Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENIGMA DA CIGANA / Alan Bradley
O ENIGMA DA CIGANA / Alan Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

-- VOCÊ ME ASSUSTA -- DISSE A CIGANA. -- Nunca vi minha bola de cristal tão cheia de escuridão.

Ela colocou as mãos em volta da coisa, como para proteger meus olhos dos horrores que flutuavam em suas profundezas obscuras. Quando seus dedos seguraram o vidro, pensei “sentir água gelada escorrendo pela minha garganta”.
Na beirada da mesa, uma vela tremeluzia, e sua luz débil resvalava nas argolas de latão penduradas nas orelhas da cigana, para depois se lançar e morrer em algum dos cantos escuros da tenda.
Cabelos negros, olhos negros, vestido negro, faces pintadas de vermelho, boca vermelha e uma voz que só poderia ser resultado de meio milhão de cigarros tragados. Como que confirmando a minha suspeita, a velha foi subitamente tomada por uma crise de tosse violenta, que chacoalhou sua carcaça encurvada e a deixou arquejando de um modo horrível. Aquilo soou como se um grande pássaro estivesse enredado em seus pulmões e batesse as asas tentando escapar.
-- Você está bem? -- perguntei. -- Vou buscar ajuda.

 


 


Achei que tinha visto o dr. Darby há menos de dez minutos, no pátio da igreja, parando para uma ou duas palavrinhas em cada barraca da quermesse beneficente. Mas, antes que eu pudesse fazer qualquer movimento, a mão parda da cigana já tinha coberto a minha sobre o veludo negro da mesa.

-- Não -- ela disse. -- Não... não faça isso. Acontece o tempo todo.

E ela começou a tossir de novo.

Esperei pacientemente o novo acesso passar, quase com medo de me mover.

-- Quantos anos você tem? -- disse ela afinal. -- Dez? Doze?

-- Onze -- disse eu, e ela balançou a cabeça com um ar cansado, como se soubesse daquilo o tempo todo.

-- Estou vendo... uma montanha -- ela prosseguiu, quase sufocando nas palavras -- e o rosto... da mulher em que você se tornará.

Apesar do calor opressivo que fazia na tenda mal-iluminada, meu sangue gelou. Ela estava vendo Harriet, é claro!

Harriet, minha mãe, morreu em um acidente de escalada quando eu era bebê.

A cigana virou minha mão ao contrário e enfiou dolorosamente seu polegar bem no centro da palma de minha mão. Meus dedos se espalharam -- e então se curvaram para dentro sobre si mesmos, como os dedos de um pé de galinha decepado.

Ela ergueu minha mão esquerda.

-- Esta é sua mão de nascença -- disse ela, mal olhando para a palma, depois deixando-a cair, para erguer a direita. -- E esta é a mão que você criou.

Olhou-a com desagrado enquanto a vela continuava tremeluzindo.

-- Esta estrela quebrada em seu monte da lua mostra uma mente brilhante voltada para si mesma, uma mente que vagueia pelos caminhos das trevas.

Aquilo não era o que eu queria ouvir.

-- Conte-me sobre a mulher que você viu na montanha -- disse eu. -- Aquela na qual eu me tornarei.

Ela tossiu de novo, apertando forte seu xale colorido nos ombros, como se estivesse se protegendo de algum ancestral ou de algum vento gelado de inverno.

-- Molhe minha mão com prata -- pediu ela, estendendo a mão encardida.

-- Mas eu já lhe dei um xelim -- disse eu. -- É o que diz a placa lá fora.

-- As mensagens do Terceiro Círculo custam mais caro -- ela chiou. -- Elas drenam as baterias de minha alma.

Quase soltei uma gargalhada. Quem aquela bruxa velha pensava que era? Mas, pensando melhor, ela parecia ter avistado Harriet além do véu, e eu não poderia deixar o ceticismo estragar meia oportunidade que fosse de trocar algumas palavras com minha falecida mãe.

Revirei os bolsos à procura de meu último xelim, e, quando apertei a moeda na mão da cigana, seus olhos escuros -- subitamente brilhantes como os de uma gralha -- encontraram os meus.

-- Ela está tentando vir para casa -- disse ela. -- Essa... mulher... está tentando vir do além para casa. Ela quer que você a ajude.

Levantei-me em um pulo, atingindo a parte de baixo da mesa com meus joelhos. O móvel oscilou e tombou para o lado, e a vela deslizou para fora, até cair sobre um emaranhado de cortinas.

De início, surgiu uma pequena nuvem de fumaça preta, e a chama foi ficando azul, depois vermelha e, rapidamente, laranja. Fiquei olhando, horrorizada, enquanto ela se espalhava pelas cortinas.

Em menos tempo do que é possível narrar, a tenda inteira ficou em chamas.

Eu gostaria de ter tido a presença de espírito de jogar uma toalha molhada por cima dos olhos da cigana e levá-la a algum lugar seguro, mas em vez disso fugi em disparada -- diretamente através do círculo de fogo que se formara na entrada -- e não parei até chegar ao campo de coqueiros, onde fiquei ofegando atrás de uma cortina de lona, tentando recuperar o fôlego.

Alguém havia trazido um gramofone de corda para a igreja, do qual se projetava a voz de Danny Kaye, tornada nauseantemente metálica por causa da garganta da corneta que havia sido pintada:

“Oh, eu tenho um adorável cacho de cocos. Lá estão eles, todos enfileirados...".


Metade dos aldeões de Bishop’s Lacey -- pelo menos era o que parecia -- estava plantada ali, boquiaberta, olhando para a nuvem de fumaça preta que subia, as mãos na boca ou nas bochechas, e nenhum deles sabia o que fazer.

O dr. Darby já estava levando vagarosamente a cigana, com sua velha carcaça sacudida pela tosse, em direção à tenda de primeiros socorros da Associação de ambulâncias São João. “Ela parecia tão pequena à luz do sol”, pensei, e “tão pálida”.

-- Oh, aí está você, sua coisinha odiosa! Procuramos por toda parte.

Era Ophelia, a mais velha de minhas duas irmãs. Felinha tinha dezessete anos e achava que pertencia à alta comunidade celestial, ao lado da Virgem Mãe Santíssima, embora eu possa apostar que existe uma diferença essencial entre elas: a Virgem Mãe Santíssima não passa vinte e três horas por dia se contemplando no espelho enquanto cutuca a cara com uma pinça.

Com Felinha, era sempre melhor empregar a resposta rápida:

-- Como você se atreve a me chamar de coisinha odiosa, sua salsicha estúpida? O pai já falou mais de uma vez que isso é falta de respeito.

Felinha tentou agarrar minha orelha, mas me esquivei com facilidade. Por pura necessidade, a esquiva-relâmpago se tornara uma de minhas especialidades.

-- Onde está Dafi? -- perguntei, esperando desviar sua atenção maligna.

Dafi é minha outra irmã, apenas dois anos mais velha que eu e, mesmo assim, já uma torturadora consumada.

-- Babando em cima dos livros. Onde mais? -- ela apontou com o queixo para uma ferradura de mesas de cavalete no gramado do pátio da igreja, onde a Guilda do Altar e o Instituto das Mulheres juntaram forças para montar um bazar de livros usados e entulhos domésticos de todo tipo.

Felinha parecia não reparar nos restos fumegantes da tenda da cigana. Como sempre, ela deixara os óculos em casa por vaidade, porém sua desatenção poderia ser simplesmente por falta de interesse. Para todos os propósitos práticos, os entusiasmos de Felinha paravam onde terminava sua pele.

-- Dê uma olhada -- disse ela, segurando um conjunto de brincos pretos junto às orelhas; ela não conseguia resistir a uma oportunidade de se exibir. -- Azeviche francês. Vieram do espólio de Lady Trotter. Glenda diz que foi sorte terem conseguido uma moeda de seis pence por eles.

-- Glenda está certa -- disse eu. -- Azeviche francês nada mais é do que vidro.

Recentemente eu havia derretido um horrendo broche vitoriano em meu laboratório químico e descoberto que era completamente silicoso. Era improvável que Felinha viesse a sentir falta daquilo.

-- O azeviche inglês é muito mais interessante -- disse eu. -- Entenda: ele é formado pelos restos fossilizados de coníferas e...

Mas Felinha já estava se afastando, atraída pela visão de Ned Cropper, o garçom ruivo da taverna Treze Patos, que, com certa graça muscular, lançava energicamente bastões de madeira contra uma boneca Tia Sally. O terceiro bastão quebrou o cachimbo de barro da boneca de madeira em dois, e Felinha conseguiu parar ao lado do garoto bem a tempo de receber o ursinho de pelúcia do prêmio das mãos de Ned, loucamente enrubescido.

-- Alguma coisa que valha a pena salvar da fogueira? -- perguntei a Dafi, que estava com o nariz firmemente enfiado no que, a julgar pelas páginas oxidadas e manchadas, poderia ser um exemplar da primeira edição de Orgulho e preconceito.

Porém, isso era improvável. Bibliotecas inteiras haviam sido entregues para salvamento durante a guerra e, hoje em dia, não restava muita coisa para os bazares de caridade. Quaisquer livros que não fossem vendidos até o fim do verão seriam, em 5 de novembro, na Noite de Guy Fawkes, ou a Noite da Fogueira, removidos do porão do salão paroquial, empilhados no parque da aldeia e queimados.

Inclinei a cabeça para o lado e dei uma espiada rápida na pilha de livros que Dafi já havia separado: De trenó e a cavalo para leprosos siberianos proscritos, História natural, de Plínio, O martírio do homem e os dois primeiros volumes das Memórias de Jacques Casanova de Seingalt— as mais horríveis baboseiras, com exceção, talvez, de Plínio, que escreveu um material admirável sobre venenos.

Caminhei devagar ao longo da mesa, correndo um dedo por cima dos livros, todos arrumados com as lombadas para cima: Ethel M. Dell, E. M. Delafield, Warwick Deeping...

Em outra ocasião, eu havia reparado que a maior parte dos grandes envenenadores da história tinha sobrenome começado pela letra C, e aqui estavam diversos autores com sobrenome começado por D. “Estaria eu prestes a descobrir alguma coisa? Algum segredo do universo?"

Apertei os olhos e me concentrei: Dickens... Doyle... Dumas... Dostoievsky -- eu já vira todos eles grudados nas mãos de Dafi em um ou outro momento.

A própria Dafi estava planejando ser uma escritora quando fosse mais velha. Com um nome como Daphne de Luce, não tinha como dar errado!

-- Dafi! -- disse eu. -- Você nunca vai adivinhar...

-- Quieta! -- disparou ela. -- Já disse para não falar comigo enquanto eu estiver lendo.

Minha irmã podia ser um porco-do-mar extremamente desagradável quando queria.

Nem sempre foi assim. Quando eu era menor, por exemplo, e o pai recrutou Dafi para ouvir minhas orações antes de dormir, ela me ensinou a recitá-las na língua do pê, e nós rolávamos de rir entre os travesseiros de plumas até não aguentarmos mais: “Depeus apabenpençopoepe opo papaipi epe apa sepenhoporapa Mupullepet. Epe Dopoggerper tampambempem!". Mas, com o passar dos anos, alguma coisa mudou entre minhas irmãs e eu.

Um pouco ofendida, peguei um volume que estava em cima dos outros: Um espelho, para Londres e a Inglaterra. Era um livro que poderia interessar a Felinha, já que ela era maluca por espelhos. Talvez eu mesma o comprasse e guardasse para o improvável dia em que estivesse a fim de presenteá-la ou dá-lo como oferenda de paz. Coisas estranhas acontecem.

Folheando o livro rapidamente, logo vi que não era uma novela, mas uma peça de teatro -- cheia de nomes de personagens e diálogos. Alguém chamado Adam falava com um palhaço:

"...um copo de cerveja sem uma garota, ai de mim, infelizmente é como um ovo sem sal ou um arenque vermelho sem mostarda”.


“Que lema perfeito para uma certa pessoa”, pensei, dando uma olhadela para Ned, que estava agora roçando o pescoço de minha irmã enquanto ela fingia não notar. Mais de uma vez, eu vira Ned sentado no pátio da Treze Patos cumprindo suas tarefas, com uma caneca de cerveja -- e, às vezes, com Mary Stoker, a filha do proprietário a seu lado. Me dei conta, com um choque inesperado, que sem uma cervejinha ou uma mocinha à mão, Ned ficava, de alguma forma, incompleto. Por que eu não reparara naquilo antes? Talvez, como o dr. Watson em Um escândalo na Boêmia, haja momentos em que vejo, mas não observo. Era algo em que eu precisava pensar.

-- Obra sua, suponho? -- disse Dafi de repente, pondo de lado um livro e pegando outro. Ela fez um gesto na direção do pequeno grupo de aldeões que olhavam boquiabertos para as ruínas fumegantes da tenda da cigana. -- Está escrito Flavia de Luce por toda parte.

-- Ora, vá se danar! -- disse eu. -- Eu ia ajudar a carregar os seus livros idiotas para casa, mas pensando melhor você pode muito bem se virar sozinha.

-- Ó, por favor, pare com isso! -- disse ela, agarrando minha manga. -- Ó, por favor, desista. As cordas do meu coração estão tocando o Réquiem de Mozart, e uma lágrima furtiva começa a despontar em meu olho direito neste instante.

Eu me afastei, assobiando despreocupadamente. Lidaria com a insolência dela depois.

-- Ai! Me solta, Brookie! Tá me machucano!

A voz chorosa vinha de algum lugar atrás da barraca de tiro ao alvo, e, quando a reconheci como sendo de Colin Prout, parei para ouvir.

Forçando-me contra a parede de pedra da igreja e permanecendo bem atrás da lona que delimitava a barraca de rifas, pude bisbilhotar sem que ninguém me visse. Fiquei satisfeita ao descobrir que tinha uma visão inesperadamente clara de Colin através das fendas entre as tábuas rústicas da barraca.

Ele estava tentando escapar dos braços de Brookie Harewood como um peixe grande de óculos, a armação das lentes grossas enviesada, os sujos cabelos loiros parecendo um monte de feno, a boca grande e úmida escancarada em busca de ar.

-- Me solta. Eu num fiz nada.

Com a outra mão, Brookie agarrou o fundilho da calça folgada de Colin e girou-o, fazendo-o encarar os restos fumegantes da tenda da cigana.

-- Então, quem foi que fez aquilo, hein? -- perguntou Brookie, sacudindo o menino para enfatizar suas palavras. -- Onde há fumaça, há fogo. Onde há fogo, há fósforos. E onde há fósforos, lá está Colin Prout.

-- Aqui -- disse Colin, tentando enfiar a mão no bolso. -- Cê pode contá! Conta eles, Brookie. O mesmo tanto que tinha ontem. Três. Não usei nenhum.

Quando Brookie o soltou, Colin caiu no chão, rolou por cima dos cotovelos, enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma caixa de fósforos, que acenou para seu torturador.

Brookie levantou a cabeça e farejou o ar, como se procurasse orientação. O boné sebento e as botas indianas de borracha, o casaco comprido de fustão e, a despeito do tempo quente de verão, o xale de lã que pendia de seu pescoço de buldogue como uma serpente escarlate o faziam parecer um caçador de ratos tirado de uma história de Dickens.

Antes que eu, ao menos, tivesse tido tempo de pensar no que fazer, Colin já se pusera em pé cambaleando, e os dois se afastaram no pátio da igreja, Colin sacudindo a poeira e dando de ombros, como se não se importasse.

“Eu deveria ter saído de trás da barraca, admitido que era a responsável pelo incêndio e pedido que Brookie soltasse o menino”, pensei. Se ele se recusasse, eu poderia facilmente ter corrido para o vigário ou chamado qualquer um dos outros homens em boa forma que estivesse ao alcance de minha voz. A razão simples pela qual não fiz isso -- me dei conta com um pequeno arrepio -- era esta: eu tinha medo de Brookie Harewood. Brookie era a escória de Bishop’s Lacey.

-- Brookie Harewood? -- Felinha torceu o nariz no dia em que a sra. Mullet sugeriu que Brookie fosse contratado para ajudar Dogger a remover as ervas daninhas do jardim e aparar as sebes em Buckshaw. -- Mas ele não passa de um parasita, não é? Nossa vida não valeria dois pence com ele por aqui.

-- O que é um parasita? -- perguntei depois que Felinha saiu de maneira intempestiva da cozinha.

-- Eu com certeza não sei, querida -- respondeu a sra. Mullet -- A mãe dele é aquela dama que vive pintando em Malden Fenwick.

-- Pintando? -- perguntei. -- Casas?

-- Casas? Credo, menina! Não, ela pinta jarros. Gente da nobreza montada em cavalos, coisas assim. Quem sabe ela possa até pintar você algum dia, quando chegar a sua vez. Você, a senhorita Ophelia e a senhorita Daphne.

Depois disso, deixei escapar um suspiro de desdém e disparei para fora da cozinha. Se eu tivesse de ser pintada a óleo, envernizada e emoldurada, teria de ser em meu laboratório químico, em nenhum outro lugar. Cercada de provetas, redomas e frascos de Erlenmeyer, eu estaria olhando por cima do microscópio impacientemente, de um jeito muito parecido ao do meu falecido tio-avô Tarquin de Luce no retrato que ainda está pendurado na galeria de Buckshaw. Como o tio Tar, eu estaria visivelmente irritada. Nada de cavalos e nobreza para mim, muito obrigada.

Uma ligeira nuvem de fumaça ainda pairava sobre o pátio da igreja. Agora que a maioria dos circunstantes se fora, os restos enegrecidos e incandescentes da tenda da cigana estavam claramente visíveis ao lado da estrada. Mas não era o círculo calcinado na grama que me interessava, e sim o que estivera escondido atrás dele: um carroção cigano pintado em cores berrantes.

Era amarelo-manteiga com cortinas carmesins, e suas laterais eram de sarrafos que se inclinavam gentilmente para fora, sob um teto curvado, que lhe emprestavam a aparência de um pão que cresceu para além das bordas da assadeira. Das rodas amarelas grandes e estreitas até a torta chaminé de lata, e das janelas de catedral em arco, até os suportes de madeira esculpidos de modo intricado, um de cada lado da porta, o carroção era algo que poderia ter saído estrepitosamente de um sonho. Como para preencher o cenário, um cavalo muito velho e de costas afundadas pastava de um jeito pitoresco entre as lápides inclinadas de um canto afastado do pátio da igreja.

Era um cavalo cigano. Reconheci imediatamente graças às fotografias que tinha visto na Country Life. Com seus tufos de pelo nas patas e na cauda e uma longa crina que caía por cima da cara (e embaixo da qual ele espreitava recatado como Veronica Lake), o cavalo parecia um cruzamento entre um Clydesdale escocês e um unicórnio.

-- Flavia, querida -- disse uma voz atrás de mim; era Denwin Richardson, o vigário de São Tancredo. -- O dr. Darby agradeceria muito se você corresse para dentro e pegasse com as senhoras da cozinha uma nova jarra de limonada.

Meu olhar contrariado deve ter feito com que ele se sentisse culpado. Por que as meninas de onze anos são sempre tratadas como criadas?

-- Eu mesmo poderia ir, entenda, mas é que o bom doutor acha que aquela pobre senhora poderia se sentir pouco à vontade vendo meu colarinho de clérigo e coisas desse tipo, e, bem...

-- Será um prazer, vigário -- disse eu alegremente e com sinceridade: ser a “portadora da limonada” me daria acesso à tenda da Ambulância São João.

Em um piscar de olhos, eu já havia trotado para dentro da cozinha do salão paroquial (“Com licença, emergência médica!"), saído com uma jarra de limonada suando de tão gelada e estava agora à luz pálida da tenda de primeiros socorros, vertendo o conteúdo em um copo rachado.

-- Espero que você esteja se sentindo bem -- disse eu, entregando o copo para a cigana. -- Sinto muito pela tenda. Vou pagar por ela, é claro.

-- Hummm... -- fez o dr. Darby. -- Não há necessidade. Ela já explicou que foi um acidente.

Os olhos horrivelmente vermelhos da cigana me observavam de um jeito desconfiado enquanto ela bebia a limonada.

-- Doutor Darby -- disse o vigário, enfiando a cabeça através das abas da tenda como uma tartaruga, para que sua coleira de cachorro não aparecesse --, se tiver um momento... É a senhora Peasley, no jogo de pinos. Diz que está se sentindo enjoada.

-- Hummm... -- fez o dr., fechando sua valise preta com um estalo. -- O que você precisa, minha velha garota, é de um bom descanso -- disse ele para a cigana.

E para mim: -- Fique com ela. Não vou demorar.

-- Não chove nunca -- observou ele para ninguém em particular, ao sair.

Fiquei ali, em pé, parada por um longo tempo, olhando para meus pés, meio sem jeito, tentando pensar em alguma coisa para dizer. Eu não me atrevia a olhar nos olhos da cigana.

-- Vou pagar pela tenda -- repeti. -- Mesmo que tenha sido um acidente.

Aquilo a fez começar a tossir de novo, e ficou evidente, até para mim, que o incêndio havia cobrado um preço de seus pulmões já debilitados. Aguardei, impotente, até a crise passar.

Quando por fim ela parou de tossir, houve mais um silêncio, prolongado e enervante.

-- A mulher -- disse a cigana, afinal. -- A mulher na montanha. Quem era?

-- Era minha mãe -- disse eu. -- Seu nome era Harriet de Luce.

-- E a montanha?

-- Em algum lugar no Tibete, eu acho. Ela morreu lá, dez anos atrás. Nós não falamos disso frequentemente em Buckshaw.

-- Buckshaw não significa nada para mim.

-- É onde eu moro. Sul da aldeia -- disse eu, com um aceno vago da mão.

-- Ah! -- exclamou ela, fixando um olhar penetrante em mim. -- A casa grande. Duas alas viradas para trás.

-- Sim, é isso -- disse eu. -- Não longe do lugar onde o rio faz uma volta.

-- Sim -- disse a mulher. -- Eu fiz uma paragem lá. Nunca soube como se chamava o lugar.

-- Fez uma paragem lá? -- Eu mal pude acreditar.

-- Uma senhora permitiu que meu cigano e eu arranchássemos em um bosque à margem do rio. Ele precisava descansar...

-- Eu conheço o lugar! -- disse eu. -- Ele se chama Paliçadas. Cheio de sabugueiros e...

-- Bagas -- acrescentou ela.

-- Mas espere! -- disse eu. -- Uma senhora? Não há senhora em Buckshaw desde que Harriet morreu.

A cigana prosseguiu como se eu não tivesse dito nada:

-- Era uma bonita senhora. Um pouco parecida com você -- acrescentou ela, olhando-me mais atentamente --, agora que te vejo à luz.

Mas então seu rosto se ensombreceu. “Seria minha imaginação, ou sua voz estava ficando mais forte à medida que falava?", pensei

-- Então fomos postos para fora -- disse ela de modo zangado. -- Disseram que não éramos mais bem-vindos ali. Foi no verão em que Johnny Faa morreu.

-- Johnny Faa?

-- Meu cigano. Meu marido. Morreu no meio de uma estrada poeirenta, apertando o peito e amaldiçoando o gajo, o inglês que nos pôs para fora.

-- E quem era esse? -- perguntei, já temendo a resposta.

-- Nunca perguntei o nome dele. Reto como um varapau sobre dois bambus, o demônio!

O pai! Eu tinha certeza! Foi o pai que, depois da morte de Harriet, expulsou os ciganos da sua propriedade.

-- E Johnny Faa, seu marido... ele morreu por causa disso, você diz?

A cigana assentiu, e pude ver pela tristeza em seu olhar que era verdade.

-- Porque ele precisava descansar... Precisava descansar -- repetiu ela num sussurro --, e eu também preciso.

E foi então que aquilo me veio. Antes que pudesse mudar de ideia, eu já tinha deixado escapar as palavras:

-- Você pode voltar a Buckshaw. Fique pelo tempo que desejar. Vai ficar tudo bem... Eu prometo.

No instante em que disse isso, eu soube que haveria uma grande e violenta discussão com o pai, mas de algum modo isso não importava. Harriet dera abrigo àquela gente uma vez, e meu sangue não me permitia agir de outro modo.

-- Vamos estacionar o seu carroção nas Paliçadas -- disse eu --, entre os arbustos. Ninguém precisa saber que você está lá.

Os olhos negros da cigana perscrutaram meu rosto, movendo-se rapidamente. Estendi-lhe a mão para encorajá-la.

-- Hummm... Vá em frente, velha garota. Aceite a oferta dela. Um lugar de descanso fará um bem enorme a você.

Era o dr. Darby, que se esgueirara para dentro da tenda. Ele me dirigiu uma piscadela disfarçadamente. O dr. era um dos amigos mais antigos do pai, e eu sabia que ele também já podia prever uma batalha. Ele mapeara o terreno e considerara os riscos antes de falar aquilo. Tive vontade de abraçá-lo.

Ele pôs a valise preta sobre a mesa, vasculhou nas profundezas dela e extraiu uma garrafa arrolhada.

-- Tome para a tosse, quanto for necessário -- disse, entregando-a à cigana, que olhou desconfiada para a garrafa. -- Vá em frente, pode tomar. Rejeitar a prescrição de um médico licenciado traz uma tremenda má sorte, você sabe. Posso ajudar com o cavalo -- ofereceu ele. -- Eu já fui dono de um.

Agora, ele estava encenando a velha rotina do doutor do interior, e eu soube que, quanto à saúde, estávamos liberadas.

Grupos de pessoas ficaram olhando enquanto o dr. nos conduzia em direção ao carroção. Ele arreou o cavalo da cigana num piscar de olhos, e nós duas nos acomodamos..

A velha cigana estalou a língua, e os aldeões recuaram quando o carroção se pôs em movimento com um solavanco e começou a rodar estrepitosamente pelo caminho do pátio da igreja. De minha posição elevada, olhei para as muitas faces que olhavam para cima, mas as de Felinha e Dafi não estavam entre elas.

“Ótimo”, pensei. Elas muito provavelmente estavam em uma das barracas enchendo a cara boba de bolinhos e creme azedo.


 Em língua inglesa, arenque vermelho, além de ser o nome de um peixe, é uma expressão utilizada com o sentido de uma pista falsa, no contexto de uma investigação ou apuração. [N. E.]

 

SEGUIMOS NOS ARRASTANDO PESADAMENTE pela rua principal, o som dos cascos do cavalo ecoando ruidoso nas pedras do calçamento.

-- Qual é o nome dele? -- perguntei, apontando para o velho animal.

-- Gry.

-- Gray?

-- Gry. “Cavalo”, na língua cigana.

Guardei aquele bizarro fragmento de conhecimento para uso futuro, antecipando avidamente o momento em que seria capaz de exibi-lo na frente de Dafi, minha irmã sabe-tudo. Naturalmente, ela fingiria já saber disso o tempo todo.

Deve ter sido o barulho da nossa passagem que trouxe a srta. Cool, a mensageira da aldeia, para a frente de sua confeitaria às pressas. Quando me avistou sentada ao lado da cigana, seus olhos se arregalaram, e sua mão disparou até a boca. Apesar das pesadas vitrines de vidro laminado e da distância que havia entre nós, quase foi possível ouvir seu arfar. A imagem da filha mais nova do coronel Havilland de Luce sendo levada embora num carroção de ciganos, ainda que alegremente pintada, deve ter sido um choque terrível.

Acenei com a mão de maneira frenética, os dedos bem espalhados, de um jeito cômico, como que dizendo: “Que coisa mais divertida!". O que eu queria fazer, na verdade, era me pôr em pé de um pulo, assumir uma pose e explodir em uma daquelas canções de “oba-oba, pé na estrada!" que sempre tocam nos musicais de cinema, mas controlei o impulso e me contentei com um terrível sorriso forçado e mais uma agitada de dedos.

Notícias de minha abdução logo estariam voando por toda parte, como um passarinho em uma catedral. As aldeias são assim, e Bishop’s Lacey não era diferente.

“Somos todos farinha do mesmo saco”, gostava de dizer a sra. Mullet. Exatamente como a Velha Mãe Hubbard.

Uma tosse áspera me trouxe de volta à realidade. A cigana estava agora dobrada sobre si mesma, abraçando as costelas. Tirei as rédeas de suas mãos.

-- Você tomou o remédio que o doutor lhe deu? -- perguntei.

Ela sacudiu a cabeça de um lado para o outro -- os olhos pareciam dois carvões vermelhos. Quanto antes eu conseguisse levar a carroça até as Paliçadas e pôr a mulher na cama, melhor.

Estávamos agora passando pela Treze Patos e pelo Caminho das Vacas. Um pouco mais para o leste, a estrada virava para o sul, na direção de Doddingsley. Ainda estávamos muito longe de Buckshaw e das Paliçadas.

Logo após a última fileira de chalés, uma vereda estreita, conhecida localmente como “Ravina”, fazia um ângulo para a direita: um corte fundo e pedregoso que acompanhava a encosta oeste da Colina Goodger e atravessava o campo mais ou menos em linha reta até o canto sudeste de Buckshaw e das Paliçadas. Quase sem pensar, puxei as rédeas e virei a cabeça de Gry para a vereda estreita.

Depois dos primeiros quinhentos metros relativamente tranquilos, o carroção começou a sacolejar de modo alarmante. À medida que progredíamos aos solavancos sobre pedras pontudas, a trilha se tornava mais estreita e íngreme. Ribanceiras altas nos oprimiam de ambos os lados, tão íngremes e cheias de afloramentos emaranhados de antigas raízes de árvores que o carroção, não importava quanto oscilasse, não poderia tombar de modo algum.

Logo à frente, como o pescoço de um grande cisne, o galho musgoso de uma faia ancestral curvava-se para baixo, formando um enorme arco sobre a estrada. Quase não havia espaço suficiente para passar por baixo dele.

-- Poleiro do Galo -- eu comentei. -- É o lugar no qual os salteadores detinham os malotes.

A cigana não reagiu. Ela parecia não estar interessada. Para mim, o Poleiro do Galo era um fragmento fascinante do folclore local.

No século XVIII, a Ravina era a única estrada entre Doddingsley e Bishop’s Lacey. Obstruída pela neve no inverno e inundada por correntes geladas na primavera e no outono, ela ganhou a reputação, que ainda se mantém após duzentos anos, de ser um lugar desagradável ou, pelo menos, certamente perigoso. “Assombrada pela história”, Dafi me dissera certa vez enquanto traçava a Ravina à tinta em um mapa que estava desenhando de “Buckshaw e arredores”.

Com esse tipo de recomendação, a Ravina deveria ter sido um dos meus locais favoritos em toda a Bishop’s Lacey, mas não era. Eu havia me aventurado por quase toda a sua extensão uma única vez, com Gladys, minha leal bicicleta, até que uma sensação peculiar e inquietante em minha nuca me fez voltar. Era um dia sombrio, de fortes ventos tempestuosos, pancadas de chuva gélida e nuvens baixas que se movimentavam rápido, o tipo de dia...

A cigana arrancou as rédeas das minhas mãos e deu um puxão brusco.

-- Ôôôô! -- disse ela, irritada, fazendo o cavalo parar abruptamente.

Em cima do galho musgoso, havia uma criança empoleirada, com o polegar firmemente enfiado na boca. Percebi pelo cabelo ruivo que era um dos Bull.

A cigana fez o sinal da cruz e resmungou alguma coisa que soou como “Hilda Muir”.

-- Iá! -- gritou ela, sacudindo as rédeas. -- Iá! -- e Gry, com um tranco, colocou o carroção em movimento novamente. Enquanto passávamos devagar sob o galho, a criança abaixou as pernas e começou a bater com os calcanhares no teto do carroção, criando um horrível e cavernoso ruído de tambor atrás de nós.

Se eu tivesse seguido meus instintos, teria subido lá e, no mínimo, feito uma grande reprimenda ao moleque. Mas um olhar para a cigana me disse que há momentos em que não se deve dizer nada.

Espinheiros escabrosos castigavam o carroção enquanto ele seguia aos solavancos, balançando de um lado para outro na vereda, mas a cigana parecia nem notar.

Ela estava encurvada por cima das rédeas, com os olhos úmidos muito fixos em algum horizonte distante, como se apenas sua carcaça estivesse neste século e o restante dela houvesse escapado para um lugar remoto, alguma terra sombria e nebulosa.

O caminho se alargou um pouco, e, um instante depois, estávamos nos movendo lentamente para além de uma decrépita cerca estacada. Atrás dela, havia uma casa caindo aos pedaços, a qual parecia ter sido construída com portas rejeitadas e venezianas quebradas, e um jardim arenoso e atulhado de lixo, que incluía um fogão abandonado, um carrinho de bebê fundo e antiquado com duas rodas faltando, diversos automóveis fossilizados e numerosas latas vazias espalhadas por toda parte. Em volta da propriedade, havia anexos desconjuntados, agrupados aqui e ali -- pouco mais que telheiros construídos com musgosas tábuas apodrecidas e um punhado de pregos.

Por cima disso tudo, erguendo-se de várias pilhas fumegantes de entulho, pairava um manto de fumaça cáustica e cinzenta, que fazia o lugar parecer um inferno saído das gravuras de uma Bíblia vitoriana. Sentada em uma tina de lavar roupa no meio do pátio lamacento, estava uma criança pequena, que arrancou o polegar da boca no instante em que nos viu e disparou um choro alto e prolongado.

Tudo parecia revestido de ferrugem. Até o cabelo ruivo da criança intensificava a impressão de que tínhamos nos perdido e ido parar em uma terra estranha, decadente, onde reinava a oxidação.

A oxidação, eu nunca canso de lembrar a mim mesma, é o que acontece quando o oxigênio entra em ação. Ela mordiscava minha pele naquele exato momento e também a da cigana sentada ao meu lado -- e era fácil perceber que ela estava muito pior do que eu.

Em meus experimentos antigos no laboratório de Buckshaw, eu verificara que, em certos casos -- por exemplo, quando o ferro é consumido em uma atmosfera de oxigênio puro --, a oxidação é um lobo que ataca rápido sua comida: tão rápido que o ferro explode em chamas. O que chamamos de fogo nada mais é, na verdade, do que nossa velha amiga oxidação trabalhando em um ritmo febril.

Mas, quando a oxidação mordisca o mundo à nossa volta mais delicadamente -- mais devagar, como uma tartaruga --, sem chamas, nós a denominamos ferrugem e às vezes mal notamos que ela consome tudo, desde grampos de cabelo até civilizações inteiras. Às vezes penso que, “se pudéssemos parar a oxidação, poderíamos parar o tempo e talvez ser capazes de..."

Meus agradáveis pensamentos foram interrompidos por um grito de estourar os tímpanos:

-- Cigana! Cigana!

Uma mulher grande e ruiva com um vestido de ficar em casa, manchado de suor, saiu da casa agitando os braços como um moinho de vento e atravessou o pátio em nossa direção. As mangas de seu cardigã estavam enroladas acima dos cotovelos ossudos, como se ela estivesse saindo para uma batalha.

-- Cigana! Cigana! Vá embora! -- bradou ela, a cara tão vermelha quanto o cabelo. -- Tom, venha para fora! Aquela cigana está no portão!

Todo mundo em Bishop’s Lacey sabia perfeitamente que Tom Bull fora embora séculos atrás e provavelmente não voltaria. A mulher estava blefando.

-- Foi você que roubou meu bebê, e não me diga que não. Eu vi você rondando por aqui naquele dia e estou disposta a dizer isso perante qualquer tribunal!

O desaparecimento da menininha dos Bull, vários anos antes, teve algo de sobrenatural, mas o caso, não resolvido, acabou parando aos poucos nas últimas páginas dos jornais, até cair no esquecimento.

Olhei para a cigana, para ver como ela estava aguentando os desvarios de sua escandalosa acusadora. Estava sentada imóvel no banco do cocheiro, olhando diretamente à frente, entorpecida em relação ao mundo. Essa reação pareceu incitar a outra mulher a ficar ainda mais frenética.

-- Tom, venha aqui para fora... e traga o machado! -- guinchou a mulher.

Até então, ela parecera mal reparar em mim, mas subitamente meu olhar cruzou com o dela, e o efeito foi dramático.

-- Eu conheço você! -- bradou ela. -- Você é uma daquelas garotas De Luce, lá de Buckshaw, não é? Eu reconheceria esses frios olhos azuis em qualquer lugar.

Frios olhos azuis? Aí estava uma coisa na qual valeria a pena pensar. Embora eu frequentemente ficasse congelada pelo olhar gélido do pai, nunca, nem por um instante, pensei que possuísse eu mesma aquela arma tão letal.

Me dei conta, é claro, de que estávamos em uma situação perigosa, o tipo de situação que poderia se tornar bem desagradável num piscar de olhos. Era óbvio que não dava para contar com a cigana. Para todos os fins práticos, eu estava sozinha.

-- Receio que você esteja enganada -- disse eu, erguendo o queixo e estreitando os olhos para conseguir o máximo de efeito. -- Meu nome é Margaret Vole, e esta é minha tia-avó Gilda Dickinson. Talvez você a tenha visto no cinema? O chalé escarlate? Rainha da Lua? Mas, claro, que tolice a minha! Você não poderia reconhecê-la nessa fantasia de cigana, poderia? Ou com essa maquiagem pesada? Desculpe, acho que não entendi seu nome, senhorita...

-- B-Bull -- gaguejou a mulher, ligeiramente perplexa. -- Senhora Bull.

Ela olhou para nós totalmente atônita, como se não pudesse acreditar no que viam seus olhos.

-- Encantada em conhecê-la, senhora Bull -- disse eu. -- gostaria de saber se poderia nos oferecer uma ajuda? Estamos totalmente perdidas. Deveríamos ter nos juntado à equipe do filme horas atrás, em Malden Fenwick. Nós duas somos um caso perdido quando se trata de encontrar caminhos, não é, tia Gilda?

A cigana não respondeu.

A mulher ruiva já começara a ajeitar o cabelo.

-- Suas tolas, sejam quem forem -- disse ela, apontando. -- Daqui, não há como voltar atrás. O caminho é estreito demais. Vocês terão de seguir diretamente para Doddingsley e depois voltar pelo caminho de Tench.

-- Muitíssimo obrigada -- disse eu na minha melhor voz de pateta da aldeia, tomando da cigana as rédeas e dando uma sacudida.

-- Iá! -- gritei, e Gry começou imediatamente a se mover.

Havíamos andado cerca de quinhentos metros quando, de repente, a cigana falou:

-- Você mente como uma de nós.

Aquele não era bem o tipo de comentário que eu esperava. Ela deve ter visto minha expressão intrigada.

-- Você mente quando é atacada sem razão. Como por causa da cor dos seus olhos...

-- Sim -- disse eu. -- Imagino que sim.

Eu realmente nunca pensara nisso desse modo.

-- Então -- disse ela, repentinamente animada, como se o encontro com a sra. Bull tivesse esquentado seu sangue --, você mente como nós. Você mente como uma cigana.

-- E isso é bom? -- perguntei. -- Ou mau?

Sua resposta demorou a chegar.

-- Isso significa que você vai ter uma vida longa.

O canto da sua boca se contraiu, como se um sorriso estivesse prestes a escapar, mas ela o suprimiu rapidamente.

-- Apesar da estrela quebrada, meu monte da lua? -- não pude deixar de perguntar.

Seu riso estridente me pegou de surpresa.

-- Baboseiras. Bobagem de cartomante. Você não caiu nessa, caiu?

O riso desencadeou mais uma crise de tosse, e tive de esperar até que ela recuperasse o fôlego.

-- Mas... a mulher na montanha... a mulher que estava tentando vir para casa, fugindo do frio...

-- Veja bem -- disse a cigana com ar cansado, como se não estivesse acostumada a falar --, suas irmãs... Elas me deram as dicas sobre você e Harriet. Me deram um par de xelins para deixá-la apavorada. Não há nada além disso.

Senti o sangue congelar. Foi como se as torneiras que alimentam meu cérebro tivessem sido subitamente mudadas do quente para o frio. Olhei para ela.

-- Desculpe se a magoei -- prosseguiu ela. -- Eu nunca tive a intenção de...

-- Não faz diferença -- disse eu com um dar de ombros mecânico. Mas fez. Minha mente ficou atordoada. -- Tenho certeza de que vou encontrar um meio de retribuir.

-- Talvez eu possa ajudar -- disse ela. -- Vingança é a minha especialidade.

Será que ela estava me ridicularizando? A mulher não tinha acabado de admitir que era uma fraude? Olhei fundo em seus olhos negros, procurando um sinal.

-- Não fique olhando para mim desse jeito. Faz meu sangue coçar. Eu disse que sentia muito, não disse? E fui sincera.

-- Foi? -- perguntei, arrogante.

-- Me poupe do beicinho. Já existe insolência suficiente no mundo sem sua contribuição.

Ela estava certa. Apesar de eu puxá-los para baixo, os cantos de minha boca estremeceram e depois começaram a subir. Comecei a rir, e a cigana riu comigo.

-- Você me fez lembrar a criatura que esteve na tenda logo antes de você. Ela era uma espécie de nuvem de tempestade. Eu lhe disse que havia alguma coisa enterrada em seu passado; e que essa coisa queria ser desenterrada, queria acertar as contas. Ela ficou branca como o portão do jardim.

-- Ora, o que você viu? -- perguntei.

-- Dinheiro! -- disse ela rindo com uma fungada. -- A mesma coisa que vejo sempre: um par de moedas se eu jogar minhas cartas direito.

-- E você...?

-- Bah! Um maldito xelim, isso foi o que ela me deixou. Nem um penny a mais. Como disse, ela ficou toda nervosa quando lhe falei aquilo. Saiu correndo como se tivesse visto um fantasma.

Prosseguimos em silêncio por algum tempo, e me dei conta de que já estávamos quase chegando às Paliçadas.

Para mim, as Paliçadas eram como um canto esquecido do Paraíso. No ângulo sudoeste da propriedade de Buckshaw, embaixo de uma extensa tenda de ramos verdes e frondosos, o rio, como que fazendo um giro completo em suas margens, virava para oeste numa curva graciosa, criando uma clareira tranquila, que era quase uma ilha. Ali, a margem leste era um pouco mais alta que a margem oeste; e a margem oeste era mais pantanosa que a leste. Sabendo precisamente o ponto entre as árvores, era possível ainda avistar os bonitos arcos da pequena ponte de pedra, que datava da época da Buckshaw original, uma mansão senhorial elisabetana que fora incendiada no século XVII por aldeões raivosos, autores de suposições falsas sobre as lealdades religiosas de nossa família.

Voltei-me para a cigana, ansiosa por compartilhar meu amor pelo lugar, mas ela parecia ter caído no sono. Observei suas pálpebras atentamente, para ver se estava fingindo, mas não havia um tremor sequer. Prostrada contra o arcabouço do carroção, soltava um chiado ocasional -- e assim eu soube que ela ainda respirava.

Por estranho que pareça, descobri que me ressentia com seu sono fácil. Eu estava simplesmente ardendo por recitar para ela, como uma guia de turismo, alguns dos mais fascinantes trechos da história de Buckshaw. Mas, por enquanto, teria de guardá-los para mim mesma.

As Paliçadas, como chamávamos o lugar, tinham sido um dos pontos frequentemente visitados por Nicodemus Flitch em seus últimos anos, ele que era um ex-alfaiate, no século XVII, fundou a seita religiosa dos Hobblers, que significa “capengas”, assim batizada por causa do peculiar modo de andar que eles adotaram em suas orações -- andavam como se estivessem acorrentados. As crenças dos Hobblers pareciam se basear largamente em ideias novas, como a de que o Paraíso estava convenientemente localizado dez quilômetros acima da superfície da Terra ou a de que Nicodemus Flitch fora pessoalmente nomeado por Deus como Seu porta-voz e, como tal, tinha licença para amaldiçoar almas para toda a eternidade, sempre que se sentisse inclinado a isso.

Certa vez, Dafi me disse que, em uma ocasião, quando Flitch estava pregando nas Paliçadas, ele invocou a ira de Deus sobre a cabeça de um importuno, e este caiu morto na hora -- e que, se eu não lhe entregasse a lata de balas de alcaçuz sortidas que a tia Felicity me mandara no meu aniversário, ela faria a mesma maldição desabar das alturas sobre a minha cabeça. “E nem pense que não sou capaz”, acrescentou ela de maneira ameaçadora, batendo um dedo indicador sobre o livro que estava lendo. “As instruções estão bem aqui, nesta página." Eu disse a ela que a morte do importuno fora coincidência e, muito provavelmente, devido a um derrame, ou a um ataque do coração. Ele certamente teria morrido de um jeito ou de outro, mesmo que tivesse decidido ficar em casa, na cama, naquele dia em especial. “Não aposte nisso”, resmungou Dafi.

Em seus últimos anos, Flitch, foi expulso de Londres em desgraça e perdia terreno continuamente para seitas religiosas mais estimulantes, como os Ranters, os Shakers, os Quakers, os Diggers, os Levellers, os Sliders, os Swadlers, os Tumblers, os Dunkers, os Tunkers e, sim, até os Incorruptivelianos, foram parar em Bishop’s Lacey, onde, nesta mesma curva do rio, começaram a batizar os convertidos à sua bizarra fé.

Outra vez, a sra. Mullet, depois de olhar por cima de cada um dos seus ombros e reduzir a voz a um sussurro furtivo, me contou que o estranho tipo de religião de Nicodemus Flitch, dizia-se, ainda era praticado na aldeia, muito embora hoje em dia isso se desse estritamente atrás de portas e cortinas fechadas.

“Eles mergulham os bebês deles, segurando-os pelos calcanhares," disse ela de olhos arregalados. "‘Como Aquiles no rio Estige’, minha amiga sra. Waller diz que seu Bertold contou ela. Não se meta com esses Hobblers. Eles vão usar a sua carne para fazer salsichas." Eu sorrira então e sorri agora, ao lembrar suas palavras, mas também estremeci pensando nas Paliçadas e em suas sombras, que engoliam a luz do sol.

Minha última visita à clareira ocorrera na primavera, quando ela estava cheinha de prímulas -- “primaveras”, como a sra. Mullet as chamava -- e buganvílias. Agora, o bosque estaria oculto pelos altos sabugueiros que cresciam ao longo da margem do rio. Nessa época já não dava para ver as flores de sabugueiro e inalar seu delicioso perfume. As flores brancas, que formavam algo como um amontoado de sombrinhas japonesas, já teriam ressecado e desaparecido com as chuvas de junho. Talvez fosse mais alegre pensar que as frutinhas preto-arroxeadas que tomam seu lugar logo penderiam em cachos perfeitamente organizados.

Fora nas Paliçadas, no tempo dos Georges de algarismos romanos mais baixos, que a família De Luce desviara o rio Efon temporariamente para formar o lago ornamental e alimentar as fontes, cujos respingos salpicavam os gramados e terraços de Buckshaw. Na época de sua construção, essa maravilha subterrânea da engenharia hidráulica causara um sem-fim de ressentimentos entre minha família e proprietários de terras locais, e, por isso, um dos meus antepassados, Lucius de Luce, passou a ser conhecido na região como “Vazamento de Luce”. Em seu retrato, que ainda está pendurado em nossa galeria, em Buckshaw, ele parece estar um tanto entediado, contemplando o canto noroeste de seu lago, com suas fontes extravagantes e o templo grego, já há muito desaparecido. Lucius descansa o nó dos dedos ossudos de uma das mãos sobre uma mesa, em cima da qual estão dispostos uma bússola, um relógio de bolso, um ovo e um aparelho destinado a agrimensores, chamado teodolito. Em uma gaiola de madeira, há um canário de bico aberto -- ou ele está cantando ou pedindo socorro.

Minhas alegres meditações foram interrompidas por uma tosse áspera.

-- Pare -- disse a cigana, arrancando as rédeas de minhas mãos. “O breve cochilo deve ter feito algum bem a ela”, pensei. A despeito da tosse, havia agora mais cor em suas bochechas morenas, e seus olhos pareciam arder, mais brilhantes que nunca.

Com um estalar de língua para Gry e um desembaraço que mostrava sua familiaridade com o local, ela desviou o carroção para fora da estrada estreita, seguimos por baixo de uma imensidão de árvores e por cima da pequena ponte. Momentos depois, detivemo-nos no meio da clareira.

A cigana desceu vagarosamente de seu assento e começou a soltar os arreios de Gry. Enquanto ela cuidava do velho cavalo, aproveitei a oportunidade para me alegrar com meus arredores.

Papoulas e urtigas cresciam aqui e ali, iluminadas pelos raios oblíquos do sol da tarde. A grama nunca pareceu tão verde. Gry também notou isso -- e já pastava contente o saboroso capim.

O carroção deu uma balançada brusca, e ouvi um ruído, como se alguém tivesse tropeçado. Pulei dele e dei a volta correndo até o outro lado. Naquele instante me dei conta de que não havia notado as reais condições da cigana. Ela desmoronara no chão e se agarrava desesperadamente aos raios de uma das altas rodas de madeira. Quando cheguei perto, ela começou a tossir de novo, mais terrivelmente do que nunca.

-- Você está exausta -- disse eu. -- Deveria estar deitada.

Ela murmurou alguma coisa e fechou os olhos.

Num instante, subi nos varais do carroção e abri a porta.

Eu poderia esperar qualquer coisa, menos aquilo.

Dentro, o carroção era um conto de fadas sobre rodas. Embora não tivesse tempo para mais do que uma rápida olhada, reparei em um singular fogão de ferro fundido no estilo vitoriano e, acima dele, uma prateleira cheia de porcelana. “Água quente e chá”, pensei -- essenciais em todas as emergências. Cortinas de renda pendiam das janelas -- elas poderiam funcionar como bandagens de primeiros socorros, caso fosse necessário --, e um par de lamparinas de prata com chaminés de vidro vermelho oscilava gentilmente nos suportes, para fornecer uma luz uniforme, um pouquinho de calor e uma chama para esterilização de agulhas. Meu treinamento como escoteira, embora breve, não fora inteiramente em vão. Na traseira, dois painéis de madeira entalhada estavam semiabertos, revelando uma cama espaçosa, que ocupava quase toda a largura do carroção.

De volta para o lado de fora, ajudei a cigana a pôr-se em pé, passando um de seus braços pelo meu ombro.

-- Eu abaixei os degraus -- contei a ela. -- Vou ajudá-la a se deitar na cama.

De algum modo, consegui levá-la até a frente do carroção e, depois de empurrá-la, puxá-la e colocar suas mãos sobre os apoios necessários, fui finalmente capaz de acomodá-la. Durante a maior parte dessas operações, ela mal parecia consciente do que a cercava, ou da minha presença. Mas, uma vez posta em segurança na cama, pareceu reviver um pouco.

-- Vou buscar o médico -- disse eu. Como havia deixado Gladys estacionada nos fundos do salão paroquial, percebi que teria de voltar a pé de Buckshaw para a aldeia.

-- Não, não faça isso -- disse ela, segurando firme a minha mão. -- Prepare uma boa xícara de chá e deixe estar. Tudo que preciso é de um bom sono.

Ela deve ter visto a expressão de desconfiança em meu rosto.

-- Pegue o remédio -- disse ela. -- Vou só provar. A colher está entre as coisas do chá.

“Primeiro, o mais importante”, pensei, encontrando a colher no meio de uma confusão de prataria surrada e depois enchendo-a com um xarope meio melado.

-- Abra o bico, passarinho -- disse eu, forçando um sorriso. Essa era a fórmula que a sra. Mullet usava para me animar a engolir aqueles tônicos detestáveis que o pai insistia em dar às filhas. Com os olhos firmemente fixos nos meus (seria minha imaginação, ou eles estavam um pouquinho mais calorosos?), a cigana abriu a boca obedientemente e aceitou a colher transbordante.

-- Engula, andorinha, e voe para longe -- disse eu, pronunciando as palavras finais do ritual, voltando a atenção para o charmoso fogãozinho. Eu odiava ter de admitir minha ignorância: não fazia a menor ideia de como acender aquela coisa. Era como me pedir para alimentar as caldeiras do Queen Elizabeth.

-- Não aqui -- disse a cigana, notando minha hesitação. -- Lá fora. Acenda uma fogueira.

Depois de descer os degraus, parei para dar uma olhada rápida em volta da clareira.

Arbustos de sabugueiro, como eu disse, cresciam por toda parte. Puxei um par de ramos, tentando arrancá-los, mas não foi fácil.

“Muito cheios de vida”, pensei... “flexíveis demais”. Depois de um pouco de cabo de guerra, tendo de pular vigorosamente em cima de um par de ramos mais baixos, fui finalmente capaz de arrancá-los.

Cinco minutos depois, no centro da clareira, eu já tinha juntado gravetos e ramos suficientes para uma fogueira decente.

Esperançosamente, murmurando a oração dos escoteiros (“Queime, maldito!"), acendi um dos fósforos que encontrara no armário do carroção. Quando a chama tocou os gravetos, o fósforo chiou e se apagou. Outro fósforo, e nada.

Como não sou conhecida pela minha paciência, deixei escapar uma ligeira maldição.

“Se eu estivesse em casa, em meu laboratório químico”, pensei, “estaria fazendo como faz qualquer pessoa civilizada, usando um bico de Bunsen para ferver a água do chá, e não perdendo tempo, de joelhos, em uma clareira, com um feixe de ramos verdes”.

É verdade que, antes de minha abrupta saída da tropa de escoteiras, aprendera a acender fogueiras, mas eu havia jurado que nunca mais seria vista tentando acender fogo com um graveto e um cadarço de sapato, ou esfregando dois gravetos secos um no outro como um esquilo ensandecido.

Como já observei, eu tinha todos os ingredientes para uma fogueira crepitante -- quer dizer, todos, exceto um.

“Num lugar em que há lamparina”, pensei, “o querosene não pode estar longe”. Abri uma portinhola na lateral do carroção, e dentro, para minha alegria, havia um galão de parafina. Desenrosquei a tampa da lata, despejei um pouco da mistura sobre a lenha, e, antes que se pudesse dizer “Baden-Powell”, a chaleira já fervia alegremente.

Eu estava orgulhosa de mim mesma. Realmente estava. “Flavia, a engenhosa”, eu estava pensando. “Flavia, a menina boa e versátil." Esse tipo de coisa.

Subi os degraus do carroção com o chá na mão, me equilibrando na ponta dos pés como um equilibrista na corda bamba.

Entreguei a xícara à cigana e fiquei olhando enquanto ela bebericava o líquido fumegante.

-- Você foi rápida com isso -- disse ela.

Encolhi os ombros humildemente. Não havia necessidade de lhe contar sobre a parafina.

-- Você encontrou gravetos secos no armário? -- perguntou ela.

-- Não, eu...

Seus olhos se arregalaram de horror, e ela afastou a xícara esticando o braço.

-- Os arbustos, não! Você não cortou os sabugueiros, cortou?

-- Ora, sim -- disse eu modestamente. -- Não foi trabalho nenhum, eu...

A xícara voou de suas mãos com um tinido, e o chá escaldante se espalhou em todas as direções. Ela pulou da cama com uma velocidade surpreendente e encolheu-se em um canto.

-- Hilda Muir! -- gritou ela em um lamento macabro e desolado, que subia e descia como uma sirene de ambulância. -- Hilda Muir!

Ela apontava para a porta. Me virei para olhar, mas não havia ninguém lá.

-- Vá para longe de mim! Fora! Fora! -- a mão dela tremia como uma vara verde.

Fiquei lá parada, estarrecida. O que eu fizera?

-- Oh, Deus! Hilda Muir! Estamos todos mortos! -- gemeu ela. -- Agora, estamos todos mortos!

 

VISTA POR TRÁS, da beira do lago ornamental, Buckshaw apresentava um aspecto raramente visto por qualquer pessoa que não fosse da família. embora o alto muro de tijolos da horta da cozinha escondesse algumas partes da casa, havia dois quartos superiores, um no fim de cada ala, que pareciam se erguer acima da paisagem como torres gêmeas de um conto de fadas.

No canto sudoeste ficava o boudoir de Harriet, um quarto abafado, preservado exatamente como estava naquele terrível dia, dez anos atrás, em que a notícia de sua morte trágica chegara a Buckshaw. A despeito do que fazia parecer a renda italiana pendurada nas janelas, por dentro, o quarto era curiosamente higienizado, como se, tal qual no Museu Britânico, uma equipe de faxineiros vestidos de cinza viesse silenciosamente à noite para limpar todos os sinais da passagem do tempo, como as teias de aranha e a poeira.

Embora eu achasse improvável, minhas irmãs acreditavam que o guardião do santuário de Harriet era o pai. Certa vez, escondida na escada, eu ouvi Felinha dizendo a Dafi: “Ele faz a limpeza à noite, para pagar seus pecados”. “Manchas de sangue e coisas assim”, sussurrara Dafi dramaticamente. Agitada demais para dormir, naquela noite fiquei deitada de olhos abertos por horas, me perguntando o que ela quis dizer.

Agora, no canto sudeste da casa, as janelas de cima do meu laboratório químico refletiam a lenta passagem das nuvens à deriva, que atravessavam o vidro escuro como carneiros gordos em uma campina azul, sem deixar transparecer para o mundo exterior nenhuma pista do palácio de prazer que havia dentro delas.

Ergui alegremente os olhos para as vidraças, abraçando-me, visualizando a coleção de utensílios de vidro reluzente que aguardava por meu deleite. O bondoso pai de meu tio-avô, Tarquin de Luce, construíra o laboratório para seu filho durante o reinado da Rainha Vitória. O tio Tar fora expulso de Oxford por conta de algum escândalo que nunca se explicou -- ao menos na minha presença --, e foi em Buckshaw que ele começou sua gloriosa, ainda que enclausurada, carreira química.

Depois da morte do tio Tar, o laboratório foi abandonado aos seus próprios segredos: foi trancado e esquecido pelas pessoas que estavam mais preocupadas com impostos e drenagem do que com engenhosos tubos de ensaio.

Isto é, até eu chegar e reclamá-lo como meu. Sorri de tanto prazer ao me lembrar.

Ao me aproximar da porta da cozinha, senti orgulho de mim mesma por ter pensado em usar a entrada menos comum. Com Dafi e Felinha sempre conspirando e maquinando contra mim, o cuidado nunca é demais. A excitação da quermesse e a mudança do carroção da cigana para as Paliçadas me fizeram perder o almoço. No momento, até uma fatia do bolo de repolho de virar o estômago feito pela sra. Mullet provavelmente seria tolerável, desde que acompanhada de um copo de leite gelado a ponto de congelar as papilas gustativas. A essa hora da tarde, a sra. Mullet já teria ido para casa, e eu teria a cozinha só para mim.

Abri a porta e entrei.

-- Te peguei! -- disse uma voz estridente ao meu ouvido, e tudo ficou escuro quando um saco foi enfiado por cima de minha cabeça.

Me debati, mas não adiantou. Minhas mãos e meus braços eram inúteis, pois a boca do saco estava amarrada bem apertada na altura de minhas coxas.

Antes que eu pudesse gritar, os atacantes -- e eu tinha certeza de que eram dois, a julgar pelo número de mãos que agarraram meu corpo -- me viraram de pernas para o ar. Agora o meu corpo estava, de ponta-cabeça, e alguém agarrava meus calcanhares.

Eu estava sufocando, lutando para respirar, os pulmões preenchidos pelo ar com o cheiro terroso das batatas que recentemente ocuparam o saco. Pude sentir meu sangue correr para a cabeça.

Droga! Eu deveria ter pensado em chutar. Agora, era tarde demais.

-- Faça todo o barulho que quiser -- chiou uma segunda voz. -- Não há ninguém aqui para salvá-la.

Com uma sensação deprimente, me dei conta de que aquilo era verdade. O pai tinha ido a Londres para um leilão filatélico, e Dogger fora com ele para comprar tesouras de podar e graxa para botas.

A ideia de ladrões dentro de Buckshaw era impensável.

Então, restavam Dafi e Felinha.

Estranhamente, desejei que fossem ladrões.

Me lembrei de que na casa inteira só havia uma maçaneta de porta que rangia: a que dava para a escada da adega.

Ela rangeu agora.

Um momento depois, como um cervo abatido, eu estava sendo içada para os ombros de meus sequestradores e rudemente levada, com a cabeça para a frente, escada da adega abaixo.

Ao pé da escada, me descarregaram em cima das pedras do piso, fazendo com que meu cotovelo batesse, e eu ouvi minha própria voz gritando de dor -- quando ecoou nos tetos abobadados -- seguida pelo som de minha respiração irregular.

Ouvi os sapatos de alguém na superfície áspera, não muito longe de onde eu fora deixada esparramada.

-- Silêncio, por favor! -- grasnou uma voz cavernosa, que soou artificial, como a de um robô de lata.

Soltei mais um grito e receio que, talvez, tenha choramingado um pouco.

-- Silêncio, por favor!

Por causa do choque súbito ou do frio úmido da adega, eu não podia ter certeza, comecei a tremer. Tomariam isso como sinal de fraqueza? Dizem que certos animais, por instinto, quando em perigo, se fingem de mortos. Me dei conta de que eu era um deles.

Comecei a respirar superficialmente e tentei não mover um músculo sequer.

-- Solte-a, Garbax!

-- Sim, ó Três-Olhos!

Minhas irmãs às vezes se divertiam assumindo de repente papéis de bizarros alienígenas: criaturas ainda mais bizarras e alienígenas do que elas já eram na vida real. As duas sabiam que isso era um truque que, por alguma razão especial, me perturbava tremendamente.

Eu já aprendera que a relação entre irmãs, assim como o lago Ness, possui coisas que se escondem abaixo da superfície, mas acho que foi somente então que me dei conta de que, entre todos os cordéis invisíveis que nos amarravam umas às outras, os tenebrosos eram os mais fortes.

-- Pare com isso, Dafi! Pare com isso, Felinha! -- gritei. -- Vocês estão me assustando.

Dei um par de eficazes chutes de sapo, como se estivesse à beira de uma convulsão.

O saco se removeu bruscamente, fazendo-me girar, de modo que fiquei deitada de bruço, sobre as pedras.

Uma única vela, grudada no topo de um barril de madeira, tremeluziu caprichosamente, e sua luz pálida mandou sombras escuras e dançantes por entre os arcos de pedra da adega.

Quando meus olhos se acostumaram com a penumbra, as caras de minhas irmãs surgiram grotescas nas sombras. Elas tinham pintado círculos em volta dos olhos e da boca com rolha queimada -- entendi instantaneamente a mensagem que pretendiam transmitir: “Cuidado! Você está nas mãos de selvagens!".

Agora, eu podia entender a causa da voz de robô que ouvira. Felinha estava falando com uma lata de cacau vazia na frente da boca.

-- Azeviche francês nada mais é senão vidro -- cuspiu ela, arremessando a lata ao chão, onde caiu com um estrondo exasperante. -- As suas próprias palavras. O que você fez com o broche da mamãe?

-- Foi um acidente -- choraminguei, fingida.

O silêncio gelado de Felinha me deu um pouco de confiança.

-- Eu deixei cair e pisei em cima dele. Se fosse real, não teria se estilhaçado.

-- Entregue-o para mim.

-- Não posso, Felinha. Não sobrou nada, a não ser caquinhos. Eu os derreti para transformá-los em escória.

Na verdade, eu batera na coisa com um martelo e a reduzira a areia preta.

-- Escória? O que você quer com escória?

Seria um erro contar a ela que eu estava trabalhando em um novo tipo de frasco de cerâmica que pudesse suportar as altas temperaturas produzidas por um bico de Bunsen superoxigenado.

-- Nada -- disse eu. -- Estava só embromando.

-- Por estranho que pareça, eu acredito -- disse Felinha. -- É isso que vocês duendes trocados fazem de melhor, não é? Embromar?

Minha perplexidade deve ter ficado evidente em meu semblante.

-- Crianças trocadas -- disse Dafi com uma voz funérea. -- Os duendes vêm no meio da noite, roubam um bebê saudável do berço e colocam em seu lugar um pequeno, feio e enrugado duende como você, deixando a mãe desolada.

-- Se você não acredita -- disse Felinha --, ponha-se na frente de um espelho.

-- Eu não sou uma criança trocada -- protestei, cada vez mais raivosa. -- Harriet me amava mais do que a qualquer uma de vocês duas, suas retardadas!

-- É mesmo? -- escarneceu Felinha. -- Então, por que ela colocava você para dormir na frente de uma janela aberta todas as noites, esperando que os duendes trouxessem de volta a verdadeira Flavia?

-- Ela não fazia isso! -- gritei.

-- Receio que fazia, sim. Eu estava lá. Eu vi. Eu me lembro.

-- Não! Não é verdade.

-- Sim, é verdade. Eu costumava me agarrar a ela chorando: “Mamãe! Mamãe! Por favor, faça os duendes trazerem de volta minha irmãzinha”.

-- Flavia? Daphne? Ophelia?

Era o pai!

A voz dele, proveniente da escada da cozinha, chegou em um volume de megafone, amplificada pelas paredes de pedra, ecoando de arco em arco.

As três cabeças se voltaram bruscamente e bem a tempo de ver suas botas, sua calça, a parte de cima de seu corpo e, por fim, seu rosto aparecer à medida que ele descia a escada.

-- O que significa isso? -- perguntou ele, olhando para nós três na semiobscuridade. -- O que vocês fizeram consigo mesmas?

Com as costas das mãos e os antebraços, Felinha e Dafi já tentavam limpar as marcas pretas do rosto.

-- Estávamos só jogando “verdade ou desafio” -- disse Dafi antes que eu pudesse responder. Ela apontou um dedo acusador para mim. -- Ela faz um belo de um escândalo quando é sua vez de pagar a prenda, mas, quando é a nossa vez, ela sempre...

“Muito bom, Dafi”, pensei. Eu mesma não poderia ter inventado uma desculpa melhor, assim, de improviso.

-- Estou surpreso com você, Ophelia -- disse o pai. -- Eu não deveria ter imaginado que...

E, então, ele parou, incapaz de encontrar as palavras certas. Havia momentos em que parecia ficar quase... o que era mesmo... com medo?... da minha irmã mais velha.

Felinha esfregou o rosto, borrando de um jeito horrível sua maquiagem de rolha. Eu quase caí na gargalhada, mas acabei me dando conta do que ela estava fazendo. Num esforço para conquistar simpatia, ela espalhava aquilo para criar círculos escuros, teatrais, embaixo dos olhos.

A raposa! Como uma atriz se maquiando em pleno palco, era um desempenho corajoso e atrevido, que não pude deixar de admirar.

O pai continuou olhando, em transe, como um homem fascinado por uma naja.

-- Você está bem, Flavia? -- disse ele afinal, sem deixar a sua posição, no terceiro degrau a começar pelo pé da escada.

-- Sim, pai -- disse eu.

Eu iria acrescentar “obrigada por perguntar”, mas me contive bem a tempo. Não queria exagerar.

O pai passou devagar o olhar de uma em uma, com olhos tristes, como se não restassem palavras no mundo para escolher.

-- Teremos uma conversa às sete horas -- disse ele por fim. -- Na sala de estar.

Com uma última olhada para cada uma de nós, ele se virou e se arrastou lentamente escada acima.


-- A questão é -- dizia o pai -- que vocês simplesmente parecem não entender...

E ele estava certo. Nós não entendíamos seu mundo como ele entendia o nosso.

O mundo dele era um mundo de confete: um universo vivamente colorido de perfis reais e paisagens pitorescas sobre pedacinhos de papel gomado; um mundo de pirâmides e couraçados, de instáveis pontes suspensas em cantos remotos do globo; de portos profundos; de torres de vigia solitárias e de cabeças de homens famosos. Em suma, o pai era um colecionador de selos, ou um filatelista, como ele preferia chamar a si mesmo e ser chamado pelos outros.

Cada momento de sua vida quando estava acordado era gasto olhando, através de uma lente de aumento, para pedacinhos de papel, em uma busca eterna por defeitos. A descoberta de uma única rachadura microscópica em um clichê, a qual resultasse em um indesejado cabelo no queixo da Rainha Vitória, podia deixá-lo em êxtase.

Primeiro viriam a fotografia oficial e o júbilo. Depois, ele tiraria do armário e montaria em seu estúdio, sobre um tripé, uma ancestral câmera de chapa com um acessório peculiar, chamado de “lente macroscópica”, que lhe permitiria tirar uma foto em close-up do espécime. Esta, uma vez revelada, produziria uma imagem grande o bastante para encher uma página inteira de um livro. Às vezes, enquanto ele se alvoroçava com essas atividades, podíamos vislumbrar fragmentos de H. M. S. Pinafore ou Os gondoleiros esvoaçando como fugitivos pela casa.

Então, viria o ensaio escrito que ele submeteria ao London Philatelist, ou coisa que o valha, e, com o ensaio, certa irritação. Todas as manhãs, o pai trazia para a mesa do desjejum uma grande quantidade de papel em branco que preenchia, página por página, com sua caligrafia minúscula.

Por semanas, ele permaneceria inacessível, e assim ficaria até o momento em que rabiscaria a última palavra -- e mais -- sobre o tópico do pelo supérfluo no queixo da rainha.

Uma vez, quando estávamos deitadas no gramado sul e olhávamos para a abóbada azul de um perfeito céu de verão, sugeri a Felinha que a busca do pai por imperfeições não se limitava a selos, mas às vezes se estendia às filhas. “Cale essa boca suja!", disparou ela.

-- A questão é -- repetiu o pai, trazendo-me de volta ao presente -- que vocês, meninas, parecem não entender a gravidade da situação.

Ele se referia principalmente a mim.

Felinha deu com a língua nos dentes, é claro, e a história de como eu vaporizara um dos horríveis broches vitorianos de Harriet derramou de sua boca tão alegremente quanto as águas de um córrego murmurejante.

-- Você não tinha o direito de removê-lo do quarto de vestir de sua mãe -- disse o pai e, por um momento, o frio olhar azul se desviou para minha irmã.

-- Desculpe -- disse Felinha. -- Eu ia usá-lo na igreja, no domingo, para impressionar Dieter. Foi muito errado de minha parte. Eu devia ter pedido permissão.

“Foi muito errado de minha parte?" Teria ouvido direito ou meus ouvidos me pregavam uma peça? Era mais provável que o Sol e a Lua de repente começassem a dançar uma alegre jiga no céu do que uma de minhas irmãs pedisse desculpas. Era simplesmente sem precedente.

O “Dieter” que Felinha mencionara era Dieter Schrantz, da Fazenda Culverhouse, um ex-prisioneiro de guerra alemão que optara por ficar na Inglaterra depois do armistício. Ele estava na mira de Felinha.

-- Sim -- disse o pai. -- Você devia.

Como ele voltou a atenção para mim, não pude deixar de notar que as rugas do canto externo de seus olhos semiencobertos pelas pálpebras -- aquelas rugas que, aos meus olhos, tantas vezes o faziam parecer aristocrático -- estavam mais marcadas do que de costume, dando-lhe a aparência da tristeza mais profunda que eu já vira.

-- Flavia -- ele disse com uma voz monótona e cansada, que me feria mais do que um golpe.

-- Sim, senhor?

-- O que faremos com você?

-- Sinto muito, pai. Eu não queria quebrar o broche. Eu o deixei cair e pisei nele por acidente, e ele simplesmente se desintegrou. Deus, ele devia ser muito velho para ser tão frágil!

Ele teve um sobressalto quase imperceptível, instantaneamente seguido por um daqueles olhares que significavam que eu entrara em um tópico que não estava aberto a discussão. Com um longo suspiro, voltou o olhar para a janela. Algo nas minhas palavras havia feito sua mente fugir para a salvação além das colinas.

-- Sua viagem a Londres foi agradável? -- arrisquei. -- Para a exposição filatélica, quero dizer?

A palavra “filatélica” o trouxe de volta depressa.

-- Espero que você tenha encontrado alguns selos importantes para sua coleção.

Ele deixou escapar mais um suspiro: dessa vez, assustadoramente parecido com a agonia de um moribundo.

-- Eu não fui a Londres para comprar selos, Flavia. Eu fui para vendê-los.

Até Felinha ficou sem fôlego.

-- Nossos dias em Buckshaw podem estar chegando ao fim -- disse o pai. -- Como vocês bem sabem, a casa pertencia à sua mãe, e quando ela morreu sem deixar testamento...

Ele espalmou as mãos em um gesto de desalento que me lembrou uma borboleta ferida.

Ele se abateu tão de repente em nossa frente que mal pude acreditar.

-- Eu tinha esperanças de levar o broche para alguém que conheço...

Por algum tempo, as palavras dele não penetraram em minha mente.

Eu sabia que, nos anos recentes, o custo de manter Buckshaw era de uma exorbitância desastrosa, isso sem falar dos impostos e da iminente taxa sobre a herança. Durante anos, o pai conseguiu manter os “homens rosnadores” dos impostos, como ele os chamava, sob controle. Mas agora os lobos uivavam de novo à nossa porta.

De tempos em tempos, apareciam pequenos indícios de nosso apuro, mas a ameaça sempre nos parecera irreal: não passavam de nuvens distantes em um horizonte de verão.

Lembrei-me de que, por algum tempo, o pai depositara suas esperanças na tia Felicity, sua irmã que morava em Hampstead. Dafi sugerira que muitas de suas “excursões filatélicas” eram, na verdade, visitas à tia Felicity, a fim de sensibilizá-la em relação a um empréstimo -- ou de lhe implorar que entregasse o que restava das joias da família.

No fim, a irmã dele deve ter recusado. Só recentemente, e com nossos próprios ouvidos, a ouvimos dizer ao pai que ele deveria pensar em vender sua coleção filatélica. “Aqueles ridículos selos de correio”, fora o que ela dissera, para ser precisa.

“Alguma coisa surgirá”, dissera Dafi vivamente. “Sempre surge." “Só em Dickens, Daphne”, dissera o pai. “Só em Dickens." Dafi estava lendo David Copperfield pela enésima vez. “Estou estudando lojas de penhores”, respondera ela quando perguntei o motivo.

Só então me ocorreu que o pai tencionava levar o broche de Harriet -- aquele que eu destruí -- a uma loja de penhores.

-- Podem me dar licença? -- perguntei. -- Não estou me sentindo bem.


Era verdade. Devo ter adormecido no instante em que minha cabeça encostou no travesseiro.

Horas depois, eu acordara de repente. Os ponteiros de meu despertador, nos quais eu tinha aplicado cuidadosamente minha fórmula própria de tinta fosforescente, me disseram que já era mais de duas da madrugada.

