastou dela ligeiramente. — Qual é a graça?
Ela não percebera que rira alto. O momento, no entanto, se desfez e partiu, como as asas do pássaro preto da canção dos Beatles. — É que é estranho — explicou ela,
relembrando-se do professor de astronomia que se queixava da poluição luminosa urbana que embaçava a visão no telescópio. — Sem as luzes, a gente vê melhor.
— Profundo isso aí, Rachel — comentou DeVontay. Ela ficou sem saber se ele agia assim por rejeição ou só por ser ele mesmo. Talvez ela tivesse imaginado o gesto
romântico. Ela não tinha tanta experiência nesses assuntos.
— É sério. Daria pra contar as estrelas pelo resto da vida e nunca se chegaria ao fim.
— É por isso que inventaram as constelações. Eles percebiam os padrões e os usavam em vez de se preocupar com pequenos detalhes.
— Agora você não falou como o malandrão da Filadélfia — observou ela.
— Talvez os sequelados não tenham sido os únicos a mudar com a tempestade solar — supôs ele enquanto se afastava um pouco mais e restaurava o espaço pessoal à distância
anterior.
Com tato, ela tentou fazê-lo recuperar os sentimentos sem deixar o momento ainda mais estranho. — Onde você aprendeu sobre as constelações?
— Virginia Beach. Fui pra lá de férias quando eu tinha doze anos. Eu levei uns mapinhas estelares, daqueles que ficavam numa roda de papelão. Eu ficava na areia
à noite, ouvindo as ondas baterem, e acabei aprendendo. Na época, eu pensava que, se um dia eu naufragasse, conseguiria voltar me orientando pelas estrelas. Eu sabia
que, onde quer que fosse, saberia onde estava.
— E você sabe?
— O quê?
— Onde você está?
Ela via nos olhos dele a luz celestial que os fazia brilhar, mesmo no olho de vidro, e foi quando deu os três maiores passos de sua vida, até que foi aos braços
dele. Os lábios dele roçaram-lhe a têmpora e ela sussurrou: — Não. Só me abrace.
Ele consentiu sem responder. A luz do fogo bruxuleava e fenecia dentro do nariz do avião, delineando a grande abertura irregular alaranjada em que logo deveriam
entrar para dormir. Eles não dormiriam juntos. Ainda não; talvez nunca.
Por algum motivo, não importava. No momento, os braços dele eram o bastante — fortes, seguros, reconfortantes.
Depois de um minuto, DeVontay disse: — Aqui.
— Hmmm? — Ela fechara os olhos para as possibilidades vertiginosas e infinitas da noite.
— É onde nós estamos.
Em algum lugar, na floresta, pouco além do que se podia ouvir, uma voz baixa experimentava novos sons. Era meio como uma gargalhada a princípio, mais de roedor que
de humano, até que foi ganhando forma.
“Bluh…bluh…blaaa…buhr…flyyyy. Blah bird flyyy.
CAPÍTULO 5
Campbell seguiu os soldados por quase um quilômetro, esgueirando-se de veículo em veículo. Onde a estrada estava relativamente limpa, Campbell subia na vala de drenagem
que acompanhava a estrada, escondia-se atrás da defensa metálica ou passava abaixado pelo mato ao lado da estrada.
Os soldados não se preocupavam muito se estavam sendo seguidos ou se seriam atacados. Talvez a experiência ou as armas deles — ou ambos — os deixasse corajosos.
O magrinho tinha uma disposição mais reservada, parando de vez em quando para verificar sua posição ou acender um cigarro. O Escovinha mantinha um ritmo constante,
cutucando o prisioneiro enquanto caminhava.
Campbell nem sabia por que os seguia. Talvez fosse uma forma de minimizar o desespero. Ele não alimentava nenhuma fantasia de se juntar a uma coalizão de soldados,
nem se eles o aceitassem em suas fileiras. Ele já estava farto de grupos: primeiro, aquela milícia chinfrim do Arnoff; depois, o exército cultista do qual Rachel
e DeVontay resgataram o menino Stephen em Taylorsville. Campbell tinha certeza de que um desses grupos era responsável pela morte de Pete.
Ele, no entanto, também se tornara tão obcecado pelo “Marco 291” de que Pete falou antes de morrer. Era o local em que supostamente havia um abrigo militar na estrada
Blue Ridge. Arnoff falava do lugar como uma utopia, um resort com chuveiro quente, bebidas geladas e bufês boca-livre em segurança e longe da ameaça dos sequelados.
Campbell não estava preparado para acreditar que o governo tinha se preparado para um evento tão imprevisível quanto uma tempestade solar cataclísmica. Ele supunha
que as preparações não tivessem sido assim tão diferentes das destinadas a um ataque nuclear.
Ele poderia não chegar ao Marco 291, mas tinha encontrado menos pessoas e sequelados desde que rumaram para o norte na US 321. O fato de seguir aqueles soldados
ao menos silenciava a voz de Pete na cabeça dele.
Depois de uma hora, os soldados pararam para descansar. O Escovinha subiu no teto de um furgão comercial branco para averiguar as redondezas. O prisioneiro foi atirado
contra o capô de um carro com a cara para baixo e as mãos amarradas nas costas. O soldado magrelo abriu a porta do lado do motorista de um sedã amarelo e puxou o
cadáver podre e flácido do que deve ter sido uma jovem, a julgar pela saia e pela blusa esportivas.
O magrelo a tirou e a girou como se dançassem, apesar da dificuldade que ele tinha em sustentar-lhe o peso. O cabelo loiro duro dela caiu-lhe sobre os ombros e uma
fivela refletiu o sol enquanto ela fazia um giro grotesco.
— É, delícia, você faz o meu tipo — disse o soldado arrastando as palavras. — Não fala e não diz “não”.
Campbell deu uma olhada pela defensa metálica e pensou se devia ou não atirar nos soldados. O Escovinha era um alvo fácil, estava sempre impávido contra o céu cinzento,
e o parceiro estava alheio ao perigo, empurrando os quadris obscenamente contra o cadáver.
— Só digo que você tá há um bom tempo precisando de um homem — gritou o soldado magrelo. Ele levantou a saia da morta e revelou a pele manchada e azulada.
— Ei, Jonesy, saca só — disse chamando a atenção do Escovinha.
— Se aquele sequelado fugir, vou acabar com a sua raça — respondeu o Escovinha.
— É tudo carne de primeira — disse o soldado dando um tapa no traseiro da morta. O som nojento de líquido embrulhou o estômago de Campbell que, apesar de horrorizado,
não conseguia desviar o olhar.
Por que o prisioneiro não foge?
Campbell, no entanto, sabia por quê. Era um sequelado.
E por que o sequelado não ataca?
O Escovinha desceu do furgão. O magrelo ficou entediado e deu um último aperto em sua horrenda parceira de dança antes de largá-la. Ela caiu como um monte de roupa
suja e fez um som chapado nojento contra o asfalto.
— Eu nunca fui de dar mole com mulher assim — disse o soldado.
O Escovinha passou sobre ela sem olhar para baixo. — Se ajeita, Romeu, e não esquece de lavar a mão antes de comer.
— Não é nenhuma infecção. O sabe-tudo disse…
— E você vai acreditar no que ele disse? É só olhar em volta.
Campbell se abaixou para evitar ser visto e imaginou o que eles fariam se o avistassem. Será que correria? Atiraria? Talvez se juntasse a eles?
De repente, sentiu-se tolo e exposto. O coração palpitava nos ouvidos, tão forte que mal ouviu a resposta do magrelo.
— Qu’é que tem? Só destroços e gente morta.
— E você acha que foi só um acidente?
— Claro. É um efeito do sol. Todo mundo sabe disso.
— Ninguém sabe de nada. Lembre-se disso, vai ajudar você a chegar ao dia seguinte.
O Escovinha se distanciou e Campbell arriscou dar uma olhada. O Escovinha pegou o prisioneiro, que mal se mexia depois de ser jogado sobre o capô do carro, e o empurrou
para frente. O magrelo acendeu um cigarro e apressou-se para alcançá-los. Campbell deixou que andassem uns cinquenta metros antes de segui-los sorrateiramente.
O crepúsculo caía contra o sopé das montanhas envolvendo o dossel outonal quando os soldados saíram da estrada e entraram em uma estrada de terra. Os veículos ficaram
bem mais raros até o momento em que Campbell chegou ao retorno. Por sorte, a floresta ali era mais densa e os pinheiros se misturavam às alfarrobeiras e macieiras,
como se a terra tivesse sido cultivada por uma geração e devolvida à natureza.
Havia um trailer empoleirado logo ao lado da estradinha com duas bandeiras rasgadas — a dos Confederados e, abaixo, a bandeira americana —, penduradas em um mastro
perto da porta dianteira. No jardim, havia um carro antigo envenenado, com o capô removido e o motor suspenso por uma corrente presa a uma viga de madeira. Uma piscininha
infantil continha uma sopa negra de folhas mortas. No quintal estreito havia lixo espalhado, sacolas plásticas e embalagens de fast-food. A maioria das embalagens
sobreviveu, ao contrário do que elas continham e também das pessoas que consumiram o conteúdo.
Os soldados pararam perto do trailer e Campbell achou que fariam dali seu acampamento. Ele esperava mais desse grupo, uma unidade como a que vira fora de Charlotte,
mas talvez esses fossem os últimos sobreviventes ali. Ele não via motivo nenhum por que os militares teriam melhor chance de sobrevivência a tempestades solares
do que os civis.
A menos que, como insinuou o Escovinha, houvesse algo mais acontecendo.
Agachado na floresta escura, Campbell esperou que continuassem. O prisioneiro vendado se esticou e sacudiu, quase soltando-se das garras do Escovinha. O soldado
magrelo não titubeou ao golpear com a coronha da espingarda as costas do prisioneiro.
— Calma aí, ô sequela — grunhiu. O prisioneiro ainda se contorceu com uma agitação súbita, retesando as amarras.
— Ouviu isso? — perguntou o Escovinha.
O soldado magrelo ficou em silêncio por um instante e, em seguida, sacudiu a cabeça. — Não.
— Tem algo de estranho aqui.
— Pra mim, tá só escuro.
Campbell aguçou os ouvidos para saber se o Escovinha tinha ouvido algum latido ou gritos de ajuda, talvez um grito ao longe.
— Escute além dos ruídos — disse o Escovinha.
— Que papo é esse? Virou um mestre zen de repente? — O soldado ficou quieto de novo e, dessa vez, Campbell também escutou.
Não eram insetos: havia outra coisa. Claro, havia grilos, pássaros noturnos e bichinhos voadores, mas havia um som diferente. Era estranho, mas, ao mesmo tempo,
perturbadoramente familiar. Campbell se lembrou da sequelada que pulou de trás de um furgão e atacou a ele e ao Pete. Ele tivera que esmagar a cabeça dela, enojado
pela semelhança entre ela e sua mãe.
O som era o mesmo balbucio, mas produzido por mais de uma garganta. Devia ser de uns doze ou mais.
Os dois soldados apontaram a arma e giraram lentamente em círculo, tentando mirar na fonte do ruído. O som, no entanto, vinha de todos os lados.
— O que é? — perguntou o magrelo com uma voz que falhava pelo nervosismo que ele não conseguia esconder.
— Ninguém sabe de nada — disse o Escovinha calmamente, embora um ruído tenha soado do mecanismo de sua arma de assalto. O prisioneiro estava em silêncio, com a cabeça
balançando como se tentasse escutar.
Um galho estalou em algum lugar à esquerda de Campbell. Ele torceu para que os soldados não entrassem em pânico e atirassem. Ele se abaixou ainda mais no mato enquanto
tirava a pistola da mochila.
O som de balbucio aumentou de tom em uma vibração penetrante que cortava o ar da floresta. O contraste fez com que Campbell percebesse o nível de silêncio em que
estava o mundo pós-apocalíptico — ele se acostumara à ausência de motores de carro, transmissões de rádio, motosserras e sirenes de polícia. Aquela súbita interrupção
da paz era, pois, quase chocante. Ele repetiu a frase do Escovinha: — Ninguém sabe de nada.
Ele tivera uma visão muito limitada dos eventos desde a tempestade solar — essa nova fase da evolução à que Rachel se referia como o “Depois”. Ele se ajustara à
percepção de que os sequelados eram assassinos mentecaptos e sanguissedentos e que os sobreviventes humanos eram assassinos desesperados em potencial, tudo misturado
a corpos putrefatos e ausência de tecnologia.
Mas e se uma mudança mais ampla estivesse em curso, não seriam os militares uma força maior e mais organizada? Aquela rígida cadeia de comando não teria uma chance
melhor de superar o caos? Os comandantes não teriam mais informações sobre o atual estado das coisas?
E não é por isso que eu estou seguindo eles? Pra conseguir respostas?
— Vocês aí, é melhor não chegarem perto — gritou o magrelo em direção às árvores. — senão eu vou ter que atirar.
O Escovinha bufou. — Mesmo se eles ouvissem, não obedeceriam.
O balbucio passou a um sibilo quase líquido, como o ar úmido saindo de uma dúzia de pneus furados. Os soldados lentamente recuaram até a varanda do trailer, fosse
por instinto ou seguindo alguma tática tácita entre eles.
Eles deixaram o prisioneiro na estrada, onde ele fazia círculos lentos e inclinava a cabeça de um lado para o outro. Ele abriu a boca para falar, mas só saiu um
fio de sangue.
Atrás de Campbell, os galhos se mexeram e ouviu-se um farfalhar de folhas no chão da floresta. Ele rolou de costas contra o tronco de um carvalho e a casca áspera
lhe aguçou o sentido da percepção.
Respirava pela boca para ouvir melhor. O céu através das árvores estava cinza com o cair do crepúsculo e a escuridão se avolumava na base delas. Em vez de cair,
a noite subia, rastejando para fora dos poros da terra.
Se algo se movesse naquela escuridão, Campbell não teria como detectar.
Um baque metálico soou da clareira, seguido de outro. O Escovinha, com uma calma sepulcral, disse: — Para de bater. Não tem ninguém aí, idiota.
O soldado magrelo ainda bateu mais duas vezes na porta do trailer e golpeou a maçaneta com a coronha da espingarda. — E se a gente tentasse passar?
— Estamos seguindo ordens.
— Ninguém deu ordem pra nos matar.
Embora Campbell nada visse no negrume da floresta, ele sentia o movimento em volta dele. O quintal do trailer tinha espaço suficiente para receber as últimas nesgas
de luz do ocaso. Na varanda, o Escovinha levantou a arma de assalto.
O sibilo aumentou em um crescendo e parecia estar por toda parte.
O crepúsculo se rompeu em um staccato de três tiros.
O peito do prisioneiro explodiu em um florão vermelho. Ele deu mais dois passos à frente e desabou.
O sibilo imediatamente se tornou um silêncio opressor.
CAPÍTULO 6
— Que droga, Jonesy, você atirou nele.
O Escovinha percorreu com o cano da arma o entorno do trailer em direção à floresta. — Quieto.
Campbell, que se abaixara com o barulho da arma, rastejou para trás e para longe da clareira, arrastando consigo a mochila pelas folhas úmidas. O silêncio súbito
era ameaçador, como se as próprias árvores estivessem preparando o bote. Campbell quis se distanciar dos atiradores antes que eles se precipitassem em caso de pânico.
— Era pra gente levar ele pro acampamento — disse o magrelo. — O sargento vai ficar uma arara.
— Tem um monte deles por aí.
— O que é isso em volta? Será que são eles?
Campbell segurou a respiração e foi ao chão, esperando as balas pipocarem por cima da cabeça dele a qualquer momento. Através da folhagem, ele viu o Escovinha saindo
do ponto de observação na varanda e virar para o quintal para verificar ao redor do trailer. O ar cinza do crepúsculo estava pesado de tanta ansiedade.
— Saia — ordenou o Escovinha, acenando a arma para a estrada na direção em que iam antes da parada.
O magrelo, Zimmerman, correu pelos degraus da varanda e atravessou de uma vez o quintal, pulando o corpo do prisioneiro. O Escovinha o seguiu girando a cabeça para
ver atentamente entre as árvores escuras. Por alguns momentos, eles desapareceram na estrada de terra. Campbell pensou em segui-los, mas ele tinha quase certeza
de que qualquer movimento brusco provocaria uma saraivada de tiros.
Por outro lado, ali ele estaria sozinho na floresta com…
… algo que estava entre as sombras.
Campbell esperou mais trinta segundos com o rosto comprimido entre as folhas, sentindo o cheiro forte de barro. Naquela hora, a escuridão era quase total, exceto
pelo brilho turvo da constante aurora. Ele, no entanto, estava relutante em se expor. E se os soldados estivessem só esperando algum sinal de movimento?
Em seguida, o movimento aconteceu a dez metros atrás dele. Ele ficou congelado, com a palma da mão apertando a coronha da arma. Será que os dois soldados deram a
volta por trás dele?
Se eu ficar abaixado, eles não vão me ver. Aqui somos só eu e a escuridão, passando o tempo.
Os pés passaram a centímetros do nariz dele, tão perto que, mesmo no escuro, ele viu a borracha gasta dos tênis imundos. Um sibilo mudo acompanhou o passante. Não
era nenhum dos soldados — eles usavam botas.
A respiração de Campbell ficou suspensa, assim como as batidas do coração.
Em seguida, os pés seguiram e o silêncio em volta dele retornou. Ele ficou com o rosto no chão até não aguentar mais. Levantou a cabeça alguns centímetros e olhou
para a clareira através da escuridão.
Uma multidão de vultos se reuniu em torno do cadáver do sequelado. Campbell não via tantos reunidos desde que escapou da igreja em Taylorsville. Lá, os sequelados
estavam dispersos, agindo como uma turba. Ali eles estavam reunidos em uma calma íntima que, de certa forma, era mais assustadora do que quando estavam tentando
desmembrá-lo.
Estão agindo como se tivessem consciência uns dos outros. É como uma grande família.
Cerca de vinte deles estavam na lateral da estrada, com as roupas rasgadas e imundas. Eles variavam em idade, desde um velho com cabelos brancos até uma menina de
uns sete anos de idade que vestia um pijama infantil, como se estivesse dormindo quando a tempestade solar a sequelou. Os sequelados pareciam se comunicar de alguma
forma, pois alguns próximos ao cadáver se inclinaram em uníssono e suavemente levantaram seu semelhante abatido. Mais assustador eram seus olhos, que irradiavam
pequenas fagulhas douradas.
A multidão partiu e atravessou o quintal carregando o cadáver à frente. Atrás, os outros sequelados seguiam, abatidos, como uma procissão fúnebre no crepúsculo.
O silêncio absoluto era tão perturbador que Campbell quase gritou como se um ato de loucura pudesse lhe trazer novamente à realidade. Em vez disso, ele mordeu com
vontade o lábio inferior enquanto eles marchavam por uma trilha da floresta aberta por veados e guaxinins, percorrida ali, porém, por criaturas mais surreais.
O sequelado à frente da procissão, que carregava o cadáver pelas pernas, era um homem barbado de olhos brilhantes que poderia tranquilamente se passar por um profeta
de algum filme sobre o Velho Testamento. Como se espelhasse a força tenaz projetada por seus olhos faiscantes, ele era forte e firme, de boca inexpressiva.
A seguir, vinham duas mulheres seminuas, com a pele alabastrina ao crepúsculo. Elas carregavam o peso do tronco do cadáver, salpicado de manchas molhadas e rotas
por causa dos tiros. Um adolescente negro carregava a cabeça, aparando-a reverentemente com as duas mãos como se fosse algo sagrado oferecido aos céus.
Embora a trilha se serpenteasse uns trinta metros para longe dele, com a procissão mesclando-se à floresta escura, Campbell ainda estava com medo de se mexer. Se
eles o avistassem, ele talvez não tivesse munição suficiente para se desvencilhar deles. Arnoff lhe explicara como encaixar o pente de balas na coronha da arma,
mas Campbell não tinha ideia de quantos tiros ele teria. Além disso, ele só tinha um pente reserva na mochila, que ainda teria que ser encontrado no escuro.
Por fim, decidiu esperar, mesmo com os ruídos noturnos avolumando-se em torno dele — insetos, uma coruja distante e o barulho de patinhas pelas folhas. Ele pensou
em entrar no trailer para se abrigar até a manhã seguinte e talvez encontrar comida e suprimentos, mas não tinha certeza se os sequelados ou os soldados voltariam.
Naquela hora, ele se sentiu desamparado e tolo por ter seguido sozinho em vez de ir atrás do grupo de Arnoff ou de Rachel e seus amigos. Se Pete estivesse vivo,
Campbell teria tomado outro rumo. Com um companheiro de viagem, ele sentia que tinha algum propósito, mas ali ele estava andando sozinho até a próxima parada, respirando
para garantir o próprio fôlego, vivendo sem nenhum motivo para estar vivo.
Campbell pressionou o cano reto da pistola contra o peito, confortando-se no frio do aço. Um tiro bastaria. Seria o fim daquela loucura surreal e o propósito seria
virar comida fácil para as raposas e os gambás que nunca duvidavam do seu instinto de sobrevivência.
— Anda logo, idiota — sussurrou. A respiração se avolumava diante dele como uma bruma ao luar, o que o fez perceber que a noite estava fria. O som da própria voz
o fez recobrar os sentidos e ele ressentidamente meteu a arma na mochila e equipou-se com ela, pronto para continuar.
Continue andando. Como dizem os hippies da ioga e os doidões de ácido, “o que importa é o caminho, não o destino”.
Ele conferiu a clareira novamente. Os sequelados tinham partido havia vinte minutos, mas Campbell não podia confiar na sua percepção de tempo. O quintal do trailer
estava banhado em luar sob a projeção esverdeada da demorada aurora. Uma poça cintilante de sangue grosso era o único sinal do encontro turbulento.
Vá para a estrada de terra e volte para a estrada. Daí é só ir pro Norte. Marco 291. Marco 291. Marco 291.
Ele resmungava “Marco 291” repetidamente como um mantra. O lugar se tornara um Shangri-la, um paraíso fantasioso com água quente, televisão, serviço bancário completo
e garotas gostosas de biquíni na capa das revistas. Levantou-se, afastou os galhos e passou entre as árvores no escuro.
Depois de uns sete passos, duas mãos desceram pelo rosto dele e apertaram com força.
CAPÍTULO 7
Franklin Wheeler olhou para o fogo e atiçou as brasas. Atrás dele, Rosa e Marina dormiam lado a lado no chão, enroladas nas mantas. No colchão estava Cathy, enrolada
com seu bebê mutante. Ela aninhou a criança entre os seios nus, como se o monstrinho exigisse um fornecimento constante de leite humano.
Que horror.
Jorge estava de sentinela na plataforma, sem confiar no sistema de alarme à bateria de Franklin. Não havia ninguém por perto que fosse impedir Franklin de pegar
a criança e tacar no mato. Franklin poderia desconectar os alarmes e fingir que falharam, que caíra no sono. O tempo logo cuidaria dos restos e Franklin poderia
convencer a todos que os sequelados entraram sorrateiros e roubaram o bicho.
Os outros poderiam questionar o comportamento dos sequelados e se eles eram sofisticados o suficiente para realizar tal incursão — além do problema gritante de por
que os sequelados não matariam todos no leito —, mas ninguém sabe direito como esses bichos se comportam.
Além disso, quem ficaria assim tão revoltado se um sequeladinho daqueles fosse comer capim pela raiz? Eles não corriam nenhum perigo de extinção.
A mãe ressonou enquanto dormia e se contorceu como se tivesse pesadelos. Franklin saiu dali e encheu uma chaleira e pôs no fogão à lenha. Ele gostava de tomar café
de manhã, mesmo com aqueles grãos velhos e passados. A cafeína era um dos confortos do antigo mundo que em breve ele teria que abandonar.
Pode apostar o que quiser que o presidente e os companheiros dele estão agora tomando café com leite orgânico num abrigo de luxo.
Franklin ficou imaginando se Rachel ainda estava viva e se seria corajosa e durona o bastante para confiar nele. Talvez tivesse sido melhor ele abandonar o complexo
e sair para procurá-la. Restava-lhe imaginar as horríveis condições em que estavam as cidades, ainda que ele tivesse passado a maior parte da vida adulta preparando-se
e prevendo o inevitável.
Mas sua função mais importante era aquela: administrar o complexo como um bastião de sanidade contra quaisquer desafios futuros. Ali ele esperaria a neta e sobreviveria
por ela. Para ele, ela era o futuro.
Embora fosse um solitário convicto, no fundo era um homem que valorizava a família, um dos motivos pelos quais ele permitira a Jorge abrigar-se no complexo. Outro
motivo era a força do grupo. Embora muitos da rede dos sobrevivencialistas tenham se afastado em isolamento, Franklin compreendia que a simples sobrevivência não
era o bastante.
Em algum momento, depois do holocausto nuclear, da epidemia viral ou da guerra civil mundial, as pessoas teriam que conviver. Seria preciso estabelecer comunidades
e — em algum momento infeliz e delicado — estabelecer uma nova ordem social.
Crescer dói.
Todo esse jogo de evolução humana levou a dores de crescimento eternas.
E só os fortes podem lutar pela liberdade.
— Joe? — disse uma das mulheres que dormiam. Era a mãe, Cathy. Ela rolava sem parar, quase esmagando a criança.
Isso fez Franklin ter outra ideia. Ele poderia sufocar o bebê. Um minuto com o travesseiro bastaria.
Depois, ele poderia deixar o corpo debaixo da mãe e bastaria esperar até a manhã seguinte. Pareceria algo totalmente natural. Por que um sequelado não poderia dormir
durante o sono? Será que alguém esperaria que sua biologia bizarra fosse igual à dos seres humanos vivos?
— Joe? — chamou novamente a mulher, dessa vez com um gemido assustado.
Franklin espalmou as mãos em direção ao fogão à lenha. O calor aguçou-lhe os sentidos.
Droga, ela é uma de nós. É humana. Uma mulher.
Ele atravessou a estreita faixa do piso de madeira e se curvou ao lado dela com cuidado para não olhar para o bebê. À luz do fogo, sua pele nua era dourada, seus
cabelos louros brilhavam de suor.
E se fosse a Rachel?
Cathy talvez fosse um ou dois anos mais velha que Rachel. Ela era fisicamente diferente — um pouco mais pesada e com aquela compleição de lactante. Eram essas mulheres
que dariam continuidade à raça humana, as que se reproduziriam em benefício da nova ordem. Será que ele poderia abrir mão de alguma delas?
E se Rachel não tivesse sobrevivido? E se Cathy fosse uma das poucas mulheres restantes fora dos abrigos do governo?
Franklin desviou o olhar da inquietude dela para Marina e Rosa aninhadas juntas sob um cobertor. Ele não ligava a mínima de eles serem mexicanos. O futuro não tem
fronteiras. Elas estavam em forma, eram saudáveis, serviriam à causa. O trabalho dele seria mantê-las fortes e ensiná-las.
Sim, no caso de Rachel não conseguir chegar até ali.
Não, “no caso”, não… Até Rachel chegar ali.
Cathy gemeu de novo e os olhos se abriram. O fogo brilhou neles por um momento, quase tão assustadoramente quanto os olhos de sua cria. Logo em seguida, ele se deu
conta.
O sol nos olhos dela… era isso que parecia. Centenas de sois nos olhos deles.
Ele achou que talvez ela, de alguma forma, tivesse sofrido também a mutação, como se as marcas de mordida da criaturinha nos seios dela tivessem-lhe transmitido
a doença. Em seguida, ela piscou e a ilusão passou. Ela era só uma jovem assustada, de olhos arregalados para ele como se não soubesse onde estava.
— Você estava tendo um pesadelo — sussurrou ele.
Ele estendeu a mão para ela, que se esquivou. Percebendo que a mão estava próxima demais dos seios nus dela, ele se afastou e pegou a borda da manta para cobrir
a curva suave dos seus ombros. Ele lhe deu um tapinha paternal enquanto ela se aconchegava no cobertor.
— Obrigada — disse ela enquanto mexia na criança, fazendo com que a cabeça dela ficasse exposta para que não sufocasse.
Franklin manteve deliberadamente os olhos fixos em seu rosto. — Quem é Joe?
Os olhos dela correram como se ela esperasse vê-lo no cômodo iluminado pelas chamas. Em seguida, foi tomada de tristeza. — Meu marido.
Franklin assentiu com a cabeça. Ele não queria acordar as outras duas, mas queria entendê-la, saber como alguém podia trair sua espécie e abrigar um inimigo como
aquele.
— E ele… morreu? — perguntou ele.
— Sim, mas não na tempestade — respondeu abaixando a voz para ficar no mesmo volume da dele. — Eu era enfermeira no hospital Asheville. Estava de licença maternidade,
mas eles já estavam recebendo casos de mudanças de comportamento inexplicáveis logo depois que a tempestade solar atingiu a Terra.
Ele não percebera que ela era enfermeira. Sim, a nova ordem precisaria dela, contanto que ela não desperdiçasse seu talento nem mantivesse viva a espécie errada.
— Aconteceu tudo tão depressa — disse ela. — Meu marido, o Joe, era policial. Ele viu o que estava acontecendo antes de todo mundo, por isso veio para casa e disse
que era pra sairmos da cidade. Eu embrulhei o pequeno Joey enquanto ele fazia as malas e entramos no carro de patrulha. Nós não tínhamos nenhum plano, mas as pessoas
já estavam caindo mortas, as estradas já estavam congestionadas, tudo estava um caos. Ele pensou que a rodovia Blue Ridge era a mais segura e, assim que entramos
nela, vimos que a estrada estava bloqueada por destroços. E aí eles começaram a nos atacar.
— Os sequelados?
Ela assentiu. Ele esperou que essa lembrança lhe causasse repulsa e que ela atirasse o bebê para longe do peito, mas, em vez disso, ela o abraçou para protegê-lo
ainda mais. — Meu marido atirou nuns três, mas aí eles o arrancaram do carro e…
A voz dela falhou e, mesmo engolindo o soluço, a agitação fez a criança se mexer. Franklin se inclinou até a cabeça dele e acariciou a bochecha da mulher; as lágrimas
umedeceram-lhe as costas da mão.
— Todos passamos por algum trauma — confortou ele. — O fim do mundo não é fácil pra ninguém.
Ela franziu o rosto e mais lágrimas brilharam nos cílios dela. — Eu agarrei o pequeno Joey e fugi. Passamos uma noite num carro vazio. Eu não sabia pra onde ir.
Aí nós…
Franklin engoliu seco. As duas mulheres na outra cama se reviraram e a lenha chiou e estalou com o calor. — Quando você soube do… bebê?
— Do bebê? — Ela abraçou ainda mais o sequeladinho. — O que do bebê?
— Quando você viu que ele era diferente?
Os olhos dela se encheram de vida e felicidade. — Ele é meu menino, um menino especial.
— Você… — Franklin não sabia como abordar o problema. Na maioria das vezes, ele não compreendia as mulheres e, em momentos como aqueles, ele ficava desesperado.
Em seguida, o bebê se assustou, levantando as mãozinhas para cima. Ele balbuciou um pouco, como se alguma coisa vibrasse na garganta. O rosto dele estava virado
para o lado, mas Franklin o observou pela primeira vez.
De olhos fechados, ele era quase um neném humano — tufos de cabelo felpudo, pele quase translúcida, membros macios e gordos. Mas aquele balbucio perturbador era
típico de um animal, não de um humano.
Cathy sorriu. — Ele está com fome.
Franklin ficou consternado ao perceber que os ruídos da garganta do bebê eram um choro de fome. Foi ainda mais horripilante quando a jovem mãe puxou a coberta para
trás e trouxe a criança para um dos seios fartos. O bebê abriu a boca e se agarrou; o balbucio desapareceu, dando lugar a um ronronar de contentamento.
Franklin se virou, tremendo. Levantou-se da cama improvisada e foi até o fogo. Ele meteu um atiçador de metal nas brasas para abafar o som horrível e úmido do aleitamento.
Talvez a nova ordem não funcionasse exatamente como ele planejara.
CAPÍTULO 8
Campbell deu uma guinada e chutou enquanto as mãos apertavam-lhe a cabeça.
Havia dedos que lhe apertavam perto das órbitas e ele enlouqueceu, resistindo enquanto o atacante subia-lhe as costas e tentava jogá-lo no chão. Ele sacou a pistola
da lateral e enterrou o cano na carne. Se atirasse, o ruído poderia atrair os sequelados, e o ataque parecia um ato isolado.
Ele dobrou as pernas e rolou, esperando livrar-se do atacante. Ele estava levantando-se para correr quando uma voz sussurrou-lhe: — Pare, senão eles vão nos ouvir.
Campbell imediatamente relaxou os músculos e se ajoelhou no chão da floresta. A mulher o puxou para perto de si para sussurrar de novo. O hálito dela cheirava a
alho e vinho. — Você é novo por estas bandas, né?
— Sou. — Seus batimentos cardíacos diminuíram de galope a trote pleno. — Mas estou pensando em me estabelecer. O pessoal aqui é muito amigável.
— Eu te vi saindo da estrada. Por que você estava seguindo aqueles soldados?
— Foram as primeiras pessoas que eu vi em dias. Pessoas vivas, digo.
— Bom, se é que aqueles soldados ainda são humanos. Eles agem como se governassem o mundo.
— Com armas automáticas, eu acho que eles governam, sim. A propósito, por que você pulou em mim?
— Se eu tivesse gritado, eles poderiam escutar.
— Mas eu podia ter atirado em você.
— É — disse ela. — Era uma possibilidade.
Campbell se curvou e olhou entre as árvores. Nenhum sinal de movimento. — Você mora por aqui?
— Tenho um trailer de acampamento na mata. São terras da família há um século.
— É seguro?
— Como qualquer outro lugar. Os soldados ainda não chegaram lá e eu fico tão na minha que os sequelados nem me notam.
Mesmo no escuro, ele percebeu que se tratava de uma mulher de uns 40 anos, do tipo baixinha e parruda. Se ela fosse atacá-lo de verdade, seria um desafio desvencilhar-se
dela. Ele, porém, supôs que qualquer um que ainda estivesse vivo, de um jeito ou de outro, era resistente.