Fiquei deitada na cama, observando as sombras das árvores que estremeciam inquietas no teto. Desde que uma disputa territorial entre dois de meus remotos ancestrais terminara em um amargo impasse -- e uma linha preta fora pintada no meio do foyer --, esta ala da casa ficara sem aquecimento. O tempo e o clima cobraram seu preço, fazendo que os papéis de parede de quase todos os quartos -- meu era amarelo-mostarda e tinha detalhes em escarlate que pareciam minhocas -- descascassem em compridas tiras, que caíam como grandes orelhas enquanto os papéis do teto pendiam em grinaldas soltas, sobre cujo conteúdo era melhor nem pensar.

Às vezes, especialmente no inverno, eu gostava de fazer de conta que vivia embaixo de um iceberg, no mar Ártico, que o frio não era mais que um sonho e que, quando eu acordasse, haveria um fogo crepitante na lareira enferrujada e vapor quente subindo da banheira de assento que ficava no canto atrás da porta.

Nunca houve, é claro, mas eu realmente não podia me queixar. Dormia lá por opção, não por necessidade. Aqui, na ala leste -- a assim chamada “ala de ‘Tar’ de Buckshaw”, eu podia trabalhar em meu laboratório químico à vontade, até a hora que quisesse. Como davam para o sul e o leste, minhas janelas podiam resplandecer de tanta luz, e não haveria ninguém do lado de fora para observá-las, exceto talvez pelas raposas e pelos texugos que habitavam a ilha e a folly em ruínas, no meio do lago ornamental, ou quem sabe pelo caçador furtivo e ocasional cujos cartuchos e pegadas descartados eu, às vezes, achava durante minhas perambulações pelas Paliçadas.

As Paliçadas! Eu quase esqueci.

Minha abdução à porta da cozinha por Felinha e Dafi, subsequente aprisionamento na adega, a humilhação diante do pai e, por fim, minha fadiga: tudo isso tinha conspirado para deixar a cigana completamente fora de minha mente.

Pulei da cama um pouco surpresa ao me ver ainda totalmente vestida. Eu devia estar cansada mesmo!

Sapatos na mão, esgueirei-me pela grande escadaria em curva até o foyer e parei para escutar no meio da grande extensão de ladrilhos preto e branco. Para um observador localizado em uma das galerias acima, eu teria parecido um peão de algum grandioso e gótico jogo de xadrez.

“Um peão? Ah, Flavia! Admita: certamente algo mais que um peão!"

A casa estava em silêncio total. O pai e Felinha, eu podia supor, sonhavam seus sonhos respectivos: o pai, com pedacinhos de papel perfurado, e Felinha, com a vida em um castelo inteiramente construído de espelhos, nos quais ela podia se ver refletida de novo e de novo, de todos os ângulos possíveis.

Em cima, na extremidade oposta da ala oeste, Dafi ainda estaria acordada -- contudo, forçando a vista à luz de uma vela, como adorava fazer, para apreciar as gravuras de Gargantua e Pantagruel, feitas por Gustave Doré. Eu descobrira o volume encadernado em couro de bezerro embaixo do colchão de Dafi, escondido, enquanto vasculhava seu quarto à procura do pacote de goma de mascar que um recruta americano dera a Felinha, que o viu certa manhã, sentado em um degrau, enquanto ia até a aldeia para pôr uma carta no correio. Seu nome era Carl, e ele era de St. Louis, nos Estados Unidos. Ele disse a Felinha que ela era a imagem escarrada de Elizabeth Taylor em A mocidade é assim mesmo. Felinha, é claro, voltara para casa orgulhosa e escondera a goma de mascar, como sempre faz com tais preciosidades, em sua gaveta de lingerie, de onde Dafi a furtara. E eu, por minha vez, furtei de Dafi.

Durante semanas, foi “Carl-isso” e “Carl-aquilo”, com Felinha tagarelando sem fim sobre o lamacento Mississipi, sua extensão, suas curvas e reviravoltas, e sobre como escrever corretamente o nome do rio, para não passar por ignorante. Ficamos com a ligeira impressão de que ela concebera e executara pessoalmente a formação do grande rio, com Deus à margem, desimportante, pouco mais que um assistente de encanador. Sorri ao pensar nisso.

Foi nesse preciso instante que ouvi um clique metálico.

Pela duração de um par de batimentos de meu coração, fiquei absolutamente quieta, tentando determinar de qual direção ele viera.

“A sala de estar”, pensei, e imediatamente parti naquela direção, pé ante pé. Descalça, fui capaz de me mover em silêncio absoluto, e de ouvidos atentos para qualquer mínimo som. Já houve momentos em que amaldiçoei o sentido da audição dolorosamente agudo que herdara de Harriet, mas aquele não foi um deles.

Enquanto eu seguia a passos de lesma pelo corredor, de repente, uma réstia de luz apareceu embaixo da porta da sala de estar. “Quem estaria lá a essa hora da noite?", me perguntei. Quem quer que fosse, certamente não era um De Luce.

Deveria pedir ajuda ou lidar eu mesma com o intruso?

Segurei a maçaneta e girei-a muito lentamente, abrindo a porta: um ato temerário, imagino, mas, afinal, era minha própria casa. Não havia sentido em deixar Dafi ou Felinha ficarem com todo o crédito de pegar um ladrão.

Acostumados às trevas, meus olhos ficaram algo ofuscados com a luz de uma antiga lâmpada de parafina que usávamos quando faltava energia elétrica, e, assim, de início, não vi ninguém lá dentro. De fato, precisei de um momento para me dar conta de que alguém -- um estranho de botas de borracha -- estava agachado junto à lareira, com a mão em um dos cães de lareira, suportes de latão que seguravam a lenha, os quais eram fundidos em forma de raposa.

O branco de seus olhos brilhou quando olhou para o espelho e me viu em pé atrás dele, no vão da porta aberta.

Seu casaco de pele e o xale escarlate reluziram quando se pôs em pé e se virou rapidamente.

-- Com os diabos, garota! Você podia ter me causado um ataque do coração!

Era Brookie Harewood.

 

O HOMEM TINHA BEBIDO, percebi na hora. Mesmo a distância, pude detectar o cheiro de álcool -- além do forte odor de peixe que acompanha a pessoa que usa um samburá com o mesmo orgulho que um escocês usa kilt e sporran.

Fechei silenciosamente a porta às minhas costas.

-- O que você está fazendo aqui? -- perguntei, apresentando minha cara mais severa.

Na verdade mesmo, eu estava pensando que, a altas horas da madrugada, Buckshaw estava se tornando uma espécie de Estação Paddington. Não fazia mais de dois meses desde que eu vira Horace Bonepenny em uma acalorada discussão noturna com o pai. Bem, Bonepenny estava agora no túmulo, e aqui estava um intruso para tomar seu lugar.

Brookie tirou o boné e ajeitou o topete -- antigo sinal de submissão a alguém superior. Se ele fosse um cão, seria quase como deitar e rolar no chão.

-- Responda, por favor -- eu disse. -- O que você está fazendo aqui?

Ele brincou um pouco com o samburá de vime que cobria seu traseiro antes de responder.

-- Você me pegou com a boca na botija, moça -- disse ele, lançando um sorriso que me desarmou; notei, para minha irritação, que ele tinha dentes perfeitos. -- Mas não foi por mal. Admito que vim à propriedade na esperança de dar uma canjinha, sabe... fazer um servicinho. Nada como uma boa canja para um peito fraco, não é mesmo?

Ele bateu em sua caixa torácica com o punho fechado e forçou uma tosse que não me enganou nem por um instante, pois eu mesma fazia aquilo com frequência. Assim como não me enganou o seu falso linguajar de guarda-florestal. Se, como alegava a sra. Mullet, a mãe de Brookie é uma artista da sociedade, ele provavelmente havia sido educado em Eton ou em algum lugar parecido. A voz calma era para granjear simpatia. Esse também era um velho truque. Eu mesma já o usara e, por isso, me ressenti com Brookie.

-- O coronel não é um atirador -- prosseguiu ele --, e todo mundo sabe desse fato. Então, o que há de errado em cozinhar um bicho que só faz ciscar o dia todo? O que há de errado nisso, hein?

Notei que ele estava se repetindo -- um forte sinal de que estava mentindo. Eu não sabia a resposta para sua pergunta, portanto fiquei em silêncio, de braços cruzados.

-- Mas então vi uma luz dentro da casa -- continuou ele. -- “Olha só!", eu disse para mim mesmo. “O que será isso, Brookie? Quem poderia estar acordado a essa hora da madrugada?", me perguntei. “Será que alguém está doente?" Sabe, eu sei que o coronel não usa automóvel, então pensei: “E se alguém precisar correr para a aldeia para buscar o doutor?".

Havia verdade no que ele disse. O antigo Rolls-Royce de Harriet -- um Phantom II -- ficava guardado na cocheira co- mo uma espécie de templo particular, um lugar aonde tanto o pai como eu íamos -- embora nunca ao mesmo tempo, é claro -- sempre que queríamos escapar daquilo que ele chamava de “as vicissitudes da vida cotidiana”. É lógico que ele se referia a Dafi e Felinha -- e, às vezes, a mim.

Embora o pai sentisse terrível falta de Harriet, nunca falava dela. Seu pesar era tão profundo que o nome de Harriet fora colocado no topo da lista negra de Buckshaw: coisas sobre as quais você jamais deveria falar se desse valor à vida.

Confesso que as palavras de Brookie me pegaram desprevenida. Antes que eu pudesse pensar numa resposta, ele prosseguiu:

-- “Não, há mais do que isso”, pensei. “Se alguém estivesse doente em Buckshaw, haveria mais luzes acesas além daquela. Haveria luz na cozinha, alguém esquentando água, alguém correndo de um lado para outro..."

-- Poderíamos ter usado o telefone -- protestei, instintivamente resistindo à tentativa de Brookie de me enrolar com aquela história.

Mas ele tinha razão. O pai odiava o telefone e só permitia seu uso nas emergências mais extremas. Às duas e meia da madrugada, seria mais rápido ir de bicicleta -- ou até correr! -- para Bishop’s Lacey do que acordar a srta. Runciman na central telefônica e pedir a ela que ligasse para o dr. Darby, que certamente estaria dormindo. Quando esse entediante jogo de passa-anel estivesse terminado, todos nós poderíamos estar mortos.

Como se ele fosse o proprietário e eu a intrusa, Brookie, com os pés calçados em botas de borracha e as mãos entrelaçadas atrás das costas, tomara agora posição na frente da lareira, a meio caminho entre as duas raposas de bronze que pertenceram ao avô de Harriet. Ele não apoiou um cotovelo sobre a cornija, mas só faltou ter feito isso.

Antes que eu pudesse dizer outra palavra, ele deu uma olhada rápida e nervosa para a direita e para a esquerda e reduziu a voz a um sussurro fanhoso:

“Mas espere, Brookie, meu velho”, pensei. “Fique firme, Brookie, meu amigo. Não poderia ser a famosa Dama Cinzenta de Buckshaw?"

-- Afinal, moça, todo mundo sabe que às vezes se veem por aqui umas luzes que parecem não ter explicação.

Dama Cinzenta de Buckshaw? Eu nunca ouvira falar dessa aparição. Que superstições mais ridículas têm esses aldeões! Será que o homem estava achando que eu era boba?

-- Ou o espectro da família não deve ser mencionado entre pessoas refinadas?

“Espectro da família?" Tive a súbita sensação de que alguém jogara um balde de água gelada sobre meu coração.

A Dama Cinzenta de Buckshaw seria fantasma de minha mãe, Harriet?

Brookie deu risada.

-- Pensamento tolo, não foi? -- continuou ele. -- Nada de fantasmas para mim, muito obrigado! Mais provavelmente, um invasor de olho na prata do coronel. Há muito disso desde a guerra.

-- Acho melhor você ir agora -- eu disse, com a voz trêmula. -- O pai tem o sono leve. Se ele acordar e o encontrar aqui, sabe-se lá o que vai fazer. Ele dorme com o revólver militar no criado-mudo.

-- Bem, então vou andando -- disse Brookie despreocupadamente. -- Fico feliz em saber que nada de mau aconteceu com a família. Nós nos preocupamos muito com vocês, todos nós da aldeia. Não há muito como saber o que se passa com vocês aqui, tão longe, isolados, por assim dizer...

-- Obrigada -- disse eu. -- Somos todos de fato muito gratos. Agora, se não se importa...

Destranquei uma das portas-janelas e a escancarei.

-- Boa noite, moça -- disse ele com um sorriso arreganhado, e desapareceu na escuridão.

Contei devagar até dez -- e depois o segui.


Não conseguia ver Brookie em lugar nenhum. As sombras o engoliram por inteiro. Fiquei no terraço tentando ouvir alguma coisa por algum tempo, mas a noite estava misteriosamente silenciosa.

Acima, as estrelas brilhavam como um milhão de pequenas lanternas, reconheci a constelação Plêiades, ou As Sete Irmãs, assim chamada em homenagem a uma família de meninas da mitologia grega que, de tão pesarosas com o destino de seu pai -- o famoso Atlas, condenado a sustentar os céus nos ombros --, cometeram suicídio.

Pensei na tarde chuvosa que eu passara na estufa com Dogger, ajudando-o a descascar uma pequena montanha de batatas, ouvindo uma narrativa que vinha sendo passada de boca em boca há milhares de anos.

“Que coisa estúpida para se fazer!", eu disse. “Por que elas se mataram?"

“Os gregos são uma raça dramática”, respondera ele. “Eles inventaram o drama."

“Como você sabe de todas essas coisas?"

“Elas nadam em minha cabeça”, disse ele, “como golfinhos”. E, então, mergulhou em seu costumeiro silêncio.

Em algum lugar do outro lado do gramado, uma coruja piou, trazendo-me de volta ao presente com um susto. Me dei conta de que ainda segurava os sapatos na mão. Que tola devo ter parecido a Brookie Harewood!

Atrás de mim, a não ser pela lamparina que ainda ardia na sala de estar, Buckshaw estava toda às escuras. Era cedo demais para desjejuar e tarde demais para voltar para a cama.

Entrei de novo na casa, calcei os sapatos e abaixei o pavio. A essa altura, a cigana já estaria descansada e teria superado o medo. Com alguma sorte, eu poderia conseguir um convite para um desjejum cigano na frente da fogueira. E, com um pouco mais de sorte, poderia até descobrir quem era Hilda Muir e por que estávamos todos mortos.


Parei no limite das Paliçadas, esperando meus olhos se acostumarem com as sombras mais profundas que havia entre as árvores.

“Uma clareira no meio do mato escuro é um lugar assustador”, pensei. “Um lugar onde quase qualquer coisa pode acontecer."

Duendes... Hilda Muir... a Dama Cinzenta de Buckshaw...

Dei uma sacudida mental. “Pare com isso, Flavia!", disse uma voz dentro de mim, e eu aceitei o conselho.

O carroção ainda estava lá: pude ver várias estrelas e um pedaço da Via Láctea refletidos em uma das cortinas. O ruído de mastigação vindo de algum lugar na escuridão me contou que Gry pastava não muito longe.

Me aproximei devagar do carroção.

-- Oo-láá -- cantei em um tom alegre, considerando o estado de ânimo anterior da cigana. -- Sou eu, Flavia. Toc-toc-toc. Alguém em casa?

Não houve resposta. Aguardei um momento, depois dei a volta até a parte de trás do carroção. Quando toquei na lateral de madeira para me firmar, minha mão ficou molhada de orvalho frio.

-- Tem alguém aí? Sou eu, Flavia. -- Bati de leve com o nó dos dedos.

Havia um brilho débil na janela traseira: o tipo de brilho que poderia vir da chama de uma lâmpada deixada mais fraca para passar a noite.

De repente, algo molhado, horrendo e baboso tocou a lateral do meu rosto. Pulei para trás, com os braços girando.

-- Jesus! -- gritei.

Ouvi um ruído farfalhante e senti um hálito quente na minha nuca, seguido pelo cheiro doce de grama molhada.

-- Diacho, Gry! -- disse, girando para trás. -- Diacho!

Toquei sua cara tépida no escuro e achei-a estranhamente reconfortante: muito mais do que eu poderia esperar. Encostei a testa na dele, e, por alguns momentos, enquanto meu coração se acalmava, ficamos ali, à luz das estrelas, nos comunicando de um modo muito mais antigo do que as palavras.

“Se ao menos você pudesse falar”, pensei. “Se ao menos você pudesse falar..."

-- Oo-láá -- chamei de novo, dando uma última esfregadela no focinho de Gry e me voltando para o carroção. Mas ainda não houve resposta.

O carroção oscilou um pouco sobre suas molas quando pisei nos eixos e o escalei até chegar ao assento do cocheiro. Senti na mão o frio da maçaneta ornamental da porta ao girá-la. A porta se abriu -- não havia sido trancada.

-- Olá?

Entrei e estendi a mão em direção à lamparina que luzia pálida acima do fogão. Quando acendi o pavio, o quebra-luz de vidro se encheu de uma horrenda luminosidade vermelha e pegajosa.

Sangue! Havia sangue por toda parte. Havia respingos no fogão e nas cortinas. Havia sangue no quebra-luz, sangue em minhas mãos.

Alguma coisa pingou do teto e caiu em meu rosto. Me encolhi de repugnância -- e talvez um pouco de medo.

E então vi a cigana -- ela estava caída, desmoronada aos meus pés: um amontoado preto, caído absolutamente imóvel em uma poça do próprio sangue. Quase pisei nela.

Me ajoelhei ao seu lado e segurei seu pulso entre meu polegar e o indicador. “Será que esse palpitar é uma pulsação?"

Se fosse, eu precisaria de ajuda, e depressa. Ficar embromando não ia ajudar em nada.

Eu estava prestes a tomar o assento do cocheiro quando algo me deteve. Farejei o ar, que tinha um forte cheiro metálico de cobre, de sangue.

Sangue, sim -- mas tinha algo além de sangue. Alguma outra coisa. Farejei de novo. O que poderia ser?

Peixe! O carroção fedia a sangue e a peixe!

Será que a cigana pescou e assou um peixe na minha ausência? Achei que não; não havia sinais de fogo ou utensílios usados. “Além disso”, pensei, “ela estava demasiado fraca e cansada para isso. E certamente não havia cheiro de peixe no carroção quando o deixei”.

Saí, fechei a porta atrás de mim e pulei para o chão.

Correr de volta a Buckshaw estava fora de cogitação. Levaria tempo demais. Até acordar as pessoas certas e convocar o dr. Darby, a cigana poderia estar morta -- se é que já não estava.

-- Gry! -- chamei, e o velho cavalo arrastou as patas em minha direção. Sem pensar duas vezes, pulei em suas costas, passei os braços em volta do pescoço dele e, com os calcanhares, dei uma leve cutucada em suas costelas. Momentos depois, estávamos trotando sobre a ponte, para então virar para o norte e entrar na trilha da Ravina, estreita e cheia de mato.

A despeito da escuridão, Gry manteve uma andadura firme, como se estivesse familiarizado com aquela vereda sulcada. À medida que prosseguíamos, eu aprendia rapidamente a me equilibrar em seu dorso ossudo, me abaixando quando os galhos pegavam em minhas roupas -- e desejando ter sido precavida o bastante para trazer uma suéter. Eu tinha me esquecido de quão frias podiam ser as noites no fim do verão.

Seguimos trotando, o cavalo da cigana se superando. Talvez ele estivesse sentindo que haveria uma refeição substanciosa no fim da jornada.

Logo estaríamos passando pela residência dilapidada dos Bull, e eu sabia que não passaríamos sem ser notados. Mesmo em plena luz do dia, eram raros os viajantes na vereda estreita. No meio da noite, o som pouco rotineiro dos cascos de Gry na estrada certamente seria ouvido por alguém da semisselvagem família Bull.

Sim, ali estava ela: logo adiante, à direita. Eu podia sentir o cheiro. Mesmo no escuro, dava para ver a cortina cinzenta de fumaça que pairava sobre a propriedade. Espalhadas aqui e ali, as brasas ardentes dos entulhos em chamas brilhavam como olhos vermelhos na noite. Apesar da hora tardia, as janelas da casa estavam resplandecentes de luz.

“Não adianta pedir ajuda aqui”, pensei. A sra. Bull deixara bem claro o ódio que sentia pela cigana.

Segurando um punhado da espessa crina de Gry, puxei-a gentilmente. Como se tivesse sido treinado desde o nascimento para esse meio primitivo de controle, o velho cavalo reduziu o passo a um bamboleio. Com a mudança de passo, um dos seus cascos escorregou numa pedra.

-- Shhh! -- sussurrei ao seu ouvido. -- Na ponta dos pés!

Eu sabia que tínhamos de continuar andando. A cigana precisava desesperadamente de ajuda, e a casa dos Bull não era o lugar certo para obtê-la.

A porta bateu como se alguém tivesse saído para o pátio -- no lado mais distante da casa, a julgar pelo som.

Gry parou instantaneamente e recusou-se a prosseguir. Tive vontade de sussurrar ao seu ouvido que continuasse andando, que ele era um bom cavalo -- um cavalo incrível --, porém eu mal me atrevia a respirar. Mas Gry permaneceu tão imóvel na vereda que mais parecia um perdigueiro puro-sangue. Seria possível que o cavalo de uma cigana soubesse mais do que eu sobre furtividade? Os anos de viagens por estradas hostis teriam lhe ensinado a ser mais silenciosamente astuto do que eu jamais fui?

Tomei uma nota mental para pensar melhor a respeito disso quando não estivesse mais em perigo.

Pelo som, parecia que as pessoas no pátio estavam agora vasculhando uma porção de potes velhos, murmurando entre elas sempre que paravam com o ruído. A luz que vinha da casa, eu sabia, me lançaria sob uma escuridão mais profunda. Ainda assim, era melhor eu me fazer menor e menos visível do que alguém montado em um cavalo.

Aguardei até que uma nova série de batidas começasse e escorreguei silenciosamente para o chão. Usei Gry como escudo, ficando bem atrás dele, para que minha cara branca não fosse vista no escuro.

Quando se está em apuros, o tempo parece se arrastar. Eu não podia sequer começar a imaginar o quanto ficamos plantados no mesmo lugar. Provavelmente, não foram mais do que alguns minutos, mas, desde o primeiro momento, eu me vi inquieta, mudando o peso de um pé para o outro, tremendo na penumbra, enquanto Gry, meu velho amigo, aparentemente adormecera. Ele não movia um músculo.

E, então, a barulheira se interrompeu abruptamente.

Será que as pessoas haviam sentido nossa presença? Estariam de tocaia -- prontas para entrar em ação -- no outro lado da casa?

Mais tempo se passou. Eu não podia me mexer. Meu coração batia loucamente no peito. Parecia impossível que quem estivesse no quintal dos Bull deixasse de ouvi-lo.

Eles deveriam estar mantendo silêncio... ouvindo, como eu.

De repente, chegou às minhas narinas o cheiro forte e penetrante de um fósforo de segurança -- o inconfundível odor acre do fósforo em reação com o cloreto de potássio. Em seguida, surgiu um cheiro de cigarro.

Sorri. A sra. Bull estava se presenteando com um momento de descanso de seus moleques.

Mas não por muito tempo. Uma porta bateu, e um vulto escuro passou rapidamente por trás de uma das cortinas fechadas.

Antes que eu pudesse convencer a mim mesma de não fazê-lo, comecei a me mover pela vereda -- devagar no início, e depois mais depressa. Gry me seguiu silenciosamente. Quando chegamos às árvores que ficavam no limite oposto da propriedade, subi de novo ao seu lombo e o instiguei a prosseguir.

-- Consultório do doutor Darby -- eu disse. -- E vamos rápido!

Como se ele pudesse entender.

O consultório ficava na rua principal, virando a esquina do Caminho das Vacas. Ergui a argola de metal -- uma serpente de bronze sobre um bastão -- e bati na porta. Quase instantaneamente, ou assim me pareceu, uma janela do andar superior abriu-se com um rangido cortante de madeira, e o dr. Darby apareceu, os cabelos cinzentos e ralos, desgrenhados de quem estava dormindo.

-- A campainha -- ele disse mal-humorado. -- Por favor, use a campainha.

Dei uma apertada simbólica no botão com o polegar, e em algum lugar das profundezas da casa soou um zumbido abafado.

-- É a cigana -- gritei para ele. -- Aquela da quermesse. Acho que alguém tentou matá-la.

A janela se fechou com uma batida. Não deve ter passado mais do que um minuto até que a porta da frente se abriu e o dr. Darby saiu, ainda enfiando-se no casaco.

-- Meu carro está nos fundos -- disse ele. -- Venha comigo.

-- Mas e o Gry? -- perguntei, apontando para o velho cavalo, que aguardava silenciosamente na rua.

-- Dê a volta com ele até o estábulo -- disse o médico. -- Esculápio ficará contente com a companhia.

Esculápio era o cavalo ancião que puxara a charrete do dr. Darby até dez anos atrás, quando o doutor finalmente cedeu à pressão dos seus pacientes e comprou um combalido Morris com a frente arredondada -- um carro conversível, de dois lugares, ao qual Dafi se referia como “O Naufrágio do Hesperus”. Abracei o pescoço de Gry quando ele entrou na baia e soltou um suspiro quase audível.

-- Depressa! -- disse o dr. Darby, jogando a valise no assento traseiro do carro.

Poucos momentos depois, estávamos nos desviando da rua principal e adentrando a Ravina.

-- As Paliçadas, você disse?

Assenti, me segurando firme, como se minha vida dependesse disso. Por um momento, imaginei ter pego o dr. Darby dando uma olhadela furtiva para minhas mãos ensanguentadas à luz pálida dos instrumentos do painel, mas o que quer que ele tivesse pensado, guardou para si mesmo.

Disparamos pela vereda estreita, os faróis do Morris iluminando com surtos de claridade o túnel verde de árvores e sebes. Passamos velozmente pela casa dos Bull, tão depressa que quase não a vi, embora minha mente tenha conseguido registrar o fato de que a casa estava agora em total escuridão.


Ao dispararmos bosque adentro através da pequena ponte de pedra, o Morris quase levantou voo. Depois, pulou pesadamente nas molas quando o dr. Darby o fez parar, derrapando a apenas alguns centímetros do carroção da cigana. “Mesmo no escuro, seu conhecimento dos caminhos e atalhos de Bishop’s Lacey era notável”, pensei.

-- Fique aqui -- ele bradou. -- Se eu precisar de você, chamarei. -- Ele abriu a porta do motorista, deu a volta no carroção em um passo enérgico e se foi.

Sozinha no escuro, senti um arrepio.

Para ser perfeitamente honesta, eu estava um pouco nauseada. Não temo a morte, mas ferimentos me deixam nervosa. Tudo dependeria do que o dr. Darby encontrasse dentro do carroção.

Fiquei dentro do Morris, agitada e inquieta, tentando analisar aquelas sensações um tanto inesperadas. Será que a cigana estava morta? O pensamento de que ela poderia estar era apavorante.

Embora a Morte e eu não fôssemos exatamente velhas amigas, conhecíamo-nos superficialmente. Em minha vida, eu já me defrontara com dois corpos, e cada uma das vezes me dera...

-- Flavia! -- gritou o dr. à porta do carroção. -- Me traga uma chave de fenda. Está entre as ferramentas, no porta-malas.

“Uma chave de fenda? Que espécie de..."

Tudo bem se minhas especulações foram interrompidas.

-- Depressa! Traga aqui.

Em qualquer outra ocasião, eu talvez houvesse reagido mal a sua insolência ao me dar ordens como se eu fosse uma criada, mas mordi a língua. Na verdade, eu até o perdoei um pouco.

Quando o dr. Darby começou a afrouxar os parafusos das dobradiças da porta, não pude deixar de pensar como as mãos dele eram fortes para um homem de idade. Se ele não as tivesse usado para salvar vidas, poderia ter sido um exímio carpinteiro.

-- Desparafuse os últimos -- disse ele. -- Eu cuido do peso da porta. É isso... Boa menina.

Mesmo sem saber o que estávamos fazendo, eu fui sua escrava voluntária.

Enquanto trabalhávamos, captei vislumbres da cigana, que jazia mais à frente, no interior do carroção. O dr. Darby ergueu-a do chão e levou-a até a cama, onde ela ficou imóvel, a cabeça envolta em gaze cirúrgica. Eu não podia dizer se estava viva ou morta, e me pareceu embaraçoso perguntar.

Por fim, a porta se soltou do batente, e por um instante o dr. Darby a segurou a sua frente, como um escudo. A imagem de um cavaleiro cruzado perpassou por minha mente.

-- Com cuidado agora... ponha-a no chão, aqui.

Ele manobrou o pesado objeto cuidadosamente até deitá-lo no piso do carroção, onde se encaixou sem folga alguma no espaço entre o fogão e os assentos estofados. Então, pegou dois travesseiros na cama e colocou-os de comprido sobre a porta, antes de envolver a cigana em um lençol e, muito gentilmente, erguê-la da cama e colocá-la sobre a maca improvisada.

Novamente me admirei com sua força. A mulher devia pesar quase tanto quanto ele.

-- Agora vamos depressa -- disse ele. -- Precisamos levá-la ao hospital.

Então, a cigana estava viva! A tentativa de morte havia sido frustrada -- pelo menos por enquanto.

Puxando um segundo lençol da cama, o dr. Darby o rasgou em tiras compridas, que rapidamente posicionou embaixo da porta e em volta da cigana, amarrando suas pontas com uma série de nós habilidosos.

Ele posicionou a cigana de modo que os pés dela ficassem mais perto do batente agora sem porta; fiquei olhando-o passar por ele cuidadosamente e pular para o lado de fora do carroção.

Ouvi o Morris primeiro ranger e depois pegar. O motor rugiu, e, momentos depois, vi o dr. Darby dar ré com seu carro em direção ao carroção. Agora, ele estava escalando de volta para dentro.

-- Segure este lado -- disse para mim, apontando para os pés da cigana. -- É o mais leve.

Ele passou por mim, levantou o lado onde estava apoiada a cabeça e começou a deslizar a maca para fora do carroção.

-- Para o lado direito -- disse ele. -- Assim... devagar agora.

De repente, entendi o que ele estava tentando fazer e, quando o dr. Darby ergueu a parte com a cabeça, coloquei a outra ponta no espaço entre o assento do passageiro e o painel do automóvel.

Com um esforço surpreendentemente pequeno, nossa tarefa terminou. O fato de a cigana se projetar para cima, em um ângulo rígido, deixou o pequeno Morris parecendo um avião de madeira de tamanho exagerado; a própria cigana parecia uma múmia amarrada em uma tábua.

“Não é o mais elegante dos arranjos”, lembro-me de ter pensado, “mas vai dar certo."

-- Você vai ter de ficar aqui -- disse o dr. Darby, encaixando-se atrás do volante. -- Não há espaço para nós três neste carro velho. Apenas fique aqui e não toque em nada. Vou mandar a polícia assim que puder.

Ele queria dizer, é claro, que eu correria muito menos risco se permanecesse naquele mesmo lugar em vez de voltar sozinha para Buckshaw e encarar o risco de desentocar o atacante da cigana.

Sinalizei ao doutor com um polegar para cima, em aprovação desanimada. Mais do que isso não seria apropriado.

Ele engatou a marcha, e o carro, com a carga sinistra, começou a balançar lentamente através da clareira. Enquanto o automóvel se arrastava pela ponte corcovada, tive um último vislumbre da cigana, de seu rosto mortalmente pálido à luz de uma Lua repentina.

 

AGORA, EU ESTAVA REALMENTE SOZINHA.

Será que estava mesmo?

Nem uma só folha se mexia. Alguma coisa fez blump na água, e eu prendi a respiração. Uma lontra, talvez? Ou algo pior?

Será que o agressor da cigana ainda está por aqui, nas Paliçadas? Ainda escondido... ainda observando... de algum lugar entre as árvores?

Era um pensamento idiota, e me dei conta disso no mesmo instante. Eu aprendera muito cedo na vida que não existe nada que a mente goste mais do que se assombrar com histórias bizarras, como se as diversas circunvoluções do cérebro nada mais fossem do que escoteiras rechonchudas reunidas em volta de uma fogueira nas trevas do crânio.

Ainda assim, estremeci um pouco quando a Lua se escondeu atrás de uma nuvem. Já estava bastante fresco na primeira vez que vim aqui com a cigana; fazia muito frio quando fui montada em Gry até a aldeia, em busca do dr. Darby; agora, me dei conta, estava cruelmente gelado.

As luzes do carroção brilhavam convidativamente, mornas manchas laranjas na escuridão azul. Se uma pequena coluna de fumaça flutuasse vinda da chaminé, a cena seria como uma daquelas gravuras de destacar típicas das revistas semanais: “Uma lua cigana”, por exemplo.

O dr. Darby foi quem deixou a lamparina acesa. Será que eu deveria ir até lá e apagá-la?

Pensamentos vagos cruzaram a minha mente, como sobre economizar parafina; e pensamentos ainda mais vagos, como sobre ser uma boa cidadã.

Céus! Eu estava procurando uma desculpa para entrar no carroção e dar uma boa espiadela na cena do crime. Por que não admitir?

“Não toque em nada!", dissera o dr. Darby. Bem, eu não iria tocar em nada. Ficaria com as mãos nos bolsos.

Além disso, minhas pegadas já estavam por toda parte no chão. Que mal faria deixar mais algumas? Poderia a polícia distinguir entre duas séries de pegadas deixadas com me-nos de uma hora de diferença entre uma e outra? “Veremos”, pensei.

Enquanto subia no estribo, me dei conta de que teria de trabalhar depressa. Chegando ao hospital em Hinley, o dr. Darby logo chamaria a polícia -- ou instruiria alguém a fazê-lo. Não havia um segundo a perder.

Uma olhada rápida ao redor me mostrou que a cigana levava uma vida realmente modesta. Até onde pude descobrir, não havia papéis pessoais ou documentos nem cartas nem livros -- nem mesmo a Bíblia. Eu vira a mulher fazer o sinal da cruz, por isso me pareceu estranho que uma cópia das Sagradas Escrituras não tivesse seu lugar naquele lar itinerante.

Em uma caixa ao lado do fogão, um suprimento de hortaliças parecia realmente em más condições, como se elas tivessem sido arrancadas apressadamente dos campos de um agricultor, em vez de compradas limpas em um mercado da aldeia: batatas, beterrabas, nabos, cebolas, tudo misturado.

Enfiei a mão na caixa e revolvi o fundo dela. Nada além de hortaliças cobertas de barro.

Não sei o que estava procurando, mas reconheceria se encontrasse. “Se eu fosse uma cigana”, pensei, “o fundo da caixa de hortaliças estaria no topo da minha lista de esconderijos”.

Mas agora minhas mãos estavam totalmente cobertas não só de sangue seco, mas também de terra. Esfreguei-as em uma toalha encardida que estava pendurada em um prego, mas logo percebi que isso não resolveria nada. Voltei-me para a bacia de latão, peguei na prateleira uma jarra decorada com rosas selvagens e despejei água sobre minhas mãos imundas, uma de cada vez. Fragmentos de terra e sangue encrostado deixaram rapidamente a água vermelha e barrenta.

Tive um ligeiro arrepio. As células vermelhas do sangue, eu me lembrava de meus experimentos químicos, não eram muito mais do que uma alegre sopa de água, sódio, potássio, cloreto e fósforo. Porém, basta misturar esses elementos nas proporções apropriadas, e eles formarão uma geleia líquida e viscosa: uma geleia com propriedades místicas, que pode conter em sua complexidade escarlate não apenas nobreza, mas também traição.

Mais uma vez, esfreguei as mãos com a toalha; estava prestes a jogar o conteúdo da bacia fora, na grama, quando me bateu: “Não seja boba, Flavia! Você está deixando um rastro tão fácil de ver quanto um letreiro em um tapume!".

O Inspetor Hewitt teria um acesso de raiva. E não tenho dúvida de que seria ele -- quatro da manhã ou não -- quem atenderia ao chamado do dr.

Se questionado a respeito depois, o dr. Darby certamente se lembraria de que eu não lavara nem esfregara as mãos em sua presença. E, a não ser que fosse pega pelas evidências, eu dificilmente admitiria ter desobedecido às suas ordens e entrado de novo no carroção após sua partida.

Como uma artista da corda bamba, desci me equilibrando pelos eixos do carroção, a bacia em minha frente, os braços estendidos, como se carregasse uma oferenda.

Cheguei à beira do rio, pus a bacia no chão e desamarrei meus cadarços. Se eu arruinasse mais um par de sapatos, o pai ficaria frenético.

Entrei descalça na água, fazendo uma careta por causa do frio súbito. Um lugar perto do meio, onde a corrente preguiçosa ficava um pouquinho mais forte, seria mais seguro para esvaziar a bacia; um ponto mais perto, e restariam resíduos reveladores na margem gramada. Pela primeira vez em minha vida, agradeci um pouquinho pela conveniência de uma saia levemente mais curta.

Com água corrente até os joelhos, virei a bacia e deixei a correnteza levar os fluidos reveladores. Quando o conteúdo coa- gulado se combinou com o rio e flutuou para longe, para sabe Deus onde, soltei um suspiro de alívio. A evidência -- pelo menos aquele vestígio dela -- estava agora além da possibilidade de reconhecimento pelo Inspetor Hewitt e seus homens.

Quando estava voltando para a margem do rio, pisei pesadamente em uma pedra submersa e dei uma topada com o dedão. Quase caí de cara na água -- somente um agitar de braços me salvou. A bacia também funcionou como uma espécie de contrapeso, e cheguei sem fôlego, porém em pé, à margem.

Mas... calma aí! A toalha! As impressões de minhas mãos sujas e ensanguentadas ainda estavam nela!

Disparei de volta ao carroção. Bem como eu pensava, a toalha estava manchada com um par de impressões bastante claras de mãos-tamanho-Flavia. Tremenda sorte eu ter pensado nisso!

Mais uma viagem até a beira do rio; mais uma vez entrando na água gelada, onde esfreguei e enxaguei a toalha várias vezes, fazendo careta enquanto lhe dava uma série de torcidas surpreendentemente vigorosas. Somente quando a água que escorreu de volta ao rio era perfeitamente transparente ao luar, refiz meus passos até a margem.

Com a toalha seguramente de volta ao carroção e ao seu prego, voltei a respirar normalmente. Mesmo se analisasse os fios de algodão, a polícia não encontraria nada de extraordinário. Dei uma fungadinha de satisfação.

“Olhe para mim”, pensei. “Aqui estou eu, me comportando como uma criminosa." Certamente, a polícia jamais suspeitaria que eu tivesse atacado a cigana.

Ou suspeitaria? Afinal, não fora eu a última pessoa a ter sido vista com ela? Nossa partida da quermesse no carroção fora tão discreta quanto uma parada de circo. E também houve a desavença na Ravina com a sra. Bull, que, suspeitava eu, seria a única pessoa a ficar feliz em fabricar evidências contra um membro da família De Luce.

O que foi mesmo que ela disse? “Você é uma daquelas garotas De Luce, lá de Buckshaw, não é?" Eu ainda podia ouvir sua voz roufenha: “Eu reconheceria esses frios olhos azuis em qualquer lugar”.

Palavras duras, aquelas. Que ressentimento ela poderia ter contra nós?

Meus pensamentos foram interrompidos por um som distante: o ruído de um automóvel batendo sobre uma estrada pedregosa. A isso, seguiu-se um rangido mecânico, quando o carro reduziu a marcha.

A polícia!

Pulei para o chão e fui até a ponte. Havia tempo suficiente -- mas no limite -- para assumir a pose de sentinela fiel. Subi no parapeito de pedra e me acomodei tão cuidadosamente como se posasse de estátua da Wendy, do Peter Pan: sentada com firmeza, me inclinando ligeiramente para a frente, em alívio ansioso, as palmas pressionadas contra a pedra para me apoiar, a testa ligeiramente vincada de preocupação. Torci para não parecer exageradamente simpática.

Nem um minuto de folga. Os faróis do carro já estavam lampejando entre as árvores à minha esquerda, e, segundos depois, um Vauxhall azul resfolegava até parar junto à ponte.

Acompanhando na luz dos poderosos faróis, virei a cabeça devagar para encará-los, ao mesmo tempo erguendo a mão muito languidamente, como se fosse para proteger os olhos do brilho forte e impiedoso.

Não pude deixar de me perguntar como eu pareceria ao inspetor.

Houve uma pausa enervante, como a que ocorre no momento em que as luzes se apagam antes de a orquestra disparar as primeiras notas da abertura.

Uma porta de carro bateu pesadamente e o Inspetor Hewitt saiu caminhando lentamente em direção aos fachos de luz convergentes.

-- Flavia de Luce -- disse ele com uma voz neutra e objetiva; neutra demais para que eu percebesse se ele estava impressionado ou indignado ao me encontrar à sua espera na cena do crime.

-- Bom dia, inspetor -- disse eu. -- Estou muito contente em vê-lo.

Eu estava meio esperando que ele devolvesse a saudação, mas não o fez. Em um passado recente, eu o ajudei em diversas investigações desconcertantes. Ele deveria estar borbulhando de gratidão -- mas estaria?

O inspetor caminhou lentamente para o ponto mais alto da ponte corcovada, em seu centro, e olhou na direção da clareira onde o carroção estava estacionado.

-- Você deixou suas pegadas no orvalho -- disse ele.

Segui seu olhar, e... de fato, iluminadas pelo ângulo baixo dos faróis do Vauxhall, ao passo que as pegadas do dr. Darby e as marcas dos pneus deixadas por seu carro já estavam ligeiramente esmaecidas, as impressões de cada um dos meus passos estavam pretas e frescas na prateada grama molhada da clareira, levando diretamente à porta do carroção.

-- Eu precisei fazer xixi -- disse eu. Era a clássica desculpa feminina, e nenhum homem em toda a história registrada jamais a questionara.

-- Entendo -- disse o inspetor. E deixou por isso mesmo.

Mais tarde, tive de fazer um xixizinho rápido atrás do carroção, por questão de segurança. Ninguém percebeu.

Um silêncio caiu sobre nós, cada um esperando, acho, para ver o que o outro iria dizer. Era como um jogo: o primeiro a falar seria um bobo.

Foi o Inspetor Hewitt:

-- Você está arrepiada -- disse, olhando para mim atentamente. -- É melhor sentar no carro.

Ele já tinha chegado ao outro lado da ponte antes de se voltar.

-- Há um cobertor no porta-malas -- falou ele, e depois desapareceu nas sombras.

Senti que eu estava perdendo a calma. Ali estava aquele homem -- um homem usando um terno comum, sem sequer uma insígnia no ombro -- me dispensando da cena de um crime que eu já pensava como sendo minha. Afinal, não fora eu a primeira a descobri-la?

Marie Curie tinha sido dispensada depois de descobrir o polônio? Ou o rádio? Alguém disse a ela para ir embora?

Não era justo, simplesmente.

Uma cena de crime, é claro, não é exatamente uma descoberta de despedaçar átomos, mas o inspetor poderia pelo menos ter dito “obrigado”. Afinal, o ataque contra a cigana não tivera lugar nas terras de Buckshaw, meu lar ancestral? A vida dela não fora provavelmente salva pela minha expedição a cavalo noite adentro, à procura de ajuda?

Certamente, eu tinha direito, no mínimo, a um aceno de cabeça. Mas não...

“Vá sentar-se no carro”, dissera o Inspetor Hewitt, e agora -- como percebi com sensação deprimente que a lei não conhece o significado da palavra “gratidão” -- eu sentia meus dedos se contraindo lentamente em punhos involuntários.

Muito embora ele estivesse na cena há não mais do que poucos minutos, eu sabia que uma parede se erguera entre o inspetor eu. Se o homem estava esperando cooperação de Flavia de Luce, haveria de trabalhar muito por isso.

 

QUE AUDÁCIA DO HOMEM!

Resolvi não lhe contar nada.

Da clareira, depois da ponte corcovada, pude ver a sombra dele se movendo lentamente através das janelas cortinadas do carroção. Imaginei-o pisando com cuidado entre as manchas de sangue no chão.

Para minha surpresa, a luz foi apagada, e, momentos depois, o inspetor veio caminhando pela ponte.

Ele pareceu surpreendido ao me ver no mesmo lugar em que me deixara. Sem uma palavra, foi até o porta-malas, tirou de lá uma manta de lã escocesa e envolveu meus ombros com ela.

Arranquei fora aquela coisa e a devolvi a ele. Com surpresa, notei que minhas mãos estavam tremendo.

-- Não estou com frio, muito obrigada -- eu disse frigidamente.

-- Talvez não -- disse ele, me envolvendo de novo com a manta --, mas você está em estado de choque.

“Em estado de choque? Imagine só! Eu nunca estivera em estado de choque." Aquilo era para mim um território inteiramente novo e não mapeado.

Com uma das mãos em meu ombro e a outra em meu braço, o Inspetor Hewitt me levou até o carro e abriu a porta. Caí no assento como uma pedra e, de repente, me vi tremendo como uma folha.

-- É melhor a levarmos para casa -- disse ele, subindo no assento do motorista e dando a partida. Quando uma lufada de ar quente do aquecedor do carro me engolfou, perguntei-me vagamente como ele podia ter esquentado tão depressa. Talvez fosse um modelo especial, fabricado exclusivamente para a polícia... alguma coisa intencionalmente projetada para induzir um estado de estupor. Talvez...

Não me lembro de mais nada até a freada barulhenta que o carro deu na curva de cascalho que fica na entrada principal de Buckshaw. Não tenho a menor lembrança de ter sido trazida de volta pela Ravina, passado pela rua principal, pela igreja de São Tancredo e chegado em Buckshaw. Mas aqui estávamos; portanto, isso deve ter acontecido.

Dogger, surpreendentemente, estava à porta -- como se tivesse esperado a noite inteira. Com seus cabelos prematuramente brancos sendo iluminados pelas luzes do foyer às suas costas, ele parecia um São Pedro descarnado junto aos portões do Paraíso, dando-me as boas-vindas ao lar.

-- Eu podia ter vindo a pé -- disse eu ao inspetor. -- Era pouco menos de um quilômetro.

-- É claro que podia -- disse o Inspetor Hewitt. -- Mas esta viagem fica por conta da Sua Majestade.

Será que ele estava me provocando? Por duas vezes em um passado recente, o inspetor me levara para casa, e em uma dessas ocasiões ele deixara claro que, quando o problema era consumo de gasolina, os cofres do Rei não eram sem fundo.

-- Você tem certeza? -- perguntei, estranhamente atordoada.

-- Saído diretamente de seu porta-níquel.

Como em um sonho, me vi subindo pesadamente os degraus até a porta da frente. Quando cheguei ao topo, Dogger revolveu a manta sobre meus ombros.

-- Direto para a cama, senhorita Flavia. Já vou te encontrar, com uma bebida quente.

Enquanto eu me arrastava, exausta, pela escadaria em curva, pude ouvir uma discreta troca de palavras entre Dogger e o inspetor, mas não consegui distinguir nenhuma.

Já em cima, na ala leste, andei até meu quarto e, sem nem mesmo remover a manta de lã escocesa da Sua Majestade, caí na cama de cara para baixo.


Eu estava olhando para a xícara de chocolate que permanecia sobre a mesa de cabeceira.

Quando reparei na espessa nata marrom que se formara em sua superfície como gelo sobre uma poça lamacenta, alguma coisa no fundo de minha língua pulou como um cabrito, e meu estômago virou do avesso. Não existem muitas coisas que abomino: a nata em cima do leite é a principal delas. Eu odeio com muita força.

Nem mesmo o pensamento sobre a maravilhosa mudança química que forma aquilo -- com o calor da fervura, as proteínas do leite se agitam e se rasgam em pedacinhos, assemelhando-se, após esfriarem, a uma pele gelificada -- era suficiente para me consolar. Eu preferiria comer uma teia de aranha.

É claro que a essa altura o chocolate estava tão frio quanto água de fosso. Por várias razões complicadas que remontavam ao passado de minha família, a ala leste de Buckshaw, como já disse, não dispunha de aquecimento, mas eu mal podia me queixar. Eu ocupava essa parte da casa por escolha, e não por necessidade. Dogger deveria ter...

Dogger!

Num instante, todos os eventos do dia anterior tomaram minha consciência em um susto, como o caprichoso estrondo de um trovão, e, tais quais os violentos relâmpagos que dizem sair da terra para o céu, aqueles pensamentos chegaram em uma ordem curiosamente invertida: primeiro, o Inspetor Hewitt e o dr. Darby, depois a Ravina, e então o sangue -- o sangue! --, minhas irmãs, Dafi e Felinha, a cigana e Gry, e finalmente a quermesse na igreja -- todos eles desmoronando um em cima do outro em farrapos, porém em detalhes nitidamente gravados.

Será que eu fui atingida por um raio? Seria por isso que me sentia tão curiosamente eletrificada, como um pente esfregado com um lenço de papel?

Não, não era isso -- mas alguma coisa em minha mente estava se esquivando.

“Ora bolas”, pensei, “vou virar para o outro lado e voltar a dormir."

Mas não consegui. O sol da manhã que se derramava dentro do quarto pelas janelas era doloroso de olhar, e meus olhos estavam tomados por uma sensação silicosa, como se alguém tivesse despejado um balde de areia sobre eles.

Talvez um bom banho pudesse me animar. Sorri com o pensamento. Dafi ficaria abismada se soubesse que tomei um banho sem ser ameaçada. “Flavia, a Imunda”: assim ela me chamava, pelo menos quando o pai não estava por perto.

Não havia nada que a própria Dafi gostasse mais do que afundar em uma banheira fumegante com um livro e ficar ali até a água esfriar.

“É como ler dentro do próprio caixão”, ela dizia depois, “mas sem o mau cheiro”.

Eu não compartilhava de seu entusiasmo.

Uma leve batida na porta interrompeu esses pensamentos. Me envolvi bem apertadamente na manta escocesa e, gingando como um pinguim, atravessei o quarto.

Era Dogger, com uma nova xícara fumegante de chocolate.

-- Bom dia, senhorita Flavia -- disse ele. Não perguntou como eu estava me sentindo, mas, ainda assim, eu tive consciência de sua inspeção perspicaz.

-- Bom dia -- respondi. -- Por favor, deixe em cima da mesa. Desculpe pelo que você me trouxe na noite passada. Eu estava cansada demais para beber.

Com um aceno de cabeça, Dogger trocou as xícaras.

-- O coronel deseja vê-la na sala de estar -- disse ele. -- O Inspetor Hewitt está com ele.

Droga, duas vezes droga! Eu não tivera tempo de pensar direito nas coisas. Quanto eu iria contar ao inspetor e quanto iria guardar para mim mesma?

Para não falar do pai! O que ele iria dizer quando soubesse que sua filha mais nova passou a noite inteira fora, chafurdando no sangue da cigana que ele um dia expulsara de sua propriedade?

Dogger deve ter sentido meu constrangimento.

-- Acredito que o inspetor esteja querendo saber de sua saúde, senhorita. Vou dizer a eles que você descerá em seguida.


De banho tomado e com um vestido enfeitado de fitas, desci lentamente a escada. Felinha, que examinava seu rosto em um espelho no foyer, virou-se para mim.

-- Agora você está encrencada -- disse ela.

-- Cai fora -- respondi prazenteira.

-- Metade da força policial de Hinley em sua cola, e você ainda tem tempo para ser insolente com sua irmã. Espero que não conte com uma visita minha quando estiver atrás das grades.

Passei por ela com toda a dignidade que consegui reunir, tentando organizar os pensamentos enquanto atravessava o foyer. À porta da sala de estar, parei para fazer uma pequena oração: “Que o Senhor me abençoe e me guarde, e que Sua face resplandeça sobre mim; que Ele me preencha com imensa graça e pensamentos tão rápidos quanto raios”.

Abri a porta.

O Inspetor Hewitt se colocou em pé. Estava sentado na mesma poltrona exageradamente estofada em que Dafi costumava reclinar-se de atravessado com um livro. O pai estava em pé na frente da lareira, o lado escuro do rosto refletido no espelho.

-- Ah, Flavia -- disse ele. -- O inspetor estava justamente me contando que a vida de uma mulher foi salva pela sua pronta atuação. Minhas congratulações!

Minhas congratulações?... Congratulações?

Aquele era meu pai falando? Ou um dos deuses antigos o usava como mero boneco de ventríloquo para me transmitir um encômio do monte Olimpo?

Não. O pai era um mensageiro muito improvável; não posso me lembrar de uma única vez em meus onze anos em que ele tivesse me elogiado e, agora que ele o fizera, eu não tinha a menor ideia de como reagir.

O inspetor me salvou de uma situação difícil.

-- Congratulações, sem dúvida -- disse. -- Me disseram que, apesar da ferocidade do ataque, a mulher escapou com nada mais grave que um crânio fraturado. Na sua idade, é claro...

O pai o interrompeu:

-- O doutor Darby telefonou para tecer elogios, Flavia, mas Dogger disse a ele que você estava dormindo. Eu mesmo recebi a mensagem.

O pai ao telefone? Eu mal pude acreditar! O pai só admitia na casa “o instrumento”, como ele o chamava, com o entendimento explícito de que fosse usado apenas na mais terrível das emergências: o Apocalipse, por exemplo.

Mas o dr. Darby era um dos amigos do pai. Na ocasião oportuna, eu sabia, o bom dr. ouviria uma severa repreensão pela quebra dos regulamentos da casa -- mas no fim das contas iria sobreviver para contar a história.

-- Ainda assim -- e seu rosto se ensombreceu um pouco --, você vai ter de explicar o que fazia perambulando pelas Paliçadas no meio da noite.

-- Aquela pobre cigana -- eu disse, mudando de assunto. -- A sua tenda se incendiou na quermesse. Ela não tinha para onde ir.

Enquanto falava, fiquei atenta a qualquer sinal de hesitação na expressão do pai. Afinal, não tinha sido ele quem expulsara Johnny Faa e sua esposa de Buckshaw? Teria ele se esquecido do incidente? Ele, eu tinha quase certeza, não estava ciente do fato de que seus atos fizeram que o marido da cigana caísse morto na estrada, e não seria eu a lhe contar.

-- Eu pensei que o sermão do vigário, aquele sobre a caridade cristã...

-- Sim, sim, Flavia -- disse o pai. -- Muito louvável.

-- Eu disse a ela que poderia acampar nas Paliçadas, mas apenas por uma noite. Eu sabia que você iria...

-- Obrigado, Flavia. É o bastante.

-- ... aprovar.

Pobre pai: sobrepujado, suplantado e iludido. Quase senti pe- na dele.

Ele curvou o indicador e tocou a junta angular dos dois lados do bigode finamente aparado, um de cada vez: o direito, depois o esquerdo -- em um ajeitar nervoso que provavelmente era praticado por militares desde tempos imemoriais. Eu poderia apostar que, se é que tinha um bigode, Júlio César cutucava-o precisamente do mesmo jeito.

-- O Inspetor Hewitt gostaria de ter uma conversa com você. Como se trata de informações confidenciais sobre indivíduos que não conheço, vou deixá-los a sós.

Com um aceno de cabeça ao inspetor, o pai saiu da sala. Ouvi a porta de seu estúdio se abrir e depois se fechar, como se ele tivesse procurado refúgio entre seus selos de correio.

-- E agora -- disse o inspetor, abrindo seu caderno e tirando a tampa de sua caneta --, vamos começar do começo.

-- Bem, eu não conseguia dormir... -- comecei.

-- Não desse começo -- disse o Inspetor Hewitt sem erguer os olhos. -- Conte-me sobre a quermesse da igreja.

-- Eu entrei na tenda da cigana, para saber do meu futuro.

-- E você soube?

-- Não -- menti.

A última coisa que eu queria compartilhar com o inspetor era a história da mulher na montanha -- a mulher que queria voltar do frio para casa. E também não queria contar a ele sobre a mulher que eu estava em processo de me tornar.

-- Eu derrubei a vela dela sem querer, e eu... eu...

Para minha surpresa, meu lábio inferior tremeu ao me lembrar.

-- Sim, nós já ouvimos a respeito. O vigário conseguiu nos fornecer um bom relato, bem como o doutor Darby.

Engoli em seco, indagando-me se alguém relatara o fato de eu ter me escondido atrás dos coqueiros enquanto a tenda da cigana ardia até virar cinzas.

-- Pobre menina -- disse ele afetuosamente. -- Você passou por uma série de choques, não é?

Eu assenti.

-- Se tivesse ideia do que você já passou, eu a teria levado direto para o hospital.

-- Está tudo certo -- disse eu heroicamente. -- Vou ficar bem.

-- Você vai? -- perguntou o inspetor.

-- Não -- eu disse, lutando contra as lágrimas.

E, de repente, me veio tudo de uma vez: da quermesse às Paliçadas, sem esquecer a raivosa sra. Bull; da minha fabricada história sobre acordar no meio da noite por me preocupar com o bem-estar da cigana, até descobri-la caída em uma poça do próprio sangue no carroção. Não deixei de fora um único detalhe.

Exceto Brookie Harewood, é claro.

Eu o estava guardando para mim mesma.

Foi um desempenho magnífico, devo dizer. Como fui forçada a aprender desde uma tenra idade, não havia meio melhor de mascarar uma mentira -- ou pelo menos uma omissão gritante -- do que envolvê-la em um extravaso emocional de verdade.

Durante tudo isso, a caneta do Inspetor Hewitt voou por cima das páginas, anotando cada detalhe oficialmente. “Ele deve ter estudado um dos métodos de taquigrafia”, pensei enquanto ele rabiscava; depois, ele iria expandir aquelas anotações e deixá-las mais claras e legíveis.

Talvez ele as ditasse para sua mulher, Antigone. Eu a conhecera não fazia muito tempo, em um espetáculo de marionetes que fora organizado no salão da paróquia. Será que ela se lembrava de mim?

Em minha cabeça, eu podia vê-la sentada na frente de uma máquina de escrever colocada na mesa da cozinha, em seu chalé decorado com bom gosto, as costas retas em uma postura perfeita, os dedos flutuando entusiasticamente por cima das teclas. Ela estaria usando brincos de argola e uma blusa de seda cinza-ostra.

“Flavia de Luce?", ela diria e, erguendo seus olhos grandes e cinzentos para o marido: “Ora, não é ela a menina encantadora que eu conheci em São Tancredo, querido?". Os olhos do Inspetor Hewitt formariam rugas nos cantos. “Por certo, é ela, meu amor”, diria ele, sacudindo a cabeça ao se lembrar de mim. “Por certo, é ela."

Tínhamos chegado ao fim de meu depoimento, isto é, ao ponto em que o próprio Inspetor Hewitt chegou à cena do crime nas Paliçadas.

-- É o bastante por ora -- disse ele, fechando o caderno e enfiando-o no bolso de dentro do casaco. -- Pedi ao Sargento--Detetive Graves que venha mais tarde para pegar suas impressões digitais. Questão de rotina, é claro.

Franzi o cenho, mas, em segredo, não poderia estar mais deliciada. O sargento-detetive de covinhas, com suas piscadelas e sorrisos, chegara a ser um de meus favoritos na força policial de Hinley.

-- Imagino que elas estarão por toda parte -- eu disse. -- As minhas e as do doutor Darby.

“Assim como as dos atacantes da cigana”, ele poderia ter acrescentado, mas não o fez. Em vez disso, levantou-se e estendeu a mão para mim, tão formalmente como se estivesse sendo recepcionado em uma festa da realeza.

-- Obrigado, Flavia -- disse ele. -- Você ajudou muito... como sempre.

Como sempre? Estaria o Inspetor Hewitt fazendo pouco de mim?

Mas não: seu aperto de mão foi firme, e ele me olhou direto nos olhos.

Forcei um sorriso, receio.

 

-- DOGGER! -- CHAMEI. -- eles vêm tirar minhas impressões digitais!

Os olhos de Dogger se ergueram da vasta coleção de prataria que ele polia na mesa da cozinha. Por um breve momento, seu rosto ficou completamente inexpressivo, e então disse:

-- Espero que elas sejam devolvidas a você em bom estado.

Pisquei. Dogger estava brincando? Esperei desesperadamente que estivesse.

Dogger sofrera as mais terríveis privações no Extremo Oriente, durante a guerra. Agora, sua mente às vezes parecia consistir de nada mais que um emaranhado maluco de pontes pênseis quebradas entre o passado e o presente. Se ele já fez uma piada antes, eu nunca soube. Essa, então, podia ser uma ocasião atípica.

-- Oh! Ha-ha-ha! -- eu ri alto demais. -- Essa foi muito boa, Dogger. Devolvidas a mim em bom estado... Preciso me lembrar de contá-la para a senhora Mullet.

Eu absolutamente não tinha nenhuma intenção de compartilhar aquele momento precioso com nossa cozinheira, mas às vezes a bajulação não sabe quando parar.

Dogger fabricou um sorriso débil enquanto devolvia um garfo de peixe à caixa e selecionava outro. A prataria de Luce era guardada em um gabinete de dobrar escuro, que, quando aberto, apresentava uma notável coleção de garfos de peixe, conchas, colheres de filtrar, colheres para tutano, garfos para lagosta, pinças para cubos de açúcar, tesouras para cachos de uva e cortadores de bolo, todos arrumados em degraus, como se fossem salmões prateados pulando para cima de uma escadaria de pedra em um regato cor de uísque em algum lugar da Escócia.

Dogger carregara aquela caixa pesada até a mesa da cozinha para a limpeza ritual dos talheres, uma tarefa aparentemente sem fim, que ocupava grande parte de seu tempo, e que eu nunca me cansava de observar.

A sra. Mullet adorava contar que, quando eu era criança, fui encontrada em cima da mesa brincando com bonecos que inventei vestindo uma família de garfos de prata de lei com guardanapos dobrados. Suas caras idênticas -- nariz comprido e bochechas redondas -- eram apenas remotamente sugeridas pelas letras D L gravadas no topo de cada cabo e, de qualquer modo, requeriam um grande salto de imaginação para serem distinguidas.

“Os Mumpeters”, eu os batizara: a Mãe Mumpeter, o Pai Mumpeter e as três menininhas Mumpeter, e -- embora estivessem sobrecarregados com três ou quatro pernas cada um -- eu fazia todos dançar e cantar alegremente em cima da mesa.

Ainda me lembro de Grindlestick, a criança de três pernas abandonada que eu construíra com um garfo para picles (ao qual o pai se referia como “trífido”), que desempenhava as mais surpreendentes acrobacias, até eu entalar uma das suas pernas em uma rachadura e quebrá-la.

-- Melhor que o hipódromo, aquilo era -- a sra. M me contou enquanto enxugava uma lágrima de riso. -- Pobre criancinha.

Eu ainda não sei se ela se referia a Grindlestick ou a mim.

Agora, enquanto eu observava Dogger trabalhando, me perguntei se ele sabia dos Mumpeters. Era provável que sim, já que a sra. Mullet, quando se tratava de mexericos, poderia ser comparada ao News of the World.

Eu sabia que nunca haveria ocasião melhor para procurar informações: a sra. M estava fora de seu posto usual na cozinha, e Dogger parecia estar em alerta máximo. Respirei fundo e mergulhei diretamente no assunto:

-- Encontrei Brookie Harewood na sala de estar na noite passada -- disse eu. -- Na verdade, eram mais de duas da madrugada.

Dogger terminou de polir uma faca de toranja, depois alinhou-a perfeitamente às suas companheiras sobre uma faixa de feltro verde.

-- O que ele estava fazendo? -- perguntou.

-- Nada. Só estava plantado junto à lareira. Não, espere! Ele estava agachado, tocando em um dos cães de lareira.

Aqueles cães de lareira tinham pertencido a Harriet e, embora possuíssem caras diferentes, todos eram raposas manhosas. Harriet usava-os como personagens principais das histórias de antes de dormir que inventava para Dafi e Felinha: um fato que elas jamais cansavam de me lembrar.

Para ser perfeitamente honesta, eu me ressentia amargamente do fato de minha mãe ter criado tantas histórias de faz de conta para minhas irmãs, e para mim não. Ela morrera antes de eu ter idade suficiente para compreendê-las.

-- Qual dos dois suportes de lenha ele estava tocando? -- perguntou Dogger, já quase em pé.

-- Sally Fox -- eu disse. -- O que fica à direita.

Sally Fox e Shoppo eram os nomes que Harriet dera a cada raposa do astuto par que se aventurava alegremente em um mundo imaginário -- um mundo que se perdeu com a morte de Harriet. De tempos em tempos, Felinha e Dafi, tentando ressuscitar a sensação morna e feliz de dias passados, criavam suas próprias histórias sobre as duas raposas espertas; mas, por alguma razão, nos anos mais recentes elas haviam parado de tentar. Talvez tivessem ficado muito velhas para contos de fadas.

Eu segui Dogger quando ele saiu da cozinha, atravessou o foyer e se dirigiu à sala de estar da ala oeste.

Ele parou por um momento, ouvindo à porta, e então pareceu sumir através dos painéis, tal qual uma nuvenzinha de fumaça, como tantos dos criados mais velhos são capazes de fazer.

Ele foi diretamente até Sally Fox e olhou-a tal como um padre deve fazer quando oferece extrema-unção. Quando terminou, moveu-se um pouco para a esquerda e repetiu a atuação com Shoppo.

-- Muito, muito estranho -- disse ele.

-- Estranho?

-- Muito estranho. Este aqui -- disse ele, apontando para Sally Fox -- ficou desaparecido por várias semanas.

-- Desaparecido?

-- Não estava aqui ontem. Não informei ao coronel porque sabia que ele ficaria preocupado. No começo, pensei que eu mesmo poderia tê-lo tirado do lugar durante um dos meus... meus...

-- Devaneios -- sugeri. Dogger assentiu.

-- Obrigado -- disse ele.

Dogger sofria de terrores ocasionais, durante os quais era arrebatado momentaneamente por forças invisíveis e lançado para dentro de um horrível abismo. Nessas ocasiões, sua alma parecia reencenar velhas atrocidades, pois ele se via mais uma vez jogado na companhia de seus queridos companheiros de batalha, os espíritos inquietos deles sendo arrastados de volta da morte por causa do amor de Dogger por eles.

-- Um mês atrás, foi Shoppo: um dia estava aqui, no outro se fora. E então reapareceu. Pensei estar imaginando coisas.

-- Você tem certeza, Dogger?

-- Sim, senhorita Flavia. Certeza absoluta.

Pensei por um momento em dizer a ele que eu havia pego os cães de lareira, mas não pude me forçar a pronunciar a mentira.

Havia algo em Dogger que demandava a verdade.

-- Talvez Dafi os tenha levado emprestados para uma de suas sessões de desenho.

Os ocasionais esboços a lápis de Dafi costumavam começar razoavelmente bem, mas então, com muita frequência, pegavam um caminho espetacularmente errado. Dentes salientes brotavam da Virgem Maria de repente, por exemplo, ou uma caricatura improvisada do pai sentado à mesa do jantar virava um homem sem olhos. Quando isso acontecia, Dafi punha de lado o desenho e voltava à sua leitura. Por semanas depois, continuávamos a achar, nas fendas do sofá e embaixo das almofadas das poltronas da sala de estar, páginas que ela arrancara de seu caderno de desenho.

-- Talvez -- disse Dogger. -- Talvez não.

Acho que foi naquele momento -- apesar de não ter me dado conta disso -- que comecei a ver a solução para o quebra-cabeça dos suportes de lenha.

-- A senhora Mullet está aqui hoje?

Eu sabia perfeitamente bem que ela estava, mas não a tinha visto na cozinha.

-- Ela está lá fora, falando com Simpkins, o entregador de leite. Alguma coisa sobre uma lasca de madeira na manteiga.

Eu teria de esperar até que Dogger guardasse os talheres antes de abordar a sra. M.

Queria estar sozinha com ela.


-- Esses vendedores não ligam a mínima -- disse a sra. Mullet indignada, os braços brancos de farinha até os cotovelos. -- Realmente não ligam. Um dia é uma mosca no creme azedo, no outro é uma... Bem, você realmente não quer saber, querida. Mas uma coisa é clara como água de lavar pratos: se você os deixar sair impunes, sabe-se lá o que trarão da próxima vez. Fique calada a respeito de um palito de dentes na manteiga hoje, e da próxima vez você pode achar uma maçaneta de porta no queijo cottage. Eu não gosto disso, querida, mas assim é o mundo.

Me perguntei como diabos eu poderia incluir Brookie Harewood no assunto sem parecer que estava fazendo exatamente isso.

-- Talvez devamos comer mais peixe -- sugeri. -- Alguns dos pescadores da aldeia vendem peixe fresco em seus samburás. Brookie Harewood, por exemplo.

A sra. Mullet me mirou com um olhar penetrante.

-- Hum! Brookie Harewood! Ele não passa de um pescador clandestino. Fico surpresa que o coronel não o tenha expulsado das Paliçadas. São os peixes dele que Brookie anda vendendo às portas dos chalés.

-- Imagino que ele precise ganhar a vida.

-- Ganhar a vida? -- Ela se enfureceu, dando um murro extra no monte de massa de pão. -- Ele não precisa ganhar a vida. Não com aquela mãe dele regularmente mandando cheques de Malden Fenwick para que ele fique longe. É um vadio, pura e simplesmente, é o que ele é. E um canalha, ainda por cima.

-- Um parasita? -- perguntei.

Dafi me contara certa vez sobre a ovelha negra dos nossos vizinhos, os Blatchford, que era paga para ficar bem longe, no Canadá. “Duas libras e dez xelins por milha ao ano”, disse ela. “Ele vive nas ilhas Charlotte para fazer render sua pensão."

-- Para-sítio ou não, ele não presta, e isso é um fato -- disse a sra. Mullet. -- Ele conseguiu se meter com um bando de marginais.

-- Colin Prout? -- sugeri, pensando no modo como Brookie intimidara o garoto na quermesse.

-- Colin Prout nada mais é senão a marionete de Brookie Harewood, é o que ouvi. Não, eu estava falando de Reggie Pettibone e daquele pessoal que tem uma loja na rua principal.

-- A loja de antiguidades?

A Pettibone Antiguidades e Produtos Finos ficava a uns poucos metros da Treze Patos. Embora eu já tivesse passado na frente dela muitas vezes, nunca tinha entrado.

A sra. Mullet deu uma fungada.

-- Antiguidades, o meu traseiro! -- exclamou ela. -- Des-culpe, querida, mas é assim que me sinto a respeito. Aquele Reggie Pettibone nos deu duas libras e três pence por uma mesa que eu e Alf compramos nova na loja Army and Navy quando nos casamos. Três semanas depois, nós a vimos na vitrine dele custando cinquenta e cinco guinéus! E com um letreiro que dizia: “Mesa georgiana de whist por Chippendale”. Soubemos que era a nossa porque Alf reconheceu a marca de queimado na perna em que ele raspara um atiçador quente enquanto tentava pescar uma brasa que tinha pulado para fora da lareira e rolado para baixo da mesa, isso quando a nossa Agnes era só uma criancinha.

-- E Brookie está com Pettibone?

-- Eu diria que está. Parceiros no crime. Próximos como os dentes de um quebra-nozes, aqueles dois.

-- E o que a mãe dele acha disso?

-- Tsc! -- fez a sra. Mullet. -- Ela pouco se importa com ele. Ela, com suas tintas e pincéis! Ela anda com aquela turma dos cavalos e cães de caça, esses grã-finos. Cobra deles um bom dinheiro, aposto. Brookie e seus hábitos traiçoeiros não trouxeram a ela nada, a não ser vergonha. Na minha cabeça, ela não se importa muito com o que o filho faz, desde que ele fique longe de Malden Fenwick.

-- Obrigada, senhora M -- disse eu. -- Gosto de falar com a senhora. Sempre tem histórias tão interessantes para contar.

-- Veja bem, eu não falei nada -- disse ela em voz baixa, erguendo um dedo. —Meus lábios estão selados.

E, de um jeito bem estranho, havia verdade no que ela dissera. Desde que eu entrara, estava esperando que ela me perguntasse sobre a cigana, ou por que a polícia aparecera em Buckshaw, mas ela não o fez. Seria possível que não soubesse desses eventos?

Parecia improvável. A conversa dela à porta da cozinha com o homem do leite provavelmente teria fornecido mais troca de informações do que uma conversa entre o Lorde Ha-Ha e Mata Hari.

Eu já tinha atravessado a cozinha e estava com a mão na porta quando ela disse:

-- Não se afaste muito, querida. Aquele guarda simpático, aquele com as covinhas, vai chegar logo para tirar suas impressões digitais.

Raio de mulher! Será que ela estava espionando atrás de todas as portas de Buckshaw? Ou era mesmo clarividente?

-- Ah, sim -- retruquei, não muito convincente. -- Obrigada por me lembrar, senhora M. Eu quase me esqueci.


A campainha da porta tocou quando eu estava passando embaixo da escadaria. Apressei o passo, mas Felinha chegou na frente.

Brequei, escorregando nos ladrilhos xadrez do foyer bem quando ela abriu a porta da frente, revelando o Sargento-Detetive Graves com uma pequena caixa preta nas mãos e o queixo já bem próximo do chão.

Tenho de admitir que Felinha nunca estivera tão linda: da blusa de seda cor de salmão até a suéter verde-acinzentada de mohair -- ambas as quais, como eu sabia de minhas expedições de bisbilhotice, ela surrupiara do quarto de vestir de Harriet --, do seu perfeito cabelo cor de mel até os cintilantes olhos azuis -- tendo deixado, é claro, os óculos de armação preta, como sempre fazia, enfiados embaixo das almofadas do sofá --, ela parecia um close em um filme tecnicolor.

Ela havia planejado isso, a bruxa!

-- Sargento Graves, eu presumo? -- disse ela em voz baixa e velada. -- Entre. Estávamos esperando por você.

“Nós? Qual, entre as velhas besteiras, ela estaria encenando?"

-- Sou a irmã de Flavia, Ophelia -- disse ela, estendendo um pulso revestido de coral e uma mão delicada e branca que faria os dedos da Lady de Shalott parecer ganchos de pendurar carne.

Eu poderia tê-la matado!

Que direito tinha Felinha de se imiscuir entre mim e o homem que viera a Buckshaw para tirar minhas impressões digitais? Era indesculpável!

Ainda assim, eu não deveria esquecer que já tive mais de um sonho acordada em que o alegre sargento tagarela se casava com minha irmã mais velha, e eles viviam em um chalé cheio de flores, onde eu podia aparecer para o chá da tarde e ter alegres conversas profissionais sobre criminosos envenenadores.

O Sargento Graves finalmente recuperou o bastante de suas faculdades mentais para dizer “muito prazer” e seguir desajeitado para o foyer.

-- Gostaria de uma xícara de chá e um biscoito, sargento? -- perguntou Felinha, conseguindo sugerir no tom de voz que o pobrezinho estava sobrecarregado de trabalho, exausto e malnutrido.