— Eles levaram o sequelado morto — disse Campbell. — O que vão fazer com ele?
— Não quero ficar na mata sentada conversando — disse a mulher. — Vamos.
Ela tateou e encontrou a mão dele no escuro. Ela o puxou com uma força surpreendente no sentido oposto ao da estrada.
— Vou voltar pra estrada — disse ele. — Lá é mais aberto e eu consigo ver as ameaças, vai ser melhor.
Ela não soltou a mão dele. — Pra onde você ia?
— Pro norte, pra estrada Blue Ridge. Soube que tem um acampamento de sobreviventes lá.
— Tem acampamentos de sobrevivência em todo lugar. Os soldados têm um. E pode-se dizer que o meu também é. Agora vamos.
Ele resistiu, mas ela acrescentou: — Só esta noite.
Campbell considerou as opções. Ele não tivera contato humano por semanas e ali havia uma alternativa; afinal, ele não sabia se conseguiria enfrentar uma noite trancado
em um veículo encalhado para dormir. — Está bem.
Ela deu uma risadinha, um som surpreendente em vista da violência e das bizarrices que Campbell testemunhara recentemente. — Faz tempo que não pego um homem. E você
nem sabe o meu nome.
Campbell tentou puxar a mão, mas ela apertou ainda mais. — Relaxa — acalmou ela. — Se eu estivesse caçando marido, não investiria em alguém tão arisco como você.
Meu nome é Wilma.
Ele a deixou guiá-lo pela mata. Ela acendeu uma lanterna-caneta e direcionou o foco logo à frente dos pés, guiando-o com uma confiança característica de quem conhecia
muito bem a mata.
— Oi, Wilma. Sou Campbell.
Eles andaram em silêncio por alguns minutos enquanto os olhos de Campbell se ajustavam à escuridão. O céu esverdeado ocasionalmente surgia entre as aberturas nas
copas das árvores. — Você mora sozinha? — perguntou ele.
— Agora moro. Você é de onde?
— Perto de Chapel Hill. Um amigo e eu viemos de bicicleta, aí ele…
Ela apertou a mão dele de novo e ele recebeu bem o contato de empatia. — Mais cedo ou mais tarde, acaba acontecendo com todo mundo — confortou ela. — Pessoalmente,
eu prefiro mais tarde.
Campbell olhou em volta em busca de luzes ou movimentos nas sombras. Imaginou se a mulher estaria armada e acabou supondo que sim. Caso contrário, ela só podia ser
louca para andar por aí sabendo que havia sequelados e milicianos nas redondezas.
O terreno era relativamente plano, mas acabou chegando a um leve aclive. Ali o terreno era mais rochoso e eles chegaram a uma vala em que corria um fio d’água.
— Córrego Cane — disse ela. — A água é boa se você filtrar.
Campbell percebeu que estava faminto e sedento. O encontro com os soldados interrompeu-lhe a rotina e ele não comera nada desde o meio-dia. — Você tem comida?
— Eu sei onde tem. Logo depois do acesso, uns três quilômetros na estrada, tem uma loja de conveniência e uma cidadezinha uns cinco quilômetros mais à frente. Eu
vou ao mercado uma vez por semana. Tem muita comida estragada, mas eu sempre encontro comida em lata.
— Eu daria tudo por um bife fresquinho.
— Você devia ir no acampamento militar. De vez em quando eles assam um boi. Eles roubam do gado da região.
— Tem um acampamento? Quantos soldados tem lá?
— Uns seis ou sete. Eu procuro me afastar, mas de vez em quando vejo eles e escuto os tiros.
— Então tem mais sequelados que soldados.
— Mais sequelados que qualquer outra coisa. A situação é a mesma em Chapel Hill e nos outros lugares onde você esteve?
— É… — respondeu ele. — Mas agora os sequelados estão se reunindo em grupos ou tribos.
— Então você também notou isso. E nós, seres humanos, estamos aqui no cada-um-por-si.
Logo a trilha abriu e deu lugar a uma clareira na montanha. Havia um trailer de acampamento sob um grande carvalho cujos galhos se prendiam às fitas verdes iridescentes
no céu. O trailer estava apoiado em blocos de alvenaria, com um tanque de propano apoiado na lingueta. As janelas do trailer eram pequenas, ninguém conseguiria passar.
— Lar doce lar — disse Wilma, tentando achar uma chave em algum lugar da roupa volumosa. A porta tinha um cadeado.
Por que ela deixa isso aí trancado?
Campbell olhou para as sombras da floresta, sentindo-se vulnerável a céu aberto. Ele ficou maravilhado com a rapidez com que se acostumou ao céu iluminado pela aurora
artificial causada pelas nefastas partículas da tempestade solar. — Você não foi atacada ainda?
— Eu não tenho nada que alguém queira.
— Nem mesmo os sequelados?
— Eu só me abaixo e deixo todos voarem sobre mim.
Ouviu-se um ganido de dentro do trailer. — Quieto aí, Amendoim — disse Wilma pela porta antes de abri-la. Ela colocou a mão na fresta para o cão sentir o cheiro.
— É meu novo amigo.
Campbell não tinha certeza se ele estava pronto para um amigo. Ele pensou se não devia ter voltado para a rodovia, onde, pelo menos, desenvolveria algum tipo de
rotina. Mas ali estavam: uma mulher e seu bichinho de estimação. Era quase perturbadoramente normal, embora, na sua vida anterior, ele a teria considerado uma perdida
ou uma bruxa velha excêntrica.
Pelo menos ela tem um cão em vez de um bando de gatos.
Ela acenou para dentro. Campbell entrou e se viu ali, em meio àquele alojamento apertado enquanto ela acendia uma vela. O interior do trailer estava lotado de produtos
secos, salgadinhos e caixas de bebidas engarrafadas. O pequeno cão que lhe farejou a perna da calça era um rat terrier com um pelo cinza nojento.
— Amendoim, esse é o Campbell — apresentou-o Wilma, afastando o cabelo ruivo emaranhado. Ele deu a primeira boa olhada no rosto dela. Em meio às bochechas sardentas,
havia grandes cicatrizes vermelhas recentes e uma casca de ferida do tamanho de uma moeda colada ao lábio inferior.
Ele engoliu em seco quando pelo olhar ela o desafiou a comentar. Até os olhos verdes eram doentios, avermelhados e meio remelentos. Ele achara que ela era de meia-idade,
mas no momento não tinha mais certeza. Ela poderia ter vinte anos, mas surrada pela vida no barro da carne como uns cem.
Ele forçou o olhar e se ajoelhou para brincar com o cachorro. O animal também parecia ter sofrido lá suas aflições: tinha uma orelha rasgada quase pela metade e
uma gosma viscosa revestindo o focinho escuro. Campbell se inclinou para acariciá-lo, mas ele levantou a cabeça e mostrou os dentes amarelos, rosnando do fundo da
garganta.
— Ei, Amendoim, não trata assim as visitas — disse ela, dando no cão um leve pontapé nas costelas. — Vai pra caminha.
O cão se meteu em uma caixa de leite emborcada forrada de papéis compactados. O trailer tinha uma mesinha e uma cama em um nicho que se projetava acima do braço
de engate. A pequena cozinha conjugada tinha um fogão a gás de duas bocas, mas a pia estava empilhada de pratos sujos e latas vazias. Havia moscas zumbindo sobre
a bagunça. Um pedaço de presunto salgado pendia do teto amarrado por um barbante com enormes fissuras cortadas na carne marmorizada. Roupas se empilhavam por todas
as superfícies.
Wilma tirou o casaco e jogou-o sobre a mesa, derrubando um papel de doce no chão entulhado.
— E aí, o que acha? — perguntou ela, acenando com o braço para mostrar a casa.
Campbell ainda estava acostumando-se ao espaço exíguo, que, por ele, tinha uns 3 por 5 metros, com menos de meio metro quadrado de área livre de lixo. O cheiro de
comida estragada, mofo, pelo molhado e suor velho quase o fez vomitar. Ele sentiu uma súbita falta de ar fresco externo, mesmo com todos os perigos envolvidos.
— É… aconchegante — respondeu finalmente. Olhou em volta, procurando um lugar para sentar, mas decidiu ficar onde estava por enquanto.
Wilma estendeu a mão e virou uma trava no trinco da porta e, em seguida, passou um ferrolho e fechou um cadeado. — No caso de eles quebrarem a janela e tentarem
alcançar a maçaneta — explicou ela.
Campbell se sentiu desconfortável de ficar trancado, especialmente por causa da vela e da mixórdia generalizada. Ele imaginou que o lugar se incendiaria como um
chumaço de jornal encharcado de gasolina. No entanto, acalmou-se. No caso de um ataque de sequelados, ele conseguiria afastá-los com a pistola, mesmo em um espaço
apertado.
Se fossem os soldados, aí ele não tinha tanta certeza. Ele duvidou que as paredes metálicas finas desviariam as balas. Restou-lhe confiar que a mulher estava certa
— os soldados não tinham interesse nela.
Confiar, porém, era difícil para Campbell. Ele nunca foi muito bom nisso nos velhos tempos e, depois do apocalipse, ele não teria tantas oportunidades para praticar.
— Fica à vontade — disse a mulher, acenando para a cama, que parecia servir de leito e de assento. Campbell se sentou na beirada do colchão nu, desconfiado das colchas
de retalhos bolorentas empilhadas sobre ele.
Wilma abriu um armário, revelando um depósito de bebidas alcoólicas. As garrafas estavam organizadas com a limpeza que contrastava claramente com o caos da área
de estar, como se aquela fosse a área que, para a mulher, significava conforto e controle. Havia muitos frascos cheios e ele se perguntou quantas viagens ela teria
feito à cidade vizinha para adquirir tal tesouro.
Ela estendeu a mão e puxou um uísque de rótulo amarelo. — Pros convidados, tudo do bom e do melhor, né, Amendoim?
A cauda do cão deu umas duas pancadas fracas. Campbell se perguntou quantos “convidados” já tinham passado pelo trailer ao longo dos anos.
Sem cerimônia, a mulher girou a tampa e tomou dois bons goles. Ela suspirou com um prazer óbvio, revelando duas lacunas pretas na dentição, e ofereceu a garrafa
a Campbell. Embora a promessa entorpecente do álcool fosse sedutora, ele não conseguia deixar de pensar na cicatriz no lábio, agora úmida de bebida.
— Não, obrigado — recusou.
— É abstêmio, por acaso? Bom, não adianta acumular pontos no céu. Deus desistiu da experiência maluca chamada “raça humana”. Né, Amendoim?
Dessa vez, o cão a ignorou.
— Você não carregava nenhuma arma — observou Campbell.
— Pra quê? Se eles quisessem me matar, eu já estaria morta. — Ela apagou a vela e, em seguida, Campbell ouviu uma garrafa de plástico cair enquanto se dirigia até
ele. Ela colocou a mão no joelho dele enquanto subia na cama com a garrafa.
Ele se preparou para o toque dela, com medo de que ela exigisse alguma intimidade, talvez até sexo.
— É melhor você dormir um pouco — disse ela. — O Amendoim vai latir se alguém chegar. Você tá tão seguro aqui quanto em qualquer lugar.
Campbell não se confortou com o que ouviu, mas estava exausto. Deitou-se totalmente vestido, com a mochila ainda pendurada no ombro, ouvindo as goladas dela no escuro.
Imaginou a procissão sombria e silenciosa de sequelados carregando aquele cadáver para a floresta, uma fila interminável deles, e logo depois ele não conseguiria
discernir lembrança de sonho.
CAPÍTULO 9
B.
Rachel acordou com o sol nos olhos. Desorientada, limpou o suor do rosto. O céu estava claro, azul brilhante, e o ar estava carregado da umidade de junho. Ela se
sentou e viu o trecho arenoso de praia chegando até a extensão de água azul-esverdeada. Uma lancha roncava ao longe — eis a fonte do zumbido que a despertara.
As férias no lago Norman. Um descanso do primeiro ano do secundário, da geometria e da atenção persistente de David Anderson, primeiro clarinetista e um excelente
aluno de álgebra. A escola estava a oito semanas de distância, tão longe no horizonte que nem conseguia imaginar. Os pais no clube — papai provavelmente tomando
sua cerveja depois de uma partida de golfe e mamãe em uma espreguiçadeira lendo um livro de James Patterson. Nada no mundo para se preocupar.
E Chelsea?
Chelsea estava bem ali na praia quando Rachel fechara os olhos — só por um segundo, eu só queria tapar o brilho ofuscante do sol por um segundo — e agora ela se
foi.
Rachel levantou a cabeça e olhou de um lado para o outro na praia. Elas estavam em um local com sombra isolado; o cais mais próximo ficava a uns cinquenta metros
de distância. Os barcos estavam ancorados e amarrados e havia um casal sentado na beirada com os pés balançando na água.
Chelsea não poderia ter ido muito longe naqueles poucos segundos em que Rachel estava de olhos fechados — ela agora estava disposta a admitir que foram segundos,
no plural. Ainda assim, Chelsea não teria ido para a água sem a irmã mais velha, senão Rachel lhe daria um apertão no braço ou torceria uma de suas tranças até ela
gritar como uma leitoazinha.
Mas Chelsea não estava na praia. Será que ela teria ido pela trilha por entre as árvores até o clube?
Aquela idiotinha vai me pagar por me deixar aqui torrando.
No entanto, o tubo de protetor solar, as toalhas e as latas de refrigerante pela metade estavam ao lado de Rachel, junto com o iPod e os fones de ouvido de Chelsea.
Na hora estava tocando Taylor Swift e Katy Perry, música de menina. Chelsea nunca andava sem os fones de ouvido. Ela só os tirava quando ia tomar banho ou…
E o terror tomou conta dela enquanto as últimas nesgas de sonolência se dissipavam. Ela nem se lembrava se tinha se levantado. Ela poderia muito bem ter levitado
até a beira da água.
Em seguida, Rachel entrou no lago até os joelhos, batendo na água, gritando o nome de Chelsea enquanto as gotas prateadas ao redor dela caíam no ritmo de uma risada.
Ela mergulhou na água e sentiu o frio aguçando-lhe os sentidos. Chelsea estava usando um biquíni verde, que estava apenas começando a se encher com os seios levemente
avolumados. Seria fácil avistá-la.
O terreno se inclinava suavemente para dentro d’água, ou seja, Chelsea teria que adentrar pelo menos 10 metros para que a água lhe cobrisse a cabeça. Não houve declives
acentuados súbitos, nem correntes, nem ressaca. Não havia razão para ela afundar e não voltar a subir.
Rachel prendeu a respiração até sentir uma queimação nos pulmões e uma ardência nos olhos. Forçou-se a emergir e mergulhou de novo, em águas mais profundas.
Ainda nada de Chelsea.
Dessa vez, quando ela emergiu, acenou os braços e gritou: — Socorro! Socorro! — O casal no cais a viu e começou a correr.
Vamos lá, Chelsea, cadê você?
Eu só fechei os olhos por um segundo.
Não era pra eu…
Sentou-se, sem fôlego, perguntando-se por que a água estava tão fria.
— Ei — disse DeVontay. — Tudo bem?
Ele estava agachado perto da abertura da cabine danificada com um mapa aberto sobre os joelhos e inclinado em direção à fogueira. As chamas estavam já baixas, projetando
um tom avermelhado no interior do avião e brilhando fracamente nos painéis de instrumentos danificados.
Rachel levantou as palmas das mãos. Ainda vazias, mesmo depois de todos esses anos de busca.
— Você estava chamando por ela — contou DeVontay. Ele ficou no primeiro turno de vigília e Rachel suspeitou que ele a deixou dormir mais um pouco, além do horário
em que ela deveria rendê-lo.
Ela não queria chorar na frente dele: tinha que ser forte. Mesmo que não pudesse mais se considerar uma mulher de fé, ela continuava sendo uma mulher. Ela não podia
se dar ao luxo de viver em um Depois com regras estabelecidas pelos homens.
— Todos nós já tivemos nossas perdas — disse ela, olhando para o vulto adormecido de Stephen. — Você nem sequer falou sobre a sua família.
— Tenho meus motivos — cortou DeVontay. Ele parou para notar se havia algum movimento. Satisfeito, dobrou o mapa e foi para mais perto do fogo. — Estamos andando
bem. Estamos a uns 80 quilômetros da estrada.
— O clima está ficando mais frio à medida que a gente vai ganhando altitude. Vamos sair dos sopés e passar para as montanhas de verdade.
— Você acha que tem alguma coisa lá nos esperando?
— Meu avô não é de brincadeira. Se ele ainda está vivo, vai estar me esperando. E se não estiver, o complexo dele ainda vai ser o melhor lugar para reagrupar e programar
o próximo passo.
— Qual é o próximo passo? Considerando que a gente vai conseguir.
— O que vem depois? Meu avô acredita ser mais do que só se esconder num abrigo e envelhecer. Ele dizia: “Ray-Ray, só tenho certeza de duas coisas: uma é que o Dia
do Juízo Final vai chegar mais cedo ou mais tarde; a outra é que teremos que aprender a conviver depois que estiver tudo acabado.” Ele é o cínico mais otimista que
eu já conheci.
DeVontay deu um gole de água de uma garrafa de plástico. — Como é que você tem tanta confiança nele?
— É uma mistura de inspiração e desespero. Ele era o único que não me fazia sentir culpada depois do afogamento da minha irmã. Ele até perguntou se tinha algo a
ver com ele, como se ela tivesse levado algum tiro por ele ser um sobrevivencialista militante.
— Isso é meio paranoico.
— A esquizofrenia é de família — disse ela. — Ele tem uma irmã que não tinha eletricidade em casa porque ela não queria que a companhia elétrica tivesse o endereço
dela.
— Como essas pessoas conseguem sobreviver no mundo?
— Ela morava no Texas. Pelo que sabemos, ela pode muito bem estar vivinha da silva e feliz.
— Depois do que aconteceu, não existe felicidade.
Eles ficaram em silêncio por um momento. Rachel ficou sonolenta de novo, mesmo sabendo que devia assumir a vigília para DeVontay poder dormir um pouco. — Sobre o
que aconteceu antes…
— Esquece. Já temos problemas suficientes.
— E se não for nenhum problema?
— Se não for, vai ser — disse ele. — Depois do que aconteceu, não existe felicidade, não se lembra?
O fogo chiou com a madeira aquecida. Rachel estava com frio, mesmo debaixo de um edredom que encontrara na bagagem. Ela se enrolou nele. O chiado ficou mais alto,
mas as brasas continuaram só avermelhadas.
— Ouviu isso? — perguntou DeVontay.
— Está chovendo? — O tempo estava limpo antes, quando eles saíram e compartilharam aquele estranho momento íntimo quando DeVontay apontou as constelações. Mas, no
outono, o clima muda rápido. Ela olhou para o para-brisa estilhaçado da cabine do piloto, mas não havia nenhuma gota ali.
— Achei que fossem grilos — disse DeVontay. — Tem alguma coisa estranha.
— Seja o que for, está vindo em volta de nós.
Stephen se agitou enquanto dormia. Rachel se despiu do edredom e foi até ele, torcendo para o garoto não gritar. A pistola dela estava em cima da mochila, ao alcance
da mão, se necessário. Com a orientação de DeVontay e alguma prática de tiro ao alvo, ela já não se sentia desconfortável com isso.
DeVontay levou o dedo indicador aos lábios em um gesto de “pssst”. Pegou a espingarda e foi ao chão, contorcendo-se para a frente sobre os cotovelos até ficar deitado
na abertura irregular do acampamento improvisado. — Apague o fogo — ordenou em um sussurro rouco.
Rachel despejou os restos de uma garrafa d’água sobre as chamas, fazendo subir um vapor úmido. Em seguida, cobriu a fogueira extinta com o edredom para sufocar as
últimas brasas. Na escuridão repentina, Rachel ficou temporariamente cega, com medo de que um movimento seu despertasse Stephen. Em seguida, o brilho ambiente da
aurora se firmou em uma tonalidade esverdeada, como se estivesse olhando através de óculos de visão noturna.
O assobio ficou mais alto em torno do cockpit. Rachel quis perguntar a DeVontay se ele tinha visto alguma coisa, mas ela teve medo de fazer algum barulho. Ela tateou
ao longo da carcaça da cabine danificada até chegar ao nariz do avião. Em seguida, direcionou-se para o declive acentuado dos destroços até conseguir enxergar através
da janela quebrada.
Ela estava certa sobre o céu: ainda estava surpreendentemente claro, com faixas estriadas da aurora esverdeada brilhante como uma queima de fogos psicodélica na
abóboda celeste. Embaixo delas, o contorno preto da floresta. No início, ela não conseguia ver nada, mas, em seguida, os troncos das árvores mais próximas se delinearam.
Algo se movia entre eles.
Dezenas de faisquinhas, como vaga-lumes.
Mas pirilampo é inseto de verão. As noites de setembro são frias demais.
Aquele ouro reluzente lhe era familiar.
Sequelados?
Eles ficaram uma semana sem ver sequelados e, com cuidado, conseguiram evitar contato. Rachel nunca tinha visto mais do que alguns de uma só vez.
Em Taylorsville, vários deles tinham atacado em conjunto, quando ela e DeVontay foram mantidos em cativeiro por soldados. Mas ela não entendia a quantidade que ali
os cercava na floresta, emitindo aquela ululação entrecortada nas sombras.
— Olhos — disse ela, mais para si mesma, tentando compreender o horror da imagem, embora com volume suficiente para sobressair aos sibilos e chegar a DeVontay.
— São eles — disse ele.
O assobio sibilante aumentou em um lamento unificado, quase como um único gemido expressivo. Os sequelados estavam dando voz à miséria do Depois de uma forma que
nenhum ser humano conseguiria articular. Rachel estremeceu e o pavor se fixou profundamente nos ossos.
Vamos morrer aqui. Tudo isso para nada.
Tanto esforço para proteger Stephen.
Tanto esforço para pagar minha dívida.
Muito obrigada, Deus.
Mas ela não podia se irritar na medida em que rejeitara. Se ela tivesse parado de agradecer a Deus por sobreviver e acabado com a esperança, não poderia culpá-lo
diretamente pela desintegração.
Os olhos brilhantes ainda pairavam à distância sem se aproximarem. Rachel deslizou para o chão e arrastou-se, tateando para atravessar a cabine ruída. O vapor enfumaçado
que entrava pesava-lhe os pulmões e ela engoliu a vontade de tossir. Stephen murmurava durante o sono.
Ela já esperava que DeVontay fosse começar a atirar a qualquer momento, deflagrando na noite explosões de chumbo e pólvora. Mesmo com as caixas extras de munição
que ele encontrou na casa da fazenda, eles não seriam capazes de afastá-los, mesmo que cada tiro acertasse o alvo.
Rachel pegou a mochila e agarrou a pistola. Seu avô preferiria que ela morresse lutando.
Ela quase conseguiu ouvir sua voz rouca no comando. Mantenha a posição. Faça os desgraçados pagarem por se meter com um Wheeler.
Ela sentiu o lamento alto e sibilante ressoar no crânio, penetrar na alma. Era a trilha sonora do inferno instilando-lhe a loucura. Ela lutou para não desatar a
rir, fugir para a floresta com a pistola em chamas, entregando-se à violência sem misericórdia.
Quando chegou à abertura da cabine, porém, DeVontay bloqueou seu caminho. — Espere — disse ele, passando o braço forte em torno dela.
— Como pode haver tantos?
— Sei lá. — DeVontay a segurou contra o corpo com tanta força que ela mal podia respirar. O coração dela parecia um zepelim enchendo-se de hidrogênio explosivo.
Ela lutou contra ele e mal o ouvia por causa do ruído. Ela teve vontade de gritar em vez de rir e pensou mesmo que estivesse gritando — um grito rompeu a noite como
um solo de guitarra elétrica sobre uma orquestra de cordas.
O som estava vindo de dentro da cabine.
Stephen!
O choro de lamento na floresta deu lugar a um silêncio sinistro.
CAPÍTULO 10
Stephen gritou novamente e Rachel se soltou do aperto de DeVontay. Ela saiu tropeçando pela cabine iluminada pela aurora até encontrá-lo. Ele se agarrou a ela com
os braços finos e frágeis.
— Shh, não foi nada, tô aqui.
— Tive um sonho ruim — balbuciou ele. — Eles estavam f-falando comigo…
— Quem? — perguntou ela com um aperto no estômago.
— Não sei. — Eles… estavam na mata.
Ela lhe acariciou o cabelo com cuidado para manter a pistola fora do alcance dele. Se os sequelados os cercassem, ela teria que decidir se usaria as duas últimas
balas no menino e, depois, em si mesma. No entanto, ela não conseguia se lembrar de quantas balas ainda havia no pente.
Por que DeVontay não está atirando?
No silêncio da noite, a cabine parecia pequena e frágil contra a imensidão do céu. Eles acabaram ficando confiantes demais, dormindo mais ou menos em aberto depois
de tantas noites passadas em casas abandonadas até ali. Mas Rachel tinha certeza de que os sequelados estavam perecendo, talvez mortos pelos efeitos invisíveis da
radiação do sol.
Porém, ali estavam eles em um grupo enorme em volta deles. Rachel fora acometida da maior arrogância de todas: achar que o Depois acontecera para os humanos e que
cabia a eles consertar o que restou.
Talvez, como os dinossauros, os homens fossem apenas inquilinos temporários que se apossaram de uma terra cujos donos legítimos ainda teriam que reclamar. Marcadores
de lugar na história.
— Cadê o DeVontay? — perguntou Stephen um pouco mais calmo, diminuindo os soluços até virarem tremores ocasionais.
Boa pergunta. Ele não foi lá FORA, não é?
Mesmo com a aurora a pino e o luar tênue, ela não sabia dizer se DeVontay ainda estava no posto avançado na borda da cabine. O acampamento estava imerso em sombras,
dando a Rachel uma sensação de que a blindagem metálica era, na verdade, um mausoléu que ainda continha o eco dos que ali morreram.
Todo esse Depois era um mero eco, um profundo escárnio da vida, a acusação extrema de um Deus supostamente misericordioso.
— Rachel? — chamou DeVontay da escuridão fora da cabine.
— Entre aqui — disse ela.
— Não. Precisamos descobrir o que eles querem. Eu vou na floresta.
— Que droga, nem pense nisso. — Rachel disse em tom mais alto do que pretendia e imaginou se os sequelados estariam ouvindo. Teriam eles alguma compreensão da linguagem
ou teria sido apenas um ruído para eles, um sinal instintivo para cercar e matar?
Stephen enrijeceu de medo ao lado dela. — O qu’é que tá acontecendo?
Rachel não tinha tempo para pensar em uma mentira adequada. — Tem alguma coisa lá fora, mas aqui estamos seguros.
— É isso aí, baixinho — endossou DeVontay com uma falsa animação. — É como nos quadrinhos. Já volto.
Rachel deu um tapinha em Stephen. — Espere aqui. — Em seguida, ela atravessou a cabine até o ar úmido da noite. Sob os redemoinhos surreais da atmosfera contaminada,
DeVontay atravessou a clareira, abrindo caminho entre os destroços espalhados. Ela o chamou e correu para alcançá-lo.
— Você não pode deixar o menino sozinho — disse-lhe ele — Volta pra lá.
— E quem te promoveu a chefe?
— Não é hora nem lugar pra esse papo feminista xiita. — O olho funcional faiscava de raiva, com o olho de vidro refletindo a aurora verde e a luz brilhando no céu
de um planeta alienígena. — Eu tô indo. Se eles me seguirem, pega o menino e sai daqui.
— E se eles não seguirem?
— Aí estaremos todos mortos de qualquer maneira.
Ele começou a se virar, mas ela o pegou pela manga. — E se a gente se separar?
— Aí eu te vejo no Marco 291.
DeVontay deu um passo, mas ela não o soltou. Em vez disso, ela se aproximou. Ela quis beijar-lhe o rosto, mas ele se virou e seus lábios se encontraram. Ele era
uns quinze centímetros mais alto, mas eles pareciam combinar. Os lábios dele eram grossos e quentes e, mesmo em meio ao caos e ao medo que pulsavam nas veias, um
tipo diferente de emoção despertou.
No entanto, o beijo foi reconfortante, o olho do furacão, o centro são de um universo que rodopiava enlouquecido. No silêncio pesado da noite de outono, o contato
foi eletrizante.
Zap.
Depois de algumas pulsações sincopadas, DeVontay se afastou. Ele sorriu. — Tem gente olhando.
Rachel tocou a boca, envergonhada. Não havia olhos brilhando na floresta, nenhum vaga-lume estranho. Apenas o mundo natural.
— Sinto muito.
— Então continue assim. Eu já volto.
Ele correu em direção à floresta com a espingarda em punho, cujo cano brilhava com a luz fraca. Rachel olhou as árvores de novo, em seguida olhou a cabine desprotegida
e estilhaçada que brilhava como um ovo monstruoso sob um céu alienígena. O rosto pálido de Stephen apareceu na abertura e ela se perguntou o quanto ele tinha visto.
Ela correu de volta para ele. — Vamos, temos que fazer as malas.
— Aonde o DeVontay tá indo?
— Ele foi procurar um lugar melhor pra gente acampar.
— No escuro?
Garoto esperto. E a inteligência era uma característica essencial para a sobrevivência. Rachel não sabia o que o futuro reservava, mas Stephen era parte dele. Seu
desejo de protegê-lo talvez fosse mera vaidade. Ele era durão, senão não teria chegado até ali.
— Ele está tentando fazer os sequelados irem atrás dele.
— Pra gente poder ir embora?
— Isso. Então vamos arrumar tudo. Rápido.
Rachel meteu umas latas de comida na mochila, verificou se tinha água, isqueiro, o mapa e o machadinho. Olhou na bolsa lateral para ver se os dois pentes de munição
estavam ali. A pistola era inútil a longa distância e, apesar da orientação paciente de DeVontay, ela ainda não sabia atirar muito bem. No entanto, a curta distância,
a arma seria melhor do que o machadinho, especialmente se vários sequelados atacassem ao mesmo tempo.
Mas ela esperava não chegar a esse ponto, não que ainda alimentasse muita “esperança” naqueles dias.
— Pegou tudo? — perguntou ela enquanto Stephen calçava os tênis.
— Nada aqui — respondeu ele. Ele estava até começando a falar como DeVontay.
Até o momento, eles estavam agachados na beira dos destroços, de jaqueta e mochila — Stephen com um boné surrado do Carolina Panthers — a primeira luz da alvorada
tocou o céu do leste em rosa e laranja, silenciando a aurora. A névoa se agarrava às árvores, escondendo tudo o que pudesse se mover entre eles. O orvalho nas folhas
moribundas fazia as copas outonais brilharem como o ouro e os rubis de um tesouro real.
— Vamos esperar o DeVontay? — perguntou Stephen.
— Ele falou que é pra irmos na frente.
Eles não ouviram tiros nem gritos de alerta, sinal de que DeVontay provavelmente ainda não havia encontrado os sequelados. Mas talvez eles o estivessem perseguindo
como ele planejara. Rachel não conseguia supor o que movia os mutantes — afinal de contas, por que eles não atacaram de noite os três já cercados?
— A rodovia é para lá — disse Rachel, apontando para noroeste, onde a US 321 começava a subir as montanhas. Foi quando percebeu que DeVontay não tinha nenhum mapa.
Mesmo que ele escapasse, talvez nunca encontrasse caminho até a estrada Blue Ridge.
Ela não conseguiu evitar mais uma mentirinha. — DeVontay vai nos encontrar lá assim que os sequelados forem embora.
— Ele não vai se perder na floresta?
— Nada. Pra um garoto da cidade, até que ele é bem esperto.
— Você gosta dele?
— Claro. Ele ajudou a nos salvar.
— Foi por isso que você beijou ele? — perguntou Stephen com um semblante tão sério que Rachel quase sorriu.
— Não se preocupe — disse ela. — Eu não peguei piolho, não.
— Vocês vão se casar?
— E por acaso tem alguma igreja por aqui?
Stephen balançou a cabeça. — Só tem árvore. E gente morta.
Rachel olhou para o corpo amassado do avião onde muitos perderam a vida. O horror dessas pessoas foi breve — alguns minutos entre a perda de potência a 20 mil pés
e o impacto com o solo. No entanto, o horror de Stephen perdurava, um minuto de cada vez, em um dia incerto da semana, perdido nas cinzas do que outrora foi a civilização.
Ela pegou a mão dele. — Vem. O DeVontay está esperando.
Eles caminharam em meio à névoa com Rachel carregando a pistola em uma das mãos e a outra segurando a de Stephen. Ela se sentia uma intrusa na floresta. Era um lugar
que voltou a pertencer às feras.
Sua espécie não era dali.
Sua espécie já teve seu tempo na terra, mas uma outra raça dominou.
Até que ela morresse, o mundo teria que abrigá-la. Ela o exigia. Ela abdicou da vontade de Deus e só lhe restava a vontade própria.
Isso seria o bastante.
Ela apertou ainda mais a pistola, saboreando a sua potência.
É, vai servir.
CAPÍTULO 11
— Trilhas — disse Franklin.
Ele apontou para fora da trilha da floresta, onde um fio d’água escorria entre pedras cinzentas cobertas de musgo. A lama negra estava crivada de pegadas, algumas
delas cheias de água.
Jorge se ajoelhou e analisou-as. — Alguns estão usando botas ou sapatos e outros estão descalços.
— Este homem merece uma condecoração de escoteiro. — Franklin estalou um galho de uma árvore de vidoeiro e mordeu a ponta até desfiá-la. Em seguida, começou a escovar
os dentes com ele, saboreando o sabor mentolado.
Eles estavam no lado ocidental do complexo, um quilômetro abaixo do cume. Franklin tinha patrulhado várias vezes toda a montanha durante a construção de Wheelerville,
principalmente para garantir que não houvesse posseiros nem sobrevivencialistas estabelecendo-se nas proximidades. Como o acesso à rodovia estava limitado, era uma
longa caminhada até as profundezas da floresta nacional. Às vezes, os hippies passavam semanas acampados, especialmente no verão e no outono, mas o terreno íngreme
e rochoso inibia a maioria deles. Os que ousavam nunca se aventuravam até o pico.
Franklin decidira fazer uma missão de reconhecimento porque queria saber quantos sequelados havia ao redor. Pelo menos foi a explicação que deu a Jorge. Na verdade,
ele ainda estava procurando a suposta instalação militar secreta.
Ele tinha certeza de que seria capaz de conter temporariamente alguns sequelados. No entanto, defender o complexo contra soldados treinados e armados seria muito
mais difícil.
— Eles provavelmente estão usando isto como fonte de água — supôs Franklin. — Bem, presumindo-se que os sequelados bebem água. Não temos a menor ideia do que precisam
pra sobreviver.
— O bebê toma leite — observou Jorge.
Franklin não queria ser lembrado por um ato de tamanha blasfêmia. — Uma coisa é certa: eles estão andando em bandos. Estas trilhas estão frescas.
— Vamos seguir riacho a baixo?
Franklin voltou a olhar para a trilha de animais que serpenteava pela encosta entre as árvores. Ele estava cansado. Se eles caminhassem pelo riacho até chegar ao
rio Elk, não estariam de volta antes do fim da tarde.
— Acha que as mulheres vão ficar bem? — perguntou Franklin.
— A Rosa está ficando boa com a espingarda e a Marina é uma sentinela bem esperta. Elas vão ficar bem.
— Tinha medo de que você dissesse isso — suspirou Franklin. — Certo, mas vamos ficar de olhos abertos. Ainda acho que os sequelados estão atrás do bebê.
Ele e Jorge tiveram essa discussão algumas vezes. Jorge não acreditava que os sequelados fossem inteligentes o bastante para se guiarem por todo o caminho da estrada
até o topo da montanha, mesmo que entendessem o que estava acontecendo. Franklin, no entanto, nunca confiou na sabedoria convencional.
Em grandes sistemas de caos, o caminho mais certo geralmente é a resposta mais simples. Na juventude, ele concluiu que a resposta eram os Illuminati; depois passou
a acreditar que um pequeno grupo — que fosse todo-poderoso ou corrupto — nunca seria capaz de organizar o comportamento de milhares de bilhões de outras pessoas.
Mais tarde, ele se apegou à teoria do “banqueiro estrangeiro”, popular entre os que acreditavam no Juízo Final econômico. Isso estava um nível abaixo dos Illuminati
em nível de paranoia e fazia um pouco mais de sentido porque a ganância era muito mais inspiradora do que um desejo de moldar o futuro.
A elite rica comprara a maioria dos governos do mundo havia muito tempo, deixando apenas os tiranos petulantes em lugares como o Irã e a Coreia do Norte como resistência.
E era esse o motivo de Franklin temer tanto os militares: mesmo ali, em um mundo pós-apocalíptico, seus comandos de marcha seriam impressos para defender a elite.
Por isso Franklin era ameaça: ele nunca se renderia aos porcos cujo focinho estivesse enterrado tão fundo no cocho.
— Vamos caminhar por uma hora; se não encontrarmos nada, vamos voltar — sugeriu Jorge como um meio termo.
Franklin não gostava de como o mexicano parecia dar ordens. Eles não estavam em uma democracia. Franklin tinha construído Wheelerville e, até onde pudesse, era ele
quem mandava. Ele não dava a mínima se era terra pública ou não.
Mas também não queria ficar na lama o dia todo. Rosa cozinhava muito bem e provavelmente estava preparando um guisado ou assando uma torta. Ele engordara alguns
quilos desde que a família Jiminez fora morar com ele. Não faria mal algum caminhar um pouco e perder um pouco de gordura, mesmo com o inverno chegando em breve.
— Tudo bem — concordou Franklin — mas cuidado onde pisa. Se você quebrar uma perna, vou te deixar pros coiotes.
— Sua pele é grossa demais pra eles mastigarem. Você não precisa se preocupar.
Franklin teve que rir dessa. Jorge e sua família eram trabalhadores árduos e ele se afeiçoara a eles. Até a mulher, Cathy, foi de alguma ajuda. Se não fosse aquele
sequelado pirracento, o enclave Wheelerville estaria ótimo.
— Quantos você acha que estão por aí? — perguntou a Jorge, que estava a uns dez metros à frente dele na caminhada. Franklin resistia usando a espingarda como muleta
ou bengala. O caminho era traiçoeiro e ambos tiveram que se concentrar em cada passo, senão podiam derrapar nas folhas molhadas e rolar pela encosta íngreme e rochosa.
— Não sei. Nós vimos talvez uns doze nesse fim de mundo; nas cidades deve ter milhares.
Franklin tinha perguntado especificamente quantos bebês sequelados havia, mas a resposta mais simples geralmente era o caminho certo. Se havia milhares de sequelados,
deveria haver centenas de bebês. Ele se perguntava quantas dessas mães deixariam o pequeno monstro sugar-lhe o seio. Sem dúvida, muitas das mães morreram com a massa.
Mas e se uma mãe sequelada tiver um bebê sequelado? E se essas coisas estão por aí procriando?
Franklin rangeu os dentes. A verdade é que ele não sabia o suficiente sobre eles e não podia ligar para a rede de preparação para obter respostas — sem satélites,
sem eletricidade e nem internet, no máximo uma recepção de ondas curtas.
Tinham caminhado talvez 20 minutos por cerca de um quilômetro quando Jorge apontou para um caminho trilhado que serpenteava por entre as árvores. O riacho ali era
mais largo com um poço profundo e lento que os animais procurariam para beber água. O chão estava nivelado, um abrigo natural de rochas cobertas com uma pele grossa
de terra escura.
— As pegadas estão indo nesta direção — notou ele.
Mas eles também ainda estão seguindo o riacho. Parece que o tráfego se divide aqui.
Franklin se ajoelhou para estudar as pegadas mais de perto. Além das trilhas de veados, guaxinins e um animal maior — provavelmente um urso —, as pegadas que seguiam
ao longo da trilha tinham um padrão trançado.
— Estas foram feitas por botas — disse Franklin. — Aquelas seguindo o riacho são de tênis ou calçados de trabalho, além de pés descalços. Nenhum hippie seria estúpido
o bastante para subir aqui descalço, portanto aqueles são de sequelados.
— E as botas?
Franklin olhou para o homem amorenado. — Especialidade do Tio Sam.
— Não entendi.
— Soldados.
— Por que os soldados estariam aqui em cima?
— Pela mesma razão que nós estamos: para sobreviver.
O governo foi inteligente o bastante para colocar uma instalação ao longo da estrada Blue Ridge porque ninguém suspeitaria da existência dela. Ninguém normal, pelo
menos. Nos antigos círculos de Franklin, eles se divertiam tentando adivinhar os locais de abrigos secretos.
— Então eles podem nos ajudar — disse Jorge.
— Quem disse que precisamos de ajuda? Além disso, esses caras não são como nos filmes. Eles seriam treinados para uma situação como esta. E eu não acho que o treinamento
abrange ajudar os civis a competir com eles pelos recursos disponíveis.
— Então eles são um perigo?
— Soldados sempre são um perigo. É meio como a munição: a gente não guarda a menos que tenha certeza de que vai usar.
— É melhor a gente voltar — disse Jorge. — As mulheres devem estar preocupadas.
— Não, senhor — objetou Franklin. — Eu quero colar neles, saber quantos são, quais são os hábitos deles.
— Podemos voltar outro dia.
Franklin absorveu a beleza e as cores da folhagem das árvores. — Nós só temos hoje — disse ele. — Primeira regra de sobrevivência: prepare-se para o melhor e prepare-se
para o pior.
— Desculpa, Franklin, mas aí são duas regras.
— No México não tem yin-yang, tao, essas coisas?
— Eu sou católico.
— Então você tá ferrado mesmo. Nunca conheci um católico que não achava que arderia no inferno pra sempre.
— Eu não esperava que o inferno viesse à Terra enquanto estivesse vivo.
Franklin riu. — Bem pensado. Tá bem, agora eu dou as cartas. Descemos a trilha por mais dez minutos e, se não virmos nada, voltamos pro abrigo.
Jorge considerou por um instante e assentiu. — Nós só temos hoje.
Franklin lhe deu um tapa amigável no ombro. — Você está aprendendo.
— Eu só espero viver o bastante pra me tornar tão sábio quanto você. Mais um século e eu fico no ponto.
— Anda logo, sabichão.
CAPÍTULO 12
Campbell acordou com o cheiro de presunto frito.
Antes de abrir os olhos, ele pensou que estava de volta à casa de verão no lago James, onde a família Grimes ia para as férias anuais do pai no Dia da Independência.
A mãe, que geralmente não era uma pessoa matutina, fazia questão de acordar de manhãzinha e preparar um grande desjejum, com colesterol suficiente para sufocar um
tiranossauro. Bacon, salsicha, presunto salgado, papa de milho com margarina, ovos mexidos, molho de salsicha e torrada pingando de manteiga, tudo regado a suco
de laranja e café.
Esses desjejuns eram uma das poucas vezes em que a família realmente se sentava junta e conversava. O pai era viciado em trabalho, mas, como a mãe, usava outra persona
para essa semana de férias, uma que relaxava e mostrava interesse pelas pessoas que amava. No lago, até a irmã Caroline deixava de ser aquela criança chata e irritante.
Campbell sempre pensou que eles estavam agindo como uma família de televisão durante esse período, como em uma farsa.
No entanto, quando ele abriu os olhos e percebeu onde e quando estava, desejou do fundo do coração pelo menos trinta segundos a mais daquela reminiscência.
— Tá com fome? — Wilma perguntou com aquela voz áspera de quem fumava um maço de cigarros só para celebrar o amanhecer.
Depois de uma dieta constante de feijão e sopa enlatados, a barriga de Campbell roncou só de pensar em uma refeição caseira, mesmo a “casa” sendo reboque de acampamento
sujo e apertado na floresta densa.
Algo áspero e úmido arranhou o rosto de Campbell; ele se virou e achou a cara enrugada de Amendoim, que subira na cama.
Isso explica o fedor. Bem, parte dele.
Campbell se sentou, quase batendo a cabeça no teto do trailer. Wilma tinha tirado as meias e botas enquanto ele dormia. Do lado de fora, o sol tinha nascido completamente
e brilhava através das lacunas nas copas das árvores, iluminando as janelas minúsculas e revelando a extensão da bagunça. Wilma estava ao fogão a gás na cozinha,
onde uma frigideira de ferro enegrecido estalava e cuspia.
— Não durmo numa cama há uma semana — disse Campbell. — A esta hora eu geralmente já estou de pé e partindo.
— Você está na estrada desde que a doença do sol começou?
— Eu dormi em algumas casas, mas sempre havia muitos fantasmas. — Campbell foi pegar as botas e descobriu que Amendoim tinha roído o couro. — Mesmo nas casas vazias,
sem cadáveres, eu me sentia um intruso.
Wilma se afastou do fogão e analisou-o com a espátula apoiada no quadril como uma arma. — Bem, você pode ficar aqui o tempo que quiser.
— Obrigado, mas é melhor eu continuar.
— Tá com medo dos sequelados por aqui?
— Tenho medo de tudo. — Ele relatou os ataques brutais em Taylorsville e como os soldados lá estavam matando aleatoriamente. Ficou solene ao dizer como seu amigo
Pete foi abatido a tiros na rua quando estavam saindo da cidade. — Prefiro pensar que ele foi baleado acidentalmente por fogo amigo, mas isso não muda o que aconteceu.
Wilma serviu um pouco de presunto em um prato de cerâmica que Campbell ficou feliz em não ver. — É um mundo cão lá fora, né, Amendoim? — disse, atirando um pedaço
de cartilagem brilhante para o chão que o vira-lata catou de uma toalha suja no chão com uma alegria de lamber os beiços.
Campbell foi até as caixas empilhadas de alimentos e suprimentos até chegar ao balcão. Ele pegou uma fatia de presunto do prato e enfiou na boca, saboreando o calor
salgado. Wilma observou o rosto dele enquanto ele mastigava.
De perto e à luz do dia, as rugas dela eram ainda mais profundas, embora os olhos fossem verdes, claros e intensos. O rosto ficava sob um emaranhado de cabelo oleoso,
como se ela tivesse desistido do alisamento com o advento do apocalipse. Campbell suspeitou que seu estilo de vida era praticamente o mesmo de quando o sol ainda
não tinha libertado seu tsunami cruel de partículas carregadas.
— Então, qual é o seu plano? — perguntou ela enquanto pegava um dos pedaços e mastigava-o do lado da boca que ainda tinha a maioria dos dentes.
— Tô indo pras montanhas — respondeu ele. — Alguém me disse que há um complexo lá, no Marco 291.
Ele imediatamente se arrependeu de dizer a verdade. E se ela quisesse acompanhá-lo? Ele não podia se imaginar arrastando-a consigo com o vira-lata sarnento em seu
encalço.
Talvez a sobrevivência não seja um toma-lá-dá-cá. Afinal, essa mulher é uma sobrevivente. Talvez não seja o representante mais brilhante da raça humana, mas está
resistindo. E, convenhamos, ela conhece o território.
— Não me parece lá um grande plano — opinou ela, ainda mastigando com aquela casca de ferida no lábio cheio da gordura do presunto. — Pra mim é só uma esperança
tua.
— Não posso encher minha cabeça com esperanças agora — disse Campbell. — Só preciso ter alguma coisa pra fazer.
— Como eu já disse, você pode ficar aqui sem problemas — os olhos dela se estreitaram — o tempo que quiser.
— Eu… — Campbell não queria desrespeitar a generosidade e a hospitalidade dela. Como saber que outras ferramentas e truques ela teria a oferecer?
Até onde sabia, ela estava melhor situada do que as pessoas no mítico complexo do Marco 291 — se é que haveria mesmo pessoas esperando. Mas ele sabia com certeza
que Rachel e seus companheiros de viagem estavam indo naquela direção e pensara muito nela naquele período em Taylorsville.
Ele sabia que a obsessão era tola, haja vista a paixonite com a mulher casada na casa ao lado no lago James — uma mulher que ele secretamente espionara quando ela
fez topless, mas a quem raramente dirigia a palavra.
— Bom, acho então que vou descansar aqui por um dia e pensar no assunto. — Ele pegou uma segunda fatia de presunto e catou um meio pêssego na lata aberta. — Eu agradeço
a oferta.
Wilma assentiu, não inteiramente satisfeita, mas ela não desistiria. — Eu posso te mostrar os sequelados.
Campbell não a compreendia. — Eu vi eles… ontem à noite.
— Onde eles moram. — Ela deu um sorriso distante.
— Moram? — Campbell ainda não tinha conseguido entender; ele não conseguia pensar naquelas criaturas mutantes como “vivas”, mas eles deviam ter um lugar em que iam
dormir — presumindo-se que dormiam. E provavelmente comiam. E eles se preocupavam com seus mortos…
O presunto na boca de Campbell ficou com gosto de papelão. Ele não tinha certeza se queria saber mais. Os sequelados eram violentos e mortais. Eles eram o inimigo.
Mas ele não podia deixar de saber.
— Me mostra — pediu ele.
— Depois do almoço.
— Agora.
Campbell pegou a mochila. Estava aberta; o conteúdo fora saqueado. Ele enfiou a mão dentro e tateou; em seguida, despejou o conteúdo no chão. — Cadê?
— Nada de arma — disse ela. — Nunca tive arma e eles nunca me incomodaram.
Ele jogou a mochila vazia do outro lado do trailer. Amendoim começou a latir de tensão. — Eu quero a minha arma.
O armário acima do barzinho tinha uma tranca. Campbell chutou a madeira compensada barata e a fragmentou. Wilma correu até ele, que a empurrou para longe. Ele estava
em pânico, sentiu-se impotente sem a arma.
Por fim a bota dele conseguiu atravessar a madeira e a porta caiu das dobradiças. Dentro do armário havia mais caixas de papelão. Ele as empurrou, vasculhando o
conteúdo. Nada além de sopa, leite em pó, sacos de arroz, caixas de papelão redondas com aveia.
— Fica calmo, senão eles vão te ouvir — implorou Wilma de joelhos.
Depois de procurar na caixa menor, Campbell se sentou nela, extenuado e envergonhado. Amendoim latiu até que Wilma lhe atirou um pedaço de presunto. O cão o pegou
e foi até o caixote de leite, onde saboreou a carne, babando nos beiços.
— Desculpe pela bagunça — disse Campbell.
Wilma riu, um ruído horrível e rachado que poderia ser confundido com uma cascavel. — Você acha que é o primeiro? Já tive meus homens. Nenhum deles durou muito tempo.
Porque todos achavam que os sequelados têm que morrer.
— Como assim?
— Quem vive lutando, morre lutando.
— Aqueles soldados… atiraram naquele sequelado e viveram pra contar a história.
— Por enquanto. O que é deles tá guardado.
— Não vou sair se você não me der a arma.
— Deixa eu te mostrar, Campbell. Depois você decide se precisa ou não de arma. E se você quer ir embora.
A raiva de Campbell ameaçou voltar. Ele se sentiu claustrofóbico e a gordura no ar embrulhou-lhe o estômago. Ele precisava de ar fresco. Quando chegou à porta, no
entanto, viu o cadeado que o mantinha aprisionado.
— Você… — gritou para Wilma, que caiu no canto do trailer como um boxeador abatido subindo pelas cordas até o final do round.
— Eu não podia deixar você ir embora. Você é diferente dos outros.
Outros?
Ele provavelmente poderia chutar a porta de metal oco, mas o ruído despertaria os sequelados. A raiva se desfez em ácida compaixão. — Me conta tudo o que você sabe
deles. Depois eu decido quem de nós dois é o mais louco.
— Eu… eu vou te mostrar. — Ela se moveu em direção a ele. Amendoim rosnou.
— Primeiro me dá a minha arma — inquiriu Campbell.
— Depois que a gente voltar — disse ela. — Confia em mim. É a melhor maneira.
Ele não sabia mais se podia confiar em alguém. — Eu não posso ir lá fora desarmado. Eu vi o que eles podem fazer.
— Eles são como cães: farejam o medo.
Pontuando as palavras da mulher, Amendoim latiu.
Campbell estava dividido entre a curiosidade e a frustração. Mesmo depois de uma boa noite de sono, sentiu-se com frio e abatido, exausto até a alma, mas com um
cérebro funcionando a cento e oitenta por hora. Ele sabia que algo estava errado, mas não conseguia descobrir o quê. Ele precisava desesperadamente saber mais sobre
os sequelados, como se houvesse algum conhecimento profundo e útil que o ajudaria a sobreviver.
E, talvez, um conhecimento que ele pudesse compartilhar com outros sobreviventes.
O preço do conhecimento era confiar em Wilma, que era tão imprevisível e selvagem quanto as pessoas cujo comportamento tinha sido alterado para sempre pela radiação
do sol.
— Tudo bem — aceitou Campbell, olhando para o vira-lata que rosnava — mas o cão fica aqui.
CAPÍTULO 13
Jorge estava um pouco à frente de Franklin na trilha, por isso foi o primeiro a ver o corpo.
O morto tinha seus vinte e poucos anos e vestia uma calça cáqui e uma camiseta verde. As botas de combate estavam incrustadas de lama seca. Ele estava recém-barbeado,
de olhos fechados e fundos, com um quepe de tecido camuflado ao lado do cabelo cortado à escovinha. Ele estava deitado de costas sobre as samambaias, como se estivesse
cochilando.
Jorge fez acenos rítmicos para chamar Franklin assim que ele contornou a curva. Franklin levantou a arma, olhou ao redor e, em seguida, passou por Jorge e ajoelhou-se
ao lado do cadáver.
— Você acha que é a doença do sol? — perguntou Jorge, mantendo a voz baixa.
Franklin verificou se havia feridas no homem e, em seguida, rolou-o de lado. — Pode ser. Nunca vi ninguém mudar desde as tempestades, mas não sabemos a ciência por
trás do evento. Pelo que sabemos, pode estar latente em nós.
Jorge apontou para um hematoma escuro atrás da orelha esquerda do homem. — Alguém acertou ele aqui.
Franklin acenou para as pedras cinzentas em torno da trilha. — Ou ele pode ter caído e rachado a cabeça. De qualquer forma, não faz tanto tempo que ele morreu.
Franklin levantou o braço do homem e deixou-o cair no chão. — Os bichos estariam comendo a carne se estivesse morto aqui por mais de dois dias. O rosto dele está
preto em volta dos olhos; isso mostra que não é muito recente. As moscas nem encontraram o corpo ainda.
Jorge ficou perturbado com a natureza casual da morte. Ela pode chegar até mesmo a um homem saudável, ou varrer o céu e matar indiscriminadamente. Novamente sentiu
um arrepio de gratidão correr-lhe o corpo. Mesmo naqueles tempos terríveis, ele e a família estavam vivos pela misericórdia de Deus.
Franklin fisgou a corrente do pescoço do homem e puxou as plaquetas de dentro da camiseta dele. Ele leu em voz alta o nome gravado: — Carson. Simon L.
— Você acha que os sequelados fizeram isso? — perguntou Jorge.
— É difícil dizer. Essa contusão é a única lesão que eu vejo. Não parece o estilo dos sequelados. Eles costumam mais arrancar os braços e bater com os tocos ensanguentados.
— Cadê a arma?
Franklin se levantou e fez uma busca rápida na mata em volta enquanto Jorge seguia a provável trilha do homem até o lugar de seu descanso final. Depois de alguns
minutos, voltaram para o homem morto de mãos vazias.
— Ele deve ter vindo numa missão de reconhecimento sozinho — supôs Franklin.
— Se os sequelados tomaram a arma dele…
— É, não seria nada bom se eles aprendessem a atirar. Eles já eram perigosos o suficiente.
— Por que ele estava aqui sozinho? — perguntou Jorge. — E por que os soldados não vieram pegar o corpo? Não é parte do código de honra deles?
— Você tem mesmo um monte de perguntas — disse Franklin — mas eu tenho a resposta: basta manter a voz baixa e os olhos abertos.
— Acho melhor a gente voltar. — Jorge ficou inquieto com aquele novo mistério. Rosa conseguia lidar com a maioria das situações, como na fazenda Wilcox, quando ela
matou um sequelado que o atacou, mas ninguém conseguiria se preparar para um perigo que não compreendia.
Franklin olhou para a floresta e as sobrancelhas grisalhas se arquearam na testa enrugada. — Eu tenho uma ideia melhor. Vamos nos esconder nesses rododendros e ficar
olhando.
— Eu tenho uma família para proteger.
— E você vai protegê-la melhor se a gente se livrar dos perigos na passagem.
O velho era teimoso, mas Jorge tinha que admitir que o raciocínio dele pode ter salvado a vida de sua família. — Certo. Meia hora, só isso.
Franklin olhou para o cadáver. — Ele não vai sair daí.
— Eu não ia me oferecer pra enterrar ele.
— É assim que vocês fazem lá no México?
Jorge não queria pensar nos amigos e parentes que ele tinha deixado para trás e que nunca reveria, se é que algum deles ainda estava vivo. — O México talvez nem
exista mais.
— É verdade. — Franklin subiu na frente até um trecho de declive entre as alfarrobeiras de folhas amarelas brilhantes e saliências irregulares de granito com nesgas
de cristal branco. Jorge viu um gavião voando e pensou se teria sido o que matou a galinha. Provavelmente foi uma ilusão, mas os olhos do falcão tinham brilhado
como se refletissem o sol.
A floresta parecia em paz, adaptada à nova realidade. Embora a doença do sol tenha matado muitos animais, além dos humanos, o equilíbrio foi rapidamente restaurado.
A Natureza ainda tinha a capacidade de continuar.
Jorge seguiu Franklin em um emaranhado de galhos e logo eles ficaram escondidos pelas escuras folhas cerosas de rododendro. As sombras cresceram, marcando a descida
do sol à tarde. Os mosquitos voavam ao redor das orelhas de Jorge, que ficou irritado e inquieto, mas continuou tão imóvel quanto podia. A cabeça de Franklin mergulhou,
o rifle estava no colo, e Jorge achou que ele tinha adormecido.
Mas Franklin estalou em alerta e colocou o dedo sobre os lábios. Jorge tentou inutilmente espantar os mosquitos. Franklin apontou para a trilha. Um homem saiu da
mata do outro lado e ajoelhou-se sobre o cadáver.
Era um homem da mesma idade e vestido da mesma forma, só que esse usava uma camisa de camuflagem desabotoada sobre a camiseta. Estava desarmado e as roupas estavam
sujas da lama escura da floresta. À primeira vista, Jorge se perguntou se ele seria um sequelado por causa dos movimentos descoordenados e esquivos de seus membros.
Então ele percebeu que o homem estava exausto e talvez sofrendo de algum trauma psicológico.
Franklin levantou cuidadosamente o rifle e apontou a mira para baixo no alvo que estava a uns trinta metros de distância.
Se você atirar, os sequelados vão saber onde estamos e os soldados também.
O soldado caiu sobre o companheiro e puxou-lhe a camiseta. — Vamos, Carson — persuadiu o soldado. — não é hora de dormir.
O soldado olhou ao redor com as bochechas magras úmidas de lágrimas. — Levanta, idiota, eles estão vindo!
Ele deu um chute nas costelas de Carson com a bota direita. O som de estampido e de rachado fizeram Jorge estremecer. Franklin mantinha a espingarda firme, respirando
superficialmente pela boca.
Pfa-ziiiiiing.
Ouviu-se o tiro.
Jorge pensou por um momento que Franklin tinha disparado, mas o estampido ecoou pelo vale. O soldado caiu de quatro, subiu em direção a um afloramento de rochas
e desapareceu sob o tronco coberto de musgo de uma árvore caída.
— Isso não é um sequelado — sussurrou Franklin.
A não ser que eles tenham aprendido a usar armas.
Alguém gritou um nome com uma voz brusca. — McCrone!
Poucos segundos depois, três soldados uniformizados em traje completo de batalha correram pela trilha. O batedor se ajoelhou sobre o cadáver de Carson antes de acenar
rapidamente em cada sentido para enviar um soldado para cada lado da trilha. Enquanto eles se espalhavam procurando McCrone, Jorge colocou a mão no ombro de Franklin.
— Vamos sair daqui — disse Jorge entre o sussurro e o gemido.
Franklin balançou a cabeça. O olhar no rosto dele era quase de prazer. Talvez ele, isolado por tanto tempo, tenha se animado com a aventura. Talvez estivesse saboreando
a oportunidade de atacar o governo que ele desprezou.
Só que o governo pode revidar.
Jorge não via vantagem em confrontar soldados treinados e bem armados. Eles pareciam estar carregando armas de assalto e os cintos de utilidade traziam coldres e
granadas. Eram máquinas de matar, com a intenção de cumprir a missão, que parecia ser capturar seu companheiro. O soldado mais próximo de Jorge, um homem de pele
ebânea, bigode e frios olhos castanhos olhou para as folhas gastas e os rastros que Jorge e Franklin deixaram.
O soldado começou a subir a ladeira, girando a arma semiautomática da esquerda para a direita. Jorge tinha certeza de que Franklin estava prestes a matá-lo, mas,
em seguida, o soldado do outro lado da trilha gritou: — Aqui!
O soldado de pele escura galopou de volta descendo a encosta, escorregou uma vez e quase caiu. O líder do pelotão, com três listras na manga da camisa, abandonou
o cadáver de Carson e dirigiu-se até a encosta. O terceiro soldado deve ter descoberto as pegadas de McCrone porque pulou por cima da árvore caída e correu para
a floresta gritando o nome de McCrone.
Outro tiro ecoou e logo todos os três soldados sumiram. Jorge rastreou a posição deles através das árvores com o que ouviu dos gritos, do farfalhar das folhas e
do estalar dos galhos.
— Talvez McCrone tenha desertado — Franklin sussurrou, finalmente baixando a espingarda.
Jorge exalou para liberar a tensão. — Mas por que iriam matá-lo? Por que não deixar ele ir embora?
— Talvez ele saiba de alguma coisa.
— Você ia balear o negro?
Franklin riu. — Ou você está conosco, ou contra nós.
Jorge ficou aliviado pela perseguição ter acontecido longe de Wheelerville. Mesmo a três quilômetros dali, os soldados poderiam facilmente ter descoberto o complexo
por acidente. Talvez eles já tenham avistado por causa da fumaça de lenha. Embora Franklin insistisse em só queimar madeira dura e seca, em dias claros a fumaça
subia como uma mancha branco-acinzentada no céu.
— É melhor irmos ladeando o cume e evitar a trilha — explicou Franklin — mesmo que vá demorar mais.
— O ancião é você — disse Jorge. — Eu estou em boa forma.
— A sobrevivência é uma maratona, não é uma corrida de cem metros, meu caro. Vamos ver quem aguenta.
— Vamos logo com isso, então. Quero estar lá antes de anoitecer.
Eles ouviram mais um tiro a uns cem metros de distância. Franklin assentiu com a cabeça. Porém, quando Jorge já estava prestes a se enfiar pelo mato, Franklin o
agarrou pela alça do rifle. Um assobio tomou conta dos ouvidos de Jorge e ele pensou que os mosquitos estavam de volta, mas, depois de abanar a lateral da cabeça,
percebeu que o som tinha uma origem diferente.
Eles saíram do bosque tão solenes e firmes quanto discípulos em peregrinação. Jorge percebeu na hora que eram sequelados por causa dos cabelos despenteados e da
roupa suja. Eles pareciam se infiltrar em vez de andar, em silêncio, exceto pelas vocalizações de alta frequência.
Jorge se perguntou se eles estavam reagindo aos tiros e vindo em busca de um ser humano para matar. No entanto, eles se moviam com pouca urgência — certamente não
tão frenéticos e sanguinários como os soldados.
— Assustador — sussurrou Franklin. Jorge fez uma careta, pois não sabia o quanto os mutantes conseguiam ouvir nem a que frequências eles respondiam. Com uma vida
cuidando dos animais de fazenda, Jorge conhecia a variedade da natureza em ação. Aquela, no entanto, era uma deturpação da natureza, uma aberração perturbadora,
um novo tipo de animal com propriedades desconhecidas.
Havia cerca de uma dúzia de sequelados, cinco deles mulheres. Dois eram adolescentes, de camisetas, shorts e chinelos, cabelos espetados e ensebados — pareciam irmãos.
Havia um homem de meia idade de regata branca manchada com tatuagens que lhe cobriam os braços e calças jeans gastas nos joelhos. Alguns sequelados estavam descalços,
como se estivessem cochilando quando as tempestades solares os atingiram, levando-os imediatamente do sonho ao pesadelo. Um deles era um velho nu, com o membro murcho
em meio a um tufo de cabelos brancos enquanto ele se movia com as pernas magras.
— Nós podemos atirar, mas os soldados podem voltar — sussurrou Franklin.
— Talvez eles não nos vejam — disse Jorge. O assobio perfurava os ouvidos deles como agulhas cujas pontas quase se tocavam no meio do crânio.
— Fica pronto pra qualquer coisa.
Não precisa me dizer duas vezes, gringo.
Os sequelados convergiram em direção ao cadáver deitado ao lado da trilha e, por um horrível momento, Jorge se perguntou se eles estavam indo para reunir-se ao redor
do corpo para comê-lo.
Esse é o tipo de coisa para o qual eu não estou pronto.
E ele sabia que começaria a atirar descontroladamente se tal blasfêmia acontecesse. Não importa o quanto ele tenha advertido que Rosa e Marina estariam em risco
se eles se envolvessem em um tiroteio: Jorge não poderia testemunhar tal horror.
Mas os sequelados não pareciam ter pressa de nada — não se sabia que fome os movia, mas não era por carne.
Em vez disso, eles se inclinaram sobre o cadáver e levantaram-no gentilmente do chão. O silvo de repente cessou e o silêncio que se seguiu foi tão chocante quanto
um tapa. Jorge ouvia sua pulsação bem forte nos ouvidos.
Os sequelados rolaram o cadáver por sobre os ombros e seguiram em marcha. Pareciam lenhadores transportando um tronco. Assim que começaram a descer a trilha com
a carga, um dos braços do soldado pendeu para fora. O homem nu foi até ele e colocou-o de volta sobre o abdome do morto.
No início, a procissão parecia descoordenada, com os sequelados mais baixinhos esticando-se na ponta dos pés. Uma das mulheres deixou a perna dobrar, fazendo o peso
recair todo sobre o sequelado atrás, o que quase derrubou todo o grupo. Depois de uns vinte passos, porém, eles voltaram a se mover em uníssono como uma máquina
bem lubrificada.
Em um instante, o espetáculo bizarro virou na curva e perdeu-se nas árvores e Jorge conseguiu respirar novamente.
— Bando de urubus carniceiros — murmurou Franklin.
Em seguida, ele levantou a espingarda e disparou, e a explosão súbita soou como um golpe sônico pelo vale. O velho sequelado nu desabou e sangue vermelho jorrou
de sua caixa torácica e misturou-se com a lama.
Os sequelados cambalearam e perderam o controle do cadáver, que caiu dos ombros deles ao chão.
Os sequelados se viraram juntos e olharam para o esconderijo nos rododendros. Jorge tentou recuar entre as folhas escuras e sombras.
Em seguida, o assobio começou.
CAPÍTULO 14
— Seu burro — disse Jorge. — Agora os soldados vão vir para cá.
— Podem vir — disse Franklin. Os olhos dele brilhavam com uma malevolência líquida, com tempestades formando-se atrás deles.
Abaixo, a reunião de sequelados emitia um assobio combinado, quase como um guincho. Eles não se aproximaram a princípio e Jorge se perguntou por que eles estavam
hesitando. Eles não mostravam medo nem raiva e aquela implacabilidade era mais aterrorizante do que se tivessem ido pela encosta em direção a eles. As duas adolescentes
eram as mais aterradoras — além dos olhos brilhantes e roupas esfarrapadas, elas poderiam, talvez, estar em uma excursão da escola, talvez uma caminhada e um piquenique.
— Vai atirar ou correr? — perguntou Franklin a Jorge.
— Essa briga não é minha — respondeu Jorge por fim, embora mal conseguisse forçar o ar através da traqueia. Ele não pensara duas vezes ao arriscar a vida para ajudar
a resgatar Cathy e o bebê, embora não soubesse na época que a criança era um sequelado. Aquele confronto, porém, era desnecessário. Bastava esperar e logo os sequelados
teriam desaparecido.