-- Eu estou mesmo com muita sede -- ele conseguiu dizer com um sorriso envergonhado. -- E com fome -- acrescentou.

Felinha deu um passo atrás e o introduziu à sala de estar.

Fui atrás, como um cão de caça esquecido.

-- Você pode deixar seu equipamento aqui -- disse Felinha, indicando uma mesa estilo regência perto de uma janela. -- Quão terrivelmente árdua deve ser a vida de um policial! Todas aquelas armas de fogo e criminosos, e botas pesadas.

O Sargento Graves fez a gentileza de não agredi-la. Na verdade, ele parecia estar se divertindo.

-- De fato, é uma vida dura, senhorita Ophelia -- disse ele --; pelo menos a maior parte do tempo.

Seu sorriso com covinhas sugeria que aquele momento era um dos mais tranquilos.

-- Vou tocar para a senhora Mullet -- disse Felinha, estendendo a mão para um puxador de veludo que pendia perto da lareira e que provavelmente não era usado desde que George III espumava pela boca. A sra. M teria uma insuficiência renal quando a campainha da cozinha soasse bem acima de sua cabeça.

-- Que tal tocarmos o barco? -- perguntei. Era uma expressão que eu aprendera com Philip Odell, o detetive da rádio. -- O Inspetor Hewitt deve estar ansioso para dar uma olhada nas digitais.

Felinha deu uma risada que pareceu o tilintar de um sino de prata.

-- Você deve perdoar minha irmãzinha, sargento -- disse ela. -- Receio que ela tenha sido deixada sozinha por muito tempo.

Deixada sozinha? Eu quase soltei uma gargalhada! O que o sargento diria se eu lhe contasse sobre a inquisição nos porões de Buckshaw? Sobre como Felinha e Dafi me amarraram em um saco de batatas fedido e me atiraram no chão de pedra?

-- Então, vamos tocar o barco -- disse o sargento, abrindo os fechos de seu kit. -- Imagino que você vai querer entender um pouco a química, e tudo o mais -- disse ele, dando uma piscadela para mim.

Se dependesse de mim, ele teria sido santificado ali mesmo: Santo Sargento-Detetive Graves. Pensando nisso, percebi que nem sequer sabia seu primeiro nome. Mas não era hora de perguntar.

-- Isto -- disse ele, extraindo os dois primeiros frascos de vidro -- é um pó para impressões digitais.

-- Baseado em mercúrio, presumo. Fino o bastante para dar uma boa definição às laçadas e espirais, e assim por diante?

Também isso eu aprendera com Philip Odell. Ficou na minha cabeça por causa de sua conexão química.

O sargento arreganhou um sorriso e puxou fora o segundo frasco, este mais escuro que o primeiro.

-- Vá em frente -- disse ele. -- Veja se consegue adivinhar este.

“Adivinhar?", pensei. “Pobre homem iludido!"

-- Baseado em grafite -- eu disse. -- Mais grosso do que o mercúrio, mas mostra melhor certas superfícies.

-- Nota máxima! -- disse o sargento.

Me virei como se fosse tirar um cisco do olho e estiquei a língua para Felinha.

-- Mas com certeza estes são para polvilhar... -- protestei. -- E não são necessários para registrar impressões...

-- Correto -- disse o sargento. -- Eu só achei que você estaria interessada em ver as ferramentas do ofício.

-- Oh, mas eu estou, sem dúvida -- disse eu depressa. -- Obrigada por pensar nisso.

Achei que não seria educado mencionar que, em meu laboratório químico, no andar de cima, eu possuía mercúrio e grafite suficientes para suprir as necessidades da força policial de Hinley até o próximo século. O tio-avô Tar fora, entre outras coisas, um colecionador.

-- Mercúrio -- disse eu, tocando o frasco. -- Quem diria!

O Sargento Graves então removeu de seu acolchoado pro-tetor um pedaço retangular de vidro simples e, logo em seguida, um frasco de tinta e um pequeno rolo aplicador.

Habilidosamente, ele aplicou cinco ou seis gotas da tinta sobre a superfície do vidro, depois passou o rolo até que o vidro ficasse uniformemente coberto pela pasta preta.

-- E agora -- disse ele, segurando meu pulso direito e espalhando meus dedos, que ficaram pairando acima do vidro --, relaxe e deixe que eu faça o trabalho.

Com não mais que uma leve pressão, ele forçou meus dedos na tinta, um de cada vez, rolando a ponta de cada um da esquerda para a direita. Então, movendo minha mão para um cartão branco, que estava dividido em dez quadrados, um para cada dedo, ele tirou as impressões.

-- Oh, Sargento Graves -- disse Felinha. -- Você precisa tirar as minhas também!

“Oh, Sargento Graves! Você precisa tirar as minhas também!" Eu poderia tê-la esmagado com um mata-moscas!

-- Será um prazer, senhorita Ophelia -- disse ele, pegando a mão dela e largando a minha.

-- É melhor entintar o vidro de novo -- eu disse --, senão você poderá obter uma impressão ruim.

As orelhas do sargento ficaram um pouco rosadas, mas ele prosseguiu bravamente. Num instante, revestiu novamente o vidro com outra camada de tinta e segurou a mão de Felinha como se fosse algum objeto venerável.

-- Você sabia que, na Terra Santa, eles têm as impressões digitais do anjo Gabriel? -- perguntei, tentando desesperadamente recuperar a atenção dele. -- Pelo menos, tinham. O doutor Robert Richardson e o Conde de Belmore as viram em Nazaré. Você se lembra, Felinha?

Por cerca de uma semana -- antes do nosso recente desentendimento --, Dafi andara lendo em voz alta para nós, à mesa do desjejum, um curioso volume de Viagens pelo Mediterrâneo e partes adjacentes, de autoria do dr. Richardson, e algumas de suas muitas maravilhas ainda estavam frescas na minha cabeça.

-- Também mostraram a ele a cozinha da Virgem Maria, na Capela da Encarnação. Eles ainda têm as cinzas, os atiçadores, os cães de lareira...

Alguma coisa na sala dos fundos do meu cérebro estava nos nossos próprios cães de lareira: Sally Fox e Shoppo, que antes pertenceram a Harriet.

-- Já é o bastante, obrigada, Flavia -- disse Felinha. -- Você pode ir buscar um trapo para eu limpar meus dedos.

-- Vá buscar sozinha -- disparei para ela, e saí da sala pisando duro.

Se comparada a mim, Cinderela era uma fedelha mimada.


† Apelido dado na Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial, aos locutores dos programas de rádio nazistas em língua inglesa. [N. T.]

 

SOZINHA AFINAL!

Sempre que estou com outras pessoas, uma parte de mim se encolhe um pouco. Somente quando estou sozinha posso desfrutar plenamente de minha própria companhia.

Na estufa, que fica na horta da cozinha, agarrei minha velha e fiel BSA Keep-Fit. A bicicleta pertencera a Harriet, que a chamava de “l’Hirondelle”, “a Andorinha”: uma palavra que me lembrava tanto de ter sido alimentada à força com óleo de fígado de bacalhau com uma colher-indutora-de-vômito que rebatizei a bicicleta de “Gladys”. Quem, por Deus, gostaria de montar numa bicicleta cujo nome soa como o de uma enfermeira particular?

E “Gladys” era muito mais realista do que “l’Hirondelle”: uma moça aventureira com pneus Dunlop, três velocidades e disposição generosa. Ela jamais reclamou ou se cansou -- nem eu, quando estava com ela.

Pedalei de Buckshaw em direção a sudeste, bamboleando lentamente ao longo da beira do lago ornamental. À minha esquerda, havia uma extensão mais ou menos plana, que eu cha-mo de “Visto”, e que fora desbravada por Sir George de Luce em meados do século XIX para servir, como descrito em seu diário, de “ponto vantajoso”: uma planície gramada na qual a pessoa deveria parar e contemplar as colinas azuis que a abraçam.

Em tempos recentes, porém, o Visto acabou se tornando basicamente um pasto de vacas malcuidado: um lugar onde as urtigas podiam se esbaldar e as roupas do contemplador corriam o risco de se transformar em trapos rasgados. Era aqui que Harriet deixava o Espírito Alegre, seu avião de Havilland Gypsy Moth, no qual voava regularmente a Londres para se encontrar com seus amigos.

Tudo o que restava agora daqueles dias felizes eram os três anéis de ferro, ainda enferrujando em algum lugar na vegetação, aos quais o Espírito Alegre era preso, muito tempo atrás.

Uma vez, quando perguntei ao pai como era Buckshaw vista do ar, ele ficou todo tenso em volta das têmporas.

-- Pergunte à sua tia Felicity -- disse ele mal-humorado. -- Ela voou.

Tomei nota mentalmente para perguntar a ela.

Do Visto, uma trilha coberta de mato levava ao sul, atravessando aqui e ali gramados e sebes há muito abandonados, que acabaram cedendo espaço a moitas e cerrados. Segui pela trilha estreita e logo cheguei às Paliçadas.

O carroção da cigana estava como eu o deixara, embora a terra mostrasse sinais de muitas “botas cravejadas”, como Felinha as chamava.

Me perguntei por que eu fora atraída para lá. Seria por que a cigana estivera sob minha proteção? Afinal, eu lhe oferecera pousada nas Paliçadas, e ela aceitara.

Se afrontas eram necessárias, eu as faria -- mas não por que me visse forçada por um senso de vergonha.

Gry estava pastando perto dos sabugueiros, do outro lado da clareira. Alguém o trouxera de volta às Paliçadas. Pensaram até em trazer um fardo de feno fresco para a clareira, e ele estava lidando com aquilo sem muita dificuldade. Ele olhou para mim sem curiosidade, e então voltou à sua comida.

-- Então, quem é um bom menino? -- perguntei a ele, mas essas eram palavras que deveriam ser usadas ao se falar com um papagaio.

-- Bom Gry -- eu mesma respondi. -- Esplêndido cavalo.

Gry não deu a menor atenção.

Alguma coisa presa a um dos troncos de árvore perto da ponte me chamou a atenção: um painel branco de madeira, a cerca de dois metros do chão. Dei a volta até o outro lado, para olhar mais de perto.

“Investigação policial -- Entrada proibida por ordem da Força Policial de Hinley."

O aviso estava voltado para o leste -- para fora de Buckshaw. Obviamente, visava deter aquelas hordas de gente curiosa e ociosa que, como corvos em um carvalho no inverno, se congregam em locais onde haja sangue derramado.

Pois eu estava na minha propriedade. Dificilmente se poderia dizer que eu estava invadindo o lugar. Além disso, eu sempre poderia alegar que não tinha visto aquilo.

Com cautela, coloquei um pé em um dos eixos do carroção e, agitando os braços para me equilibrar, subi, na ponta dos pés, até o banco do cocheiro. Para minha surpresa, a porta fora substituída.

Dei uma parada para me preparar -- inspirei fundo --, então abri a porta e entrei.

O sangue fora removido -- percebi imediatamente. O piso estava recém-lavado, e o forte cheiro de limpeza do sabão Sunlight ainda pairava no ar.

Não estava escuro dentro do carroção, mas também não estava claro. Dei um passo em direção à parte de trás e congelei.

Alguém estava deitado na cama!

De repente, meu coração começou a bater freneticamente, e meus olhos pareciam que iriam pular para fora das órbitas. Eu mal me atrevia a respirar.

Na penumbra das cortinas fechadas, pude ver que era uma mulher. Não, não uma mulher -- uma menina. Poucos anos mais velha do que eu, talvez. Seu cabelo era preto retinto, sua pele, fulva, e ela estava envolvida em um traje disforme de crepe negro.

Eu permanecia imóvel, olhando para o rosto dela, quando seus olhos escuros se abriram lentamente -- e se encontraram com os meus.

Com um salto rápido e poderoso, ela pulou da cama, agarrou algo na prateleira, e eu me vi subitamente pressionada contra a parede, um braço torcido atrás das costas e uma faca encostada na garganta.

-- Me solte! Você está me machucando! -- consegui espremer as palavras através da dor.

-- Quem é você? O que está fazendo aqui? -- chiou ela. -- Diga-me antes que eu corte a sua goela.

Pude sentir a lâmina encostada em minha garganta.

-- Flavia de Luce -- ofeguei.

Maldição! Eu estava começando a chorar.

Olhei-me de relance no espelho: o braço dela embaixo do meu queixo... Meus olhos saltados... A faca... A faca!

-- Isso é uma faca de manteiga -- grasnei em desespero.

Aquele episódio poderia parecer divertido depois, mas no momento não foi assim. Eu estava tremendo de medo e raiva.

-- Dê o fora daqui! -- disse ela rudemente. -- Vá embora agora, antes que eu passe a navalha em você.

Não precisei de um segundo convite. A garota, obviamente, estava louca.

Fui cambaleando até a porta e pulei para o chão. Agarrei Gladys e já estava a meio caminho das árvores quando...

-- Espere aí!

A voz dela reverberou na clareira.

-- Você disse que o seu nome é Flavia? Flavia de Luce?

Não respondi, mas parei no limite da clareira, certificando-me de que Gry estava entre nós, como uma espécie de barreira.

-- Por favor -- disse ela. -- Espere. Me desculpe. Eu não sabia quem você era. Me disseram que você salvou a vida de Fenella.

-- Fenella? -- consegui dizer com a voz trêmula, ainda rouca pelo medo.

-- Fenella Faa. Você trouxe o médico para ela... aqui... na noite passada.

Eu devo ter parecido uma perfeita idiota, ali, em pé, com a boca aberta, como um peixinho dourado. Meu cérebro precisava de tempo para entender como a garota, em um momento, encostava uma lâmina na minha garganta e, um segundo depois, se desculpava. Eu não estava acostumada com pedidos de desculpa, e aquele, talvez o primeiro que eu já ouvira na vida, me pegara desprevenida.

-- Quem é você? -- perguntei.

-- Porcelana -- disse ela, pulando do carroção. -- Porcelana Lee. Fenella é minha avó.

Ela avançava até mim pela grama, os braços estendidos em bíblica clemência.

-- Deixe-me abraçá-la -- disse ela. -- Preciso lhe agradecer.

Receio ter me encolhido um pouco.

-- Não se preocupe, eu não mordo -- disse ela.

De repente, estava em cima de mim, seus braços me envolvendo em um abraço apertado, o queixo apoiado com força sobre meu ombro.

-- Obrigada, Flavia de Luce -- sussurrou ela ao meu ouvido, como se sempre tivéssemos sido amigas. -- Obrigada.

Como eu ainda estava meio que esperando um punhal se cravar em minhas costas, receio não ter correspondido ao abraço dela, que recebi em silêncio rígido, como o das sentinelas do Palácio de Buckingham quando fingem não reparar nas liberdades tomadas por um turista excessivamente afetuoso.

-- Obrigada -- consegui dizer. -- Como ela está? Fenella, quero dizer.

Usar o primeiro nome da cigana não foi fácil para mim. A despeito do fato de que Dafi e eu sempre nos referimos a nossa mãe como “Harriet” (apenas Felinha, que é mais velha, aparentemente se sentia no direito de chamá-la de “mamãe”), parecia-me excessivamente atrevido chamar a avó de uma estranha pelo primeiro nome.

-- Ela vai ficar boa, é o que eles acham. Cedo demais para saber. Se não fosse por você...

Lágrimas começavam a escorrer de seus olhos escuros.

-- Não foi nada -- disse eu, pouco à vontade. -- Ela precisava de ajuda. Eu estava lá.

“Seria realmente tão simples? Ou havia algo mais profundo?"

-- Como você ouviu falar... disto? -- perguntei, acenando para a clareira.

-- Os policiais foram atrás de mim em Londres. Encontraram meu nome em um pedaço de papel na bolsa dela. Pedi carona a um homem com um caminhão em Covent Garden, e ele me trouxe até Doddingsley. Segui a pé o resto do caminho. Cheguei aqui não faz nem uma hora.

“Quatro estrelas de ouro para o Inspetor Hewitt e seus homens”, pensei. Revistar o carroção em busca da bolsa de Fenella Faa nunca me ocorrera.

-- Onde você está hospedada? Na Treze Patos?

-- Caramba! -- disse ela, fingindo um sotaque londrino. -- Isso é uma piada, isso sim!

Eu devo ter parecido ofendida.

-- Eu não poderia pagar nem um penny, mesmo que minha vida dependesse disso -- falou ela, englobando toda a clareira no aceno de mãos. -- Portanto, acho que é bem aqui que vou ficar.

-- Aqui? No carroção?

Olhei chocada para ela.

-- Por que não? Pertence a Fenella, não é? Isso quer dizer que é como se fosse meu. Tudo o que tenho de fazer é descobrir quem é o nobre dono deste pedaço de terra e...

-- Chama-se “Paliçadas” -- disse eu -- e pertence a meu pai.

Na verdade, não pertencia: pertencia a Harriet, mas eu achei que não precisava explicar as dificuldades legais de minha família a uma estranha meio esfarrapada, que acabara de ameaçar minha vida.

-- Uau! -- disse ela. -- Me desculpe. Eu nunca imaginei.

-- Mas você não pode ficar aqui -- prossegui. -- É a cena de um crime. Não viu o aviso?

-- É claro que vi. Você não viu?

Preferi ignorar aquela resposta infantil.

-- Quem quer que tenha atacado sua avó ainda pode estar por perto. Até a polícia descobrir quem e por quê, não é seguro ficar por aqui depois de escurecer.

Essa era uma parte da verdade, mas não toda.

Tão importante quanto a segurança física de Porcelana, era a súbita necessidade que eu sentia de me desculpar à família de Fenella Faa: de consertar uma velha injustiça cometida pelo pai. Pela primeira vez na vida, fui tomada por uma culpa hereditária.

-- Então, você vai ter de ficar em Buckshaw -- despejei.

Pronto! Eu fizera. Eu dera o salto. Mas, enquanto falava, já sabia que logo iria me arrepender de minhas palavras.

O pai, por exemplo, ficaria furioso.

Mesmo quando fora sua amada Harriet a convidar os ciganos a ficar em Buckshaw, o pai os expulsara. Se ela fracassara, eu não tinha nenhuma chance.

Talvez tenha sido por isso que o fiz.

-- Meu pai é um tanto excêntrico -- disse eu. -- Pelo menos, tem algumas ideias estranhas. Ele não permite convidados em Buckshaw além da irmã dele. Vou ter de pô-la para dentro em segredo.

Porcelana pareceu um tanto alarmada com o pensamento.

-- Não quero causar problemas.

-- Bobagem -- disse eu, parecendo a tia Felicity, o Rolo Compressor Humano. -- Não será problema nenhum. Ninguém nunca entra na ala leste. Sequer vão ficar sabendo que você está lá.

-- Pegue suas coisas -- ordenei.

Até aquele momento, eu não notara como Porcelana estava exausta. Com seu vestido de crepe negro e as manchas pretas embaixo dos olhos, parecia alguém maquiado como um “anjo da morte” para uma festa a fantasia.

-- Não tenho nada -- disse ela. -- Só o que você está vendo. -- Ela deu uma puxada em sua pesada bainha como se pedisse desculpas. -- Isto é de Fenella. Tive de lavar minhas coisas no rio esta manhã, e ainda não estão secas.

Lavar as coisas dela? Por que precisaria fazer isso? Como aquilo parecia não ser de minha conta, não perguntei -- quem sabe, eu poderia encontrar uma desculpa para voltar ao assunto mais tarde.

-- Então, vamos embora -- disse eu, tentando soar alegre. -- Buckshaw nos aguarda.

Peguei Gladys e levei-a a meu lado. Porcelana arrastou-se um pouco atrás, os olhos baixos.

-- Não fica exageradamente longe -- disse eu depois de algum tempo. -- Espero que você fique contente por poder dormir um pouco.

Virei-me e a vi balançando a cabeça em resposta, mas ela não falou. Seguiu arrastando os pés atrás de mim, exausta, e nem mesmo os golfinhos ornamentais da fonte de Posêidon a fizeram tirar os olhos do chão.

-- Eles foram feitos no século XVIII -- contei a ela --, portanto são bem idosos. Antes, esguichavam água pela boca.

Novo balançar de cabeça.

Estávamos pegando um atalho pelo Campo de Trafalgar, uma série de terraços abandonados que ficavam a sudeste da casa. Sir George de Luce, que o planejara como um tributo ao Almirante Nelson e à vitória deste sobre os espanhóis, a qual tivera lugar cerca de quarenta anos antes, projetara-o mais ou menos na mesma época em que desbravou o Visto.

Usando o simples expediente de aproveitar as já existentes e extensas canalizações subterrâneas de Lucius “Vazamento de Luce”, Sir George planejara dar vida a sua gloriosa paisagem com a fonte, como uma surpresa para sua noiva.

E assim, ele começou um trabalho de arquitetura paisagística que iria rivalizar com, ou até superar, o espetáculo do lago ornamental; porém, especulações durante a Mania das Ferrovias dilapidaram sua fortuna. Com a maior parte de seu capital consumida, o que tinha sido planejado como uma nobre avenida de fontes, com Buckshaw como ponto principal, foi completamente abandonado.

Depois de um século de chuva e neve, sol e vento, além das visitas noturnas de aldeões que roubavam pedras para os muros de seus jardins, o Campo de Trafalgar e suas estátuas ficaram parecendo o ferro-velho de um escultor, com diversos pedaços de querubins de pedra, tritões embolorados e ninfas do mar se projetando da terra aqui e ali, como sobreviventes de um naufrágio aguardando em um mar de terra pelo salvamento.

Somente Posêidon sobrevivera, descansando com sua rede sobre uma base em ruínas, taciturno, acima de sua família quebrada, o tridente voltado para cima, como um raio, na direção do que quer que tenha sobrado dos ancestrais céus gregos.

-- Aqui está o velho Posêidon -- disse eu, virando-me para arrastar Gladys para cima de outro conjunto de degraus em ruínas. -- Sua fotografia saiu na Country Life alguns anos atrás. Realmente esplêndido, não é?

Porcelana parara bruscamente, a mão cobrindo a boca, os olhos vazios virados para cima, tão arregalados e tão escuros quanto o abismo. E então ela soltou um grito, como um animal pequeno.

Segui seu olhar e imediatamente vi o que a fizera congelar.

Pendurada no tridente de Posêidon, como um espantalho em um cabide, havia uma figura escura.

-- É Brookie Harewood -- disse eu, antes mesmo de ver o rosto.

 

UM DOS DENTES DO TRIDENTE perfurara seu casaco longo de algodão na altura do pescoço, e Brookie oscilava levemente à brisa, parecendo muito despreocupado com seu boné chato e seu xale escarlate, como se estivesse se divertindo no carrossel de um parque de diversões.

Por um momento, pensei que ele poderia cair. Talvez, com excesso de bom humor alcoólico, ele tenha tentado escalar a estátua. Talvez tivesse escorregado na cabeça de Posêidon e caído em cima do tridente.

Mas essa ideia durou pouco. Vi quase imediatamente que suas mãos estavam amarradas nas costas. Mas isso não era o pior.

Quando dei a volta para ficar totalmente de frente para ele, o sol refletiu forte em algo que parecia estar se projetando da boca de Brookie.

-- Fique aqui -- disse eu a Porcelana, embora pudesse estar certa de que não havia nenhuma possibilidade de ela se mover.

Encostei Gladys na mais baixa das três bacias em forma de concha que formavam a fonte e escalei sua estrutura tubular até ficar em pé sobre o selim, o que me permitiu apoiar um joelho sobre a áspera borda de pedra.

A bacia estava cheia de um enojante caldo de água preta, folhas mortas e bolor, resultado de um século de abandono, e fedia até os céus.

Em pé sobre a borda, consegui escalar a bacia do meio da fonte e, por fim, a mais alta. Eu estava agora no mesmo nível dos joelhos de Brookie, olhando para seus olhos cegos. O rosto dele estava horrivelmente pálido, como uma barriga de peixe.

Estava bem morto, é claro.

Depois do choque inicial ao perceber que alguém com que falara apenas algumas horas atrás já não pertencia à terra dos vivos, comecei a me sentir estranhamente empolgada.

Não tenho medo dos mortos. De fato, em minha experiência, descobri que provocavam em mim um sentimento que era o oposto do medo. Um corpo morto é muito mais fascinante que um corpo vivo, e aprendi que a maioria dos cadáveres tem histórias muito melhores para contar. Tive a boa sorte de ver vários deles na minha vida; na realidade, Brookie era o terceiro.

Enquanto me equilibrava na borda da concha esculpida, pude ver claramente o que reluzira ao sol. Projetando-se de uma das narinas de Brookie -- e não de sua boca -- havia um objeto que, de início, me pareceu um medalhão de prata redondo: um disco chato, perfurado e com um cabo preso a si. Na ponta, pendia uma gota solitária do sangue de Brookie.

A imagem gravada no disco era de uma lagosta e, no cabo, estava gravado o monograma De Luce: “D. L."

Era um garfo de prata de lagosta -- um garfo daquela coleção que pertencia a Buckshaw.

Na última vez que eu vira um daqueles utensílios de ponta aguçada, Dogger o estava polindo com polidor de prata, em cima da mesa da cozinha.

A parte perigosa da coisa, me lembrei, terminava em dois pequenos dentes que se projetavam como as antenas de uma lesma. Aqueles dentes, feitos para arrancar a carne rosada das fendas e rachaduras de uma lagosta cozida, estavam agora firmemente alojados em algum lugar no fundo do cérebro de Brookie Harewood.

“A morte pela prata da família”, pensei, antes que pudesse desligar aquela parte de minha mente.

Um pequeno gemido vindo de baixo me lembrou que Porcelana ainda estava lá.

A face da garota se encontrava quase tão branca quanto a de Brookie, e vi que ela estava tiritando.

-- Pelo amor de Deus, Flavia -- disse ela em voz trêmula --, desça, e vamos dar o fora daqui! Acho que vou vomitar.

-- É Brookie Harewood -- disse eu; e acho que ofereci uma prece silenciosa pelo repouso da alma do caçador ilegal.

Protege-o, ó Senhor, e que os céus sejam generosamente supridos de regatos com trutas.

Pensar em trutas me lembrou de Colin Prout. Eu quase me esquecera do menino. Será que Colin soltaria um suspiro de alívio ao saber que seu atormentador estava morto? Ou se angustiaria?

A mãe de Brookie viveria o mesmo dilema. E do mesmo modo, dei-me conta, quase todo mundo em Bishop’s Lacey.

Apoiei um pé no joelho de Posêidon e me icei pelo seu cotovelo musculoso. Eu estava agora ligeiramente acima de Brookie e olhando para baixo, para algo que me chamara a atenção. No espaço entre dois dentes do tridente, havia um ponto rebrilhante do tamanho de uma moeda de seis pence, como se alguém houvesse lustrado aquele trecho do bronze com um trapo.

Memorizei a forma da coisa; depois, comecei a descer lentamente, tomando muito cuidado para não encostar no corpo de Brookie.

-- Vamos -- disse eu a Porcelana, dando-lhe uma sacudida no braço. -- Vamos sair daqui antes que pensem que uma de nós fez isso.

Não contei a ela que a parte de trás do crânio de Brookie era uma massa sangrenta.


Paramos por um momento atrás de uma das sebes de roseiras, que, naquela época do ano, floresciam pela segunda vez. Da direção da cozinha, veio o som de Dogger raspando terra velha dos vasos de flores com uma colher de pedreiro. A sra. Mullet provavelmente já teria ido embora.

-- Fique aqui -- sussurrei --, enquanto faço um reconhecimento do local.

Porcelana parecia mal ter me ouvido. Branca de medo e cansaço, ela ficou paralisada entre as roseiras, como uma das está-tuas de Buckshaw sobre a qual alguém, por piada, houvesse jogado um vestido preto.

Voei -- invisível, tomara -- através da grama e da passagem de cascalho até a porta da cozinha. Achatando o corpo contra ela, encostei o ouvido na madeira pesada.

Como disse, herdei de Harriet um sentido de audição quase extravagante. Qualquer batida de panelas e frigideiras ou o sussurrar de uma conversa, seria instantaneamente audível para mim. A sra. Mullet falava constantemente consigo mesma enquanto trabalhava, e, a despeito de achar que ela havia ido embora, o cuidado nunca é demais. Se Felinha e Dafi estivessem planejando mais uma emboscada, certamente suas risadinhas dissimuladas as entregariam.

Mas não ouvi nada.

Abri a porta e entrei na cozinha de fato vazia.

Minha prioridade era trazer Porcelana para dentro de casa e escondê-la em segurança em algum lugar no qual sua presença não fosse notada. Feito isso, eu chamaria a polícia.

O telefone de Buckshaw era mantido fora de vista, em um pequeno armário que ficava na passagem estreita entre o foyer e a cozinha. Como eu disse, o pai odiava “o instrumento”, e todos em Buckshaw estávamos proibidos de usá-lo.

Enquanto seguia pé ante pé pela passagem, ouvi o som inconfundível de couro de sapato sobre ladrilho. Era o pai, muito provavelmente. Os sapatos de Dafi e Felinha eram muito mais femininos e produziam um som mais suave, de arrastar de pés.

Me esquivei para dentro do cubículo do telefone e, silenciosamente, fechei a porta. Eu me sentaria no pequeno banco oriental e aguardaria na escuridão.

No foyer, os passos diminuíram seu ritmo e pararam. Prendi a respiração.

Depois do que pareceu ser duas eternidades e meia, eles se afastaram em direção à ala oeste e ao estúdio do pai, presumi.

Naquele instante -- bem no meu cotovelo! -- o telefone tocou... e tocou de novo.

Alguns momentos depois, os passos voltaram, avançando para o foyer. Peguei o fone e apertei-o forte contra o peito. Se os toques cessassem de repente, o pai pensaria que a pessoa que ligara havia desligado.

-- Alô? Alô? -- pude ouvir uma vozinha falando com meu esterno. -- Quem fala?

Do lado de fora, no foyer, os passos se interromperam -- e depois se afastaram.

-- Quem fala? Alô? Alô? -- a voz abafada estava agora gritando, muito irada.

Pus o fone no ouvido e sussurrei no bocal:

-- Alô? É Flavia de Luce quem fala.

-- Aqui é o Policial Linnet, de Bishop’s Lacey. O Inspetor Hewitt está tentando entrar em contato com você.

-- Oh, Policial Linnet -- sussurrei na minha melhor voz de Olivia de Havilland. -- Eu estava justamente tentando ligar para você. Estou tão contente por você ter ligado. Uma coisa muito horrível acaba de acontecer em Buckshaw!

Cumprida a obrigação, bati em rápida retirada para as roseiras.

-- Venha! -- disse eu a Porcelana, que estava parada precisamente onde eu a deixara. -- Não há tempo a perder!

Em menos de um minuto, estávamos nos arrastando sorrateiramente pela ampla escadaria da ala leste de Buckshaw.


-- Nossa! -- disse Porcelana ao ver o meu quarto. -- Parece um galpão abandonado!

-- E é tão frio quanto -- retruquei. -- Entre embaixo da colcha. Vou preparar uma bolsa de água quente.

Uma rápida incursão a meu laboratório, na porta ao lado, cinco minutos com um bico de Bunsen aceso, e eu já enchera uma bolsa vermelha de borracha com água fervente, pronta para enfiar sob os pés de Porcelana.

Levantei um dos cantos de meu cobertor e puxei de lá uma caixa de chocolates que surrupiara da cozinha, onde Ned, o enamorado menino da taverna, sempre deixava tributos a Felinha. Como a srta. Lenço de Ranho nunca soube que eles haviam chegado, dificilmente sentiria falta deles, certo? Me lembraria de dizer a Ned, na próxima vez que o visse, quanto seu presente fora apreciado. Eu só não contaria por quem.

-- Sirva-se -- disse eu, rasgando o celofane da caixa. -- Isso pode não estar tão fresco quanto as flores de maio, mas pelo menos não está cheio de vermes rastejantes.

O orçamento de Ned só permitia chocolates que estavam sobrando na vitrine da loja há um quarto de século ou mais.

Porcelana parou com um bombom de creme de baunilha a meio caminho da boca.

-- Vá em frente -- disse eu. -- Eu estava brincando.

Na verdade, não estava, mas não havia sentido em deixar a garota perturbada.

Com a intenção de fechar as cortinas, fui até a janela, onde parei por um instante para dar uma olhada rápida para fora. Não havia ninguém a vista.

Além dos gramados, pude ver um canto do Visto e, ao sul... Posêidon! Eu me esquecera completamente de que podia ver a fonte da janela de meu quarto.

Seria possível? Esfreguei os olhos e olhei de novo.

Sim! Lá estava ele -- Brookie Harewood --, a essa distância não mais que um boneco preto pendurado no tridente do deus dos mares. Eu poderia facilmente sair para dar uma nova olhadela antes de a polícia chegar. E, se os policiais chegassem enquanto eu ainda estivesse na cena do crime, eu lhes diria que estava aguardando por eles, de olho em Brookie, certificando-me que ninguém tocasse em nada. E assim por diante.

-- Você parece exausta -- disse eu, voltando-me para Porcelana.

Suas pálpebras já estavam tremendo quando fechei as cortinas.

-- Durma bem -- falei, mas creio que ela não me ouviu.


A campainha da porta tocou enquanto eu estava descendo a escada. Droga! Bem quando eu pensava estar sozinha. Contei até dez e abri a porta -- justo no momento em que a campainha tocou de novo.

O Inspetor Hewitt estava ali em pé, o dedo ainda no botão, com uma expressão ligeiramente embaraçada no rosto, como se fosse um menininho que fora pego brincando de tocar a campainha e de sair correndo.

“Eles certamente não gostam de perder tempo”, pensei. Fazia menos de dez minutos que eu falara com o Policial Linnet.

O inspetor pareceu um pouco perplexo ao me ver à porta.

-- Ah -- disse ele. -- A ubíqua Flavia de Luce.

-- Boa tarde, inspetor -- eu disse com uma voz de nem-manteiga-derrete-no-meu-coração. -- Entre, por favor.

-- Não, obrigado -- respondeu ele. -- Ao que me parece, houve mais um... incidente.

-- Um incidente -- confirmei, entrando no jogo dele. -- É Brookie Harewood, receio. O caminho mais rápido para o Campo de Trafalgar é por aqui -- acrescentei, apontando para o leste. -- Siga-me e lhe mostrarei.

-- Espere -- disse o Inspetor Hewitt. -- Você não vai fazer nada. Quero que se mantenha completamente fora disso. Você entendeu, Flavia?

-- É a nossa propriedade, inspetor -- disse eu, apenas para lembrá-lo de que estava falando com uma De Luce.

-- Sim, e é minha investigação. Basta uma de suas impressões digitais na cena do crime, e a indicio. Você entendeu?

Que insolência! Aquilo não merecia uma resposta. Eu poderia ter dito: “As minhas impressões digitais já estão na cena do crime, inspetor”; mas não o fiz. Girei nos calcanhares e bati a porta na cara dele.

Dentro, eu rapidamente encostei o ouvido no painel e fiquei ouvindo com o máximo de atenção. Embora soasse como uma risadinha seca, o som que ouvi poderia realmente ter sido um pequeno grito de desalento do inspetor por ter perdido os serviços de uma mente brilhante de maneira tão tola.

Dane-se o homem! Ele se arrependeria do seu jeito arrogante. Oh, sim, ele se arrependeria!

Voei escada acima para meu laboratório. Destranquei a porta pesada, entrei na sala e, quase instantaneamente, relaxei, à medida que uma profunda sensação de paz me dominava.

Havia algo de especial naquele lugar. O modo tão suave como a luz caía através das janelas altas, o morno brilho de bronze do microscópio Leitz, que antes pertencera ao tio Tar e agora era tão satisfatoriamente meu, o revigorante -- quase impaciente -- fulgor dos objetos de vidro do laboratório, os gabinetes repletos de frascos perfeitamente etiquetados de produtos químicos (inclusive alguns venenos notáveis) e as fileiras e mais fileiras de livros -- todos eles emprestavam à sala algo que eu só podia descrever como uma sensação de santuário.

Peguei uma das banquetas altas do laboratório e coloquei-a em cima de um balcão próximo às janelas. Então, da última gaveta da escrivaninha -- a qual, por conter os diários e documentos dele, eu ainda considerava como sendo do tio Tar -- removi um binóculo alemão. Suas lentes, fiquei sabendo em um dos livros da biblioteca dele, foram feitas com uma areia especial, encontrada somente na floresta de Thuringia, perto da aldeia de Martinroda, na Alemanha, que, devido ao seu teor de óxido de alumínio, produzia uma imagem de clareza notável. E isso era exatamente o que eu precisava!

Com o binóculo pendurado no pescoço, usei uma cadeira para subir no balcão, depois escalei a banqueta, oscilando apreensiva no topo de minha torre de observação improvisada, a cabeça quase encostando no teto.

Usando uma das mãos para me firmar contra a moldura da janela e pressionando o binóculo contra os olhos com a outra, usei os dedos que sobraram para girar o botão do foco.

Quando as sebes que cercavam o Campo de Trafalgar surgiram em detalhes nítidos, dei-me conta de que a vista a partir do laboratório, nesse ângulo, era muito melhor que a da janela do meu quarto.

Sim -- lá estava Posêidon, olhando fixamente para seu oceano invisível, alheio ao fardo que pendia de seu tridente. Agora eu tinha uma boa visão da fonte inteira.

Com a distância diminuída pelas lentes poderosas, também pude ver quando o Inspetor Hewitt surgiu de trás da fonte, ergueu a mão para proteger os olhos do Sol e ficou olhando para o corpo de Brookie. Ele franziu os lábios, e eu quase pude ouvir em minha cabeça o pequeno assobio que lhe escapou.

Me perguntei se ele sabia que estava sendo observado.

A imagem do binóculo desvaneceu-se de repente, restaurou-se e então se desvaneceu outra vez. Afastei o binóculo dos olhos e percebi que uma nuvem súbita bloqueara o Sol. Muito embora ela estivesse distante demais a oeste para que eu pudesse vê-la de fato, podia dizer pela obscuridade que caíra sobre a paisagem que deveríamos nos preparar para uma tempestade.

Ergui o binóculo de novo, bem a tempo de ver que o inspetor estava agora olhando diretamente para mim. Engoli em seco -- e então me dei conta de que era uma ilusão de óptica; é claro que ele não podia me ver. Deveria estar olhando para as nuvens de tempestade que se acumulavam acima de Buckshaw.

Ele se virou para outro lado, depois se voltou novamente, e agora parecia estar falando com alguém, e estava mesmo. Enquanto eu continuava a olhar, o Sargento-Detetive Woolmer apareceu dando a volta na base da fonte, carregando um equipamento pesado, seguido de perto pelo dr. Darby e pelo Sargento-Detetive Graves. “Eles devem ter chegado todos no mesmo carro”, pensei, “e contornado pelo caminho da Ravina e das Paliçadas”.

Antes que se pudesse dizer “Jack Robinson”, o Sargento Woolmer já havia montado seu tripé e afixado a pesada câmera da polícia. Fiquei maravilhada com a habilidade de seus dedos curtos e grossos de manipular os controles delicados e com a velocidade com que conseguiu tirar as chapas iniciais.

Houve um súbito e ofuscante clarão de relâmpago, seguido quase instantaneamente por um trovão ensurdecedor, e eu quase caí da banqueta. Deixei o binóculo cair pendurado no meu pescoço e bati as mãos contra a vidraça para me reequilibrar.

O que foi mesmo que Dafi me dissera certa vez, durante um temporal? “Fique longe das janelas durante uma tempestade com trovoadas, sua boba."

E agora, com relâmpagos lambendo os caixilhos, aqui estava eu, presa contra o vidro, como uma borboleta em um cartão do Museu de História Natural.

“Mesmo que o relâmpago não a acerte”, ela acrescentou, “o ar será sugado dos seus pulmões pelo som do trovão, e você será virada do avesso como uma meia vermelha”.

Outro relâmpago lampejou, um trovão rugiu, e agora a chuva caía em rajadas impetuosas, batendo no telhado como o rufar de tambores. Um vento súbito se ergueu e as árvores do parque foram sacudidas violentamente pelas lufadas.

Aquilo na verdade era muito estimulante. “Dafi que se dane”, pensei. Se eu insistisse um pouco, poderia até chegar a gostar dos raios e trovões.

Endireitei o corpo, ajustei meu equilíbrio e levei o binóculo aos olhos.

O que vi era como uma cena do inferno. Sob luz verde e aquosa, soprados pelo vento e iluminados pelos clarões erráticos dos relâmpagos, os três policiais estavam removendo o corpo de Brookie do tridente. Tinham passado uma corda por baixo das axilas dele e o abaixavam lenta e delicadamente, para o chão. Elevando-se acima deles na chuva, Posêidon, tal qual um monstruoso Satanás de pedra com seu forcado de prontidão, ainda olhava fixamente para seu mundo de água, como se estivesse extremamente entediado com a bufonaria de meros humanos.

O Inspetor Hewitt estendeu a mão para tocar a corda e facilitar a descida do corpo, os cabelos emplastrados e grudados na testa pela chuva, e por um momento eu tive a sensação de estar assistindo a alguma terrível representação da Paixão de Cristo.

Talvez estivesse.

Somente depois que o Sargento Woolmer pegou um pedaço de linóleo de seu equipamento e cobriu o corpo de Brookie, os homens pensaram em se abrigar. Embora fornecesse pouquíssima proteção, o dr. Darby segurou sua valise médica acima da cabeça e ficou lá imóvel, parecendo miserável sob a chuva.

O Inspetor Hewitt desdobrou uma pequena capa de chuva transparente e vestiu-a por cima das roupas saturadas. Parecia algo que uma camareira usaria, e me perguntei se sua adorável esposa, Antigone, não a teria enfiado em seu bolso para emergências como esta.

O Sargento Woolmer permaneceu impassível sob a chuvarada, como se seu tamanho fosse proteção suficiente contra o vento e a chuva, enquanto o Sargento Graves, o único entre os quatro que era pequeno o bastante para fazê-lo, se enfiava confortavelmente embaixo da bacia inferior da fonte, do lado a favor do vento, onde ficou agachado como um pato e seco.

Então, repentinamente, tão depressa como começara, a tempestade passou. A nuvem escura agora se afastava para o leste enquanto o Sol reaparecia e os passarinhos renovavam suas canções interrompidas.

O Sargento Woolmer removeu a capa impermeável com a qual revestira sua câmera e começou a fotografar a fonte de todos os ângulos imagináveis. Quando começou com seus close-ups, uma ambulância apareceu sacudindo-se através do terreno acidentado entre as Paliçadas e o Campo de Trafalgar.

Depois de trocar algumas palavras com o motorista, o dr. Darby ajudou a colocar o corpo amortalhado de Brookie em uma maca e depois sentou no assento do passageiro.

Enquanto a ambulância se afastava lentamente, aos solavancos, desviando-se para evitar as estátuas semienterradas, notei que um arco-íris aparecera. Uma sinistra luz amarela caiu sobre a paisagem, fazendo-a parecer alguma espalhafatosa pintura feita por um alienado.

Do outro lado do Campo de Trafalgar, no limite das árvores, alguma coisa se mexeu. Girei um pouco o corpo e focalizei depressa, bem a tempo de ver uma figura desaparecendo no bosque.

“Mais um caçador ilegal”, pensei, “espreitando a polícia sem querer ser visto."

Fiz uma lenta varredura das árvores, mas quem quer que estivesse ali já se fora.

Com o binóculo, encontrei novamente a ambulância e observei até que ela desaparecesse atrás de uma sebe distante. Depois que a perdi de vista, desci da banqueta e tranquei o laboratório.

Se eu quisesse examinar as acomodações de Brookie antes de a polícia chegar lá, teria de ser muito rápida.

 

O ÚNICO PROBLEMA ERA ESTE: eu não tinha a menor ideia de onde Brookie morava.

Eu poderia ter feito mais uma visita ao cubículo do telefone, suponho, mas no foyer de Buckshaw eu correria o risco de um encontro com o pai -- ou pior, com Dafi ou Felinha. Além disso, me parecia altamente improvável que um inútil como Brookie constasse da lista telefônica.

Em vez de me arriscar ser pega, entrei sorrateiramente na galeria de retratos que ocupava o piso térreo da ala leste quase inteiro.

Um exército de ancestrais De Luce, em cujas faces eu reconhecia pouco à vontade aspectos de mim mesma, me olhou de cima quando passei. “Eu não teria gostado da maioria deles”, pensei, “e a maioria deles não teria gostado de mim." Dei uma estrela só para mostrar a eles que não me importava.

Ainda assim, porque o velho amigo merecia, fiz para o retrato do tio Tar uma vivaz saudação de escoteira, embora eu tenha sido ignominiosamente expulsa da organização, muito injustamente, na minha opinião, por uma mulher sem nenhum senso de humor. “Honestamente, senhorita Pashley”, eu teria dito a ela se tivessem me dado a menor chance, “o hidróxido férrico era para ser apenas uma piada."

No extremo oposto da galeria, havia um pequeno quarto, que, nos dias de glória de Buckshaw, era usado para emoldurar e reparar os retratos e as paisagens que formavam a coleção de arte de minha família.

Um par de prateleiras e uma bancada ainda estavam atulhados de latas de tinta e de verniz empoeiradas, cujo conteúdo secara mais ou menos na mesma época da Rainha Vitória, e nas quais havia cabos de pincéis grudados aqui e ali, parecendo rabos de ratos fossilizados.

Todo mundo menos eu parecia ter se esquecido de que esse quartinho tinha uma característica muito útil: uma janela com vidraças que podiam ser erguidas facilmente, tanto por dentro como por fora -- ainda mais facilmente desde que eu as lubrificara com banha surrupiada da cozinha.

Na parede externa, exatamente abaixo da janela e a meio caminho do chão, havia um tijolo meio desintegrado -- sua lenta decadência fora de certo modo encorajada, admito, pelo fato de eu tê-lo golpeado com uma das colheres de pedreiro de Dogger --; era um apoio perfeito para os pés de alguém que desejasse sair da casa sem atrair atenções indevidas.

Saí pela janela e, ao descer para o chão, quase pisei em Dogger, que estava de joelhos na grama molhada. Ele se pôs em pé, ergueu o chapéu e o recolocou.

-- Boa tarde, senhorita Flavia.

-- Boa tarde, Dogger.

-- Adorável chuva.

-- Muito adorável.

Dogger deu uma olhada para o céu dourado e depois prosseguiu com seu trabalho de extirpar ervas daninhas.

As melhores pessoas são assim. Elas não prendem você como papel pega-moscas.


Os pneus de Gladys cantavam alegremente quando passamos a toda por São Tancredo e entramos na rua principal. Ela estava curtindo o dia tanto quanto eu.

À frente e a minha esquerda, poucas portas depois da Treze Patos, ficava a loja de antiguidades de Reggie Pettibone. Eu estava tomando nota mentalmente para fazer uma visita a ela mais tarde quando a porta se abriu bruscamente e um garoto de óculos saiu correndo para a rua.

Era Colin Prout.

Dei uma guinada para me desviar dele e Gladys deu uma longa e sacudida derrapada.

-- Colin! -- gritei assim que consegui parar; nós quase colidimos desastrosamente.

Mas Colin já havia cruzado a rua principal e desaparecido no Beco dos Parafusos, uma passagem estreita e malcheirosa que levava a uma vereda atrás das lojas.

Não é preciso dizer que eu o segui, dando novos méritos à invenção do câmbio Sturmey-Archer de três marchas.

Disparei para dentro da vereda, mas Colin já estava desaparecendo na esquina em que ela terminava. Mais alguns segundos, pegando uma rota semicircular, e ele estaria de volta à rua principal.

Eu estava certa. Quando o avistei de novo, ele estava entrando no Caminho das Vacas como se os sabujos do Inferno estivessem atrás dele.

Em vez de segui-lo, apliquei os freios.

Eu sabia que, no lugar em que o Caminho das Vacas termina junto ao rio, Colin viraria para a esquerda e acompanharia o velho caminho de sirgagem que corre por trás da Treze Patos. Ele não arriscaria se esconder em algum lugar ao longo do canal, por medo de ser encurralado atrás das lojas.

Dei uma volta completa e retornei pelo mesmo caminho pelo qual viera, fazendo uma curva impetuosa na Alameda dos Sapateiros, onde a srta. Pickery, a nova bibliotecária, morava -- no último chalé. Brequei, desmontei e, encostando Gladys na cerca, passei rapidamente por cima do degrau e me coloquei em posição atrás de um dos altos choupos que margeavam o caminho de sirgagem.

Bem a tempo! Lá vinha o apressado Colin na minha direção, o tempo todo olhando nervosamente por cima do ombro.

-- Olá, Colin -- eu disse, entrando diretamente em seu caminho.

Colin parou como se tivesse trombado com um muro de tijolos, mas seus inquietos olhos pálidos, aumentados ao tamanho de ostras pelas lentes espessas dos óculos, sinalizavam que ele estava prestes a sair correndo.

-- A polícia está atrás de você, sabe? Quer que eu conte a eles onde você está?

Era uma mentira descarada: uma de minhas especialidades.

-- N-n-n-não.

O rosto dele estava branco como um lenço de papel e, por um momento, achei que fosse chorar. Antes que eu pudesse aumentar a pressão, ele despejou:

-- Não foi eu que fiz, Flavia! Tô seno honesto! O que eles pensa que eu fiz, eu num fiz.

A despeito de suas palavras confusas, eu sabia o que ele queria dizer.

-- Não fez o quê, Colin? O que foi que você não fez?

-- Nada. Eu não fiz nada.

-- Onde está Brookie? -- perguntei displicentemente. -- Preciso vê-lo; é sobre um par de cães de lareira.

Minhas palavras tiveram o efeito desejado. Os braços de Colin se agitaram como um cata-vento, seus dedos apontando para norte, sul, oeste e leste. Ele finalmente se decidiu pelo último, indicando que Brookie poderia ser encontrado em algum lugar além da Treze Patos.

-- Na última vez que eu vi, ele tava descarregano o furgão.

O furgão? Será que Brookie tinha um furgão? De algum modo, a ideia me pareceu ridícula -- como se o espantalho do Mágico de Oz houvesse sido avistado atrás do volante de um caminhão de Bedford --, e no entanto...

-- Muito, muito obrigada, Colin -- eu lhe disse. -- Você é ótimo.

Esfregando os olhos e dando uma puxada nos cabelos, ele passou por cima da cerca e subiu a rua principal como se fosse um dervixe rodopiante. Depois, desapareceu.

Será que eu tinha acabado de cometer um erro colossal? Talvez; tivesse mas dificilmente poderia prosseguir com minhas inquirições com alguém como Colin babando em cima de meu ombro.

Só então uma ideia horrorosa veio serpenteando em minha mente. E se... mas não. Se houvesse sangue nas roupas de Colin, eu certamente teria notado.

Enquanto voltava para recuperar Gladys, fui tomada por uma ideia extraordinariamente boa. Em toda a Bishop’s Lacey, havia poucos furgões, a maioria dos quais eu reconhecia de cara: o do ferreiro, o do açougueiro, o do eletricista, e assim por diante. Cada qual ostentava o nome do proprietário em letras destacadas nas laterais; cada qual era único e inconfundível. Uma passagem rápida pela rua principal revelaria a maioria deles, e um furgão estranho se destacaria como um polegar inflamado.

E assim aconteceu.

Alguns minutos depois, eu já havia pedalado em zigue-zague por toda a aldeia, sem sorte. Mas, ao virar na curva do lado leste da rua principal, mal pude acreditar em meus olhos.

Estacionado na frente da Quinta do Salgueiro, havia um furgão verde de infame aparência, que, a despeito de as laterais enferrujadas estarem em branco, ostentava Brookie Harewood em cada parte.

A Quinta do Salgueiro fora assim batizada por estar completamente oculta embaixo das franjas pendentes de uma árvore gigante. E era melhor assim, já que a casa fora pintada em um horrendo tom de laranja. Pertencia a Tilda Mountjoy, que eu conhecera em circunstâncias um tanto infelizes alguns meses antes. A srta. Mountjoy era a bibliotecária-chefe da Biblioteca Livre de Bishop’s Lacey, onde, diziam, até os livros viviam com medo dela. Agora, sem nada além de tempo nas mãos, ela se tornara uma freelance do terror.

Embora eu não estivesse ansiosa por renovar nossa amizade, não havia alternativa senão abrir seu portão, forçar caminho através da rede de frondes penduradas, chapinhar nos musgos e enfrentar o dragão em seu covil.

Minha desculpa? Eu lhe diria que, enquanto pedalava, fora tomada por uma fraqueza súbita; vendo o furgão de Brookie, pensei que ele talvez fosse gentil o bastante para carregar Gladys na traseira e me levar para casa; o pai, eu tinha certeza, ficaria cheio de eterna gratidão, etc. etc. etc.

Dos ramos do salgueiro, vicejavam líquens no degrau da porta, e o ar era frio e abafado, como num mausoléu.

Eu já havia erguido a aldraba corroída de bronze, que tinha o formato do Lincoln Imp, símbolo da cidade de Lincoln, quando a porta se abriu bruscamente, e lá estava a srta. Mountjoy -- coberta de sangue!

Não sei qual de nós duas ficou mais assustada ao ver a outra, mas por um momento peculiar ficamos ambas perfeitamente imóveis, encarando-nos de olhos arregalados.

A parte da frente de seu vestido e as mangas de seu cardigã cinzento estavam empapadas de sangue, e seu rosto era uma ferida aberta. Algumas gotas frescas de escarlate caíram no chão antes que ela erguesse um lenço ensanguentado e o levasse rapidamente ao rosto.

-- Sangramento de nariz -- disse ela. -- Sempre me acontece.

Com a boca e o nariz abafados pelo linho manchado, pareceu que havia dito: “Sempre me apetece”; mas eu sabia o que ela queria dizer.

-- Deus, senhorita Mountjoy! -- despejei -- Deixe-me ajudá-la.

Segurei seu braço antes que ela pudesse protestar e levei-a em direção à cozinha através de um corredor escuro, com fileiras de pesados aparadores Tudor.

-- Sente-se -- disse eu, puxando uma cadeira, e, para minha surpresa, ela sentou.

Minha experiência com sangramentos de nariz era limitada, porém, prática. Lembrei-me de uma das festas de aniversário de Felinha, na qual o nariz de Sheila Foster entrou em erupção no gramado de croquet, e Dogger o estancou com um lenço alheio que mergulhara em uma solução de sulfato de cobre que havia na estufa.

Entretanto, não me pareceu provável que houvesse na Quinta do Salgueiro um suprimento de vitríolo azul, como era chamada a solução, embora eu soubesse que, com não mais que meia xícara de chá de ácido sulfúrico diluído, um par de moedas de cobre e a bateria do farol de Gladys, poderia improvisar rapidamente uma quantidade suficiente daquilo para dar conta do recado. Mas aquela não era a ocasião certa para químicas.

Agarrei uma chave ornamental de ferro que estava pendurada em um prego próximo à lareira e encostei-a rapidamente na nuca da srta. Mountjoy.

Ela deixou escapar um grito e quase se levantou da cadeira.

-- Calma agora -- disse eu, como se falasse com um cavalo; e uma rápida visão de mim agarrando a crina de Gry na escuridão me veio à mente. -- Calma.

A srta. Mountjoy ficou sentada rigidamente, os ombros encurvados. O momento era agora.

-- Brookie está aqui? -- disse eu, sociável. -- Vi o furgão dele lá fora.

A cabeça da srta. Mountjoy pulou para trás, e a senti se enrijecer ainda mais sob minha mão. Lentamente, ela removeu o lenço ensanguentado do nariz e disse com uma clareza perfeitamente fria:

-- Harewood jamais porá os pés nesta casa de novo.

Pisquei. Será que a srta. Mountjoy estava meramente afirmando a sua determinação, ou havia algo de mais ominoso em suas palavras? Será que ela sabia que Brookie estava morto?

Quando ela torceu o corpo para me olhar, vi que o sangramento de seu nariz parara.

Deixei o silêncio se prolongar, um truque muito útil que eu aprendera com o Inspetor Hewitt.

-- O homem é um ladrão -- disse ela afinal. -- Eu jamais deveria ter confiado nele. Não sei o que eu estava pensando.

-- Posso lhe trazer alguma coisa, senhorita Mountjoy? Um copo de água? Um pano molhado?

Era o momento de me insinuar.

Sem uma palavra, fui até a pia e molhei uma toalha de mão. Torci-a e entreguei-a à srta. Mountjoy. Enquanto ela enxugava o sangue do rosto e das mãos, desviei discretamente o olhar, aproveitando a oportunidade para examinar a cozinha.

Era um recinto quadrado com um teto baixo. Num canto, havia um pequeno fogão verde Aga e uma mesa simples, com uma única cadeira: aquela em que a srta. Mountjoy estava sentada no momento. Uma prateleira de parede corria por dois lados do recinto, e sobre ela estava em exposição um sortimento de pratos e travessas azuis e brancos -- principalmente Staffordshire, a julgar pela aparência: prados de aldeia e cenas campestres, na maior parte. Contei onze, com um espaço vazio de cerca de cinquenta centímetros de diâmetro, no qual um décimo segundo prato deveria estar exposto outrora.

Filtrada pelos ramos do salgueiro do quintal, a fraca luz verde que penetrava através das duas pequenas janelas que ficavam sobre a pia dava aos pratos uma tonalidade fantástica e aguada, que me lembrou do Campo de Trafalgar depois da chuva -- após o corpo de Brookie ter sido retirado da fonte de Posêidon.

Na entrada da estreita passagem pela qual ingressamos na cozinha havia um gabinete de madeira lascado e, sobre ele, uma porção de garrafas idênticas, parecidas com frascos de remédio.

Somente depois que li seus rótulos, o cheiro chegou a mim. “Que estranho”, pensei, “a sensação do cheiro normalmente é rápida como um raio, muitas vezes mais rápida que a visão ou a audição."

Mas, a essa altura, não havia mais dúvidas. O ambiente inteiro -- incluindo a srta. Mountjoy -- recendia a óleo de fígado de bacalhau.

Talvez a visão do nariz sangrento da srta. Mountjoy e de suas roupas manchadas houvesse sobrepujado meu sentido do olfato até aquele momento. Embora eu tivesse notado o odor de peixe assim que a vi pingando sangue na porta, meu cérebro deve ter rotulado esse fato como desimportante no momento e o reservado para consideração posterior.

Minha experiência com óleo de fígado de bacalhau era vasta. Uma boa parte de minha vida fora gasta fugindo da sra. Mullet, que, com uma garrafa desarrolhada e uma colher do tamanho de uma pá de jardim, me perseguia de um lado a outro pelos corredores e escadarias de Buckshaw -- até em meus sonhos.

Quem, em seu juízo perfeito, gostaria de engolir uma coisa que parecia óleo de motor descartado e que havia sido espremida de fígados de peixes deixados ao sol para apodrecer? Aquilo era usado para curtir couro, e eu não podia deixar de me perguntar o que faria com as entranhas de uma pessoa.

“Abra a boquinha, querida”, eu podia ouvir a sra. Mullet gritando enquanto andava atrás de mim. “É bom para você."

“Não! Não!", eu berrava. “Ácido, não! Por favor, não me faça beber ácido!"

E era verdade. Não estava simplesmente inventando aquilo. Eu analisara a coisa em meu laboratório e descobrira que ela continha todo um catálogo de ácidos, entre eles o oleico, o margárico, o acético, o butílico, o fólico, o cólico e o fosfórico, para não falar dos óxidos, do cálcio e do sódio.

No fim, fiz uma barganha com a sra. M: ela permitiria que eu mesma levasse o óleo de fígado de bacalhau para o quarto na hora de dormir, e eu pararia de gritar como se estivesse sob tortura e de chutar seus tornozelos. Jurei sobre o túmulo de minha mãe.

Harriet, é claro, não tinha um túmulo. Seu corpo estava em algum lugar nas neves do Tibete.

Feliz por se livrar de uma tarefa indesejada e difícil, a sra. Mullet fingia estar escandalizada, mas me entregava alegremente a colher e a garrafa.

Minha mente voltou ao presente com a rapidez de um raio.

-- Problemas com as antiguidades, não é? -- me ouvi dizendo. -- Você não está sozinha, senhorita Mountjoy.

Quase passou despercebido por mim, mas sua rápida olhada para cima, na direção do lugar em que o prato faltante estivera pendurado, me disse que eu acertara na mosca.

Ela me viu seguindo seu olhar.

-- Era da época de Hongwu, o primeiro imperador Ming. Ele me disse que conhecia um homem...

-- Brookie? -- interrompi.

Ela assentiu.

-- Ele me disse que conhecia alguém que poderia mandar avaliar a peça discretamente e a um custo razoável. As coisas ficaram difíceis desde a guerra, entenda, e pensei em...

-- Sim, eu sei, senhorita Mountjoy -- disse eu. -- Entendo.

As dificuldades financeiras do pai e a tempestade de contas vencidas que chegavam a cada entrega do correio, sempre sujeitas a muitos mexericos em Bishop’s Lacey, tornavam desnecessário que ela explicasse a própria pobreza.

Seu olhar criou um laço entre nós. “Colegas nas dívidas”, ele parecia dizer.

-- Ele me disse que tinha se quebrado no trem. Enrolou o prato em palha, ele contou, e o pôs em uma caixa redonda, mas de algum jeito... ele não o fez de modo seguro, é claro, tentando reduzir as despesas, tentando não me sobrecarregar com custos adicionais... e então...

-- Alguém o viu na loja de antiguidades? -- despejei.

Ela assentiu.

-- Minha sobrinha Julia. Em Pimlico. Ela disse: “Titia, você não vai adivinhar no que vi hoje: o par do seu Ming!".

-- Ela estava em pé bem onde você está e, assim como você, olhou para cima e viu o espaço vazio na prateleira. “Oh, titia!", disse ela. “Oh, titia."

-- Nós tentamos reaver o prato, é claro, mas o homem disse que estava em consignação para um parlamentar que morava na rua ao lado. Não pôde me fornecer nomes por causa do sigilo. Julia estava pronta para ir à polícia, mas eu a lembrei que o tio Jamieson, que trouxe a peça para a família, não era a toda prova. Sinto ter de lhe contar essa história, Flavia, mas eu sempre fiz questão de ser escrupulosamente honesta.

Assenti e lhe dei um pequeno olhar de desapontamento.

-- E Brookie Harewood -- perguntei -- , como ele chegou a pôr as mãos no prato?

-- Porque ele é meu inquilino. Ele mora em minha cocheira, entenda.

Brookie? Aqui? Na cocheira da srta. Mountjoy? Isso era novidade para mim.

-- Ah, sim -- disse eu. -- É claro que mora. Eu tinha me esquecido. Bem, é melhor eu ir andando. Acho que você deve se deitar um pouco, senhorita Mountjoy. Está muito pálida. Um sangramento de nariz desgasta muito uma pessoa, não é? Ferro, e essas coisas. Você deve estar exausta.

Levei-a até a pequena sala de estar que eu vira na frente da casa e ajudei-a a se reclinar em um divã de pelo de cavalo. Cobri-a com uma manta de lã e deixei-a agarrada a ela com seus dedos brancos.

-- Posso encontrar a saída sozinha -- disse eu.

 

COMO O ATOR DE UMA PANTOMIMA procurando a saída pelas cortinas, empurrei de lado os ramos pendurados do salgueiro e saí da obscuridade verde para a claridade cegante dos refletores do Sol.

O tempo estava se esgotando. O Inspetor Hewitt e seus homens provavelmente estavam a poucos minutos de distância, e meu trabalho mal começara.

Como o furgão de Brookie se encontrava bem à minha frente, decidi começar por ele. Dei uma rápida olhada para um lado e para outro da rua. Não havia ninguém à vista.

Uma das janelas do furgão estava totalmente abaixada: obviamente, como Brookie a deixara. Era uma sorte!

O pai vivia falando sobre a importância de sempre carregar um lenço -- e dessa vez foi mesmo importante. Se eu abrisse a porta diretamente com as mãos, deixaria minhas impressões digitais na maçaneta niquelada. Um pedaço de linho limpo era a melhor pedida.

Mas a maçaneta não quis ceder, embora tenha produzido um gemido alarmante, que sugeria um estágio avançado de ferrugem por dentro. Se havia uma coisa de que eu não precisava, era uma porta de furgão se soltando e caindo fragorosamente na rua.

Subi em um dos estribos (mais um gemido metálico) e usei os cotovelos para fazer uma alavanca e me posicionar corretamente. Com a barriga sobre a parte de baixo da janela, consegui virar o corpo para dentro do furgão, deixando as pernas e os pés esticados no ar, para me equilibrar.

Com o lenço enrolado em volta da mão, apertei o botão do porta-luvas e, com ele aberto, enfiei a mão dentro e puxei para fora um pacotinho. Continha, como pensei, os documentos do furgão.

Quase soltei um grito de alegria! Agora, eu saberia o verdadeiro endereço de Brookie, o qual, de algum modo, eu duvidava que seria a Quinta do Salgueiro.

“Edward Sampson”, dizia o documento. “Raye Road, East Finching."

Eu sabia muito bem onde ficava East Finching: seguindo pela estrada, cerca de um quilômetro ao norte de Bishop’s Lacey.

Mas quem era Edward Sampson, senão o proprietário do furgão para fora do qual meu traseiro se projetava como as garras de uma lagosta presa em uma armadilha? Eu não tinha a mínima ideia.

Enfiei os papéis de volta no porta-luvas e fechei a tampa.

Agora, a cocheira.

-- Venha comigo, Gladys -- disse eu, tirando-a do lugar onde aguardava. Não fazia sentido permitir que minha presença fosse detectada deixando-a estacionada à vista de todos.

Graças ao formato peculiar da propriedade da srta. Mountjoy, a cocheira estava localizada no fim da vereda que acompanhava as sebes em forma de L que corriam por um lado e pela parte de trás. Coloquei Gladys fora de vista, atrás de uma sebe, e prossegui a pé.

Quando me aproximei do edifício, pude ver que o termo “cocheira” não passava de um título de cortesia. De fato, quase uma piada.

O recinto era quadrado, com tijolos no andar inferior e tábuas no topo. As janelas eram revestidas com o tipo de filme opaco que expressa abandono e com teias de aranha -- o tipo de janela que observa você.

A porta já havia sido pintada, mas estava descascando, para revelar a madeira cinzenta e desgastada, que combinava com as tábuas sem pintura do andar de cima.

Envolvi a mão no lenço e tentei abrir a trava. A porta estava trancada.

As janelas do primeiro andar eram altas demais para tentar entrar por elas, e o emaranhado de hera sobre uma treliça quebrada era frágil demais para se escalar. Uma escada instável cansadamente apoiada contra a parede era perigosa demais para ser usada. Decidi tentar dar a volta por trás.

Eu tinha de ser cautelosa. Somente uma cerca de madeira desconjuntada e uma passagem estreita separavam a parte de trás da cocheira do salgueiro da srta. Mountjoy, que se projetava e pendia por cima: eu teria de me abaixar e correr, como um gato assustado.

No fim da cerca, do lado esquerdo da passagem e anexada à cocheira, havia uma área cercada com arame, de onde veio, quando me aproximei, um cacarejar excitado. Dentro da área, havia uma gaiola com não mais do que sessenta centímetros de altura -- bem menos, de fato --, e dentro dela estava o maior galo que já vi: tão grande que tinha de se curvar para se pavonear na gaiola.

Assim que me viu, a ave avançou para os arames que nos separavam, adejando na direção de meu rosto de modo assustador. Meu primeiro instinto foi sair correndo -- mas então vi a expressão suplicante em seus olhos cor de marmelada.

Ele estava com fome!

Peguei um punhado de ração em uma caixa que estava pregada à estrutura da gaiola e atirei-o através da tela. O galo caiu em cima daquilo como um lobo em cima de viajantes russos; a crista, tão vermelha quanto papoulas de papel, movendo-se atarefadamente para cima e para baixo, como se fosse movida a vapor.

Enquanto ele se banqueteava, reparei em uma portinhola na extremidade oposta da gaiola que dava para dentro da cocheira. Não era maior do que o próprio galo, mas serviria.

Jogando mais uns punhados de ração para distrair a ave, voltei-me para a cerca de arame. Tinha menos de dois metros de altura, mas era difícil pular e agarrar a parte de cima da estrutura. Tentei subir pela tela, porém meus sapatos não conseguiram encontrar apoio.

Sem me dar por vencida, sentei-me e tirei os sapatos e as meias.

Quando eu vier a escrever uma autobiografia, devo me lembrar de registrar o fato de que uma tela de galinheiro pode, sim, ser escalada por uma menina descalça, mas somente por uma que esteja disposta a sofrer torturas para satisfazer sua curiosidade.

Enquanto eu subia, os dedos de meus pés entalavam nos hexágonos da tela, cada fio uma lâmina de cortador de queijo. Quando cheguei ao topo, pareciam pertencer a Scott da Antártida.

Quando me deixei cair no chão dentro da área cercada, o galo investiu contra mim. Como não pensara em trazer um pouco da ração no bolso para apaziguar a ave esfomeada, fiquei à mercê dela.

O galo se atirou contra meus joelhos expostos, e eu mergulhei em direção à portinhola.

Era um espaço bem apertado, e eu só podia me espremer dolorosamente dentro dela, enquanto a ave enraivecida bicava furiosamente minhas pernas -- mas, momentos depois, eu estava dentro da cocheira: ainda confinada a uma partição aramada, mas dentro dela.

E também o galo, que me seguira e agora se lançava sobre mim com uma fúria vindicativa.

Tomada por súbita inspiração, me agachei, atraí o olhar da ave e então, com um forte sibilar, coloquei-me em pé, de repente,passei a oscilar a cabeça de um lado para outro, pondo rapidamente a língua para fora e para dentro como uma cobra-real.

Funcionou! Em seu débil cérebro de galo, algum instinto ancestral sussurrou subitamente uma história de terror sem palavras que envolvia uma galinha e uma serpente, e ele se atirou em fuga através da portinhola, como uma bala de canhão emplumada.

Enfiei os dedos por entre a tela, girei o pedaço de madeira que servia de trava e entrei no corredor.

Suponho que minha cabeça estivesse cheia de imagens de baias empoeiradas, arreios encarquilhados pendurados em ganchos de madeira, escovas metálicas e bancadas, e quem sabe uma carruagem há muito abandonada, escondida em algum canto escuro. Talvez eu estivesse pensando em nossa própria cocheira de Buckshaw.

O que quer que fosse, eu estava totalmente despreparada para o que vi.

Sob o teto baixo e vigado daquilo que fora outrora um estábulo, divãs estofados com seda verde e rosa se amontoavam como ônibus no Piccadilly Circus. Jarros e vasos de camafeus -- alguns dos quais certamente eram Wedgwood -- espalhavam-se aqui e ali sobre mesas cuja velha madeira conseguia brilhar mesmo na luz pálida. Gabinetes entalhados e mesas elaboradamente marchetadas se escondiam nas sombras, enquanto baias próximas transbordavam de cântaros Royal Albert e biombos orientais.

O lugar era um armazém -- e, pensei, um armazém nada comum!

Contra uma parede quase escondida por um grande aparador, havia uma cornija de lareira georgiana soberbamente entalhada, na frente da qual, meio desenrolado, encontrava-se um rico e elaborado tapete. Algo muito parecido com ele fora mencionado em mais de uma ocasião pela amiga e bajuladora de Felinha, Sheila Foster, que conseguia meter a colher torta até na mais descontraída conversação: “O Arcebispo de Canterbury esteve de visita no fim de semana, você sabe. Quando estava beliscando minha bochecha, ele deixou cair uma migalha de seu bolo de frutas em cima de nosso velho e querido Aubusson”.

Eu acabara de dar um passo à frente para olhá-lo mais de perto quando uma coisa me chamou a atenção: um brilho no canto escuro junto à cornija da lareira. Engoli em seco, pois ali, na cocheira da srta. Mountjoy, estavam Sally Fox e Shoppo -- os cães de lareira de bronze de Harriet!

“Que diabo...?", pensei. “Como é possível?"

Eu vira os cães de lareira apenas algumas horas atrás, na sala de estar de Buckshaw. Não era possível que Brookie Harewood tivesse voltado sorrateiramente à casa e os roubado, porque Brookie estava morto. Quem mais poderia tê-los trazido para cá?

Poderia ter sido Colin Prout? Colin, afinal, era marionete de Brookie, e eu o encontrara flanando pela vizinhança minutos atrás.

Será que Colin morava com Brookie na cocheira? A srta. Mountjoy se referira a Brookie como seu inquilino, o que certamente significava que ele morava aqui. Eu não vira sinal de cozinha ou lugar para dormir, mas talvez ficassem além do vasto espaço ocupado pelos móveis, ou subindo a escada, no primeiro andar.

Quando eu voltava para o corredor central, uma porta de carro bateu na passagem do lado de fora.

Raios! Deveria ser o Inspetor Hewitt.

Abaixei-me rapidamente e fui gingando como uma pata até uma janela; pressionei o corpo contra o fundo de um enorme guarda-roupa de ébano, de onde podia espiar sem ser vista.

Mas não era o Inspetor Hewitt que vinha em direção à porta: era um buldogue sobre duas pernas. As mangas da camisa do homem estavam arregaçadas até os cotovelos, revelando braços que, não fosse pelo excesso de pelos, poderiam ser um par de presuntos de Natal. A camisa, aberta no pescoço, revelava uma floresta de pelos pretos e resilientes no peito, e seus punhos se fechavam e se abriam enquanto ele caminhava determinado para a porta.

Quem quer que fosse, era óbvio que não estava feliz. O homem era poderoso o bastante para me abrir como se eu fosse um pacote de biscoito. Eu não podia deixar que me encontrasse aqui.

Foi enervante refazer o caminho através do labirinto de móveis. Duas vezes me assustei com um movimento próximo, para descobrir que se tratava apenas de meu próprio reflexo em um espelho descoberto.

O homem já estava abrindo a porta quando cheguei ao cubículo cercado. Deslizei para dentro -- graças a Deus pelos pés descalços e pela palha no chão! --, então me abaixei até ficar agachada, depois esticada de cara no chão, e comecei a me arrastar para fora pelo buraco estreito.

O galináceo caiu em cima de mim como um galo de briga campeão. Enquanto eu me arrastava, tentei manter as mãos erguidas para proteger o rosto, mas as esporas da ave eram afiadas como navalhas. Antes de chegar à metade do caminho, meus pulsos já estavam sangrando.

Galguei a parede de arame, com o galo se jogando de novo e de novo contra meus pés e pernas. Não havia tempo sequer para pensar no que a tela de arame fazia com meus pés. No topo, me joguei por cima da trave de madeira e caí pesadamente no chão.