Ele não lutaria para salvar um homem morto. Não com a família em risco.
— Não era parte o plano — disse Jorge.
— O plano é sobreviver.
— Pra sobreviver, a gente tem que sumir de vista.
— Eu não ouvi você dizer isso quando resgatou o sequeladinho.
— Eu… eu não sabia.
— Eu tenho balas suficientes para todos eles — disse Franklin, nivelando o rifle novamente.
— Tem o suficiente para o exército que está andando por aí? — Jorge esquadrinhou a floresta ao redor, perguntando-se se os três soldados estariam voltando para a
trilha. Ou se outros soldados estariam de patrulha. As pegadas de botas eram muitas.
Os sequelados ficaram em silêncio, ainda voltados para cima da encosta. O suor delineava o couro cabeludo de Jorge. O doce aroma de seiva e de folhas mortas de outono
encheu-lhe as narinas e a tensão aguçava os sentidos. O pássaro que sobrevoava emitiu um pio lancinante e Jorge temeu que aquilo fosse irritar os sequelados de novo.
Mas eles esperaram com uma paciência inumana.
— Eles só vão entender assim — disse Franklin. — Esta montanha é minha.
Ele atirou de novo e uma das sequeladas caiu para a frente com um passo vacilante e a boca aberta de surpresa. A bala entrou pelo abdômen e borrifou um pedaço rosa
e pegajoso do intestino pelas costas. Pelo blazer azul e blusa branca, ela devia ter sido caixa de banco ou executiva de vendas, alguém que você não esperaria encontrar
dentro da mata.
Agora ela estava morta pela segunda vez — a primeira morte foi a da alma dela pelas tempestades solares, que deixou vivo somente o corpo.
Ainda assim, era uma mulher.
— Você está matando a sangue frio — disse Jorge.
— Ótimo — retrucou ele. — Não é preciso derramar uma gota de suor.
— Você não vai atirar nos garotos, né?
— Não são mais garotos. Os sequelados são uma ameaça pra raça humana, uma ameaça à liberdade.
Os sequelados ainda não mostravam nenhuma angústia nem excitação, embora tivessem interesse em seus parceiros caídos. Dois deles levantaram o homem nu e o colocaram
nos ombros, enquanto três sequeladas levantaram a irmã morta. Eles não eram fortes o bastante para carregá-la, mas conseguiram levantá-la o suficiente para arrastá-la
ao longo da trilha com uma sandália de verão escorregando do pé.
Os sequelados restantes começaram a subir a ladeira em direção ao matagal de rododendros. Os movimentos deles eram estranhamente graciosos, como se estivessem andando
n’água. Aos quarenta metros, os olhos brilhantes eram como joias elétricas.
Jorge pegou a arma para se preparar, mas somente caso os soldados os descobrissem e atacassem. Ele não atiraria, a menos que não houvesse outra opção.
Já Franklin…
Ku-paaak.
Outro tiro, outro sequelado tombou.
Jorge jogou a arma no chão.
Franklin se virou quase rosnando de raiva. Jorge não sabia se a raiva era dirigida a ele ou aos sequelados — a emoção crua parecia difusa e sem direção, um tsunami
que finalmente rompia o quebra-mar.
— Pega — ordenou Franklin.
— Não vou matar pessoas desarmadas.
— Eles não são pessoas, que diabos! São sequelados.
— Pra mim, chega.
Franklin se lançou em direção a ele com uma velocidade que desafiava a sua idade. Jorge tentou evitar o ataque, mas caiu sobre os galhos, fazendo as lascas de casca
caírem sobre o rosto. Franklin o agarrou pela frente da camisa com os punhos presos fortemente no pomo de Adão de Jorge.
De repente, os sequelados começaram a chiar e subir o aclive, chutando lama e folhas pelo ar. Os movimentos, antes graciosos, viraram uma loucura cinética que refletia
a raiva de Franklin. Jorge lutou para sugar o ar para os pulmões. A respiração de Franklin cheirava a cebolas velhas, café velho e uma nota metálica que vinha de
algum lugar das entranhas.
— Gâh… gâh… — grunhia Jorge, apontando para os sequelados que se aproximavam. Mas os olhos esbugalhados de Franklin estavam fixos em Jorge como se estivesse alheio
a tudo, exceto para a adrenalina que corria nas veias. Jorge lutou para recobrar o equilíbrio, mas um dos joelhos agarrou em um rododendro retorcido. Ele não conseguia
correr nem afastar o velho grisalho.
Os sequelados se espalhavam à medida que se aproximavam, com uns seis correndo por entre as árvores e esquivando-se atrás das rochas. Os dois adolescentes lideravam
o ataque. Jorge não notara que um deles era menina — o corpo leve ainda era pouco desenvolvido e a camiseta larga lhe ocultava a silhueta. Ela estava perto o suficiente
e reconheceu a estampa, que era igual à de um estojo de Marina.
Hello Kitty.
Jorge se contorceu, soltou-se das mãos de Franklin e um ramo lhe arranhou o rosto.
— Fra… Franklin — chiou Jorge. Dessa vez, um lampejo de consciência obscureceu a raiva que ardia na íris de Franklin. Ele piscou como se despertasse de um sono inquieto
e olhou para as mãos.
— Eles estão vindo — disse Jorge.
— Quem?
Jorge achou que o velho pudesse ter sofrido um derrame. — Os sequelados.
O homem empurrou Jorge e correu em busca da espingarda. Jorge ficou estirado nos galhos por mais um momento antes de cair sobre o barro úmido.
De joelhos, Franklin levantou a espingarda, posicionou-a e girou o cano para a esquerda e para a direita. Os sequelados corriam por entre as árvores, assobiando
e cacarejando.
Franklin disparou outro tiro e uma bala atingiu o granito.
Outro tiro em resposta ecoou pelo vale do cume oposto.
Soldados. Dane-se o velho.
Jorge não conseguiu localizar nenhum sequelado. Uma vez na floresta, eles se moviam com uma agilidade predatória. Ele veria um lampejo de movimento ou farfalhar
de tecido e, pelo tempo em que se concentrou, tudo voltou a ser sombras e árvores. Se não fosse pelo assobio, Jorge teria achado que eles tinham recuado mais para
dentro da mata.
Franklin xingou em voz baixa: — Será que viraram espíritos?
Ouviu-se outro tiro à distância; dessa vez, Jorge ouviu um zunido de bala pelas copas das árvores acima. Ele se agachou e remexeu as mãos e joelhos até sair da moita.
— Aonde você vai? — perguntou Franklin.
— Para o complexo.
— Você esqueceu a espingarda.
— Não esqueci, não.
Jorge desceu ao longo da encosta, correndo paralelo à trilha. Abaixo, as três sequeladas carregavam a mulher em quem Franklin tinha disparado e levavam a carga macabra
em direção a um destino misterioso. O corpo do homem velho nu sumira, mas o soldado morto ainda estava onde caiu. Pelo jeito, os sequelados perderam o interesse
no humano, uma vez que tinham cadáveres de sua própria espécie.
Franklin disparou novamente e Jorge estremeceu, meio que esperando uma bala nas costas. Mas ele não se virou. Em vez disso, inclinou-se para a encosta, apressando-se
entre os troncos enrugados e cinzentos de carvalho e de álamo. Ele achou ter captado um movimento pelo canto dos olhos, mas os sentidos se reduziram à respiração
irregular e à dor nas pernas. Ele esperava que os soldados não tivessem contornado pelo cume e se posicionado em terreno alto.
Mas só havia três deles…
Ele chegou a uma árvore caída que tinha sido partida e queimada por um raio. Os ramos apoiavam o tronco a um metro fora do chão e Jorge teve que escolher entre se
emaranhar por baixo ou passar por cima. Como precisava descansar, caiu de joelhos e prestou atenção, sugando o ar doce da floresta e esforçando-se para ouvir.
Ouviu-se uma salva de tiros distante e Franklin respondeu. Jorge duvidou que o velho tivesse sequer avistado os alvos. Ele provavelmente só fez isso para marcar
território. Um esquilo piava em um grumo de folhas acobreadas acima e Jorge saboreou as notas pouco comuns de um mundo passado.
Mas o passado ainda não estava morto. Ele estava esperando no complexo.
Firme aí, Rosa. Já estou chegando.
Ele passou por sob a árvore caída, levantou-se e deu de cara com um sequelado.
Ela olhou com aqueles olhos assustadores, brilhantes. O rosto dela era branco, mas a boca se abriu e emitiu uma exalação úmida. Ela não pesava mais que uns cinquenta
quilos, com os braços finos saindo das mangas da camiseta larga que chegava até os joelhos. O logotipo da inexpressiva Hello Kitty com o seu arco vermelho ocupava
o centro da camiseta. Ela usava meias descasadas sem sapatos, com a lã encharcada e preta de lama.
Ela era um ou dois anos mais velha do que Marina, talvez até já tivesse começado a menstruar. O cabelo tinha fios pretos que terminavam em cachos soltos e oleosos.
Jorge deu um passo lento para a direita, como se fosse contorná-la. Ela o imitou e continuou a um metro dele, bloqueando a passagem.
Jorge lutou para não falar com ela e desculpar-se pelo surto assassino de Franklin.
O som úmido na garganta ganhou intensidade e ele percebeu que ela estava prestes a sibilar. Ele girou, pegou um galho quebrado da árvore caída e torceu para arrancá-lo
com um som de madeira partida. Ele tinha uns seis palmos de comprimento e estava carregado de folhas mortas. Mesmo pesado, ele o agarrou com as duas mãos e recuou
como um batedor de beisebol.
Mas, mesmo enquanto mirava o golpe, não conseguiu evitar os olhos dela. Mesmo quando a boca se abriu em um O, projetando toda a inocência de soprano no coro da igreja,
e emitiu um sibilo aterrador, ele não conseguiu golpear aquele rosto angelical.
O assobio ecoou pela mata e os outros de sua espécie ouviram e responderam.
O brilho dos olhos dela se intensificou, como se o silvo tivesse deflagrado uma combustão interna na alma — ou no que fosse. Ela não vacilou nem reagiu à ameaça
dele. Jorge largou o galho e ergueu as mãos como se mostrasse que ele não a machucaria.
Ela se calou abruptamente. Se ela fechasse os olhos, ele não teria visto que era uma mutante estranha. Ela seria apenas outra criança, outra pessoa que necessitou
de carinho e orientação, outra pessoa para quem os adultos trabalharam para fazer do mundo um lugar melhor.
Apenas… outra… pessoa.
No entanto, ela estava entre ele e as pessoas que amava, portanto, era um inimigo. Ele deu mais um passo para a direita. Se ela bloqueasse o caminho novamente, ele
teria que golpeá-la e continuar correndo.
Ela ficou onde estava. Boca aberta, olhos fixos no rosto.
— Quem é você? — perguntou ele em um sussurro.
— Quem?
A princípio, Jorge não tinha certeza se tinha ouvido. Ela falou?
Impossível.
Talvez ela não seja um deles. Ela parece tão… normal.
Mas os olhos eram tão estranhos, ele não podia acreditar que ela não tinha sido afetada de alguma forma. Em seguida, ela emitiu um silvo alto com a garganta que
desfez a ilusão — o desejo — dele de que ela fosse, de alguma forma, humana.
Ele deu mais um passo, depois outro, com cuidado para não demonstrar pressa.
Ele não sabia dizer se o assobio dos outros parou porque os pés rasparam nas folhas caídas e abafavam qualquer ruído. Mas, pelo que parecia, nenhum deles estava
perto o suficiente para atacá-lo.
Mais três passos, depois cinco, em seguida estava correndo de novo e logo viu que ela nunca poderia pegá-lo com aquelas pernas curtas e frágeis.
Depois de uns vinte metros de distância, ele arriscou virar e olhar de novo para ela. Ela ficou lá olhando com aqueles olhos como sóis em miniatura.
Jorge se perguntou o que havia acontecido com seus pais e se ela estava ciente de que havia mudado. Em vez das paixõezinhas por meninos, chicletes, maquiagem e aparelhos
dentários, ela se tornara parte de uma nova cultura, um novo estilo de vida, uma nova meia vida e uma nova não vida.
No mundo dela, não existia mais Hello Kitty.
Ele não podia esperar até compreender, por isso fez a única coisa que podia. Ele continuou o caminho em direção ao cume, esperando não se perder no caminho de volta
para o lugar que ele passou a chamar de lar.
Esperando rever as pessoas que ele conhecia e amava.
CAPÍTULO 15
— Quando o DeVontay vai chegar?
Stephen tirou o boné dos Panthers e limpou o suor da testa. Rachel os mantinha em movimento, colocando a maior distância possível entre eles e os sequelados, mesmo
deixando DeVontay para trás. Rachel tentava não pensar nele — ela não conseguia despertar a fé necessária para imaginá-lo ainda vivo.
Sempre que ela deixava a mente vagar, via-o deitado morto no chão, com um olho fechado e o olho de vidro voltado para os céus. Mas ela não podia demonstrá-lo.
— Ele vai chegar logo. — Ela usava a mochila de Stephen, mesmo com as correias irritando-lhe o pescoço.
— Sim, é só seguir as migalhas de pão — disse o menino.
Rachel sorriu, apesar do clima sombrio. A cada quilômetro, Stephen rasgava uma página de um livro de quadrinhos e colocava sob o limpador de para-brisa de um carro,
tomando cuidado para não olhar para dentro. Ela lembrou que Pete lhe dera uma coleção quase nova de quadrinhos clássicos da Marvel e perguntou-se o que teria acontecido
com Pete depois que o conheceu em Taylorsville. — Você deve estar com pena de rasgar o livro de quadrinhos — sondou ela.
— Nada, tá tudo bem. É só o dos X-Men. Eu ainda tenho o do Homem-Aranha.
— Que bom.
Ele olhou para ela com olheiras sob os olhos. — Podemos descansar?
— Só mais um quilômetro.
Isso poderia muito bem ser seu novo lema, em face de todos os outros mantras e orações que ela tinha apagado do quadro-negro do passado.
Rachel olhou para trás ao longo da rodovia. O sol poente brilhava nos para-choques e para-brisas. O horizonte a leste estava quase sem as névoas das cidades em chamas
e, como eles tinham ido mais para dentro do sopé dos Apalaches, as cidades eram menores e mais espalhadas. Até a quantidade de veículos abandonados caíra bastante,
ainda que o cheiro docemente fecundo de cadáver fosse inescapável.
Logo eles chegariam a Lenoir, a última cidade do mapa antes de subir as montanhas. Rachel escolhera uma rota lateral para desviar-se da rodovia, descobrindo que
a área central estava tão morta quanto a maioria das áreas ao sul, enquanto as multidões se agrupavam nas grandes lojas de departamento especializadas na via principal.
Os policiais locais, bem intencionados ou por pura ganância, viram nas redes de franquia nacionais uma forma de se colocar no mapa, atirando suas identidades concretas
à grande miscelânea da lama americana.
Nada disso importava mais. Ambições e marcas corporativas eram igualmente inúteis.
As cidades mortas hoje estão do jeito que a gente queria.
— Continue andando, gatinho — disse ela com uma falsa alegria, empurrando-o para frente entre os veículos silenciosos. Stephen já não tinha a menor curiosidade sobre
o conteúdo dos veículos. Depois de testemunhar uma infindável variedade de cadáveres em vários estágios de decomposição, sua reação habitual tinha-se tornado um
“eca” sem muita ênfase.
Rachel pegou a mão dele para ajudar a animá-lo e ainda conseguiu dar um sorriso. Com um olhar ansioso para trás para garantir que DeVontay não estava correndo para
alcançá-los, ela o levou ao norte por um longo aclive.
À frente, uma placa de posto de combustíveis apareceu em cima das árvores, marcando uma saída. O posto estava a menos de dois quilômetros de distância e provavelmente
era cercado de outros estabelecimentos e, talvez, um motel. Era uma meta tão razoável quanto qualquer outra.
Ela colocou o braço sobre o peito de Stephen para provocar uma parada súbita.
— Que foi? — perguntou o menino. Ele estava cansado, mal se dava conta do que acontecia em volta. Rachel ficou aliviada porque o calçamento à frente estava coberto
de pedaços podres de corpos. Um torso sem cabeça se projetava do lado do motorista de uma perua com um toco de braço pendurado. O cadáver estava preto de podre,
embora houvesse fios vermelhos de carne saindo das feridas.
— Vem cá, meu bem — disse Rachel, cobrindo os olhos de Stephen e guiando-o para o canteiro central gramado para que um caminhão frigorífico tapasse a visão da carnificina.
Uma vara de porcos cor-de-rosa de desenho animado desfilava ao longo da área de carga do caminhão.
— Eu mudei de ideia — disse ela. — Fica sentadinho aqui e descansa um pouco. Só quero verificar uma coisa.
— Tá bem — disse ele, jogando-se na grama. Ele abriu a mochila e tirou um gibi do Homem-Aranha. Antes de Rachel dar mais de dez passos, ele imergira em um mundo
onde os super-heróis salvam as pessoas e o mal é sempre derrotado.
Rachel tirou um lenço do bolso de trás e segurou-o sobre a boca. Quando ela chegou à perua, olhou o interior. Além do motorista, o carro parecia ter mais um ou dois
ocupantes que devem ter morrido durante o pico da tempestade solar. O banco traseiro estava manchado de uma papa grossa de líquidos e sangue seco. O banco do passageiro
continha três dedos enrolados como minhocas assadas em fogo baixo.
Rachel já tinha visto muita carne podre no Depois, mas aquela decomposição era diferente. Alguém — ou alguma coisa — roera ou rasgara os corpos e espalhara-os por
todo o calçamento. A mutilação era bastante fresca. Ainda havia moscas zumbindo em torno dos rasgos irregulares e vazamentos nos rasgos da pele.
Será que os sequelados ficaram sem diversão e agora se divertem profanando os mortos?
Rachel resistiu ao impulso de verificar o porta-luvas da perua. O odor de podridão no interior do veículo a afastou como um vento senciente. Era improvável que o
carro oferecesse qualquer coisa de útil e ela já transportava mais peso do que gostaria. Telefones celulares, GPS e até armas não melhorariam as chances de alcançar
o complexo do avô no Marco 291.
Enquanto circulou a grade dianteira do caminhão frigorífico, traçou uma rota que pouparia Stephen da visão dos corpos. Havia campos semiplanos abertos nos dois lados
da rodovia. Os pés de milho estavam ocre por causa do outono e as folhas crepitavam com a brisa. Ela teria que inventar uma desculpa para o desvio, talvez dizer
que era para recolher algumas espigas de milho para semear.
Além disso, parece que arrancar orelhas é um passatempo bem frequente por aqui.
Quando passou pelo acostamento antes do canteiro central, as costelas se apertaram e ela esqueceu todos os planos.
Stephen estava ao lado de sua mochila aberta e o conteúdo se espalhara ao redor dos pés dele, inclusive os gibis, que estavam pela grama. Ele estendeu o braço em
direção a um pastor-alemão sarnento. A cauda do cão estava enrolada para baixo, orelhas em pé em uma postura cautelosa. O focinho úmido cheirou a mão de Stephen.
O menino estava alimentando o cão com carne seca. Ele desenvolvera um gosto por esses petiscos de carne para imitar DeVontay, seu novo herói. Embora Rachel o alimentasse
com comidas mais saudáveis, ela permitia esse pequeno vício e deixava-o estocar sempre que saqueavam lojas de conveniência. Agora parecia que a decisão estava voltando
para mordê-la no traseiro.
Ou, mais precisamente, no traseiro de Stephen.
— Aqui, totó — disse Stephen em um tom calmo e amigável. Ele acenou com a carne seca.
O cão deu um passo hesitante à frente. O animal estava magro, mas não parecia estar faminto, e de repente Rachel reconheceu sua fonte de alimento. Ela esperou que
o cão soubesse diferenciar entre presa viva e carniça — e que a última opção era a preferida do animal.
— Tudo bem, totó — disse Stephen. — É gostoso.
A cauda do cão deu um pequeno aceno, quase desolado. As profundezas da solidão e perda de Stephen caíram sobre Rachel como uma mortalha. Ela queria ser a mãe, a
irmã e todos os amigos dele para dar-lhe amor suficiente para substituir tudo o que ele tinha antes, mas, na melhor das hipóteses, ela era uma ressonância oca, talvez
até mesmo apenas um lembrete cruel das pessoas que nunca poderia ser.
Você não é o centro de tudo.
Se você sabe mesmo o que é sacrifício — o nobre conselheiro escolar, o salvador dos ignorados, o sofredor da culpa do sobrevivente —, então faça o seu trabalho.
Seja o que você nasceu para ser e o que moldou para si mesma.
O focinho do cachorro estava a centímetros do petisco de carne. Stephen esboçava um sorriso bobo, alheio a tudo exceto ao cão. A cauda do animal se levantou e abanou
no ar algumas vezes.
— Isso, cachorrinho!
Mais dois cães saíram de trás de um hatch preto. Eles estavam abaixados, quase furtivos, enquanto se aproximavam de Stephen. Um deles era um golden retriever desgrenhado,
com grumos de pelo imundos pendurados do abdômen. Era uma raça conhecida pela alegria e pelo entusiasmo, mas aquele espécime específico projetava uma ameaça sombria.
O segundo cão era menor, um misto de beagle malhado, mas parecia ser mais selvagem e o mais resistente da dupla.
Rachel, no entanto, permaneceu imóvel, esperando o pastor alemão pegar o lanchinho e recuar, ou que Stephen largasse a carne seca e recuasse.
Em vez disso, o golden retriever rosnou. Era um som líquido, sibilando, terrível e ainda assustadoramente familiar.
Stephen e o pastor se viraram para os dois cães e Rachel reagiu.
— Stephen — disse ela com toda a calma que conseguiu, embora, por dentro, estivesse à beira do pânico.
No momento, todos os oito olhos se voltaram para ela, que congelou como se um sincelo fincasse-lhe o coração.
Os olhos dos cães todos brilhavam com o mesmo brilho doente, como se um milhão de sóis insanos radiassem dentro do crânio dos bichos.
Cães sequelados.
Stephen estava confuso, como se ele tivesse sido pego fazendo algo impertinente. — Eu… Eu só queria fazer carinho nele.
— Tudo bem. — Rachel deu um passo em direção a eles e o pastor abaixou quase agachando-se, com as orelhas viradas para trás. Ele soltou um silvo agudo.
— Cachorrinho bonzinho — disse ela, sentindo-se estúpida. Se o cão a atacasse, ela não teria tempo de pegar a pistola na mochila, e sentiria raiva de si mesma pelo
lapso de raciocínio.
Ela ficara excessivamente confiante, e a arrogância geralmente matava, especialmente no Depois.
O retriever e o beagle começaram a assobiar em uma paródia bizarra de uivos de um concerto à meia-noite no canil.
— Larga a carne — ordenou ela a Stephen, dando mais um passo à frente. O pastor travou na posição, mas os outros dois cães se arrastaram alguns passos furtivos à
frente. Rachel estava a uns sete metros de Stephen, mas os cães certamente se moveriam mais rápido do que ela. E eles estavam a uns quinze metros de distância.
Stephen olhou para o pastor com lágrimas escorrendo pelas bochechas rechonchudas. — Desculpa, totó.
— Não se desculpe — disse Rachel. — É que, a princípio, nem todos são amigos.
Isso soava estúpido até mesmo para ela, mas as aulas de psicologia e a formação de conselheira a levou a besuntar cada situação com uma grossa camada de mel. O mundo
de fantasia dos conselheiros era cheio de ursinhos de goma dançando, arco-íris e almofadas macias. Era um mundo certamente tão absurdo quanto aquele novo mundo em
que todos viviam, onde lobo comia lobo e cães comiam homens e, até, homens comiam homens.
É verdade: estranho é todo mundo que a gente ainda não conheceu. Aula de Bobagens Interdisciplinares I.
Rachel deu mais um passo e o pastor-alemão mostrou os dentes. Os outros dois cães deram mais um passo com as unhas cravadas no asfalto.
Stephen abriu a mão e deixou a carne seca cair no chão, mas o pastor sequer olhou para o petisco.
— Stephen, presta atenção — disse ela. — Você vai fazer o seguinte: corre em volta do caminhão; você vai ver uma perua de porta aberta. Você vai entrar no carro,
fechar a porta e não vai abrir até eu dizer que está tudo bem.
— Eu só queria fazer carinho nele — lamentou.
— Você não fez nada de errado.
— Desculpa. — Ele estava à beira de choramingar e seria algo que prejudicaria os dois.
— Você não fez nada de errado. Esses cães não estão acostumados a ficar perto de gente.
Se a excêntrica dona Federov da Greenwood Academy me visse, ela pensaria duas vezes antes de negar uma recomendação do meu currículo. A vingança é doce, vadia.
E também a carne humana para os cães sequelados.
— E os meus gibis e as minhas coisas? — perguntou Stephen, recuperando-se um pouco.
— Vamos voltar e pegar daqui a pouco, depois que os cãezinhos voltarem pra casa. — Ela deu mais um passo à frente e o retriever e o beagle deram mais quatro passos.
Eles estavam mais próximos de Stephen do que ela, e ela não se atreveu a atacá-los.
Tentou se lembrar do que conhecia acerca do comportamento animal. O olfato era o sentido mais forte dos cães e dizia-se que eles se relacionavam com o mundo em um
espectro que as pessoas dificilmente compreenderiam. Para eles, bifes na grelha eram o equivalente a uma sinfonia majestosa. Uma carne seca era como uma pintura
de Monet e bacon era como a carícia erótica de uma luva de veludo na nuca.
Mas o medo também tinha um cheiro penetrante, quebradiço e metálico que significava dor ou morte — ou quiçá uma presa fácil.
— Stephen, escuta — disse ela, dando passos lentos e firmes à frente enquanto o silvo se intensificava. — Quando eu contar até três, corre para a perua como eu te
disse.
Todos os três cães levantaram a cabeça antecipando a abordagem dela e os dentes amarelos deles brilhavam à luz moribunda do ocaso.
— Corre! — gritou ela, indo em direção aos cães de braços abertos. Ela assistira a um documentário na TV sobre animais que pareciam ser maiores para assustar os
predadores. Nesse caso, ela queria parecer uma suindara gigante do inferno.
Ela soltou o próprio chiado da garganta, liberando seu medo crescente, e a boca de Stephen abriu de surpresa. Em seguida, ele obedeceu e saiu do transe, acionando
as perninhas enquanto corria em torno do caminhão.
Como ela suspeitava, seu pequeno show de horrores roubou a atenção dos cães e eles sequer viram o menino se retirar. Rachel ficou impressionada com o barulho que
fez, liberando toda a raiva, a frustração e o desespero escondidos em um poço negro dentro d’alma.
Seu grito angustiado se espalhou pela rodovia e reverberou para fora das cidades, a voz perdida da raça humana esquecida que abafou o silvo dos cães mutantes.
Por um momento, ela até se esqueceu do medo.
Em seguida, o pastor-alemão investiu contra ela.
E foi então que ela se lembrou.
CAPÍTULO 16
Campbell não acreditava no que via.
Wilma o levara para dentro da floresta e de repente eles saíam à beira de um prado que explodia de marias-sem-vergonha laranja, ásteres amarelos e margaridas. A
cerca de arame farpado delimitava a cena pastoral e, ao fundo da encosta, havia um celeiro vermelho. Dois sulcos marrons rasgavam o morro em frente, levando a uma
fazenda branca de dois andares com venezianas pretas nas janelas e colunas altas na varanda. Um velho caminhão estava estacionado debaixo de uma garagem aberta com
teto de zinco ao lado de um trator e vários acessórios, como uma grade de discos, um arado e uma enfardadeira de feno.
Era como um cartão postal de uma época passada, nostalgia de um modo de vida que nunca existiu.
— Se não fosse o fim do mundo, eu acharia que morri e fui pro céu — confessou ele.
Wilma se inclinou e encostou em um mourão de alfarrobeira para recuperar o fôlego. — As vacas morreram todas, senão elas tinham comido toda a grama.
— A que distância estamos da estrada?
— Uns cinco quilômetros. Aquela estrada de terra passa por mais seis fazendas iguais a esta. Esta daqui fica no fim da estrada.
Campbell não tinha certeza de como fazer a próxima pergunta. A mulher não tinha mostrado muita preocupação com os sequelados enquanto eles passavam pela floresta.
Campbell ficara em alerta máximo em relação aos dois, mas ele não viu muita coisa além de um gaio-azul.
— Parece uma casa sólida. Por que você não mora aqui em vez de…
— … ficar naquele trailer de acampamento cheio de tralha? — Ela cuspiu em um talo de caruru-de-cacho e a gota de saliva coagulada se agarrou a um grumo de frutinhas
azuladas.
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Eu conheço o seu tipo. Esses caras arrogantes que vão pra faculdade, leem New York Times e pensam que sabem o que é bom pra todo mundo. Se não tivesse acontecido
essa zona toda, você seria advogado, depois se elegeria pro conselho da cidade pra estabelecer áreas e regras pra todo mundo seguir. Você só quer que todo mundo
seja igualzinho a você.
— D-desculpe por tudo isso. É que… ninguém sabe mais como devemos viver.
— E isso te irrita demais, né?
— Tudo isso me fez perceber que a gente é frágil demais — filosofou ele, sabendo que essas discussões eram tão inúteis quanto antes. — Todo mundo que nós amávamos,
as estruturas em que acreditávamos, todo o investimento no futuro.
— E a gente só precisa de um pouco de esperteza. — Ela arrancou um dos talos folhosos do caruru-de-cacho. — Você sabia que dá pra comer isso? É cheio de vitamina.
Mas, se comer as frutinhas, vai cair morto. Todo mundo sabia disso, mas acabou se esquecendo quando tinha que confiar nas “estruturas” em vez de confiar em si mesmo.
Ela lhe deu uma folha e ele a cheirou desconfiado. Ela riu. — No outono, ela é amarga que nem o inferno. É gostoso comer na primavera, quando a folha tá novinha
e macia. O mesmo com os dentes-de-leão e os alhos-selvagens. É bom pra limpar depois do inverno.
Campbell se perguntou se eles seriam capazes de voltar para o trailer antes de escurecer. Ele não gostava de ficar desarmado com a noite caindo e ponderou se não
tinha sido um erro confiar na Wilma. Talvez a sua impressão inicial de que ela fosse deficiente mental estivesse correta.
— Não devíamos estar voltando? — perguntou ele.
— Eu achei que você queria ver eles.
— Onde?
Wilma acenou em direção à casa.
— Estão lá dentro?
— Lá atrás.
—Então vamos andar em torno da cerca e ficar olhando da floresta?
— Não. Nós vamos andando até eles.
As suspeitas dele estavam certas. Ela era louca. — Nós não temos nenhuma arma.
Ela colocou um pé sobre o fio inferior de arame farpado e puxou o fio do meio, passando pelo espaço entre os dois com toda a graça de uma cabra inchada. Do outro
lado da cerca, ela disse: — Fica à vontade — e começou a andar pela campina.
Ele olhou de novo para a floresta, onde as sombras crescentes pareciam ainda mais ameaçadoras. Em seguida, pulou a cerca e correu atrás dela.
Quando ele a alcançou, ela disse: — Pra qualquer coisa que acontecer, fica calmo e não mostra que tá com medo.
— Como é que eu vou conseguir? Os sequelados são medonhos.
— É o único jeito. É por isso que as armas não servem de nada. Tem mais deles do que nós, se é que você não notou.
Campbell refletiu sobre a sua experiência das últimas semanas. Ele se agarrou à ilusão de que os humanos ainda estavam no topo da cadeia alimentar, que era apenas
uma questão de tempo até eles se organizarem e restaurarem essas estruturas. Mas e se fosse o fim dos humanos? E se eles eram os neandertais dando lugar ao Homo
sapiens ou os dinossauros abrindo espaço para os mamíferos? Ele não gostava dessa linha de pensamento, mas, desde as tempestades solares, encontrou muito mais sequelados
que sobreviventes.
— Somos mais espertos do que eles — disse Campbell com uma raiva provocadora.
— Continua pensando assim que você já é um presunto ambulante.
Eles passaram pela campina em direção à casa. O mato estava na altura do joelho e Campbell tentou não pensar em cobras e roedores zanzando pelo chão. Ao se aproximarem
da casa, Wilma fez um sinal para andar mais devagar e ficar quieto.
Não tenha medo. Não tenha medo.
O mantra repetitivo surtiu pouco efeito, mas ele teve que admitir: também estava curioso. Se os sequelados de fato se reuniram naquela fazenda, ele teria sua primeira
oportunidade de observar o seu comportamento sem fugir deles nem combatê-los.
Ao passarem pelo celeiro, Campbell notou que os portões altos estavam escancarados. A escuridão no interior poderia abrigar sequelados sanguinários. Em parte, ele
esperava que um grupo deles saísse correndo do celeiro e o desmembrasse, mas, assim que passaram por ele e se encaminharam à encosta em direção à casa, pularam outra
cerca até o quintal.
Campbell decidiu que, se os sequelados atacassem, ele fugiria pela estrada de terra. No entanto, não seria capaz de abandonar Wilma, mesmo ela sendo provavelmente
mais capaz do que ele para afastar os assassinos cruéis.
Parece que você está planejando ter medo.
Campbell não poderia deixar de se perguntar se eles estavam assistindo das janelas. Mas ele manteve o ritmo com Wilma, que caminhava com um andar determinado como
se tivesse feito esse caminho mais de uma vez. Logo eles chegaram à frente dos degraus da varanda.
— Vamos entrar? — perguntou Campbell.
Wilma sorriu com os olhos brilhando de malícia. — Não vamos. Já estamos dentro.
Foi só então que Campbell olhou a campina. Contra as sombras inclinadas da floresta circundante, uma centena de pequenas faíscas brilharam. Três deles se aproximaram
da entrada de veículos e outras silhuetas se escondiam entre os acessórios agrícolas.
Essa percepção o pegou como um soco no estômago. Eles estavam cercados de sequelados.
CAPÍTULO 17
O pastor-alemão golpeou Rachel bem no alto e a derrubou de costas no chão.
Ela estava vagamente consciente dos outros dois cães que se aproximavam, mas o mundo dela se restringiu à boca fétida e babona que a mordia.