-- Quem está aí? -- dentro da cocheira, a voz do homem soou como se estivesse a não mais que alguns metros de distância. Mas, a não ser que ele deitasse sobre sua barriga e rastejasse, não poderia me seguir. Não poderia nem mesmo me enxergar no galinheiro externo.

Ele teria de voltar ao seu carro e então dar a volta na cocheira pelo caminho.

Ouvi seus passos se afastando pelo piso de madeira.

Mais uma vez, rastejei rapidamente ao longo da cerca decadente -- espere: eu esquecera meus sapatos e meias!

Voltei para recuperá-los, minha respiração agora eram sorvos rápidos e dolorosos. Outra vez a cerca, e me esquivei para trás da sebe na qual havia deixado Gladys.

Bem a tempo. Congelei atrás da sebe, tentando não respirar, enquanto o buldogue humano passava pesadamente.

-- Quem está aí? -- ele demandou outra vez, e ouvi o galo se jogando contra a tela de arame com um cacarejar selvagem.

Mais alguns impropérios rudes, e meu perseguidor se foi. Não tenho a ousadia de registrar suas palavras exatas, mas vou mantê-las na mente até o dia em que me serão muito úteis.

Aguardei um minuto ou dois para ter certeza e então arrastei Gladys de trás da sebe e parti para casa.

Enquanto pedalava, fiz o melhor que pude para parecer uma respeitável menina inglesa que saíra para um estimulante passeio de bicicleta ao ar fresco.

Mas por alguma razão eu duvidava que minha pantomima convenceria alguém. Minhas mãos e meu rosto estavam imundos, meus pulsos e tornozelos sangravam, os joelhos estavam esfolados até o osso, e minhas roupas teriam de ser jogadas no lixo.

O pai não acharia divertido.

E se, em minha ausência, tivessem descoberto Porcelana em meu quarto? E se ela tivesse acordado e descido a escada? Ou entrado no estúdio do pai?

Embora eu nunca antes houvesse me encolhido de medo em cima de uma bicicleta, dessa vez eu me encolhi.


-- Eu a peguei se esgueirando para dentro por uma das janelas da galeria de retratos -- disse Felinha. -- Como uma assaltante comum. Dá para imaginar? Eu tinha ido lá para estudar a pintura de Ajax por Maggs, e...

Maggs foi um pintor rufião que viveu nas vizinhanças de Bishop’s Lacey durante a Regência, e Ajax, um cavalo que foi trazido por capricho por um de meus antepassados, Florizel de Luce. Ajax recompensou seu novo proprietário ganhando tantas corridas que Florizel conseguiu ser eleito em um pequeno distrito.

-- Obrigado, Ophelia -- disse o pai.

Felinha baixou uns olhos humildes e deslizou até a porta, atrás da qual poderia sentar-se na cadeira do corredor para bisbilhotar confortavelmente minha humilhação.

-- Você sabe que dia é hoje, Flavia? -- começou o pai.

-- Domingo -- disse eu sem hesitar, muito embora a quermesse de São Tancredo parecesse tão distante no tempo quanto a última Era do Gelo.

-- Precisamente -- disse o pai. -- E o que você tem feito todos os domingos desde tempos imemoriais?

-- Ido à igreja -- respondi como um papagaio treinado.

Igreja! Eu tinha me esquecido completamente.

-- Eu pensei em deixá-la ficar na cama esta manhã para se recuperar daquele acontecimento desagradável nas Paliçadas. Logo em seguida, um inspetor chega à porta, e você é requisitada para tirar impressões digitais.

-- E agora fiquei sabendo que há um cadáver no Campo de Trafalgar e que você andou xeretando pela aldeia, fazendo perguntas impertinentes.

-- A senhorita Mountjoy? -- arrisquei.

“Entregue um pouco, saiba muito." Essa seria minha frase do dia. Teria de me lembrar de anotá-la em meu caderno.

Mas espere! Como a srta. Mountjoy poderia saber do corpo no gramado? A não ser que...

-- A senhorita Mountjoy -- confirmou o pai. -- Ela telefonou para perguntar se você havia chegado em casa em segurança.

A velha harpia! Ela deve ter se levantado de seu sofá e espreitado atrás dos ramos do salgueiro os meus encontros com o galo e o homem-buldogue.

-- Que gentil da parte dela -- disse eu. -- Preciso me lembrar de lhe enviar uma carta.

Eu lhe mandaria uma carta, sem dúvida. Seria o ás de espadas, e eu a enviaria anonimamente, de algum lugar que não Bishop’s Lacey. Philip Odell, o detetive do rádio, certa vez investigou um caso assim e conseguiu uma história muito boa -- uma de suas melhores aventuras.

-- E seu vestido! -- continuou o pai. -- O que você fez com seu vestido?

Meu vestido? Teria a srta. Mountjoy descrito exatamente o que vira?

Espere! Talvez ela não tivesse feito isso afinal. Talvez o pai ainda não soubesse do que aconteceu na cocheira.

“Deus a abençoe, senhorita Mountjoy! Que você viva para sempre na companhia daqueles santos e mártires que se recusaram a contar onde os tesouros da igreja estavam enterrados."

Mas o pai não comentaria sobre os cortes e esfoladuras?

Aparentemente, não.

E foi naquele momento, acho, que as coisas começaram a ficar claras -- verdadeiramente claras -- para mim; eu me dei conta de que havia coisas que jamais eram mencionadas em boa companhia, não importava o que acontecesse: que o sangue azul era melhor que o vermelho; que boas maneiras e aparências, e um nariz empinado eram mais importantes que a própria vida.

-- Flavia -- repetiu o pai, lutando para não torcer as mãos --, eu fiz uma pergunta. O que você fez com seu vestido?

Baixei os olhos para mim mesma, como se tivesse notado o estrago pela primeira vez.

-- Meu vestido? -- disse eu, alisando-o e me certificando de que ele tinha uma boa visão de meus pulsos e tornozelos ensanguentados. -- Oh, desculpe, pai. Não é nada. Tive um pequeno acidente com a bicicleta. Apenas falta de sorte, mas ainda assim... vou lavá-lo e consertá-lo eu mesma. Vai ser fácil.

Minha audição aguda detectou o som de uma risadinha vulgar no corredor.

Eu gostaria de acreditar que aquilo que vi nos olhos do pai era orgulho.

 

PORCELANA ESTAVA DORMINDO o sono dos mortos. eu me preocupara em vão.

Fiquei olhando para ela, deitada em minha cama quase na mesma posição em que eu a deixara. As manchas escuras sob seus olhos pareciam ter clareado, e sua respiração era quase imperceptível.

Dois segundos depois, houve uma torrente de movimentos furiosos e fui prensada contra a cama com os polegares de Porcelana apertando minha traqueia.

“Demônio!", acho que ela sibilou.

Lutei para me livrar, mas não podia me mexer. Estrelas brilhantes explodiam em meu cérebro quando lhe agarrei as mãos. Eu não estava recebendo oxigênio suficiente. Tentei empurrá-la.

No entanto, eu não era páreo para ela. Porcelana era maior e mais forte do que eu, e já me sentia ficando lânguida e indiferente. Como seria fácil desistir...

Mas não!

Parei de tentar lutar contra as mãos dela e, em vez disso, agarrei seu nariz com o polegar e o indicador. Com o que restava de minhas forças, dei-lhe uma torcida violenta.

-- Flavia!

Ela de repente pareceu surpresa ao me ver -- como se fôssemos velhas amigas que se encontraram inesperadamente na frente de um adorável Vermeer na Galeria Nacional.

As mãos dela se afastaram de minha garganta, mas eu ainda não conseguia respirar. Rolei para fora da cama e para o chão, tomada por um acesso de tosse.

-- O que você está fazendo? -- perguntou ela, olhando em volta perplexa.

-- O que você está fazendo? -- grasnei. -- Você esmagou a minha traqueia!

-- Oh, Deus! -- disse ela. -- Que horror! Sinto muito, Flavia. Realmente sinto. Eu estava sonhando que me encontrava no carroção de Fenella, e havia algum tipo de... besta horrenda... em cima de mim. Eu acho que era...

-- Sim?

Ela desviou o olhar de mim.

-- Eu... eu sinto muito. Não posso contar.

-- Vou guardar para mim. Prometo.

-- Não, não adianta. Eu não devo.

-- Então, tudo bem -- disse eu. -- Não conte. De fato, eu a proíbo de me contar.

-- Flavia...

-- Não -- disse eu, e era verdade. -- Não quero saber. Vamos falar de outra coisa.

Eu sabia que, se desse um tempo, o que quer que Porcelana estivesse sonegando acabaria se derramando para fora como carne moída do moedor da sra. Mullet. O que me lembrou que eu não comia havia eras geológicas.

-- Você está com fome? -- perguntei.

-- Morrendo. Você deve ter ouvido a minha barriga roncando.

Eu não tinha ouvido nada, mas fingi que tinha e assenti sabiamente.

-- Fique aqui. Vou trazer alguma coisa da cozinha.


Dez minutos depois, eu estava de volta com uma tigela de comida surrupiada da cozinha.

-- Siga-me -- disse eu. -- A porta ao lado.

Porcelana olhou em volta de olhos arregalados quando entramos em meu laboratório químico.

-- O que é este lugar? Nós devíamos estar aqui?

-- É claro que sim -- eu lhe disse. -- É onde conduzo meus experimentos.

-- Como mágica? -- perguntou ela, relanceando em volta os objetos de vidro.

-- Sim -- disse eu. -- Como mágica. Agora, segure isto...

Ela deu um pulo ao ouvir o barulho do bico de Bunsen quando encostei um fósforo nele.

-- Segure sobre a chama -- eu disse, entregando-lhe um par de salsichas e um par de pinças niqueladas para tubos de ensaio. -- Não perto demais. É extremamente quente.

Quebrei seis ovos dentro de um prato de evaporação de borossilicato e os mexi com uma pipeta de vidro em um segundo queimador. Quase imediatamente, o laboratório se encheu de aromas de dar água na boca.

-- E agora vamos às torradas -- disse eu. -- Você pode preparar duas fatias de cada vez. Use as pinças de novo. Passe dos dois lados, depois vire ao contrário.

Por necessidade, eu me tornara uma exímia chef de laboratório. Uma vez, bem recentemente, o pai me condenou a meu quarto, e eu preparei um pudim cozinhando sebo -- roubado da despensa -- no vapor em um frasco de Erlenmeyer de boca larga. E, como a água só ferve a cem graus Celsius, enquanto o nylon não se funde até ser aquecido a duzentos e catorze graus, verifiquei que uma das preciosas meias de Felinha servia perfeitamente como saco de pudim.

Se existe alguma coisa mais deliciosa do que salsicha grelhada em um bico de Bunsen aberto, não posso imaginar o que seja -- a não ser a sensação de liberdade que vem de comê-la segurando com os dedos e deixando a gordura cair onde tiver de cair. Porcelana e eu devoramos nossa comida como canibais depois de uma fome missionária e, em pouco tempo, nada restava além de migalhas.

Enquanto duas xícaras de água ferviam em um béquer de vidro, peguei na prateleira, na qual era guardado, alfabeticamente, entre o arsênico e o cianeto, um pote farmacêutico marcado como Camelia sinensis.

-- Não se preocupe -- disse eu. -- É apenas chá.

Então, caiu entre nós um daqueles silêncios que ocorrem quando duas pessoas estão começando a se conhecer: ainda não caloroso e amistoso, mas tampouco frio e cauteloso.

-- Me pergunto como a sua avó está passando. -- disse eu afinal. -- Fenella, devo dizer.

-- Bastante bem, espero. Ela é uma velha raposa muito dura.

-- Você quer dizer “resistente”. -- A resposta dela me surpreendera.

-- Eu quis dizer “dura”.

Ela deliberadamente soltou o tubo de ensaio de vidro com o qual estava brincando e ficou olhando-o estilhaçar-se no chão.

-- Mas ela não vai se quebrar -- disse Porcelana.

Eu ia pedir licença para discordar, mas fiquei de boca fechada. Porcelana não viu sua avó estendida em uma poça de seu próprio sangue, como eu vi.

-- A vida pode matar você, mas só se você deixar. Ela costumava me dizer isso.

-- Você deve tê-la amado muito -- disse eu, percebendo assim que terminei de falar que fizera aquilo soar como se Fenella já estivesse morta.

-- Sim, muito, às vezes -- disse Porcelana pensativa --, e às vezes nem um pouco.

Ela deve ter visto minha expressão perplexa.

-- O amor não é um grande rio que corre em seu leito para sempre, e, se você acredita que é, então é muito tola. Ele pode ser represado até que dele nada reste, senão um filete de água...

-- Ou ser parado completamente -- acrescentei.

Ela não respondeu.

Deixei meu olhar vagar até a janela e através do Visto, e pensei nos tipos de amor que conhecia, que não eram muitos. Depois de algum tempo, pensei em Brookie Harewood. “Quem o odiava o bastante para matá-lo”, me perguntei, “e pendurá-lo no tridente de Posêidon? Ou teria a morte de Brookie ocorrido por medo, e não por ódio?"

Bem, qualquer que fosse o caso, a essa altura Brookie estaria jazendo em uma maca em Hinley, e alguém -- seu parente mais próximo -- teria sido convocado para identificar o corpo.

Quando um atendente de jaleco branco erguesse o canto do lençol para revelar a face morta de Brookie, uma mulher daria um passo à frente. Ela engoliria em seco, levaria um lenço à boca e rapidamente desviaria a cabeça.

Eu sabia como era: tinha visto no cinema.

E, a não ser que eu errasse meu palpite, essa mulher seria sua mãe: a artista que vive em Malden Fenwick.

Mas talvez eu estivesse errada: talvez eles poupassem a mãe de seu pesar. Talvez a mulher a dar um passo à frente fosse apenas uma amiga. Mas não -- Brookie não parecia ser do tipo que tem damas como amigas. Não existiriam muitas mulheres dispostas a passar as noites se esgueirando em botas de borracha pela zona rural, lidando com peixes mortos.

Eu estava tão envolvida em meus pensamentos que não ouvi quando Porcelana começou a falar.

-- ... mas nunca no verão -- ela dizia. -- No verão, ela dispensaria tudo isso e seguiria pelas estradas com Johnny Faa, sem um penny. Como um par de crianças, eles eram. Johnny era um latoeiro quando mais jovem, mas desistiu disso por uma razão que nunca explicou. Ainda assim, ele fazia amizades com facilidade, e seu jeito com a rabeca significava que falava todas as línguas que existem sob o sol. Eles viviam do que quer que Fenella conseguisse dizendo o futuro dos tolos.

-- Eu fui um desses tolos -- contei a ela.

-- Sim -- disse Porcelana. Ela não pretendia poupar meus sentimentos.

-- Você viajava com eles? -- perguntei.

-- Uma ou duas vezes, quando era mais jovem. Lunita não gostava muito que eu ficasse com eles.

-- Lunita?

-- Minha mãe. Era a única filha deles. Os ciganos gostam de famílias grandes, você sabe, mas ela era tudo o que eles tinham. O coração dos dois foi partido ao meio quando ela fugiu com um gajo -- um inglês de Tunbridge Wells.

-- Seu pai?

Porcelana assentiu tristemente.

-- Ela costumava me dizer que meu pai era um príncipe, que ele montava um cavalo branco de raça pura, que era mais veloz que o vento. Seu casaco era tecido em ouro, com mangas da mais pura seda. Ele podia falar com os pássaros na própria língua deles e tornar-se invisível sempre que tivesse vontade. Parte disso era verdade: ele era especialmente bom em se esquivar pela invisibilidade.

Enquanto Porcelana falava, um pensamento surgiu em minha mente de maneira tão súbita e não solicitada quanto uma estrela cadente no céu da noite: eu trocaria meu pai pelo dela?

Afastei o pensamento.

-- Conte-me sobre sua mãe -- disse eu, talvez um pouco mais ansiosa do que deveria.

-- Há pouca coisa a contar. Ela era sozinha. Não poderia voltar ao lar, se é que se pode chamar assim, porque Fenella e Johnny, principalmente Fenella, não a aceitariam. Tinha a mim para cuidar dela, e nem um amigo sequer no mundo.

-- Que terrível! -- disse eu. -- O que ela fez?

-- A única coisa que sabia. Ela tinha o dom das cartas, então predizia o futuro. Às vezes, quando as coisas iam mal, ela me mandava para Fenella e Johnny por algum tempo. Eles cuidavam bastante bem de mim, mas, quando eu estava com eles, jamais me perguntavam sobre Lunita.

-- E você nunca contava...?

-- Não. Mas, quando veio a guerra, as coisas ficaram diferentes. Estávamos vivendo em uma horrível quitinete em Moorgate, onde Lunita lia a sorte atrás de uma colcha pendurada de um lado a outro do quarto. Eu só tinha quatro anos, portanto não me lembro de muita coisa daquele tempo, a não ser por uma aranha que vivia em um buraco na parede do banheiro. Ficamos lá por, oh, uns quatro anos, eu acho. Por isso, eu devia ter oito quando, um dia, um letreiro foi colocado na janela da casa vazia ao lado, e a senhorita disse a Lunita que o lugar estava sendo transformado em um clube para homens que serviam no exército. De repente, ela começou a ganhar mais dinheiro do que conseguia gastar. Acho que se sentia culpada em relação a todos os canadenses, americanos, neozelandeses e australianos -- e até poloneses -- que vinham aos magotes em seus uniformes para que ela lhes virasse as cartas. Ela não queria que ninguém pensasse que estava lucrando com a guerra. Nunca vou esquecer o dia em que a encontrei chorando no banheiro. “Aqueles pobres rapazes!", lembro-me de tê-la ouvido soluçar. “Todos eles faziam a mesma pergunta: ‘Será que vou voltar para casa vivo?'."

-- E o que ela dizia?

-- “Você irá para casa mais glorioso do que quando veio." Ela dizia a todos eles a mesma coisa, a cada um deles: por meia coroa para cada um.

-- É muito triste -- comentei.

-- Triste? Não, triste, não. Aqueles foram os melhores dias de nossa vida. Nós apenas não nos demos conta disso na época. Havia um oficial em particular que estava sempre no clube: um sujeito alto com um bigodinho loiro. Eu costumava vê-lo na rua, indo e vindo. Ele nunca tinha muito a dizer, mas sempre parecia estar de olho em alguma coisa. Um dia, só de brincadeira, Lunita o convidou a entrar e ter sua sorte lida. Não cobraria nem um penny, porque, por acaso, era domingo. Em um ou dois dias, ela estava trabalhando para a inteligência militar. Eles não lhe diziam nada, mas, aparentemente, o que quer que ela visse nas cartas dava certo, na mosca. Algum sabichão de Whitehall estava tentando descobrir qual seria o próximo lance de Hitler, e tinha ouvido boatos sobre a cigana de Moorgate que lia cartas. Eles imediatamente convidaram Lunita para almoçar no Savoy. De início, aquilo poderia não ter sido mais que um jogo. Talvez eles quisessem que se espalhasse a notícia de que estavam desesperados a ponto de depositar suas esperanças em uma cigana. Mas, novamente, as coisas que ela lhes contou chegaram tão perto da verdade secreta que mal puderam acreditar em seus ouvidos. Nunca haviam escutado nada semelhante. De início, acharam que ela era uma espiã e convocaram um cientista de Bletchley Park para interrogá-la em Londres. Ele mal atravessou a porta, e ela lhe disse que tinha sorte de estar vivo: uma doença salvara sua vida. E era verdade. Ele acabara de ser posto em contato com os americanos como oficial de ligação quando um súbito ataque de apendicite o impediu de participar de um ensaio para o Dia D. A coisa toda foi um desastre total: centenas morreram. Tudo foi encoberto, é claro. Ninguém soube disso na época. Nem é preciso dizer que o sujeito ficou embasbacado. Lunita passou pelo teste com distinção, e em alguns dias -- ou horas -- eles nos estabeleceram em nosso próprio apartamento de luxo, em Bloomsbury.

-- Ela deve ter tido poderes notáveis -- disse eu.

O corpo de Porcelana relaxou.

-- Teve -- disse ela sem emoção. -- Morreu um mês depois. Um foguete V1 na rua, na frente do Ministério da Aeronáutica. Seis anos atrás. Em junho.

-- Sinto muito -- disse eu, e era verdade. Pelo menos, tínhamos algo em comum, Porcelana e eu, ainda que fosse uma mãe que morrera jovem demais e deixara a filha para crescer sozinha.

Eu queria muito contar a ela sobre Harriet -- mas, por alguma razão, não pude. O pesar no quarto pertencia a Porcelana, e me dei conta, quase imediatamente, que seria egoísmo roubá-lo dela.

Pus-me a limpar o vidro quebrado do tubo de ensaio que ela derrubara.

-- Espere -- disse ela. -- Eu deveria estar fazendo isso.

-- Tudo bem -- disse eu. -- Estou acostumada.

Era uma daquelas desculpas inventadas que geralmente desprezo, mas como eu poderia contar a ela a verdade? Eu simplesmente não estava disposta a compartilhar com ninguém a tarefa de recolher os pedaços.

Seria isso um vislumbre fugaz de como era ser mulher? Eu gostaria de saber.

Esperei que fosse... e também que não fosse.


Estávamos sentadas em minha cama, Porcelana com as costas contra a cabeceira, e eu, ao pé, de pernas cruzadas.

-- Imagino que você vai querer visitar sua avó -- disse eu.

Porcelana encolheu os ombros, e acho que a entendi.

-- A polícia ainda não sabe que você está aqui. Suponho que seja melhor contarmos a eles.

-- Suponho que sim.

-- Vamos deixar isso para amanhã cedo -- eu disse a ela. -- Estou cansada demais para pensar.

E era verdade: sentia as pálpebras como se houvesse chumbo pendurado nelas. Eu estava simplesmente exausta para lidar com os problemas imediatos. O maior deles era manter em segredo a presença de Porcelana na casa. A última coisa que eu precisava era ter de ficar olhando impotente o pai expulsar a neta de Fenella e Johnny Faa.

Fenella estava no hospital em Hinley e, a essa altura, poderia até estar morta. Se era para investigar a fundo o ataque contra ela nas Paliçadas -- e, suspeitava, o assassinato de Brookie Harewood --, eu teria de atrair o mínimo possível de atenção.

Era apenas uma questão de tempo até que o Inspetor Hewitt estivesse à nossa porta, exigindo saber com detalhes como eu descobrira o corpo de Brookie. Eu precisava de tempo para rever os fatos e decidir quais eu lhe contaria e quais não. Ou será que não precisava?

Minha cabeça era um turbilhão. “Uau!", pensei. “Que divertido é o mundo de Flavia de Luce!"

A próxima coisa que percebi foi a luz do sol entrando pelas janelas, de manhã.

 

ROLEI PARA O OUTRO LADO E PISQUEI. Estava esparramada na parte inferior da cama, com a cabeça torcida dolorosamente contra o pé dela. Na parte de cima, Porcelana estava bem acomodada, com meu cobertor puxado por cima dos ombros, a cabeça em cima do meu travesseiro, dormindo profundamente, como se fosse uma princesa oriental.

Por um momento, um ressentimento começou a surgir, mas, quando me lembrei da história que ela me contara na noite passada, deixei o ressentimento se derreter e virar piedade.

Dei uma olhada para o relógio e vi, para meu horror, que havia dormido demais. Estava atrasada para o desjejum. O pai insistia que os pratos chegassem e fossem tirados da mesa com precisão militar.

Tomando muito cuidado para não acordar Porcelana, troquei de roupa rapidamente, dei uma escovada no cabelo e desci silenciosamente para o desjejum.

O pai, como de costume, estava imerso na última edição do London Philatelist e mal pareceu notar minha chegada: um sinal confiável de que outro leilão filatélico aconteceria em breve. Se a nossa condição financeira fosse tão precária quanto ele alegava, precisaria ficar atento aos preços vigentes. Enquanto comia, fez pequenas anotações em um guardanapo com o cotoco de um lápis, a cabeça em outro mundo.

Quando deslizei na cadeira, Felinha fixou em mim o olhar frio e pétreo que aperfeiçoara assistindo à Rainha Mary nos noticiários.

-- Você tem uma espinha no rosto -- disse eu sem rodeios, enquanto derramava leite em meu cereal.

Ela fingiu não ter ouvido, mas, menos de um minuto depois, fui gratificada ao ver sua mão se erguer automaticamente até a bochecha e começar uma exploração. Era como observar um caranguejo se arrastar lentamente pelo fundo do mar em um dos muitos documentários coloridos que havia no cinema: O oceano vivo, ou coisa assim.

-- Cuidado, Felinha! -- disse eu. -- Ela vai estourar.

Dafi ergueu os olhos de seu livro -- o exemplar de Um espelho, para Londres e a Inglaterra que eu achara na quermesse. Ela mesma poderia escolher, a suína!

Tomei nota mentalmente para surrupiá-lo depois.

-- O que quer dizer isto aqui: “Um arenque vermelho sem mostarda”? -- perguntei, apontando.

Dafi adorava qualquer oportunidade de demonstrar seu conhecimento superior.

Eu já repassara em minha cabeça tudo o que sabia sobre mostarda, o que era muito pouco. Eu sabia, por exemplo, que continha, entre outras coisas, os ácidos oleico, erúcico, beénico e esteárico. Eu sabia que o ácido esteárico é encontrado na gordura das carnes bovina e ovina, pois certa vez submeti um dos gordurosos assados de domingo feitos pela sra. Mullet à análise química; e, pesquisando, descobri que o ácido erúcico recebera seu nome a partir da palavra grega para “vomitar”.

-- O arenque vermelho, nos séculos XVI e XVII, era considerado um prato inferior -- respondeu Dafi, com um olhar especialmente desmoralizante para mim ao pronunciar a palavra “inferior”.

Dei uma espiadela no pai, para ver se ele estava olhando, mas não estava.

-- O poeta Nicholas Breton classificou-o como “um prato vulgar para um estômago ordinário” -- prosseguiu ela, torcendo-se na cadeira e congratulando-se pela sapiência. -- Ele também disse que o velho ling, outro peixe, caso você não saiba, é como “um casaco azul sem conhecimento”, o que significa um servo que não usa o distintivo como seu mestre.

-- Daphne, por favor... -- disse o pai sem erguer os olhos, o que a fez murchar.

Eu sabia que eles estavam se referindo -- sem que eu percebesse, achavam -- a Dogger. A guerra em Buckshaw era assim: invisível e, às vezes, silenciosa.

-- Passe a torrada, por favor -- disse Dafi, discreta e educadamente, como se estivesse se dirigindo a um estranho numa casa de chá: como se os últimos onze anos de minha vida não tivessem existido.

-- Eles estão construindo um novo campo de bedminster em Fosters -- observou Felinha subitamente para ninguém em particular. -- Sheila vai usar o velho para estacionar seu Daimler.

O pai resmungou alguma coisa, mas pude perceber que ele não estava mais ouvindo.

-- Ela é um tipo tão insolente! -- prosseguiu Felinha. -- Fez Copley trazer pratinhos de sobremesa para o gramado sul, mas, em vez de sorvete, ela serviu... escargots! Nós os comemos crus, como se fossem ostras, como as estrelas de cinema. Foi tão divertido...

-- É melhor você tomar cuidado -- disse eu. -- Os caçadores de caramujo às vezes pegam sanguessugas por engano. Se você engolir uma sanguessuga, ela vai devorá-la de dentro para fora, a partir do estômago.

A expressão de Felinha escoou lentamente, como água em um lavatório.

-- Havia alguma coisa no The Hinley Chronicle -- acrescentei solícita --, três semanas atrás, se me lembro corretamente, sobre um homem de Santa Elfrieda, não muito longe daqui, na verdade, que engoliu uma sanguessuga, e tiveram de...

Mas Felinha empurrara sua cadeira para trás e fugira.

-- Você está provocando sua irmã outra vez, Flavia? -- perguntou o pai, erguendo os olhos de seu jornal, mas deixando um dedo na página para marcar o lugar.

-- Eu estava tentando discutir os eventos correntes -- disse eu. -- Mas ela não parece muito interessada.

-- Ah -- disse o pai, e continuou a ler sobre os defeitos nas chapas do selo azul de dois pence de 1840.

Com o pai presente à mesa, éramos pelo menos semicivilizadas.

Consegui escapar com pouca dificuldade, para minha surpresa.


A sra. Mullet estava na cozinha, torturando o cadáver de uma galinha com uma bola de linha de açougueiro.

-- O assado não ficará perfeito se você não amarrar direito -- disse ela. -- Era isso que a senhora Chadwick, de Norton Old Hall, costumava me dizer, e ela sabia. Foi ela quem me ensinou. Veja bem, foi nos dias de Lady Rex-Wells, muito tempo antes de você nascer, querida. “Amarre três vezes”, ela costumava dizer, “e nunca terá de raspar o seu forno." Do que está rindo, senhorita?

Uma risadinha nervosa me escapou quando uma imagem súbita -- estar amarrada de modo similar em minha própria carne e sangue -- passou pela minha cabeça.

O pensamento me lembrou que eu ainda não tivera a minha vingança. Certamente, houve a piadinha sobre sanguessugas, mas isso fora mero aquecimento: não mais que um prelúdio para a vingança. O fato era que eu simplesmente estivera muito ocupada.

Enquanto a sra. M enfiava a ave condenada para dentro do papo do Aga, aproveitei a oportunidade para surrupiar um pote de geleia de morango da despensa.

-- Três vezes -- eu disse com uma careta horrível, dando uma piscadela medonha para a sra. Mullet, como se estivesse lhe passando a senha de uma sociedade secreta da qual ela e eu fôssemos os únicos membros. Ao mesmo tempo, dei-lhe um V de vitória de Winston Churchill com a mão direita, para distrair a atenção do pote de geleia na mão esquerda.

Segura no andar de cima, abri a porta do quarto o mais discretamente possível. Não havia necessidade de perturbar Porcelana. Eu lhe deixaria um bilhete dizendo que voltaria mais tarde, e era tudo. Não era preciso dizer aonde eu estava indo.

Mas não foi necessário nenhum bilhete. A cama estava perfeitamente arrumada, e Porcelana se fora.

“Maldita!", pensei. Será que ela não entendeu que tinha de ficar no meu quarto e fora de vista? Eu achava que tinha deixado aquilo perfeitamente claro, mas talvez não tivesse.

Onde estaria ela agora? Flanando pelos salões de Buckshaw -- onde certamente seria pega? Ou retornara ao carroção, nas Paliçadas?

Eu pretendia acompanhá-la até a delegacia de Bishop’s Lacey, para que ela tornasse sua presença conhecida ao Policial Linnet. Estando no local, eu não apenas estaria cumprindo minha obrigação, como estaria na posição perfeita para ouvir tudo o que se falasse entre Porcelana e a polícia. O Policial Linnet passaria a informação aos seus superiores em Hinley, que, por sua vez, a passariam ao Inspetor Hewitt. E eu seria o recipiente de sua penhorada gratidão.

Poderia ter sido simples assim. Maldita garota!

Atravessando novamente a cozinha, dei uma piscadela para a sra. Mullet e resmunguei um “três vezes”.

Gladys me aguardava perto do muro do jardim. Dogger estava na estufa, concentrado em seu trabalho. Enquanto eu me afastava, senti seus olhos em minha nuca.


Malden Fenwick ficava a leste de Bishop’s Lacey, não muito longe de Chipford.

Embora eu nunca houvesse estado lá antes, o lugar tinha uma aparência familiar -- e isso não era de admirar. “A mais linda aldeia da Inglaterra”, como era chamada às vezes, fora fotografada quase ao delírio. Seus chalés elisabetanos e georgianos, com telhados de palha sustentados por madeira e janelas de malva-rosa em forma de losango, e as lagoas de patos e seus celeiros não apenas foram tema de centenas de livros e revistas, como serviram de cenário para vários filmes populares, como Mel à venda e Miss Jenkins vai à guerra.

“Terraços de treliça”, Dafi chamava o lugar.

Era onde a mãe de Brookie Harewood morava e tinha seu estúdio, embora eu não tivesse a mais pálida ideia de qual dos chalés era o dela.

Um ônibus verde de turismo estava estacionado na frente do The Bull, e seus passageiros se derramavam pela rua principal com câmeras engatilhadas, espalhando-se em todas as direções com suas armas dependuradas, como um ruidoso bando de pistoleiros.

Diversos aldeões idosos, pegos em seus jardins, principiaram a afofar os cabelos ou a endireitar as gravatas no mesmo instante em que os obturadores começaram a clicar.

Estacionei Gladys contra um velho olmo e dei a volta no ônibus.

-- Bom dia -- disse eu a uma senhora de chapéu de sol, como se fosse uma das organizadoras do chá. -- Seja bem-vinda a Malden Fenwick. De onde você vem?

-- Oh, Mel -- disse ela voltando-se para um homem às suas costas --, escute o sotaque dela! Não é adorável? Nós somos de Yonkers, Nova York, meu bem. Aposto que você não sabe onde fica.

Na verdade, eu sabia: Yonkers era o lar de Leo Baekeland, o químico belga que descobrira acidentalmente o polioxibenzimetilenglicolanhidrido -- mais conhecido como baquelite -- enquanto trabalhava para produzir um substituto sintético para a goma-laca, a qual, até Baekeland aparecer, era feita com as secreções do inseto cochonilha-da-laca.

-- Oh, sim -- eu disse. -- Acho que já ouvi falar em Yonkers.

Juntei-me a Mel, que estava armando sua câmera enquanto se afastava despreocupadamente na direção de um chalé caiado, arrastando atrás de si uma filha amuada, de corpo mole e olhos baixos, que parecia cheia até as guelras da viagem transatlântica.

Mudando meu peso de um pé para o outro, esperei que ele batesse um par de fotos de uma mulher de cabelos brancos que vestia roupas de tweed e estava precariamente encarapitada em uma escada, removendo as flores murchas de uma roseira trepadeira.

Quando Mel se afastou novamente à procura de mais lembranças, fiquei por um momento junto ao portão fingindo admirar o jardim e, então, como que despertando de um transe parcial, assumi o melhor sotaque americano que consegui.

-- Diga-me -- chamei a senhora, apontando para o parque da aldeia. -- Não é ali que mora a... Como se chama mesmo? A pintora?

-- Vanetta Harewood. Chalé da Gleba -- disse a mulher alegremente, acenando sua tesoura de podar. -- O último à direita.

Foi tão fácil que quase fiquei com vergonha de mim mesma.

Então, era este o nome dela: Vanetta. Vanetta Harewood. Certamente, combinava com alguém que pintava a nobreza, seus cães de caça e cavalos.

Intrometer-se com uma mãe recém-enlutada talvez não fosse uma atitude de muito bom gosto, mas havia coisas que eu precisava saber antes da polícia. Eu devia isso a Fenella Faa e, em menor grau, a minha própria família. Por que, por exemplo, eu encontrara o filho de Vanetta Harewood na sala de estar de Buckshaw no meio da noite, pouco antes de ele ser assassinado?

Eu não esperava que sua mãe soubesse a resposta, mas será que ela não poderia me fornecer algum fragmento de informação que me permitisse descobri-la por mim mesma?

Como disse a mulher com a tesoura de poda, o Chalé da Gleba era o último à direita. Tinha duas vezes o tamanho dos outros -- como se dois chalés houvessem sido forçados um contra o outro, extremidade com extremidade, como dominós, para formar um maior. Cada metade tinha sua própria porta da frente, sua própria janela com caixilhos de chumbo e sua própria chaminé; cada metade da casa era a imagem em espelho da outra.

Contudo, havia um único portão, e nele, uma pequena placa de latão na qual estava gravado: “Vanetta Harewood - Retratista”.

Minha cabeça voou para uma noite de primavera em que Dafi, durante um dos compulsórios saraus literários do pai, nos leu em voz alta excertos de A vida de Samuel Johnson, doutor em leis, e me lembrei de que Johnson declarou que pintar retratos era uma atividade imprópria para uma mulher. “A prática pública de qualquer arte, assim como olhar fixamente para o rosto de homens, é algo muito indelicado para uma mulher”, disse ele.

“Bem, eu vi o rosto do dr. Johnson no frontispício do livro e, por isso, não poderia imaginar qualquer pessoa, homem ou mulher, que quisesse ficar olhando para ele por algum espaço de tempo -- o homem era um verdadeiro sapo!"

Atrás do portão, o jardim do Chalé da Gleba era uma massa de azul elétrico: atrás das sálvias, os altos delfínios, em sua segunda floração, pareciam estar na ponta dos pés, desesperadamente tentando ser o primeiro a tocar o céu. Dogger me contou certa vez que, embora fosse possível fazer florescer os delfínios por uma segunda vez ao cortá-los próximo à raiz após a primeira floração, nenhum jardineiro honesto sequer sonharia em fazer isso, já que enfraquecia a linhagem.

Fosse o que fosse, Vanetta Harewood não era uma jardineira honesta.

Encostei o dedo no botão da campainha de porcelana e o cutuquei. Enquanto aguardava por alguma resposta, dei um passo para trás e olhei para o céu de um jeito interessado, franzindo os lábios como se estivesse assobiando despreocupada. Nunca se sabe: alguém poderia estar espiando atrás das cortinas -- era importante parecer inofensiva.

Aguardei -- e então apertei o botão de novo. Ouvi passos apressados dentro da casa, seguidos por um barulho rascante diretamente atrás da porta, como se alguém estivesse removendo uma barricada de móveis.

Quando a porta se abriu, eu quase gritei de susto. Diante de mim estava uma mulher musculosa, com calça de montaria e blusa lavanda. Seu cabelo curto e cinzento assentava-se apertado contra a cabeça, como um capacete de alumínio.

Ela prendeu um monóculo de tartaruga no olho e me encarou.

-- Sim?

-- Senhora Harewood?

-- Não -- disse ela e bateu a porta na minha cara.

Ora, pois!

Lembrei-me de uma observação que o pai fizera certa vez: se a rudeza não fosse atribuível à ignorância, poderia ser tomada como um sinal confiável de que a pessoa era um membro da aristocracia. Toquei a campainha de novo. Iria pedir informações.

Mas dessa vez a porta ficou fechada, e a casa permaneceu em silêncio.

Mas espere! O chalé tinha duas portas da frente. Eu simplesmente escolhera a porta errada.

Dei um piparote na cabeça e fui para a outra porta. Ergui a aldraba e dei uma batidinha delicada.

A porta se abriu instantaneamente, e lá estava a Senhora Calça de Montaria me olhando com toda a fúria que lhe cabia, embora dessa vez não através do monóculo.

-- Posso falar com a senhora Harewood? -- arrisquei. -- É sobre...

-- Não! -- bradou ela. -- Vá embora!

Mas, antes que ela pudesse bater a porta, uma voz veio de algum lugar dentro da casa.

-- Quem é, Ursula?

-- Uma menina vendendo alguma coisa -- gritou ela por cima do ombro, voltando para mim: -- Vá embora. Não queremos biscoito nenhum.

Vi minha oportunidade e aproveitei.

-- Senhora Harewood -- gritei. -- É a respeito de Brookie!

Foi como se eu tivesse lançado um feitiço e feito o tempo parar. Pelo que pareceu ser uma eternidade, a mulher à porta permaneceu perfeitamente imóvel, olhando para mim boquiaberta, como se fosse um recorte colorido em tamanho natural tirado de um livro de gravuras. Ela nem respirava.

-- Senhora Harewood! Por favor! É Flavia de Luce, de Bishop’s Lacey.

-- Mande-a entrar, Ursula -- disse a voz.

Quando passei roçando nela para entrar no corredor estreito, Ursula não mexeu um músculo.

-- Aqui -- disse a voz, e segui em sua direção.

Suponho que eu estivesse esperando encontrar uma decadente Miss Havisham agarrando-se aos seus tesouros bolorentos na caverna cortinada de sua sala de estar. O que encontrei foi algo totalmente diferente.

Vanetta Harewood estava em pé sob um raio de sol, junto à janela curva; ela se virou para estender as mãos para mim quando entrei.

-- Obrigada por vir -- disse ela.

Ela parecia ter uns quarenta e cinco anos. Mas certamente era mais velha. Como era possível que uma criatura tão bonita fosse mãe daquele vadio de meia-idade, Brookie Harewood?

Ela usava um elegante conjunto escuro com um lenço de seda oriental no pescoço e seus dedos resplandeciam de tão brilhantes.

-- Devo me desculpar por Ursula -- disse ela, colocando minha mão na sua -- mas ela é encarniçadamente protetora. Talvez demais.

Eu assenti calada.

-- Veja bem, em minha profissão a privacidade é suprema, e agora, com tudo isso...

Ela fez um gesto largo com as mãos para incluir o mundo inteiro.

-- Entendo -- disse eu. -- Sinto muito por Brookie.

Ela se virou, pegou um cigarro em uma caixa de prata, acendeu-o com um isqueiro de prata que poderia ter sido um modelo em escala da lâmpada de Aladim e soprou um longo jato de fumaça, que, por estranho que pareça, também era prateado à luz do sol.

-- Brookie era um bom menino -- disse ela --, mas não cresceu de modo a se tornar um bom homem. Ele tinha o dom fatal de fazer as pessoas acreditarem nele.

Eu não tive certeza do que ela queria dizer, mas assenti assim mesmo.

-- A vida dele não foi fácil -- disse ela pensativa. -- Não tão fácil como pode parecer. -- Então, muito subitamente: -- Agora, diga-me, por que você veio?

A pergunta me pegou de surpresa. Por que eu fora lá?

-- Oh, não fique envergonhada, criança. Se você veio aqui expressar suas condolências, já fez isso, e agradeço. Você pode ir, se quiser.

-- Brookie esteve em Buckshaw -- despejei. -- Encontrei-o na sala de estar, no meio da noite.

Eu poderia ter cortado fora minha língua! Não havia necessidade de a mãe dele saber disso -- nenhuma necessidade, menos ainda de que eu lhe contasse.

Mas parte de mim sabia que aquilo era seguro o bastante. Vanetta Harewood era uma mulher profissional. Ela não gostaria que as incursões de seu filho no meio da noite fossem trazidas à luz mais do que... do que eu mesma gostaria.

-- Vou lhe pedir um grande favor, Flavia. Diga isso à polícia, se tiver de fazê-lo, mas, se você achar que não é algo essencial...

Ela voltou à janela, onde ficou olhando para o passado.

-- Veja bem, Brookie tinha os seus... demônios, por assim dizer. Se não houver necessidade de tornar isso público, então...

-- Não vou contar a ninguém, senhora Harewood -- disse eu. -- Prometo.

Ela se voltou mais uma vez para mim e atravessou a sala lentamente.

-- Você é uma menina de inteligência notável, Flavia -- disse. Então, depois de pensar por alguns segundos, acrescentou: -- Venha comigo. Há uma coisa que quero lhe mostrar.

Descemos um degrau, depois subimos outro, e entramos na parte da casa em cuja porta eu havia batido primeiro. O teto baixo sustentado por vigas fez Vanetta se curvar duas vezes ao passarmos de sala em sala.

-- O estúdio de Ursula -- disse ela, apontando com a mão pa-ra um quarto que parecia cheio de gravetos e galhos. -- Cestaria -- explicou ela. -- Ursula é devotada aos ofícios tradicionais. Suas cestas de salgueiro ganharam prêmios, tanto aqui como em toda Europa. Para lhe dizer a verdade -- prosseguiu ela, baixando a voz a um sussurro confidencial --, o cheiro de seus preparados químicos às vezes me obriga a sair da casa, mas isso é tudo o que ela tem, pobrezinha.

Preparados químicos? Meus ouvidos se eriçaram como os de um velho cavalo de guerra ao som do clarim.

-- Principalmente enxofre -- disse ela. -- Ursula usa os fumos para alvejar os ramos mais novos. Eles acabam ficando tão brancos quanto ossos polidos, sabe, porém, ó Deus, o cheiro!

Pude prever que ficaria acordada até tarde me aprofundando nos livros do laboratório químico do tio Tar. Minha cabeça já havia disparado ao pensar nas possibilidades da salicina (C13H18O7) -- descoberta na casca dos salgueiros em 1831 por Leroux -- e do velho e bom enxofre (S). Eu sabia por experiência pessoal que certos amentos de salgueiro, se mantidos em uma caixa selada por várias semanas, liberam um odor dos mais horríveis, fato que eu arquivara para uso futuro.

-- Por aqui -- disse a sra. Harewood, esquivando-se para não bater a cabeça em uma viga especialmente baixa. -- Cuidado com a cabeça e olhe onde pisa.

O estúdio dela era um lugar glorioso. A clara luz do norte fluía para dentro pelas janelas angulosas que ficavam no alto, fazendo-o parecer uma sala com a qual eu tivesse me deparado no meio de uma clareira da floresta.

Um grande cavalete de pintor se destacava na luz, e sobre ele havia um retrato semiacabado de Flossie, a irmã de Sheila Foster, amiga de Felinha. Flossie aparecia sentada em uma grande poltrona estofada, uma perna enroscada embaixo de si, afagando um enorme gato persa branco que se aninhava em seu colo. O gato, ao menos, parecia quase humano.

Na verdade, Flossie também não parecia tão mal. Ela não era minha pessoa favorita entre os viventes, mas eu não implicava com ela. O retrato capturava perfeitamente, de um modo que nenhuma câmera poderia, seu ar de estupidez altamente refinada.

-- Bem, o que você acha?

Corri os olhos pelas bisnagas de tinta, pelos trapos manchados e pela profusão de pincéis de pelo de camelo que se projetavam por todos os lados de latas, vidros e garrafas, como juncos de dezembro em uma charneca.

-- É um estúdio excelente -- eu disse. -- Era isso que você queria me mostrar?

Apontei um dedo para o retrato de Flossie.

-- Céus, não! -- disse ela.

Eu não havia reparado antes, mas na extremidade do estúdio, longe das janelas, havia dois cantos sombrios em que uma dúzia, talvez, de pinturas sem moldura jazia inclinada com a frente voltada para a parede e a parte de trás, protegida com papel, virada para a sala.

Vanetta -- a essa altura, eu já estava pensando nela como “Vanetta”, e não como “sra. Harewood” -- inclinou-se sobre elas, passando-as como se folheasse cartões de registro gigantes em um arquivo de índice.

-- Ah! Aqui está -- disse ela afinal, puxando um gigantesco quadro dentre os outros.

Ainda de costas para mim, ele trouxe a pintura para o cavalete. Depois de mudar Flossie para uma cadeira próxima, virou-a e colocou-a no lugar.

Ela deu um passo para trás sem uma palavra, oferecendo-me uma visão desimpedida do retrato.

Meu coração congelou.

Era Harriet.

 

HARRIET. MINHA MÃE.

Ela está sentada junto à jardineira da sala de estar de Buckshaw. À sua direita, minha irmã Ophelia, com cerca de sete anos, brinca com uma cama de gato de lã vermelha, os fios enrolando-se em seus dedos como esbeltas serpentes escarlates. À esquerda de Harriet, minha outra irmã, Daphne, embora jovem demais para ler, usa um dedo indicador para marcar um lugar em um livro grande: Contos de fadas de Grimm.

Harriet olha ternamente para baixo, com um leve sorriso nos lábios, como uma madona, para o embrulho branco que sustenta na dobra do braço esquerdo: uma criança, um bebê vestido de branco, uma roupinha comprida de rendas etéreas e elaboradas -- seria um vestido de batizado?

Quero olhar para minha mãe, mas meus olhos são sempre atraídos de volta à criança.

É claro, sou eu.

-- Dez anos atrás -- Vanetta dizia --, eu fui a Buckshaw em um dia de inverno.

Ela agora estava atrás de mim.

-- Como me lembro bem! Houve uma geada destruidora durante a noite. Estava tudo coberto de gelo. Liguei para sua mãe e sugeri que deixássemos para outro dia, mas ela não quis nem ouvir. Estava saindo de viagem, disse-me, e queria o retrato como um presente para seu pai. Pretendia dar a ele de surpresa quando voltasse.

Minha cabeça estava girando.

-- É claro, isso nunca aconteceu -- acrescentou ela suavemente --, e, francamente, desde então não tive coragem de entregar o retrato a ele, o pobre homem. Ele sofre tanto!

Sofre? Embora eu nunca tenha pensado nisso precisamente dessa forma, era verdade. O pai sofria, mas só quando estava sozinho -- e quase sempre em silêncio.

-- A pintura, suponho, pertence a ele, já que sua mãe me pagou adiantado por ela. Era uma pessoa muito confiante.

“Era mesmo?", tive vontade de dizer. “Eu não poderia saber. Não a conheci tão bem quanto você."

De repente, senti necessidade de sair daquele lugar -- de estar do lado de fora novamente, onde poderia respirar meu próprio hálito.

-- Acho melhor você ficar com ela, senhora Harewood. Pelo menos por enquanto. Eu não gostaria de deixar o pai perturbado.

“Espere!", pensei. Minha vida inteira havia sido dedicada a perturbar o pai -- ou, ao menos, a ir contra os desejos dele. Por que eu estava agora tomada por um súbito desejo de confortá-lo e fazer que me abraçasse?

Não que eu fosse fazer isso, é claro, porque, na vida real, nós De Luce não fazemos esse tipo de coisa.

Mas, ainda assim, uma parte misteriosa do universo havia mudado, como se a Terra começasse a girar para o lado contrário.

-- Preciso ir agora -- eu disse, recuando, por alguma razão, em direção à porta. -- Sinto muito por Brookie. Sei que ele tinha muitos amigos em Bishop’s Lacey.

Na verdade, eu não sabia nada disso! Por que estava dizendo isso? Era como se a minha boca estivesse possuída e eu não pudesse interromper o fluxo de palavras.

Tudo o que eu realmente sabia sobre Brookie Harewood se resumia ao fato de ele ser um caçador ilegal e um mandrião -- e de eu tê-lo surpreendido em sua ronda da meia-noite. Isso e a sua alegação de que vira a Dama Cinzenta de Buckshaw.

-- Adeus, então -- eu disse.

Quando entrei no corredor, Ursula se virou rapidamente e escapuliu para fora de minha vista com uma cesta de vime na mão. Mas não tão rapidamente que me fizesse perder a olhada de puro ódio que disparou a mim.


Enquanto pedalava para oeste, rumo a Bishop’s Lacey, pensei no que vira. Eu fora a Malden Fenwick à procura de pistas sobre o comportamento de Brookie Harewood -- certamente, foi ele quem atacou Fenella Faa nas Paliçadas; quem mais poderia ter estado no terreno de Buckshaw naquela noite? Mas, em vez disso, eu saíra com uma nova imagem de Harriet, minha mãe: uma imagem que não era tão alegre como poderia ter sido.

Por que, por exemplo, me atormentava tanto o coração ver Felinha e Dafi como duas lesmas satisfeitas, despreocupadas, aquecendo-se no calor dela, enquanto eu restava desamparada, enrolada como uma pequena múmia em um pano branco, tão desimportante quanto um pacote do açougueiro?

Harriet me amava? Minhas irmãs sempre alegavam que não: que, de fato, ela me desprezava; que entrou em depressão profunda depois que nasci -- uma depressão que, talvez, tivesse resultado em sua morte.

No entanto, na pintura, a qual deve ter sido feita pouco antes de ela partir para sua jornada final, não havia nenhum sinal de infelicidade. Os olhos de Harriet estavam dirigidos a mim, e a expressão de seu rosto mostrava, no mínimo, um pouco de divertimento.

Alguma coisa no retrato me incomodava: alguma coisa meio esquecida, que tentou emergir enquanto eu olhava para o cavalete no estúdio de Vanetta Harewood. Mas o que era?

Por mais que tentasse, não conseguia atinar.

“Relaxe, Flavia”, pensei. “Acalme-se. Pense em outra coisa."

Eu descobri muito tempo atrás que, quando uma palavra ou uma fórmula se recusa a vir à mente, o melhor é pensar em outra coisa: tigres, por exemplo, ou mingau de aveia. Então, quando a palavra fugitiva menos espera, eu subitamente volto a labareda total de minha atenção para ela outra vez, pegando a culpada no facho de minha tocha mental antes que ela possa se evadir novamente para dentro das trevas. “Emboscada mental”, é como chamo essa técnica, e tenho orgulho de mim mesma por tê-la inventado.

Deixei minha cabeça divagar para longe, na direção dos tigres, e o primeiro que me veio foi o tigre do poema de William Blake: aquele que ardeu com assustadora simetria nas florestas da noite. Uma vez, quando eu era mais nova, Dafi me levou à histeria: ela se envolveu em uma pele de tigre que havia no museu de armas de fogo de Buckshaw e entrou sorrateiramente em meu quarto, no meio da noite, recitando o poema em um rosnado profundo e assustador: “Tigre, tigre, ardendo fulgurante...". Dafi nunca me perdoou por atirar o despertador nela. Ainda tem a cicatriz no queixo.

Então, pensei em mingau de aveia: no inverno, grandes conchas daquela coisa cinzenta, parecida com lava de um vulcão lunar. A sra. Mullet, seguindo ordens do pai...

A sra. Mullet! É claro!

Era algo que ela me dissera quando perguntei sobre Brookie Harewood. “A mãe dele é aquela dama que vive pintando em Malden Fenwick. Quem sabe ela possa até pintar você algum dia”, acrescentou a sra. M. “Quando chegar sua vez."

O que significava que a sra. M sabia do retrato de Harriet! Ela deveria ter estado presente em uma das ocasiões secretas em que Harriet posou.

-- Tigre! -- gritei. -- Ti-gre!

Minhas palavras repercutiram nas cercas vivas de ambos os lados do caminho estreito e ecoaram. Alguma coisa passou correndo a minha frente em busca de abrigo.

Um animal, talvez? Um cervo? Não, não um animal -- um humano.

Era Porcelana. Eu estava certa disso. Ela ainda trajava o vestido de crepe preto de Fenella.

Fiz Gladys parar derrapando.

-- Porcelana? -- chamei. -- É você?

Não houve resposta.

-- Porcelana? Sou eu, Flavia.

Foi uma coisa boba de se dizer. Porcelana se escondeu na cerca viva porque era eu. Mas qual a razão?

Embora eu não pudesse vê-la, sabia que ela estava perto o bastante para tocá-la. Podia sentir seus olhos em mim.

-- Porcelana? O que foi? Qual é o problema?

O silêncio sombrio se estendeu. Foi como estar em uma sessão espírita, à espera de que o cursor se movesse no tabuleiro Ouija.

-- Está bem -- eu disse afinal. -- Leve o tempo que quiser. Estou me sentando e não vou me mexer até você aparecer.

Houve outra longa espera. Então, os arbustos farfalharam, e Porcelana surgiu no caminho. Sua expressão sugeria que estava a caminho da guilhotina.

-- Qual é o problema? -- perguntei. -- O que aconteceu?

Dei um passo em sua direção, e ela se afastou, mantendo uma distância segura entre nós.

-- A polícia me levou para ver Fenella -- disse ela tremendo. -- No hospital.

“Oh, não!", pensei. “Ela morreu. Espero que não seja isso."

-- Sinto muito -- disse eu, dando mais um passo. Porcelana recuou, erguendo as mãos como para se defender.

-- Sente muito? -- disse ela com uma voz estranha. -- Pelo quê? Não! Fique onde está!

-- Sinto muito por tudo o que aconteceu com Fenella. Eu fiz tudo o que podia para ajudá-la.

-- Pelo amor de Deus, Flavia -- gritou Porcelana --, pare com isso! Com os diabos, você tentou matá-la, e sabe que tentou. E agora quer me matar!

Suas palavras me atingiram como uma bordoada, deixando-me completamente sem fôlego. Eu não conseguia respirar; minha cabeça girava, minha mente girava, e um zunido reverberava em minha cabeça como uma nuvem de gafanhotos.

-- Eu...

Mas não adiantou. Eu não conseguia falar.

-- Fenella me contou tudo. Você e sua família nos odeiam há anos. Seu pai expulsou Fenella e Johnny Faa de sua propriedade, e foi por isso que Johnny morreu. Você a levou de volta ao seu antigo local de acampamento para que pudesse terminar o trabalho, e quase conseguiu, não foi?

-- Isso é insano -- consegui dizer. -- Por que eu quereria...

-- Você era a única que sabia que ela estava acampada lá.

-- Olhe, Porcelana -- disse eu --, sei que você está perturbada. Entendo isso. Mas, se eu quisesse matar Fenella, por que me daria ao trabalho de buscar o doutor Darby? Por que simplesmente não a deixara morrer?

-- Eu... eu não sei. Agora você está me confundindo. Talvez você quisesse uma desculpa... para o caso de não ter conseguido matá-la.

-- Se eu quisesse matá-la, teria matado -- disse eu, exasperada. -- Teria insistido até terminar. Não teria feito uma trapalhada. Você entende?

Os olhos dela se arregalaram, mas pude perceber que eu provara meu ponto.

-- Quanto a ser a única pessoa por perto naquela noite, o que você me diz de Brookie Harewood? Ele estava perambulando por Buckshaw... Eu o peguei em nossa sala de estar. Você acha que fui eu quem o matou? Você acha que alguém que pesa pouco mais de trinta quilos assassinou Brookie, que provavelmente pesava mais de oitenta, e o pendurou como roupa recém-lavada no tridente do Posêidon?

-- Bem...

-- Ora, pare com isso, Porcelana! Eu não acho que Fenella tenha visto seu atacante. Se tivesse, não teria posto a culpa em mim. Ela está gravemente ferida e confusa. Está deixando sua mente preencher os espaços vazios.

Porcelana ficou ali parada no caminho olhando-me como se eu fosse uma naja que saíra do cesto de um encantador de serpentes e subitamente começara a falar.

-- Venha -- eu disse, preparando Gladys para partir. -- Pule na garupa. Vamos voltar a Buckshaw e achar alguma coisa para comer.

-- Não -- disse ela. -- Vou voltar para o carroção.

-- Não é seguro -- disse eu. Se apresentasse os fatos sórdidos sem disfarce, talvez eu pudesse mudar a cabeça dela. -- Quem quer que tenha esmagado o crânio de Fenella e enfiado um garfo de lagosta no nariz de Brookie ainda está vagando por aí. Vamos.

-- Não -- disse ela. -- Eu já disse, vou voltar para o carroção.

-- Por quê? Está com medo de mim?

A resposta veio depressa demais para meu gosto:

-- Sim -- disse ela. -- Estou.

-- Então, tudo bem -- eu disse suavemente. -- Seja uma tola. Não me importo.

Pus um pé no pedal e me preparei para partir.

-- Flavia...

Virei-me e olhei para ela por cima do ombro.

“Maravilha”, pensei. “Simplesmente maravilha."


Alguém disse certa vez que a música tem encantos capazes de seduzir uma bresta selvagem -- ou seria “besta” selvagem? Dafi saberia; mas, como eu não estava falando com ela, dificilmente poderia perguntar.

Para mim, a música não era nem de perto tão relaxante como uma vingança. Em meu modo de pensar, o acerto de contas tinha um efeito calmante sobre a mente que batia a música por uma milha galesa.

O encontro com Porcelana me deixou respirando pesadamente pelo nariz, como um javali acuado, e eu precisava de tempo para me acalmar.

Adentrar em meu laboratório foi como chegar ao santuário de uma igreja silenciosa: as fileiras de produtos químicos engarrafados eram os meus vitrais; a bancada química, o meu altar. A química tem mais deuses que o monte Olimpo, e aqui, na minha solidão, eu podia rezar em paz para os maiores deles: Joseph Louis Gay-Lussac -- este, tendo se deparado em um armarinho com uma jovem assistente que lia sub-repticiamente um texto de química que ela escondera embaixo do balcão, imediatamente descartou sua noiva e casou-se com a moça --; William Perkin -- que encontrou um meio de fazer tintura roxa para os mantos dos imperadores sem a necessidade de usar a saliva de moluscos --; e Carl Wilhelm Scheele -- que provavelmente descobriu o oxigênio e, mais emocionante ainda, o ácido cianídrico, a última palavra em venenos, para mim.

Comecei a lavar as mãos. Eu sempre fazia isso de um modo ritualístico, mas, hoje, elas precisavam ficar secas.

Trouxera comigo ao laboratório um objeto que normalmente ficava afivelado ao selim de Gladys. Ela veio plenamente equipada de fábrica, inclusive com um kit para conserto de pneus, e foi essa caixa de lata que continha o nome dos senhores Dunlop na tampa que depositei sobre minha bancada.

Mas, primeiro, fechei os olhos e foquei o objeto de minhas atenções: minha amada irmã, Ophelia Gertrude de Luce, cuja missão na vida era reviver a Inquisição Espanhola tendo a mim como sua única vítima. Com a conivência de Dafi, a mais recente tortura por que me fizeram passar no subterrâneo fora a última gota. Agora, o terrível relógio da vingança estava prestes a atacar!

A grande fraqueza de Felinha era o espelho: quando se tratava de vaidade, minha irmã fazia Becky Sharp parecer uma das Irmãs da Santa Humildade de Maria -- ordem com cujas integrantes ela sempre me comparava (desfavoravelmente, posso acrescentar).

Ela era capaz de se examinar durante horas no espelho, sacudindo os cabelos, mostrando os dentes, lidando com as espinhas e puxando os cantos das pálpebras, encorajando-as a cair aristocraticamente como as do pai.

Mesmo na igreja e já emperiquitada com a última moda, Felinha consultava o espelhinho que escondia dentro dos Hinos antigos e modernos e ficava de olho em sua epiderme enquanto fingia refrescar a memória com as palavras do “Hino 573: Todas as coisas radiantes e lindas”.

Ela também era uma esnobe religiosa. Para Felinha, o serviço matinal da igreja era um drama, e ela era a estrela pia. Sempre disparava como um bólido, a fim de ser a primeira junto ao altar, para que, ao voltar a nosso banco, pudesse ser vista com seu olhar humilde para baixo e seus longos dedos brancos na cintura pelo maior número possível de frequentadores da igreja.

Foram esses os fatos que passaram pela minha mente quando planejei o próximo lance, e agora chegara o momento.

Com a pequena Bíblia branca que a sra. Mullet me dera no dia de meu crisma em uma das mãos e com o kit de reparo de pneus na outra, fui até o quarto de Felinha.

Não foi tão difícil quanto pode parecer. Seguindo por um labirinto de corredores escuros e empoeirados e me atendo ao andar superior, consegui passar da ala leste de Buckshaw para a ala oeste, passando por diversos quartos abandonados, os quais não eram usados desde que a Rainha Vitória delicadamente se recusara a visitá-los, nos últimos anos de seu reinado. Ela observara a seu secretário particular, Sir Henry Ponsonby, que “não conseguia encontrar ar suficiente para respirar em um espaço tão exíguo”.

Agora, atrás das portas almofadadas, aqueles recintos eram como morgues de móveis, habitadas por estrados de cama cobertos por lençóis, cômodas e cadeiras que, pela secura de seus ossos, ficaram conhecidas por às vezes produzirem ruídos alarmantes no meio da noite.

No entanto, tudo esteve quieto enquanto eu passei pelas últimas câmaras abandonadas, até chegar à porta que se abria para a ala oeste. Encostei o ouvido no feltro verde, mas só havia silêncio do outro lado. Abri a porta em fresta e espiei por meio dela o corredor.

Nada outra vez. O lugar era como uma tumba.

Sorri quando os acordes de Jesus, alegria dos homens, de Bach, vieram flutuando pela escada oeste: Felinha estava ocupada com suas práticas na sala de estar. Eu sabia que meu trabalho não seria perturbado.

Entrei no quarto dela e fechei a porta.

O quarto não me era totalmente desconhecido, já que eu vinha aqui frequentemente para surrupiar chocolates e dar uma boa vasculhada nas gavetas. Na disposição, era muito parecido com o meu: um velho celeiro de lugar, com teto e janelas altos; um lugar que parecia mais adequado para se estacionar um aeroplano do que para uma pessoa estacionar sua carcaça para uma boa noite de sono.

A maior diferença entre esse quarto e o meu era que no de Felinha não havia papel úmido pendendo das paredes e do teto, os quais, em meu quarto, se enchiam de água fria durante as tempestades e pingavam, transformando meus cobertores em pântanos encharcados. Nessas ocasiões, eu era forçada a abandonar minha cama e, enrolada na camisola, passar a noite em uma bérgere fedendo a rato que ficava em um canto do quarto.

O quarto de Felinha, em comparação, era como algo saído do cinema. As paredes eram recobertas por um delicado padrão floral (rosas musgosas, eu acho), e as janelas altas eram emolduradas por metros de renda.

A cama de quatro colunas e cortinas bordadas parecia pequena no quarto; ficava em um canto, quase imperceptível.

À esquerda das janelas, em lugar de honra, havia uma cômoda Queen Anne especialmente fina, cujas pernas curvas eram tão esbeltas e delicadas quanto as pernas das bailarinas de Degas. Acima dela, na parede, estava afixado um monstruoso espelho de moldura escura, exageradamente grande para as pernas graciosas abaixo. O efeito daquilo lembrava muito Humpty Dumpty: uma cabeça obscenamente grande e pernas de leprechaun.

Usei a escova de cabelo de Felinha para manter a Bíblia aberta sobre a cômoda. Do kit para reparo de pneus, extraí uma lata de silicato de hidróxido de magnésio ou, como é mais conhecido, talco francês. A substância servia para impedir que uma câmara de ar recém-consertada aderisse ao interior do pneu de borracha, mas não era essa a aplicação que eu tinha em mente.

Mergulhei um de seus pincéis de maquiagem de pelo de camelo no talco francês e, após dar uma última olhada na Bíblia como referência, escrevi, em letras bem nítidas, uma breve mensagem na superfície do espelho: “Deuteronômio 28:27”.

Isso feito, tirei um lenço do bolso e apaguei gentilmente as palavras que escrevera. Soprei o excesso de talco que havia caído em cima da cômoda e limpei os poucos resíduos que caíram no chão.

Pronto! O resto do plano estava garantido. Ele se desnovelaria de acordo com as inexoráveis leis da química, sem que eu tivesse de erguer um dedo sequer.

Da próxima vez que Felinha parasse na frente do espelho e se inclinasse para ver mais de perto seu couro feio, a umidade de seu hálito morno tornaria visíveis as palavras que eu escrevera no vidro. A mensagem saltaria conspicuamente à vista: “Deuteronômio 28:27”.

Felinha ficaria aterrorizada. Ela correria para verificar a passagem na Bíblia. Na verdade, pode ser que não: como tinha a ver com aparência pessoal, ela poderia ter o versículo já decorado. Mas, se tivesse de procurá-lo, encontraria isto: “O Senhor te ferirá com as úlceras do Egito, e com as emeroides, e com o escorbuto e com a coceira, de que não possas curar-te”.

E se as úlceras não fossem suficientemente ruins, “emeroides” eram hemorroidas, o perfeito toque adicional, pensei.

E, se eu conhecia minha irmã, ela não seria capaz de resistir a ler o restante da passagem: “O Senhor te ferirá com loucura, e com cegueira, e com pasmo de coração; Tatearás ao meio-dia como o cego apalpa nas trevas, e não prosperarás em teus caminhos; e serás oprimido e roubado todos os dias, e não haverá quem te salve”.

Felinha jogaria a marmelada para o alto de tanto susto!

Ao ver a mensagem se materializar diante dos olhos, ela acreditaria ser um telegrama de Deus e, por Satanás, se arrependeria, e como!

Eu podia ver agora: ela se atiraria no chão e rastejaria no tapete, implorando perdão pelo modo nojento como tratara sua irmãzinha. Mais tarde, apareceria à mesa do jantar aterrorizada, macilenta e chocada, a ponto de perder a fala.

Dei risada enquanto descia a escada aos pulos. Mal podia esperar.

Ao pé da escada, no foyer, estava o Inspetor Hewitt.

 

O INSPETOR NÃO PARECIA FELIZ. Dogger, que acabara de deixá-lo entrar, fechou a porta silenciosamente e desapareceu, como costuma fazer.

-- Você deveria pensar em abrir uma delegacia auxiliar aqui em Buckshaw -- eu disse afavelmente, tentando alegrá-lo. -- Certamente economizaria gasolina.

O inspetor não achou engraçado.

-- Vamos ter uma conversinha -- disse ele, e tive a impressão de que não estava propriamente tentando me deixar à vontade.

-- É claro, estou a sua disposição.

Eu era capaz de ser amável quando queria.

-- Sobre a sua descoberta na fonte... -- começou ele.

-- Brookie Harewood, você quer dizer? Sim, aquilo foi horrível, não foi?

O inspetor pareceu perplexo. Droga! Dez segundos após o começo do jogo, e eu já dera um sério passo em falso.

-- Então, você o conhece?

-- Ora, todo mundo conhece Brookie -- disse eu, me recuperando depressa. -- Ele é um dos personagens da aldeia. Pelo menos, era.

-- Alguém que você conhecia?

-- Eu já o vi por aí. Aqui e ali, você sabe. Na aldeia. Esse tipo de coisa.

Eu estava passando uma costura invisível entre a verdade e a inverdade, uma habilidade da qual me orgulhava especialmente. Uma das manhas ao fazer isso é oferecer voluntariamente alguma informação nova antes que seu interrogador tenha tempo de perguntar sobre outra. Então, prossegui:

-- Veja bem, eu havia voltado às Paliçadas, porque estava preocupada com Gry. Gry é o nome do cavalo da cigana. Eu que- ria ter certeza de que ele tinha comida.

Aquilo não era inteiramente verdade: Gry sobreviveria na clareira por semanas mordiscando capim. Mas motivos nobres nunca podem ser questionados.

-- Muito louvável -- disse o Inspetor Hewitt. -- Mas eu já tinha pedido ao Policial Linnet para botar algo lá.

Tive uma rápida visão do Policial Linnet pondo um ovo na palha, mas excluí o pensamento da cabeça para não sorrir.

-- Sim, notei isso quando estive lá -- disse eu. -- E, é claro, conheci Porcelana. Ela me disse que você a localizou em Londres.

Enquanto eu falava, o inspetor sacou um caderno, abriu-o e começou a escrever nele. Era melhor eu tomar cuidado.

-- Não achei que ela estivesse segura no carroção. Não quando a pessoa que atacou sua avó poderia estar vagando por perto. Insisti para que ela voltasse comigo a Buckshaw, e estávamos a caminho quando nos deparamos com o corpo.

Eu não disse “o corpo de Brookie”, porque não queria fazer parecer que tinha intimidade com ele, o que só poderia levar a mais perguntas sobre nossa familiaridade.

-- A que horas foi isso?

-- Oh, vejamos... Você esteve aqui quando acordei, por volta da hora do desjejum... Eram cerca de nove e meia, eu diria.

O inspetor voltou algumas páginas em seu caderno e assentiu. Eu estava no caminho certo.

-- Logo a seguir, o Sargento Graves veio tirar minhas impressões digitais... Dez e meia, talvez onze? De qualquer modo, o Policial Linnet poderá dizer a que horas eu liguei para relatar o crime. Não pode ter sido muito mais do que dez ou quinze minutos depois que descobrimos o corpo na fonte.

Eu estava protelando -- mantendo a cabeça acima da água, adiando o momento em que ele inevitavelmente perguntaria sobre o meu “ataque” contra Fenella. Decidi aproveitar a brecha.

-- Porcelana acha que eu ataquei a avó dela -- disse eu sem rodeios.

O Inspetor Hewitt assentiu.

-- A senhora Faa está muito desorientada. Isso acontece frequentemente quando há ferimentos na cabeça. Deixei isso muito claro para a neta dela, mas talvez fosse melhor eu ter mais uma palavrinha...

-- Não! -- disse eu. -- Não faça isso. Não tem importância.

O inspetor olhou para mim intensamente, depois fez mais uma anotação no caderno.

-- Você está pondo mais um “P” ao lado de meu nome?

Era uma pergunta atrevida, e me arrependi assim que a fiz. Uma vez, durante uma investigação anterior, eu o vi escrever um pê maiúsculo ao lado de meu nome. Irritantemente, ele se recusou a me dizer o que significava.

-- Não é de bom-tom perguntar -- disse ele com um sorrisinho. -- Nunca se deve perguntar a um policial sobre os seus...

-- Por que não?

-- Pela mesma razão por que não pergunto a você sobre os seus segredos.

Como eu adorava esse homem! Aqui estávamos nós, ambos envolvidos em um jogo mental de xadrez e sabendo que um de nós estava trapaceando.

Arriscando-me a parecer repetitiva: como eu adorava esse homem!


E acabou aí. Ele me fez algumas outras perguntas: se eu tinha visto mais alguém por perto, se eu ouvira o som de um veículo motorizado, e assim por diante. E, então, se foi.

A certa altura, tive vontade de lhe contar mais, apenas para prolongar o prazer de sua companhia. Ele teria ficado empolgado ao saber, por exemplo, que eu pegara Brookie rondando nossa sala de estar, para não falar de minhas visitas à srta. Mountjoy e às acomodações de Brookie. Eu poderia até ter lhe confidenciado sobre o que descobrira na casa de Vanetta Harewood, em Malden Fenwick.

Mas não fiz isso.

Enquanto eu refletia no foyer, o leve rangido de um sapato sobre ladrilhos chamou minha atenção, e olhei para cima, descobrindo Felinha no patamar do primeiro andar, olhando para baixo. Ela estivera lá o tempo todo!

-- A pequena Senhorita Prestimosa -- escarneceu ela. -- Acho você tão esperta!

Pude ver por sua atitude que ela ainda não havia consultado o espelho do quarto.

-- A gente tenta ser útil -- eu disse, limpando displicentemente algumas manchinhas de talco francês do vestido.

-- Você pensa que ele gosta de você, não é? Você pensa que uma porção de gente gosta, mas não é assim. Não mesmo. É uma pena que você não consiga enxergar isso.

Amplificada pelos painéis do foyer, a voz dela chegou reverberando desde os querubins do teto. Me senti como se eu fosse uma ré no tribunal, e ela, minha acusadora.

Como sempre acontecia quando uma de minhas irmãs se voltava contra mim, senti um estranho aperto no peito, como se alguma criatura de um pântano antigo estivesse tentando sair de minhas entranhas rastejando. Era uma sensação que nunca pude entender, algo que estava além da razão. O que eu fizera para que elas me detestassem tanto?

-- Por que você não vai torturar Bach? -- joguei de volta a ela, mas meu coração não estava realmente envolvido.


Depois de uma briga em família, eu sempre ficava surpresa ao descobrir que o mundo lá fora continuava o mesmo. Enquanto as paixões e os sentimentos que se acumulam como gases tóxicos dentro de uma casa parecem se condensar e aderir às paredes e ao teto como fumaça velha; o exterior é diferente. A paisagem parece incapaz de acumular radiação humana. Talvez o vento sopre a cólera para longe.

Pensei nisso enquanto me arrastava para o Campo de Trafalgar. E se Porcelana decidisse continuar acreditando que era eu o monstro que esmagara o crânio da avó dela com... com o quê?

Quando eu encontrei Fenella caída no chão do carroção, o interior dele estava, a não ser pelo sangue, absolutamente limpo: nenhuma arma ensanguentada jogada no chão pelo atacante; nenhum pau, nenhuma pedra, nenhum atiçador. O que parecia estranho.

A não ser que a arma tivesse algum valor, por que o culpado a levaria embora?

Ou teria sido descartada? Eu não vira nada que sugerisse isso.

Certamente, a polícia vasculhara as Paliçadas com um microscópio à procura de uma arma. Mas teria achado alguma?

Parei por um momento e ergui os olhos para a fonte de Posêidon. O velho Netuno, como o chamavam os romanos, todo músculos e ventre, olhava despreocupado à distância, como alguém que tivesse soltado um pum em um banquete e tentasse fingir não ser o culpado.

Seu tridente ainda se erguia como um cetro (afinal, ele era o deus dos mares), e suas redes jaziam emaranhadas a seus pés. Não havia sinal de Brookie Harewood. Era difícil acreditar que, apenas horas antes, Brookie estivesse pendurado morto ali -- seu corpo, uma grotesca adição à escultura.

Mas por quê? Por que seu assassino se daria ao trabalho de içar um cadáver a uma posição tão difícil? Poderia ser uma mensagem -- um equivalente bizarro da sinalização naval por bandeiras, por exemplo?

O pouco que eu sabia sobre Posêidon aprendi na Mitologia de Bullfinch, em um exemplar que constava na biblioteca de Buckshaw. Era um dos livros favoritos de Dafi; mas, como não havia nada nele sobre química ou venenos, realmente não tinha interesse para mim.

Dizia-se que Posêidon dominava as águas; portanto, era bem fácil entender por que fora ele o escolhido para adornar uma fonte. As únicas outras águas nas proximidades desse Posêidon em particular eram o rio Efon, nas Paliçadas, e o lago ornamental de Buckshaw.

O modo como Brookie fora dependurado no tridente se assemelhava muito à maneira como o picanço empala um pássaro canoro em um espinho, para usá-lo posteriormente -- embora parecesse improvável, achava eu, que o assassino de Brookie planejasse comê-lo depois.

Então, seria um aviso? E se fosse, a quem se destinava?

Eu precisava de algumas horas sozinha com meu caderno, mas agora não era o momento. Tinha de lidar com Porcelana.

Ainda não havia terminado com Porcelana. Como sinal de boa vontade, eu não me deteria por seu comportamento infantil -- nem ficaria ofendida. Eu a perdoaria, quer ela gostasse ou não.

Não vou alegar que Gry tenha ficado feliz ao me ver chegar às Paliçadas, embora ele tenha tirado os olhos do pasto por um momento. Um fardo de feno fresco espalhado por perto me disse que o Policial Linnet estava de serviço, mas Gry parecia preferir a salada verde de ervas que cresciam à margem do rio.

-- Olá! -- gritei na direção do carroção, mas não houve resposta. O delicado instrumento que era minha nuca me contou que, ademais, a clareira estava deserta.

Não me lembro de Porcelana ter trancado o carroção quando saímos juntas, mas agora ele estava trancado. Ou ela retornara e achara a chave ou outra pessoa fizera isso.

Com certeza alguém estivera aqui e, se eu podia acreditar em meu nariz, muito recentemente.

Aquecida pelo sol, a porta de madeira liberava um odor que não pertencia ao lugar. Como teria feito no laboratório, usei as mãos em concha para levar o ar até as narinas.

Não havia dúvida: um odor nítido permanecia perto da porta do carroção -- um odor que, com toda a certeza, não havia no lado de fora do carroção antes: um cheiro de peixe.

O cheiro do mar.

 

-- VOCÊ ESTÁ NA FRENTE DE MINHA LUz -- disse dafi.

Eu me plantara intencionalmente entre seu livro e a janela.

Não iria ser fácil pedir a assistência de minha irmã. Respirei fundo.

-- Preciso de um pouco de ajuda.

-- Pobre Flavia!

-- Por favor, Dafi -- disse eu, desprezando a mim mesma por implorar. -- É sobre aquele homem cujo corpo encontrei na fonte.

Dafi jogou o livro para baixo exasperadamente.

-- Por que me arrastar para dentro dos seus joguinhos sórdidos? Você sabe muito bem o quanto eles me perturbam.

Perturbam-na? Dafi? Jogos?

-- Pensei que você adorasse crimes! -- disse eu, apontando para o livro dela. Era uma coleção de mistérios do Padre Brown, por G. K. Chesterton.

-- É verdade -- disse ela --, mas não na vida real. As palhaçadas em que você se mete me viram o estômago.

Isso era novidade para mim. Arquivaria para uso futuro.

-- E o pai está quase tão mal quanto você -- acrescentou ela. -- Você sabe o que ele disse no desjejum ontem, antes de você descer? “Flavia encontrou mais um corpo." Quase como se estivesse orgulhoso de você.

“O pai dissera isso? Eu mal pude acreditar."

As revelações vinham depressa, e aos montes! Eu deveria ter pensado em falar com Dafi antes.

-- É verdade -- disse eu. -- Encontrei. Mas vou poupá-la dos detalhes.

-- Obrigada -- disse Dafi mansamente, e achei que ela estava sendo realmente sincera.

-- Posêidon -- eu disse, aproveitando-me de seu relaxamento parcial. -- O que você sabe sobre Posêidon?

Aquilo foi como lançar um desafio. Dafi sabia tudo sobre tudo, e eu sabia que ela não resistiria à tentação de demonstrar seu fantástico poder de memória.

-- Posêidon? Ele era um grosso -- disse ela. -- Um intimidador e um grosso. Ele também era um mulherengo.

-- Como um deus pode ser um grosso?

Dafi ignorou minha pergunta.

-- Ele era o que chamaríamos hoje em dia de “santo padroeiro dos marinheiros”, e com boas razões.

-- Quais?

-- Que ele não era melhor do que deveria ser. E agora dê o fora.

Normalmente, eu me sentiria agravada por ter sido dispensada de modo tão arrogante -- adoro essa palavra, “agravada”; ela aparece em David Copperfield quando a tia de David, Betsey Trotwood, se sente agravada por ele ter nascido --, mas não me senti; em vez disso, tive um estranho sentimento de gratidão para com minha irmã.

-- Obrigada, Dafi! -- eu disse. -- Eu sabia que poderia contar com você.

Aquilo foi um pouco exagerado, mas eu estava honestamente contente. E, acho, Dafi, também. Quando ela pegou novamente o livro, vi que os cantos de sua boca estavam curvados para cima, mais ou menos na medida da espessura daquelas páginas.


Parte de mim esperava encontrar Porcelana em meu quarto, mas ela havia partido, claro. Eu quase esquecera que ela me acusara de tentativa de assassinato.

Eu começaria por ela. Escrevi em meu caderno:


Porcelana - Não pode ser a atacante da própria avó, pois estava em Londres na época do ataque. Será que estava mesmo? A palavra dela é tudo o que tenho. Mas por que se sentiu compelida a lavar suas roupas?

Brookie Harewood - Foi provavelmente morto pela mesma pessoa que atacara Fenella. Ou não? Será que Brookie atacou Fenella? Ele estava na cena do crime quando este ocorreu.

Vanetta Harewood - Por que iria matar o próprio filho? Ela pagava a ele para que ficasse longe dela.

Ursula ? - Não sei o sobrenome dela. Ela lida com alvejantes e ramos de salgueiro, e Vanetta Harewood disse que é encarniçadamente protetora. Motivo?

Colin Prout - Foi intimidado por Brookie; mas o que Colin poderia ter contra Fenella?

Sra. Bull - Ameaçou Fenella com um machado; alegou que ela fora vista na vizinhança quando o bebê Bull desapareceu, anos atrás.

Hilda Muir - Seja lá quem for, Fenella mencionou seu nome duas vezes: primeiro, quando vimos o garoto Bull encarapitado em uma árvore na Ravina, e, depois, quando eu cortei os ramos de sabugueiro nas Paliçadas. “Agora, estamos todos mortos!", gritou Fenella. Seria Hilda Muir a sua atacante?

Srta. Mountjoy - Era a senhorita de Brookie. Mas por que iria querer matá-lo? O roubo de um único prato antigo dificilmente seria razão suficiente.


Tracei uma linha e, abaixo dela, escrevi:


Família

Pai - Muito improvável (embora ele tivesse expulsado Fenella e Johnny Faa da propriedade de Buckshaw uma vez).

Felinha, Dafi, Dogger e Sra. Mullet - Sem motivos para qualquer um dos crimes.


Mas espere! E aquela figura misteriosa cuja sorte Fenella lera na quermesse da igreja? O que foi que ela disse a respeito? “Uma espécie de nuvem de tempestade, era ela." Quase consegui ouvir sua voz. “Eu lhe disse que havia alguma coisa enterrada em seu passado; disse que essa coisa queria ser desenterrada, queria acertar tudo."

Será que Fenella teria visto alguma coisa na bola de cristal que selara o destino da moça? Embora eu me lembrasse de que Dafi fazia pouco de videntes (“charlatães”, ela os chamava), nem todo mundo compartilhava dessa opinião. Porcelana, por exemplo, não alegara que a própria mãe, Lunita, tinha tamanhos dons de segunda visão que o Ministério da Guerra financiara a sua cristalomancia?

Se Lunita realmente possuía tais poderes, não seria muito forçado imaginar que ela os herdara de Fenella, sua mãe.

Mas espere!

Se Fenella e Lunita tinham o poder da segunda visão, não seria razoável supor que Porcelana também era capaz de ver além do presente?

Seria essa a verdadeira razão por que ela tinha medo de mim? Ela admitira que tinha.

Seria possível que Porcelana tivesse visto coisas em meu passado que eu mesma não podia ver?

Ou será que ela podia ver meu futuro?

Perguntas demais e fatos de menos.

Meus ombros foram tomados por um estremecimento, mas eu os sacudi e prossegui com minhas anotações:


Paliçadas - Há uma sensação com relação a esse lugar que não pode ser facilmente explicada. Para o meu antepassado Lucius de Luce, o desvio do rio para formar o lago ornamental deve ter sido como a Grande Enchente. Antes dessa época, não era mais que um bosque silencioso e isolado onde Nicodemus Flich e os Hobblers realizavam batismos e festivais. Posteriormente, os ciganos o adotaram como ponto de parada de suas viagens. Harriet encorajara isso, mas, depois de sua morte, o pai proibiu. Por quê?


Mais uma linha cheia, sob a qual escrevi:


Peixe

(1) Quando surpreendi Brookie na sala de estar de Buckshaw, além de recender a álcool, ele (ou o seu samburá) fedia a peixe.

(2) Também havia cheiro de peixe no carroção quando encontrei Fenella espancada. Quando lá descobri Porcelana na manhã seguinte, o odor desaparecera - porém estava lá hoje de novo, dessa vez do lado de fora do carroção.

Obs: Os odores podem ir e voltar? Como os atores em uma peça?

(3) A srta. Mountjoy também cheirava a peixe - óleo de fígado de bacalhau, a julgar pela vasta quantidade dessa coisa que ela guarda na Quinta do Salgueiro.

(4) Brookie foi morto (acredito eu) por um garfo de lagosta enfiado pela narina até o cérebro. Um garfo de lagosta de Buckshaw. (Nota: lagosta não é um peixe, mas ainda assim...) Seu corpo foi pendurado na estátua de Posêidon, o deus do mar.

(5) Quando o encontramos pendurado, a cara de Brookie estava tão branca quanto barriga de peixe - não que isso signifique algo além do fato de que ele estava pendurado na fonte havia um bom tempo. Talvez a noite inteira. Certamente, quem quer que tivesse feito isso o fez durante as horas de escuridão, quando havia poucas possibilidades de ser visto.


Provavelmente, há pessoas no mundo que, neste exato momento, se sentiriam tentadas a brincar: “Alguma coisa aqui não cheira bem”.

Mas eu não sou uma delas.

Como sabe qualquer químico que faz jus ao seu cloreto de cálcio, é possível obter um cheiro de peixe morto de várias formas. Sem parar para pensar, me ocorrem diversas substâncias que liberam o cheiro de cavala morta, entre elas a propilamina.

A propilamina -- descoberta pelo grande químico francês Jean-Baptiste Dumas -- é o terceiro na série de radicais de álcool, o que pode soar como algo sem dúvida muito chato, até que você considere isto: quando um dos álcoois é esquentado com amônia, uma notável transformação tem lugar. É como um jogo de cadeiras musicais em que o hidrogênio que ajuda a formar a amônia tem uma ou mais de suas cadeiras (átomos, na verdade) tomadas pelos radicais do álcool. Dependendo de quando e onde a música parar, diversos novos produtos, chamados de “aminas”, podem ser formados.

Com um pouco de paciência e um bico de Bunsen, alguns odores realmente nojentos podem ser gerados em laboratório. Em 1889, por exemplo, toda a cidade de Freiburg, na Alemanha, teve de ser evacuada porque químicos deixaram escapar um pouco de tiocetona; dizem que pessoas que estavam a quilômetros de distância ficaram nauseadas com o cheiro e que os cavalos desmaiaram nas ruas. Como eu gostaria de ter estado lá para ver!

Enquanto outras substâncias, como os ácidos alifáticos inferiores, podem ser facilmente manipuladas a fim de se produzir qualquer cheiro -- de manteiga rançosa ou de um cavalo suarento, de um esgoto malcheiroso ou de chuteiras de futebol de um homem suado --, são as aminas inferiores, esses filhotes imperfeitos da amônia, que têm uma característica muito singular e interessante: como eu disse, elas fedem a peixe podre.

De fato, a propilamina e a trimetilamina poderiam, sem exagero, receber o título de “princesas do fedor”, e eu sabia disso.

Por ter nos proporcionado tantos modos de produzir essas maravilhas odoríferas, sei que a mãe natureza adora um fedorzinho tanto quanto eu. Pensei afetuosamente na vez em que extraí trimetilamina (para mais uma brincadeira inofensiva com as escoteiras) destilando-a com soda a partir de uma cesta de piquenique cheia de erva-fedegosa (Chenopodium vulvaria), uma planta malcheirosa que crescia em profusão no Campo de Trafalgar.

O que me levou de volta a Brookie Harewood.

De uma coisa eu tinha muita certeza: a charada da morte de Brookie seria resolvida não por câmeras nem por cadernos ou fitas métricas colocadas na fonte de Posêidon, mas no laboratório químico.

E era eu a pessoa certa para conseguir isso.

Eu ainda estava pensando em charadas quando escorreguei pelo corrimão e aterrissei no foyer.

Charadas em versinhos infantis fizeram parte dos meus tempos de criança, como de qualquer pessoa:


Trinta cavalos brancos sobre a vermelha colina

Agora eles marcham, e agora ruminam

E agora parados, é sua rotina.


-- Dentes! -- eu gritara, porque Dafi trapaceara e sussurrara a resposta em meu ouvido. Isso, é claro, fora antes de minhas irmãs começarem a me detestar.

Mais tarde, vieram versos mais sinistros:


Uma é alegria, duas é tristeza,

Três é casamento; quatro é uma morte.


A resposta era gralha-do-campo. Vimos quatro dessas aves pousar no telhado quando fizemos um piquenique no gramado, e minhas irmãs me fizeram memorizar os versos antes de me permitirem mergulhar em meu prato de morangos.

Eu ainda não sabia o que era a morte, mas sabia que os versos me davam pesadelos. Imagino que tenham sido esses versinhos, aprendidos em tenra idade, que me tornaram boa em decifrar charadas. Recentemente, cheguei à conclusão de que uma charada em versinhos infantis é a modalidade mais básica de história de detetive. É um mistério despido de tudo, menos dos fatos essenciais. Como esta, por exemplo:


Quando eu seguia viagem para St. Ives

Vi um homem, e ele tinha sete mulheres.

Cada mulher tinha sete sacos

E cada saco, sete gatos

E cada gato, sete gatinhos

Gatinhos, gatos, sacos, mulheres;

Quantos viajavam para Saint Ives?


A resposta usual é um, claro. Mas, quando você se detém para pensar, há muito mais do que apenas isso. Se, por exemplo, o contador da história passou por um homem que viajava com tudo aquilo, o número real -- incluindo os sacos -- seria quase três mil!

Tudo depende de como você olha para as coisas.


A sra. Mullet estava tomando seu chá perto da janela. Eu me servi de um biscoito digestivo.

-- Os Hobblers -- disse eu, mergulhando no assunto com os dois pés. -- Você falou que eles usariam meu sangue para fazer salsichas. Por quê?

-- Fique longe deles, senhorita, como já lhe disse.

-- Eu pensei que eles estivessem extintos...

-- Eles cheiram igual a todo mundo. É por isso que você não os reconhece até que alguém os aponte.

-- Mas como posso ficar longe deles se não sei quem são?

A sra. M baixou a voz e olhou por cima dos ombros.

-- Aquela mulher Mountjoy, por exemplo. Sabe Deus o que acontece na cozinha dela.

-- Tilda Mountjoy? Da Quinta do Salgueiro?

Mal pude acreditar em minha sorte!

-- Ela mesma. Ora, foi nesta mesma manhã que eu a vi na Ravina, indo para as Paliçadas; ela estava atrevida e segura de si. Eles ainda vão para lá, para fazer coisas com a água. Envenená-la, até onde sei.

-- Mas espere -- disse eu. -- A senhorita Mountjoy não pode ser uma Hobbler. Ela frequenta a igreja de São Tancredo.

-- Para espionar, muito provavelmente! -- disse a sra. Mullet. -- Hum! Ela disse à minha amiga senhora Waller que era por causa do órgão. Os Hobblers não usam órgão, você sabe. Eles não gostam. “Eu gosto do som de um bom órgão”, ela disse à senhora Waller, que me contou. Tilda Mountjoy é uma Hobbler nascida e criada, como os pais dela o foram. Está no sangue. Não importa em que prato de coleção ela ponha seus seis pence, ela é uma Hobbler do focinho aos sapatos, você pode acreditar.

-- Você a viu na Ravina? -- perguntei, tomando notas mentais como louca.

-- Com meus próprios olhos. Desde que aquela senhora Ingleby teve problemas, eu preciso esticar as pernas para conseguir ovos. Faço toda a distância até Rawlings. Mas devo dizer que as gemas deles são melhores que as da Ingleby. Está tudo na ração, você sabe. Ou seria nas cascas? É claro, depois que já estou a caminho, não tem sentido dar a volta inteira, tem? Então, é para a Ravina que vou, ovos e tudo, e pego um atalho pelas Paliçadas. Foi quando a vi; ela estava perto das fogueiras dos Bull. A não mais que uns vinte metros à minha frente.

-- Ela falou com você?

-- Ah! Sem chance, minha menina. Assim que vi quem era, eu recuei, sentei-me em um banco e tirei o sapato. Fingi que tinha uma pedra lá dentro.

Obviamente, a sra. M caminhava na mesma direção que a srta. Mountjoy e estava prestes a ultrapassá-la -- exatamente como a pessoa que caminhava para Saint Ives.

-- Bom para você! -- disse eu, batendo palmas de excitação e sacudindo a cabeça, maravilhada. -- Que superideia!

-- Não fale super, querida. Você sabe que o coronel não gosta.

Fiz o gesto de fechar um zíper sobre os lábios.

-- Qm mãiz?

-- Desculpe, querida. Não sei o que você está dizendo.

Abri o zíper.

-- Quem mais? Os outros Hobblers, quero dizer.

-- Bem, eu realmente não deveria dizer, mas aquele Reggie Pettibone, por exemplo. A mulher dele, também. Ela se acha muito importante lá no Instituto das Mulheres.

-- O marido dela é dono da loja de antiguidades?

A sra. Mullet assentiu melancolicamente, e vi que ela revivia a perda de sua mesa Army and Navy.

-- Obrigada, senhora M -- disse eu. -- Estou pensando em escrever um ensaio sobre a história de Buckshaw. Vou mencioná-la nas notas de rodapé.

A sra. Mullet ajeitou o cabelo com um dedo indicador enquanto eu andava em direção à porta da cozinha.

-- Fique longe daquela gente, estou dizendo.

 

COMO DIVERSAS OUTRAS LOJAS Em Bishop’s Lacey, a de Pettibone tinha fachada georgiana e uma pequena porta pintada, que se espremia entre um par de janelas curvas de vidraças múltiplas.

Passei pelo lugar pedalando lentamente, depois desmontei e caminhei despreocupada em direção à loja, como se tivesse acabado de notá-la.

Encostei o nariz no vidro, mas o interior estava escuro demais para ver além de uma pilha de pratos velhos sobre uma mesa empoeirada.

De repente, uma mão saiu do nada e pendurou alguma coisa bem na frente do meu rosto -- um aviso feito à mão em papelão.

“Fechado”, ele dizia, e o cartão ainda oscilava no cordel quando disparei para a porta. Agarrei a maçaneta, mas no mesmo instante um par de mãos sem corpo a segurou por dentro, tentando impedir que eu a girasse -- tentando fechar a tranca antes que eu pudesse entrar.

Mas a sorte estava do meu lado. Meu empurrão enérgico provou ser mais forte do que as mãos que mantinham a porta fechada, e me lancei para dentro da loja um pouco mais depressa do que gostaria.

-- Oh, obrigada -- disse eu. -- Pensei que vocês já tinham fechado. É sobre um presente, você sabe, e...

-- Nós estamos fechados -- disse uma vozinha estridente, e me virei para me ver frente a frente com um homenzinho peculiar.

Ele parecia um cabo de guarda-chuva que fora entalhado na forma de um papagaio: nariz bicudo, cabelos brancos tão compactos e encaracolados quanto uma peruca empoada e círculos vermelhos em cada bochecha, como se tivesse acabado de aplicar ruge. Seu rosto era branco de pó de arroz, e seus lábios, vermelhos demais para serem descritos.

Parecia se equilibrar precariamente sobre seus pezinhos, oscilando de modo tão alarmante para trás e para a frente que tive a sensação de que ele estava a ponto de despencar de seu poleiro.

-- Estamos fechados -- repetiu ele. -- Você precisa voltar outra hora.

-- Senhor Pettibone? -- perguntei, estendendo a mão. -- Sou Flavia de Luce, de Buckshaw.

Ele não teve muita escolha.

-- Prazer em conhecê-la, com certeza -- disse ele, segurando dois de meus dedos em sua mão minúscula e apertando de leve. -- Mas estamos fechados.

-- É meu pai, entenda -- continuei, ofegante. -- Hoje é aniversário dele, e nós queríamos, minhas irmãs e eu, quero dizer, surpreendê-lo. Ele demonstrou grande interesse em algo que você tem aqui em sua loja, e esperávamos que... Desculpe-me por chegar tão tarde, senhor Pettibone, mas eu estava dobrando compressas de gaze na Ambulância São João...

Permiti que meu lábio inferior tremesse ligeiramente.

-- E o que é esse... hum... objeto?

-- Uma mesa -- despejei. Foi a primeira coisa que me veio à mente -- e foi muito bom que tenha sido isso. Deveria haver dúzias de mesas em um lugar como aquele; eu poderia dar uma boa espiada em volta enquanto procurava a mesa certa.

-- Você poderia... hum... descrevê-la?

-- Sim -- disse eu. -- É claro. Ela tem quatro pernas e... um tampo.

Pude ver que ele não se convenceu.

-- É para os selos, entenda. O pai é um filatelista e precisa de alguma coisa sobre a qual possa espalhar seu trabalho... embaixo de uma lâmpada. Os olhos dele não são mais tão bons como costumavam ser, e minhas irmãs e eu...

Ele estava me empurrando levemente em direção à porta.

-- Oh... só um minuto. Acho que é esta -- disse eu, apontando para uma lamentável peça de mobiliário que estava empilhada nas sombras, próximo a um relógio de ouropel com barrigudos cavalos de estanho. Ao me mover para tocá-la, adentrei mais dois ou três metros na loja. -- Oh, não, esta é escura demais. Pensei que fosse mogno. Não... espere! É aquela ali.

Mergulhei um bocado no fundo da loja, para dentro das sombras. Senhor Pettibone me seguiu como um lobo atrás do rebanho, e percebi que meu caminho para a porta e para a liberdade tinha sido bloqueado.

-- O que você está pretendendo? -- disse ele, tentando subitamente agarrar meu braço. Pulei para fora de seu alcance.

De repente, a situação ficara perigosa. Mas por quê? Haveria algo na loja que Sr. Pettibone não queria que eu visse? Estaria ele achando que eu estava atrás de seus negócios suspeitos com antiguidades?

Qualquer que fosse a causa da agressividade dele, eu precisava agir depressa.

À minha direita, a cerca de trinta centímetros da parede, havia um enorme guarda-roupa. Deslizei para trás dele.

Por algum tempo, ao menos, eu estava segura. Sr. Pettibone não poderia se espremer atrás daquilo. Eu poderia até estar impedida de sair, mas tinha um momento para planejar meu próximo lance.

Mas, então, Sr. Pettibone voltou com uma vassoura. Ele enfiou as cerdas dela em minhas costelas -- e pressionou. Fiquei firme.

Ele virou a vassoura ao contrário e começou a me cutucar furiosamente com o cabo, como se estivesse encurralando um rato atrás do armário da cozinha.

-- Ai! -- gritei. -- Pare com isso! Pare! Você está me machucando!

Na verdade, ele não estava, mas eu não podia deixá-lo saber disso. Fui capaz de me esgueirar o bastante ao longo da parede e ficar fora do alcance de sua vassoura.

Quando ele deu a volta no guarda-roupa para tentar me atacar pelo outro lado, deslizei de volta para o extremo oposto.

Eu sabia que estava encurralada. O jogo de gato e rato poderia se prolongar pelo resto do dia.

O guarda-roupa começou a se mover, os rodízios de louça gemendo. Sr. Pettibone encostara o ombro em um canto do móvel empurrava-o em direção à parede.

-- Oh! -- gritei. -- Você está me esmagando!

O armário parou de se mover, e houve uma breve pausa em seu ataque, durante a qual pude ouvi-lo ofegar pesadamente.

-- Reginald!

A voz -- de uma mulher -- penetrou a loja como um pingente de gelo prestes a desabar. Ouvi-o murmurar alguma coisa.

-- Reginald, suba aqui imediatamente! Você está me ouvindo?

-- Olá, aí em cima! -- berrei. -- É Flavia de Luce.

Houve um silêncio, e depois a voz disse:

-- Suba, Flavia. Reginald, traga a menina até aqui.

Foi como se ela tivesse dito “arraste”.

Escorreguei para fora do guarda-roupa esfregando os cotovelos e fulminei um olhar acusador sobre ele.

Seus olhos se desviaram para uma escada estreita que havia do lado da loja, e, antes que ele pudesse mudar de ideia, segui na direção dela.

Eu poderia ter corrido para a porta, mas não o fiz. Aquela talvez fosse minha única oportunidade de reconhecer o lugar. “Começou, tem de acabar”, como a sra. Mullet gostava de dizer.

Pus os pés no primeiro degrau e comecei a me arrastar para cima, para o destino que me aguardava, qualquer que fosse ele.

A sala do andar de cima foi uma grande surpresa. Em vez da coelheira de pequenos cubículos que eu imaginara, o lugar era inesperadamente grande. Obviamente, todas as paredes internas haviam sido derrubadas para formar um sótão espaçoso, do mesmo tamanho da loja.

E como contrastava com a loja! Aqui, não havia desordem; de fato, a sala estava quase vazia -- havia praticamente uma única coisa.

No meio do espaço, encontrava-se uma grande cama quadrada, coberta de linho branco, e nela, reclinada em uma parede de travesseiros, uma mulher cujas feições poderiam muito bem ter sido entalhadas em um bloco de gelo. Havia um tom ligeiramente azulado -- ou cianótico -- no rosto e nas mãos, que sugeria, ao primeiro olhar, que ela fora vítima de monóxido de carbono ou de envenenamento por prata, mas, olhando melhor, comecei a ver que sua pele não era colorida por veneno, mas por algum artifício.

A pele estava da cor da nata do leite. Os lábios, como os do marido (presumi que o homem-papagaio era seu marido), estavam pintados de um vermelho assustador, e, como se ela fosse uma estrela remanescente do cinema mudo, os cabelos caíam sobre o rosto em massas de pequenos cachos prateados.

Somente depois que captei os detalhes da sala e de sua ocupante, permiti que minha atenção mudasse para a cama: tinha quatro colunas de ébano esculpidas na forma de anjos negros, cada um deles congelado em sua posição, como uma sentinela do Palácio de Buckingham.

Muitos colchões deveriam estar empilhados uns sobre os outros para elevar a altura daquilo, e uma série de degraus de madeira fora construída ao lado da cama, como uma escada ao lado de um palheiro.

Lentamente, a gélida aparição da cama ergueu um par de lorgnettes e me olhou friamente através das lentes.

-- Flavia de Luce, você disse? Uma das filhas do Coronel de Luce, de Buckshaw?

Assenti.

-- Sua irmã Ophelia se apresentou para nós no Instituto das Mulheres. Uma pianista notavelmente dotada.

Eu deveria ter imaginado! Aquele iceberg isolado do mar era amigo de Felinha!

Em quaisquer outras circunstâncias, eu teria dito algo rude e saído da sala pisando firme, mas pensei melhor. A investigação de um assassinato, eu estava começando a aprender, pode exigir grande sacrifício pessoal.

Na verdade, as palavras da mulher eram verdadeiras. Felinha era uma pianista de primeira classe, mas não havia sentido em ficar falando disso.

-- Sim -- eu disse --, ela é muito talentosa.

Até então, eu não tinha consciência de que Reginald estava bem atrás de mim, na escada, a apenas um passo ou dois do topo.

-- Você pode ir, Reginald -- disse a mulher. Virei-me para vê-lo descer em silêncio misterioso à loja.

-- E agora -- disse ela --, fale.

-- Acho que devo a você e ao senhor Pettibone um pedido de desculpas -- disse eu. -- Eu contei uma mentira.

-- E qual foi?

-- Que eu tinha vindo para comprar uma mesa para o pai. O que eu realmente queria era uma oportunidade de perguntar a você sobre os Hobblers.

-- Os Hobblers? -- disse ela com uma risada meio desajeitada. -- O que faz você pensar que eu sei alguma coisa sobre os Hobblers? Eles não existem desde o tempo das perucas empoadas.

A despeito de sua negação, pude ver que minha pergunta a pegara desprevenida. Talvez eu pudesse aproveitar a vantagem da surpresa.

-- Eu sei que foram fundados no século XVII por Nicodemus Flitch e que as Paliçadas, em Buckshaw, desempenharam um papel importante em sua história, por conta dos batismos, e assim por diante.

Parei para ver como isso seria recebido.

-- E o que isso tem a ver comigo? -- perguntou ela, pondo de lado a lorgnette e depois pegando-a de novo.

-- Oh, alguém mencionou que você pertencia àquele... àquela fé. Eu estava falando com a senhorita Mountjoy, e ela...

Era verdade. Eu falara com a senhorita Mountjoy. Desde que não dissesse que ela me contara algo, eu não poderia ser culpada de nenhum grande pecado. A não ser, talvez, de omissão. Felinha sempre falava sobre pecados de comissão e de omissão, até deixar nossos olhos girando como iscas de peixe.

-- Tilda Mountjoy -- disse ela depois de uma longa pausa. -- Entendo... Conte-me mais.

-- Bem, é que eu estive anotando algumas coisas sobre a história de Buckshaw, nada de mais, e, ao examinar uns papéis na biblioteca do pai, encontrei alguns documentos bem antigos.

-- Documentos? -- demandou ela. -- Que tipo de documento?

Ela estava mordendo a isca! Seus pensamentos se espelhavam na expressão como tatuagens nas bochechas.

“Velhos papéis relacionados com Nicodemus Flitch e os Hobblers?", pensava ela. “Aqui está minha oportunidade de puxar o tapete da querida chata-como-água-estagnada da velha Tilda, com seus enfadonhos ensaios no Jornal da Sociedade Histórica dos Hobblers. A antiga bibliotecária que se dane! Vou mostrar a ela o que a pesquisa real pode trazer à luz."

E assim por diante.

-- Oh, apenas coisinhas pequenas e avulsas -- disse eu. -- Cartas a um dos meus antepassados, Lucius de Luce, sobre uma coisa ou outra... -- E acrescentei: -- Apenas uma porção de nomes e datas. Nada de terrivelmente interessante, receio.

Foi a cereja do bolo -- mas eu faria parecer algo somenos.

Ela me olhava através de suas lentes como um ornitólogo que inesperadamente se deparara com um codornizão raro.

Agora era o momento de ficar perfeitamente calada. Se minhas palavras não haviam estimulado sua curiosidade, nada mais o faria.

Quase pude sentir o calor de seu olhar.

-- Ainda há mais -- disse ela. -- O que é? Você não está me contando toda a verdade.

-- Bem -- despejei --, na verdade, eu estava pensando em perguntar se seria permitido que eu me convertesse aos Hobblers. Nós, De Luce, não somos realmente anglicanos, entenda. Nós fomos católicos romanos por séculos, mas... Felinha estava me contando que os Hobblers eram não... não...

-- Não conformistas?

-- Sim, é isso. Não conformistas. E pensei que, já que eu mesma sou uma não conformista... bem, por que não me filiar?

Havia um grão de verdade nisso: lembrei-me de que um dos meus heróis, Joseph Priestley, o descobridor do oxigênio, outrora fora ministro de uma seita dissidente em Leeds, e se isso foi bom para o estimado Joseph...

-- Houve muita discussão -- disse ela, pensativa -- sobre se éramos não conformistas ou dissidentes, devido à nossa reconstituição em mil setecentos e...

-- Então você é uma Hobbler!

Ela me olhou dura e demoradamente, como se estivesse pensando.

-- Há aqueles -- disse ela -- que trabalham para preservar as fundações sobre as quais seus antepassados construíram. Nem sempre é fácil nestes nossos tempos...

-- Não me importa -- disse eu. -- Eu daria tudo para ser uma Hobbler.

E, de certo modo, era verdade. Já tive visões de mim mesma capengando alegremente por um caminho no campo, os braços esticados para me equilibrar, oscilando como se estivesse na corda bamba, enquanto guinava loucamente de uma sebe para outra. “Sou uma Hobbler”, eu gritava para todos por quem passava em meus passos pesados. “Quando eu capengava para Saint Ives..."

-- Muito interessante -- dizia a mulher quando voltei à realidade. -- E seu pai tem ciência de suas aspirações?

-- Não! -- eu disse, horrorizada. -- Por favor, não conte a ele! O pai é muito apegado a seus velhos hábitos, e...

-- Eu entendo -- disse ela. -- Vamos deixar então que esse seja nosso pequeno segredo. Ninguém além de mim e de você ficará sabendo disso.

Ei, presto!

-- Oh, muito obrigada -- sussurrei. -- Eu sabia que você iria entender.

Enquanto ela papagueava sobre a Lei da Tolerância, a Lei das Cinco Milhas, a Condessa de Huntington e a Conexão Calvinista, aproveitei a oportunidade para olhar em volta do quarto.

Não havia muito para ver: a cama, é claro, sobre a qual agora tive tempo para pensar, lembrou-me a Grande Cama de Ware que há no Museu Victoria and Albert. Em um canto oposto, perto de uma janela, havia uma mesinha com uma campainha elétrica e uma pequena chaleira, um bule de chá Brown Betty, uma lata de biscoitos e uma única xícara com pires. Reginald Pettibone evidentemente não estava habituado a comer o desjejum na companhia de sua mulher.

-- Você aceita um biscoito? -- perguntou ela.

-- Não, obrigada -- disse eu. -- Não como açúcar.

Era uma mentira, porém excelente.

-- Que criança fora do comum você é -- disse ela. E, com um aceno de mão na direção da lata, acrescentou: -- Bem, então talvez você não se importe de pegar um para mim. Não tenho esses escrúpulos.

Fui até a janela e estiquei a mão para a lata de biscoitos. Ao me voltar, por acaso relanceei ao lado de fora -- à área cercada que ficava atrás da porta dos fundos da loja.

Um furgão verde enferrujado estava lá, com as portas duplas abertas, e eu soube instantaneamente que se tratava do mesmo furgão que vira estacionado na Quinta do Salgueiro.

Enquanto eu olhava, um homem forte em mangas de camisa apareceu em meu campo de visão, subindo de algum lugar. Era o homem-buldogue -- o homem que quase me apanhou na cocheira!

A não ser que eu estivesse redondamente enganada, aquele seria Edward Sampson, de Rye Road, East Finching -- cujo nome eu encontrara nos papéis que estavam no porta-luvas.

Enquanto eu permanecia enraizada no lugar, ele foi até a traseira do veículo e arrastou para fora um par de objetos pesados. Ele se virou e, talvez sentindo meus olhos em si, olhou diretamente para cima, para a janela em que eu estava.

Minha reação imediata foi recuar -- afastar-me do vidro -- mas descobri que não podia. Alguma parte remota de minha mente já avistara um detalhe que só agora vazava lentamente para minha consciência, e receio ter deixado escapar um arquejo.

Os objetos nas mãos do homem-buldogue eram os cães de lareira de Harriet: Sally Fox e Shoppo!

 

-- O QUE FOI? -- PERGUNTOU A MULHER. Sua voz parecia vir de uma grande distância.

-- É... é...

-- Sim, querida... O que é?

Foi o “querida” que me trouxe bruscamente de volta. Um “querida” ou “queridinha”, para mim, era tão bem-vindo quanto uma bala no cérebro. Tenho lugares reservados nos assentos de meio penny do Inferno para as pessoas que se dirigem a mim desse jeito.

Mas mordi a língua.

-- É... é só que você tem uma vista tão maravilhosa de sua janela! -- disse eu. -- O rio... a Fazenda Malplaquet... até East Finching e as colinas além. Ninguém jamais suspeitaria, andando pela rua principal, que uma...

De baixo, veio um estrondo que pareceu sacudir o piso quando caiu algum objeto pesado. Um par de impropérios abafados chegou ao andar de cima através das tábuas do assoalho.

-- Reginald! -- bradou a mulher, e fez-se um silêncio incômodo lá embaixo. -- Homens! -- a mulher gritou alto o bastante para ser ouvida no andar inferior. -- Venham correndo!

-- Acho que é melhor eu ir -- disse eu. -- Estão me esperando em casa.

-- Está bem, querida -- disse ela. -- Não perca tempo. E não se esqueça daquelas cartas. Traga-as assim que puder.

Eu não lhe comuniquei o que estava pensando; fiz uma pequena cortesia jocosa, então me virei e desci a escada estreita.

Ao pé dela, dei uma olhada para a parte de trás da loja. Nas sombras, Reginald Pettibone e o dono do furgão me olhavam. Nenhum deles se mexeu ou falou qualquer coisa, mas eu sabia, como uma mulher supostamente sabe, que eles estavam falando de mim.

Virei as costas para ambos e continuei andando em direção à porta, parando apenas para escrever minhas iniciais na poeira que cobria o aparador. Eu não estava exatamente com medo, mas soube naquele momento como um treinador de animais se sente quando, na jaula de aço pela primeira vez, volta as costas para a mirada selvagem de um par de novos tigres.

Embora não tivesse dito isso, Gladys pareceu contente em me ver. Eu a tinha estacionado junto a uma árvore do outro lado da rua principal.

-- Há trabalho sujo pela frente -- contei a ela. -- Posso sentir em meus ossos.

Eu precisava chegar em casa depressa para inspecionar a lareira da sala de estar.


As árvores projetavam sombras de fim de tarde enquanto eu pedalava através dos Portões Mulford e da avenida dos castanheiros. Logo mais minha presença à mesa do jantar seria esperada, e eu não estava ansiosa por isso.

Quando abri a porta da cozinha, o som de uma sonata de Schubert veio flutuando pelos ares até meus ouvidos.

Sucesso! Soube instantaneamente que minha armadilha psíquica fora disparada.

Felinha sempre tocava Schubert quando estava perturbada -- a abertura da Sonata para piano em si bemol maior, especificamente, ela tocava quando estava muito enlouquecida.

Quase pude acompanhar seus pensamentos quando as notas do piano passaram voando por meus ouvidos como pássaros fugindo de um incêndio florestal. De início, havia raiva estritamente controlada, com ameaças de trovoada -- como eu amava as trovoadas! --, mas, quando a tempestade irrompia em sua plena força, o talento selvagem de Felinha ainda me fazia perder o fôlego de admiração.

Fui chegando mais perto da sala de estar para ouvir melhor aquela admirável efusão de emoções. Era quase tão bom quanto ler o diário dela.

Eu tinha de tomar cuidado, no entanto, para que ela não me visse antes do jantar -- em que haveria o pai para salvar minha pele. Se Felinha suspeitasse, apenas, que era eu a responsável pela mensagem fantasmagórica de seu espelho, haveria baldes de sangue no tapete e entranhas penduradas nos candelabros.

A sala de estar teria de esperar.

Eu não tinha me dado conta de como ficara cansada até me arrastar escada acima. Fora um longo dia, e ele estava longe de acabar.

Talvez, pensei, eu pudesse dar um cochilo.

Quando me aproximei de meu laboratório, me detive subitamente. A porta estava aberta!

Olhei em volta, e lá estava Porcelana, ainda usando o vestido preto de Fenella, torrando uma fatia de pão no bico de Bunsen. Mal pude acreditar em meus olhos!

-- Ora viva! -- disse ela, erguendo os olhos. -- Quer uma torrada?

Como se não tivesse recentemente me acusado de esmagar os miolos da avó dela.

-- Como você entrou?

-- Usei a sua chave -- disse ela, apontando; a chave ainda estava na fechadura. -- Vi quando você a escondeu na coluna oca da cama.

Era verdade. Há muito tempo eu descobrira o esconderijo secreto do tio Tar para chaves e outras coisas que ele queria guardar para si. Meu quarto outrora fora dele, e, com o tempo, todos, ou a maior parte, de seus segredos haviam sido revelados.

-- Você é realmente atrevida -- disse eu. O pensamento de alguém invadindo meu laboratório fazia minha pele se arrepiar, como se um exército de formigas vermelhas subisse por meus braços, se espalhasse pelos ombros e escalasse minha nuca.

-- Desculpe, Flavia -- disse ela. -- Sei que não foi você que atacou Fenella. Eu não estava pensando direito. Estava confusa. Estava cansada. Voltei para pedir desculpas.

-- Então é melhor fazer isso -- disse eu.

Eu não ia me deixar apaziguar -- não foi esse o termo que Dafi usou quando disse a mesma coisa para mim, “apaziguar”? -- com apenas um par de palavras simbólicas. Há momentos em que “sinto muito” simplesmente não é o bastante.

-- Sinto muito, Flavia -- disse ela. -- Realmente sinto. É tudo tão perturbador. É simplesmente demais!

De repente, ela caiu em lágrimas.

-- Primeiro, foi Fenella. Agora, eles não vão me deixar vê-la, você sabe. Puseram um policial sentado numa cadeira para guardar a porta do quarto dela. Depois, foi aquela coisa horrível, o homem que encontramos pendurado na fonte...

-- Brookie Harewood -- disse eu. Eu quase me esquecera de Brookie.

-- E agora, esse último corpo que eles desenterraram em... Qual é mesmo o nome?... Nas Paliçadas.

-- O quê?!

Outro corpo? Nas Paliçadas?

-- É demais para mim -- disse ela, enxugando o nariz no braço. -- Vou voltar para Londres.

Antes que eu pudesse dizer mais uma palavra, ela enfiou a mão no bolso e puxou uma nota de cinco libras.

-- Aqui -- disse ela, abrindo meus dedos e depois fechando-os sobre a nota. -- É para alimentar Gry até que Fenella tenha alta do hospital e...

Ela me olhou diretamente nos olhos, ainda segurando minha mão. Seus lábios tremiam.

-- Se ela não se recuperar, ele é seu. O carroção, também. Vim aqui para dizer que sinto muito, e já fiz isso. Agora vou partir.

-- Espere! O que você disse sobre outro corpo?

-- Pergunte ao seu amigo, o inspetor -- disse ela, antes de voltar-se para a porta.

Arremessei-me em direção à chave e bati a porta.

Lutamos pela maçaneta, mas consegui agarrar a chave, enfiá-la na fechadura e girá-la freneticamente.

-- Me entregue a chave. Me deixe sair.

-- Não -- disse eu. -- Não antes de você me contar sobre o que viu nas Paliçadas.

-- Pare com isso, Flavia. Não estou fazendo joguinhos.

-- Nem eu -- disse a ela, cruzando os braços.

Como eu já sabia que ela faria, Porcelana fez um movimento súbito para agarrar a chave. Era um velho truque muitas vezes usado por Dafi e Felinha, e suponho que eu deveria lhes agradecer por terem me ensinado. Como estava preparada para seu próximo movimento, consegui manter a chave fora do alcance de Porcelana.

Então ela desistiu. Simples assim. Pude ver em seus olhos.

Ela afastou o cabelo do rosto e caminhou de volta a uma das mesas do laboratório, na superfície da qual passou os dedos, como se quisesse apoiar-se para não tombar para a frente.

-- Voltei ao carroção para pegar minhas coisas -- disse ela, lenta e deliberadamente --, e a polícia estava lá de novo. Eles não me deixaram nem chegar perto. Estavam erguendo alguma coisa de um buraco no chão.

-- Erguendo o quê?

Ela olhava para mim com o que poderia ser provocação.

-- Acredite, não era ouro.

-- Conte para mim!

-- Pelo amor de Deus, Flavia!

Acenei a chave para ela.

-- Conte para mim!

-- Era um corpo. Enrolado em um tapete, ou coisa assim. Não muito grande. Uma criança, eu acho. Só vi um dos pés... ou o que sobrou dele. -- Acrescentou depois de uma pausa: -- Uma trouxa de velhos ossos verdes.

Ela bateu a mão na boca, e seus ombros se ergueram.

Aguardei pacientemente por mais; porém, se havia mais detalhes interessantes, Porcelana guardava-os para si.

Ficamos olhando uma para a outra pelo que pareceu ser uma eternidade.

-- Fenella estava certa -- disse ela afinal. -- Há trevas aqui.

Estendi a chave, e ela a ergueu com dois dedos de minha palma aberta, como se a chave -- ou eu -- estivesse contaminada.

Sem uma palavra, destrancou a porta e saiu.

Perguntei-me o que supostamente eu deveria sentir.

Para ser perfeitamente honesta, acho que estava contando com o fato de ter Porcelana atrás de cada passo meu enquanto eu continuava investigando o ataque contra Fenella e o assassinato de Brookie Harewood. Eu pensara até em meios de escapulir dela, se necessário, enquanto perambulava pela aldeia em busca de informações. Talvez eu tenha antegozado demais o momento de fazê-la sentar-se para lhe explicar pacientemente a trilha de pistas e como elas apontavam para o culpado ou culpados.

Mas, agora, ao ir embora, ela me privou de tudo isso.

Eu estava sozinha de novo.

“Como era no começo, é agora e sempre será, mundo sem fim. Amém."

Ninguém para conversar além de mim mesma.

Exceto Dogger, é claro.


Dogger estava sentado no jardim, embaixo do último raio de sol. Ele trouxera uma velha cadeira de madeira da estufa e, encarapitado na beirada de seu assento, martelava pregos na tira de lata que selava a arca de chá à sua frente, na grama.

Sentei-me dentro do carrinho de mão que estava por perto.

-- Eles encontraram mais um corpo -- disse eu. -- Nas Paliçadas.

Dogger assentiu.

-- Acredito que assim seja, senhorita Flavia.

-- É o bebê dos Bull, não é?

Dogger assentiu novamente e pôs de lado o martelo.

-- Eu ficaria surpreso se não fosse.

-- Você ouviu isso da senhora Mullet?

Embora eu soubesse que inquirir um criado a respeito de outro não é coisa que se faça, não havia outro jeito. Eu não poderia simplesmente telefonar para o Inspetor Hewitt e interrogá-lo sobre os detalhes.

-- Não -- disse ele, preparando-se para martelar mais um prego. -- A senhorita Porcelana me contou.

-- Porcelana? -- disse eu, fazendo um gesto em direção à ala leste, à janela de meu quarto. -- Você sabia sobre Porcelana? Que ela estava hospedada aqui?

-- Sim -- disse Dogger. E não disse mais nada.

Depois de alguns segundos, eu relaxei, e caiu entre nós mais um daqueles ricos silêncios que fazem parte da maioria das conversas com Dogger: silêncios tão longos e profundos que parecia irreverência quebrá-los.

Dogger girou a arca de chá e começou a aplicar uma tira no outro canto.

-- Você tem belas mãos -- disse eu afinal. -- Poderiam pertencer a um pianista de concerto.

Dogger pôs de lado o martelo e examinou os dois lados de cada mão como se nunca as tivesse visto.

-- Posso lhe assegurar que são minhas de verdade -- disse ele.

Dessa vez, não havia dúvida. Dogger fez uma piada. Mas, em vez de rir condescendente, fiz a coisa certa e balancei a cabeça sabiamente, como se soubesse o tempo todo. Eu estava aprendendo que, entre amigos, um sorriso pode ser melhor do que uma gargalhada.

-- Dogger -- disse eu—, há uma coisa que preciso saber. É sobre sangramentos de nariz.

Tive a impressão de que me lançou um olhar penetrante -- embora ele não tivesse feito isso.

-- Está tendo sangramentos de nariz, senhorita Flavia?

-- Não -- disse eu. -- Não, nem um pouco. Não é ninguém aqui de Buckshaw. Na verdade, é a senhorita Mountjoy, da Quinta do Salgueiro.

E descrevi a ele o que eu vira naquela cozinha abafada.

-- Ah -- disse Dogger, e silenciou. Depois de algum tempo, ele falou de novo, lentamente, como se suas palavras estivessem sendo resgatadas, uma a uma, de algum poço profundo: -- Os sangramentos nasais recorrentes, epistaxes, podem ter muitas causas.

-- Tais como? -- encorajei.

-- Predisposição genética -- disse ele --, hipertensão ou pressão sanguínea elevada... gravidez... dengue... câncer nasofaríngeo... tumor adrenal... escorbuto... algumas doenças de idosos, como endurecimento das artérias. Também pode ser sintomático do envenenamento por arsênico.

É claro! Eu sabia! Como pude esquecer?

-- No entanto -- prosseguiu Dogger --, pelo que você me contou, a causa não é nenhuma dessas. As hemorragias nasais da senhorita Mountjoy são muito provavelmente causadas pelo consumo excessivo de óleo de fígado de bacalhau.

-- Óleo de fígado de bacalhau? -- eu devo ter dito isso muito alto.

-- Imagino que ela tome para sua artrite -- disse Dogger, e continuou a martelar.

-- Eeeeca! -- disse eu, fazendo uma careta. -- Eu odeio o cheiro dessa coisa.

Mas Dogger não se deixou provocar.

-- Não é mesmo estranho -- continuei provocando -- que a natureza ponha o mesmo fedor no fígado de um peixe e em uma planta como a erva-fedegosa, ou no salgueiro que cresce perto da água?

-- Erva-fedegosa? -- disse Dogger, erguendo os olhos, intrigado. E então: -- Ah, sim, é claro. As metilaminas. Eu tinha me esquecido das metilaminas. Então...

-- Sim? -- disse eu, depressa e ansiosamente demais.

Havia momentos, ainda que curtos, em que a memória de Dogger, depois de estimulada, funcionava lindamente -- mais ou menos como os velhos e batidos sapatos Oxford do vigário, que só funcionavam bem na chuva.

Cruzei os dedos das mãos e dos pés e aguardei, mordendo a língua.

Dogger tirou o chapéu e ficou olhando para ele como se sua memória estivesse escondida naquele forro. Franziu o cenho, enxugou a testa com o braço e prosseguiu hesitante:

-- Acredito que o The Lancet relatou, no século passado, diversos casos de pacientes que exalavam cheiro de peixe.

-- Talvez eles fossem pescadores -- sugeri. Dogger sacudiu a cabeça.

-- Em nenhum dos casos o paciente era um pescador, e nenhum, ao que se sabia, tivera contato com peixes. Mesmo após o banho, o odor de peixe voltava, geralmente depois de uma refeição.

-- De peixe?

Dogger me ignorou.

-- Ah, é claro, a lenda do Bhagavad-Gita sobre uma princesa que exalava cheiro de peixe...

-- Sim? -- encorajei-o, recostando-me como se me preparasse para ouvir um conto de fadas. Em algum lugar distante, uma colheitadeira trabalhava suavemente, e o Sol caía no horizonte. “Que dia perfeito”, pensei. -- Mas espere! E se o corpo estivesse produzindo trimetilamina?

Foi um pensamento tão excitante que pulei para fora do carrinho de mão.

-- Não seria um caso sem precedente -- disse Dogger, pensativo. -- Shakespeare podia estar pensando em algo assim: “E o que temos aqui? Um homem ou um peixe? Morto ou vivo? Um peixe: ele cheira como um peixe: um cheiro muito antigo, como o de peixe”.

Um arrepio perpassou por minha espinha. Dogger assumiu a voz forte e confiante de um ator que pronunciara essas palavras muitas e muitas vezes antes.

-- A tempestade -- disse ele mansamente. -- Ato dois, cena dois, se não me engano. Trínculo, você se lembrará, está falando com Caliban.

-- De onde você tira essas coisas? -- perguntei, admirada.

-- Da rádio -- disse Dogger. -- Nós ouvimos algumas semanas atrás.

Era verdade. Em Buckshaw, as noites de quinta-feira eram dedicadas à audição compulsória da rádio, e recentemente fôramos obrigadas a sentar e ouvir uma adaptação de A tempestade sem reclamar.

A não ser pelos maravilhosos efeitos sonoros, eu não me lem-brava de muita coisa da peça, mas obviamente Dogger se lembrava.

-- Existe um nome para essa condição píscea? -- perguntei.

-- Não, até onde eu sei -- disse ele. -- É extremamente rara. Acredito que...

-- Continue -- disse eu, ansiosa.

Mas, quando ergui os olhos para Dogger, a luz de seu olhar se apagara. Ele ficou sentado a olhar para o chapéu que segurava apertado nas mãos trementes como se nunca o tivesse visto.

-- Agora, acho que vou para meu quarto -- disse ele, pondo-se lentamente em pé.

-- Está tudo bem -- disse eu. -- Acho que também vou. Uma bela soneca antes do jantar vai fazer muito bem para nós dois.

Não tenho certeza se Dogger me ouviu. Ele já saíra titubeante rumo à porta da cozinha.

Depois que ele se foi, voltei minha atenção para a arca de chá que Dogger pregava. Em um dos lados, havia um papel colado, no qual estava escrito à tinta: “ESTE LADO PARA CIMA -- Conteúdo: talheres - De Luce - Buckshaw”.

Talheres? Teria Dogger embalado os Mumpeters nessa caixa? A mãe e o pai Mumpeter? A pequena Grindlestick e suas irmãs de prata? Seria por isso que ele os polira? Por que ele haveria de fazer algo assim? Os Mumpeters eram meus brinquedos da infância, e só de pensar que alguém...Mas Brookie Harewood não fora assassinado com uma peça desse conjunto? E se a polícia...

Dei a volta até o outro lado da caixa -- o lado que Dogger ocultara de mim quando me aproximei.

Quando li as palavras que estavam marcadas em horríveis letras pretas nas tábuas, alguma coisa vil e amarga subiu por minha garganta.

“Sotheby’s, New Bond Street, Londres, Whitechapel”, lia-se. O pai estava mandando a prataria da família para leilão.

 

O JANTAR FOI UM EVENTO AMARGO.

O pior foi o pai ter vindo à mesa sem o London Philatelist. Em vez de ler, ele insistiu em me passar solicitamente as ervilhas e me perguntar:

-- Você teve um bom dia hoje, Flavia?

Aquilo quase despedaçou meu coração.

Embora o pai já tivesse falado diversas vezes sobre seus problemas financeiros, eles nunca pareceram ameaçadores: não mais do que uma sombra distante, realmente, como a guerra -- ou a morte. Você sabia que aquilo estava lá, mas não passava o dia inteiro se afligindo.

Mas agora, com os Mumpeters fechados a pregos dentro de um caixote, prontos para ser levados de trem para Londres e desajeitadamente manuseados por estranhos nos leilões, a realidade do apuro do pai nos atingiu com a força de um tufão.

E o pai -- aquele homem querido -- estava tentando nos proteger da realidade com uma conversa animada à mesa.jl

Pude sentir as lágrimas brotando dos olhos, mas não me atrevi a me entregar a elas. Foi uma sorte que Dafi, que estava sentada bem em minha frente, não tenha tirado os olhos de seu livro nem por um instante.

À minha esquerda, no extremo oposto da mesa, Felinha mantinha os olhos baixos, orientados para o próprio colo, o rosto pálido e os lábios sem cor apertados em linha estreita. As manchas escuras sob seus olhos pareciam equimoses, e o cabelo estava escorrido e sem vida.

A única palavra que a descrevia era “devastada”.

Minha bruxaria química funcionou!

A prova disso era o fato de que Felinha usava seus óculos, o que me contou que, sem sombra de dúvida, ela passara o dia olhando horrorizada para a mensagem fantasmagórica que se materializara em seu espelho.

A despeito de sua ocasional crueldade -- ou talvez por causa dela --, Felinha era do tipo devoto, e seu tempo era dedicado a barganhar com este ou aquele santo quanto à pureza de sua compleição, ou ao modo como um raio aleatório de sol atingiria seus cabelos dourados ao se ajoelhar diante do altar da comunhão.

Enquanto eu geralmente acreditava na química e na alegre dança dos átomos, Felinha acreditava no sobrenatural, e foi dessa crença que tirei vantagem.

Mas o que eu fizera? Não contava com essa devastação total.

Parte de meu cérebro me dizia para pôr-me em pé de um pulo e correr para ela, jogar os braços em volta do pescoço dela e contar que havia sido apenas talco francês -- e não Deus -- o que causara sua miséria. E então daríamos risada juntas, como costumávamos fazer nos velhos tempos.

Mas eu não podia: se fizesse isso, teria de confessar minha travessura na frente do pai; e eu gostaria de poupá-lo de sofrimentos adicionais.

Além disso, Felinha mais do que provavelmente me apunhalaria até a morte com o que quer que tivesse à mão, toalha branca como neve ou não.

O que me fez pensar em Brookie Harewood. Que estranho! Não houve uma palavra à mesa do jantar sobre assassinato. Ou assassinatos, no plural?

Foi então, acho, que reparei nos talheres. Em vez de nossos usuais utensílios de prata, percebi que cada um dos nossos lugares à mesa fora guarnecido com as facas e os garfos de cabo amarelo que eram guardados na cozinha para uso dos criados.

Não pude mais me conter. Arrastei a cadeira para trás, murmurei algo como um pedido de desculpas e fugi. Quando cheguei ao foyer, as lágrimas se derramavam sobre mim como chuva no tabuleiro de xadrez branco e preto dos ladrilhos.

 

Joguei-me na cama e enterrei a cara no travesseiro.

Como podia a vingança ferir tão intensamente? Não fazia sentido. Simplesmente não fazia. A vingança supostamente deveria ser doce -- e também a vitória!

Enquanto estava lá deitada, esmagada pela aflição, ouvi o som inconfundível dos sapatos de sola de couro do pai do lado de fora, no corredor.

Mal pude acreditar em meus ouvidos. O pai na ala leste? Era a primeira vez desde que eu me mudara que ele punha os pés nessa parte da casa.

O pai entrou lentamente no quarto, arrastando de leve, os pés e percebi que ele parou. Um momento depois, senti a cama afundar um pouco, quando ele se sentou a meu lado.

Continuei com o rosto apertado fortemente contra o travesseiro. Depois do que pareceu ser um tempo muito longo, senti sua mão tocar gentilmente minha cabeça -- mas só por um momento.

Ele não afagou meus cabelos nem falou, e fiquei contente por ter sido assim. Seu silêncio poupou a nós dois do embaraço de não saber o que dizer.

Então, ele se foi tão silenciosamente quanto chegou.

E eu dormi.

 

De manhã, o mundo parecia ser um lugar diferente.

Assobiei enquanto tomava banho. Até me lembrei de lavar os cotovelos.

Durante a noite, me veio, como num sonho, a necessidade de pedir desculpas a Felinha. Simples assim.

Em primeiro lugar, isso a desarmaria. Em segundo lugar, impressionaria o pai, caso Felinha tivesse lhe contado o que eu fiz. E, por fim, eu me sentiria confortada e virtuosa por fazer a coisa mais decente.

Além disso, se eu jogasse direito minhas cartas, poderia extrair informações de Felinha sobre Vanetta Harewood. É claro, eu não lhe contaria sobre o retrato perdido de Harriet.

Era a solução perfeita.

 

Não existe nada tão lindo quanto o som de piano na sala ao lado. Uma pequena distância empresta alma ao instrumento -- ao menos para minha audição sensível.

Enquanto eu estava do lado de fora da sala de estar, Felinha praticava alguma coisa de Rameau: Les Sauvages, acho que se chamava. Aquela obra me fez pensar em uma clareira ao luar -- as Paliçadas, talvez -- e em uma tribo de demônios dançando em roda como maníacos: muito mais agradável, pensei, do que aquela coisa soporífera de Beethoven com o mesmo tema.

Endireitei as costas e os ombros. Felinha sempre me dizia para endireitar os ombros, e pensei que ela ficaria feliz ao ver que eu me lembrara.

No instante em que abri a porta, a música parou, e Felinha ergueu os olhos. Ela estava aprendendo a tocar sem óculos e não os usava agora.

Não pude deixar de notar como ela estava bonita.

Seus olhos, que eu esperava parecerem dois buracos abertos de carvão, brilhavam com luminosidade azul à luz da manhã. Era como ser encarada pelo pai.

-- Sim? -- disse ela.

-- Eu... eu vim pedir desculpas -- disse-lhe.

-- Então faça isso.

-- Acabei de fazer, Felinha!

-- Não, você não fez. Você acabou de declarar um fato. Você afirmou que veio pedir desculpas. Pode começar.

Aquilo seria mais humilhante do que eu pensei.

-- Me desculpe -- por ter escrito em seu espelho.

-- Sim?

Engoli em seco e prossegui:

-- Foi um truque maldoso e irrefletido.

-- Foi, sem dúvida, seu pequeno verme odioso.

Ela ergueu-se do banco do piano e veio em minha direção -- ameaçadoramente, pensei. Encolhi-me um pouco.

-- É claro, percebi imediatamente que foi você. “Deuteronômio”? “As úlceras do Egito”? “As emeroides”? “O escorbuto e a coceira”? Estava escrito Flavia de Luce por toda parte. Você podia até ter assinado aquilo. Como um quadro.

-- Isso não é verdade, Felinha. Você ficou devastada. Vi as manchas sob seus olhos na hora do jantar!

Felinha jogou a cabeça para trás e gargalhou.

-- Maquiagem! -- ela exultou. -- Talco francês! Duas pessoas podem jogar esse jogo, sua bobinha chata! Um pouco de talco francês e uma pitada de cinzas da lareira. Precisei da tarde inteira para conseguir o tom exato. Você deveria ter visto sua cara! Dafi disse que quase sofreu um acidente tentando não rir!

Minhas bochechas começaram a queimar.

-- Não é verdade, Dafi?

Ouvi o som de uma risadinha molhada atrás de mim e me virei para ver Dafi entrando pela porta -- bloqueando minha rota de escape.

-- “Foi um truque maldoso e irrefletido” -- disse ela, imitando-me em falsete roufenho, como um papagaio.

Dafi estava bisbilhotando meu pedido de desculpas do lado de fora do corredor!

Mas agora, em vez de voar para cima dela enfurecida, como talvez tivesse feito ontem, reuni até meu último fragmento de força interior e ataquei-a com uma ferramenta nova, ainda não testada: calma, clara e fria.

-- Quem é Hilda Muir? -- perguntei, e Dafi parou imediatamente de se mexer, como se tivesse sido congelada em um instantâneo.

Eu apelara para um conhecimento superior. E funcionou!

Aproximando-me de uma de minhas irmãs com humildade e mantendo a calma com a outra, eu ganhara em apenas alguns minutos não uma, mas duas novas armas.

-- O quê?

-- Hilda Muir. Ela tem algo a ver com as Paliçadas.

“Hilda Muir”, dissera Fenella quando avistamos pela primeira vez a sra. Bull na Ravina. “Hilda Muir”, ela dissera de novo quando levei ramos de sabugueiro para o carroção. “Agora estamos todos mortos!"

-- Quem é Hilda Muir? -- perguntei de novo em minha nova e enlouquecedoramente calma voz.

-- Hilda Muir? As Paliçadas? Acho que você quer dizer “Hildemoer”. Não é uma pessoa, sua idiota. É o espírito dos ramos do sabugueiro. Ele vem para punir as pessoas que cortam seus ramos sem que antes lhe peçam permissão. Você não cortou ramos de sabugueiro, cortou? -- e a isso seguiu-se mais uma risadinha molhada.

Dafi deve ter visto o efeito de suas palavras sobre mim.

-- Eu realmente espero que você não tenha feito isso. Às vezes, eles são plantados em cima de uma sepultura, para indicar se o defunto está feliz no mundo por vir. Se o sabugueiro cresce, tudo está bem. Senão...

“O mundo por vir?", pensei. Porcelana não vira a polícia tirar o corpo de um bebê do mesmo lugar -- ou muito perto dele -- em que eu havia cortado os ramos do sabugueiro para acender o fogo?

-- O Hildemoer é um duende -- prosseguiu Dafi. -- Você não se lembra do que contamos a você sobre os duendes? Pelo amor de Deus, Flavia... Foi só alguns dias atrás. Os duendes são os Ancestrais, aquelas criaturas horríveis que roubaram o precioso bebê de Harriet e deixaram você no lugar dele.

Minha cabeça virou um inferno. Eu podia sentir a raiva se precipitar novamente, como o mar Vermelho depois da passagem dos israelitas.

-- Espero que você não tenha cortado ramos de sabugueiro da sepultura de alguém -- prosseguiu ela. -- Porque, se você fez isso...

-- Obrigada, Dafi -- disse eu. -- Você foi muito esclarecedora.

Sem mais palavras, passei raspando por ela e saí pisando firme da sala de estar.

Com as risadas zombeteiras de minhas queridas irmãs ainda ressoando no ouvido, corri pelo saguão reverberante.

 

NO LABORATÓRIO, TRANQUEI A PORTA e aguardei para ver o que minhas mãos iriam fazer.

Era sempre assim. Se eu relaxasse e tentasse não pensar demais, a grande deusa Química me guiaria.

Depois de algum tempo, não sei por quê, peguei três recipientes de vidro e coloquei-os em cima da bancada.

Usando uma pipeta, medi vinte gramas de um líquido claro no primeiro e coloquei-o dentro de um tubo de ensaio calibrado. No segundo recipiente, medi cento e vinte gramas de outro fluido e coloquei-o em um pequeno frasco. Observei fascinada quando, ao combinar os dois fluidos claros com água destilada, uma cor avermelhada apareceu perante meus olhos.

E presto! Aqua regia... Água real!

Os antigos alquimistas lhe deram esse nome porque ela é capaz de dissolver ouro, por eles considerado o rei dos metais.

Tenho de admitir que manufaturar a substância eu mesma nunca deixava de me empolgar.

Na verdade, a aqua regia é mais laranja do que vermelha: tem a cor exata das romãs, se me lembro corretamente. Sim, romãs -- era isso.

Eu já vira essas frutas exóticas em uma vitrine na rua principal. O sr. Hughes, o merceeiro, importara aquelas coisas como experiência, mas elas permaneceram em sua vitrine até ficarem pretas e murchas como bolas de fungo.

“Bishop’s Lacey ainda não está preparada para as romãs”, disse ele à sra. Mullet. “Nós não as merecemos." Eu sempre fiquei maravilhada com o modo como três fluidos claros -- ácido nítrico, ácido hidroclorídico e água --, quando combinados, produziam, como mágica, a cor -- e não qualquer cor, mas a cor de um crepúsculo flamejante.

Os tons de laranja a turbilhonarem no vidro pareciam ilustrar perfeitamente os pensamentos que se atropelavam em giros e mais giros em minha cabeça.

Era tudo tão detestavelmente complicado: o ataque contra Fenella; a pavorosa morte de Brookie Harewood; o súbito aparecimento e igualmente súbito desaparecimento de Porcelana; os cães de lareira de Harriet aparecendo não em um, mas em três locais diferentes; a estranha loja de antiguidades dos abomináveis Pettibone; a srta. Mountjoy e os Hobblers; o há muito perdido retrato de Harriet por Vanetta Harewood; e, por baixo disso tudo, como o ronco surdo de um tubo de órgão defeituoso, a cantilena constante da falência iminente do pai.

Era o suficiente para fazer um anjo cuspir.

Em seu recipiente, a aqua regia ficava mais escura a cada minuto, como se ela também aguardasse impaciente por respostas.

De repente, eu vi o caminho.

Acendi um bico de Bunsen e coloquei-o embaixo do frasco. Eu aqueceria gentilmente o ácido antes de proceder ao próximo passo.

De um armário, tirei uma pequena caixa de madeira em cuja extremidade o tio Tar escrevera a lápis a palavra “platina” e abri sua tampa de correr. Dentro, havia uma dúzia, talvez, de quadrados chatos do mineral cinza-prateado, nenhum deles maior do que a unha de um dedo de adulto. Selecionei um pedaço que pesava mais ou menos dez gramas.

Quando a aqua regia atingiu a temperatura adequada, peguei o pedacinho de platina com uma pinça e segurei-o acima da boca do frasco. Se não pelo chiado do gás, o laboratório estava tão silencioso que realmente ouvi o minúsculo plop quando deixei a platina cair dentro do fluido.

Por um momento, nada aconteceu.

Mas, agora, o líquido do frasco estava adquirindo um vermelho cada vez mais escuro.

Então, a platina começou a se retorcer.

Era a parte de que eu mais gostava!

Como em agonia, o pedacinho de metal moveu-se lentamente na direção da parede de vidro do frasco, tentando escapar dos ácidos que o consumiam.

E, de repente... puf! A platina se foi.

Quase deu para ouvir a aqua regia lambendo os beiços. “Mais, por favor!"

Não que a platina não tenha travado uma luta nobre, porque travou. O importante, me lembrei, era isto: “A platina não pode ser dissolvida por nenhum ácido isolado”.

Não, a platina não pode ser dissolvida pelo ácido nítrico sozinho, e ela riria um alegre “ha! ha!" para o ácido hidroclorídico. Apenas a combinação dos dois pode quebrar a platina.

Havia uma lição aqui -- na verdade, duas.

A primeira era esta: eu era a platina. Seria preciso mais de um oponente para vencer Flavia Sabina de Luce.

O que restou no frasco foi bicloreto de platina, que, em si, seria útil para verificar -- em algum experimento futuro, quem sabe -- a presença de nicotina ou potássio. Mais importante naquele momento, no entanto, era o fato de que, embora o pedacinho de platina houvesse desaparecido, algo novo se formara: algo com um novo conjunto de potenciais.

Muito repentinamente, vislumbrei o reflexo de meu rosto no vidro a observar de olhos arregalados o líquido meio turvo no frasco se agitar inquieto conforme assumia um matiz amarelo-doentio, como as névoas inquietas da bola de cristal de uma cigana.

Eu soube então o que tinha de fazer.


-- A-há! Flavia! -- disse o vigário. -- Sentimos a sua falta no domingo.

-- Desculpe, vigário -- eu disse a ele --, mas acho que abusei no sábado, com a quermesse e tudo o mais.

Como em geral as boas ações não exigem estardalhaço, não achei necessário mencionar a ajuda que dera a Fenella. E fiz bem em segurar a língua, pois o vigário mesmo trouxe esse assunto à tona.

-- Sim -- disse ele. -- Seu pai me contou que lhe permitiu um confortável descanso no sábado. Realmente, Flavia, foi muito gentil de sua parte assumir o papel de boa samaritana, por assim dizer. Muito gentil.

-- Não foi nada -- disse eu com apropriada modéstia. -- Fico feliz em ajudar.

O vigário pôs-se em pé e se espreguiçou. Ele estava aparando com uma tesoura de cozinha os tufos de grama que cresciam em volta das pernas de madeira da placa da igreja de São Tancredo.

-- As obras de Deus assumem muitas formas estranhas -- disse ele ao me ver sorrindo diante de seu trabalho. -- Visitei a pobre alma no hospital -- prosseguiu --, logo depois da oração matinal.

-- Você falou com ela? -- perguntei, atônita.

-- Oh, querida, não. Nada nem próximo disso. Tenho certeza de que ela nem teve consciência de minha presença. A enfermeira Duggan me contou que ela ainda não havia recuperado a consciência e que passara uma noite agitada, gritando a toda hora sobre algo que estava escondido. A pobrezinha estava delirando, é claro.

Algo escondido? O que Fenella queria dizer?

É verdade que ela me relatara quem era a mulher cuja sorte lera logo antes da minha vez: alguma coisa sobre algo que estava enterrado no passado. Mas será que isso contava como “algo escondido”? Valia a tentativa.

-- É muito ruim, não é? -- perguntei, sacudindo a cabeça. -- A tenda dela era a mais popular da quermesse. Até que pegou fogo, quero dizer. Ela estava me contando como alguém ficou perplexo... a pessoa que entrou logo antes de mim, acredito... quando ela adivinhou corretamente algo sobre seu passado.

Teria uma nuvenzinha passado pelo rosto do vigário?

-- Seu passado? Oh, eu dificilmente acreditaria nisso. A pessoa que teve a sorte lida imediatamente antes de você foi a senhora Bull.

“A senhora Bull? Quero que me explodam!" Eu podia jurar que o primeiro encontro da sra. Bull com Fenella em anos ocorrera em minha presença, no sábado, na Ravina, depois da quermesse.

-- Você tem certeza? -- perguntei.

-- Certeza absoluta -- disse o vigário. -- Eu estava perto dos coqueiros falando com Ted Sampson quando a senhora Bull me pediu para ficar de olho nos filhos dela por alguns minutos. “Não vou demorar, vigário”, disse ela, “mas preciso que ela leia minha sorte, para ter certeza de que não há mais desses pequenos bárbaros em meu futuro." Ela estava brincando, é claro, mas ainda assim pareceu uma coisa muito estranha para dizer naquelas circunstâncias. -- O vigário corou. -- Oh, querida, acho que fui indiscreto. Perdoe minhas palavras.