Ela meteu o antebraço no pescoço do cão e o empurrou. As presas amarelas batiam a centímetros do seu rosto e a língua cor-de-rosa feroz pendia da abertura negra
da garganta.
De perto, os olhos brilhantes eram o fogo do inferno. Era fácil pensar no cão como uma criatura demoníaca saída de uma terra mítica, mas o hálito úmido e fétido
era muito real na pele dela.
Ela rolou e algo em sua mochila a cutucava na base da coluna. Ela pensou na pistola, sabia que não havia tempo, e continuou rolando enquanto as patas do cão arranhavam-lhe
dolorosamente os seios. Ela conseguiu ficar de joelhos e, enquanto o pastor-alemão caía, o beagle se atirou à cintura dela.
Enquanto rolava, a mochila deslizou de um dos ombros e ela sacudiu para fazê-la cair até o braço. Rachel deu um soco no único lugar macio que ela poderia encontrar:
o focinho viscoso e trêmulo do cão. O golpe acertou em cheio e o cão latiu, recuando e uivando de surpresa.
Os cães a rodeavam, mantendo-se fora do alcance, talvez por a considerarem mais desafiadora do que as presas habituais.
Quantas pessoas eles abateram? Ou será esta a primeira vez que provam sangue quente?
Ela soltou a mochila dos ombros e segurou-a por uma das tiras. Balançou-a diante de si, pois seus sete quilos de peso eram como uma marreta. Ela rapidamente se cansaria,
mas, por ora, a ameaça manteve os cães afastados.
O retriever fez tentativas de pegá-la nos tornozelos e ela o atingiu com a mochila nas costelas. Ele gritou e saiu mancando.
— É isso mesmo, Cujo, vou te mandar de volta pro Maine. — O golpe não foi muito efetivo e o ataque do pastor-alemão a deixou sem fôlego, mas pelo menos ela ficou
de pé.
É bom ter quatro pernas, mas duas é melhor.
Stephen conseguiu dar a volta no caminhão em segurança e, em seguida, Rachel começou a recuar para longe deles, usando o caminhão como uma parede para que eles não
a cercassem. Ela balançou a mochila para o beagle quando ele rosnou para ela e, quando ele recuou, ela conseguiu chegar a uma posição perto do pneu dianteiro do
caminhão. Ela pensou em subir no degrau lateral do motorista e tentar abrir a porta da cabine, mas, se estivesse trancada, as costas das pernas e as nádegas estariam
expostas ao ataque e ela provavelmente não teria outra chance.
Os cachorros latiam, sibilavam e uivavam em uma mistura nauseante, como coiotes presos em uma cerca elétrica. Com os cães indo para frente e para trás em busca de
uma abertura, Rachel encontrou o zíper da mochila e abriu-o sem tirar os olhos dos cães. Os olhos brilhantes deles eram ao mesmo tempo fascinantes e repulsivos.
Se o medo os encorajava a atacar, talvez a arrogância os afastasse. Ela, então, gritou para eles, tentando incorporar clichês dos durões dos filmes de gângster,
já que os cães não dariam a mínima para as falas.
— Você está olhando pra mim? Tá querendo isto aqui? Você não aguenta a verdade. — O discurso era tolo, mas ela se encorajou e quase não prestou atenção ao fluxo
de inocuidades que proferiu. — Vou acabar com a sua perna e vencer você. Quer no estilo cachorrinho?
As palavras dela, ou talvez a atuação vigorosa, fizeram com que os cães recuassem ainda mais. Ela remexeu freneticamente a mochila procurando o aço frio da pistola.
Seu coração se afundou quando os dedos saíram vazios.
Droga. Devo ter largado na última parada.
Como se sentissem o pânico, os cães se aproximaram de novo, silvo-latindo como vieram.
— Rachel! — gritou Stephen do outro lado do caminhão.
— Eu disse para você entrar no carro e fechar a porta.
— Não dá. Tem gente morta aqui.
— É só… é só fingir que elas estão dormindo. — Tá bem. Dormindo para sempre, né? Um dia perfeitamente normal no Depois.
— Você tá vindo?
O retriever rosnou mostrando os dentes. O pastor-alemão circulou em direção à frente do caminhão, como se reagisse à voz de Stephen.
— Já vou — respondeu Rachel segurando a alça da mochila novamente, grata pelas latas de comida que deram peso à arma improvisada. — Mas primeiro você tem que estar
seguro.
— Eles fedem — gritou o menino. — Fedem muito.
— Eu sei, querido. Mas faz isso por mim. Fecha a porta e eu logo estou aí.
— Promete?
— Prometo. — Assim como eu prometi a Chelsea sempre cuidar dela. Até a água ficar entre nós.
Pensar em Chelsea renovou sua determinação. Apesar de pensamentos suicidas ocasionais, ela realmente não queria morrer, especialmente pelas presas e patas de feras
imundas, abatida como um animal. Rachel não tinha como saber se Chelsea teria sobrevivido às tempestades solares ou se ela teria se transformado em uma sequelada.
Mas, enquanto Rachel estivesse viva, viveria para ambos.
Enquanto fosse humana, lutaria como um ser humano, o único animal inteligente o bastante para estar ciente da própria mortalidade e capaz de medir a própria vontade
de sobreviver.
Eu sou uma sobrevivente.
— Fecha a porta — gritou ela, observando os cães. — Agora.
A porta se fechou de repente, encerrando um gemido de desespero ou talvez um soluço de Stephen. Livre para agir, Rachel se virou e correu ao redor da frente do caminhão
com a intenção de subir no para-choque e escalar o capô. Quando ela estava calculando o primeiro ponto de apoio, percebeu que o para-choque estava ligado ao compartimento
do motor por um cromado brilhante que se estendia por alguns centímetros.
Se ela tivesse alguns segundos, conseguiria botar as mãos nos raios da grade e escalar, mas as patas já estavam a galope em seu encalço.
Ela não tinha alguns segundos.
Ela fez um círculo repentino, balançando a mochila e galeando-a em direção ao cão mais próximo — o pastor-alemão. O cão desviou e quase evitou o golpe, mas a mochila
resvalou no flanco traseiro dele. Algo estalou e o cão caiu, uivando e sibilando, mas ainda esgueirando-se em direção a ela, cavando o chão com as patas dianteiras.
O retriever e beagle não esmoreceram e Rachel correu para a perua com o coração batendo entre as costelas como um pugilista profissional treinando em um saco de
pancadas.
A perua estava a apenas vinte metros de distância e Stephen pressionava a testa contra a janela do lado do motorista, com a respiração embaçando o vidro. Pelo menos
ele obedeceu — ponto para a escola de aconselhamento.
Rachel escorregou e uma onda de mau cheiro podre soprou sobre ela, que percebeu que tinha pisado em um dos cadáveres. Como perdeu o impulso, um dos cães — o beagle,
suspeitou ela — acertou mais embaixo nela para cravar os dentes em sua panturrilha direita.
Ela o chutou e ouviu a calça rasgar; uma corrente de dor ácida e elétrica gritou nas veias.
O cão caiu longe, mas, em seguida, o retriever a pegou, estalando os dentes na barra da blusa e puxando com tanta força que os dois primeiros botões pularam.
Está tentando me puxar para baixo e me pegar na garganta.
Ela chutou para fora com a perna sã, quase perdendo o equilíbrio com a agonia da ferida da mordida que urrava em uma onda vermelha maciça. A ponta de borracha do
tênis entrou direto nas costelas do retriever, que não a soltou. Suas quatro patas se enterraram no chão enquanto ele a puxava para trás, rosnando e grunhindo quase
com um gargarejo.
O beagle saltou na perna machucada e ela não conseguiu se esquivar. No entanto, o ataque foi apressado e, em vez de atingir o alvo, os dentes afiados arranharam-lhe
a rótula, rasgando pano e carne com a mesma facilidade.
Enquanto acontecia, os olhos do cão sequelado irradiavam cada vez mais intensamente, como se o cheiro de sangue e fraqueza ampliassem seu terrível apetite.
Stephen gritou de dentro do carro, mas por sorte o som era abafado. Ela tinha medo de que ele abrisse a porta, pois teria o dobro de trabalho para protegê-lo enquanto
salvava a própria vida.
Em seguida, o retriever a puxou para trás e Rachel caiu sobre as mãos e os joelhos sobre a carne profanada das refeições anteriores dos cães.
E Deus lançou-lhe um osso.
Literalmente.
A mão dela arranhou o solo e chegou a um objeto denso e suave. Ela o agarrou pelo diâmetro. Era um fêmur humano, todo lambido, quase limpo, com um grande nó de cartilagem
em uma das extremidades, onde a junta esférica ainda estava presa.
Como um louco filisteu matando Sansão com a queixada de um jumento, ela oscilou o osso como uma maça e golpeou o retriever bem entre os olhos estranhos e brilhantes.
O crânio do animal se afundou e ele caiu como uma pedra, arrancando-lhe uma grande porção da blusa quando tombou.
O beagle vociferou ao perceber que subestimara a presa. O pastor-alemão se contorceu para frente, arrastando os quadris quebrados, mas já não representava nenhuma
ameaça. Ele choramingou pelo focinho, soprando bolhas de muco sanguinolento, mas ela não sentiu nenhuma pena.
Ela acenou com o fêmur para o beagle. — Quer brincar de pegar?
A papada flácida do beagle se enrugou e os incisivos apareceram sobre as dobras pretas dos lábios. As manchas dourado-alaranjadas dos olhos dele ficaram mais escuras,
como se a sede de sangue latente tivesse passado.
— É, foi o que eu pensei — disse ela, mancando em direção à perua e preparando-se para outra estocada do beagle. Em vez disso, ele trotou e cheirou o pastor-alemão,
depois lambeu-lhe o rosto com uma língua longa e molhada.
Quando ela chegou à perua, os olhos de Stephen estavam arregalados com o choque. Ele abriu a porta para ela e o mau cheiro a atingiu com força renovada.
— Tem razão — disse ela — aqui fede mesmo.
— Você… você…
— Passe pra lá — pediu-lhe ela. Ele foi para o banco do passageiro, empurrando as partes do corpo mutilado no chão. A morte era onipresente no Depois, mas geralmente
eles conseguiam mantê-la fora de vista.
Ele apontou e ela pensou que ele lhe mostrava onde tinha sido mordida. Com a adrenalina diminuindo o efeito, a dor começou a cravar os próprios dentes e uma perna
da calça jeans estava molhada de sangue.
— Sim, acho melhor eu cuidar disso — disse ela. Ela começou a desabotoar o que restou da blusa de algodão, planejando rasgá-la em tiras para fazer torniquete e ataduras.
— Eles rasgaram sua blusa bonita — disse Stephen.
— É, só que agora é a minha vez de rasgá-la.
— Toma — disse ele, despindo-se da própria camiseta sobre a cabeça. Ela não sabia dizer se ele estava tentando ajudar ou se estava com vergonha de vê-la de sutiã.
A escuridão estava aumentando e ela teria que tirar a calça jeans para cuidar da ferida, mas, com as endorfinas perdendo o efeito no corpo, ela se sentia como que
carregada por uma fortíssima parede d’água.
— Obrigado — sussurrou Stephen, pegando-lhe a mão.
Ela retribuiu o gesto. — De nada. Só me prometa que nunca mais vai pedir pra fazer carinho em animal nenhum.
— Nem um peixinho — completou ele.
O beagle ainda estava lambendo o pastor moribundo quando ela caiu em um sono agitado.
CAPÍTULO 18
Jorge chegou ao complexo com o sol já abaixo do horizonte a oeste e lançando sombras violáceas pelo céu.
Ele quase se perdera por fazer uma curva errada em uma das trilhas e também passou bem fora do caminho para evitar soldados armados que pudessem estar de patrulha.
O tiroteio era esporádico e distante e ele tacitamente amaldiçoou Franklin por atiçar um ninho de vespas. Os dois poderiam ter facilmente penetrado a floresta e
voltado sem um confronto.
No momento, entretanto, os soldados provavelmente estavam vasculhando a floresta à procura deles, presumindo que eles não tenham matado Franklin e que o tenham considerado
um lobo solitário.
Ele chegou a ver movimento entre as árvores, mas não sabia dizer se era um animal selvagem ou um sequelado. Ele se escondeu atrás de uma árvore e ali permaneceu
por 15 minutos antes de continuar o seu caminho. No momento em que encontrou a trilha bem disfarçada que levava ao portão frontal de Wheelerville, ele estava arranhado,
sedento e esgotado.
— Rosa! — chamou ele de perto do portão.
Não houve resposta. Ele não estava alarmado pela ausência dela porque mesmo a pessoa mais incansável não seria capaz de ficar de vigília em uma plataforma elevada
por um dia inteiro. Ela também fazia a vigilância. Marina era muito jovem para a responsabilidade e Cathy estava ocupada com o bebê.
Em vez de abordar diretamente o portão, Jorge passou por entre as árvores do caminho que Franklin lhe ensinara para não usar um caminho direto que outros pudessem
descobrir. Quando ele chegou à cerca, com trepadeiras e arbustos para ocultar o interior, abriu por entre as folhas até ver o interior do complexo. Não havia ninguém
à vista e o local estava em silêncio, exceto pelo balido pouco sonoro de uma cabra.
— Rosa! — chamou ele novamente. Ela não podia ouvi-lo se estivesse dentro da cabine. Ele não queria correr o risco de levantar a voz, portanto decidiu tentar abrir
o portão.
Depois de voltar para a floresta e reaproximar-se, encontrou o portão trancado. Apesar do cansaço, ele sorriu com satisfação.
Rosa seguiu as nossas instruções. Pelo menos um de nós tem algum juízo.
Jorge enfiou a mão na cavidade de um tronco partido e encontrou o conector plástico que desativava o sistema de alarme movido a energia solar de Franklin. Se ele
tivesse que escalar o muro, pelo menos a probabilidade de ser baleado pela esposa seria menor.
Ele colocou as costas contra uma árvore de bordo fina e estendeu as pernas contra a cerca de arame, passando rapidamente até chegar a um dos ramos mais baixos. Em
seguida, subiu com facilidade. Quando ele identificara para Franklin a fraqueza das defesas, o velho lhe respondeu: “Os sequelados são burros demais para subir e
o governo simplesmente tacaria fogo em tudo.”
Quando Jorge estava no topo da cerca, no nível dos olhos com a plataforma de vigia, ele examinou o complexo. Nenhum sinal da família. As cabras pastavam no cercado
e as galinhas estavam no ninho; afora isso, Wheelerville estava estranhamente calmo.
A porta da cabine estava fechada, por isso Jorge não se incomodou em chamar novamente. Ele se apoiou no arame coberto de trepadeiras que cobriam a cerca e, em seguida,
girou sobre ele. A perna da calça agarrou e ele quase caiu no chão.
Em seguida, desceu da cerca e foi até a cabine. Ele chamou pela esposa e pela filha para que elas não se assustassem, mas não obteve resposta. Chegou até a bater
na porta da cabine. Nenhuma resposta. Ele tentou abrir a maçaneta, mas a porta da cabine também estava bloqueada, e as entranhas de Jorge se afundaram como se estivessem
cheias de lama.
Em pânico, puxou a maçaneta e esmurrou a porta, imaginando corpos dilacerados, órgãos espalhados pelo chão e sangue respingado pelas tábuas de pinho bruto das paredes.
A porta não se mexeu. As únicas janelas eram altas e consistiam em placas de vidro que não ofereciam espaço suficiente para ele entrar. A cabine fora projetada tanto
para a defesa quanto para habitação.
Jorge correu até o galpão e pegou um machado. Bateu a lâmina na maçaneta da porta e, em seguida, rachou a moldura de madeira até que a porta se abriu com um rangido.
De machado na mão, adentrou a cabine escura. As camas estavam vazias.
A mochila de Rosa e o bornal de Marina estavam pendurados ao lado da porta com a jaqueta dela. O livro de colorir dela estava aberto sobre a mesa, com os lápis de
cera espalhados pelas páginas. O suprimento de comida parecia estar intacto e o cobertor do bebê de Cathy estava sobre a cama improvisada no chão. Ele não podia
imaginar a mulher deixando-o para trás.
Mas como eles conseguiram passar e deixar duas portas trancadas? E por que eles sairiam?
Era possível trancar a porta da cabine por fora, mas só Franklin tinha a chave. O portão, no entanto, só podia ser trancado por dentro porque ele tinha uma barra
de travamento de aço que deslizava por uma canaleta para reforçar a resistência do portão.
O falecido patrão, o Sr. Wilcox, uma vez foi pescar no litoral da Carolina do Norte e, ao voltar, contou aos peões sobre a “Colônia Perdida”, um assentamento inglês
que desaparecera sem deixar vestígios séculos antes. O Sr. Wilcox acreditava que os colonos foram arrastados e desmembrados por selvagens, mas Jorge sempre ficou
fascinado com a ideia de uma comunidade de pessoas simplesmente desaparecer.
O Sr. Wilcox disse que a única pista deixada para trás era uma palavra esculpida em uma árvore, mas ele dizia que não se lembrava da palavra e que certamente não
era nenhuma palavra em inglês. — Deve ter sido um dos peles-vermelhas que fez isso — concluiu ele, contente com a versão que confirmava sua visão hostil e xenófoba
do mundo.
Talvez Rosa tivesse deixado ali uma pista semelhante. Ele acendeu uma lamparina e investigou a cabine, mas não encontrou nada de anormal. Alguns itens pessoais de
Rosa estavam na mochila e um pote de sopa de legumes estava sobre o fogão a lenha ainda quente. Seu coração afundou quando ele descobriu o rifle encostado no canto.
Onde quer que tivesse ido, estava desarmada.
No entanto, talvez não estivesse indefesa. Ela mostrou sua capacidade de se defender quando afastou os sequelados na fazenda Wilcox. Ali, no entanto, ainda havia
a filha, outra mulher e um bebê para proteger.
Jorge explorou o complexo, que ainda guardava alguns esconderijos. Ele investigou a construção que abrigava as baterias do sistema de energia solar, depois a cavidade
que servia de celeiro subterrâneo, que mal tinha espaço para uma pessoa, muito menos para quatro. Ele até olhou no cabriteiro. As cabras baliam de fome, mas ele
não tinha tempo de dar-lhes nem um pouco de feno. Quando voltou à cabine, já era crepúsculo.
— Marina — sussurrou ele, tocando os lápis de cera. O rosa, sua cor favorita, estava meio desgastado, com um rasgão em uma das extremidades do invólucro. Ela estava
colorindo uma das princesas da Disney, mas ele não sabia se era a Branca de Neve ou a Bela Adormecida. O coração dele doeu de ausência e desamparo.
Em seguida, Jorge notou que o canto da página fora arrancado. Marina era meticulosa com o que fazia, quase obsessiva, e ele admirava sua capacidade de se concentrar
em tantos detalhes enquanto o mundo desabava ao redor dela. Ela nunca danificaria uma página. Imediatamente ele começou a olhar ao redor do pedaço de papel, esperando
encontrar uma mensagem secreta, enquanto se perguntava que tipo de situação mereceria tal mensagem.
Ele a achou escondida ao lado do rádio de ondas curtas de Franklin. As três palavras estavam rabiscadas com lápis de cera azul e a última letra estava interrompida
como se Marina não tivesse tido tempo de terminar:
“Ele é louco”.
CAPÍTULO 19
Venham, desgraçados de olho esbugalhado.
Franklin Wheeler manteve a posição nos rododendros, esperando um dos sequelados apontar por detrás de uma árvore e ganhar um tiro que o mandaria de volta à Idade
da Pedra. Ele pegou a espingarda que o covarde Jorge deixou cair. Ele ficou desapontado, mas não muito surpreso, afinal o mexicano era imigrante ilegal e não tinha
nenhum patriotismo.
O último tiro de Franklin tinha sido a uma hora atrás e ele tinha certeza de que livraria o mundo de mais um sequelado. O alvo caíra, mas rolou para um lado que
ele não conseguia ver e não era possível dizer se tinha morrido. Ele, no entanto, atiraria de novo só para se sentir melhor.
Os soldados que subiram o cume oposto também pararam de atirar. Talvez eles tivessem percebido que Franklin não era um dos coleguinhas.
Vocês não vão tomar a minha montanha de graça. Eu vou lutar por ela.
Mas, com a escuridão aproximando-se, ele sabia que estaria em desvantagem, mesmo com uma visão dominante da trilha. Os sequelados poderiam se esgueirar até ele e,
se os soldados fossem bem treinados — e não os desmiolados habituais do governo —, ele teria dificuldade em rechaçá-los se atacassem em uma unidade organizada.
Ele morreria feliz pela causa, mas não queria morrer sem motivo. Ele ainda alimentava a esperança de que um dia Rachel chegaria pela floresta e todo o planejamento
e a perseverança teriam valido a pena.
Eu morreria por mim, mas viveria por você, Rachel, onde quer que esteja.
Franklin abriu caminho para fora do mato, carregando sua espingarda e a de Jorge pendurada nas costas. Em vez de subir a colina em ângulo, como fizera Jorge, Franklin
traçou uma linha reta até o cume, volteando entre as nogueiras, os bordos e os carvalhos escuros e austeros. Os grilos já cricrilavam uma canção mais velha que o
tempo, antes de os homens andarem pela floresta, um tempo antes de sua zombaria.
Franklin não estava preocupado em perder-se no escuro porque aquela aurora desgarrada logo iluminaria o céu como uma festa de Halloween hippie. No entanto, ele poderia
passar por um sequelado no escuro e não seria capaz de dar nele um tiro certeiro antes de o monstro sibilar e alertar os outros.
Enquanto caminhava com as pernas doendo de tanto esforço, pensou em como lidaria com a traição de Jorge. Ele poderia dar ao homem uma segunda chance — afinal, Jorge
trabalhara arduamente no complexo, cortando lenha, cuidando da horta e consertando as cercas. O mundo novo precisaria de homens bons como ele. Não que Franklin quisesse
parceiros dispostos a reproduzir, afinal já fazia tantos anos que ele estava a serviço da causa que não tinha certeza se estava preparado para a função.
Mas Franklin teria que estabelecer a lei antes de tudo, até da família. Todos tinham que saber que não se tratava de um chá da tarde meia-boca. O futuro da raça
humana estava em jogo. Se Wheelerville fosse o último bastião da liberdade, seus ocupantes teriam que recorrer aos princípios valiosos de senso comum e de orientação
e à capacidade de confiar uns nos outros para fazer o que era certo.
Todas as qualidades que a civilização humana do início do século XXI trocara pela ganância, pela apatia e pela gratificação instantânea.
Não me admira que tudo isso tenha trazido junto o Fim dos Tempos. Sinal de que estávamos bem atrasados.
Mesmo assim, quem imaginaria uma invasão de sequelados? Sempre imaginei que Deus tinha um senso de humor danado, mas…
O golpe o atingiu súbita e fortemente como um saco de pedras molhadas caindo do céu.
Franklin se dobrou sob o peso e a espingarda voou dos braços dele e deslizou pelas folhas. O ombro esquerdo absorveu grande parte do impacto, entorpecendo-lhe o
braço. O rosto ficou atolado no barro úmido e a morrinha ancestral da montanha invadiu-lhe as narinas. Ele lutou para se soltar, mas estava muito fraco e o peso
era demais para ele. As costas sentiam a pressão do fuzil ali dependurado, que provocava uma faixa de dor incandescente.
— Calma aí, velho, não quero fazer nada de ruim com você — disse o homem de pé acima dele.
Franklin deu uma cotovelada para trás com o braço são na esperança de acertar nas costelas do homem. O esforço produziu apenas uma risada. Franklin caiu em sinal
de rendição enquanto pensava em uma maneira de se defender.
— Quem é você? — perguntou ele, chiando na tentativa de recuperar o fôlego. — Você não é… um sequelado, senão já teria me matado de pancadas.
— Sou só um cara que quer sobreviver mais um dia, assim como você. Por isso você vai parar de chutar e de se contorcer, tá certo?
A borda fria e fina de uma lâmina pressionava o pescoço de Franklin. Ele se contorceu mais uma vez e a lâmina o penetrou superficialmente, mas o bastante para dominá-lo.
— Melhor assim — disse o homem.
— Você é um dos soldados. McCrone. O que eles estavam perseguindo.
— Você não é tão idiota quanto parece. Que bom, porque você parece idiota que nem um urubu.
— Não precisa me cortar — disse Franklin. — Podemos ser aliados.
— Não sou aliado de ninguém. O sargento é que não gostou muito disso. — O soldado tirou a faca do pescoço de Franklin. — Agora é hora do urubu ficar quietinho.
O soldado o soltou, pegou a alça da espingarda e tirou-a do pescoço de Franklin. Franklin se sentou com um gemido e esfregou o ombro latejante.
O soldado se agachou e verificou a câmara da espingarda para ver se ainda tinha uma bala. — Trinta-trinta. Você caça bicho por aí?
— Não. Caço os sequelados.
McCrone riu de novo, assobiando por entre os dentes estragados. — Então é você o cara, né? O maluco sobrevivencialista que construiu o complexo.
Franklin manteve o semblante duro como um bloco de gelo. — Não sei do que você está falando.
— Ah, que isso. Não é você que fica tagarelando numa frequência de ondas curtas? Claro, a radiação solar acabou com os satélites de alta tecnologia, mas você não
é o único que sabe construir uma gaiola de Faraday. O sargento só não enviou uma força de ataque porque você não representava nenhuma ameaça pro novo governo.
— Você fala como quem se embriagou do remédio vermelho, azul e branco dos abrigos. Mas, analisando bem, seu novo governo não passa de um bando de baratas se mexendo
de baixo da terra. Eu vivo como um homem livre, de cara pro sol.
McCrone riu novamente, regozijando-se a ponto de tremer o corpo. — Caramba, velho, você tá cheio de ódio no coração, hein!
— Se você tivesse a coragem de me enfrentar em vez de bancar o macaco voador, eu ia te mostrar.
A escuridão estava mais profunda e as sombras cobriam os vincos do rosto amarrado de McCrone. Ele ficou sério. — Eu vi você atirar nos sequelados. Mas você não é
o único matador por aqui. Pra mim tanto faz te deixar caído aqui sangrando pela goela ou chegar no seu paraíso da liberdade.
— E se eu não tiver medo de morrer?
— Nós já estamos mortos. O grande lance é esse, não acha? — McCrone se levantou e olhou a floresta ao redor com a espingarda preparada. — Tipo, você é o Franklin
Wheeler, né?
— Essa droga de governo não pode deixar de se meter na vida de um homem livre — disse Franklin de pé e olhando a espingarda, que estava meio enterrada nas folhas.
McCrone não deve tê-lo visto com a arma na mão e presumiu que a única arma que carregava era a espingarda pendurada nas costas.
— A gente tinha um dossiê completo sobre você. Não dá pra fazer uma instalação militar sem conhecer os vizinhos. Fotos de satélite, e-mails, seus antecedentes criminais.
Como estão as cabras?
— Câmeras de espionagem — disse Franklin. — Seus companheiros devem estar desesperados pra perder tanto tempo assim com gente como eu. O que aconteceu? A China Vermelha
era difícil demais e agora vocês estão incomodando o próprio povo?
— Ei, velho, para com esse mau humor. Eu só tava procurando um emprego, não uma aventura. Agora anda. O pelotão tem equipamento de infravermelho e nós somos alvos
fáceis.
— Achei que eu era um urubu. — Franklin fingiu massagear o joelho dolorido e ficou um passo mais perto da arma.
— Tanto faz. Anda.
— Primeiro, uma coisa.
— Aqui não tem democracia, não, Wheeler. Vai ser o que eu disser.
— Preciso saber o que aconteceu com o seu amigo. O da trilha. Carson, não é?
McCrone olhou para cima através das copas de outono. Além delas, piscavam as primeiras estrelas em meio às cortinas sinuosas da aurora. Logo o dia se transformaria
naquela quase-noite e Franklin não teria nenhuma chance de pegar a espingarda.
Mas talvez não fosse hora de lutar. Talvez fosse melhor deixar o tempo passar até o rebelde ficar bem confiante.
— Nós desertamos juntos. O Carson conhecia um lugar fora da montanha, uma fazenda onde ele conheceu uma menina. O pai dela não queria que ela andasse com homem de
uniforme e botou ele pra correr. Mas eles tinham gado, uma horta, uma tonelada de alimentos enlatados, um monte de coisa. Achamos que ficaríamos abrigados no inverno
e depois veríamos o que fazer.
— Mas o sargento tinha outros planos.
— Alguém nos dedurou. A gente tava indo assim mesmo, mas nos separamos. A única coisa em que consigo pensar é que um sequelado acertou ele, ou então ele caiu e rachou
a cabeça.
— Não foram os sequelados. O estilo deles é diferente. — Franklin deu mais um passo em direção à espingarda. Faltavam quatro. McCrone estava ocupado olhando a mata
abaixo e não notaria.
Pelo menos era o que Franklin achava.
— Já assistiu àquele filme “Coração Valente”, com o Mel Gibson? — perguntou McCrone.
Franklin cerrou os punhos. Ele não queria falar de filmes. Mel Gibson provavelmente estava fedendo em alguma cobertura chique de Los Angeles. — Claro. Todo mundo
assistiu.
— Bem, se você tentar pegar a espingarda, não vai nem ter tempo de gritar “liberdade” antes de eu espalhar suas tripas.
Franklin se arqueou derrotado. McCrone se aproximou e deu-lhe um tapa no ombro dolorido. — Pô, não é pessoal. Eu só preciso de você para me tirar daqui agora que
o Carson morreu.
— Tudo bem. Mas você tem que me dizer sobre o abrigo antes de ir embora.
McCrone apertou os olhos. As sombras e a aurora se misturaram e projetaram misteriosas estrias verdes no rosto. — Você não está em posição de negociar. Mas não seria
nada mau você dar uma amaciada no sargento assim que eu for embora. Seria perfeito atrasar um pouco as ações dele.
— Conte comigo.
McCrone passou por ele e pegou a espingarda de Franklin. — Você sempre carrega duas armas quando vem caçar sequelado?
— Claro que não. Eu costumo trazer três. Você me pegou num dia de folga.
McCrone bufou enquanto ria, com aparente bom humor e certa arrogância. — Bom, vamos voltar ao seu barraco de sobrevivência. Vai ser bom comer um prato de comida
quentinha.
Franklin foi na frente enquanto andava pelo cume. Ele conhecia bem a rota e tinha certeza de que conseguiria abandonar McCrone se o soldado escorregasse ou caísse
para trás o suficiente para Franklin escapulir por entre as árvores.
Mas isso o deixaria indefeso, no escuro, com a mata provavelmente repleta de sequelados e soldados com óculos de visão noturna.
Esse é o problema de ser um libertário. TODO MUNDO é inimigo.
Franklin se perguntou como McCrone reagiria quando conhecesse a pequena tribo de Wheelerville, especialmente aquela criancinha de nariz melequento e olhos brilhando.
Até o paraíso tem seus abutres.
CAPÍTULO 20
Campbell não sabia o que era mais horripilante: os sequelados que se aproximavam de toda parte ou o brilho sinistro nos olhos de Wilma. O sol poente irradiava um
laranja vulcânico na íris, uma orgia de loucura e de prazer.
Ela o agarrou pelo braço, quase ronronando. — Não são lindos?
Enquanto os sequelados emergiam da floresta e transpunham a cerca com movimentos desajeitados e estabanados, Campbell pensou que eles eram as coisas mais horríveis
que ele já tinha visto. As roupas deles — as que ainda restavam — pendiam em trapos e farrapos, os cabelos eram desgrenhados e despenteados, e a maioria dos homens
tinha pelos faciais desalinhados. Eles até se moviam de forma diferente de semanas atrás, quase como sonâmbulos, como se tivessem esquecido como rasgar um membro
de uma vítima com o coração dela ainda batendo.
Campbell procurou uma abertura, uma direção para fugir, mas provavelmente deixaria por conta da sorte.
A menos que…
— A casa — disse ele. — Você já entrou?
Ela riu. — Eu morava aí até aparecer algo melhor.
— Vamos lá. — Campbell agarrou o braço dela.
Ela tremeu para se livrar dele. — Não dá pra fugir deles.
— É ruim de não dar. Qual é o problema?
Os sequelados no galpão de equipamentos saíram totalmente das sombras. Havia cinco deles. Eles poderiam ter sido uma família feliz no passado, sujos como limpadores
de chaminés e sombrios como agentes funerários. Se eles tinham alguma raiva irracional, estava bem escondida. Eles pareciam ter se reunido para uma sopa na cozinha
em alguma caridade da igreja.
Eles estão com fome, sim, de… alguma coisa.
Ele não acreditava em zumbi — não na vida real: para ele, era coisa de videogames e filmes. Ele já tinha estourado muitas e muitas cabeças de zumbi em Left 4 Dead,
embora os monstros de animação fossem rapidamente repostos para manter o fluxo de adrenalina falsa. Ele não tinha certeza se o domínio do jogo se converteria para
o mundo real, o Depois, mas ele com certeza preferia não ter deixado a arma no trailer da Wilma.
Sem arma, ele só tinha os pés.
E mioloz. Não esqueça os mioloz.
— Eu vou entrar — disse ele a Wilma. — Você vem ou não vem?
— Eu não sou mais bem-vinda.
Ela parecia tão em paz, quase infantil. Não foi à toa que lhe implorou para não sentir medo: ela estava distante demais de qualquer sentimento que não fosse bem-aventurança.
Ela era como aquele pastor de Taylorsville, quando Campbell ficou preso na igreja e rodeado de sequelados. O pastor os tinha acolhido como se estivesse feliz demais
para se oferecer em sacrifício, como se a vida dele precisasse chegar à mesma conclusão do salvador que ele celebrava.
Os sequelados atravessaram a campina com uma implacabilidade solene e Wilma se virou lentamente como se estivesse maravilhada com…
O quê? A existência deles? O fato de que eles não a mataram?
Campbell lhe devia mais uma tentativa, afinal ela era uma companheira sobrevivente, talvez ele só estivesse com medo de ficar sozinho, de enfrentar o que estava
por vir.