-- Não se preocupe, vigário -- eu disse a ele. -- Eu não direi uma palavra a ninguém.

Encenei o movimento de costurar os lábios com uma agulha e um longo pedaço de linha. O vigário retraiu-se com minhas caretas.

-- Além disso -- acrescentei --, não é como se os Bull fossem seus paroquianos.

-- Não importa -- disse ele. -- Discrição é discrição. Ela não reconhece os limites da religião.

-- A senhora Bull é uma Hobbler? -- perguntei de repente.

Sua testa franziu.

-- Uma Hobbler? O que a leva a pensar isso? Querida, aquela fé um tanto peculiar foi, se não estou enganado, suprimida no fim do século XVIII. Houve rumores, é claro, mas não se deve...

-- Foi? -- interrompi. -- Suprimida, quero dizer?

“Seria possível que os Hobblers tivessem se tornado clandestinos tão eficazes que a própria presença em Bishop’s Lacey era desacreditada pelo vigário de São Tancredo?"

-- Sejam quais forem suas devoções -- continuou o vigário --, não devemos julgar as crenças dos outros, devemos?

-- Suponho que não -- disse eu assim que me dei conta do significado de suas palavras anteriores. -- Você disse que estava falando com um senhor Sampson? O senhor Sampson de East Finching?

O vigário assentiu.

-- Ted Sampson. Ele ainda aparece para dar uma mão com as tendas e as cabines. Vem fazendo isso, desde menino, há vinte e cinco anos. Diz que o faz se sentir próximo a seus pais. Ambos estão enterrados aqui no pátio da igreja, entenda. Ele, claro, está morando em East Finching desde que se casou com uma...

-- Sim? -- perguntei. Se eu possuísse bigode, ele estaria tremendo.

-- Oh, céus -- disse o vigário. -- Receio ter falado demais. Você precisa me desculpar.

Ele caiu de joelhos e recomeçou a aparar a grama, e eu soube que nossa entrevista havia terminado.


Os pneus de Gladys ronronavam no asfalto conforme seguíamos velozmente para o norte, na direção de East Finching. No começo, foi fácil, mas depois a estrada começou a subir, dobra após dobra, na colina, e tive de me esforçar à beça em cima dos pedais.

Quando cheguei ao Poço dos Indigentes, no topo da Colina Denham, estava ofegando como um cão. Desmontei e, encostando Gladys contra a mureta de pedra do poço, caí de joelhos para beber.

O Poço dos Indigentes não era bem uma nascente natural, mas um lugar no qual a água gorgolejava de alguma fonte subterrânea -- e vinha fazendo isso antes mesmo de os romanos se servirem de generosos goles gelados e refrescantes.

A água das nascentes, eu sabia, era uma notável sopa química: cálcio, magnésio, potássio, ferro, além de sais e sulfatos sortidos. Agarrei a velha e maltratada caneca de lata que pendia de uma corrente, enchi-a de água borbulhante e bebi até sentir meus ossos se fortalecerem.

Com água ainda escorrendo pelo queixo, me pus em pé e olhei para os campos distantes. Atrás de mim, estendida como um lenço de piquenique de bonecas, estava Bishop’s Lacey. Através dela, o rio Efon serpenteava seu caminho preguiçoso, contornando a aldeia antes de desaparecer aos poucos no sudeste e em Buckshaw.

Agora, quase duas semanas após o início da colheita, a maior parte dos campos trocara seu intenso verde de verão por um tom mais pálido, acinzentado, como se a mãe natureza tivesse cochilado um pouco e deixado as cores vazar.

A distância, como um inseto preto rastejando pela encosta da colina acima, um trator arrastava uma grade através do campo de um lavrador, e o ronco de seu motor chegava claramente a meus ouvidos.

Daqui de cima, dava para ver as Paliçadas ao sul, um oásis verde na curva do rio. E lá estava Buckshaw, suas pedras brilhando cálidas à luz do sol, como se tivessem sido cortadas de citrino precioso e polidas por mão de mestre.

“A casa de Harriet”, pensei -- muito embora eu não soubesse por quê. Alguma coisa brotou em minha garganta. Deve ter sido algo na água do poço. Tirei Gladys de seu lugar de repouso e me mandei para East Finching.

Desse ponto em diante, a jornada era toda colina abaixo. Depois de algumas boas pedaladas para ganhar velocidade, pus os pés em cima do guidão, e Gladys e eu, com o vento em nossos dentes, descemos num mergulho de águia pela estrada poeirenta, para dentro da rua principal de East Finching.

Diferentemente das vizinhas Malden Fenwick e Bishop’s Lacey, East Finching não era um pedaço bonito da velha Inglaterra. Aqui, não havia casas com vigas de madeira aparentes nem profusões de flores nos jardins dos chalés. Em vez disso, era “encardida”-- foi essa a palavra que me veio à cabeça.

Pelo menos metade das lojas da rua principal tinha as vitrines fechadas com tábuas, e aquelas que aparentemente ainda estavam em atividade tinham uma aparência um tanto triste e derrotada.

Na vitrine da tabacaria da esquina, uma placa torta anunciava: “Jornais de hoje”.

Uma sineta acima da porta tocou estridente quando entrei e um homem de cabelos grisalhos e antiquados óculos quadrados ergueu os olhos de seu jornal.

-- Bem? -- disse ele, como se eu o tivesse surpreendido no banho.

-- Me desculpe -- eu disse. -- Será que você poderia me ajudar? Estou procurando o senhor Sampson. Edward Sampson. Poderia me dizer onde ele mora?

-- O que você quer com ele? Está vendendo biscoitos, não é mesmo?

A boca dele se arreganhou em um sorriso pavoroso, revelando três dentes repulsivos, que pareciam ter sido esculpidos em madeira podre.

Era quase a mesma coisa que me dissera a abominável Ursula à porta de Vanetta Harewood: uma piada sem graça que circulava pela zona rural, como costumam fazer as piadas sem graça.

Segurei a língua.

-- Está vendendo biscoitos, não é mesmo? -- perguntou ele outra vez, como o cômico do teatro de variedades que surra uma piada até a morte.

-- Na verdade, não -- disse eu. -- Os pais do senhor Sampson estão enterrados no pátio da igreja de São Tancredo, em Bishop’s Lacey, e nós estamos instituindo um fundo de manutenção de sepulturas. É a guerra, entenda... Pensamos que talvez ele gostaria de...

O homem olhou cético para mim por cima dos óculos. Eu teria de fazer melhor do que isso.

-- Oh, sim! Eu quase esqueci. Também vim transmitir os agradecimentos do vigário e das damas do Instituto das Mulheres... e da Guilda do Altar... pela ajuda do senhor Sampson durante quermesse de sábado. Foi um sucesso estrondoso.

Acho que foram o Instituto e a Guilda do Altar que me fizeram conseguir: o dono da tabacaria franziu o nariz enojado, ergueu os óculos um pouco mais e apontou com o dedão para a rua.

-- Cerca amarela -- disse ele. -- Salvados. -- E continuou a ler.

-- Obrigada -- disse eu. -- Você é muito gentil.

E eu fora quase sincera.


O lugar dificilmente passaria despercebido. Uma cerca alta de madeira pintada em um tom de amarelo que traía o uso da supertinta dos aviões de guerra, arqueada para dentro e para fora ao longo de três lados de uma grande propriedade.

Era evidente que a cerca fora erguida numa tentativa de esconder da rua a feiura do negócio de salvados, mas com pouco efeito. Atrás de suas tábuas, pilhas de metal enferrujado subiam como um amontoado de varetas gigantes no pega-varetas.

Sobre a cerca, grandes letras vermelhas, obviamente pintadas pela mão de um amador, diziam: “Sampson -- salvados -- compra-se ferro velho -- melhores preços -- peças de motores”.

Uma haste de ferro inclinada contra o portão duplo o mantinha fechado. Encostei o olho na fresta e espiei dentro.

Irritantemente, não havia muito que ver, -- devido ao ângulo, minha visão era bloqueada por um caminhão destroçado que fora tombado, e cujas rodas haviam sido removidas.

Após dar uma olhada rápida para um lado e outro da rua, mudei a posição da haste, empurrei um pouco os portões, respirei fundo e me espremi para dentro.

Exatamente em minha frente, um aviso pintado em letras vermelho-sangue na carcaça de um caminhão de mudanças dizia “Cuidado com o cao” -- como se o animal em questão tivesse pulado na garganta do artista antes que este pudesse colocar o til.

Paralisei-me no lugar e escutei, mas não havia sinal da fera. Talvez o aviso servisse apenas para assustar os estranhos.

Em um lado do pátio, havia um abrigo Nissen pré-fabricado em metal corrugado, de bom tamanho, o qual, a julgar pelas marcas de pneus que levavam às suas portas duplas, estava em uso normal. À minha direita, como uma fileira de fornos para secagem de lúpulo, as enormes pilhas de sucata que eu vira pela fresta dos portões levavam aos fundos do terreno. Projetando--se da pilha mais próxima -- como se houvesse acabado de cair e sido enterrado ali -- estava o que certamente era a parte de trás de um avião Spitfire, com as marcas em vermelho, branco e azul da RAF ainda frescas e brilhantes, como se tivessem sido aplicadas ontem.

A cerca tinha escondido o tamanho do lugar -- estendia-se por uns dez mil metros quadrados. Além das montanhas de ferro-velho, aqui e ali, dezenas de automóveis destruídos se afundavam tristemente no capim, e, até mesmo na parte de trás da propriedade, onde o entulho pouco a pouco dava lugar a um pomar, borrões de metal colorido cintilavam entre as árvores, sinalizando que lá também havia cadáveres.

Enquanto eu avançava cautelosamente pelo caminho de cascalho entre as pilhas de maquinário quebrado, coisas ocultas produziam cliques ocasionais, como se estivessem tentando se aquecer o bastante ao sol para voltar à vida -- mas sem muito sucesso.

-- Olá? -- gritei, esperando desesperadamente que não houvesse resposta. E não houve.

Ao fim de uma curva em L, havia no cascalho uma estrutura de tijolos: parecia-se com uma área de serviço, talvez uma lavanderia, com uma chaminé redonda que se erguia por cerca de dez metros acima do telhado plano.

As janelas estavam tão recobertas de fuligem que mesmo esfregando com a mão não pude ver nada do lado de dentro. Em lugar de uma maçaneta, a porta era provida de algo parecido com um ferrolho feito à mão: algo improvisado com restos de cercas de ferro.

Encostei o polegar na lingueta da coisa e a apertei. A trava se soltou, a porta se abriu, e eu avancei para o interior mal-iluminado.

O lugar era inesperadamente despojado. De um lado havia uma grande fornalha, cuja porta aberta revelava um fundo coberto de cinzas frias e carvão meio queimado. Ao seu lado, fora montado algo que parecia ser um soprador motorizado.

“Essas coisas não mudaram em quatrocentos ou quinhentos anos”, pensei. A não ser pelo motor elétrico, havia pouca diferença entre esse dispositivo e os crisóis dos alquimistas que enchiam as páginas dos velhos manuscritos encontrados na biblioteca do tio Tar.

Em essência, esse forno não era diferente do cadinho a gás instalado pelo tio Tar no laboratório em Buckshaw -- mas era muito maior, é claro.

Sobre o piso de tijolos, na frente do forno e ao lado de uma grande concha de aço, jaziam diversos moldes quebrados: arcas de madeira que tinham sido preenchidas por areia na qual vários objetos foram pressionados para se obter impressão -- e sobre a qual o ferro derretido fora vertido depois.

“Cães, ao que parece”, pensei. “Spaniels recortados na areia para a fabricação de um par de calços para portas."

Ou cães de lareira.

E eu percebi então, muito embora ainda não houvesse tido a oportunidade de testá-los quanto à sua autenticidade, que foram fundidas ali, na fundição instalada na lavanderia de Edward Sampson, as cópias de Sally Fox e Shoppo: as cópias que provavelmente, naquele exato momento, ocupavam o lugar dos originais na lareira da sala de estar de Buckshaw.

“Mas onde estariam os originais de Harriet? Seriam os cães de lareira que eu vira na cocheira da senhorita Mountjoy -- no depósito de antiguidades no qual Brookie Harewood guardava seu tesouro? Ou seriam os que vi nas mãos de Sampson, o homem-buldogue, nos fundos da loja de antiguidades de Pettibone?" Estremeci só de pensar nisso.

De qualquer modo, eu já conseguira grande parte do que pretendia obter nesse lugar. Agora, só restava vasculhar o abrigo Nissen em busca de papéis. Com um pouco de sorte, um nome familiar surgiria.

Naquele momento, ouvi o ruído de um motor vindo do lado de fora.

Dei uma olhada rápida em volta da sala. A não ser pelo forno frio, não havia outro lugar onde me esconder. A única alternativa era disparar para fora e fugir a toda.

Escolhi o forno.

Pensamentos de João e Maria cruzaram minha mente enquanto eu puxava a porta pesada para fechá-la atrás de mim e me agachava, tentando ficar tão encolhida quanto possível.

“Mais um vestido arruinado”, pensei, “e mais um sermão com olhos tristes do pai”.

Foi então que ouvi passos no piso de pedra.

Mal me atrevi a respirar -- o som seria grotescamente amplificado pela colmeia de tijolos na qual eu me apertava.

Os passos pararam, como se a pessoa escutasse.

Eles prosseguiram... e então pararam de novo.

Houve um ruído metálico, como se alguma coisa tivesse tocado o chão a apenas alguns centímetros de meu rosto. E então, lentamente... tão lentamente que quase gritei com o suspense... a porta se abriu.

A primeira coisa que vi foram as botas: grandes, empoeiradas, marcadas pelo trabalho.

E então, as pernas do macacão.

Ergui os olhos e olhei para o rosto.

-- Dieter!

Era Dieter Schrantz, o trabalhador braçal da Fazenda Culver-house -- o único prisioneiro de guerra remanescente em Bishop’s Lacey, que escolhera ficar na Inglaterra depois do fim das hostilidades.

-- É realmente você?

Comecei a sacudir o pó enquanto me arrastava para fora do forno. Mesmo depois de ter saído de meu agachamento e ficado ereta, Dieter ainda se elevava acima de mim, os olhos azuis e o cabelo loiro fazendo-o parecer nada mais do que um menino de escola crescido demais.

-- O que você está fazendo aqui? -- perguntei, arreganhando um sorriso bobo.

-- Você me permite perguntar a mesma coisa? -- disse Die-ter, abrangendo o recinto inteiro com um gesto. -- A não ser que este lugar tenha se tornado parte de Buckshaw, devo dizer que você está um bocado longe de casa.

Sorri educadamente com a piadinha dele. Dieter tinha como que uma paixão pela minha irmã Felinha, mas, fora isso, era um sujeito bem decente.

-- Eu estava jogando Lebre Solitária e Cães -- disse eu, criando regras desvairadamente e falando depressa demais. -- East Finching pontua em dobro pelo nome composto, e Sampson ganha um S triplo: Sampson, Salvados e Sobras de guerra, entendeu? Eu ganharia um ponto extra por um nome bíblico, mas hoje não é domingo, portanto não conta.

Dieter assentiu gravemente.

-- Muito complexas as regras inglesas -- disse ele. -- Eu mesmo nunca as entendi direito.

Ele se moveu em direção à porta, mas voltou-se para ver se eu o seguira.

-- Venha -- disse ele. -- Vou pegar seu caminho. Eu lhe dou uma carona.

Eu não estava exatamente pronta para partir, mas sabia que minha bisbilhotice chegara ao fim.

Afinal, quem seria capaz de conduzir uma xeretice completa com um ex-prisioneiro de guerra de um-metro-e-noventa-e-qualquer-coisa seguindo cada passo?

Pisquei um pouco quando saímos à luz do sol. Do outro lado do caminho, o velho e cinzento trator Ferguson de Dieter estava parado, o motor tagarelando consigo mesmo, como um elefante que acidentalmente dera com o cemitério de elefantes: um pouco chocado, talvez, por se ver subitamente entre ossos de seus ancestrais.

Depois de fechar o portão, subi na articulação entre as duas rodas de trás e arrastei Gladys atrás de mim. Dieter engatou a marcha, e partimos; os pneus altos de Fergie fizeram subir uma nuvem de cinzas que caíam atrás de nós como fogos de artifício escuros.

Voamos como o vento, aquecendo-nos ao sol de setembro e bebendo o ar fresco do outono. Foi somente quando já estávamos a meio caminho na encosta sul da Colina Denham que minha ficha caiu.

Meu traseiro estava firmemente apoiado contra um dos para-lamas de Fergie, e meus pés estavam sobre a articulação ruidosa. Enquanto avançávamos rapidamente, a terra abaixo parecia uma mancha confusa de preto-esverdeado.

“Mas por que”, pensei subitamente, “um lavrador estaria tão longe de casa sem um trailer, sem um arado, sem nem carregar um pouco de arame?" Simplesmente não fazia sentido.

Senti os pelos da nuca começando a se eriçar.

-- Quem mandou você? -- gritei por cima do vento ululante e do rugido do motor de Fergie.

-- O quê?

Eu sabia por experiência própria que ele estava tentando ganhar tempo.

-- O quê? -- perguntou ele de novo, como se eu não tivesse ouvido, o que me deixou súbita e inexplicavelmente furiosa.

-- Foi o pai, não foi?

Mas, assim que as palavras saíram de minha boca, eu soube que estava errada. Não havia mais chances de o pai telefonar para Dieter do que de o Homem da Lua telefonar para o exterminador de ratos.

-- O Inspetor Hewitt!

Eu estava me agarrando em palhas. O inspetor estava equipado com o próprio transporte oficial e jamais mandaria um civil a uma de suas missões.

Dieter empurrou para cima o acelerador, e o trator reduziu a velocidade. Ele parou em um pequeno acostamento, onde havia uma plataforma de madeira cheia de latões de leite.

Ele se virou para mim, sem sorrir:

-- Foi Ophelia -- disse.

-- Felinha? -- guinchei. Minha irmã mandara Dieter me seguir? O dia inteiro?

Como ela se atrevia?! Como ela se atrevia?! Duplamente maldita! Isso era uma afronta!

O fato de ser impedida -- arrancada, sequestrada virtualmente -- de proceder a uma investigação importante por minha própria irmã me fez ver vermelho.

Vermelho vivo.

Sem mais uma palavra, pulei do trator, trouxe Gladys para a estrada e parti a pé colina abaixo, a cabeça empinada e as tranças balançando.

Afastei-me bastante até me lembrar de pôr um pé no pedal e montar em Gladys; tomei impulso, trôpega mas suficientemente recuperada para começar uma ofendida, porém digna viagem.

Momentos depois, ouvi o motor do trator se acelerar, mas não olhei para trás.

Dieter emparelhou comigo, na velocidade precisa para me acompanhar.

-- Ela estava preocupada com você -- disse ele. -- Queria que eu verificasse se você estava bem.

Felinha, preocupada comigo? Mal pude acreditar. Eu poderia contar em um só dedo a quantidade de vezes que ela me tratara decentemente nos últimos dois anos.

-- Para me espionar, você quer dizer -- disparei de volta.

Foi uma coisa maldosa de dizer, mas eu disse. Eu gostava bastante de Dieter, mas pensar nele sob a influência de minha irmã me deixava lívida.

-- Venha, pule aqui -- disse Dieter, parando completamente o trator. -- Sua bicicleta também.

-- Não, muito obrigada. Preferimos ficar sozinhas.

Comecei a pedalar para ultrapassar o trator. Imagino que poderia ter parado, esperado e depois embarcado em uma carona graciosamente aceita até a aldeia. Mas, quando pensei nisso, já estava no meio da rua principal.


Fiquei desapontada por não encontrar Dogger trabalhando na estufa. Era sempre um grande prazer chegar discretamente, sentar serenamente ao seu lado e entrar em uma conversa tranquila, como aquela entre dois velhos camaradas no banco ao lado da lagoa dos patos.

Quando eu queria informações, minha segunda escolha era a sra. Mullet, mas, como descobri quando entrei na cozinha, ela já havia encerrado o dia de trabalho e ido para casa.

Eu teria dado qualquer coisa para conseguir sondar Dafi sobre os Hobblers, mas algo me impediu de falar com ela. Eu ainda não me vingara de sua participação na inquisição do porão, muito embora já tivesse quebrado duas vezes meu silêncio injuriado para lhe perguntar sobre Posêidon e Hilda Muir -- ou Hildemoer, para ser mais precisa -- e os duendes.

Parecia-me que não era possível ganhar uma guerra na qual estava sempre passando para o outro lado para pedir conselhos. Além disso, confraternizar -- seja lá qual for a palavra quando se trata de irmãs -- com o inimigo dilui sua decisão de lhe dar um pé no traseiro.

Minha cabeça estava fervilhando de informações, e eu tivera pouco tempo para pôr todas elas em ordem.

Alguns dos pontos mais interessantes já haviam começado a se unir em minha mente, agrupando-se e coagulando-se mais ou menos do mesmo modo como o cloreto de prata (o velho AgCl) forma uma espécie de queijo químico quando um cloreto solúvel é adicionado ao nitrato de prata.

“Solúvel!" Era essa a palavra. Seria eu capaz de solver esse complexo emaranhado de charadas?

Uma coisa ficou clara imediatamente: eu precisava saber mais -- muito, muito mais -- sobre os Hobblers, e era certo que nenhum Hobbler que eu conhecesse iria entregar de bandeja seus segredos e tornar minha vida mais fácil.

 

ACORDEI COM O BRAMIDO DA ÁGUA sobre o telhado e dos desaguadouros -- o som de Buckshaw sob a chuva.

Antes ainda de abrir os olhos, pude perceber que a casa inteira ficara viva como nunca estivera com o tempo seco -- pude ouvir um profundo respirar, para dentro e para fora, como se, depois de arremeter-se loucamente pelos séculos, o velho e cansado lugar houvesse simplesmente ultrapassado a linha de chegada.

Haveria pouco vento nos corredores, eu sabia, e súbitas correntes frias se ergueriam em cantos afastados. Apesar de seu tamanho, Buckshaw tinha o conforto de um submarino.

Enrolei-me no cobertor e arrastei-me até a janela. Do lado de fora, a chuva caía reta, como se seguisse linhas traçadas com régua. Não era o tipo de chuva que passaria depressa -- ainda duraria horas.

O pai reconheceu minha presença à mesa do desjejum com um breve aceno de cabeça. Pelo menos, não tentou estabelecer uma conversa frívola, pensei, e por isso ofereci uma pequena prece de agradecimento.

Dafi, como de costume, estava atarefadamente fazendo de conta que eu não existia.

Os dias chuvosos lançavam um pálio mais sombrio que o usual sobre nossa refeição matinal, e hoje não foi exceção.

Nosso menu de desjejum de setembro já estava em vigor havia duas semanas: minha língua se encolheu um pouco quando a sra. Mullet trouxe à mesa o que eu considerava como nossa ração diária de S.A.P.O.:

Suco de maçã.

Aveia.

Pão torrado.

Ordálio de tâmaras.

As tâmaras, fervidas e servidas com creme azedo frio, eram mais uma das atrocidades culinárias da sra. Mullet. Pareciam e tinham sabor de algo roubado de um ataúde no pátio da igreja à meia-noite.

“Passe o cadáver”, diria Dafi sem erguer os olhos de seu livro, e o pai fixaria nela um olhar flamejante, até que o último periódico filatélico puxasse a atenção dele de volta às suas páginas -- o que, usualmente, não demoraria mais do que dois ou três quartos de segundo.

Mas, hoje, Dafi não disse nada; estendeu o braço roboticamente e despejou algumas colheradas da gororoba nojenta em sua tigela.

Felinha ainda não descera, portanto escapei com alguma facilidade.

-- Podem me dar licença, por favor? -- perguntei, e o pai deu uma resmungada.

Segundos depois, eu estava no closet do vestíbulo, procurando por minha capa de chuva amarelo-brilhante.

“Quando se pedala na chuva”, Dogger me dissera uma vez, “estar visível é mais importante do que se manter seco."

“Você está dizendo que eu sempre posso me secar, mas não posso ser trazida de volta à vida se estiver empalada nos chifres de um Daimler”, dissera eu, brincando, mas nem tanto.

“Precisamente”, confirmara Dogger com um sorrisinho perfeito, voltando a polir as botas do pai.

As gotas da chuva ainda caíam retas como lanças no momento em que disparei para a estufa, onde deixara Gladys. Ela não gostava muito de chuva, pois seus para-lamas ficavam enlameados, mas nunca se queixou.

Eu tinha planejado muito cuidadosamente minha rota até Rook’s End, de modo a evitar tanto a Ravina quanto a casa da temida sra. Bull.

Enquanto pedalava pela estrada em direção a Bishop’s Lacey com minha capa de chuva amarela, lembrei-me do que Dogger dissera sobre visibilidade. Apesar da névoa que pairava como farrapos cinzentos de roupas lavadas sobre os campos encharcados, eu provavelmente podia ser vista a quilômetros de distância. Ainda assim, em outro sentido, como eu tinha apenas onze anos e era somente uma criança, estava envolvida no melhor manto de invisibilidade do mundo.

Pensei na ocasião em que a sra. Mullet me levara para ver O homem invisível. Fomos de ônibus a Hinley para substituir um vestido de Páscoa que eu havia arruinado durante um experimento particularmente interessante -- porém fracassado -- que envolvia ácido sulfúrico e ácido hidroclorídico.

Depois de uma hora nauseante na Modas de Eleanor, uma loja que ficava na rua principal e cujas vitrines se empapelavam com faixas em apavorantes tonalidades de rosa e verde-água -- “Última moda em vestidos de Páscoa para jovens senhoritas!"; “Novidade de Londres!"; “Bem na hora para a Páscoa!" --, a sra. Mullet sentiu piedade de mim e sugeriu uma visita à casa de chá A.B.C., que ficava ali perto.

Lá, nos sentamos por três quartos de hora em uma mesa próxima à janela, olhando as pessoas que passavam pela calçada. A sra. M ficou muito tagarela e, talvez se esquecendo de que eu não era sra. Walter, sua amiga, deixou escapar uma porção de coisas que, embora não fossem muito importantes na época, provavelmente seriam úteis quando eu fosse mais velha.

Depois do chá e dos docinhos, com a maior parte da tarde ainda à nossa frente -- “Você foi realmente uma artista com seu vestido, querida, apesar daquelas duas bruxas com suas fitas e seus alfinetes!" --, a sra. M decidiu me levar a um cinema que ela descobrira na rua estreita ao lado da casa de chá.

Como já tinha visto o filme anos atrás, ela falou durante O homem invisível inteiro, cutucando-me nas costelas enquanto explicava cada cena.

-- Ele pode vê-los, mas eles não conseguem.

Embora eu me divertisse com a ideia do cientista louco de injetar algum alvejante poderoso para se tornar invisível, fiquei verdadeiramente chocada com o modo como ele tratara seu equipamento de laboratório.

-- É só um filme, querida -- dissera a sra. Mullet quando agarrei seu braço durante a destruição dos objetos de vidro.

Mas, considerando tudo, pensei, ao relembrar agora, o entretenimento não fora um sucesso. A invisibilidade não era nada nova para mim. Era uma arte que eu fora forçada a aprender desde que dera meu primeiro passo.

Visível e invisível: o truque de estar presente e ausente ao mesmo tempo.

-- Iu-huu! -- gritei para ninguém em particular ao passar com estardalhaço por São Tancredo e entrar na rua principal.

No outro extremo da aldeia, virei para o sul. Na chuva, só dava para distinguir a distância o Jack o’Lantern, uma formação rochosa parecida com uma caveira que ficava acima de meu destino, Rook’s End.

Eu agora corria paralelamente à Ravina, a pouco menos de um quilômetro a leste dela; poucos minutos depois, já deslizava ao longo de um dos grandes capinzais que se estendiam em três direções.

Estive apenas uma vez em Rook’s End, para visitar o velho mestre-escola do pai, dr. Kissing. Naquela ocasião, eu o encontrei no solário decadente do asilo -- e, hoje, não estava ansiosa para pôr os pés naquele mausoléu especificamente.

Mas, para minha grande surpresa, quando saltei de Gladys na porta da frente, lá estava o velho cavalheiro sentado em uma cadeira de rodas, embaixo de um grande guarda-sol de cores alegres que fora colocado no gramado.

Ele acenou enquanto eu mourejava através do capim molhado, indo em sua direção.

-- Ah, Flavia! -- disse ele. -- “Não pode ser um dia ruim aquele que traz uma jovem visitante a meu portão." Horácio, é claro. Ou seria Catulo?

Arreganhei um sorriso para ele, como se soubesse mas houvesse esquecido.

-- Olá, doutor Kissing -- disse eu, entregando-lhe um maço de cigarros Players que surrupiara da gaveta de lingerie de Felinha. Ela comprara aquilo para impressionar Dieter; mas Dieter a dispensara brincando. “Não, obrigado”, dissera ele quando ela lhe ofereceu o maço: “Isso acaba com o peito da gente”. E ela guardara os cigarros sem os abrir. Felinha era inusitadamente orgulhosa de seu peito.

-- Ah! -- disse o dr. Kissing, fazendo surgir uma caixa de fósforos do nada e riscando um deles destramente, ao mesmo tempo que ainda abria o maço de cigarros. -- Que gentileza a sua de pensar em minha única grande fraqueza.

Ele inalou profundamente e segurou a fumaça nos pulmões pelo que pareceu ser uma eternidade. Então, deixou-a escapar enquanto falava, o olhar perdido, como se estivesse se dirigindo a outra pessoa.

-- “Ele assim arruína a Saúde, e o destrói a Substância, /Fútil perseguindo caprichosas alegrias com ânsia, /Até na galhofa encontrar talvez sua Maldição /Correndo para a arma assassina, para o seu caixão."

Correndo para a arma assassina, para o seu caixão?

Meu coração gelou quando ele pronunciou o último verso. Estaria se referindo ao próprio vício de fumar? Ou à bizarra morte de Brookie Harewood?

Uma conversa com o dr. Kissing era, eu sabia, um jogo de xadrez. Não haveria atalhos.

-- Os Hobblers -- disse eu, realizando o lance inicial.

-- Ah, sim -- ele sorriu. -- Os Hobblers. Eu sabia que você iria me perguntar sobre os Hobblers. Ficaria desapontado se não perguntasse.

Será que o sr. ou a sra. Pettibone teriam lhe contado sobre meu interesse? De algum modo, parecia improvável.

-- Certamente, você não suspeita que eu seja um deles...

-- Não -- disse eu, esforçando-me para acompanhá-lo. -- Mas eu soube que a sua sobrinha...

Até aquele exato momento, eu quase me esquecera de que o dr. Kissing era tio da srta. Mountjoy.

-- Minha sobrinha? Você pensou que minha sobrinha estava me mantendo informado sobre o seu...? Bom Deus, não! Ela não me conta nada. Nem a ninguém. Nem mesmo Deus sabe o que faz a mão esquerda de Tilda hoje em dia.

Ele viu minha perplexidade.

-- Não é preciso olhar além da própria lareira -- disse ele.

-- A senhora Mullet?

O dr. Kissing tossiu uma tosse ofegante -- o que me lembrou desconfortavelmente de Fenella -- e consolou-se acendendo mais um cigarro.

-- É fato conhecido que você está situada, por assim dizer, em íntima proximidade à estimada senhora Mullet. O resto é mera conjetura. Eu não tenho, é claro, me comunicado pessoalmente com aquela boa mulher. Mas acredito que ela seja amplamente conhecida por, hã...

-- Espalhar mexericos -- ofereci.

Ele se curvou levemente.

-- Seus dons descritivos me reduzem a pó -- disse ele.

Eu poderia facilmente amar esse homem.

-- Eu sei sobre Nicodemus Flitch -- contei a ele -- e sobre como ele levou sua fé a Bishop’s Lacey. Sei que ainda existem uns poucos Hobblers praticantes nas vizinhanças e que eles ocasionalmente se reúnem nas Paliçadas.

-- Para conduzir batizados.

-- Sim -- confirmei. -- Para batizados.

-- Uma prática muito mais comum nos anos passados -- disse ele. -- Hoje em dia, restaram poucos Hobblers em idade de procriação.

Tentei pensar quem seriam eles. Certamente, não seriam Tilda Mountjoy ou a sra. Pettibone.

-- Creio que a pobre senhora Bull tenha sido a última -- disse ele, e reparei que me observava com o canto do olho.

-- A senhora Bull?

Seria a sra. Bull uma Hobbler?

-- A sra. Bull, que mora na Ravina? -- perguntei. -- Aquela cujo bebê foi levado pelos ciganos?

Não pude evitar. Embora não acreditasse nisso, as palavras temíveis me escaparam antes que eu pudesse pensar.

O dr. Kissing assentiu.

-- É o que dizem.

-- Mas você não acredita.

Eu estava agora em plena forma, captando cada nuance das intenções do velho.

-- Devo confessar que não -- disse ele. -- Imagino que você queira que eu conte por quê.

Só consegui reagir com um sorriso bobo.

Embora a chuva ainda martelasse o guarda-sol com um rufar monótono, havia uma quietude e um calor surpreendentes sob o abrigo protetor do homem. Do outro lado do gramado, a casa apavorante que era Rook’s End agachava-se como um gigante sapo de pedra. Em uma de suas janelas altas -- onde havia sido, talvez, um salão de baile -- duas senhoras idosas, em trajes grotescos e antiquados, dançavam um minueto pomposo. Em minha outra visita ao dr. Kissing, eu vi a dupla executando seus passos atemporais sob as árvores; agora, obviamente, elas me avistaram.

Enquanto eu as olhava, a mais baixa das duas pausou para acenar com uma mão enluvada, e a outra, vendo a saudação da parceira, avançou até quase encostar no vidro e fez uma cortesia profunda e elaborada.

Quando eu trouxe minha atenção de volta ao dr. Kissing, ele estava acendendo outro cigarro.

-- Até o ano passado -- disse ele, observando a fumaça desaparecer na chuva --, eu ainda era capaz de subir até o topo do Jack o’Lantern. Para um jovem no apogeu de sua condição física, não é mais do que um passeio agradável; mas, para um fóssil em cadeira de rodas, é tortura. No entanto, para um velho, mesmo a tortura pode ser um alívio bem-vindo em relação ao tédio; por isso, eu muitas vezes fazia a subida por nenhum outro motivo senão rancor. Do pico, é possível ter uma visão geral, como da gôndola de um balão de ar quente. A noroeste, a distância, fica a Escola Greyminster, de meus maiores triunfos e de meu maior fracasso. A oeste, é possível ter uma visão clara das Paliçadas e, atrás, de Buckshaw, seu lar ancestral. Foi nas Paliçadas, por acaso, que certa vez pedi a mão da adorável Letitia Humphrey em sagrado matrimônio. E foi nas Paliçadas que Letitia teve o grande bom-senso de dizer não.

-- Aposto que ela viveu para se arrepender -- disse eu galantemente.

-- Ela viveu, mas sem remorso. Letitia acabou se casando com um homem que fez fortuna adulterando farinha de trigo com pó de ossos. Suponho que tenham deixado um ao outro muito felizes.

Uma nuvem de fumaça de tabaco fez-se subitamente visível no ar úmido.

-- Você se arrependeu? -- perguntei. Não foi uma pergunta educada, mas eu queria saber.

-- Embora eu não escale mais o Jack o’Lantern -- disse ele --, isso não se deve inteiramente as minhas enfermidades, mas também à tristeza cada vez maior que se vê do pico. Uma tristeza que não é nem um pouco visível a altitudes mais baixas.

-- As Paliçadas?

-- Houve um tempo em que eu adorava ficar olhando para baixo, para aquela antiga curva do rio, como se olhasse do alto de meus anos. De fato, eu estava fazendo isso naquele dia de abril, dois anos e meio atrás, quando o bebê Bull desapareceu.

Meu queixo deve ter caído.

-- Do lugar em que me encontrava, vi a cigana deixar seu acampamento. E, depois, vi a senhora Bull empurrando o carrinho de bebê pela Ravina.

-- Espere! -- disse eu. -- Certamente, foi o contrário...

-- Foi como descrevi. A cigana puxou seu cavalo e conduziu seu carroção para o norte, ao longo da Ravina. Algum tempo depois, a mulher Bull apareceu empurrando seu bebê para o sul, na direção das Paliçadas.

-- Talvez o carrinho estivesse vazio -- arrisquei.

-- Bem observado -- disse o dr. Kissing --, a não ser pelo fato de que eu a vi erguendo o bebê para remover a mamadeira perdida nas cobertas.

-- Então Fenella não poderia ter raptado o bebê.

-- Muito bom, Flavia. Como você deve ter percebido, eu há muito tempo cheguei à mesma conclusão.

-- Mas...

-- Por que eu não informei à polícia?

Assenti mudamente.

-- Eu me perguntei isso muitas e muitas vezes. E, a cada vez, respondi que foi, em parte, porque a polícia nunca me perguntou. Mas essa dificilmente é uma boa resposta, não é? Existe também o fato inegável de que, quando se chega a certa idade, uma pessoa hesita em assumir nova carga de problemas. É como se, tendo experimentado uma quantidade de sofrimento na vida, a pessoa sentisse a necessidade de entregar tudo ao Grande Mestre no Céu. Você entende?

-- Acho que sim -- respondi.

-- É por isso que guardei para mim mesmo -- disse ele. -- Mas, por mais estranho que pareça, é também a razão por que estou contando a você agora.

O silêncio entre nós só foi quebrado pelo som da chuva caindo.

Então, subitamente, do outro lado do gramado, veio um grito:

-- Doutor Kissing! O que o senhor está pensando?

Era a Abantesma Branca, a mesma enfermeira que eu vira em minha visita anterior a Rook’s End; ela parecia ridícula em seu uniforme branco e suas enormes galochas pretas enquanto atravessava desajeitadamente a grama em nossa direção, sob a chuva.

-- O que o senhor está pensando? -- perguntou ela de novo, entrando embaixo do guarda-sol. Eu já observara que pessoas dominantes como a Abantesma Branca frequentemente falam tudo duas vezes, como se devessem cumprir cotas.

-- Estou pensando, Enfermeira Hammond -- disse o dr. Kissing --, no triste declínio dos modos ingleses desde a última guerra.

Suas palavras foram respondidas com uma fungada silenciosa enquanto a mulher pegava sua cadeira de rodas e a empurrava rapidamente através do gramado.

Quando ela parou para abrir a porta da instituição, as palavras do dr. Kissing vieram flutuando a meus ouvidos:

-- Em frente, Flavia!

Era uma chamada para a caçada.

Acenei como louca para mostrar a ele que eu havia entendido a mensagem, mas era tarde demais. Ele já tinha sido levado para dentro, para fora de minha visão.

 

EU ACHO QUE HÁ UM TIPO DE CORAGEM que vem da incapacidade de decidir.

Se foi ou não foi obstinação de Gladys, eu não posso ter certeza, mas lá estávamos nós, subitamente nos desviando da estrada principal e entrando na Ravina.

Sempre andei de um lado para outro na aldeia, evitando a desagradável sra. Bull quase do mesmo modo que uma mosca evita um jornal dobrado. Mas a Ravina era um atalho para Buckshaw, e não havia melhor oportunidade do que essa.

Embora a pintura preta de Gladys estivesse agora salpicada de lama, ela parecia tão alegre e cheia de vida quanto se tivesse acabado de ser esfregada com uma escova de cerdas e enxugada com perfeição. Seu guidão niquelado, pelo menos, brilhava ao sol.

-- Você está gostando disso, não está, garota? -- eu disse, e ela deu um pequeno rangido de prazer.

Será que a sra. Bull estava montando guarda em seu portão? Eu teria de fingir mais uma vez que era Margaret Vole, sobrinha-neta da ficcional -- mas amada -- Gilda Dickinson?

Não precisava ter me preocupado. A sra. Bull não estava visível em parte alguma, embora a fumaça que pairava sobre as pilhas de lixo tornasse difícil ver muita coisa na propriedade.

Seu menino ruivo -- aquele que se encontrava empoleirado nos galhos quando passei pela Ravina com Fenella -- estava agora sentado na valeta à margem da estrada, escavando seu caminho para a China com um talher.

Fiz Gladys parar deslizando e pus os dois pés no chão.

-- Olá! -- disse eu, um tanto bobamente. -- Qual o seu nome?

Não foi uma abertura das mais brilhantes, mas eu não estava acostumada a falar com crianças e não tinha a mais pálida ideia de como iniciar uma conversa. De qualquer modo, não importava, pois o pequeno patife me ignorou e continuou com sua escavação.

Era difícil avaliar a idade dele, que poderia ser qualquer uma entre quatro e sete anos. A cabeça grande oscilava desajeitada em cima do corpo espigado, dando a impressão de se estar olhando para um bebê muito grande ou para um adulto pequeno.

-- Timofey -- disse ele em um soluço, quando eu já estava de partida.

-- Timothy?

Houve outra pausa incômoda, durante a qual fiquei passando inquieta meu peso de um pé para o outro.

-- Timofey.

-- Sua mãe está em casa, Timofey? -- perguntei.

-- Sei lá... sim... não -- disse ele, dando-me uma cautelosa olhada de lado, e voltou a cavar, espetando selvagemente o solo com seu utensílio de mesa.

-- Procurando um tesouro, é? -- perguntei, ficando toda amiguinha. Encostei Gladys em um banco e desci na valeta. -- Ei, deixe-me ajudar.

Enfiei a mão despreocupadamente no bolso e fechei os dedos em volta de uma barra de menta.

Com um movimento rápido, estendi a mão para dentro do buraco que ele estava cavando e fingi extrair o doce de lá.

-- Oh, Timofey! -- exclamei, batendo palmas. -- Olhe só o que você achou! Bom menino! Timofey achou um doce! -- Embora soasse esquisito, não fui capaz de chamá-lo por outro nome senão aquele que ele mesmo se dera.

Quando estendi a barra de menta, ele a arrancou da minha mão com um movimento tão rápido quanto um raio e enfiou-a na boca.

-- Pesouro! -- disse ele, mascando-a de um jeito repugnante.

-- Sim, tesouro -- arrulhei. -- Timofey achou um tesouro enterrado.

Com a barra de menta se projetando para fora do canto da boca como se fosse o termômetro de um enfermo, Timofey pôs de lado seu implemento de escavações e atacou o buraco com as mãos nuas.

Meu coração deu um pulo quando minha mente registrou o que agora jazia exposto na terra: a prata... os dentes... a figura da lagosta gravada no cabo... o monograma De Luce...

A criança estava cavando com um dos garfos de lagosta De Luce! Mas como era possível? Dogger já despachara a prata para ser leiloada na Sotheby’s, e a única peça que passara despercebida talvez fosse aquela usada para pôr fim a Brookie Harewood. E aquela, a não ser que eu estivesse lamentavelmente enganada, fora muito recentemente enfiada pela narina de Brookie Harewood até seu cérebro. Como era possível que tivesse saído de lá e chegado às mãos de um moleque que cavoucava na Ravina? Ou seria uma cópia?

-- Ei! -- disse eu. -- Deixe-me ajudá-lo. Sou maior. Posso cavar mais depressa. Para encontrar mais doces.

Fiz movimentos de cavar com as mãos, escavando como um texugo.

Mas Timofey agarrou o garfo de lagosta e segurou-o longe de mim.

-- Beu! -- disse ele com a boca cheia de barra de menta. -- Beu! Timofey achou!

-- Bom menino! -- disse eu. -- Vamos dar uma olhada.

-- Não!

-- Está bem -- disse eu. -- Não quero ver mesmo.

“Se existe alguém sobre a Terra que sabe como funciona a cabeça de uma criança”, pensei, “sou eu, Flavia de Luce”, porque não faz tanto tempo que eu mesma fui uma.

Enquanto falava, enfiei a mão no bolso e extraí mais uma barra de menta -- a última que tinha. Olhei para ela carinhosamente, ergui-a contra o sol para admirar seu brilho dourado, estalei os lábios...

-- Me dá! -- disse a criança. -- Eu quero!

-- Vou lhe dizer uma coisa -- falei para ele. -- Troco isto por aquela coisa de cavar. Você não quer essa coisa velha. Está suja.

Fiz uma careta horrível e toda a pantomima de vomitar, com efeitos sonoros e tudo.

Ele sorriu e inseriu os dentes do garfo de lagosta em uma de suas narinas.

-- Não, Timofey! -- ordenei, na voz mais autoritária que consegui. -- É pontudo, você vai se machucar. Me dê isso aqui. Imediatamente! -- acrescentei severa, assumindo a voz de uma autoridade, como faz o pai quando quer ser instantaneamente obedecido.

Estendi a mão, e Timofey docilmente depositou o garfo de lagosta de prata transversalmente a minha linha da vida, a mesma parte da mão que a cigana -- Fenella... terá sido há apenas três dias? -- segurara na dela para então me dizer que via escuridão.

-- Bom menino -- disse eu, com a cabeça girando enquanto meus dedos se fechavam sobre a arma do crime. -- Onde você achou isso?

Entreguei a ele a barra de menta, que ele agarrou sofregamente. Enfiei a mão no bolso vazio, como se estivesse cavoucando um saco sem fundo de doces.

Travei os olhos nos dele, notando, pela primeira vez, a estranha transparência de suas íris. Eu não iria desviar o olhar, pensei, não até que...

-- Molso de Patty -- disse ele de repente, as palavras escorrendo para fora em volta da grudenta barra de menta.

“Molso de Patty”? O bolso de Patty, é claro! Fiquei orgulhosa de mim mesma.

Mas quem era Patty? Não poderia ser o bebê -- o bebê não tinha idade suficiente para ter bolsos. Será que a sra. Bull tinha uma filha mais velha?

Minha cabeça zumbia com as possibilidades, conforme eu enfiava o garfo de lagosta no bolso. Foi um erro.

-- Mamãe! -- berrou a criança. -- Mamãe! Mamãe! Mamãe! Mamãe! Mamãe! -- cada guincho mais alto e mais agudo.

Arrastei-me para fora da valeta e corri para Gladys.

-- Mamãe! Mamãe! Mamãe! Mamãe! Mamãe!

O pequeno patife desembestara como um alarme disparado.

-- Você! -- veio uma voz do meio da fumaça; de repente, a sra. Bull vinha em minha direção, desajeitadamente passando pelas pilhas de lixo fumegante, como algo saindo de um pesadelo. -- Você! -- berrou ela, os braços brutos estendidos, prontos para me agarrar.

Depois que ela pusesse as mãos em mim, eu estaria acabada, sem dúvida. A mulher era grande o bastante para me despedaçar como se eu fosse um saco de trapos podres.

Agarrei Gladys e disparei, meus pés escorregando loucamente nos pedais enquanto eu me jogava para a frente, na tentativa de ganhar velocidade.

Por estranho que pareça, eu estava pensando muito claramente. Deveria tentar distraí-la gritando “Fogo!" e apontando para a casa dela? Como o lugar era cercado por montes de lixo fumegante, essa parecia uma ideia tanto boa quanto má.

Mas não era o momento para táticas -- a sra. Bull avançava em minha direção em uma velocidade alarmante.

-- Mamãe! Mamãe! Mamãe! Mamãe! Mamãe! -- continuou Timofey de dentro da valeta.

As enormes mãos da mulher tentaram me agarrar quando nossos caminhos se cruzaram. Eu precisava passar por ela para ficar em segurança. Se ela conseguisse agarrar uma de minhas mangas que fosse, eu estaria perdida.

-- Ia-huu! -- o brado me escapou de modo muito inesperado, mas o reconheci imediatamente. Era o grito de batalha de um selvagem: um feroz, destemido urro que saíra de meus pulmões ancestrais como se aguardasse por isso há séculos. -- Ia-huu! -- deixei voar mais um brado, só pelo prazer. A sensação foi boa.

A sra. Bull não parou -- mas vacilou, perdeu o passo --, e eu passei por ela em disparada.

Olhei para trás por cima do ombro e vi a mulher parada na estrada, sacudindo os punhos, a cara vermelha contorcida de fúria enquanto gritava:

-- Tom, saia daí... e traga o machado!


Sentei-me à beira do rio e deixei a água esfriar meus pés. Havia um silêncio sinistro nas Paliçadas, e eu estremeci um pouco ao pensar nas coisas que aconteceram nos últimos dias. Primeiro, ocorrera o ataque a Fenella, quase imediatamente seguido pela morte de Brookie Harewood. Então, logo antes de desaparecer, Porcelana me contou que a polícia havia encontrado o corpo de um bebê -- provavelmente o bebê dos Bull -- bem aqui no bosque. Suponho que eu deveria sentir pena da mãe. Ela ficara enlouquecida de tristeza, até onde eu sabia. Talvez eu devesse ter passado por cima de tudo e expressado minhas condolências.

Mas a vida nunca é fácil, não é? Se ao menos fosse possível fazer o tempo correr para trás, como acontece naqueles curtas-metragens do cinema nos quais chaminés dinamitadas de fábricas caem para cima e se restauram, e cacos de vidro estilhaçado voam e se juntam para formar um vaso... Num mundo assim, se quisesse, eu poderia subir a Ravina pedalando para trás, desmontar de Gladys e dar um abraço na mulher. Eu lhe diria que sentia muito por terem achado o corpo de seu bebê enterrado nas Paliçadas e que, se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer, ela só tinha de pedir.

Suspirei.

Do outro lado do rio e no meio das árvores, não longe do lugar no qual o carroção de Fenella estava estacionado, pude ver um monte de terra fresca. Deveria ser o local onde o corpo fora encontrado.

A não ser pelo fato de ter visto o pé do bebê -- “Enrolado em um tapete ou coisa assim”, como dissera Porcelana; “Uma trouxa de velhos ossos verdes” --, ela não me deu mais nenhum detalhe. E agora era tarde demais -- Porcelana se fora.

Dificilmente eu poderia perguntar ao Inspetor Hewitt sobre a descoberta do corpo; até que tivesse a oportunidade de descobrir pela sra. Mullet o que a aldeia comentava, eu estava por minha própria conta. Eu atravessaria o rio e daria uma olhada.

O rio não era muito profundo aqui. Afinal, os Hobblers vieram a este lugar por séculos para batizar seus bebês. A profundidade da água era suficiente apenas para dar um bom e velho mergulho, e eu não estava a mais do que trinta metros do lugar revolto onde a polícia, evidentemente, fizera seu achado pavoroso.

Puxei a barra do vestido alguns centímetros para cima e comecei a atravessar.

Poucos metros além da margem, a água já ficava nitidamente mais fria no fundo. Eu vadeava lentamente para o centro, os braços esticados a fim de me equilibrar, tomando muito cuidado para não perder o pé na corrente cada vez mais forte.

Logo eu estava a meio caminho -- e logo o passei. O nível da água já estava abaixo de meus joelhos quando pisei em alguma coisa dura, tropecei, perdi o passo e, abanando os braços, caí de costas na água. Imersão total.

-- Oh, cuspe de rato! -- exclamei. Estava furiosa comigo mesma. Por que não peguei Gladys e atravessei pela pequena ponte? -- Duplo cuspe de rato!

Coloquei-me em pé com dificuldade e olhei para mim mesma. Meu vestido estava completamente encharcado.

O pai iria ficar furioso.

-- “Mas que droga! Com a breca, Flavia!" -- diria ele, como sempre, e então começaria um daqueles silêncios entre nós que duraria vários dias, até que um dos dois esquecesse minha ofensa. “Estar às turras”, era essa a definição de Dafi. Agora, com os joelhos na água, tentei imaginar que fora subitamente transportada para um rio caudaloso e frio, em algum lugar nas florestas do norte do Canadá, e cabeças decepadas de lenhadores passavam por mim bamboleantes, parecendo maçãs cinzentas e inchadas.

Mas o pensamento prático me levou de volta a Bishop’s Lacey. Eu sabia que, quando chegasse a Buckshaw, teria de entrar sorrateiramente na casa, subir cautelosamente a escadaria e lavar o vestido na pia de meu laboratório.

Na água, a pequena nuvem de lama agitada por meus pés se dissipava rapidamente.

Era estranho: embora eu pudesse ver claramente a parte de cima dos pés no leito do rio, não havia pedras visíveis. E, no entanto, eu certamente tropeçara em alguma coisa dura. Quase quebrara um dedo do pé naquela coisa estúpida. “Como já fizera antes!"

Fiquei parada por um momento, já sentindo um arrepio de frio no ar de setembro.

Alguma coisa na água se mexeu: uma bolha... uma agitação... uma luz.

Lentamente, curvei-me e estendi a mão, cautelosa, para o fundo do rio.

Um pouco mais fundo... um pouco mais para a esquerda. Embora eu não pudesse ver, meus dedos se fecharam em volta de alguma coisa dura. Segurei-a firme e a ergui.

À medida que eu a puxava para fora da água, ela se tornava visível. Era sinistro.

Dura... transparente... invisível na água... torna-se visível à medida que entra em contato com o ar.

Uma súbita sensação de ansiedade me mostrou que meu coração já sabia o que era a coisa antes mesmo de meu cérebro saber, e ambos começaram a palpitar quando me dei conta de que o objeto que eu segurava nas mãos era a bola de cristal de Fenella -- a bola com a qual alguma pessoa desconhecida golpeou seu crânio; a bola com a qual alguém tentara matá-la.

Aquela coisa estava no fundo do rio há dias, sua transparência tornando-a invisível na água, apesar de estar perfeitamente dentro do campo de visão. Não admira que a polícia não a tenha achado!

Somente se eles tivessem vadeado a água -- e somente se tivessem pisado naquilo por acidente, como eu -- teriam encontrado o objeto de sua busca.

Eu, é claro, a levaria para o Inspetor Hewitt imediatamente.

Quando subi para a margem, notei que um silêncio caíra sobre as Paliçadas, como se os pássaros estivessem com medo de soltar um pio sequer.

A bola de cristal estava fria em minhas mãos, refratando imagens distorcidas da terra, das árvores e do céu, as cores rodopiantes como tinta na água.

Se não fosse pelo vidro, eu poderia ter perdido o clarão azul entre as árvores -- uma cor que não pertencia ao lugar.

Parei bruscamente, parecendo preocupada. “Não olhe diretamente”, pensei.

Torci a barra do vestido inutilmente, como se tentasse secá-lo, e então fiz uma pequena rede com ele para carregar a bola de cristal.

Será que minhas mãos molhadas deixariam impressões digitais? Quem sabe? Era o melhor que eu podia fazer.

-- Dane-se tudo! -- falei em voz alta, mais pelo efeito do que outra coisa, mas sinalizando que eu pensava estar sozinha.

Com minha visão periférica, pude ver que havia um padrão de cor entre os arbustos. Desviando ligeiramente o olhar, vi o que parecia ser um xale -- um xale florido.

Poderia ser um dos duendes de que Dafi e Felinha me falaram -- uma daquelas malevolentes criaturas da água que roubavam bebês? Talvez fosse a mesma que levara a criança da sra. Bull! Mas não... Duendes não existem. Ou será que existem?

Deixei os olhos desviarem lentamente para a direita.

Muito abruptamente, como que por mágica, uma imagem bro-tou no lugar. Foi como uma daquelas ilusões de óptica do Almanaque das meninas em que a silhueta de duas faces de perfil de repente se torna aos olhos um cálice.

Cabelos cinzentos... olhos cinzentos mirados diretamente para mim... um xale no pescoço... calça de montaria -- e até o monóculo pendurado no pescoço por um cordão preto.

Era a companheira de Vanetta Harewood, Ursula, imóvel entre os arbustos, contando com a camuflagem da quietude para me impedir de avistá-la -- Ursula, que juntava ramos de salgueiro na margem do rio para tecer as suas cestas pavorosas.

Deixei meus olhos se encontrarem com os dela e depois se desviar, como se não a tivessem visto. Olhei para a direita dela, para a esquerda e, finalmente, por cima, deixando a boca se abrir frouxamente.

Cocei a cabeça e então, receio, o traseiro.

-- Estou chegando, Gladys -- gritei. -- É só um esquilo.

Com isso, disparei pela ponte, resmungando comigo mesma, como a filha tresloucada de um fazendeiro excêntrico.

“Diabos!", pensei. Não tive chance de examinar as escavações da polícia.

Ainda assim, o dia fora notavelmente produtivo. Em meu bolso, estava o garfo de lagosta de prata que -- eu tinha quase certeza -- fora usado para dar fim a Brookie Harewood; e, aninhada em minha saia, a bola de cristal, quase certamente o objeto com o qual Fenella fora golpeada. Por que a teriam jogado no rio, se não por isso?

Uma ideia começou a tomar forma.

É claro, eu iria passar aquelas armas imediatamente ao Inspetor Hewitt -- esse sempre fora o meu plano, por várias razões. Mas, antes, pensei: “Seria possível recuperar impressões digitais de um objeto que estivera mergulhado por dias na água corrente?".

 

EU NÃO HAVIA SUBIDO mais que uma dúzia de degraus quando a voz do pai, vinda de algum lugar do foyer, disse:

-- Flavia...

Impedida!

Parei, virei-me e desci um degrau por respeito. Ele estava em pé, junto à entrada da ala oeste.

-- Meu estúdio, por favor.

Ele se virou e saiu.

Arrastei-me degraus abaixo e o segui devagar, fazendo questão de me manter bem recuada.

-- Feche a porta -- disse ele, e sentou-se a sua escrivaninha.

Aquilo era sério. O pai usualmente pronunciava seus pequenos discursos ao lado da janela, olhando fixamente para o jardim.

Sentei-me na beirada de uma cadeira e tentei parecer atenta.

-- Recebi uma chamada da Enfermeira Hammond no... instrumento. -- Ele apontou vagamente na direção do telefone, mas não conseguiu pronunciar a palavra. -- Ela me disse que você levou o doutor Kissing para fora e para baixo da chuva.

“A bruxa velha! Eu não fiz nada disso”.

-- Ele não estava embaixo da chuva! -- protestei. -- Estava sentado sob um guarda-sol, no gramado, e já estava lá quando cheguei.

-- Não faz diferença -- disse o pai, erguendo a mão como um policial que dirige o trânsito.

-- Mas...

-- Ele é um idoso, Flavia. Não deve ser incomodado com in- trusões sem sentido em sua privacidade.

-- Mas...

-- Essa perambulação pela área rural precisa parar -- disse ele. -- Você está se tornando um estorvo muito grande.

Um estorvo! Ora!

Eu podia ter cuspido no tapete.

-- Andei pensando muito nesse assunto ultimamente -- disse ele -- e cheguei à conclusão de que você está com excesso de tempo livre.

-- Mas...

-- Em parte, a culpa é minha, admito. Você não tem recebido supervisão suficiente, e, como resultado, seus interesses se tornaram um tanto... deletérios.

-- Deletérios?

-- Consequentemente -- o pai prosseguiu, inexorável --, decidi que você precisa passar mais tempo entre pessoas. Na companhia de seus pares.

Do que ele estava falando? Primeiro, eu estava perambulando excessivamente pela aldeia, e, agora, eu estava precisando de companhia humana. Soava como algo que se diria sobre um cão pastor indisciplinado.

Antes que eu pudesse protestar, o pai tirou os óculos, dobrou suas hastes pretas por cima das lentes muito deliberadamente e os pôs no estojo rígido. Era um sinal de que a conversa se aproximava do fim.

-- O vigário me contou que o coro está precisando de várias vozes a mais, e assegurei a ele que você ficaria feliz em participar. Eles marcaram um ensaio extra para esta noite, às seis e meia em ponto.

Fiquei tão atônita que não consegui pensar em uma só palavra para dizer.

Depois, pensei em uma.


-- Não faça corpo mole -- disse Felinha enquanto marchávamos através do campo em direção à igreja. Ela fora convocada para substituir temporariamente o sr. Collicutt, como fazia às vezes.

-- Então, onde está o velho Cockie? -- perguntei e aguardei a inevitável explosão. Felinha, eu acho, estava meio apaixonada pelo belo rapaz que recentemente fora designado como organista de São Tancredo. Ela até chegou ao ponto de se juntar ao coro por causa da visão privilegiada dos balouçantes cachos loiros do moço a qual um assento do presbitério proporcionava.

Mas Felinha não estava mordendo -- de fato, estava estranhamente suave.

-- Ele está julgando o festival de música em Hinley -- disse ela, quase como se eu tivesse feito uma pergunta educada.

-- Dó, ré, mi, fá, sol, lá-eu-com-isso? -- cantei alto e propositadamente desafinado.

-- Guarde isso para os pecadores -- disse Felinha afavelmente. E seguiu andando em silêncio.

Meia dúzia de meninos em uniformes de escoteiro, todos participantes do coro de São Tancredo, empurravam uns aos outros no pátio da igreja em um jogo bruto de futebol cuja bola era o chapéu de alguém. Um deles era Colin Prout.

Felinha enfiou o polegar e o mindinho na boca e soltou um assobio surpreendentemente agudo e pouco feminino. O jogo se interrompeu imediatamente.

-- Para dentro! -- ordenou Felinha. -- Os hinos, antes das brincadeiras violentas.

A reunião da tropa não se daria até depois do ensaio do coro.

Houve um par de gemidos e sussurros anônimos, mas os meninos obedeceram. Colin tentou escapulir correndo, os olhos grudados no chão.

-- Ei, Colin -- chamei, atravessando-me na frente dele para bloquear seu caminho. -- Eu não sabia que você era escoteiro.

Ele baixou a cabeça, enfiou as mãos nos bolsos do short e saiu de lado a fim de me evitar. Eu o segui para dentro da igreja.

Os participantes mais velhos do coro já haviam tomado seus lugares e tagarelavam entre si enquanto aguardavam a chegada do organista, os homens de um lado do presbitério, e as mulheres, de frente para eles, do outro.

A srta. Cool, que era ao mesmo tempo agente de correio e confeiteira de Bishop’s Lacey, lançou-me um sorriso radiante, e as srtas. Puddock, Lavinia e Aurelia, que eram donas do salão de chá São Nicolau, me fizeram acenos idênticos com os dedos.

-- Boa noite, coro -- disse Felinha. Era uma tradição que remontava às névoas da história cristã.

-- Boa noite, senhorita de Luce -- eles responderam automaticamente.

Felinha sentou-se no banquinho do órgão e, com não mais do que um “Hino número trezentos e oitenta e três” apregoado por cima do ombro, atacou os primeiros compassos de “Semeamos os campos e colhemos seus frutos”, deixando-me perdida diante do hinário.


Deixamos a terra arada e semeada

com nossa boa semente preciosa;

porém eis que é alimentada e regada

de Deus pela mão grande e poderosa.

No inverno, Ele traz a neve em lençol;

mas traz o calor para inchar o grão,

traz as brisas, bem como a luz do sol,

e a chuva refrescante no verão.


Enquanto cantava, pensei no corpo de Brookie pendurado no tridente de Posêidon, embaixo do aguaceiro. Não havia nada de refrescante naquela tempestade em particular -- de fato, tinha sido um pé-d’água infernal.

Olhei para Colin, do outro lado. Ele estava cantando com intensa concentração, os olhos fechados, a face voltada para cima, para a última luz do dia que se infiltrava pelas ensombradas janelas de vidros coloridos. Eu lidaria com ele depois.


Ele, e só Ele é o Criador,

perto e longe, tudo ilumina;

Ele dá às flores sua cor

e acende a estrela vespertina,

ventos e ondas O obedecem...


O órgão parou brusca e guinchadamente no meio de uma nota, como se alguém o tivesse estrangulado.

-- De Luce -- disse uma voz azeda, e me dei conta de que era a voz de Felinha.

Ela estava se dirigindo a mim!

-- A voz não pode emergir de uma boca fechada.

Cabeças se voltaram para mim, e houve um par de sorrisos e risadinhas.

-- Muito bem, então. Outra vez. Desde “ventos e ondas O obedecem...".

Ela deu o tom no teclado, e o órgão rugiu de volta à vida. E lá fomos nós outra vez.

Como ela se atrevia a me discriminar daquele jeito no meio de todos? A bruxa! “Me aguarde, Ophelia Gertrude de Luce... apenas me aguarde!"

Para mim, o ensaio do coro pareceu continuar por uma eternidade, talvez porque não haja alegria em simplesmente mover os lábios sem realmente pronunciar as palavras -- em verdade, é um trabalho surpreendentemente duro.

Mas por fim acabou. Felinha juntou suas partituras e enta- bulou um alegre bate-papo com a esposa do vigário, Cynthia Richardson, cujo fã-clube não incluía a mim entre seus membros. Aproveitei a oportunidade para me esgueirar sem ser notada e encurralar Colin no pátio da igreja com algumas perguntas interessantes que me vieram à cabeça.

-- Flavia...

Droga!

Felinha interrompeu sua conversa e veio em minha direção. Era tarde demais para fingir que eu não a ouvira.

Ela segurou meu cotovelo e deu uma sacudida furtiva.

-- Não tente se safar -- disse ela num sussurro e, usando a outra mão, acenou um alegre “até mais” para Cynthia. -- O pai estará aqui em poucos minutos, e ele pediu em especial que você esperasse por ele.

-- O pai, aqui? Para quê?

-- Ora, pare com isso, Flavia. Você sabe tão bem quanto eu. É a noite do cinema. E o pai tinha toda a razão: ele disse que você tentaria se esquivar.

Ela estava certa nas duas coisas. Embora eu imediatamente tivesse tirado aquilo da cabeça, semanas atrás o pai comunicara do nada que nós não saíamos juntos o bastante como uma família -- uma situação que ele pretendia corrigir filiando-se à proposta do vigário de realizar uma série de sessões de cinema no salão paroquial.

De fato, aqui estava o pai com Dafi, à porta da igreja, apertando a mão do vigário. Era tarde demais para escapar.

-- Ah, Flavia -- disse o vigário --, obrigado por acrescentar sua voz ao nosso pequeno coro de anjos, por assim dizer. Eu estava justamente contando a seu pai quão encantado fiquei ao ver Ophelia no banco do órgão. Ela toca tão bem, você não acha? É um prazer vê-la conduzir o coro com tamanho entusiasmo. “E uma criança pequena os conduzirá”, como nos diz o profeta Isaías. Não, é óbvio, que Ophelia seja uma criança pequena, por Deus, não! Longe disso. Mas vamos, o Cinema Bijou nos aguarda!

Enquanto atravessávamos o pátio da igreja em direção ao salão paroquial, notei que Colin estava passando rapidamente de sepultura em sepultura, aparentemente engajado em um elaborado jogo inventado por ele mesmo.

-- Fico preocupado com aquele menino -- ouvi o vigário confidenciar ao pai. -- Ele não tem pai nem mãe, e, agora, sem Brookie Harewood por perto para, por assim dizer, cuidar dele... Mas estou tagarelando. Ah, aqui estamos. Vamos entrar?

Dentro, o salão paroquial estava desagradavelmente quente. Na preparação para os filmes, as cortinas haviam sido puxadas para bloquear a luz do entardecer, e o lugar já estava ficando saturado com o bafo úmido gerado pelo excesso de corpos superaquecidos em um espaço confinado.

Pude distinguir muito claramente os muitos odores de Bi-shop’s Lacey, entre eles os vários perfumes e loções pós-barba; o cheiro de talco (o vigário); de bergamota (as srtas. Puddock); de álcool para massagem (nosso vizinho Maximilian Brock); de repolho cozido (a sra. Delaney); de cerveja Guinness (o sr. Danby); e de tabaco holandês para cachimbo (George Carew, o carpinteiro da aldeia).

Como a srta. Mountjoy, com seu invasivo odor de óleo de fígado de bacalhau, não estava visível, circulei lentamente pelo salão, farejando discretamente em busca do mais leve cheiro de peixe.

“Oh, olá, senhor Spirling. É um prazer vê-lo aqui. (Farejo.) Como vai a senhora. Spirling com seu crochê? Deus, é tanto trabalho, não é? Eu não sei de onde ela tira tempo."

No centro do salão, o sr. Mitchell, proprietário da loja de fotografia da rua principal, estava se atracando com serpentes de filme cinematográfico preto, tentando alimentar com elas as entranhas do projetor.

Não pude deixar de refletir sobre a última vez em que estivera no salão paroquial; foi na ocasião da apresentação final do espetáculo de marionetes de Rupert Porson -- nesse mesmo palco --: Joãozinho e o pé de feijão. “Pobre Rupert”, pensei, e um pequeno e delicioso arrepio sacudiu meus ombros.

Mas aquele não era o momento para prazeres -- eu tinha de trabalhar duro, por assim dizer.

Juntei-me novamente ao pai, Dafi e Felinha, bem no momento em que as luzes do salão estavam sendo apagadas.

Não vou me dar ao trabalho de citar as observações preliminares do vigário sobre “a crescente importância dos filmes na educação dos jovens”, e assim por diante. Ele não mencionou nem a morte de Brookie nem o ataque contra Fenella, mas talvez aquele não fosse o lugar nem o momento adequado para isso.

Fomos então mergulhados em uma breve escuridão; alguns momentos depois, o primeiro filme lampejou na tela -- um desenho animado em preto e branco no qual um coro de gatos de chapéus-coco, escancarando sorrisos horríveis, pulava para cima e para baixo em uníssono, uivando “Não é divertido?" em acompanhamento à música de uma minúscula banda de jazz.

Misericordiosamente, aquilo não durou muito tempo.

Na breve pausa durante a qual as luzes se acenderam e o filme foi trocado, notei que a sra. Bull chegou com Timofey e o bebê. Se ela me viu entre o público, não demonstrou.

O filme seguinte, Saskatchewan: celeiro do mundo, era um documentário que mostrava grandes colheitadeiras se arrastando através da superfície plana de campinas canadenses e, depois, rios de grãos sendo despejados em vagões ferroviários e escotilhas abertas de navios cargueiros que aguardavam no porto.

Quando acabou, estiquei o pescoço para dar uma olhada em Colin Prout -- sim, lá estava ele, bem no fundo do salão, devolvendo firmemente meu olhar. Fiz um pequeno aceno, mas ele não reagiu.

O terceiro filme, A manutenção de motores aéreos -- Parte III, deve ter sobrado da guerra -- estava sendo exibido simplesmente porque, por acaso, encontrava-se na mesma caixa que os outros. À luz refletida da tela, vi o pai e Felinha trocando olhares intrigados antes de sossegar e parecer que estavam achando aquilo terrificamente instrutivo.

A atração final do programa era um documentário chamado O versátil limão, o qual, com exceção da menção do narrador ao fato de que limões já foram usados como antídoto para uma grande variedade de venenos, era de uma chatice esmagadora.

Assisti com os olhos fechados.


A lua nova não era mais do que uma lasca de prata no céu quando seguíamos para casa pelos campos. O pai, Dafi e Felinha foram ligeiramente na frente, enquanto eu me arrastava atrás deles, mergulhada em meus próprios pensamentos.

-- Não faça corpo mole, Flavia -- disse Felinha em uma voz paciente e meio divertida, que me deixou enlouquecida. Ela estava representando para o pai.

-- Micuim! -- respondi, envolvendo a palavra em um espirro.

 

MEU SONO FOI CONTURBADO por imagens de prata. um cavalo prateado em uma clareira prateada mastigava grama prateada com seus dentes prateados. Um Homem da Lua prateado brilhava no céu sobre um carroção prateado. Moedas de prata formavam uma cruz na mão de um cadáver. Um rio prateado deslizava.

Quando acordei, meus pensamentos voaram imediatamente para Fenella. Estaria ela viva ainda? Teria recobrado a consciên-cia? Porcelana alegara que sim, ao passo que o vigário dissera que não.

Bem, só havia um jeito de descobrir.


-- Desculpe, velha amiga -- eu disse a Gladys sob a luz cinzenta da madrugada --, mas tenho de deixá-la em casa.

Pude ver que ela ficou desapontada, muito embora conseguisse fingir uma cara valente.

-- Preciso que você fique aqui de isca -- sussurrei. -- Quando virem você encostada na estufa, vão pensar que ainda estou na cama.

Gladys animou-se consideravelmente com a ideia de uma conspiração.

-- Se eu for rápida, poderei evitar a estrada e pegar o primeiro ônibus para Hinley deste lado da Colina Oakshott.

No canto do jardim, virei-me e murmurei as palavras: “Não faça nada que eu não faria”. Gladys sinalizou que não faria.

Disparei como uma bala.


O nevoeiro pairava sobre os campos conforme eu atravessava os sulcos de arado, pulando graciosamente de um monte de terra a outro. Pegando o ônibus em uma estrada vicinal, eu não seria vista por ninguém, a não ser pelos passageiros que já estivessem a bordo, nenhum dos quais ofereceria muito risco de me denunciar ao pai, já que estariam todos se dirigindo a destinos distantes de Bishop’s Lacey.

Bem quando eu estava passando por cima da última cerca, o ônibus de Cottesmore surgiu à vista, subindo e descendo pelo caminho, sonoramente batendo as asas como uma grande ave desgrenhada, aproximando-se de mim aos solavancos pela estrada.

Ele parou com um suspiro enferrujado, e uma gavinha de vapor evolou-se da tampa niquelada do radiador.

-- Embarque! -- disse Ernie, o motorista. -- Olhe o degrau. Olhe o degrau. Cuidado com os pés!

Entreguei-lhe o dinheiro da passagem e deslizei em um assento a três fileiras da frente. Como eu suspeitara, havia poucos passageiros àquela hora do dia: um par de mulheres idosas que se apertavam na traseira, demasiadamente envolvidas nos próprios mexericos para prestar um mínimo de atenção em mim, e um lavrador de macacão com uma enxada, que olhava tristemente pela janela para os campos sombrios e enevoados. O Sol não apareceria por mais um quarto de hora.


O hospital de Hinley ficava no fim de uma íngreme rua que subia precariamente atrás da praça do mercado; suas janelas olhavam taciturnas para as pedras pretas abaixo, ainda molhadas da chuva da noite. Atrás do alto portão de ferro forjado, a casa de guarda do porteiro ostentava uma placa que dizia em letras categóricas: “Todos os visitantes, por favor, identifiquem-se”.

“Não perambule”, alguma coisa me disse, e segui o conselho.

À esquerda, um arco de pedra descorada levava a uma passagem estreita, na qual bruxuleava a luz doentia de um par de lampiões de gás quadrados.

“Somente carros funerários”, estava escrito em uma placa discreta; verifiquei que eu estava no caminho certo.

A despeito de minha tentativa de caminhar em silêncio, meus passos ecoaram nas pedras molhadas e nas paredes de tijolos infiltradas. No outro extremo, pude ver que a passagem se abria para um pequeno pátio. Parei para ouvir.

Nada, a não ser o som de minha própria respiração. Espiei cautelosamente pelo canto.

-- Beck! -- disse uma voz forte, quase ao meu ouvido. Encolhi-me e achatei o corpo contra a parede. -- Beck, venha para cá. O homem da Quench vai chegar já, já, e queremos que ela esteja pronta para ser entregue. Você sabe tão bem quanto eu o que acontece quando os deixamos esperando.

Ellis e Quench, eu sabia, era a maior e mais antiga empresa funerária de Hinley, conhecida por toda parte pelo resplendor de seus carros funerários Rolls-Royce e pelo brilho de seus carros Daimler para enlutados.

“Quando a Ellis e Quench enterra você, você fica de fato enterrado”, disse-me certa vez a sra. Mullet. Eu poderia acreditar facilmente que eles não gostavam de ficar esperando.

-- A velha enfermeira-chefe vai ficar furiosa -- prosseguiu a voz -- se não estivermos todos na plataforma nas condições e na pontualidade típicas de Bristol. E, quando a velha enfermeira-chefe não está feliz, eu não estou feliz, e, quando eu não estou feliz, você não está feliz. Beck? Venha logo para cá!

Veio o som de botas se arrastando sobre as tábuas da plataforma de carga, e então uma voz -- uma voz surpreendentemente jovem, talvez de um menino -- disse:

-- Desculpe, senhor Martin. Esqueci de contar. Eles telefonaram há uns vinte minutos. Disseram que vão chegar mais tarde. Tiveram um chamado na Enfermaria Velha, foi o que aconteceu.

-- Ah, eles tiveram, não é? Os cretinos! Não hesitam em deixar gente como nós se contorcendo ao vento, enquanto eles vão se divertir na zona rural com seus malditos Bentleys. Bem, vou descer até a caldeira para tomar uma xícara de chá, com ou sem Quench. A enfermeira-chefe está informada sobre a última leva de enfermeiras. Pobrezinhas... Espero que se lembrem de seus uniformes de asbestos!

Esperei até ouvir as pesadas portas se fecharem e depois, rapidamente, antes que pudesse pensar melhor, escalei a plataforma de carga.

-- Droga! -- disse eu a meia-voz quando uma lasca de madeira furou meu joelho. Arranquei fora a coisa e enfiei-a no bolso, para não deixar nenhuma pista no caminho. Com o lenço, enxuguei um pouco do sangue que pingava, mas não havia tempo para compressas. Aquilo teria de bastar.

Respirei fundo, abri a porta pesada e entrei em um corredor fracamente iluminado.

Os pisos eram de mármore; as paredes eram pintadas de marrom no primeiro metro e meio e de um verde horroroso desse ponto até o teto, que parecia ter sido caiado em outro século.

À minha direita, havia cubículos minúsculos, um dos quais ocupado por um carrinho de mão, e, sobre ele, uma figura coberta por um lençol. Não foi preciso grande esforço de imaginação para adivinhar o que jazia embaixo. Era a coisa real: o artigo genuíno!

Eu estava louca para abrir as fivelas das correias e dar uma espiada no que havia embaixo do lençol, mas não dava tempo.

Além disso, parte de mim não queria saber se o corpo era de Fenella.

Não ainda. Não desse jeito.

De onde eu estava, podia ver o corredor inteiro, que se estendia até se perder na distância. Parecia não ter fim.

Comecei a andar muito devagar, pondo um pé na frente do outro: pé direito... pé esquerdo. De um lado do corredor, havia uma porta dupla, identificada como “Lavanderia”, de trás da qual vinha um murmúrio abafado de máquinas e da risada de uma mulher.

Pé esquerdo... pé direito... dedão, calcanhar...

A porta seguinte dava para a cozinha: pratos que retiniam, vozes que tagarelavam e o poderoso, pertinaz cheiro de uma gordurosa sopa de repolho.

Sopa no desjejum? Dei-me conta de que não havia comido desde o dia anterior, e meu estômago se contraiu.

Nos doze passos seguintes, as paredes mudaram inexplicavelmente para verde-musgo, e então, com a mesma rapidez, para um enjoativo amarelo-mostarda. Quem quer que tivesse escolhido a tinta, deduzi, queria se assegurar de que a pessoa que não estivesse doente ao entrar no hospital o estaria na hora de sair.

As próximas portas à esquerda, a julgar pelo estimulante bafo de formol, pertenciam à morgue. Arrepiei-me um pouco ao passar por elas: não de medo, mas, antes, de prazer.

Uma outra sala estava identificada como “Raios-X”; além desse ponto, portas abertas de ambos os lados do corredor, cada uma com um número de quarto. Em cada quarto, havia alguém dormindo, ou rolando na cama. Alguém roncava, alguém gemia, e pensei ter ouvido uma mulher chorando.

“São estas as alas”, pensei, “e deve haver outras no primeiro e no segundo andares."

Mas como eu poderia encontrar Fenella? Até então, eu não pensara nisso nem por um momento. Como é possível encontrar rapidamente uma agulha em um monte de feno?

Certamente, não é examinando uma palha de cada vez!

Eu agora chegara à porta que se abria para uma espécie de grande foyer, no centro do qual uma mulher envolvida em uma suéter de lã preta olhava atentamente para cartas de baralho espalhadas sobre a mesa. Ela não ouviu quando me aproximei.

-- Com licença -- disse eu --, mas você pode pôr o cinco de ouros sobre o seis de paus.

A mulher quase caiu da cadeira. Ela se pôs em pé de um pulo e virou-se para me encarar.

-- Nunca... -- seu rosto adquiria a cor da beterraba. -- Eu disse nunca... -- seus punhos se fechavam e se abriam espasmodicamente.

-- Sinto muito por tê-la assustado -- disse eu. -- Eu não queria, realmente...

-- O que você está fazendo aqui? -- demandou ela. -- As visitas não são permitidas até uma e meia da tarde, e agora são apenas... -- ela deu uma olhada no relógio, uma coisinha impossivelmente minúscula presa ao seu pulso.

-- Estou esperando a minha prima -- expliquei. -- Ela acabou de entrar para levar à minha avó um pouco de...

Respirei fundo e forcei o cérebro em busca de inspiração, mas a única coisa que me veio à cabeça -- na verdade, às narinas -- foi o odor nauseante que ainda vazava no corredor vindo da cozinha.

-- Sopa! -- concluí. -- Trouxemos um pouco de sopa para nossa avó.

-- Sopa? -- A voz da mulher e também suas sobrancelhas subiram, formando um V invertido. -- Você trouxe sopa? Aqui? Para um hospital?

Assenti humildemente.

-- Quem é a sua avó? -- demandou ela. -- Qual é o nome dela? É uma paciente?

-- Fenella Faa -- disse eu sem hesitar.

-- Faa? A cigana? -- perguntou ela, engolindo em seco.

Assenti como boba.

-- E sua prima, diz você, trouxe sopa para ela?

-- Sim -- respondi, apontando a esmo. -- Ela foi por ali.

-- Qual é seu nome? -- perguntou a mulher, agarrando uma lista datilografada em sua escrivaninha.

-- Flavia -- disse eu. -- Flavia Faa.

Era simplesmente implausível o bastante para ser verdade. Fungando como um cavalo de corrida, a mulher saiu e começou a descer um largo corredor para o lado oposto do foyer.

Segui em sua direção, mas não creio que ela tenha notado. Ainda assim, mantive uma boa distância, esperando que ela não se voltasse. Tive sorte.

Sem uma olhada para trás sequer, ela desapareceu para dentro da penúltima sala à esquerda, e ouvi o som de cortinas sendo abertas. Não parei; continuei andando após passar na frente da porta aberta. Uma única olhadela revelou Fenella na cama mais distante, a cabeça envolta em bandagens.

Esquivei-me das vistas, posicionando-me atrás de um carrinho drapeado que estava parado junto à parede.

-- Muito bem, saia daí! -- ouvi a mulher e, em seguida, o barulho de uma porta sendo aberta, provavelmente o banheiro do quarto.

Houve um silêncio -- e depois uma conversa em voz baixa, abafada. Será que ela estava falando com Fenella ou consigo mesma?

A única palavra que chegou claramente a meus ouvidos foi “sopa”.

Mais um breve silêncio; depois, o som de sapatos de salto ecoou ao se afastar pelo corredor.

Contei até três, então esvoacei como um morcego para dentro do quarto de Fenella, fechando a porta atrás de mim. Um bafo de éter me disse que aquela provavelmente era uma ala cirúrgica.

Fenella estava deitada de costas, imóvel, com os olhos fechados. Ela parecia tão frágil -- como se os lençóis tivessem absorvido o último grama dos fluidos vitais.

-- Olá -- sussurrei. -- Sou eu, Flavia.

Não houve resposta. Estendi o braço e peguei sua mão.

Muito lentamente, seus olhos se abriram, esforçando-se para focalizar.

-- Sou eu, Flavia -- disse de novo. -- Está lembrada?

Seus lábios enrugados se contraíram, e a ponta de sua língua apareceu. Foi como a cabeça de uma tartaruga emergindo do casco depois de passar um longo inverno no fundo da lagoa.

-- O... mentiroso -- sussurrou ela, e eu sorri estupidamente, como se houvesse conquistado o primeiro prêmio num concurso de simpatia.

Lambendo os lábios febrilmente, Fenella virou a cabeça para mim, os olhos negros agora subitamente bravios, implorando em suas órbitas fundas.

-- Cgarr -- disse ela muito claramente, apertando minha mão.

-- Desculpe -- disse eu. -- Não entendi.

-- Cgarr -- disse ela de novo. -- Puff.

Uma luz se acendeu no fundo de minha mente.

-- Cigarro? -- perguntei. -- É isso que você está dizendo?

Ela assentiu.

-- Sgred. Puff?

-- Desculpe -- disse eu. -- Eu não fumo.

Seus olhos estavam fixos em meus olhos, implorando.

-- Vou lhe dizer uma coisa -- comecei. -- Eu vou procurar um, mas, primeiro, preciso fazer algumas perguntas importantes.

Não lhe dei tempo para pensar.

-- A primeira é esta: você realmente acredita que eu fiz isso com você? Eu morreria, se você acreditasse.

As sobrancelhas dela se juntaram.

-- Fez isso?

-- Que pus você aqui, no hospital. Por favor, Fenella, eu preciso saber.

Eu não tinha a intenção de chamá-la pelo primeiro nome -- simplesmente me escapou. Foi esse tipo de momento. Dafi me disse uma vez que conhecer e usar o nome de uma pessoa dá a você poder sobre ela.

Não havia dúvida de que, pelo menos por ora, eu tinha poder sobre aquela pobre criatura ferida, mesmo que fosse apenas o de negar um cigarro.

-- Por favor, Fenella! -- implorei.

Se isso era poder, eu não queria nada com ele. A sensação era terrível.

Sem desviar os olhos dos meus, ela moveu lentamente a cabeça de um lado para outro.

-- Não -- ela sussurrou afinal, respondendo a minha pergunta.

Não? Não era a resposta que eu esperava. Se Fenella não achava que fora eu quem a atacara, então Porcelana mentiu!

-- Quem foi, então? -- demandei em uma voz tão áspera que surpreendeu até a mim. Teria aquele rosnado selvagem saído de minha garganta? -- Quem foi? Conte-me quem fez isso com você!

Por alguma razão inexplicável, tive vontade de agarrá-la e sacudi-la até que a resposta fosse expelida. Era um tipo de raiva que eu nunca sentira.

Fenella ficou aterrorizada. Pude ver isso em seus olhos aturdidos.

-- O Touro Vermelho -- disse ela, enfatizando cada uma das duas palavras. -- Foi... o Touro Vermelho.

O Touro Vermelho? Aquilo não fazia nenhum sentido.

-- O que está acontecendo aqui?

A voz veio da porta. Dei meia-volta e me vi cara a cara com uma enfermeira. Não eram apenas o uniforme e as meias brancas que a faziam parecer tão intimidadora: a capa azul com forro e guarnição vermelhos a transformavam em uma bandeira britânica ambulante.

-- Flavia?

A voz familiar me pegou de surpresa.

Era Flossie Foster, a irmã de Sheila, amiga de Felinha!

-- Flossie? É você mesma?

Eu havia me esquecido de que Flossie dedicava-se à enfermagem. Fora uma das futilidades mencionadas à mesa do jantar por Felinha, em algum momento entre a salada e os bolinhos de salsicha, e esquecidas antes que os pratos fossem retirados.

-- É claro que sou eu, sua boba. Que diabo você está fazendo aqui?

-- Eu... hã... vim visitar uma amiga -- disse eu, fazendo um gesto largo na direção de Fenella.

-- Mas o horário de visitas só começa à tarde. Se a enfermeira-chefe pegar você, vai comer os dedos de seus pés com torradas.

-- Escute, Flossie -- disse eu. -- Preciso de um favor. Preciso de um cigarro e preciso depressa.

-- Ha! -- disse Flossie -- Eu deveria saber. A irmãzinha de Felinha é uma viciada em tabaco!

-- Não é nada disso -- disse eu. -- Por favor, Flossie. Prometo qualquer coisa.

Flossie enfiou a mão no bolso e retirou um maço de Du Maurier e um isqueiro de esmalte cloasonado com um monograma.

-- Agora acenda -- disse eu a ela.

Surpreendentemente, ela fez o que pedi, embora um tanto furtivamente.

-- Nós só fumamos no salão de chá das enfermeiras -- falou ela ao me entregar o cigarro. -- E só quando a enfermeira-chefe não está por perto.

-- Não é para mim -- disse eu, apontando para Fenella. -- Entregue a ela.

Flossie olhou fixamente para mim.

-- Você deve estar louca -- disse ela.

-- Vá em frente, entregue a ela... ou vou contar à enfermeira-chefe o que tinha naquela garrafa de bolso que você levou à festa ao ar livre do vigário.

Eu só estava caçoando, mas, antes que eu pudesse abrir um sorriso, Flossie inseriu o cigarro entre os lábios secos de Fenella.

-- Você é uma besta-fera -- disse ela. -- Uma besta-fera absolutamente horrorosa!

Pude ver que ela quis me esbofetear quando lhe dei um triunfante sorriso forçado.

Nós duas nos interrompemos para olhar Fenella. Seus olhos estavam fechados, e a fumaça saía de sua boca em uma série de pequenas baforadas, como sinais de fumaça de uma fogueira apache. Podiam bem estar soletrando a palavra “b-e-a-t-i-t-u-d-e”.

Foi naquele exato momento que a enfermeira-chefe irrompeu no quarto.

Com seu elaborado chapéu de três bicos e seu peitilho engomado ela parecia Napoleão -- só que muito maior.

Ela avaliou a situação com uma só olhada.

-- Enfermeira Foster, quero vê-la em minha sala.

-- Não, espere -- eu me ouvi dizendo. -- Posso explicar.

-- Então faça isso.

-- A enfermeira entrou só para nos dizer que é proibido fumar. Ela não tem nada a ver com isso.

-- É verdade!

-- Eu ouvi você chegando -- disse eu -- e enfiei meu cigarro na boca dessa pobre mulher. Foi burrice minha. Me desculpe.

Arranquei dos lábios de Fenella o que restara do cigarro e o enfiei nos meus próprios. Dei uma tragada profunda e depois exalei, segurando a coisa entre o indicador e o anular, no estilo continental, como vira Charles Boyer fazer no cinema, e lutando o tempo todo contra a sensação de sufocamento.

-- Então, como você explica isto? -- perguntou a enfermeira-chefe, pegando o isqueiro de Flossie que estava em cima do cobertor de Fenella e estendendo-o acusadoramente para mim.

-- É meu -- eu disse. -- O F é de Flavia. Flavia de Luce. Sou eu.

Detectei o que parecia ser um olhar de soslaio quase imperceptível -- ou seria uma careta assustada?

-- Dos De Luce de Buckshaw?

-- Sim -- respondi. -- Foi um presente do pai. Ele acredita que um cigarrinho de vez em quando fortifica os pulmões contra os vapores dos esgotos.

A enfermeira-chefe não ficou exatamente boquiaberta, mas olhou para mim como se eu subitamente tivesse desenvolvido um bico e uma cauda peluda.

Então, inesperadamente, ela enfiou o isqueiro em minhas mãos e limpou seus dedos na própria saia.

Ouvimos o som de sapatos de couro profissionais no corredor, e o dr. Darby entrou calmamente no quarto.

-- Ah, Flavia -- disse ele. -- Bom encontrá-la. Esta, enfermeira-chefe, é a jovem cuja ação imediata salvou a vida da senhora Faa.

Estendi a mão tão depressa que a velha mulher-dragão foi forçada a apertá-la.

-- É um prazer conhecê-la, enfermeira-chefe -- disse eu. -- Já ouvi falar tanto de você...

 

-- MAS COMO ELA ESTÁ? -- perguntei. -- Fenella, quero dizer. de verdade...

-- Ela vai se safar -- disse o dr. Darby.

Estávamos voltando para Bishop’s Lacey, o Morris do doutor ronronando alegremente entre as sebes, como uma máquina de costura de férias.

-- Crânio fraturado -- respondeu ele a meu silêncio. -- Fratura condilar occipital com depressão, como dizemos os curandeiros. Soa bem, não é? Graças a você, fomos capazes de levá-la à sala de cirurgia a tempo de elevar o pedaço quebrado sem grandes problemas. Acho provável que ela se recupere completamente, mas teremos de aguardar para saber. Você está bem?

Ele não deixou de notar o fato de que eu estava sorvendo grandes quantidades do ar matinal, na tentativa de livrar meu sistema da fumaça do cigarro e dos horríveis odores do hospital. O formol da morgue não fora tão ruim -- de fato, fora bastante agradável --, mas o fedor da sopa de repolho que vinha da cozinha era suficiente para me fazer vomitar uma hiena.

-- Estou ótima, obrigada -- disse eu, com o que, receio, tenha sido um sorriso doentio.

-- Seu pai ficará muito orgulhoso de você -- prosseguiu ele.

-- Oh, por favor, não conte a ele! Prometa que não vai contar!

O doutor me lançou uma olhada inquisitiva.

-- É que ele já tem tanta coisa com que se preocupar...

Como eu já disse, os problemas financeiros do pai não eram segredo em Bishop’s Lacey, especialmente para seus amigos, entre os quais estava o dr. Darby; o vigário era o outro.

-- Entendo -- disse o dr. -- Então, ele não ouvirá nada de mim. Ainda assim -- ele acrescentou com uma risadinha --, a novidade acabará circulando, você sabe.

Não consegui pensar em nada para mudar de assunto.

-- Estou um tanto intrigada com uma coisa -- disse eu. -- A polícia levou a neta de Fenella, Porcelana, para vê-la no hospital. E, segundo ela, Fenella lhe contou que fui eu quem a golpeou na cabeça.

-- E foi você? -- perguntou o dr. maliciosamente.

-- Depois -- disse eu, ignorando a provocação --, o vigário me contou que ele também fez uma visita a Fenella, mas ela ainda não havia recobrado a consciência. Qual deles estava dizendo a verdade?

-- O vigário é um homem benquisto -- disse o dr. Darby. -- Um homem muito benquisto. Ele me traz flores de seu jardim de vez em quando, para alegrar meu consultório. Mas, se eu for acuado, terei de admitir que às vezes, no hospital, nos vemos obrigados a lhe contar pequenas mentiras. Mentirinhas de jaleco branco. Para o bem do paciente, é claro. Tenho certeza de que você entende.

Se existia uma coisa no mundo sobre o que eu entendia acima de todas as outras era sonegar fragmentos selecionados da verdade. Não seria exagero dizer que eu era uma Enaltecida Grã-Mestra no ofício.

Assenti modestamente com a cabeça.

-- Ele é muito dedicado a seu trabalho -- disse eu.

-- Como quis o destino, eu estava presente nas duas ocasiões, quando a neta foi ao hospital e também quando o vigário foi. Embora o vigário não tenha sequer chegado a entrar no quarto, a senhora Faa estava plenamente consciente no momento de sua visita.

-- E Porcelana?

-- Quando da visita de Porcelana, ela não estava consciente. As vítimas de fratura no crânio, veja bem, podem perder e recobrar a consciência tão facilmente quanto você e eu podemos passar de um quarto para outro. Um fenômeno interessante, dependendo de seu ponto de vista.

Eu mal estava ouvindo. Porcelana mentiu para mim. A bruxa!

Não existe nada que um mentiroso odeie mais do que descobrir que outro mentiroso mentiu para ele.

-- Mas por que ela pôs a culpa em mim?

As palavras devem ter me escapado. Eu não tinha a intenção de pensar em voz alta.

-- Ah -- disse o dr. Darby. -- “Há mais coisas entre o céu e a Terra, Horacio, do que pode imaginar nossa vã filosofia." O que significa que as pessoas podem se comportar de maneira estranha em momentos de grande tensão. Ela é uma jovem complicada, sua amiga Porcelana.

-- Ela não é minha amiga! -- disse eu um tanto abruptamente.

-- Você a abrigou e a alimentou -- disse o dr. Darby com olhar divertido. -- Ou talvez eu tenha entendido mal.

-- Eu senti pena dela.

-- Ah. Nada além de pena?

-- Eu queria gostar dela.

-- A-há! E por quê?

A resposta, é claro, era esta: eu tinha esperança de fazer uma amiga; mas era difícil admitir isso.

-- Nós sempre queremos amar os objetos de nossa carida-de -- disse o dr., negociando com uma curva fechada na estrada e vencendo-a com surpreendente demonstração de habilidade --, mas isso não é necessário. De fato, algumas vezes nem é possível.

De repente, me senti à vontade para confiar naquele cavalheiro -- e contar-lhe tudo. Mas eu não podia.

A melhor coisa a fazer quando se sente as lágrimas despontar sem nenhuma razão é mudar de assunto.

-- Você já ouviu falar no Touro Vermelho?

-- O Touro Vermelho? -- perguntou ele, dando uma guinada para se desviar de um cão terrier que de repente aparecera latindo na estrada. -- Em qual Touro Vermelho você está pensando?

-- Existe mais de um?

-- Existem muitos. O pub Red Bull, que quer dizer Touro Vermelho, em Santa Elfrieda, é o primeiro que me vem à mente.

Um sorriso insinuou-se no rosto do dr. Darby, como se ele estivesse se lembrando de uma alegre noite de dardos e algumas deliciosas canecas de cerveja.

-- E...?

-- Bem, vejamos... Há o Touro Vermelho do filme Kim, deus de novecentos demônios, visto em um campo verde... Havia o Touro Vermelho dos Bórgia, que constituía a bandeira deles, cujo fundo era um campo de ouro, e não verde... O notório teatro Red Bull, que pegou fogo no Grande Incêndio de Londres, em 1666... Havia o mítico Touro Vermelho da Inglaterra, que se confrontou com o Touro Negro da Escócia em uma luta mortal... E, é claro, nos tempos em que os sacerdotes praticavam a medicina, eles costumavam oferecer os pelos de um touro vermelho como cura para a epilepsia. Esqueci algum?

Nenhum daqueles parecia ser o Touro Vermelho que atacara Fenella.

-- Por que você pergunta? -- questionou ele ao ver minha óbvia perplexidade.

-- Oh, por razão nenhuma -- disse eu. -- Algo que ouvi em algum lugar... No rádio, talvez.

Pude perceber que o dr. Darby não acreditou em mim; mas ele era suficientemente cavalheiro para não pressionar.

-- Aí está São Tancredo -- disse eu. -- Você pode me largar no pátio da igreja.

-- Ah -- disse o dr. Darby, pisando no freio do Morris. -- Hora de uma breve oração?

-- Algo assim -- respondi.


Na verdade, eu precisava pensar.

Pensar e orar são mais ou menos a mesma coisa, se você parar para pensar a respeito -- se é que isso faz algum sentido. A oração sobe, e o pensamento desce -- ao menos é o que parece. Até onde posso dizer, é a única diferença.

Pensei nisso enquanto caminhava através dos campos até Buckshaw. Pensar em Brookie Harewood -- em quem o matou, e por quê -- era na verdade apenas mais um jeito de rezar pela alma dele, não é?

Se isso fosse verdade, eu acabara de estabelecer uma ligação direta entre a caridade cristã e a investigação criminal. Mal podia esperar para contar ao vigário!

Quinhentos metros adiante, de um lado do caminho, estavam a vereda e as sebes em cujos arbustos Porcelana se escondera.

Quase sem que eu percebesse, meus pés me levavam naquela direção.

Se o que disse sobre Fenella era mentira, Porcelana não poderia realmente estar com medo de mim, como assumira. Portanto, deveria haver outra razão para ela se esconder no meio das sebes -- uma razão que eu não consegui descobrir.

Se era esse o caso, então ela conseguira me enganar.

Passei por cima da cerca e entrei na vereda. Foi exatamente aqui que ela se escondeu entre os arbustos. Fiquei parada por um momento, ouvindo.

-- Porcelana? -- chamei, os pelos da nuca se eriçando.

O que me fazia pensar que ela ainda estava aqui?

-- Porcelana?

Não houve resposta.

Tomei um grande fôlego, sabendo que poderia ser meu último. Quando se tratava de Porcelana, você poderia se ver com uma faca na garganta em questão de milésimos de segundo.

Mais uma respiração funda -- esta por questão de segurança --, e então avancei para dentro da sebe.

Pude ver imediatamente que não havia ninguém escondido lá. Uma área levemente aplainada e algumas ervas pisoteadas indicavam claramente o local onde Porcelana se ocultara no outro dia.

Agachei-me atrás dos ramos e tomei a mesma posição que ela provavelmente assumira, colocando-me em sua pele, olhando para o mundo como se fosse através dos olhos dela. Quando fiz isso, minha mão encostou em alguma coisa sólida... alguma coisa dura.

Ela estava enfiada em um montinho feito de ramos. Enrolei os dedos em volta do objeto e puxei-o.

Era preto e circular, com pouco mais de dez centímetros de diâmetro, talvez, e feito com algum tipo de madeira escura e exótica -- talvez ébano. Esculpidos a sua volta, havia os signos do zodíaco. Corri um dedo lentamente pela imagem esculpida de um par de peixes, a cabeça de um contra a cauda do outro. Pisces.

A última vez que vira esse anel de madeira fora na quermesse. Estava sobre a mesa de Fenella, servindo de apoio para sua bola de cristal.

Havia pouca dúvida de que Porcelana surrupiara do carroção a base da bola e escapulia com ela quando a surpreendi.

Mas por quê? Seria uma lembrança? Teria algum valor sentimental?

Porcelana era simplesmente enfurecedora. Nada do que ela fez fazia sentido.

O fato de encontrar a base me lembrou de que a bola, escondida seguramente à plena vista entre os vidros de meu laboratório, ainda aguardava um estudo cuidadoso.

Minha intenção era examiná-la à procura de impressões digitais, muito embora a maior parte dos indícios provavelmente fora apagada quando da imersão da bola no rio. Lembrei-me de como Philip Odell, o detetive da rádio, mostrara certa vez para o Inspetor Hewitt que as secreções glandulares das palmas e dos dedos consistiam primariamente de água e sólidos solúveis em água.

“Então, como pode ver, inspetor”, dissera ele, “o erro fatal de Garvin foi correr os dedos por seu cabelo. O barbeiro o perfumara com brilhantina que continha óleo racemoso, o qual, é claro, é solúvel em álcool, mas não em água. Mesmo depois de uma noite no fundo de uma corrente de água, as impressões digitais no cabo da faca ainda estavam suficientemente visíveis para envolver seu pescoço de vilão com um laço”.

Philip Odell à parte, eu tinha minhas próprias ideias sobre impressões digitais e água. Existia, por exemplo, uma substância doméstica facilmente disponível que fixaria e endureceria quaisquer resíduos de sujeira que pudessem ter sido deixados pelas mãos de um assassino. Com o devido tempo, eu faria o trabalho de laboratório e as anotações e as entregaria ao Inspetor Hewitt em uma bandeja de prata. Ele, é claro, levaria meu relatório para casa e o mostraria a sua mulher, Antigone.

Mas eu não tivera tempo. A noite compulsória de cinema e o ensaio do coro em São Tancredo, seguidos por minha visita a Fenella no hospital, haviam me roubado a oportunidade de conduzir a necessária pesquisa.

Eu tinha de correr para casa e começar imediatamente.

Mal pus um pé para fora da moita, ouvi o som de um motor se aproximando. Fugi novamente para o esconderijo; lembrei-me de virar o rosto quando aquela coisa passou velozmente. No momento em que decidi que era seguro sair de novo, a máquina já tinha sumido na direção de Buckshaw.


Na verdade, eu não avistei o Vauxhall azul do inspetor até pôr os pés entre os grifos dos Portões Mulford. Estava estacionado abaixo das castanheiras, e o inspetor apoiava-se pacientemente no carro, aguardando.

Tarde demais para me virar e sair correndo. Eu teria de fazer o melhor possível.

-- Oh, inspetor -- disse eu --, eu estava justamente a ponto de lhe telefonar e contar o que descobri!

Eu sabia que estava sendo efusiva demais, mas não fui capaz de me conter. Estendi a base de madeira para ele.

-- Isto estava em uma moita ao lado do caminho. Acho que é parte da bola de cristal de Fenella.

Ele puxou um lenço de seda do bolso interno e tomou o anel de madeira e minhas mãos.

-- Você não devia ter tocado nisto -- disse ele. -- Devia ter deixado onde estava.

-- Tenho consciência disso -- eu disse a ele. -- Mas era tarde demais. Eu já tinha tocado antes de ver, sem intenção. Estava escondido embaixo de umas plantas. Eu simplesmente entrei no meio dos arbustos por um momento...

A expressão no rosto dele me disse que eu estava patinando sobre gelo fino: eu já usara a desculpa do “súbito chamado da natureza”, e ela não resistiria a uma repetição.

-- Você me viu, é claro. Não viu? Foi por isso que parou e aguardou por mim aqui.

O inspetor ignorou essa elegante e pequena dedução.

-- Entre, por favor -- disse ele, segurando a porta traseira do Vauxhall aberta. -- Está na hora de termos uma conversa.

O Sargento-Detetive Graves, no assento do motorista, virou-se para trás e me lançou uma rápida olhada inquisitiva, mas não sorriu. Foi só então que me dei conta do tamanho da encrenca em que me metera.

Viajamos em silêncio até a porta da frente de Buckshaw.


Foi minha segunda confissão completa no mesmo número de dias. Estávamos sentados na sala de estar -- todos nós, com exceção do pai, que se encontrava em pé ao lado da janela, olhando para fora, para o lago ornamental, como se sua vida dependes-se disso.

Ele insistira para que todos estivéssemos presentes e convocou Felinha e Dafi, que, irritantemente, vieram na hora e estavam agora sentadas lado a lado, formais e virtuosas, em um divã florido, como um par de sapos que fora convidado para o chá.

-- É lamentável -- o Inspetor Hewitt estava dizendo -- que nossa investigação tenha sido tão seriamente comprometida. Cenas de crime perturbadas... evidências mexidas... informações cruciais sonegadas... Eu mal sei por onde começar.

Ele estava falando de mim, é claro.

-- Tentei fazer Flavia entender a seriedade desses assuntos, mas com pouco sucesso. Portanto, receio ter de insistir, Coronel de Luce, que, até que nosso trabalho esteja terminado, você a mantenha confinada em Buckshaw.

Eu não pude acreditar em meus ouvidos! Confinada em Buckshaw? Por que não me exilar na Austrália e acabar logo com isso?

Bem, é o fim das obrigações com o coro e das noites de cinema. É o fim do decreto do pai, segundo o qual precisávamos sair mais em família.

O pai murmurou alguma coisa e mudou a direção de seu olhar do lago ornamental para as colinas distantes.

-- Uma vez dito isso -- prosseguiu o inspetor --, chegamos à verdadeira razão por que estamos aqui.

Verdadeira razão? Meu coração despencou, como se já soubesse de alguma coisa que eu ainda não sabia.

O inspetor sacou seu caderno.

-- Foi tomado o depoimento de uma senhorita Ursula Vipond, que afirma ter testemunhado a remoção de dentro do rio de algo que ela descreveu como... -- ele abriu o caderno e virou um par de páginas -- ...uma esfera de vidro...

Meus olhos se arregalaram.

-- ...por uma criança cujo nome ela tem razões para acreditar que seja Flavia de Luce.

Maldita mulher! Eu percebi na hora que a intrometida só poderia ser aquela ogra, Ursula, que assombrava o chalé de Vanetta Harewood, em Malden Fenwick. Eu já listara aquela criatura odiosa em meu caderno, mas não sabia seu sobrenome.

Ela estava escondida no meio dos arbustos quando tirei a bola de cristal de Fenella do rio, nas Paliçadas.

-- Bem?

Pelo seu tom, pude perceber que o inspetor estava ficando impaciente.

-- Eu ia entregá-la a você imediatamente -- disse eu.

-- Onde está ela? -- perguntou ele.

-- Em meu laboratório. Vou pegá-la e...

-- Não! Fique onde está. O Sargento Graves cuidará disso.

Surpreso, o sargento parou de fitar Felinha e se pôs em pé de um pulo.

-- Só um momento, sargento -- disse ela. -- Vou lhe mostrar o caminho.

A traidora! A insolente! Mesmo com sua irmãzinha sob ataque, Ophelia não conseguia pensar em nada, a não ser em namoro.

-- Espere -- disse eu. -- O laboratório está trancado. Vou ter de buscar a chave.

Antes que alguém pudesse pensar em me deter, passei voando por Felinha, pelo sargento, pela porta e me vi na metade da sala.

Na verdade, a chave estava em meu bolso, mas, a não ser que me virassem de ponta-cabeça e me sacudissem, não havia como eles saberem disso.

Disparei escada acima, subindo de dois em dois degraus, como se todos os demônios de Hades estivessem em meus calcanhares. Voei para dentro da ala leste e ao longo do corredor.

Tentei desesperadamente destrancar o laboratório, mas alguma coisa dentro do mecanismo da fechadura parecia estar emperrada, como se...

Dei um empurrão violento na porta, e ela se abriu, quase me lançando nos braços de... Porcelana!

 

-- O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI? -- chiei, o coração ainda batendo como um bate-estacas. -- Pensei que estivesse em Londres.

-- Eu poderia estar -- disse Porcelana --, mas alguma coisa me fez voltar para pedir desculpas.

-- Você já fez isso uma vez -- disse eu -- e estragou tudo. Posso viver sem mais um de seus assim chamados pedidos de desculpa.

-- Eu sei -- disse ela. -- E sinto muito. Não contei a verdade sobre Fenella. Ela não estava consciente quando fui ao hospital. E ela não me disse que foi você quem a atacou. Eu inventei tudo, porque queria ferir você.

-- Mas por quê?

-- Não sei. Gostaria de saber, mas não sei.

De repente, ela prorrompeu em lágrimas, soluçando como se o coração fosse arrebentar. Sem pensar, fui até ela, envolvi-a com meus braços e puxei sua cabeça para o meu ombro.

-- Está tudo bem -- disse eu, apesar de estar.

Alguma coisa dentro de mim passara por uma mudança súbita, como se meu mobiliário interior houvesse sido rearranjado de modo inesperado, e entendi, com uma estranha e nova calma, que iríamos acertar as coisas depois.

-- Espere aqui até eu voltar -- disse eu. -- O pai está me aguardando lá embaixo, e não posso deixá-lo esperando.

O que era verdade, até certo ponto.


Quando entrei novamente na sala de estar, o Sargento Graves ainda estava muito perto de Felinha, com um ar de desapontamento no rosto.

-- Coloquei aqui dentro -- expliquei, entregando ao Inspetor Hewitt uma caixa quadrada de papelão --, para que houvesse o menor número de pontos de contato com a superfície do vidro.

Não expliquei que, por ser do tamanho exato, eu surrupiara a caixa do quarto de Felinha, nem mencionei que jogara meio quilo de sais de banho de lavanda Yardley no vaso sanitário, por falta de lugar melhor para colocá-los na correria.

O inspetor levantou a tampa da caixa cautelosamente e olhou dentro.

-- Você vai encontrar um anel de manchas pálidas no vidro -- disse eu. -- Muito provavelmente, tudo o que restou das impressões digitais...

-- Obrigado, Flavia -- disse ele com uma voz neutra, entregando a caixa ao Sargento Graves.

-- E talvez algumas impressões minhas -- acrescentei.

-- Leve isto diretamente ao Sargento Woolmer, em Hinley -- disse o inspetor, ignorando minha piadinha. -- E depois volte.

-- Sim, senhor -- disse o sargento. -- Seguindo para Hinley.

-- Espere um minuto -- disse eu. -- Há mais uma coisa.

Cuidadosamente, puxei do bolso um dos lenços bordados de Felinha.

-- Isto -- disse eu -- pode bem ser uma cópia do garfo de lagosta de prata que matou Brookie Harewood. Ou talvez seja o original. Tem o monograma De Luce. Uma das crianças Bull o estava usando para cavar na Ravina. Se houver alguma impressão digital além de impressões da criança e de minhas, você muito provavelmente descobrirá que são as mesmas que estão na bola de cristal.

Olhei em volta para ver a reação de todos e entreguei aquilo para o Inspetor Hewitt.

Como dissera a sra. Mullet certa vez, “daria para ouvir um alfinete caindo”.

-- Bom Deus! -- disse o pai, dando um passo à frente e estendendo a mão para aquela coisa enquanto o inspetor ainda a desembrulhava.

Eu quase deixei escapar que o resto da prataria da família estava a caminho da Sotheby, mas alguma coisa me fez segurar a língua. Teria sido um tremendo golpe para o pai se eu tivesse deixado isso escapar.

-- Por favor, coronel, não toque nisso -- disse o inspetor. -- Receio que deva agora ser tratado como evidência.

O pai ficou olhando para o garfo de lagosta de prata como uma serpente que inesperadamente dera de cara com um mangusto.

Dafi endireitou o corpo no divã, olhando-me com o que percebi ser ódio em seus olhos -- como se me responsabilizasse pelas desventuras do pai.

A mão de Felinha tampava a própria boca.

Todos esses detalhes congelaram naquele instante, como se o flash de um fotógrafo tivesse preservado para sempre uma tênue e desconfortável fatia do tempo. O silêncio na sala era audível.

-- Matou Brookie Harewood? -- disse afinal o Inspetor Hewitt, voltando-se para mim. -- Este garfo de lagosta? Por favor, explique o que você quis dizer com isso.

-- Estava enfiado no nariz dele -- disse eu --, quando encontrei seu corpo pendurado na fonte de Posêidon. Você com certeza viu isso...

Agora, foi a vez de o inspetor olhar incrédulo para o objeto em sua mão.

-- Você tem certeza absoluta? -- perguntou ele.

-- Positivo -- disse eu, um pouco irritada por ele duvidar de mim.

Pude ver que o inspetor estava escolhendo as palavras cautelosamente antes de falar.

-- Não encontramos nenhum garfo de lagosta na cena do crime. E também não apareceu nenhum subsequentemente.

Nenhum garfo de lagosta na cena do crime? Que afirmação absurda! Era como negar que havia um Sol no céu! A coisa estava lá, clara como o dia, enfiada na narina de Brookie como um dardo em um alvo de cortiça.

Se o garfo tivesse caído pela força da gravidade, por exemplo, a polícia o teria achado na fonte. O fato de que não acharam só podia significar uma coisa: alguém o removera. E esse alguém, muito provavelmente, era o assassino de Brookie.

Entre o momento em que Porcelana e eu nos afastamos da fonte e o momento em que a polícia chegou -- não mais do que, digamos, vinte minutos -- o assassino se esgueirou de volta, subiu na fonte e removeu a arma do nariz de Brookie. Mas por quê?

O inspetor ainda olhava para mim com atenção. Eu podia ver suas engrenagens girando.

-- Você não acha que eu matei Brookie Harewood, não é? -- ofeguei.

-- Na verdade, não -- disse o Inspetor Hewitt --, mas alguma coisa me diz que você sabe quem matou.

Não mexi um músculo, mas por dentro me senti positivamente envaidecida!

“Imagine só!", pensei. “O reconhecimento, afinal!"

Eu poderia ter abraçado aquele homem, mas não o fiz. Ele teria ficado mortificado, e -- ainda que só mais tarde, é claro -- eu também.

-- Tenho minhas suspeitas -- disse eu, lutando para impedir que minha voz atingisse um registro mais alto.

-- Ah -- disse o inspetor --, então você precisa compartilhá-las conosco em algum momento. Bem, obrigado a todos vocês. Foi muito esclarecedor.

Ele chamou o Sargento Graves com um movimento de sobrancelhas e foi para a porta.

-- Ah, e coronel -- disse ele, voltando-se para trás. -- Você vai segurar Flavia em casa?

O pai não respondeu, e, por isso, decidi naquela hora, que seu nome seria inscrito para sempre em meu livro particular de santos e mártires.

E então, com um farfalhar de formalidade, a polícia se foi.

-- Você acha que ele gosta de mim? -- perguntou Felinha, olhando diretamente para o espelho acima da chaminé.

-- Eu diria que sim -- respondeu Dafi. -- Ele estava todo olhos-verdes, como a lula gigante em Vinte mil léguas submarinas.

Com não mais do que um olhar de perplexidade, o pai deixou a sala.

Em minutos, eu sabia, ele estaria submerso em sua coleção de selos, sozinho com todas as lulas e outros monstros que habitavam as profundezas de sua cabeça.

Naquele momento, me lembrei de Porcelana.


Não foi fácil para mim bater à porta de meu próprio laboratório, mas bati. Não havia sentido em assustar Porcelana e acabar com a garganta cortada de uma orelha a outra.

Quando entrei, o laboratório estava vazio; senti a raiva aumentar. Maldita! Eu não tinha dito para ela ficar onde estava até que eu voltasse?

Mas, ao abrir a porta de meu quarto, lá estava ela, sentada de pernas cruzadas em minha cama, como um Buda mal alimentado, lendo meu caderno.

Era demais.

-- O que você pensa que está fazendo? -- gritei, correndo para ela, arrancando o caderno de suas mãos.

-- Lendo sobre mim mesma -- disse ela.

Vou admitir: eu vi vermelho.

Não, não é bem verdade: primeiro, eu vi branco -- um branco silencioso e brilhante que apagou tudo em volta, como as bombas atômicas que caíram sobre Hiroshima e Nagasaki. Somente depois que essa explosão mortal de pétalas de flores começou a arrefecer e desvanecer, passando do amarelo para o laranja, é que finalmente arrefeceu até o vermelho.

Eu já estava zangada antes, mas aquilo foi como algo arrancado das páginas do Livro da Revelação. Poderia ser algum defeito secreto na constituição dos De Luce que se manifestava em mim pela primeira vez?

Até agora, minha fúria sempre fora parecida com aqueles alegres carnavais caribenhos que víamos em documentários: uma explosão ruidosa de cores e de calor que desfaleciam devagar no decorrer do dia. Mas, agora, ela subitamente se tornara fria como gelo: uma frígida terra de ninguém na qual eu era inatingível. E foi naquele instante, acho, que comecei a entender meu pai.

Uma coisa estava clara: eu precisava escapulir -- ficar sozinha -- até que o tsunami passasse.

-- Com licença -- disse eu abruptamente, surpreendendo até a mim mesma, e saí do quarto.


Fiquei sentada por algum tempo na escada -- nem subindo nem descendo.

Era verdade que Porcelana violara minha privacidade, mas minha reação me assustou. De fato, eu ainda estava tremendo um pouco.

Folheei a esmo as páginas de meu caderno, sem realmente me concentrar nas anotações diárias.

O que Porcelana estava lendo quando a interrompi? Estava lendo sobre si mesma ou pelo menos foi o que alegara.

Eu mal podia me lembrar do que havia escrito. Rapidamente, encontrei o trecho.


Porcelana - Não pode ser a atacante da própria avó,

pois estava em Londres na época do ataque.

Será que estava mesmo? A palavra dela é tudo o que tenho.

Mas por que se sentiu compelida a lavar suas roupas?


Quando fechei o caderno, lembrei-me de que, na época em que foram feitas minhas últimas anotações, eu ainda não havia conhecido os Pettibone. Eu prometera à Abelha Rainha que lhe levaria alguns papéis de Buckshaw relativos a Nicodemus Flitch e os Hobblers.

O fato de que eu inventara esses suculentos documentos em um impulso na verdade não tinha importância: em uma biblioteca como a de Buckshaw, poderia muito bem haver documentos escondidos que satisfariam a óbvia ganância da mulher.

Se a biblioteca não estivesse ocupada, eu poderia começar minha busca imediatamente.

Eu já estava me sentindo melhor.


Escutei com o ouvido colado à porta. Se Dafi estivesse lendo lá dentro, como normalmente estava, eu poderia engolir uma colher de chá de orgulho e pedir sua opinião, talvez sob o disfarce de um insulto, uma isca que ela quase sempre mordia.

Se isso não funcionasse, sempre havia a Trégua Solene. Segundo suas regras, eu deveria, imediatamente ao adentrar na sala, cair sobre um joelho no tapete e declarar “Pax vobiscum”; se Dafi respondesse “Et cum spiritu tuo”, o cessar-fogo entraria em vigor por um período de cinco minutos contados no relógio da lareira, durante os quais nenhuma de nós poderia oferecer à outra qualquer incivilidade. Se, em vez disso, ela atirasse um tinteiro, significaria que o cachimbo da paz fora recusado, e a coisa toda estava cancelada.

Mas não vinha som nenhum do outro lado do painel. Abri a porta e espiei em volta.

A biblioteca estava vazia.

Entrei e fechei a porta atrás de mim. Por segurança, virei a chave na fechadura, e, embora não tivesse sido usada nos últimos cem anos, a lingueta se encaixou em perfeito silêncio.

“Bom e velho Dogger”, pensei. Ele sabia como cuidar para que as coisas essenciais sempre estivessem em ordem.

Se alguém me interpelasse, eu alegaria que estava me sentindo um pouco adoentada e que esperava poder dar um cochilo sem ser perturbada.

Virei-me e dei uma boa olhada pela biblioteca. Eras se passaram desde a última vez em que estivera sozinha nessa sala.

As prateleiras se erguiam em direção ao teto em camadas, como se tivessem sido formadas geologicamente em pilhas pelos movimentos ascendentes da Terra.

Perto do piso e mais à mão, estavam os livros que pertenciam à atual geração dos De Luce. Logo acima e, por pouco, fora de meu alcance, estavam aqueles que foram acumulados pelos habitantes vitorianos da casa. E mais acima, empilhado até o teto, estava o entulho deixado para trás pelos georgianos: centenas e centenas de volumes encadernados em couro de bezerro, com páginas finas e comidas por carunchos e tipos tão pequenos que deixavam os olhos meio adoidados.

Certa vez, eu dei uma olhada em algumas daquelas relíquias, mas descobri que eram dedicadas principalmente à vida e aos sermões de uns velhos insossos que viveram e morreram antes de Mozart tirar as fraldas.

Se já existiu um cemitério de biografias religiosas, era aquele.

Eu trabalharia metodicamente, uma parede de cada vez, primeiro o topo da parede norte, depois o topo da parede leste, e assim por diante.

Os livros sobre clérigos dissidentes não eram mantidos exatamente ao alcance das mãos em Buckshaw, e eu não sabia o que estava procurando ao certo, porém sabia que muito provavelmente encontraria perto do teto.

Arrastei a escada móvel da biblioteca para a posição que eu queria e comecei a subir: mais alto, mais alto, mais alto... Minha estabilidade se tornanva mais precária a cada degrau.

“Bibliotecas desse tipo”, pensei, “deveriam ser equipadas com tanques de oxigênio depois de certa altura, para o caso de vertigem."

Isso me fez pensar em Harriet, e uma tristeza súbita caiu sobre mim. Harriet escalava aquelas mesmas estantes de livros de vez em quando. Em verdade, fora o fato de dar nesta mesma sala com um de seus textos de química que mudara minha vida.

“Vá em frente, Flavia”, disse uma voz severa dentro de mim. “Harriet está morta, e você tem um trabalho a fazer."

E para cima eu segui, a cabeça inclinada em um ângulo desconfortável para ler os títulos das lombadas nos níveis mais baixos. Felizmente, nessa altitude maior, os volumes mais antigos tinham títulos horizontais sensatos estampados profundamente nas lombadas em letras de folha de ouro, tornando-os tridimensionais e relativamente fáceis de ler no perpétuo crepúsculo que havia perto do teto:

A vida de Simeon Hoxey; Notas sobre a Septuaginta; Prece e penitência; Pensamentos no genuflexório sobre a divindade; Princípios astronômicos da religião, naturais e revelados; A vida e opiniões de Tristram Shandy, gentil-homem; Policarpo de Smirna; e assim por diante.

Logo acima desses, estava Hidráulica e hidrodinâmica, uma relíquia, sem dúvida, de Lucius “Vazamento” de Luce. Puxei o livro da estante e o abri. Com certeza, lá estava o ex-libris de Lucius: o timbre da família De Luce com o nome dele escrito abaixo em caligrafia surpreendentemente infantil. Teria o livro sido dele desde quando era menino?

A página de rosto estava quase completamente coberta por compactos cálculos à tinta: somas, ângulos, equações algébricas, todos mais apressados do que caprichados, amontoados e de través na página. O livro inteiro estava um pouco ondulado, como se já tivesse se molhado.

Um papel dobrado estava inserido entre as páginas, o qual, quando abri o livro, provou ser um mapa desenhado à mão -- mas um mapa diferente de todos os que eu já vira antes.

Espalhados pela página, havia círculos de vários tamanhos, cada qual ligado ao outro por linhas, algumas delas irradiando-se diretamente aos seus alvos, enquanto outras seguiam caminhos mais retangulares e indiretos. Algumas das linhas eram gros-sas; outras, finas. Algumas eram simples; outras, duplas; e umas poucas estavam sombreadas em vários esquemas de hachuras cruzadas.

De início, pensei que fosse um mapa ferroviário, tamanha a densidade das linhas -- talvez um ambicioso esquema de expansão para o Buckshaw Halt, onde outrora os trens paravam para permitir a descida de convidados e descarregar mercadorias para a casa grande.

Somente quando reconheci na parte inferior do mapa o formato do lago ornamental e o inconfundível esboço da própria Buckshaw, me dei conta de que o documento era, de fato, não um mapa, mas um diagrama: o projeto de Lucius “Vazamento de Luce” para suas operações hidráulicas subterrâneas.

“Interessante”, pensei, “mas apenas vagamente." Enfiei o papel no bolso para futura referência e retomei minha busca por livros que pudessem conter alguma menção aos Hobblers.

Sermões para marinheiros; O plano de Deus para as Índias; Restos mortais de Alexander Knox, Esquire.

De repente, ali estava: Dissidentes ingleses.

Tenho de dizer: foi revelador!

Suponho que eu estivesse esperando um relato de clérigos danados e párocos entorpecidos, seco como poeira. Porém, o que encontrei era um tesouro de ciúmes, maledicências, vaidades, abduções, angustiantes fugas à meia-noite, enforcamentos, traições e magia negra.

Onde quer que tenha havido derramamento selvagem de sangue na história inglesa dos séculos XVII e XVIII, certamente um Dissidente estava envolvido. Tomei nota para levar alguns daqueles volumes ao meu quarto, para um pouco de leitura de terror antes de dormir. Eles certamente seriam mais vívidos do que O vento nos salgueiros, que estava esquecido em minha mesa de cabeceira desde que a tia Felicity o mandara para mim no Natal, fingindo acreditar que se tratava de uma história de punição corporal.

Com o Dissidentes ingleses na mão, desci a escada, caí na bergère estofada que Dafi usualmente ocupava e comecei a folhear as páginas à procura dos Hobblers.

Como não havia índice, fui forçada a avançar lentamente, atenta à palavra “Hobbler”, tentando não me deixar distrair demais com a violência do texto religioso.

Foi somente perto do fim do livro que encontrei o que estava procurando. De repente, ali estava, no fim de uma página, em uma nota de rodapé assinalada com um asterisco de aranha achatada, em tipos curiosos e antiquados.

“A iniquidade do batismo infantil”, dizia ela, “é uma inovação baseada na prática primitiva da igreja: uma das corrupções do segundo ou terceiro século. Ela é, mais ainda, frequentemente tornada em uma ocasião de pecado, ou transformada em farsa, como, por exemplo, no costume da seita conhecida como ‘Os Hobblers’, de acordo com o qual uma criança é mergulhada, segura pelos calcanhares, em água corrente, que deve ser entendido como não mais que uma bizarra, para não dizer barbárica, sobrevivência do mito grego de Aquiles."

Precisei de alguns momentos para assimilar as palavras.

A sra. Mullet estava certa!

 

VOEI ESCADA ACIMA com o dissidentes ingleses firmemente agarrado na mão.

Não pude me conter.

-- Ouça isto -- disse eu, irrompendo em meu quarto. Porcelana estava sentada exatamente onde eu a deixara e olhava para mim como se eu fosse uma insana.

Li em voz alta para ela a nota de rodapé sobre o batismo de crianças, com as palavras praticamente desmoronando de minha boca.

-- E daí? -- disse ela, nada impressionada.

-- A senhora Bull -- despejei. -- Ela mentiu! O bebê dela se afogou! Não teve nada a ver com Fenella!

-- Não sei do que você está falando -- disse Porcelana.

É claro que ela não sabia! Eu não lhe contara sobre meu encontro com a enraivecida sra. Bull na Ravina. Ainda podia ouvir aquelas palavras assustadoras e cheias de ódio em minha cabeça: “Cigana! Cigana! Vá embora!", ela bradara para Fenella. “Foi você que roubou meu bebê. Tom, venha para fora! Aquela cigana está no portão!".

Pensando em poupar os sentimentos de Porcelana, passei rapidamente por cima da história do desaparecimento do bebê Bull e da furiosa explosão que a mãe dele dirigira a Fenella na Ravina.

A amiga da sra. Mullet contara a ela que os Hobblers mergulhavam seus bebês pelos calcanhares, como Aquiles no rio Estige.

-- Então, como vê -- concluí vitoriosa --, Fenella não teve nada a ver com isso.

-- É claro que não -- escarneceu Porcelana. -- Ela é uma velha inofensiva, não uma sequestradora. Não me diga que você acredita naquelas histórias infundadas sobre ciganos que raptam bebês?

-- É claro que não -- disse eu, mas não estava sendo sincera. Bem no fundo do coração, até aquele exato minuto, eu acreditara naquilo em que todas as crianças da Inglaterra foram ensinadas a acreditar.

Porcelana estava ficando melindrosa outra vez, e eu não queria arriscar mais uma explosão, fosse dela ou, pior, minha.

-- Então ela é aquela ruiva? -- disse ela de repente, levando a questão de volta à sra. Bull. -- Aquela que mora na vereda?

-- É ela! -- respondi. -- Como você sabia?

-- Eu vi alguém assim... andando por perto -- disse Porcelana evasivamente.

-- Onde? -- demandei.

-- Por aí -- disse ela, travando o olhar comigo, simplesmente me desafiando a baixar os olhos.

A verdade me atingiu como um tapa na cara.

-- Seu sonho! -- disse eu. -- Era ela! Em seu sonho, você a viu acima de você no carroção, não foi?

Fazia perfeito sentido. Se Fenella realmente podia ver o passado e o futuro e a filha dela, Lunita, podia impressionar o Ministério da Aviação com os seus poderes, não havia razão por que Porcelana não pudesse invocar essa mulher tão desagradável durante o sono.

-- Foi um sonho como nenhum que tive antes -- disse Porcelana. -- Oh, mas, Deus... eu gostaria de nunca ter sonhado!

-- O que você quer dizer?

-- Não parecia um sonho. Eu adormecera na cama de Fenella, mas nem me preocupara em tirar a roupa. Deve ter sido um barulho que me acordou... em algum lugar perto... dentro do carroção.

-- Você sonhou que adormecera?

Porcelana assentiu.

-- É isso que foi tão horrível. Eu não mexi um músculo. Simplesmente fiquei respirando silenciosamente, como se estivesse dormindo, e estava, é claro. Oh, droga! É tão difícil de explicar!

-- Continue -- disse eu. -- Sei o que você quer dizer. Você estava em minha cama, sonhando que estava na cama de Fenella.

Ela me lançou um olhar de gratidão.

-- Não havia nenhum ruído. Escutei por um longo tempo, até pensar que eles haviam partido, e então abri os olhos. Não mais do que uma fresta, e...

-- E...?

-- Era um rosto! Um grande rosto... bem ali... a apenas alguns centímetros de distância! Quase encostando em meu rosto!

-- Bom Deus!

-- Tão perto que não dava realmente para pôr em foco -- prosseguiu Porcelana. -- Consegui soltar um pequeno gemido, como se estivesse sonhando. Deixei a boca se abrir um pouco...

Tenho de admitir que eu estava cheia de admiração. Esperei que, mesmo num sonho, eu tivesse a presença de espírito de fazer a mesma coisa.

-- A lamparina estava baixa -- prosseguiu ela. -- Brilhava nos cabelos. Eu só podia ver os cabelos.

-- Que eram vermelhos -- disse eu.

-- Sim, eram vermelhos. Longos e encaracolados. Selvagens. E então abri os olhos...

-- Sim, sim! Continue!

-- E devia ser a sua cara que eu estava olhando, não é? Mas não era! Era a cara do homem de cabelos vermelhos. Foi por isso que pulei em cima de você e quase a estrangulei até a morte!

-- Espere! -- disse eu. -- O homem de cabelos vermelhos?

-- Ele era bestial... todo coberto de fuligem. Parecia alguém que dormira em uma chaminé.

Sacudi a cabeça. De um jeito estranho, fazia sentido. Suponho que, em um sonho, Porcelana pudesse transformar a sra. Bull, que ela possivelmente vira na Ravina, em um selvagem de cabelos vermelhos. Dafi, não muito tempo atrás, esteve lendo um livro de um professor junguiano e anunciou para nós de repente que os sonhos eram símbolos que se ocultavam na mente subconsciente.

Normalmente, eu teria dispensado o conteúdo de um sonho tal qual lixo, mas minha vida recente parecia estar inundada de exemplos inexplicáveis que mostravam exatamente o contrário.

Em primeiro lugar, a visão que Fenella tivera -- em sua bola de cristal -- de Harriet me esperando para ajudá-la a voltar do outro mundo para casa, e, muito embora Fenella alegasse que Felinha e Dafi planejaram aquilo, fora algo que me deixara abalada, perguntando-me se, de fato, sua confissão -- esta, sim -- não seria uma mentira.

Depois, a história de Brookie sobre a insone Dama Cinzenta de Buckshaw. Eu ainda não decidira se ele estava tentando me enganar quanto a essa lenda; simplesmente eu não tivera tempo para conferir isso.

Devo admitir, no entanto, que esses bocadinhos de sobrenatural na base de meu cérebro eram mais que um pouquinho enervantes.

-- Por que você não me contou isso antes?

-- Oh, não sei, tudo é tão confuso... Parte de mim não confiava o bastante em você. E eu sabia que você não confiava tanto em mim.

-- Eu não tinha muita certeza quanto às suas roupas -- eu lhe contei. -- Me perguntei por que você precisou lavá-las no rio.

-- Sim, você escreveu isso em seu caderno, não é? Pensou que eu poderia estar encharcada do sangue de Fenella.

-- Bem, eu...

-- Vamos, Flavia, admita. Você pensou que eu tinha esmagado o crânio de Fenella... para... para... herdar o carroção, ou coisa assim.

-- Bem, era uma possibilidade -- disse eu com um sorriso forçado, na esperança de que fosse contagioso.

-- Realmente, o fato -- disse ela, jogando os cabelos e depois enrolando e desenrolando uma longa mecha em volta de um dedo indicador -- é que as mulheres, quando longe de casa, às vezes, sentem o ímpeto de lavar algumas coisas.

-- Hãm! -- disse eu.

-- Se você tivesse se dado ao trabalho de me perguntar, eu teria contado.

Ainda que a intenção dela não tivesse sido essa, tomei aquilo como um convite para fazer perguntas rudes.

-- Tudo bem -- disse eu. -- Então deixe-me perguntar isto: quando, em seu sonho, o homem estava se debruçando sobre você no carroção, deu para notar alguma coisa além do cabelo?

Eu achava que sabia a resposta, mas não queria pôr palavras na boca de Porcelana.

Ela franziu as sobrancelhas e enrugou os lábios.

-- Acho que não, eu... espere! Havia mais alguma coisa. Era tão assustadora que devo ter esquecido quando você me acordou de repente.

Inclinei-me para a frente, ansiosa.

-- Sim? -- questionei. Meu coração já estava começando a disparar.

-- Peixe! -- disse ela. -- Havia um horrível fedor de peixe morto. Eca!

Eu poderia tê-la abraçado. Poderia ter passado meu braço em volta de sua cintura e -- não fosse por aquela curiosa rigidez no sangue dos De Luce que me prendia a uma corrente invisível -- dançado com ela em volta do quarto.

-- Peixe -- disse eu. -- Bem como pensei.

Minha cabeça já estava como um frasco na fervura, e as bolhas maiores eram: Brookie Harewood e seu samburá fedido; Ursula Vipond e suas decadentes cestas de salgueiro; e a srta. Mountjoy e seu suprimento vitalício de óleo de fígado de bacalhau.

O problema era o seguinte: nenhum deles tinha cabelos vermelhos.

Até então, os únicos ruivos de minha investigação eram os Bull: a sra. Bull e os dois pequenos Bull. Os dois pequenos estavam fora de questão -- eram jovens demais para terem atacado Fenella ou assassinado Brookie.

Sobrou então a detestável sra. B que, apesar de ter muitos outros defeitos, até onde eu sabia, não recendia a peixe. Se fosse esse o caso, a sra. Mullet não teria resistido à tentação de mencioná-lo.

Com peixe ou sem peixe, no entanto, a sra. Bull tinha uma óbvia mágoa de Fenella, que ela acreditava ter raptado seu bebê.

Mas quem quer que houvesse deixado o cheiro de peixe pairando no carroção não era necessariamente a mesma pessoa que fraturara o crânio de Fenella com a bola de cristal. E quem quer que tivesse feito isso não era necessariamente o assassino de Brookie.

-- Fico contente por não pensar tão intensamente como você -- disse Porcelana. -- Seus olhos ficam muito distantes, e você fica parecendo outra pessoa. Alguém mais velha. É bem assustador, na verdade.

-- Sim -- disse eu, muito embora aquilo fosse novidade para mim.

-- Eu tentei -- disse ela --, mas simplesmente não consegui. Não posso imaginar quem quereria ferir Fenella. E aquele homem, aquele que encontramos enforcado na fonte, quem haveria de querer matá-lo?

Era essa a questão. Porcelana pusera o dedo nela.

A coisa toda se resumia ao que o Inspetor Hewitt chamaria de “motivo”. Brookie envergonhava a mãe e roubara a srta. Mountjoy. Até onde eu sabia, ele não tinha conexão com os Pettibone, a não ser pelo fato de que lhes fornecia bens roubados. Seria realmente estranho se aqueles dois indivíduos estapafúrdios o tivessem assassinado. Sem a ajuda do marido, a sra. Pettibone jamais poderia ter arrastado o corpo de Brookie para a posição na qual Porcelana e eu o encontramos. E, com a ajuda do marido -- o velho Pettibone era tão frágil --, eles ainda teriam precisado de uma grua motorizada.

Ou da ajuda do amigo deles, Edward Sampson, que era proprietário de hectares de maquinaria enferrujada em East Finching.

-- Só posso pensar em uma pessoa -- disse eu.

-- E quem seria?

-- Receio não poder contar a você.

-- E é até onde chega a confiança -- disse ela numa voz fria.

-- É até onde chega a confiança.

Doeu em mim cortá-la daquele jeito, mas eu tinha minhas razões, uma das quais era a possibilidade de ela ser forçada a contar tudo ao Inspetor Hewitt. Eu não poderia deixar que alguém interferisse quando estava tão perto da solução.

Outra razão era o fato de que o assassino de Brookie e o atacante de Fenella ainda estavam à solta e eu não poderia colocar Porcelana em risco.

Ela estava suficientemente segura aqui em Buckshaw, mas por quanto tempo eu poderia manter sua presença em segredo?

Era o que eu estava pensando quando ouvi uma leve batida na porta.

-- Sim? -- gritei.

Um momento depois, o pai entrou no quarto.

-- Flavia -- começou ele, e se deteve bruscamente.

Porcelana pulou da cama e recuou até um canto do quarto.

O pai olhou para ela por um momento, depois para mim, depois de volta para Porcelana.

-- Me desculpem -- disse ele. -- Eu não sabia...

-- Pai -- disse eu --, gostaria de lhe apresentar Porcelana Lee.

-- Como tem passado? -- disse o pai depois de uma pausa quase imperceptível, e logo em seguida estendeu a mão, em vez de esperar que ela o fizesse primeiro. Ele estava obviamente aturdido.

Porcelana avançou a passos incertos e lhe deu um único apertão: para cima e para baixo.

-- Está um tempo encantador -- prosseguiu o pai --, quando não está chovendo, é claro.

Vi minha oportunidade e aproveitei.

-- Foi a avó de Porcelana, a senhora Faa, a mulher atacada na Ravina -- disse eu.

O que pareceu ser uma eternidade de sombras perpassou pelo rosto do pai.

-- Fiquei entristecido ao ouvir isso -- disse ele afinal. -- Mas me deram a entender que ela terá uma recuperação esplêndida.

Nenhum dos dois sabia o que dizer a seguir e ambos ficaram ali, plantados, olhando fixamente um para o outro. Então, o pai disse:

-- Você vai se juntar a nós para o jantar, naturalmente?

Você poderia ter me nocauteado com uma pena comida de traças! Querido e velho pai! Como eu o admirava! Gerações de boa educação e sua galanteria natural transformaram o que eu pensei que seria uma situação desagradável em um triunfo perfeito, e o meu quarto, em vez do campo de batalha já ante- cipado, se tornou subitamente uma sala de recepção.

Porcelana baixou as pálpebras em sinal de assentimento.

-- Bom! -- exclamou o pai. -- Então, está combinado.

Ele se voltou para mim:

-- A senhora Mullet voltou não faz dez minutos para buscar sua bolsa. Tinha deixado na copa. Se ela ainda estiver lá, vou perguntar se ela não se importaria... Acredito que ela ainda esteja na cozinha.

E, com isso, ele se foi.

-- Caramba! -- disse Porcelana.

-- Rápido -- eu disse a ela. -- Não há um minuto a perder! Você provavelmente vai querer se lavar e colocar alguma coisa mais... fresca.

Ela estava usando as deselegantes roupas de Fenella havia dias e parecia, para ser totalmente franca, uma vendedora de flores de Covent Garden.

-- As minhas coisas não vão servir em você -- disse eu --, mas as de Dafi e Felinha vão.

Fiz um sinal para ela me seguir e então a conduzi através dos corredores rangentes do andar de cima.

-- Este é o quarto de Dafi -- disse eu quando chegamos à ala oeste da casa. -- E aquele é o de Felinha. Sirva-se. Tenho certeza de que elas não vão se importar. Vejo você na ceia. Desça quando soar o gongo.

Eu não sei o que me obriga a fazer essas coisas, mas, cá entre nós, eu mal podia esperar para ver como minhas irmãs reagiriam quando Porcelana descesse para a ceia usando um de seus vestidos favoritos. Eu ainda não tivera realmente uma oportunidade de lhes retribuir adequadamente a humilhação nos porões. Meu espelho adulterado dera horrivelmente errado, mas agora, não mais que de repente, o bom e velho Destino me dava uma segunda chance.

Não só isso: a sra. M aparecera inesperadamente na cozinha, o que era uma oportunidade perfeita para lhe fazer a pergunta que poderia muito bem concluir o caso e imprimir sobre ele o carimbo “Encerrado”.

Desci a escada em disparada e parei derrapando na co-zinha.

Aleluia! A sra. Mullet estava sozinha.

-- Sinto muito por você ter esquecido sua bolsa -- disse eu. -- Se tivesse sabido antes, teria levado para você. Não seria incômodo algum.

Isso se chamava “acumular créditos” e operava segundo o mesmo princípio das indulgências da Igreja Católica Apostólica Romana ou do que as lojas de Londres chamavam de “plano de compra à prestação”.

-- Obrigada, querida -- disse a sra. M --, mas foi até bom que eu tenha voltado. O coronel me pediu para arrumar algumas coisas na mesa, e eu não me importo, realmente, já que é a noite de plantão de Alf, e eu não teria muito que fazer de um jeito ou de outro, além de tricotar e treinar o periquito. Estamos ensinando-o a dizer “Ei, foi horrível, Ivy!". Você deveria ouvir, querida. Alf diz que é tão engraçado...

Enquanto falava, ela se movia apressada pela cozinha, preparando-se para servir a ceia.

Respirei fundo e dei o pulo.

-- Brookie Harewood era um Hobbler? -- perguntei.

-- Brookie? Não sei mesmo dizer, querida. Tudo o que sei é que, na última vez que o vi se esgueirando em volta da igreja, eu disse ao vigário que seria melhor trancar a prataria da comunhão. Foi isto que eu falei: “É melhor trancar a prataria da comunhão antes que suma como uma andorinha”.

-- E Edward Sampson? Você sabe alguma coisa sobre ele?

-- Ted Sampson? Certamente sei! Ele é meio-irmão de Reggie e um típico malandro, aquele sujeito. É dono do pátio de ferro-velho de East Finching, e Alf diz que não é só ferro-velho que passa por aqueles portões. Eu não deveria contar essas coisas a você, querida. Você é jovem demais para esse tipo de coisa.

Eu estava preenchendo os espaços vazios muito bem. Pettibone e companhia, sob o disfarce de uma loja tranquila, um pátio de ferro-velho distante e uma religião excêntrica, estavam operando uma rede de roubo e falsificação de antiguidades. Embora eu suspeitasse disso havia algum tempo, não tinha visto, até agora, como tudo aquilo se encaixava.

Essencialmente, Brookie roubava, Edward copiava, e Re-ginald vendia tesouros removidos de lares suntuosos. O truque engenhoso era este: depois de copiados, os objetos originais eram devolvidos aos respectivos donos -- portanto raramente, se tanto, estes sentiam sua falta.

Ou seriam os originais substituídos por cópias nas casas? Eu ainda não tivera tempo para descobrir isso, mas, quando tivesse, começaria pela análise química do conteúdo metálico de Sally Fox e Shoppo. Eu pretendia começar com o garfo de lagosta de Luce que encontrara nas mãos de Timothy -- ou seria realmente Timofey? -- Bull. Mas as novas demandas tornaram isso impossível.

Com o bucho cheio de doces, Timofey fora muito difícil de entender.

Sorri quando me lembrei da criança chafurdando na vereda.

“Molso de Patty”, respondera ele quando lhe perguntei onde conseguira sua linda ferramenta de cavoucar. Relembrando, ele foi quase uma gracinha.

-- E a senhora Bull, é claro. Ela também é uma Hobbler?

-- Não sei dizer -- disse a sra. Mullet. -- Me disseram que Tilda Mountjoy era um deles, mas nunca ouvi dizer que Margaret Bull também fosse, muito embora as duas sejam íntimas como ladrões! Esses Hobblers ficam rondando pelas casas uns dos outros no domingo para cantar seus hinos e gritar e rolar pelo chão como se tentassem apagar fogo com suas roupas íntimas, e sabe Deus o que mais.

Tentei imaginar a srta. Mountjoy rolando pelo chão de um lado para outro, tomada de um êxtase religioso, mas minha imaginação, por mais vívida que fosse, não estava à altura.

-- É uma gente estranha -- prosseguiu a sra. M --, mas nenhum deles deixaria Margaret Bull passar por seu portão. Nem mesmo em um mês só de domingos! Não mais.

-- Por que não?

-- Algo aconteceu quando aquele bebê deles foi levado. Ela nunca mais foi a mesma. Não que tenha sido alguma maravilha antes...

-- E o marido dela?

-- Tom Bull? Ele sofreu muito. Quase se matou, é o que dizem. Foi embora não muito tempo depois, e minha amiga senhora. Waller disse que a mulher dele contara a ela, confidencialmente, veja bem, que ele não iria voltar.

-- Talvez ele tenha partido para procurar trabalho. Dogger diz que muitos homens fizeram isso desde o fim da guerra.

-- Ele tinha trabalho suficiente. Trabalhava para o cunhado de Pettibone.

-- Ted Sampson?

-- Esse mesmo de quem estávamos falando. Tom Bull trabalhava com fundição, e era bom nisso, é o que dizem, muito embora tivesse seus problemas com a polícia. Mas, quando a menininha deles foi levada, alguma coisa aconteceu, e ele perdeu a cabeça. Não muito tempo depois, se foi.

Como eu desejei ter deixado escapar que o corpo da bebezinha de Tom Bull fora encontrado nas Paliçadas, mas não me atrevi a sussurrar uma só palavra. A notícia ainda não chegara à aldeia, e eu não queria ser acusada de vazar informações que a polícia preferia guardar em segredo -- pelo menos por enquanto.

-- É melhor você correr e se arrumar para o jantar, querida -- disse a sra. Mullet de repente, interrompendo o fio de meus pensamentos. -- O coronel diz que você tem uma convidada para o jantar, portanto ele não vai querer ver mãos sujas à mesa.

Segurei a língua. Em circunstâncias normais, eu teria me enfurecido contra uma observação tão impertinente, mas hoje eu tinha uma nova arma.

-- Está muito certo, senhora M -- me ouvi dizendo enquanto trotava instantânea e obedientemente em direção à porta.

Chegando ali, parei, me virei dramaticamente e então, em minha melhor voz inocente, como um cordeiro, disse:

-- Ah, a propósito, senhora Mullet, Vanetta Harewood me mostrou o retrato de Harriet.

O retinir de pratos se interrompeu, e por alguns momentos houve um silêncio pétreo na cozinha.

-- Eu sabia que esse dia chegaria -- disse subitamente a sra. Mullet com uma voz estranha: a voz de uma estranha. -- Estive meio que esperando por isso.

Ela desabou de repente em uma cadeira próxima à mesa, enterrou o rosto no avental e se desfez em um soluçar infeliz.

Fiquei parada, desamparada, sem saber muito bem o que fazer.

Por fim, puxei uma cadeira do outro lado da mesa, sentei-me e fiquei vendo-a chorar.

Eu tinha uma fascinação especial por lágrimas. A análise química de minhas próprias e de outros me ensinou que a lágrima é um caldo rico e maravilhoso, cujos principais ingredientes são água, potássio, proteínas, manganês, diversas enzimas fermentadas, gorduras, óleos e ceras, com uma boa dose de cloreto de sódio misturada, talvez para incrementar o sabor. Em quantidade suficiente, as lágrimas se constituem em um depurador poderoso.