— Podemos nos entocar lá e barrar as portas, talvez encontrar uma arma. — Ele já estava movendo-se em direção à varanda, vigiando a família do sopão de caridade
e os três homens nus vinham pelo caminho com os olhos faiscantes como pequenas bolas de espelho de discoteca.
— Não precisa ter medo — acalmou Wilma, mas com uma voz distante como se estivesse falando com ela mesma ou talvez com uma presença iminente no céu escuro que só
ela conseguia ver.
— Pô, eu estou quase cagando nas calças. E isso vai atrapalhar a carreira que estou preparando pra sair daqui.
Wilma deu uma sacudida suave com a cabeça, dispensando-o. A carne em volta dos olhos estava vincada de piedade, embora o rosto mantivesse aquele brilho arrebatado
à moribunda luz do sol. Ela estava quase dourada, um ídolo fundido na veneração do Depois e seus acólitos cambaleantes e inânimes que atendiam ao chamado inaudível.
Campbell atravessou o gramado emaranhado na altura do tornozelo com o orvalho já acumulando-se na barra da calça. Ele saltou três degraus de uma vez, já executando
o Plano B, pois tinha certeza de que a porta estaria trancada, tendo em vista a falta de sorte que o acompanhava desde o fim do mundo. Bem, talvez até muito antes
disso.
Mas quando ele abriu a porta de tela, a porta da frente já estava entreaberta com um aroma doce e almiscarado passando pela fresta.
O interior era escuro e todas as cortinas estavam fechadas, mas Campbell deu uma última puxada do ar externo com o frescor dos prados e entrou de uma vez.
Ele cerrou os punhos, pronto para enfrentar uma dúzia de sequelados. Talvez tivesse sido tolo, com uma chance melhor em espaço aberto, mas ele não podia negar a
segurança de uma porta.
Depois de dez segundos de tensão, que abrangeu uma batida forte e lenta seguida de vários staccati arrítmicos do coração, ele relaxou um pouco. Em seguida, ele sentiu
o golpe daquele cheiro pútrido. Como graduando da UNC, ele participou de um programa trabalho-estudo com ratos de laboratório usados na pesquisa de células. Os roedores
ficavam empilhados em gaiolas de arame em um pequeno quarto no subsolo do edifício de ciências, e o fedor de morte, fezes e comida estragada tinha penetrado no chão
e nas paredes de concreto como tinta.
Campbell deu as costas para a porta fechada e, em seguida, atrapalhou-se com a tranca. Se ele tivesse que fugir, ela lhe custaria mais um ou dois segundos, mas ele
ainda se sentia um pouco mais seguro sem precisar proteger as costas. Ele não tinha certeza se os sequelados conseguiriam operar portas e trancas — ele observara
que a especialidade deles era principalmente esmagar e mutilar, exceto pelo cortejo fúnebre ímpar da noite anterior.
Por força do hábito, ele se atrapalhou com o interruptor de luz e, em seguida, conteve-se e bateu na parede com a parte inferior do punho. A casa estava em silêncio,
o que a deixava ainda mais sinistra, como se fantasmas estivessem à espreita nas teias de aranha, prontos para atacar a qualquer momento. Enquanto a visão se ajustava
à penumbra cinzenta que vazava pelas cortinas, ele tateou pelo corredor até chegar a um grande cômodo quadrado aberto. Misturado com o cheiro corrupto da morte,
havia um odor enjoativo e carbonizado de uma lareira fria.
Ele enfiou a mão no bolso e pegou a lanterna, um artefato que inteligentemente não deixou no trailer. Protegendo o feixe e preparando-se para um ataque, ele a ligou.
Como a bateria estava quase no fim, o feixe era um mero cone laranja difuso, mas foi o suficiente.
Mais que suficiente.
Ele estava em uma sala de jantar, com uma grande lareira de pedra em uma das extremidades e uma janela alta na parede adjacente de frente para o quintal. O piso
de carvalho era côncavo e gasto por causa de muitas décadas de passos e, acima da lareira, havia uma cena pastoral sisuda de escravos ceifando trigo. Havia um aparador
de madeira antigo encostado em uma parede, coberto de conjuntos de porcelana e pratarias. No entanto, foi a longa mesa no centro da sala que transformou a cena de
Norman Rockwell em Alfred Hitchcock.
Em volta da mesa, havia uma dúzia de cadáveres sentados rigidamente em cadeiras de espaldar alto.
A princípio, Campbell achou que fosse uma família de fazendeiros, os ocupantes da casa, presos em uma última ceia pela morte súbita servida pelas tempestades solares.
No entanto, os cadáveres eram mais recentes, menos desintegrados que outros humanos espalhados pela Carolina do Norte e, supostamente, pelo mundo. O mais horrível
de tudo eram os olhos abertos, coágulos de escuridão olhando para um longo nada.
O cadáver mais próximo, por sorte virado para o outro lado, era de uma jovem de talvez oito ou nove anos com um arco azul nos cabelos louros. Na cabeceira da mesa
estava um velho paternal usando óculos redondos delicadamente posicionados na ponta do nariz e em cuja careca a luz da lanterna brilhava. Alinhados em cada lado
da mesa havia homens, mulheres e adolescentes, todos compartilhando aquele mesmo olhar vazio. Uma das mulheres tinha no colo uma criança com um babador debaixo do
queixo gordo e desbotado.
Sequelados. Sequelados malditos e aterradores.
Ao contrário dos sequelados externos, que podiam até estar chegando antes que ele tivesse a oportunidade de testar a porta e as janelas em volta, os mortos foram
dispostos todos vestidos com roupas limpas — os homens de casaco e gravata arrumada e as mulheres com vestidos e bijuterias. Diante de cada um havia um prato vazio,
com talheres e guardanapos arrumados para uma refeição formal. O mais assustador de tudo, no entanto, era a peça central: o prato principal.
Sobre a mesa, com as mãos cuidadosamente dobradas sobre o peito, estava o sequelado que os soldados mataram na noite anterior. Ele estava nu, com as mãos sobre a
ferida à bala no coração, cobrindo a mancha seca de sangue coagulado. Alguém penteara os cabelos e aparentemente lavara o corpo. Estava imundo quando foi encarcerado
pelos soldados, mas ali ele recebeu cuidados como…
Campbell não conseguiu concluir o pensamento nauseante e lutou contra a náusea crescente. Ele, sem conseguir enfrentar a própria fraqueza, saiu do cômodo e analisou
as possibilidades.
Será que foi a Wilma que fez isso? Ela é maluca o suficiente em relação ao sequelados.
Impossível. Eles estavam juntos desde o momento em que os sequelados recuperaram o cadáver. Além disso, ele se lembrou das palavras enigmáticas: “Eu não sou mais
bem-vinda.”
— Imagino que alegrias me esperam no andar de cima — sussurrou ele, mais para ouvir a própria voz e ter certeza de que não tinha, de fato, enlouquecido como Wilma.
Ele também podia estar falando com o Pete que havia dentro da cabeça dele, o que não era bom sinal. — Talvez seja uma orgia desses caipiras, uma fantasia louca com
necrofilia.
Algo bateu na porta da frente. E mais de uma vez.
— Não tem ninguém em casa — disse ele, rindo.
A batida ficou mais insistente e multiplicou-se em uma saraivada de golpes na madeira. Campbell tapou os ouvidos, fugiu para o fim do corredor e subiu as escadas.
A porta dos fundos podia estar aberta e, mais cedo ou mais tarde, os sequelados acabariam entrando. Nada daquilo importava. Ele só queria escapar, movimentar-se,
praticar a ilusão da fuga.
Nas aulas de psicologia, ele aprendera sobre a casa como metáfora da consciência e da mente. Era significativa em todos os níveis: o porão escuro onde o mal se escondia
nas sombras; o térreo do hábito, da rotina e do conforto; as escadas eram a medida da ascensão espiritual e emocional…
E o sótão…
Que normalmente só tinha uma porta de acesso estreita, fácil de bloquear ou de defender.
— O que você acha, Pete? — disse enquanto chegava ao andar superior, onde havia várias portas. — Escolhemos a Porta nº 2, com uma viagem com tudo pago para Paris,
ou ficamos mesmo com a Porta nº 3, que premiará com um belíssimo conversível rabo-de-peixe?
Se Pete estivesse vivo, ele escolheria a Porta nº 1, que provavelmente premiaria com drogas, bebida e adolescentes safadinhas, Death cab for cutie tocando na jukebox
e um pacote de cigarros na mesa de centro.
Quem me dera, Petey. Quem me dera.
Campbell tentou abrir a porta mais próxima. Ele só conseguiu olhar uma vez antes de a lanterna apagar de vez e ele vomitar.
CAPÍTULO 21
Franklin e McCrone chegaram ao complexo uma hora depois de escurecer.
Mas “escuro” era um conceito falso porque a aurora lançava um brilho verde em todo o céu, como postes baratos de iluminação de vapor de mercúrio em um estacionamento
vazio. Apesar de sinistra, Franklin passou a apreciar a falta absoluta de escuridão, embora os campos estelares estivessem mais nublados e difíceis de seguir.
Muitas vezes se perguntou se a aurora persistente era um sinal de que a radiação solar ainda estava afetando o planeta de forma imensurável. Será que os pássaros
ainda sabiam voar para o sul no inverno? As abelhas conseguiam encontrar o caminho de volta para a colmeia? E os golfinhos e as baleias e toda a vida aquática que
dependia das mudanças sutis na maré e na temperatura?
Não sobraram muitos cabeções para dar essas respostas. Os instrumentos e as fórmulas não ajudaram em nada quando o Juízo Final chegou.
Ele supunha que os humanos não eram as únicas criaturas vivas afetadas pela radiação. No entanto, as galinhas agiam exatamente como antes. As cabras… bem, não daria
para saber porque elas já eram bem esquisitas. Franklin sempre gostou dos animais e achava que tinha mais em comum com eles do que com seus semelhantes. Eles eram
peculiares, inteligentes e, muitas vezes, de uma franqueza irascível, motivo pelo qual ele os criava embora comessem mais do que produzissem leite.
Franklin parou diante do portão, sem fôlego por causa da longa subida pela floresta.
McCrone espetou-lhe a coluna com a ponta do fuzil. — Cadê?
— É bem aqui.
— Porra, velho. Esses anos todos na rede dos sobrevivencialistas devem ter valido a pena. Nunca teríamos encontrado este lugar sem vigilância por satélite e GPS.
— Antigamente tinha uma coisa chamada “orgulho americano”. Só que o governo usou essa expressão pra fazer lavagem cerebral em gente como você.
— Eu já disse: não me alistei por amor ao país, não — reiterou McCrone. — eu me alistei porque fiquei sem auxílio-desemprego e porque exportaram os empregos todos
pra China. Agora vamos, tô cansado.
Franklin abriu o emaranhado de trepadeiras e alcançou o trinco do portão. — Trancado.
— Beleza, e pelo jeito você não tem a chave. Que coincidência.
— Eu tenho a chave, sim, mas está lá dentro.
— Você se trancou pra fora do próprio complexo? Achei que os sobrevivencialistas fossem mais inteligentes. — McCrone deu alguns passos, sentindo a cerca, maravilhado
com a camuflagem natural que Franklin instalara. — Dá uns três metros, talvez um pouco mais. Não deve ser difícil de escalar.
— Lá em cima tem arame farpado. Cuidado não prender os balangandãs.
— Não sou eu quem vai escalar. É você.
Franklin considerou as opções. Ele poderia chegar ao outro lado e deixar o portão trancado, mas antes teria que desativar o sistema de alarme. Se a mata estivesse
coalhada de soldados e sequelados, eles se aproximariam bem rápido. Uma vez lá dentro, porém, ele ficaria em vantagem. McCrone estava com os dois rifles, mas ele
ainda tinha duas pistolas, uma escopeta, vários dispositivos incendiários de nível militar e algumas armas de mão, como facas e machados armazenados em uma caixa-forte.
Ele também estaria em casa. Se McCrone se impacientasse e transpusesse a cerca, Franklin teria a vantagem do elemento surpresa.
Mas ele estava preocupado porque nenhum dos outros habitantes reagira à aproximação deles. Se Jorge tivesse voltado, ele ficaria em alerta máximo. Se Jorge não tivesse
conseguido chegar — se os sequelados ou os cidadãos acéfalos da Nação dos Exércitos o tivessem pegado —, Rosa ou a filha estariam vigiando.
Franklin ficara desconfortável em deixá-las ali com a jovem Cathy e o pirralho sequelado. Ele tinha certeza de que a doença solar não era transmitida por contato
humano, senão a mãe já teria se infectado com as mordidas da criança no seio, mas talvez o mal fosse mais traiçoeiro. Talvez a mera presença pudesse contaminar o
complexo, como os antigos sequelados fizeram ao arruinar o planeta.
Se ele fosse religioso como a neta Rachel, rezaria para que os sequelados e o exército se aniquilassem. No entanto, um olhar casual para os céus revelou que Deus
via esse lugar como um mero espetáculo circense. Talvez a única finalidade da Criação tenha sido apreciar o Juízo Final, senão Ele não descansaria no sétimo dia,
mas sim durante a semana toda.
— Você vai ficar parado aí a noite toda? — perguntou McCrone.
Franklin balançou o portão, sacudindo a estrutura metálica. — Tem um sistema de alarme. Se eu passar por cima, todo o complexo vai acender e tocar uma sirene.
Franklin estava exagerando a potência do sistema, mas, se McCrone tinha engolido a lenda de Franklin Wheeler, o Guru Sobrevivencialista da Internet, talvez caísse
nessa também. McCrone riu.
Que desrespeito. Mas sempre me esqueço de que a lavagem cerebral nele foi profissional.
McCrone espiou por cima da cerca. — Opa. Tem alguma coisa se mexendo lá dentro.
Ouviu-se um estampido seguido de um zumbido ao longe, gritando como uma alma penada pelo céu noturno. Em seguida, uma explosão acima deles desencadeou uma chuva
de faíscas que pairavam no ar. A explosão de luz brilhou o bastante para ofuscar a aurora e iluminar a floresta como se fosse dia.
— Parece que seus amigos querem muito a sua presença — disse Franklin.
No clarão luminoso de nitrato de prata e magnésio incandescente, o rosto de McCrone ficou exangue. — Se eles me pegarem, você também dança — disse ele sem o riso
de antes.
Algo bateu no pé de Franklin e ele percebeu que o portão se abrira. Ele olhou para McCrone, que ainda estava apertando os olhos por causa do clarão.
Franklin não hesitou. Puxou o portão para abri-lo e passou para dentro do complexo com a intenção de fechá-lo rapidamente e pegar uma arma na cabine.
— Ei! — gritou McCrone, saindo do fascínio em que se encontrava. — Droga…
Franklin começou a fechar o portão, mas subestimou a rapidez de McCrone. O soldado enfiou o cano da espingarda na fresta e o portão se fechou nele, fazendo um ruído
metálico e abrindo-se novamente. Franklin foi até o portão para tentar mais uma vez, mas o portão abria para fora e McCrone já tinha partido para cima dele, xingando
e batendo em Franklin com a mão livre.
McCrone o empurrou para o chão e subiu nele. — Seu velho desgraçado, vou te pendurar pela barba e te deixar pros corvos comerem.
Para reforçar o ataque, McCrone acertou as costelas de Franklin com a bota. Já dentro do complexo, ele aproveitou o brilho restante do clarão para olhar os arredores.
— Nada mal prum tantã pré-apocalíptico, Franklin.
— Vá pro inferno. — Franklin já estava cansado daquele herói americano de sangue vermelho em cima dele o tempo todo. Ele ficaria contente de ser baleado: pelo menos
morreria como um homem livre no próprio território, sem se acovardar como escravos a exemplo da raça humana restante.
Vão pro inferno, vocês todos. Até a liberdade é um fardo depois de um tempo.
Foi então que se lembrou de Rachel e da promessa que ele lhe fizera. Ele construiu Wheelerville de boa intenção, mas a utopia era um luxo. O ideal dele era tão egoísta
e elitista como o dos bancos internacionais e o dos poderes corporativos da indústria militar que corromperam o velho mundo, vendendo e comprando dignidade humana
como se fosse uma commodity na bolsa de valores.
Ele rolou e cambaleou até se levantar, determinado a morrer lutando. Ele vacilou quando encarou McCrone; as pernas estavam moles e as costelas queimavam como se
marcadas a ferro quente.
McCrone apontou a espingarda para ele enquanto as últimas luzes do clarão alargavam o franzido no rosto com sombras cruéis. Pelo menos o soldado não parecia mais
um menino. Ele personificava um mal ancestral, a arrogância nua e crua, um produto e um símbolo perfeitos do governo a que serviu.
— Atire se tiver coragem. — Franklin não sabia se estava apenas sendo só um bode velho genioso ou se tinha realmente engolido a própria crença em um futuro melhor,
um onde Rachel era mais do que apenas um símbolo de esperança, um dia em que ele valeria alguma coisa e…
O assobio fraco do ar veio pouco antes crânio de McCrone irromper-se em um gêiser de sangue, ossos e miolos cinzentos.
A lâmina do machado se retirou e arrastou consigo uma das orelhas de McCrone. O olho restante do soldado estava esbugalhado pelo choque, quase pulando da órbita
de tanta surpresa, mas ficou coberto por uma cascata de sangue quando piscou pela última vez. O soldado caiu largado sobre a espingarda.
Jorge saiu das sombras, segurando o machado como um rebatedor cravando-se na zona do rebatedor com dois fora na nona entrada. Ele olhou para o cadáver com toda a
imparcialidade de um astro do beisebol enquanto o sangue pingava da lâmina.
— Até que você demorou — disse Franklin.
— Eu só estava esperando para ver se você ia enrolar o moço pra não levar o tiro — explicou Jorge.
Franklin se inclinou e pegou a espingarda debaixo do cadáver de McCrone. — Depois que você se acovardou e correu, achei que quisesse me ver morto.
— Não havia a necessidade de matar gente inocente.
Franklin olhou a maneira com que Jorge segurava o machado. Ainda faltavam dois lançamentos antes de o mexicano ser eliminado. — Não eram inocentes. Eram sequelados.
— E o que ganhamos? Você vai matar todo estranho no mundo?
Franklin acenou para o crânio danificado do soldado. — Parece que você voltou atrás na sua decisão.
Jorge atirou o machado à distância. — Rosa e Marina sumiram.
— Droga.
— E também a Cathy e… o bebê.
Franklin não achava que essa palavra se aplicasse a um sequelado. — Algum sinal de resistência?
— Não. Simplesmente sumiram. — Jorge tirou um pedaço de papel do bolso. Depois de dissipado o clarão, Franklin só conseguia ver Jorge pela silhueta. — A Marina escreveu:
“Ele é louco”.
— Quem é “ele”? Será que é um dos soldados?
— Não — disse Jorge com uma voz fria. — Acho que ela estava falando do bebê.
O frio na voz de Jorge se infiltrou nos ossos de Franklin, que se sentiu cansado, velho e privado de toda a esperança que ele fingiu alimentar apenas momentos antes,
quando enfrentou a morte.
No Depois, até as pequenas coisas eram piores que a morte.
CAPÍTULO 22
Campbell limpou a bile ácida da boca, cuspindo minúsculos pedaços de presunto meio digeridos.
O que seus olhos viam não faziam nenhum sentido e ele não tinha planos de ficar ali para ver mais de perto. Ele preferia tentar passar pelo cordão de sequelados
do lado de fora. Talvez fosse mais fácil pelo quintal. Ele encostou no corrimão da escada e desceu no escuro, mas só tinha dado três passos quando o sibilo começou.
Eles estão na casa.
Atrás dele, a porta do quarto se escancarou com um rangido…
E também as outras duas portas no andar de cima.
Quantos são?
Um feixe de luz se projetou no corredor do térreo. Ele ouviu vozes em meio ao sibilo insano dos sequelados — vozes humanas.
— Eu te falei — disse Wilma com a voz abafada como se ela estivesse na varanda dos fundos. — Eu disse que ele ia ficar com medo.
— Eu vou dar um jeito nisso — respondeu um homem, e Campbell reconheceu-lhe a voz.
Será que é só outro fantasma na minha cabeça, como o Pete?
Ele riu de novo, e o delírio vertiginoso escorria-lhe de fendas mentais como água ancestral minando da pedra. A loucura foi aumentando como uma represa que se encheu
e ficou prestes a romper a qualquer momento.
O homem chamou de novo. — Campbell? É você?
Campbell deu mais um passo cauteloso, esperando que a escada não rangesse com o peso. Ele cometeu o erro de olhar para trás e a constelação de olhos brilhantes se
aproximou.
Em pânico, Campbell tropeçou escada abaixo com o gosto metálico de vômito e os ouvidos ribombando. Ele não se importava de ser pego, nem de ser morto, contanto que
não acabasse como aqueles no quarto.
Ele sentiu movimento embaixo e um cone de luz ricocheteou pelo interior da casa.
— Fique calmo, Campbell.
— Eles… você sabe o que eles fizeram?
— Não é o que você está pensando.
— Como é que você ainda está vivo? — Campbell estava então no meio da escada e a escolha era dele. Os sequelados se reuniam no patamar acima, desviados das tarefas
que desempenhavam atrás das portas. Ao contrário dos que estavam abaixo, porém, eles não sibilavam; em vez disso, só olhavam com uma muda solenidade enquanto os
olhos faiscavam.
Campbell deu mais dois passos para baixo. A casa estava cheia de uma tensão crescente, como se uma nuvem de tempestade estivesse prestes a produzir um raio. Entre
a meia-luz esverdeada que vazava das várias janelas e a luz da lanterna balançando abaixo, Campbell sentiu como se estivesse em algum carnaval dos infernos.
— Escute-me — disse o professor. Foi quando Campbell percebeu quem estava pendurado de cabeça para baixo no quarto: Donnie, Arnoff, e Pamela. — Escute.
E o assobio se modificou para um balbucio que imitava o professor. Muitas vozes, talvez umas vinte: — Eshcutche. Eshcutche. Eshcutche.
Campbell gritou e quebrou o feitiço que continha os sequelados na parte de cima. Eles vieram até a plataforma com os pés batendo nas tábuas do assoalho. Campbell
correu escada abaixo, mas perdeu o equilíbrio e caiu, batendo com o joelho e a cabeça no corrimão. Foi um golpe de raspão, um pouco acima da orelha esquerda, mas
a visão ficou turva e ele sentiu como se o sangue das veias tivesse sido transfundido com chumbo derretido.
Em seguida, a lanterna estava em seus olhos e o professor se ajoelhou para cuidar dele. — Shhh — disse o homem. — Fique deitado e não se mexa.
Os sequelados que estava pisando forte nos degraus pararam e ficaram em espera novamente. Campbell sentiu que havia outros sequelados atrás do professor.
— O que eles fizeram… com a Pamela… — sussurrou Campbell.
— É o que eles vão fazer com você se não se acalmar.
— Por favor, não deixa isso acontecer… — Campbell tentou sentar-se, mas o professor colocou uma mão firme no peito para impedi-lo.
— Eles não têm a intenção de machucar — explicou o professor, e os sequelados sibilantes ecoaram um coro com “machucá, machucá, machucá”.
Campbell riu de novo na esperança de estar sonhando. Ou mesmo morto. Sim, ele preferia estar morto. Seria melhor.
Nesse caso, os sequelados não poderiam fazer com ele o que fizeram com Donnie e Arnoff. Bem, eles poderiam, mas ele não se importaria.
Por trás da porta que abriu, ele viu um grupo de sequelados sentados no chão como discípulos em torno de um sábio. Eles se reuniram diante de uma cadeira de balanço
em que um homem — que Campbell acabou descobrindo ser Arnoff, embora ele nunca fosse reconhecê-lo se não fosse a presença do professor — estava preso com cordas
grossas. Arnoff ainda estava vivo: seus olhos estavam bem abertos e animados com um grito que a boca não conseguia produzir.
A lanterna revelou que a língua de Arnoff tinha sido extraída. O queixo dele estava coberto de sangue coagulado e restos de carne. Ele devia estar lá amarrado havia
dias.
Atrás dele, pendurada de cabeça para baixo, estava Pamela, despida, com o corpo marmorizado de contusões. O cabelo ruivo pendia com as pontas tocando o chão. Naquela
fração de segundo, Campbell percebera que ela estava morta.
Donnie, no entanto, não teve tanta sorte.
Ele estava deitado de bruços na cama, com a cabeça virada para a porta e levantada para trás em um ângulo tão extremo que o pescoço só podia estar quebrado. As entranhas
expelidas dele eram responsáveis por grande parte do mau cheiro do quarto, um fedor de fezes combinado com o odor comum de morte em uma miscelânea putrescente.
As mãos de Donnie estavam estendidas e passavam pela grade de bronze com os dedos torcidos em dezenas de direções, como se alguém os tivesse quebrado e reposicionado
meticulosamente. Os olhos de Donnie, como os de Arnoff, estavam abertos, mas tão vidrados e absortos de agonia que provavelmente iam além de qualquer grito.
Campbell tentou imaginar qual seria o seu fim naquele espetáculo bizarro. Será que eles lhe arrancariam as orelhas ou espremeriam as sardas como se fossem insetos?
O professor colocou a lanterna na escada para iluminar os dois. Apesar da testa enrugada de tensão e da aparência dez anos mais velha desde a última vez em que Campbell
o vira, o professor não tinha marcas e parecia razoavelmente funcional. As mãos dele tremiam enquanto procuravam fraturas na perna de Campbell.
— Você tem sorte — disse o professor em palavras quase inaudíveis por causa do assobio incessante dos sequelados acima e abaixo. Ele colocou os dedos sobre as pálpebras
de Campbell e as levantou. — Parece que não houve nenhuma concussão.
— Eu não me sinto sortudo assim.
— Você não está morto nem mutilado. Eles estão aceitando você.
— Ah, essa é a sorte?
— Eles sentiram que você não vai prejudicá-los.
Campbell se lembrou do que Wilma dissera sobre não mostrar nenhum medo. Ele, entretanto, não conseguia evitar: ainda sentia vontade de gritar e, se não estivesse
com tanta dor, ainda tentaria passar pelos sequelados e chegar até a porta. Nenhum ser humano em sã consciência poderia ficar preso em uma casa cheia de mutantes
destrutivos e manter a calma.
Ah. Talvez seja mais adequado “permanecer são”.
— Por que eles não mataram você? — perguntou Campbell, balançando as teias de aranha que se agarraram na cabeça e já quase recuperado da queda.
— Eles precisam de mim.
— Mim, mim, mim — entoaram os sequelados. — Mim mim mim mim mim.
Os do piso superior continuaram no refrão. — Mim mim mim miiiiiim.
O professor sorriu, apesar do intenso esforço visível no rosto. — Eles aprenderam uma palavra nova.
— Eles não aprendem nada. São seres mortíferos destruidores.
— Dores — disse um dos sequelados mais próximos. E um coro de “dores” percorreu a casa.
— Todos nós mudamos depois das tempestades — disse o professor. — É hora de aceitar.
Ele terminou de examinar Campbell e ajudou-o a sentar-se no degrau mais baixo. Em seguida, pegou a lanterna e acenou-a no ar. Os sequelados ficaram em silêncio,
mas Campbell ainda conseguia ouvir a respiração pesada deles.
Era como se estivessem em espera.
Campbell ainda esperava que eles se amontoassem a qualquer momento para desmembrá-lo. Ele não conseguia esquecer a cena de Arnoff, Donnie e Pamela no quarto do andar
superior. — Por que eles deixaram você viver… e fizeram aquilo com os outros?
— Eles são como crianças — disse o professor. — E eu fui professor a vida inteira.
— Criança não destrói por diversão.
— Destrói, sim — discordou o professor, que colocou uma das mãos no braço de Campbell como sinal para que ele não levantasse a voz. — É perfeitamente natural. As
crianças arrancam as asas das moscas para ver como funcionam, derramam refrigerante nos formigueiros, estripam sapos e minhocas para ver o que tem dentro.
— Entrá — gritou um sequelado. A multidão foi para frente até que um deles ficou dentro do feixe cônico da lanterna. Era uma mulher de uns trinta anos, atraente,
apesar da juba ruiva selvagem e emaranhada, mas com olhos que brilhavam com uma emoção enlouquecida. — Entrá, entrá, entrá — tagarelava ela.
— Entrá — ouviu-se de dezenas de gargantas.
— Eu quero entrar! — lamentou Wilma de fora da casa.
Todos os sequelados ficaram em silêncio. Uma tensão eletrizante se acumulou, fazendo os pelos do braço de Campbell se levantarem.
— Ela está se tornando um problema — explicou o professor.
— Ela disse que eles não vão deixar ela entrar.
— Ela entrar — disse a sequelada ruiva.
Vários sequelados repetiram as palavras dela e, em seguida, o canto se espalhou no andar superior. Campbell tapou os ouvidos, incapaz de suportar essa nova e perturbadora
descoberta. Ele finalmente aceitou um mundo em que a raça humana fora reduzida aos bilhões, e chegou até a aceitar uma nova ordem natural, em que muitos desses seres
humanos eram assassinos selvagens.
Pelo menos isso seguia algum tipo de lógica — um colapso de uma sociedade.
No entanto, aquela era uma sociedade nova e estranha realmente ascendente: a raça mutante parecia evoluir para substituir a anterior.
Tapar os ouvidos não adiantou. A casa ribombava com a vocalização quase eufórica dos sequelados. — Ela entrar! Ela entrar! Ela entrar!
Wilma gargalhou, e devia ser na porta de trás porque Campbell podia ouvi-la claramente. — Então tô entrando!
Campbell foi protegê-la, sentindo-se de alguma forma responsável por ela, mesmo depois de ela o atrair para aquela casa de horrores. No entanto, o professor colocou
a mão no ombro dele e o conteve.
— Ela é louca — disse Campbell. — Eles vão rasgá-la em pedaços como fizeram com seus amigos.
— Esta guerra não é sua, Campbell. Aceite.
Campbell se soltou e começou a andar no meio da multidão de sequelados. O fedor da casa, a morte que ela abrigava e os mutantes imundos o deixaram tonto e claustrofóbico.
Ele não se importava mais se o matassem. Ele sobrevivera dia após dia infundido por uma esperança em um futuro distante e melhor, mas ali percebeu que esse ideal
era impossível.
O mundo tinha acabado.
Houve uma agitação em um dos cômodos ocultos, provavelmente na cozinha. O sibilo aumentou como o assobio do vapor de um radiador rachado. Campbell tirou a lanterna
com a cabeça latejante, dor nas pernas e a garganta seca de sede e ansiedade.
Os sequelados todos se viraram e se reuniram em torno de Wilma, que riu e gritou: — Devolvam ele para mim!
Eles a cercaram e ela foi sobrepujada pelo aglomerado. Campbell não queria tocar em nenhuma das criaturas repulsivas, mas elas se afastaram dele, bloqueando a saída.
Ele desceu o corredor até onde conseguiu chegar, passando o feixe da lanterna sobre as cabeças da multidão.
O feixe recaiu sobre o rosto ensandecido de Wilma. A luta com os sequelados parecia tê-la despertado do estado de bem-aventurança.
— Não se meta, Campbell — advertiu o professor de algum lugar atrás dele. As escadas ressoavam com os sequelados descendo.
— Não tenha medo — disse Campbell para Wilma, quase gritando por causa do sibilo. Ela parou de lutar por um momento e olhou em direção à luz, embora provavelmente
não conseguisse distinguir-lhe o rosto.
— Procriador! — disse ela. — Quero você pra procriar! Este mundo precisa de gente pra procriar!
— Pra procriar! — gritou um dos sequelados.
As palavras percorreram a casa e amplificaram-se. — Pra procriar, pra procriar, pra procriar.
Um dos sequelados agarrou Campbell pela frente da camisa e deu um forte puxão que o desequilibrou. O feixe da lanterna iluminava o teto descontroladamente até chegar
ao rosto do sequelado que o segurava. Era a mulher de cabelo ruivo.
— Pra procriar! — gritou delirante.
— Vou te matar, vadia — gritou Wilma, batendo nos sequelados ao redor.
Os sequelados lhe devolveram as mesmas palavras e os golpes que ela desferiu neles. — Vou te matar, vadia! Vou te matar, vadia!
A casa sacudiu com gritos e golpes e grunhidos de Wilma.
Em seguida, Campbell deixou cair a lanterna, que foi esmagada sob os pés da multidão que convergia, e correu para o centro da luta na cozinha. Campbell escapou deles
furtivamente até ficar de costas para a parede e, em seguida, deslizou até o chão em posição fetal e cobriu a cabeça.
Isso não abafou os gritos de Wilma.
CAPÍTULO 23
— É melhor você dormir um pouco — aconselhou Franklin.
Ele estava sentado à mesa, ligando o rádio de ondas curtas ao sistema de bateria. Uma lamparina a óleo brilhava ao lado dele com luz baixa. Jorge andava pela cabine,
incapaz de se sentar e muito menos de dormir.
— Eu vou, com ou sem você — disse Jorge. O velho cochilara por algumas horas, durante as quais Jorge investigou os arredores próximos do complexo. Ele também vigiou
a floresta a partir da plataforma, com medo de os militares descobrirem Rosa e Marina antes dele. Rosa era forte e resistente, mas Jorge poderia imaginar uma centena
de possibilidades — geralmente horríveis, que lhe evocavam uma imagem de sequelados silenciosos carregando-as por uma trilha remota.
— Eu disse que iria com você — disse Franklin — mas informação nunca é demais.
Franklin percorria as frequências enquanto o alto-falante alternava entre um zumbido alto e uma estática aguda. Em algum momento, ouviram-se palavras entrecortadas
em espanhol, mas, quando Franklin conseguiu sintonizar, a transmissão se perdeu. — Essas partículas carregadas na atmosfera estão atrapalhando a recepção — disse
Franklin. — O sol deve estar em alta atividade de novo.
Jorge parou de andar. — O que isso significa?
— Ciclos solares. Ou seja: é cíclico. O sol não liga e desliga como uma torneira. Ele está sempre emitindo energia, mas às vezes tem umas erupções internas que jorram
um monte de radiação. O governo sabia que essas tempestades solares eram prejudiciais, só não queria que a população entrasse em pânico.
— Por que eles não nos avisaram do perigo?
— Bem, as pistas estavam lá, e as reportagens falavam das erupções solares, mas quase nada além dos problemas de comunicação. Mas os sobrevivencialistas que conheciam
o suficiente pra entender as entrelinhas perceberam que seria muito maior que o anunciado. Eu podia até ver aquele idiota orelhudo na Casa Branca dizendo: “Nós não
podemos causar pânico na população.” Espero que esse filho da puta esteja apodrecendo no Salão Oval.
— Eu não me importo com o seu presidente. Estou preocupado com a minha família.
— A elite rica e os seus lacaios no governo esconderam a verdade de nós, por isso não tivemos tempo de nos preparar. Eles não causaram as tempestades solares, mas
com certeza não aumentaram nossas chances de sobrevivência. E agora seus soldados de infantaria estão por aí, acabando com todo homem restante que queira ser livre.
Eu não ficaria surpreso se metade dos banqueiros do mundo estiver escondida agora em abrigos de luxo privado ou pelo oceano em seus iates privados, sem energia nem
sistemas de navegação.
Jorge tremia de raiva e ansiedade. — Hijos de puta! Espero que se afoguem no próprio sangue. Mas agora nada disso importa.
— É a única coisa que importa. — Franklin girou o botão e percorreu a largura de banda mais uma vez antes de desligar o rádio e a fonte de alimentação. — Os sequelados
nem são o nosso maior inimigo. Enquanto esses sanguessugas estiverem vivos, nenhum de nós vai estar seguro.
Jorge olhou para fora da porta da cabine, onde a luminescência verde da aurora da noite se misturava à primeira luz pálida do alvorecer. — Espere aí — disse Jorge
como se finalmente tivesse compreendido as palavras de Franklin. — Você disse que tinha mais tempestades solares?
— Pode ser. Nós provavelmente fomos atingidos por ondas delas nas últimas semanas, mas não o suficiente para perceber. Isso não significa que não haja outra vindo
por aí, talvez até pior do que a primeira série. O Juízo Final é assim. De acordo com a literatura, geralmente não tem nada a ver com ir pro inferno: são vários
eventos interligados e um gatilho bem grande numa arma fumegante.
Jorge pegou a bolsa de Marina e começou a enchê-la às pressas com alimentos e uma bússola, amaldiçoando-se por sua estupidez. Mais recentemente, ele se sentia confortável
com a ideia de que o pior já passara, que os julgamentos de Deus tivessem chegado ao fim e que estavam em um renascimento. Deus, no entanto, talvez estivesse apenas
começando a castigar os pecadores. — O que podemos fazer para nos proteger da radiação?
Mais importante: como posso proteger Rosa e Marina?
— Bom, ficar sentado numa gaiola de Faraday é uma boa jogada. Talvez seja por isso que muitos desses soldados ainda estão correndo por aí enquanto quase todo mundo
morreu ou se sequelou.
— Mas nós não sabemos quando as tempestades solares vão nos atingir. Não dá pra gente viver em gaiolas.
Franklin sorriu com os dentes tortos e puxou a barba. — Agora você está entendendo.
— O seu governo e os seus soldados podem lutar por ideais idiotas — opinou Jorge. — Se eu morrer, vai ser para proteger a minha família.
Franklin pegou o machado ensanguentado de seu lugar, encostado no fogão a lenha. — Espero que a gente fique do mesmo lado, Jorge, porque eu testemunhei o que acontece
quando alguém fica no seu caminho. Tem um dragão adormecido aí dentro. Precisamos de homens livres como você.
Quando as pessoas ficam no caminho.
Jorge pensou na menina Hello Kitty na floresta e na alucinação, em que ela falava alguma coisa. Jorge não mencionara isso para Franklin com medo de que o velho achasse
que ele estava perdendo o juízo. Ele precisava de Franklin para ajudá-lo. Mesmo que Franklin fosse impulsionado por uma missão pessoal, ele mostrou ser um sobrevivente
e conhecia o território.
Em uma situação que nunca existira na história mundial, talvez a experiência não importasse, mas, até que Jorge encontrasse a família, usaria todas as ferramentas,
armas e recursos que conseguisse encontrar.
Franklin destrancou a caixa-forte e entregou a Jorge uma pistola. — A Glock tem dezessete tiros. Se a gente ficar rodeado de sequelados, guarde a última bala para
si mesmo.
CAPÍTULO 24
Um tubarão pegou a perna dela.
Ela ainda mergulhou na água escura para procurar Chelsea, mas a dor era intensa. Ela chutou para tentar se livrar do tubarão. Chelsea já estava submersa por minutos,
talvez? Ou anos? Florões vermelhos coloriam a água ao redor e a superfície acima brilhava com mil diamantes azuis. Ela lutou para respirar, lutou para se libertar,
lutou contra a inevitável força da maré de gravidade que a puxou para o centro da terra e para a escuridão final.
— Rachel? — O ombro dela tremeu e ela pensou que o tubarão tinha descoberto um novo pedaço, mas, em seguida, reconheceu a voz de Stephen.
O que ELE está fazendo aqui? Ele não veio ao lago conosco.
Ela abriu os olhos para a luz do sol. A perna ainda pulsava, mas estava livre.
— Caramba — disse Stephen — fiquei preocupado. Você não acordava.
Rachel se sentou. Ela ainda estava no banco do motorista da perua, mas o assento estava reclinado e afastado do volante. Uma perna da calça jeans estava rasgada
no joelho, com um curativo cobrindo a mordida de cão na panturrilha. Ela não se lembrava de tê-lo feito. A porta do passageiro estava aberta, deixando entrar uma
brisa fresca de outono. O fedor estava presente, mas não era mais avassalador.
— Já é de manhã — disse ela. A garganta estava rachada e seca. Como se lesse seus pensamentos, Stephen lhe estendeu uma garrafa de água. Ele estava no banco do passageiro
com um gibi no colo.
— Obrigada — disse ela, pegando a água. — Então você pegou nossas mochilas.
Ele deu de ombros. — Não tinha mais nada pra fazer.
— E você… limpou o carro.
— Era mais fácil que tentar te virar. Eu sou criança.
Não, Stephen, você é muito mais do que apenas um garoto.
Ela tomou um gole e depois bebeu profunda e agradecidamente. A água estava quente e com gosto de plástico, mas foi a melhor que ela já provara. Muito melhor do que
a água venenosa do lago Norman, que, até onde soubesse, não tinha tubarões, mas criaturas muito mais mortais.
Lembranças.
Culpa.
Entre a perua e o caminhão estavam o pastor-alemão e o golden retriever mortos. — Cadê o outro cachorro? — perguntou ela.
— Ele pegou um pouco da carne e entrou na mata.
— Você deveria ter ficado no carro. Ele podia estar olhando.
Stephen deu de ombros. — Ele não queria nos machucar. É só um cachorro. Igual aos sequelados; são pessoas, né?
— Nós não sabemos o que eles são.
— Bom, eles eram pessoas, não eram? Não podem ser todos maus. Em algum lugar dentro deles, eles têm amor, essas coisas, né?
— É complicado.
— E os que Jesus salvou? Eles não são maus, né?
Rachel se inquietou com o curativo. A pomada saía pelo tecido com um líquido amarelo-vermelhado nojento. — Aí, só perguntando pra Jesus.
Felizmente, para ela, Stephen mudou de assunto, como fazem os meninos. — Posso ter um cachorro? Depois que isso acabar?
Isso nunca vai acabar, querido.
Mas ela não podia dizer-lhe isso, por isso apelou para aquela resposta atemporal dos adultos. — Vamos ver.
— Será que o DeVontay vai nos alcançar hoje?
— Talvez. Mas ele pediu pra gente continuar andando. Olha aquele posto de gasolina lá.
Stephen sorriu. — Será que vai ter carne seca?
— Tomara. — Ela flexionou a perna, testando se seria capaz de andar, mas achou que, se ficasse sentada mais tempo, a perna endureceria e doeria ainda mais. O posto
de gasolina devia ter alguma pomada antibiótica e água oxigenada, e também aspirina.
— Certo, vamos nos aprontar. — Estava ansiosa para sair do veículo fétido, mas, até se aprontarem e ela poder abrir a porta, já estava suando com o esforço, mesmo
com uma manhã de outono tão agradável. Ela torceu para não ter febre por causa da infecção.
Stephen a esperava do lado de fora do carro. Ela cerrou os dentes e apoiou o peso sobre a perna machucada. A dor veio em onda, mas a disfarçou para Stephen não perceber
e não ficar preocupado. Quando ela se levantou, segurou o teto do carro para não balançar.
— Tá tudo bem? — perguntou Stephen.
— Eu vou conseguir.
— Você me disse que não era pra mentir.
— Tudo bem. Está horrível, mas eu vou me sentir ainda pior se nós nos sentarmos aqui e os sequelados nos levarem. Além disso, é só um ou dois quilômetros. Eu consigo
andar isso, não acha?
Stephen franziu os lábios, parecendo muito sábio e maduro para um menino daquela idade. — Vamos ver.
Ela, mancando, deu alguns passos e ele a apoiou pelo braço direito para aliviar um pouco do peso. No início, ela resistiu, pois não queria parecer fraca e dependente,
mas logo se apoiou nele e eles conseguiram manter um ritmo pelo acostamento da rodovia para não transitar entre os veículos ocasionais.
Quando chegaram ao topo da subida, no entanto, o suor escorria pelo rosto de Rachel. Eles pararam uma vez para beber água e descansar um momento à sombra de um caminhão-baú.
Abaixo estava a rampa de saída, com um restaurante, uma lanchonete e um lava-a-jato ao lado do posto de gasolina. As casas eram visíveis ao longo da estrada vicinal,
espalhadas pelas encostas arborizadas. Mais adiante, os imensos volumes das montanhas Blue Ridge se elevavam em direção ao céu da manhã.
— Acho que deve ter gente aqui — observou Rachel.
Stephen se abanava com um dos gibis. — Tá falando dos sequelados?
— Sim, eles também.
— Bem, é o que costumam dizer por aí: temos todo o tempo do mundo.
— E a lanchonete? É por minha conta.
— Os hambúrgueres devem estar nojentos agora. Além disso, deve estar cheia de gente morta.
— Tudo bem, então. Vamos ficar com os lanches ensacados.
— Posso pegar um refrigerante?
Rachel considerou. — Bem, eu acho que você merece um agrado por cuidar de mim.
— Hora de lanchar. — Stephen arrancou uma página do gibi, foi até o veículo mais próximo, uma picape, e colocou o papel sob o limpador de para-brisa. Meteu o que
restava do gibi na mochila e fechou-a; em seguida, voltou e ajudou-a a ficar de pé.
A perna dela latejava mais do que antes, e a pele estava úmida sob o curativo. Ela não estava ansiosa pela longa caminhada no declive. Olhando para o caminhão, ela
teve uma ideia. — Havia alguém no caminhão?
— Eu não olhei com cuidado, mas não vi ninguém.
— Vamos lá — disse ela. — Sei um jeito mais fácil de chegar lá.
A perua ainda estava com as chaves na ignição, apesar de inúteis. Como a maioria dos sobreviventes, nos dias após as tempestades solares, ela tentou dar a partida
em muitos carros, mas estavam todos inoperantes. A carroceria da picape continha cestas de pêssegos podres e vespas que zumbiam ao redor das frutas.
— É uma descida em linha reta — disse ela. — Os modelos antigos como este geralmente não têm direção nem freios hidráulicos. É só deixar rolar e ir descendo.
— Pelo menos ela está na direção certa. — Stephen não parecia convencido. — Dá pra contornar os carros?
— Moleza. Veja como eles estão espalhados.
— Tudo bem. Vou deixar a minha migalha de pão. — Ele arrancou a página de gibi da perua e foi colocar no para-brisa de um jipão.
Rachel já tinha conferido o freio de mão. O motorista da caminhonete deve ter saído quando o veículo perdeu a potência e descido a pé até a saída com a intenção
de voltar. Nesse caso, ele teria levado as chaves. Ele provavelmente virou um sequelado e partiu para uma matança interestadual.
— Certo, vamos carregar — disse ela, jogando a mochila na cabine.
Stephen abriu a porta do passageiro e colocou a mochila no chão. Ele subiu no banco e olhou para ela. — E aí? — disse ele impaciente.
— A caminhonete não vai descer sozinha. Temos que empurrar.
— Ah. — Ele pulou, correu para a parte de trás da picape e encostou-se na porta da caçamba. Os amortecedores rangeram quando ele empurrou.
— Ainda não — disse ela. — Tenho que botar em ponto morto.
— Por que você não me disse?
— Tudo bem — disse ela depois de mover o câmbio para o neutro. — Quando começar a andar, corre e entra antes de ganhar impulso. Um, dois, três!
A caminhonete era mais pesada do que ela imaginava, e um líquido escorreu canela a baixo a partir da ferida da mordida. Ela se inclinou para dentro para colocar
uma mão no volante com o ombro no batente da porta. Os pneus da caminhonete mal se moveram, e ela cravou os calcanhares e empurrou com mais força, ignorando a dor
que queimava na perna. O caminhão ganhou impulso e a gravidade começou a trabalhar a favor deles.
Ela olhou para trás e viu Stephen ali, de pé, enquanto a caminhonete se afastava. — Depressa! Entra!
— Ahm… Rachel.
— O quê?
Ele apontou para a estrada. Cinquenta metros à frente, cinco figuras formaram uma linha desigual entre as pistas duplas da rodovia. A caminhonete estava ganhando
velocidade e Rachel ia mancando ao lado dela, agarrando-se à porta do motorista. — Vem, Stephen! Seus gibis estão aqui.
Isso chamou-lhe a atenção e Stephen correu para alcançar a caminhonete. Ele abriu a porta e pulou para dentro, com um dos calçados ainda arrastando no asfalto. Rachel
se jogou para ficar atrás do volante e a caminhonete continuava a ganhar impulso. Ela se surpreendeu com a velocidade. Virou o volante para passar entre dois carros
e por pouco não bateu no para-lama dianteiro de um pequeno sedã.
Os vultos não se esquivaram nem reagiram à aproximação da caminhonete. Mas Rachel já suspeitava que eram sequelados e ela se repreendeu silenciosamente por ser complacente
e não prestar atenção em volta.
— Quem são eles? — perguntou Stephen.
— Adivinha — disse ela. Ela apertou o freio para testá-lo e os pneus fizeram atrito com a estrada. Como ela não queria perder o impulso, deixou a caminhonete acelerar
enquanto contornou uma van enguiçada. Os sequelados já estavam a trinta metros à frente e finalmente pareceram perceber uma estrutura de aço sobre rodas indo em
sua direção — dois homens, duas mulheres e um menino da idade de Stephen, vestido com roupas esfarrapadas.
— Eles não vão sair do caminho — disse Stephen, inclinando-se para a frente e agarrando-se ao painel de vinil rachado.
Rachel instintivamente acionou a buzina, esquecendo-se de que o sistema elétrico do veículo tinha queimado. — Coloque o cinto de segurança e tranque a porta — disse
ela, e Stephen obedeceu sem protestar.
Em vez de fugir, os sequelados estavam indo na direção deles.
Rachel pensou em dirigir pelo acostamento na tentativa de evitá-los, mas o canteiro central se inclinava para dentro, formando uma vala de drenagem central. Se ela
perdesse o controle, o caminhão poderia capotar. Ela viu mais sequelados ao longo do canteiro central, nas pistas de saída. O movimento da caminhonete deve tê-los
despertado da atividade que deviam exercer durante o dia enquanto não estavam assassinando sobreviventes.
Ela não teve tempo de escolher um ângulo, mas não suportaria atingir o menino. Mesmo mutante, essa condição não era culpa dele. Ele era inocente.
— Você vai atropelar todos eles — disse Stephen.
Ela quase podia ouvir o riso de Deus no cantar dos pneus. O velocímetro não funcionava, mas Rachel estimou uma velocidade de 55 quilômetros por hora. Os sequelados
estavam de boca aberta enquanto marchavam em direção à caminhonete, mas a voz deles era inaudível de dentro da cabine.
— Segura — disse Rachel, dando uma guinada no último segundo. O para-lama direito pegou em uma das mulheres e ela caiu sobre o capô do motor com um tinc metálico.
Um dos homens desgrenhados olhou diretamente para Rachel, quase desafiando-a com aqueles olhos manchados de dourado, e, em seguida, o para-choque e a grade o mastigaram
e as rodas passaram por cima dele. O caminhão pulou sobre ele como uma lombada de carne.
Enquanto passava, Rachel olhou de soslaio para o rosto do menino sequelado, que passou a pouco centímetros do vidro. O retrovisor lateral quase lhe deu um tapa no
rosto, mas ele mal parecia notar. Quando a caminhonete passou, os sequelados restantes, inclusive o menino, foram atrás dela. Rachel mexeu no espelho retrovisor
para confirmar o palpite de que os sequelados nas pistas opostas também estavam atrás deles.
Ela não tinha nenhuma arma e, com a perna machucada, não conseguiria fugir deles. A distância foi aumentando, mas logo a caminhonete atingiria o nível do solo e
o próximo aclive.
Stephen se virara para trás no banco e ficou de joelhos olhando pelo vidro de trás. — Eles estão vindo.
— Eu sei — disse ela. — Tem alguma ideia?
— Tinha um filme muito legal do Jackie Chan em que ele entrava com o carro numa loja de departamentos.
— Jackie Chan era muito habilidoso — disse ela — e eu não sou.
— Bom, agora ele deve ser um sequelado. E você não é.
— Bem pensado.
Ela evitou pisar no freio e deixou a caminhonete no máximo de impulso ao pegar a saída. O posto de gasolina estava à esquerda, do outro lado do cruzamento. Ela guiou
a caminhonete em uma linha reta para que ela pulasse a divisória de concreto, passou por uma placa de “Pare” e rolou até o estacionamento do posto.
— Eles estão vindo atrás de nós — disse Stephen.
Rachel olhou no retrovisor lateral. Dezenas de sequelados saíam da mata, cambaleando como refugiados de uma zona de guerra. As roupas deles eram farrapos sujos,
dependurados e soltos. Alguns deles estavam nus, com a pele pálida como vermes na luz da manhã.
Alguns dos mais jovens começaram a correr. Um homem de pele escura carregava um pedaço de cano erguido como um general persa liderando um ataque contra os espartanos.
De tronco nu, os músculos dele brilhavam de suor enquanto os pés descalços batiam no pavimento. Outros imitaram o seu entusiasmo e começaram a correr um pouco atrás
da caminhonete, alguns deles portando armas ou ferramentas manuais.
— Cuidado! — gritou Stephen.
Rachel olhou para frente a tempo de ver as bombas de gasolina a uns três metros. Ela puxou o volante para a direita, mas já era tarde. O pneu dianteiro esquerdo
atingiu a ilha de concreto elevada e, em seguida, a caminhonete cortou o caminho entre elas, deslocou duas bombas do chão e abriu um gêiser lento de gasolina. Uma
das mangueiras se soltou e se contorceu no ar como uma cascavel agitada cuspindo seu veneno de petróleo.
O impacto arremessou Stephen para frente e ele bateu o queixo no painel. Rachel cravou o pé no freio e a ferida da mordida provocou jatos vermelhos de dor pela perna.
No momento em que ela conseguiu fazer a caminhonete parar, a gasolina estava formando uma piscina em torno das bombas.
— Rápido, sai! — disse ela freneticamente enquanto soltava o cinto de segurança de Stephen. Ele segurava o queixo por causa da dor, com um fio de sangue em um canto
da boca.
Ele abriu a porta com um chute e arrastou a mochila consigo, pois não queria abandonar a coleção de gibis mesmo sob o perigo de um sequelado o pegar. Rachel agarrou
a mochila dela, foi para o lado do passageiro e saiu dos fortes vapores de gasolina.
Ainda bem que não tem energia elétrica, senão as bombas alagariam o estacionamento inteiro.
E que bom que o atrito do metal não causou nenhuma fagulha.
— Dirige bem, hein — disse Stephen.
— Da próxima vez, você chama o Jackie Chan. — Ela agarrou o pulso de Stephen e foi mancando em direção à loja do posto. Quando chegou à porta, ela viu que a falta
de energia ali era mais negativa do que positiva.
A porta era automática, acionada por um detector de movimento. A eletricidade pertencia ao mundo das nuvens de chuva e da estática no náilon, não mais dos fios e
interruptores.
— Temos que quebrar o vidro — disse ela.
— De jeito nenhum — opôs-se Stephen. — Esse vidro tem uns dois centímetros de espessura. Acho até que é à prova de balas.
Os sequelados devem ter sido atraídos para a área povoada — talvez eles tivessem morado ali e agiam conforme algum tipo de memória persistente ou instinto. Qualquer
que fosse o motivo, eles estavam agitados por aquela interrupção súbita. Eles provavelmente eliminaram todos os sobreviventes da área semanas atrás e aí apareceram
dois humanos para perturbar a rotina, o que reavivou a sua necessidade de destruir.
Porque eles estavam vindo rápido.
— Não vou conseguir correr mais do que eles — disse ela, apontando para o curativo ensopado e vermelho na perna.
— Consegue, sim — disse Stephen com os olhos arregalados de medo. — Você é a Rachel.
— Não — disse ela. — Você tem que correr. O mais rápido que puder. E não olhe para trás.
Stephen estava à beira das lágrimas. Os olhos de Rachel também marejaram.
É a gasolina. Ah, é, com certeza.
— Eu vou distraí-los — disse ela, apontando para a lanchonete. — Vou entrar lá e fazer eles irem atrás de mim. Enquanto isso, você corre para a floresta.
— Precisamos de uma distração? — perguntou Stephen, esfregando os olhos e fungando. — Taca fogo. Foi o que aquele cara fez em Taylorsville, lembra?
Rachel se lembrou de como as fogueiras enormes atraíram os sequelados, criando um caos sedutor, barulhento e colorido que provavelmente avivava neles uma compulsão
pela destruição. Se a devastação era a droga de escolha deles, Rachel lhes ofereceria uma rodada infernal.
A questão era como fazê-lo sem imolar a si e ao menino. Ela tinha visto muitas videocassetadas na internet para saber que brincar com gasolina e fósforos não era
a coisa mais inteligente do mundo. Mas ela não teve tempo para elaborar um fusível inteligente para oferecer uma barreira de segurança razoável.
Jackie Chan já teria resolvido esse problema.
Ela abriu a mochila, jogando fora latas de comida e suco engarrafado, perguntando-se por que acumular tanto se eles estavam em uma área civilizada. Mas o Dia do
Juízo Final tinha essa incerteza: não havia plural. Tudo era o agora.
— Tudo bem — disse ela, tirando uma echarpe longa de lã que furtara de uma loja de departamentos. Era avermelhada e acentuava os olhos castanhos e o cabelo louro
escuro. Ela a roubara pensando em um futuro no qual a moda ainda tivesse alguma importância. — Vou improvisar. Mergulhe isto na gasolina e tome cuidado para não
cair na roupa.
Stephen obedientemente correu para a piscina rasa de combustível. Rachel levou a mão a um bolso lateral até encontrar um isqueiro.
Obrigada, Senhor, pelo gás butano.
Ela percebeu que era a primeira vez em semanas que agradecia a Deus. Se aqueles arremedos cambaleantes e apressados de humanidade no encalço deles fossem parte de
algum plano divino, ela estaria totalmente disposta a exercer o seu livre-arbítrio para destruí-los.
Matar só é pecado se o matador sabe o que está fazendo? Talvez esses sequelados sejam mesmo criaturas abençoadas de Deus por não sofrerem a dor da culpa. Eles pregariam
Jesus na cruz e chamariam de favor, e não um sacrifício para pagar ao longo dos séculos.
— Depressa, Stephen! — gritou ela.
O sequelado mais próximo já estava a uns cem metros de distância. Dois pequenos bandos também se aproximavam de cada sentido da estrada lateral, e Rachel percebeu
pela primeira vez que eles pareciam locomover-se em grupos como animais de carga.
Ela tinha uma vaga sensação de que o comportamento deles estava mudando, mas estava preocupada demais com a sobrevivência diária para questioná-la. Como a maioria
dos momentos “a-há!”, aquele chegou com tanta pressa que ela não teve tempo de processar, mas apenas reagir.
Stephen arrastou o lenço de volta segurando os fios desfiados de uma extremidade, deixando inadvertidamente um rastro fino de gasolina enquanto corria para longe
das bombas.
— Muito bom — elogiou ela quando ele voltou, tirando o lenço dele e colocando-o na calçada. — Vou começar a chamar você de “Chan Júnior”.
— Pelo menos você não vai me chamar de “querido”.
— Desculpe. É um hábito do meu tempo de aconselhamento.
Isso nem fazia tanto tempo assim, mas era literalmente de outro mundo, o mundo do Antes. E aquelas experiências não lhe ensinaram bulhufas acerca de incendiar postos
de gasolina sem explodir a si mesma e a uma criança em mil pedaços.
— Eu não posso acender isto antes de você sair — disse ela, manuseando o isqueiro. — Você tem um pouco de gasolina na sua roupa.
Ele cheirou a manga. — Não tô sentindo cheiro nenhum.
— Começa a correr — ordenou ela — por trás do posto até o morro.
— E se eu me perder?
Os sequelados estavam próximos a ponto de Rachel ouvir seu estranho silvo — parecia o núcleo chiado de uma lareira de inverno gigante. — Eu vou logo depois. Só quero
ter certeza de que você está seguro antes de acender isto.
Stephen assentiu. — Talvez o DeVontay veja a fumaça.
— Talvez. Agora vai.
Ela esperou até ele desaparecer ao redor do prédio, torcendo para não haver mais sequelados descendo dos morros em volta. A ela, só restava esperar.
E tacar fogo no mundo deles.
Ela acionou o isqueiro, levantou a ponta desgastada do lenço e incendiou-a. As fibras enroladas se encolheram e, em seguida, o fogo se propagou ao longo do comprimento
do tecido mais rápido do que ela previra. Ela deixou cair o lenço e fugiu, imaginando o tamanho da explosão e quantos passos ela conseguiria dar antes de…
CA-BUUUUUM.
Grande parte da força da ignição deslocou imediatamente o ar, levantando a cobertura de metal da ilha de bombas. As vidraças da frente da loja se quebraram para
dentro. A caminhonete capotou de lado e as chamas lamberam o fundo oleoso do motor. A força súbita da combustão a atingiu nas costas como um soco. Rachel foi jogada
no cenário caótico entre a bomba de querosene e a caçamba de lixo, rolando na terra encharcada e nas sempre-vivas.
Que inferno.
Ela se levantou, apoiando-se nas mãos e nos joelhos, tossindo e sufocando com as nuvens negras de fumaça agitando-se pelo estacionamento. Ela não sabia quantas bombas
ainda viriam a incendiar-se. Ela lera em algum lugar — provavelmente em algum site maluco que o avô Franklin lhe enviara — que a gasolina armazenada em tanques sob
a superfície não explode por falta de oxigênio, mas que as aberturas do tanque queimam como isqueiros gigantes até esgotar o combustível.
Rachel não tinha planos de ficar por ali e testar a teoria. Ela ficou de pé e foi mancando até o morro na direção em que Stephen tinha ido.
CAPÍTULO 25
— Bem — disse Franklin. — Só existem mesmo três possibilidades.
Jorge mal ouvia Franklin. Ele suspeitava que a paranoia do velho transformara excentricidade em esquizofrenia limítrofe. Em circunstâncias normais — se, digamos,
Franklin fosse um colono amigo dele —, Jorge só assentiria sem realmente concordar e o evitaria sempre que possível.
Entretanto, ali nas montanhas Blue Ridge, com a raça humana quase extinta, o gênio demente e peculiar de Franklin podia até ser um trunfo.
Afinal de contas, não tem nenhum psiquiatra aqui pra dar o laudo de louco.
Willard, um dos colonos locais, criara-se nos campos das montanhas do Tennessee e gostava das noites de sexta, quando sempre aparecia com uma jarra de vidro com
algum goró caseiro. Ele cantava desafinadamente sobre velhos bêbados ficando mais numerosos que velhos médicos, deturpando a letra em blocos incoerentes de choros
e gemidos de gato selvagem.
Na última vez que Jorge vira Willard, o velho bêbado era um sequelado enlouquecido que o atacara no sótão do celeiro. No momento, porém, nenhum médico poderia ajudar
Willard.
Franklin passou o binóculo para Jorge. — Olha, lá longe — disse ele.
Eles estavam sentados em um afloramento rochoso, com uma vista impressionante das montanhas circundantes e do vale que trilhava pelos sopés ao sul. Jorge olhou pelas
lentes na direção que Franklin apontara. Havia uma coluna de fumaça oleosa subindo no vale do lado de uma banda cinzenta e contorcida de estrada.
— Acho que tem uns sequelados fazendo churrasco — opinou Franklin.
Jorge não estava interessado. Rosa e Marina não teriam tempo de chegar ao vale, mesmo se tivessem arrebanhado os cavalos que soltaram na natureza. Portanto, pelo
que lhe concernia, o fogo poderia muito bem estar na televisão.
— Quais são as três? — perguntou ele.
— O quê? — Franklin pegou o binóculo e examinou o vale novamente.
— As três possibilidades.
— Bem, elas podem ter sido levadas pelos sequelados, ou pelos soldados, ou podem ter ido embora sozinhas por outro motivo qualquer.
— Não tinha nenhum sinal de luta. A Rosa teria lutado.
— Foi o que eu imaginei. Ela parece ser braba mesmo.
— Ela é uma boa esposa. E uma boa mãe.
— É, sim. E Cathy… sabe-se lá que tipo de mãe que ela é.
— Mas por que elas iriam embora? Tinham comida, abrigo e segurança.
— Quer saber a minha teoria? — Franklin se deslocou para a esquerda para olhar o cume adjacente. As árvores no pico já tinham perdido as folhas; os gravetos marrom-acinzentados
se misturavam aos pinheiros. Nos declives ainda havia amostras de vermelhão, cor-de-abóbora e amarelo-claro que o vento do outono ainda estava por desfolhar.
Jorge tinha medo da teoria de Franklin porque ela confirmaria as preocupações mais tenebrosas que ele alimentava. Mas cada momento de incerteza era mais um momento
em que sua família estaria em perigo.
— Você acha que é o bebê? — perguntou Jorge. Ele tocou o bolso em que estava o pedaço de papel com as palavras em lápis de cera: “Ele é louco”.
— Você viu os sequelados na trilha. Eles não nos atacaram com aquela vontade toda.
— Você atirou neles. Claro que eles atacaram.
Franklin baixou o binóculo e olhou para ele sob as sobrancelhas cinzentas. — Você está do lado deles agora? Porque somos nós contra eles, e há muito mais deles do
que de nós.
— Eu não estou do lado de ninguém, só da minha família — disse Jorge. A coluna de fumaça no vale crescera e ficara visível a olho nu.
— Bom, eu respeito isso, mas não vá correr no calor da batalha da próxima vez. Se não confiarmos um no outro, não teremos nenhuma chance.
Jorge reconheceu a necessidade imediata de sobrevivência e o idealismo de longo prazo na declaração do velho. Apesar da paranoia, Franklin era também um otimista,
um homem com muita esperança no potencial da sua raça, mas que sofrera decepções contínuas.
— Se o bebê fez elas irem embora, aonde iriam?
Jorge não sentia tanta repulsa pela criança mutante quanto Franklin, mas ele passou a atribuir tardiamente motivos sinistros para o comportamento dela. Que impulso
era esse da mãe de se arriscar para salvá-la? Na verdade, por que Franklin e ele as resgataram quando estavam sendo perseguidas por outros sequelados? E por que
Franklin ainda permitiu que a criatura fosse para o complexo, tendo em vista o ódio que sentia pelos sequelados?
Mas é só uma criança. Estranha, mas uma criança inocente.
— Ela pode ter decidido levar o neném até eles. — Franklin olhou para o horizonte a leste, onde o sol vinha reivindicar aquele lado do mundo. — Talvez Cathy tenha
mudado.
E se Marina e Rosa mudaram? Será que eu ainda as amaria? E se EU estiver mudando?
— Você acha que as pessoas podem pegar a doença do sol? — perguntou.
— Eu acho que é possível adoecer por conta própria. — Franklin meteu o binóculo na mochila e botou a espingarda no ombro. — É melhor a gente ir. Não quero perder
os rastros.
Na floresta, eles localizaram três conjuntos de pegadas: um menor e dois maiores. A lama não revelava o sentido em que iam, mas era a única pista que tinham encontrado.
Franklin achou que o grupo tivesse seguido o caminho mais fácil para o vale. Mesmo que Rosa e os outros estivessem adiantados em um dia, a criança os atrasaria.
Enquanto Jorge seguia Franklin de volta para a trilha, ele se perguntou novamente por que Rosa não deixara nenhum sinal ou mensagem. Rosa não gostava de guardar
segredos. Mas, enfim, existe algum homem que conheça realmente uma mulher?
Franklin foi pela trilha a passos largos, ereto e alerta, enquanto Jorge muitas vezes ficava para trás, ruminando sobre as terríveis possibilidades. Seu pensamento
obsessivo era contraproducente, mas ele não conseguia se libertar da ansiedade e da depressão. Para complicar ainda mais, ele matara um homem.
Não um sequelado: um homem.
Mesmo considerando o assassinato um ato de autodefesa, ele cruzara uma fronteira moral que nunca soube que existia, e nenhuma racionalização poderia trazer aquele
jovem soldado de volta à vida. Como não tinham tempo de lhe dar um enterro apropriado, arrastaram o cadáver para a floresta e cobriram-no de folhas, onde os carniceiros
em breve fariam a festa.
Jorge estava tão absorto em sua culpa que quase colidiu com Franklin quando o velho parou de repente.
— Que foi? — perguntou Jorge enquanto Franklin lentamente levantou as mãos para o ar.
— Tô ficando velho, só isso — murmurou Franklin. — Tô ficando velho demais pra isso.
Foi quando Jorge viu os homens dos dois lados da pista apontando armas semiautomáticas para eles.
Jorge pensou em pegar a espingarda, mas percebeu que Franklin não se preocupou em resistir. A situação deles era realmente sombria.
— Muito bem, muito bem — disse um dos soldados saindo dos arbustos. As mangas cáqui do uniforme estavam enroladas até as três listras perto do bíceps. Um charuto
apagado pela metade pendia do canto da boca e modulava a fala do sargento. — Você deve ser o famoso Franklin Wheeler.
Franklin mantinha os braços levantados. — Eu não sabia que era famoso. Eu preferiria “lendário” ou talvez “visionário”.
— Ninguém vira lenda se não estiver morto. Mas talvez a gente possa dar uma mãozinha nisso aí.
Jorge imitou Franklin e levantou os braços no ar com cuidado para não fazer movimentos bruscos. Os dois jovens soldados atrás do sargento estavam nervosos e de olhos
arregalados, com a ponta das armas tremendo enquanto apontavam para os recém-prisioneiros.
O sargento acenou para um deles, que deu um passo adiante e tomou a espingarda de Franklin e, em seguida, a de Jorge.
— Quem é o seu amigo? — perguntou o sargento a Franklin. — Um miliciano dos sobrevivencialistas?
— Eu saí do negócio da milícia — respondeu Franklin. — O governo começou a queimar o pessoal.
— Agora, Sr. Wheeler, eu diria que isso ficou no passado, não?
Franklin resmungou enquanto o soldado pegou sua mochila e vasculhou-a em busca de armas. — Tá em guerra com os sequelados agora?
— Ele tá limpo, sargento — relatou o soldado ao sargento. Para Jorge, eles não passavam dos dezenove anos de idade.
— Confere o mexicano — ordenou o sargento.
— Eu sou americano — corrigiu Jorge, puxando um sorriso amarelado de Franklin. O soldado tirou a mochila, apalpou a lateral e a parte inferior das pernas dele e
afastou-se, baixando novamente a arma.
— Então, aonde os companheiros estavam indo? — perguntou o sargento enquanto riscava um fósforo contra o cinto e acendia o charuto. — Caçar cervos?
— Estamos procurando a minha esposa e a minha filha — respondeu Jorge.
— Elas são sequeladas?
— Não, são americanas também.
Um dos soldados riu e o sargento o fulminou com uma carranca ameaçadora. — Tô sabendo, espertão. Vocês estão invadindo uma zona militarizada. Pela Lei Patriótica,
vocês podem ser detidos sem julgamento sob suspeita de atividade terrorista.
— Aqui não é nenhuma zona militar — contestou Franklin. — É um parque nacional.
— É o nascimento de uma nova nação, Sr. Wheeler. Novas leis, novas fronteiras. Os cidadãos não sabem ainda, mas, assim que esta guerra acabar, vamos dar um jeito
nas coisas.
— Meu Deus — disse Franklin. — Só faz seis semanas desde o Juízo Final e já tem ditador e tirania querendo ficar por cima, como baratas num lixão.
Jorge não se preocupava com leis antigas nem novas. Ele estava desesperado para encontrar Rosa e Marina, e cada segundo desperdiçado podia diminuir as chances de
encontrá-las. — Vocês viram três mulheres e um bebê?
O segundo soldado, um homem asiático de aparência esguia com um boné cáqui, se virou para trás e disse com sotaque: — Quem me dera ver três mulheres. Não dou umazinha
desde junho.
— Que mentira, Huynh — disse o sargento. — Não está contando com a sua mão direita.
— O que você quer com a gente? — perguntou Franklin. — Nós não somos uma ameaça para vocês.
— Ainda precisamos averiguar — disse o sargento, que foi até Franklin e exalou no rosto dele a fumaça do charuto. — Tinha alguém atirando na mata ontem, e não era
arma militar. Na verdade, parecia muito com as armas de chumbinho que vocês estavam levando. Pá pá pá.
Franklin piscou por causa da fumaça, mas não recuou da postura agressiva do sargento. — Fui eu. Atirei nuns sequelados. Isso não é nenhum crime, né?
— Poxa, acho que vou te indicar pra ganhar a Estrela de Bronze. Mas eu estou mais preocupado com dois rapazes nossos que sumiram.
O sargento andou até encarar Jorge. Ele cheirava a suor velho, bebidas e pólvora. — Você não sabe nada sobre isso, não é?
— Não, senhor. — Isso foi mais difícil do que ignorar os olhares e provocações dos caipiras na loja de ração. Havia muito tempo que Jorge aprendera a esconder os
sentimentos.
O sargento relaxou um pouco no “senhor”, obviamente sentindo que Jorge não merecia sérias considerações. Mas ele confundiu anuência com fraqueza, assim como muitos
dos gringos que Jorge tinha enfrentado — e sobrevivido — nos últimos anos.
— Fala a verdade, sargento — disse Franklin — você não acha que temos problemas maiores do que uns meninos que resolveram fugir?
O sargento se moveu com uma ferocidade tão súbita que os soldados engasgaram e recuaram. Ele estapeou Franklin na lateral da cabeça, fazendo com que o velho caísse
de joelhos. — Você não respeitava as leis antigas, mas pode ter certeza de que respeitará as novas!
Jorge correu para ajudar Franklin, mas o sargento meteu-lhe um cotovelo no peito e o empurrou para longe. O soldado asiático enfiou o cano da arma nas costas de
Jorge.
Franklin cuspiu sangue. — Ouvirei o sino da liberdade.
O sargento jogou fora o charuto e puxou a pistola do coldre lateral. Jorge temia que fosse atirar em Franklin, mas o homem a girou pelo guarda-mato, segurou-a pelo
cano e deu uma coronhada na cabeça de Franklin com um estalo alto.
Franklin caiu como uma pedra. O sargento acenou para os dois soldados. — Pega e leva ele pro abrigo.
— Pô, sargento — disse o asiático — por que você não podia ter espancado ele depois de a gente levar pro abrigo?
— Quer ser o próximo? — O escárnio cruel do sargento foi suficiente para estimular os soldados.
Parece que a nova lei é o que esse homem aí disser.
O sargento acenou com a pistola para Jorge, fazendo-o andar pela trilha. — Eu tô achando que você não é teimoso como o Wheeler. Por isso, eu sugiro ir andando.
— Mas e a minha esposa e minha filha…
— Elas agora são isca de sequelado.
— Eu sei onde está o McCrone.
O sargento ficou interessado na hora. — McCrone? Como você sabe o nome dele?
— Ele nos implorou para ajudá-lo. Eu não queria nada com ele. Eu sabia que não devia mexer com o exército americano.
— Tá certo. Pelo menos alguém aqui se lembra do Álamo.
O exército de Santa Anna realmente sitiara o Álamo para suprimir uma revolução de imigrantes ilegais indesejáveis dos Estados Unidos, mas Jorge achou que o sargento
não gostaria de receber a lição de história. — Ele disse que estava fugindo.
— Onde ele está?
Jorge olhou o homem nos olhos, que eram cinza esfumaçado e salpicado de azul-gelo. — Eu matei ele.
O sargento apertou os olhos, analisando Jorge. Em seguida, deu um tapa na própria coxa e gargalhou. — Porra, cucaracha, eu quase acreditei em você.
— O outro tá morto também, mas não fui eu.
— Droga. — O sargento limpou a boca com a manga, irritado e impaciente. — Os sequelados devem ter pegado ele.
Os soldados ajudaram Franklin a ficar de pé. Um grande nó vermelho apareceu na cabeça dele com um fio de sangue escorrendo até o ouvido. Ele estava quase inconsciente
e claramente sofrera uma concussão, mas os soldados o apoiaram e arrastaram-no trilha abaixo.
O sargento empurrava Jorge na frente deles. — Anda.
— Por que não me deixam ir? Não tenho nenhuma utilidade pra vocês.
— Você é culpado de crimes contra o Estado. Já tivemos um motim, mas as coisas agora estão diferentes. Desta vez, vamos fazer do jeito certo.
Jorge se perguntou por que o sargento não os matou ali mesmo. No entanto, ele também acreditava que, se resistisse, seria morto e não haveria nenhuma esperança de
rever Rosa e Marina.
A mais ínfima das esperanças era melhor do que nada.
Assim sendo, ele marchou.
CAPÍTULO 26
O quarto recebia luz do dia suficiente para Campbell conseguir ver os rostos vazios dos que se reuniam em torno dele.
Ele estava exausto e derrotado, faltando energia até para desesperar-se. Os horrores da morte de Wilma à noite ainda estavam vívidos na mente dele, com os gritos
dela ressonando dentro da cabeça.
E pode acontecer com você também. Basta se levantar e sair andando.
Campbell se sentou na cama e o professor estava do lado dele. Na mesinha de cabeceira havia dois pratos de comida para eles, dispostos de forma bem semelhante aos
da mesa obscena da sala de jantar. Por sorte, a comida não era carne humana, mas ervilhas em conserva, uma pilha de massa crua formando bolo branco e pegajoso e
uma cenoura murcha.
Pelo menos no quarto não havia nem mortos, nem mutilados. No quarto ao lado, Donnie emitiu um grunhido ocasional de dor.
— Temos uma janela — observou o professor — e temos comida. E estamos vivos. Afinal, poderia ser bem pior.
O grito abafado de Donnie pontuou a declaração.
Campbell ignorou os quinze ou mais sequelados sentados de pernas cruzadas no chão diante deles com as palmas das mãos entrelaçadas. Eles olharam para uma pintura
emoldurada na parede acima da cabeceira da cama. Nele, Jesus levava as mãos em oração, com um globo de radiação ao redor dos cabelos e barbas longos. Jesus olhava
para o céu da mesma forma como os sequelados olhavam para a pintura: com intensa adoração e solenidade.
— Como é que você veio parar aqui? — perguntou Campbell ao professor.
— Assim como você, imagino eu. Conhecemos Wilma na estrada e ela disse que tinha comida. Arnoff queria chegar ao Marco 291, mas Pamela reclamou e, em seguida, Donnie
descobriu que seq…
O professor se deteve e olhou para a congregação, mas os sequelados estavam absortos em seu mimetismo sagrado. — Donnie quis atirar em mim. Por esporte. Ele disse
que fazia tempo que não praticava tiro ao alvo. Eu era ambivalente e pensei que Wilma estivesse um pouco ansiosa, mas fui junto quando Arnoff afrouxou.
Campbell usou o garfo para espetar um par de ervilhas e pô-lo na boca. Um dos sequelados mais próximos, uma avó de cabelos brancos ralos, imitou o movimento dele
e mastigou o ar, embora ela tivesse perdido a dentadura muito antes disso. Campbell já não estava com fome, mas ele se obrigou a comer, sabendo que precisaria de
força.
Uma hora ou outra você vai correr ou se matar.
— Fui enganado pela minha própria curiosidade — disse Campbell. — Quando eu vi o jeito que ela vivia, pensei: “Se chegamos a esse ponto, não adiantaria nem tentar.
A raça humana acabou.”
— E aquele cachorro sarnento, o Amendoim?
— Está trancado no trailer, mas lá tem comida para semanas.
— Então como ela conseguiu trazer vocês para esta casa? — perguntou Campbell. Pela janela, ele via sequelados na campina. De alguma forma, eles cercaram uma galinha
e agitavam os braços como crianças imitando o bater frenético das asas.
— Ela disse que havia muitos suprimentos aqui. Armas, comida enlatada e um abrigo de sobrevivência no porão. Aí o Arnoff ficou doido. Ela nos trouxe aqui um pouco
antes de escurecer, assim como fez com você. Quando vimos, eles já estavam em cima de nós.
Parecia estranho estar ali entre eles e falar sobre o seu comportamento mortal com eles ali sentados humildemente como ovelhas. Mas, desde as tempestades solares,
tudo ficou muito estranho. Nenhum dos cenários fictícios de Juízo Final, nenhum videogame o havia preparado para a realidade de uma civilização extinta.
Não apenas uma civilização extinta, mas uma imitação profana da sociedade prestes a ocupar esse lugar.
— Eles arrancaram a língua do Arnoff só para ver como funcionava — disse o professor resignado. — E ele só tinha gritado, o que deve ter chamado a atenção deles.
Eles se revezavam para tocar os dedos da Donnie, dobrando-os e arrancando-os como se não entendessem para que serviam. E Pamela…
— Eu não entendi. Se eles estão aprendendo, como aprenderam a amarrar cordas? Quem ensinou isso pra eles? — Campbell mordeu a cenoura sonoramente. Um dos sequelados
se virou para olhá-lo e ele calmamente a triturou entre os molares.
O professor acenou para os sequelados e depois para a imagem de Cristo que eles imitavam. — Acredito que eles aprenderam com as imagens. Quando eles… me cercaram…
eu tinha corrido para outro quarto, e havia revistas e fotografias espalhadas pelo chão. Acho que era um quarto de adolescente porque tinha um monte de livros. E
alguns… ahm…
O professor baixou a voz. — Pornografia com amarras.
O estômago de Campbell se retorceu com o conteúdo recém-ingerido. — Pamela?
O professor tirou os óculos e limpou as lentes. — Suponho.
Campbell estava feliz por não ter visto o que acontecera com ela. Lá fora, a galinha fugira e os sequelados caminhavam no prado ao léu.
— Como descobriu o que eles queriam de você? — perguntou Campbell.
— Do mesmo jeito que você descobriu na noite passada. Quando gritei, eles gritaram algumas das minhas palavras. Aí percebi que, se eu não lutasse como os outros,
eles se acalmariam.
— É assustador quando eles ficam parados em torno de você assim. Eu quase gostei mais deles quando estavam tentando me matar. Pelo menos aquilo eu entenderia. Mas
isto… — Campbell acenou para os sequelados. Dois deles no meio acenaram de volta.
— De uma forma estranha, eu cheguei a aceitá-los — disse o professor — e até mesmo a apoiá-los. Eu sempre fui professor e só sei fazer isso. Agora estou aqui, depois
do fim do mundo e ainda ensinando.
— Mas onde isso vai parar? Será que dá pra ensinar coisas tipo paz, amor, essas baboseiras de hippie feliz? Olhe para eles lá fora, no campo. Parecem um grupo de
malucos drogados.
— Até agora, nós só ensinamos a violência.
— Porque temos medo.
— Não me admira. Eu os vi retalhar pessoas com as próprias mãos. E se divertiam.
O professor olhou para a pintura de Jesus, cujos olhos castanhos tristes pareciam refletir uma compreensão do martírio que O aguardava. — Nunca fui um homem religioso,
mas talvez haja uma razão para tudo isso.
Campbell se levantou e bateu o pé. — Não!
Metade dos sequelados saiu do seu devaneio de comoção.
— Calma, Campbell — disse o professor. — Não vá irritá-los.
— Há quanto tempo você está sofrendo na mão deles? Uma semana? Ensinando eles a comer, rezar, amar e limpar depois de fazer cocô, como se fossem pacientes senis
de um asilo? Desculpe, mas isso vai ser difícil de engolir.
Campbell deu um passo, olhando os três metros até a porta e imaginando se conseguiria alcançá-la antes de os sequelados reagirem. Os sequelados estavam ali, observando-os,
com os olhos brilhando com o mais insano combustível que os alimentasse. Mesmo que ele conseguisse chegar ao corredor, não tinha ideia de quantos haveria no andar
de baixo ou em volta da casa.
Campbell deu um riso amargo: — “Não demonstre medo”, era o que a Wilma dizia.
— E ela estava certa — concordou o professor.
— Certo — disse um dos sequelados.
— Certo — disse outro, e depois outro.
— Não está vendo? — disse o professor. — É uma chance de recomeçar. Ensinar-lhes, programá-los, por assim dizer, sem os antigos pecados e fracassos.
Campbell voltou a se sentar na cama e as molas rangeram. Ele dormiria ali aquela noite. Será que um dos sequelados engatinharia até ali, talvez imitando as posições
exibidas na pornografia? Ou ele começaria a ressonar e eles rasgariam a garganta para ver de onde o barulho vinha.
Pode crer, sonhos lindos pela eternidade.
— Eles são como crianças — disse o professor. — Absorvem o que você mostra para eles, por isso tenha cuidado. Essa é, também, a chave da sobrevivência.
— Nada pessoal, professor, mas parece que você envelheceu uns cem anos desde que te vi.
O homem deu um sorriso tenso. — Como professor, agora eu tenho estabilidade.
— Bom, você pode ficar aí com seu plano de aposentadoria se quiser. Eu prefiro morrer.
— Morrer — disse a vovó, seguida de vários outros, até que a sala trovejou com um repetitivo “morrer, morrer, morrer”.
Campbell tentou gritar mais alto e fazê-los calar, ou pelo menos usar uma palavra diferente para repetirem, mas a ladainha continuou. Por fim, Campbell fez a única
coisa em que poderia pensar: uma maneira de silenciá-los, a única opção que restava além de realmente morrer.
Ele pressionou as palmas das mãos, enfiou as mãos sob o queixo e se virou para a pintura em cima da cama.
Dentro de um minuto, o quarto tinha ficado quieto e silencioso de novo, com todos os sequelados em posições de ioga bizarras com as mãos novamente em reverência.
Que diabos. Rezar funciona mesmo.
CAPÍTULO 27
— Bem — disse Franklin — se é assim que eles vinham gastando o meu dinheiro por todos esses anos, eu deveria ter mentido mais no meu imposto de renda.
Jorge não estava disposto a aguentar humor negro do velho. Ele só pensava na esposa e na filha em algum lugar fora dali, enfrentando o perigo e a incerteza. E ele
nada podia fazer.
Os soldados marcharam pelo menos oito quilômetros pela floresta, levando-os a um afloramento de rocha maciça. Jorge tinha certeza de que os soldados atirariam neles
ali e os deixariam para os urubus, especialmente porque Franklin os xingava e insultava a cada passo do caminho.
Em vez disso, levaram-nos a uma fenda estreita que dava para um beco de rochas mais largo, onde uma grossa porta de aço fora instalada e concretada na pedra. Franklin
o chamou de “Esconderijo de Hitler” e o sargento socou-lhe o estômago. Franklin caiu no chão de concreto, tossiu e riu por um minuto, até que o sargento o chutou
na cabeça e deixou-o inconsciente.
Jorge ficou de boca fechada e, por isso, deixaram-no em paz, percebendo os arredores com suas paredes de aço frio e vigas de ferro enferrujado para suportar o peso
da terra acima do abrigo, com armários e prateleiras lotadas de suprimentos. Uma série de lâmpadas iluminava o longo corredor com uma luz pouco mais forte que as
lampadinhas de árvores de Natal. Na passagem, alinhavam-se cerca de vinte cômodos minúsculos, o primeiro com uma mesa e alguns equipamentos de comunicação que pareciam
ter sido eviscerados e, em seguida, destroçados de frustração. Outra grande sala com paredes de concreto estava ocupada por homens uniformizados jogando cartas em
pequenas mesas, fumando cigarros ou lendo revistas. Os outros cômodos eram, na maioria, quartos com dois beliches.
Foi em uma dessas camas que largaram Franklin, inerte. Jorge tinha sido mandado para um dos quartos e a porta estava fechada e trancada pelo lado de fora. A porta
tinha uma grade estreita através da qual era possível ver vários metros de corredor nos dois sentidos. Uma pequena fresta perto do fundo servia de acesso à comida
e um balde de metal no chão aparentemente deveria servir de vaso sanitário.
Jorge não tinha certeza de quanto tempo ele estava ali quando Franklin gemeu na cama apertada e desconfortável. O quarto só tinha uma luz fraca que mal iluminava
o centro do cômodo. Jorge achou que a alimentação vinha de um sistema de painéis solares semelhante ao de Franklin, embora, ouvisse um ocasional trum grave que poderia
ser de um gerador à gasolina. Ele supunha ser possível os militares terem blindado alguns equipamentos dos efeitos do sol, assim como a gaiola de Faraday de Franklin
protegera seu rádio e as baterias.
Franklin cambaleou até a porta e puxou a pequena grade como se estivesse tentando soltá-la. Mesmo que conseguisse, a abertura seria pequena demais para ele rastejar
para fora.
— Ei, quero ligar pro meu advogado! — gritou Franklin no corredor. As palavras ricochetearam pelas superfícies de concreto.
— Poupe suas forças — disse Jorge.
— Ah, que isso, Jorge — disse Franklin. — Não dá pra levar essa merda muito a sério.
Os olhos do homem brilhavam de bom humor. Jorge não conseguia entender, mas o homem não tinha nenhuma família com que se preocupar. Talvez ele estivesse aliviado
por ter resolvido seus conflitos e pela oportunidade de servir como mártir de sua causa. Afinal, aquele tratamento tirânico confirmava tudo em que Franklin sempre
acreditara e pregara.
— Lembro-me de algo que você me disse uma vez quando colhíamos batatas.
— Batatas — disse Franklin. — São cheias de olhos.
Jorge estava preocupado com a sanidade mental do homem. E ali estavam eles, confinados em um quarto atemporal de dois e meio por três.
— A placa “O fim está próximo” — disse Jorge.
— O que tem ela?
— Por exemplo: um cara andando com uma placa que diz “O fim está próximo”. Mesmo que esteja certo, ainda assim será um idiota.
Franklin começou a gargalhar como se nunca tivesse ouvido o ditado antes. Ele bateu nos joelhos, curvou-se e chiou em um acesso de tosse. Por fim, sentou-se na cama
estreita, ainda rindo.
Uma comoção irrompeu pelo corredor — gritos, golpes e xingamentos. Franklin e Jorge se amontoaram na abertura para dar uma olhada. No início, viram apenas um grupo
de soldados aglutinados e agitando os braços. Em seguida, o sargento saiu do grupo, puxando uma corda que amarrava as mãos de um homem. O homem estava desgrenhado,
com um uniforme cinza todo retalhado quase sem botões. O rosto barbudo estava coberto de hematomas e havia sangue escorrendo de uma das narinas.
— U-huu — incitou um dos soldados. — Finalmente eu peguei um, sargento!
— Esses desgraçados são mais difíceis de pegar do que uma borboleta num furacão — disse o sargento. Um dos soldados abriu a porta do cômodo oposto ao que abrigava
Jorge e Franklin. Pouco antes de o homem ser empurrado brutalmente para a sala, ele se virou para Jorge.
Olhos brilhantes.
— Entra aí, mostrengo — gritou o sargento, que soltou a corda e acertou um chute na coluna do sequelado. O mutante deu um galeio para frente e deslizou pelo chão
áspero.
Outro soldado levantou uma faca reluzente. — Vamos ver como ele é por dentro, sargento.
— Depois a gente vê isso, idiota. Primeiro temos que observá-lo e ver qual é a deles.
— Pra mim, parece um espião comunista russo — disse Franklin. — Ou um espião comunista americano.
O sargento foi até a grade com um dedo em riste ameaçador. Jorge se afastou, mas Franklin se manteve firme.
— Presta atenção no que fala, senão eu vou tacar você lá com aquela coisa — disse o sargento. — Vai ser ótimo ter um pouco de diversão. — Ele olhou de soslaio para
Jorge. — Talvez a gente encontre uma mamacita caliente pra brincar.
Jorge saltou para a porta e os ossos bateram contra os painéis de aço rebitados. O sargento atravessou o corredor e bateu a porta na cara do sequelado.
Logo depois, as luzes se apagaram, mas o humor de Jorge não poderia estar mais obscuro.
CAPÍTULO 28
Os sequelados estavam reunidos em torno da conflagração, chegando o mais próximo possível das chamas.
Ondulações de luz intensa dançavam no rosto deles e Rachel se perguntou se seria uma nova forma de adoração ao sol, como se algo dentro deles o atraíssem para o
ato da combustão. Eles não mostravam nenhuma reação à dor, mesmo com a fumaça subindo de algumas das roupas como se o tecido estivesse à beira da combustão.
— Eles não vão pegar fogo como o Tocha Humana do Quarteto Fantástico? — perguntou Stephen.
— Espero que sim — respondeu Rachel. A corrida até o morro abrira a ferida da mordida na panturrilha dela, e o curativo estava encharcado e manchado com uma excrescência
rosa de sangue e pus.
— Mas o Tocha Humana não queima. Ele atira fogo dos braços.
— Isso não seria tão bom, então.
Da posição deles no morro, protegida pela grama e por um mato baixo, dava para ver todo o vale. As chamas invadiram o complexo do posto de gasolina, envolvendo vários
carros cujos compradores provavelmente lá morreram durante as tempestades solares. A densa fumaça negra se desviou para o oeste, longe deles, mas o cheiro de borracha
e plástico queimados era pungente.
— DeVontay vai ver a fumaça — disse Stephen.
— Com certeza — concordou Rachel.
— E ele vem pra ver o que causou isso.
— Sim — disse ela, embora fosse mais provável que DeVontay evitasse a área, sabendo que o fogo atrairia sequelados.
Supondo que ele ainda esteja vivo.
— Vai dar pra gente ver se ele chegar da estrada — disse ela.
— Seguindo as migalhas de pão dos X-Men!
Ela bagunçou o cabelo dele e viu o quanto estava oleoso. — Vamos ter que encontrar um xampu em breve.
— Eu não vou tomar banho algum.
— É banho “nenhum”.
— Você não corrige o DeVontay quando ele fala errado.
— DeVontay já é adulto. Você ainda é criança.
— Sou criança, mas ajudei a salvar a sua vida.
— Realmente — disse ela. — Ponto pra você.
Rachel olhou em volta, imaginando quanto tempo levaria para que o fogo se espalhasse para as outras lojas e, em seguida, para o morro. Dependendo do vento, o fogo
poderia chegar às árvores e ficar incontrolável.
— Precisamos continuar andando — disse Rachel.
Stephen lançou-lhe um olhar de dúvida. — Você consegue andar?
— Claro que consigo.
— Sua mochila está lá embaixo.
— Está mesmo.
— E nós não temos um mapa… nenhum… quer dizer, nenhum mapa. — Stephen abraçou a própria mochila como se ela pudesse pegá-la e, junto com ela, a coleção de quadrinhos
dele.
— Tudo bem. Vamos parar nas casas pelo caminho e pegar o que precisamos. E não precisamos de um mapa porque estamos quase lá. — Ela apontou para a serra que ondulava
a noroeste. — A rodovia Blue Ridge atravessa aquelas montanhas. Se continuarmos andando, vamos acabar chegando lá. Vamos encontrar o Marco 291 e descansar um pouco
lá.
Ela não achava que seria tão simples. Nada no Depois era fácil, mas só restava acertar a próxima coisa a fazer: confiar na visão do avô Franklin Wheeler.
Ela quase podia ouvi-lo: “A liberdade não vem sem sacrifícios, Rachel.”
Ela se levantou, sorrindo para Stephen para esconder a careta. Ela sentia como se a carne da perna tivesse sido rasgada com uma serra circular, embalada em ácido
de bateria, amarrada com arame farpado e depois molhada com suco de limão e sal antes de sofrer uma queimadura com a ponta de um maçarico para selar a ferida.
Rachel deu um passo hesitante e decidiu que conseguiria suportar. O progresso seria lento, mas ela ainda não estava pronta para se render.
Um passo depois do outro.
Pela Chelsea. Pelo Stephen. Pelo vovô.
E até por mim mesma.
— Rachel?
Ela estava tão concentrada em saber se a perna não falharia que não percebeu que deixou Stephen para trás. Ela se virou e o pegou olhando os sequelados no posto
de gasolina.
Um deles, que estava perto da carroceria virada e enegrecida da picape, estendeu a mão como se fosse tocar o fogo. A manga da camisa irrompeu em chamas e, em seguida,
o calor amarelo e laranja lambeu o comprimento do braço.
O sequelado virou a palma para cima como se estivesse curioso acerca da luz estranha e bruxuleante. O fogo tomou o restante da camisa, e, em seguida, a barba e o
cabelo. Logo ele estava em chamas do peito para cima, imolado, mas não bateu o fogo nem se afastou do calor.
Para Rachel, pareceu aquela fotografia famosa do monge budista que ateou fogo em si mesmo para protestar contra a perseguição no Vietnã.
Só que o sequelado não estava protestando.
E também não fugiu.
Em vez disso, ele parecia totalmente confuso em relação às bolhas e à deterioração da própria carne.
— Ele se parece com o Tocha Humana — sussurrou Stephen.
Ela o puxou pelo braço. Ele já tinha visto demais.
O sequelado mais próximo também estendeu a mão para tocar a criatura em chamas, que, em seguida, deu um passo à frente e entrou no fogo mais volumoso. O segundo
olhou para a palma da mão dela e a fumaça que subia da carne queimada. Em seguida, ela o seguiu. E assim fez mais outro.
Todos os sequelados entraram juntos no fogo, um por um, aproximando-se de todos os lados, com os corpos delineados momentaneamente em uma silhueta escura antes de
desaparecer no núcleo turbulento do inferno.
— Vamos embora — disse Rachel, quase chorando, puxando Stephen com tanta força que os dois quase tropeçaram.
Stephen finalmente cedeu e ela o levou até a encosta, disfarçando a dor na perna enquanto o fogo crepitava e cuspia com a descoberta do novo combustível. O odor
da fumaça de gasolina mudou e Rachel quase vomitou.
Cheirava a churrasco.
Eles não gritaram.
Deus, por que o Senhor não os deixou ao menos gritar?
CAPÍTULO 29
O nome dela era Kasey.
Ela não sabia que os pais eram advogados — o pai era especialista em propriedade intelectual e trabalhou principalmente com empresas; a mãe era advogada de causas
de família e tutor de menores ad litem, além de voluntária em uma agência de defesa jurídica sem fins lucrativos que defendia os direitos das minorias.
Ela não se lembrava mais que morava em Atlanta, nem que estavam de férias, período em que passariam pela rodovia Blue Ridge até Assateague National Seashore em Maryland
antes de seu pai viajar para uma conferência em Washington DC.
Kasey estava ansiosa para ver os cavalos selvagens atravessando as dunas. O pai dela tinha até comprado uma barraca nova e uma pipa, e prometera desligar o celular
por três dias.
Ela tinha onze anos de idade, estava prestes a ingressar na sétima série e nervosa por ser um pouco mais jovem do que os colegas de classe. Além disso, Ashleigh
Ostermueller apareceu com peitinhos depois do verão — talvez, por isso, Bradley Staley se interessasse mais por Ashleigh que por Kasey.
Era quinta-feira e ela estava dormindo no banco de trás do carro quando tudo aconteceu.
O pai dela deve ter percebido que os sinais elétricos falhavam, pois deixaram de enviar as mensagens do cérebro para o coração dele. Ele desacelerou o SUV e parou
na grama, olhando para a esposa ao lado. Ela já estava caída contra o vidro quando o veículo rolou até parar e ele não respondeu à última frase que proferiu em vida.
Kasey não estava ciente disso no momento, mas acordou com o som da voz do pai, soltou o cinto de segurança e tornou-se outra pessoa. Se ela soubesse que perderia
seu gosto por roupas, com viagens cada vez mais frequentes para Aeropostale e TJ Maxx, ela teria usado roupas diferentes. Kasey não teria morrido com uma camiseta
de Hello Kitty porque era para criança, e ela era quase uma mulher. Ou, pelo menos, uma adolescente.
Mas o orgulho não a incomodava, nem o medo, nem a sétima série, nem Ashleigh Ostermueller, nem o cheiro pungente de fumaça na brisa.
Ela não compreendia o instinto que a obrigava a seguir o cume e chegar diante de um portão. As complexidades de partículas carregadas, a estrutura das moléculas
do desabrochar de seu corpo e os disparos delicados de seus neurotransmissores estavam muito além dela. Se ela tivesse feito faculdade, provavelmente evitaria biologia
molecular como a peste.
A menos, claro, que Bradley Staley estivesse inscrito.
Ela estava ciente dos outros que a seguiam pela floresta. O assobio que eles faziam lhe dominava os sentidos e conectavam-na de uma forma que ela nunca seria capaz
de descrever em uma redação da escola. Dentro da cabeça dela, no entanto, outra palavra ressoava progressivamente. — Quem? Quem? Quem?
Kasey, a coisa, caminhou até o portão e a primeira coisa que lhe chamou a atenção foram as cabras. Elas baliram quando a viram, buscando o feno do pequeno galpão
ao lado do rebanho.
Ela não entendia a fome, mas se sentiu atraída pelo som que produziam.
— Bééééé — baliu a cabra mais próxima.
Kasey, a coisa, foi em sua direção. A antiga Kasey se envergonharia de sua atitude, que, no momento, era de deslumbramento infantil e curiosidade inocente. A antiga
Kasey se esmeraria em ser descolada, ignorando os pais e manipulando as pessoas em volta para subir na hierarquia social e principalmente prejudicar a posição de
suas concorrentes, como Ashleigh.
Nada disso importava, só esse som novo e amplo que ressoava dentro da cabeça e que expulsou e substituiu o repetitivo “Quem?”.
Ela deixou o novo som vibrar na garganta e, em seguida, apertou os lábios e vibrou a laringe.
— Bé.
Os outros de sua espécie se espalharam pelo complexo, incertos de onde estavam ou do que eram.
A Kasey de antes teria rido por ser chamada de “sequelada”. Esse termo pejorativo provavelmente estava na lista de frases que lhe garantiriam uma passagem pelo escritório
do conselheiro e uma palestra sobre os males sociais da intimidação.
Kasey, a coisa, apertou os lábios de novo e exalou, imitando a cabra. — Bé.
As outras cabras se apertavam contra a cerca, implorando por feno, emitindo um som parecidíssimo com o choro de crianças. — Bééééé! Bééééé!
Kasey, a coisa, repetiu a fonética simples, estendendo o som com uma maior inalação de ar e uma exalação mais extensa. — Bééééé!
Os outros de sua espécie pararam de sibilar e aproximaram-se do rebanho. Um deles disse: — Bé.
Em seguida, mais deles se juntaram. — Bééé! Bééé! Bééé!
A antiga Kasey ficaria horrorizada de fazer parte da massa. Enquadrar-se era uma coisa, mas ser mais uma no bando seria o fim.
A nova Kasey, porém, não se importava. Qualquer um pensaria mais em Hello Kitty e no fim do mundo do que ela.
A nova Kasey gostava do som e dos outros que emitiam aquele som, que se avolumava e se repetia sem parar.
— Bééé! Bééé! Bééé!
Mais e mais, Depois e para sempre.

 

 

                                                   Scott Nicholson         

 

 

 

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