“Não muito diferente”, pensei, “da canja de galinha da senhora Mullet”, que ela impingia à mais leve fungada.

A essa altura, a sra. M começou a se aquietar; sem remover o avental do rosto, ela falou:

-- Um presente, aquilo era. Ela queria dá-lo para o coronel.

Estendi a mão sobre mesa e pousei-a em seu ombro. Não disse nem uma palavra.

Lentamente, o avental desceu, revelando o rosto angustiado. Tremendo, ela respirou fundo.

-- Ela queria surpreendê-lo. Oh, os percalços por que ela passou! Estava sempre tão feliz... Agasalhava muito bem vocês, anjinhos, e dirigia até Malden Fenwick para posarem juntas. E fazia aquela mulher Harewood vir para Buckshaw sempre que o coronel estava ausente. Fazia um frio horrível. Horrível!

Ela enxugou os olhos, e subitamente me senti mal.

Por que eu mencionara a pintura? Teria sido por nenhuma outra razão senão chocar a sra. Mullet? Para ver a reação dela? Eu esperava que não.

-- Como eu tive vontade de contar ao coronel a respeito -- prosseguiu serenamente a sra. Mullet --, mas não pude. Não cabe a mim. Pensar naquele objeto no estúdio dela por todos esses anos, sem que ele saiba, isso me parte o coração.

-- O meu também, senhora M -- disse eu, e era verdade.

Enquanto ela se punha em pé, o rosto ainda molhado e vermelho, alguma coisa se agitou em minha memória.

“Vermelho."

Cabelo vermelho... Timofey Bull... a boca entupida de doces e o garfo de lagosta de prata na mão dele.

“Bolso de Patty”, ele disse quando lhe perguntei onde o conseguira. “Bolso de Patty."

Bolso de papi!

Vermelho e prata. Era isso que meus sonhos e meu bom-senso estavam tentando me contar!

Subitamente, senti como se uma lesma estivesse subindo devagar por minha espinha.

Seria possível que Tom Bull ainda estivesse em Bishop’s Lacey? Poderia ele estar vivendo secretamente no meio da fumaça que encobria a casa dele, na Ravina?

Se fosse, poderia muito bem ser ele a pessoa que fumava do lado de fora de sua casa quando passei por ela lentamente com Gry, no escuro. Talvez fosse ele a pessoa que observava no bosque enquanto o Inspetor Hewitt e seus homens removiam o corpo de Brookie da fonte de Posêidon -- a pessoa que removera o garfo do nariz de Brookie quando Porcelana e eu...

Bom Deus!

Timofey teria encontrado o garfo de lagosta no bolso do pai, o que só poderia significar que...

Naquele exato momento, soou o gongo no foyer, anunciando o jantar.

-- Melhor ir andando, querida -- disse a sra. Mullet, ajeitando o cabelo com o indicador e dando uma última enxugada na cara com o avental. -- Você sabe como é o seu pai com a pontualidade. Não devemos deixá-lo esperando.

-- Sim, senhora Mullet -- concordei.

 

A FAMÍLIA FORA CONVOCADA, e todos nós aguardávamos em pé no foyer.

Entendi imediatamente que o pai decidira fazer da presença de Porcelana na casa uma ocasião especial; talvez, pensei, porque ele sentia remorso pelo modo como tratara os avós dela. Ele ainda não sabia, é claro, da trágica morte de Johnny Faa.

Fiquei plantada ao pé da escada, um pouco distante dos outros, absorvendo o triste esplendor do lar ancestral dos De Luce.

Houve um tempo em que Buckshaw vibrava com risos, ao menos foi o que me contaram, mas, muito francamente, eu não podia sequer imaginar isso. A casa parecia assumir uma rígida desaprovação, refletindo apenas o som dos sussurros -- estabelecendo vagos, porém rígidos, limites para todos que vivíamos entre suas paredes. A não ser pela irmã górgona do pai, tia Felicity, que fazia expedições anuais a fim de repreendê-lo, Buckshaw não recebera hóspedes desde que eu me entendia por gente.

Dafi e Felinha estavam plantadas em postura irritantemente perfeita, uma de cada lado do pai, as duas lavadas e esfregadas à perfeição enojante, como as bem-criadas porém um tanto obtusas filhas do fidalgo local em um drama na sala de estar. Espere até que vejam Porcelana!

Dogger andava de um lado para outro, quase invisível contra os lambris escuros, a não ser pelo rosto e cabelos brancos -- como uma cabeça sem corpo flutuando na penumbra.

Dando uma olhada em seu relógio militar de pulso, o pai fez uma pequena carranca involuntária, mas disfarçou bem ao puxar o lenço e assoar o nariz.

Ele estava nervoso!

Ficamos ali em silêncio, cada qual olhando para uma direção diferente.

Precisamente quinze minutos depois que o gongo soara, uma porta se fechou em algum lugar acima, e concentramos nossa atenção no topo da escadaria.

Quando Porcelana apareceu, soltamos um suspiro coletivo, e a sra. Mullet, que acabara de entrar no cômodo, soltou um grito parecido ao de um pequeno animal noturno. Pensei por um momento que ela iria sair correndo.

Porcelana não fizera sua escolha nos guarda-roupas de Dafi ou Felinha. Ela estava usando um dos trajes mais memoráveis de minha mãe: o vestido cor de fogo que ia até os joelhos, feito de chiffon de seda, que Harriet usara no baile da Royal Aero Society no ano anterior a sua jornada final. Uma fotografia fora tirada pelo Times no momento da chegada de Harriet ao Savoy -- uma fotografia que criara uma comoção que até hoje não fora realmente esquecida.

Mas não era só o vestido. Porcelana havia puxado o cabelo para trás do mesmo modo que Harriet fazia quando cavalgava nas caçadas. Ela deve ter copiado o estilo da foto em preto e branco que ficava na mesa de Harriet.

Como eu já havia pilhado a caixa de joias de minha mãe uma vez ou outra, reconheci na hora o antigo colar de âmbar que pendia no busto surpreendentemente bem desenvolvido de Porcelana e as gemas que reluziam em seus dedos.

De Harriet -- tudo de Harriet!

Porcelana parou no degrau mais alto e nos olhou com o que na hora tomei por timidez, mas que depois decidi que poderia muito bem ser desprezo.

Devo dizer que o pai se comportou de modo magnificente, muito embora, de início, eu tivera a certeza de que ele iria desmaiar. Quando Porcelana iniciou sua longa e lenta descida, os músculos maxilares dele começaram a se contrair intermitente e automaticamente. Como acontece com a maioria dos militares, aquela era a única maneira permissível de demonstrar emoção e, como tal, era ao mesmo tempo exasperante e profundamente terna.

Pouco a pouco, ela desceu em nossa direção, flutuando no ar como uma fada, quem sabe um duende, pensei loucamente. Talvez a própria Rainha Mab em pessoa?

Quando se aproximou do pé da escada, irrompeu no rosto de Porcelana o sorriso mais perturbador que já vi em um rosto humano: um sorriso que nos englobava a todos e, ao mesmo tempo, distinguia cada um de nós com um deslumbramento pessoal.

Nenhuma rainha -- nem mesmo a própria Cleópatra -- jamais fez uma entrada como aquela, e eu mesma me vi embasbacada, em admiração boquiaberta perante a audácia pura daquilo.

Enquanto passava airosamente por mim ao pé da escada, ela inclinou a cabeça próximo a meu pescoço, os lábios quase roçando minha orelha.

-- Como estou? -- sussurrou ela.

Tudo o que ela precisava era de uma rosa entre os dentes, mas eu dificilmente me atreveria a dizer isso.

O pai deu um único passo à frente e ofereceu o braço a ela.

-- Vamos entrar para jantar? -- perguntou ele.


-- Suspiros! -- disse Porcelana. -- Eu adoro!

A sra. Mullet ficou radiante.

-- Vou lhe dar a receita, querida -- disse ela. -- É o leite condensado que lhes dá a consistência especial.

Eu quase me engasguei com a cena, mas algumas dobraduras em meu guardanapo forneceram uma boa distração.

Dafi e Felinha, para lhes dar o devido crédito, a não ser pelos olhos esbugalhados, pareciam não ter se afetado de todo com o vestido emprestado por Porcelana, embora fossem incapazes de desviar os olhos dela.

À mesa, fizeram perguntas interessantes -- principalmente sobre a vida dela em Londres durante a guerra. De modo geral, e contra todas as expectativas, minhas irmãs se comportaram de maneira encantadora.

E o pai... Pai querido. Embora o súbito aparecimento de Porcelana nos trajes de Harriet o tivesse chocado profundamente, ele conseguiu, de alguma forma, manter perfeito controle sobre si mesmo. De fato, por algumas horas, foi como se Harriet tivesse voltado dos mortos para ele.

Ele sorriu, ouviu atentamente e, em certo momento, até contou uma história bastante divertida sobre o primeiro encontro de uma velha senhora com um apicultor.

Foi como se, por algumas horas, Porcelana tivesse lançado um feitiço sobre todos nós.

Só houve um momento desconfortável, e ele ocorreu no fim da noitada.

Felinha acabara de tocar um adorável arranjo para piano de Antonin Dvorák para Canções ciganas, Opus 55: canções que meu avô me ensinou, um dos favoritos dela.

-- Bem -- perguntou ela, erguendo-se do piano e dirigindo-se a Porcelana --, o que você acha? Eu sempre quis ouvir a opinião de uma autêntica cigana.

Era possível cortar o silêncio com uma faca.

-- Ophelia... -- disse o pai.

Prendi a respiração, com medo de que Porcelana ficasse ofendida, mas eu não precisava ter me preocupado.

-- Muito bonito, em certas passagens -- disse ela, dando a Felinha aquele sorriso deslumbrante. -- É claro, não sou mais do que metade cigana, portanto só apreciei uma em cada duas passagens.


-- Pensei que ela fosse pular por cima do piano e arrancar meus olhos!

Já estávamos de volta ao andar de cima, no meu quarto, depois do que fora, para nós duas, uma espécie de provação.

-- Felinha não faria isso -- disse eu. -- Ao menos, não com o pai na sala.

Não houve menção a Brookie Harewood, e, a não ser por uma educada pergunta do pai -- “A sua avó está passando bem, espero?" --, nenhuma palavra foi dita sobre Fenella.

Melhor assim, pois eu não gostaria de responder a perguntas inconvenientes, talvez até embaraçosas, sobre minhas recentes atividades.

-- No entanto, elas parecem simpáticas, suas irmãs, de verdade -- comentou Porcelana.

-- Ha! -- disse eu. -- Isso mostra como você sabe pouco! Eu as odeio!

-- Você as odeia? Eu teria imaginado que você as ama.

-- É claro que eu as amo -- disse eu, me atirando de costas na cama. -- É por isso que sou tão boa em odiá-las.

-- Acho que você está me engambelando. O que elas fizeram contra você?

-- Elas me torturaram -- disse eu. -- Mas, por favor, não me peça detalhes.

Quando soube que havia conquistado a atenção total dela, rolei de barriga, para não poder vê-la.

Falar com uma pessoa vestida com as roupas de minha mãe já era estranho o bastante sem ter de dedurar as torturas que minhas irmãs me infligiam.

-- Torturaram? -- perguntou ela. -- Como? Conte-me sobre isso.

Por um longo momento, ouviu-se apenas o som de meu despertador de bronze tiquetaqueando na mesa de cabeceira, dividindo os longos minutos em segmentos administráveis.

Então, veio tudo de supetão. Eu me vi contando a ela sobre a minha provação nos porões: que elas me arrastaram escada abaixo, me jogaram no piso de pedra e me assustaram com vozes horrendas; que elas me disseram que eu era uma criança trocada, deixada por duendes quando a verdadeira Flavia de Luce fora abduzida.

Até me ouvir contando isso a Porcelana, eu não tinha ideia de como a provação me deixara abalada.

-- Você acredita? -- perguntei, desesperada, de algum modo, por um “sim”.

-- Eu gostaria de acreditar -- disse ela --, mas é difícil imaginar jovens mulheres tão refinadas operando a própria masmorra.

Jovens mulheres refinadas? Receio quase ter pronunciado uma palavra que chocaria um marinheiro.

-- Venha -- disse eu, pondo-me em pé de um pulo e puxando-a pelo braço. -- Vou lhe mostrar o que jovens mulheres refinadas podem fazer quando ninguém está olhando.


-- Uau! -- disse Porcelana. -- É uma maldita cripta!

Apesar das lâmpadas elétricas penduradas aqui e ali em fios corroídos, os porões eram um mar de trevas. Eu trouxera da copa o castiçal de estanho que era reservado para as ocasiões, não pouco frequentes, em que a corrente elétrica de Buckshaw falhava; segurando-o acima da cabeça, eu movia sua luz bruxuleante de um lado para outro.

-- Está vendo? Ali está o saco que elas enfiaram em minha cabeça. E olhe -- coloquei a luz mais perto das pedras. -- Aqui estão suas pegadas na poeira.

-- Parece que havia muitas delas, muito mais do que um par de jovens mulheres refinadas -- disse Porcelana, cética. -- Meio grandes, também -- acrescentou.

Ela estava certa. Percebi isso imediatamente.

Pegadas distintas levavam às trevas -- elas eram grandes demais para serem de Dafi, minhas ou de Felinha e se misturavam às nossas perto do pé da escada. Tampouco eram do pai. Ele não descera a escada até o fim, e, mesmo se tivesse descido, seus sapatos com sola de couro teriam deixado impressões diferentes, com as quais eu estava muito familiarizada.

As pegadas de Dogger também eram inconfundíveis: compridas, estreitas e precisas como as de um pele-vermelha, uma na frente da outra.

Não, aquelas não eram as pegadas do pai, nem as de Dogger. Se minhas suspeitas estivessem corretas, elas haviam sido deixadas por alguém que usava botas de borracha.

-- Vamos ver em que lugar elas dão -- sugeri.

A presença de Porcelana suscitou em mim uma valentia sem fim, e eu já estava pronta para seguir as pegadas, aonde quer que elas nos levassem.

-- Você acha que isso é sensato? -- perguntou ela, o branco dos olhos brilhando à luz da vela. -- Ninguém sabe que estamos aqui embaixo. Se cairmos em um poço ou coisa assim, poderemos morrer antes que alguém nos encontre.

-- Não há poços aqui embaixo -- disse eu. -- Apenas uma porção de velhos porões.

-- Você tem certeza?

-- É claro que tenho certeza. Já estive aqui embaixo centenas de vezes.

O que era uma mentira: antes de minha inquisição, eu estivera nos porões apenas uma vez, com Dogger, quando tinha cinco anos, à procura de um par de urnas de alabastro do século XVIII que haviam sido guardadas no começo da guerra para serem protegidas de possíveis ataques aéreos.

Segurando a vela no alto, tomei uma das passagens negras. Porcelana poderia me seguir ou então permanecer nas sombras escuras que se formavam entre as lâmpadas elétricas largamente espaçadas. Nem é preciso dizer que ela me seguiu.

Eu já formara uma teoria segundo a qual as pegadas haviam sido deixadas por Brookie Harewood -- o falecido Brookie Harewood --, mas não havia sentido em mencionar isso a Porcelana, que provavelmente se assustaria com a ideia de seguir as pegadas de um homem morto.

Mas que diabo poderia Brookie estar fazendo nos porões de Buckshaw? “Os caçadores ilegais conhecem todos os atalhos”, dissera o pai certa vez, e, de novo, ele provavelmente estava certo.

Quando passamos sob um baixo arco de tijolos, deixei a mente voltar à noite em que eu flagrara Brookie na sala de estar. Era difícil acreditar que isso acontecera havia apenas cinco dias.

Eu ainda tinha a imagem mental perfeita de nosso estranho encontro, que terminara com Brookie me prevenindo quanto aos arrombadores que poderiam estar de olho na prata do pai. “Há muito desde a guerra”, dissera ele. Então, eu abrira uma das portas-janelas, deixando bem claro que queria que ele se fosse.

Não... Espere! Primeiro, eu destranquei a porta!

A porta estava trancada quando entrei na sala de estar. E não havia nenhuma razão no mundo para acreditar que Brookie a trancara ao entrar, caso tivesse invadido a casa pelo terraço. Ele teria deixado a porta preparada para fugir imediatamente se se encontrasse em risco de ser pego.

Era razoável, portanto, presumir que Brookie conseguira entrar na casa por outro caminho: pelos porões, por exemplo.

E as pegadas a nossa frente, que desapareciam nas trevas -- impressões muito claras das botas de borracha de um pescador, agora que parei para pensar --, sugeriam que minha suposição era correta.

-- Venha -- chamei, sentindo que Porcelana estava logo atrás. -- Siga-me de perto.

Pensei ter ouvido um pequeno gemido, mas talvez estivesse enganada.

Tínhamos passado por uma série de lâmpadas elétricas e estávamos agora em uma passagem em arco ocupada dos dois lados por pilhas de móveis decadentes. Aqui, as pegadas -- mais do que um conjunto delas, mas todas feitas pelo mesmo par de botas -- revelavam que o invasor havia entrado e saído de Buckshaw em aventura por mais de uma vez. As pegadas mais recentes estavam perfeitamente nítidas, enquanto as impressões mais antigas tinham sido ligeiramente atenuadas pela constante dispersão da poeira.

-- O que é isso? -- perguntou Porcelana, apertando meu ombro dolorosamente.

À nossa frente, um objeto encoberto por um lençol meio que bloqueava a passagem.

-- Não sei -- respondi.

-- Pensei que você tivesse estado aqui embaixo centenas de vezes -- sussurrou ela.

-- E estive -- repliquei --, mas não nesta passagem em particular.

Antes que ela pudesse me questionar, estendi a mão, segurei o lençol por um canto e o arranquei.

Uma nuvem de poeira se ergueu em ondas, cegando-nos e nos fazendo sufocar, como se tivéssemos sido pegas por uma súbita tempestade de areia.

-- Oh! -- gemeu Porcelana.

-- É só poeira -- disse eu, muito embora estivesse sufo-cando.

Então, a vela crepitou -- e se apagou.

Xinguei em silêncio e apalpei meu bolso.

-- Segure isto -- disse eu, encontrando as mãos dela no escuro e envolvendo seus dedos no castiçal. -- Vou acendê-lo num instante.

Procurei mais fundo no bolso. Droga!

-- Que azar -- disse eu. -- Acho que deixei os fósforos na copa.

Senti o castiçal sendo enfiado de volta em minhas mãos. De-pois de um breve momento, ouvi um som áspero, e um fósforo se acendeu resplandecente.

-- Ainda bem que eu os peguei, então -- disse Porcelana, aplicando o fósforo à vela. Quando a chama cresceu e ficou mais firme, pude ver o objeto sobre o qual o lençol estava enrolado.

-- Olhe! -- exclamei. -- É uma liteira.

A coisa parecia um antigo automóvel fechado cujas rodas foram roubadas. Os painéis de madeira eram pintados de verde-claro, com flores desenhadas à mão nos cantos. O medalhão dourado na porta era o escudo De Luce.

Dentro da liteira, o papel de parede de flores-de-lis descascado pendia em tiras por cima do veludo verde que acolchoava o assento.

Havia um estranho cheiro de mofo em volta do assento, proveniente não apenas de camundongos.

E pensar que alguns de meus antepassados estiveram sentados naquele mesmo compartimento, sendo sustentados por outros humanos ao longo das ruas de alguma cidade do século XVIII!

O que eu mais queria era entrar naquilo e me tornar parte da história de minha família. Apenas sentar, nada mais.

-- Isto pertenceu a uma mulher -- disse Porcelana com uma voz lenta e estranha, a qual soou, mais do que qualquer coisa, como um encantamento. -- Vestido de seda... peruca empoada... rosto branco e um ponto preto, como uma estrela, em sua face. Ela quer...

-- Pare com isso! -- gritei, virando-me para encará-la. -- Não quero jogar seus jogos bobos!

Porcelana ficou perfeitamente quieta, fitando, os olhos negros brilhando desvairadamente em contraste com seu rosto branco. Ela estava toda coberta de pó, e o vestido cor de fogo de Harriet como que desbotara à luz da vela bruxuleante até se tornar laranja-cinzento.

-- Olhe para você -- disse ela em um tom que, a mim, soou acusador. -- Apenas olhe para você!

Não pude deixar de pensar que eu estava na presença do fantasma de minha mãe.

Naquele momento, um retinir metálico veio da passagem à frente, e nós duas demos um pulo.

Soava como ferro contra ferro, correntes sendo arrastadas pelas barras de uma jaula.

-- Venha -- disse Porcelana. -- Vamos dar o fora daqui.

-- Não, espere -- disse eu. -- Quero descobrir o que há aqui embaixo.

Ela arrancou o castiçal de minha mão e começou a voltar silenciosamente para a escada.

-- Venha comigo, ou fique aqui sozinha no escuro.

Não tive escolha senão segui-la.

 

A COR DA CHAMA COMEÇOU a brilhar mais intensamente assim que empurrei o material para dentro do béquer.

-- Está vendo? -- disse eu. -- Está funcionando.

-- O que é isso? -- perguntou Porcelana.

-- Fluido para lavagem a seco -- disse eu, dando uma cutucada no vestido de Harriet com uma vareta de vidro e mexendo-a gentilmente. -- Tetracloreto de carbono, na verdade.

Não pude dizer o nome sem me lembrar, com prazer, de que aquilo fora sintetizado pela primeira vez em 1839 por um francês chamado Henri-Victor Regnault, um antigo tapeceiro que produzira o tetracloreto de carbono por meio da reação entre cloro e clorofórmio. Em um de seus primeiros usos, a invenção era fumigada em barris de alimentos nos quais moravam diversos insetos desagradáveis; mais recentemente, ela foi usada para carregar extintores de incêndio.

-- O pai usa isto para inspecionar marcas-d’água em selos de correio -- observei.

Não mencionei que eu recentemente resgatara o frasco em um dos armários dele, a fim de realizar um experimento envolvendo moscas domésticas.

-- Olhe para o vestido. Vê como já está limpo? Mais alguns minutos, e ficará como novo.

Porcelana, que se enrolara em um de meus velhos roupões, olhava assombrada.

Eu havia me trocado e colocado um vestido mais limpo. Deixara a roupa empoeirada de molho, numa das pias do laboratório; depois, eu a penduraria em um dos candelabros a gás para secar.

-- Vocês, De Luce, são uma gente estranha -- disse Porcelana.

-- Ha! Menos de uma hora atrás você achava que pelo menos duas de nós eram jovens mulheres refinadas.

-- Isso foi antes de você me mostrar os porões.

Percebi que nosso pequeno passeio pela Câmara dos Horrores havia mudado seu modo de pensar.

-- Falando em porões -- comecei --, eu não me assusto com facilidade, mas não gostei muito daquela bobagem sobre a dama a quem pertenceu a liteira.

-- Não era bobagem. Eu estava contando o que vi.

-- Viu? Você está me pedindo para acreditar que você viu uma mulher de peruca empoada e vestido de seda?

Para alguém com uma cabeça científica como a minha, aquilo era difícil de engolir. Eu ainda não decidira o que fazer com a Dama Cinzenta de Buckshaw, da qual falara Brookie Harewood, nem com a mulher da montanha que queria voltar para casa fugida do frio que Fenella mencionara. Isso, para não falar dos duendes. Será que todo mundo me tomava por uma tola ingênua, ou haveria realmente outros mundos além do alcance de nossa visão?

-- De certo modo, sim -- disse Porcelana. -- Eu a vi em minha mente.

Isso eu podia entender -- ao menos um pouco. Eu também podia ver coisas com minha própria mente: o modo, por exemplo, como a trimetilamina era produzida se se permitisse ao Bacillus prodigiosus crescer em uma amostra de purê de batatas da sra. Mullet sob o calor de uma tarde de verão. As partículas vermelho-sangue resultantes -- que eram conhecidas na Idade Média como “Wunderblut”, ou “sangue estranho”, e que em 1819, em Pádua, apareceram em diversos alimentos por uma semana inteira -- liberariam não apenas o cheiro de amônia, mas também o inconfundível odor de trimetilamina.

Se se pensar bem, não existe nenhuma grande diferença entre fantasmas e os mundos invisíveis da química.

Fiquei contente por ter me lembrado da velha e querida trimetilamina, minha amiga química com cheiro de peixe. Eu conversara sobre isso com Dogger alguns dias atrás e formara certas opiniões, mas fui impedida de agir a partir delas.

Agora era o momento de juntar os pontos e seguir os caminhos, não importava aonde pudessem levar.

-- Estou cansada -- disse Porcelana, e deu um grande bocejo.

Cinco minutos depois, estávamos acomodadas na cama, uma das duas derivando rapidamente para a inconsciência.


Aguardei até que ela adormecesse e depois deslizei silenciosamente para fora da cama.

Era pouco mais de meia-noite quando fechei lenta e cuidadosamente a porta do quarto e me esgueirei pela escadaria curva abaixo.

Lembrei-me de que Dogger tinha uma lanterna poderosa na copa do mordomo, a qual mantinha para o que ele chamava de “emergências da meia-noite”; só precisei de um momento para encontrá-la.

“Nenhuma vela débil dessa vez”, pensei: eu tinha em mãos potência suficiente para iluminar o embarcadouro do Palácio de Brighton. Esperava que fosse o bastante.

Os porões pareciam mais frios do que eu me lembrava. Deveria ter vestido uma suéter, mas agora era tarde demais.

Rapidamente cheguei ao ponto no qual terminavam as lâmpadas elétricas: para além delas, uma negritude cavernosa levava para sabe Deus onde.

Acendi a lanterna e apontei-a para o corredor. Bem adiante, pude ver os contornos da liteira. Eu não sentia mais vontade de entrar naquela coisa e relembrar os dias passados; de fato, eu me sentiria aliviada em passar logo por ela.

-- Não há nenhuma dama -- disse eu em voz alta, e, para meu alívio, não havia.

À frente, a passagem fazia um ligeiro desvio para a direita. Como eu havia tomado a direita a partir do pé da escada da cozinha, estava me dirigindo para o leste -- agora, um pouco para o sudeste, na direção do Visto e da fonte de Posêidon.

As pegadas de botas de borracha eram agora fáceis de seguir, já que não estavam mais sobrepostas pelas minhas e de Porcelana. Havia alguns conjuntos de pegadas, observei, três indo e dois vindo. Se elas fossem de Brookie, como eu suspeitava, ele fizera a primeira viagem para roubar um dos cães de lareira e a segunda para devolvê-lo e levar o outro; em sua última visita, ele saíra pelas portas-janelas.

Uma corrente de ar passou subitamente por mim. Ainda bem que eu trouxera a lanterna -- a vela certamente teria se apagado.

Com a corrente, veio o escuro e um odor úmido: um odor que não pude identificar imediatamente, mas que sugeria um reservatório de sanitário negligenciado: corrosão verde com mais do que um bafejo de zinco.

“Bem”, pensei, “não estou com medo do zinco, e a corrosão verde é algo que sempre me interessou."

Segui em frente.

Quando estivera aqui embaixo com Porcelana, ouvira um claro som metálico, mas agora a passagem -- que começava a se estreitar -- estava silenciosa como uma tumba.

À minha frente, um arco com uma porta aberta, além da qual, assim parecia, havia um quarto.

Dei dois passos cautelosos para dentro da câmara e me vi cercada de todos os lados por canos de metal: canos de zinco, canos de chumbo, canos de ferro, canos de bronze, canos subindo, descendo e atravessando, todos interconectados por cotovelos em ângulo reto e grandes parafusos de metal, e, aqui e ali, válvulas enormes, que lembravam volantes de automóvel.

Eu estava bem no centro do sistema hidráulico subterrâneo de Lucius de Luce!

E então ouvi aquilo -- um retinir metálico que reverberou por toda a volta da câmara.

Vou admitir: congelei.

Mais um som metálico.

-- Olá -- gritei com a voz trêmula. -- Tem alguém aí?

De algum lugar veio outro som: um som animal, com certeza -- agora, se fora feito por um humano, eu não saberia dizer.

E se uma raposa tivesse conseguido entrar no túnel? Ou um texugo?

Se fosse isso, o bicho provavelmente sairia correndo de um humano com uma lanterna -- mas e se não fosse?

-- Olá! -- gritei de novo. -- Tem alguém aí?

Novamente, um som abafado, mais fraco. Estava mais distante ou eu estava imaginando coisas? Havia uma certeza: ele só poderia provir de trás do tubo gigante que se elevava da cantaria, se nivelava, dobrava noventa graus e seguia em direção ao lado oposto da câmara.

Com esforço, escalei aquela coisa, montei nela por um momento -- e depois me deixei cair para o outro lado.

A passagem para a qual o tubo levava era mais baixa, mais estreita e úmida. A umidade formava gotículas nas paredes e o piso, entre os tijolos, era de terra molhada.

Logo à frente, o túnel era bloqueado por um portão de ferro, fechado com correntes e trancado do outro lado por um grande cadeado antigo.

Sacudi a coisa, mas ela era absolutamente sólida. Sem a chave, não havia esperanças de passar.

-- Droga! -- disse eu. -- Droga, e duas vezes droga!

-- Flavia? -- grasnou alguém.

Devo admitir que cheguei muito perto da degradação absoluta.

Dirigi o facho da lanterna por entre as grades e vi um vulto encolhido no chão.

Enquanto eu viver, jamais me esquecerei daquele rosto pálido me mirando, cegado pelo facho da lanterna. Ele conseguiu, de algum modo, perder os óculos, e seus olhos pálidos, cegos e piscando, eram os de uma toupeira-bebê que fora arrastada subitamente para a luz do dia.

-- Colin? -- perguntei. -- Colin Prout?

-- Desligue isso! -- implorou ele com uma voz estentórea, tentando evitar a luz.

Desviei o facho, e o trecho para além das barras ficou mais uma vez quase completamente escuro.

-- Me ajude -- disse Colin com uma voz patética.

-- Não posso. O portão está trancado.

Sacudi aquela coisa enorme com uma das mãos, esperando que se abrisse -- talvez por alguma mágica ainda não descoberta --, mas nada aconteceu.

-- Tente de seu lado -- eu disse a ele. -- Pode haver uma trava...

Enquanto falava, eu já sabia que não havia, mas não custava tentar.

-- Não posso -- disse Colin, e mesmo no escuro pude perceber que ele estava à beira das lágrimas. -- Estou amarrado.

-- Amarrado?

Parecia impossível, muito embora eu mesma já tivesse estado em igual situação.

-- Mas estou com a chave. Está no meu bolso.

“Louvado seja!", pensei. “Finalmente, um pouco de sorte."

-- Tente se arrastar até o portão -- pedi. -- Vou tentar alcançar a chave.

Houve um silêncio doloroso, e então ele disse:

-- Eu estou... estou amarrado em alguma coisa.

E começou a soluçar.

Foi o bastante para fazer um santo cuspir!

Mas espere: o cadeado estava do lado de Colin, não estava? Eu notara isso, mas não dera a devida atenção.

-- Você se trancou aí sozinho? -- perguntei.

-- Não -- fungou Colin.

-- Então como foi parar aí dentro?

-- Entramos pela porta da fonte.

“Uma porta na fonte? Nós?"

Decidi fazer a pergunta mais importante primeiro.

-- Quem somos “nós”, Colin? Quem fez isso com você?

Pude ouvi-lo arquejar fortemente, mas ele não respondeu.

Percebi de vez a futilidade daquilo tudo. Eu não estava a fim de passar o resto da vida tentando extrair respostas de um cativo do qual eu estava separada por uma parede de barras de ferro.

-- Está bem, então -- disse eu. -- Não importa. Conte-me sobre a porta da fonte. Eu vou voltar e soltá-lo.

Na verdade, fiquei furiosa só de pensar que eu teria de questionar um estranho sobre uma porta secreta em Buckshaw -- e deveria ser muito secreta, já que eu nunca ouvira falar de nada parecido. Esses mistérios certamente teriam de ser passados boca a boca de um membro da família para outro, e não extraí-dos de um quase estranho que se esquivava pelos campos na companhia de um caçador ilegal.

-- O dedão do pé do Simon -- disse Colin.

-- O quê? Você não está falando coisa com coisa.

O som dos soluços revelou que eu não conseguiria mais nada com ele.

-- Fique aqui -- disse eu, embora suas palavras não fizessem sentido.

-- Não, espera! -- gritou ele. -- Me dá a lanterna. Não me deixa sozinho!

-- Não posso, Colin. Preciso da lanterna para iluminar o meu caminho.

-- Não, por favor! Eu tenho medo do escuro!

-- Vou lhe dizer uma coisa -- retorqui. -- Feche os olhos e conte até quinhentos e cinquenta. Com os olhos fechados, não haverá escuro. Quando você terminar, estarei de volta. Vamos lá, vou ajudá-lo a começar. Um... dois... três...

-- Não posso -- interrompeu Colin. -- Num aprendi a contar acima de cem.

-- Muito bem, então. Vamos cantar. Vamos lá, vamos cantar juntos: “Deus salve o nosso gracioso Rei, vida longa a nosso nobre Rei, que tenha um longo...". Vamos, Colin, você não está cantando.

-- Não sei a letra.

-- Muito bem... Cante alguma coisa que você conheça! Cantando, me fará voltar mais cedo.

Houve uma longa pausa; então, ele começou, a voz rachada e trêmula:

-- “A Ponte de Londres está... caindo... Caindo... caindo, caindo. A Ponte de Londres está caindo..."

Virei-me e comecei a escolher cuidadosamente meu caminho de volta pela passagem; logo, o som da voz de Colin se tornou nada mais do que um eco distante. Deixá-lo lá sozinho no escuro foi uma das coisas mais difíceis que já tive de fazer, muito embora não saiba explicar por quê. A vida é cheia de surpresas como essa.

A jornada de volta pareceu não ter fim. O tempo certamente começou a andar mais devagar enquanto eu passava sob os baixos tetos arqueados dos porões.

Subi os degraus e entrei na cozinha. Embora a casa estivesse em perfeito silêncio, parei para ouvir junto à porta.

Nada.

Tecnicamente, sabia, eu não estava sendo desobediente. Eu fora proibida de sair de casa e não tinha a intenção de fazê-lo. A fonte de Posêidon estava dentro dos limites de Buckshaw, o que me permitia obedecer à proibição e ainda fazer o que era preciso.

Saí silenciosamente pela porta dos fundos, deixando-a destrancada, e entrei na horta da cozinha. No céu, as estrelas cintilavam como um milhão de olhos loucos, enquanto a Lua, já a meio caminho de seu primeiro quarto, pendia como uma pratea-da unha quebrada no céu da noite.

Normalmente, mesmo a fonte de Posêidon não sendo longe, eu teria levado Gladys comigo, nem que fosse só pela companhia. Mas, agora, bastaria um dos seus rangidos ou matraqueados de excitação para acordar a casa inteira, e eu simplesmente não podia arriscar.

Em um passo enérgico, cruzei o gramado leste na direção do Visto. Em algum lugar, uma coruja piou, e alguma coisa pequenina passou correndo pelas folhas mortas.

Então, quase sem aviso, Posêidon assomou acima de mim, os ângulos bizarros de sua anatomia de metal captando a luz das estrelas, como se uma parte muito antiga da galáxia tivesse caído na Terra.

Subi os degraus até a base. O que foi mesmo que Colin disse?

“O dedão do pé do Simon." Sim, era isso. Mas o que ele queria dizer?

É claro! O dedão do pé de Posêidon!

Ele deve ter ouvido o nome da boca de Brookie e o embaralhado.

Escalei a bacia inferior da fonte. Agora, o pé gigante de Posêidon estava quase no meu rosto, o dedão empinado, como se alguém estivesse fazendo cócegas em sua barriga.

Estendi a mão e toquei na coisa -- empurrei-a para baixo com toda a minha força. O dedão se mexeu -- como se estivesse preso a uma dobradiça oculta --, e de algum lugar abaixo veio um nítido clique metálico.

-- “O dedão do pé do Simon” -- disse eu em voz alta, sorrindo e sacudindo a cabeça, orgulhosa de mim mesma por ter resolvido o mistério.

Desci até o chão e... sim! Lá estava! Um dos grandes painéis de ninfas d’água que formavam a base decorativa da fonte se desalinhara ligeiramente dos outros.

Que coisa diabolicamente esperta fizera “Vazamento de Luce” ao esconder o mecanismo de destravamento da fechadura em um dos pés da estátua, onde não seria facilmente descoberto!

O alçapão se abriu com um gemido, e entrei cautelosamente na base da fonte. Como eu suspeitava, um único cano de chumbo emergia de uma das diversas grutas abaixo e se curvava bruscamente para levar água à fonte. Uma grande válvula em alavanca obviamente servia para controlar o fluxo, e, apesar de a pesada cobertura de teias de aranha me revelar que ela não era usada há eras, fui cercada pelo ruído de água pingando, que ecoava irritantemente na umidade da câmara confinada.

Uma dúzia de degraus precários levava a uma ampla fossa retangular no fundo da fonte.

Eles estavam salpicados de sangue!

No limite do último degrau, havia uma grande mancha, ao passo que pequenas gotas marcavam os degraus acima.

O sangue estava aqui havia algum tempo, como era evidente por sua aparência marrom e bem oxidada.

Tinha de ser o lugar onde Brookie encontrara a morte.

Evitando as manchas de sangue, segui caminho muito cautelosamente até o fundo.

A fossa era surpreendentemente espaçosa.

De um lado, a certa altura, uma grade de ferro revelava brechas do céu noturno: as estrelas ainda brilhavam forte, desprendendo tanta luz, que até os contornos mais altos do imponente Posêidon estavam visíveis. Olhando para cima, pasma com aquele novo ponto de vista, pisei em falso. Torci o tornozelo.

-- Droga! -- disse eu, apontando a lanterna para o chão para ver o que causara meu ferimento.

Era uma corda, que jazia enrolada dentro do círculo de luz como uma víbora satisfeita a tomar sol depois de uma refeição especialmente satisfatória.

Não posso dizer que fiquei surpresa, já que havia deduzido que provavelmente haveria uma corda. Eu simplesmente me esquecera disso até tropeçar naquela coisa idiota.

Surpreendente mesmo era o fato de a polícia não ter descoberto uma evidência tão crucial: um surpreendente passo em falso, não só meu, mas também deles.

“Melhor não tocar nisso”, pensei. “Melhor deixar para os homens do Inspetor Hewitt." Além disso, eu já sabia tudo o que precisava para entender esse resquício em particular do crime.

Um pouco hesitante, saí mancando em direção a um túnel aberto.

Mas espere! Qual daquelas aberturas me levaria até Colin?

“A da esquerda”, pensei, embora dificilmente pudesse ter certeza. O projeto de Lucius de Luce mostrava um surpreendente labirinto de sistemas hidráulicos, e só ao pensar nisso me lembrei de que enfiara o mapa dobrado no bolso.

Sorri ao perceber que a ajuda estava na ponta dos meus dedos. Mas, quando enfiei a mão no bolso para pegá-lo, verifiquei que ele estava vazio.

É claro! Eu trocara o vestido empoeirado por um limpo. Deixei escapar uma praga mental quando me dei conta de que o precioso mapa desenhado à mão por Lucius estava, naquele exato momento, mergulhado rumo ao alvejamento em uma pia do laboratório!

Não havia outra coisa a fazer agora, senão seguir meus instintos e escolher um túnel: o da esquerda.

Aqui na extremidade leste, o corredor não só era mais baixo e mais estreito, como também estava em desastroso estado de decadência. Alguns pedaços das paredes de tijolos e do telhado haviam desabado, e entulhos despedaçados cobriam trechos do piso.

“Cuidado”, pensei. “A coisa toda pode desabar e..."

Alguma coisa atingiu meu rosto -- alguma coisa parecida com um braço branco e morto pendurado no teto. Deixei escapar um gritinho e parei bruscamente.

Uma raiz! Eu me deixara assustar por uma estúpida raiz que se desprendera, a qual deve ter pertencido a uma das árvores que, em tempos antigos, sombreavam os caminhos do Visto.

Muito embora eu me esquivara dela, seu dedo viscoso ainda conseguiu acariciar meu rosto, como se ela estivesse morrendo por uma companhia humana.

Segui mancando, a luz da lanterna oscilando loucamente à minha frente.

Aqui, de ambos os lados do túnel, um sortimento empoeirado de escadas, cordas, baldes, latas, regadores e funis foi abandonado, como se os jardineiros que os usavam tivessem ido para a guerra e esquecido de voltar.

Um súbito clarão vermelho me fez parar. Alguém escrevera alguma coisa na parede. Deixei a luz passar lentamente por cima das letras pintadas na parede: “H.d.L.".

Harriet de Luce! Minha mãe estivera aqui antes de mim, encontrara seu caminho através deste mesmo túnel, pisara sobre estes mesmos tijolos -- e pintara as suas iniciais na parede.

Fui tomada por uma espécie de arrepio. Eu estava cercada pela presença de Harriet. Como, se não a conheci, eu podia sentir tão profundamente sua falta?

Então, débil e vinda lá de longe, no túnel, uma voz que cantava chegou aos meus ouvidos.

“A Ponte de Londres está caindo... Minha querida lady."

-- Colin! -- bradei; de repente, meus olhos estavam lacrimejando. -- Colin! Sou eu, Flavia.

Pulei para a frente, por cima de algumas pedras caídas, e senti em meus sapatos o lodo que provinha das infiltrações do túnel. Minhas mãos estavam feridas de tanto me agarrar às paredes ásperas a fim de me sustentar.

E então, lá estava ele...

-- “Minha querida lady” -- cantava ele.

-- Está tudo bem, Colin. Você pode parar agora. Onde está a chave?

Ele se encolheu com a luz e depois olhou para mim com um olhar estranho, ofendido.

-- Me desamarre primeiro -- disse ele mal-humorado.

-- Não. A chave, primeiro -- disse eu. -- Assim, você não vai fugir com ela.

Colin gemeu ao rolar ligeiramente para seu lado esquerdo. Enfiei a mão no bolso dele -- Ugh! -- e puxei uma chave de ferro.

Enquanto Colin se contorcia, pude ver que seus pulsos estavam firmemente amarrados junto às suas costas e presos a um cano de ferro que se erguia verticalmente até desaparecer no telhado.

A pobre criatura devia estar amarrada aqui há dias!

-- Você deve estar agoniado -- disse eu, e ele ergueu os olhos para mim com uma perplexidade tão vazia que me perguntei se ele entendera o significado da palavra.

Lutei contra os nós. Os esforços de Colin para se livrar deles e a umidade das paredes infiltradas os encolheram horrivelmente.

-- Você tem uma faca?

Colin sacudiu a cabeça e desviou o olhar.

-- O quê? Não tem uma faca? Vamos, Colin... Os escoteiros nascem com facas.

-- Me tiraram. “Você podia se ferir”, foi o que disseram.

-- Então, esquece. Incline-se para a frente. Vou tentar com a chave.

Colocando a lanterna no chão para que sua luz se refletisse na parede, ataquei os nós com a parte da frente da chave.

Colin gemeu, deixando escapar gritinhos cada vez que eu aplicava pressão nos nós. A despeito da umidade que havia no túnel, o suor pingava de minha testa sobre a corda já saturada.

-- Fique firme -- eu lhe disse. -- Quase consegui.

A última ponta se soltou, e ele estava livre.

-- Fique em pé -- disse eu. -- Você precisa se movimentar.

Ele rolou para o outro lado, incapaz de se pôr em pé.

-- Segure-se aqui -- pedi, oferecendo a mão, mas ele sacudiu a cabeça.

-- Você precisa fazer o sangue circular -- eu lhe disse. -- Esfregue os braços e as pernas o mais forte que puder. Vamos, vou ajudá-lo.

-- Não adianta -- disse ele. -- Não posso fazer isso.

-- É claro que pode -- disse eu, esfregando mais energicamente. -- Você precisa estimular a circulação nos dedos dos pés e das mãos.

Seu lábio inferior estava tremendo. Senti uma súbita onda de piedade.

-- Vou lhe dizer uma coisa. Vamos dar uma descansada.

Mesmo à meia-luz, a gratidão dele era difícil de passar despercebida.

-- E agora -- disse eu --, conte-me sobre o sangue nos degraus da fonte.

Talvez isso não fosse justo, mas eu precisava saber.

Ao ouvir a palavra “sangue”, Colin se encolheu horrorizado.

-- Eu nunca fiz isso -- coaxou ele.

-- Nunca fez o quê, Colin?

-- Nunca fiz aquilo com Brookie. Nunca enfiei aquele espeto no nariz dele.

-- Ele maltratou você, não foi? Você não teve escolha.

-- Não -- disse Colin, conseguindo de algum modo se pôr em pé. -- Não foi assim. Não foi assim nem um pouco.

-- Conte-me o que aconteceu -- pedi, surpresa com minha própria frieza em uma situação que poderia se mostrar delicada.

-- A gente era amigos, Brookie e eu. Ele me contava histórias quando a gente não tava sucatando.

-- Histórias? Que tipo de histórias?

-- Cê sabe, tipo Rei Arthur. A gente tinha papos legais, a gente tinha. Ele me contava do velho Nicodemus Flitch e como ele podia apagar um pecador quando lhe dava na telha.

-- Brookie era um Hobbler? -- perguntei.

-- Claro que não! -- escarneceu Colin. -- Mas queria ser. Ele gostava do estilo deles, costumava dizer.

Então, aí estava: eu deveria ter perguntado a Colin logo de cara.

-- Você estava me contando sobre o espeto -- disse eu, tentando direcionar Colin gentilmente ao momento da morte de Brookie.

-- Ele mostrou pra mim -- disse Colin. -- Tão bonito... prata... como tesouro de piratas. Desenterrou atrás de sua casa, Brookie desenterrou. Ia fazer dúzias deles, ele disse. Bastante pra uma festa no jardim do Palácio de Buckingham.

Não me atrevi a interromper.

-- “Me dá aqui”, eu falei para ele. “Quero dar uma olhada. Só um minuto. Eu devolvo." Mas ele não deu. “Você pode se apunhalar”, ele disse. Riu de mim. “Ei, cê prometeu!", eu disse pra ele. “Cê disse que a gente ia rachar meio a meio se eu carregasse aquela coisa de cão." Eu agarrei... não queria nada de mais, só queria dar uma olhada, era tudo. Ele agarrou de volta e deu um tamanho puxão! Eu soltei rápido demais e...

Sua expressão era de puro horror.

-- Eu não fiz isso -- disse ele. -- Eu nunca fiz isso.

-- Entendo -- disse eu. -- Foi um acidente. Vou fazer tudo o que eu puder para ajudar. Mas conte-me uma coisa, Colin. Quem amarrou você?

Ele soltou um tal uivo de dor que quase congelou meu sangue nas veias, muito embora eu já soubesse a resposta.

-- Foi Tom Bull, não foi?

Os olhos de Colin ficaram tão arregalados quanto dois pires, e ele mirou por cima do meu ombro.

-- Ele tá voltando! Ele disse que ia voltar.

-- Bobagem -- disse eu. -- Você está aqui há um tempão.

-- Ele vai me matar, Tom Bull vai, porque eu vi o que ele fez no carroção.

-- Você viu o que ele fez no carroção?

-- Ouvi, pelo menos. Ouvi todos os gritos. Então ele saiu e jogou uma coisa no rio. Ele vai me matar.

Os olhos de Colin estavam do tamanho de pratos.

-- Ele não vai matar você -- eu lhe disse. -- Se quisesse, já teria feito isso.

Então, ouvi o ruído vindo do túnel às minhas costas.

Os olhos de Colin ficaram ainda maiores, quase pularam para fora das órbitas.

-- Ele tá aqui!

Virei-me bruscamente com a lanterna na mão e vi uma forma volumosa e tosca avançando a passos rápidos em nossa direção, como um caranguejo gigante: era tão grande que praticamente preenchia a passagem do teto até o chão, e de parede a parede; a figura estava quase dobrada sobre si mesma para conseguir passar pelo túnel apertado.

Só podia ser Tom Bull.

-- A chave! -- gritei, percebendo no mesmo instante que ela já estava em minha mão.

Pulei sobre a fechadura e dei uma torcida na chave.

Malditas todas as coisas mecânicas! A fechadura parecia ter ficado sólida, de tanta ferrugem.

A não mais do que uma dúzia de passos, o enorme homem avançava pelo túnel em nossa direção, sua respiração áspera horrivelmente audível agora, os selvagens cabelos vermelhos fazendo-o parecer um louco espumante.

De repente, fui empurrada para o lado. Colin arrancou a chave de minha mão.

-- Não, Colin!

Ele a socou na fechadura, deu uma torcida violenta, e o ferrolho saltou, abrindo-se. Um momento depois, ele já tinha aberto a porta com um tranco e me empurrado -- me arrastado, quase me carregando -- para o outro lado.

Colin bateu a porta, trancou-a e me empurrou para bem longe das grades.

-- Cuidado com esse aí -- disse ele. -- Ele tem braços compridos.

Por um momento, Colin e eu ficamos parados, respirando ofegantes, olhando horrorizados para a cara inchada de sangue de Tom Bull enquanto ele nos fulminava com o olhar por trás das grades de ferro.

Seus punhos enormes agarraram a pesada porta e sacudiram-na como para arrancá-la pela raiz.

O Touro Vermelho!

Fenella estava certa!

Pulei para trás horrorizada; ao fazê-lo, meu tornozelo torcido cedeu, e deixei cair a lanterna.

Mergulhamos imediatamente na mais negra escuridão.

Caí de joelhos, tateando o chão molhado com os dedos estendidos.

-- Fique longe das grades -- sussurrou Colin. -- Ou ele vai agarrar você!

Sem saber o que estava onde, engatinhei nas trevas, com medo de que a qualquer momento meu pulso fosse agarrado.

Depois do que pareceu ser uma eternidade, minha mão esbarrarou na lanterna. Fechei os dedos em volta dela... peguei-a... empurrei o interruptor com o polegar... e nada.

Dei-lhe uma sacudida, bati nela com a parte de trás da mão... nada ainda.

A lanterna estava quebrada.

Eu poderia ter chorado.

Perto de mim, no escuro, ouvi um farfalhar. Não ousei me mexer.

Contei dez batidas do coração.

Então, ouvi um ruído rascante -- e um fósforo se acendeu.

-- Estavam em meu bolso -- disse Colin, orgulhoso. -- O tempo todo.

-- Vá devagar -- eu disse a ele. -- Por ali. Não deixe o fósforo se apagar.

Conforme nos afastávamos do portão e adentrávamos no túnel e a cara de Tom Bull desaparecia nas trevas, sua boca se mexeu, e ele pronunciou as únicas palavras que já o ouvi dizer.

-- Onde está o meu bebê? -- gritou ele.

Suas palavras ecoaram como facas nas paredes de pedra.

No silêncio horripilante que se seguiu, avançamos pouco a pouco no túnel. Quando o primeiro fósforo se apagou, Colin pegou outro.

-- Quantos desses você tem? -- perguntei.

-- Só mais um -- disse ele, e o acendeu.

Tínhamos avançado, mas ainda faltava um longo caminho até os porões.

Colin segurou o fósforo no alto e voltou a progredir lentamente, liderando o caminho.

-- Bom rapaz -- eu disse a ele. -- Você nos salvou.

Uma súbita lufada de ar frio apagou o fósforo, e mais uma vez mergulhamos na escuridão.

-- Continue andando -- eu o incitei. -- Acompanhe a parede.

Colin paralisou-se.

-- Não posso -- disse ele. -- Tenho medo do escuro.

-- Está tudo bem -- eu lhe disse. -- Estou com você. Não vou deixar nada acontecer.

Pressionei meu corpo contra o dele, mas ele não cedeu.

-- Não -- disse ele. -- Não posso.

Eu poderia ter prosseguido sem ele, mas fui incapaz de abandoná-lo sozinho.

E, aos poucos, dei-me conta de que, de algum modo, mesmo no escuro, eu podia ver indistintamente o rosto branco de Colin. Um momento depois, percebi uma luz crescente, que de repente preencheu a passagem.

Dei meia-volta, e, para minha surpresa, lá estava Dogger, segurando uma grande lanterna acima da cabeça. Porcelana espiou em volta dele, temerosa de início, e, ao ver que eu estava segura, correu para mim, quase me esmagando com um abraço.

-- Receio que tenha sido desleal com você -- disse ela.

 

-- E DOGGER, VEJA BEM, já havia trancado a porta da fonte. Ela só abre por fora, portanto não havia como Tom Bull sair.

-- Muito bom, Dogger -- disse o pai. Dogger sorriu e deixou o olhar se perder na vista da janela da sala de estar.

Dafi se agitava pouco à vontade no sofá. Ela fora arrebatada de seu livro pelo pai, que insistira que tanto ela como Felinha estivessem presentes na conversa. Era quase como se ele estivesse orgulhoso de mim.

Felinha estava em pé junto à cornija da lareira, fingindo estar entediada, furtando rápidos e ávidos olhares para si mesma no espelho, ao mesmo tempo que sorria bobamente para o Sargento Graves.

-- Toda essa história sobre os Hobblers é intrigante -- disse o Inspetor Hewitt. -- As suas anotações foram muito úteis.

Eu crepitei um pouco por dentro.

-- Infiro que eles venham realizando seus batismos na Ravina desde algum momento no século XVII?

Assenti.

-- A senhora Bull queria que seu bebê fosse batizado de acordo com a antiga tradição, e seu marido, acho, proibiu-a.

-- Foi o que ele fez -- disse o Sargento Graves. -- Ele nos contou.

O inspetor olhou para ele.

-- Ela foi até a Ravina com a senhorita Mountjoy. O doutor Kissing as viu juntas. Poderia haver outros Hobblers presentes, não sei bem. Mas alguma coisa deu terrivelmente errado. O bebê estava sendo mergulhado pelos calcanhares, como requer a tradição Hobbler, quando algo aconteceu. O bebê escorregou e se afogou. Eles o enterraram nas Paliçadas... Juraram guardar a verdade para si mesmos. Ao menos, é o que penso que aconteceu.

O Sargento Graves assentiu, e o inspetor fulminou-o com aquele olhar!

-- A senhora Bull pensou imediatamente em pôr a culpa em Fenella. Afinal, ela acabara de passar com o carroção pela vereda. A mulher foi para casa e contou ao marido, Tom, que o bebê deles havia sido levado pelos ciganos. E ele acreditou nela... e continuou acreditando nela. Até agora.

Respirei fundo e continuei:

-- Fenella leu a sorte da senhora Bull na quermesse da semana passada. Contou-lhe as mesmas bobagens que conta a todo mundo: que alguma coisa estava enterrada em seu passado, uma coisa que queria ser desenterrada.

Somente naquele instante, enquanto eu falava, a força plena -- a aptidão plena -- das palavras de Fenella entrou estrondosamente em minha consciência: “Eu lhe disse que havia alguma coisa enterrada em seu passado; disse que essa coisa queria ser desenterrada, queria acertar tudo”. Eu copiara essas palavras em meu caderno sem entender realmente seu significado.

Ela não poderia ter sabido da suposta abdução do bebê dos Bull até muito tempo depois: Fenella se afastara da Ravina antes que aquele funesto batismo tivesse início.

A sra. Bull, para reforçar sua mentira, deve ter sido obrigada a dar um falso depoimento à polícia. Tom, por causa de suas associações duvidosas, deve ter se escondido. A sra. Mullet não tinha deixado escapar que ele já tivera problemas com a lei?

Como eu gostaria de pedir ao inspetor que confirmasse minha conjetura -- especialmente a parte sobre Tom Bull --, mas sabia que ele não iria -- não poderia -- me contar. Talvez em outra ocasião...

De um jeito ou de outro, Fenella quase certamente fora localizada e interrogada pelas autoridades durante a investigação da criança desaparecida -- localizada, interrogada e liberada. Até aí, parecia óbvio.

Assim, quando a sra. Bull fora parar inesperadamente dentro de sua tenda na quermesse da semana passada, deve ter parecido a Fenella que o Destino a enviara para que se fizesse justiça.

“Há alguma coisa enterrada em seu passado. Alguma coisa que quer ser desenterrada... e acertar tudo”, Fenella lhe dissera, mas não se referia ao bebê. Ela se referia à acusação do rapto feita pela sra. Bull!

“Vingança é minha especialidade”, dissera Fenella.

Vingança, sem dúvida!

Mas não sem um custo.

Certamente, a mulher reconheceu o carroção de Fenella na quermesse... O que a teria feito entrar na tenda?

Eu só podia pensar em uma razão: culpa.

Talvez, na própria cabeça da sra. Bull, a mentira que ela contara ao marido e à polícia estava começando a ser deslindada -- talvez, estranhamente, ela acreditasse que uma nova confrontação desviaria qualquer suspeita crescente, por parte de Tom, sobre sua culpa.

O que foi mesmo que o dr. Darby me contou? “As pessoas podem se comportar de maneira estranha em momentos de grande tensão."

-- Bem? -- disse o inspetor, interrompendo meus pensamentos. Ele estava aguardando que eu continuasse.

-- Bem, a senhora Bull, é claro, presumiu que Fenella olhou para sua bola de cristal e viu o afogamento. Ela deve ter voltado para casa imediatamente e dito ao marido que a cigana que levara seu bebê estava novamente acampada nas Paliçadas. Tom foi até o carroção naquela mesma noite e tentou matá-la. Ele muito provavelmente ainda acredita na mentira da mulher -- acrescentei. -- Muito embora o corpo do bebê tenha sido encontrado desde então, aposto que ele ainda põe a culpa nos ciganos.

Dei uma olhada para o Sargento Graves esperando por uma confirmação, mas seu rosto era um estudo em pedra.

-- Como você pode ter tanta certeza de que ele esteve no carroção? -- perguntou o Inspetor Hewitt, virando outra página no caderno.

-- Porque Colin Prout o viu lá. E, se não fosse o bastante, houve toda aquela história do cheiro de peixe -- disse eu. -- Acho que você descobrirá que Tom Bull tem uma doença que faz que seu corpo exale um odor de peixe. Dogger me disse que vários casos assim já foram registrados.

As sobrancelhas do Inspetor Hewitt se ergueram ligeiramente, mas ele não disse nada.

-- A doença piorou, e foi por isso que ele ficou em casa no ano passado inteiro ou mais. A senhora Bull espalhou a história de que ele fora embora, mas ele estava em Bishop’s Lacey o tempo todo, trabalhando depois do escurecer. Ele é um fundidor, você sabe, e provavelmente tem muita prática em derreter ferro-velho e moldá-lo na forma de antiguidades.

-- Sim -- disse o Inspetor Hewitt, me surpreendendo. -- Não é segredo que ele foi empregado de Sampson, em East Finching.

-- E ainda é -- sugeri. -- Ao menos, depois do escurecer.

O Inspetor Hewitt fechou seu caderno e se pôs em pé.

-- Tenho grande satisfação em lhe dizer, coronel, que os seus cães de lareira logo serão devolvidos. Nós os encontramos na cocheira onde Harewood guardava suas antiguidades.

Eu estava certa! Os Sally Fox e Shoppo que vi no depósito de Brookie eram os de Harriet! Depois de substituí-los por imitações, Brookie estava apenas aguardando a oportunidade de vender os originais em Londres.

-- Há outros envolvidos no que provou ser uma quadrilha muito sofisticada de ladrões e falsificadores. Estou certo de que, no devido tempo, vocês lerão a respeito nos jornais.

-- Mas e quanto à senhorita Mountjoy? -- disparei. Eu senti muita pena da pobre Tilda Mountjoy.

-- Ela poderá ser indiciada como cúmplice -- disse o inspetor. -- Depende do Chefe de Polícia. Não invejo sua tarefa.

-- Pobre Colin -- disse eu. -- Ele não tem tido uma vida fácil, não é?

-- Pode haver circunstâncias atenuadoras -- disse o Inspetor Hewitt. -- Fora isso, não posso dizer nada.

-- Eu soube com certeza que ele estava envolvido quando encontrei a corda.

Arrependi-me dessas palavras assim que elas saíram de minha boca.

-- Corda? Que corda?

-- A corda que caiu através da grade na fonte de Posêidon.

-- Woolmer? Graves? O que sabemos sobre isso?

-- Nada, senhor -- disseram eles em coro.

-- Então, talvez vocês nos façam o favor de ir imediatamente à fonte para retificar esse descuido.

-- Sim, senhor -- disseram eles, e marcharam, com as faces vermelhas, para fora da sala de estar.

Mais uma vez, o inspetor focalizou sua atenção em mim.

-- A corda -- disse ele. -- Conte-me sobre a corda.

-- Tinha de haver uma -- expliquei. -- Brookie era pesado demais para ser içado na fonte por qualquer um que não o homem mais forte. Ou um escoteiro com uma corda.

-- Obrigado -- disse o Inspetor Hewitt. -- É o bastante. Es-tou bem certo de que poderemos preencher os espaços em branco.

-- Além disso -- acrescentei --, o ponto desgastado no tridente mostra claramente onde a corda poliu o bronze.

-- Obrigado. Acho que já anotamos isso.

“Bem, então”, pensei, “vocês não podem culpar ninguém além de vocês mesmos por não pensarem em procurar a corda que causou isso. Colin é um escoteiro, pelo amor de Deus." Havia momentos em que a burocracia ultrapassava minha compreensão.

-- Um último detalhe -- disse o inspetor, esfregando o nariz. -- Talvez você faça a gentileza de nos esclarecer um detalhe que me escapa.

-- Farei o melhor possível, inspetor.

-- Por que diabos Colin pendurou Brookie na fonte? Por que não deixá-lo onde estava?

-- Eles brigaram dentro da base da fonte por causa do garfo de lagosta. Quando Colin largou o objeto de repente, a própria força de Brookie, que o puxava, o fez se apunhalar no nariz. Foi um acidente, é claro.

Embora seja isso o que Colin me contou, devo confessar que enfeitei a realidade mais do que um pouco para o inspetor. Eu não acreditava na versão de Colin mais do que acreditava em cavalos voadores. A morte de Brookie, a meu ver, era a vingança de Colin por anos de abusos. Fora assassinato, puro e simples.

Mas quem era eu para julgar? Eu não tinha a intenção de acrescentar um grama que fosse ao fardo de problemas de Colin.

-- Brookie caiu de costas nos degraus de pedra e deslizou para dentro da câmara. Provavelmente foi isso que o matou.

“Oh, Senhor, perdoa-me por esta mentirinha caridosa!"

-- Colin foi buscar um pedaço de corda no túnel e o içou ao tridente de Posêidon. Ele tinha de amarrar os pulsos de Brookie juntos para que os braços deste não escorregassem para fora do casaco depois. Ele não queria correr o risco de que o corpo caísse.

O Inspetor Hewitt me lançou um olhar que eu só poderia descrever como cético.

-- Brookie -- prossegui -- contara a Colin a respeito da crença dos Hobblers de que o Paraíso era logo acima de nossa cabeça. Entenda, ele queria dar a Brookie uma vantagem inicial.

-- Bom Deus! -- disse o pai.

O Inspetor Hewitt coçou o nariz.

-- Hum... -- disse ele. -- Parece-me um tanto difícil de acreditar.

-- Não tão difícil, inspetor -- disse eu. -- Foi exatamente assim que Colin me explicou. Tenho certeza de que quando o doutor Darby e o vigário permitirem que você o interrogue mais...

-- Obrigado, Flavia -- disse ele, pondo-se em pé, fechando seu caderno. -- E obrigado a você, Coronel de Luce. Vocês foram mais do que generosos ao nos ajudarem a chegar ao fundo dessa questão. -- Ele se dirigiu à porta da sala de estar. -- Ah, e Flavia -- disse ele um tanto timidamente, voltando-se para trás. -- Eu quase me esqueci. Vim aqui hoje como um mensageiro, por assim dizer. Minha mulher, Antigone, ficaria encantada se você fosse para o chá na próxima quarta-feira... Se você estiver livre, é claro.

Antigone? Chá? E então a ficha caiu.

“Oh, dia fabulástico! Oba! Upa-la-lá! Aquela deusa gloriosa, Antigone, convocava a mim, Flavia Sabina de Luce, para seu chalé coberto de hera!"

-- Obrigada, inspetor -- disse eu formalmente. -- Vou consultar minha agenda e ver se posso reservar algum tempo.


Subi a escadaria voando. Mal podia esperar para contar a Porcelana!

Eu deveria ter adivinhado que ela fora embora.

Ela arrancara uma página em branco de meu caderno e a prendera em um de meus travesseiros com um alfinete de segurança nela, escrevera:


Obrigada por tudo.

Procure por mim em Londres algum dia.

Sua amiga,

Porcelana


Só isso, nada mais.

De início, fui tomada por tristeza. A despeito de nossos altos e baixos, eu nunca conhecera alguém como Porcelana Lee. Já começava a sentir saudades dela.


Acho difícil escrever sobre o retrato de Harriet.

Deixar a pintura virada contra a parede no estúdio de Vanetta Harewood estava fora de questão. Afinal, Vanetta o oferecera a mim, e, como Harriet pagara integralmente pela obra, ela pertencia por direito ao espólio de Buckshaw.

Eu o penduraria em segredo, decidi, na sala de estar e o desvelaria para minha família com toda a cerimônia possível. Mal podia esperar.

No fim, não fora terrivelmente difícil fazer os arranjos para a transferência. Pedi à sra. Mullet que conversasse com Clarence Mundy, que operava o único táxi de Bishop’s Lacey, e Clarence concordara em “prover o transporte”, como colocou.

Em uma tarde escura e chuvosa no fim de setembro, chegamos ao portão do chalé-ateliê em Malden Fenwick, e Clarence me acompanhou até a porta com um enorme guarda-chuva preto.

-- Entre -- disse Vanetta Harewood. -- Eu estava aguardando por você.

-- Desculpe se estamos um pouco atrasados -- disse eu. -- A chuva, e tudo o mais...

-- Não é transtorno nenhum -- replicou ela. -- A bem da verdade, tenho achado os dias um tanto mais longos do que de costume.

Clarence e eu aguardamos no vestíbulo até a carrancuda Ursula aparecer com um grande objeto embrulhado em papel pardo.

-- Cuide para que fique seco -- disse Vanetta. -- É minha melhor obra.


E assim trouxemos o retrato de Harriet para Buckshaw.

-- Segure o guarda-chuva para mim -- disse Clarence, preparando-se para a batalha de remover o pacote do assento traseiro do táxi. -- Vou precisar das duas mãos.

Protegendo o pacote da chuva inclinada, corremos até a porta, tão desajeitados quanto corredores de três pernas.

Eu entregara a Clarence o valor da corrida e estava a meio caminho do foyer quando subitamente o pai emergiu de seu estúdio.

-- O que você está arrastando para casa dessa vez? -- perguntou ele, e não tive coragem de mentir.

-- É uma pintura -- respondi. -- Pertence a você.

O pai encostou o pacote contra a parede e voltou ao seu estúdio, de onde emergiu novamente, agora com uma tesoura para cortar as muitas voltas de barbante grosso.

Ele deixou o papel cair no chão.


Isso foi duas semanas atrás.

O retrato de Harriet e suas três filhas não está mais no foyer, nem na sala de estar. Até hoje, eu havia procurado pela casa em vão.

Mas esta manhã, após destrancar a porta do meu laboratório, encontrei a pintura pendurada acima da lareira.

Não contei a ninguém.

O pai sabe que está lá, eu sei que está lá, e, por ora, é tudo o que importa.

 

A fim de prover uma iluminação dramática suficiente para a história, devo admitir que fiz pequenos ajustes aqui e ali em relação às fases da lua, mas o leitor pode ficar seguro de que, depois de terminar, coloquei tudo de volta exatamente como estava.

 

O ato de escrever um livro é, entre muitas outras coisas, uma extensiva jornada com amigos: uma espécie de peregrinação. Pelo caminho, nos encontramos, às vezes nos separamos, compartilhamos refeições e trocamos histórias, ideias, piadas e opiniões. Com isso, esses amigos ficaram inextricavelmente entrelaçados na trama do livro.

Minha gratidão de coração ao dr. John Harland e a Janet Harland, aos quais este livro é dedicado, pelos muitos anos de amizade e pelas incontáveis sugestões excelentes.

A Nora e a Don Ivey, que não apenas abriram sua casa para mim, como também cuidaram pessoalmente para que um de meus sonhos de toda a vida se tornasse realidade.

A meus editores: Bill Massey, da Orion Books, em Londres, Kate Miciak, da Random House, em Nova York, e Kristin Cochrane, da Doubleday Canada, em Toronto. E agradecimentos especiais a Loren Noveck e Connie Munro, da Random House de Nova York, respectivamente minha editora de produção e minha vice-editora, que labutaram quietamente nos bastidores, realizando grande parte do trabalho pelo qual eu levo o crédito.

A Denise Bukowsky, minha agente, e a Susan Morris, da Bu-kowsky Agency, que destemidamente e com extraordinária eficiência fizeram malabarismos com todas as montanhas de detalhes.

A Brad Martin, CEO da Random House Canada, por sua fé inabalável.

A Susan Corcoran e Kelle Ruden, da Random House de Nova York, e Sharon Klein, da Random House de Toronto, por seu apoio fenomenal.

A Natalie Braine, Jade Chandler, Juliet Ewers, Jessica Purdue e Helen Richardson, da Orion Books do Canadá, que me desobrigaram de tantas preocupações.

A Jennifer Herman e Michael Ball, por fazerem os quilômetros passar voando e por me fazerem chegar sempre em segurança.

A Ken Boichuk e sua Grimsby Author Series, com gratidão pela mais memorável das noites.

Ao meu velho amigo Robert Nielsen, da Potlatch Publications, que publicou algumas de minhas primeiras histórias de ficção e que pareceu tão honestamente feliz por me ver novamente quanto eu por vê-lo.

A Ted Barris, autor e amigo de longa data, cuja energia concentrada é sempre uma grande inspiração.

A Marion Misters, da Sleuth of Baker Street, em Toronto, e Wendy Sharko, da The Avid Reader, em Cobourg, que me deram as boas-vindas de volta ao meu lugar de nascimento e à minha cidade, respectivamente.

A Rita e Hank Schaeffer, que me mimaram em Montreal.

A Andreas Kessaris, da Paragraphe Bookstore de Montreal.

Às “Ladies of Westminster” da Random House: Cheryl Kelly, Lori Zook, Sherri Drechsler, Pam Kaufman, Judy Pohlhaus, Camille Marchi, Sherry Virtz, Stacey Carlinia, Emily Bates, Amiee Wingfield e Lauren Gromlowicz, com quem compartilhei uma tonelada de livros e duas toneladas de risos.

A Kim Monahan, Randall Klein e David Weller, da Random House de Nova York.

A Tony Borg, Mary Rose Grima, dr. Joe Rapa, Doris Vella e dr. Raymond Xerri, que provavelmente nunca se darão conta da grande diferença que fizeram. Suas muitas gentilezas e cortesias durante a criação deste livro jamais serão esquecidas.

A Mary Jo Anderson, Stan Ascher, Andrea Baillie, Tim Belford, Rebecca Brayton, Arlene Bynon, Stephen Clare, Richard Davies, Anne Lagace Dowson, Mike Duncan, Vanessa Gates, Kathleen Hay, Andrew Krystal, Sheryl MacKay, Hubert O’Hearn, Mark Perzel, David Peterson, Ric Peterson, Craig Rintoul, M. J. “Mike” Stone, Scott Walker, Lisa Winston e Carolyn Yates, que fizeram tudo parecer fácil ao realizarem as perguntas certas.

A Skip Prichard e George Tattersfield, da Ingram Book Company, de La Vergne, Tennessee, a Claire Tattersfield, que me concedeu a grande honra de faltar na escola para ter seu livro autografado, e a Robin Glennon, por preparar um dia muito memorável.

Aos companheiros autores Annabel Lyon, Michael McKinley, Chuck Palahnuik, e Danielle Trussoni, por compartilharem parte da jornada.

A Paul Ingram, da Prairie Lights Books da cidade de Iowa, Nova Jersey, e a Wes Caliger. A despeito de ele ter entretido o presidente Obama no dia anterior à minha chegada, as boas-vindas de Paul foram do tipo que sonha todo autor.

À minha “Gêmea Maldita”, Barbara Peters, da Poisoned Pen de Scottsdale, Arizona, que deixou as ideias mais surpreendentes no meu correio de voz.

À memória do meu querido amigo David Thompson, da Murder by the Book de Houston, Texas, cujo falecimento chocantemente prematuro em setembro de 2010 privou o mundo da ficção de mistério de uma de suas pedras angulares. Famoso por seu conhecimento enciclopédico sobre ficção de mistério, David era universalmente amado tanto por autores como por leitores.

E à esposa de David, McKenna Jordan, da Murder by the Book, e à mãe de McKenna, Brenda Jordan, pelas gentis cortesias por demais numerosas para contar.

A Don Mayer e Bob Weitrack, da Barnes and Noble, Nova York; a Ellen Clark, Richard Horseman, Dane Jackson e Eric Tsai, da Borders, Ann Arbor, Michigan.

A Barb Hudson, Jennie Turner-Collins e Michael Fraser, da Joseph-Beth Booksellers de Cincinnati, Ohio, e a Kathy Tirscherk, que me levou em segurança para onde eu precisava ir.

Com amor aos Bryson: Jean, Bill, Barbara, John, Peter e David, que sempre estiveram presentes.

À Ball Street Gang: Bob e Pat Barker, Lillian Hoseton, Jane McCraig, Jim Thomas e o membro honorário Linda Hutsell-Manning: juntos novamente depois de meio século. Thomas Wolfe estava errado: você pode voltar para casa.

A Evelyn e Leigh Palmer e a Robert Bruce Thompson, que ajudaram com a química. Todos os erros que restaram são meus.

Devo também reconhecer uma especial dívida de gratidão aos livros que inspiraram a invenção daquela seita peculiar, os Hobblers: History and Antiquities of Dissenting Churches and Meeting Houses, in London, Westminster, and Southwark; Including the Lives of Their Ministers, from the Rise of Nonconformism to the Present Time, de Walter Gibson, Londres, 1814, e The History of Baptism, de Robert Robinson, Boston, 1817.

E, finalmente, como sempre, com amor à minha esposa Shirley, que torna minha vida fácil ao fazer alegremente o que deixo por fazer, além de acumular a função de técnica pessoal de computador. Ninguém é mais versado em rejuvenescer teclados gastos e, enquanto faz isso, remover as migalhas de pão.

 

 

                                                   Alan Bradley         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades