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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O EVANGELHO DE SANGUE / James Rollins e Rebecca
O EVANGELHO DE SANGUE / James Rollins e Rebecca

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Primavera, 73 d.C.
Massada, Israel
Os mortos continuavam a cantar.
Noventa metros acima da cabeça de Eleazar, o coro de novecentos rebeldes judeus se elevava em desafio à legião romana diante de seus portões. Os defensores tinham jurado que prefeririam tirar a própria vida a ser capturados. Aquelas derradeiras preces, cantadas para o Céu nas alturas, ecoavam pelos túneis abaixo, escavados no coração da montanha de Massada.
Abandonando os homens condenados sob a amarga luz do sol, Eleazar desviou os olhos do teto de calcário do corredor de passagem. Ele desejou que pudesse cantar ao lado deles, que pudesse dar sua própria vida na batalha final. Mas seu destino era outro.
Outro caminho.
Tomou nos braços o precioso bloco. A pedra aquecida pelo sol se estendia de sua mão ao cotovelo, do comprimento de um bebê recém-nascido. Abraçando o bloco de pedra contra o peito, ele se obrigou a entrar na passagem tosca que cortava o coração da montanha. Pedreiros fecharam o caminho às suas costas. Nenhum homem vivo podia segui-lo.
Os sete soldados que o acompanhavam avançaram à sua frente com archotes. Deviam ainda estar pensando nos irmãos, os novecentos acima no platô calcinado pelo sol. A fortaleza estava sitiada havia meses. Dez mil soldados romanos, divididos em enormes acampamentos, cercavam o planalto, garantindo que ninguém pudesse sair ou entrar. Quando o cântico deles encerrasse, os rebeldes teriam feito o juramento de tirar a vida de suas famílias e depois a própria vida, antes que os romanos ultrapassassem suas muralhas. Eles rezaram e se prepararam para matar os inocentes.
Do mesmo modo que eu devo.

 


 


A tarefa de Eleazar o oprimia, parecendo-lhe tão pesada quanto a pedra em seus braços. Os pensamentos dele se voltaram para o que o esperava abaixo. A tumba. Ele havia passado horas rezando naquele templo subterrâneo, os joelhos pressionados contra os blocos de pedra tão bem encaixados que nem uma formiga poderia escapar entre eles. Tinha estudado as paredes lisas e altas, o teto em arco. Havia admirado o trabalho cuidadoso dos artesãos que labutaram para tornar o espaço sagrado.

Mesmo naquela época, não havia ousado olhar para o sarcófago no templo.

Aquela cripta profana que abrigaria a mais sagrada palavra divina.

Ele abraçou mais forte a pedra contra o peito.

Por favor, Deus, tira de mim este fardo.

Esta última prece, como as milhares antes dela, permaneceu sem resposta. Os sacrifícios dos rebeldes acima tinham de ser honrados. Seu sangue vital maldito tinha de servir a um propósito mais alto.

Quando ele chegou ao portal em arco do templo, não conseguiu passar. Outros o empurraram e passaram para assumir seus postos. Ele apoiou a testa contra a parede fria, rezando por algum consolo.

Mas nenhum veio.

O olhar dele varreu o interior. As luzes de archotes bruxuleavam, lançando sombras que dançavam sobre os blocos de pedra que formavam o teto arqueado acima. Fumaça se elevava em anéis, buscando uma via de escape, mas não haveria nenhuma.

Não para eles.

Afinal, os olhos dele se fixaram na garotinha, de joelhos, segura por soldados. O coração dele se contraiu diante daquela visão dolorosa, mas não abandonaria a missão que lhe fora entregue. Esperava que ela fechasse os olhos de modo que ele não tivesse de olhar para eles no final.

Olhos de água...

Era assim que sua irmã há muito já morta descrevera aqueles olhos inocentes, os olhos de sua filha, de sua pequenina Azubah.

Eleazar então fitou os olhos de sua sobrinha.

Ainda eram olhos de uma criança – mas não foi uma criança quem lhe lançou um olhar furioso. Ela vira o que uma criança nunca deveria ver. E brevemente não veria mais nada.

Perdoe-me, Azubah.

Com uma última prece murmurada, entrou na tumba iluminada pelos archotes. As chamas se refletiam nos olhos angustiados dos sete soldados que esperavam por ele. Lutaram contra os romanos durante dias, sabendo que a batalha acabaria com suas mortes, mas não assim. Ele os cumprimentou de cabeça e ao homem de manto no meio deles. Nove homens adultos reunidos para sacrificar uma criança.

Os homens baixaram a cabeça para Eleazar, como se ele fosse santo. Na verdade, eles não sabiam o quanto ele era impuro. Só ele e aquele a quem servia sabiam disso.

Todos os homens tinham ferimentos ensanguentados, alguns infligidos pelos romanos, outros pela garotinha mantida em cativeiro.

A veste púrpura que ela fora obrigada a vestir era grande demais, fazendo-a parecer ainda menor. Suas mãozinhas sujas seguravam uma boneca puída, feita de couro, tingido da cor do deserto da Judeia, com um olho de botão faltando.

Há quantos anos ele a tinha dado a ela? Ele se lembrava da alegria explodindo naquele rostinho minúsculo quando oferecera a boneca a ela. Lembrava-se de ter pensado em quanto sol podia ser contido por um corpo tão pequenino, que ele podia luzir com tanto brilho, alimentar uma alegria tão simples com um presente feito de couro e pano.

Ele examinou o rosto dela naquele momento, procurando a luz daquele sol.

Mas só escuridão retribuiu seu olhar.

Ela sibilou, arreganhando os dentes.

– Azubah – suplicou ele.

Olhos, outrora calmos e belos como os de uma corça, olharam furiosos para ele com um ódio feral. Ela respirou fundo e cuspiu sangue quente no rosto dele.

Ele cambaleou, atordoado com a consistência sedosa e o cheiro de ferro do sangue. Com a mão trêmula, limpou o rosto. Então se ajoelhou diante dela e usou um trapo para gentilmente limpar o sangue de seu queixo, depois jogou o trapo sujo bem longe.

Então ele ouviu.

E ela também.

Eleazar e Azubah viraram a cabeça, sobressaltados. Na tumba, só eles ouviam os gritos vindos do alto da montanha. Só eles sabiam que os romanos haviam penetrado as defesas da fortaleza.

O massacre acima havia começado.

O homem de manto percebeu o movimento deles e soube o que significava.

– Não temos mais tempo.

Eleazar olhou para o homem mais velho de veste marrom empoeirada, o líder deles, o homem que havia exigido que aquela criança fosse batizada em meio a tamanho horror. A idade havia esculpido a face barbada do líder. Seus olhos solenes, impenetráveis, se fecharam. Os lábios se moveram numa prece silenciosa. O rosto dele reluzia iluminado pela segurança de um homem sem dúvidas.

Finalmente, aqueles olhos abençoados se abriram de novo e encontraram o rosto de Eleazar, como se buscando sua alma. Aquilo o fez se recordar do olhar de outro homem, muitos, muitos anos antes.

Eleazar virou o rosto, envergonhado.

Os soldados se reuniram ao redor do sarcófago de pedra aberto no centro da tumba. Fora entalhado em um único bloco de calcário, grande o suficiente para conter três homens adultos.

Mas logo aprisionaria apenas uma garotinha pequenina.

Piras de mirra e de incenso ardiam em cada canto. Em meio à fragrância deles Eleazar sentia cheiros mais misteriosos: sais amargos e temperos acres reunidos de acordo com um antigo texto essênio.

De maneira terrível, tudo estava pronto.

Eleazar baixou a cabeça uma última vez, rezando por alguma alternativa.

Levem a mim, não ela.

Mas o ritual exigia que todos eles desempenhassem seus papéis.

Uma Garota de Inocência Corrompida.

Um Cavaleiro de Cristo.

Um Guerreiro do Homem.

O líder de manto falou. Sua voz rascante não vacilou:

– O que tem que ser feito é a vontade de Deus. Para proteger a alma dela. E as almas dos outros. Peguem-na!

Mas nem todos tinham ido ali por livre e espontânea vontade.

Azubah se soltou de repelão de seus captores e correu para a porta, rápida como uma corça selvagem.

Só Eleazar tinha velocidade para apanhá-la. Ele agarrou-lhe o punho fino. Ela lutou contra ele, mas ele era mais forte. Os homens se reuniram ao redor deles. Ela apertou a boneca contra o peito e caiu de joelhos. Parecia tão miseravelmente pequenina.

O líder fez um gesto para um soldado próximo.

– Tem que ser feito.

O soldado deu um passo adiante e agarrou o braço de Azubah, arrancando-lhe a boneca e atirando-a para um lado.

– Não! – gritou ela, sua primeira palavra, desesperada, ainda parecendo muito com a voz de uma criança, saindo da garganta fina.

Ela se libertou de novo e avançou com uma força furiosa. Saltou sobre o soldado ofensor, cerrando as pernas ao redor da cintura dele. Dentes e unhas rasgaram as faces do homem enquanto ela o derrubava pesadamente no chão de pedra.

Dois soldados correram para ajudá-lo. Eles arrancaram a garota selvagem de cima dele e a imobilizaram.

– Levem-na para o sepulcro! – ordenou o líder.

Os dois homens que a seguravam hesitaram, visivelmente temerosos de se mover. A criança se debatia debaixo deles.

Eleazar viu que o pânico dela não era dirigido aos seus captores, o olhar dela permanecia fixo naquilo que lhe havia sido roubado.

Ele pegou a boneca em frangalhos e a levantou diante do rosto ensanguentado da garota. A boneca a havia aquietado muitas vezes quando era mais jovem. Ele lutou para bloquear as lembranças dela brincando e rindo sob a luz clara do sol com suas irmãs e aquela boneca. O brinquedo tremeu em sua mão.

O olhar dela se suavizou numa súplica. Seus esforços se acalmaram. Ela soltou um braço das mãos dos homens e estendeu a mão para a boneca.

Quando seus dedos tocaram na boneca, seu corpo afrouxou à medida que ela sucumbia ao seu destino, aceitando que fugir não era possível. Ela buscou seu único consolo, como fizera quando criança inocente, na companhia de sua boneca. Ela não queria ir para a escuridão sozinha. Levantou a boneca até o rosto e apertou o nariz pequenino contra o da boneca, sua forma um sinete de consolo infantil.

Acenando para que seus homens se afastassem, Eleazar pegou no colo a menina agora aquietada. Embalou seu corpo frio contra o peito, e ela se aninhou contra ele como costumava fazer. Ele rezou para ter forças para fazer o que era correto.

O bloco de pedra seguro na mão livre o recordava de seu juramento.

Mais para o lado, o líder deles iniciou as preces unindo o sacrifício acima da terra ao que seria feito abaixo, usando encantamentos antiquíssimos, palavras sagradas, e atirando pitadas de incenso nas pequenas piras. No alto da montanha, os rebeldes se mataram quando os romanos derrubaram seus portões.

Aquele trágico pagamento em sangue acertaria a dívida aqui.

Com o bloco apertado na mão, Eleazar carregou a garota pelos poucos degraus que conduziam até o sarcófago aberto. Este já tinha sido enchido, quase até a borda, ondulando e rebrilhando. Era para servir como mikveh – um banho de imersão ritual para aqueles que deveriam ser purificados.

Mas em vez de água benta, vinho enchia aquela banheira.

Jarras de barro vazias cobriam o chão.

Alcançando a cripta, Eleazar examinou suas profundezas escuras. A luz dos archotes transformava o vinho em sangue. Azubah enterrou o rosto no peito dele. Ele engoliu um pesar amargo.

– Agora – ordenou o líder.

Ele segurou o corpo pequenino da menina contra o seu por uma última vez e a sentiu deixar escapar um soluço. Lançou um olhar para o portal escuro. Ainda poderia salvar-lhe o corpo, mas só se condenasse a alma dela e a sua também. Aquele ato terrível era a única maneira de realmente salvá-la.

O soldado de mais alta patente tirou a garota dos braços de Eleazar e a ergueu sobre a tumba aberta. Ela apertou a boneca contra o peito, o mais puro terror estampado nos olhos enquanto ele a baixava para a superfície de vinho. E parou. Os olhos dela buscaram os de Eleazar. Ele estendeu uma das mãos para ela, então a retirou.

– Abençoado seja o Senhor nosso Deus que está no Céu – entoou o líder.

Acima deles, todos os cânticos tinham cessado. Ela inclinou a cabeça como se tivesse ouvido aquilo também. Eleazar imaginou o sangue empapando a areia, penetrando a terra em direção ao âmago da montanha. Tinha de ser feito naquele momento. Aquelas mortes marcavam o ato final para selar aquela tumba.

– Eleazar – disse o líder. – Está na hora.

Eleazar estendeu o precioso bloco de pedra, seu segredo sagrado a única força forte o suficiente para impeli-lo a continuar. O peso do bloco de pedra não era nada em seus braços. Era o seu coração que o fazia lutar para respirar.

– Tem que ser feito – disse o homem de manto, agora baixinho.

Eleazar não confiou em sua voz para responder. Ele se moveu em direção à garota.

O comandante a largou dentro do vinho. Ela se contorceu no líquido escuro, os dedos pequeninos agarrando os lados de pedra de seu caixão. O líquido vermelho escorreu pelas bordas e se espalhou pelo chão. Os olhos dela o encararam suplicantes enquanto ele colocava o bloco de pedra sobre seu peito magro – e empurrava. O peso da pedra e a força trêmula de seus braços obrigaram a criança a ir para o fundo da banheira de vinho.

Ela parou de lutar; apenas apertava a boneca contra o peito. Ficou deitada quieta, como se já estivesse morta. Os lábios mudos se moveram, formando palavras que desapareceram à medida que seu rostinho foi afundando.

Quais foram aquelas palavras ininteligíveis?

Ele sabia que aquela pergunta o perseguiria até o fim de seus dias.

– Perdoa-me – disse com a voz entrecortada. – E perdoe-a.

O vinho empapava as mangas de sua túnica, escaldando sua pele. Ele segurou a forma inerte da menina até que as preces do líder cessassem.

Pelo que pareceu uma eternidade.

Finalmente, ele a largou e se levantou. Azubah permaneceu afogada no fundo, para sempre presa sob o peso da pedra sagrada, para sempre sua amaldiçoada guardiã. Ele rezou para que aquele ato purificasse a alma da menina, numa penitência eterna pela profanação que ela trazia dentro de si.

Minha pequenina Azubah...

Ele tombou contra o sarcófago.

– Lacrem-no – ordenou o líder.

Uma laje de calcário foi baixada com cordas, encaixada no lugar. Os homens vedaram as bordas da tampa com uma mistura de cal e cinzas para colar pedra com pedra.

Eleazar pôs as palmas das mãos nas laterais daquela prisão como se seu toque pudesse confortá-la. Mas agora ela estava além de qualquer conforto.

Ele apoiou a testa contra a pedra implacável. Era a única maneira. Tinha sido por um bem maior. Mas aquelas verdades não tornaram menor a sua dor. Nem a dela.

– Venha – chamou o líder. – O que precisava ser feito foi feito.

Eleazar respirou fundo e inalou um ar fétido. Os soldados tossiram e se encaminharam para o portal. Ele ficou sozinho com ela na tumba úmida.

– Você não pode ficar – gritou o líder, parado na entrada. – Precisa seguir um caminho diferente.

Eleazar cambaleou em direção à voz, cego pelas lágrimas.

Depois que eles saíssem, a tumba seria escondida, a passagem, vedada. Nenhum ser vivo se lembraria dela. Qualquer pessoa que tentasse violá-la estaria condenada.

Ele encontrou o olhar do líder cravado nele.

– Arrepende-se de seu juramento? – perguntou o homem. Sua voz estava carregada de compaixão, mas também tinha a dureza da resolução.

Aquela dureza era o motivo pelo qual Cristo havia chamado o líder deles de Petrus, significando “Rocha”. Ele era o apóstolo que seria o fundador da nova igreja.

Eleazar encontrou aquele olhar pétreo.

– Não, Pedro, não me arrependo.


PARTE I


Olhando ele para a terra, ela treme, tocando nos montes, logo fumegam!

– Salmo 104:32


1

26 de outubro, 10:33, horário de Israel

Cesareia, Israel

A dra. Erin Granger passou seu pincel mais macio no crânio antiquíssimo. À medida que a poeira foi retirada, ela o examinou com olhos de cientista, observando as minúsculas emendas de osso, a fontanela aberta. Seu olhar avaliou a quantidade de calosidades, e concluiu que o crânio fosse o de um recém-nascido e, pelo ângulo do osso da pelve, de um menino.

Tinha apenas alguns dias quando morreu.

Enquanto ela continuava a retirar a criança da terra e da pedra, olhou também como mulher, imaginando o bebê deitado de lado, com os joelhos encolhidos contra o peito, as mãos minúsculas ainda cerradas em punhos. Teriam os pais dele contado as batidas de seu coração, beijado sua pele muito macia, observado enquanto aquele pequeno coração parava?

Como ela um dia fizera com sua irmãzinha caçula.

Ela fechou os olhos, o pincel em posição.

Pare.

Abrindo os olhos, Erin penteou para trás uma mecha rebelde de cabelo louro que tinha escapulido do rabo de cavalo, antes de voltar a atenção para os ossos. Descobriria o que acontecera ali tantas centenas de anos atrás. Porque, como no caso de sua irmã, a morte daquela criança fora deliberada. Só que aquele menino fora vítima de violência, não de negligência.

Ela continuou a trabalhar, observando a posição delicada dos membros. Alguém havia se esforçado para pôr o corpo de volta em sua ordem apropriada, antes de enterrá-lo, mas os esforços não podiam esconder os ossos quebrados e faltando, sugerindo uma atrocidade no passado. Mesmo dois mil anos não podiam apagar o crime.

Ela descansou o pincel de madeira e tirou mais uma fotografia. O tempo tinha colorido os ossos, dando-lhes o mesmo tom sépia desbotado que o solo impiedoso, mas sua escavação cuidadosa havia revelado sua forma. Mesmo assim, seriam necessárias horas de trabalho para liberar o restante dos ossos.

Ela passou de um joelho dolorido para o outro. Aos 32 anos, estava longe de estar velha, embora se sentisse assim naquele momento. Estivera na trincheira apenas cerca de uma hora, mas seus joelhos já estavam reclamando. Na infância, ficara de joelhos, rezando por muito mais tempo, no chão duro de terra batida da igreja do complexo. Naquela época, ela podia ficar de joelhos durante meio dia, sem reclamar, se seu pai mandasse – mas depois de tantos anos tentando esquecer o passado, talvez não se recordasse muito bem.

Estremecendo de dor, ela se pôs de pé e se alongou, levantando a cabeça acima da linha da trincheira que ficava na altura da cintura. Uma brisa fresca do mar acariciou seu rosto acalorado, dissipando suas lembranças. À esquerda, o vento sacudiu as abas das tendas do acampamento e espalhou areia pelo sítio da escavação.

Seus olhos encheram-se de ciscos, resíduos trazidos pelo vento, dos quais ela se livrou depois de muito piscar. A areia invadia tudo por ali. A cada dia seu cabelo passava de louro para o tom vermelho acinzentado do deserto israelense. Suas meias roçavam ásperas contra seus pés dentro dos tênis Converse como se fossem lixas, as unhas dos dedos se enchiam de pó de detritos, até a boca trazia o gosto de areia.

Mesmo assim, quando ela olhou para além da fita plástica amarela que cercava sua escavação arqueológica, Erin permitiu que uma sombra de sorriso brilhasse, feliz por ter os pés bem plantados em uma história muito antiga. Sua escavação ocupava o centro de um antiquíssimo hipódromo, uma pista de corrida de carros romanos de combate. Ficava de frente para o atemporal mar Mediterrâneo. A água brilhava azul-índigo, tingida pelo sol de um tom metálico surrealista. Atrás dela, uma longa extensão de antiquíssimos assentos de pedra, divididos em fileiras, se erguia em um testemunho de dois mil anos a um rei há muito morto, o arquiteto da cidade de Cesareia; o infame rei Herodes, aquele monstruoso assassino de inocentes.

O relinchar de um cavalo flutuou pela pista de corridas, ecoando e vindo não do passado, mas de um estábulo improvisado, construído na extremidade mais distante do hipódromo. Um grupo local preparava uma corrida só para convidados. Muito em breve aquele hipódromo seria ressuscitado, voltando mais uma vez à vida, ainda que apenas por alguns dias.

Ela mal podia esperar.

Ela, no entanto, ainda tinha muito trabalho a concluir com seus alunos antes daquilo.

Com as mãos nos quadris, olhou fixamente para o crânio do bebê assassinado. Talvez, mais tarde naquele dia, ela pudesse cobrir o minúsculo esqueleto com gesso e dar início ao laborioso processo de escavá-lo da terra. Estava louca para levá-lo para um laboratório, onde poderia ser analisado. Os ossos tinham mais a lhe dizer do que ela jamais descobriria em campo.

Ela tornou a se ajoelhar ao lado do bebê. Alguma coisa a incomodava em relação ao fêmur. Tinha estranhas endentações em forma de concha ao longo de seu comprimento. Enquanto ela se inclinava para olhar mais de perto, um arrepio fez desaparecer o calor.

Seriam por acaso marcas de dentes?

– Professora? – o sotaque texano carregado de Nate Highsmith cortou o ar e quebrou sua concentração.

Ela se sobressaltou, batendo com o cotovelo contra as ripas de madeira que protegiam as paredes da areia impiedosa.

– Desculpe. – Seu aluno de graduação baixou a cabeça.

Ela dera instruções rigorosas de que não a perturbassem naquela manhã, e aqui estava ele, já a incomodando. Para evitar uma resposta irritada, ela pegou seu cantil desgastado e tomou um longo gole de água tépida. Tinha gosto de aço inoxidável.

– Não foi nada – retrucou secamente.

Erin sombreou os olhos com a mão livre e os franziu ao olhar para ele. Postado na beira da trincheira, estava em silhueta contra o sol escaldante. Usava um chapéu Stetson puxado baixo sobre os olhos, um jeans maltratado e uma camisa desbotada de tecido axadrezado com as mangas enroladas para expor os braços musculosos. Ela desconfiava que ele as tivesse enrolado apenas para impressioná-la. Não funcionaria, é claro. Agora já ao longo de muitos anos, totalmente concentrada em seu trabalho, ela reconhecia que os únicos homens que achava fascinantes estavam mortos havia muitos séculos.

Erin lançou um olhar expressivo para um trecho sem nada de extraordinário de areia e rochas. O radar de penetração no solo da equipe estava ali abandonado, mais parecendo um cortador de grama batido por jato de areia do que um equipamento de alta tecnologia para investigar o que havia debaixo de terra e rochas.

– Por que você não está lá, mapeando aquele quadrante?

– Eu estava, doutora. – O sotaque dele ficava mais pronunciado quando estava excitado. Ele também levantou uma sobrancelha.

Ele encontrou alguma coisa.

– O que é?

– A senhora não acreditaria se eu lhe contasse. – Nate se balançou nas solas dos pés, pronto para sair correndo para mostrar a ela.

Ela sorriu, porque ele estava certo. Fosse lá o que fosse, não acreditaria antes que visse por si mesma. Aquele era o mantra que ela martelava na cabeça de seus alunos: Não é real até que você o escave, o retire da terra e o segure nas mãos.

Para proteger seu local de trabalho e por respeito aos ossos da criança, ela delicadamente puxou uma lona, cobrindo o esqueleto. Quando acabou, Nate estendeu a mão para ajudá-la a sair da profunda trincheira. Como esperava, a mão dele se demorou na dela por um segundo a mais do que devia.

Tentando não fazer cara feia, ela puxou a mão e limpou os joelhos de seu jeans. Nate deu um passo para trás, desviando o olhar, imaginando que talvez tivesse ido além do que deveria. Ela não o repreendeu. De que adiantaria? Ela entendia muito bem as investidas masculinas, mas raramente as encorajava; no campo, então, nem pensar. Ali, ela usava a terra como outras mulheres usavam maquiagem e evitava envolvimentos românticos. Embora fosse de estatura média, já tinham lhe dito que andava como se fosse trinta centímetros mais alta. Tinha que fazer isso naquela profissão, especialmente sendo uma mulher jovem.

Em seu país, tivera sua parcela de relacionamentos, mas nenhum deles parecera durar. Acabou por desenvolver uma imagem intimidadora, o que afastava muitos homens e, estranhamente, atraía outros tantos.

Como Nate.

Ainda assim, ele era um bom homem de campo com grande potencial como geofísico. Ele superaria seu interesse por ela, e as coisas se descomplicariam por si mesmas.

– Mostre-me. – Erin se virou em direção à tenda de equipamento de cor cáqui. Se não servisse para mais nada, seria bom sair um pouco daquele sol escaldante.

– Amy está com as informações no laptop. – Ele avançou atravessando o sítio. – Tiramos a sorte grande, professora. É um verdadeiro prêmio de ossos.

Ela reprimiu um sorriso diante do entusiasmo dele e se apressou para acompanhar as passadas largas das pernas compridas do rapaz. Erin admirava a paixão dele, mas, como a vida, a arqueologia não oferecia grandes prêmios depois de uma única manhã de trabalho. Por vezes, nem mesmo depois de décadas.

Ela se agachou para cruzar a aba da tenda e a manteve aberta para Nate, que tirou o chapéu enquanto entrava. Fora do clarão do sol, o interior da tenda parecia vários graus mais fresco que do lado de fora.

A energia que mantinha o laptop e o ventilador dilapidado de metal era fornecida por um gerador que emitia um zumbido estranho. O ventilador estava virado direto para Amy, uma jovem de 23 anos, natural de Colúmbia, aluna de pós-graduação. A moça de cabelos escuros passava mais tempo dentro da tenda do que fora. Gotas de água haviam se condensado numa lata de Coca-Cola sobre sua mesa de trabalho. Ligeiramente gordinha e fora de forma, Amy não tivera a experiência de anos sob o sol inclemente para endurecê-la para os rigores do trabalho de campo arqueológico, mas mesmo assim tinha um bom faro tecnológico. Amy digitou no teclado com uma das mãos e, com a outra, acenou para que Erin se aproximasse.

– Professora Granger, a senhora não vai acreditar nisto.

– É o que tenho ouvido.

Seu terceiro aluno também estava na tenda. Aparentemente todo mundo tinha decidido parar de trabalhar para examinar os achados de Nate. Heinrich estava inclinado sobre o ombro de Amy. Um rapaz impassível, de 24 anos, aluno da Universität Freie de Berlim, ele normalmente era difícil de distrair. O fato de ter abandonado seu próprio trabalho significava que o achado era grande.

Os olhos castanhos de Amy não abandonaram a tela.

– O programa ainda está trabalhando para ampliar a imagem, mas achei que a senhora gostaria de ver isto imediatamente.

Erin soltou o trapo de pano preso em seu cinto e limpou o pó e o suor do rosto.

– Amy, antes que eu me esqueça, aquele esqueleto de criança que eu estou escavando... vi umas marcas estranhas, que gostaria que você fotografasse.

Amy assentiu, mas Erin suspeitava que não tivesse ouvido nem uma palavra do que ela dissera.

Nate ficou remexendo seu Stetson.

O que teriam encontrado?

Erin se aproximou e se postou ao lado de Heinrich. Amy se inclinou para trás em sua cadeira de metal dobrável para que Erin pudesse ter uma visão desimpedida da tela.

O laptop exibia imagens divididas em fatias de tempo escalonadas do terreno que Nate havia escaneado naquela manhã. Cada uma mostrava uma camada diferente do quadrante oito, separada por profundidade. As imagens pareciam poças de lama quadradas riscadas por linhas negras que formavam parábolas, com ondulações na poça. As linhas pretas representavam material sólido.


O coração de Erin bateu mais forte, subindo-lhe à garganta. Ela se inclinou para mais perto com incredulidade.

Aquela poça de lama tinha ondulações demais. Em dez anos de trabalho de campo, nunca tinha visto nada semelhante. Ninguém tinha visto.

Isto não pode estar correto.

Ela traçou uma curva na tela lisa, ignorando a maneira como Amy apertou os lábios. Amy detestava quando alguém sujava a tela de seu laptop, mas Erin tinha de provar que aquilo era real – tinha de tocar ela mesma.

Ela falou em meio à tensão, em meio à esperança:

– Nate, qual o tamanho da área que você escaneou?

Nenhuma hesitação:

– Dez metros quadrados.

Ela olhou de soslaio para o rosto sério dele.

– Só dez metros? Tem certeza?

– A senhora me treinou no uso do radar de penetração no solo, lembra? – Ele inclinou a cabeça para o lado. – Meticulosamente.

Amy deu uma risada.

Erin prosseguiu:

– E você acrescentou ganho a estes resultados?

– Sim, professora – ele suspirou. – Todo o ganho possível.

Ela percebeu que tinha ferido o ego dele ao questionar suas habilidades e qualificação, mas precisava ter certeza. Ela confiava no equipamento, mas nem sempre nas pessoas que o operavam.

– Eu fiz tudo. – Nate se inclinou para frente. – E, antes que a senhora pergunte, a assinatura é exatamente a mesma que a do esqueleto que estava escavando.

Exatamente a mesma? Aquilo fazia com que aquela camada tivesse dois mil anos. Ela olhou de volta para as imagens perturbadoras. Se os dados estivessem corretos, e ela teria de verificar mais uma vez, mas se estivessem, cada parábola assinalava um crânio humano.

– Fiz uma contagem aproximada. – Nate interrompeu seus pensamentos. – Mais de quinhentos. Nenhum maior que dez centímetros de diâmetro.

Dez centímetros...

Não eram apenas crânios – eram crânios de bebês.

Centenas de bebês.

Ela silenciosamente recitou a passagem da Bíblia: Mateus 2:16: Então Herodes, vendo que tinha sido iludido pelos magos, irritou-se muito, e mandou matar todos os meninos que havia em Belém, e em todos os seus contornos e costas, de dois anos para baixo, segundo o tempo que diligentemente inquirira dos magos.

O Massacre dos Inocentes. Supostamente, Herodes teria ordenado que fosse feito para ter certeza, certeza absoluta, de que havia matado a criança que temia que um dia viesse a suplantá-lo como o Rei dos Judeus. Mas de qualquer maneira tinha falhado. Aquele bebê havia fugido para o Egito e cresceria para se tornar o homem conhecido como Jesus Cristo.

Teria sua equipe acabado de descobrir a prova trágica do ato de Herodes?


2

26 de outubro, 13:03, horário de Israel

Massada, Israel

O suor fez os olhos de Tommy arderem. Ter sobrancelhas teria sido útil naquele momento.

Mais uma vez obrigado, quimioterapia.

Ele se deixou cair recostado contra um pedregulho cor de camelo. Todas as pedras naquela trilha íngreme pareciam iguais, e todas elas estavam quentes demais para se sentar. Ele enfiou a jaqueta sob as pernas para botar mais uma camada de proteção entre sua calça e a superfície escaldante. Como de hábito, estava retardando o grupo. Também como de hábito, estava fraco demais para prosseguir sem uma parada.

Ele lutou para recuperar o fôlego. O ar escaldante parecia rarefeito e seco. Será que conteria oxigênio suficiente? Os outros escaladores pareciam respirar sem problemas; praticamente corriam pelas rampas em zigue-zague da trilha como se ele fosse o avô e eles, os adolescentes de 14 anos. Tommy não conseguia mais sequer ouvir suas vozes.

A trilha rochosa – chamada o Caminho da Serpente – se retorcia subindo os penhascos íngremes da infame montanha de Massada. Seu topo ficava apenas um punhado de metros mais acima, abrigando as ruínas da antiga fortaleza judaica. De seu atual poleiro na trilha, Tommy lançou um olhar para a terra calcinada do vale do Jordão abaixo.

Enxugou o suor dos olhos. Sendo do condado de Orange, Tommy tinha achado que sabia o que era calor. Mas aquilo era como se arrastar para dentro de um forno.

Sua cabeça tombou para frente. Ele queria dormir de novo. Queria sentir os lençóis frescos do hotel contra sua face e tirar uma longa soneca no ar-condicionado. Depois disso, caso se sentisse melhor, iria jogar videogame.

Ele despertou com um sobressalto. Aquela não era hora de sonhar acordado. Mas estava tão cansado, e o deserto tão silencioso. Ao contrário dos seres humanos, os animais e insetos eram espertos o bastante para buscar cobertura durante o dia. Um vasto silêncio vazio o engoliu. Será que a morte seria assim?

– Você está bem, querido? – perguntou sua mãe.

Ele se sobressaltou. Por que não a tinha ouvido se aproximar? Será que adormecera de novo? Com um arquejar, disse:

– Estou.

Ela mordeu o lábio. Todos eles sabiam que ele não estava bem. Ele puxou o punho da camisa para cobrir a mancha marrom do novo melanoma que desfigurava seu pulso direito.

– Podemos esperar o tempo que você quiser. – Ela se sentou ao lado dele. – Só queria saber por que eles chamam isto aqui de Caminho da Serpente. Não vi nenhuma serpente.

Ela disse isto olhando para o queixo dele. Seus pais agora raramente faziam contato visual com ele. Quando faziam, choravam. Tinha sido assim durante os últimos dois anos de cirurgias, quimioterapia e radiação – e agora durante o reaparecimento da doença.

Talvez eles finalmente fossem olhar para o rosto dele quando estivesse no caixão.

– Está quente demais para as serpentes. – Ele detestava a maneira como falava resfolegante.

– Virariam bifes de serpente. – Ela tomou um longo gole da garrafa de água. – Cozidas pelo sol e prontas para serem comidas. Exatamente como nós.

O pai dele apareceu correndo.

– Tudo bem?

– Estou apenas fazendo uma pausa – mentiu a mãe. Ela molhou o lenço e o passou para Tommy. – Fiquei cansada.

Tommy quis corrigi-la, dizer a verdade, mas estava exausto demais. Ele passou o pano molhado no rosto.

O pai começou a falar, como sempre fazia quando estava nervoso.

– Agora nós estamos perto. Só faltam mais alguns metros, e então veremos a fortaleza. A verdadeira fortaleza de Massada. Tente imaginá-la.

Obedientemente, Tommy fechou os olhos. Imaginou uma piscina. Azul e fresca e com cheiro de cloro.

– Dez mil soldados romanos estão acampados, por todos os lados ao redor daqui, em tendas. Soldados com espadas e escudos esperam no sol. Eles fecham qualquer rota de fuga, tentam matar de fome os novecentos homens, mulheres e crianças que vivem lá em cima no planalto. – O pai falou mais depressa, excitado: – Mas os rebeldes se mantêm firmes até o fim. Mesmo depois. Jamais desistem.

Tommy puxou o chapéu para baixo sobre a cabeça careca e franziu os olhos para ele.

– Eles se mataram no final, papai.

– Não – falou o pai em tom apaixonado. – Os judeus aqui decidiram morrer como homens livres, em vez de se entregarem à mercê dos romanos. Eles não se mataram como forma de rendição. Escolheram o próprio destino. Escolhas como esta determinam o tipo de homem que você é.

Tommy pegou uma pedra quente e a atirou para baixo na trilha. Ela quicou, então desapareceu sobre a borda. O que seu pai faria se ele realmente escolhesse seu próprio destino? Se ele se matasse em vez de ser um escravo do câncer? Não achava que o pai ficaria tão orgulhoso disso.

Tommy examinou o rosto do pai. As pessoas costumavam dizer que os dois se pareciam muito: o mesmo cabelo preto grosso, o mesmo sorriso fácil. Depois que a quimioterapia lhe roubou o cabelo, as pessoas não diziam mais isso. Ele se perguntou se teria crescido até ficar um homem parecido com ele.

– Está pronto para ir de novo? – O pai ajeitou a mochila mais para cima no ombro.

A mãe dele lançou um olhar irritado para seu pai.

– Podemos esperar.

– Eu não disse que tínhamos que ir – observou o pai. – Estava apenas perguntando...

– É claro. – Tommy se levantou para evitar que os pais discutissem.

De olhos na trilha, ele se arrastou avançando. Uma bota bege diante da outra. Logo estaria no topo, e seus pais teriam seu momento com ele no forte. Tinha sido por isso que havia concordado em fazer aquela viagem – porque daria a eles algo para lembrar. Mesmo que não estivessem prontos para admitir, eles não teriam mais muitas outras lembranças dele. Queria, portanto, criar boas lembranças para eles.

Tommy contou seus passos. Era assim que se enfrentavam as coisas. Contando-se. Depois que se dizia “um”, então sabia-se que “dois” estava vindo, e que “três” vinha logo em seguida. Ele chegou a 28 antes que o caminho se nivelasse.

Tinha chegado ao cume. É claro, seus pulmões pareciam dois sacos de papel em chamas, mas estava satisfeito por ter conseguido.

No topo havia um pavilhão de madeira – embora pavilhão fosse uma palavra pretensiosa para quatro troncos de árvore magricelos cobertos por mais troncos de árvore magricelos inclinados para criar uma sombra entrecortada. Mas era melhor do que ficar debaixo do sol.

Além da beira do penhasco, o deserto se estendia ao redor dele. À sua maneira seca e desolada, era bonito. Dunas de areia marrom desbotadas ondulavam até onde seus olhos podiam ver. A areia batia contra as pedras. Milênios de erosão pelo vento tinham desgastado aquelas pedras, grão por grão.

Não havia gente, não havia animais. Teriam os defensores visto aquele panorama antes que os romanos chegassem?

Uma terra desolada mortal.

Ele se virou e examinou o topo do planalto. Onde todo o derramamento de sangue havia acontecido dois mil anos antes. Era uma área longa e plana, mais ou menos do comprimento de cinco campos de futebol, talvez três vezes de largura, com cerca de meia dúzia de prédios de pedra em ruínas.

Foi para isto que eu subi aqui?

A mãe dele parecia igualmente pouco impressionada. Ela afastou o cabelo castanho encaracolado dos olhos, o rosto rosado pelo sol ou pelo esforço:

– Parece mais uma prisão do que uma fortaleza.

– Era uma prisão – comentou o pai dele. – Uma prisão para condenados à morte. Ninguém saía vivo.

– Ninguém nunca sai vivo. – Tommy se arrependeu de suas palavras no momento em que deixaram sua boca, especialmente quando sua mãe virou para o lado e enfiou um dedo sob os óculos, claramente enxugando uma lágrima. Mesmo assim, uma parte dele ficou satisfeita por ela sentir algo de verdadeiro, em vez de ficar mentindo o tempo todo.

A guia deles se aproximou saltitante, salvando-os daquele momento. Era uma mulher de pernas longas e nuas, de short cáqui justo e cabelo preto longo, mal parecia sentir a longa escalada.

– Estou contente por vocês terem conseguido chegar! – Tinha até um sotaque israelense sensual.

Ele sorriu para ela, grato por ter outra coisa em que pensar.

– Obrigado.

– Como eu disse às outras pessoas do grupo há um minuto, o nome Massada vem da palavra metzuda, que significa “fortaleza”, e vocês podem ver por quê. – Ela acenou com o braço longo e moreno de modo a abarcar o planalto inteiro. – As muralhas da casamata protegendo a fortaleza na verdade são duas paredes, uma dentro da outra. Entre elas ficavam os principais alojamentos dos residentes de Massada. À nossa frente está o palácio ocidental, a maior estrutura de Massada.

Tommy desviou os olhos dos lábios dela para olhar para onde ela apontava. O edifício colossal não parecia em nada um palácio. Era uma ruína. Faltavam grandes seções nas velhas paredes de pedra revestidas com andaimes modernos. Parecia que alguém estava a meio caminho na construção de um set de filmagem para o próximo filme de Indiana Jones.

Devia existir muita história sob todos aqueles andaimes, mas ele não a sentia. Bem que gostaria. A história era importante para seu pai, e deveria ser para ele também, mas, desde o câncer, ele se sentia fora do tempo, fora da história. Não tinha espaço em sua cabeça para as tragédias de outras pessoas, muito menos daquelas que morreram milhares de anos antes.

– Acreditamos que este prédio a seguir tenha sido uma casa de banhos particular – disse a guia, indicando uma construção à esquerda. – Eles encontraram três esqueletos dentro dele, os crânios separados dos corpos.

Ele se animou. Finalmente alguma coisa interessante.

– Decapitados? – perguntou Tommy, chegando mais perto. – Então eles se suicidaram cortando fora a própria cabeça?

Os lábios da guia se curvaram em um sorriso.

– Na verdade, os soldados fizeram um sorteio para ver quem seria responsável por matar os outros. Só o último homem de fato se matou.

Tommy fez uma careta para as ruínas. Então eles mataram os próprios filhos quando as coisas ficaram difíceis. Ele sentiu uma surpreendente pontada de inveja. Melhor morrer rapidamente nas mãos de alguém que amava você do que pelo apodrecimento lento e impiedoso provocado pelo câncer. Envergonhado de seu pensamento, olhou para seus pais. A mãe sorriu para ele enquanto se abanava com o guia, e o pai tirou seu retrato.

Não, ele nunca pediria isso a eles.

Resignado, voltou sua atenção para a casa de banhos.

– Aqueles esqueletos... ainda estão lá dentro? – Ele deu um passo adiante, pronto para espiar o interior pelo portão de metal.

A guia o interceptou com seu busto avantajado.

– Desculpe, rapaz. Ninguém tem permissão para entrar.

Ele se esforçou para não olhar para os seios dela, mas falhou miseravelmente.

Antes que pudesse se mover, sua mãe perguntou:

– Como está se sentindo, Tommy?

Será que ela o tinha visto olhando para a guia? Ele corou.

– Estou bem.

– Está com sede? Quer um pouco de água? – Ela estendeu a garrafa plástica.

– Não, mãe.

– Deixe-me passar um pouco mais de filtro solar em seu rosto. – A mãe enfiou a mão na bolsa. Normalmente ele teria se sujeitado àquele vexame, mas a guia lançou-lhe um sorriso estonteante, e de repente ele não quis ser tratado como criança.

– Eu estou bem, mãe! – disse em tom irritado, mais duramente do que pretendia.

A mãe se encolheu. A guia se afastou.

– Desculpe – disse ele para a mãe. – Não tive a intenção.

– Está tudo bem. Vou ficar lá com o seu pai. Fique por aqui o tempo que quiser.

Sentindo-se péssimo, ele a observou se afastar.

Tommy se encaminhou para a casa de banhos, furioso consigo mesmo. Apoiou-se no portão de metal para ver o interior – o portão gemeu e se abriu sob o peso dele. Tommy quase caiu lá dentro. Deu um passo para trás rapidamente, mas, antes de fazê-lo, alguma coisa no canto do recinto chamou sua atenção.

Um leve esvoaçar, branco, como um pedaço de papel amassado.

A curiosidade despertou em seu íntimo. Ele olhou ao redor. Ninguém estava olhando. Além disso, qual era a penalidade por entrar sem permissão? Qual era a pior coisa que poderia acontecer? A guia bonitinha poderia arrastá-lo para fora?

Ele não se importaria nem um pouco.

Tommy enfiou a cabeça no interior, olhando fixamente para a fonte daquela agitação.

Uma pequena pomba branca mancava andando pelo assoalho de mosaico, a asa esquerda se arrastando no piso de cerâmica, escrevendo alguma mensagem misteriosa com a ponta das penas.

Coitadinha...

Ele tinha que tirá-la dali. Ela morreria de desidratação ou seria comida por alguma coisa. A guia provavelmente conheceria um lugar de abrigo para pássaros para onde eles poderiam levá-la. Sua mãe havia trabalhado como voluntária em um lugar assim, onde eles moravam na Califórnia, antes de seu câncer atrapalhar a vida de todos.

Ele se esgueirou pela abertura no portão. Lá dentro, o recinto era menor que o galpão de ferramentas de seu pai, com quatro paredes lisas de pedra e um piso coberto por um mosaico desbotado feito de azulejos enlouquecedoramente pequeninos. O mosaico mostrava oito corações vermelhos empoeirados dispostos em um círculo como uma flor, uma fileira de azulejos azul-escuros e brancos que pareciam ondas, uma margem de terracota, e triângulos que lhe pareciam dentes. Ele tentou imaginar os artesões de tempos idos montando o mosaico como se fosse um quebra-cabeça, mas a ideia o deixou cansado.

Atravessou o limiar envolto em sombra, agradecido por sair do sol inclemente. Quantas pessoas teriam morrido ali dentro? Sentiu um frio na espinha enquanto imaginava a cena. Imaginou pessoas ajoelhadas – tinha certeza de que estariam ajoelhadas. Um homem vestido com uma túnica suja de linho estava de pé acima delas com a espada erguida bem alta. Ele começaria pelo mais jovem e, quando afinal tivesse acabado, mal teria força para levantar os braços, mas levantaria. Finalmente, ele também cairia de joelhos e esperaria por uma morte rápida pela lâmina de seu amigo. E então tinha acabado. O sangue deles correu sobre os azulejos pequeninos, manchou a argamassa e empoçou no assoalho.

Tommy sacudiu a cabeça para clarear a visão e olhou ao redor.

Nenhum esqueleto.

Eles provavelmente tinham sido levados para um museu ou talvez tivessem sido enterrados em algum lugar.

O pássaro levantou a cabeça, interrompendo sua jornada pelos azulejos para olhar fixamente para Tommy, primeiro com um olho, depois com o outro, avaliando-o. Os olhos da pombinha eram de um tom forte e vivo de verde, como malaquita. Ele nunca antes tinha visto um pássaro de olhos verdes.

Ele se ajoelhou e sussurrou quase murmurando:

– Venha aqui, pequenina. Não há nada de que precise ter medo.

Ela o olhou com um olho e o outro de novo – então deu um salto na direção dele.

Encorajado, ele estendeu a mão e delicadamente levantou o bichinho ferido. Enquanto se levantava com o corpo cálido entre as palmas das mãos, o chão se moveu sob seus pés. Ele lutou para manter o equilíbrio. Será que estava tonto por causa da longa subida? Entre os dedões dos pés, uma minúscula linha negra riscou rapidamente o mosaico, como uma coisa viva.

Serpente foi seu primeiro pensamento.

O medo acelerou seu coração.

Mas a linha preta se alargou, revelando algo pior. Não era uma serpente, mas uma fenda. Um dedo de fumaça cor de laranja escura subiu em anéis de uma das pontas da fenda, não maior do que se alguém tivesse deixado cair ali um cigarro aceso.

O pássaro subitamente saltou das palmas de suas mãos, abriu as asas e atravessou a fumaça enquanto saía voando pela porta. Aparentemente não estava tão machucado. A fumaça veio pairando na direção de Tommy, impelida pelas asas batendo. Tinha um cheiro surpreendentemente doce com um toque de especiarias misteriosas, quase como incenso.

Tommy franziu a testa e se inclinou para frente. Estendeu a palma da mão sobre a fumaça. Ela se elevou entre as pontas de seus dedos, fria, em vez de quente, como se viesse de algum lugar fresco nas profundezas da terra.

Ele se inclinou para observá-la mais de perto, quando o mosaico sob suas botas se despedaçou como vidro. Tommy deu um salto para trás. Azulejos caíram dentro da fenda. Azuis, castanho-claros e vermelhos. À medida que se alargou, a fenda devorou o desenho.

Ele foi andando de costas em direção à porta. Gotas de fumaça, agora de um tom laranja avermelhado, subiram fervilhando pelo mosaico despedaçado.

Um gemido rangente se elevou do âmago da montanha, e o recinto inteiro tremeu.

Terremoto.

Ele saltou para fora da porta da casa de banhos e aterrissou pesadamente de costas. Na sua frente, o prédio inteiro deu uma derradeira estremecida violenta, como se golpeado por um deus furioso – então desmoronou no abismo que se abria abaixo dele.

As margens ruíram se abrindo mais largamente, apenas a centímetros de distância. Ele se arrastou rapidamente para trás. O abismo o perseguiu. Ele conseguiu se pôr de pé para correr, mas o cume da montanha sacudiu e o derrubou de novo no chão.

Tommy se afastou, arrastando-se de quatro pelo chão. Pedras esfolaram as palmas de suas mãos. Ao redor dele, prédios e colunas se espatifavam no chão.

Deus, por favor, me ajude!

Poeira e fumaça esconderam tudo que estava a mais de alguns metros de distância. Enquanto engatinhava, Tommy viu um homem desaparecer sob uma seção de parede desmoronando. Duas mulheres gritando despencaram quando o chão sob seus pés se fendeu.

– TOMMY!

Ele engatinhou em direção à voz da mãe, finalmente vencendo a parede de fumaça.

– Aqui! – Ele tossiu.

O pai dele avançou rapidamente e com um puxão o pôs de pé. A mãe agarrou-lhe o cotovelo. Eles o arrastaram na direção do Caminho da Serpente, para longe da destruição.

Ele olhou para trás. A fissura se abria ainda mais larga, fendendo o cume em dois. Pedaços da montanha se desprendiam e despencavam estrondosamente para o deserto. Uma fumaça escura subia em rolos para o céu dolorosamente azul, como se para levar seus horrores para o sol ardente.

Juntos, ele e os pais cambalearam até a borda do penhasco.

Mas com a mesma rapidez com que havia começado, o terremoto cessou.

Os pais dele se imobilizaram, como se temerosos de que qualquer movimento pudesse fazer recomeçar os tremores. O pai passou os braços ao redor deles dois. Através do cume, gritos cortavam o ar.

– Tommy? – A voz de sua mãe estava trêmula. – Você está sangrando.

– Esfolei as mãos. Não é nada grave.

O pai dele os soltou. Ele tinha perdido o chapéu e cortado a maçã do rosto. Sua voz normalmente grave soou estridente:

– Acha que foram terroristas?

– Não ouvi nenhuma bomba – disse a mãe, acariciando o cabelo de Tommy como se ele fosse um garotinho.

Ele não se importou.

A nuvem de fumaça vermelha enegrecida veio na direção deles como se para tirá-los da encosta.

O pai aproveitou a sugestão e apontou para a trilha íngreme.

– Vamos embora. Aquele negócio pode ser tóxico.

– Eu inalei aquilo – tranquilizou-o Tommy. – Não é.

Uma mulher saiu correndo da fumaça, segurando a garganta. Ela corria cega, os olhos empolados e sangrando. Apenas alguns passos, então, ela tombou para frente e não se mexeu mais.

– Vamos! – berrou o pai, e empurrou Tommy a sua frente. – Agora!

Juntos, eles correram, mas não conseguiram ser mais rápidos que a fumaça.

Ela os alcançou. A mãe dele tossiu – um som molhado, dilacerante e anormal. Tommy estendeu a mão para ela, sem saber o que fazer.

Os pais dele pararam de correr, caindo de joelhos.

Tinha se acabado.

– Tommy... – arquejou o pai. – Vá...

Desobediente, ele se ajoelhou ao lado deles.

De qualquer maneira, se for para morrer, que seja nos meus termos.

Com a minha família.

Uma sensação de desígnio o acalmou.

– Está tudo bem, pai. – Ele apertou a mão da mãe, depois a do pai. Lágrimas banharam-lhe o rosto quando achava que não tinha mais lágrimas. – Amo tanto vocês, tanto.

Os pais o olharam – bem nos olhos. A despeito do caráter terrível daquele momento, Tommy se sentiu muito protegido naquela hora.

Abraçou a ambos bem apertado e continuou a segurá-los quando seus corpos ficaram frouxos em seu abraço, se recusando a permitir que a gravidade os levasse como a morte havia feito. Quando sua força se esgotou, se ajoelhou ao lado dos corpos e esperou por seu próprio último suspiro.

Mas, à medida que os minutos se passaram, aquele último suspiro se recusou a vir.

Ele esfregou um braço contra o rosto manchado pelas lágrimas e se levantou cambaleante, se recusando a olhar para os corpos abatidos dos pais, seus olhos empolados, o sangue em seus rostos. Se ele não olhasse, talvez eles não estivessem realmente mortos. Talvez aquilo fosse um sonho.

Em um círculo lento, Tommy virou de frente para o lado oposto de onde eles estavam. A fumaça tóxica havia se dissipado. Corpos cobriam o chão. Até onde podia ver, tudo estava morto e inerte.

Não era um sonho.

Por que eu sou o único ainda vivo? Eu deveria morrer. Não mamãe e papai.

Ele olhou de novo para seus corpos no chão. Sua dor era imensamente mais profunda que o pranto. Mais profunda que todos os momentos em que havia chorado a sua própria morte.

Aquilo estava errado. Quem tinha um problema e que estava doente ali era ele. Havia muito tempo que ele sabia que sua morte estava a caminho. Mas seus pais deveriam seguir em frente, guardando lembranças dele, congeladas aos 14 anos em um milhão de fotos. A dor deveria ser deles.

Ele caiu de joelhos com um soluço, levantando as mãos em direção ao sol, as palmas erguidas, ao mesmo tempo rogando e amaldiçoando Deus.

Mas Deus ainda não havia acabado.

Enquanto seus braços se estendiam para o céu, uma manga escorregou, descobrindo-lhe o pulso, claro e limpo. Ele baixou os braços, olhando fixamente para a pele, com descrença.

O melanoma havia desaparecido.


3

26 de outubro, 14:15, horário de Israel

Cesareia, Israel

Ajoelhada na trincheira, Erin examinou o estrago causado pelo terremoto e suspirou com frustração. De acordo com os primeiros relatos, o epicentro tinha sido a quilômetros de distância, mas os abalos haviam atingido toda a linha da costa de Israel, inclusive ali.

Areia jorrava através das ripas de madeira partidas que continham os lados da escavação, lentamente reenterrando sua descoberta, como se nunca devesse ter sido desenterrada.

Mas aquilo não era o pior dos estragos do terremoto. Areia podia ser reescavada, mas uma prancha de madeira quebrada repousava sobre o crânio da criança, aquela que ela estivera tentando libertar gentilmente das mãos da terra. Ela não se permitiu especular sobre o que haveria debaixo daquele pedaço de madeira.

Por favor, Deus, permita apenas que esteja intacto...

Seus três alunos estavam inquietos nas proximidades da trincheira, mantendo-se na beira.

Prendendo a respiração, Erin liberou a prancha destroçada e a soltou, passando-a cegamente para Nate. Então levantou a lona com que tinha coberto o minúsculo esqueleto antes.

Fragmentos despedaçados marcavam o lugar onde o crânio, outrora intacto, tinha estado. O corpo havia permanecido intocado por dois mil anos – até que ela o expusera à destruição.

A garganta de Erin se cerrou.

Ela se sentou na trincheira e passou as pontas dos dedos bem de leve sobre os fragmentos de ossos, contando. O número era excessivo. Ela baixou a cabeça. As pistas para a causa da morte do bebê tinham sido perdidas durante o seu turno de trabalho. Ela deveria ter acabado a escavação antes de seguir Nate até a tenda para examinar as novas leituras do radar de penetração no solo.

– Dra. Granger? – chamou Heinrich da beira da trincheira.

Ela se reclinou para trás rapidamente, de modo que ele não pensasse que estava rezando. O estudante de arqueologia alemão já era envolvido demais com religião. Ela não queria que ele pensasse que ela também era.

– Vamos tirar um molde de gesso do resto disso, Heinrich.

Precisava proteger o resto do esqueleto dos abalos secundários.

Restava muito pouco e era tarde demais para o pequenino crânio.

– Agora mesmo. – Heinrich enfiou os dedos no cabelo louro desalinhado antes de seguir para a tenda do equipamento, que passara incólume pelo terremoto. A única vítima moderna era a Coca Diet de Amy.

A namorada de Heinrich, Julia, pesadona como um navio, seguiu atrás dele. Ela não deveria absolutamente estar na escavação, mas, como estava apenas de passagem pelo fim de semana, Erin consentira.

– Vou checar o equipamento. – A voz ansiosa de Amy recordou Erin de como todos eles ainda eram jovens. Mesmo quando era da idade deles, ela não tinha sido tão jovem. Tinha?

Erin gesticulou para o hipódromo. Estivera em ruínas muito antes da chegada deles.

– O sítio já passou por coisas piores. – Ela injetou uma animação falsa na voz. – Vamos trabalhar para botar as coisas em ordem.

– Nós podemos reconstruir. Temos tecnologia para isso. Deixar melhor do que estava. – Nate cantarolou a música tema de O homem de seis milhões de dólares.

Amy lançou um sorriso coquete para ele antes de seguir para a tenda.

– Você pode me conseguir uma prancha de madeira nova? – pediu a Nate.

– É claro, doutora.

Enquanto ele saía, a canção dele pairou na mente dela. E se eles pudessem realmente reconstruir? Não apenas a escavação, mas o sítio inteiro?

O olhar dela percorreu as ruínas, imaginando como aquele lugar deveria ter sido antes. No olho da mente, ela encheu a metade que há muito havia desmoronado. Imaginou o público aplaudindo, o ruído dos carros de combate, o bater de cascos. Mas então se lembrou do que viera antes de o hipódromo ser construído: o Massacre dos Inocentes. Ela imaginou o pânico puro quando os soldados arrancaram os bebês de suas mães impotentes. Mães obrigadas a ver espadas calarem o choro de seus bebês.

Tantas vidas perdidas.

Se ela estava certa a respeito de sua descoberta, havia começado a suspeitar do motivo pelo qual Herodes havia construído aquele hipódromo exatamente naquele lugar. Teria ele encontrado uma satisfação mórbida em saber que o bater dos cascos e o derramamento de sangue profanavam ainda mais o túmulo daqueles que havia massacrado?

O som estridente de relinchos a despertou subitamente de seus pensamentos. Ela se levantou e olhou na direção dos estábulos, onde um cavalariço andava com um garanhão branco assustado. Erin conhecia cavalos. Tinha passado muitas horas felizes de infância no estábulo do complexo e sabia em primeira mão como eles detestavam terremotos. Os grandes animais sensíveis ficavam inquietos antes que um terremoto ocorresse e aflitos depois, e ela esperava que aqueles cavalos estivessem sendo bem cuidados.

Heinrich e Nate voltaram. Nate tinha uma prancha de madeira intacta, enquanto Heinrich trazia uma caixa de gesso, um jarro de água e um balde. Mestrando de arte, ele tinha mãos cuidadosas, exatamente o que ela precisava para botar os pedaços quebrados no lugar.

Nate entregou-lhe a prancha. A madeira trouxe consigo o perfume de floresta de pinheiro, fora de lugar ali, naquele deserto. Tomando cuidado para evitar os fragmentos do esqueleto, ele veio para o lado dela. Juntos, ela e Nate enfiaram a prancha de madeira nas braçadeiras e para trás contra a borda da trincheira. Ela esperava que não fosse falhar como a última.

Enquanto Nate saía para ir checar seu equipamento, ela e Heinrich escavaram areia. A prancha tinha danificado o crânio e o braço esquerdo. Ela se lembrou da minúscula fontanela, do ângulo do pescoço. Tinha havido pistas ali, tinha certeza. Agora perdidas para sempre.

Pretendendo preservar o que restava, ela levantou a câmera e focou primeiro o crânio despedaçado. Tirou várias fotos de diversos ângulos. Em seguida, fotografou o braço quebrado, a fratura no meio do rádio. Enquanto fotografava, seu antebraço deu uma pontada de solidariedade. Desde que tinha 4 anos, seu braço doía de vez em quando.

Largando a câmera, ainda olhando fixamente para aquele membro fraturado, ela passou os dedos de leve sobre o braço esquerdo e mergulhou em um passado doloroso.

Sua mãe a empurrara na direção de seu pai, incentivando-a a mostrar o desenho do anjo que ela havia feito. Orgulhosamente, com a esperança de ouvir elogios, ela o estendera para a mão calejada do pai. Ele era tão alto que mal alcançava seu joelho. Ele pegou o desenho, mas apenas o olhou rapidamente.

Ele a pegou e a pôs sentada em seu colo. Ela começou a tremer. Com apenas 4 anos, ela já sabia que o colo do pai era o lugar mais perigoso do mundo.

– Que mão você usou para desenhar o anjo? – A voz trovejante jorrou sobre seus ouvidos como uma enchente sobre a terra.

Não sabendo mentir, ela levantou a esquerda.

– O embuste e a danação nascem da esquerda – disse ele. – Você não pode mais usá-la para escrever ou para desenhar. Nunca mais. Compreendeu?

Aterrorizada, ela assentiu.

– Não permitirei que o mal faça sua obra por meio de filha minha. – Ele olhou para ela de novo, como se esperando por alguma coisa.

Ela não sabia o que ele queria.

– Sim, senhor.

Então ele havia levantado o joelho e quebrado o braço dela contra ele como se fosse um pedaço de madeira.

Erin apertou o ponto da fratura, ainda sentindo a dor. Ela apertou com força suficiente para saber que o osso havia consolidado fora do lugar. Seu pai não lhe permitira ir ao médico. Se orações não pudessem curar um ferimento, ou salvar um bebê, então não era a vontade de Deus, e eles sempre tinham que se submeter à vontade de Deus.

Quando ela fugiu da tirania do pai, passou um ano ensinando a si mesma a escrever com a mão esquerda, em vez de com a direita, a raiva e a determinação inscritas em cada traço de caneta. Não permitiria a seu pai moldar a pessoa que ela se tornaria. E até o momento o mal não parecia tê-la invadido, embora seu braço doesse quando chovia.

– Então a Bíblia estava correta. – Heinrich a tirou de seu devaneio. Ele levantou um punhado de areia das pernas do bebê e o depositou no chão fora da trincheira. – O massacre aconteceu. E aconteceu aqui.

– Não. – Ela examinou os fragmentos de osso espalhados, tentando decidir por onde começar. – Você está exagerando. Temos provas em potencial de que um massacre tenha ocorrido aqui, mas eu duvido de que tenha alguma coisa a ver com o nascimento de Cristo. Fato histórico e histórias religiosas com frequência ficam emaranhados. Lembre-se, para propósitos arqueológicos, temos sempre que tratar a Bíblia como uma... – Ela lutou para encontrar uma palavra inofensiva, e afinal desistiu. – Uma interpretação espiritual dos acontecimentos escrita por alguém dedicado a torcer os fatos de modo a se adequarem à sua ideologia. Alguém com um programa de ação religioso.

– Em vez de um programa acadêmico? – O sotaque alemão de Heinrich se tornou mais forte, um sinal de que ele estava incomodado.

– Em vez de um programa objetivo. Nossa meta suprema – como cientistas – é encontrar provas tangíveis de eventos passados, em vez de confiarmos em velhas histórias. Questionar tudo.

Heinrich cuidadosamente varreu com um pincel a areia do pequeno fêmur.

– Então a senhora não acredita em Deus? Nem em Cristo?

Ela perscrutou a superfície áspera do osso. Nenhum dano recente.

– Acredito que Cristo foi um homem. Que ele inspirou milhões. Se eu acredito que ele transformou água em vinho? Eu precisaria de provas.

Ela recordou sua primeira comunhão, quando acreditava em milagres, acreditava que realmente tinha bebido o sangue de Cristo. Parecia ter sido há séculos.

– Mas a senhora está aqui. – Heinrich varreu o sítio inteiro com o braço muito branco. – Investigando uma fábula da Bíblia,

– Estou investigando um evento histórico – corrigiu ela. – E estou aqui em Cesareia, não em Belém, como diz a Bíblia, porque encontrei indicações que me trouxeram a este lugar. Estou aqui por causa de fatos. Não fé.

Àquela altura, Heinrich havia limpado toda a parte de baixo do esqueleto. Ambos trabalhavam mais depressa do que normalmente fariam, temerosos de que um abalo secundário pudesse ocorrer a qualquer momento.

– Uma história escrita em um pote do primeiro século nos trouxe aqui – disse ela. – Não a Bíblia.

Depois de meses pesquisando em meio a cacos de barro no Museu Rockfeller de Jerusalém, ela havia descoberto um jarro mal identificado que aludia a um túmulo em massa de crianças em Cesareia. Tinha sido o suficiente para receber a doação de fundos que trouxera todos eles até ali.

– Então a senhora está tentando... desacreditar a Bíblia? – Ele parecia decepcionado.

– Estou tentando descobrir o que aconteceu aqui. Que provavelmente não tinha nada a ver com o que a Bíblia dizia.

– Então a senhora não acredita que a Bíblia seja sagrada. – Heinrich parou de trabalhar e a encarou fixamente.

– Se existe divindade, não está na Bíblia. Está em cada homem, mulher e criança. Não numa igreja, nem saindo da boca de um padre.

– Mas...

– Preciso ir buscar pincéis. – Ela saiu de dentro da trincheira, lutando contra a raiva, não querendo que seu aluno a visse.

Quando estava a meio caminho da tenda do equipamento, o som de um helicóptero a fez virar a cabeça. Ela sombreou os olhos, vasculhou o céu.

O helicóptero entrou veloz e voando baixo. Uma aeronave maciça. De cor cáqui, com a designação S-92 em estêncil na cauda. O que estava fazendo ali? Ela olhou com raiva para o aparelho. Os rotores soprariam a areia de volta sobre o esqueleto.

Ela se virou para dizer a Heinrich para cobrir os ossos.

Antes que ela pudesse falar, um garanhão árabe solitário, sem cavaleiro, e branco, saiu em disparada dos estábulos. O animal não veria a trincheira. Ela correu na direção de Heinrich, sabendo que chegaria tarde demais para impedir que o cavalo o alcançasse.

Heinrich deve ter ouvido o som dos cascos. Ele se levantou justamente no instante em que o cavalo chegou à trincheira, assustando ainda mais o animal em fuga. O cavalo empinou e acertou a testa dele com um casco. Heinrich desapareceu dentro da trincheira.

Atrás dela, o helicóptero se preparou para pousar.

O cavalo se afastou do barulho, em direção à trincheira.

Erin andou em círculo ao redor do cavalo.

– Calma, garoto. – Ela manteve a voz baixa e relaxada. – Ninguém vai machucar você aqui.

Um grande olho castanho girou para encará-la. O peito do cavalo arfou, seus flancos trêmulos cobertos de suor, a espuma manchando-lhe os lábios. Ela tentou acalmá-lo e impedi-lo de cair dentro da trincheira, onde Heinrich jazia imóvel.

Ela se posicionou entre o cavalo e a trincheira, tão devagar quanto pôde. Quando levantou a mão para o pescoço curvo do animal, o cavalo estremeceu, mas não fugiu. O cheiro conhecido de cavalo a rodeou. Ela respirou fundo e exalou. O animal fez o mesmo.

Esperando que o cavalo a seguisse, ela deu um passo para o lado, se afastando de Heinrich. Tinha que conseguir levá-lo para algum lugar mais seguro, caso ele se assustasse de novo.

O cavalo deu um passo sobre pernas trêmulas.

Nate veio correndo, seguido por Amy e Julia.

Erin levantou a mão para detê-los.

– Nate – disse ela em voz calma e monótona. – Mantenha todo mundo afastado até que eu consiga levar o cavalo para longe de Heinrich.

Nate parou derrapando. As outras fizeram o mesmo.

Ela enfiou os dedos na crina cinzenta e o conduziu por alguns passos para longe da trincheira. Então balançou a cabeça para Nate.

Um grito chamou sua atenção e, olhando por cima do ombro, ela viu um homenzinho de veste branca correndo pela areia. O homem, claramente o tratador do cavalo, veio correndo.

Ele atirou uma guia sobre a cabeça do animal, falando e gesticulando para onde o helicóptero havia pousado. Erin compreendeu. O animal não gostava de helicópteros. Ela também não. Ela bateu de leve nos bigodes do cavalo para se despedir. O tratador o levou embora.

Amy e Julia já tinham descido para junto de Heinrich. Julia tinha uma das mãos na testa dele. O sangue cobria o lado de seu rosto. Julia falou baixinho com Heinrich em alemão. Ele não respondeu. Erin prendeu a respiração. Pelo menos ele estava respirando.

Erin se juntou a eles. Ajoelhando-se, ela delicadamente afastou a mão de Julia e apalpou a cabeça dele. Havia muito sangue, mas o crânio parecia intacto. Ela tirou o lenço do pescoço e o pressionou contra o ferimento. Não estava esterilizado, mas era o que tinha. O sangue quente molhou sua mão.

Heinrich abriu os olhos cinzentos, gemendo.

– É preciso um sacrifício. De crânios esmagados. Este sítio.

Ela lhe deu um sorriso forçado. Dois crânios esmagados no turno dela.

– Como você se sente? – perguntou.

Ele balbuciou alguma coisa em alemão através dos lábios pálidos. Seus olhos perderam o foco, virando-se para trás. Precisava levá-lo para um médico.

– Dra. Granger? – Uma voz com sotaque israelense falou de trás dela. – Por favor, levante-se imediatamente.

Ela pôs a mão trêmula de Julia sobre o curativo improvisado e se levantou, de mãos para o alto. Em sua experiência, as pessoas usavam aquele tom de voz somente quando estavam armadas. Ela se virou bem devagar. O sangue de Heinrich já secando em suas mãos.

Soldados. Uma porção de soldados.

Eles estavam postados em semicírculo na frente da trincheira, vestindo uniformes de camuflagem de deserto, com pistolas nos cintos e armas automáticas em punho apoiadas no ombro. Eram oito no total, todos em posição de sentido. Usavam boinas cinza, exceto pelo homem na frente. A dele era verde-oliva; obviamente era o líder. As armas não estavam apontadas para ela.

Ainda.

Ela baixou as mãos.

– Dra. Erin Granger. – Era uma afirmação, não uma pergunta. Ele não parecia jamais ter feito uma pergunta.

– Por que estão aqui? – Apesar do medo, ela manteve a voz calma. – Nossas licenças estão em ordem.

Ele a examinou com olhos que pareciam duas pedras marrons reluzentes.

– A senhora tem que vir conosco, dra. Granger.

Primeiro, ela precisava cuidar de Heinrich.

– Estou ocupada. Meu aluno está ferido e...

– Sou o tenente Perlman, da Aman. Recebi ordens para vir buscar a senhora.

Como se para sublinhar aquela afirmação, os soldados levantaram as armas um centímetro.

Aman era a o serviço de inteligência militar israelense. Isso não podia ser coisa boa. A raiva se elevou em seu peito. Eles tinham vindo buscá-la, e o helicóptero deles tinha assustado o cavalo que tinha ferido Heinrich. Erin manteve a voz firme, mas ainda assim soou fria:

– Vieram me buscar para me levar onde?

– Não estou autorizado a dizer.

O tenente não parecia que iria recuar tão cedo, mas ela podia usá-lo.

– Seu helicóptero assustou um cavalo, e ele feriu meu aluno. – Ela cerrou as mãos em punhos ao lado do corpo. – Gravemente.

Ele olhou para Heinrich, então inclinou a cabeça para um dos soldados. O homem tirou um kit de primeiros socorros de uma mochila e desceu para a trincheira. Um paramédico. Aquilo já era alguma coisa. Ela abriu as mãos e esfregou as palmas ensanguentadas na calça.

– Quero que ele seja transportado para um hospital – disse ela. – Então, talvez, possamos conversar sobre outras coisas.

O tenente olhou para o paramédico. O homem balançou a cabeça, parecendo preocupado.

Não podia ser bom.

– Muito bem – declarou Pearlman.

Ele gesticulou e seus homens responderam rapidamente. Dois soldados ajudaram a tirar Heinrich da trincheira; outros dois trouxeram uma maca. Uma vez posto na maca, ele foi carregado para o helicóptero. Julia os seguiu, se mantendo ao lado dele.

Erin respirou fundo. Uma carona rápida de helicóptero para o hospital era a melhor chance que Heinrich teria.

Ela aceitou a mão oferecida pelo tenente Pearlman, reparando na força dele quando a puxou para fora da trincheira.

Sem uma palavra, ele se virou e seguiu de volta para o helicóptero. Os soldados restantes se posicionaram atrás dela, indicando que ela deveria segui-lo. Ela seguiu atrás de Pearlman pisando duro. Estava sendo sequestrada de seu sítio sob a ameaça de armas.

Ela não tinha como vencer aquela disputa, mas obteria as informações que pudesse deles.

– Isso tem alguma coisa a ver com o terremoto? – perguntou a Pearlman.

O tenente lançou um olhar para trás, não respondeu, mas ela leu a expressão de seu rosto. Sua mente preencheu as lacunas. Terremotos quebravam coisas. Mas também as desenterravam.

Tudo isso levantava outra pergunta.

Havia muitos outros arqueólogos em Israel. Que motivo teriam eles para tirá-la de sua escavação? Nenhum tesouro antiquíssimo justificava aquele tipo de urgência. Arqueólogos não eram transportados de um lado para outro em helicópteros militares.

Alguma coisa estava muito errada.

– Por que eu? – questionou ela.

Pearlman finalmente respondeu:

– A única coisa que posso dizer é que é uma situação delicada e que a sua expertise foi solicitada.

– Por quem?

– Eu não poderia dizer.

– E se eu recusar?

O olhar de Pearlman se cravou nela.

– A senhora é uma convidada de nosso país. Caso se recuse a vir conosco, não será mais uma convidada. E seu amigo não será levado para o hospital em nosso helicóptero.

– Creio que a embaixada não concordaria com esse tratamento – blefou Erin.

Os lábios dele se torceram num sorriso não muito convincente.

– Foi um membro da delegação dos Estados Unidos que recomendou o seu nome.

Ela lutou para esconder sua surpresa. Até onde sabia, ninguém na embaixada se importava muito com ela. Ou Pearlman estava mentindo ou sabia mais do que ela. De todo modo, o momento para conversa tinha passado. Ela precisava conseguir levar Heinrich para um hospital.

Desse modo, continuou a andar para o helicóptero. Os soldados entraram em formação ao redor dela como se ela pudesse sair em disparada como o cavalo.

Nate e Amy vinham apressados logo atrás. Nate parecia beligerante, Amy, preocupada.

Erin se virou e andou para trás, gritando instruções:

– Nate, você ficará no comando até a minha volta. Você já sabe o que precisa ser feito.

Nate falou por cima do ombro de um soldado:

– Mas, professora...

– Estabilize o esqueleto. E deixe que Amy examine o fêmur esquerdo antes de revesti-lo.

Nate apontou na direção do helicóptero.

– A senhora tem certeza de que é seguro ir com eles?

Ela sacudiu a cabeça.

– Entre em contato com a embaixada no segundo em que eu partir. Confirme que eles me recomendaram. Se não tiverem recomendado, chame a cavalaria.

Os soldados não hesitaram nem um passo, os rostos impassíveis olhando fixo para a frente. Ou eles não falavam inglês ou não estavam preocupados com a ameaça dela. Algo que podia ser bom ou muito ruim.

– Não vá – disse Nate.

– Não creio que eu tenha escolha – disse ela. – E Heinrich também não.

Ela o viu engolir a verdade e então assentir.

O tenente Pearlman fez sinal para ela da porta aberta da cabine.

– Aqui, dra. Granger.

As hélices girando do helicóptero começaram a rugir mais alto à medida que ela se agachou debaixo delas.

Erin embarcou no helicóptero, sentou-se e afivelou o cinto no último assento vazio. Heinrich estava deitado numa maca do outro lado do aparelho, com Julia em um assento ao seu lado. Julia lançou-lhe um sorriso trêmulo, e Erin levantou os polegares para ela. Será que se fazia isso na Alemanha?

À medida que o helicóptero decolava, Erin se virou para o soldado ao seu lado e então recuou com surpresa. Ele não era um soldado. Era um padre. Estava de calça preta, coberta por uma batina com capuz que lhe chegava aos calcanhares, usava luvas pretas de couro, óculos escuros e o colarinho branco conhecido do clero da Igreja Católica romana.

Ela recuou no assento. O padre também se afastou dela, levantando a mão para ajustar o capuz.

Ela já tivera brigas demais com padres católicos ao longo dos anos por causa de seu trabalho arqueológico. Mas pelo menos a presença dele dava alguma credibilidade à sua esperança de que realmente fosse para um sítio arqueológico que ela estivesse sendo levada, alguma coisa religiosa, alguma coisa cristã. O lado negativo disso era que este padre provavelmente tomaria posse dos artefatos antes que ela pudesse vê-los. Se fosse assim, ela teria sido retirada de seu sítio arqueológico e o sangue, derramado por nada.

Isto não vai acontecer.

14:57

A mulher sentada ao lado dele cheirava a lavanda, cavalo e sangue. Aromas tão fora de lugar naquela era moderna quanto o próprio padre Rhun Korza.

Ela estendeu a mão para ele. Intencionalmente, ele não tocava numa mulher havia muito, muito tempo. Apesar do sangue seco que lhe manchava a palma, ele não tinha opção senão apertar a mão estendida, sentindo-se grato por estar de luvas. Ele se preparou e apertou a mão. A mão quente da mulher pareceu-lhe forte e capaz, mas tremeu na dele. Então isso queria dizer que ele a assustava.

Bom.

Ele largou a mão dela e se virou para o outro lado, buscando botar espaço entre eles. Não tinha nenhum desejo de tocar nela de novo. Na verdade, ele desejava que ela desembarcasse da aeronave e voltasse para seu estudo seguro do deserto.

Pelo bem dela tanto quanto pelo dele.

Antes de receber a convocação, ele estivera mergulhado numa profunda meditação, em reclusão, pronto para abandonar o mundo em geral pela beleza e o isolamento do claustro, como era seu direito. Mas o cardeal Bernard não lhe havia permitido ficar lá. Ele havia tirado Rhun de sua cela de meditação e o enviara para aquela jornada pelo mundo para buscar um arqueólogo e procurar um artefato. Rhun havia esperado que o arqueólogo fosse um homem, mas Bernard escolhera uma mulher, e uma mulher bonita.

Rhun suspeitava do que aquilo significaria.

Ele apertou a cruz de prata no pescoço. O metal se aqueceu através de sua luva.

Acima de sua cabeça, as lâminas do rotor latejavam como um enorme coração mecânico, batendo rápido o suficiente para explodir.

O olhar dele pousou na segunda mulher. Era alemã, viu pelas palavras sussurradas para o homem na maca. O sangue manchava seu vestido branco de algodão. Ela apertava a mão do homem ferido, sem nunca tirar os olhos do rosto dele. O cheiro metálico do sangue dele enchia a cabine do helicóptero em voo.

Rhun fechou os olhos, tomou nos dedos o rosário em seu cinto e começou silenciosamente a dizer um Padre Nosso. As vibrações do aparelho perturbaram sua prece.

Ele preferiria muitíssimo estar viajando numa mula com um coração que batesse naturalmente.

Mas o som das hélices escondia outros sons muito mais perigosos – o gotejar pesado de sangue da cabeça do homem para o chão, a respiração rápida da mulher ao seu lado e o relinchar distante de um cavalo assustado.

À medida que o aparelho se inclinava lateralmente, o fedor de combustível de jato dominou a cabine. O cheiro forte fez arder suas narinas, mas ele o preferia ao cheiro de sangue. Aquilo lhe dava força para se permitir olhar para o homem ferido, para o sangue correndo em fios pelo piso de metal, então caindo em direção à paisagem de pedra abaixo.

Naquela época do ano, o fim do outono, o sol se punha cedo, em menos de duas horas. Era difícil para ele se dar ao luxo de um atraso para ajudar um homem ferido. Havia muita responsabilidade sobre seus ombros.

Pelo canto dos olhos, estudou a mulher ao seu lado. Ela usava jeans puído e uma camisa branca coberta de poeira. Seus olhos castanhos, inteligentes, percorreram a cabine uma vez, parecendo avaliar cada homem. Aqueles olhos passaram rapidamente por ele como se não estivesse lá. Será que ela o temia como homem, como padre, ou como alguma outra coisa?

Ele apertou as mãos enluvadas sobre os joelhos e meditou. Tinha que excluir os pensamentos a respeito dela de sua mente. Precisaria de toda sua força sagrada para a tarefa que tinha pela frente. Talvez, depois que estivesse concluída, pudesse voltar para o santuário, o claustro, e descansar sem ser perturbado.

Subitamente a mulher esbarrou nele com o cotovelo. Ele se retesou, mas não se sobressaltou. Sua meditação o havia acalmado. Ela se inclinou para frente para ver como estava seu colega, as sobrancelhas finas franzidas de preocupação. O homem não se recuperaria, mas Rhun não podia dizer isso a ela. Ela nunca acreditaria nele. O que um simples padre saberia a respeito de ferimentos e sangue?

Muito mais do que ela jamais poderia imaginar.

15:03

O telefone celular de Erin vibrou em seu bolso. Ela o tirou e o manteve ao lado da perna para escondê-lo do tenente Pearlman. Duvidava que ele aceitasse que enviasse mensagens de texto do helicóptero.
Amy escreveu: “Oi, prof. Pode teclar?”
O tenente parecia estar olhando para o outro lado.
Erin digitou: “Diga.”
A resposta de Amy veio tão rápida que ela já deveria estar digitando enquanto Erin pensava.
“Dei uma olhada no fêmur daquele esqueleto.”

“E?”

“Tinha marcas de mordidas.”
Aquilo confirmava a avaliação anterior de Erin. Ela observara o que pareciam ser marcas de dentes no osso. Ela lutou para digitar enquanto o helicóptero sacudia.
“Não é incomum... Há muitos predadores do deserto por aí.”
Dessa vez Amy foi lenta, demorou mais, pois a resposta era longa para digitar:
“Mas as marcas de mordida batem com o que eu vi numa escavação. Na Nova Guiné. Mesma dentição. Mesmo padrão de mordida.”

O coração de Erin acelerou, pois conhecia o tópico da última escavação de Amy: os caçadores de cabeças da Nova Guiné. Isto só podia significar uma coisa...

Mas canibalismo? Aqui?

Se fosse verdade, a história por trás daquela vala comum de crianças poderia ser ainda pior do que a história do massacre de Herodes. Mas ainda assim parecia improvável. O esqueleto do recém-nascido tinha sido bastante grande sem sinais óbvios de desnutrição que pudessem indicar uma escassez de alimentos, que poderia ter justificado uma fome tão depravada.
“Provas?”, digitou ela em resposta.
“Quatro incisivos. Arco contínuo. Foram seres HUMANOS que roeram os ossos daquele bebê.”
Erin levantou o polegar, momentaneamente chocada demais para digitar – então o tenente Pearlman arrancou o telefone de sua mão, fazendo-a se sobressaltar. Ele o desligou.

– Não pode haver contato com o exterior! – berrou ele.

Ela engoliu sua raiva e cruzou os braços, se submetendo. Não interessava desagradá-lo ainda mais.

Por enquanto.

O tenente enfiou o telefone no bolso da camisa. Ela já sentia sua falta.

Erin ficou aliviada quando o helicóptero aterrissou no heliporto do centro médico Hillel Yaffe. Pearlman tinha cumprido sua palavra. Os funcionários, vestidos de branco, do hospital vieram correndo na direção deles. Ela ouvira falar que o hospital tinha uma boa equipe de traumatologia, e ficou grata ao ver uma recepção tão rápida. Estendeu a mão para desafivelar o cinto, mas Pearlman a cobriu com a dele.

– Não temos tempo – advertiu.

Os homens dele já tinham desembarcado e soltado a maca. Julia estava de pé ao lado dela no chão, ainda segurando os dedos de Heinrich. Levantou a mão livre para acenar para Erin. O peito de Heinrich subia e descia enquanto eles o levavam embora. Ainda estava respirando. Ela esperou que aquela condição se mantivesse da próxima vez em que o visse.

Assim que os soldados subiram de volta para bordo, o helicóptero decolou rápida e subitamente.

Ela desviou os olhos do hospital para olhar fixamente para a extensão de deserto além de Cesareia enquanto seus pensamentos passavam de sua ansiedade quanto ao estado de Heinrich para outra preocupação aflitiva.

Para onde eles estão me levando?


4

26 de outubro, 15:12, horário de Israel

Tel Aviv, Israel

Bathory Darabont estava parada bem equilibrada nas sombras, escondida num patamar de segundo andar acima do hotel. Olhou fixamente para a fonte de ladrilhos que dominava a área de recepção do hotel, com água esguichando de uma parede para dentro de uma bacia monstruosa, em semicírculo, de mármore verde. Calculava que a água tivesse entre noventa centímetros e um metro de profundidade. Acariciou a balaustrada muito adornada de metal dourado enquanto calculava a distância da queda de onde ela estava.

Sete metros e meio. Provavelmente dá para sobreviver. Sem dúvida interessante.

O homem ao lado dela continuou a tagarelar. Com suas massas de cabelo escuro cacheado, grandes olhos castanhos e nariz reto, ele parecia ter acabado de sair de um afresco retratando Alexandre, o Grande. É claro, ele sabia que era bonito e rico, um príncipe de alguma terra distante – e isso o deixara habituado a ter sempre o que queria.

Aquilo a entediava.

Ele se esforçou para convencê-la a tirar seu vestido de seda de grife e a entrar na cama dele, e ela não estava necessariamente avessa a isso, mas mais interessada em ação do que em preliminares.

Ela empurrou para trás o cabelo vermelho que lhe descia até a cintura com a mão branca e lânguida, observando os olhos dele se demorarem na palma de mão preta tatuada em seu pescoço, na altura da garganta. Uma marca incomum, e mais perigosa do que parecia.

– Que tal uma aposta, Farid?

Os olhos castanhos dele se fixaram de novo nos olhos prateados dela. Realmente ele tinha cílios escuros e longos extraordinários.

– Uma aposta?

– Vamos ver quem consegue saltar naquela fonte. – Ela apontou o dedo comprido para baixo do átrio. – O vencedor leva tudo.

– Qual é o prêmio? – Farid deu a ela um sorriso perfeito. Parecia gostar de apostas.

Ela também gostava, e estendeu o pulso esguio.

– Se você ganhar, eu lhe dou minha pulseira.

A pulseira de diamantes custava 50 mil dólares, mas não tinha nenhuma intenção de perdê-la. Ela nunca perdia.

Ele deu uma gargalhada.

– Não preciso de uma pulseira.

– E eu a darei a você no seu quarto de hotel.

Farid olhou por cima da balaustrada e ficou em silêncio. Ela gostava mais dele calado.

– Se eu ganhar... – Ela se aproximou tanto de Farid que o vestido de seda roçou contra a perna dele. – Eu ganho o seu relógio – e você o entrega para mim no meu quarto.

Um Rolex; ela desconfiava que custasse tanto quanto a pulseira. Ela também não precisava do relógio. Mas o salto interromperia o flerte e poderia levar a sexo mais inspirado e passional do que Farid provável e geralmente era capaz.

– Como eu posso perder? – perguntou ele.

Ela lhe deu um beijo longo e langoroso. Ele respondeu bem. Bathory enfiou seu telefone no bolso dele, seus dedos tocando num canivete que encontrou ali. Farid não era tão indefeso quanto parecia. Ela se lembrou das palavras de sua mãe:

Até mesmo um lírio branco lança uma sombra negra.

Quando ela recuou, Farid deslizou as duas mãos nas costas do vestido de seda.

– Que tal esquecermos o salto?

Ela deu uma gargalhada.

– De jeito nenhum.

Agarrando o corrimão frio com as duas mãos, ela saltou pela borda.

Bathory lançou o corpo e o abriu num mergulho de cabeça, os braços estendidos para fora e as costas arqueadas. O vestido adejou contra suas coxas. Por um momento pensou que tivesse calculado mal a profundidade e que a queda a mataria, e naquele momento sentiu mais alívio que medo. Ela bateu na água com o corpo na horizontal, distribuindo o peso.

A pancada violenta lhe tirou o fôlego.

Por um segundo, ela flutuou com o rosto e o corpo virados para baixo na água fresca azul, os seios e a barriga ardendo, seu sangue agitado finalmente aquietado. Então se virou tirando o corpete, agora transparente, da água, enquanto mergulhava a cabeça para trás para ajeitar o cabelo, rindo alegremente.

Quando se levantou, o lobby inteiro ficou de olhos cravados nela. Alguns dos espectadores aplaudiram, como se ela fizesse parte de um espetáculo.

Lá no alto, Farid olhava boquiaberto.

Ela saiu da fonte. A água escorria de seu corpo e se espalhou pelo tapete caro de lã. Ela fez uma reverência para Farid, que retribuiu o gesto com um ligeiro aceno de cabeça, seguido pelo abrir dramático da correia do Rolex, e o levantar de uma sobrancelha, concordando que ela havia vencido a aposta.

Minutos depois, eles estavam do lado de fora da porta do quarto dela. Ela tremia ligeiramente por causa das roupas molhadas e do ar-condicionado no corredor. A palma da mão nua de Farid, macia como seda, mas quente como carvão, subiu por suas costas sob o vestido fino, provocando um arrepio completamente diferente. Ela suspirou e olhou misteriosamente para ele, ansiando pelo calor da sua pele muito mais do que por qualquer companhia que ele pudesse oferecer.

Ela pegou o cartão da porta, com o Rolex que acabara de ganhar balançando no pulso.

Enquanto destrancava a porta e a abria, seu telefone tocou, mas o som vinha da calça de Farid. Ela se virou, enfiou a mão no bolso dele, e o tirou.

– Como isto foi parar aí? – perguntou ele, surpreso.

– Botei quando beijei você. – Ela sorriu. – Para que não molhasse. Eu sabia que você não saltaria.

Uma ruga de orgulho ferido surgiu na testa perfeita.

Parada na soleira da porta, ela checou o telefone. Era uma mensagem de texto, e uma mensagem importante pelo nome de quem a enviara. Ela gelou dos pés à cabeça, muito além de qualquer coisa que um calafrio pudesse causar ou que uma carícia calorosa pudesse suavizar.

Não há mais tempo para brincadeira.

– Quem é Argentum? – perguntou Farid, lendo por cima do ombro dela.

Ah, Farid... uma mulher gosta de ter os seus segredos.

Tinha sido por isso que ela viajara usando tantos nomes falsos, como o que usara para reservar aquele quarto.

– Parece que tenho um problema urgente para cuidar – disse, indo à porta e se virando para ele. – Tenho que me despedir de você aqui.

Uma expressão de forte desapontamento se revelou no rosto dele, com um lampejo de raiva.

Abruptamente, ele a empurrou para dentro do quarto, seguindo bem atrás. Agarrou-a com violência e a jogou contra a parede, fechando a porta com um pontapé.

– Eu direi quando tivermos acabado – disse ele roucamente.

Ela levantou uma sobrancelha. Então, afinal havia algum fogo escondido em Farid.

Sorrindo para ele, ela atirou o telefone sobre a cama, o puxou para ainda mais perto, os lábios deles quase se tocando. Ela o virou de modo que agora fosse ele quem estivesse com as costas contra a parede. Estendeu as mãos para a calça dele, o que fez o sorriso malicioso dele se alargar. Mas ele não entendeu o que ela estava procurando – pois ela tirou a faca escondida do bolso.

Ela abriu o canivete e com um golpe rápido a enterrou no globo ocular dele, golpeando para cima e para trás. O tempo todo segurou o corpo dele, pressionando-o contra a parede, sentindo o calor através das roupas finas, sabendo que aquele calor rapidamente expiraria, apagado com a vida dele. Saboreou aquele calor que minguava, o abraçou bem apertado enquanto os tremores da morte o sacudiam.

Quando os tremores acabaram, ela finalmente o soltou.

O corpo tombou frouxo no chão, sem vida.

Ela o deixou ali, andou até a cama e se sentou, cruzando as pernas longas e esguias. Pegou de volta o telefone e abriu a imagem no arquivo anexo que lhe fora enviado.

Na tela, uma única foto apareceu, de uma folha de papel coberta com letras estranhas. A escrita vinha de outros tempos, era mais adequada a ser riscada em pergaminho com um fragmento de osso. Mais um código do que uma linguagem, era escrita em uma forma arcaica de hebraico:


Como parte de seu treinamento, ela havia estudado línguas antigas em Oxford e atualmente lia grego, latim e hebraico antigos com a mesma facilidade com que lia sua língua nativa, o húngaro. Decifrou a mensagem cuidadosamente, certificando-se de não cometer nenhum erro. Sua respiração acelerou enquanto ela trabalhava.
Um terremoto destruiu Massada.

Uma grande morte veio com ele,

brutal o suficiente para marcar Seu possível redescobrimento.
Ela levou a mão à garganta, as pontas dos dedos tocando na marca que escurecia sua pele branca, pensando na noite em que recebera a tatuagem e se tornara para sempre maculada. Seu sangue ainda ardia.

Ela continuou lendo.
Vá. Procure por


Um Cavaleiro foi enviado para recuperá-lo.

Não permita que nada a detenha.

Você não deve falhar.
Ela olhou fixamente para a frase em aramaico herodiano. Os Belial haviam esperado por aquela mensagem por muito tempo.

Os lábios dela formaram palavras impossíveis, não ousando dizê-las em voz alta.


O Livro de Sangue
Uma onda súbita e desconhecida de medo pulsou através das pontas de seus dedos.

Ele a quem ela servia havia muito tempo suspeitava que a fortaleza judaica na montanha pudesse esconder o precioso livro. Além de um punhado de outros locais. Aquele era um dos motivos por que ela fora mantida escondida ali, nas profundezas da Terra Santa. A algumas horas de distância de dúzias de possíveis antigos sítios históricos.

Mas ele estaria correto? Será que Massada era o verdadeiro local de repouso do Livro de Sangue? Depois que ela e sua equipe revelassem sua presença, eles não poderiam mais ser escondidos. Seria aquilo o suficiente para merecer tamanho risco?

Ela só conhecia a resposta para a última pergunta:

Sim.

Se o livro tivesse sido realmente desenterrado e descoberto, ofereceria uma oportunidade singular – uma chance de acabar com o mundo e forjar um novo mundo em nome Dele. Embora ela tivesse sido treinada desde muito jovem, nunca realmente havia esperado que aquele dia chegasse.

Preparativos precisavam ser feitos.

Ela apertou o segundo número na discagem rápida de seu telefone e visualizou o homem grande e musculoso que atenderia ao primeiro toque.

Seu segundo no comando, Tarek.

– O que deseja? – A voz grave ainda tinha traços de sotaque tunisiano, embora ele não tivesse falado com um conterrâneo quase que durante a vida inteira.

– Acorde os outros – ordenou ela. – Finalmente, a caçada vai começar.


5

26 de outubro, 15:38, horário de Israel

Voando acima de Israel

Erin ansiava por estar em terra, longe do calor, do barulho e da poeira, e longe do padre. Ela própria estava com calor demais, e o padre devia estar em pior situação com sua batina comprida e capuz. Ela tentou se lembrar de quando padres católicos tinham parado de usar capuz. Antes que ela nascesse. Entre o capuz e os óculos dele, ela via apenas o queixo do homem, quadrado e com uma covinha no meio.

Um queixo de artista de cinema, mas ele a deixava inquieta. Até onde podia dizer, o homem não havia se movido em meia hora. O helicóptero desceu alguns metros, mas o estômago dela ficou lá em cima, no ar. Engoliu em seco. Gostaria de ter pensado em trazer água. Os soldados não pareciam ter água, mas não pareciam se importar com isso. O padre também não.

A monótona paisagem árida deslizava lá embaixo. Desde que o helicóptero deixara o hospital, voava para o leste e para o norte, em direção ao mar da Galileia. Cada minuto do voo alterava a possível destinação deles, mas Erin tinha perdido o interesse em tentar adivinhar onde poderia aterrissar.

Eles se aproximaram de uma montanha de topo achatado familiar, que se elevava muito íngreme do deserto. Ela distinguiu o dedo branco da rampa que os romanos haviam construído para penetrar em suas muralhas.

Massada.

Não tinha estado sequer em sua lista de possíveis destinações. Massada tinha sido totalmente escavada na década de 1960. Nada de novo saíra do sítio em décadas. Turistas andavam por todos os lados.

Talvez o terremoto tivesse revelado alguma coisa nas proximidades. Um acampamento romano? Ou os restos mortais dos novecentos rebeldes judeus? Somente cerca de trinta corpos tinham sido recuperados. Eles haviam sido reenterrados com todas as honras militares em 1969.

Erin espichou o pescoço para ter uma visão melhor. Extensões contínuas de areia se alongavam em todas as direções. Nenhum sinal de atividade ao redor da base, mas ela avistou um helicóptero no cume. Devia ser para lá que ela iria. Erin se endireitou no assento, ávida para descobrir o que exigia sua atenção imediata.

O padre se moveu quase imperceptivelmente, uma ligeira alteração no queixo bonito. Então ele ainda estava vivo. Ela se esquecera de levá-lo em consideração enquanto tentava adivinhar o destino deles. Embora fosse principalmente um marco judaico, Massada também era o lar das ruínas de uma igreja bizantina, datando de cerca de 500 d.C. O terremoto poderia ter exposto relíquias cristãs. Mas se os israelenses planejavam entregar as relíquias ao padre, por que trazê-la, para começar? Alguma coisa ali não batia muito certo.

O helicóptero desceu em direção ao cume, levantando areia através da porta aberta. Ela apertou os olhos para ver em meio à poeira quente e pôs as mãos em concha ao redor dos olhos. Devia ter trazido óculos de proteção. E água. E um jantar. E um telefone de reserva.

Ela desejou que Pearlman não tivesse lhe tomado o telefone celular. Com certeza, àquela altura, seus alunos tinham entrado em contato para informá-la sobre o estado de Heinrich. Ou então... bem, não queria pensar em “ou então”. Ele estivera no sítio como seu aluno de graduação. O que lhe acontecesse era responsabilidade dela.

Erin levantou o dedo mindinho e o polegar até a orelha para indicar a palavra telefone.

Pearlman o tirou do bolso. Gritou para se fazer ouvir acima do barulho:

– Mantenha desligado!

– Sim, senhor. – Com aquele nível de decibéis, ele não perceberia o sarcasmo.

Ele entregou o telefone a ela, e ela o enfiou no bolso de trás. No segundo que ele lhe desse as costas, ela pretendia ligá-lo e checar suas mensagens.

O cume surgiu à vista.

Ela se inclinou para fora, vasculhando o espaço abaixo, atordoada. Levou um momento estrondoso para compreender o que estava vendo.

Massada... não existia mais.

As paredes, os prédios, as cisternas eram pilhas de pedras. A muralha de casamata que havia cercado a fortaleza por milhares de anos tinha sido completamente destruída. Os escombros se erguiam no local onde houvera o columbário e a sinagoga. A montanha tinha praticamente sido partida em duas. Ela nunca tinha visto tamanha devastação de perto.

Erin se esforçou para enxergar em meio à nuvem de poeira que os rodeava. Retângulos negros tinham sido enfileirados perto da beira do planalto. Tinham uma forma regular demais para serem naturais. Duas pessoas deixaram cair mais um ao lado dos outros.

Eram sacos mortuários. Cheios.

Massada era um dos locais turísticos mais visitados em Israel. Devia estar fervilhando de turistas na hora do terremoto. Quantas vidas mais aquela montanha maldita agora havia tomado? O estômago dela se contraiu de novo, mas desta vez não por causa do helicóptero.

Sentiu um toque frio no ombro, e se sobressaltou. O padre. Ele também devia ter visto os mortos. Talvez ela estivesse enganada desde o princípio. Talvez ele estivesse ali para realizar os últimos sacramentos e cuidar dos mortos por ordem da igreja.

Só de pensar em seu entusiasmo minutos antes, ele sentia um embrulho no estômago. Aquilo não era um sítio arqueológico. Era a cena de um desastre. Desejou poder estar de volta a Cesareia.

O tenente Pearlman saltou para fora do helicóptero e berrou ordens em hebraico. Os homens saltaram por ambos os lados do helicóptero e seguiram em direção aos sacos mortuários. Eles deviam ter sido convocados para vir retirar os corpos. Não era de espantar que o oficial tivesse se mostrado tão pouco comunicativo com relação ao assunto. Ela não invejava a tarefa dele.

O padre saltou do helicóptero, gracioso como um gato do deserto. A batina longa esvoaçou sob o vento dos rotores. Ele puxou o capuz mais para junto do rosto e virou a cabeça de um lado para outro, como se à procura de alguma coisa.

Com as mãos escorregadias por causa do suor, ela lutou para desafivelar o cinto de segurança. O chão pareceu ondular sob seus pés quando se levantou. Erin se apoiou de novo nas costas do assento e respirou fundo algumas vezes. Os israelenses tinham tido um motivo para trazê-la até ali, e era melhor ela se acalmar e descobrir qual era.

O padre se virou e lhe ofereceu ajuda, a palma da mão enluvada virada para cima em um gesto antiquado, quase elegante e cortês. Com certeza não se parecia nada com a maneira como o tenente Pearlman a tinha puxado para fora da trincheira antes de começarem aquela viagem.

Agradecida pelo apoio, ela aceitou a mão dele. Ele a largou no momento em que seus tênis tocaram no calcário.

O vento empurrou para trás o capuz do padre, revelando um rosto pálido com maçãs altas e cabelo espesso. Um homem bonito para um padre.

– Tot ago attero... – murmurou ele. Enquanto puxava de volta seu capuz negro sobre a cabeça, escondendo o rosto novamente. Ela traduziu as palavras em latim: Tantos mortos.

O padre inclinou a cabeça antes de se afastar com passos decididos, como se ele pelo menos soubesse por que estava ali.

Ela protegeu os olhos e olhou para o sol, já baixo no céu. O sol se poria dentro de cerca de uma hora. Se eles não retirassem os corpos até então, os chacais chegariam. Apesar do calor, ela estremeceu.

Erin obrigou seus olhos a olharem para o sítio em ruínas, além dos sacos mortuários, para vultos retirando cadáveres dos escombros. Pessoas vestindo trajes azuis de biossegurança.

Trajes de biossegurança para um terremoto?

Antes que ela pudesse perguntar por que tal precaução era necessária, um soldado alto veio andando em sua direção. Não estava vestindo um traje de biossegurança. Confortador.

Ele se encaminhou direto para ela. Mesmo sem a bandeira costurada na alça do ombro de sua jaqueta cáqui, ela teria sabido que ele era americano. Tudo nele dizia torta de maçã: do cabelo louro cor de trigo, bem curto no corte escovinha padrão do Exército, ao rosto de queixo quadrado e ombros largos. Olhos azuis límpidos se fixaram nela, medindo-a com um só fôlego fatigado. Ela gostou dele. Parecia competente, e não imune à tragédia com que estava lidando. Mas o que um militar americano estava fazendo em um cume de montanha israelense?

– Dra. Erin Granger?

Então ele estava esperando por ela. Será que deveria se sentir aliviada ou preocupada?

– Sim, eu sou a dra. Granger.

O soldado olhou para além do ombro dela, em direção ao padre, que se afastava em meio aos escombros. Uma sobrancelha se ergueu.

– Eu não fui avisado da vinda de um padre até aqui – disse ele para o tenente Pearlman.

O israelense acenou para dois de seus homens e apontou para o padre antes de responder:

– O Vaticano solicitou a presença do padre Korza. Um grupo de turistas católicos estava aqui durante o terremoto. Entre eles, o sobrinho de um cardeal.

Aquilo explicava o padre, pensou Erin. Um trágico mistério resolvido. O soldado pareceu concordar com a opinião dela e a encarou de novo.

– Obrigado por vir, dra. Granger. Precisamos nos apressar. – Ele se afastou do helicóptero, seguindo em direção à parte onde havia maior destruição.

Ela correu para acompanhar as passadas largas de suas pernas compridas, tentando se concentrar nele e em onde pisava, não nos sacos mortuários. Naquela manhã, aquelas pessoas estavam tão vivas quanto ela. Ela falou para evitar pensar:

– Eu fui tirada de uma escavação. Sem uma palavra de explicação. O que está acontecendo aqui?

– Isso me soa familiar. – Os lábios dele se abriram num sorriso cansado. – Eu estava no Afeganistão ontem, em Jerusalém há poucas horas. – Ele se deteve, esfregou a palma da mão na camiseta de cor areia, e estendeu a mão.

– Vamos começar de novo. Sargento Jordan Stone. Nono batalhão dos Ranger. Nós fomos chamados aqui pelos israelenses para ajudar.

Seu aperto de mão foi firme, sem ser agressivo, e ela imediatamente reparou em uma linha na sua mão esquerda, onde deveria estar uma aliança de casamento. Constrangida por ter se concentrado naquele detalhe, soltou a mão dele rapidamente.

– Dra. Erin Granger – repetiu.

Ele começou a andar.

– Não tenho a intenção de ser rude, doutora, mas se a senhora quer que sobre alguma arqueologia para estudar, temos que nos apressar. Estamos tendo choques secundários.

Ela acompanhou os passos dele.

– Por que os trajes de biossegurança? Foi um ataque com arma química ou biológica?

– Não exatamente.

Antes que ela pudesse perguntar o que ele queria dizer, o sargento parou na beira de uma pilha de calcário que bloqueava a visão para mais à frente. Ele se virou de corpo inteiro para ela.

– Doutora, eu preciso que a senhora se prepare.

16:03

Jordan duvidava que Granger já tivesse visto algo semelhante. O caminho passava por um labirinto de escombros e corpos esmagados; alguns cobertos, outros olhando cegamente para o sol impiedoso, adultos e crianças. Mas, a menos que pusesse antolhos nela, como se fosse um cavalo, não via nenhuma maneira de protegê-la. Ela teria que andar em meio a tudo aquilo para chegar à base de acampamento temporária que fora montada na beira do abismo que o terremoto havia aberto.

Ele se desviou de um corpo coberto por uma lona azul. Não se permitiu ser distraído pelos mortos; tinha visto cadáveres de sobra no Afeganistão. Mais tarde naquela noite, com privacidade, talvez ele bebesse um Jack Daniels para evitar pensar demais. Até então, tinha que permanecer no controle de sua equipe e de seus sentimentos.

A arqueóloga tinha sido uma certa surpresa. Não pelo fato de ser mulher. Ele não tinha problemas de trabalhar com elas. Algumas eram competentes, outras não; não eram diferentes em nada dos homens. Mas por que uma arqueóloga havia sido mandada para aquele sítio, para começar?

Limpou o suor da testa com as costas da mão. O crepúsculo caía, mas a temperatura ainda estava perto dos quarenta graus. Ele respirou fundo, sentindo o gosto do ar quente do deserto misturado com o sabor forte de cobre do sangue. Então reparou que a dra. Granger não estava mais atrás dele.

Ele esperou que ela avançasse com dificuldade, viu uma faísca de simpatia e compaixão nos olhos dela à medida que vasculhava os escombros, examinava os corpos, lamentava as mortes. Ela não se esqueceria daquele dia tão cedo.

Ele andou para trás.

– A senhora está bem?

– Desde que eu continue em movimento. Se eu parar por muito tempo, você acabará por me carregar pelo resto do caminho. – Ela lhe deu um sorriso forçado – pareceu lhe exigir um esforço monstruoso.

Ele caminhou, mais lentamente do que antes, tentando escolher um trecho que os mantivesse longe dos corpos espalhados.

– A maioria das vítimas morreu na hora. As probabilidades são de que não tenham sentido nada.

Era mentira. E ela só precisava olhar para os corpos para saber disso.

Erin levantou uma sobrancelha, com descrença, mas não discutiu a afirmação dele, o que ele apreciou.

Ela olhou fixamente para o corpo de uma jovem. Bolhas cobriam-lhe o rosto e havia sangue seco formando uma crosta ao redor da boca e dos olhos. Não era uma vítima típica de terremoto.

– Nem todos estes corpos foram esmagados. O que aconteceu com os outros, sargento?

– Pode me chamar de Jordan. – Ele hesitou. Seria capaz de apostar que ela discutiria se ele mentisse desta vez. Melhor dizer o mínimo possível do que deixá-la tentando adivinhar.

– Ainda estamos testando, mas, de acordo com as leituras iniciais do cromatógrafo, suspeitamos que eles tenham sido expostos a um derivativo do sarin.

Ela tropeçou num bloco de pedra, seguiu adiante, ele admirou-lhe a coragem.

– O gás do sistema nervoso? É por isso que os militares americanos estão envolvidos?

– Os israelenses pediram a nossa ajuda porque somos especialistas nesse campo. Até o momento, não confirmamos a natureza do gás. Assemelha-se muitíssimo ao sarin. Efeitos rápidos, dispersão rápida. Quando os primeiros socorristas chegaram a Massada, o gás já estava inerte.

Tinham tido um pouco de sorte naquilo, pensou Jordan, caso contrário o número de mortos teria sido muito maior. Os israelenses tinham pensado que o terremoto fosse o maior problema deles. Os primeiros socorristas só tinham vestido trajes de proteção depois de encontrar os primeiros corpos.

– Quem faria isto? – Sua voz tinha o tom chocado de alguém desabituado a enfrentar o mal em primeira mão todos os dias. Ele a invejava.

– Quem me dera eu tivesse uma resposta.

Até o gás era um mistério. Não tinha nenhum dos marcadores de um agente moderno, utilizado como arma. Ao decompor os elementos essenciais do gás, a equipe dele havia encontrado anomalias bizarras. Como canela. Quem, diabos, põe uma especiaria em um agente nervoso? A equipe dele estava tentando rastrear vários outros ingredientes igualmente estranhos e elusivos.

Incomodava-o não conhecer a origem verdadeira do gás. Aquele era seu trabalho, e geralmente se saía muito bem. Detestava pensar que tinha encontrado um gás até o momento não identificado que atacava o sistema nervoso central com aquela capacidade de matar, especialmente no Oriente Médio. Nem os seus superiores nem os israelenses ficariam contentes em saber disso.

Ele teve que passar por cima de um saco mortuário. Estendeu a mão para a dra. Granger, tanto para ajudá-la a transpor o obstáculo como em um gesto tranquilizador. O aperto de mão dela foi mais forte do que ele esperava. Ela devia andar levantando mais que apenas lápis.

– Isto foi um ataque terrorista? – A voz dela permanecia firme, mas ele sentiu o ligeiro tremor em seu braço. Era melhor mantê-la falando.

– Foi isso que os israelenses pensaram inicialmente. – Ele soltou a mão dela. – Mas a exposição tóxica coincidiu exatamente com o terremoto. Suspeitamos que velhas latas contendo o gás tóxico tenham estado enterradas no subsolo por aqui, e que o tremor as tenha rachado e aberto.

A testa dela se franziu.

– Massada é um sítio arqueológico sagrado. Não consigo ver os israelenses armazenando nada deste tipo por aqui.

Ele deu de ombros.

– Isto é o que minha equipe e eu estamos aqui para descobrir.

Ele tinha as suas ordens: encontrar a fonte e removê-la em segurança ou detonar quaisquer recipientes restantes.

Ele e a arqueóloga deram alguns passos em silêncio. Ele ouviu um som surdo quando alguém largou um saco mortuário dentro de um helicóptero. Eles deveriam trabalhar mais depressa. A noite cairia logo, e ele não queria desperdiçar homens numa patrulha contra chacais.

Observou que os olhos da dra. Granger tinham ficado vidrados e arregalados, que sua respiração estava ofegante. Precisava fazê-la conversar.

– Quase chegamos ao acampamento.

– Houve sobreviventes?

– Um. Um garoto. – Ele gesticulou para um laboratório de contenção móvel P3, a tenda de plástico esvoaçante onde o adolescente estava sendo mantido.

– Ele estava aqui sozinho? – perguntou ela.

– Com os pais.

O garoto dizia que havia inalado várias vezes o agente químico e tinha sobrevivido. Havia descrito o gás como sendo de cor laranja queimado avermelhado, com um cheiro adocicado, e picante de especiarias. Nenhum gás moderno que atacasse o sistema nervoso central se encaixava naquela descrição.

Jordan olhou para ela.

– Os pais dele não sobreviveram.

– Compreendo – disse Erin, baixinho.

Ele olhou para a tenda de contenção além dos escombros. Através das paredes de plástico transparente, Jordan viu o padre se ajoelhar ao lado do garoto. Ficou satisfeito por ver que alguém lhe fazia companhia. Mas que palavras o padre poderia apresentar para consolá-lo?

Subitamente seu trabalho não lhe pareceu tão duro.

– Aquilo é o seu acampamento? – Ela apontou para mais adiante, um pequeno hangar improvisado de lona montado na beira da fissura.

Acampamento era uma descrição generosa.

– Ainda que tão humilde.

Ele lançou mais um olhar para a fissura. Cortava o solo como uma cicatriz gigantesca, com quatro metros de largura, talvez noventa de comprimento. Embora um simples terremoto a tivesse criado, não parecia natural.

– Aquilo é um espectrômetro de massa? – perguntou a arqueóloga quando eles chegaram ao local.

Ele não pôde deixar de sorrir da surpresa no rosto dela.

– Não pensou que eles deixariam que nós, os pés-rapados, trabalhássemos com brinquedos tão preciosos?

– Não... é só que... bem...

Ele gostou de vê-la gaguejar. Todo mundo presumia que se você usasse um uniforme, tinha deixado seu cérebro no escritório de recrutamento.

– Nós apenas os usamos com rochas, doutora, mas parece que funciona.

– Sinto muito – disse ela. – Não foi isso o que eu quis dizer. E, por favor, me chame de Erin. “Doutora” faz com que eu me sinta como uma pediatra.

– Tudo bem. – Ele se encaminhou para a tenda. – Estamos quase lá, Erin.

Dois de seus homens estavam encolhidos sob o abrigo apertado.

Um deles estava parado junto do computador, bebendo avidamente de seu cantil. O outro estava sentado diante do computador, mexendo com os joysticks que guiavam o veículo operado à distância da equipe. O pequeno robô tinha sido baixado por um tirante dentro da fissura uma hora atrás.

Enquanto ele a conduzia para dentro do acampamento, ambos os homens se viraram. Cada um lhe fez um breve cumprimento de cabeça, mas se demorou muito mais olhando para a atraente arqueóloga loura.

Jordan a apresentou, enfatizando o título.

O rapaz sardento dirigiu sua atenção de volta para seus joysitcks.

Jordan gesticulou para ele.

– Dra. Granger, este é o nosso jóquei de computador, cabo Sanderson, e o homem ali bebendo toda a nossa água é o especialista Cooper.

O rapaz negro forte e alto enfiou um par de luvas de látex com um estalo. Uma dúzia de pares sujos de sangue enchiam a lata de lixo próxima.

– Eu gostaria de ficar e papear, mas tenho que voltar para o serviço de limpeza. – Cooper olhou para Jordan. – Onde está escondendo as baterias extras? A câmera de McKay está quase arriada, e temos que fotografar todo mundo antes de enfiar nos sacos.

Erin se contraiu. Ela empalideceu de novo. Por trabalhar em campo por tanto tempo, Jordan se deu conta de como era fácil esquecer o horror que os rodeava todos os dias.

Não havia muito que pudesse fazer por ela agora. Ou pelos corpos lá fora.

– Na mochila azul, no bolso direito.

Cooper tirou uma bateria de lítio do compartimento do zíper.

– Droga! – exclamou Sanderson, atraindo a atenção deles.

– O que há de errado?

– O robô ficou preso de novo.

Cooper revirou os olhos e saiu da tenda.

O cabo fez cara feia para a imagem no monitor em cores como se fosse um videogame que estivesse a ponto de perder.

Erin se inclinou por cima do ombro dele e olhou fixamente para os quatro monitores, cada um exibindo imagens de uma das câmeras do ROV.[1]

– As imagens são de dentro da fenda?

– São, mas o robô está totalmente preso.

A tela exibia o motivo da frustração de Sanderson. O robô tinha ficado entalado numa rachadura. Terra e pedras obscureciam duas das câmeras. Sanderson pressionou os joysticks e as bandas de rodagem giraram sem que o veículo saísse do lugar, levantando mais detritos.

– Porcaria de equipamento do exército!

O equipamento não era o problema. O ROV era um modelo ultramoderno, de última geração, com instrumentos sensores e radares suficientes para detectar o peido de um rato dentro de um armazém. O problema era que Sanderson ainda não tinha dominado a arte de manipular o par de joysticks. Jordan também não sabia usá-los.

Erin lançou um olhar para ele, os olhos curiosos.

– Este é um ST-20? Eu fiz centenas de horas de treinamento usando um desses. Será que eu poderia tentar?

Talvez fosse bom dar a ela alguma coisa para fazer. Aparentemente, Sanderson não iria conseguir tirar o robô dali. Além disso, Jordan respeitava qualquer pessoa que se oferecesse para ajudar.

– Claro.

Sanderson levantou as mãos com visível desagrado e empurrou a cadeira, tirando-a do caminho.

– Fique à vontade. A única coisa que eu não tentei foi descer até lá e dar um chute nele.

Erin se posicionou onde estivera a cadeira de Sanderson e pegou os dois joysticks como alguém que sabia o que estava fazendo. Ela se alternou entre os controles da frente e de trás, movendo o ROV poucos centímetros para trás e para a frente como se estivesse tentando estacionar em paralela.

– Eu tentei isso – disse Sanderson. – Não vai...

O ROV abruptamente saiu da brecha. Jordan viu Erin conter um sorriso rápido de vitória, e a respeitou ainda mais por tentar poupar os sentimentos de Sanderson. Sanderson se levantou e pôs as mãos nos quadris.

– Cara! Você está querendo que eu faça papel de idiota na frente do meu comandante.

Então ele sorriu e empurrou sua cadeira atrás dela como se fosse um trono. Depois que ela se acomodou, olhou para Jordan.

– O que estamos procurando?

– A nossa equipe foi encarregada de descobrir a fonte do gás.

– Deixe-me adivinhar – disse ela com um sorriso. – Eu estou aqui para garantir ao governo israelense que vocês não vão destruir artefatos com milênios de anos no processo?

Jordan retribuiu o sorriso dela.

– Mais ou menos isso.

Ele não disse mais nada sobre o assunto, mas a presença dela fora solicitada pelo Serviço de Inteligência Israelense, não pelo Departamento de Antiguidades. Ele ainda não tinha certeza do motivo. E detestava mistérios não resolvidos.

Todos os olhos estavam nos monitores enquanto ela conduzia o ROV a subir uma pilha de pedras.

– Afinal, o que a senhora está fazendo em Israel? – perguntou Sanderson.

– Eu estou com uma equipe numa escavação em Cesareia. Coisa de rotina.

Jordan desconfiou pelo tom dela que não fosse nada de rotina. Interessante.

O ROV desceu uma protuberância de rocha, então entrou no que parecia ser uma passagem reta.

– Olhe só para as paredes. – Ela girou as câmeras do rover. – Arestas entalhadas com bordas afiadas.

– E? – perguntou Jordan.

– Este túnel foi aberto pelo homem. Escavado a mão com cinzel.

– Lá embaixo? No coração da montanha? – Ele se aproximou mais dela. – Quem você acha que o escavou? Os rebeldes judeus que morreram aqui?

– Talvez. – Ela se inclinou se afastando dele. Tinha problemas com espaço pessoal. Ele recuou um bocadinho. – Ou talvez os monges bizantinos que viveram na montanha séculos depois. Sem mais informações, é impossível dizer. Imagino que o nosso amiguinho lá embaixo seja o primeiro a descer por este túnel em muito tempo.

O ROV subiu numa pilha de escombros, os faroletes de lâmpadas alógenas pintando a fenda negra como piche de um branco azulado.

– Droga – disse Erin.

– O que foi? – perguntou Jordan.

Ela virou o rover todo para a direita para mostrar uma pilha de pedras quebradas.

– E? – Para Jordan, aquela não parecia diferente de outras pilhas de rochas.

– Dê uma olhada no topo. – Ela traçou a imagem no monitor com o dedo. – Aquilo era um túnel, mas desmoronou.

– Do mesmo modo que muitas outras coisas – observou Sanderson. – Por que isto é importante?

– Olhe só para as paredes laterais – disse ela. – São marcas de perfuração bastante modernas.

Jordan se inclinou para frente entusiasmado.

– O que significam?

– Significam que alguém abriu caminho para dentro deste túnel nos últimos cem anos, mais ou menos. – Erin suspirou. – E provavelmente roubou qualquer coisa de valor que houvesse nele.

– Talvez eles tenham deixado o gás. – Jordan não tinha certeza de por que se sentia aliviado pelo fato de que pudesse ser um gás tóxico moderno para o sistema nervoso central, e não antiquíssimo.

Ela virou o rover para frente de novo e ele avançou pelo caminho, finalmente alcançando uma área aberta.

– Pare aí – disse Jordan. – O que é este lugar?

– Parece uma câmara de armazenamento subterrânea. – Erin virou o rover em um círculo para examinar o recinto vazio. Até o momento não havia latas ou botijas rachadas.

Concentrando-se em seu cabo, Jordan perguntou:

– O que dizem as leituras?

Sanderson se inclinou para um monitor vizinho. Ele podia ter dificuldade de pilotar o ROV, mas conhecia bem instrumentação.

– Há muitos produtos de degradação secundária. Nenhum agente ativo. Mesmo assim, estes são de longe os picos mais altos de agente quente que vi por aqui. Eu diria que este recinto é a fonte do gás.

A câmera virou para cima para exibir um teto em arco.

– Isto parece uma igreja – disse Sanderson.

Erin sacudiu a cabeça.

– É mais provável que seja um templo subterrâneo ou uma tumba. O estilo de construção é antiquíssimo. – Ela tocou na tela, como se aquilo fosse ajudá-la a sentir a pedra.

– O que é aquela caixa? – perguntou Jordan.

– Creio que seja um sarcófago, mas não posso ter certeza antes de chegar mais perto. A luz não chega até lá.

Ela conduziu o ROV para frente, mas o robô parou. Insistiu movendo ambos os joysticks, então os largou com um suspiro de impaciência.

– Entalou de novo? – perguntou Jordan. Eles estavam tão perto.

– Fim da linha – disse ela. – Literalmente. Isto é até onde o cabo do ROV consegue chegar.

Ela deixou a câmera apontada para o sarcófago.

– Definitivamente, parece ser um recipiente mortuário. Se for, alguém importante deve estar sepultado ali.

– Importante o suficiente para botarem armadilhas na câmara? – Essa poderia ser a explicação.

– É possível, mas os egípcios – não os judeus – eram notórios por criar armadilhas requintadas. – Ela esfregou o lábio inferior. – Não faz sentido.

– Nada faz sentido por aqui. – Sanderson fungou. – Como o gás tóxico para o sistema nervoso central com cheiro de canela.

Ela girou a cadeira.

– O quê?

Ele fez uma careta de censura para Sanderson, depois admitiu o que eles tinham encontrado.

– Uma das anomalias deste gás. Nós detectamos vestígios de canela nele.

– Bem, isto faz algum sentido com a tumba.

– Como assim? – Não fazia nenhum sentido para Jordan.

– A canela era uma especiaria rara nos tempos antigos – explicou ela. – Para os ricos, era queimada em ritos fúnebres porque era um aroma apreciado por Deus. É mencionada muitas vezes na Bíblia. Moisés recebeu ordem para usá-la quando estava preparando um óleo de unção.

– Quer dizer então que a canela é provavelmente um contaminante? – Jordan ficou grato pela informação. Tudo que ele sabia sobre canela era que gostava de comê-la com torradas à francesa.

– A concentração é alta demais no resíduo do gás para ser apenas um contaminante – informou Sanderson.

– O que mais você pode me dizer sobre os antigos usos da canela? – perguntou Jordan.

– Se soubesse que haveria um questionário, eu teria estudado. – Erin lhe deu um sorriso meigo e caloroso e apanhou Jordan desprevenido: – Vamos ver, eles a usavam como um auxiliar para a digestão. Para curar resfriados. Como repelente de mosquitos.

– Pesquise – ordenou Jordan. Ele andou alguns passos e se postou atrás de Sanderson, ligado como se tivesse acabado de tomar um espresso triplo.

Os dedos de Sanderson voaram sobre o teclado.

– Estou em cima.

– O que foi? – perguntou ela. – O que foi que eu fiz?

– Talvez tenha resolvido parte do meu problema – disse Jordan. – A maioria dos repelentes de mosquitos que existem está a dois saltos químicos de um gás tóxico para o sistema nervoso central. O primeiro gás tóxico para o sistema nerv...

O chão deu uma tremida violenta. A cadeira de Erin rolou para trás, ameaçando virar. Jordan a segurou firme enquanto a tenda de lona balançava e a armação de metal rangia em protesto.

Ela se tensionou como se fosse saltar da cadeira, mas ele a manteve no lugar.

– É mais seguro você ficar por aqui durante o abalo secundário.

Ele não acrescentou que não havia nenhum lugar seguro no planalto danificado. Que não seria preciso um tremor muito intenso para trincar a mesa inteira em duas. O abalo foi diminuindo, até que parou.

– Tudo bem, o tempo para olhar de fora acabou. – Ele se virou para Sanderson. – Você tem certeza de que não há gás ativo naquela câmara?

Sanderson se inclinou sobre seu console e depois de um momento se endireitou.

– Nenhum, senhor. Nem uma única molécula.

– Ótimo. Vá chamar Cooper e MCkay, e avise Pearlman. Vamos nos preparar e descer em cinco minutos.

A arqueóloga se levantou como se esperasse ir também. Ele sacudiu a cabeça.

– Sinto muito. Vai ter que ficar aqui em cima até termos examinado a câmara.

Ela franziu o rosto.

– Vocês me tiraram da minha escavação para vir para cá. Eu não vou...

– Eu sou responsável pelos quatro soldados da minha unidade. Esta responsabilidade não é pouco importante para mim, dra. Granger. Existe uma provável fonte de gás tóxico letal lá embaixo. Eu não quero ter também uma baixa civil na minha consciência.

– Então voltamos à dra. Granger, é? – As palavras dela subitamente soavam muito precisas. Ela o lembrava de sua mãe. – Quais exatamente foram as suas ordens no que me diz respeito, sargento Stone?

– Como eu já disse antes, assegurar a integridade do sítio. – Ele manteve seu tom calmo e educado. Não tinha tempo para lidar com uma acadêmica zangada que queria se meter numa situação perigosa.

– Como eu posso assegurar a integridade daqui de cima?

– A senhora já disse que a única coisa lá dentro é um sarcófago.

– Eu disse que aquilo é tudo que eu podia ver daqui de cima. Mas e quanto ao que está dentro do sarcófago, sargento Stone?

O tom dela estava uns dois graus mais gelados do que um minuto antes. Ele respondeu:

– Eu não me importo muito com o que está dentro, doutora, eu...

– O senhor deveria se importar. Porque está aberto.

Ele deu um passo para trás, de surpresa.

– O quê?

Ela bateu na tela com a unha, mostrando um ponto na imagem transmitida pelo ROV.

– Bem aqui. Isto é a tampa. De lado junto ao sarcófago. Alguém deve ter quebrado o selo e levantado a tampa.

Ele desejou que ela não tivesse visto aquilo. Tornava a sua vida muito mais complicada.

Ela baixou a voz:

– Nós não temos nenhuma ideia do que poderia estar lá dentro. O corpo de um rei judeu. Uma cópia intacta da Torá. Massada é um sítio histórico venerado pelo povo judeu. Se alguma coisa for danificada...

Ele abriu a boca para protestar. Em vez disso, respirou fundo e deixou o ar sair lentamente. Ela estava certa. Os israelenses pediriam a cabeça dele se a sua equipe cometesse o menor erro. Droga.

– É possível que ainda haja recipientes intactos de gás lá embaixo. Se houver, eles poderiam ser abertos por um abalo secundário a qualquer momento. E nós acabaremos como as pessoas que a senhora viu lá fora.

Ela empalideceu, depois se empertigou.

– Compreendo as consequências, sargento.

Ele duvidava que compreendesse.

– A senhora já fez rapel?

– É claro – respondeu ela. – Mais vezes do que posso contar.

Ele a encarou, olhos nos olhos.

– Presumo que possa contar acima de um?

Ela sorriu.

– Sei contar acima disso. Talvez até cem.

Ela relaxou. Pelo menos levá-la até lá embaixo não seria um problema.

– A partir deste momento a senhora está sob o meu comando. Quando eu disser “pule”...

Ela fez uma cara séria.

– Eu perguntarei a que altura. Entendi.

Ele tocou no fone de ouvido.

– Sanderson, ponha a dra. Granger num traje com arnês. Ela vai descer conosco.

1. Remotely Operated Vehicle – Veículo Operado Remotamente, também chamado de rover. (N. da T.)


6

26 de outubro, 16:42, horário de Israel

Quarenta e oito quilômetros de Massada, Israel

Bathory puxou as cortinas de blecaute de volta para o lugar, escondendo o deserto estéril fora do hangar do aeroporto, se perguntando se aquela seria a última vez que veria o sol.

Ela dedicou um momento a fechar os olhos, a se centrar. Respirou fundo e afastou a dor que continuamente corria através de seu sangue, aquela dor surda, sempre presente, nunca esquecida, lembrança de um juramento que fizera quando era muito jovem. A dor a marcava tão firmemente quanto a impressão da palma da mão negra tatuada ao redor de sua garganta branca; ambas tinham nascido ao mesmo tempo, vinculadas a uma promessa feita em sangue e sacrifício de servi-Lo.

Os dedos dela subiram-lhe à garganta, para tocar a fonte da dor e da promessa. Aquilo também servia para outro propósito: para proteção. A tatuagem a identificava como uma das escolhidas Dele, elevando-a. Ninguém podia tocá-la e todos a obedeciam.

Ela se obrigou a baixar o braço, sabendo que nunca deveria mostrar um fiapo de fraqueza, especialmente diante de outros.

Virou-se para ficar de frente para o hangar cavernoso, mal iluminado por círculos de luz das instalações acima nas traves de metal. Sua equipe já tinha embarcado no helicóptero, esperando por ela.

Um dos tripulantes da aeronave fechou a portinhola da seção de carga. Alguma coisa bateu com força contra aquela porta, obrigando o homem a recuar um passo, deixando-o visivelmente abalado antes que conseguisse fechar a tranca.

Ela se permitiu um pequeno sorriso, tranquilizada. A tatuagem negra em sua garganta não era sua única proteção.

Quieto, ela enviou a mensagem para aquele compartimento de carga. Você logo estará livre.

Ela sentiu um eco em resposta: satisfação, fome e um poço profundo de amor.

Saboreando o calor daquele eco, ela ajustou a combinação de Kevlar e couro que envolvia seu corpo, prendeu a Sig Sauer enfiada no coldre em seu ombro, e começou a atravessar o hangar largo para ir se juntar à sua equipe a bordo do helicóptero. Os motores do aparelho já estavam gemendo e acelerando para a decolagem, o ruído ensurdecedor no espaço fechado.

Agachando-se para passar sob as hélices em movimento, ela subiu para a cabine do Eurocopter Panther especialmente projetado, bateu a porta e a fechou. O interior do helicóptero estava escuro e fresco, isolado e silencioso. A aeronave de médio porte podia transportar dez passageiros, além de trezentos quilos de carga armazenados no compartimento traseiro.

Mas aquele não era um helicóptero comum. Modificações visando o segredo o faziam voar de modo que fosse quase invisível para os radares, e motores com abafadores de ruído tornavam-no silencioso em voo. Além disso, também fora pintado com as cores israelenses, uma camuflagem para fazer com que se encaixasse na região. Exceto pelas janelas da cabine – que foram pintadas de preto, impedindo a visão do exterior.

Enquanto se encaminhava para o assento vazio, vários pares de olhos a acompanharam. Todos os nove eram caçadores experientes, de bom sangue. Ela leu a fome crua em seus olhos, reconhecendo a ferocidade escondida por trás dos olhares inexpressivos.

Ignorando-os, ela se sentou ao lado de seu segundo em comando, Tarek. Na semiobscuridade da cabine, ele era apenas uma sombra mais escura, e igualmente fria. Ela se lembrou do calor de Farid, do toque quente das mãos dele nas suas costas. Agora parecia uma lembrança distante.

Enfiou os fones de ouvido e falou no rádio com o piloto. Na aeronave modificada, ele navegaria apenas por instrumentos, auxiliado por um programa de simulação de voo.

– Qual é o nosso status? – perguntou.

A resposta veio imediatamente:

– Já enviei pelo rádio o código de segurança israelense apropriado para termos acesso ao cume. Eles estão esperando um helicóptero de carga. Estaremos pousando lá dentro de 22 minutos.

Ela fez os cálculos de cabeça. Sete minutos depois do pôr do sol.

Perfeito.

Os motores aceleraram com um rugido abafado vindo de fora. Ela imaginou as portas do hangar se abrindo acima, fulgurando sob a luz do sol. Sentiu a aeronave avançar com um solavanco em direção ao céu e imaginou o helicóptero voando rápido sobre as areias escaldantes, uma mancha escura contra um mar incandescente.

– Quantos? – rosnou Tarek.

Ela sabia o que ele estava perguntando: Qual o tamanho da força que eles podiam esperar para enfrentá-los em Massada? Mas ela também ouviu a luxúria subjacente àquela única palavra. A palavra criou um lampejo de excitação na cabine, como um fósforo aceso atirado numa poça de gasolina.

Ela respondeu, tanto ao que tinha sido dito como ao que não havia sido dito:

– Dezessete.

O rosto de Tarek permaneceu nas sombras, mas ela percebeu o sorriso dele, arrepiando o cabelo em sua nuca, uma resposta instintiva à presença oculta de um predador.

De acordo com as informações dela, apenas um pequeno destacamento de soldados ainda guardava o cume da montanha. Com nove do lado dela e a vantagem da surpresa, estimava que não fossem levar mais que uns dois minutos para tomar o controle da área.

Depois disso, o livro tinha que ser encontrado.

A mão dela tentou subir de novo à garganta, mas prendeu os dedos no colo.

Ela não podia decepcioná-Lo.

Mas ainda havia um elemento desconhecido, conforme se lembrava da advertência que tinha vindo com a mensagem Dele:
Um Cavaleiro foi enviado para recuperá-lo.

Não permita que nada detenha você.
Ela também disse isso a Tarek.

– Esteja preparado. Um Cavaleiro de Cristo também pode estar presente.

Tarek se enrijeceu, sua sombra se tornando uma escultura de gelo negro. A voz dele soou num sibilar baixo, usando o nome antigo para designar um homem daqueles como se fosse uma praga:

– Sanguinista.


7

26 de outubro, 16:44, horário de Israel

Massada, Israel

Erin olhou ao redor da tenda vazia furtivamente. Jordan tinha lhe dito para esperar ali dentro até que ele voltasse. Aquilo dava-lhe alguns minutos sozinha. Ela tirou o celular do bolso e checou suas mensagens.

Uma mensagem de texto de Nate:
“Não consigo entrar em contato com a embaixada. Ocupadíssimos por causa do terremoto. Vc bem?”
Preocupada com a possibilidade de Pearlman aparecer, ela digitou a resposta rapidamente:
“Estou. Situação aqui legítima. Notícias de Heinrich?”
“Pode me ligar?”
A mensagem de texto ficou borrada e ela piscou os olhos. Não podia ligar para ele. Alguém ouviria. Ela não tinha dúvida de que Pearlman destruiria seu telefone, se a apanhasse usando-o de novo.
“Não”, ela enviou a mensagem em resposta. “Diga-me. Agora.”
Mais uma pausa, e então:
“Heinrich não resistiu.”
Erin se deixou cair na cadeira de Sanderson. Heinrich estava morto. Tinha morrido em um hospital a milhares de quilômetros de casa por causa dela. Ela o deixara sozinho na trincheira para ir buscar pincéis de que não precisava só para se poupar de uma discussão. O que diria aos pais dele? O cheiro de sangue vindo da lata de lixo cheia de luvas usadas pairava no ar. Erin lutou contra uma ânsia de vômito.

– Doutora? – Jordan enfiou a cabeça por um canto. – Estamos prontos se...

Ele entrou na tenda.

– Erin, você está bem?

Ela levantou a cabeça para olhar para ele. Sua voz parecia vir de muito longe.

– Erin? Aconteceu alguma coisa? – Ele atravessou a tenda em dois passos rápidos.

Ela sacudiu a cabeça. Se contasse a ele sobre a morte de Heinrich, perderia o controle bem ali, numa minúscula tenda de lona no meio de um campo de cadáveres.

Ele lhe deu um olhar preocupado.

Sem conseguir encontrar os olhos dele, ela se virou para o telefone e digitou uma resposta para Nate. Duvidava que Jordan fosse se importar.
“Entendido. Ligo quando puder.”
Ao terminar, ela enfiou o telefone no bolso.

– É a minha escavação – disse ela, se preparando para acreditar em sua própria mentira. – Foram anos de planejamento, e foi danificada pelo terremoto.

– Logo mandaremos você de volta.

– Eu sei. – Ele provavelmente pensaria que ela era louca por estar fora de si por causa de alguns ossos velhos enterrados na areia. Mesmo assim, se sentiu mais calma por ter conseguido extravasar pelo menos um bocadinho da angústia por causa de Heinrich. Era isso ou Jordan exercia um efeito calmante sobre ela. De que outro modo ela teria sido capaz de andar em meio ao morticínio que tinha visto do lado de fora da tenda? Erin respirou fundo pela última vez.

– Estou pronta – disse, levantando-se.

– Então venha por aqui. Vamos pegar e botar o seu arnês de escalada.

Ela o seguiu até a beira da fissura, onde ele lhe entregou uma mistura complicada de fitas e tiras. Sendo um modelo militar, não se parecia em nada com o equipamento com que estava habituada. Ela olhou para aquilo sem saber o que fazer.

Ele virou o conjunto ao contrário.

– Enfie uma perna por aqui. A outra por ali.

Ele ficou de pé atrás dela e a ajudou a enfiar o arnês. As mãos firmes dele se moveram ao redor do corpo dela, apertando as fitas e fechando as fivelas. O arnês foi instalado e a temperatura de seu corpo subiu o que lhe pareceu uns dez graus. Ela rapidamente fechou as fivelas e o mosquetão no peito.

Um helicóptero levantou voo. Ela lançou um olhar ao redor do planalto. O adolescente tinha ido embora, junto com a maioria da equipe e dos sacos mortuários. Parecia que apenas uma dúzia de pessoas ainda trabalhava em meio às sombras que se alongavam.

Jordan ficou na frente dela. Estendeu as mãos e apertou as fitas ao redor do alto de suas coxas de uma maneira ao mesmo tempo formal e de acordo com os regulamentos e incrivelmente pessoal. A cadeirinha se apertou ao redor do corpo dela, puxando-a na direção dele. Ela levantou o olhar para os olhos azuis dele, que ficavam mais escuros à medida que o sol se punha.

– Se houver alguma coisa de que eu precise saber antes de descermos – disse ele –, este é o momento de me dizer.

– Nada. – Ela queria ficar ali em cima em meio a todos aqueles corpos ainda menos do que queria descer para dentro do buraco. – Dia ruim.

– Sanderson tem uma cadeira prontinha para você. – Ele examinou o rosto dela. – Com o ROV em posição, você poderia monitorar nosso progresso daqui de cima.

Reunindo a coragem que achara que tinha perdido, ela forçou um sorriso.

– E deixar que só você se divirta?

Ele lhe lançou mais um olhar preocupado antes de voltar para junto de seus homens.

De ambos os lados, homens lançavam cordas pela borda. Cobertores azuis estendidos ao longo da beira da fissura protegiam as cordas e diminuíam a fricção entre elas e as pedras quebradas e pontiagudas da borda. Eles pareciam saber o que estavam fazendo. Mesmo assim, ela tornou a verificar as cordas.

Sanderson se aproximou atrás dela. Ele não iria descer, estava apenas ajudando os outros a se preparar. Entregou-lhe alguma coisa do comprimento e da largura de uma caneta.

– O sargento me disse para dar à senhora um dardo de atropina – disse ele. – É melhor enfiá-lo dentro da meia.

– Para que serve isto?

– Se for exposta ao gás misterioso, tire a tampa e injete na coxa.

O medo fez seu peito se contrair só de pensar naquilo.

– Pensei que não houvesse gás ativo lá embaixo.

– É só uma precaução, mas tenha cuidado. Este negócio é forte. Não use, a menos que saiba que foi exposta. A atropina faz o seu coração acelerar como louco. É forte o suficiente para explodi-lo se não estiver envenenada. Também funciona rápido.

– Nós não deveríamos estar usando trajes de biossegurança?

– São volumosos demais para usar fazendo rapel. E as fitas rasgariam o tecido. Não se preocupe, ao primeiro sinal dos sintomas – náusea, sangramento – use a agulha. Deve conseguir viver por tempo suficiente para nós a tirarmos de lá.

Ela examinou o rosto sardento dele para ver se ele estava brincando, tentando assustá-la.

Ele apertou o ombro dela.

– Vai ficar bem.

Ela não se sentia bem. Com a respiração um pouco acelerada, levantou a perna da calça e enfiou o dardo na meia.

O tenente Pearlman, junto com dois outros soldados – um jovem israelense e um americano mais velho –, foram até a fissura. O americano tinha cabelo castanho espetado e carregava uma mochila no ombro. Ela leu o nome impresso com estêncil na farda: McKay.

Na mochila havia três letras proeminentes: DME.

Ele percebeu o olhar dela.

– Divisão de Materiais Explosivos. Eu faço coisas explodirem.

Eles deviam estar planejando detonar quaisquer recipientes intactos que encontrassem lá embaixo. Ela deveria estar mais preocupada, mas o choque causado pela morte de Heinrich a deixara embotada demais para entrar em pânico.

McKay estendeu a mão para ela. Erin a apertou. Ele era um homem grande, faltavam-lhe apenas alguns cheeseburgers para ter uma barriga, e era uma década mais velho que os outros. Ela calculou que estivesse no início da casa dos 40. Ele lhe deu um sorriso largo enquanto apertava sua mão.

– É a parceira de escalada mais bonita que eu tenho em um século. – Ele piscou o olho para Erin, e ela tentou sorrir.

Ele seguiu para a borda da fissura como se estivesse se aproximando de um meio-fio. Ela se posicionou ao seu lado e olhou para baixo. Sombras obscureciam o fundo. A fissura era larga o suficiente para descerem fazendo rapel sem preocupações, mas mesmo assim ela estremeceu. Aquela coisa de bordas ásperas dentadas não pertencia àquela montanha.

McKay e Cooper prenderam o equipamento de rapel deles a um par de cordas.

Ela pegou uma corda livre e fez o mesmo, puxando-a duas vezes para checar.

Mais um membro da equipe de Jordan – uma mulher chamada Tyson – se ajoelhou ao lado da fissura. Ela lançara uma longa mangueira dentro do buraco. Ao lado de seu joelho havia um cromatógrafo.

– O que diz a leitura, Tyson? – perguntou Jordan.

– Picos de nitrogênio, oxigênio, argônio. – Ela manteve os olhos na tela. – Vestígios de tudo que se esperaria. Nenhum gás tóxico, sargento.

– Continue monitorando, cabo. – Jordan se virou para encará-los. – E tratem de manter a atropina em prontidão.

– O que estamos esperando, sargento? – Cooper estava debruçado no abismo. A corda parecia fina demais para sustentar seu peso, mas seus olhos dançavam com adrenalina. Um escalador nato.

Jordan fez um círculo no ar com o braço.

– Rangers, sigam na frente!

Com um grito de alegria de Cooper e um suspiro cansado de McKay, o par desceu de costas pela face da parede rochosa com a mesma facilidade com que andariam no chão.

Os israelenses prenderam os mosquetões a seguir e desceram pela borda.

Tyson mexeu em seu equipamento de monitoração. Ela não usava o arnês, portanto deveria ficar ali em cima também.

Aquilo deixava apenas Erin e Jordan. Ele avançou com uma arma pesada pendurada nas costas, então se prendeu na corda ao lado dela. Depois de pronto, inclinou-se e testou a corda de Erin.

– Bem amarrada.

– Pode apostar.

Jordan lançou-lhe um sorriso rápido, se inclinou para trás e deu um grande passo para baixo. Depois olhou para cima, o rosto sério, as palavras firmes:

– Quando quiser. Eu estarei bem ao seu lado.

Ela se inclinou para fora, sentiu as mãos abrirem e fecharem, deixando a corda escorregar através dos dedos enluvados enquanto recuava – e logo em seguida, quando viu, estava de pé ao lado de Jordan na face do penhasco.

16:54 – Três minutos antes do pôr do sol

Quando suas botas bateram no chão, Jordan automaticamente fez um inventário de suas armas. Bateu na pistola no coldre do quadril, uma Colt 1911, então checou o punhal KA-BAR preso ao tornozelo. Mas sua principal arma – a Heckler & Koch MP7 – estava pendurada numa tira sobre o ombro direito. A submetralhadora automática disparava balas de aço reforçado com a velocidade de 950 por minuto, capazes de transformar um colete de Kevlar à prova de balas em um queijo suíço.

Rapidamente, checou a trava de segurança da arma, o clipe de munição e o visor óptico, certificando-se de que não fosse bater em nada na descida. Ele pegou Erin olhando.

– Você precisa de todo esse poder de fogo aqui embaixo? – Erin dobrou as luvas na metade e as enfiou no bolso de trás.

Ele deu de ombros.

– É equipamento padrão de operação para minha equipe.

Antes que ele pudesse dar maiores explicações, a voz de Sanderson crepitou pelo rádio em seu fone de ouvido:

– Sargento, temos um helicóptero de carga israelense se aproximando. Imagino que tenham vindo buscar o restante dos corpos.

O helicóptero de evacuação tinha chegado antes da hora prevista, mas tudo bem. Jordan queria tirar todo mundo daquela maldita montanha tão cedo quanto fosse possível. Ele tocou no fone.

– Entendido.

Ele e Erin se juntaram ao restante da equipe reunida junto a uma fenda estreita na face do penhasco. O cabo do ROV descia por ela e desaparecia na escuridão.

Ele lançou um olhar rápido para Erin. Que diabo tinha acontecido com ela na tenda? De início havia pensado que talvez ela tivesse medo de altura e estivesse preocupada com o rapel, mas enfrentara a descida sem pestanejar. Ele desconfiava que de fato ela tivesse a experiência de mais de cem escaladas. Portanto, devia ter visto ou ouvido alguma coisa durante os poucos minutos em que estivera sozinha na tenda que a tinha derrubado. Não achava que ela lhe tivesse contado toda a verdade sobre o assunto. Agora parecia estar melhor, mas ele esperava que o que quer que fosse não afetasse a missão.

Cooper tirou a cabeça da fenda de sessenta centímetros por onde o ROV tinha passado e atirou um bastão fluorescente, iluminando o caminho adiante.

– Aquele túnel feito pelo homem se abre logo depois desta fenda.

De mãos nos quadris, McKay examinou a pequena abertura.

Jordan deu-lhe uma palmadinha no ombro.

– A passagem é estreita, mas você deve conseguir.

McKay sacudiu a cabeça.

– Dito por um sujeito magricela que mal consegue levantar seu próprio peso.

Jordan não era magricela e com certeza conseguia levantar mais do que isso. Mas ele passaria por ali. Para McKay, com o equipamento completo seria um bocado apertado.

Cooper sorriu larga e abertamente.

– Você poderia ficar de cueca e se lambuzar de gordura.

– E oferecer um espetáculo gratuito? De jeito nenhum.

O tenente Pearlman estava parado de braços cruzados, franzindo a testa. O outro soldado israelense se movia inquieto de um pé para o outro.

Jordan não viu motivo para demora. O sol estava se pondo, e ele queria acabar com aquilo rapidamente. Ajustou a lâmpada no ombro.

– Vamos lá.

16:57 – Pôr do sol

Ajoelhando-se, Erin observou os outros entrarem em fila na fenda. Ela respirou cautelosamente. Esperava sentir um odor químico, apesar de Tyson e Sanderson terem considerado o ar inofensivo. Em vez disso, sentiu cheiro de mofo mesclado com o cheiro de ar velho que vinha de lugares abandonados por muito tempo. O cheiro conhecido e estranhamente confortador de uma velha tumba.

Ela bateu com a mão no dardo em sua meia e se levantou para seguir Jordan na abertura estreita. Ásperas paredes de pedra rasparam em seus dois ombros, e ela se virou de lado, esperando que McKay fosse conseguir passar sem perder muita pele.

O ar parecia muito mais fresco do que no topo da montanha. Abaixo, seus tênis afundaram na areia. O bastão fluorescente lançava um estranho clarão amarelado no túnel. Quando chegou ao bastão, resistiu a um impulso de apanhá-lo e enfiá-lo no bolso. Eles estavam poluindo um sítio arqueológico. Ela fez uma anotação mental de recolhê-lo na saída. Manteve a mão roçando pelo teto da fenda, para se certificar de não bater com a cabeça no teto enquanto avançava, ansiosa para chegar à tumba e iniciar a exploração.

Mais à frente, McKay deixou escapar um monte de pragas e palavrões quando conseguiu sair da abertura, a maioria reclamando do aperto. Cooper deu gargalhadas maliciosas.

Erin se descobriu sorrindo. Ela com frequência trabalhava com soldados, quase sempre em sítios localizados em áreas de conflito. No passado, havia considerado militares um mal necessário, mas já sentia uma estranha ligação com aquele grupo, criada pelo horror e pelo derramamento de sangue acima, e pela tensão ali embaixo.

Afinal, ela e Jordan chegaram ao fim da passagem estreita. Ele saiu para o túnel feito pelo homem, depois a ajudou a sair. No corredor, ele levantou a mão, indicando que ela deveria ficar onde estava.

– Vamos esperar pelo sinal de tudo limpo da equipe.

Ele estava no comando ali embaixo, por enquanto. Ela parou e tocou na parede do túnel, sentindo as reentrâncias de bordas retas, imaginando cinzéis, martelos e homens suarentos. Então se ajoelhou e tocou no solo, pegando um punhado de terra e deixando-a escorrer por entre os dedos.

Alguém tinha escavado aquilo há milhares de anos. Quem teria caminhado por ali? E por quê?

A alguns metros de distância, pedaços de pedra fechavam o túnel moderno que ela vira nas câmeras do rover. O túnel devia ter desmoronado. Ela tocou nas marcas de perfuradeira nas bordas. Do século XX. Mas quando?

Ela avistou o que pareciam ser tiras elásticas e a estrutura facial de uma máscara contra gases da era moderna esmagada sob um pedregulho. Erin andou em direção a ela, levando Jordan consigo. Se aquela tivesse sido uma expedição oficial, teria tido conhecimento dela. Se fosse extraoficial, como eles tinham escondido uma operação tão grande em um sítio tão famoso? Deveria ter havido muita coisa acontecendo na época.

Como uma guerra.

Antes que eles pudessem examinar qualquer outra coisa, o rádio de Jordan crepitou. Estava alto o suficiente para que ela ouvisse a voz diminuta de Cooper dizer:

– A câmara está limpa, sargento. Vocês vão querer vir depressa até aqui. Aconteceu uma merda muito estranha.

– Estou indo. – Jordan acenou para que ela o acompanhasse. – Fique ao meu lado, doutora.

Ela o seguiu, fazendo uma lista mental de coisas a fazer: usar um detector de metais para procurar ferramentas, retirar fuligem do teto para avaliar o tipo de lanternas usado pelos trabalhadores, aplicar um molde de gesso à parede para saber que ferramentas tinham sido usadas para escavá-la.

O tipo de coisas que Heinrich sabia fazer bem. Ela tropeçou ao dar um passo e Jordan segurou-lhe o braço, a mão quente e tranquilizadora, os olhos preocupados.

– Doutora?

Ela sacudiu a cabeça e fez sinal para que ele continuasse. Depois de mais nove metros, eles chegaram à entrada da câmara que ela vira através das câmeras do ROV. Uma porta de acesso antiga e bem-feita.

A porta era estreita demais para duas pessoas passarem ao mesmo tempo. Ela ficou para trás e deixou Jordan entrar primeiro. Estimou que a entrada tivesse pouco mais de um metro e oitenta de altura e estendeu a mão para cima para tocar no arco, então avançou atrás dele.

Seus braços se arrepiaram. O ar estava ainda mais frio ali. A luz discreta de três bastões fluorescentes que tinham sido atirados ao acaso dentro do recinto revelava um piso bem-feito de calcário, o teto riscado de fuligem, paredes de blocos de pedra bem encaixados. Ela teria adorado poder tirar fotografias da poeira no chão, talvez ver as impressões das pegadas dos ladrões de sepultura que tinham aberto o sarcófago. Mas Jordan e seus homens já tinham pisoteado tudo e coberto as pegadas deles com as suas.

Os outros estavam reunidos do outro lado do recinto, agrupados no ponto mais afastado do sarcófago, de frente para a parede. Devia haver alguma coisa muito interessante ali. Assim que tivesse uma melhor ideia global do sítio, iria se juntar a ele.

– Por favor, não toquem em nada – advertiu ela, esperando que eles a ignorassem.

Ela entrou, passando pelo ROV, e atravessou o recinto até o sarcófago de pedra. Como esperara, tinha sido entalhado em uma única pedra, os lados finamente trabalhados, cada canto em um ângulo perfeito, cada lado perfeitamente liso. Ela se maravilhou mais uma vez com o trabalho preciso daqueles antigos artesãos. Suas ferramentas podiam ser consideradas primitivas, mas os resultados com certeza não eram. Ela lançou um olhar para a tampa que jazia inteira de um dos lados, no chão ao lado da sepultura que cobrira por tanto tempo. Estranho vê-la intacta, uma vez que ladrões de sepulturas geralmente quebravam a tampa dos sarcófagos quando a retiravam.

Erin procurou pelas polias ou cordas que deveriam ter sido usadas, mas os saqueadores tinham levado suas ferramentas consigo. Isto também era incomum.

Ela deu um passo adiante – mas alguém a deteve com a mão.

– O que eu disse sobre se manter junto de mim? – perguntou Jordan.

Juntos, ela e Jordan se aproximaram do sarcófago. Quando finalmente ela estava perto o suficiente para tirar fotografias, Erin tirou a única ferramenta que ainda tinha consigo: o telefone celular. Com ele tirou múltiplas fotos dos lados do sarcófago e das pilhas de cinzas nos cantos, desejando ter nas mãos a sua Nikon. Mas estava em Cesareia.

Ela arriscou uma espiada no interior do sarcófago. Nada, apenas pedra nua, manchada de Borgonha escuro. O que teria criado uma mancha como aquela? Sangue quando secava ficava marrom. A maioria das resinas acabava ficando preta.

Também tirou algumas fotos dos jarros de barro vazios ao redor do sarcófago. Eles deveriam ter sido usados para trazer líquido até ali. Geralmente eram usados para vinho, mas por que encher um sarcófago de vinho?

Enquanto ela se endireitava, Jordan se virou da parede ao fundo. Mesmo sob aquela luz precária, ela percebeu que ele estava abalado.

– Doutora, quer explicar esta aqui?

Havia uma macabra escultura pendurada na parede, como um crucifixo blasfemo. Ela avançou pelo canto do sarcófago. A cada passo o horror crescendo em seu íntimo.

Não era uma escultura.

Pendurado na parede, estava o corpo dessecado de uma garota pequena, talvez de 8 anos de idade, vestida com uma roupa esfarrapada e manchada. Um punhado de flechas enegrecidas a prendiam na parede, a quase um metro de altura do chão. Elas penetravam seu peito, pescoço e coxa.

– Flechas de besta – disse Jordan. – Parece que são feitas de prata.

Prata?

Ela parou diante da criança, impressionada com sucessivos anacronismos. As vestes cor de Borgonha da garota pareciam muito antigas, tanto em estilo quanto em grau de decomposição. A ornamentação e o padrão do tecido datavam do mesmo período da queda de Massada. Provavelmente tinha sido feito em Samaria, talvez na Judeia, mas no mínimo tinha dois mil anos.

O cabelo escuro emoldurava o rosto afundado. Os olhos estavam serenamente fechados, o queixo pendia para o peito, os lábios muito ligeiramente separados, como se ela tivesse morrido em meio a um suspiro. Até os cílios pequeninos estavam intactos. A julgar pela quantidade de tecido mole ainda preso a seus ossos, a garota havia morrido apenas algumas décadas atrás.

Décadas. Como era possível?

Havia um objeto caído sob os dedos dos pés da menina. Erin se ajoelhou ao lado dele.

Uma boneca...

O coração dela se contraiu. O pequenino brinquedo ressequido tinha sido feito com pedaços endurecidos de couro e restos de pano, e estava manchado do mesmo tom de Borgonha que a veste. O braço frouxo da menina parecia estar estendido para o brinquedo, para sempre incapaz de alcançá-lo.

A boneca abandonada abalou Erin profundamente, pois a fez se lembrar de outra semelhante, também feita à mão. Ela a tinha enterrado com sua irmãzinha caçula. Erin engoliu em seco, lutando para conter as lágrimas, sentindo-se tola por causa delas. A morte de Heinrich continuava a desequilibrá-la, e naquele momento precisava se controlar diante dos soldados.

Ainda de joelhos, ela levantou o olhar para a outra mão da menina, semiescondida debaixo do corpo, e viu um brilho entre os dedos cerrados.

Ela apoiou a palma da mão contra a parede, sentindo a argamassa se projetando para fora entre os tijolos. Embora o corpo fosse resultado de um assassinato recente, não de um antigo, ela tratou os restos mortais com respeito. Aquela criança era a filha de alguém.

Erin estendeu o braço e pegou aquela mão. O braço da garota tremeu, então saltou para cima. O corpo mumificado tremeu por inteiro contra a parede como se a criança estivesse viva.

Erin caiu para trás com um grito abafado.

Alguém agarrou-lhe o ombro.

– Mais um choque secundário – disse Jordan.

Poeira fina peneirava do teto de pedra. Atrás de Erin, um tijolo caiu com um baque surdo no chão. Ela prendeu a respiração até que o abalo cessasse.

– Os abalos estão ficando piores – disse Jordan. – Não há nada aqui para nós. Está na hora de sairmos.

Ela resistiu ao puxão do braço dele. Aquilo agora era o sítio dela, e ainda havia coisas ali para explorar. Aproximou-se da parede e de novo estendeu o braço para pegar a mão da garota.

Jordan observou a atenção dela e se agachou ao seu lado.

– O que foi?

– Parece que a menina agarrou alguma coisa antes de morrer.

O protocolo arqueológico ditava que nada fosse tocado antes de ter sido fotografado, mas aquela garota tinha sido assassinada há tanto tempo que por uma vez Erin deixaria de lado o protocolo.

Estendendo a mão, ela empurrou e abriu os dedos da garota. Tinha esperado que estivessem secos e quebradiços, mas os descobriu estranhamente maleáveis. Surpreendida com o estado do corpo, ela não conseguiu pegar o objeto quando ele se soltou e caiu na terra.

Ela não precisava de um doutorado em arqueologia para reconhecer aquele artefato.

Jordan praguejou baixinho.


Estarrecida, ela olhou fixamente para a medalha, para a cruz de ferro, para a suástica.

Alemã.

Da Segunda Guerra Mundial.

Ali estava a identidade dos ladrões de sepultura, os que tinham feito a perfuração até ali com ferramentas modernas. Mas por que aquela medalha estava apertada entre os dedos mumificados de uma garota dentro de uma tumba judaica antiga?

Jordan cerrou um punho.

– Os nazistas devem ter chegado aqui primeiro. Invadiram e saquearam este lugar.

As palavras dele esclareciam pouco. Hitler era obcecado pelo ocultismo, mas o que ele havia esperado encontrar em Massada?

Ela examinou a roupa da garota. Por que os nazistas teriam tido tanto cuidado em vestir uma criança com réplicas do primeiro milênio, apenas para matá-la com uma besta, as flechas prendendo-a na parede?

Erin imaginou a garota arrancando a medalha do uniforme de um de seus torturadores, escondendo-a, roubando a prova de quem a matara. Mais uma vez, sentiu uma onda de simpatia por aquela criança – e pela coragem daquele ato final – dominá-la. As lágrimas mais uma vez lhe marejaram os olhos.

– Você está bem? – O rosto de Jordan estava perto o suficiente para que ela visse uma cicatriz fina no queixo dele.

Para esconder as lágrimas, ela levantou o telefone e tirou várias fotos da medalha. A garota tinha feito um grande esforço para obter uma pista de seu assassino. Erin registraria a prova que ela obtivera.

Depois que ela baixou o telefone, Jordan estendeu a mão para a poeira acumulada, pegou a medalha e a virou ao contrário.

– Talvez possamos descobrir quem fez isto. Os oficiais da SS com frequência entalhavam seus nomes no reverso de suas medalhas. Seja quem for este canalha, eu quero o nome dele. E se de alguma forma ainda estiver vivo...

Naquele momento ela gostou de Jordan mais que nunca. Ombro a ombro, eles examinaram o pequeno disco de metal. Não havia nenhum nome no reverso da medalha, apenas um estranho símbolo.


Ela tirou uma foto da medalha na palma da mão de Jordan, então leu em voz alta as palavras escritas ao longo da borda:

– Deutsches Ahnenerbe.

– Isto faz sentido – disse Jordan em tom azedo.

Ela o olhou com curiosidade. História recente da Alemanha não era sua especialidade.

– Como assim?

Ele inclinou a medalha para um lado e para outro.

– Meu avô lutou na Segunda Guerra Mundial. Ele me contou histórias. Este foi um dos motivos por que me alistei. E eu sou um apreciador de história. A Deutsches Ahnenerbe era uma seita secreta de cientistas nazistas com um interesse especial pelo ocultismo que correu o mundo em busca de tesouros perdidos e de provas da existência de uma raça ariana antiga. O bando de ladrões de túmulos de Himmler.

E eles tinham chegado ali antes. Ela sentiu um desagradável sentimento de derrota. Estava habituada a estudar túmulos que já tinham sido saqueados, mas aqueles roubos geralmente tinham ocorrido na Antiguidade. Incomodava-a que aquela tumba tivesse sido saqueada apenas algumas décadas atrás.

Ele tocou no centro do símbolo.

– Este não é o símbolo habitual deles. Normalmente os Ahnenerbe eram representados por uma espada envolta por uma fita. Isto é algo novo.

Curiosa, ela tocou o símbolo central.

– Parece uma runa norueguesa. Do antigo Futhark. Talvez uma runa odal.

Ela a desenhou na areia do chão com a ponta do dedo.


– A runa representa a letra O. – Ela se virou para Jordan. – Será que esta poderia ser a inicial do dono?

Antes que ela pudesse contemplar mais, McKay berrou:

– Parado! Mãos ao alto!

Espantada, ela se virou.

Jordan levou ao ombro a pistola metralhadora Heckler & Koch e se virou em direção à entrada da tumba. Mais uma vez a terra tremeu, rochas estremeceram, soltando poeira – e das sombras uma forma escura entrou no recinto.


8

26 de outubro, 17:04, horário de Israel

Massada, Israel

– Não atirem! – Jordan gritou, levantando o braço esquerdo. – É o padre.

Ele baixou o cano da submetralhadora e caminhou até o clérigo. Era bastante estranho o fato de o padre ter descido até ali, mas ele reparou em algo ainda mais estranho.

Ele não está usando nenhum equipamento de rapel.

Jordan se postou diante dele assim que o abalo secundário passou.

– O que o senhor está fazendo aqui, padre?

O padre Korza era cinco centímetros mais alto que Jordan, mas sob o casaco longo aberto era mais esguio e mais musculoso, ágil como um chicote. Os planos duros de seu rosto eram claramente eslavos, suavizados apenas pelos lábios carnudos. Usava o cabelo preto comprido até o colarinho – um tanto longo demais para um padre.

Mas foram aqueles olhos, observadores e negros – muito negros –, que fizeram o coração de Jordan disparar. Os dedos dele involuntariamente se cerraram em sua arma.

Ele é apenas um padre, recordou a si mesmo.

O padre Korza encarou Jordan por mais um momento, então seus olhos se desviaram, abarcando o recinto inteiro em um único olhar.

– O senhor me ouviu, padre? Eu lhe fiz uma pergunta.

As palavras do padre foram sussurradas, ofegantes, estranhamente formais:

– A Igreja tem direitos preferenciais anteriores a tudo que está dentro desta cripta.

O padre Korza avançou para passar por ele. Jordan tentou agarrar-lhe o braço – mas só pegou ar. De alguma forma o padre se desvencilhou dele com um movimento ágil e ligeiro e saiu andando a passadas largas em direção ao sarcófago aberto.

Jordan o seguiu, observando os olhos do padre se fixarem na criança pregada na parede, seu rosto indecifrável. Ao chegar à tumba, o homem lançou um olhar dentro do sarcófago vazio, e visivelmente se retesou, ficando imóvel como uma estátua.

Erin se aproximou dele pela parede oposta. Levantou seu telefone celular, claramente tentando encontrar um sinal, na esperança de conseguir enviar e transferir suas fotografias para algum lugar seguro, sempre pensando como uma pesquisadora.

Quando ela alcançou o sarcófago, Jordan se manteve entre ela e o padre Korza. Por algum motivo, ele não a queria perto do padre.

– Esta é uma área restrita – advertiu Jordan.

Pearlman o apoiou, pondo a palma da mão sobre a arma.

– O senhor não deveria estar aqui, padre Korza. O governo israelense deu orientações rígidas sobre a sua visita a este lugar.

O padre ignorou ambos. Ele se concentrou em Erin.

– Você encontrou o livro? Ou um bloco de pedra deste tamanho? – Ele estendeu as mãos.

Erin sacudiu a cabeça.

– Não encontramos nada disso, apenas a garota. Parece que os alemães saquearam esta tumba durante a guerra.

A única reação dele foi um ligeiro estreitamento dos olhos.

Quem é este sujeito?

Jordan pôs a mão na coronha de sua pistola metralhadora, esperando ver o que o padre faria a seguir. Brusco e taciturno, o padre evidentemente tinha problemas com autoridade, mas até aquele momento não dera sinais externos de constituir uma ameaça.

Perifericamente, Jordan observou McKay deslizar a mão para a faca.

– Calma, cabo – ordenou. – Devagar.

O padre ignorou McKay, mas subitamente ele se retesou, se imobilizando em meio ao movimento de se virar, a orelha erguida para o lado. Ele fez contato visual com Jordan, mas suas palavras foram dirigidas a todos:

– Todos vocês têm que sair daqui. Agora.

A última palavra estava carregada de urgência.

Do que ele está falando?

A resposta veio do fone de ouvido de Jordan: um grito irrompeu, cheio de sangue e dor, alto o suficiente para golpear-lhe a cabeça.

Sanderson.

Lá de cima.

O grito foi interrompido por uma explosão de estática. Ele tocou no microfone na garganta.

– Sanderson! Responda!

Nenhuma resposta.

– Cabo, dê retorno!

O padre se moveu rapidamente para a entrada. Cooper e o jovem soldado israelense o bloquearam, impedindo-o de sair. Havia armas empunhadas por todos os lados.

No limiar da tumba, o padre levantou a cabeça para o teto, seu corpo inteiro ficando rígido, como um grande felino antes de um ataque. As suas palavras seguintes foram apavorantes em sua frieza:

– Recuem de costas contra as paredes. – Ele se virou e encarou Jordan olhos nos olhos. – Faça o que estou dizendo ou todos vocês vão morrer.

Jordan levantou a arma.

– O senhor está nos ameaçando, padre?

– Não eu. Os que vêm por aí.

17:07

Erin se esforçou para compreender o que estava acontecendo. O olhar do padre encontrou o dela. Por um momento, um lampejo de temor aflorou através dos contornos pálidos do rosto do padre. Por tempo suficiente para fazer-lhe o coração subir à garganta. Ela percebeu que ele temia pela segurança deles, não pela sua própria. Uma tristeza terrível pesava-lhe nos olhos enquanto ele desviava o olhar, como se já sentisse pesar por eles.

Ela engoliu, a boca subitamente seca.

Mas Jordan claramente não iria desistir tão facilmente.

– O que está acontecendo? Eu tenho homens lá em cima. Do mesmo modo que o tenente Pearlman.

De novo aquele olhar pesaroso.

– A esta altura, eles estão mortos. Como vocês estarão se não...

Um arquejar se elevou da boca de Cooper, que estava ao lado da porta. Todo mundo se virou. Ele abriu a boca, mas apenas sangue jorrou dela. Ele caiu de joelhos, então de cara no chão. O punho negro de um punhal se projetava da base de seu crânio.

Erin gritou o nome dele. Os soldados levantaram as armas como se fossem um. Ela passou para trás deles, saindo da linha de fogo.

Além do corpo de Cooper havia uma forma escura agachada, uma silhueta esculpida de sombras. Jordan disparou múltiplas rajadas, as explosões ensurdecedoras no espaço fechado. A sombra tremeu de volta para a escuridão – mas não antes de agarrar o jovem soldado israelense que ainda estava perto do limiar da porta. Erin viu um rebrilhar de aço, e então ele desapareceu, arrancado dos pés e para dentro do túnel negro.

Jordan parou de disparar, claramente temeroso de ter acertado o soldado.

Um grito, cheio de terror e sangue, ecoou – então silêncio.

O tenente Pearlman deu um salto à frente, de arma erguida.

– Margolis!

O braço coberto de negro do padre empurrou o israelense para trás.

Com violência.

– Fiquem aqui – disse o padre Korza, e então desafiou suas próprias palavras.

Com um virar do punho, uma lâmina apareceu em seus dedos como se tirada do ar. Ele exibiu o gume: era uma foice de prata, um punhal com a lâmina curva, semelhante a uma espécie de garra pré-histórica.

Com um panejar do casaco, ele mergulhou pelo limiar da porta e desapareceu.

Imediatamente uma lamúria selvagem ecoou vinda da escuridão.

O som despertou temores enterrados nos ossos de Erin e a imobilizou onde estava.

Mesmo os soldados experientes pareciam senti-lo. Jordan a afastou mais da entrada, McKay e Pearlman os flanquearam, as armas apontadas para a porta. Recuando, se reagrupando, eles procuraram proteção atrás do sarcófago.

Um único grito penetrante rasgou o ar vindo do túnel.

Jordan levantou Erin com tanta facilidade como se seus ossos fossem ocos, sua carne, sem substância. Ela já se sentia assim. Como se pudesse sair flutuando.

Ele a enfiou no sarcófago aberto.

– Fique abaixada, fique escondida.

O tom de aço em sua voz e o ferro nos olhos a trouxeram de volta para sua própria pele – não que ela quisesse estar lá. Ele a empurrou mais para baixo.

– Compreende?

– Compreendo. – Ela queria se esconder, cobrir a cabeça, fechar os olhos e não ver o horror, mas, quando o fez, não ver nada a deixou ainda mais apavorada. Seus dedos se agarraram à borda do sarcófago. Como todo mundo, ela olhou para a boca negra do túnel.

À esquerda, um som agudo e um clarão atraíram seu olhar. McKay tinha um bastão fluorescente aceso na mão.

– Atire! – Jordan apontou para a saída escura.

McKay balançou o braço e arremessou o bastão pela porta. Ele bateu e quicou girando, deixando uma esteira de fogo, e mergulhou no poço de escuridão. A claridade empurrou para trás as sombras, junto com formas mais escuras. Erin perdeu a conta em quatro.

Aquilo deixava um vulto solitário no centro, de pé numa batina retalhada, iluminado por trás. Ele levantou um braço sobre os olhos, cego pelo súbito clarão. A outra mão empunhava um punhal de lâmina curva, a lâmina pingando sangue negro, rebrilhando com o reflexo de fogo.

– Padre! – gritou Jordan, levantando a arma. – Abaixe-se!

O aviso chegou tarde demais.

Como dois cães raivosos, formas escuras saltaram em cima do padre. Elas o derrubaram no chão. Ele caiu pesadamente sobre o bastão fluorescente, apagando-o com seu corpo. Erin se encolheu. A escuridão engoliu de novo a cena – mas não antes que um vulto saltasse por cima do padre e se arremessasse de cabeça na câmara.

Ele voou longe, bateu no chão de pedra, então saltou direto para eles, movendo-se com uma rapidez impossível. Um lobo? Não. Um homem vestido de couro marrom amassado, os braços bem abertos, um gancho de açougueiro erguido no ar por um braço musculoso.

Jordan caiu sobre um joelho e disparou, acertando o homem bem no meio do peito. A saraivada de tiros o levantou ao teto de pedra. Então ele caiu no chão, batendo com violência e se imobilizando.

Da porta, uma massa de sombras rolou para dentro do recinto. O padre lutava corpo a corpo com dois vultos vestidos de preto. Um terceiro saltou por cima deles.

O agressor correu baixo e ligeiro para cima do tenente Pearlman. Eles bateram na parede ao lado da garota crucificada e sumiram de vista. O rifle do israelense rugiu, disparando para cima, balas arrebentando fragmentos de pedra. Erin se deitou dentro da caixa de pedra.

Uma sombra se materializou acima dela. Ela viu um rebrilhar de dentes – dentes demais – e desejou ter uma arma ou uma faca. Cruzou os braços na frente do rosto e esperou para sentir os dentes em sua pele.

Em vez disso, balas arrebentaram o torso acima, e um peso caiu sobre Erin. Ela lutou para sair de debaixo do corpo, seu jeans molhado de sangue. Rangendo os dentes, ela revistou o corpo em busca de uma arma. Não havia arma de fogo, mas ele tinha um khopesh egípcio com uma longa lâmina curva. Ela vira espadas semelhantes em hieróglifos e pinturas, mas armas como aquela não eram usadas em combate havia setecentos anos.

McKay espiou por cima da borda do sarcófago.

– Você está bem?

Antes que ela pudesse responder, ele desapareceu, golpeado no flanco. Ela se levantou sobre os joelhos, empunhando a espada.

McKay voou pelo aposento e bateu na parede, quebrando a cabeça. Caiu no chão, deixando uma risca de sangue na parede às suas costas.

Uma forma escura saltou em cima de McKay e atacou-lhe a garganta.

17:08

Jordan estava imobilizado debaixo de um agressor mais forte do que qualquer pessoa com quem já tivesse lutado. Tinha perdido sua arma. O sujeito também era absurdamente rápido.

Jordan se retorceu e baixou a mão para o tornozelo – e o punhal KA-BAR embainhado lá. Ele o soltou enquanto mãos ossudas o atacavam. Uma cerrou-lhe a garganta, a outra manteve seu braço imobilizado contra a pedra.

Unhas se enterraram fundo, rasgando a carne.

Erguendo o braço livre com força, ele enterrou a lâmina do KA-BAR bem fundo na garganta do agressor, até o cabo, até acertar o osso, então rasgou para fora.

O corpo do homem ficou frouxo. Jordan tirou de cima de si o peso morto e rolou até ficar agachado. Sua atenção estava fixa em Erin, de pé no sarcófago, com uma espada curta de lâmina curva na mão. Ela parecia pronta para sair dali e ir ajudar McKay, que estava caído do outro lado do recinto, mas McKay agora estava além da ajuda de qualquer pessoa. Como Pearlman, também caído no chão ali perto, sua garganta tinha sido dilacerada.

Jordan disparou e acertou o agressor de McKay bem no peito, derrubando-o de cima do corpo de seu companheiro. Um movimento fez sua cabeça girar de volta para Erin.

Uma sombra pairava atrás dela.

Ele saltou para ela, mas foi empurrado para o lado. Parecia que ele tinha sido atingido no braço por um caminhão em disparada. Jordan perdeu o equilíbrio e caiu batendo contra a parede.

Atordoado, viu o padre passar correndo por ele, derrubar Erin e se arremessar contra o agressor dela. Ele acertou o homem ensanguentado com o ombro e o empurrou para trás, fazendo-o bater contra a garota mumificada na parede. Osso seco explodiu sob o peso deles.

Korza saltou de pé e recuou um passo.

Seu oponente permaneceu onde estava, pendurado acima do chão, empalado e se retorcendo. As extremidades posteriores das flechas que tinham penetrado nele o mantinham no ar. Uma flecha se projetava para fora da garganta do homem. Dedos a esgravatavam. O sangue borbulhava ao sair do ferimento como se fervesse.

Então Korza atacou, cortando a garganta do homem com um golpe explosivo.

Jordan se pôs de pé de novo, ainda trêmulo, se agachou e procurou ao redor. O padre estava parado diante da parede, os ombros curvados sob a batina retalhada. Sangue escuro pingava de sua lâmina, das pontas de seus dedos. Jordan não sabia quanto do sangue vinha dos ferimentos do padre.

Ele manteve a lâmina erguida enquanto cambaleava em direção a Erin. Não via motivo para checar seus outros companheiros. Sabia o que era a morte quando a via. Até onde ele podia dizer, os únicos ainda vivos ali naquele recinto eram o padre, Erin e ele.

Jordan manteve um olhar cauteloso no padre, desconfiado de sua lealdade.

Com um rodopiar de seu casaco comprido, Korza caiu sobre um joelho, a cabeça baixa como se em oração – mas aquela não era a sua intenção. Ele agarrou alguma coisa caída no chão. O objeto desapareceu no bolso de sua veste enquanto se levantava.

A pequena boneca da criança havia sumido.

Em vez de ver como estava Erin, ele tinha ido pegar uma boneca? Jordan desistiu de tentar compreender o homem.

– Erin? – ele chamou quando chegou ao lado dela.

Ela se virou para ele, a espada erguida.

– Sou eu – disse, e virou a arma para o lado na alça, levantando as duas mãos, palmas para fora.

Seus olhos arregalados entraram em foco. E ela baixou a lâmina. Ele a tirou dos seus dedos e a largou no chão. Com o rosto branco, o olhar perdido, ela se deixou cair no canto do sarcófago. Ele a tirou de dentro do sarcófago e se sentou de costas para a parede fria de pedra com ela no colo. Ele a apalpou em busca de ferimentos. Parecia incólume.

O padre veio se juntar a eles. A mão de Jordan se aproximou da pistola, um braço protetor em volta dela. Quais eram as intenções dele?

– Acabamos com eles. Não há outros – sussurrou Korza como se numa prece. – Mas ainda não estamos em segurança.

Jordan lançou um olhar para o homem bastante machucado.

– Eles vão nos isolar aqui dentro – disse ele com tamanha certeza que Jordan acreditou.

– Como o senhor sabe...?

– Porque é o que eu faria. – Ele caminhou em direção à porta.

Jordan percebeu para onde ele estava indo. O ROV estava no chão, uma câmera apontada para eles, uma luz verde brilhando acima dela. O padre pisoteou as lentes. Metal e vidro se espatifaram sob o calcanhar e se espalharam pelo piso de pedra.

Jordan compreendeu, se lembrando do grito de Sanderson.

Eles estiveram nos observando, assistindo a tudo.


9

26 de outubro, 17:11, horário de Israel

Massada, Israel

Enquanto os últimos gritos ecoavam pelo cume da montanha, Bathory se agachou diante da tela agora escura do monitor, imobilizada pelo choque, presa entre o passado e o presente.

Ela havia testemunhado a batalha na tumba, seguida pelo massacre da tropa que enviara lá para baixo. A luta tinha sido rápida, mal iluminada, grande parte ocorrendo fora do alcance da câmera.

Mas ela também tinha visto os poucos momentos antes do combate caótico.

Tinha visto um soldado de capacete confrontar uma pessoa vestida de negro, de costas para a câmera. Mas tinha visto o clarão de um colarinho branco eclesiástico enquanto ele dera um único olhar para abarcar o aposento.

Seu sangue sofrido havia gelado com aquela visão de relance de seu inimigo.

Ali estava o Cavaleiro de Cristo mencionado na mensagem de texto.

Um Sanguinista.

Os dois homens tinham se enfrentado como carneiros durante o período da cruza. Talvez o soldado fosse resolver o seu problema para ela, mas o cavaleiro tinha passado pelo soldado e parado, olhando fixamente para a parede oposta – o que ele estava vendo?

Ela desejou que o alcance da câmera se estendesse até o fundo do recinto.

Daquelas sombras, saíra uma mulher em trajes civis, outra surpresa. Ela veio agitando o telefone na pantomima conhecida de alguém buscando sinal.

O cavaleiro havia se virado para a mulher e estendido as mãos para indicar um objeto do tamanho e da forma de um livro.

A respiração de Bathory havia acelerado.

A mulher havia sacudido a cabeça.

O cavaleiro tinha percorrido o circuito lento do recinto. A tumba parecia vazia, exceto pelo sarcófago. Não havia lugares prováveis para esconderijo. Quando os ombros do cavaleiro se curvaram, ela deixara escapar um suspiro.

Portanto, eles não tinham encontrado o livro.

Ou nunca estivera lá, ou fora roubado.

Então o cavaleiro tinha se apercebido da presença da equipe de Bathory, exigindo resposta rápida. Ele deveria ter sido derrotado, mas ela havia subestimado sua habilidade, também o apoio dado pelos soldados. Ele acabara com metade de suas tropas em segundos.

Pelo seu desempenho, ela soube que o cavaleiro abaixo não vestira aquela batina há pouco tempo, mas que era alguém mais velho, tão experiente quanto seus próprios homens.

Então, enquanto o cavaleiro atravessava a tumba para esmagar a câmera do ROV, ela teve uma visão completa e clara de seu rosto; o queixo com covinha, maçãs do rosto largas, eslavas, olhos escuros intensos. O choque do reconhecimento a imobilizara e a deixara se sentindo vazia.

Mas a vida não era um vácuo.

Para dentro daquele vazio, um ódio feroz e ardente fluiu, enchendo-a de novo, fazendo dela algo diferente, uma arma forjada com fúria e vingança.

Ela finalmente havia se movido, cerrando a mão em punho e arrebentando com seu anel de rubi antiquíssimo a tela escura do monitor. Como tanta coisa que ela possuía, o precioso anel estivera ligado à sua família por muito tempo.

Do mesmo modo que o cavaleiro.

Rhun Korza.

O nome a assustava tanto quanto a palma negra em seu pescoço – e lhe causava a mesma dor. Durante toda a vida, fora criada ouvindo histórias de como o fracasso de Korza lançara sua família, outrora orgulhosa, na pobreza e na desgraça ao longo de gerações. Ela passou os dedos na borda da tatuagem, uma fonte de agonia constante, mais uma dívida de sangue que ela devia àquele cavaleiro.

Ela teve uma visão daquela cerimônia há tanto tempo, em que estivera ajoelhada diante Dele, a quem tinha jurado servir, a mão Dele ao redor de sua garganta, fazendo a fogo aquela marca na forma da palma da mão e dos dedos Dele, prendendo-a a Ele para sempre, tornando-a para sempre sua serva.

Tudo por causa daquele cavaleiro.

Ela o tinha visto em milhares de sonhos, e sempre tivera esperanças de algum dia encontrá-lo vivo, para fazê-lo pagar pelos atos que tinham condenado gerações de mulheres de sua família ao sacrifício, a anos de tormento – escravizadas pelo sangue, destinadas a se arrastar, a servir, a esperar.

Este conhecimento veio acompanhado por outra verdade, uma tomada de consciência dolorosa.

Ela mais uma vez sentiu a mão Dele sobre sua garganta, queimando sua antiga vida.

Seu senhor devia ter sabido que Rhun Korza era o cavaleiro enviado a Massada para recuperar o livro. Mas aquele segredo não lhe fora contado. Ele a mandara para enfrentar Korza sem adverti-la com antecedência.

Por quê?

Seria isto para satisfazer suas diversões cruéis – ou havia algum propósito maior em tudo aquilo?

Se ela tivesse sabido que Korza estava naquela tumba, nunca teria mandado ninguém descer. Ela teria esperado que o cavaleiro subisse com o livro, ou de mãos vazias, fracassado, e o teria baleado quando saísse da fissura como se fosse uma mosca esmagada numa parede.

O massacre lá embaixo lhe dizia que Korza era perigoso demais para enfrentar em combate corpo a corpo, mesmo se ela enviasse os homens que lhe restavam lá para baixo atrás dele.

Mas havia outra maneira, uma maneira mais adequada.

A raiva em seu íntimo a endureceu com um novo propósito.

Antes que a imagem na tela escurecesse, ela avistara o corpo de um dos homens de sua equipe perto da entrada da tumba, carregando uma mochila no ombro. Uma mochila idêntica esperava no cume, ao lado da fissura.

Ela se virou para os dois caçadores que ainda esperavam.

Tarek tinha raspado a cabeça como muitos dos outros e coberto a pele de tatuagens negras, no caso dele com versos da Bíblia escritos em latim. Couro, costurado com tendões humanos, vestia seu corpo musculoso de mais de um metro e oitenta. Piercings de aço perfuravam-lhe os lábios e as narinas. Seus olhos negros tinham se estreitado até se tornar fendas, furiosos com as baixas infligidas por aqueles na tumba. Ele queria vingança. Feita com suas próprias mãos.

– O cavaleiro é perigoso demais – advertiu ela. – Especialmente quando está encurralado contra a parede. Já perdemos homens demais para arriscar mandar mais.

Tarek não pôde discutir. Ambos tinham assistido ao massacre na tela. Mas havia outra opção. Não tão satisfatória, mas no final daria no mesmo.

– Vamos explodir a fissura. – Ela gesticulou para a mochila ali em cima e imaginou a outra lá embaixo. – Matar todos eles.

Ela pretendia soterrar o cavaleiro e seus companheiros, reenterrar os segredos naquele lugar debaixo de toneladas de pedras. E se Korza sobrevivesse à explosão, então uma morte lenta debaixo de todas aquelas pedras seria o seu destino.

Por um momento, pareceu que Tarek iria desobedecer à ordem dela. Era governado pela fúria, alimentada por todo o sangue. Então o olhar dele se voltou para o pescoço dela. Para a tatuagem. Ele conhecia seu significado melhor que ninguém.

Desafiá-la seria desafiá-Lo.

Tarek inclinou a cabeça uma vez, como ferro se dobrando – então se virou e desapareceu na noite.

Ela fechou os olhos, procurando se centrar, mas um gemido baixo chamou sua atenção, recordando-a de que ainda tinha trabalho a fazer.

Um cabo de rosto sardento chamado Sanderson estava ajoelhado na terra, o único sobrevivente do massacre no cume da montanha. Retirada sua camisa, a cabeça fora puxada para trás por unhas enterradas bem fundo em seu couro cabeludo, pelo caçador que ainda permanecia ao lado dela. Este – Rafik, irmão de Tarek – era esguio, todo ossos e malícia, uma ferramenta útil em momentos difíceis.

Ela chegou mais perto, os olhos do soldado seguindo-a.

– Eu tenho perguntas – disse delicadamente.

Ele apenas a encarou, tremendo e suando, os olhos arregalados de terror, parecendo tão jovem. Ela outrora tivera um irmão muito parecido com aquele soldado, como ele tinha adorado rosas e vinho gelado, mas ela fora proibida de ter qualquer contato com ele depois de receber a marca Dele. Ela tivera que abandonar todos os vínculos que a prendiam ao passado, entregando-se apenas a Ele.

Mais uma perda que ela atribuía a Korza.

Ela passou as costas da mão na face aveludada do cabo. Ele ainda não tinha idade para ter uma barba de verdade. Contudo, a despeito de seu terror, ela leu uma brasa de desafio em seus olhos.

Ela suspirou.

Como se ele tivesse alguma esperança de resistir.

Ela recuou e levantou um braço, indicando seu desejo.

Venham.

O par – ela os havia chamado de Hunor e Magor, em homenagem a dois heróis míticos húngaros – nunca estava muito longe dela. Sem olhar, ela os sentiu sair e avançar por trás, vindos pela escuridão, onde andaram comendo. Levantou a mão, e esta foi recebida por uma língua quente, um focinho peludo, e um rugido baixo como trovão além do horizonte.

Ela baixou a mão, agora úmida e pingando sangue.

– Eles ainda estão com fome – comentou, sabendo que aquilo era verdade, sentindo um eco daquele desejo em seu íntimo.

Os olhos do soldado se arregalaram, lutando contra o inimaginável. Horror diante do que estava logo atrás dela calou qualquer desafio.

Ela se inclinou bem perto dele. Sentiu a sua respiração quente, quase saboreou a sua angústia. Chegou junto da orelha dele e sussurrou:

– Diga-me: – disse, começando por uma pergunta simples – quem era aquela mulher lá embaixo?

Antes que ele pudesse responder, a noite explodiu atrás dela. Luz. Som e calor irromperam do cume de Massada, fazendo tremer o chão, transformando a noite em dia. Chamas explodiram do abismo, rodopiando em um cataclisma de fumaça e terra – fechando o que Deus havia aberto apenas algumas horas antes. Ela pretendia derrubar aquela montanha inteira para cobrir seus rastros.

Com a detonação, a paz mais uma vez desceu sobre ela.

Ela encarou o cabo.

Ainda precisava de respostas.


10

26 de outubro, 17:14, horário de Israel

Massada, Israel

O calor queimou as costas de Rhun, quente como o hálito de um dragão. Ele imaginou a parede de chamas rolando sobre o topo do escuro sarcófago fechado. Mas foi o som que mais machucou. Ele temeu que a concussão da explosão rachasse seu crânio, fazendo o sangue jorrar de suas orelhas e profanasse aquele espaço outrora sagrado.

Além da tumba deles, choviam pedras perto da entrada. Ao contrário da primeira explosão que tinha fechado a fissura acima, a segunda tinha a intenção de destruir aquele exato recinto.

Deste modo prendendo-os.

Enquanto o fogo e a fúria iam amainando até se tornarem um ronco baixo, ele se apoiou com força contra os lados de calcário da tumba. Era apropriado que ele morresse dentro de um sarcófago – preso do mesmo modo que outrora havia prendido outro homem atrás de uma pedra. Na verdade, ele quase recebia aquilo com alegria. Mas a mulher e o soldado não tinham merecido aquele destino.

Ele havia enfiado os dois dentro do caixão depois da primeira explosão. Sabendo que aquela antiga cripta oferecia o único abrigo, ele puxara a tampa de pedra em cima deles, usando toda a sua força apenas ligeiramente ajudado pelo soldado. Se eles sobrevivessem, ele não saberia como explicar tamanha força. O código segundo o qual vivia exigia que ele os deixasse morrer antes de permitir que tais perguntas fossem feitas.

Mas ele não podia deixá-los morrer.

Eles se encolheram juntos numa escuridão negra como piche. Ele tentou rezar, mas seus sentidos continuaram a dominá-lo. Sentiu o cheiro do vinho que outrora enchera aquela caixa, o odor metálico de sangue que saturava o que restava de sua batina e casaco, e o cheiro de papel e giz queimados de explosivos detonados.

Nenhum deles mascarava o perfume simples de lavanda do cabelo dela.

O bater do coração dela, rápido como o de uma cotovia, pulsava acelerado contra o peito dele. O calor de seu corpo trêmulo se espalhava pelo seu estômago e suas pernas. Desde Elisabeta ele não ficava assim próximo de uma mulher. Era uma pequena misericórdia que Erin estivesse de costas para ele, o rosto enterrado no peito do soldado.

Ele contou as batidas do coração dela, e naquele ritmo encontrou a paz para rezar – até que afinal o silêncio retornou à sua mente e ao mundo além da pequena tumba deles.

Ela se moveu debaixo dele, mas ele tocou no ombro dela para dizer-lhe para ficar quieta. Queria que eles esperassem mais, ter certeza de que o recinto tivesse parado de desmoronar antes de tentar mover a tampa do sarcófago. Só então saberia se estavam soterrados por mais rochas do que até ele poderia mover.

A respiração dela se tornou mais lenta, o coração se aquietou. O soldado também se acalmou.

Finalmente, Rhun apoiou os joelhos dobrados contra o fundo da caixa de pedra e empurrou para cima com os ombros. A tampa arranhou contra os lados. Ele fez outro esforço. O peso maciço se moveu um palmo, depois dois.

Finalmente se inclinou e caiu contra o chão. Eles estavam livres, embora ele temesse que tivessem apenas trocado a pequena cela por uma maior. Mas pelo menos a tumba havia resistido. Os homens que tinham escavado aquela câmara secreta tinham reforçado as paredes para resistir à montanha tempestuosa.

Ele se levantou e ajudou Erin e Jordan a saírem do sarcófago. Um bastão fluorescente tinha resistido à explosão e lançava uma luz fraca no aposento. Ele apertou os olhos em meio à poeira escaldante tentando ver a entrada da tumba. Não era mais uma entrada.

Terra e pedras a fechavam do chão ao teto.

Os outros dois tossiram, levantando tecidos contra o rosto, para filtrar o ar poluído. Eles não resistiriam muito tempo.

O soldado acendeu uma lanterna e a virou para a porta. Os olhos dele encontraram os de Rhun e ele recuou se afastando dele, seu rosto cheio de desconfiança.

A mulher lançou o foco de luz de uma segunda lanterna ao redor da câmara destruída. Uma grossa camada de poeira cobria tudo, transformando os cadáveres em estátuas de pó, amenizando o horror do massacre.

Mas nada escondia os pedaços quebrados da tampa de pedra do sarcófago. A luz dela se deteve ali. Partículas de poeira flutuando na luz não escondiam a verdade de seu ato impossível ao levantar e empurrar aquela pedra.

O soldado não pareceu perceber. Ele estava virado para a porta explodida como se fosse um mistério insolúvel.

Mais próxima, a luz da mulher se deteve sobre Rhun, do mesmo modo que seus olhos castanhos suaves.

– Obrigada, padre.

Ele percebeu um tremor desajeitado na voz dela quando disse a palavra padre. Ele o achou preocupante, percebendo que ela não tinha fé.

– Meu nome é Rhun – sussurrou ele. – Rhun Korza.

Ele não experimentava a intimidade de dizer seu nome completo para outra pessoa havia muito tempo, mas, se eles tivessem que morrer ali juntos, queria que soubessem seu nome.

– Eu sou Erin, e ele é Jordan. Como...

O soldado a interrompeu:

– Quem eram eles?

Aquela única pergunta escondia uma outra. Ele a reconheceu na voz do homem, a leu em seu rosto.

O que eram eles?

Ele considerou a pergunta oculta. A Igreja o proibia de revelar a verdade, seu segredo mais bem guardado. Muito poderia ser perdido.

Mas o homem era um guerreiro, como ele. Havia combatido e defendido seu terreno, enfrentado a escuridão. E tinha pagado com sangue por uma resposta apropriada.

Rhun respeitaria aquele sacrifício. Ele encarou o outro bem nos olhos e ofereceu a verdade, dando nome aos agressores:

– Eles são strigoi.

Suas palavras pairaram no ar, como a poeira que rodopiava, obscurecendo mais do que revelavam. Claramente confuso, o homem inclinou a cabeça para o lado. A mulher, também, o examinou, mais com curiosidade do que com raiva. Ao contrário do soldado, ela não parecia responsabilizá-lo pelas mortes ali.

– O que isto significa? – O soldado não sossegaria enquanto não compreendesse, e sem dúvida também não sossegaria depois disso.

Rhun tirou uma pedra de cima de um dos homens mortos e limpou a areia do rosto dele. A mulher manteve a luz sobre suas mãos, enquanto ele virava a cabeça empoeirada para eles. Com a mão enluvada, ele empurrou para trás os lábios frios, expondo um segredo antiquíssimo.

Longas presas brancas rebrilharam sob o foco de luz.

As mãos do soldado se moveram para a coronha de sua arma. A mulher respirou fundo, sobressaltada. A mão dela subiu-lhe à garganta. Num instinto animal de se proteger. Mas em vez de permanecer imobilizada de horror, ela baixou a mão e foi se ajoelhar ao lado de Rhun. O homem ficou onde estava, alerta e pronto para o combate.

Rhun esperava isso, mas a mulher o surpreendeu, quando tão poucas outras coisas o surpreendiam. Os dedos dela – trêmulos inicialmente, depois mais firmes – se estenderam para tocar os dentes longos, pontudos e cortantes, como São Tomé, pondo a mão na ferida de Cristo, precisando da prova. Ela claramente temia a verdade, mas não a recusaria.

Ela encarou Rhun, cética, como só uma cientista dos tempos modernos podia ser. E esperou.

Ele não disse nada. Ela havia pedido a verdade. Ele lhe dera. Mas não podia dar a ela a vontade de acreditar na verdade.

Ela acenou para o cadáver.

– Podem ser jaquetas, postas para alongar os dentes.

Mesmo agora ela se recusava a acreditar, buscava consolo em racionalizações, como tantos outros antes dela. Mas ao contrário deles, ela se inclinou para mais perto do outro cadáver, não esperando por confirmação ou por consolo. Ela levantou o lábio superior.

Enquanto ela o examinava, ele esperou que os olhos dela se arregalassem de horror. Em vez disso, franziu as sobrancelhas com interesse, fascinada.

Surpreendido mais uma vez, ele olhou para ela com o mesmo fascínio.

17:21

Ajoelhada ao lado do corpo, Erin tentou entender a lógica do que jazia diante dela. Precisava compreender, dar um sentido a todo o sangue e mortes.

Desesperadamente, ela passou em revista uma lista mental de culturas onde as pessoas afiavam os dentes. No deserto do Sudão, os rapazes limavam seus incisivos até as pontas ficarem afiadas como giletes em um rito de passagem. Entre os maias, dentes lixados em ponta tinham sido um sinal de nobreza. Em Bali, lixar os dentes ainda era um ritual de maioridade que marcava a transição de animal para ser humano. Todos os continentes tinham práticas semelhantes. Todos eles.

Mas aquilo era diferente.

Por mais que ela quisesse que fosse verdade, ferramentas não haviam afiado aqueles dentes.

– Doutora, fale comigo. – Jordan estava inclinado sobre o ombro dela, a voz tensa soando alta no espaço reduzido. – Diga-me o que está pensando.

Ela lutou para manter seu tom clínico, pelo seu próprio bem e pelo dele também. Se ela perdesse a compostura, poderia não conseguir recuperá-la.

– Estes dentes caninos são firmemente enraizados na maxila. Sinta como os alvéolos ósseos na base das presas são mais grossos, aumentados.

Jordan passou por cima de uma pilha de entulho para se postar entre ela e o padre. Ele descansou a mão na arma.

– Sua palavra para mim basta.

Ela lhe deu o que esperava que fosse um sorriso tranquilizador. Pareceu não funcionar, porque o rosto dele continuava grave quando perguntou:

– O que significa?

Ela se inclinou para trás nos calcanhares, ansiosa para pôr espaço entre si e os dentes que havia acabado de tocar.

– Esta densidade de raiz é um traço comum em predadores.

O padre Korza se afastou. O cano da arma de Jordan se moveu na direção dele.

– Jordan? – Ela ficou de pé ao lado dele.

– Continue falando. – Ele olhou para o padre, como se esperasse que ele interrompesse, mas o homem ficou parado, imóvel. – É interessante, não é, padre?

Ela perscrutou o rosto moreno empoeirado em meio aos escombros. Parecia tão humano quanto ela.

– A mandíbula de um leão exerce uma pressão de cerca de 270 quilos em cada seis centímetros quadrados. Para suportar esta força, as cavidades dentais endurecem e se tornam espessas ao redor das presas, como aconteceu com estas.

– Então o que está dizendo – disse Jordan, pigarreando – é que estas presas não são apenas acessórios de moda. Que elas são naturais?

Ela suspirou.

– Não consigo encontrar nenhuma outra explicação que se encaixe.

Sob a luz fraca da lanterna, ela viu o choque no rosto de Jordan e o medo em seus olhos. Ela também o sentia, e não permitiria que seus sentimentos a dominassem. Em vez disso, se virou para o padre silencioso em busca de respostas.

– O senhor os chamou de strigoi?

O rosto dele tinha se fechado numa máscara indecifrável de sombras e segredos.

– A maldição deles tem muitos nomes. Vrykolakas. Asema. Dhakhanavar. Eles são um flagelo que outrora era conhecido em todos os cantos do mundo. Hoje em dia vocês os chamam de vampiros.

Erin se sentou. Será que alguma lembrança deste horror existia na raiz do lixar ritualístico de dentes, uma imitação macabra de um terror esquecido nos tempos modernos? Esquecido, mas não desaparecido. Um dedo gelado percorreu as costas dela.

– E o senhor luta contra eles? – O ceticismo de Jordan encheu a tumba.

– Luto. – A voz baixa do padre soou calma.

– Então o que isto faz do senhor, padre? – Jordan assumiu uma postura mais larga, como se na expectativa de luta. – Uma espécie de comando do Vaticano?

– Eu não usaria estas palavras. – O padre Korza cruzou as mãos enluvadas diante de si. – Eu sou apenas um padre, um humilde servo de Deus. Mas para servir a Santa Sé, sim, eu e outros irmãos de batina fomos treinados para lutar contra essa praga.

Erin tinha um milhar de perguntas que queria fazer, mas uma delas era mais urgente, uma que a incomodara desde que o padre tinha entrado na tumba e dito suas primeiras palavras.

A Igreja tem direitos preferenciais anteriores a tudo que está dentro desta cripta.

Subitamente satisfeita por ter um soldado entre eles, Erin observou o homem ensanguentado por cima do ombro de Jordan.

– Hoje mais cedo o senhor perguntou a respeito de um livro que poderia ter estado escondido aqui. Foi por isso que fomos atacados? É por isso que estamos presos aqui?

O rosto do padre se fechou. Ele espichou o pescoço em direção ao teto de tijolos como se em busca de orientação do alto.

– A montanha ainda está se movendo.

– O que... – Um grande grunhido de pedra, acompanhado por buums explosivos de rochas esmagadas interrompeu a pergunta de Jordan. O chão tremeu – primeiro ligeiramente, depois mais violentamente.

Erin cambaleou e bateu nas costas de Jordan, antes de recuperar o equilíbrio.

– Outro abalo secundário?

– Ou a concussão das cargas de explosivos enfraqueceu a estrutura da montanha. – Jordan olhou para o teto. – Seja como for, vai desabar. E logo.

– Nós temos que encontrar a saída – disse o padre Korza. – Antes de falarmos sobre outros assuntos.

Jordan se encaminhou para a entrada desmoronada.

– Não chegaremos a nenhuma passagem por aí. – O padre Korza se virou lentamente em um círculo completo. – Mas dizem que os que vieram esconder o livro durante a queda de Massada usaram um caminho só conhecido por poucos. Um caminho que eles fecharam à medida que saíam.

Jordan esquadrinhou as paredes sólidas.

– Onde?

Os olhos do padre estavam vazios.

– Este segredo se perdeu.

– O senhor não está escondendo nada de nós? – perguntou Jordan.

O padre Korza segurou as contas do rosário em seu cinto.

– O caminho está além dos conhecimentos da Igreja. Ninguém o conhece.

– Não é verdade. – Erin passou as mãos ao longo da parede mais próxima dela, enterrando uma unha na argamassa entre duas pedras.

Todos os olhos se voltaram para ela.

Ela sorriu.

– Eu conheço a saída.

17:25

Jordan tinha esperanças de que Erin soubesse do que estava falando.

– Mostre-me.

Ela correu para o fundo da câmara, passando as pontas dos dedos sobre a pedra áspera como se estivesse lendo um livro escrito em braile.

Ele a seguiu, batendo na pedra com uma das mãos, a outra ainda cerrada sobre a submetralhadora. Jordan não confiava em Korza. Se o padre os tivesse advertido desde o início, os homens de Jordan poderiam ainda estar vivos. Jordan não pretendia dar as costas para ele tão cedo.

– Percebem como o trabalho de alvenaria é bem-feito ao longo desta parede? – perguntou Erin. – Os blocos se encaixam tão perfeitamente que muito pouca argamassa foi necessária. Desconfio que eles só os tenham cimentado como medida adicional de segurança para proteger a abóbada de terremotos.

– Então este é provavelmente o único motivo por que ainda estamos vivos – disse ele. – Vamos bater nele para ver se ouvimos o eco de uma construção acima.

Um sorriso distraído surgiu nos lábios dela. Ele esperava ver aquele sorriso de novo lá fora, à luz do sol, em algum lugar seguro.

Na parede do fundo, ela se apoiou sobre um joelho, ao lado dos corpos empalados. Seus ombros se tensionaram e os olhos se fixaram na parede, desviados dos mortos. Mas ela continuou a avançar. Ele a admirou por isso. Ela pôs a palma da mão contra os tijolos antiquíssimos e a deslizou para baixo.

– Eu tinha reparado nisto antes. – O solo estremeceu, e as palavras seguintes dela foram ditas apressadamente. – Antes do ataque. Quando estávamos examinando a garota. – Ela pegou a mão dele e a colocou ao lado da sua sobre as pedras. – Sinta as protuberâncias de argamassa saindo entre as pedras.

Ele tocou na pedra fria e dura.

– Esta seção é diferente das outras paredes – prosseguiu rapidamente. – Pedreiros experientes, como os que construíram esta tumba, retirariam o excesso de argamassa, para criar um aspecto limpo e proteger a argamassa de ser arrancada se alguém roçasse contra a parede.

– Você está dizendo que eles foram descuidados aqui?

– De jeito nenhum. Quem construiu esta parede estava trabalhando a partir do outro lado. É por isso que a argamassa se projeta para fora na nossa direção aqui.

– Uma porta que foi vedada. – Ele assobiou. – Bom trabalho, doutora.

Ele examinou a parede. A seção com trabalho de argamassa formava uma passagem tosca em arco. Era possível que ela estivesse certa. Ele bateu contra a parede com a base do punho. Não cedeu nada.

– Parece-me muito sólida.

Escavar aquilo levaria horas, talvez dias. E ele suspeitava que eles tivessem apenas minutos. Erin tinha feito um bom trabalho, mas não bastaria para salvá-los.

Uma seção do teto perto da entrada se soltou e desabou com um estrondo ensurdecedor. Erin se encolheu, e ele se moveu para junto dela protetoramente. Eles acabariam enterrados ali embaixo com os cadáveres de monstros e de homens.

Com os homens dele, com Cooper e McKay.

– McKay – disse ele em voz alta.

O padre franziu a testa, mas Erin lançou um olhar para o corpo retorcido de McKay. Os olhos dela se iluminaram com esperança e compreensão.

– Você tem tempo suficiente? – perguntou ela.

– Motivado desse jeito? É claro.

Ele se afastou em meio aos escombros e se ajoelhou ao lado do corpo de McKay.

Sinto muito, companheiro.

Delicadamente, ele empurrou o corpo inerte para o lado. Manteve os olhos afastados da ruína que era a garganta do amigo, pondo a mão sobre o ombro. Repassou as lembranças da gargalhada escandalosa do amigo, de seu hábito de tirar os rótulos de garrafas de cerveja, de seu olhar de cachorro triste quando se via diante de uma mulher bonita.

Tudo aquilo se fora.

Mas nunca será esquecido, meu amigo.

Ele soltou a mochila e voltou para a parede onde Erin esperava. Não queria que ela ficasse sozinha com o padre. Não sabia o que o homem seria capaz de fazer. O padre era cheio de segredos. Segredos que tinham custado a vida de seus homens. O que Korza faria para conservar aqueles segredos se eles escapassem daquela prisão?

Não importava o que fosse planejado, a montanha provavelmente os esmagaria antes. Jordan rapidamente abriu o zíper da mochila. Como especialista em demolições da equipe, McKay tinha trazido explosivos originalmente destinados a explodir os recipientes do gás tóxico e neutralizar quaisquer resíduos. Na ocasião em que eles pensaram estar lidando com algo simples, como terroristas.

Ele trabalhou depressa, os dedos inserindo detonadores de desmonte em blocos de C-4. McKay teria feito aquilo mais rapidamente, mas Jordan procurou não pensar naquele poço de sofrimento, incapaz de encarar sua perda. Deixaria aquilo para depois. Se houvesse um depois.

Ele montou e ligou as cargas, fazendo cálculos de cabeça rapidamente enquanto mantinha um olho em Erin, quando ela conversava com o padre.

– A garota – disse ela, acenando em direção à criança na parede. – O senhor está me dizendo que ela estava com dois mil anos quando morreu?

A voz de Korza soou tão baixa que Jordan teve que se esforçar para ouvir a resposta.

– Ela era uma strigoi. Foi presa aqui para proteger o livro. Uma missão que ela cumpriu até que aquelas flechas de prata acabaram com sua vida.

Enquanto trabalhava, Jordan imaginou aqueles eventos macabros se desdobrando: Os nazistas abriram o sarcófago, encontraram a garotinha viva dentro do maldito caixão, então a mataram prendendo-a contra a parede com uma saraivada de flechas de prata disparadas por bestas. Então ele se lembrou da máscara de gás esmagada encontrada perto da entrada da tumba. Os nazistas deviam ter sabido o que iriam encontrar ali. Tinham esperado não só a garota, como o gás tóxico.

Erin insistiu, claramente buscando uma maneira de compreender tudo aquilo, inseri-lo numa equação científica que fizesse sentido.

– Então a Igreja usou esta pobre garota. Obrigou-a a ser seu cão de guarda por dois mil anos.

– Ela não era nenhuma garota, e estava adormecida, preservada no vinho sagrado que a banhava. – As palavras de Korza se reduziram a um sussurro sofrido. – Apesar disso, está correta. Nem todos concordaram com uma decisão tão cruel. Nem mesmo com a escolha deste maldito lugar. Dizem que o apóstolo Pedro escolheu esta montanha, naquela ocasião trágica, para vincular o sacrifício de sangue dos mártires judeus a esta tumba, usar aquele manto negro para proteger o tesouro.

– Espere – galhofou Erin. – O apóstolo Pedro... São Pedro? Está dizendo que ele ordenou que alguém trouxesse o livro para cá durante o cerco a Massada?

– Não. Pedro trouxe o livro aqui pessoalmente. – As mãos do padre mexeram no rosário. – Acompanhado apenas por aqueles em quem mais confiava.

Jordan suspeitava que ele não devesse estar contando a eles nada daquilo.

– Não pode ser – argumentou Erin. – Eles crucificaram Pedro durante o reinado de Nero. Cerca de três anos antes da queda de Massada.

Korza virou o rosto, mantendo a voz baixa:

– A história nem sempre é registrada com precisão.

Com aquele comentário crítico, Jordan acabou seus preparativos. Ele se levantou e pegou o detonador sem fio. Erin olhou para ele interrogativamente.

Ele desejou que pudesse dizer palavras mais confortadoras:

– Isto vai funcionar... ou eu vou matar todos nós.


11

26 de outubro, 18:01, horário de Israel

Local não revelado, Israel

Sentado em sua cama de hospital, Tommy tocou no tubo IV saindo do peito. Fez isso mecanicamente, sem sentir, não por curiosidade. Sabia por que a enfermeira tinha inserido o tubo ali. Já usara um antes. Depois de tirar sangue tantas vezes, eles estavam temerosos de que uma veia entrasse em colapso.

A médica dele – uma mulher magra com maçãs do rosto proeminentes, traje cirúrgico verde-oliva e uma expressão severa – não havia se dado ao trabalho de dizer a ele qual era o seu nome, algo que era estranho. Geralmente os médicos sempre se apresentavam e esperavam que você se lembrasse deles. Aquela agia como se quisesse ser esquecida.

Ele puxou para cima o cobertor fino de flanela e olhou ao redor. Parecia um quarto de hospital como outro qualquer: uma cama motorizada, linhas intravenosas bombeando sabe-se lá o que em seu sangue, uma mesa com uma jarra de plástico verde-oliva e um copo.

Ele sentia falta de uma TV naquele quarto. Não que ele fosse compreender alguma coisa nos canais israelenses. Mas depois dos meses no hospital, sabia que havia algum consolo a ser encontrado no movimento conhecido de uma tela de TV.

Sem mais nada para fazer, ele saiu da cama e puxou seu pedestal de IV junto consigo em direção à janela, o assoalho revestido de linóleo estava frio contra seus pés descalços. A vista lá fora era apenas do deserto iluminado pelo luar, uma extensão infinita de pedras e arbustos. Além do estacionamento, não se podia ver uma única luz. Os israelenses o tinham trazido para o meio de lugar nenhum.

Por quê?

Hospitais ficavam em cidades, lugares com gente, luzes e carros. Mas ele não tinha visto nenhuma daquelas coisas quando o helicóptero pousou no estacionamento, apenas um agrupamento de prédios quase todos escuros.

No helicóptero, ele tinha ficado afivelado no assento do meio entre dois comandos israelenses. Ambos se inclinaram para o lado, mantendo-se tão afastados dele quanto podiam, como se temessem tocar nele. Podia imaginar por quê. Antes daquilo, ouvira um dos soldados americanos mencionar que ele ainda tinha os elementos químicos essenciais do gás tóxico em suas roupas e cabelo. Ninguém ousara tocar nele antes que fosse descontaminado.

Lá em Massada, tinham-no despido até ficar nu dentro da tenda de isolamento, e suas roupas tinham sido levadas. E depois que chegou, tinham-no obrigado a tomar uma série de banhos químicos de chuveiro, aparentemente para limpar cada célula morta da pele. Até a água suja tinha sido coletada em tubos vedados.

Ele apostava que era por isso que estava ali no meio de lugar nenhum: para ser uma cobaia de modo que eles pudessem descobrir por que ele havia sobrevivido ao gás quando todo mundo ao redor tinha morrido.

Depois de tudo isso, estava satisfeito por não ter dito nada a respeito da lesão do melanoma desaparecer de seu pulso. Distraidamente, ele coçou aquele lugar, ainda tentando descobrir o que significaria. O segredo dele era fácil de manter. Quase ninguém falava com ele – eles falavam ao redor dele, a respeito dele, mas raramente com ele.

Só uma pessoa o olhara direto nos olhos.

O padre Korza.

Ele se recordou dos olhos escuros emoldurados pelo rosto gentil. As palavras tinham sido delicadas, perguntando tanto a respeito de seu pai e de sua mãe quanto a respeito dos horrores do dia. Tommy não era católico, mas mesmo assim apreciara a gentileza do padre.

Enquanto mais uma vez pensava nos pais, as lágrimas ameaçaram dominá-lo – mas ele as enfiou na caixa. Ele tinha inventado a caixa para lidar com seus tratamentos de câncer. Quando as coisas doíam demais, ele as enfiava na caixa para pensar nelas depois. Com sua saúde em declínio e o diagnóstico terminal, nunca imaginara que fosse viver por tempo suficiente para ter que abri-la.

Ele olhou fixamente para o pulso nu.

Agora parecia que viveria.


12

26 de outubro, 18:03, horário de Israel

Massada, Israel

Erin se agachou atrás do sarcófago, com as mãos cobrindo as orelhas. Ela se encolheu quando Jordan disparou o C-4 posicionado contra a parede. A explosão atingiu-lhe o estômago como um golpe. Poeira de pedra subiu em rolos pela câmara. Areia foi salpicada do teto, roçando em sua pele exposta como o arrastar sussurrante de milhares de insetos.

Então Jordan a puxou para cima, com força.

– Vamos!

Ela não compreendeu a urgência dele – até que o eco da explosão em seus ouvidos continuou a se tornar mais alto. Ela levantou o olhar quando o chão sacudiu sob seu corpo.

Mais um abalo secundário.

O padre segurou seu outro braço e a puxou em direção à parede envolta em fumaça. Um pequeno buraco havia sido aberto nela. Mas era pequeno demais.

– Ajudem-me! – gritou Jordan.

Trabalhando juntos, os três arrancaram os tijolos já meio soltos ao longo das bordas. Além do buraco abria-se uma passagem escura, cinzelada na pedra. Muito tempo antes, homens a haviam escavado para levá-los a algum lugar – e naquele momento qualquer lugar era melhor que ali.

O tremor se intensificou. O solo traiçoeiro balançou debaixo dela e a arremessou contra a parede.

– Não temos mais tempo! – berrou Jordan, e arrancou um último tijolo, criando um buraco apertado. – Saiam todos!

Antes que eles pudessem agir, um buum ressonante arremessou todos eles no chão.

Acima, uma rachadura fendeu o teto em arco.

Jordan se levantou de um salto, agarrou Erin e a empurrou para dentro da abertura na pedra. A pele de seus cotovelos foi esfolada enquanto Erin atravessava rapidamente. Ela ficou de pé na passagem e virou a lanterna para Jordan.

– Agora o senhor, padre – disse Jordan. – O senhor é menor que eu.

Com um assentimento, o padre mergulhou de cabeça pelo buraco estreito e rolou para uma posição agachada ao lado de Erin. Ele lançou um rápido olhar ao redor da passagem. O que esperava ver?

Erin se virou de volta para Jordan. Ele deu-lhe um breve sorriso. Atrás dele, o teto inteiro caiu em uma única peça grande, esmagando o sarcófago.

Jordan saltou para dentro do buraco. Conseguiu fazer passar um ombro, e então rapidamente ficou entalado. O rosto ficou vermelho pelo esforço. A tumba continuava a desmoronar atrás dele, implodindo sob o peso da montanha. Os olhos azuis encontraram os dela. Ela leu sua expressão. Não iria conseguir sair dali. Ele moveu a cabeça em direção à passagem, indicando que ela devia abandoná-lo.

Então o padre Korza chegou junto dele. Dedos impossivelmente fortes agarraram o braço livre de Jordan e o puxaram com tamanha força que tijolos se soltaram enquanto o corpo se libertava. Jordan caiu em cima do padre, o rosto contorcido entre agonia e alívio.

O padre Korza se levantou e o ajudou a se levantar.

– Obrigado, padre. – Jordan apertou o braço. – Ainda bem que não preciso deste ombro.

O padre fez um gesto para a passagem escura. Ela descia muito íngreme, e tinha degraus grosseiros entalhados. Enquanto a montanha inteira tremia, tornou-se claro que eles ainda não estavam fora de perigo.

– Vamos! – disse ele.

Erin não pretendia discutir.

Ela desceu voando pelo túnel, saltando os degraus, a luz de sua pequena lanterna tudo que tinha para ver o caminho. O túnel ziguezagueava. A montanha estremeceu. Ela perdeu a noção de para onde ficava a direita e a esquerda. Acima ou abaixo. A única coisa que interessava era seguir adiante.

Um passo em falso fez com que torcesse o tornozelo direito. Antes que ela pudesse cair, o padre a pegou no colo e a atirou sobre o ombro como um bombeiro. O braço cerrado ao redor de seu corpo era férreo; o movimento musculoso dele enquanto corria a fez lembrar-se do fluxo de rocha fundida.

Depois de um lance precário descendo uma seção íngreme do corredor, ele parou abruptamente e a botou de volta no chão.

Ela prendeu a respiração e testou o tornozelo. Dolorido, mas não insuportável. Ela levantou o facho pequeno de sua lanterna para a frente. A luz banhou uma parede de calcário.

Jordan gemeu quando se juntou a eles.

– Sem saída.

18:33

Rhun deslizou as mãos sobre a parede de rocha que bloqueava o caminho deles, examinando sua superfície em busca de pistas. Um lampejo de calor se espalhou contra sua mão. Embora a noite já tivesse caído, a pedra ainda conservava um pouco do calor do sol.

Ele fechou os olhos, imaginando uma pedra maciça, empurrada para aquele lugar para vedar a entrada externa para o túnel. Ela já tinha sentido as fendas ao longo do canto inferior.

Em seguida, apoiou a orelha contra a superfície áspera, ouvindo, se concentrando no mundo além da pedra. Enquanto se esforçava, ouviu o som de vida lá fora: o bater de patas macias na areia, o pulsar do coração de um chacal.

– Devemos voltar, padre? – perguntou Jordan, sua voz soando estrondosamente alta. – Procurar outro corredor?

Mas o americano sabia que não havia outro corredor.

– Estamos quase livres – declarou Rhun, se endireitando e se virando. – Este é o último obstáculo.

Mas o tempo estava se esgotando, correndo como areia em uma ampulheta.

Naquele caso, literalmente.

Acima, a montanha continuava a tremer. Agora a areia jorrava pelos degraus íngremes do corredor, espalhando-se através de fissuras e fendas muito acima e se acumulando naquela seção mais baixa do túnel. Não demoraria muito para encher completamente o minúsculo espaço.

Jordan se juntou a Rhun e colocou a palma da mão na rocha.

– Então empurramos?

Não havia escolha.

Erin se juntou a eles, enfiando o cabelo louro macio atrás das orelhas.

Rhun lançou seu peso contra ao pedra ao lado deles. Ele reconheceu a futilidade do gesto depois da primeira tentativa, mas se esforçou junto com eles até que o bater acelerado de seus corações traiu a exaustão deles, e ele sentiu o cheiro de sangue nas palmas de suas mãos, onde a pedra havia lhes cortado a pele. O esforço conjunto não havia sido nem de longe suficiente.

Enquanto isso, Massada tremia.

A areia subira até o meio de suas panturrilhas.

Lado a lado, os outros dois apoiaram as costas contra a rocha inamovível.

– Que tal usar aquela granada em seu cinto? – apontou a mulher. – Não poderia explodir a pedra?

O soldado mostrou seu desânimo.

– Não é o suficiente para destruí-la, e a explosão deslocaria o ar para cima de nós. Mesmo se eu não tivesse usado todo o C-4 do material de demolição de McKay, duvido que pudéssemos explodir esta pedra sem fazer picadinho de nós.

Um forte abalo sacudiu a montanha. O rosto da mulher empalideceu. O soldado olhou para a pedra como se estivesse querendo movê-la com a pura força de sua vontade. O desespero esculpido em suas feições, o desespero cru de querer viver mais uma hora, mais um dia.

O soldado passou um braço ao redor da mulher e a puxou para junto de si. Ela amoleceu contra ele, enterrando o rosto em seu peito. O homem beijou delicadamente o alto de sua cabeça, possivelmente tão de leve que ela nem sentiu. Com que facilidade eles tinham se entregado a um abraço. O padre olhou fixamente para o conforto simples do contato, o consolo encontrado no companheirismo.

Uma dor profunda o dilacerou, um anseio de ser como eles. Mas aquele não era o seu papel. Ele se virou e encarou o rochedo, determinado a ajudá-los.

Areia chovia sobre sua testa e cílios. Com a face ainda virada para cima, ele fechou os olhos numa prece.

Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho.

Trechos das Escrituras fluíram em sua cabeça, ao mesmo tempo uma busca de respostas e um foco para sua mente. Ele se abriu para Deus, se libertando de tudo.

Enquanto a areia lentamente lhe subia pelas pernas, ele esperou – mas nenhuma resposta veio.

Então assim seja.

Ele encontraria seu fim ali.

Enquanto ele tocava em sua cruz, uma linha das Escrituras subitamente brilhou dourada diante do olho de sua mente: José, que havia comprado um lençol fino e, tirando-o da cruz, o envolveu nele, o depositou num sepulcro lavrado numa rocha...

É claro.

Os olhos dele se abriram subitamente, e ele examinou a pedra imutável. Tocou sua superfície, imaginando uma superfície igualmente plana do outro lado. Ele se lembrou das fendas ao longo da base da pedra, de como havia descoberto que as bordas eram curvas. Ele imaginou aquela curva se estendendo totalmente ao redor da pedra, formando um círculo.

Na mente dele, ele o viu.

Um disco plano de rocha.

Os lábios dele se moveram numa prece silenciosa de agradecimento, então ele se aproximou dos outros.

A mulher se levantou, indo ao encontro dele.

– O que foi?

Ela devia ter percebido alguma coisa no rosto dele. Apenas aquilo mostrou a Rhun seu próprio desespero, que outra pessoa pudesse compreendê-lo com tanta facilidade. A esperança iluminou os olhos dela.

Quando o soldado se juntou a eles, Rhun desprendeu a granada do cinto dele.

– Isto não vai funcionar – disse o homem. – Eu estava acabando de explicar...

– Confie em mim. – Rhun andou com dificuldade em meio à poça de areia de volta até o pedregulho e escavou perto do canto, onde a pedra se encontrava com a parede. Ele cavou rapidamente, mas a areia lutou contra ele, enchendo quase que tão rapidamente quanto a retirava.

Ele não conseguiria fazer aquilo sozinho.

– Ajudem-me.

Os outros o flanquearam.

– Cavem o chão – ordenou.

Eles trabalharam juntos até que a areia tivesse sido toda retirada do canto inferior, expondo uma pequena fenda curva entre o disco de pedra e o solo do túnel. Rhun estendeu a mão para baixo e enfiou a granada bem fundo na fenda, encaixando-a sob a borda do disco.

Ele então enfiou um dedo no anel do pino e falou por cima do ombro:

– Voltem para cima pelo túnel o máximo que puderem.

– E você? – perguntou o soldado.

Sem ninguém cavando, a areia escorreu de volta para dentro do buraco, enterrando o seu pulso, então o antebraço.

– Eu seguirei vocês.

O soldado hesitou, mas finalmente assentiu e puxou a mulher consigo.

Erin gritou para ele:

– Como sabe que vai funcionar?

Rhun não sabia. Tinha que confiar em Deus – e em certa passagem da Bíblia, relativa a pedras selando sepulcros.

São Marcos 15:46.

Ele a sussurrou naquele momento, ao mesmo tempo em resposta e como prece.

José, que havia comprado um lençol fino e, tirando-o da cruz, o envolveu nele, o depositou num sepulcro lavrado numa rocha; e revolveu uma pedra para a porta do sepulcro.

Com essas palavras ele arrancou o pino da granada, libertou seu braço e lutou contra a catarata de areia flutuando.

Ele só conseguiu subir três degraus.

A granada explodiu atrás dele, com um chiado e um latido gigantescos que lançaram pelo ar uma bola de fogo cheia de areia sobre as costas dele. A cabeça de Rhun bateu contra o canto de uma parede enquanto ele caía no chão.

Tonto, com a visão borrada, ele se virou de costas.

Ouviu o som de pés descendo os degraus vindo em sua direção.

Ele ficou deitado, imóvel.

O ar tinha gosto de areia e fumaça – então uma brisa encheu o corredor. Uma aragem doce e limpa de ar do deserto.

– Estou com ele. – O soldado agarrou Rhun pelas axilas e o arrastou pelo chão coberto de areia.

A mulher correu adiante.

– Olhe! A força da explosão da granada fez a pedra rolar mais de meio metro para o lado. Por que eu não pensei nisto? Eles fecharam este lugar exatamente como fecharam a tumba de Cristo.

– ... revolveu uma pedra para a porta do sepulcro – balbuciou ele, a consciência indo e vindo.

É claro que ela reconhecia o que ele havia feito.

Ele sentiu ser arrastado para além da pedra enegrecida e para fora, para o ar livre. Rhun olhou para cima. As estrelas estavam fulgurantes, cortantemente nítidas, eternas. Aquelas mesmas estrelas tinham visto Massada sendo construída e naquele momento foram testemunhas de sua destruição.

Um tremendo crescendo de pedras rangendo e de rochas tombando fragorosamente ressoou enquanto a montanha desabava completamente.

Então, finalmente, silêncio.

Ainda assim, Erin e Jordan continuaram a arrastar o padre para mais longe no deserto, não querendo correr riscos. Mas finalmente eles pararam.

Rhun sentiu um aperto caloroso no ombro. Viu de relance os olhos cor de âmbar.

– Obrigada, padre, por ter salvado a nossa vida.

Palavras tão simples. Palavras que ele raramente tinha ouvido. Como soldado de Deus, ele com frequência passava dias sem falar com outra alma. Aquela dor anterior – de quando ele havia observado o casal se abraçar na escada – retornou, só que agora cortando mais fundo. Ele olhou fixamente para aqueles olhos.

Será que eu sentiria isso se ela não fosse tão bonita?

Enquanto a escuridão o envolvia, ela se inclinou para mais perto dele.

– Padre Korza, que livro era aquele pelo qual o senhor estava procurando aqui?

Ela e o soldado haviam lutado, matado e visto seus amigos serem mortos por causa do livro. Eles não haviam feito por merecer uma resposta? Apenas por este único motivo, ele contou a ela.

– É o evangelho. Escrito com o sangue de Seu criador.

Atrás dela, as estrelas emolduraram-lhe o rosto.

– O que quer dizer? O senhor está falando de algum texto apócrifo perdido?

Ele ouviu a fome em sua voz, o desejo de conhecimento, mas ela não parecia compreender. Ele virou a cabeça pesada para encarar de frente os olhos dela. Ela precisava ver a sinceridade dele.

– É o evangelho – respondeu ele à medida que a escuridão apagava o mundo. – Escrito pela mão de Cristo. Com seu próprio sangue.


PARTE II


Fez Jesus, na presença de seus discípulos, ainda muitos outros milagres, que não estão escritos neste livro.

– João 20:30


13

26 de outubro, 18:48, horário de Israel

Sobrevoando Massada, Israel

O Eurocopter voou em espiral acima da caldeira fumegante que era Massada. O piloto lutou contra correntes termais subindo do deserto à medida que as areias escuras lentamente liberavam o calor do sol. As hélices levantavam a poeira de rocha, os motores gemendo enquanto sugavam o ar imundo.

O helicóptero subitamente deu um solavanco e voou com violência para o lado esquerdo, quase atirando Bathory pela porta aberta. Ela se segurou com força em um corrimão e olhou fixamente para baixo. Um incêndio ainda ardia no topo do cume explodido. Ela sentia o calor nas faces, como se estivesse olhando para o sol. Bathory fechou os olhos, e por um momento imaginou um dia de verão na juventude em sua propriedade no campo, às margens do rio Drava, na região rural de sua Hungria natal, sentada no jardim, vendo seu irmão mais moço, Istvan, brincar, correndo atrás de borboletas com sua pequenina rede.

Um gemido atraiu sua atenção de volta para a cabine, a interrupção despertando sua irritação. Ela se virou para o jovem cabo deitado no piso, cujo rosto pálido revelava seu profundo estado de choque.

Tarek estava ajoelhado sobre os ombros dele, enquanto seu irmão Rafik cortava o peito do homem com a ponta de um punhal, preguiçosamente, como que entediado. Depois, ele distraidamente lambeu a lâmina, como se umedecendo a ponta de uma caneta, pronto para continuar sua escrita.

– Não – advertiu ela.

Tarek lançou-lhe um olhar duro, um canto do lábio se franzindo de raiva, arreganhando os dentes. Rafik baixou o punhal. Seus olhos de furão dardejaram entre seu irmão e Bathory, o rosto se iluminando com prazer diante do que poderia acontecer.

– Eu tenho uma última pergunta para ele – disse ela, enfrentando o olhar de Tarek.

Ela encarou o olhar do animal. Para ela, era nisso que Tarek e Rafik se resumiam – animais.

Tarek finalmente recuou e acenou para o irmão se afastar.

Ela ocupou o lugar de Rafik. Colocou a palma da mão na face do soldado. Ele se parecia tanto com Istvan. Tinha sido por isso que ela os proibira de tocar o rosto dele. Ele olhou fixamente para ela, pateticamente, quase cego de dor, mal ainda neste mundo.

– Eu fiz uma promessa a você – disse ela, se inclinando como se para beijar-lhe os lábios. – Uma última pergunta e você estará livre.

Os olhos dele encontraram os dela.

– Erin Granger, a arqueóloga.

Ela permitiu que o nome penetrasse no estupor dele. Ele já tinha falado, relatando praticamente tudo o que sabia enquanto eles fugiam do cume de Massada, que desmoronava em chamas. Ela o teria deixado lá para morrer com seus irmãos de armas. Mas precisava arrancar daquele homem tudo que podia, por mais cruelmente que fosse. Ela havia aprendido muito tempo antes a praticidade da crueldade.

– Você disse que a dra. Granger trabalhava com alguns alunos.

Ela se recordou da mulher que tinha visto através da câmera do ROV. A arqueóloga movia o telefone para lá e para cá, claramente tentando fazer contato com o mundo exterior. Mas para quê? Será que estivera tirando fotografias? Teria descoberto alguma pista?

Provavelmente não, mas, antes que Bathory abandonasse a região, tinha que ter certeza absoluta.

As pupilas do cabo se fixaram nela, agoniadas, sabendo o que ela pretendia.

– Onde eles estão? – perguntou ela. – Onde era a escavação da dra. Granger?

Por um momento – apenas o tempo de uma respiração passageira – ela teve esperança de que ele não dissesse.

Mas ele disse. Seus lábios se moveram. Ela inclinou a cabeça para ouvir uma única palavra.

Cesareia.

Ela se endireitou, já começando a planejar em pensamentos. Rafik a encarava atentamente, o desejo claro em seus olhos. Ele gostava de coisas bonitas. Os dedos dele se apertaram no punhal.

Ela o ignorou e afastou o cabelo da testa branca do cabo.

Tão parecido com Istvan...

Ela se inclinou para baixo, beijou-lhe a face e enfiou sua própria lâmina cortando a garganta dele. Jorrou sangue negro. Um pequeno arfar roçou em sua orelha.

Quando ela se levantou, encontrou os olhos dele já opacos.

Finalmente livre.

– Ninguém tocará neste corpo – advertiu ela os outros enquanto se levantava.

Rafik e Tarek a encararam, não compreendendo tamanho desperdício.

Ignorando-os, ela ocupou um assento e recostou a cabeça. Não precisava dar explicações a inferiores como eles. Com as costas apoiadas contra o compartimento de carga traseiro, ela percebeu uma agitação lá atrás, movimento pesado. Estendeu a mão e colocou a palma sobre o anteparo.

Acalme-se, pensou, lançando sua vontade, banhada em confiança. Tudo está bem.

Ele se aquietou, mas ainda assim ela sentia sua agitação, espelhando a dela. Ele devia ter percebido a angústia no coração dela um instante antes.

Ou talvez fosse porque seu gêmeo não estava ali.

Ela olhou para fora pela janela, para o deserto abaixo.

O gêmeo tinha sido enviado para sair à caça.

Ela precisava ter certeza.

Sanguinistas eram difíceis de matar.


14

26 de outubro, 19:11, horário de Israel

Deserto além de Massada, Israel

Profundamente mergulhada em seus pensamentos, Erin acalentava a cabeça do padre inconsciente em seu colo. As estrelas rebrilhavam nas alturas, uma luz em forma de foice arranhava o horizonte e uma suave brisa noturna soprava as areias sussurrantes nas faces das dunas.

Ela examinou o rosto do homem com a cabeça apoiada em seus joelhos.

Será que é possível?

O padre afirmara que Cristo havia escrito um evangelho. Com certeza devia estar delirando. Ele tinha um galo do tamanho de um ovo de ganso do lado direito da cabeça, perto da têmpora.

Ela tocou em sua testa gelada.

– Jordan!

O soldado estava a alguns passos de distância, vasculhando o deserto, montando guarda contra possíveis perseguidores – ou talvez também precisasse de tempo para pensar. Ou para prantear suas perdas.

Ele se virou para ela.

– Eu acho que ele está entrando em choque – disse ela. – Ele ficou gelado e pálido.

Jordan se aproximou e se ajoelhou ao lado dela. Ao contrário do padre, calor irradiava de seu corpo.

– O homem já era pálido – observou. – Provavelmente vive enfiado numa biblioteca e se exercita à noite.

Ela examinou a aparência de Jordan. Mesmo coberto de fuligem e sujeira, era um homem atraente. Ela tentou não se lembrar de como havia se sentido segura nos braços dele no túnel, como tinha sido natural encostar-se nele, como o seu cheiro almiscarado a envolvera tão caloroso quanto o seu corpo. Não conseguia se esquecer do beijo suave no topo de sua cabeça. Tinha fingido não perceber, enquanto em segredo desejara mais. Mas aquele momento, nascido do desespero e do temor da morte certa, havia passado.

A cabeça do padre se moveu em seu colo. Ela baixou o olhar de volta para ele.

Jordan estendeu a mão e delicadamente afastou os trapos retalhados da camisa dele, examinando os ferimentos abaixo. A pele branca do peito musculoso do padre parecia mármore em contraste com a pele bronzeada de Jordan. Uma cruz de prata, mais ou menos do tamanho da palma da mão dela, pendia de um cordão de seda negro e descansava sobre o coração do padre em cima de um pedaço de camisa que não tinha sido retalhado.

Inscritas na cruz estavam as palavras Munire digneris me.

Ela traduziu o início da oração. Dignai-vos a obter para mim esta fortaleza.

– O sujeito levou uma surra e tanto – diagnosticou Jordan.

Com a pele descoberta, a severidade dos ferimentos dele se tornou evidente. Lacerações cortavam-lhe a pele, sangrando ligeiramente.

– Quanto sangue ele perdeu? – perguntou ela.

– Não muito. A maioria dos ferimentos parece superficial.

Ela se contraiu.

– Dolorosos – admitiu ele. – Mas sem risco de morte.

Mesmo assim, um calafrio a fez estremecer – mas não de preocupação. Já estava bastante frio à medida que o deserto rapidamente perdia seu calor.

Jordan retirou um pequeno estojo de primeiros socorros do bolso e começou a trabalhar na cabeça do padre. Ela sentiu o cheiro de álcool quando ele tirou uma compressa.

Ele abordou uma questão de saúde mais grave com relação ao padre.

– Estou mais preocupado com aquela pancada que ele levou na cabeça quando a granada explodiu. Ele poderia estar com uma concussão ou com o crânio fraturado.

Jordan tirou sua jaqueta de camuflagem militar e a abriu sobre o corpo frouxo do padre.

– Ele me pareceu bastante coerente há um minuto, quando vocês estavam conversando. Mesmo assim, precisamos levá-lo rápido para algum lugar onde possa receber cuidados médicos de verdade.

Erin baixou o olhar para o padre Korza.

Rhun, recordou a si mesma.

O nome de batismo dele combinava melhor com ele. Era mais delicado e sugeria maiores mistérios. Acima da camisa retalhada, ele usava um cabeção com colarinho romano de linho, não de plástico como a maioria dos padres modernos usava.

Agora que estava inconsciente, o rosto dele havia relaxado de suas expressões severas. Os lábios eram mais carnudos do que ela inicialmente havia pensado, as feições cinzeladas mais pronunciadas. Cabelo castanho-escuro caía em cachos sobre a testa, descendo-lhe ao colarinho redondo. Ela o afastou de seu rosto.

A preocupação dela se intensificou ao sentir a temperatura gelada da pele dele.

Será que despertaria? Ou morreria como Heinrich?

Jordan tossiu. Ela afastou a mão. Rhun era um padre, e ela não deveria estar brincando com o cabelo dele.

– E o seu rádio? – perguntou ela, esfregando as palmas da mão uma na outra. Tinha perdido seu celular. Agora ele estava enterrado em algum lugar dentro da montanha. Jordan estivera mexendo em seu aparelho portátil antes. – Conseguiu falar com alguém?

– Não. – O rosto de Jordan se contraiu de preocupação. – O estojo está rachado. Com o tempo, talvez eu consiga fazê-lo funcionar.

Arrepios de frio cobriram os braços nus de Jordan. Mesmo assim, ele enfiou melhor seu casaco ao redor de Rhun.

– Então qual é o plano? – perguntou ela.

Ele deu um sorriso rápido.

– Pensei que fosse você a fazer os planos.

– Eu pensei que deveria perguntar a que altura e quando pular. Não foram estas as suas ordens?

Ele olhou de volta para a montanha desmoronada, e uma sombra passou sobre o seu rosto.

– Os que estavam sob o meu comando não se saíram muito bem.

Ela manteve a voz baixa:

– Não vejo o que você poderia ter feito de maneira diferente.

– Talvez se este aqui – disse ele, espetando um polegar em direção ao padre inconsciente – tivesse nos dito com que estávamos lidando, pudéssemos ter tido uma chance.

– Ele desceu para nos avisar.

Jordan fez uma careta.

– Ele desceu para procurar o tal livro. Teve tempo de sobra para nos avisar antes de sermos atacados, ou para avisar os homens lá em cima que aqueles monstros estavam vindo. Mas não avisou.

Ela se descobriu defendendo o padre, uma vez que ele próprio não podia fazê-lo.

– Apesar disso, ele lutou muito para nos tirar de lá. E nos enfiou naquele sarcófago durante a explosão.

– Talvez ele apenas precisasse da nossa ajuda para sair de lá.

– Talvez. – Ela gesticulou para a vastidão do deserto. – Mas e agora o que fazemos?

O rosto dele endureceu.

– Por enquanto, eu acho que é melhor se ele não for movido. Isto é praticamente tudo o que podemos fazer por ele: mantê-lo aquecido e quieto. Depois daquela explosão, equipes de resgate devem estar vindo para cá de todas as direções. Devemos ficar onde estamos. Eles logo nos encontrarão.

Ele afastou o casaco e apalpou o corpo de Rhun.

– O que você está fazendo?

– Procurando um documento de identidade. Quero saber quem este sujeito é realmente. Ele com certeza não é um padre comum.

Erin se sentiu mal por revistar o padre enquanto ele estava inconsciente, mas teve que admitir que se sentia igualmente curiosa.

Jordan não descobriu uma carteira de motorista nem um passaporte, mas puxou a faca de Rhun de uma bainha no pulso. Também descobriu um recipiente de couro para água em um bolso fechado na perna da calça.

Ele abriu o frasco e tomou um grande gole.

Sedenta também, Erin estendeu a mão, querendo beber.

Jordan torceu a cara e cheirou o gargalo do frasco.

– Isto não é água.

Ela franziu a testa.

– É vinho.

Vinho?

Ela pegou o frasco e bebeu um golinho. Ele estava certo.

– Este sujeito me parece cada vez mais estranho – comentou Jordan. – Olhe só para isto.

Ele levantou a faca de Rhun, a lâmina curva em forma de crescente. Ela brilhou prateada sob a luz do luar.

E talvez seja de prata, como as flechas que prenderam a garota na parede.

– Esta arma se chama karambit – disse Jordan.

Ele enganchou o dedo em um anel na base do punho e demonstrou, com movimentos rápidos do pulso, como a arma podia ser usada em várias posições diferentes.

Ela desviou o olhar, recordando-se da batalha, do sangue voando daquela lâmina.

– Uma arma estranha para um padre – disse ele.

Para ela, aquela era a parte menos estranha da noite.

Mas Jordan não havia acabado.

– Não só porque homens da Igreja normalmente não usam facas, mas por causa de sua origem. A arma é da Indonésia. O estilo remonta há mais de oitocentos anos. Os sudaneses antigos copiaram o formato da lâmina das garras de um tigre.

Ela olhou para Rhun, lembrando-se de sua destreza.

Do mesmo modo que o nome, a arma combinava com ele.

– Mas aqui vai o detalhe mais estranho. – Ele levantou a arma até uma posição em que ela podia vê-la de perto. – A partir da pátina, eu diria que esta lâmina tem pelo menos cem anos.

Ambos olharam fixamente para o padre.

– Talvez até seja muito mais velha. – A voz de Jordan se reduziu a um tom conspirador: – E se ele for um deles?

– Um deles quem?

Ele arqueou uma sobrancelha loura.

Ela compreendeu o que ele estava insinuando.

– Um strigoi?

– Você viu como ele levantou a tampa daquele sarcófago? – A voz dele soou desafiadora.

Ela aceitou o desafio.

– Ele poderia estar sob o efeito de uma descarga de adrenalina. Como mulheres que levantam carros para liberar bebês. Eu não sei, mas vim da Cesareia com ele. Em plena luz do dia. Você o encontrou no cume de Massada enquanto o sol ainda estava alto.

– Talvez estes strigoi possam sair sob a luz do sol. Que diabo, eu não conheço nada a respeito deles. – A raiva e a perda marcavam o rosto dele. – Tudo o que eu sei com certeza é que não confio nele. Se Korza tivesse nos avisado a tempo, mais que três de nós estariam vivos aqui.

Ela pôs a mão na testa de Jordan, mas ele se desvencilhou dela e se levantou.

Ela olhou para o homem em seu colo, lembrando-se de sua última revelação.

É o Evangelho. Escrito pela mão de Cristo. Com seu próprio sangue.

Se aquilo fosse verdade, em que implicaria?

Perguntas a assaltaram: que revelações poderiam estar escondidas nas páginas daquele Evangelho perdido? Por que os strigoi o queriam tanto? E mais importante, por que a Igreja queria escondê-lo ali?

Jordan deve ter lido a sequência de seus pensamentos.

– E aquele livro – disse. – O tal que fez com que tantos homens fossem mortos. Tenho absoluta certeza de que na Bíblia só existem quatro Evangelhos. De São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João.

Erin sacudiu a cabeça, contente por voltar a um tema a respeito do qual ela conhecia alguma coisa.

– Na verdade, existem muito mais Evangelhos. Só os Manuscritos do Mar Morto contêm trechos de uma dúzia de Evangelhos diferentes. De várias fontes. De Maria, Tomé, Pedro e até Judas. Apenas quatro entraram na Bíblia. Mas nenhum deles sugere que Cristo tenha escrito seu próprio livro.

– Então talvez a Igreja os tenha expurgado. Tenha apagado quaisquer referências. – Ele levantou o queixo. – Nós sabemos como a Igreja é boa em guardar segredos.

Isso fazia certo sentido.

Sem quaisquer referências, quaisquer sugestões de sua existência, ninguém procuraria por ele.

Ela lançou um olhar rápido para Jordan, mais uma vez surpresa com a perspicácia dele, mesmo quando estava dominado e abalado pela emoção.

– O que me faz perguntar – continuou ele. – Se eu fosse a Igreja e tivesse um documento antiquíssimo escrito por Jesus Cristo, estaria mostrando aquela coisa por toda parte para que todo mundo visse. Então por que São Pedro o enterrou aqui? O que ele estava escondendo?

Além da existência dos strigoi? Ela não se deu ao trabalho de formular sua pergunta em voz alta. Era apenas uma entre tantas.

Jordan se virou para o padre. Ele empunhou a lâmina ameaçadoramente.

– Só existe uma pessoa que tem as respostas.

Rhun se levantou de repente, sentando-se ereto. Os olhos dele abarcaram os dois.

Será que ele os ouvira?

O padre se virou, olhando fixamente para a escuridão. Suas narinas se inflaram, como se estivesse farejando o ar.

Ele falou de novo com aquela calma assustadora:

– Alguma coisa está por perto. Algo de terrível.

O coração dela lhe saltou para a garganta, fazendo-a se calar sufocada.

Jordan deu voz ao seu terror.

– Mais strigoi?

– Existem coisas piores que strigoi.


15

26 de outubro, 19:43, horário de Israel

Deserto além de Massada, Israel

Rhun estendeu a mão para o soldado.

– Minha faca.

Sem hesitar, Jordan a passou para a mão espalmada. Rhun reuniu o que restava de sua batina retalhada ao redor de si, sabendo que precisaria de toda a proteção disponível.

– O que está vindo? – O soldado sacou a pistola. Rhun o respeitou por ter tido o cuidado de recolher clipes de munição adicionais de seus companheiros mortos na tumba.

Aquilo ajudaria, mas pouco.

Um odor acre cortou os aromas de areia se resfriando e das flores do deserto, e Rhun sacudiu a cabeça para clareá-la. Ele murmurou uma prece rápida.

– Rhun? – A mulher estava de testa franzida.

– É uma blasphemare – respondeu ele.

O soldado checou a arma.

– Que diabo é isto?

Rhun limpou a lâmina na calça suja.

– Um animal que foi corrompido. Uma criatura cuja força e sentidos são ampliados por sangue impuro de strigoi.

O soldado manteve a arma erguida.

– Que tipo de animal, exatamente?

A resposta ululante cortou a escuridão ecoando por toda parte ao redor, seguida pelos sons altos de outros animais fugindo. Nada queria estar perto da criatura que fazia aquele som.

Rhun deu-lhe um nome.

– É um lobogrifo. – Ele apontou a lâmina para um ninho de pedregulhos e lhes ofereceu uma chance remota de sobreviver. – Escondam-se.

O homem girou nos calcanhares, um soldado bem treinado o suficiente para saber quando obedecer. Ele agarrou a mão da mulher e correu com ela para a parca cobertura das rochas. Rhun vasculhou a escuridão, lançando mão de sua percepção. O uivo lhe dizia que a fera sabia que tinha sido descoberta. Que queria assustá-los.

E ele não podia dizer que tivesse falhado.

Seus dedos se cerraram no punho da lâmina fria, tentando bloquear o bater atordoante do coração do lobo. Estava alto demais para que ele pudesse localizá-lo em algum ponto específico, então se esforçou para impedi-lo de dominá-lo, para bloqueá-lo de modo a estar aberto a outros sons.

Ele sentia a criatura, um deslocamento nas sombras, circulando ao redor deles.

Mas onde...?

Houve uma pancada surda na areia atrás dele.

Ele não conseguiu se virar a tempo.

O animal se despiu da noite, como que tirando uma capa, sua pelagem negra escura como petróleo. Ele atacou. Rhun se agachou e girou para fora de seu caminho.

Mandíbulas poderosas se cerraram com um estalo, abocanhando apenas tecido. O lobo agarrou a bainha de sua batina rasgada e sacudiu, Rhun foi arrancado pelos pés e atirado no solo, mas o tecido se rasgou, libertando-o.

Ele rolou, pedras pontiagudas e espinhos do deserto cortando-lhe as costas nuas. Aproveitou o impulso para se levantar com as pernas agachadas, finalmente encarando seu adversário.

O lobogrifo girou, espuma de sua boca voando no ar. Os lábios ondulavam acima das presas arreganhadas. Era enorme, do tamanho dos ursos das montanhas da Romênia de sua infância. Os olhos vermelho-dourados da fera brilhavam com uma malignidade que não tinha lugar sob o sol.

As orelhas altas se colaram ao crânio e um rosnado baixo ressoou vindo de seu peito. Garras em curva como ganchos, longas o suficiente para perfurar o coração de um homem, arranharam a areia. Os músculos das ancas se contraíram como cordas revestidas de ferro.

Rhun esperou. Há muito tempo, quando fazia pouco que tinha entrado para a Igreja, um animal daqueles quase havia posto fim à sua vida – e na ocasião ele não estava sozinho. Outros dois estavam ao seu lado. Aqueles lobogrifos eram quase impossíveis de matar, eram ágeis de mente e músculos, tinham a pele dura como cota de malha e uma velocidade que fazia com que mais perecessem sombras do que carne e osso.

Poucas lâminas podiam feri-los, e Rhun tinha perdido seu punhal.

Ele cerrou os dedos vazios. Pelo canto dos olhos, viu o brilho de prata na areia, onde deixara cair o punhal quando fora arrancado pelos pés. Não poderia recuperá-lo a tempo.

Como se o lobo soubesse disso, seus lábios se repuxaram ainda mais para trás num arreganhar de dentes apavorante.

Então ele avançou em direção a Rhun.

Rhun desviou para a direita, mas os olhos escarlate o encontraram. O lobo não se deixaria enganar mais uma vez. Ele saltou em cima dele.

Um grito áspero explodiu vindo do deserto – seguido por uma explosão destruidora. No meio do salto, os quartos traseiros do lobo se dobraram. O ombro enorme da fera se chocou contra a areia. A forma sólida deslizou em sua direção.

Rhun se torceu e se afastou correndo para sua faca.

Além do pelo crispado do lobo, ele avistou o soldado correndo em sua direção, se afastando do abrigo de pedregulhos. Explosões saindo do cano da arma faiscaram enquanto ele esvaziava o pente.

Homem estúpido, corajoso, impossível.

Rhun agarrou sua faca.

O animal já tinha se posto de novo de pé, entre Rhun e o soldado. A cabeça do lobo girou, olhando um e outro. Seu sangue enegrecia a areia.

Mas não havia sangue suficiente.

O soldado largou no chão um pente vazio e enfiou outro. Mesmo uma arma como aquela não poderia deter um lobogrifo. Com o coração acelerado pela batalha, o lobogrifo ignorou a dor e os terríveis ferimentos.

O focinho cheio de cicatrizes hesitou entre eles. Um brilho astuto de rubi negro reluziu em seus olhos.

Subitamente Rhun soube quem a fera iria atacar.

Com uma explosão de músculos, o lobo saltou para longe.

Em direção às rochas.

Em direção ao mais fraco dentre eles.

19:47

O monstro avançou para Erin. Com as costas apoiadas numa pilha de pedregulhos, ela não tinha onde se esconder. Se corresse, o animal a alcançaria em segundos. Ela se enfiou mais fundo entre as pedras, e prendeu a respiração.

Jordan disparou. Balas penetraram no flanco do animal, explodindo longe pedaços de pelo, mas ele não reduziu a velocidade. Rhun, também, corria para ela numa velocidade incrível. Infelizmente, ele nunca a alcançaria a tempo. E de todo modo não podia deter aquele monstro.

O animal derrapou nas quatro patas, espirrando areia nos olhos dela. Baba respingou em suas faces. Um hálito quente, fétido a envolveu.

Erin puxou sua única arma – do cano da meia.

Uma garra se cravou em sua coxa, puxando-a mais para perto, à medida que as mandíbulas se abriram monstruosamente.

Erin gritou e enfiou o braço além daqueles dentes, bem no fundo da bocarra. Enterrou a agulha do dardo de atropina bem fundo na língua do monstro. Tirou o braço antes que as mandíbulas se cerrassem.

Espantado, o lobo recuou e cuspiu a seringa plástica amassada. Erin se lembrou da advertência de Sanderson: A atropina faz o seu coração acelerar como louco. É forte o suficiente para explodir seu coração, se você não estiver envenenada.

Corrompido ou não, um animal era um animal. Pelo menos esperava. E se a droga não fizesse efeito? A resposta lhe chegou uma fração de segundo depois.

O lobo deu mais um passo inteiro para trás, esticando o pescoço. Um uivo saiu de sua bocarra. A atropina elevara sua pressão sanguínea. Sangue negro jorrava dos ferimentos a bala, caindo em jatos na areia.

Ela sentiu uma satisfação mesclada com repugnância enquanto ele uivava, e pensou no jovem soldado de rosto sardento que lhe tinha entregue o dardo.

Isto é por Sanderson.

Mas o animal também queria vingança. Fúria e dor contorceram-lhe o focinho transformando-o em algo mais que medonho. Ele arreganhou os dentes – e avançou em direção ao rosto dela.

19:48

Rhun não conseguia compreender o que a mulher tinha feito, como conseguira fazer o lobo recuar, uivar daquele jeito. Mas aquilo lhe deu tempo para alcançar o animal. A dor e a fúria cegavam a criatura, mas mesmo assim deve ter percebido a aproximação de Rhun.

Com um rugido, o animal desviou de Erin e saltou para a garganta de Rhun.

Mas Rhun não estava mais lá. Ainda correndo, ele se arqueou para trás e deslizou nas solas dos sapatos, passando por baixo das mandíbulas escancaradas. A menos de um palmo de seu nariz, os dentes se cerraram. Ele caiu sobre um ombro, deslizou entre as duas patas dianteiras e se meteu debaixo da fera. Uma vez ali, golpeou o animal com o punhal de prata, enterrando-o fundo na barriga, um dos poucos pontos fracos. Ele arrastou o gume da lâmina cortando músculos e pele, usando toda a sua força. E fez uma prece silenciosa pelo animal, pelo que outrora tinha sido uma das criaturas de Deus. Não merecia ter sido usada de forma tão cruel.

Entranhas e sangue jorraram em cima dele, encharcando-lhe os braços, o peito e o rosto.

Ele rolou para fora dali e se agachou para limpar o rosto.

Mais para o lado, o soldado veio correndo, disparando à queima-roupa contra o animal.

O focinho se estendeu para o céu noturno, uivando – um uivo que foi enfraquecendo, até que o animal tombou na areia.

O brilho rubi-escuro se apagou em seus olhos, deixando para trás um rico dourado. O lobo ganiu uma vez, um minúsculo lampejo de sua verdadeira natureza retornando – mas apenas naquele último momento.

Um derradeiro espasmo, e ele se imobilizou.

Rhun levantou dois dedos e fez o sinal da cruz sobre o corpo do animal. Ele o libertara de sua eterna escravidão.

Dominus vobiscum, disse silenciosamente. O Senhor esteja convosco.

A mulher saiu do meio das pedras, sangue fragrante escorrendo de um corte na coxa. O soldado a deteve. Manteve a arma apontada para o corpo do lobo.

– Está realmente morto, Korza?

O sangue do animal escorria do corpo do próprio Rhun. Ele sentiu um gosto de ferro nos lábios. Aquele gosto aqueceu sua garganta, floresceu em seu peito. Dominou seus sentidos. Durante todo o tempo em que fizera o trabalho de Deus, tinha enfrentado incontáveis tentações e só havia cedido numa terrível ocasião. Contudo, mesmo a mais ferrenha determinação não podia impedir seu corpo de reagir ao sangue.

Atrás dele, o bater do coração do soldado e da mulher clamava por sua atenção.

Ele recusou.

Estendeu a mão para trás, puxou o capuz da batina sobre os olhos e encarou o deserto silencioso – esperando que eles não tivessem visto suas presas começarem a se alongar.


16

26 de outubro, 19:49, horário de Israel

Em voo para Cesareia, Israel

Experimentando a morte junto com Hunor, Bathory se contorceu de dor, dobrada sobre o estômago, lutando contra o cinto do assento. Os dedos dela apertaram com força a barriga, tentando estancar o fluxo de sangue, o tumulto de entranhas jorrando através de sua pele dilacerada.

Ela sentiu a vida de seu companheiro de sangue escapar. Ansiou por segui-la, recolher aquele espírito e abraçá-lo contra o peito e confortá-lo em sua jornada.

Hunor... meu querido...

Mas ele já havia partido, sua dor se apagando no íntimo dela. Ela olhou fixamente para as palmas pálidas de suas mãos. Estava intocada, mas não intacta. O último uivo sussurrado de libertação de Hunor a deixara tão vazia como se também tivesse sido estripada.

Aquele último uivo foi respondido por outro.

Magor ganiu alto no compartimento de carga atrás da cabine, chamando por seu gêmeo, o ganido angustiado de um companheiro de ninhada por um irmão. Os dois filhotes tinham sido tirados da barriga cortada de uma loba. Foram um presente Dele, unidos pelo sangue com ela durante um ritual mágico, tornando-se tanto uma parte dela quanto a tatuagem negra em sua garganta.

Ela se virou no assento e pôs a palma da mão contra a parede que a separava de Magor. Desejando ir para junto dele, abraçá-lo bem junto a si, para que sentissem juntos o que outrora haviam compartilhado, como se fossem duas mãos em concha protegendo uma chama fraca contra um vento duro.

Eu estou aqui, lançou seu pensamento, banhando-o em carinho e conforto, mas sem esconder sua própria dor.

Como poderia?

Três agora eram dois.

As palavras da letra de uma velha cantiga de ninar húngara ressoaram em sua mente, trazendo consigo a promessa de segurança e de um sono tranquilo. Ela as deu a Magor.

Tente, baba, tente.

Magor se acalmou, o amor dele se entrelaçando com o dela, fundindo-os um no outro.

Dois sobreviveriam.

Para um propósito.

Vingança.

Fortalecida, ela se recompôs e olhou para o outro lado da cabine.

O helicóptero voava em meio à noite profunda, deixando as ruínas de Massada bem longe para trás. Os homens que restavam a Bathory estavam sentados submissos e silenciosos diante dela. Embora sujos de sangue, nenhum deles tinha sido ferido.

Tarek balbuciava preces em latim, uma lembrança de que há muito tempo fora um padre. Enquanto os lábios dele se moviam, seus olhos frios a encaravam fixamente, depois de terem visto a prostração e o pesar dela. Ele sabia o que aquilo significara.

Só uma criatura era capaz de matar um lobogrifo no auge de sua força.

Korza ainda estava vivo.

O olhar de Tarek se voltou para o ombro dela. Só então ela reparou no medo que ardia nele. Ela levou os dedos ao alto do braço – eles saíram molhados.

De sangue.

Perdida na agonia de Hunor, ela devia ter se esfolado contra um parafuso na parede vizinha, rasgando a camisa e a pele.

Era uma ferida superficial.

Mesmo assim, Tarek recuou temeroso de seus dedos ensanguentados.

Escarlate tingido de prata.

Apenas uma gota do sangue dela era veneno para todos os outros como ele, uma maldição nascida da marca em sua garganta. Mais um dos presentes Dele. A maldição em seu sangue a protegia das presas dos integrantes do exército Dele e era a fonte da dor constante que pulsava em suas veias, surda, mas sempre presente, nunca cessando, nunca esquecida, se intensificando a cada batida de seu coração.

Ela limpou os dedos e cobriu a ferida com uma tira, usando os dentes para apertar o nó.

Ao lado de Tarek, o irmão dele, Rafik, baixou a cabeça em claro sinal de reverência enquanto Tarek retomava suas preces em latim.

Os outros apenas olhavam fixamente para as botas sujas de sangue. Os laços deles com os soldados tombados no combate datavam de décadas, ou mais. Ela sabia que os homens a responsabilizavam por aquelas mortes, como Ele o faria. Bathory temia a punição que Ele lhe daria.

Ela olhou pela janela, imaginando Korza lá embaixo.

Vivo.

A raiva ardeu mais intensa do que a dor em seu sangue.

Magor respondeu, rosnando do outro lado da parede.

Brevemente, prometeu ela.

Mas primeiro tinha um dever a cumprir em Cesareia. Ela se recordou da arqueóloga agitando o telefone dentro da tumba. Tinha reconhecido a expressão no rosto da mulher: excitação mesclada com desespero. A arqueóloga sabia de alguma coisa.

Eu tenho certeza disso.

Mas o quê? Uma pista sobre o paradeiro do livro? Se fosse, será que ela havia conseguido transmitir a informação antes que a montanha desmoronasse?

A única resposta estava em Cesareia.

Onde mais uma vez o sangue correria.

Desta vez, sem nenhum Sanguinista para detê-la.


17

26 de outubro, 20:01, horário de Israel

Deserto além de Massada, Israel

– Korza?

A voz áspera e impaciente do soldado interrompeu os pensamentos de Rhun enquanto ele encarava o deserto, escondido nas profundezas de sua batina com capuz. Ele lutou para ouvi-la além do som úmido e convidativo do coração do homem.

– Vire-se – ordenou o soldado – ou eu atiro e mato você onde está.

O coração da mulher agora também batia mais rápido.

– Jordan! Você não pode matá-lo assim.

Rhun considerou a possibilidade de deixar que o sargento fizesse exatamente aquilo. Seria mais fácil. Mas quando algum dia seu caminho havia sido fácil?

Ele se virou, mostrando-lhes a sua verdadeira natureza.

A mulher cambaleou para trás.

O soldado manteve a arma apontada para o peito de Rhun.

Ele sabia o que eles deviam estar vendo: o rosto dele escurecido pelo sangue, seu corpo escondido em sombras, os dentes a única coisa a brilhar ao luar.

Ele sentiu o animal em seu íntimo cantar, um uivo lutando para se libertar. Encharcado de sangue, ele lutou para não libertar o animal; do mesmo modo que lutou para não fugir para o deserto e esconder sua vergonha. Em vez disso, apenas levantou os braços abertos e dobrados na altura dos ombros. Eles precisavam ver que estava desarmado tanto quanto precisavam ver a verdade.

Estupefata, a mulher controlou seu terror inicial.

– Rhun, você também é strigoi.

– Nunca. Eu sou Sanguinista. Não strigoi.

O soldado deu uma risadinha debochada, sem mover a arma.

– Parece a mesma coisa visto daqui.

Para que eles compreendessem, Rhun sabia que teria que se humilhar ainda mais. Detestou essa ideia, mas não via outra maneira de eles saírem vivos do deserto.

– Por favor, traga-me o meu vinho – pediu.

Os dedos dele tremeram de ânsia enquanto o braço se estendia para o cantil semienterrado na areia.

A mulher se inclinou para pegá-lo.

– Jogue-o para ele – ordenou o soldado. – Não se aproxime.

Ela fez o que ele mandou, os olhos cor de âmbar arregalados. O cantil caiu a um braço de distância na areia.

– Posso ir pegá-lo?

– Devagar. – A arma do soldado permaneceu firme, apontada; estava claro que ele cumpriria o seu dever sem hesitar.

Rhun também não hesitaria. Mantendo os olhos no soldado, ele se ajoelhou. No instante em que seus dedos tocaram o cantil, ele se sentiu mais calmo, a sede de sangue minguando. O vinho talvez pudesse salvá-los.

Rhun encarou os outros.

– Posso andar para o deserto e bebê-lo? Depois disso eu explicarei tudo.

Por favor, rezou ele. Por favor, permita-me esta última migalha de dignidade.

Não aconteceria.

– Fique onde está – advertiu o soldado. – Ajoelhe-se.

– Jordan, por que...

O soldado a interrompeu:

– A senhora ainda está sob o meu comando, dra. Granger.

Várias emoções lampejaram no rosto dela, acabando com resignação. Claramente, ela também não confiava em Rhun. Ele se surpreendeu com o quanto aquilo o magoou.

Levando o cantil aos lábios, ele o esvaziou em um grande gole. Como sempre, o vinho fez sua garganta arder e desceu queimando. Ele cerrou as duas mãos sobre a cruz dependurada no pescoço e baixou a cabeça.

O calor do vinho consagrado, do sangue de Cristo, queimou as cordas que o prendiam àquele tempo, àquele lugar. À deriva e fora de controle, ele reviveu seus maiores pecados, dos quais nunca poderia escapar antes que sua penitência neste mundo estivesse concluída.

Elisabeta corria por seus jardins em seu vestido carmesim, rindo, radiante como o sol da manhã, a rosa mais brilhante em meio às flores.

Tão bonita, tão cheia de vida.

Embora ele fosse padre, e tivesse jurado evitar o toque da carne, nada o proibia de olhar para a beleza de Deus brilhando na visão de vislumbre da carne macia do tornozelo dela enquanto se inclinava para cortar um galho de lavanda, ou para a curva de sua face quando ela levantou a cabeça para olhar para cima, o olhar perdido no céu.

Como ela adorava o sol – quer fosse o calor de uma tarde de verão ou apenas a promessa fria de um dia bonito de inverno.

Ela continuou a andar pelo jardim, colhendo lavanda e tomilho para fazer um cataplasma para sua égua, o tempo todo explicando a ele os vários usos de cada erva. Nos meses desde que ele a conhecera, havia aprendido muita coisa sobre plantas medicinais. Tinha até começado a escrever um livro sobre o tema, esperando dividir com o mundo os dons de Elisabeta como fitoterapeuta.

Ela roçou na palma da mão dele com as pontas dos dedos quando lhe entregou os galhos de lavanda. Um arrepio percorreu-lhe o corpo. Um padre não deveria sentir aquilo, mas ele não recuou. Ele se aproximou um passo, admirando o brilho do sol no cabelo negro dela, a linha do pescoço longo e branco descendo para os ombros, e as curvas do vestido macio de seda.

A criada de Elisabeta levantou a cesta para receber a lavanda. A mocinha magricela virou a cabeça para o lado para esconder o sinal de nascença vermelho que lhe cobria metade do rosto.

– Anna, leve a cesta para a cozinha e a esvazie – instruiu Elisabeta, pondo na cesta mais um galho de tomilho.

Anna se afastou andando pelo campo, lutando com a cesta pesada. Rhun teria ajudado a mocinha a carregá-la, mas Elisabeta nunca permitiria isso, considerando-o indigno para um homem da sua posição.

Elisabeta observou a criada se afastar. Depois que eles ficaram sozinhos, ela se virou para Rhun, com o rosto ainda mais radiante – se é que isso era possível.

– Um momento de paz! – exclamou ela com satisfação. – É tão solitário quando estou com os criados o tempo todo ao meu redor.

Rhun, que com frequência preferia passar dias sozinho, entregue às suas preces, compreendia muito bem a solidão da falsa companhia.

Ela sorriu para ele.

– Mas não com o senhor, padre Korza. Nunca me sinto solitária quando estou em sua companhia.

Ele não conseguiu encarar o olhar dela. Virando-se, ajoelhou-se e cortou um galhinho de lavanda.

– O senhor nunca se cansa disso, padre Korza? De sempre usar uma máscara? – Ela ajustou o chapéu de abas largas. Sempre tomava muito cuidado de impedir que o sol lhe queimasse a pele clara. Mulheres da sua classe não deviam parecer que precisavam trabalhar ao sol.

– Eu uso uma máscara? – Ele manteve o rosto impassível. Se ela soubesse o que ele escondia, sairia correndo e gritando.

– É claro. O senhor usa a máscara do padre. Mas eu devo usar muitas máscaras, máscaras demais para meu rosto suportar com facilidade. A da dama, a da mãe e a da esposa. E outras mais. – Ela girou um pesado anel de ouro ao redor do dedo, um presente de seu marido, Ferenc. – Mas o que eu gostaria de saber é o que existe debaixo de todas estas máscaras.

– Tudo o mais, suponho.

– Mas quanto da verdade... Quanto de nossa verdadeira natureza podemos esconder, padre? – A voz baixa de Elisabeta fez um calafrio descer pela coluna dele. – E de quem?

Ele examinou a sombra que ela lançava no campo ao lado dele e balbuciou como que numa prece:

– Escondemos o que devemos esconder.

A sombra dela recuou um passo, talvez porque tivesse ficado insatisfeita com a resposta – um pensamento que o arrasou como se ela o tivesse pisado com aquele calcanhar bem torneado.

A sombra escura de um falcão flutuou cruzando o campo. Ele ouviu o bater rápido de seu coração acima e o bater mais ligeiro dos corações dos camundongos abaixo. Seu serviço para a Igreja, o campo verdejante, o sol radiante, as flores... todos eram dádivas generosas, dadas livremente por Deus a um ser tão reles quanto ele.

Aquilo não deveria ser suficiente?

Ela alisou a frente do vestido.

– O senhor é sábio, padre. Um aristocrata que baixa a sua máscara não sobrevive muito tempo nos dias de hoje.

Ele levantou a cabeça.

– O que a preocupa tanto?

– Talvez eu esteja apenas cansada das intrigas. – Os olhos dela seguiram o falcão enquanto a ave mergulhava. – A Igreja com certeza também não luta em meio ao mesmo caldeirão de ambições, grandes e pequenas?

Ele tocou a cruz com a ponta do dedo.

– Bernard me protege do pior, creio.

– Nunca confie naqueles que se oferecem para ser seu escudo. Eles apenas se alimentam de nossa ignorância e temores. É melhor olhar para as coisas de frente e não ter medo.

Rhun lhe ofereceu algumas palavras de consolo:

– Talvez seja melhor confiar naqueles que querem ser seu escudo, eles o fazem por amor, para protegê-la.

– Palavras de um homem. E de um padre. Mas eu aprendi a confiar em muito poucos. – Ela inclinou a cabeça pensativamente. – Porém, confio no senhor, padre Korza.

– Eu sou um padre, portanto deve confiar em mim. – Ele lhe deu um sorriso tímido.

– Eu não confio em outros padres. Inclusive no seu precioso Bernard. Mas o senhor é diferente. – Ela colocou a mão no braço dele, e ele saboreou o toque. – O senhor é apenas um amigo. Um amigo quando tenho tão poucos.

– Sinto-me honrado, senhora. – Ele deu um passo para trás e fez uma reverência, um gesto exagerado para tornar mais leve o tom da conversa.

Ela sorriu com indulgência.

– E deve, padre.

Ambos riram do tom dela.

– Aí vem Anna, já de volta. Conte-me mais uma vez sobre a ocasião em que disputou uma corrida com seu irmão e como vocês dois acabaram dentro de um córrego e com peixes dentro das botas.

Ele lhe contou a história, embelezando-a com mais detalhes do que dera da última vez para fazê-la rir.

Eles tinham vivido momentos felizes, com muito riso.

Até que um dia ela havia parado de rir.

No dia em que ele a traíra.

No dia em que ele traíra Deus.

De volta ao seu corpo, onde a areia fria lhe pressionava os joelhos, o vento seco arrancava-lhe as lágrimas das faces. A cruz de prata havia lhe queimado as luvas e deixado uma marca escarlate nas palmas das mãos. Os ombros dele se curvaram sob o peso de seus pecados. Ele apertou as mãos ao redor do metal escaldante.

– Rhun? – uma voz de mulher disse seu nome.

Ele levantou a cabeça, esperando ver Elisabeta. O soldado o olhava com desconfiança, mas nos olhos da mulher havia apenas piedade.

Ele fixou os olhos no soldado. Achou o olhar duro do homem mais fácil de suportar.

– Está na hora de começar a explicar – disse o soldado, apontando a arma para o coração de Rhun, como se aquilo não tivesse sido destruído há tanto tempo.

20:08

– Jordan, veja os dentes dele... estão normais de novo.

Espantada, Erin deu um passo à frente, querendo examinar a miraculosa transformação, compreender o que sua mente ainda se recusava a acreditar.

Jordan a impediu com o braço.

Ela não resistiu.

Apesar de sua curiosidade de cientista, Rhun ainda a assustava.

A voz do padre soou trêmula, seu sotaque eslavo mais carregado, como se ele tivesse voltado de uma grande distância, de um lugar onde a sua língua nativa ainda era falada.

– Obrigado... pela paciência.

– Não espere que esta paciência dure muito – disse Jordan, não agressivamente, apenas com segurança.

Erin empurrou o braço de Jordan para baixo, querendo ouvir, mas não tentou se aproximar.

– O senhor disse que era um “Sanguinista”, não strigoi. O que isto significa?

Rhun olhou para longe, em direção ao deserto escuro, em busca da resposta.

– Os strigoi são criaturas selvagens, ferais. Nascidas de assassinato e derramamento de sangue, elas não servem a ninguém, exceto a si mesmas.

– E os Sanguinistas?

– Todos os membros da Ordem dos Sanguíneos outrora foram strigoi – admitiu Rhun, encarando-a olhos nos olhos. – Mas agora os membros de minha ordem servem a Cristo. É a bênção Dele que nos permite andar sob o brilho da luz radiante de Deus, servir como Seus guerreiros.

– Então pode andar sob a luz do sol?

– Sim, mas o sol ainda é doloroso – admitiu o padre, e tocou o capuz de sua batina.

Ela se lembrou da primeira vez que tinha visto Rhun, enterrado sob sua batina, a maior parte de sua pele coberta, de óculos escuros. Ela se perguntou se a tradição de monges católicos usarem hábitos com capuz não se originaria da Ordem dos Sanguinistas, um reflexo externo de um segredo mais profundo.

– Mas sem a proteção da bênção de Cristo – prosseguiu Rhun –, o toque do sol matará um strigoi.

– E o que são exatamente estas bênçãos de Cristo? – perguntou Erin, surpresa com o tom de zombaria em sua voz, mas incapaz de contê-lo.

Rhun a encarou por um longo momento, como que lutando para encontrar as palavras corretas para explicar um milagre. Quando finalmente falou, suas palavras foram solenes, carregadas de uma certeza que faltara a Erin durante quase toda sua vida:

– Eu sigo o caminho de Cristo, e fiz um juramento solene de nunca beber sangue humano. Este ato é proibido para nós.

Jordan continuou prático como sempre:

– Então do que o senhor se alimenta, padre?

Rhun se empertigou. O orgulho irradiou dele, atravessando o ar do deserto em direção a ela.

– Eu jurei beber apenas o sangue Dele.

O sangue Dele...

Ela ouviu a ênfase naquelas últimas palavras e soube o que significavam.

– O senhor está falando do sangue de Cristo – disse ela, agora surpresa pela ausência de zombaria em sua voz. Criada numa seita de catolicismo devoto, até ela compreendia qual era a fonte daquele sangue. Recordou-se de sua infância, de estar ajoelhada no chão de terra batida junto do altar, do vinho amargo derramado sobre sua língua.

Ela olhou para o cantil de água na mão de Rhun.

Mas não continha água.

Também não continha vinho – apesar do que ela própria havia bebericado alguns momentos antes.

Ela sabia o que havia no odre.

– Isto é vinho consagrado – disse, apontando para o que ele segurava.

Com reverência, ele alisou o cantil.

– É mais do que consagrado.

Ela também compreendeu isso.

– Quer dizer que foi transubstanciado.

Erin tinha aprendido isso na infância, nas aulas de catecismo, e houvera uma época em que acreditava naquilo. A transubstanciação era um dos princípios fundamentais do catolicismo. O vinho consagrado durante uma missa se tornava, literalmente, o sangue de Cristo, imbuído da essência Dele.

Rhun baixou a cabeça concordando.

– É verdade, meu recipiente abençoado contém vinho convertido no sangue de Cristo.

– Impossível – balbuciou ela, mas faltava convicção à palavra.

Jordan também não acreditava.

– Eu bebi de seu frasco, padre. Parece vinho, tem cheiro de vinho, tem gosto de vinho...

– Mas não é – interrompeu Rhun. – É o sangue de Cristo.

O tom zombeteiro voltou às palavras de Erin, e a ajudou a se acalmar.

– Então o senhor afirma que a transubstanciação resulta numa transformação real, não apenas metafórica.

Rhun abriu os braços estendidos.

– E eu não sou uma prova? É o sangue Dele que sustenta a minha ordem. O ato da transubstanciação foi ao mesmo tempo um pacto e uma promessa entre Cristo e a humanidade, mas mais ainda para os strigoi que ele buscou salvar. Para termos uma chance de recuperar nossas almas, juramos nunca mais nos alimentarmos de seres humanos e que viveríamos apenas de seu sangue abençoado, nos tornando Cavaleiros de Cristo. Submetidos por um juramento de vassalagem e dedicados a servir a Igreja até o fim de nossos dias, quando seremos mais uma vez recebidos ao lado Dele. Este é o nosso pacto com Cristo e a Igreja.

Erin não conseguia acreditar naquilo. O pai dela daria voltas na sepultura se ouvisse a simples ideia do sangue de Cristo ser usado de tal maneira.

Rhun deve ter percebido a dúvida no rosto dela.

– Por que você acha que os primeiros cristãos se referiam ao vinho da comunhão como “remédio para a imortalidade”? Porque eles sabiam do que há muito tempo foi esquecido – mas a Igreja tem uma memória muito mais longa.

Ele virou o cantil para que eles pudessem ver o brasão do Vaticano gravado na parte de trás: duas chaves cruzadas, entrelaçadas nos anéis com um cordão, sob a tríplice coroa do trirregno.

O olhar dele se deteve em Erin.

– Eu não peço que você acredite em nada além daquilo que vir com seus próprios olhos e sentir com seu coração.

Ela se sentou pesadamente num pedregulho e baixou a cabeça entre as mãos. Tinha provado o vinho do cantil. Como cientista, se recusava a crer que fosse algo mais que vinho. Contudo, tinha visto os strigoi se alimentarem de sangue, e tinha visto Rhun beber seu vinho.

Ambos tinham ficado fortalecidos.

Ela lutou para encaixar o milagre numa equação científica.

Era impossível transformar o vinho em sangue, de modo que devia ser a crença que permitia a Rhun beber o vinho como se fosse sangue. Devia ser alguma espécie de efeito placebo.

– Está bem, doutora? – perguntou Jordan.

– A transubstanciação é apenas uma lenda. – Ela tentou explicar a ele. – Um mito.

– Como os strigoi? – interrompeu Rhun. – Aqueles que andam na noite e bebem o sangue de seres humanos? A senhora conseguiu aceitar a existência deles, mas não consegue aceitar que vinho consagrado seja o sangue de Cristo. A senhora não tem nenhuma fé?

Ele parecia mais abalado por esse último detalhe do que por todos os argumentos dela.

– A fé não me serviu muito bem. – Erin cerrou as mãos diante de si. – Vi a Igreja ser usada como ferramenta dos poderosos contra os fracos, a religião ser usada como um obstáculo para a verdade.

– Cristo é mais do que as ações de homens desencaminhados. – Rhun falava em tom fervoroso, como se tentando convertê-la, como padres tantas vezes tinham feito. – Ele vive em nosso coração. Seus milagres sustentam todos nós.

Jordan pigarreou.

– Isto tudo é muito bom, padre. Mas voltemos ao senhor. Como se tornou um Sanguinista?

– Há muito pouco para contar. Há séculos, fui mordido por um strigoi, então obrigado a beber quantidades de seu sangue. – Rhun estremeceu. – Fui corrompido e transformado em um deles, uma criatura de desejos abjetos, um devorador de homens.

– Então o que aconteceu? – perguntou Jordan.

Rhun apressou suas palavras, claramente querendo concluir a história:

– Eu me tornei um strigoi, mas, em vez de adotar os hábitos deles, foi-me oferecido outro caminho. Eu fui recrutado naquela mesma noite, antes mesmo de jamais provar sangue humano, e ordenado membro da Ordem dos Sanguinistas. Lá escolhi seguir Cristo. E O tenho seguido desde então.

– De que forma o senhor O seguiu? – perguntou Jordan, igualando o ceticismo de Erin. – Como uma coisa como o senhor serve a Igreja?

– A bênção do sangue de Cristo concede muitas dádivas aos Sanguinistas. Como andar sob o sol. Também nos permite participar de tudo que é santo e sagrado. Embora, como o sol, algumas dessas coisas ainda nos queimem a carne.

Ele tirou uma luva. Uma marca vermelha empolada com bolhas marcava a palma de sua mão na forma de uma cruz. Erin se lembrou de tê-lo visto apertando o crucifixo alguns instantes antes, e o imaginou queimando-lhe a pele.

Rhun deve ter percebido sua aflição.

– A dor nos faz lembrar o sofrimento de Jesus na cruz e serve como uma recordação constante do juramento que fizemos. É um preço pequeno a pagar para viver sob a graça Dele.

Ela o observou enfiar delicadamente a cruz de volta sob a batina rasgada. Será que o crucifixo ardia e queimava sobre seu coração? Será que fora por isso que padres católicos tinham adotado o hábito de usar cruzes tão grandes, como mais um símbolo de um segredo oculto: como a batina com capuz, será que aqueles trajes e acessórios permitiam que os Sanguinistas se escondessem bem à vista entre seus irmãos padres humanos?

Erin tinha um milhar de outras perguntas.

Jordan tinha apenas uma:

– Então, como guerreiro da Igreja, contra quem o senhor luta?

Mais uma vez Rhun olhou para o deserto.

– Nós somos chamados para combater nossos irmãos ferais, os strigoi. Nós os caçamos e lhes oferecemos uma chance de se juntar a Cristo. Se eles não aceitam, os matamos.

– E onde nós, humanos, entramos nesta sua lista? – perguntou Jordan.

Os olhos de Rhun se voltaram para ele.

– Eu jurei nunca tirar uma vida humana, a menos que seja para salvar outra.

Erin reencontrou sua voz:

– O senhor diz que a sua missão é matar strigoi. Contudo, parece que estas criaturas não escolheram se tornar o que são, não mais do que o senhor escolheu, e não mais que um cão escolhe se tornar raivoso depois de mordido.

– Os strigoi são inferiores até aos animais – argumentou Rhun. – Eles não têm alma. Eles existem apenas para fazer o mal.

– Então seu trabalho é mandá-los de volta para o inferno – disse Jordan.

O olhar de Rhun hesitou.

– Na verdade, por não terem alma, não sabemos para onde eles vão.

Jordan se mexeu ao lado dela, baixando a arma, mas não alterou sua postura.

– Se os strigoi são ferais – perguntou Erin –, por que são interessados neste Evangelho de Cristo?

Rhun pareceu pronto para explicar, mas então ficou imóvel – o que imediatamente fez o coração de Erin disparar. Ele virou a cabeça para o lado, o olhar no céu.

– Há um helicóptero vindo – disse sem rodeios.

Jordan olhou ao redor – mas deu apenas olhares rápidos, sem nunca tirar de todo os olhos de cima de Rhun.

– Eu não vejo nada.

– Eu o estou ouvindo. – Rhun inclinou a cabeça. – É um dos nossos.

Erin avistou uma luz no céu vindo rapidamente na direção deles.

– Lá.

– O que quer dizer com “um dos nossos”? – perguntou Jordan.

– É da Igreja – explicou Rhun. – Os que estão vindo não farão mal a vocês.

Enquanto observava a aproximação rápida do helicóptero, Erin sentiu uma preocupação incômoda.

Ao longo dos séculos, quantos homens morreram depois de ouvir promessas semelhantes?


18

26 de outubro, 20:28, horário de Israel

Cesareia, Israel

Bathory se moveu silenciosamente pelas ruínas do hipódromo, seguida por Magor, que também andava sem fazer ruído. Ela compartilhou os sentidos dele se tornando, ao mesmo tempo, a caçadora e o lobogrifo. Sentiu o gosto do sal do Mediterrâneo bem próximo, um espelho negro à sua direita. Sentiu o cheiro da poeira de séculos vindo dos escombros dos antiquíssimos assentos de pedra. Percebeu um bafejo distante de estrume e suor de cavalo.

Ela se manteve bem afastada dos estábulos, tomando cuidado para avançar contra o vento para não assustar os cavalos. Tinha deixado Tarek e os outros no helicóptero, feliz por distanciar-se um pouco deles. Era bom estar sozinha, com Magor ao seu lado, o céu escuro acima, sua presa próxima.

Lentamente, ela e o lobo atravessaram as areias em direção ao agrupamento de tendas, seguindo para a única que ainda brilhava iluminada. Não precisou dos sentidos aguçados de Magor para ouvir as vozes vindas de dentro da tenda chegando até ela no silêncio da noite. Bathory avistou duas silhuetas se movendo, duas pessoas. Pelo timbre das vozes, um homem e uma mulher, ambos jovens.

Os alunos da arqueóloga.

Aproveitando a cobertura da conversa deles, ela chegou à parte de trás da tenda, onde uma pequena janela de tecido tinha sido amarrada aberta para deixar entrar a brisa noturna. Ela ficou parada ali, espiando os dois, uma sentinela silenciosa na noite, com Magor junto ao seu quadril.

Um rapaz de chapéu de caubói e jeans andava de um lado ao outro da tenda enquanto uma moça estava sentada diante de um laptop, bebericando uma Coca Diet. Na tela do computador, uma matéria sem áudio da CNN mostrava o terremoto. A mulher não tirava os olhos da tela; com a palma da mão, mantinha o fone de ouvido no lugar, prestando atenção.

Ela falou sem se virar:

– Tente a embaixada de novo, Nate.

O rapaz caminhou até a janelinha de tela, olhando fixo para fora, mas na verdade sem ver. Bathory se manteve de pé, sabendo que estava escondida pelas sombras. Adorava aqueles momentos da caçada, quando a presa estava tão próxima, sem ainda imaginar o cenário de sangue e o horror que a aguardavam.

Ao lado dela, Magor se manteve imóvel como o céu noturno. Mais uma vez ela se sentiu aliviada pela ausência de Tarek e dos outros. Eles não apreciavam a beleza da caçada – apenas o massacre que se seguia.

Nate deu as costas para a janela, e largou o telefone celular sobre a mesa, ao lado do laptop.

– De que adianta? Tentei ligar para eles infinitas vezes. Continua ocupado. Tentei até a polícia local. Não consigo arrancar deles uma palavra sobre para onde a dra. Granger foi levada.

Amy apontou para a reportagem na tela.

– E se ela tiver sido levada para Massada? As reportagens dizem que os choques secundários derrubaram a montanha inteira.

– Pare de pensar no pior. A dra. Granger poderia estar em qualquer lugar. Seria de imaginar que se a professora teve tempo de enviar aquelas fotografias estranhas, ela poderia pelo menos ter nos enviado uma mensagem de texto, dizendo onde estava.

– Talvez não tenha tido permissão. Aquele soldado israelense ficou na cola dela. Mas por aquela foto do sarcófago aberto pareceu claramente que ela estava explorando uma tumba saqueada.

Na escuridão, Bathory sorriu, recordando a arqueóloga agitando desesperadamente o celular. Então ela de fato andara enviando fotos de algo que considerava importante, possivelmente alguma pista para o paradeiro do livro.

No escuro, Bathory alisou o curativo no braço, recordando a si mesma de que Hunor havia morrido enquanto tentava descobrir o segredo que aquelas fotografias talvez pudessem revelar. A raiva gelada aguçou seus sentidos, concentrou sua mente e afastou a dor intensa em seu sangue.

– Vou voltar para a minha tenda – disse Nate. – Vou tentar dormir umas duas horas, depois ver se consigo falar com alguém, quando todo esse rebuliço do terremoto tiver acalmado um pouco. Você também deveria fazer o mesmo. Algo me diz que a noite vai ser longa.

– Não quero ficar sozinha. – Amy levantou os olhos do computador para olhar para ele. – Primeiro Heinrich, agora nem uma palavra da professora... Não vou conseguir dormir.

Bathory compreendeu o convite nas entrelinhas, mas Nate pareceu nem perceber. Uma pena. Teria tornado muito mais fácil roubar os laptops e os celulares deles se ambos tivessem saído da tenda. Uma perda semelhante não seria incomum em um acampamento distante como aquele, e teria sido considerado um caso simples de roubo.

Em vez disso, ela avaliou o casal. Nate era alto, atlético e bastante bonito. Ela compreendia por que Amy gostava de tê-lo por perto.

Ela própria compreendia o conforto de ter um corpo quente masculino ao lado, dividindo a cama, e recordou o pobre Farid. Ela deslizou os dedos pelo cinto e puxou o punhal do árabe, furtando-o logo depois de matá-lo. Mesmo que de forma ínfima, Farid ainda lhe foi útil.

Ela recuou, considerando qual seria a melhor maneira de fazer o par sair da tenda – ou pelo menos separá-los. Olhou ao redor do acampamento, ouviu o relinchar distante dos cavalos e sorriu.

Um rápido sussurro na orelha de Magor e o lobo saiu trotando silenciosamente em direção aos estábulos.

20:34

Atormentado pela culpa, Nate andava de um lado para outro na tenda.

Eu não deveria ter deixado a dra. Granger ir sozinha.

Ele devia muito à professora, que lhe dera uma chance quando mais ninguém o fizera. Dois anos antes, sua atuação acadêmica não impressionava ninguém. Enquanto estudava na Texas A & M, criava uma irmã mais moça e ainda trabalhava em dois empregos. A carga de trabalho tinha prejudicado imensamente seu coeficiente de rendimento, mas a dra. Granger apostara nele. A professora tinha até ajudado a conseguir uma bolsa integral para sua irmã na Rice, deixando-o livre para viajar.

E o que ele fizera para retribuir?

Tinha deixado que ela embarcasse sozinha em um helicóptero cheio de homens armados.

No instante em que Nate estendeu a mão para a aba da entrada da tenda, um coro de relinchos assustados irrompeu, vindo dos estábulos, ecoando fantasmagoricamente em meio às ruínas escuras.

Ele saiu para a noite. O luar brilhava nas antigas arquibancadas de pedra e na trincheira retangular onde seu amigo Heinrich tinha recebido o golpe que o matara.

Um vento frio soprou areia dentro de seus olhos.

Nate piscou para afastar as lágrimas.

– O que há de errado com os cavalos?

– Não sei e não quero saber – disse Amy, ainda sentada diante do laptop. – Espero que seja alguma coisa medonha. Especialmente para aquele branco.

– O cavalo estava apenas assustado. Foi um acidente. – Mesmo assim, ele não podia culpá-la por estar com raiva do cavalo. Heinrich estava morto, assim, num piscar de olhos. O lugar errado, no momento errado. Poderia facilmente ter sido ele.

Os relinchos se tornaram mais estridentes.

– Vou ver o que é – disse ele. – Vá que seja um chacal.

O pânico dominou a voz de Amy:

– Não me deixe aqui sozinha!

Ele enfiou o chapéu de caubói e remexeu num caixote de madeira perto da porta em busca da pistola da dra. Granger. Ela a usava para matar serpentes.

– Deixe que as pessoas do estábulo cuidem dos cavalos – insistiu Amy. – Você não deveria ir para lá no escuro.

– Eu vou ficar bem – respondeu ele. – E você está perfeitamente segura aqui.

Satisfeito por fazer alguma coisa além de se preocupar, ele saiu da tenda e atravessou a areia. Mas naquele instante a noite lhe pareceu diferente. Seus braços ficaram arrepiados, e aquilo não tinha nada a ver com frio.

Apenas me deixei assustar por Amy, disse a si mesmo.

Mesmo assim, apertou a pistola e acelerou o passo – até que uma sombra passou correndo à sua direita.

Ele parou e girou.

Pelo canto dos olhos, teve um vislumbre de alguma coisa grande passar correndo. Mas não conseguiu ver direito, e não sabia dizer o que era, só que parecia maior que qualquer chacal que ele já tivesse visto, do tamanho de um bezerro de um ano, mas se movendo rápida e fluidamente como um predador. O bicho desapareceu tão depressa que ele não teve certeza de ter visto alguma coisa.

Nate olhou de volta para a tenda bem iluminada. Parecia estar muito longe agora, uma única lâmpada na escuridão.

Atrás dele um cavalo gritou.

20:36

Aproveitando o ruído do relincho, Bathory enfiou a ponta do punhal de Farid no tecido da tenda e puxou a lâmina para baixo. O gume bem afiado da lâmina cortou o tecido esticado quase silenciosamente.

Enquanto isso, ela manteve um olho atento em Amy, que continuava sentada diante do laptop, toda sua atenção voltada para a porta da tenda, as costas viradas para a nova porta que se abria atrás dela.

Bathory avançou de lado pela abertura no tecido cortado, entrando silenciosamente. Uma vez no interior, ela parou bem atrás da moça assustada, que continuava ignorando a sua presença. Um fone de ouvido ainda estava encaixado na orelha de Amy, enquanto o outro balançava solto. Bathory ouviu o zumbido baixo da narração da reportagem da CNN exibida na tela do laptop.

Ela ficou impressionada pelo modo com que a maioria das pessoas se movia inconscientemente pela própria vida, sem dar atenção à verdadeira natureza do mundo ao redor delas, aninhadas em segurança no casulo da modernidade, onde as notícias chegavam 24 horas por dia, sete dias por semana, filtradas e diluídas, onde doses de cafeína eram necessárias para empurrá-las sonolentas para as tarefas da vida cotidiana.

Mas aquilo não era viver.

No fundo de seu coração, a caçada de Magor agitava-se em seu âmago, formando uma confusa combinação distante de sangue, adrenalina e prazer predatório.

Aquela era a verdadeira face do mundo.

Aquilo era viver.

Bathory deu um passo adiante e, com um único e violento corte sob o queixo da mulher, apagou aquele lampejar fraco da vida desperdiçada da moça. Empurrou o corpo para fora do banco antes que o jato de sangue sujasse o laptop.

Amy estrebuchou-se no chão, atordoada demais para saber que estava morta. Conseguiu se arrastar alguns metros em direção à porta da tenda antes de finalmente tombar derrotada, o sangue carmesim empoçando sob seu corpo.

Bathory trabalhou depressa. Fechou o laptop, o enfiou dentro de sua mochila, junto com o par de telefones celulares que estava sobre a mesa.

Ao seu lado, a aba da tenda se moveu.

Ela se virou e viu Nate entrar. Com apenas um olhar ele compreendeu a cena e ergueu a pistola na direção dela.

– Que diabo...?

Bathory se endireitou, sorrindo calorosamente.

Mas não estava sorrindo para o rapaz.

Atrás de Nate, as sombras se moveram e revelaram um par de olhos vermelhos, brilhando de sede de sangue.

A caçada da noite ainda não havia acabado.

Ela lançou sua vontade para seu companheiro de sangue, um desejo resumido por uma palavra:

Pega.


19

26 de outubro, 20:37, horário de Israel

Deserto além de Massada

Jordan vasculhou a areia e as rochas mais uma vez, em busca de um lugar para se esconder, mas não havia nada que oferecesse alguma cobertura, especialmente do ar.

Acima, o helicóptero se aproximou, as hélices cortando a noite. Ele o examinou, reconhecendo o nariz fino de prata e as linhas elegantes. Só tinha visto fotografias do EC145 on-line, que era apresentado como o helicóptero mais luxuoso que se podia comprar por 8 milhões de dólares. Basicamente, era um Mercedes-Benz com rotores.

O patrocinador de Korza, quem quer que fosse, tinha dinheiro.

O padre avançou para o lado na direção do helicóptero.

Caso Jordan não estivesse enganado, a aeronave acomodava oito passageiros, incluindo um piloto e o copiloto. Portanto, ele enfrentaria oito oponentes em potencial sem nenhum terreno defensivo. Admitindo essa dura verdade, ele enfiou a pistola no coldre. Não tinha condições de lutar para vencer, então teria que ter esperança de que Korza não estivesse mentindo e que eles não seriam atacados.

Ele se virou para Erin.

– Você consegue ficar de pé? – perguntou em voz baixa. Ele queria que ela estivesse de pé para o caso de eles terem que se mover depressa.

– Posso tentar.

Quando se levantou, ela se contraiu de dor e passou o peso para a perna direita. Uma mancha de sangue escurecia-lhe a perna esquerda da calça.

– O que aconteceu? – perguntou ele, se censurando por não ter visto o ferimento dela antes.

Ela baixou o olhar, parecendo tão surpresa quanto ele.

– Foi o lobo. Ele me arranhou. Não é nada.

– Deixe-me ver.

Ela arqueou uma sobrancelha.

– Não vou tirar a calça aqui.

Ele tirou o punhal da bainha no tornozelo.

– Posso cortar a perna da calça logo acima do ferimento. Vai estragar a calça, mas não vai ferir sua dignidade.

Ele sorriu.

Ela retribuiu o sorriso enquanto se sentava de volta no pedregulho.

– Este me parece um plano melhor.

Jordan cortou junto à costura com o punhal, tendo cuidado de manter a lâmina afastada da pele macia abaixo. Rasgou o tecido, depois puxou a calça para baixo por cima do tênis. Foi um gesto de intimidade. Ele se concentrou em tirar a perna da calça sem machucá-la e evitando manter as mãos por muito tempo sobre a perna nua, que, embora ele não tivesse percebido, estava lindíssima sob a luz do luar.

Jordan voltou sua atenção para o ferimento, que lhe descia pela coxa – não era profundo, mas longo. Ele o examinou desconfiadamente e então chamou Korza, gritando para se fazer ouvir em meio ao ruído do helicóptero que os havia alcançado.

– Padre! Erin foi arranhada por aquele lobogrifo. Há alguma coisa que precisemos saber sobre este tipo de ferimento?

O padre lançou um olhar rápido para a perna de Erin, depois olhou de volta para o deserto, claramente constrangido. Era a coisa mais típica de um padre que Jordan o tinha visto fazer em algum tempo.

– Limpe adequadamente e não precisarão se preocupar.

Erin limpou a coxa com um pedaço da calça cortada.

Antes que ele tivesse tempo de tirar o estojo de primeiros socorros, o helicóptero afilado aterrissou. O deslocamento de ar provocado pelos rotores levantou cortinas de areia que lhes açoitaram as faces. Jordan pôs as mãos em concha sobre o ferimento da perna de Erin para protegê-lo.

Agachado ao lado dela, ele olhou para trás por cima do ombro.

Três silhuetas, todas vestidas de preto, saltaram da cabine do helicóptero, saindo antes que os patins de aterrissagem se acomodassem no solo, e eles se moviam com uma rapidez impossível, como Korza em combate. Jordan teve vontade de fugir, mas se obrigou a ficar imóvel enquanto eles se aproximaram e os cercaram.

O trio conversou com Korza, sussurrando em uma língua que parecia latim. Jordan reparou que todos usavam colarinhos romanos de padre.

Mais Sanguinistas.

Erin se levantou e Jordan se postou ao lado dela.

Um dos padres avançou contra ele. Jordan sentiu quando as mãos frias deslizaram pelo seu corpo, tirando-lhe as armas. O homem não viu a faca, ou pelo menos não se importou com ela. De todo modo, para Jordan foi um alívio ficar com ela.

Um outro homem se afastou alguns passos em direção ao deserto com Korza.

O terceiro foi para junto do cadáver do lobogrifo. Derramou um líquido sobre o animal morto, como se estivesse batizando a fera depois de morta. Mas aquilo não era água. O sujeito acendeu um fósforo e atirou no cadáver, que explodiu, formando um grande redemoinho de chamas.

O cheiro de pelo queimado se espalhou para fora pelas areias escuras.

O primeiro padre ficou onde estava montando guarda para Jordan e Erin. Não que ela parecesse em condição de dar muito combate. Sua energia parecia ter-se esgotado. Estava com os ombros curvados, e balançava sobre a perna boa. Jordan se aproximou dela, mas o guarda levantou a palma da mão em advertência. Jordan ignorou a ordem silenciosa e passou o braço ao redor de Erin.

Lá fora, no deserto, Korza e seu companheiro travavam uma discussão acirrada, provavelmente sobre o destino dos dois seres humanos sobreviventes. Jordan se manteve atento, observando qual seria o resultado. Será que abandonariam Erin e ele ali, no meio do nada? Ou pior, dariam a eles o mesmo fim aniquilador do lobogrifo?

Quaisquer que tenham sido as palavras específicas, Korza pareceu ganhar a discussão.

Jordan não sabia se aquilo era bom ou mau.

Como que percebendo a atenção de Jordan, Korza se virou e o olhou nos olhos. Ele apontou para o helicóptero e fez um gesto para que ele e Erin embarcassem.

Jordan ainda não sabia se aquilo era bom ou mau. Conhecia muito bem a habilidade com que as equipes militares de operações secretas davam sumiço em um homem. Será que ele e Erin sofreriam um destino semelhante?

Jordan considerou várias hipóteses e chegou à conclusão de que a melhor chance de sobrevivência estava em embarcar naquele helicóptero. Lutaria se fosse obrigado, mas não tinha condições de vencer aquela batalha.

Pelo menos por enquanto.

Ajudou Erin a ir manquejando em direção à porta aberta da cabine, os dois se agachando sob as hélices que giravam.

Ele esperou que os outros embarcassem, lançou um último olhar para o deserto aberto e avaliou a opção de fugir. Mas Erin só tinha uma perna boa.

Korza se manteve junto ao ombro dele, silenciosamente recordando-o da impossibilidade de uma fuga. Ele entregou a Jordan a jaqueta que pegara na areia. Bastou aquele simples gesto para acalmar a ansiedade de Jordan.

– Por favor – disse o padre educadamente, dando a frente.

Jordan colocou seu casaco ao redor dos ombros de Erin e a ajudou a embarcar no helicóptero. Ela se deteve agachada na porta.

O interior da cabine do helicóptero era tão luxuoso quanto ele esperava. Uma luz azul tranquilizadora caía sobre a madeira escura lustrosa. O cheiro de couro fino encheu-lhe as narinas. Linhas elegantes alardeavam o luxo. Não tinha nada a ver com as aeronaves utilitárias em que ele geralmente voava. Ele desejou estar numa daquelas naquele momento.

– Só restam dois assentos desocupados – disse ela.

Jordan olhou em volta e confirmou a informação.

– Então, Korza, qual de nós vai viajar no compartimento de carga?

– Peço desculpas. Eles esperavam resgatar apenas a mim, e talvez ao garoto. Vai ficar um pouco apertado, mas o voo não é longo.

Erin olhou para trás, buscando orientação no olhar de Jordan.

– Podemos ir os dois em um assento – disse Jordan, e apontou para uma das grandes e luxuosas poltronas na parte de trás da cabine.

Ela assentiu, se espremeu para passar pelos joelhos dos outros e ocupou o assento, bem no canto, de forma a abrir lugar para Jordan.

Ele a seguiu e puxou o cinto, afrouxando-o ao máximo antes de se espremer ao lado dela.

– Minha mãe teve muitos filhos – explicou, fechando o cinto atravessado sobre os dois. – Ela costumava afivelar dois de nós com um cinto de segurança. A sua não?

Ela respondeu, com um tom melancólico e chocado:

– Minha mãe não tinha permissão para dirigir. Nenhuma das mulheres tinha.

Ele se lembrou do que ela dissera antes. Eu vi a Igreja ser usada como ferramenta dos poderosos contra os fracos. Arquivou a informação pelo momento, pensando em pedir um esclarecimento mais tarde.

Korza foi o último a embarcar. O padre era menor que Jordan e teria ficado menos apertado se ele tivesse feito Erin se sentar com Korza, mas de jeito nenhum ele permitiria que isto acontecesse.

O padre ocupou o último assento livre, bem defronte ao deles. Escondido sob uma batina com capuz, o vizinho de Korza se inclinou para sussurrar na orelha dele. Jordan não compreendeu as palavras, mas percebeu que a pessoa que falava era uma mulher. Aquilo o surpreendeu. Será que era humana? Ou será que a Igreja recrutava strigoi de sexo feminino para integrar a Ordem dos Sanguinistas?

A partir de então, ninguém falou.

Os outros ficaram sentados, imóveis como estátuas, algo que Jordan achou mais perturbador do que se eles estivessem apostando corrida em alta velocidade.

À medida que o helicóptero rugia e decolava do deserto em meio a uma nuvem de areia, Jordan tentou pensar em outra coisa, desviando a atenção do corpo morno de Erin apoiado contra o seu. De início, ela lutara para manter o máximo de espaço entre ambos, mas logo desistiu, presa a ele pelo cinto de segurança. Enquanto o helicóptero avançava roncando em meio à noite, ela afinal acabou por relaxar e adormecer, exausta demais para resistir.

No fim, Erin acabou repousando a cabeça contra o ombro dele, e ele se ajeitou mais para o lado de modo que não caísse para a frente. Havia muito tempo que uma linda mulher não adormecia sobre seu corpo. O cabelo louro soltara-se do elástico e caiu sobre seus ombros. Olhando assim de perto, ele reparou nas mechas mais claras mescladas nas mais escuras, cor de mel, provavelmente queimadas pelo tempo que ela passava escavando sob o sol.

Sentiu vontade de passar um dedo por aquelas mechas de cabelo, como se seguisse um fio em uma tapeçaria mais ampla, tentando compreender a urdidura e a trama que constituíam a mulher ao seu lado. Erin tinha passado por muita coisa nas últimas horas. Ele pretendia tirá-la daquela confusão e levá-la de volta para casa em segurança. Tinha de fazê-lo. Havia falhado com todos os outros sob o seu comando.

Melhor não pensar naquilo.

Em vez disso, ele concentrou-se no ferimento na coxa bronzeada de Erin. Embora não fosse profundo, estava com as bordas inchadas, vermelhas e cheias de areia. Movendo-se devagar para não despertá-la, ele tirou do bolso o pequeno estojo de primeiros socorros.

Retirou uma compressa com antisséptico e delicadamente limpou a ferida, mantendo o toque leve e movendo a mão bem devagar. Mesmo assim, ela gemeu enquanto dormia.

Todos os Sanguinistas olharam para ela.

Com um calafrio, Jordan moveu a mão livre em direção ao punhal e descansou a palma da mão sobre a arma.

– Não tenha medo de nós – sussurrou Korza, o rosto escondido pelo capuz. – Vocês estão em segurança.

Jordan não se deu ao trabalho de responder.

E não tirou a mão de onde estava.

21:02

A cabeça de Erin deu um tranco para a frente e a despertou subitamente. Ensurdecida pelo rugido do helicóptero, ela se viu olhando para um par de espantosos olhos azul-claros com um anel mais escuro ao redor das íris. Os olhos sorriram para ela. Erin retribuiu o sorriso antes de se dar conta de que eram de Jordan.

Ela adormecera encostada em seu ombro e acordou sorrindo para ele.

Um homem casado.

Em um helicóptero cheio de padres.

Com o rosto pegando fogo, endireitou-se no assento e se moveu sob o cinto para criar um centímetro de espaço entre eles. Quase podia ouvir o suspiro desapontado de sua mãe e sentir o peso das costas da mão de seu pai.

Ela se virou para a janela, o único lugar seguro para olhar até que suas faces perdessem o rubor da vergonha. Além da janela, as luzes de uma cidade brilhavam adiante, apagando as estrelas. Um domo dourado reluzia luminoso em meio à expansão urbana.

– Parece que estamos chegando em Jerusalém – comentou.

– Como você sabe? – perguntou ele, provavelmente tentando ajudá-la a sair da situação embaraçosa.

Ela aceitou a ajuda.

– Aquela montanha a leste é o Monte das Oliveiras. Um sítio histórico importante para as três maiores religiões do mundo: o judaísmo, o islã e o cristianismo. E dizem que foi ali que Jesus supostamente ascendeu ao céu.

Alguns dos Sanguinistas se empertigaram ao ouvir a palavra supostamente, claramente ofendidos, mas Erin continuou a falar:

– O Livro de Zacarias afirma que durante o Apocalipse ele vai se fender em dois.

– Maravilha, vamos esperar que isto não aconteça tão cedo. Estou farto de montanhas se rachando em duas. – Jordan apontou para o domo dourado reluzente que ela vira antes. – O que é aquilo?

– Aquilo é o Domo da Rocha. Fica no Monte do Templo. – Ela se afastou para permitir que Jordan tivesse uma visão melhor pela janela. – Ao redor dele, vemos as muralhas da Cidade Velha. É como uma fita de luz, está vendo? Ao norte fica o bairro muçulmano. Ao sul e a oeste fica o bairro judeu com o famoso Muro Ocidental.

– O Muro das Lamentações?

– Isso mesmo.

Ele se inclinou para a frente e seu corpo deslizou ao lado do dela.

Ela olhou para os padres, cujas expressões mantinham-se obscurecidas pelos capuzes. O rosto de Rhun, entretanto, refletia o brilho da cidade à medida que o helicóptero voava na horizontal fazendo uma curva. Seus olhos escuros impassíveis a observavam.

Um rubor subiu de novo às faces de Erin e ela se virou de volta para a vista. O que Rhun pensava a respeito dela? O que pensava a respeito da vista? Tentou imaginar aquele cenário através do prisma de olhos que estavam abertos há séculos. Será que Rhun estivera no Monte do Templo quando Mahmud II o restaurou, em 1817? Ela estremeceu ao pensar naquilo – temerosa, mas também com um toque de reverência.

– Você está com frio? – Jordan estendeu o braço e ajeitou o casaco sobre os ombros dela.

– Estou b-bem – gaguejou ela, sem fôlego. Na verdade, estava com calor. A proximidade de Jordan fazia coisas imprevisíveis com a temperatura de seu corpo. Durante a última década, ela havia se mantido ocupada demais para se permitir se sentir atraída por um homem. Era muita falta de sorte estar presa pelo mesmo cinto a um homem que, além de muitíssimo atraente, era casado.

– Obrigada pelo casaco.

– Vamos pousar daqui a pouco – a voz baixa de Rhun chamou a atenção deles.

– Onde? – Jordan se afastou um bocadinho, e ela sentiu falta do calor do corpo dele contra o seu. Ela olhou para a tira de pele branca no dedo anular dele.

Aquilo era prova. Sempre leve as provas em consideração antes de reagir.

Agora só faltava conseguir convencer seu corpo a fazer o mesmo.

– Teremos que vendar vocês dois – advertiu Rhun, sem alterar a expressão.

Jordan se empertigou todo. A tira do cinto apertou o ombro dela.

– O quê? Então agora somos seus prisioneiros?

– Convidados – respondeu Rhun.

– Eu não vendo os olhos de meus convidados. – Jordan cruzou os braços. – Parece muito pouco hospitaleiro.

– Mesmo assim... – Rhun desafivelou seu cinto.

O padre ao lado dele lhe passou duas tiras de pano preto.

Jordan enrijeceu bem a perna ao lado da de Erin e fincou os pés no chão. Parecia pronto para atacar os Sanguinistas com apenas os punhos e sua indignação.

Ela tocou a mão dele.

– Não é hora para isso, Jordan.

Jordan olhou para ela, como que subitamente se lembrando de que ela também estava ali. Ele a encarou por um longo momento antes de assentir.

Rhun se levantou, equilibrando-se agilmente na aeronave em movimento. Atou primeiro a venda nos olhos de Jordan, depois colocou o pano preto sobre os olhos dela. Com os dedos frios, atou o nó atrás da cabeça de Erin, delicadamente afastando seu cabelo. Depois que acabou, repousou a palma da mão sobre a cabeça de Erin por um segundo a mais do que necessário, como que para confortá-la.

Então ela o ouviu recuar e escutou o estalo da fivela quando ele fechou o cinto de novo.

Uma das mãos encontrou a mão dela e a apertou com força. A palma da mão de Jordan ardia bem quente contra a dela enquanto ele também tentava tranquilizá-la. A mensagem dele era simples.

O que quer que acontecesse a seguir, eles estariam juntos.


20

26 de outubro, 21:13, horário de Israel

Jerusalém, Israel

Rhun ajudou o soldado e a mulher a desembarcar da aeronave, passando sob as hélices em movimento. Ele os conduziu para fora do heliponto no terraço da cobertura de um prédio, descendo por uma escadaria e saindo para uma rua estreita. O tempo todo, o soldado segurou com firmeza a mão da mulher.

Apesar das expressões corajosas em seus rostos, Rhun ouviu o bater assustado de seus corações, sentiu o cheiro salgado do medo, e percebeu o brilho do suor na pele deles. Rhun deu o melhor de si para protegê-los dos outros, para deixar espaço suficiente para ambos. Recusou-se a deixá-los aos cuidados de seus irmãos – não porque temesse que alguém lhes fizesse mal. Apenas sentia que devia protegê-los, sentia-se responsável por eles.

Rhun os observou andarem mais junto um do outro nas ruas.

Erin e Jordan.

Em algum momento, em sua percepção, eles deixaram de ser um soldado e uma arqueóloga e tornaram-se apenas Erin e Jordan. Rhun não gostava dessa familiaridade crescente. Criava laços onde não deveria haver nenhum. Tinha aprendido essa dura verdade séculos antes.

Nunca mais.

Ele lhes deu as costas.

Na rua e de novo em movimento, Rhun inalou os cheiros da velha cidade – fuligem, rocha fria e o fedor de lixo do bazar. Os outros Sanguinistas rodeavam o trio. Rhun esperava que a presença deles mantivesse os humanos de olhos vendados escondidos de olhos curiosos.

Até aquele momento, nada havia se movido na avenida escura, as lojas permaneciam fechadas, as luzes apagadas. Ele tentou ouvir algum batimento cardíaco nas ruelas estreitas e ruas transversais que formavam o labirinto daquela área da cidade. Não encontrou nada, mas apesar disso os instou a andar mais depressa. Temia que pudessem ser vistos a qualquer momento.

Depois de alguns minutos, o grupo chegou a um muro de pedras toscas onde um homem de veste longa esperava, batendo com o sapato de couro na calçada, ao mesmo tempo impaciente e nervoso. O homem era baixo e gordo. O rosto, assim como a cabeça calva, tinha uma coloração avermelhada.

Como um abutre.

Rhun conhecia o homem – padre Ambrose – e não lhe agradou encontrá-lo ali, guardando a entrada.

Ambrose deu um passo à frente, ao mesmo tempo para recebê-los e bloqueá-los. Ele ignorou completamente Rhun e os outros Sanguinistas e fixou um olhar duro como aço em Erin e Jordan. As palavras dele foram lacônicas o suficiente para serem consideradas rudes:

– Não poderão contar nada a ninguém sobre o que virem além deste portão. Nem para sua família, nem para seus superiores militares.

Ainda de olhos vendados, Jordan parou onde estava, fazendo Erin se deter ao seu lado.

– Não vou receber ordens de uma pessoa que não posso ver.

Rhun compreendeu a consternação do homem e retirou as duas vendas antes que Ambrose pudesse protestar. Considerando-se o que aqueles dois já tinham visto e ouvido, a localização daquele ponto era mais uma informação trivial. Além disso, eles deveriam entrar.

Jordan estendeu a mão para Ambrose.

– Sargento Stone, Nono Batalhão dos Ranger, e esta é a dra. Granger.

– Padre Ambrose, assistente de Sua Eminência, o cardeal Bernard. – Ele esfregou a palma da mão na batina depois de apertar a mão de Jordan.

– Os senhores foram convocados para um encontro com Sua Eminência. Mas devo ressaltar, mais uma vez, que tudo que acontecer a partir deste momento deve ser mantido no mais rigoroso sigilo.

– Senão? – Jordan se perfilou orgulhoso, alto e destemido diante de Ambrose, e Rhun gostou ainda mais dele por isso.

Ambrose deu um passo para trás.

– Senão nós saberemos.

– Basta – declarou Rhun, e avançou bruscamente, passando por Ambrose.

Ele avançou até o muro e colocou uma das mãos contra os blocos de calcário do muro, movendo os dedos sobre cada pedra na sequência da cruz. O calcário pareceu áspero e morno sob seu toque.

– Tomai e bebei todos vós – sussurrou ele, e empurrou a pedra mais ao centro, revelando uma minúscula bacia entalhada em uma pedra, como a bacia que contém a água benta na entrada de uma Igreja.

Só que aquela bacia não era feita para conter água.

Rhun soltou sua lâmina curva e furou o centro da palma de sua mão, no ponto onde o prego havia sido enterrado na palma da mão de Cristo. Apertou o punho e deixou algumas gotas de sangue caírem na bacia de pedra, a superfície interior há muito escurecida pela passagem de incontáveis Sanguinistas que tinham entrado naquele lugar antes dele.

– Pois este é o cálice de meu sangue e do novo e eterno Testamento.

Erin arquejou atrás dele à medida que fendas apareceram no muro, revelando o contorno de um portão tão estreito que um homem precisaria se virar de lado para passar.

– Mysterium fidei – concluiu Rhun, e empurrou a porta aberta com o ombro – então recuou.

Os outros Sanguinistas entraram passando rapidamente por ele, seguidos por Ambrose. Erin e Jordan ficaram na rua com Rhun.

A mulher permaneceu imóvel, olhando fixamente para o muro da cidade.

– Estudei todos os portões da Cidade Velha, os fechados e os abertos – observou ela. – Não existe nenhum registro deste.

– Este já foi conhecido por muitos nomes no correr dos séculos – disse Rhun, ansioso para tirá-los da rua antes de serem descobertos. – Posso lhe garantir que encontrará abrigo seguro aí dentro. Esta entrada foi santificada. Os strigoi não podem atravessá-la.

– Não são eles os únicos que me preocupam. – Jordan assumiu uma postura determinada. – Se Erin não entrar, eu também não entro.

A mulher finalmente deu um passo adiante, pondo a mão no lintel de pedra áspera. Ele ouviu o coração dela acelerar depois do toque. Pelo brilho ávido em seus olhos, o bater acelerado não era de medo, e sim do mais puro e profundo desejo.

– Isto aqui é história viva. – Erin olhou para Jordan. Como eu poderia não entrar?

21:19

Jordan seguiu Erin atravessando aquela soleira escura, espremendo-se de lado para entrar. Não estava nada satisfeito com aquilo, mas desconfiava que cabia a eles decidir se entravam ou não. Lembrou-se das palavras do padre Ambrose: Os senhores foram convocados para um encontro com Sua Eminência.

Era claramente menos um convite que uma exigência.

Korza entrou por último e fechou o portão depois de passar. Uma escuridão sufocante e completa envolveu o grupo. Com a respiração mais pesada e parado em meio às trevas, Jordan mais uma vez estendeu o braço e buscou a mão de Erin.

Ela apertou os dedos dele em resposta, com força e agradecida.

Um som rascante conhecido precedeu um minúsculo estalo de chama, bruxuleando vívida na escuridão. Um isqueiro Zippo estava aceso nas mãos de um Sanguinista encapuzado bem na frente de Jordan. A visão daquele objeto conhecido e contemporâneo o alegrou, e fez com que tudo parecesse um pouco mais real.

O Sanguinista pegou uma vela em uma pequena bancada ao lado da porta e a entregou a Erin. Ela virou o pavio para a chama dourada do isqueiro. Por sua vez, Jordan também recebeu e acendeu uma outra vela. O cheiro de fumaça e de cera afastou a poeira seca do ar, mas a luz frágil não chegava muito longe.

Sem uma palavra e aparentemente não precisando de nenhuma luz para si, os outros Sanguinistas lhes deram as costas e seguiram adiante, descendo por um túnel íngreme. Jordan não gostou da ideia de descer de novo para o subsolo, mas Erin foi atrás deles e Jordan a seguiu.

Mesmo com a vela, Jordan mal conseguia ver para onde estava indo. Girou a chama baixa à sua frente. Estava cercado por pedra lisa. Ele se deixou ficar para trás, querendo manter todo mundo onde pudesse vê-los, não que houvesse muito que pudesse fazer se as coisas corressem mal.

Korza pareceu compreender a hesitação e, virando-se de lado, passou por ele.

Erin, já alguns passos mais adiante, protegeu a chama de sua vela com a mão em concha. Sua cabeça se virava de um lado para outro tão rapidamente que ele temeu que pudesse sair voando. Para ela, aquilo devia ser como escapulir do presente e entrar na história.

Para Jordan, era apenas um campo minado, onde qualquer passo errado poderia matá-los.

Ele deu o melhor de si para guardar na memória o caminho que eles seguiam. A passagem parecia estar se curvando para baixo, seguindo para o noroeste, mas ele não tinha certeza. E sem conhecer o layout da cidade, não tinha ideia de para onde poderiam estar indo. Sem nenhum outro recurso, ele recorreu ao seu treinamento militar e contou os passos, tentando guardar na memória as passagens que cruzavam com aquela, construindo um mapa tridimensional em sua mente. No mínimo, isso poderia ajudá-los a encontrar o caminho de volta.

Por fim, o túnel se nivelou e acabou diante de uma porta grossa de madeira com pesados gonzos de ferro. Pelo menos aquela porta não exigia o sangue de um Sanguinista para se abrir – apenas uma grande chave ornamentada, que foi apresentada pelo padre Ambrose.

– É aqui que vamos nos encontrar com o cardeal? – perguntou Erin.

O padre Ambrose olhou para ela de cima a baixo, os lábios franzidos com desagrado, se detendo na perna ferida e na calça cortada.

– Seria inapropriado encontrar Sua Eminência em seus trajes atuais.

Jordan revirou os olhos. Até aquele momento a única coisa que aquele padre tinha a seu favor era o fato de ser humano. Quando trocaram um aperto de mãos lá fora, Jordan havia sentido o calor de sangue de verdade nas veias dele.

Ainda assim, Jordan baixou o olhar para suas roupas imundas e ensopadas de sangue. Erin estava um pouco melhor e Korza, um desastre.

– Tivemos uma noite difícil – admitiu Jordan.

Uma gargalhada escapou da garganta de Erin, soando ligeiramente histérica, mas ela a abafou rapidamente.

– Não posso imaginar – disse Ambrose, ignorando-a.

O padre se virou de volta para a porta e a destrancou com uma chave de ferro tão longa quanto sua mão. Empurrou e abriu a porta, banhando-os na luz que vinha do vestíbulo adiante.

O grupo entrou em fila atrás de Ambrose. Jordan foi o último, entrando em um longo corredor de pedra suavizado por um tapete persa, tipo passadeira, no assoalho e tapeçarias nas paredes. Lâmpadas elétricas estavam acesas em arandelas nas paredes. Fileiras de portas de madeira, todas fechadas, salpicavam ambos os lados do corredor.

Jordan apagou sua vela, mas a guardou consigo, caso precisasse iluminar seu caminho de volta à liberdade.

O padre Ambrose trancou a porta novamente e enfiou a chave no bolso, então gesticulou para a direita.

– Este é o seu quarto, dra. Granger. O da esquerda é o seu, sargento Stone. Vocês podem entrar e se lavar.

Jordan segurou o cotovelo de Erin.

– Preferiríamos continuar juntos.

A voz do padre Ambrose ficou gelada.

– Enquanto tomam banho?

Um rubor cobriu a face de Erin.

Jordan gostou de ver aquilo.

– Vocês estão em segurança aqui – assegurou-lhes Korza. – Têm a minha palavra quanto a isso.

Erin encontrou o olhar de Jordan, enviando uma mensagem silenciosa. Ela queria conversar, depois que eles estivessem sozinhos – o que significava cooperar até que os padres se fossem.

Ele concordava com isso.

Pelo menos por enquanto.

21:24

Rhun observou o casal desaparecer, cada um em seu respectivo quarto, antes de seguir Ambrose. O homem seguiu adiante, conduzindo-o por um corredor ascendente e até outra porta, que teve de ser destrancada. A Igreja tinha muitas fechaduras e trancas, e muitos segredos para esconder atrás delas, mas aquela porta levava apenas a uma escada em caracol talhada na rocha há mais de mil anos.

Conhecendo-a muito bem, Rhun avançou para entrar sozinho, mas Ambrose bloqueou o caminho com um braço.

– Espere – advertiu o homem. A máscara frágil de civilidade que ele havia apresentado aos recém-chegados caiu, revelando sua franca hostilidade. – Não vou apresentar você a Sua Eminência com o sangue amaldiçoado de um lobogrifo cobrindo-lhe o corpo. Até eu sinto o fedor medonho.

Rhun olhou furioso para ele, deixando que Ambrose visse a sua raiva.

– Bernard já me viu em condições muito piores.

Ambrose não conseguiu enfrentar aquela fúria por mais de um segundo. O braço dele caiu, e ele recuou se encolhendo, o bater espesso de seu coração tropeçando acelerado devido ao medo. Rhun sentiu um ligeiro lampejo de culpa – mas apenas um lampejo. Ele conhecia Ambrose. O padre era movido por desejos humanos, era possessivo com relação à sua posição, cheio de orgulho, e queria proteger seu papel de assistente do cardeal Bernard. Mas Rhun também sabia o quanto o homem era leal. Ele guardava a posição de Bernard na hierarquia da Igreja com a mesma devoção de um cão de guarda – e lá, à sua maneira amarga, servia bem ao cardeal, se certificando de que ninguém insultasse ou ofendesse seu superior.

Mas Rhun não dispunha de tempo para aquelas civilidades. Passou sem cerimônia por Ambrose e rapidamente subiu a escada, deixando o padre muito para trás. Sozinho, percorreu corredores escuros, até que chegou à porta de mogno do estúdio do cardeal Bernard.

– Rhun? – chamou Bernard de dentro do aposento, seu sotaque italiano fazendo rolar o R duro, suavizando-o com o calor de uma amizade que abarcava séculos. – Entre, meu filho.

Rhun entrou no gabinete iluminado por uma única vela branca enfiada em um castiçal de ouro muito ornamentado. Ele precisava de pouca luz para ver o globo incrustado de pedras preciosas ao lado da enorme escrivaninha, o antigo crucifixo de madeira preso na parede e as fileiras de volumes encadernados em couro que cobriam um dos lados dela. Rhun inalou os aromas familiares de velhos pergaminhos, couro e cera. Aquele aposento não havia mudado em um século.

Bernard se levantou para recebê-lo. Trajava os paramentos completos de cardeal, a batina escarlate brilhando sob a luz da vela. Recebeu Rhun com um abraço caloroso, sem se incomodar com o fedor do sangue do lobogrifo. Como Sanguinista, Bernard havia combatido em muitas batalhas no passado e não fugia ao resultado vulgar de um combate.

Bernard o conduziu a uma cadeira e a puxou para ele.

– Sente-se, Rhun.

Sem protestar, ele se acomodou na cadeira, sentindo seus ferimentos pela primeira vez.

Bernard voltou para sua cadeira e empurrou um cálice de ouro de vinho consagrado sobre o tampo da mesa para Rhun.

– Você sofreu muito durante as últimas horas. Beba e conversaremos.

Rhun estendeu a mão para o pé do cálice. O perfume do vinho subiu: amargo, com um toque de carvalho. Estava ávido para bebê-lo, mas hesitou em tomá-lo. Não queria que a dor da penitência o distraísse durante aquela conversa. Mas seus ferimentos também latejavam, recordando-o de que eles, também, podiam distraí-lo.

Resignado, ele pegou o cálice e o esvaziou – então baixou a cabeça de modo que Bernard não visse a sua expressão, e esperou. Será que outra visão de Elisabeta o perseguiria de novo naquela noite, recordando-o de seu pecado? Mas aquilo não aconteceria – pois ele havia cometido um pecado maior, um pecado que o amaldiçoara por toda a eternidade.

Os joelhos de Rhun faziam pressão sobre a terra fria e úmida enquanto ele rezava diante do túmulo de sua irmã mais moça. Uma noite sem luar o envolvia em escuridão, mais negra que a batina de seminarista que ele usava. Mesmo as estrelas do céu se escondiam atrás de nuvens.

Será que nenhuma luz voltaria a brilhar em seu coração?

Ele olhou fixamente para as datas entalhadas na lápide.

1527 ***** ***** 1554

Menos de um mês antes do parto, a morte ceifara sua irmã e seu bebê por nascer. Sem a absolvição do batismo, o bebê não podia ser enterrado com a mãe. Ela jazia ali em terreno consagrado; seu filho não podia.

Rhun visitaria seu minúsculo túmulo anônimo mais tarde.

Toda noite desde o enterro dela, ele deixava o silêncio do monastério depois que todo mundo dormia e ia rezar por ela, por seu filho e para acalmar o sofrimento em seu coração.

Um som suave de passos soou atrás dele.

Ainda ajoelhado, ele se virou.

Um vulto envolto em sombras se aproximou. Rhun não conseguiu distinguir suas feições na escuridão, mas o desconhecido não era um padre.

– O pio – sussurrou ele, o sotaque estrangeiro, a voz desconhecida.

O coração de Rhun acelerou; seus dedos buscaram a cruz, mas esforçou-se para manter as mãos cerradas em prece, apertando os dedos.

O que ele tinha a temer daquele desconhecido que não exibia nenhuma ameaça?

Rhun inclinou a cabeça respeitosamente para o homem.

– Está bem tarde no cemitério de Nosso Senhor, amigo.

– Venho para prestar meus respeitos aos mortos – respondeu o homem, e acenou um dedo longo e pálido em direção à sepultura. – Como o senhor.

Um vento gélido soprou pelo campo de cruzes de pedra e anjos esculpidos, fazendo farfalhar as últimas folhas de outono e trazendo consigo o odor de morte e decomposição.

– Então eu deixarei o senhor em paz – respondeu Rhun, se virando de volta para o local de descanso de sua irmã.

Estranhamente, o homem se ajoelhou ao lado de Rhun. Ele vestia um calção fino e uma túnica de couro cravejada de tachas. A lama maculava as botas caras. A despeito de seu sotaque vulgar, os trajes requintados traíam sua origem nobre.

Irritando-se, Rhun se virou para ele, observando o cabelo comprido escuro que caía da testa pálida. Os lábios do desconhecido se curvaram num sorriso divertido, embora Rhun não pudesse imaginar por quê.

Basta... já é tarde.

Rhun recolheu o tecido grosso da barra de sua batina para se pôr de pé.

Antes que pudesse se levantar, o homem passou um braço ao redor de seus ombros e o puxou para o terreno molhado, como se estivesse abraçando um amante. Rhun abriu a boca para gritar, mas o desconhecido apertou a mão fria contra o seu rosto. Rhun tentou empurrar e afastar o homem, mas o outro agarrou-lhe ambos os pulsos com uma das mãos e os imobilizou com a mesma facilidade que teria imobilizado uma criança.

Rhun lutou contra ele, mas o homem o manteve seguro, se inclinando para baixo. Ele usou o queixo áspero para inclinar a cabeça de Rhun para o lado, expondo o pescoço.

Rhun subitamente compreendeu, seu coração disparando num galope. Ele tinha ouvido relatos de lendas sobre monstros como aquele, mas nunca havia acreditado neles.

Até aquele momento.

Presas afiadas perfuraram-lhe a garganta, roubando-lhe a inocência e deixando apenas dor e sofrimento. Ele gritou, mas nenhum som escapou de sua boca. Lentamente a dor se transformou em outra coisa, algo de mais assustador: êxtase.

O sangue de Rhun pulsou, saindo de seu corpo para dentro da boca faminta do desconhecido, aqueles lábios frios se aquecendo com o seu sangue quente.

Ele continuou a lutar, só que mais debilmente agora – pois, na verdade, ele não queria que o homem parasse. Suas mãos se levantaram por vontade própria e puxaram o rosto mais para junto de sua garganta. Ele sabia que era pecado se entregar àquele prazer, mas não se importava mais. Pecado não tinha mais significado: apenas o desejo latejante pela língua penetrando a ferida, a mordida de dentes afiados na pele macia agora importavam.

Não havia lugar nele para a santidade, apenas um êxtase que prometia libertação.

Rhun ficou deitado ali, exausto, morrendo.

O homem afinal recuou.

Dedos fortes acariciaram seu cabelo.

– Não está na hora de dormir ainda, pio.

Um pulso cortado foi pressionado contra os lábios abertos de Rhun. Sangue quente e sedoso explodiu sobre sua língua, encheu sua boca. Ele o engoliu, sugou mais. Um gemido profundo lhe subiu à garganta, e se afogou no sangue.

Logo sua existência começou a brilhar com apenas uma palavra, apenas um desejo.

Mais...

Então aquela fonte preciosa foi arrancada dele, deixando um poço sem fundo de desejo e fome em seu íntimo, que clamavam por ser satisfeitos por sangue – qualquer sangue.

Acima dele, o desconhecido lutava com quatro padres.

Uma lâmina de prata brilhou ao luar.

– Não! – gritou Rhun.

Mãos duras o puxaram e puseram de pé; arrastaram-no cambaleante para o monastério silencioso, onde a dádiva de eternidade logo se tornaria sua maldição.

Rhun deixou de lado sua penitência com um arrepio. Mesmo agora, ele sentia falta daquele homem que o matara, que destruíra a sua antiga vida. Em momentos de silêncio, ainda ansiava por aquele gosto do sangue dele. Aquele era um pecado do qual se arrependera muitas vezes, mas que nunca o deixava em paz.

Do outro lado da escrivaninha, Bernard o observava, o rosto tão cheio de sofrimento quanto estivera na noite em que Rhun tinha sido trazido à sua presença, coberto de sangue, chorando e tentando escapar dos monges e fugir para a noite. Naquela ocasião, Bernard o havia salvado, havia lhe mostrado como ele podia servir a Deus sob sua nova forma, e o impedira de jamais vir a se alimentar de sangue humano inocente.

Rhun sacudiu a cabeça para desanuviá-la do passado.

Ele encarou Bernard, ao mesmo tempo mentor e amigo, recordando-se dos acontecimentos em Massada e no deserto. Ali estava o homem que dera início a tanto daquilo tudo, um homem que guardava muitos segredos.

– Foi longe demais – disse Rhun em voz rouca, ainda sentindo a garganta dilacerada, o jorrar do sangue quente do pulso desconhecido.

– Fui? – O cardeal passou a mão robusta pelo cabelo branco. – Como assim?

Rhun sabia que o homem o estava testando. Ele agarrou a cruz no peito, usando a dor para controlar a raiva.

– Mandou aquela arqueóloga para uma situação de perigo. E me enviou sozinho para enfrentar o inimigo – strigoi da seita Belial.

Seu amigo se recostou na cadeira e uniu as pontas dos dedos. Suas sobrancelhas se franziram de preocupação.

– Acredita que seus agressores eram Belial? Por quê?

Rhun relatou suas experiências no cume e dentro da montanha, depois explicou:

– Os strigoi que vieram não eram apenas animais de rapina atraídos pela tragédia. Vieram com um propósito claro. E usaram cargas pesadas de explosivos.

– Empregaram armas de homem. – Bernard baixou as mãos. Ele se sentou mais ereto, os olhos castanhos calorosos numa expressão de dor. – Eu não sabia que eles viriam.

Os Belial eram uma seita de strigoi que se aliavam a seres humanos, combinando o que havia de pior nos dois mundos – fundindo a astúcia humana com a ferocidade animal, unindo armamentos modernos ao mal antiquíssimo. Eles eram um flagelo cujos números haviam crescido muito ao longo do século passado, constituindo uma ameaça cada vez maior para a Ordem dos Sanguinistas e a Igreja. Mesmo depois de décadas lutando contra eles, muito ainda era desconhecido com relação aos Belial, como, por exemplo, quem realmente os comandava: era homem ou monstro?

A raiva de Rhun se acalmou.

– Os Belial devem ter ouvido falar das mortes estranhas relacionadas ao terremoto e adivinharam o que significavam tão bem quanto nós.

O cardeal permaneceu imóvel como uma estátua.

– Então eles estão procurando o Evangelho, como nós, e se sentem desesperados a ponto de revelar sua presença.

– O livro havia desaparecido, a cripta estava vazia – disse Rhun. – Eles também não o encontraram.

– Não importa. – O rosto conhecido pareceu se suavizar sob a luz da vela, aliviado e mais seguro. – Se as profecias estão corretas, eles não podem abri-lo. Somente os três poderão trazê-lo de volta ao mundo.

A cadeira de Rhun rangeu quando ele se inclinou para a frente, uma fúria antiga reacendendo cheia de vida. Ele sabia muito bem a que Bernard se referia ao evocar os três mencionados nas profecias cercando o Evangelho, as três pessoas destinadas a encontrar e abrir o livro.

A Mulher de Saber.

O Guerreiro do Homem.

O Cavaleiro de Cristo.

Justo naquele instante, ele viu o brilho da esperança nos olhos de Bernard, e soube do que o cardeal suspeitava.

Ele recordou o rosto de Erin, iluminado pela curiosidade – uma Mulher de Saber espantoso.

O ataque heroico de Jordan ao lobo – um Guerreiro do Homem.

E apertou sua cruz – que o marcava como um Cavaleiro de Cristo.

Ele obrigou seus dedos a largarem a cruz de prata, esperando que seu amigo pudesse fazer o mesmo com sua esperança tola.

– Bernard, você confia demais nestas velhas profecias. Estas convicções nos custaram muito sofrimento e sangue derramado no passado.

O cardeal suspirou:

– Eu não preciso ser recordado de meus erros no passado. Carrego este fardo com a mesma dificuldade que você, meu filho. Tentei forçar a mão de Deus na Hungria há tantos séculos. Foi vaidade da mais elevada ordem. Pensei que os portentos indicassem Elisabeta, que ela deveria se unir a você. Mas eu estava errado. Admiti na época, e agora não nego a tolice que cometi. – Ele estendeu a mão e colocou a palma fria sobre a mão de Rhun. Mas você não vê o que aconteceu hoje? Você saiu daquele monte de escombros com uma Mulher de Saber à sua esquerda e um Guerreiro do Homem à direita. Isso deve significar alguma coisa.

Em vez de diminuir, o brilho nos olhos de seu amigo se intensificou.

Rhun retirou a mão.

– Mas você levou a mulher para lá.

O conhecimento disso enchia Rhun de receios. Será que seu amigo ainda estava tentando forçar a mão da profecia? Mesmo depois das trágicas consequências de sua tentativa anterior? Quando outra mulher havia sofrido em consequência do erro dele?

Bernard descartou tudo aquilo com um aceno de dedos.

– Sim, usei minha influência para mandar uma mulher de grande saber para Massada. Mas, Rhun, não fui eu que derrubei a montanha de Massada. Não fui eu que salvei a mulher e o guerreiro e os conduzi para fora da tumba, o último local de repouso do livro. Contrariando todas as ordens, você os salvou.

– Eu não podia deixá-los lá para morrer. – Rhun olhou para seu traje retalhado, sentiu de novo o cheiro de sangue em sua pele.

– Mas você não compreende, não vê? A profecia agora é uma força viva. – Bernard levantou a cruz de prata que tinha pendurada no pescoço e a beijou, seus lábios se avermelhando com o calor da prata sagrada. – Cada um de nós tem seu papel a desempenhar. Devemos todos nos curvar e aceitar nosso próprio destino. E quer eu esteja certo ou errado, você sabe que temos que impedir que o Evangelho caia nas mãos dos Belial a qualquer custo.

– Por quê? – A amargura tingiu as palavras seguintes de Rhun. – Instantes atrás você estava seguro de que os Belial não poderiam abri-lo. Entretanto, agora parece duvidar desta parte da profecia.

– Eu não presumo compreender a vontade de Deus, apenas tento interpretá-la da melhor maneira que posso.

Rhun pensou nos olhos cinza-prateados de Elisabeta e nos cor de âmbar de Erin.

Nunca mais descerei tão baixo.

– E se eu recusar este destino? – perguntou Rhun.

– Agora quem presume conhecer o coração de Deus melhor que Ele?

As palavras o feriram como tinham a intenção de ferir.

Rhun baixou a cabeça e rezou pedindo orientação. Seria aquilo realmente um desafio que Deus havia posto em seu caminho? Uma chance de absolvição? Que tarefa mais grandiosa Deus pediria a ele que desempenhasse senão proteger o último Evangelho de Seu Filho? Rhun ainda não confiava nos motivos mais secretos de Bernard, mas talvez o cardeal estivesse correto ao ver a mão de Deus nos acontecimentos daquele dia.

Ele refletiu sobre tudo o que havia acontecido.

O último repositório do livro havia sido desfeito em pedaços, isso fora anunciado por terremotos, derramamento de sangue, e a sobrevivência de um garoto, uma criança inocente havia sido poupada.

Mas com o perfume de lavanda do cabelo de Erin ainda fresco em suas narinas, Rhun resistiu àquele caminho. Ele com certeza a decepcionaria – como tinha decepcionado a outra tantos anos antes.

– Mesmo se eu consentisse em ajudar em sua busca pelo Evangelho – Rhun se deteve ao ver o sorriso no rosto de Bernard. – Mesmo assim, não podemos obrigar aqueles dois que estão aqui a sair à procura do livro; não com os Belial em cena.

– Isto é verdade. Não podemos obrigar ninguém. Os dois devem participar da busca por livre e espontânea vontade. E para fazê-lo têm que abandonar todos os laços e vínculos. Você acredita que estejam prontos para tamanho sacrifício?

Rhun recordou o par que Bernard acreditava ser a Mulher e o Guerreiro. Assim que os conhecera, os havia considerado, da mesma maneira que o cardeal fizera, como sendo pouco mais do que era revelado por seus papéis: uma arqueóloga e um soldado.

Mas agora sabia que aquilo não era mais verdade.

Tais rótulos eram reflexos pálidos das duas pessoas que tinham sangrado e lutado ao seu lado.

Havia maneiras mais verdadeiras de descrevê-los, e uma era por seus nomes de batismo.

Erin e Jordan.

A última pergunta do cardeal o angustiava. Você acredita que estejam prontos...?

Rhun esperava, pelo bem deles, que a resposta fosse não.


21

26 de outubro, 21:33, horário de Israel

Jerusalém, Israel

Aleluia por pequenos milagres.

Jordan descobriu vários presentes esperando por ele na cama de sua pequena cela monástica. Um jogo de roupas limpas havia sido deixado dobrado sobre o travesseiro – e sobre o cobertor estavam suas armas, devidamente devolvidas.

Ele atravessou a cela rapidamente e examinou a pistola metralhadora Heckler & Koch e a Colt 1911. Ambas estavam carregadas – algo que ao mesmo tempo o aliviou e o incomodou. Ou seus anfitriões confiavam muito nele ou claramente não estavam preocupados com qualquer ameaça que pudesse constituir.

Mas aquela confiança era uma via de mão única.

Parado onde estava, examinou com atenção o pequeno quarto. Tinha sido escavado na rocha sólida. O espaço continha uma cama de solteiro que havia sido encostada contra uma parede para dar espaço a um largo lavatório contendo no tampo uma bacia cheia de água fumegante.

Ele fez uma revista rápida e completa em busca de equipamento de vigilância. Considerando-se as acomodações espartanas, não havia muitos lugares para esconder um aparelho de escuta. Revistou o colchão, apalpou as bordas do estrado de madeira da cama e examinou o lavatório.

Nada.

Não poupou sequer o crucifixo na parede, do qual se aproximou, tirou de lá e checou a parte de trás, sentindo-se vagamente blasfemo por fazê-lo.

Mas não encontrou nada.

Então, aparentemente eles não estavam na escuta – pelo menos não com tecnologia moderna. Até que ponto a audição de um Sanguinista era aguçada?

Considerando seu nível de paranoia, ele se perguntou se teria sido inteligente vir para aquele lugar. Será que ele e Erin deviam ter esperado no deserto e arriscado a sorte com os chacais? Ou talvez com outro lobogrifo?

Aquilo não parecia melhor.

E pelo menos vindo para cá eles ainda estavam vivos. Outros não tinham tido a mesma sorte. Ele visualizou os corpos dilacerados de seus companheiros, agora enterrados sob toneladas de pedras.

Jordan pensou nos telefonemas e nas visitas que teria de fazer depois que aquela provação estivesse acabada: aos pais, às viúvas, aos filhos.

Ele se deixou cair na cama, derrotado e dominado pelo pesar.

O que poderia dizer a eles?

21:52

Apertado era uma descrição generosa para o quarto de Erin.

Ela a todo instante batia com o cotovelo na parede enquanto tentava se lavar com a água da bacia. Tinha se despido até ficar só de sutiã e calcinha, e, depois de limpa, olhou para as roupas que tinham sido deixadas para ela.

Não foi problema vestir a camisa de algodão branca que encontrou sobre a cama – mas o que fazer com aquela saia longa preta? Era muito parecida com as saias que ela usara quando menina, que sempre a faziam tropeçar, que a impediam de trepar em árvores, tornavam quase impossível montar em cavalos. Em seu mundo anterior, mulheres usavam saias, enquanto homens gozavam da liberdade de calças.

Erin tinha usado saias ou vestidos durante toda a infância e não lhe agradava voltar a vestir uma saia. Mas com a calça jeans cortada em farrapos e coberta de sangue, suor e areia, teria de vesti-la – a menos que quisesse aparecer diante de Jordan e dos padres de calcinha.

Isso decidiu a questão.

Ela transferiu o conteúdo do jeans para o bolso da camisa: o medalhão nazista da tumba, sua carteira de notas e um retalho desbotado cortado de uma manta muitos anos antes, não maior que uma carta de baralho.

As pontas de seus dedos se demoraram sobre esse último item, tirando dele ao mesmo tempo força e raiva. Sempre trazia aquele retalho consigo, junto com a raiva e a culpa que ele representava. Ela visualizava a manta de bebê do qual fora cortado, como o tinha roubado antes que fosse enterrado junto com sua irmãzinha bebê. Erin interrompeu aquela lembrança antes que a perturbasse e a tirou da cabeça, enfiando o retalho de pano no fundo do bolso da saia.

Isso feito, vestiu a saia, detestando a maneira como roçava em suas pernas. As sandálias ela abandonou ao lado da cama. Iria ficar com seus tênis.

Uma vez vestida, ela voltou para a porta, descobriu que estava destrancada e deu uma espiadela no corredor. Viu que estava vazio e saiu do quarto. Quando se virava para fechar a porta – alguma coisa arranhou a pedra, soando como unhas raspando para sair de um túmulo.

Assustada, já nervosa, atravessou em disparada o corredor. Não queria ser apanhada fora de seu quarto, especialmente por lá o que fosse que tivesse feito aquele ruído. Imaginou as mandíbulas salivantes do lobogrifo.

Sem bater, abriu a porta e entrou no quarto de Jordan.

Erin o encontrou vestindo apenas uma toalha e com uma expressão de surpresa no rosto. Na mão direita, Jordan levantou uma pistola – mas a baixou imediatamente.

– Ah, meu Deus, desculpe. – Ela corou. – Eu não deveria... Não tive a intenção...

– Está tudo bem – disse ele, sorrindo do embaraço de Erin, o que só fez suas faces corarem mais ainda. – Estou contente por você ter vindo. De todo modo, eu queria falar com você a sós. Longe dos outros.

Ela assentiu. Era por isso que também tinha ido até ali, mas havia esperado que a conversa fosse num momento em que ambos estivessem vestidos.

Ela se encostou na porta, tentando não olhar para o torso musculoso de Jordan, para a linha fina de pelos que dividia seu abdômen de tanquinho, nem para o comprimento das pernas bronzeadas.

Ela queria desviar o olhar, mas seus olhos deram com uma estranha cicatriz que cobria o ombro esquerdo e descia parcialmente pelo braço, cobrindo um canto do peito e seguindo para as costas. Parecia as ramificações de uma raiz de árvore, todas subindo de uma única mancha escura na parte superior do peito. Havia certa beleza floral no desenho, especialmente gravado em um físico tão masculino.

Ele deve ter percebido o objeto de sua atenção. Levou um dedo e seguiu uma daquelas linhas.

– Ganhei isto quando tinha 18 anos.

– O que é?

– Chama-se figura “padrão de Lichtenberg”. É um padrão fractal que é criado pela descarga elétrica de um raio ao longo de uma superfície. Neste caso a superfície fui eu.

– O quê? – Ela se aproximou dele, ao mesmo tempo intrigada e agradecida pela distração.

– Eu estava jogando futebol americano na chuva. Fui atingido por um raio perto do travessão depois de ter agarrado um passe de touchdown.

Ela encarou os olhos azuis dele, meio sorrindo, tentando avaliar se ele estava fazendo troça ou falando sério.

Ele levantou três dedos.

– Palavra de escoteiro.

É claro que ele era um escoteiro.

– Fui dado como morto por três minutos.

– Foi?

Ele assentiu.

– Han-han.

– Como foi estar morto?

– Não tive a tal experiência do túnel escuro com uma luz brilhante no fim, mas voltei diferente.

– Diferente como? – Ele parecia muito sensato e equilibrado, mas será que ia dizer a ela que tinha visto Deus ou sido tocado por um anjo?

– Foi como se a minha hora tivesse chegado. – Ele pôs a palma da mão sobre o coração. – E tudo depois daquele momento fosse um bônus.

Ela olhou fixamente para o desenho no peito dele. Aquilo mostrava o quanto estivera próximo da morte. Tinha passado por aquilo e saído do outro lado, como os Sanguinistas.

Ele sorriu e acompanhou o trajeto descendente de uma das linhas.

– Estes padrões às vezes são chamados de flores de raio. São causados pela ruptura de pequenos capilares sob a pele devido à passagem da corrente elétrica em seguida à descarga do raio ao cair. Fui acertado pelo raio aqui. – Ele tocou no centro das ramificações em seu peito. – O padrão se abre e se espalha. Ficou vermelho vivo durante algum tempo, mas depois foi desbotando e deixou uma pequena cicatriz.

– Mas então?

– Mandei tatuar o padrão do desenho original para me recordar de que esta vida é um bônus. – Ele riu. – Deixei meus pais loucos.

Ela levantou um dedo, querendo examinar o desenho, tocá-lo – como fazia com todas as coisas que achava incríveis, então se deu conta do que ia fazer e parou, deixando o dedo no ar acima da marca negra no peito dele.

Ele estendeu a mão e puxou a mão dela para mais perto.

– É um pouco mais alto no ponto onde ficava a cicatriz original.

Ela quis resistir, mas não conseguiu. Quando a ponta de seu dedo tocou na pele dele, um choque a sacudiu, como se parte da energia do raio ainda estivesse aprisionada na cicatriz – mas ela sabia que era algo além de uma descarga elétrica.

Ele deve ter sentido também. A pele dele se enrijeceu onde ela havia feito contato, o músculo espesso se contraindo sob seu dedo. Ele respirou mais fundo.

Ainda segurava a mão dela. Ela olhou para aqueles olhos muito azuis, para aqueles lábios – o lábio superior com uma reentrância no meio como um arco.

Os olhos dele escureceram, e ele se inclinou para ela, como se querendo reafirmar que naquele momento estava vivo.

Ela prendeu a respiração e deixou que acontecesse, querendo a mesma coisa depois do longo dia de horrores.

O beijo dele começou suave e leve como uma pluma, os lábios mal tocando nos dela.

O calor percorreu o corpo dela, tão elétrico quanto quente.

Ela se levantou na ponta dos pés e aprofundou o beijo, precisando explorar mais o beijo, explorar Jordan. Tomou os ombros nus dele nas mãos e o puxou para mais perto, querendo mais, mais contato, mais calor. Ela se dissolveu no beijo, permitindo que a enchesse e apagasse os horríveis acontecimentos na tumba.

Então, num lampejo, ela se lembrou da marca branca do anel ao redor do dedo bronzeado.

Era uma espécie de tatuagem que o marcava do mesmo modo que a cicatriz do raio.

Ele era um homem casado.

Ela se inclinou para trás, esbarrando no balcão do lavabo.

– Eu sinto muito.

A voz dele soou rouca:

– Eu não.

Erin virou a cabeça para o lado, furiosa consigo mesma. Precisava recuperar o fôlego e pôr a cabeça em ordem.

– Acho que precisamos de uma distância.

Jordan deu um passo cuidadoso para trás.

– Assim está bom?

Não foi exatamente aquilo que ela quis dizer, mas serviria.

– Talvez mais um passo.

Jordan lhe deu um sorriso rápido, constrangido, então recuou mais um passo e se sentou na cama.

Ela se sentou na outra ponta da cama, de braços cruzados sobre o peito, precisando mudar de assunto.

– Como está o outro ombro?

Ele o havia machucado ao forçar a passagem para sair do buraco enquanto eles fugiam da tumba que desabava.

Jordan girou o braço e fez uma careta.

– Dói, mas não creio que seja nada sério. Menos sério que ser esmagado naquela montanha.

– Ser esmagado naquela montanha talvez fosse mais fácil.

– Quem disse que o caminho mais fácil é o caminho certo?

Ela corou, ainda sentindo o calor, a pressão do beijo dele. Erin olhou para as mãos. Falou depois de o silêncio ter-se alongado por tempo demais, olhando para a porta.

– O que você acha que eles querem conosco?

Ele seguiu o olhar dela.

– Não sei. Talvez ouvir nosso relato dos acontecimentos. Fazer com que juremos segredo. Talvez nos dar um milhão de dólares.

– Por que um milhão de dólares?

Ele deu de ombros.

– Por que não? Estou apenas dizendo... vamos ser otimistas.

Ela olhou para os bicos sujos de seus tênis. Aquilo era difícil de fazer, ser otimista, especialmente com Jordan sentado seminu ao lado dela. O calor de sua pele nua chegava a ela, atravessando a distância entre eles. Quanto tempo fazia desde que ela estivera em um quarto com um homem nu? Quanto mais com um homem bonito e atraente como Jordan ou que soubesse beijar tão bem?

O silêncio de novo se alongou entre eles. O olhar de Jordan ficou vago, muito distante; provavelmente estava pensando em sua esposa, na breve traição daquele momento.

Ela procurou outro assunto sobre o qual falar.

– Você ainda tem o estojo de primeiros socorros? – perguntou de repente, despertando-o de seu devaneio, fazendo-o se sobressaltar.

– Desculpe – balbuciou ele. – Acho que estou um pouco tenso.

– Eu não mordo.

– Mas por aqui todo mundo morde – disse ele com um sorriso.

Ela retribuiu o sorriso, sentindo a tensão entre eles se dissipar.

Ele tirou o estojo de primeiros socorros do bolso da calça suja, que ainda estava sobre a cama.

– Vamos começar com a sua perna.

– É melhor que eu cuide disso.

Naquele momento ela preferiria sangrar até a morte a permitir que ele mexesse em sua coxa. Depois que ele começasse por ali, quem saberia onde pararia?

– Não é melhor você se vestir enquanto eu cuido deste corte? – sugeriu.

Ele deu um sorriso contrito e lhe entregou o estojo. Ela virou as costas para Jordan enquanto ele vestia a calça preta limpa. Erin manteve os olhos fixos na perna. O arranhão que o lobo lhe dera não era tão mau quanto parecera no deserto. Ela lavou o ferimento com cuidado, então o cobriu com um unguento antibacteriano e colocou um curativo de gaze.

Jordan estava incomodamente perto, mas pelo menos agora vestia calça.

– O curativo ficou muito bom. Você fez algum treinamento nesta área?

– De certo modo. Fui criada em uma área isolada onde pessoas de fora eram proibidas de nos tocar – até mesmo para cuidar de nós quando estávamos doentes.

Era raro que ela falasse dessa parte de sua vida com qualquer pessoa. A vergonha cercava o seu passado, vergonha por ter sido tão crédula, por não ter lutado contra aquilo antes. Um terapeuta certa vez lhe dissera que aquele era um sentimento comum entre sobreviventes de abuso crônico, e que ela provavelmente nunca se livraria totalmente dele. Até o momento o terapeuta estava correto.

Mesmo assim, fragmentos de sua história de alguma forma foram relatados para Jordan.

– Isto é loucura – disse ele.

Ela escondeu um pequeno sorriso.

– Esta é uma maneira sucinta de resumir aquilo. Mas fazia sentido na época, dado o isolamento em que éramos mantidos.

– Fui criado em Iowa numa plantação de milho. Com um bando de irmãos e irmãs, vivíamos correndo soltos, de joelhos arranhados, de vez em quando com um osso quebrado.

Uma pontada no braço esquerdo a recordou de que também tivera um osso quebrado. Mas ela duvidava de que os irmãos de Jordan sofressem fraturas deliberadamente infligidas, como lições. Erin se manteve em silêncio. Nem de longe conhecia Jordan tão bem a ponto de falar a respeito daquilo.

Ao lado dela, Jordan secou o peito.

Ela fixou os olhos na velha porta de madeira, no assoalho de pedra, qualquer coisa, menos ele.

Finalmente, ele pegou uma camisa limpa e a vestiu.

– Como você saiu daquele lugar?

Ela se ocupou fechando o estojo de primeiros socorros.

– Depois que eles tentaram me obrigar a um casamento arranjado quando eu tinha 17 anos, roubei um cavalo e fugi para a cidade. Nunca mais voltei.

– Então você perdeu o contato com sua família? – Jordan baixou as sobrancelhas numa expressão de solidariedade, como só alguém com uma família normal e carinhosa faria.

– Perdi. Minha mãe agora está morta. Meu pai também. Não tenho irmãos. Sou sozinha mesmo.

Ela não sabia como encerrar aquela conversa e estava temerosa de que subitamente começaria a falar sobre seu pai e sua irmã, que tinha morrido com apenas dois dias de idade – e então o que mais contaria?

Ela se levantou e atravessou o aposento até a porta. Talvez esperar em seu quarto fosse uma ideia melhor.

Jordan a seguiu e tocou em seu ombro.

– Desculpe. Não tive a intenção de me intrometer.

Uma voz – a voz de Rhun – chamou do corredor, o tom urgente, carregado de preocupação:

– Sargento, Erin não está...

A porta se abriu, e Rhun se deteve ali, olhando para o interior, a surpresa evidente em seu rosto.

Jordan falou de trás de Erin:

– Será que ninguém aqui bate antes de entrar?

Rhun rapidamente se recompôs, mas permaneceu no corredor. As roupas rasgadas que vestira no deserto ainda lhe cobriam o corpo, mas ele havia lavado a maior parte do sangue de sua pele. Os olhos escuros foram de um para o outro, e ele se empertigou, a coluna ainda mais reta do que de hábito, algo que Erin não tinha imaginado que fosse possível.

As faces dela pegaram fogo. Pelo menos o padre não tinha chegado alguns minutos antes.

Jordan abotoou a camisa.

– Desculpe, padre, mas Erin e eu afinal decidimos ficar juntos.

– Vocês dois estão aqui. Isto é tudo o que importa. – Rhun girou nos calcanhares, indicando-lhes que deveriam segui-lo, mantendo a rigidez de sua postura.

– O cardeal espera pela audiência com vocês.

22:10

Jordan sentiu a desaprovação emanando do corpo do padre em ondas. Ele acabou de abotoar a camisa e a enfiou na calça enquanto seguia Erin saindo para o corredor. Ela foi caminhando com os olhos baixos, voltados para o piso.

Korza manteve um silêncio gelado enquanto os conduzia pelo corredor e depois subindo por uma escada em caracol. Ambrose veio ao encontro deles no corredor no alto da escada com um olhar de desaprovação, ou talvez aquela fosse apenas sua expressão habitual. Jordan se recordou da advertência muitas vezes repetida por sua mãe: Continue fazendo esta cara feia e você vai acabar ficando com ela.

– Embora o cardeal mantenha as suas audiências informais – disse o padre Ambrose, se dirigindo a Jordan com o olhar –, não interprete isto equivocadamente como permissão para ser informal com Sua Eminência.

– Entendi. – Jordan bateu uma continência com a mão esquerda para o homem.

A sombra de um sorriso enviesado contraiu os lábios de Korza.

Ambrose fez cara feia, os conduziu a uma porta grande e a abriu.

Jordan seguiu Rhun, protegendo Erin atrás de si, sem saber o que esperar.

Uma brisa fresca soprou em seu rosto, pegando-o de surpresa. Depois de um dia quase inteiro passado dentro da terra, era bom estar ao ar livre de novo. Ele respirou fundo, como um nadador indo à superfície depois de um mergulho.

Adiante, um verdejante jardim num terraço, iluminado por lamparinas a óleo feitas de barro, se estendia largo, convidando o olhar a se demorar, os pés a passear. Jordan aceitou o convite e saiu andando, conduzindo Erin.

Oliveiras em vasos se enfileiravam junto aos parapeitos por todos os lados, as folhas farfalhando ao vento.

Erin se inclinou para inalar a fragrância de uma flor noturna. Grãos de pólen salpicavam as lajes de pedra abaixo.

Jordan a observou por tanto tempo quanto pôde sem ser flagrado. Mas outras paixões também o impeliam. Seu estômago roncou quando ele olhou fixamente e se deteve diante de uma mesa de madeira entalhada a mão, posta com pratos de pão, uvas, romãs e queijo. O que ele realmente queria era um hambúrguer e uma cerveja, mas aceitaria o que fosse oferecido.

Erin foi se juntar a ele, parecendo uma criança na manhã de Natal.

– Esta cena – das lamparinas às plantas, à mesa – poderia ter saído da Bíblia.

Exceto pelas luzes elétricas na rua, ao longe.

Na extremidade mais afastada do terraço, um vulto vestido de carmesim se ressaltava contra o dossel verde, o cabelo branco em contraste dramático com o céu escuro. Só podia ser o cardeal Bernard.

O padre Ambrose os conduziu para longe da mesa e em direção ao homem que esperava – se fosse um homem. Àquela altura, tudo e todos eram suspeitos aos olhos de Jordan.

Recordando-se disso, ele olhou para além do parapeito do jardim, tentando se orientar, descobrir onde eles estavam. Avistou a gigantesca cúpula dourada de uma estrutura próxima, o que Erin tinha chamado de Domo da Rocha. Ela deveria ter uma boa ideia de onde eles estavam.

A voz do padre Ambrose trouxe sua atenção de volta para o cardeal:

– Permite-me apresentar a dra. Granger e o sargento Stone?

O cardeal estendeu a mão. O homem usava um solidéu vermelho, luvas de couro vermelho e uma batina semelhante à de Rhun, mas a dele era vermelha.

Jordan não viu nenhum anel para beijar – não que teria beijado –, então estendeu a mão. Mas o cardeal pegou primeiro a mão de Erin, apertando seus dedos entre as duas mãos.

– Dra. Granger. É uma honra.

– Obrigada, Eminência.

– Cardeal Bernard basta, obrigado. – A voz dele tinha um tom gentil. – Não somos muito formais por aqui.

Ele então apertou a mão de Jordan.

– Sargento Stone, obrigado por seus serviços ao nos devolver o padre Korza inteiro.

– Creio que precisamos agradecer ao padre Korza tanto quanto ele a nós, cardeal Bernard.

O estômago de Jordan roncou de novo.

O cardeal se moveu em direção à mesa.

– Perdoem a desatenção de um velho. Vocês precisam de uma boa refeição.

Ele os conduziu à mesa e lhes indicou onde sentar. Só Jordan e Erin tinham pratos.

– Por ora é tudo, padre Ambrose – disse Bernard em voz baixa.

O padre mais jovem pareceu surpreso por ser dispensado, mas baixou a cabeça e se foi.

Jordan não iria sentir falta dele. Em vez disso, feliz da vida, atacou a comida. Erin se serviu de uma boa porção de queijo e pão. Bernard e Korza não consumiram nada.

– Enquanto vocês comem, posso contar uma história? – O cardeal levantou as fartas sobrancelhas brancas interrogativamente.

– Por favor – respondeu Erin.

– Desde o princípio da história de que se tem registro, os seres humanos temeram a escuridão. – Ele pegou uma uva e brincou com ela. – Até onde remonta a memória, os strigoi caminharam entre nós, enchendo nossas noites de terror e sangue.

Jordan engoliu um pedaço de pão com queijo, a garganta subitamente seca. Ele não precisava que ninguém o recordasse do perigo criado pelos strigoi.

O cardeal prosseguiu:

– Os fundadores da Igreja sabiam da existência deles. Naquela época não era oculta como nos dias de hoje. A Igreja criou uma seita devotada a manter seus números sob controle, não apenas por causa da ferocidade de seus ataques, mas também porque quando um ser humano se transforma em strigoi, isto destrói a sua alma.

A expressão nos olhos escuros de Korza era indecifrável. Como seria ser um padre sem alma?

– Como sabe disso? – perguntou Erin.

O cardeal sorriu de uma maneira que fez Jordan se recordar de seu avô carinhoso.

– Existem maneiras, talvez esotéricas demais para esta mesa, através das quais isto foi comprovado.

– Talvez se o senhor tentar usar palavras simples – sugeriu Jordan.

Erin cruzou os braços.

– Acho que o senhor deve tentar nos explicar.

– Não tive a intenção de desrespeitá-los, a questão é apenas que não dispomos de muito tempo. Acho mais importante certificar-me de que vocês tenham conhecimento do que é essencial para a situação atual, mas depois eu posso explicar a questão da alma de um strigoi.

Os olhos castanhos de Erin pareceram céticos. Jordan adorou a maneira como ela enfrentou o cardeal. Não havia muito que parecesse intimidá-la.

– Os Sanguinistas são uma ordem de padres que tira sua força do sangue de Cristo. – O cardeal tocou em sua cruz. – Por natureza eles são imortais, mas com frequência são mortos na guerra santa. Se são mortos desta maneira, recuperam sua alma.

Os olhos de Jordan foram atraídos de novo para Korza. Então o destino dele era lutar contra o mal até que este o destruísse, não importava quanto tempo isso demorasse. Um tempo de serviço militar eterno.

O olhar do cardeal finalmente se deteve sobre Erin.

– Muitos dos massacres dos strigoi são registrados falsamente na história.

A testa de Erin se franziu – então os olhos dela se arregalaram.

– O massacre de Herodes – disse ela. – O sítio de minha escavação. Aquilo não foi Herodes destruindo o futuro Rei dos Judeus, não é?

– Bela dedução. Herodes não matou aqueles bebês. Os strigoi os mataram.

– Mas eles não estavam apenas se alimentando do sangue daquelas crianças. Encontrei marcas de roedura de dentes nos ossos. Foi um ataque selvagem, como que feito deliberadamente.

O cardeal pôs a mão enluvada sobre a de Erin.

– Lamento dizer que esta é a verdade. Os strigoi tentaram matar Cristo em criança porque sabiam que ele ajudaria a destruí-los. Como de fato aconteceu: pois foi o milagre do sangue dele que levou à fundação dos Sanguinistas e deu início à batalha deles contra os strigoi.

– Parece que os Sanguinistas ficaram com a parte mais difícil de tudo isso. – Jordan comeu um punhado de uvas.

– De forma alguma. Embora não seja um caminho fácil o que temos que trilhar, nosso trabalho serve a humanidade e abre nosso único caminho para a salvação. – O cardeal Bernard girou a uva entre os dedos. – Ao longo dos séculos mantivemos o número de strigoi controlado, mas nas últimas décadas os strigoi e alguns humanos fizeram uma aliança chamada Belial.

Erin cerrou os braços contra o corpo reconhecendo o nome.

– Belial. O líder dos Filhos das Trevas. Uma velha lenda.

Jordan parou de comer.

– Maravilha.

– Jamais soubemos por que a aliança foi formada. – O cardeal olhou por cima da cabeça deles para o céu noturno. – Mas talvez depois de hoje saibamos.

As sobrancelhas de Korza se franziram para baixo.

– Não sabemos com certeza. Mesmo agora. Não permitam que o amor de Bernard pelo drama influencie vocês.

– Influenciar como? – perguntou Jordan.

– Por que a Belial foi formada? – interrompeu Erin.

– Como creio que Rhun já tenha contado a vocês, a tumba de Massada continha o livro mais sagrado jamais escrito. É a história do próprio Cristo e de como ele desencadeou sua divindade, escrita com seu próprio sangue. É chamado de o Evangelho de Sangue.

– O que o senhor quer dizer com “desencadeou sua divindade”? – perguntou Jordan, afastando o prato, perdendo o que lhe restava de apetite.

O cardeal balançou a cabeça para ele.

– Uma pergunta fascinante. Como você provavelmente sabe, na Bíblia, Cristo não realiza milagres no princípio de sua vida. Só mais tarde ele começa a realizar uma série de atos maravilhosos. Seu primeiro milagre divino foi registrado no Evangelho de São João, a transformação de água em vinho.

Erin se mexeu e citou as palavras da Escritura:

– Jesus principiou assim os seus sinais, em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.

Bernard assentiu.

– Depois disso houve uma variedade de outros prodígios: a multiplicação dos peixes; a cura de doentes, a ressurreição dos mortos.

– Mas o que isto tem a ver com o Evangelho de Sangue? – perguntou Erin.

O cardeal explicou:

– Este mistério dos milagres de Cristo confundiu muitos estudiosos da Bíblia. Por que esta súbita manifestação de milagres? O que fez com que sua divindade brilhasse e se revelasse tão subitamente de sua carne humana? – Bernard lançou um olhar ao redor da mesa. – Estas perguntas são respondidas no Evangelho de Cristo.

Erin olhou para ele fascinada.

– Parece que é um bom material – observou Jordan. – Mas por que os Belial se interessam por isso?

– Porque o livro pode dar a qualquer pessoa a habilidade de tocar e manifestar a sua própria divindade. Você pode imaginar se os strigoi dispusessem deste poder? Poderia ajudá-los a se libertarem de suas fraquezas. Talvez eles possam vir a andar sob a luz do dia, como nós, multiplicar suas forças. Imagine as consequências disso para a humanidade.

Korza o interrompeu:

– Mas não sabemos com certeza de nada disso. Esta é apenas a hipótese de Bernard. – Ele encarou Erin com firmeza e depois Jordan. – Vocês têm que se lembrar disso.

– Por quê? – Os olhos de Erin se estreitaram.

O rosto do cardeal tinha ficado duro como pedra, severo. Ele evidentemente não havia apreciado a interrupção de Korza. As palavras dele foram igualmente firmes.

– Porque vocês têm um papel a cumprir, vocês dois, no que acontecerá a seguir. Se recusarem, o mundo mergulhará nas trevas. Isto foi predito.


22

26 de outubro, 22:32, horário de Israel

Jerusalém, Israel

Erin tentou se manter séria, mas não conseguiu.

– O destino do mundo depende de nós? De Jordan? De mim?

E Jordan resmungou ao lado dela:

– Não precisa parecer tão surpresa quando diz meu nome.

Erin o ignorou, ouvindo o sarcasmo na voz dele. Ele também não estava acreditando em nada daquilo. Ela resumiu todas as suas perguntas em duas palavras:

– Por quê?

O cardeal pôs a uva escura de volta na tigela vazia.

– Não posso revelar isto à senhora doutora, não no presente momento, não enquanto não fizer a sua escolha. Depois disso, eu lhe contarei tudo e mais uma vez poderá recusar sem sofrer quaisquer consequências.

– Foi o senhor quem mandou o helicóptero me buscar em Cesareia, não foi? – perguntou ela, se recordando das hélices girando, do garanhão assustado, do pobre Heinrich desacordado e sujo de sangue na trincheira da escavação.

– Fui – admitiu o cardeal. – Usei os meus contatos na inteligência israelense para fazer com que fosse levada para Massada, para o caso de o Evangelho estar lá.

– Por que eu? – Ela continuaria a repetir aquilo até que obtivesse uma resposta que a agradasse.

– Tenho acompanhado o seu trabalho, dra. Granger. A senhora é cética quanto à religião, mas tem um enorme conhecimento da Bíblia. Consequentemente, a senhora vê coisas que pesquisadores não religiosos poderiam deixar passar. Do mesmo modo, a senhora questiona coisas que pesquisadores religiosos poderiam não questionar. Foi esta rara combinação que tornou a senhora perfeitamente preparada para trazer o Evangelho de volta ao mundo. E creio que isto continua sendo verdade.

Foi isso, pensou ela com ceticismo, ou eu era a arqueóloga mais próxima que o senhor pôde encontrar. O ano já estava avançado, e a maioria dos arqueólogos estava de volta às suas instituições lecionando no semestre de outono. Mas de que serviria assinalar isso? Dessa forma, ela segurou a língua.

– E eu? – perguntou Jordan, a voz ainda carregada de sarcasmo. – Imagino que eu seja apenas um coringa inesperado que apareceu por acaso, uma vez que não há nada de especial em mim.

Erin teria discutido essa avaliação, imaginando a tatuagem, e aquela história de ele ter experimentado a morte por três minutos.

Será que tudo aquilo significaria alguma coisa?

O cardeal deu um pequeno sorriso para Jordan.

– Não sei por que a profecia escolheu vocês, meu filho. Mas foram vocês que saíram vivos daquela tumba.

– Então o que devemos fazer a seguir? – Jordan se mexeu inquieto em sua cadeira.

Erin desconfiava que ele estivesse habituado a não ter conhecimento de todas as informações na maioria de suas missões – mas ela não estava. Queria a divulgação completa de todas as informações.

O cardeal prosseguiu:

– Vocês dois, junto com Rhun, devem encontrar e recuperar o Evangelho e levá-lo para o Vaticano. De acordo com a profecia, o livro só pode ser aberto em Roma. – Ele apoiou os cotovelos sobre a mesa. É lá que nossos estudiosos descobrirão seus mistérios.

– E depois disso? – perguntou ela. – Pretendem escondê-lo?

Se o Evangelho de Sangue existisse e contivesse o que ele dizia, era poderoso demais para ser deixado nas mãos da Igreja.

– A palavra de Deus sempre foi livre e está ao alcance de todos. – Os olhos castanhos do velho sorriram para ela.

– Como quando a Igreja queimou livros durante a Inquisição? Com frequência junto com os homens que os escreveram?

– A Igreja cometeu erros – admitiu o cardeal. – Mas não desta vez. Se pudermos compartilhá-la, compartilharemos a luz deste Evangelho com a humanidade inteira.

Ele parecia bastante sincero, mas Erin sabia que não devia acreditar.

– Dediquei minha vida a revelar a verdade, mesmo quando ela contraria os ensinamentos da Bíblia.

Os lábios do cardeal se retorceram num muxoxo.

– Eu diria que especialmente quando ela contraria os ensinamentos bíblicos.

– Talvez. – Ela respirou fundo. – Mas o senhor pode jurar que vai dar conhecimento deste livro, tanto quanto for seguro, a estudiosos leigos? Mesmo se contrariar os ensinamentos da Igreja?

O cardeal tocou em sua cruz.

– Eu juro que vou.

Ela ficou surpreendida com o gesto. Aquilo era alguma coisa. Não estava confiante de que ele cumpriria sua palavra, especialmente se o conteúdo fosse antiético com relação aos ensinamentos da Igreja, mas sabia que não receberia uma oferta melhor. E se aquele Evangelho existisse, ela queria encontrá-lo. Uma descoberta daquele porte em alguma medida pagaria a dívida de sangue – tanto a de Heinrich na escavação como a de todos os que tinham morrido em Massada.

Erin tomou sua decisão com um sinal de cabeça.

– Então eu...

– Espere – disse Rhun, interrompendo-a. – Antes de se comprometer, você precisa compreender que poderá perder a vida nesta busca. – A mão dele segurou a cruz peitoral. – Ou algo ainda mais precioso.

Ela se lembrou da conversa anterior sobre as almas – ou a falta de alma – dos strigoi. Não era apenas a vida deles – de Rhun, de Jordan e a dela – que estava em risco na jornada que teriam pela frente.

Um poço fundo de tristeza brilhou nos olhos de Rhun, algo de seu passado.

Será que ele estava lamentando a perda de sua alma ou da de outrem?

Erin silenciosamente listou as razões lógicas pelas quais não deveria fazer aquilo, por que deveria voltar para Cesareia, se encontrar com os pais de Heinrich e continuar sua escavação. Mas aquela decisão exigia mais que lógica.

– Dra. Granger? – perguntou o cardeal. – O que a senhora deseja?

Ela examinou a mesa, posta como havia sido há milênios, e Rhun, cuja simples existência oferecia uma prova possível do milagre da transubstanciação. Se ele podia ser real, talvez o Evangelho de Cristo também pudesse.

– Erin? – perguntou Jordan.

Ela respirou fundo.

– Como eu poderia perder esta oportunidade?

Jordan inclinou a cabeça.

– Tem certeza de que esta é a sua luta?

Se a luta não fosse a dela, de quem seria? Erin recordou o esqueleto pequenino da criança na trincheira, carinhosamente enterrado por um pai devotado. Imaginou o massacre que levara aquele bebê a um túmulo prematuro. Se houvesse alguma verdade nas histórias contadas naquela noite, ela não podia permitir que os Belial se apoderassem daquele livro nem que massacres semelhantes se tornassem lugar-comum.

Jordan encontrou os olhos dela, seus olhos azuis questionando.

Rhun baixou a cabeça e parecia estar rezando.

Erin assentiu, sua decisão firme:

– Tenho que fazer isso.

Jordan a encarou por mais um momento – então deu de ombros.

– Se ela vai, eu também vou.

O cardeal baixou a cabeça em sinal de agradecimento, mas ainda não havia acabado:

– Há mais uma condição.

– Grande novidade! – resmungou Jordan.

Bernard explicou:

– Se vocês se aliarem aos Sanguinistas, precisam saber que serão dados como mortos, seus nomes serão incluídos na lista das vítimas de Massada. Suas famílias serão informadas.

– Espere um minuto. – Jordan se recostou na cadeira.

Erin compreendeu. A família de Jordan choraria a morte dele, sofreria por sua decisão. Ele não podia embarcar naquela jornada. Ela tinha amigos, até mesmo amigos íntimos, e colegas, mas não havia ninguém que ficaria arrasado se não voltasse de Israel. Ela não tinha família.

– Não existe outra maneira. – O cardeal estendeu as mãos enluvadas com as palmas viradas para cima. – Se os Belial souberem que estão vivos, que buscam o Evangelho, poderão tentar influenciá-los através de suas famílias... compreendem o que isto significa?

Erin assentiu. Ela vira a ferocidade dos Belial em primeira mão na tumba em Massada.

– Para proteger vocês, para proteger aqueles que vocês amam, temos que escondê-los vocês sob a capa dos Sanguinistas. Vocês têm que desaparecer do mundo.

Jordan alisou o dedo anular vazio, pensativo.

– Não deveria vir, Jordan. Você tem muito a perder.

A voz do cardeal assumiu um tom mais gentil:

– Isto é para a segurança deles, meu filho. Depois de passada a ameaça, vocês retomarão suas vidas normais, e seus amigos e família saberão que isto foi feito por amor.

– E tem que ser a gente, mais ninguém pode fazer isto? – Os olhos de Jordan continuaram fixos em seus dedos.

– Acredito que vocês três juntos devem desempenhar a tarefa.

Jordan lançou um olhar para Rhun, cujos olhos escuros não revelavam nada – depois para Erin.

Finalmente ele se levantou e foi andando até o parapeito do terraço, os ombros rígidos. Erin sabia que a decisão dele era difícil. Ao contrário dela, ele não era um arqueólogo órfão. Jordan tinha uma família grande em Iowa, uma esposa, talvez até filhos.

Ela não tinha ninguém.

Estava acostumada a estar sozinha.

Então por que estava de olhos cravados nas costas de Jordan, ansiosa para ouvir a resposta dele?


23

26 de outubro, 22:54, horário de Israel

Abaixo do deserto israelense

Bathory despertou de um cochilo, sem saber quando havia adormecido, seduzida pela exaustão e pelo silêncio fresco do bunker subterrâneo. Ela precisou de um momento para se lembrar de onde estava. Uma tênue sensação de perda a envolvia como uma teia de aranha.

Então lembrou-se de tudo.

À medida que o tempo caiu de volta sobre seus ombros, uma ponta de pânico penetrou seu cansaço. Ela se levantou, tirando as pernas do sofá reclinado. Encontrou Magor enroscado ali bem perto, sempre lhe dando proteção. Ele levantou a cabeça enorme, os olhos faiscando.

Ela acenou para que descansasse, mas ele se levantou pesadamente e foi até junto dela.

Ao lado dela, ele tornou a se deitar, deixando a cabeça em seu colo. Ele percebia sua angústia, do mesmo modo que ela sentia o calor do afeto e do interesse dele.

– Eu vou ficar bem – disse ela em voz alta.

Mas ele sentia o que não fora dito, seu medo e preocupação.

Enquanto ela lhe coçava as orelhas, Bathory buscou as palavras para contar a Ele sobre seu fracasso – se é que tais palavras existiam. Tinha perdido a maioria dos strigoi sob seu comando, tinha permitido que um Cavaleiro de Cristo escapasse de sua armadilha. E pior que tudo, o que havia conseguido com isso?

Não o livro, com certeza – mas isso não era sua culpa.

Alguma outra pessoa o havia roubado muito antes que Massada desmoronasse em ruínas.

Ela inclusive tinha provas do roubo: fotos granuladas recuperadas de um telefone celular.

Mas mesmo para ela, qualquer explicação dos acontecimentos da noite parecia desculpas.

Não conseguindo mais continuar sentada, ela afastou delicadamente o focinho de Magor e se levantou. Seus pés nus cruzaram um tapete persa que outrora havia enfeitado o assoalho de pedra de seu castelo ancestral, e outrora aquecera pés há muito mortos.

Ela alcançou uma parede de concreto. Era coberta por seda chinesa vermelha para suavizar os limites duros do bunker que era seu lar no deserto, um lar enterrado sob seis metros de areia. Contra a parede, prateleiras dispostas com bom gosto exibiam uma lanceta antiga com punho de marfim e uma tigela de ouro com anéis no interior para indicar a quantidade de sangue que havia sido colhida.

Ela levantou a tigela. Quanto de seu sangue maldito ele tiraria como castigo?

Magor encostou o focinho em seu quadril e ela deixou a tigela na prateleira e se ajoelhou, enterrando o rosto no pelo dele. Tinha cheiro de lobo, sangue e consolo. Com Hunor morto, ele era seu último verdadeiro companheiro.

E se Ele lhe tomasse Magor?

Esse temor a fez levantar o rosto. Seu olhar caiu sobre seu pertence mais precioso – um retrato original de um menino pintado por Rembrandt. Uma versão de Titus estava numa galeria americana. O cabelo louro do menino se encaracolava ao redor de um rosto angelical. Olhos sérios, cinza-azulados, encontraram os dela, lábios vermelhos se curvavam num esboço de sorriso. Na versão americana, havia uma mancha cinza sobre o ombro do menino. Historiadores da arte teciam especulações, afirmando que era um papagaio ou um mico de estimação que havia morrido durante as semanas que tinham sido necessárias para concluir a pintura. Para poupar o menino de sofrimento o animal de estimação havia sido coberto depois de concluída a obra. O quadro dela revelava que não era nenhum dos dois animais. Uma coruja-do-mato olhava para ela empoleirada no ombro do menino.

Mas o predador não capturava o olhar de Bathory. O menino sim. Ele parecia com o irmão dela Istvan, atiçando a sensação vaga de perda até se tornar algo mais substancial.

Primeiro ela havia perdido Istvan.

E agora Hunor.

Não podia perder Magor.

O lobo descansou o focinho enorme sobre seu ombro. Ela lhe cantou uma cantiga de ninar e tentou fazer planos. Talvez devesse fugir para o deserto, desaparecer com Magor. Em seu armário havia dinheiro e joias suficientes para permitir-lhes viver com conforto durante anos. Talvez finalmente pudesse escapar da gaiola de prata que a prendia há tanto tempo.

Como se tivesse lido seus pensamentos, alguém bateu à porta, com a mão pesada.

Magor rosnou, o pelo se eriçando numa linha ao longo de suas costas.

Sem esperar por resposta, a pesada porta de metal do aposento se abriu. Botas escuras entraram.

Tarek parou logo depois do umbral da porta, seguido pelo irmão Rafik. Era uma atitude ousada da parte dele.

Ela se levantou, erguendo o queixo, mostrando a garganta e a marca Dele.

Magor postou-se na frente dela, mais uma linha de defesa.

– Como ousa entrar sem a minha permissão? – perguntou.

Tarek sorriu, seus lábios esticados para revelar as longas presas.

– Ouso porque Ele já sabe de seu fracasso.

Rafik se manteve atrás do ombro do irmão, a loucura maligna faiscando em seus olhos.

Farejando uma possível mudança na estrutura de poder, Tarek esclareceu o motivo de sua ousada intrusão, deixando claras suas intenções ao cruzar o limiar da porta, como um cão marcando território.

– Recebi instruções Dele sobre como matar você da próxima vez em que falhar.

Pela satisfação maligna no olhar de Rafik, ela imaginava que a morte não seria nem rápida nem indolor.

Bathory manteve o rosto impassível e enfrentou o olhar de Tarek. Os monstros à sua porta podiam ser mais fortes que ela, mas ela era muito mais astuciosa. Bathory permitiu que essa confiança se revelasse e fez Tarek baixar o olhar – até finalmente fazê-lo recuar e sair pela porta.

Ao invés de incutirem medo nela, aquelas ameaças apenas a fortaleciam, tornavam mais determinada sua decisão.

Como Ele sabia que fariam.

Ela tocou o ombro de Magor.

– Está na hora de caçar de novo.


24

26 de outubro, 22:57, horário de Israel

Jerusalém, Israel

Do jardim no terraço, Jordan olhou para o Muro das Lamentações abaixo, e para aqueles que rezavam diante dele. Uma jovem mãe levantou seu bebê, o vestido cor-de-rosa de babados da menina se levantando quando a mãozinha alisou a parede. Ela se parecia com a sua sobrinha Abigail quando tinha aquela idade. Durante três anos sua irmã mais moça vestira a pequena sapeca, com jeito de garoto levado, com roupinhas cor-de-rosa. Depois disso, Abigail havia passado a escolher suas próprias roupas – de cor marrom. A mãe abaixo trouxe a garotinha de volta ao peito e beijou-lhe a cabeça.

Elas não tinham nenhuma ideia da existência de strigoi.

Viviam em um mundo sem monstros.

Mas os monstros estavam lá fora, e agora Jordan sabia disso. Se sua missão falhasse, todo mundo também teria que enfrentá-los. Ele se lembrou do serviço rápido que eles tinham feito com seus homens bem treinados.

Enquanto ele observava a mulher com a filha se afastarem do muro e se encaminharem para casa, lutou contra pensamentos sobre sua própria família. Especialmente sobre sua mãe. Ela havia sobrevivido a uma cirurgia para retirar um tumor cerebral no mês anterior e ainda estava com a saúde frágil, terminando a quimioterapia.

Esqueça os Belial, o choque de saber de sua morte poderia matá-la.

Mesmo assim, sabia o que ela quereria que ele fizesse. Ele era bem filho de sua mãe; suas crenças no certo e no errado lhe tinham sido instiladas por ela – por suas palavras, por suas ações e até pelo seu sofrimento. Ele havia se alistado para servir a seu país, seus conterrâneos, em parte por causa dela. Acreditava no lema do Exército: “Esta vamos defender.”

Impedir os strigoi de dominar a Terra custaria um preço terrível, mas ele não hesitaria em pagá-lo. Sua família não esperaria nada menos que isso dele. Seus homens já tinham dado nada menos que isso.

Decidido, ele caminhou de volta para a mesa.

Seus motivos pareciam todos nobres, mas sabia que parte de sua decisão vinha da maneira como Erin havia sorrido para ele quando despertara no helicóptero, a forma com que ela se derretera em seus braços no quarto. Ele não podia deixá-la entregue a Rhun e aos outros.

Ele se aproximou da mesa e deixou cair no tampo suas plaquetas de identificação.

– Contem comigo.

– Jordan... – Erin o encarou, a guerra interna entre alívio e temor visível em seu rosto. Ele examinou as plaquetas e desviou o olhar. Quando seus pais as recebessem, pensariam que estava morto.

O cardeal assentiu sobriamente, mas seus olhos brilharam com determinação. Jordan tinha visto muitos generais com a mesma expressão. Geralmente era depois que a pessoa se apresentava como voluntário para alguma missão. Alguma missão que provavelmente a mataria.

Korza se levantou abruptamente e sua cadeira caiu para trás e se chocou contra o piso – então ele se retirou furioso.

– Vocês devem perdoar Rhun – disse o cardeal. – No passado ele pagou um preço terrível por servir a profecia.

– Que preço? – Jordan levantou a cadeira de Rhun, a virou e se sentou de frente para o encosto.

– Foi há quase quatrocentos anos. – Os olhos iluminados pelas lamparinas se fixaram além dele nas luzes da cidade moderna. – Tenho certeza de que se quiser que vocês saibam, ele contará a vocês.

Jordan havia meio que esperado aquele tipo de resposta. Ele apoiou os braços no topo do encosto da cadeira.

– Agora que aceitamos, que tal nos contar o que diz a profecia e por que nós três somos tão especiais?

Erin cruzou as mãos no colo como uma colegial e se inclinou para a frente, também querendo respostas.

– Quando o livro foi vedado na tumba, a profecia anunciou que... – O cardeal se deteve e sacudiu a cabeça. – É melhor que eu apenas mostre a vocês.

Ele abriu uma gaveta na mesa e retirou uma caixa de couro macio. Não parecia uma profecia. Mas, quando ele a abriu, Erin chegou para a ponta da cadeira. Jordan também empurrou a cadeira mais para perto, ombro a ombro com ela.

– É isto? – perguntou ela.

O cardeal puxou um documento protegido por uma capa de plástico. Jordan não era nenhum especialista, mas o pergaminho parecia tão velho quanto a cidade que os rodeava. Letras escritas em tinta escura cobriam a página única. Ele não sabia ler aquela escrita, mas lhe parecia conhecida.

– Grego? – perguntou ele.

Erin assentiu, se inclinando mais para perto para ler em voz alta:

– “O dia virá em que o Alfa e Ômega derramarão sua sabedoria em um Evangelho de Sangue Precioso que os filhos de Adão e as filhas de Eva poderão usar no dia de necessidade.”

– O Alfa e Ômega? – perguntou Jordan.

– É Jesus, creio. – Ela se virou de volta para o pergaminho e continuou lendo, passando um dedo pela superfície de plástico.

– “Até este dia, este livro abençoado ficará escondido em um poço da mais profunda escuridão por uma garota.” – Ela fez uma pausa. – Ou será que seria mulher? Não fica claro. Ele diz aqui uma Garota de Inocência Corrompida. Mas a penúltima palavra também poderia significar conhecimento. As referências bíblicas sobre conhecimento e bem e mal com frequência ficam confusas.

A cabeça de Jordan já estava começando a girar, confusa.

– Que tal fazer uma leitura rápida? Depois se deter nos detalhes.

– Certo. – Ela continuou: – “Até este dia, este livro abençoado ficará escondido em um poço da mais profunda escuridão por uma Garota de Inocência Corrompida, um Cavaleiro de Cristo, e um Guerreiro do Homem.

Ela tomou fôlego.

– “Do mesmo modo, um outro trio trará o livro de volta à luz. Só uma Mulher de Saber, um Cavaleiro de Cristo e um Guerreiro do Homem poderão abrir o Evangelho de Cristo e revelar sua glória ao mundo.”

O cardeal encarou Erin.

– Creio que o trio seja a senhora, dra. Granger, com o sargento Stone e o nosso padre Korza.

Erin olhou para o pergaminho.

– Por que o senhor acha que somos nós?

– Vocês três chegaram juntos ao local original onde o livro estava. Cada um desempenhou um papel na derrota das criaturas da escuridão e retornou vivo para ver as estrelas do deserto.

Jordan suspirou – alto demais, atraindo o olhar dos outros. Tudo aquilo parecia baboseira religiosa, e ele lhes disse por quê.

– Mas nós não encontramos o livro. Já havia desaparecido, tinha sido levado para o mundo. Alguém provavelmente já o abriu há muito tempo.

– Não, meu filho, se tivessem aberto o livro, o mundo teria mudado. Milagres seriam comuns.

– Talvez – disse Jordan. – Mas, de qualquer maneira, alguém já encontrou o livro e o tirou de lá. Estas pessoas devem ser aquelas a respeito de quem a profecia estava falando, certo?

O cardeal sacudiu a cabeça.

– A profecia não diz quem encontrará o livro, apenas quem deve abri-lo. Acredito que seja quem for que estiver com o livro, não pode abri-lo porque não faz parte do trio da profecia. Mas creio que vocês três sejam.

– E onde vamos encontrar o livro? – perguntou Erin.

O cardeal Bernard sacudiu a cabeça.

– Não tenho resposta para esta pergunta. Rhun disse que não encontrou nada na tumba que indicasse quem a havia saqueado.

Erin buscou os olhos de Jordan, claramente pedindo sua permissão. Ele fez que sim. Ela enfiou a mão no bolso e lentamente tirou o medalhão nazista.

– Isto foi encontrado na mão da garota morta. Ela deve tê-lo arrancado de quem roubou o livro, e que a matou.

O cardeal estendeu a palma da mão. Ela hesitou antes de deixar o disco de prata cair na luva vermelha.

Ele o examinou por um minuto inteiro, estudando com atenção a inscrição na borda, lendo-a em voz alta:

– Ahnenerbe.

– O senhor conhece? – perguntou Jordan.

– A nossa ordem com frequência teve interesses de pesquisa semelhantes aos deste grupo. A Ahnenerbe vasculhou a Terra Santa em busca de artefatos perdidos e itens religiosos de poder. Na verdade, o padre que outrora liderou a nossa busca pelo Evangelho também estava encarregado de observar a Ahnenerbe. Infelizmente, perdemos o padre Piers durante a Segunda Guerra Mundial. – O cardeal beijou sua cruz antes de continuar: – Perdemos tantos dos nossos naquela ocasião.

Jordan sabia como era aquilo.

Bernard se endireitou lentamente, pensativo, e devolveu a medalha.

– Conheço alguém que deveria ver isto. Nós temos uma Pontifícia Universidade, dirigida pela Ordem dos Sanguinistas, escondida na abadia de Ettal, na Alemanha. Eles têm uma biblioteca de pesquisa enorme. Lá vocês encontrarão nossos arquivos relativos à Ahnenerbe e suas atividades durante a guerra. Talvez esta deva ser a primeira parada de vocês na busca.

Jordan olhou para Erin.

– Você tem alguma ideia melhor?

– Melhor que uma biblioteca sanguinista? – Ela parecia pronta para partir imediatamente. – Mal posso esperar para vê-la.

Ele sorriu. Ali não havia surpresas. O entusiasmo dela era contagiante:

– A menos que o padre Korza tenha objeções, vamos começar por lá.

– Cuidarei dos preparativos. Depois disso, devo retornar a Roma, para preparar o Vaticano, se vocês forem bem-sucedidos.

O cardeal fez menção de se levantar, mas Jordan levantou a mão.

– Antes que faça isto, preciso lhe pedir um favor.

– Sim?

– Escrevi cartas para cada integrante da minha equipe. – Ele manteve a voz calma, profissional, tentando não pensar. – Cartas a serem entregues às suas famílias no caso da morte deles, e da minha. Deixei instruções com meu oficial comandante sobre onde estavam e como deviam ser entregues. Será que o senhor poderia se certificar de que sejam enviadas?

Bernard baixou a cabeça.

– Posso, meu filho. Temos contato com muitos capelães do Exército.

Jordan pigarreou, falando formalmente:

– Mais uma coisa, Eminência.

– É claro.

Ele enfiou a mão num minúsculo bolso com zíper em sua jaqueta e tirou dele a aliança. Segurou-a entre o polegar e o indicador, recordando-se do dia chuvoso em que Karen a tinha posto em seu dedo, o momento em que estivera vindo para cima dele como um trem de carga desde o seu último ano de colegial. Eles nunca tinham imaginado que seriam separados.

– Por favor, cuide para que isto seja entregue à família da minha mulher – disse ele. – Eu sempre disse a eles que se eu morresse eles a receberiam de volta. Eles falavam de enterrá-la junto ao túmulo dela.


25

26 de outubro, 23:14, horário de Israel

Jerusalém, Israel

Erin estava tomando um gole de água quando Jordan passou a aliança de sua esposa morta. Ela abafou uma tosse de surpresa.

A aliança de ouro brilhou antes que a luva vermelha do cardeal se fechasse sobre ela.

– Como queira, meu filho. Será feito.

Então Jordan não era casado – ele era viúvo.

Ela lutou para encaixar aquela mudança em sua visão geral dele, mal escutando Jordan dar as instruções sobre onde encontrar as cartas e para onde enviar a aliança. Ele devia ser casado. A linha em seu dedo dizia isso. Ela detestava quando se enganava ao interpretar indicações. Ele era viúvo, e um viúvo que claramente amara sua esposa e não quisera se libertar dela.

Aquilo mudava tudo. Se ele estava solteiro, as ações dele assumiam um sentido diferente – do mesmo modo que as dela. Ela começou a passar em revista todas as interações anteriores deles, finalmente se concentrando naquele beijo no quarto dele.

Ela sentiu as pontas de seus dedos tocando em seus lábios e teve que se obrigar a baixar a mão.

– Com licença, Vossa Eminência. – A voz rabugenta ecoou pelo jardim, atraindo a atenção de todos. O padre Ambrose veio se aproximando deles. – Posso tirar a mesa?

Ela se levantou, sem saber para onde ir.

– É claro, meu filho – respondeu o cardeal. – Já acabamos de comer.

Querendo manter as mãos ocupadas, redirecionar seus pensamentos, Erin ajudou o padre Ambrose a tirar a mesa enquanto Jordan e o cardeal continuavam conversando. Ela seguiu apressadamente o padre exigente carregando pratos até a escada.

Erin fechou a porta, desejando um momento de privacidade com o padre Ambrose na escada.

– Eu gostaria de falar com o padre Korza – disse.

O padre Ambrose recolheu a uva solitária que restava na tigela e a comeu. Longe das vistas do cardeal, ele parecia mais descontraído. Ou talvez não a considerasse uma ameaça para sua posição.

– Você pode tentar falar com ele, mas o nosso padre Korza não é um homem comunicativo.

– Mesmo assim, eu gostaria de arriscar a sorte – disse Erin.

– Muito bem. – O padre Ambrose deu um pequeno sorriso, como quem esconde um segredo. – Mas você foi avisada.

Ela o seguiu até uma cozinha surpreendentemente moderna e eles depositaram os pratos na pia.

Então ele pegou dois castiçais de latão em um armário, inseriu uma vela em cada e as acendeu.

– Não há eletricidade para onde estamos indo – explicou.

Ele entregou um castiçal a ela e retornou à escada espiral. Desceram dando voltas e voltas, indo cada vez mais fundo, passando pelas celas onde ela e Jordan tinham se lavado, onde eles tinham se beijado. Os passos dela se apressaram naquele nível.

À medida que continuava a descida, ela se perguntou como seria melhor abordar Rhun. Ele tinha parecido furioso quando ela e Jordan haviam concordado em acompanhá-lo na busca. Mas por quê? Que preço ele pagou quatrocentos anos antes?

Erin considerou a suposta idade dele. Será que realmente tinha quinhentos anos? Isso significaria que ele vivera durante o Renascimento. Seus maneirismos corteses e formais agora faziam mais sentido, mas nada mais fazia sentido.

Como, por exemplo, por que ela estava indo lá para baixo?

Parte do motivo era simples: para fugir. Ela precisava dar espaço e tempo a si mesma para se ajustar ao novo Jordan.

Mas Rhun também tinha as respostas de que ela precisava.

Pela reação do padre no jardim, ela suspeitava que Rhun fosse se mostrar mais sincero quanto aos perigos que eles teriam pela frente – pelo menos mais franco do que o cardeal. Apesar de sua decisão estar tomada, queria saber tudo o que pudesse sobre a busca. Rhun poderia lhe dar respostas ou, mais provavelmente, ele apenas a encararia com aqueles olhos escuros e não diria nada. Mas ela precisava tentar.

O padre Ambrose parou diante de outra porta maciça de madeira. Ele lutou para destrancá-la com uma chave mestra numa argola que trazia presa ao cinto. A fechadura enferrujada parecia não ter sido aberta há anos.

Os pelos se arrepiaram nos braços de Erin quando um temor súbito surgiu em sua mente. E se o padre Ambrose quisesse lhe fazer mal? Ela censurou a si mesma por aquela tolice. Tanto Jordan quanto o cardeal a tinham visto sair com ele. Ele não ousaria fazer nada a ela. Mesmo assim, o coração dela seguiu disparado.

A tranca finalmente girou e o padre Ambrose puxou a porta pesada com dificuldade e apontou para o aposento escuro.

Do outro lado do aposento, Rhun estava ajoelhado diante do que poderia ter sido um altar, embora estivesse escuro demais para dizer. Uma única vela votiva iluminava o aposento, a maior parte de sua luz absorvida pelo copo escarlate que a continha. Sua pequena chama revelava um teto distante em arco e janelas muito antigas de vitrais que deveriam dar para nada, exceto mais rocha. Bancos de igreja vazios enchiam o espaço, separados por um tapete puído que se estendia no centro.

Seria aquilo uma capela sanguinista?

O padre Ambrose gesticulou para que ela passasse na frente, e ela entrou se movendo silenciosamente.

Quando a porta se fechou às suas costas, o vento apagou a vela. Ela deveria ter lembrado de proteger a chama. Erin se virou para o padre Ambrose – apenas para descobrir que ele não havia entrado com ela.

Erin voltou para a porta e girou a maçaneta.

Trancada.

Ele a havia trancado sozinha com Rhun.

Erin parou, sem saber o que fazer. Não daria ao padre Ambrose a satisfação de socar a porta e implorar que a deixasse sair. Além disso, não queria interromper as preces de Rhun.

O fato de ele já não ter percebido a presença dela indicava que deveria estar profundamente mergulhado em meditação. Rhun percebia tudo. Os sentidos dele eram mais aguçados que os dela, mas agora ele não deu nenhum sinal exterior de que sabia que ela estava ali.

Estaria ele tão perdido em sua fé?

Ela sentiu uma pontada de inveja diante de uma devoção tão concentrada.

No silêncio ela ouviu palavras baixas sussurradas em latim, palavras fáceis de traduzir porque ela as tinha ouvido com muita frequência durante as missas de sua infância:

“O sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi derramado por ti, te preserve o corpo e a alma para a vida eterna. Bebe este em memória de ter sido o Sangue de Cristo que foi derramado por ti, e sê agradecido.”

Ele estava dando a comunhão a si mesmo. Pela primeira vez, ela realmente compreendeu o significado por trás das palavras. Tudo o que ela sabia sobre a Igreja teria que ser repensado. Crenças que ela outrora havia rejeitado estavam demonstrando ser verdadeiras, sustentadas por uma história que ele nem sequer pensara ser possível.

“O sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que te preserve na vida eterna.”

Ele levou um grande cálice aos lábios e entoou:

“O sangue de Senhor Jesus Cristo, o cálice da salvação.”

No deserto, ele tinha ficado envergonhado de beber seu vinho na frente dela e de Jordan. Erin se esgueirou de volta para a porta, pronta para bater, mas conteve a mão.

Por mais que Rhun tivesse detestado que ela e Jordan o vissem vulnerável, seria muito pior se o padre Ambrose visse.

Ela se virou de costas para Rhun, concedendo-lhe sua privacidade. Então se deixou deslizar para uma posição sentada no chão, envolveu os joelhos com os braços e esperou.

23:31

Rhun levou o cálice aos lábios, inalando as fragrâncias familiares de ouro e vinho. Precisava do sangue de Cristo naquela noite mais do que precisara em muitos anos. Ele o ajudaria a se curar e acalmaria sua raiva. Apesar de conhecer os riscos, Bernard havia reunido a mulher inocente e o soldado a ele. Eles aceitaram a missão, não compreendendo para onde os levaria. Teria ele sido tão impetuoso quando ainda era um frágil ser humano?

A vergonha ardia em seu íntimo. A responsabilidade por aquilo não era somente de Bernard. As ações de Rhun tinham trazido o soldado e a mulher até ali. Ele lhes havia contado o que era proibido. Ele os salvara quando deveria tê-los deixado morrer.

Agora, se lhes faltasse, eles desejariam que os tivesse deixado encontrar uma morte rápida no deserto.

Rhun levantou o cálice uma última vez e bebeu. Um gole longo e grande. O líquido lhe escaldou os lábios e a garganta. Não era a uva fermentada, mas a essência do sangue do próprio Cristo que queimava ao encontrar o pecado que fluía em seu corpo maculado. Rhun descansou o cálice vazio, então levantou os braços na altura dos ombros e deixou que as chamas da dádiva de Cristo ardessem através dele enquanto concluía a sua oração. Vapor se elevou de seus lábios, e ele obrigou-se a dizer as últimas palavras em meio à agonia. Então se ajoelhou sem que lhe restasse mais nada, senão a lembrança de seu pecado.

Juncos novos farfalhavam sob as botas de Rhun enquanto ele avançava para a entrada do vestíbulo para cumprimentar a criada de Elisabeta, a tímida Anna.

No Castelo de Cachtice, Elisabeta insistia que a cada outono os velhos juncos fossem jogados fora, a pedra, lavada e secada, e que novos juncos fossem postos em seu lugar. Ela espalhava folhas de camomila sobre os juncos, dando à casa um perfume limpo e repousante, muito diferente do da maioria das casas nobres que ele visitava.

– O senhor não quer me seguir até o grande salão, padre? – Anna mantinha os olhos nos juncos e a marca de nascença escondida dele.

– Se me faz o favor, Anna, poderia pedir à senhora que venha até aqui? – Embora ele a tivesse visitado muitas vezes, naquela noite não queria entrar.

Antes que Anna tivesse tempo de ir, Elisabeta chegou num suntuoso vestido verde-escuro, afilado e bem justo ao redor de sua cintura fina.

– Meu caro padre Korza! É tão raro vê-lo por aqui a esta hora. Por favor, venha para o salão. Anna acabou de acender a lareira.

– Devo declinar. Creio que minha mensagem... minha tarefa... que seremos mais bem servidos se eu permanecer aqui.

As sobrancelhas esculpidas se ergueram com surpresa.

– Que misterioso!

Ela acenou para que Anna se fosse, então foi até uma mesa alta junto à porta e acendeu as velas de cera. O perfume de mel das velas se espalhou, recordando-o de verões inocentes há muito tempo passados.

A luz bruxuleante das velas iluminou o rosto mais lindo que ele jamais tinha visto. A luz rebrilhava no cabelo muito negro, e os olhos cinza-prata dançavam travessos. Ela cruzou as mãos enquanto se virava para ele.

– Conte-me qual é sua tarefa, padre.

– Eu venho trazer notícias. – A garganta dele se fechou.

Ela ficou completamente imóvel. O sorriso desapareceu de seu rosto e os olhos prateados escureceram como uma nuvem de tempestade.

– De meu marido, o conde Nádasy?

Ele não podia contar a ela. Não podia magoá-la. Agarrou a cruz de prata em seu peito, na esperança de que lhe desse força. Como de hábito, a cruz lhe deu apenas dor.

– Ele morreu – disse ela.

É claro que como esposa de soldado ela sabia.

– Foi com honra. Em...

Ela se apoiou contra a parede.

– Poupe-me dos detalhes.

Rhun ficou parado ali, imóvel, sem conseguir falar.

Ela baixou a cabeça, tentando esconder as lágrimas.

Como padre, ele deveria ir para junto dela. Deveria rezar com ela, falar da vontade de Deus, explicar que agora Ferenc residia com os exaltados. Ele havia desempenhado aquele papel muitas vezes para muitas famílias enlutadas.

Mas não conseguia fazê-lo para ela.

Não para ela.

Porque na verdade ele ansiava por tomar-lhe o corpo esguio nos braços, consolar sua dor contra o peito. Assim, em vez disso, ele recuou, permitindo que sua covardia se tornasse crueldade, abandonando-a na hora de dificuldade.

– Ofereço minhas sentidas condolências por sua perda – disse formalmente.

Ela ergueu os olhos cheios de pesar para ele. Surpresa e confusão lampejaram neles por um instante; a seguir, apenas uma tristeza mais profunda. Ela se esforçou para exibir de novo a máscara da normalidade, mas não conseguiu de todo, pois não conseguiu esconder plenamente a mágoa que sentia diante da frieza dele.

– Não vou detê-lo aqui, padre. É tarde e sua jornada é longa.

Como a amava, ele a abandonou.

Enquanto avançava aos tropeções pela estrada ladeada de gelo que o conduzia para longe de Elisabeta, ele se deu conta de que tudo havia se alterado entre eles. Com certeza ela sabia disso também, Ferenc tinha sido o muro que os mantinha em segurança, que os mantinha separados.

Sem aquele muro, qualquer coisa poderia escapar.

Rhun voltou a si, voltou ao presente, caído no chão de pedra da capela. Enquanto jazia ali, pensou de novo naquela visita ao castelo. Deveria ter seguido o seu instinto e fugido dali para sempre, nunca mais ter voltado para o lado dela.

Em vez disso, naquela ocasião como agora, tinha se enterrado no silêncio escuro da Igreja. Os perfumes claros de sua vida tinham se dissolvido, tornando-se nada mais que poeira de pedra, suor de homens, e traços de incenso, tingidos por um toque ligeiro do cheiro das coníferas de onde tinha sido extraído.

Mas nada verde e vivo.

Durante aquelas noites de muito tempo atrás, ele havia desempenhado seus deveres de padre. Mas durante os dias tinha contemplado os olhos claros da Virgem Maria enquanto ela chorava pelo filho, e só pensara em Elisabeta. Só dormira quando obrigado, pois quando o fazia sonhava que não a tinha abandonado e que abraçara-lhe o corpo contra o seu e a consolara. Beijara-lhe as lágrimas, e o brilho do sol voltara ao sorriso dela, um sorriso dirigido a ele.

Em seus longos anos de vida de padre, sua fé nunca havia vacilado. Mas naquela ocasião vacilara.

Ele havia afastado os pensamentos dela e rezado até que a pedra deixasse seus joelhos esfolados. Tinha jejuado até os ossos doerem. Só ele e um outro Sanguinista em todos os séculos nunca tinham provado o gosto do sangue de um ser humano, nunca tinham tirado uma vida humana. Ele havia pensado que a sua fé fosse mais forte que a sua carne e seus sentimentos.

E pensara que os havia conquistado e dominado.

Sua arrogância ainda o consumia.

Seu orgulho motivara a sua queda, e a ruína dela.

Por que teria o vinho lhe mostrado essa parte de sua penitência essa noite?

O bater de um coração rufou em meio a seus pensamentos, trazendo-o de volta à capela iluminada pela vela.

Um ser humano, aqui? Aquele tipo de invasão era proibido.

Ele ergueu a cabeça, tirando os olhos das pedras. Uma mulher estava sentada de costas para ele, de cabeça baixa sobre os joelhos. O ângulo daquela cabeça era conhecido. A nuca exalava um cheiro familiar.

Erin.

O nome flutuou em meio à neblina das lembranças e do tempo.

Erin Granger.

A Mulher de Saber.

A raiva se inflamou em seu íntimo. Mais uma inocente trazida à força para o caminho dele. Seria melhor que ele a matasse agora, de maneira simples e rápida, do que abandoná-la a um destino mais cruel. Ele se levantou à medida que sua visão se tingia de vermelho. Lutou contra aquela ânsia com orações.

Então outro bater de coração distante, mas conhecido, chegou-lhe aos ouvidos, pesado e irregular.

Ambrose.

O padre havia trancado Erin com Rhun, para humilhá-lo ou talvez com a esperança de que a penitência de Rhun pudesse fazer com que ele perdesse o controle, como quase havia acontecido.

Ele atravessou o aposento tão rapidamente que Erin se sobressaltou e levantou as mãos num gesto de apaziguamento.

– Desculpe-me, Rhun. Eu não tive a intenção...

– Eu sei.

Ele estendeu a mão acima dela e abriu a porta com a força que somente um Sanguinista podia ter, encontrando satisfação ao ouvir o som do corpo pesado de Ambrose bater contra a parede.

Então ele ouviu o som dos passos apressados e assustados do homem fugindo pela escada.

Voltou para junto de Erin e a ajudou a se levantar, sentindo o cheiro de lavanda de seu cabelo, a ligeira escuridão de seu temor desaparecendo. Os batimentos do coração dela acalmaram, sua respiração suavizou. Ele segurou a mão dela por um momento a mais do que deveria, sentindo o seu calor e não querendo deixá-lo.

Ela estava viva.

Mesmo se isso lhe custasse o mundo; ele se certificaria de que aquilo nunca mudasse.


26

26 de outubro, 23:41, horário de Israel

Local não revelado, Israel

Tommy apoiou a testa contra a janela de seu quarto de hospital, batendo lentamente os nós dos dedos contra o vidro grosso, ouvindo a pancada surda. Àquela altura, tinha se convencido de que aquele lugar era um hospital militar ou talvez até uma prisão.

Puxou o pedestal de IV para mais perto, se perguntando se poderia usá-lo como aríete para abrir caminho para a liberdade.

Mas e depois?

Se conseguisse quebrar a janela e pulasse, será que morreria? Um programa de TV a que tinha assistido há alguns anos dissera que qualquer queda de uma altura maior que nove metros provavelmente seria mortal. Ele estava mais alto que isso.

Tommy brincou com os cabos ligados ao conector IV. A equipe médica media tudo nele – a frequência cardíaca, os níveis de saturação de oxigênio, e outras coisas. Os rótulos escritos em hebraico não significavam nada para ele. Seu pai sabia ler hebraico e tentara lhe ensinar, mas Tommy tinha aprendido apenas o suficiente para fazer o bar mitzvah.

Recordando-se do pai, rememorou o gás laranja e negro se espalhando sobre seus pais.

Se não tivesse dito a eles que o gás era seguro talvez ainda estivessem vivos. Sabia agora que o gás era tóxico, só que não para ele. Imune era a palavra que tinha ouvido um médico usar. Talvez ele pudesse ter carregado seus pais para um lugar seguro. Aquele estranho padre em Massada tinha lhe dito que não houvera nada que pudesse ter feito, mas o que mais ele podia dizer?

Você matou os seus pais, garoto. Você vai para o inferno, mas levará muito tempo até chegar lá.

Tommy olhou para fora pela janela de novo. Era uma longa queda até o deserto. Lá embaixo, as sombras de pedregulhos pareciam tinta derramada contra a areia mais clara. Era uma paisagem dura, árida, mas daquela altura parecia tranquila.

Um farfalhar trouxe a sua atenção de volta para o quarto.

Um garoto estava bem ao lado dele. Parecia ter mais ou menos a mesma idade de Tommy, mas usava um terno cinza. Ele farejou o ar como um cachorro, o nariz se movendo para mais perto de Tommy a cada inalação. Seus olhos negros faiscavam.

– Posso ajudar? – perguntou Tommy, se afastando.

Isso lhe valeu um sorriso – um sorriso tão frio que ele se arrepiou.

Subitamente aterrorizado, Tommy apertou o botão de chamada repetidamente, enviando um SOS de pânico. Encolheu-se para trás contra a janela enquanto seu coração acelerava fazendo os monitores biparem loucamente.

O garoto piscou o olho.

Tommy ficou paralisado com a estranheza daquele ato.

Quem piscava o olho nos dias de hoje? Francamente, quem...

A mão direita do garoto se moveu tão depressa que Tommy não viu sequer um borrão, até que ela parou no ângulo de seu maxilar. Uma dor penetrante cortou seu pescoço. Tommy levantou as duas mãos para sentir. Sangue escorria pelos seus dedos. Jorrava de sua garganta, encharcando a bata do hospital, pingando no chão.

O garoto baixou o braço e observou, inclinando ligeiramente a cabeça.

Tommy pressionou as mãos contra a garganta, tentando interromper o fluxo de sangue e, no processo, estrangulando a si mesmo; mas o sangue continuou a jorrar entre seus dedos.

Ele gritou, conseguindo emitir apenas um gorgolejar enquanto uma dor intensa lhe subia pela garganta.

Sabendo que precisava de ajuda, Tommy arrancou os conectores de ECG. Atrás dele o monitor riscou uma reta, disparando a sirene de um alarme.

Imediatamente, dois soldados entraram correndo no quarto, de metralhadoras em punho.

Ele viu as expressões chocadas – e então o garoto piscou o olho de novo.

Mau sinal.

O garoto levantou uma cadeira, movendo-se com uma rapidez de cegar, e a atirou contra a vidraça grossa da janela. Sem parar, ele empurrou Tommy para fora e para a noite.

Finalmente livre.

Ar frio acariciou seu corpo enquanto ele caía. Sangue quente jorrava de seu pescoço.

Ele fechou os olhos, pronto para ver a mamãe e o papai.

Ele mal os tinha visualizado – quando seu corpo bateu com violência contra o solo. Nada nunca tinha doído tanto. Com certeza tudo acabaria brevemente. Tinha que acabar.

Não acabou.

Balas riscaram faíscas no asfalto ao redor dele. Os soldados estavam atirando pela janela quebrada. As balas abriram trilhas elétricas de dor em seu peito, sua coxa, sua mão.

Sirenes soaram. Holofotes acenderam.

O garoto aterrissou com leveza ao lado dele, as botas de camurça cinza mal fazendo ruído contra o solo. Ele tinha pulado? Daquela altura?

O garoto agarrou-lhe o braço. Os ossos de Tommy rasparam uns nos outros enquanto o garoto o arrastava para fora da luz dos holofotes e para o deserto, correndo tão depressa quanto uma gazela. Ele claramente pouco se importava com as rochas que cortavam as costas de Tommy, e com os trancos que faziam raspar uns nos outros seus ossos quebrados.

Enquanto tudo isso acontecia, as estrelas, indiferentes, brilhavam acima deles.

Piscavam tão friamente quanto o garoto.

Tommy queria que tudo acabasse. Queria dormir. Queria morrer.

Começou a fazer contagem até sua morte.

Um, dois, três, quatro...

Em meio a uma névoa de dor, ele teve o pior pensamento de sua vida.

E se não pudesse morrer nunca?


27

26 de outubro, 23:44, horário de Israel

Jerusalém, Israel

Erin se manteve vários metros atrás de Rhun enquanto ele saía rapidamente da capela, subia a escada e percorria um labirinto de túneis. Os movimentos dele eram de fato rápidos, mas – ela sabia – ele conseguiria se mover mais depressa ainda. Mantinha o passo tão somente para que ela conseguisse acompanhá-lo. Estar perto dele, porém, a assustava. Sob a luz avermelhada da capela, a fúria dele tinha sido inequívoca. Parecia que ele mal conseguia conter o ímpeto de atacá-la.

Se não fosse pelo labirinto escuro de túneis tortuosos, ela teria fugido. Mas Erin tinha perdido a vela e precisava da luz da vela votiva da capela, que estava na mão de Rhun, para voltar para um lugar seguro. Então, afinal, ela ouviu vozes discutindo, ecoando de mais adiante, de uma porta aberta banhada de luz. Reconheceu todas: o timbre furioso de Jordan, a formalidade afetada de padre Ambrose e a resignação pesarosa do cardeal Bernard.

– Então, onde ela está? – berrou Jordan, claramente querendo saber o que o padre Ambrose tinha feito com ela.

A poucos passos de distância o vulto escuro de Rhun desapareceu passando pela porta.

Ela correu atrás dele e descobriu uma sala moderna com paredes caiadas, assoalho de pedra polida e uma longa mesa coberta de armas e munição.

Todos os olhos se viraram para ela quando entrou.

O rosto de Jordan relaxou.

– Graças a Deus – disse, embora Deus não tivesse nada a ver com aquilo.

Os outros se mantiveram inescrutáveis, exceto Rhun.

Ele avançou rapidamente, agarrou o padre Ambrose pelo pescoço e o empurrou com força contra a parede. Os pés do padre balançaram no ar.

– Cardeal! – apelou o padre Ambrose, sufocando.

Rhun apertou a mão sobre a garganta do padre.

– Um dia haverá um acerto de contas entre nós, Ambrose. Lembre-se disso.

O rosto do cardeal estava impassível.

– Solte-o, Rhun. Eu cuidarei para que seja devidamente admoestado.

Rhun se inclinou para mais perto.

Só Erin, que estava na lateral deles, viu as pontas afiadas dos dentes de Rhun enquanto ele rosnava e ameaçava:

– Suma da minha frente. Ou este acerto de contas será agora.

Rhun largou o padre, que tinha ficado mortalmente pálido. Então ele também tinha visto aquelas pontas. O padre Ambrose se recompôs, recuou alguns passos, então saiu correndo.

Jordan se aproximou.

– Erin, você está bem? Onde você estava? O que aconteceu?

– Estou bem.

Ela não queria falar sobre o assunto, muito menos enquanto não tivesse se habitado com a mudança no estado civil de seu novo companheiro de equipe. Apesar disso, estava mais grata do que nunca com o fato de que ele fosse acompanhá-los na expedição. Ela recordou a fúria no rosto de Rhun quando olhara para ela na capela, como os dentes dele tinham se aguçado quando ele ameaçara o padre Ambrose.

Ela se inclinou para mais perto do calor tranquilizador do corpo de Jordan.

– Obrigada.

O cardeal pigarreou.

– Uma vez que voltou para nossa companhia, dra. Granger... talvez agora devamos concluir nosso debate sobre os strigoi.

Ele gesticulou para a mesa cheia de armas. Erin se manteve afastada de Rhun, a despeito do fato de ele parecer estar de novo calmo.

Jordan pegou um par de óculos especiais em cima da mesa e os examinou.

– Estes são óculos especiais de visão noturna, mas parecem estranhos.

– Eles têm um design especial; são feitos para se alternar entre visão com pouca luz e infravermelho – explicou Bernard. – Uma ferramenta útil. A função para visão sem luz permite que você discirna oponentes à noite, mas como os strigoi são frios, eles não brilham com emissão de calor do corpo nos óculos infravermelhos. Se você alternar entre as duas funções, poderá distinguir seres humanos de strigoi à noite.

Curiosa, precisando testar aquilo ela própria, Erin pegou o outro par de óculos e olhou para Jordan. O cabelo dele e a ponta de seu nariz agora estavam amarelos; o resto de seu corpo parecia quente e vermelho. Ele acenou com a mão, laranja.

Definitivamente de sangue quente.

Ela se lembrou do beijo dele – e empurrou aquele pensamento de volta lá para baixo.

Apressadamente, Erin virou os óculos para Rhun. Apesar de o cardeal ter acabado de dizer que o corpo dele estaria na temperatura ambiente, ainda assim ficou impressionada quando viu no rosto dele os mesmos tons púrpura frios e azuis profundos da parede atrás dele. Então Erin ligou a visão para pouca luz, e todo mundo apareceu igual.

– Como funcionou? – perguntou Jordan.

– Bem.

Mais uma ferramenta científica que mostrava como Rhun era diferente. Será que tinha alguma coisa em comum com eles?

– Aqui está munição de prata para suas armas. – O cardeal entregou umas caixas de madeira a Jordan. – É difícil deter com uma arma de fogo um strigoi atacando. Mas estas balas ajudam. São de ponta oca e se expandem com o impacto para maximizar a quantidade de prata que entra em contato com o sangue deles.

Jordan sacudiu uma bala na palma da mão e a levantou para a luz. A bala e o cartucho rebrilharam em cor prata esbranquiçada.

– Como isto ajuda?

– Nosso sangue singular resiste às doenças dos mortais. Podemos viver para sempre, a menos que sejamos derrubados por violência. Nosso sistema imunológico é superior ao de vocês em tudo, exceto no que diz respeito à prata.

– Mas vocês usam cruzes de prata. – Erin apontou para a cruz sobre a sotaina vermelha do cardeal.

Ele beijou as pontas dos dedos enluvados e tocou a cruz peitoral.

– Todo Sanguinista carrega este fardo, sim, para nos recordar de nossa maldição. Se tocarmos na prata. – Ele tirou a luva de couro e encostou um dedo pálido na bala na mão de Jordan. O cheiro de carne queimada chegou às narinas de Erin. O cardeal levantou o dedo para mostrar onde a prata havia queimado sua carne. – Até nós somos queimados.

– Mas não tanto quanto os strigoi, eu apostaria – disse Jordan, embolsando a munição.

– Isso é verdade – admitiu Bernard com uma inclinação de cabeça. – Como Sanguinista, eu existo em um estado de suspensão entre a danação e a santidade. A prata me queima, mas não me mata. Os strigoi não têm a proteção do sangue de Cristo em suas veias, de modo que a prata é muito mais mortífera para eles. – Ele enfiou a luva de novo. – Objetos sagrados também têm algum valor, embora não o suficiente para matá-los.

– Então, como nos defendemos? – perguntou Jordan.

– Eu sugiro que vocês considerem os strigoi como animais – disse o cardeal. Para abatê-los, vocês têm que feri-los mortalmente com armas tradicionais, exatamente como quaisquer outros animais.

Ela olhou para Rhun, que não demonstrou nenhuma reação a ser chamado de animal.

Em vez disso, o padre pegou um punhal e cortou a palma da própria mão.

Ela arquejou assustada.

Os olhos dele se voltaram para o rosto dela, enquanto o sangue gotejava sobre a mesa.

– Vocês precisam compreender plenamente.

– Isto não dói? – Ela não conseguiu evitar a pergunta.

– Sentimos muitas coisas mais intensamente que os seres humanos. Inclusive a dor. De modo que sim, dói, mas observe a ferida.

Ele estendeu a mão aberta. O sangue fluindo do corte parou tão abruptamente quanto se ele tivesse fechado uma torneira. O sangue nas beiradas da ferida até fluiu de volta para dentro da mão.

– E por que está nos mostrando este pequeno truque bacana? – perguntou Jordan.

– O segredo está em nosso sangue. Ele flui por si mesmo em nossos corpos, é uma força viva. Isto significa que nossos ferimentos param de sangrar quase que imediatamente.

Erin se inclinou para olhar mais de perto.

– Então vocês não precisam de um coração para bombear o sangue? Ele faz isso sozinho?

Rhun inclinou a cabeça em concordância.

Erin considerou as implicações. Seria essa a origem da lenda dos mortosvivos? Os strigoi pareciam mortos porque eram frios e não tinham coração batendo?

– Mas e a respiração? – perguntou ela, querendo todos os detalhes.

– Nós só respiramos para farejar e para falar – explicou Rhun. – Mas não há nenhuma necessidade de respirar. Podemos prender a respiração indefinidamente.

– Mais boas notícias – resmungou Jordan.

– Então agora compreendem – disse Rhun. – Como o cardeal Bernard os avisou, se vocês cortarem um strigoi, continuem cortando. Não presumam que estão mortalmente feridos, porque provavelmente não estarão. Estejam em guarda o tempo todo.

Jordan assentiu:

– As únicas fraquezas de um strigoi são o fogo, a prata, a luz do sol e ferimentos tão graves que eles não consigam deter o fluxo do sangue com rapidez suficiente.

Jordan olhou fixamente para a variedade de armas, claramente mais preocupado do que estivera um momento antes.

– Obrigado pela preleção – resmungou.

O cardeal abriu as mãos enluvadas indicando os vários punhais que tinham sido dispostos sobre a mesa.

– Todas estas armas são banhadas em prata e abençoadas pela Igreja. Creio que vai achá-las mais eficazes que a faca que usa no tornozelo, sargento Stone.

Jordan pegou os punhais um por um, testando-lhes o peso. Ele escolheu uma faca com cabo de osso que tinha quase trinta centímetros de comprimento. Ele a examinou com grande atenção.

– Isto é uma faca Bowie americana.

– Uma arma perfeita – disse Rhun. – Ela data da Guerra Civil e foi usada por um irmão de nossa ordem que morreu na batalha de Antietam.

– Uma das batalhas mais sangrentas daquela guerra – comentou Jordan.

– Desde então a lâmina foi banhada em prata. – Rhun encarou Jordan. – Use-a bem e com respeito.

Jordan assentiu, sobriamente reconhecendo a herança da arma.

Erin se lembrou das lutas com facas na tumba. Ela nunca mais se encolheria impotente dentro de uma caixa.

– Eu quero uma também. E uma arma de fogo.

– Você sabe atirar? – perguntou o cardeal.

– Eu caçava quando era criança – mas nunca atirei em nada que não tivesse a intenção de comer.

Jordan lhe deu aquele sorriso enviesado de novo.

– Pense nisto como atirar em algo que quer comer você.

Ela deu um sorriso forçado, ainda nauseada pela ideia de atirar contra alguém, mesmo um strigoi. Eles pareciam pessoas; eles um dia tinham sido pessoas.

– Eles não hesitarão em matar você ou fazer coisa pior – disse Rhun. – Se não conseguir se obrigar a tirar a vida deles...

– Calma, Rhun – interrompeu o cardeal. – Nem todo mundo tem estofo para servir como soldado. A dra. Granger os acompanhará como pesquisadora. Tenho certeza de que você e o sargento Stone poderão mantê-la em segurança.

– Não tenho a sua fé inabalável em nossas habilidades – retrucou Rhun. – Ela tem que estar pronta para se defender.

– E eu estarei. – Erin pegou uma pistola Sig Sauer.

– É uma boa arma. – O cardeal entregou a ela várias caixas de munição de prata.

Ela enfiou a arma num coldre de ombro, sentindo-se ridícula naquela saia comprida, como se fosse participar de um espetáculo do Velho Oeste.

– Será que eu poderia conseguir uma calça jeans?

– Cuidarei disso – prometeu Bernard, então apontou para um par de peças de vestuário penduradas em ganchos na parede: dois casacos compridos tipo capa de couro.

– E estes também são para vocês.

Jordan atravessou o aposento e pegou o maior dos dois casacos.

– De que isto é feito?

– Da pele de lobo de um blasphemare – disse o cardeal. – Vocês descobrirão que este couro é resistente a faca e a bala.

– Como um colete à prova de balas – disse Jordan em tom de aprovação.

Erin pegou o casaco menor, que claramente lhe era destinado. Era mais ou menos duas vezes mais pesado que um casaco normal. Se não fosse pelo peso, seria impossível perceber a diferença entre ele e um legítimo casaco de couro caro, com o qual ele compartilhava, inclusive, a mesma textura.

Jordan vestiu o seu ajeitando-o nos ombros. Era da cor de chocolate com leite, e ficou perfeito nele. Ele ficava ainda mais atraente naquele casaco do que com seu uniforme de tecido próprio para camuflagem.

Erin também vestiu o seu, de um tom marrom mais claro do que o de Jordan. Chegava-lhe aos joelhos, mas era folgado de modo a lhe permitir liberdade de movimentos. O colarinho redondo roçava-lhe a base do queixo protegendo seu pescoço.

– Eu também quero dar isto a você. – Rhun pôs um colar de prata na mão dela, um cordão com uma cruz ortodoxa.

Muitos anos antes, ela usara uma cruz igual àquela todos os dias – até que finalmente a jogou fora, quando fugia a cavalo da casa de seus pais. Depois de anos tentando incutir-lhe a fé em Deus por meio da violência, seu pai tinha conseguido apenas tirar-lhe qualquer fé em Deus.

– Que utilidade tem isso? – perguntou ela. – O cardeal disse que objetos sagrados não são muito poderosos contra os strigoi.

– Isto não é apenas uma arma. – Rhun falou tão baixo que ela precisou se esforçar para ouvir. – É um símbolo de Cristo. Fica acima de qualquer arma.

Ela contemplou a sinceridade nos olhos dele. Será que ele estava tentando trazê-la de volta ao seio da Igreja? Ou será que era algo mais?

Em deferência ao que viu no olhar dele, ela pendurou a cruz ao redor do pescoço.

– Obrigada.

Rhun inclinou ligeiramente a cabeça, então entregou outra cruz a Jordan.

– Não é muito cedo no relacionamento para joias? – perguntou Jordan.

As sobrancelhas de Rhun se juntaram numa expressão de incompreensão.

Erin sorriu – e teve prazer em fazê-lo.

– Não dê atenção a ele. Ele está caçoando de você, Rhun.

Jordan suspirou, pôs as mãos nos quadris e fez a última pergunta:

– Então, quando vamos partir?

Bernard respondeu sem nenhuma hesitação:

– Imediatamente.


PARTE III


Subiram até aos céus, desceram até aos abismos; no meio dessas angústias, desfalecia-lhes a alma.

– Salmo 107:26


28

27 de outubro, 3:10 da madrugada, horário da Europa Central

Oberau, Alemanha

Com a promessa do raiar do dia ainda a algumas horas, Jordan se mexeu no banco de trás da Mercedes sedã S600 preta. Olhou fixamente para uma floresta escura da Bavária, onde a noite ainda imperava. Erin estava sentada ao lado dele, enquanto no banco da frente Korza dirigia com uma destreza que demonstrava seus reflexos preternaturais.

Mario Andretti de colarinho romano.

Além do asfalto da extensão tortuosa da estrada, abetos e pinheiros esculpiam linhas mais negras no céu cinzento escuro. Por toda parte ao redor, mechas de neblina se estendiam da argila escura do solo como dedos fantasmagóricos. Jordan esfregou os olhos. Ele tinha que parar de pensar como um homem aprisionado em um filme de terror. A realidade já era um bocado estranha sem que permitisse que sua imaginação o dominasse.

Ele bocejou, ainda sentindo a diferença de fusos horários. Mal tinha embarcado no luxuoso avião particular oferecido pelo Vaticano antes de adormecer em uma de suas poltronas gigantes. Era difícil acreditar que aquela ainda era a mesma noite, e que eles tinham deixado Jerusalém apenas quatro horas antes, voando rumo ao norte na velocidade máxima do jato.

Quando o avião aterrissara em Munique, Erin tinha uma expressão deliciosa de quem acabara de acordar, de modo que calculou que ela também havia dormido um pouco.

Agora estava com a cabeça virada para o outro lado, olhando para fora por sua janela. Ela vestia um jeans cinza simples, camisa branca e o casaco de couro que o cardeal lhe dera. Jordan deslizou o dedo ao redor do colarinho alto do seu. Exceto pelo colarinho ligeiramente justo, era o melhor traje à prova de balas que ele já tinha vestido, e parecia igual a um casaco comum. Apesar disso, considerando os adversários que teriam que enfrentar, talvez não fosse suficiente.

No banco da frente, na direção, Korza havia tirado a batina rasgada e usava seu próprio traje de couro – preto, mais bonito que o de Erin e o de Jordan, e feito sob medida. Ele parecia intocado pela longa noite.

Será que tinha dormido no avião? Será que precisava de sono?

Jordan não tinha dito uma palavra desde que o carro partira, não querendo distrair Korza da estrada. Erin também tinha se mantido calada, mas ele duvidava que fosse pelo mesmo motivo.

Ele não conseguia compreendê-la. Desde que tinha entregado sua aliança ao cardeal, Erin parecia ter se afastado dele. Ele a tinha apanhado observando-o de vez em quando pelo canto dos olhos, como se não ousasse olhar para ele de frente.

Se tivesse sabido que anunciar que era um homem solteiro a deixaria menos interessada nele, e não mais, teria entregado a aliança a Bernard discretamente, sem que ninguém visse. Mas o que sabia ele a respeito de mulheres? Tinha passado o ano desde a morte de Karen se escondendo atrás daquela aliança.

Erin se agitou ao seu lado.

– Lá está a aldeia de Ettal.

Ele se inclinou para olhar para onde ela apontava.

Adiante, aninhados em meio aos bosques de pinheiros, o clarão de luzes da rua revelava prédios brancos com telhados marrons. A maioria das janelas estava às escuras àquela hora da madrugada. O lugar parecia um cartão-postal. Uma aldeia pitoresca com as palavras Aproveite a Bavária! escritas abaixo. Era difícil acreditar que a aldeia humilde escondia um segredo perigoso, que era a fortaleza dos Sanguinistas.

Rhun não reduziu a velocidade e passou voando pela aldeia.

Depois de algumas curvas fechadas e sinuosas, uma imponente estrutura barroca apareceu, erguendo-se alta e abrindo-se para fora em dois pavilhões majestosos. No centro, o telhado em domo erguia-se em direção ao céu, sustentando uma maciça cruz dourada que brilhava ao luar. Incontáveis arcadas decoravam a fachada de cor marfim, abrigando estátuas ou escondendo janelas ornamentadas.

– A abadia Ettal – disse Erin em tom reverente, sentando-se mais ereta. – Eu esperava conhecê-la algum dia.

Jordan gostou de ouvi-la falar de novo.

Ela prosseguiu, a animação retomando sua voz:

– Ludwig da Bavária escolheu este lugar para a abadia porque seu cavalo fez três reverências neste local.

– Como se faz um cavalo fazer reverência? – perguntou Jordan.

– Por intervenção divina, ao que parece – respondeu Erin.

Ele sorriu para ela antes de se inclinar para a frente e falar com o padre:

– É este o monastério de que estava falando, padre? A universidade secreta?

– Fica atrás da abadia. E eu prefiro que me chame de Rhun, não padre.

O carro derrapou com a traseira, uma pluma de cascalho se levantando dos pneus. Os faróis iluminaram construções mais simples na parte de trás, brancas com telhado vermelho, mais humildes e austeras. Aquilo combinava mais com o estilo sanguinista.

Rhun os levou a uma parada rápida diante de um dos prédios sem nada demais. O padre saltou do carro antes de o motor ter desligado totalmente. Ele permaneceu próximo do sedã. Vasculhando as colinas, movendo apenas os olhos. Suas narinas inflaram.

Erin estendeu a mão para a maçaneta, mas Jordan a deteve:

– Vamos esperar que ele nos diga para saltar. E feche o zíper de seu casaco, por favor.

Ele queria protegê-la tanto quanto fosse possível.

Do lado de fora, Rhun girou em um círculo lento, como se esperasse um ataque de qualquer direção.

3:18

Rhun lançou seus sentidos, absorvendo os batimentos cardíacos dos homens que dormiam no monastério próximo. Sentiu o cheiro de pinho da floresta e de metal quente do carro e ouviu o uuooch suave das asas de uma coruja acima da floresta, a corrida rápida de um rato silvestre abaixo de seus pés.

Não encontrou nenhum perigo.

Respirou fundo uma vez para relaxar, para se tornar uno com a noite. Passara a maior parte de sua vida entre quatro paredes, rezando, ou no campo, caçando, ocupado demais para apreciar o mundo natural. Logo que havia entrado para aquela ordem, a alteridade de seus sentidos o havia assustado, recordando-o sempre de sua natureza, como ser condenado à danação, mas agora apreciava aqueles raros momentos em que podia parar e comungar com a criação de Deus em sua plenitude, em seus momentos de maior intimidade. Ele se sentia mais próximo de Deus do que nunca naqueles momentos de solidão, muito mais próximo do que quando estava enterrado de joelhos em alguma capela subterrânea.

Com um toque de egoísmo, respirou fundo outra vez.

Então a mulher se mexeu dentro do veículo, recordando-o de seu dever.

Ele encarou a estrutura maciça do prédio principal e suas duas alas. Examinou as janelas de trás, em busca de algum movimento. Parecia que ninguém estava espiando lá de dentro. Uma porta grossa estava fechada na base de uma das torres menores. Ele estendeu seus sentidos para a madeira sólida, mas não ouviu nenhum batimento cardíaco do outro lado – apenas um sussurro destinado unicamente aos seus ouvidos:

– Rhun, seja bem-vindo. Tudo está seguro.

Rhun relaxou ao ouvir a voz suave e familiar, em alemão.

Ele se virou e fez um gesto rápido de cabeça para Jordan. Pelo menos o homem tivera o bom senso de ficar dentro do carro com Erin. O par desembarcou, parecendo barulhento e desajeitado para os ouvidos aguçados de Rhun.

Depois que eles estavam em segurança em sua sombra, Rhun seguiu em passadas largas para a porta de madeira.

Jordan se manteve entre Erin e a floresta escura, protegendo-a da direção mais provável de ataque. Ele tinha bom instinto, reparou Rhun. Talvez aquilo fosse suficiente.

A porta maciça se abriu antes que eles a alcançassem.

Rhun deu um passo para o lado para permitir que os outros entrassem antes dele. Quanto antes estivessem fora de terreno aberto, melhor.

Enquanto Jordan e Erin se inclinavam para passar pela pequena porta, ele lançou um derradeiro olhar ao redor. Não descobriu nenhuma ameaça, mas uma sensação de perigo ainda espicaçava seus sentidos.


29

27 de outubro, 3:19 da madrugada, horário da Europa Central

Ettal, Alemanha

Escondida no topo da colina, com vista para a abadia, Bathory estava deitada de bruços sobre um ninho de folhas, deixando que o frio úmido abrandasse a fúria que ardia dentro dela diante da visão de Rhun.

Galhos de camomila estalavam acima. Através de seus binóculos de alto alcance, ela observou o cavaleiro estacionar o sedã atrás do monastério.Ela havia posicionado seu posto de observação bem longe do monastério para ficar fora do alcance dos sentidos do Sanguinista. A cautela do cavaleiro enquanto ele se detinha diante da porta dos fundos indicava sua desconfiança, mas ele não a tinha descoberto.

Naquele momento, seu único inimigo era a neblina que se tornava mais espessa.

Enquanto Korza desaparecia no interior da abadia, ela descansou a testa sobre o braço com alívio.

A jogada arriscada que ela havia feito tinha rendido altos lucros.

Bathory enviara as fotos do medalhão nazista para três historiadores aliados dos Belial. Enquanto eles discutiam sobre a importância do medalhão, ela havia seguido outro rumo, consultando a sua rede de espiões espalhados por toda a Terra Santa. Eles voltaram com a notícia de que Korza planejava tomar um avião para ir à Alemanha, mas não sabiam onde aterrissaria, para onde iria.

Ela sabia – ou pelo menos tinha suas suspeitas.

Korza não deixaria a trilha do livro esfriar por muito tempo. Ele pegaria a única pista encontrada na tumba e consultaria historiadores leais à sua ordem, como ela fizera com aqueles leais à dela. Bathory sabia da existência do monastério de Ettal, da Pontifícia Universidade dos estudiosos Sanguinistas devotados à pesquisa histórica, que datava do final da Segunda Guerra Mundial.

É claro que ele viria para Ettal.

E assim ela agira, sem dizer nada a ninguém, sabendo que esperar por autorização levaria tempo demais. Havia reunido e tirado todas as forças dos strigoi das areias da Terra Santa – um pequeno exército – e se escondido com eles ali em meio à argila e às folhas.

Tinha sido uma manobra ousada, apoiada por Tarek, que, sabia, em segredo nutria esperanças de que ela fracassasse.

Magor se mexeu ao lado dela, descansando a cabeça sobre o seu ombro. Ela se encostou nele. Apesar de estar usando um casaco forrado de pele para se proteger do frio da noite da Bavária, ela apreciou o calor de fornalha do corpo de Magor, e ainda mais a afeição que fluía dele banhando-a com o mesmo calor que seu corpo. Do mesmo modo que ela, Magor buscava conforto. Ela sentiu a corrente de inquietação no peito dele.

Aquele era um mundo desconhecido e novo para um lobo do deserto.

Fique calmo... ela enviou a mensagem em pensamento para ele... a presa sangra com a mesma facilidade aqui do que na areia.

De seu outro lado, outro se mexeu, mas ele tinha apenas desprezo por ela.

– Eu não deveria levar os outros e me aproximar? – perguntou Tarek. – Não tenho coração que bata para me entregar. Ao contrário de você.

Ela ignorou o insulto, suspeitando que ele quisesse roubar-lhe a glória daquele momento. Ela o reprimiu.

– Vamos ficar aqui. Não podemos correr o risco de alertá-los.

O cheiro bolorento das folhas molhadas encheu-lhe as narinas. Ao contrário de Magor, ela o adorava. Depois de anos no deserto da Judeia, recebia com prazer os sons e os cheiros de uma floresta. Faziam-na recordar de seu lar na Hungria, e ela encontrava forças naquelas lembranças de tempos mais felizes – de um tempo em que ainda não tinha a marca Dele.

– Desta vez temos mais tropas – insistiu Tarek. – Poderíamos fazê-los prisioneiros, arrancar a informação deles, e recuperar o livro nós mesmos.

Ela percebeu o tom de desejo cru na voz dele, sua necessidade de vingar os que haviam sido perdidos em Massada, de saciar sua sede de sangue. Bathory apertou os binóculos com mais força. Será que ele não se dava conta de que ela compartilhava a mesma sede de vingança, e de sangue? Mas não seria tola ou precipitada – nem permitiria que Tarek fosse. Aquela era a verdadeira força da união Belial: mesclar a ferocidade dos strigoi com a astúcia calculada dos seres humanos.

Bathory não se deu ao trabalho de virar a cabeça.

– Minhas ordens continuam valendo. Fortalezas como esta têm proteções contra seres da sua espécie. Apenas um destes Sanguinistas derrubou seis de vocês em terreno desconhecido em Massada, e não sabemos quantos vivem na abadia. Qualquer um que se aventure a entrar lá não voltará.

A maioria dos integrantes da tropa pareceu contrita diante da ideia.

Tarek não. Ele apontou para a abadia, pronto para discutir, testá-la. Ela estava farta da falta de respeito dele à sua autoridade. Precisava dobrá-lo com a mesma dureza com que o Sanguinista tinha quebrado sua família.

Ela agarrou seu braço estendido e trouxe a mão dele à força até sua garganta antes que ele pudesse reagir.

– Se você acha que pode liderar – ameaçou –, então receba isto!

No momento em que a palma da mão dele tocou na tatuagem, a pele dele fritou. Tarek pulou alto e para longe com um rosnado, os dedos fumegantes por causa do breve contato com o sangue maldito de Bathory, mesmo através da pele.

Os outros homens recuaram – todos menos Rafik.

Ele avançou em defesa de seu irmão, parando em cima de Bathory.

Magor rosnou, pronto para entrar na briga.

Não, ordenou ela em pensamento.

Aquela briga era dela, era ela quem tinha de ensinar a lição.

Ela girou o corpo magro de Rafik para baixo do seu, montando nele como uma amante. Agarrou um punhado de seu cabelo e puxou a boca de Rafik até a sua garganta. A pele macia fumegou enquanto Rafik gritava e se contorcia debaixo dela.

Ela encarou Tarek.

– Devo alimentar seu irmão?

A raiva nos olhos dele se dissipou, substituída por medo – pela vida de seu irmão, mas também por medo dela. Satisfeita, ela soltou Rafik e o empurrou para longe. Ele saiu de gatinhas, choramingando, e foi para o lado de Tarek, seus lábios fumegantes e queimados.

Tarek se ajoelhou e consolou o irmão.

Bathory sentiu uma pontada de culpa, pois sabia que a inteligência de Rafik era pouco melhor que a de uma criança pequena, mas tinha de ser dura – mais dura que qualquer um deles.

Magor se arrastou sobre a barriga até o lado dela, ao mesmo tempo cheirando-a e se prostrando para mostrar respeito pelo papel dominante de Bathory na alcateia.

Ela o coçou atrás da orelha, aceitando a deferência do lobo.

Então encarou Tarek, exigindo o mesmo dele.

Lentamente, ele baixou a cabeça, sem encarar os olhos dela.

Bom.

Ela voltou para o seu ninho de folhas e levantou os binóculos.

Agora era preciso dobrar o outro.


30

27 de outubro, 3:22 da madrugada, horário da Europa Central

Ettal, Alemanha

Assim que Erin entrou pela pequena porta nos fundos da abadia, o cheiro familiar de fumaça de madeira a levou de volta a seus dias de catar lenha quando criança.

A estranheza daquilo chamou sua atenção. Por que os Sanguinistas precisavam de uma lareira? Será que apreciavam o calor, a dança das chamas, o crepitar dos tições? Ou será que havia seres humanos naquela parte da abadia?

Depois de passar pelo limiar, ela se deteve ao lado de Jordan na entrada de um longo corredor de pedra, cujo final estava escondido pela escuridão. O caminho estava bloqueado por um padre com feições de querubim, na verdade não mais que um garoto.

Se ele fosse um garoto.

– Sou o irmão Leopold – apresentou-se cumprimentando-os com uma ligeira reverência, seu sotaque bávaro forte. Usava uma túnica longa simples de monge e óculos redondos com armação de metal. – Deixem-me acender as luzes.

Ele estendeu a mão, mas Rhun a agarrou.

– Nenhuma iluminação até estarmos bem longe da porta.

– Perdoe meu descuido. – O irmão Leopold os convidou com um gesto a seguir pelo corredor. – Temos pouco movimento aqui nas províncias. Queiram seguir-me.

Ele os conduziu pelo corredor escuro até uma escada. Na escuridão, Erin tropeçou e quase caiu de cabeça pelos degraus, mas Rhun a segurou pelo cotovelo e a puxou de pé, a mão dele firme e fria.

Jordan pôs óculos de visão noturna na outra mão dela.

– Nós temos os brinquedos. Devemos aproveitar para usá-los. Como se costuma dizer, “Em Roma, aja como os romanos...”

Ela enfiou os óculos por cima da cabeça e ajustou a tira. O mundo se iluminou em tons de verde. Agora ela podia distinguir com facilidade a escada. Em vez de degraus toscos de pedra, viu que eram apenas de linóleo gasto, o que a recordou das escadas em qualquer universidade.

Aquele pequeno toque de normalidade a tranquilizou.

Curiosa, ela passou os óculos para a função infravermelho, vendo o brilho do corpo de Jordan ao seu lado. Instintivamente, aproximou-se um pouco dele.

Um olhar na direção do anfitrião revelou que ele havia desaparecido – embora ela ainda ouvisse o som de seus passos na escada. Claramente, ele não emitia calor corporal. A despeito de seu semblante angelical, não era absolutamente um garoto. Era um Sanguinista. Perturbada com essa conclusão, ela rapidamente pôs os óculos de volta na função de visão noturna.

No fundo da escada, uma porta de aço com um teclado eletrônico bloqueava a passagem deles.

O irmão Leopold digitou cinco números no teclado e a porta se abriu para dentro.

– Depressa, por favor.

Erin olhou por cima do ombro, subitamente temerosa, perguntando-se que perigo ele teria percebido.

– O aposento tem a temperatura controlada – explicou o irmão Leopold com um sorriso tranquilizador. – Não há nada além disso.

Ela se apressou em cruzar a porta, seguida por Jordan, que não relaxou a postura vigilante.

O irmão Leopold estendeu a mão e tocou num interruptor. As luzes acenderam, num clarão de brilho ofuscante para os óculos de Erin. Tanto ela quanto Jordan arrancaram o equipamento.

– Perdoem-me – disse o irmão Leopold ao se dar conta do que tinha feito.

Erin piscou os olhos para afastar o ofuscamento residual e então viu que eles estavam em um escritório atravancado, bastante parecido com o seu em Stanford. Mas em vez de tesouros dos tempos bíblicos, o aposento era cheio de artigos e artefatos da Segunda Guerra Mundial. Mapas emoldurados da década de 1940 cobriam uma parede; outra era coberta do chão ao teto por prateleiras cheias de livros; a terceira parede era estranha, coberta por vidro preto. A sala tinha cheiro de livros velhos, tinta e couro.

A pesquisadora nela teve vontade de se mudar para lá e não sair nunca mais.

Uma velha cadeira de escritório com estofado em couro estava em um canto com uma grande escrivaninha de carvalho. O tampo estava coberto por pilhas de papéis, mais livros e uma caixa de vidro tipo vitrine cheia de broches e medalhas.

Jordan examinou a sala.

– Graças a Deus, pelo menos por uma vez não vejo uma única coisa que pareça mais velha que os Estados Unidos.

– Você diz isso como se fosse bom – censurou Erin.

– E não se deixe enganar – acrescentou Rhun. – Muito mal foi feito tanto em ambientes modernos quanto nos antigos.

– Ninguém vai me deixar apreciar o momento?

Jordan se aproximou dela para deixar o irmão Leopold passar. Ela sentiu o calor agradável e tranquilizador de seu corpo.

– Perdoem-me por não ter arrumado as coisas – disse o jovem monge, ajeitando os óculos. – E por não fazer uma apresentação formal. O senhor é o sargento Jordan Stone, certo?

– Exato. – Jordan estendeu a mão para ele.

O irmão Leopold a apertou em suas duas mãos, sacudindo-a.

– Wilkommen. Bem-vindo à abadia de Ettal.

– Obrigado. – Jordan deu ao monge um sorriso sincero.

O irmão Leopold o retribuiu, sua expressão tão entusiasmada quanto seu aperto de mãos.

Depois de se apresentar, Erin concluiu que o monge parecia muito mais humano do que Rhun ou Bernard. Era verdade que sua mão era tão fria quanto a dele quando ela a apertou, mas aquilo foi mais amistoso do que o aperto de mãos enluvadas formal dos outros.

Talvez ele fosse apenas mais jovem que seus companheiros com séculos de vida.

O irmão Leopold se virou abrindo o braço com um gesto teatral para o caos de seu escritório.

– A coleção e eu estamos à sua disposição, professora Granger. Pelo que entendi, a senhora tem um artefato a respeito do qual quer obter mais informações.

– Exatamente. – Ela enfiou a mão por baixo do casaco no bolso da calça e tirou a medalha nazista. Então a estendeu para o monge. – O que pode nos dizer a respeito disso?

Ele a segurou entre o indicador e o polegar, examinando-a de óculos e depois sem eles. Virou a medalha várias vezes, finalmente avançou para a escrivaninha, onde colocou a medalha sob uma lupa fixada ao móvel.

Ele leu a inscrição na borda da medalha:

– Ahnenerbe. Não é nenhuma surpresa encontrar um dos cartões de visita deles enterrado nas areias da Terra Santa. Aquele grupo passou décadas vasculhando tumbas, cavernas e ruínas por lá.

Ele tocou o símbolo no reverso.

– Mas isto é interessante. Uma runa odal. – Ele olhou para Erin. – Onde exatamente foi encontrada?

– Na mão mumificada de uma garota assassinada no deserto israelense. Estamos procurando por uma coisa, um artefato, que pode ter sido roubado dela pelos Ahnenerbe.

Uma das sobrancelhas do monge se levantou de surpresa. Ele olhou para eles à espera de mais explicações, mas, quando nenhuma veio, apenas suspirou e concluiu:

– O mal dos nazistas foi longe.

Erin se sentiu culpada por não ser mais franca com o monge entusiasmado. Ela sabia que nada tinha sido contado ao irmão Leopold sobre a busca pelo Evangelho de Sangue, apenas que eles precisavam de ajuda com a medalha encontrada no deserto.

– Acha que pode descobrir a quem a medalha pode ter pertencido? – perguntou ela. – Se soubéssemos disso, poderíamos saber onde dar seguimento à nossa busca.

– Isto pode ser difícil. Não vejo quaisquer marcas de identificação.

Ela tentou não demonstrar sua decepção, mas como poderia?

Jordan deve ter percebido o tom dela porque ele apertou seu ombro e mudou de assunto. Leu em voz alta os títulos dos mapas, pronunciando os nomes corretamente.

– Você fala alemão? – perguntou ela.

– Um pouco – respondeu Jordan. – E um pouco de árabe. E um pouco de inglês.

Rhun se mexeu, atraindo a atenção de Erin para ele. Ela ficou curiosa, pensando em quantas línguas ele falaria.

Jordan se virou para o irmão Leopold.

– Como você conseguiu uma coleção tão ampla de mapas?

– Alguns estão comigo desde que foram desenhados. – O monge acariciou as contas do rosário pendurado em seu cinto. – Tenho vergonha de confessar que fui membro do Partido Nacional Socialista quando era humano.

Os olhos de Jordan se arregalaram.

– Você...

Igualmente surpresa, Erin tentou imaginar o monge de rosto inocente como um nazista.

Rhun interrompeu:

– Talvez devamos voltar a nossa atenção para a Ahnenerbe.

– É claro. – O irmão Leopold se sentou na cadeira de couro barulhenta. – Eu apenas queria que seus companheiros compreendessem que meu conhecimento destes assuntos não é esotérico. Desde que me tornei Sanguinista, aprendi mais a respeito das atividades dos nazistas e dediquei minha existência e meus estudos a desfazer o mal que eles fizeram e a me certificar de que tamanha maldade nunca mais reapareça.

– No que diz respeito a isso – perguntou Rhun –, você viu medalhões como este antes?

– Já vi semelhantes. – O irmão Leopold abriu e remexeu numa gaveta e tirou uma minúscula caixa com uma tampa de vidro. – Aqui estão alguns emblemas da Ahnenerbe. A maioria destes foi coletada pelo padre Piers, um de meus mentores e o padre que me converteu ao sacerdócio. Ele sabia muito mais sobre as práticas ocultistas dos nazistas que qualquer pessoa – provavelmente mais do que os próprios alemães.

Erin se lembrou de o cardeal Bernard ter mencionado o nome do padre morto em Jerusalém. Ao longo dos séculos, muitos historiadores famosos morriam levando consigo para o túmulo seus conhecimentos não documentados. Aquele tipo de tragédia não se limitava a pesquisadores humanos.

O monge dirigiu a atenção deles de volta para a caixa de vidro.

– Creio que vão apreciar o desenho da medalha no centro.

Ele bateu no vidro sobre uma medalha de estanho no formato da runa odal, com uma suástica no meio e duas pernas se estendendo da ponta inferior como pequeninos pés.


Ela leu as palavras que marchavam ao redor das bordas:

– Volk. Sippe.

– “Povo” e “tribo’ – traduziu ele. – A Ahnenerbe acreditava que os alemães descendiam da raça ariana, um povo que eles acreditavam ter fundado Atlântida antes de se mudarem para o Norte.

– Atlântida? – Jordan sacudiu a cabeça.

Os olhos de Erin se fixaram em outro broche na vitrine. O emblema parecia ser um pedestal sustentando um livro aberto.

– O que é esta?


– Ah, esta representa a importância da Ahnenerbe na documentação da história e da herança ariana, mas existem alguns estudiosos que afirmam que representa um grande mistério, algum livro de ocultismo de grande poder que eles possuíam.

O olhar de Erin encontrou o de Rhun.

Poderia isso ser uma sugestão de que eles tinham estado de posse do Evangelho de Sangue?

O monge empurrou para o lado uma pilha de documentos da era nazista e revelou um teclado moderno. Ele começou a digitar e a parede de vidro ao lado da escrivaninha se iluminou, revelando ser um gigantesco monitor de computador. Na tela enorme, dados rodaram em velocidade espantosa. Parecia que os Sanguinistas tinham uma boa coleção de brinquedos não só antigos, mas também modernos.

– Se vocês estão procurando um artefato perdido da Ahnenerbe – disse Leopold enquanto seus dedos voavam sobre o teclado –, isto é um mapa da Alemanha. Estive trabalhando nele durante praticamente sessenta anos. As setas vermelhas que podem ver representam supostos bunkers e repositórios nazistas. As verdes já foram investigadas. – Ele suspirou. – Infelizmente há mais vermelhas que verdes.

Erin sentiu um vazio no estômago. Quase não havia dois centímetros do mapa que não contivessem uma seta.

E sim, a maioria era tristemente vermelha.

– Se todos estes não foram examinados – disse Erin –, como você sabe que sequer estão lá? O que quer dizer quando fala em supostos bunkers nazistas?

– Nós ouvimos histórias a respeito deles. Folclore local. Às vezes podemos deduzir a existência a partir de documentos nazistas semidestruídos.

Jordan franziu os olhos, examinando a tela.

– Mas esta não é a única maneira como está localizando estes lugares, não é? – Ele balançou a cabeça para a tela. – Pela sofisticação deste levantamento, presumo que devem estar usando telemetria via satélite e radar de penetração terrestre para identificar estruturas subterrâneas ocultas.

O irmão Leopold sorriu.

– Quase dá a sensação de trapaça. Mas, no final, toda aquela maravilhosa tecnologia só conseguiu acrescentar mais setas vermelhas à tela. A única maneira de saber se realmente há alguma coisa lá, ou se estas estruturas ocultas contêm alguma coisa significativa, é ir examiná-las pessoalmente, uma por uma.

Os olhos de Rhun saltavam de um lado para outro enquanto ele examinava o mapa de alto a baixo.

– O que nós estamos procurando poderia estar em qualquer um destas centenas de lugares.

O irmão Leopold empurrou a cadeira para trás e cruzou as pernas.

– Sinto muito não ter uma resposta melhor.

Rhun estremeceu. Erin percebeu a impaciência dele. Os Belial estavam na trilha do livro tão avidamente quanto ela, Jordan e Rhun. Cada minuto era importante.

Jordan bateu com o dedo em uma das setas vermelhas.

– Então vai ser trabalho braçal daqui para a frente, companheiros. Examinaremos os locais e lhes atribuiremos probabilidades altas e baixas e os investigaremos. Usaremos uma grade padrão. Não vai ser rápido, mas vai ser completo.

A ideia dele parecia lógica – mas ao mesmo tempo parecia errada.

3:42

Jordan observou Erin se aproximar da escrivaninha e retirar o medalhão de debaixo da lente. Ele sabia que ela estava frustrada pelo franzir das sobrancelhas e pela rigidez de suas costas. Ele também não gostava da ideia de revistar centenas de lugares, mas que outra escolha eles tinham?

Quando Erin se virou na direção dele, um clarão brilhou em seus olhos. Aquilo geralmente significava que as coisas iriam mudar em seguida, e nem sempre para melhor.

Ele tocou no ombro dela.

– Erin, teve alguma outra ideia?

– Não sei. – Ela esfregou a runa no verso da medalha com os polegares.

Rhun inclinou a cabeça, os olhos fixos em Erin com uma intensidade que de alguma forma incomodava Jordan, como se aquele olhar fosse consumi-la.

Jordan se moveu para ficar entre eles.

– Diga o que é – pediu. – Talvez possamos ajudar.

Os olhos castanhos de Erin permaneceram muito distantes.

– Símbolos eram cruciais para a Ahnenerbe. Por que aquele símbolo na medalha roubada?

A cadeira de Leopold rangeu.

– A runa odal indica herança. Se a runa estava escrita ao lado do nome de uma pessoa ou de um objeto, indicava propriedade.

– Como escrever seu nome nos seus tênis – disse Jordan. – Ele olhou para o emblema com a suástica no centro da runa. – Então este emblema significa que a Ahnenerbe era dona dos nazistas?

Ele sabia que provavelmente parecia um idiota para os pesquisadores, mas às vezes a perspectiva de um idiota acabava resolvendo mais coisas.

– Creio que o caso seja mais que a Ahnenerbe achava que era dona do Terceiro Reich – esclareceu Erin. – Eles acreditavam que eram os verdadeiros protetores da herança ariana.

– Mas o que isto significa? – pressionou Rhun, se inclinando para ela como que tentando arrancar a resposta dela fisicamente.

Erin recuou.

– Não tenho certeza, mas no fim da guerra Berlim estava sendo bombardeada. O Terceiro Reich estava em fuga. – Ela falou lentamente, como se buscasse as palavras de uma história outrora conhecida. – E os cientistas da Ahnenerbe teriam sabido que a guerra estava acabada muito antes da rendição formal.

Leopold assentiu:

– Sim, teriam. Mas eles pensavam em termos de séculos. Para eles o presente era uma coisa apagada, de pequena importância. Eles estavam interessados na história da raça ariana remontando a dez mil anos – e seguindo adiante pelo mesmo número de milênios.

– O Quarto Reich! – exclamou Erin, seus olhos se iluminando. – Aquele grupo teria planejado a longo termo. Eles teriam desejado manter seus objetos mais importantes escondidos até o advento do Quarto Reich.

– O que significa que eles os teriam escondido em algum lugar desconhecido dos líderes do Terceiro Reich – disse Leopold, balançando de volta para o teclado. – De modo que podemos eliminar quaisquer bunkers documentados pelo governo nazista.

O monge digitou rapidamente em seu teclado e metade das setas vermelhas desapareceu.

– Isto ajudou – disse Jordan.

– Ainda são lugares demais – concluiu Erin, e começou a andar pelo pequeno escritório, nervosa, visivelmente tentando descarregar energia e se manter focada.

Rhun não se moveu, mas a seguiu com os olhos.

Erin apontou para a tela, mas não olhou para ela.

– Onde eles esconderiam seus artefatos mais preciosos de modo a se certificar de que cientistas arianos do futuro pudessem encontrá-los?

– Que tal Atlântida? – perguntou Jordan revirando os olhos. – Com as sereias?

Ela deu um tapa na testa.

– É claro!

– Erin – advertiu Rhun, com a voz suave. – Devo recordar a você que os nazistas não conheciam a localização da Atlântida.

Ela descartou aqueles detalhes.

– Reza a lenda que o Quarto Reich se ergueria do mar como Atlântida, devolvendo a supremacia à raça ariana. – Ela encarou Leopold. – E se os últimos membros da Ahnenerbe tiverem tentado resguardar esta aposta, para obrigar a profecia a ser verdade?

Rhun se contraiu ao lado de Jordan como se alguma coisa que Erin tivesse dito o tivesse perturbado.

Erin prosseguiu:

– Para combinar com a profecia, eles poderiam ter escondido seus artefatos mais importantes e significativos perto da água. Presos e cercados pelas forças Aliadas, os últimos integrantes da Ahnenerbe não podiam chegar ao mar no fim da guerra – e de qualquer maneira eles teriam querido manter seus tesouros no solo da pátria mãe. Logo, podem ter buscado a segunda melhor opção.

A voz de Leopold ficou mais baixa:

– Um corpo de água alemão.

– Um lago – disse Erin.

Leopold digitou um comando e todas as setas, exceto uma dúzia delas, desapareceram, indicando bunkers não explorados às margens de lagos.

Os punhos de Jordan se cerraram de emoção.

Até Rhun chegou perigosamente perto de sorrir.

– Deixem-me trazer uma imagem de satélite de cada um – disse Leopold.

Alguns minutos depois, um tabuleiro de xadrez de imagens enchia a tela grande, exibindo imagens de radar de penetração terrestre de cada um dos possíveis bunkers.

– Mein Gott in Himmel! – exclamou Leopold, retomando sua língua natal devido ao choque.

Todos eles se aproximaram da tela. Então todos viram.

Na linha inferior à direita do tabuleiro, um dos contornos de bunkers subterrâneos tinha a forma exata da runa odal.

E ele não ficava apenas à beira de um lago.

Ficava dentro da água.

Exatamente como Atlântida.


31

27 de outubro, 3:55 da madrugada, horário da Europa Central

Ettal, Alemanha

Diante da tela de computador, Rhun estava próximo o suficiente de Erin para sentir o cheiro do sabonete simples que Bernard usava em seus apartamentos em Jerusalém. O cabelo comprido dela deixava um traçado de calor no ar quando ela o atirava para trás, afastando-o do rosto.

Jordan se meteu entre eles, bloqueando sua visão de Erin novamente. Rhun sabia que aquilo era feito de propósito. O soldado mantinha as mãos ao lado do corpo, pronto para qualquer coisa, inclusive para uma briga.

Uma onda de irritação tomou Rhun, mas ele a obrigou a deixá-lo. Jordan estava certo ao proteger um espaço entre ele e aquela mulher. Erin Granger, com sua mente aguçada e coração compassivo, era uma mulher realmente muito perigosa. E Rhun precisava de toda a distância que pudesse conseguir.

Rhun voltou sua atenção para o irmão Leopold e para a tarefa imediata.

– Há uma tríade em residência?

– Natürlich. – O rosário do monge bateu contra a escrivaninha quando ele se levantou. – Nadia, Emmanuel e Christian estão aqui. Devo chamá-los?

– Apenas Nadia e Emmanuel – disse Rhun. – Serei o terceiro.

– O que é uma tríade? – perguntou Jordan, ouvindo a conversa.

Leopold levantou o fone de um aparelho preto e explicou:

– Guerreiros Sanguinistas com frequência trabalham em grupos de três. É um número sagrado.

E uma unidade de combate perfeita, acrescentou Rhun silenciosamente.

Em voz alta ele disse:

– Irei com dois outros até este bunker e o revistarei.

Erin cruzou os braços.

– Eu também vou.

– Nós formamos um pacote – acrescentou Jordan. – Não foi isso o que o cardeal disse?

Rhun se empertigou.

– As ordens de vocês eram de me ajudar na busca, o que já fizeram. Se tivermos sucesso, nós voltaremos aqui com o artefato.

Jordan deu um sorriso pouco convincente.

– Creio que o cardeal disse que nós éramos o trio. Mulher, guerreiro e cavaleiro. Sou plenamente a favor de obter reforços, mas não substitutos.

O irmão Leopold discou quatro números e falou ao telefone, mas seus olhos estavam cravados no soldado. Ele tinha ouvido o que fora dito, sabia o que significava, havia compreendido o que eles procuravam.

– Rhun – disse Erin. – Se... o artefato estiver neste bunker, minha ajuda terá levado você até lá, e talvez precise de minha ajuda de novo quando estiver lá dentro.

– Sobrevivi durante séculos sem a sua ajuda, dra. Granger.

Ela não recuou.

– Se o cardeal estiver correto sobre a profecia, este não é um momento para orgulho. Por parte de nenhum de nós.

Rhun piscou os olhos. Ela despreocupadamente havia apontado seu maior defeito.

Orgulho.

Esse defeito uma vez o havia derrubado – ele não permitiria que aquilo acontecesse novamente. Erin estava correta. Ele poderia muito bem vir a precisar da ajuda dela, e não podia ser orgulhoso demais para aceitá-la.

– Todos nós precisamos fazer o que fomos chamados para fazer – disse Erin, repetindo, com outras palavras, algo que o cardeal lhe tinha dito.

Todos nós precisamos nos inclinar humildemente diante de nosso destino.

Erin acrescentou:

– O livro exige nada menos que isso.

Rhun baixou os olhos. Se o cumprimento da profecia havia começado, eles três juntos deveriam procurar o livro. Por mais que quisesse, não podia deixar Erin para trás.

Nem mesmo pela segurança dela.

Ou pela dele.

4:02

Um novo mapa cobria a grande tela de computador; um mapa contemporâneo das estradas do terreno montanhoso de Garmisch-Partenkirchen. O lago e seu bunker oculto ficavam a cerca de 64 quilômetros no interior daquela área. Na tela do monitor, Erin traçou a fina linha branca que serpenteava entre as colinas verde-escuras e acabava no pequeno lago entre as montanhas.

– Isto é uma estrada? – perguntou Erin.

– Uma velha trilha de terra batida – respondeu o irmão Leopold. – O veículo em que vocês chegaram não conseguirá passar por ela. Mas...

A porta do escritório se abriu com um estalo.

A mão de Jordan foi para a coronha de sua submetralhadora.

Num movimento fluido, Rhun assumiu uma postura de combate.

Erin apenas se virou. Será que os outros estavam certos de se mostrar tão tensos e cautelosos, mesmo ali, onde ela se sentia segura? Naquele momento ela percebeu seu despreparo para lidar com os perigos por vir.

Duas pessoas vestidas de negro entraram no escritório como um vento gelado: rápidas, implacáveis e frias. Só quando pararam de se mover é que Erin as reconheceu como Sanguinistas.

A primeira, surpreendentemente, era uma mulher, vestida num traje de proteção de couro feito sob medida semelhante ao de Rhun – só que ela usava um cinto fino de prata que parecia ser feito com elos de corrente. Seu cabelo era preto, lustroso, trançado e preso no alto da cabeça em um coque. A tez era mais morena do que a de Rhun, mas igualmente implacável; ela descansava a mão enluvada no cabo de um punhal que trazia preso à coxa.

Ela varreu a sala com os olhos e então deu um ligeiro cumprimento de cabeça para Erin e Jordan.

– Eu sou Nadia.

O outro, um homem, estava dois passos atrás da mulher.

– E eu sou Emmanuel – disse ele, com sotaque espanhol.

Ele vestia uma batina preta, desabotoada na frente, revelando o traje de proteção de couro por baixo e um reluzir prateado de armas. O cabelo louro caía solto abaixo dos ombros, comprido demais para um padre, e uma cicatriz rosada descia por uma das maçãs do rosto de feições cinzeladas.

Rhun falou apressadamente com os dois em latim. Erin ouviu, sem demonstrar que compreendia. Jordan manteve sua posição habitual em guarda, a palma da mão sobre a coronha da submetralhadora pendurada no ombro. Ele claramente não confiava em nenhum deles.

Erin seguiu o exemplo dele e fingiu interesse pelo mapa na tela enquanto ouvia a conversa.

Rhun rapidamente relatou tudo em latim sucinto: sobre a profecia, sobre Erin e Jordan, sobre o livro que eles procuravam e o inimigo que enfrentavam. Quando ele mencionou a palavra Belial, tanto Nadia quanto Emmanuel ficaram tensos.

Depois que acabou, Rhun se virou para Leopold.

– Você aprontou o que pedi?

Leopold assentiu:

– Três motos. Já estão de tanque cheio e esperando por vocês.

Erin olhou de volta para o mapa, para uma fina trilha branca que serpenteava em meio às montanhas. Parecia que eles não iriam percorrer aquela rota tortuosa de carro nem de picape.

– Se vocês estão prontos – perguntou Rhun, abarcando Erin e Jordan com um único olhar.

Erin conseguiu apenas balançar a cabeça – mas mesmo esse gesto foi mentiroso. Ela detestava a ideia de deixar o território conhecido de livros empoeirados, cadeiras de couro e a certeza fria da tela de computador. Mas havia se comprometido.

Enquanto Leopold os conduzia de volta pela escada, Jordan ficou para trás com ela, tocando-lhe o pulso, deixando a mão se demorar ali.

Ele se inclinou junto à orelha dela, o hálito soprando a face dela.

– Há alguma coisa que eu precise saber sobre o que eles acabaram de dizer?

É claro, a encenação dela não o havia enganado. Ele sabia que ela estivera prestando atenção na conversa. Erin se esforçou para responder à pergunta dele, mas sua mente estava ocupada demais registrando a proximidade dele – e como uma parte dela ansiava para zerar aqueles últimos centímetros que os separavam.

Ela precisou repetir a pergunta para si mesma antes de responder:

– Nada de importante. Ele apenas relatou aos outros o que se passou até agora.

– Mantenha-me informado – sussurrou ele.

Ela olhou para os olhos dele, depois para os lábios, recordando-se do toque deles contra os seus em Jerusalém.

– Dra. Granger? – chamou Rhun do alto da escada. – Sargento Stone?

Jordan gesticulou para que ela avançasse à sua frente.

– O dever nos chama.

Bastante ofegante – e não por causa da escada –, Erin apressou o passo na direção dos Sanguinistas.

Uma vez do lado de fora, ela descobriu que a noite tinha se tornado muito mais fria, a neblina, mais espessa. Mal conseguia distinguir a silhueta da Mercedes sedã.

Depois que eles deram a volta no carro, Jordan deu um assovio de admiração.

Três motocicletas pretas, com detalhes em vermelho, estavam estacionadas na grama seca adiante. Não pareciam nada demais para Erin, mas Jordan estava visivelmente impressionado.

– Ducati Streetfighters – comentou ele, alegremente – com alternadores de magnésio e o que parecem ser silenciadores de carbono no cano de descarga.

Erin teve uma preocupação mais prática, comparando o número de passageiros e o número de motos.

– Quem vai com quem?

Nadia levantou o canto da boca num minúsculo sorriso, que fez muito para humanizá-la.

– Para uma distribuição de peso justa, levarei o sargento Stone.

Erin hesitou. Ela ainda não compreendia o papel de uma Sanguinista. Se Rhun era um padre, seria Nadia algum tipo de freira, que tivesse igualmente jurado dedicar a vida à Igreja? Qualquer que fosse a circunstância, o olhar que ela lançou para Jordan não foi nada casto.

Jordan aparentemente tinha suas próprias ideias quanto à questão e se aproximou de uma da motos.

– Eu sei dirigir. – Pelo tom de sua voz estava claro que ele queria dirigir uma delas. – E prefiro que Erin e eu fiquemos juntos.

– Você vai nos atrasar – disse Nadia, seus olhos faiscando de divertimento.

Erin pensou em reagir, mas sabia, depois de ter visto Rhun dirigir o sedã, que os reflexos dela e de Jordan não se comparavam aos de um Sanguinista.

Jordan também deve ter admitido isso, pois suspirou fundo e fez um ligeiro aceno de cabeça.

Emmanuel avançou e passou a perna possessivamente sobre uma das motos sem dizer uma palavra. Jordan seguiu Nadia para outra.

– A senhora virá comigo, dra. Granger – disse Rhun, indicando a terceira motocicleta.

– Eu não sei se...

Rhun ignorou a objeção e avançou para a moto, montando com um floreio de seu casaco comprido. Virando-se no banco, ele deu uma palmada no couro ao seu lado com a mão enluvada.

– Creio que foi a senhora que disse que “o livro exige o melhor de nós”. Foram as suas palavras, não foram?

– Foram. – Ela detestou ter de admitir e montou na garupa dele. – Não deveríamos estar de capacete?

Nadia deu uma gargalhada, e sua moto rugiu.

4:10

Rhun se tensionou quando os braços de Erin se cerraram ao redor de sua cintura. Mesmo através do couro, ele sentiu o calor dos braços dela em seu abdômen. Por um momento lutou dividido entre a vontade de afastá-la e puxá-la para mais perto.

Em vez disso, se ateve às exigências práticas do momento.

– Já andou de moto antes? – perguntou, mantendo o olhar fixo na floresta escura envolta em neblina.

– Uma vez, há muito tempo – respondeu ela.

Ele sentiu o coração dela disparar contra suas costas. Estava mais temerosa do que sua voz indicava.

– Eu manterei você segura – prometeu ele, esperando que fosse verdade.

Ela assentiu atrás dele, mas seu coração não reduziu o ritmo acelerado.

Jordan deu um sinal de polegares para cima da garupa de Nadia enquanto ela acelerava o motor para um rugido abafado. Emmanuel apenas acelerou sua moto e partiu sem esperar. Nadia o seguiu.

Enquanto Rhun dava partida mais delicadamente, os braços de Erin se apertaram ao redor dele. O corpo dela deslizou para a frente e se apertou contra o dele. O calor animal de Erin fluiu para as costas dele, e o corpo dele lutou contra a vontade de se encostar nela.

Rhun não podia permitir que seus instintos mais vis o controlassem. Era um padre, e com a ajuda de Deus iria cumprir sua missão. Murmurou uma breve oração e se concentrou na lanterna vermelha de Nadia, que rapidamente desaparecia.

Acelerou imprimindo velocidade – e depois mais ainda.

Troncos negros de árvores passavam chicoteando de ambos os lados. O feixe de luz azul de seu farol penetrava o cobertor pesado da neblina. Ele manteve os olhos na estrada irregular. Um erro de cálculo e eles cairiam.

À frente dele, Nadia e Emmanuel imprimiram mais velocidade. Ele os acompanhou.

Erin enterrou o rosto entre as omoplatas dele. A respiração dela estava rápida e entrecortada, e o bater de seu coração, acelerado como o de um coelho.

Ainda não se sentia em pânico, mas estava perto.

Apesar de suas orações e promessas, o corpo dele se estimulou em resposta ao medo dela.

4:12

Jordan se inclinou bem para o lado com a curva. As árvores próximas ficaram borradas numa longa linha negra com o topo verde-escuro. O vento fazia seus olhos arderem. O casaco esvoaçava atrás dele.

Nadia acelerou pra valer na reta seguinte, um trecho raro naquela trilha de terra batida tortuosa. Ele lançou um olhar rápido por cima do ombro dela: 254 quilômetros por hora. Aquilo era mais de 150 milhas por hora.

Parecia que estavam voando.

Ele sentiu mais que ouviu Nadia gargalhar enquanto imprimia mais velocidade à moto.

Sem conseguir se conter, Jordan respondeu ao entusiasmo dela, rindo com ela, satisfeito e sentindo-se livre pela primeira vez desde Massada.

Nadia inclinou a moto para fazer mais uma curva. O joelho esquerdo de Jordan estava a pouco mais de um centímetro acima do cascalho, seu rosto a não mais que trinta centímetros das pedras que rolavam abaixo deles. Um movimento errado de qualquer um deles e ele estaria morto.

Uma parte dele detestava estar à mercê da habilidade dela.

Não mais que um espectador de sua destreza.

Apesar disso, ele sorriu para o vento, bem apertado contra o corpo frio e duro de Nadia, e apenas se entregou ao prazer da corrida. Era hora de aproveitar.


32

27 de outubro, 4:43 da madrugada, horário da Europa Central

Harmsfeld, Alemanha

Quando a motocicleta finalmente reduziu a velocidade, Erin se arriscou a abrir os olhos. Durante a maior parte da jornada, viajara às cegas, abrigada junto às costas largas de Rhun, mas mesmo assim ainda se sentia açoitada pelo vento e abalada.

À frente deles, uma aglomeração de luzes revelou o motivo de Rhun ter reduzido a marcha. Eles tinham chegado ao vilarejo montanhoso de Harmsfeld. Ele reduziu a marcha para um quase rastejar enquanto atravessavam o centro do vilarejo adormecido. O vilarejo bávaro medieval parecia ter acabado de sair de uma cápsula do tempo, completa, com casas escuras com telhados de telhas vermelhas, paredes de pedras empilhadas e caixas de madeira com flores adornando a maioria das janelas. Uma única igreja, com um campanário em estilo gótico, erguia-se na praça da aldeia, um espaço que provavelmente era convertido em mercado de fazendeiros durante o dia.

Ela procurou por cima do ombro de Rhun pelas outras duas motos, mas não viu sinal delas na rua de pedras redondas, uma prova do ritmo mais cauteloso que Rhun tinha imprimido com ela como passageira.

Contudo, ela se sentia como se tivesse deixado o estômago no estacionamento da abadia de Ettal.

Quando eles saíram do vilarejo, uma extensão prateada do lago apareceu. Sua superfície lisa exibia um reflexo perfeito do céu estrelado acima, a floresta ao redor abraçando suas margens e os picos escarpados que delimitavam o vale.

Erin avistou os outros, estacionados ao lado de uma praia vizinha a um cais de madeira. Os pilares de cor cinza eram mais escuros que as águas que suavemente os lambiam.

Rhun acelerou até se aproximar dos outros e finalmente freou e parou. Ela obrigou suas mãos a se descerrarem da frente do casaco dele, afastando os braços e desmontando da moto com as pernas trêmulas. Erin avançou com um andar de velha alquebrada.

Perto do cais, os outros três empurravam um dóri de madeira sobre a lama e para a água iluminada pelo luar. O tom excitado da voz de Jordan chegou até ela ecoando na água, expressando o quanto ele tinha adorado o passeio. Alguma coisa que ele disse fez Nadia dar uma risada, o som inesperadamente despreocupado.

Jordan percebeu a aproximação vacilante de Erin e gritou para ela:

– Como foi?

Ela deu a ele o sinal de polegares para cima mais trêmulo de sua vida, o que arrancou uma gargalhada dele.

Rhun passou por ela silenciosamente, como uma sombra.

Nadia examinou os dois enquanto se aproximavam da linha da água, como que tentando ler alguma mensagem secreta.

Emmanuel apenas deu ao pequeno barco a vela um empurrão final para a água, posicionando-o para flutuar, e entrou a bordo. Ele seguiu para a proa, então se sentou ali, imóvel como uma carranca num navio pirata.

Nadia saltou agilmente como um felino selvagem para dentro do barco.

Jordan ficou na praia para ajudar Erin a embarcar. Ela segurou a mão dele e subiu, reparando que a tinta branca estava descascando das pranchas largas dos assentos. Não parecia o mais seguro dos barcos. Ela pegou a lanterna, acendeu-a e virou-a para o fundo do barco.

Não havia água ali dentro.

Por enquanto.

– Você fez uma viagem agradável? – perguntou Nadia, e se chegou para o lado de modo que Erin pudesse sentar-se ao lado dela no banco do meio.

Rhun e Jordan sentaram-se na prancha de madeira atrás delas enquanto Emmanuel continuava sua vigília na proa.

– Na volta, acho que vou chamar um táxi – respondeu Erin.

– Ou você pode vir comigo na volta – disse Jordan, lançando um olhar desejoso para o local onde eles haviam escondido as três motos Ducati. – Isto é, se não tivermos estourado o prazo.

Rhun enfiou e empurrou seu remo na água com tanta força que o barco se inclinou para o lado.

Nadia lançou um olhar para ele e sussurrou alguma coisa em um tom provocador, falando baixo demais para que Erin compreendesse. As costas de Rhun se retesaram, o que fez o sorriso de Nadia se alargar.

A Sanguinista então entregou um pesado remo de madeira a Erin.

– Creio que nós quatro teremos que remar enquanto Emmanuel descansa.

Emmanuel a ignorou e se recostou na borda.

Logo Erin estava enfiando seu remo na água, tentando acompanhar o ritmo dos outros. À medida que eles deslizavam sobre a superfície, a neblina rolava mais espessa sobre o lago, engolindo-os e obscurecendo a luz do luar. O dóri agora navegava em meio a um mundo fantasmagórico onde Erin só conseguia ver poucos metros adiante.

Jordan tocou nas costas dela e ela se sobressaltou.

– Desculpe – disse ele. – Olhe para baixo.

Ele virou sua pequena lanterna para a água escura. O feixe de luz se estendeu para baixo através da água escura como um dedo explorador. Longe, lá embaixo, a luz mosqueada rastreou uma forma humana. Erin prendeu a respiração e se inclinou para mais perto da superfície. Algas verde-esmeralda pendiam de um braço levantado, da curva de um rosto. Era uma estátua de um homem montado num cavalo empinando. Abaixo dela havia a bacia imensa de uma fonte.

Fascinada, ela liberou sua própria lanterna e a girou em um círculo mais amplo, revelando a visão estranha de formas retangulares de casas em ruínas e lareiras de pedra solitárias. Nadia explicou:

– De acordo com o irmão Leopold, os nazistas locais – provavelmente da Ahnenerbe – mandaram ampliar este lago, represando o rio que fica do outro lado e inundando a cidade que vemos abaixo. Alguns dizem que os nazistas prenderam todos os que protestaram em suas próprias casas, junto com suas famílias, afogando-os como punição.

Abaixo, um cardume de peixes prateados passou pela luz da lanterna de Erin. Ela estremeceu, se perguntando quantas pessoas teriam morrido ali.

A voz de Jordan assumiu um tom sombrio:

– Eles devem ter feito isso para esconder a entrada do bunker sob o lago.

Erin tinha visto o suficiente e apagou a lanterna.

– Presumo que vocês dois saibam nadar – especulou Nadia.

Erin assentiu, embora não fosse uma excelente nadadora. Tinha aprendido o básico na faculdade, principalmente para apaziguar sua companheira de quarto, que estava convencida de que ela algum dia iria cair de um cais e se afogar. Erin concordou que seria prático ter aquele conhecimento, tomou as aulas e aprendeu, mas apesar disso detestava água.

Jordan, previsivelmente, tinha melhores credenciais.

– Eu fui salva-vidas no colégio. Desde então fiz alguns cursos de treinamento. Acho que não terei problemas.

Erin não tinha pensado em nenhum momento em perguntar a que profundidade ficava a entrada do bunker. E se ela não conseguisse chegar lá e tivesse de esperar no barco? Ou e se o lugar inteiro estivesse inundado?

Emmanuel disse sua primeira palavra desde a saída da abadia, uma ordem que sobressaltou Erin pelo tom feroz:

– Parem.

Ele apontou para a água negra diante do barco.

Jordan se inclinou para a frente e acendeu a lanterna com o foco na água, revelando um arco redondo bem longe abaixo, sua crista aveludada de algas.

Emmanuel baixou a âncora tão devagar que mal respingou. Depois que o dóri ficou seguro, ele tirou a batina, a enrolou numa bola e a enfiou debaixo do traje de couro. Então, rápido como um peixe, mergulhou e seguiu o cabo da âncora para baixo.

O cabelo louro fluiu atrás dele enquanto ele descia.

Erin observou seu progresso, calculando a profundidade da água. Talvez seis metros. Ela podia mergulhar aquela profundidade, mas e depois? Será que teria de explorar túneis dentro d’água?

A garganta dela fechou.

– Vocês dois esperem aqui – disse Rhun, e fez sinal para Nadia.

O par mergulhou, fazendo o barco balançar, levando luzes para baixo. Erin firmou-se em cada amurada com as mãos, satisfeita por estar sozinha com Jordan no barco.

– Você não é muito boa nadadora, não é? – perguntou Jordan com um sorriso.

– Como você sabe?

Ele enfiou os remos sob os assentos, então se endireitou.

– Seus ombros sobem até as orelhas quando você fica nervosa.

Ela fez uma anotação mental de não fazer mais aquilo e gesticulou para os Sanguinistas abaixo.

– Eu com certeza não sei nadar como eles.

Através da água ela observou o trio tentar mover o que parecia ser uma grande escotilha de metal.

– Eles trapaceiam – disse Jordan. – Não precisam respirar, lembra? Só mais uma coisa esquisita para acrescentar à lista.

– Você tem uma lista?

Ele contou nos dedos.

– Não têm batimentos cardíacos, têm sangue que flui por si só, são alérgicos a prata. Esqueci alguma coisa?

– Que tal a maneira como podem ficar imóveis como estátuas ou se mover duas vezes mais depressa que nós?

– Também tem isso. E o fato de que são predadores de humanos.

– Os Sanguinistas não – recordou ela. – Esta é uma das leis deles.

– Lei ou não, percebo que eles continuam querendo isso. O desejo ainda está neles. – Ele se inclinou para a frente. – Já vi a maneira como Rhun olha para você, como se estivesse ao mesmo tempo fascinado e faminto.

– Pare! Ele não faz isso.

Erin teve de virar o rosto, escondendo a falta de convicção de suas palavras, a lembrança do que havia acontecido na capela subterrânea em Jerusalém ainda fresca em sua memória.

– Apenas tenha cuidado quando estiver perto dele – acrescentou Jordan.

Erin olhou de volta para ele, percebendo um tom estranho em sua voz. Será que ele estava certo ou apenas com ciúme? Ela não tinha certeza de qual dos dois seria mais preocupante.

Justo naquele instante, uma cabeça negra reluzente subiu à tona ao lado do barco. Nadia.

– A porta está aberta. O bunker é vedado por uma antecâmara, um compartimento fechado. Nós temos que entrar juntos, fechar a primeira porta, então abrir a segunda.

Ela nadou um metro e acenou para Erin e Jordan a seguirem.

Sempre um soldado, Jordan mergulhou de imediato. Subiu à tona rapidamente, boiou de costas e olhou para Erin com um grande sorriso.

– A água está ótima – declarou, o tremor em sua voz negava suas palavras.

Nadia percebeu a verdadeira razão da hesitação de Erin.

– Se você tem medo, talvez seja melhor ficar no barco.

De jeito nenhum.

Erin se levantou e pulou dentro d’água. O frio de neve derretida do lago a chocou, como se tentando obrigar seu cérebro a raciocinar à força, encorajá-la a voltar para a segurança do barco.

Em vez disso, ela respirou fundo e mergulhou direto para a porta aberta abaixo.

5:05

No fundo do lago, Rhun ouviu os batimentos cardíacos deles mudarem quando Erin e Jordan entraram na água. Ele esticou a cabeça para fora da porta em arco e virou o foco de sua lanterna à prova d’água para cima, oferecendo-lhes um feixe de luz para seguir. O luar prateado da superfície punha em silhueta as formas escuras deles enquanto moviam pernas e braços, se impulsionando para baixo.

O soldado nadava rápida e economicamente. Ele poderia ter chegado ao fundo em segundos, mas se demorou, mantendo os olhos em Erin.

Ela, por outro lado, era uma péssima nadadora. Seus movimentos eram feitos aos trancos com pânico e seu coração estava disparado. Contudo, Rhun a respeitou por ter a coragem de tentar. Sem o pesado casaco de pele de lobo puxando-a para baixo, ele duvidava que ela tivesse conseguido.

Depois que ela se aproximou o suficiente, Rhun estendeu a mão, agarrou-lhe o braço e a puxou para dentro do arco e para o pequeno compartimento inundado. Menos de um segundo depois, Nadia e Jordan entraram nadando.

Juntos, eles puxaram e fecharam a escotilha externa.

O metal se encaixou com um ruído surdo. Um rápido estalo metálico soou enquanto eles giravam a tranca da porta. A lanterna de Rhun revelou paredes de concreto rodeando-os – e o rosto assustado de Erin.

Ele se preocupou de que o coração dela fosse explodir, seu ritmo mal fazendo pausa entre as batidas. Precisava tirá-la da água antes que entrasse em pânico e se afogasse. Se o bunker além do compartimento estivesse inundado, ele teria de levá-la depressa de volta para a superfície.

Na extremidade do pequeno compartimento, Emmanuel moveu as manivelas de aço que trancavam a escotilha interna. Quando torceu a última, a porta se abriu de um tranco sozinha, empurrada pela pressão da água dentro do compartimento. À medida que a água entrava, foram todos carregados pela corrente vazante – e levados para dentro do bunker seco dos nazistas.


33

27 de outubro, 5:07, horário da Europa Central

Abaixo do lago Harmsfeld, Alemanha

Erin se deteve trêmula, molhada até os ossos, os dentes já começando a bater.

Todos os outros estavam avançando, de armas em punho, varrendo com a luz das lanternas o túnel de concreto adiante. Ela pôs a mão na coronha de sua pistola ainda no coldre e tirou a lanterna à prova d’água do bolso molhado do casaco de couro.

Seu coração martelava na garganta. Ela olhou para trás, para o compartimento vedado. Não queria ter que fazer aquilo nunca mais. Esperava que houvesse uma saída por terra daquele bunker.

Acendendo a lanterna, ela iluminou o chão, onde os ralos já absorviam a água que havia entrado com os recém-chegados. Varreu o túnel com a luz da lanterna. As paredes arredondadas subiam do nível do piso, se elevando a mais de quatro metros, largas e altas o suficiente para que um tanque Sherman passasse sem arranhar o concreto das paredes.

Erin imaginou os grupos de internos de campo de concentração, todos esqueléticos, trabalhando naquele túnel em meio a uma escuridão quase total, apenas para serem mortos quando a estrutura estivesse pronta, o sangue deles derramado para guardar seus segredos.

Ela cheirou o ar: úmido e bolorento, mas não velho. Examinou o teto. Provavelmente algum sistema de ventilação passiva ainda estava intacto.

Ela se juntou aos outros. De acordo com o mapa do satélite, eles deviam estar na perna direita da runa odal. Mas para onde deveriam ir dali?

– E agora? – perguntou Jordan, espelhando a dúvida de Erin. – Apenas saímos andando por aí procurando?

A tríade de Sanguinistas formava um escudo silencioso em forma de cunha alguns passos à frente: Emmanuel, na dianteira, vestiu a batina molhada por cima do traje de proteção de couro. Nadia e Rhun o flanqueavam. Todos os três estavam claramente lançando seus sentidos, se orientando e avaliando o nível de ameaça.

Erin foi para mais perto de Jordan, entrando no abrigo da proteção deles.

Ela também sabia qual era o seu papel – de pesquisadora, a suposta Mulher de Saber.

– Acho que o lugar simbolicamente mais poderoso para guardar um objeto sagrado aqui – sugeriu – seria em uma interseção, como no ponto em que esta perna se cruza com a parte inferior do losango. Ou talvez no topo do losango.

– Concordo – disse Nadia, e instigou Emmanuel a avançar, encabeçando o grupo.

Ela e Rhun se moveram em sincronia atrás dele, como se os três estivessem ligados por arames invisíveis.

– Você vai na minha frente, Erin – disse Jordan. – Eu fico na retaguarda.

Erin não discutiu, satisfeita em cumprir o protocolo militar naquele momento.

Juntos, todos eles avançaram pelo túnel – depressa demais para o gosto de Erin, mas provavelmente devagar demais da perspectiva da tríade. Enquanto os Sanguinistas mantinham sua formação com perfeição, ela ora avançava de perto demais, ora para longe demais.

Emmanuel se deteve diante da primeira porta que eles encontraram – uma escotilha de metal sem nada demais na lateral do túnel. Ele tentou a maçaneta. Estava trancada, mas aquilo não pareceu deter o estoico espanhol. Ele flexionou os dedos enluvados e arrancou a maçaneta da porta. Então a atirou para o lado, onde caiu e rolou no solo.

Os olhos de Jordan se arregalaram, mas ele não disse nada.

Emmanuel empurrou a porta com o bico da bota de couro. Uma espada curta de prata apareceu em sua mão. Ele e Nadia entraram juntos.

Rhun ficou do lado de fora, junto de Erin. Ela olhou para adiante no túnel, apontado a lanterna. Vazio até onde a luz alcançava.

– Seguro! – gritou Nadia de dentro.

Erin e Jordan entraram a seguir, Rhun por último.

No interior, a luz de Erin revelou uma escrivaninha empoeirada onde havia um equipamento de rádio antigo. Um livro de código estava aberto diante dele. Ao lado da escrivaninha, uma cadeira tinha sido empurrada para fora. Ao lado dela, caído no chão, estava o esqueleto de um soldado nazista. Estava provavelmente transmitindo ou recebendo alguma mensagem quando morreu.

A luz de Jordan iluminou um broche da Ahnenerbe em sua lapela. A insígnia tinha a forma da runa odal, exatamente igual à gravada na medalha nazista encontrada na tumba em Massada.

– Parece que viemos ao lugar certo.

Erin se aproximou e examinou o soldado morto, mantendo uma atitude profissional.

Ele é exatamente como qualquer esqueleto que encontrei em escavações.

Ela ficou recordando aquilo enquanto examinava o sangue seco que manchava a frente de seu uniforme. Tinha escorrido em grandes gotas pelo peito dele.

O que havia acontecido?

Ela foi para trás do esqueleto, se virou e direcionou a luz de volta para a porta. Outro esqueleto jazia mais para o lado. Ela estremeceu ao pensar que quase tinha pisado nele quando entrara.

Os Sanguinistas ignoraram ambos os esqueletos e revistaram as prateleiras ao lado do rádio.

Não havia espaço para ajudá-los, de modo que Erin foi até o esqueleto ao lado da porta. Um buraco bem redondo no centro do crânio não deixava dúvida de como ele morrera. O uniforme dele era diferente do uniforme do operador de rádio. O dele era cáqui e de um tecido mais grosseiro.

Ela o percorreu com a luz.

– Russo – disse Jordan. – Está vendo a estrela de cinco pontas? Também é um emblema da Segunda Guerra Mundial.

Russo?

– O que ele estava fazendo aqui? – perguntou Erin. E como ele entrou?

Jordan se agachou ao lado dela e revistou os bolsos do soldado, colocando os objetos na poeira espessa que cobria o piso: um maço de cigarros, caixa de fósforos, um documento de aparência oficial escrito em cirílico, uma carta e uma fotografia.

Jordan levantou a foto em preto e branco desbotada de uma mulher de feições eslavas com uma garota magra de tranças na frente de uma pilha de feno.

Provavelmente a esposa e a filha do homem morto.

Ela se perguntou quanto tempo a mulher teria tido que esperar para saber do destino de seu marido. Será que tinha chorado por ele ou ficado aliviada com seu desaparecimento? A esposa do homem provavelmente também estava morta agora, mas a menina poderia ter crescido.

Erin se virou para Rhun, sentindo necessidade de fazer alguma coisa.

– Existe alguma maneira de o irmão Leopold notificar a família do soldado?

Rhun lançou-lhe um olhar rápido.

– Pegue a carta. Conhecendo Leopold, sei que ele vai tentar.

Ela recolheu a carta e se levantou. Imaginou a cena há muitos anos.

O operador de rádio sentado à sua escrivaninha, talvez pedindo socorro. O soldado russo entra de repente. Há uma troca de tiros. Depois alguém tranca o local sem que ninguém retire os corpos.

Mas por quê?

Nadia estava de pé ao lado de Jordan, estendendo a mão.

– Mostre-me o outro documento.

Quando ele entregou o papel escrito em cirílico, ela o leu rapidamente, o dobrou e o enfiou no bolso.

– O que diz?

– São ordens de serviço. A unidade dele recebeu ordens de avançar de São Petersburgo para o Sul da Alemanha perto do fim da guerra. Para “resgatar itens de interesse” do bunker antes da invasão americana.

– De São Petersburgo? – perguntou Rhun.

Ele e Nadia trocaram um longo olhar, os rostos preocupados.

Nadia acenou em direção à porta.

– Já descobrimos o que era possível aqui – disse. – Vamos seguir adiante.

Erin olhou ao redor, decepcionada. A arqueóloga nela detestava o fato de não ter fotografado o aposento, mapeado as coisas apropriadamente e feito um inventário do conteúdo.

– Mas poderia haver mais provas...

– Devemos revistar tudo o que pudermos antes que os Belial nos encontrem. – Rhun se deteve a meio caminho da saída. – O irmão Leopold fará um inventário mais completo depois, se houver tempo.

Jordan se manteve próximo logo atrás de Erin enquanto ela seguia Rhun de volta ao túnel comprido.

Os Sanguinistas agora avançavam mais rapidamente. Alguma coisa claramente os havia perturbado. Erin trocou um olhar inquieto com Jordan. Qualquer coisa que fazia um trio com poderes como os deles ficar nervoso tinha que ser aterrorizante.

Seguindo pelo túnel, eles liberaram outro aposento: um dormitório cheio de catres. Erin contou quatro esqueletos de soldados alemães, dois ainda em seus catres, dois a meio caminho da porta. Dois esqueletos de russos estavam caídos contra a parede.

O que quer que tivesse acontecido ali, a luta havia sido feroz.

Arcas de metal ao lado dos catres continham roupas dobradas, maços de cigarros, fósforos, alguns postais pornográficos, mais cartas e muitas fotografias de mais mulheres e crianças, uma triste lembrança daqueles que tinham ficado em casa esperando por seus entes queridos.

Erin coletou tantas cartas quanto pôde e as enfiou em seus bolsos, esperando que a água não borrasse a tinta desbotada.

Eles também descobriram livros – um manual sobre a manutenção de rifles, um romance em alemão, um folheto de instrução sobre doenças venéreas – mas nada que se encaixasse na descrição do Evangelho de Sangue.

Derrotada e entristecida por todas aquelas mortes, Erin voltou ao corredor. Os outros saíram com ela.

Um farfalhar pesado, como o sacudir de cortinas, acompanhado por um leve e distante guinchado, encheu o corredor. O cabelo na nuca de Erin arrepiou.

– Jordan?

– Eu também estou ouvindo – disse ele. – Ratos?

Nadia os empurrou para trás dela.

– Não.

Um passo adiante deles, Emmanuel farejou o ar, os ombros atirados para trás, o pescoço arqueado, e a cabeça levantada, como um cachorro.

Ou um lobogrifo.

Erin respirou fundo, mas só sentiu o cheiro de bolor e concreto molhado. O cheiro de que ele sentia que ela não conseguia sentir?

– O que é? – perguntou Jordan.

– Blasphemare – respondeu Nadia. – Os corrompidos.

– Outro lobogrifo? – Jordan moveu a pistola metralhadora para posição de disparar.

– Não. – Os olhos de Nadia faiscaram olhando para Erin, totalmente inumanos naquele momento. – Icarops.

Jordan pareceu confuso ao ouvir a palavra desconhecida.

Rhun esclareceu, em tom frio e calmo:

– Icarops são morcegos que foram corrompidos por sangue strigoi.

O coração de Erin se contraiu.

Ele estava falando sobre morcegos blasphemare.

Erin se lembrou do lobo monstruoso no deserto iluminado pelo luar – seu hálito fétido, seus dentes, sua forma musculosa. Desta vez, com asas. Ela estremeceu.

– Justo quando você pensa que não pode ficar ainda mais estranho. – Jordan acendeu a luz afixada ao cano da pistola metralhadora Heckler & Koch. – Como avançaremos?

– Depressa e silenciosamente; é o que eu recomendaria – disse Nadia.

Seguiram pelo túnel em direção à fonte do ruído.

Jordan manteve a arma fixa, apontada para a frente, preparado.

– As armas os matarão? – sussurrou Erin.

Emmanuel sufocou uma risada.

Aquilo não ajudou.

– Mesmo balas de prata apenas os enfurecerão – disse Nadia. – A faca é a melhor ferramenta.

Jordan se inclinou e puxou a faca Bowie da bainha na bota.

Erin também puxou sua faca.

– Não gosto da ideia de um morcego corrompido perto o suficiente para eu o matar com uma faca – disse Jordan. – Acho que acabaria com eles com um míssil balístico intercontinental.

– Quando eles vierem – advertiu Nadia, a voz baixa e o tom calmo –, deitem-se no chão. – Nós os manteremos longe de vocês na medida do possível.

– Não vai ser assim. – Jordan levantou a faca. – Mas obrigado pela oferta.

Erin concordava com Jordan. Não tinha nenhuma intenção de se deitar de bruços, esperando que um morcego lhe mastigasse a coluna. Preferiria correr o risco de pé, com uma faca na mão.

Os Sanguinistas agora estavam se movendo tão depressa que ela e Jordan tinham de correr para acompanhá-los.

Logo eles chegaram à interseção de outro túnel.

– Devemos ter chegado à base do losango – disse ela, projetando em sua mente um mapa do progresso deles como um diagrama.


Visto do ar, aquele cruzamento dos dois túneis devia parecer com um X gigante. Erin pensou: “Tomara que o X indique o local exato.”

– Este me parece o lugar mais provável para esconder alguma coisa – disse.

Ela lançou o foco da luz para o chão mais adiante, mas encontrou apenas concreto, sem nada demais. Virou a luz para as paredes e o teto. Nada indicava um lugar de esconderijo especial ou secreto naquela interseção.

Jordan compreendeu:

– Teremos que checar todos os próximos três corredores. Revistar cada porta.

Antes que eles pudessem dar mais um passo, contudo, os guinchados encheram o ar – vindo dos três túneis adiante.

Não havia para onde fugir.

5:29

O cheiro os alcançou primeiro, impelido pelas batidas fortes de centenas de asas. O fedor quase derrubou Jordan de joelhos – uma combinação medonha do ácido fétido de urina e da podridão inchada de cadáveres deixados ao sol. Ele lutou com as ânsias de vômito, se perguntando se aquele fedor seria tanto uma arma daqueles animais quanto seus dentes e garras, destinado a incapacitar a presa.

Ele se recusou a sucumbir.

Era mais do que sua vida que estava em perigo.

Com a mão trêmula, ele empurrou Erin atrás de si de modo que ela ficasse protegida por ele e pela tríade sanguinista. A luz da lanterna dela percorreu o túnel à esquerda, em busca de uma porta.

Não teve sorte.

Então a escuridão consumiu a luz, fluindo pelos túneis de todos os lados. Um punhado de fragmentos de sombra se separou do bando e avançou mais depressa. Eles voaram alto, acima da cabeça dos Sanguinistas, como se não tivessem nenhum interesse em criaturas sem batimentos cardíacos.

Mesmo assim, a prata lampejou no ar, cortando asas e corpos.

Choveu sangue negro.

Uma criatura atravessou o círculo de prata, mergulhando em meio a seus companheiros moribundos. Cegada pela luz ali, chocou-se contra a parede atrás deles e caiu no chão, virando-se imediatamente. O morcego podia ter ficado cego por causa da luminosidade, mas ainda podia ouvir.

Ele sibilou para Jordan, que mais uma vez protegeu Erin atrás de si.

Era do tamanho de um gato grande, com uma gigantesca envergadura de asas de dois metros. O bicho atacou Jordan, tomando impulso nas partas traseiras e no ângulo duro das asas. Os olhos do morcego eram vermelhos, faiscantes, e seus dentes, finos como agulhas, brilhavam na luz. Um guinchado agudo irrompeu de suas mandíbulas quando se arremessou sobre Jordan.

Jordan golpeou-o com a faca Bowie, cortando a garganta da criatura. Sangue negro jorrou do ferimento, mas o corpo do morcego se chocou contra ele, fazendo-o recuar um passo. Ele tinha quase decapitado o animal com um único golpe. Mesmo assim, asas coriáceas tentaram se fechar ao redor dele. Garras tentaram se enterrar em seu corpo. Mas a pele grossa do casaco o protegeu.

Finalmente a criatura morreu, e caiu para o lado.

Jordan se virou e viu uma fúria alada infernal se aproximando numa maré escura vinda de três direções, se interrompendo diante da tríade na frente. Cada Sanguinista estava diante de um túnel diferente.

Erin estava no centro deles, estampando uma expressão de horror.

Jordan abaixou-se ao lado dela, pronto para defendê-la com a mesma devoção do trio.

Os morcegos agora rodopiavam no alto num aglomerado sombrio de asas, garras e olhos faiscantes. A horda recuou por um momento, possivelmente sentindo o cheiro de seus irmãos imundos e ouvindo seus gritos.

Ainda naquele momento, os guinchados estridentes faziam cerrar os dentes até doerem.

Ele tentou encontrar um único animal para se concentrar, mas eles dardejavam de um lado para outro rápido demais.

Erin virou a lanterna para cima. Os morcegos fugiram da luz, voando na direção contrária, como se picados – e talvez a claridade os picasse.

– Vespertilionidae! – exclamou ela, arquejante, como se a palavra fosse um encantamento. – Morcegos vespertinos. Nunca os vi com mais de um décimo desse tamanho.

– Como você...

– Trabalho muito em cavernas – explicou ela.

A luz dela saltou para trás e para a frente. Cada vez que acertava os olhos de um morcego, o animal recuava.

– Eles nunca são agressivos assim.

Jordan apontou a submetralhadora para cima, a luz da arma também dispersando-os.

– É porque você trabalha em lugares com morcegos normais, não estes horrores híbridos.

– Eles estão se reagrupando cada vez mais depressa. – Erin falou como uma pesquisadora objetiva, mas sua voz estava uma oitava acima do normal. – Estão acostumando-se com a luz.

– Deixe-os vir. – Nadia puxou o cinto de corrente de elos de prata e o segurou com a mão enluvada. Ela apertou cada elo de prata como as contas de um rosário. – A espera está irritando meus nervos.

– Paciência – disse Rhun. – Vamos avançar mais um pouco, procurar uma porta, um lugar para nos abrigar. Talvez eles não ataquem.

– Se puder – sugeriu Erin –, procure uma porta do lado direito do corredor, algo que possa nos conduzir para o centro do losango odal.

Jordan tinha de admirá-la. Mesmo envolta numa capa negra de morte uivante, ela não perdia de vista o objeto. Ainda estava procurando o tesouro escondido no bunker.

Emmanuel deu um passo adiante, com a mão erguida. Um punhal brilhava em seu punho.

Nadia se moveu para o lado dele, o peso equilibrado, graciosa como uma bailarina.

Juntos, os cinco foram avançando lentamente pelo túnel, todos de olhos cravados nos morcegos aglomerados acima.

Jordan estava louco para disparar, mas temia ricochetes e também estava preocupado com a possibilidade de provocar os morcegos. Ele se lembrava da advertência de Nadia de que as balas não os matariam. A melhor chance deles seria alcançar...

Sem emitir um som, os morcegos mergulharam.

Mais uma vez, eles ignoraram os Sanguinistas e se concentraram no par no centro da tríade.

Miraram no rosto de Erin.

E no de Jordan.

Ao alto, Nadia girou o cinto. Jordan então viu que era um chicote de corrente de prata. Com sua velocidade e força sobrenaturais, ela empunhou a arma como se fosse um acessório simples. Morcegos que chegavam perto demais eram retalhados e despedaçados.

O chicote de Nadia apanhou um último retardatário nas costas cinzentas, arrancando a criatura do ar e despedaçando-o contra a parede de concreto.

Enquanto isso, Rhun e Emmanuel mantinham o caminho à frente aberto, continuando a lutar em meio às formas sombrias com lâminas de prata em ambas as mãos.

Jordan defendeu a retaguarda o melhor que podia com sua faca Bowie. Os guinchados muito estridentes faziam seus ouvidos doerem. A despeito da proteção ser um casaco de couro, tinha incontáveis arranhões nas mãos e no rosto.

Agora parecia que para cada morcego derrubado, dois outros apareciam.

Jordan agarrou outro morcego que tentou passar por ele, a pele do animal fria e seca, como a de um lagarto morto. Ele engoliu a repugnância e o golpeou com a faca. O morcego girou o pescoço e enterrou os dentes na parte carnuda de seu polegar. A dor lhe subiu pelo braço.

Ele bateu com a mão contra a parede de concreto uma, duas, três vezes, mas os dentes do morcego continuaram firmes. Ele não o soltava. Jordan sentiu os dentes arranharem o osso, ameaçando lhe arrancar o polegar. O sangue escorria para dentro da manga do casaco até o cotovelo. Mais um morcego atacou de raspão o lado de sua cabeça, abrindo uma ferida na têmpora.

Erin veio em sua ajuda; ela agarrou o morcego com os dentes enterrados em sua mão pelas orelhas. Enterrou a faca sob seu queixo e puxou a faca para baixo. Sangue negro espirrou na parede e os dentes finalmente o soltaram.

– Para a frente! – gritou Rhun a um passo de distância, que naquele momento pareceu uma distância impossível. – Há uma porta adiante! À direita!

Emmanuel seguiu adiante, encabeçando o grupo. Os morcegos atacavam o rosto, o pescoço e as mãos de Emmanuel. Mas pareciam relutantes em mordê-lo, não que o homem alto não recebesse ferimentos. Seu corpo inteiro pingava sangue. O cabelo louro estava negro de sangue.

Mais uma horda alcançou o braço de Jordan, que começava a se cansar. Presas se cerraram sobre seu punho. Eles não pareciam ter nenhum problema para mordê-lo.

A faca de Rhun lampejou no ar, cortando asas e pele, libertando-o.

Mas os morcegos não paravam.

O braço de Jordan tremeu, enfraquecendo – e mais morcegos vieram.


34

27 de outubro, 5:39, horário da Europa Central

Harmsfeld, Alemanha

Bathory se ajoelhou na margem do lago bávaro envolto pela neblina.

Seu dedo tocou nas marcas de arrasto deixadas na lama. Alguma coisa larga e pesada tinha sido empurrada pela margem ali – e recentemente. A água tinha penetrado e enchido os sulcos, mas não havia folhas nem agulhas de pinheiro naquela superfície, nem rastros de animais.

Levantando-se, ela gesticulou ordenando suas tropas ficarem para trás enquanto circulava pela área onde o barco havia entrado na água. Ela contou as pegadas, reconhecendo as botas militares americanas, um par de tênis Converse e três outras de botas feitas à mão, duas grandes e uma pequena. A julgar pela profundidade das impressões, ela diria duas mulheres e três homens.

Mas Bathory detestava fazer presunções.

Ela seguiu os rastros até a beira da água. Olhou para a neblina esgazeada, mas não conseguiu ver além de alguns metros, e amaldiçoou as brumas da montanha. Anteriormente, ela quase tinha perdido Rhun e seus companheiros, quando eles fugiram sob o manto da neblina. Até que o ronco do motor das motocicletas os entregara.

Ela se virou para seu segundo comandante.

– Você consegue ouvir alguma coisa, Tarek?

Ele inclinou a cabeça para o lado, tentando ouvir.

– Não há nenhum batimento de coração por lá.

Mas será que ele estava dizendo a verdade ou tentava impedi-la de encontrar o livro?

Magor?, perguntou ela silenciosamente.

O lobo raspou a pata no solo e baixou a cabeça. Também não ouvia nada. Ela bateu de leve no flanco dele. Seu veículo não tinha tido condições de acompanhar as motos velozes naquele terreno acidentado. Tinha sido necessário o faro de Magor para rastrear a presa deles até ali. Os sentidos apurados do lobo foram úteis a Bathory, que tinha dificuldade de ver em meio à neblina; só que ele, o lobo, também tinha uma limitação: não conseguia farejar na água.

Aquilo apresentava uma nova dificuldade.

– Tarek, encontre um mapa do lago.

Ele entregou a ela seu celular com uma imagem de satélite. O lago não tinha ilhas. Logo, ou os Sanguinistas tinham usado o barco para atravessar para o outro lado, ou estiveram procurando alguma coisa dentro da água. Um problema, uma vez que ela não tinha um barco, nem fazia ideia de onde roubar um. Procurar iria desperdiçar um tempo precioso.

Tarek rosnou alto, bem fundo na garganta, impaciente. Strigoi detestavam esperar. Os outros viram sua insolência e se mexeram de um pé para outro.

Ela o encarou até que ele se calou – então lhe deu a ordem:

– Desabilite as motocicletas. Mas fique ao alcance do ouvido.

Magor se agachou nas patas ao lado dela, os olhos dourado-avermelhados fixos sobre a água. Ela descansou a mão livre sobre sua cabeça, então fixou o olhar de novo na imagem na tela. Talvez ela pudesse descobrir por que os Sanguinistas tinham escolhido aquele lugar.

Deu um zoom na imagem de satélite e a girou para ver o terreno em volta do lago. A fotografia tinha sido feita no verão. O tom escuro do verde das árvores obscurecia o terreno. Não havia clareiras que parecessem significantes.

– As motos não funcionarão mais! – gritou Tarek.

– Bom – respondeu ela. Quando voltassem, os Sanguinistas não teriam nenhum meio de fuga rápida.

Ela fechou mais o zoom no mapa, seus olhos atraídos por uma longa linha reta de árvores com um tom mais claro de verde. As árvores eram diferentes naquele local. Será que aquilo significava água? Ou que as árvores eram mais novas? Ela conectou aquela linha com outra, e depois com outra, quase apagada demais para ser vista.

Era um canto do desenho retratado na medalha nazista. O resto parecia se estender para dentro do lago.

Então era por isso que eles tinham vindo para cá.

No olho de sua mente, ela completou a forma da runa. Na tela, passou a unha comprida ao redor da forma do losango. Então se deu conta de algo de grande interesse. Das duas pernas da runa, uma se estendia e acabava dentro do lago, mas a outra se estendia debaixo da terra e terminava na extremidade mais distante da colina do outro lado do lago. Os mapas do terreno mostravam que aquela área era muito arborizada. Não havia construções feitas pelo homem, apenas árvores e pedregulhos, mas aquilo não significava que não houvesse alguma coisa enterrada por lá.

Ela olhou para seu pequeno exército, um grupo forte o suficiente para cavar durante horas sem se cansar. Ela precisava arriscar. Olhou para além do lago, para as colinas distantes.

Se estivesse certa, aquela caverna subterrânea poderia ter uma porta nos fundos.


35

27 de outubro, 5:48, horário da Europa Central

Sob o lago Harmsfeld, Alemanha

Na câmara de eco dos cavernosos túneis de concreto, os sentidos de Rhun se confundiam e vacilavam, como se ele estivesse lutando dentro d’água. Os guinchados ultrassônicos ecoavam em seu crânio. A profusão de asas batendo e corpos se contorcendo, encharcados por uma chuva de sangue, tornava quase impossível ele se concentrar.

Mas ele lutou em meio ao ruído se concentrando em um rosto: assustado, ensanguentado e feroz.

Erin Granger.

Rhun estendeu a mão para ela e arrancou um morcego de cima de seu peito com toda a força de seu braço, quebrando ossos e esmagando a cabeça da criatura. Embora o casaco comprido de Erin continuasse a proteger todo o seu corpo, exceto as mãos e a cabeça, ele observou o bater frenético de seu coração e ouviu o arquejar de sua respiração. O grupo deles não conseguiria durar muito mais tempo.

Erin girou diante dele, lutando com outro icarops que havia se agarrado às suas costas tentando alcançar-lhe o pescoço.

A luz de sua lanterna ziguezagueou enquanto ela lutava, iluminando cortinas de morcegos acima.

Milhares.

Ele a agarrou, a atirou sobre as costas e a carregou até o umbral escuro da porta onde Emmanuel lutava com sua espada. Ao lado dele, Nadia dançava em meio a um tremeluzir de morte prateada.

– Traga o soldado para dentro! – berrou Rhun para Nadia.

Ele deixou Erin cair de costas com um tranco, deliberadamente, esmagando o icarops com um guinchado alto e um jato de sangue. O soldado atravessou escorregando no piso para o lado dela logo a seguir, protegido pelo casaco de couro. Ele rolou no chão para esmagar um morcego em seu ombro com a lanterna, então encerrou com um golpe violento com a coronha da arma.

Um estrondo reverberando atrás de Rhun sacudiu o ar, sinalizando que Nadia tinha batido a porta. Emmanuel apoiou as costas contra ela. O aposento era quadrado, pequeno, mas seguro no momento. Uma arcada aberta no fundo do aposento levava a outra câmara, mas Rhun não ouviu batimentos cardíacos, nem qualquer movimento. O ar era parado e cheirava a mofo, mesclado com guano velho.

Eles deveriam estar em segurança por alguns momentos.

Nadia acabou de matar o bando de morcegos que tinha conseguido entrar com eles.

A porta de madeira abafava o guinchado dos morcegos do lado de fora, mas as garras continuavam a arranhar e dentes a roer enquanto a horda lutava para alcançá-los.

Rhun compreendia aquele desejo. As batidas do coração de Erin continuavam rápidas, mais fortes. Ao lado dela, o coração do soldado ainda estava disparado. A fragrância de sangue que emanava dela e do soldado ameaçou dominá-lo.

Ele deu um passo para trás, se afastando do par que sangrava.

Erin se levantou e cambaleou para o lado de Jordan.

– Você está ferido?

Ele ainda estava sentado no chão.

– Apenas no meu orgulho – respondeu. – Me dê um minuto.

– Foram os Belial que fizeram isto? – perguntou Erin, virando-se para Rhun, trazendo consigo mais uma emanação do aroma de sangue.

Ele engoliu em seco e recuou mais um passo.

Nadia respondeu, limpando a corrente na coxa, antes de voltar a prendê-la ao redor da cintura como um cinto.

– Levaria anos para fazer um número tão grande de blasphemare. Não foram aqueles que caçaram vocês em Massada que fizeram estas criaturas.

Rhun cutucou um morcego morto com a ponta do pé.

– Ela tem razão. Alguns destes icarops têm décadas de idade.

– Então nós não estamos sozinhos aqui embaixo. – A voz grave de Emmanuel se sobrepôs às deles. – Um ou mais strigoi estão usando esta estrutura como ninho.

– Mais uma boa notícia – observou Jordan, apalpando o couro cabeludo. – Mas estas mordidas de morcego não vão nos transformar em strigoi, certo?

Erin apontou a luz de sua lanterna para ele. Sangue fresco escorria de suas mãos e têmporas. Cortes também marcavam a parte de cima do corpo dela.

Rhun se contraiu, sendo obrigado a desviar o olhar do sangue vermelho vivo. Ele falou para a parede:

– Não. Para se tornar um strigoi, você tem que ter todo o seu sangue sugado por ele, e depois beber o sangue dele. Ou dela. Vocês não correm esse perigo.

Nadia estendeu a mão para baixo e ajudou o sargento a se levantar, parecendo perceber que Rhun não ousava se aproximar mais dele.

– Seus ferimentos são sérios, sargento?

Jordan direcionou a luz para o corte em sua mão.

– Nada em que eu não possa dar um jeito com um Band-Aid grande. E você, Erin? Tudo bem?

– Quase. – Ela limpou as costas da mão no jeans. – Mas por que os morcegos não atacaram vocês três?

– Uma pergunta interessante. – O corpo de Emmanuel balançou para a frente enquanto os morcegos se chocavam e guinchavam contra a porta. – É possível que sejam os batimentos cardíacos de vocês. Ou talvez eles tenham sido treinados para atacar humanos.

Jordan fez uma careta.

– Morcegos treinados para atacar?

– Você preferiu o lobo? – Erin tirou o pequeno estojo de primeiros socorros do bolso dele.

– Talvez – disse ele. – Acho que sim.

A cabeça de Rhun estava girando por causa do cheiro de sangue dos dois. Ele deu um passo em direção à porta.

– Seu vinho – recordou-lhe Nadia.

Ele enfiou a mão na coxa, soltou o cantil e tomou um gole rápido, o suficiente para deixá-lo mais firme, mas, esperava, não o suficiente para desencadear uma penitência. O sangue de Cristo desceu queimando por sua garganta, o calor se espalhando por seu corpo – mas misericordiosamente as lembranças não vieram.

– Estenda a mão – disse Erin para Jordan. – Deixe-me ver.

O soldado apontou a lanterna para o ferimento em seu polegar.

– Acho que os dentes não pegaram as partes importantes. Mas dói como o diabo.

– Eles são obra do diabo – disse Emmanuel, ainda agachado contra a porta. Ele pegou seu rosário e começou a rezar.

Nadia também grudou as costas contra a parede, os olhos fixos nos morcegos no chão, também dando o melhor de si para ignorar as pequenas gotas de sangue fresco pingando no concreto, soando alto como chuva contra um telhado de zinco.

Era por isso que humanos não podiam ser incluídos em expedições de Sanguinistas. Rhun lutou contra a raiva, grande parte dela dirigida a Bernard, que os obrigara a trazer aquele par. O cardeal não sabia o que era a vida em campo.

– Você tomou uma vacina contra tétano recentemente? – sussurrou Erin.

– Claro, mas não tomei a contra raiva.

– Eles não são raivosos – disse Nadia, sem levantar o olhar.

Erin acabou de fazer o curativo no dedo dele.

– Por sorte é a sua mão esquerda.

– A descartável? – O soldado sorriu para ela. – E aquele corte no meu couro cabeludo?

– Baixe a cabeça.

Ela examinou o corte e concluiu:

– Sangra muito, mas não é profundo.

Rhun tentou não observar a gentileza com que ela limpou o ferimento nem a delicadeza com que suas mãos o fecharam com pensos hemostáticos adesivos. Cada movimento deixava claro que ela gostava do soldado.

– Agora é a sua vez – disse o soldado depois que ela acabou. Ele trocou de lugar com ela, pegando o estojo de primeiros socorros. – Deixe-me examinar você.

A mão de Jordan deslizou pelo rosto e pelo couro cabeludo de Erin, fazendo o pulso dela acelerar.

Ela recuou e levantou o braço entre eles.

– Ele só mordeu a minha mão.

Com um assentimento, Jordan rapidamente pôs um curativo no ferimento.

– Se vocês dois já tiverem acabado... – disse Emmanuel, irritado. – Será que poderíamos debater nossa próxima manobra?

Atrás dele, garras continuavam a escavar a porta.

Faltava pouco para os morcegos conseguirem entrar.

5:54

Enquanto Jordan observava, uma seção do tamanho de um punho se despedaçou e cedeu. Através da abertura, uma cabeça escabrosa surgiu à vista, guinchando, de orelhas empinadas, dentes rangendo.

Emmanuel golpeou-a com sua espada curta e a cabeça do morcego rolou no chão. Jordan ajudou Erin a se levantar e eles recuaram enquanto outro morcego enfiava a cabeça pelo buraco.

– O canalha roeu a porta – disse ele. – Isto é dedicação.

Rhun fez um movimento de cabeça em direção ao fundo escuro do aposento.

– Há um arco aberto lá atrás. Busquem abrigo no próximo aposento.

Jordan apontou a lanterna, vendo a entrada escura pela primeira vez. Ninguém sabia para onde o arco levaria, mas pelo menos não havia morcegos saindo por ele. E se Rhun não havia percebido nenhuma ameaça dali, para ele estava bom.

– Andem depressa – falou Emmanuel por entre os dentes cerrados à medida que mais partes da porta começavam a se desintegrar.

Nadia e Rhun foram ajudá-lo.

Jordan e Erin atravessaram a arcada e se detiveram ali, temerosos de avançar sozinhos. Jordan lançou a luz de sua lanterna pelo aposento e descobriu que os sentidos de Rhun estavam certos. O arco de fato levava a outro aposento – um espaço grande e circular, vazio e cavernoso –, mas, à medida que ele varreu com a luz a parede curva, uma terrível verdade se tornou evidente.

Não havia para onde ir.

Era um beco sem saída.

5:55

– Daqui não há saída! – gritou Erin para Rhun.

Os olhos dela lacrimejaram por causa do cheiro forte de amônia no aposento.

Guano de morcego.

Erin deu alguns passos para dentro, seguida por Jordan. Sua lanterna iluminou um recinto redondo com teto em domo. Dois detalhes imediatamente chamaram sua atenção. A câmara tinha o mesmo formato e tamanho que a tumba em Massada. Mas ali fino mármore branco cobria todas as superfícies: o piso, as paredes e o teto.

Ela imaginou que deveria ter sido um belo espaço algum dia, mas agora o guano escuro manchava as paredes e se empilhava nos cantos.

Erin também reparou em um segundo detalhe, seu coração batendo mais depressa, de novo visualizando o desenho da runa odal em sua mente.

– O que há de errado? – gritou Rhun em resposta.

Erin olhou para trás. Será que ele havia sentido seu entusiasmo, a ligeira agitação?

Ela respondeu, desta vez não se dando ao trabalho de gritar, sabendo que ele a ouviria bem se falassem em voz normal.

– Creio que esta câmara fica exatamente no centro da parte do losango da runa odal.

O caminho deles até ali reluziu no olho de sua mente.


Rhun compreendeu.

– Procure pelo livro. Nosso tempo está se esgotando! Se não pudermos defender esta porta, talvez tenhamos que fugir de volta para o túnel e buscar um abrigo mais seguro.

Tendo recebido a permissão dele e em resposta à urgência em sua voz, ela entrou depressa, sua atenção já atraída para o objeto mais dramático, o item mais alto no aposento: uma cruz com o Cristo, chocantemente emaciado, em tamanho natural, pregado nela, esculpido em mármore branquíssimo. Cada detalhe do corpo tinha sido retratado de forma impecável, dos músculos formados com perfeição à profunda ferida no flanco. Ao contrário de Cristo, contudo, aquela figura estava nua, sem cabelo, como um bebê recém-nascido, dando à imagem uma beleza estilizada, uma mistura de inocência divina e agonia humana.

Ela moveu a luz para acompanhar o olhar de sua cabeça abaixada. A escultura olhava para um alto pedestal de pedra com tampo espalmado. Erin conhecia aquela forma, tinha acabado de vê-la poucas horas antes. Era igual ao broche da Ahnenerbe que vira no escritório da Leopold, o que retratava uma coluna sustentando um livro aberto.


O monge tinha dito que o emblema que o pedestal representava era uma meta importante para a Ahnenerbe: documentar a história e a herança arianas. Mas ele também dissera que podia simbolizar “um grande mistério, algum livro de ocultismo de grande poder que estivesse com eles”.

Sem fôlego, Erin sabia que estava olhando para a origem daquele símbolo da Ahnenerbe.

Pela maneira como o tampo do pedestal estava inclinado em direção à estátua e na direção oposta àquela em que ela se encontrava, era impossível dizer se havia alguma coisa ali.

– Deveríamos ficar junto à porta – advertiu Jordan. – Para o caso de termos que sair correndo.

Ela não se deteve nem hesitou. Nada a impediria de chegar àquele pedestal e ver o que havia lá – possivelmente um livro escrito com o sangue de Cristo.

Jordan praguejou baixinho e a seguiu.

A cruz e a coluna estavam sobre uma plataforma, uma base quadrada de mármore com um metro e oitenta de largura. O fato de que ambos os objetos tivessem sido postos em um palco demonstrava a importância deles. Mas por que os nazistas teriam erigido um crucifixo em tamanho natural? Será que estavam guardando algo que considerassem sagrado e santo?

Erin precisava descobrir.

Ela saltou para cima do palco, se encolhendo quando os pés esmagaram pedaços de pedra partida. Tomando cuidado para não pisar em mais nada, ela deu a volta no pedestal.

Quando chegou ao outro lado, prendendo a respiração, a luz de sua lanterna iluminou a superfície superior do púlpito de mármore.

Então o coração dela se contraiu.

Estava vazio.

– O que você encontrou? – perguntou Jordan da base da plataforma, mas seu rosto continuava virado para o vestíbulo, onde os Sanguinistas lutavam para manter os morcegos a distância.

Erin deu um passo adiante e passou as pontas dos dedos na superfície vazia do púlpito. Sentiu a endentação ao longo do tampo. Como se alguma coisa devesse se encaixar ali, um objeto com as dimensões aproximadas descritas por Rhun.

– O livro esteve aqui – balbuciou ela.

– O quê? – perguntou Jordan.

Derrotada, ela recuou, seu calcanhar esmagando mais um pedaço de pedra no piso. Olhou para baixo, virando a lanterna. Fragmentos de rocha cinzenta jaziam espalhados ao redor do pedestal. Agora concentrada, ela viu que não eram de pedra natural, mas algo feito pelo homem. Ajoelhou-se e cuidadosamente pegou uma lasca.

A maioria das outras espalhadas no chão tinha menos de dois centímetros e meio de espessura e era do tom de cinzas. Ela pegou um pedaço maior e o rolou na palma da mão, examinando o material.

Cinza. Concreto. Se for antigo, provavelmente era cal misturada com cinzas.

Poderiam aqueles fragmentos datar da época do Evangelho de Sangue? Para saber com certeza, ela precisaria mandar analisar o material em algum outro lugar, mas pelo momento ela improvisou.

Raspou a unha do polegar contra um canto e cheirou a ponta raspada.

Um perfume picante conhecido lhe subiu pelas narinas, quase fazendo seus olhos lacrimejarem.

Incenso.

O coração dela acelerou. Houvera vestígios de incenso na tumba em Massada, bastante comum em sepulcros antigos.

Mas não em bunkeres nazistas.

Erin lutou para manter a compostura, chutando-se mentalmente por ter pulado em cima da plataforma como um touro pesado, especialmente depois de passar anos ralhando com seus alunos pelas menores violações à integridade de um sítio.

Ela virou a lasca. A lasca era mais ou menos triangular, como o canto de uma caixa. Imobilizada onde estava, como se estivesse agachada em um campo minado, ela examinou as outras lascas no chão. Havia três outros triângulos ali perto, bem como outros cacos.

E se os triângulos fossem cantos?

Se fossem, talvez tivessem sido parte de uma caixa.

Uma caixa que poderia ter contido um livro.

Ela levantou o olhar para o púlpito vazio. Será que os saqueadores russos tinham encontrado o que estivera escondido ali? Arrebentado e aberto o que tinham encontrado e roubado o que estava dentro.

Desesperando-se, ela olhou para o crucifixo em busca de respostas. A figura na cruz era esquelética como uma vítima de campo de concentração, mais magra que qualquer representação de Cristo que ela jamais tivesse visto. Pregos negros prendiam cada mão ossuda na cruz, e um cravo maior havia sido enterrado através dos pés unidos da imagem. Tinta cor de vinho Borgonha reluzia ao redor das chagas. Ela moveu a luz para cima, atraída pelo rosto quase sem feições, os olhos e a boca levemente demarcados por cortes, as narinas ainda mais finas – ali estava retratada uma reprodução perfeita de sofrimento infinito.

Erin teve um impulso irracional de tirar a estátua da cruz, de confortar aquela figura.

Então uma dor penetrante irrompeu em sua mão. Ela a levantou até a luz, dando-se conta de que tinha cortado o polegar no caco por ter cerrado a mão com força demais.

Recordada de seu dever, ela deu as costas para a cruz e começou a catar os pedaços partidos da plataforma, recolhendo-os e enfiando-os nos bolsos. Reparou que alguns tinham algo escrito em um dos lados, mas teria de decifrá-los mais tarde.

Jordan observou o trabalho de Erin e começou a subir no pedestal para se juntar a ela.

– Não! – advertiu ela, temerosa de mais destruição das pistas deixadas ali pelos russos.

Com tempo suficiente, ela poderia...

O grito de Rhun chegou a eles, cheio de desesperança:

– Os morcegos conseguiram destruir a porta!


36

27 de outubro, 6:04, horário da Europa Central

Sob o lago Harmsfeld, Alemanha

Rhun fugiu da frente da tempestade furiosa às suas costas.

Asas sovavam seu corpo; garras e dentes rasgavam sua carne e roupas.

Ele atravessou correndo a porta em arco, seguido de perto por Nadia e Emmanuel. A horda de icarops passou trovejando por ele, impelida por asas poderosas. A massa voou para cima e encheu o teto em abóbada do aposento de sombras esvoaçantes.

Os olhos penetrantes de Rhun abarcaram a câmara com um olhar, reconhecendo uma imagem espelhada da tumba de Massada, uma ruína imunda daquele espaço sagrado. A fúria ardeu dentro dele, mas o medo a apagou.

No centro do aposento, viu Erin agachada em uma plataforma atrás de um pedestal, o rosto virado para cima, para os morcegos. Seu guardião, Jordan, saltou sobre a plataforma, pronto para protegê-la. Um gesto fútil. O soldado não podia ter esperança de derrotar o número de icarops reunidos ali.

Nenhum deles podia.

Como que sabendo disso, a horda de icarops desceu em massa para o par exposto.

– Arrêtez...!

A única palavra de comando irrompeu em meio aos guinchos dos morcegos e os fez recuar de seu ataque. A horda negra se abriu ao redor de Erin e Jordan e com um giro se afastou, recuando ao longo das paredes manchadas e do teto. Lá, garras afiadas buscaram pontos de apoio. Asas se dobraram sobre o pelo, e os icarops se penduraram em todas as superfícies. Olhos oleosos vermelho-negros olharam para baixo.

Com a primeira inalação, o fedor golpeou Rhun. Ele inalou de novo. Outro cheiro pairava sob o cheiro imundo do sangue dos icarops e o cheiro ácido de seus dejetos.

Um cheiro conhecido.

Do outro lado da câmara, Jordan vasculhou o aposento, os ombros curvados contra a massa ondulante acima.

– Quem gritou?

A resposta veio de Erin, que apontou para o crucifixo:

– Olhe!

Lá na cruz, a escultura de mármore se moveu. A cabeça se levantou, revelando um rosto arruinado, a pele esticada sobre ossos pontiagudos. Erin levantou a mão para cobrir a garganta, como se ela soubesse o que estava preso ali.

Nadia se deteve imóvel ao lado de Rhun e Emmanuel cambaleou um passo para trás.

Os Sanguinistas também sabiam.

Como que obedecendo a uma ordem silenciosa, Rhun avançou rapidamente, flanqueado por Emmanuel e Nadia.

Na cruz, as pálpebras da imagem se abriram, fendas ásperas naquele rosto coriáceo. E daquelas fendas uma centelha de vida ainda brilhava – o pouco que restava. O olhar azul vidrado encontrou Rhun e se deteve nele com uma expressão de pesar infinito.

Aqueles olhos desesperados não deixavam dúvida que quem pendia daquela cruz terrível.

Rhun preencheu um pouco o rosto, coroou com cabelo grisalho, fez os lábios afundados sorrirem com o conhecimento de infindáveis eras. Em sua mente, ele ouviu a voz outrora vigorosa explicando os mistérios da história, do destino dos Sanguinistas. Em outros tempos, aquele corpo tinha abrigado um padre poderoso.

O padre Piers.

Um amigo ao longo de séculos.

O pesquisador havia desaparecido setenta anos antes, durante uma expedição para encontrar o Evangelho de Sangue. E ele não retornou, de forma que a Igreja o havia declarado morto. Mas a verdade, ao que parecia, era que os nazistas o haviam capturado, e depois o tinham abandonado ali para sofrer ao longo de décadas.

Emmanuel caiu de joelhos em súplica.

– Padre Piers... como é possível...?

A cabeça do velho padre caiu frouxa, como se ele não conseguisse mais manter o crânio pesado erguido. Olhos baços encontraram os de Emmanuel.

– Mein Sohn? – balbuciou roucamente, a garganta claramente desabituada a formar palavras.

Meu filho.

Lágrimas escorriam pelo rosto de Emmanuel, recordando Rhun de que o padre Piers havia encontrado e recrutado Emmanuel para a Ordem dos Sanguinistas. Ele era tanto o pai de Emmanuel quanto seu salvador.

Emmanuel estendeu a mão para o grande prego que havia sido cravado através dos pés nus do padre. Mais um prego estava cravado na palma de cada mão. Gotículas secas de sangue negro formavam cascas ao redor das feridas.

– Cuidado. – Nadia estava de pé junto deles. – Ele foi preso com prata.

Emmanuel puxou o prego grosso que prendia os pés do padre, queimando os dedos.

Nadia o puxou para trás.

– Ainda não.

Ele sibilou para ela, arreganhando os caninos.

– Olhe para ele. Será que já não sofreu o suficiente?

– A questão – disse Nadia em voz calma – é por que ele sofreu? Quem o pregou aqui nesta cruz e por quê?

– Libri... verlassen... – Parecia que Piers tinha tanta dificuldade com a língua quanto tinha com a mente, falando aos tropeções em várias línguas ao mesmo tempo que a loucura dançava por trás de seus olhos vidrados.

Rhun olhou fixamente para a ruína que era o velho estudioso Sanguinista.

– Tirem-no daí!

Nadia parecia pronta para objetar, mas Rhun se ajoelhou e delicadamente sustentou os pés do velho padre. Emmanuel tirou o cravo dos pés do padre e o arremessou longe. Então levantou-se, esticando-se para alcançar-lhe as mãos.

Piers permaneceu desligado do que se passava. Os olhos dele rolaram em direção ao teto arqueado e seus enfeites negros.

– Meine Kinder... eles trouxeram vocês. – Um tom exultante perpassava suas palavras frágeis. – Para me salvar...

O rosto de Nadia endureceu. Ela olhou para a direção do olhar do padre alquebrado – para a horda de icarops.

– Foi o padre Piers quem criou estas criaturas diabólicas.

– Blasphemare? – Os dedos de Emmanuel hesitaram sobre o prego que trespassava a palma da mão esquerda de Piers. – Mas isto é proibido.

Rhun estava menos interessado em blasfêmia do que em respostas.

– Ele não teve escolha. Deve ter tido que se alimentar para sobreviver todas aquelas décadas sozinho na cruz. O que mais ele teria aqui para lhe servir de alimento senão os morcegos?

Ele imaginou o padre sugando o pouco sustento que podia dos residentes daquela tumba, finalmente dobrando-os à sua vontade à medida que as décadas se passavam, transformando-os para servi-lo, usando a companhia deles para ancorar o pouco de sanidade que podia conservar em meio àquele isolamento nas trevas.

Há muito, muito tempo, numa ocasião Rhun quase havia se matado de fome numa penitência. Ele se lembrava da dor e não podia culpar Piers por criar os icarops de modo a sobreviver. Tinha sido a única maneira.

– Há quanto tempo ele está aqui? – O rosto de Erin havia empalidecido.

– Desde que os nazistas o deixaram, imagino. – Nadia não se moveu para ajudar.

Rhun arrancou o prego da palma da mão direita de Piers enquanto Emmanuel retirava o da esquerda. Sangue escuro jorrou da palma da mão do velho. Rhun tentou ser delicado. Restava pouco sangue ao padre ferido para perder.

– O que ele fez para merecer este destino? – perguntou Jordan.

– Esta é a pergunta relevante. – Nadia se postou diante de Piers e olhou para seu rosto emaciado. – O que o senhor fez para acabar crucificado aqui, padre?

A lembrança da tumba de Massada trespassou Rhun: a garota strigoi pregada na parede por flechas de prata, a velha máscara de gás esmagada sob as rochas. Será que Piers havia sido quebrado sob tortura? Teria ele contado aos nazistas onde encontrar o livro, que salvaguardas esperar, do que eles precisariam para vencer as proteções de milênios e se apoderar dele?

Piers dava um gemido choroso a cada movimento do prego. Rhun conhecia por experiência própria a dor que a prata causava. Piers havia suportado a agonia abrasadora por quase setenta anos. Como Jesus, tinha feito sua penitência na cruz.

O último grande prego se soltou, e Emmanuel o atirou do outro lado da câmara. Rhun sustentou o peso de Piers contra o ombro.

Emmanuel despiu a batina úmida, revelando o traje de proteção de couro, e cobriu o velho padre com a batina. Rhun o baixou até o chão. Emmanuel retirou seu frasco de vinho, mas Nadia o deteve.

– Ele não é mais puro – disse. – O vinho lhe faria mais mal do que bem.

Emmanuel tomou Piers nos braços e o embalou.

– O que eles fizeram com o senhor?

– Blut und bone – balbuciou o velho. – Libri.

Ao lado dele, Erin se empertigou.

– Libri? Esta é a palavra grega para “livro”. O fato de ele ter sido crucificado aqui tem alguma coisa a ver com o Evangelho?

Rhun sabia que sim.

Erin estendeu a mão na direção de Rhun. Na palma da mão havia uma lasca de pedra acinzentada.

– Encontrei esse fragmento de massa de calcário e cinzas, uma forma antiga de concreto, em pedaços ao redor do pedestal. É possível que o Evangelho tenha sido encerrado em um bloco desta pedra e que alguém o tenha retirado, exatamente aqui nesta câmara. Poderia o padre Piers ter sido crucificado aqui como o seu guardião, como a garotinha em Massada?

– Só ele sabe – respondeu Rhun. – E eu não sei o que resta da mente dele.

– Então cure-o.

– Este tipo de medida pode estar além das minhas possibilidades, além até das possibilidades da Igreja.

Rhun pegou a lasca e a examinou. As pontas de seus dedos, bem como seus olhos, sentiram as letras da escrita em aramaico impressas em um dos lados. Se o seu coração ainda batesse, teria acelerado.

O livro estivera ali. Alguém o havia encontrado e removido sua cobertura. Mas será que o teriam aberto?

Isso não era possível. Se tivesse acontecido, os ladrões do céu teriam reclamado seu poder. Mas quem o tinha levado?

Ele precisava de uma resposta – e Erin estava certa.

Só uma pessoa podia fornecer a resposta.

– Padre Piers – entoou, tentando arrancar-lhe um momento de lucidez. – O senhor pode me ouvir?

Os olhos do velho se fecharam.

– Orgulho... orgulho vergonhoso.

Do que Piers estava falando? Será que se referia a hubris dos nazistas, ou se referia a algo muito pior?

– Como os nazistas capturaram o senhor? – pressionou Rhun. – O senhor contou a eles sobre o livro?

– Es ist noch kein Buch – sussurrou Piers através dos lábios pálidos.

– Não é um livro – traduziu Jordan.

– Eles devem tê-lo torturado, Rhun – disse Emmanuel. – Do mesmo modo como você está fazendo agora. Temos que tratá-lo e curá-lo antes que você o perturbe com perguntas.

– Ainda não – disse o padre Piers. – Ainda não é um livro. Nadia lançou um olhar para as paredes de mármore como se elas contivessem janelas.

– O nascer do sol virá brevemente. Vocês o sentem?

Rhun assentiu. O corpo dele havia começado a enfraquecer. A graça de Cristo lhes permitia caminhar sob o sol do dia, mas por causa da mácula que tinham, eram sempre mais fortes durante a noite.

– A ideia do nascer do sol me agrada – disse Jordan.

– Não podemos levar Piers para o novo dia que nasce – disse Nadia. – Ele não está mais abençoado pelo sangue de Cristo. O sol o destruiria.

– Então vamos ficar escondidos aqui. – Jordan lançou um olhar inquieto para o teto. – Não é um hotel cinco estrelas, mas enquanto os morcegos estiverem calmos, acho que podemos...

– Ele vai morrer antes do cair da noite – disse Emmanuel, e gesticulou em direção à horda de icarops farfalhando nas paredes. – A menos que ele se alimente destas malditas criaturas.

– E eu não permitirei isto – disse Nadia. – É pecado.

– E eu não abandonarei Piers para morrer em pecado. – Emmanuel puxou a faca e a ameaçou.

Rhun se meteu entre eles e levantou as mãos.

– Se nos apressarmos, ainda poderemos alcançar a capela em Harmsfeld. Poderemos santificá-lo lá. Depois disso, ele poderá beber o sangue de Cristo de novo.

– E se ele não puder ser santificado? – Nadia praticamente cuspiu as palavras. – E se ele não tiver sido nenhum peão dos nazistas...

Rhun levantou a mão para silenciá-la, mas ela se recusava a se calar.

– E se ele tiver ido procurá-los?

– Veremos – disse Rhun. Nadia tinha posto em palavras seus piores temores, de que o orgulho intelectual de Piers o tivesse induzido a formar uma aliança com os nazistas. Rhun conhecia muito bem aquele orgulho – e para onde podia conduzir até um devoto Sanguinista.

– Em formação – ordenou ele aos outros. – Temos que chegar à Igreja de Harmsfeld antes do nascer do sol.

Por força do longo hábito, Emmanuel e Nadia assumiram suas posições, Emmanuel na frente, Nadia à sua esquerda. Rhun trocou um olhar com Jordan e fez um gesto de cabeça na direção de Piers.

Saíram da câmara profanada, atravessaram o vestíbulo e entraram de volta no túnel escuro de concreto.

Jordan pegou Piers no colo, ainda envolto na batina de Emmanuel, e seguiu com Erin logo atrás.

– Ich habe Euch betrogen – sussurrou Piers. – Stolz. Buch.

Rhun ouviu Jordan traduzir:

– Eu traí todos vocês. Orgulho. Livro.

Emmanuel parou e olhou para trás, para Piers. Lágrimas brilhavam em seus olhos. Rhun tocou em seu braço. Piers tinha praticamente admitido tudo naquele instante, que ele traíra a ordem em favor dos nazistas.

Rhun deu as costas a ele, tentando compreender. Teria o desejo devorador de seu amigo de ser o primeiro a encontrar o livro o levado a fazer sua aliança funesta com a Ahnenerbe? Teriam os alemães o traído no final? Rhun se lembrou das palavras confusas de Piers: Não é um livro. Será que aquelas palavras indicavam que os nazistas haviam fracassado ali de alguma forma? Como punição, será que tinham crucificado Piers?

Qualquer que fosse o resultado, se Piers tivesse ido até ali por livre e espontânea vontade, eles talvez nunca mais pudessem santificá-lo o suficiente para que ele voltasse ao seio da Ordem Sanguinista.

Piers inclinou a cabeça para a esquerda quando eles alcançaram a encruzilhada de corredores.

– Sortie.

A palavra francesa para “saída”.

Erin devia ter compreendido. Ele estava tentando indicar-lhes um caminho de saída.

Ela se ajoelhou e desenhou a runa odal na poeira com o dedo. Então apontou para ela.


Jordan inclinou Piers de modo que ele pudesse ver a runa. O velho estendeu um dedo fino e ossudo para a perna esquerda da runa. Eles tinham entrado pela direita.

– Existe uma segunda saída – disse Erin, parecendo esperançosa. – Na outra perna da runa. Deve ser como estes morcegos entravam e saíam.

Piers fechou as pálpebras brancas como papel, e sua cabeça caiu de volta no ombro de Jordan.

– Se nos apressarmos – disse Rhun –, talvez consigamos levá-lo para a capela de Harmsfeld antes do nascer do sol.

Mas, mesmo assim, um temor consumia Rhun.

Será que já era tarde demais para salvar a alma do padre Piers?


37

27 de outubro, 6:45, horário da Europa Central

Montanhas de Harmsfeld, Alemanha

Bathory puxou o casaco de pele de zibelina ao redor de seu corpo esguio e esperou na floresta escura. A leste, o céu já havia começado a empalidecer. Pelos olhares incomodados de suas tropas inquietas naquela direção, estava claro que eles sabiam que só dispunham de 15 minutos antes do nascer do sol.

O ar esfriara bastante, como se a noite procurasse concentrar seu frio contra o dia que se aproximava. A respiração quente de Bathory se elevava de seus lábios – do mesmo modo que a do lobo que arquejava, soprando ar branco para a floresta negra. O mesmo não poderia ser dito do resto de suas tropas. Eles permaneciam tão frios e imóveis quanto a floresta enquanto esperavam, mas nem todos estavam igualmente calados.

– Temos que ir. Agora. – Tarek apareceu ao lado dela, a boca contraída num rosnado.

O irmão dele, Rafik, se mantinha colado às pernas de Tarek, seus lábios ainda queimados e com bolhas depois do momento de intimidade que Bathory tivera com ele.

Bathory sacudiu a cabeça. Até aquele momento nem uma palavra tinha sido enviada via rádio pelo vigia que ela deixara junto das motocicletas. Os Sanguinistas não tinham voltado por aquele caminho – e ela não esperara que voltassem. Tinha certeza de que onde estava seria o lugar onde os coelhos deixariam a toca.

Ela sabia, sentia aquela certeza lá dentro de suas entranhas.

– Nunca siga um animal para dentro de sua toca – advertiu ela.

Bathory manteve os olhos cravados na porta do bunker. Magor havia descoberto um buraco e se aninhado entre alguns pedregulhos. Era maior que uma toca de texugo, mas os sentidos mais aguçados dos homens de Tarek revelavam a fonte do odor que atraíra seu lobo.

Icarops.

Ela imaginou o bando imundo saindo daquele buraco a cada noite. Alguma coisa devia ter criado aquela horda, alguma coisa que ainda poderia estar lá embaixo.

Os homens começaram a trabalhar para alargar o buraco, cavando e removendo a terra que os nazistas tinham usado para enterrar a porta oculta. Depois que foi desobstruída, eles descobriram o lugar onde os morcegos tinham enfiado as garras ao redor da borda da escotilha para fazer seu passeio noturno.

Com o caminho desbloqueado, seria fácil empurrar e abrir a escotilha, um convite para que as presas de Bathory fizessem sua fuga por ali.

– Nós os mataremos assim que passarem pela porta – disse ela.

– E se eles estiverem esperando pelo amanhecer? – Os olhos de Tarek varreram o céu a leste, já se tornando cinza-aço.

– Se não tiverem saído até o nascer do sol, nós entraremos no bunker – prometeu ela. Seus homens lutariam melhor se soubessem que tinham que entrar e tomar o bunker ou morrer. – Mas não até o último momento.

Ela estava entre seus seis besteiros, perfilados imóveis como rochas, três de cada lado, com as flechas de prata em posição. As flechas maiores de uma besta disparavam uma quantidade mais mortífera de prata que uma simples bala; além disso, as flechas permaneciam onde perfuravam, em vez de passar através do buraco, sem causar dano.

Ela não pretendia correr riscos com Rhun Korza.

Tarek virou a cabeça para a porta. Todas as suas tropas estavam em alerta.

Ela não tinha ouvido nada, mas sabia que eles deviam ter ouvido.

A porta do bunker se moveu para a frente, abrindo-se ao longo do caminho que eles cuidadosamente haviam desobstruído para ela.

Três Sanguinistas saíram para a floresta, Rhun Korza entre eles.

Bathory contou mais três vultos atrás deles, um carregado por outro, aparentemente ferido. Mas aquilo não fazia nenhum sentido – e ela não gostava de surpresas. Apenas cinco tinham saído da abadia, e rastros de apenas cinco tinham sido encontrados na beira da água.

Assim, quem era esse sexto?

Teria Korza encontrado alguém vivo no bunker?

Então ela se lembrou dos icarops.

Seria ele o misterioso residente do bunker?

Ela manteve a mão erguida bem alta, dizendo a seus homens para esperarem que todos tivessem saído do bunker. Mas os últimos três ficaram lá dentro, claramente desconfiados.

Korza olhou para o chão e se ajoelhou, claramente observando o local onde os homens de Bathory tinham revolvido o solo. Antes que quaisquer outras suspeitas pudessem ser levantadas, ela baixou o braço rapidamente.

As bestas assobiaram com a vibração sonora de cordas retesadas. A salva atingiu o Sanguinista na dianteira, pregando-o no grande tronco de um velhíssimo pinheiro-negro.

Ele lutou para se libertar, a fumaça já subindo de seus ferimentos para o ar frio da noite.

Os arqueiros dispararam outra salva, todas as flechas acertando no alvo, perfurando o peito, a garganta e a barriga.

O ataque deu cabo de um padre.

Agora era preciso matar Korza.


38

27 de outubro, 6:47, horário da Europa Central

Montanhas de Harmsfeld, Alemanha

– Fiquem aí dentro! – gritou Rhun, mergulhando em meio a uma chuva mortal de prata.

Uma flecha de besta acertou seu braço, enterrando-se no antebraço. A prata queimou profundamente sua carne ao toque. Ele tinha percebido o perigo assim que encontrara a terra recém-revolvida ao pé da porta – mas havia reagido lentamente demais.

Alguém tinha esperado de emboscada.

Alguém que havia esperado lutar contra os Sanguinistas.

Ele alcançou o abrigo de uma grande tília e rolou para trás do tronco.

Em segurança atrás do tronco largo, arrancou a flecha. Mais sangue do que ele podia se dar ao luxo de perder jorrou do ferimento, tentando purgar seu corpo da prata.

Ele se dobrou apoiado na árvore e olhou para a esquerda.

Como havia esperado, Nadia tinha alcançado o abrigo de um pedregulho ao lado da porta.

Mas não Emmanuel.

Uma dúzia de flechas de prata o havia pregado contra um pinheiro a alguns metros de distância. Fumaça subia fervilhando de seus ferimentos, envolvendo-o numa mortalha fantasmagórica constituída de sua própria essência sofredora.

Rhun sabia que não poderia alcançá-lo – e mesmo se pudesse, a morte já havia se apoderado de seu velho amigo e irmão de batina.

Emmanuel também sabia disso. Ele estendeu um braço para trás, em direção ao bunker.

A voz de Piers soou rascante vinda da escuridão:

– Meu filho.

– Eu perdoo o senhor – sussurrou Emmanuel.

Rhun teve a esperança de que Piers tivesse ouvido as palavras e lançou uma prece silenciosa para seu amigo moribundo.

Então Emmanuel desfaleceu, apenas as flechas cruéis mantendo-o erguido.

Atrás do pedregulho, Nadia esfregou as costas da mão contra os olhos. Como Rhun, ela devia aceitar que Emmanuel estivesse morto, mas com aquele pesar veio uma pequena lasca de alegria. Ele havia encontrado o fim mais honroso para qualquer Sanguinista: morte em combate.

Emmanuel havia libertado sua alma.

Quando terminou sua prece, a atenção de Rhun se voltou para o som de um único coração humano batendo em meio à floresta. Havia um ser humano entre os agressores strigoi, revelando a verdadeira natureza daqueles que os atacavam.

Os Belial.

Mas como eles tinham vindo encontrar Rhun e seus companheiros ali?

E quantos estavam escondidos na floresta?

Atrás dele, os batimentos cardíacos de Erin e Jordan ecoavam vindo do bunker, onde permaneciam abrigados com Piers. Eles estavam em segurança, pelo menos por mais um momento.

Rhun estendeu a mão para puxar seu cantil no bolso da perna. Precisava do sangue de Cristo para substituir o que havia acabado de perder. Sem ele não poderia continuar a combater. Mas ao beber aquilo, se arriscava a ser lançado no passado, indefeso e exposto.

Apesar disso, não tinha escolha. Levantou o cantil e bebeu.

O calor desceu ardente por seu corpo, fortalecendo-o, fazendo recuar a queimação da prata com a pureza do fogo de Cristo. As bordas de sua visão se tingiram de carmesim.

Ele lutou contra a ameaça iminente da penitência.

Elisabeta nos campos. Elisabeta junto à fogueira. A raiva de Elisabeta.

Ele cerrou a mão ao redor de sua cruz peitoral, suplicando à dor que o mantivesse presente. O mundo se tornou uma mistura cheia de sombras do passado e do presente. Imagens lampejaram:

... uma garganta longa e nua.

... um tijolo com argamassa fechando uma parede.

... uma mocinha com uma mancha vermelha como framboesa no rosto e gritando silenciosamente.

Não.

Ele lutou para se concentrar na floresta, na dor da cruz queimando a palma de sua mão, nos sons de gravetos se partindo e galhos estalando à medida que os strigoi irrompiam de seu esconderijo e avançavam em direção ao bunker. Rhun arriscou um olhar ao redor do tronco, capturando movimentos rápidos demais para os olhos humanos.

De seis a dez.

Ele não tinha certeza.

Jordan e Erin não teriam nenhuma chance contra eles. Ele levantou sua arma para posição de tiro com as mãos trêmulas.

Mais imagens o assaltaram, recordando-o de seu pecado, deixando-o impotente quando precisava estar no auge de sua força.

... um jorro de sangue sobre lençóis brancos.

... seios brancos sob o luar.

... um sorriso tão radiante quanto a luz do sol.

Através das visões espectrais de seu passado, ele apontou e disparou, acertando dois strigoi à direita, cada um bem no joelho, derrubando-os, pelo menos retardando-os.

Nadia acertou outros dois à esquerda.

Atrás dele, a submetralhadora de Jordan crepitou enquanto o soldado disparava e metralhava da porta do bunker. Ele ouviu o pá-pá-pá da pistola de Erin.

A primeira onda de strigoi se espalhou para o lado, tentando apanhá-los pelo flanco. Outros avançavam atrás deles. Rhun contou uma dúzia, quatro feridos, mas não gravemente. Um era mais velho que Rhun; os outros, mais jovens, mas mesmo assim perigosos.

As lembranças continuaram a engolfá-lo como ondas, agora mais densas, puxando-o para longe, depois trazendo-o de volta.

... o crepitar de uma lareira, enquanto ouvia a voz suave de uma mulher lendo Chaucer, lutando com o inglês medieval, rindo quase tanto quanto lia.

... o rodopiar de uma saia ao luar, um vulto de mulher dançando sozinha sob as estrelas numa varanda enquanto a música ecoava vinda de uma janela aberta.

... a nudez pálida de carne, contrastando tão violentamente com uma poça de sangue carmim, o único som, sua própria respiração ofegante.

Por favor, Senhor, não... isso não...

Uma flecha de besta passou raspando e arranhando sua face, trazendo-o de volta ao presente. A flecha bateu de raspão na borda da árvore e se enterrou na terra atrás dele.

Ele recuou, sabendo que ninguém de seu grupo poderia resistir em terreno aberto, especialmente não no estado em que ele se encontrava.

Eles estavam expostos demais.

– Leve-os mais para dentro! – gritou arquejante, acenando para Nadia, que estava mais perto da porta do bunker. – Eu os impedirei de avançar...

– Parem! – gritou uma voz tão conhecida que Rhun agarrou de novo sua cruz, sem saber se estava no passado ou no presente.

Ele se esforçou para ouvir, mas a floresta tinha ficado mortalmente silenciosa.

Até os strigoi tinham se detido – mas com o sol quase raiando eles não esperariam muito. Avançariam a qualquer momento, enxameando para cima deles.

Ele se esforçou para escutar, se perguntando se tinha imaginado a voz, um fragmento perdido de memória adquirindo vida.

Então ela soou de novo:

– Rhun Korza!

O sotaque, a cadência, até a raiva naquela voz ele conhecia. Rhun lutou para se manter no presente, mas o chamado de seu nome o transportou ao passado.

... Elisabeta desmontando do cavalo, com um braço estendido, pedindo a ajuda dele, descobrindo o pulso, expondo o ligeiro latejar da veia através da pele fina e clara, expressando no tom da voz uma total surpresa por sua hesitação.

– Padre Korza...

... Elizabeta chorando no jardim sob um sol forte, escondendo o rosto do sol, dominada pelo pesar, mas finalmente vendo-o, levantando-se para recebê-lo, sua alegria simples brilhando em meio às lágrimas.

– Rhun Korza...

... Elisabeta vindo para junto dele, descalça, andando sobre os juncos, os membros de seu corpo nus, estampando no rosto o mais puro desejo, os lábios se movendo, falando o impossível.

– Rhun...

Aqueles braços levantados para ele, convidando-o finalmente.

Ele se entregou a eles.

O disparo de uma arma rasgou-lhe o peito, o desabrochar de dor tremendo, dilacerando o passado e deixando apenas o presente.

Ele ficou imóvel, de braços estendidos para ela.

Ela estava diante dele – só que transformada. Seu cabelo negro havia se tornado fogo. Ele ouviu o bater de seu coração, sabendo que não deveria haver nenhum batimento, não aqui, não agora.

Abaixo dele na encosta, ela se manteve a distância, abrigada por um amieiro. Mas mesmo dali ele reconheceu a mesma curva de sua face, a mesma dança nos olhos de mercúrio, os mesmos cachos descendo-lhe pelos ombros. Ela exalava, inclusive, o mesmo cheiro de sempre.

A visão dele embaçou, sobrepondo as duas mulheres.

Lábios rosados se curvaram no sorriso que um dia o seduzira.

– Seus atos nos trouxeram aqui, padre Korza. Lembre-se disso.

Ela levantou a Glock fumegante e disparou, disparou.

Balas rasgaram-lhe o peito.

De prata.

Todas elas.

O mundo escureceu e ele caiu.

6:50

Jordan disparou uma salva acima do corpo de Rhun enquanto o padre caía. A ruiva que havia atirado nele se escondeu atrás de uma árvore.

Por que diabo o idiota havia saído para terreno aberto, se expondo daquela maneira?

Rhun parecera atordoado ao sair de seu esconderijo, os braços estendidos para a mulher, as mãos vazias, como se estivesse se rendendo a ela.

Jordan continuou disparando sua submetralhadora Heckler & Koch, oferecendo cobertura a Nadia para que ela pudesse alcançar Rhun. Os strigoi avançaram se arrastando na direção deles, claramente não querendo se levantar e ser rasgados em pedaços pelas balas de prata. Ele esperava que tivesse balas suficientes no pente adicional para conseguir trazer o par para dentro.

Erin estava ajoelhada do outro lado da porta, com a Sig Sauer em punho. Ela não tinha o mesmo poder de fogo que ele, mas, de maneira surpreendente, era uma excelente atiradora. Mirava nas pernas e, a exemplo de Rhun, feria muito mais do que matava. Naquele momento era mais fácil deter o avanço deles do que matá-los.

Nadia enganchou a mão sob um braço e arrastou Rhun de volta em direção ao bunker.

Ela levou uma flechada de besta na parte de trás da coxa, mas sem ao menos hesitar, concentrou-se na tarefa de arrastar o corpo de Rhun para dentro e fechar a porta do bunker.

– Emmanuel?

– Morto. – Ela cerrou o maxilar e arrancou a flecha. O sangue ferveu e fumegou ao escorrer por sua coxa. O fedor de carne queimada se elevou.

Erin engoliu em seco. Jordan compreendia o que ela sentia.

– Você consegue andar? – perguntou. – Posso lhe dar um ombro para...

– Consigo andar.

Nadia os apressou para se afastarem da porta e tirou um cantil do cinto. Ela tomou um pequeno gole, cautelosa.

Um objeto pesado se chocou contra a porta trancada atrás deles, ecoando no interior.

Nadia o ignorou, mas finalmente parou e deitou Rhun no chão. Rapidamente ela soltou a karambit e usou a lâmina curva para cortar o colete de couro que cobria o peito dele.

– Temos que trabalhar rapidamente. Os Belial passarão por aquela porta a qualquer momento.

Erin se ajoelhou ao lado dela.

– Como sabe que farão isso?

– Eles têm que fazer. São strigoi. Quando o sol nascer, todos eles morrerão. Eles precisam se esconder do sol.

Nadia retirou um projétil do peito de Rhun com a ponta da karambit. A bala havia se deformado, tornando-se uma grotesca flor de cinco pétalas.

– Bala de prata de ponta oca – disse Jordan, compreendendo imediatamente.

Os agressores sabiam o que esperar.

Nadia retirou os outros projéteis, rapidamente. Seis no total. Um ser humano não poderia viver com todo aquele estrago. Talvez nem mesmo um Sanguinista pudesse.

Sangue jorrou e se espalhou pelo chão.

Erin pôs a palma da mão sobre o peito de Rhun, visivelmente preocupada.

– Pensei que ele fosse parar de sangrar por si mesmo.

Jordan se lembrou da demonstração de Korza em Jerusalém com o corte na palma da mão.

Nadia afastou a palma da mão de Erin.

– O sangue dele está purgando a prata. Se não fizer isso, ele morrerá.

– Mas ele não vai sangrar até morrer? – perguntou Erin.

O rosto de Nadia se contraiu.

– É possível – admitiu, e lançou um olhar para a porta.

Os strigoi haviam parado de socar a porta. Jordan não confiava naquele silêncio, e pelo visto Nadia também não.

Ela se pôs de pé, carregando Rhun sobre um ombro.

Erin se juntou a ela.

– O que vamos fazer? Tentar usar a saída pela água?

– É a nossa única chance – disse Nadia, e apontou com o braço livre. – Precisamos chegar à luz do sol.

Eles partiram correndo a toda velocidade. Jordan carregava Piers sobre um ombro como um bombeiro, mas Nadia era mais rápida que ele. Eles chegaram a uma interseção de corredores – então uma explosão irrompeu atrás deles.

Jordan levou um tranco, e se encolheu. O inimigo tinha usado cargas explosivas para derrubar a porta.

Sem reduzir o passo, ele se virou para checar Erin. Ela estava atrás dele, muito para trás. Rosnados ecoaram pelo túnel, vindo da porta explodida.

Os monstros tinham entrado – e estavam furiosos.


39

27 de outubro, horário desconhecido

Localização não revelada

Tommy se virou em sua nova cama, tentando encontrar uma posição mais confortável. Não tinha ideia de onde estava, nem de em que tempo estava, mas não acreditava que fosse outro hospital. Examinou a prisão que, pelo que ele desconfiava, deveria ser o seu novo lar.

Arquivou esse pensamento perturbador por enquanto.

Mas tinha de admitir que a caixa em sua cabeça estava ficando cada vez mais cheia.

Chegaria uma hora em que alguma coisa teria de ceder.

Olhou ao redor fixamente.

As paredes eram pintadas de prata, sem janelas, mas o quarto vinha equipado com três tipos diferentes de consoles de videogames e uma TV de tela plana, com recepção de satélite e com todos os canais americanos.

Do outro lado do quarto, defronte ao pé de sua cama, uma porta dava para um banheiro sortido com marcas conhecidas de sabonete e xampu. Outra porta dava para um corredor, mas ele estivera inconsciente quando fora trazido, de modo que não sabia para onde ia o corredor.

Algum médico desconhecido devia ter alinhado seus ossos, feito um curativo em suas feridas e lhe dado uma dose cavalar de analgésico. Sua boca parecia cheia de algodão e seca de tal modo que nenhuma quantidade de água poderia saciá-lo. Mas seu pescoço já havia sarado e seus ossos também estavam se consolidando rapidamente. O que quer que tivesse acontecido em Massada, tinha acelerado seu processo de recuperação, curando-o de muito mais do que apenas câncer.

Desde que ele despertou, todos os seus desejos gastronômicos vinham sendo atendidos: hambúrgueres, fritas, pizza, sorvete e cereal Apple Jacks. E estava espantosamente esfomeado. Por mais que comesse, não era suficiente; provavelmente seu corpo precisava do combustível para se curar.

Ninguém lhe disse onde nem por que estava ali.

Passara uma hora inteira chorando, mas ninguém deu a mínima. Ele finalmente se deu conta da futilidade das lágrimas e se voltou para pensamentos mais práticos: pensamentos sobre fugir.

Até o momento, não tinha nenhum bom plano. As paredes eram de concreto, e ele imaginava que alguma coisa dentro do quarto fosse uma câmera. Os guardas enfiavam sua comida através de uma fenda na porta que dava para o corredor.

Subitamente, aquela porta se abriu.

Tommy se sentou na cama. Ele ainda não conseguia ficar de pé muito bem.

Uma figura conhecida entrou, fazendo Tommy estremecer com um calafrio. Era o garoto que o tinha sequestrado do hospital. O estranho menino entrou e se atirou na cama, estendendo-se ao lado de Tommy, como se fossem grandes amigos.

Desta vez ele vestia uma camisa de seda cinza e uma calça da mesma cor que pareciam caras.

Ele com certeza não se vestia como um garoto normal.

– Olá. – Tommy virou o rosto para ele e estendeu a mão, sem saber o que mais fazer. – Eu sou Tommy.

– Eu sei quem você é. – O sotaque do garoto era estranho e formal.

Mesmo assim, ele apertou a mão de Tommy, sacudindo-a firme e formalmente. Ele tinha as mãos mais geladas que Tommy jamais havia tocado. Será que tinha sido transportado para algum país acima do Círculo Ártico?

O garoto soltou a mão dele.

– Agora somos amigos, certo? Então pode me chamar de Alyosha.

Amigos não tentam matar amigos.

Mas Tommy se manteve em silêncio a respeito daquilo e fez uma pergunta mais importante:

– Por que eu estou aqui?

– Há algum outro lugar onde você prefira estar?

– Qualquer outro lugar – admitiu ele. – Isto aqui parece uma prisão.

O garoto girou um grosso anel de ouro em seu dedo branco.

– Em termos de gaiolas, esta aqui é uma gaiola de ouro, não acha?

Tommy não se deu ao trabalho de assinalar que ele não queria estar em nenhuma gaiola – de ouro ou não –, mas não queria ofender o garoto, também não queria afugentá-lo sendo grosseiro. Para ser honesto, Tommy não queria ficar sozinho de novo. Ele até aceitaria a companhia daquele garoto esquisito no momento – especialmente se conseguisse descobrir alguma coisa através dele.

– Na sua idade, eu morava numa das gaiolas mais luxuosas do mundo. – Os olhos cinza-claros do garoto percorreram o quarto. – Mas então fui libertado, como você.

– Eu não chamaria isto de estar livre. – Tommy gesticulou ao redor, indicando o quarto.

– Quero dizer livre da prisão de sua carne. – O garoto se sentou na cama, cruzou as pernas e estendeu a mão para um controle de videogame. – Muitos aspiram a isso.

– Você é livre? – Tommy estendeu a mão e pegou o outro controle, como se fosse a coisa mais natural a fazer.

O garoto deu de ombros e ligou o Xbox.

– De certo modo.

– O que isto quer dizer?

Alyosha o encarou enquanto o jogo aparecia na tela.

– Você é imortal, não é?

Tommy baixou o controle.

– O quê?

Alyosha selecionou “iniciar” no menu do jogo – Gods of War.

– Você agora sabe disso, não? Foi o que tentei ensinar a você. Lá no deserto. Para que você compreendesse.

Tommy se esforçou para compreender, buscando alguma base de referência à medida que a música tema do jogo começava, cheia de acordes de metal e percussão.

– Você é imortal, Alyosha?

– Existem maneiras através das quais minha vida pode acabar. Mas se eu evitá-las, sim, viverei para sempre. Então, seremos amigos por muito, muito tempo.

Tommy percebeu um toque de solidão naquela voz.

Ele falou baixinho, desesperado:

– Então eu sou como você?

Alyosha se mexeu na cama como se aquela parte da conversa o incomodasse.

– Não, você não é como eu. Em toda a longa história através dos tempos, só houve um igual a você. Você, meu amigo, é muito especial.

– Este outro ainda anda por aí?

– Sim, é claro que ele ainda está por aí. Como você, ele não pode morrer nem tirar a própria vida.

– Nunca?

– Até o fim dos tempos.

Tommy deu mais uma olhada ao redor do quarto. Será que ficaria prisioneiro ali para sempre? Ele queria rir do absurdo daquela situação, mas alguma parte dele sabia que Alyosha tinha falado a verdade – mas talvez não a plena enormidade dela.

Tommy compreendeu aquilo sozinho.

A imortalidade não era uma bênção.

Era uma maldição.


40

27 de outubro, 6:55, horário da Europa Central

Sob o Lago Harmsfeld, Alemanha

Com Piers atirado sobre o ombro, Jordan correu vários passos para o lado, perseguido no túnel de concreto pelos strigoi aos berros, ferais e aterradores.

Ele gritou para Erin, que vinha seis metros mais atrás:

– Depressa!

– Ande, continue! – gritou ela em resposta, ao mesmo tempo irritada e assustada.

Típico de Erin.

Que se dane.

Àquela altura, Nadia já tinha alcançado a perna mais distante e desaparecido por ela, seguindo para a câmara de vácuo com Rhun, desmaiado e envenenado, em seus braços. Aparentemente ela não sentia nenhuma obrigação de esperar pelos dois seres humanos mais lentos. E também não parecia gostar muito de Piers. Provavelmente não voltaria.

Jordan deitou Piers no piso de concreto e liberou sua submetralhadora.

– Desculpe, meu velho.

Piers abriu os olhos azuis desbotados.

– Meine Kinder.

Meus filhos.

– Eu voltarei. – Jordan esperava poder cumprir aquela promessa.

Antes que Jordan pudesse se levantar totalmente, Piers agarrou-lhe a mão, sua força realmente inacreditável, ainda capaz de quebrar ossos.

– Icarops. Sie kommen. Para ajudar. Eu os mandei.

Da porta quebrada do vestíbulo vizinho, uma nuvem negra de morcegos irrompeu para dentro do túnel, batendo as asas, guinchando e voando em círculos acima da cabeça deles.

Milhares jorraram para dentro do corredor.

Jordan se agachou sob as asas, nauseado pelo fedor das criaturas, sentindo-o na base da língua. Ele se agachou com Piers contra a parede.

Erin o tinha quase alcançado, com um braço protegendo o rosto contra o avanço dos morcegos.

Mas desta vez a fúria deles não estava dirigida para ela.

Ela avançou em meio a eles, correndo agachada.

Logo atrás, a horda negra se abateu sobre os strigoi como uma torrente impetuosa. Os morcegos lutaram contra os monstros num caleidoscópio de sangue negro, pelo e pele branca. Em meio ao caos, a prata lampejava como raios. Alguns dos icarops caíram, mas logo foram substituídos por outros que vieram voando.

Jordan viu um morcego enorme vir voando e cerrar as asas ao redor de um strigoi como uma capa monstruosa.

Gritos soaram mais alto.

Então um jorro de chamas irrompeu para o alto no centro daquela tempestade escura. Um uoochh e um crepitar encheram o ar, seguidos por gritos terríveis. Uma nuvem de fumaça fétida rolou na direção dos três espectadores.

Carne queimada e petróleo.

Um lança-chamas.

Piers gemeu de pena de seus filhos enquanto o coro de gritos ameaçava explodir os tímpanos de Jordan.

Mas Erin finalmente o alcançou.

Jordan agarrou o braço dela e a empurrou pela curva do corredor.

– Vá para a câmara de vácuo! Estarei logo atrás de você.

Ela assentiu, ofegante.

Ele pegou Piers de volta e correu atrás dela. Rezou para que os morcegos que restavam conseguissem ganhar tempo suficiente para que eles saíssem daquele lugar maldito. Depois daquilo, o sol deveria protegê-los.

Pelo menos essa era a teoria.

Eles correram em direção à câmara de vácuo aberta. Saída da escuridão mais adiante, Nadia veio correndo em direção a eles, de mãos vazias. Ela devia ter deixado Rhun na câmara de vácuo e voltado para ajudar. Assim, afinal, não os tinha abandonado.

– Depressa! – gritou a mulher, estendendo a mão para Erin e agarrando-a, quase levantando-a no ar.

Um grito feral vindo de trás atraiu a atenção de Jordan. Um strigoi – ensanguentado, queimado, com um olho faltando – avançava para eles pela curva do corredor, movendo-se depressa demais, quase subindo pelas paredes em sua pressa de alcançá-los.

A câmara de vácuo despontava a apenas alguns metros de distância.

Mas ele nunca a alcançaria.

6:57

Erin pressionou os calcanhares contra a força inevitável do puxão de Nadia em direção à câmara de vácuo. Ela se torceu na mão de Nadia e levantou a pistola Sig Sauer.

– Jordan! Para o chão!

De longe, lá no início do túnel, ele obedeceu, atirando-se de cabeça, rolando com Piers, mantendo o padre protegido.

Erin apontou a pistola para o monstro quando ele saltou em direção a Jordan.

Ela respirou uma única vez, sem prender o ar, e apertou o gatilho.

O estrondo da pistola explodiu como um trovão, fazendo seus ouvidos doerem, deixando-os retinindo.

A parte de trás do crânio do strigoi explodiu, fumegando por causa da bala de prata que trespassara seu olho restante. O impulso da criatura a carregou para além de Jordan. O corpo bateu no chão e deslizou até os pés de Erin.

Ela saltou para trás, mas Nadia pronunciou a sentença:

– Está morto.

Jordan se pôs de pé, levantando Piers.

– Belo tiro.

Não houve nenhum sorriso condescendente. Ele falava sério. Uma onda de satisfação a dominou.

Juntos, eles avançaram para a câmara de vácuo úmida.

Erin correu para junto de Rhun, assustada ao ver a brancura de sua pele – ainda mais pálida do que o habitual. Seu peito nu ainda sangrava. Nadia e Jordan fecharam a câmara de vácuo com um clangor ressonante e a trancaram.

Os dois foram abrir a escotilha externa, rapidamente.

Nadia correu pelo minúsculo aposento e girou a roda da escotilha da porta externa. Quando, emitindo um estalo, a porta se abriu, a água gelada do lago entrou numa onda antes que Erin tivesse tempo de inalar e prender a respiração. Em segundos a água subiu acima do nível de sua cabeça. Jordan acendeu sua lanterna à prova d’água, agachado ao lado de Piers.

Erin fez o mesmo, mantendo um punho cerrado no casaco de Rhun.

Nadia empurrou a porta e a abriu com o ombro à medida que a pressão finalmente se equalizava, e gesticulou para que todos saíssem. Ela nadou para junto de Erin e Rhun, agarrando seu companheiro sanguinista pelo punho.

Livre da responsabilidade de cuidar dele, Erin bateu as pernas saindo pela escotilha e nadou para cima. Lutou contra o peso do casaco de couro – para não mencionar os bolsos cheios de fragmentos de concreto. Começou a afundar, mas se recusou a abandonar o que lhe havia custado tanto encontrar. Ao longe, distinguiu a forma tremeluzente da estátua da fonte, um homem num cavalo empinando, envolta em algas.

Será que ela se juntaria aos outros que tinham se afogado naquela cidade inundada?

Então Jordan surgiu ao seu lado. Ele agarrou um punhado do colarinho de seu casaco e puxou, dando impulso com as pernas e arrastando tanto Piers quanto ela em direção à promessa prateada do amanhecer acima.

Depois do que pareceu uma eternidade, a cabeça de Erin emergiu.

Ela arquejou.

Acima, o céu havia clareado para um tom cinza-azulado. O raiar do dia estava se aproximando, mas viria rápido demais para Piers. Eles nunca conseguiriam alcançar o abrigo da Igreja de Harmsfeld em tempo.

Jordan a empurrou em direção ao barco.

Nadia já estava a bordo com Rhun e ajudou a puxar o corpo inconsciente do padre Piers para a popa. Jordan se içou para dentro do barco sozinho, quase fazendo o dóri virar.

Erin agarrou a amurada perto da proa e esperou sua vez. Trêmula, ela respirou fundo várias vezes. Nunca tinha sentido tanto frio na vida, mas estava viva.

Equilibrando-se, Jordan tirou seu casaco de couro de lobogrifo e o abriu, cobrindo alguém dentro do barco. Então estendeu a mão quente para Erin, e a puxou com um braço, para dentro do dóri, fazendo-a cair deitada.

– Seu casaco – disse Nadia. – Depressa.

Jordan a ajudou a tirar o casaco encharcado como se ela estivesse em chamas.

Erin tremia tanto que quase caiu.

Jordan e Nadia trabalharam rapidamente, ajeitando ambos os casacos sobre os Sanguinistas feridos de modo que o sol não os tocasse. A luz do sol mataria Piers, e Erin imaginava que Rhun também estivesse debilitado demais para poder suportá-la. Ele tinha perdido tanto sangue na porta do bunker.

Depois que acabou, Nadia se ajoelhou e baixou a cabeça. Estremeceu e caiu apoiada em um braço.

– Você está bem? – perguntou Jordan.

– Vou ficar bem – sussurrou a mulher, sentando-se e recostando-se, mas não parecendo estar bem. Estava com um furo do tamanho de uma moeda de um quarto de dólar na coxa direita, e a bala tinha entrado e saído. Contudo, apesar do ferimento, ela salvara todo mundo.

Jordan levantou a âncora e a largou no meio do barco.

Sentido-se fraca, Erin pegou o remo e começou a ajudar Jordan a remar em direção à costa. Estava com as mãos tão trêmulas que mal conseguia segurá-lo.

Debaixo de um dos casacos, uma voz fraca, abafada, arquejou:

– Por favor. Tirem.

Era o padre Piers.

Nadia olhou fixamente para seu vulto coberto, seu rosto um estudo de angústia.

– O senhor vai morrer.

– Eu sei. Liberte-me.

A mão de Nadia se deteve no ar acima do casaco, mas ela não o retirou.

– Por favor, Piers, não.

– Você pode me dar a absolvição? – Sua voz fraca mal se fazia ouvir acima do bater dos remos na água.

Nadia suspirou.

– Ainda não recebi as ordens sacras. – Ela levantou o outro casaco e espiou debaixo dele. – Rhun também não pode lhe dar absolvição neste estado. Sinto muito.

– Então, por favor, vamos rezar juntos, Nadia – suplicou Piers.

Enquanto Erin e Jordan remavam lentamente em direção à costa, os dois Sanguinistas rezaram em latim, mas Erin não traduziu as palavras. Ela olhou fixamente para a água, alaranjada à luz do sol nascente, e pensou em Rhun, morto ou moribundo debaixo do casaco de Jordan. Por que concordara em participar daquela empreitada? A busca pelo Evangelho já havia custado tantas vidas, exatamente como Rhun a havia advertido. Eles não tinham conseguido nada e tinham perdido tanto.

À medida que se aproximavam da linha da costa, Nadia delicadamente levantou o casaco e o tirou de cima de Piers, e o tomou nos braços, embalando o corpo esquálido contra o seu. Pela primeira vez, ela parecia assustada.

Os olhos azuis esgazeados de Piers buscaram a paisagem da costa.

Erin seguiu o olhar dele até os pinheiros escuros, aos troncos prateados das tílias despidas de folhas pelo outono, um lago transformado em cobre e os raios dourados de luz penetrando em meio à neblina.

Piers levantou o rosto para o sol.

– A luz é verdadeiramente a mais bela das criações Dele.

Lágrimas escorriam pelas faces de Nadia. Ela não as enxugou; em vez disso, apertou mais os braços ao redor de Piers.

– Perdoe-me – disse em latim. – O senhor é abençoado.

O rosto de Jordan estava impassível, como pedra. Ele não interrompeu o ritmo de suas remadas.

O rosto de Piers reluziu, iridescente, num clarão de luz do sol.

Ele arqueou as costas. O rubor se espalhou para seu pescoço e mãos.

Ele gritou.

Nadia o abraçou com força.

– Senhor nosso Deus, Vós sois nosso refúgio de geração em geração. Ano e dias variam, mas Vós permaneceis eterno.

Piers caiu em silêncio, tombando nos braços dela e ficando inerte.

– Vossa misericórdia nos sustenta na vida e na morte – prosseguiu Nadia. – Concedei-nos lembrar com gratidão o que Vós nos destes através de Piers e Emmanuel. Recebei-os juntos em Vosso reino depois de seus longos anos a Vosso serviço.

Erin concluiu com ela, usando uma palavra que não dizia há anos e que duvidava jamais ter dito com sinceridade, até aquele momento:

– Amém.


41

27 de outubro, 7:07, horário da Europa Central

Harmsfeld, Alemanha

Jordan enterrou o remo mais fundo, avançando lentamente pela superfície do lago. Olhou para o sol, que marcava um novo dia depois da noite mais longa de sua vida – mas pelo menos ele ainda tinha uma vida.

Visualizou os rostos de seus homens... de Piers... de Emmanuel.

Quando Jordan abriu o casaco para cobrir Rhun, tinha percebido que era possível que o padre não estivesse muito atrás dos outros. E para quê? Eles tinham saído daquele longo pesadelo de mãos vazias.

Na proa do barco, Nadia retirou o casaco de cima do corpo de Piers e o entregou a Erin. O padre não precisava mais de sua proteção, mas Erin estava tremendo de frio no ar gelado da manhã.

Nadia deitou Piers no barco da melhor forma que pôde e cruzou os braços dele sobre o peito magro. As mãos dela se demoraram acima das feridas terríveis em seus pés e mãos; ela, porém, se recusou a tocá-las. Puxou a batina de Emmanuel sobre o corpo sem vida, ajeitando-a carinhosamente ao redor dele, então baixou a cabeça e rezou.

Jordan fez o mesmo. Uma vez que devia ao menos isso a Piers.

Quando a oração acabou, Nadia fez o sinal da cruz.

A mulher olhou para o sol por um longo instante, então pegou Piers no colo, o levantou sobre a amurada e delicadamente rolou seu corpo para dentro do lago. Ele afundou, desaparecendo na água verde, uma trilha de bolhas subindo da batina preta.

Erin deixou escapar uma exclamação diante do fim pouco cerimonioso do padre Piers.

– Ele não pode ser enterrado em terreno consagrado, e seu corpo também não pode ser encontrado – explicou Nadia, que então se sentou, pegando um remo. – Deixemos que encontre a paz e o descanso eterno aqui, entre estas montanhas que ele amou tanto.

Erin estremeceu, os lábios azulados comprimidos numa linha fina, mas continuou a remar.

Jordan olhou para trás por cima do ombro. A costa se aproximava, já visível em meio à neblina. Ele avistou o cais à direita. Na floresta adiante, um passarinho cantou, anunciando a manhã, e outro respondeu.

Parecia que a vida continuava.

Ele não diminuiu a velocidade à medida que a margem levantou a proa. Aproveitou o impulso para empurrar o barco para cima na lama.

– Esperem aqui – advertiu.

Erin tremeu e assentiu.

Nadia não respondeu.

Ele empunhou a Colt e saltou sobre a amurada. A lama sugou suas botas, mas era bom estar em terra, ao ar livre no sol.

Ele correu para o ponto onde eles tinham escondido as motos Ducati. Poderiam estar de volta na abadia em menos de uma hora. Talvez o irmão Leopold tivesse algum tipo de tratamento para ajudar Rhun a se curar.

Mas quando Jordan chegou atrás da árvore, se deteve, olhando fixamente para a ruína que restava das três motos. Ele se retesou, procurando ao redor. Os strigoi com certeza estavam se escondendo do sol, mas ele sabia que os Belial também empregavam humanos.

Naquele momento ele se deu conta da terrível verdade.

Eles ainda não estavam em segurança – mesmo sob a luz de um novo dia.

7:12

De pé na costa lamacenta, Erin apertou o casaco de couro ao redor do corpo. Virou o olhar para as árvores que tinham engolido Jordan. Não viu nenhum movimento, algo que lhe apertou o peito com certa preocupação.

Ao seu lado, Nadia soltou o cantil de sua perna e se enfiou debaixo do casaco cobrindo Rhun, ainda mantendo o corpo dele protegido do sol enquanto o examinava.

Erin ansiava por dar uma espiada ali embaixo e ver como Rhun estava, mas não se atreveu. Nadia sabia melhor que ela como cuidar dele. Provavelmente o conhecia há mais tempo do que Erin estava viva.

O vulto familiar de Jordan reapareceu saindo da floresta, e Erin deixou escapar um suspiro de alívio. Mas percebeu pelos ombros curvados dele que trazia más notícias. Muito más. Jordan não se sentia derrotado por qualquer coisa, e parecia cabisbaixo.

Nadia voltou a se sentar, com a mão descansando na cabeça coberta de Rhun.

– Alguém destruiu as motocicletas – disse Jordan, lançando um olhar de desculpas, como se aquilo fosse culpa dele.

– Todas elas? – perguntou Nadia.

Jordan assentiu.

– Não dá para consertar sem peças, ferramentas e tempo.

– E não temos nenhum dos três. – A mão de Nadia alisou a perna ferida. Ela subitamente pareceu fragilizada. – Nunca conseguiremos levar Rhun vivo de volta para a abadia se tivermos que andar.

– E que tal a Igreja de Harmsfeld? – Erin apontou para o campanário se elevando acima da floresta. Você achou que poderia fornecer abrigo a Piers. E quanto a Rhun?

Nadia se inclinou para trás e passou a mão ao longo do casaco que cobria Rhun.

– Precisamos rezar para que tenha o que precisamos.

7:14

Da costa, Jordan observou a neblina se dispersar em fiapos sob o sol da manhã. Depois que se dissipasse, eles estariam expostos na beira do lago: três adultos com um dóri roubado e um homem gravemente ferido.

Não seria fácil explicar aquilo.

Nadia saiu de dentro do barco e começou a carregar o corpo inconsciente de Rhun nos braços. Era uma caminhada curta até o vilarejo de Harmsfeld.

Jordan se aproximou e interveio:

– Por favor, passe-o para mim.

– Por quê? Você acha que sou fraca demais para isto? – Os olhos escuros dela se estreitaram.

– Eu acho que, se alguém vir uma mulher pequenina como você carregando um homem adulto com a mesma facilidade com que carregaria um filhote de cachorro, isto vai levantar perguntas.

Relutantemente, ela permitiu que Jordan pusesse Rhun sobre o ombro. O padre era peso morto em seus braços. Se ele fosse um ser humano, estaria apenas morto: frio, sem batimentos cardíacos, sem respiração. Será que estava vivo?

Jordan tinha de confiar que Nadia soubesse.

A mulher os conduziu através da floresta em um ritmo duro de caminhada. Jordan não demorou muito a desejar que a tivesse deixado carregar Rhun até que chegassem mais perto da aldeia.

Mas em menos de dez minutos eles estavam andando pelas pedras de calçamento cobertas de geada da rua principal. Nadia os conduziu de uma maneira aparentemente casual, parando de vez em quando para escutar, com a cabeça inclinada. Provavelmente ouvia as pessoas muito antes de Jordan e Erin e procurou evitar cruzar com elas.

Ele lançou um olhar para Erin. Como ele, Erin estava ensopada até a alma. Mas ao contrário dele, não estava começando a sentir calor por estar carregando um fardo pesado. Seus lábios azulados tremiam. Ele tinha de levá-la para algum lugar fechado e aquecê-la.

Finalmente, chegaram à igreja do vilarejo na praça. A estrutura robusta tinha sido construída de pedras extraídas na pedreira local séculos antes, seus grandes blocos formando arcos e emoldurando janelas de vitrais ao longo de ambos os flancos. A única torre com o sino apontava em direção ao céu com o que parecia resolução inquestionável.

Nadia subiu correndo os degraus e tentou abrir as portas duplas. Trancadas.

Jordan baixou Rhun no chão. Talvez conseguisse arrombar a fechadura.

Nadia deu um passo para trás, levantou a perna, então chutou as portas grossas de madeira. Elas se abriram com um sonoro craque. Não era a maneira mais silenciosa de entrar, mas era eficaz.

Nadia entrou rapidamente. Jordan pegou Rhun no colo e a seguiu com Erin logo atrás. Ele queria todo mundo fora de vista antes que alguém percebesse que tinham arrombado a porta da igreja carregando um morto.

Erin puxou e fechou as portas, provavelmente temendo o mesmo.

Nadia já estava no altar, vasculhando.

– Não há vinho consagrado – disse ela, e em sua frustração bateu com o cotovelo em um cálice vazio e o derrubou no chão de pedra, causando um estrondo.

– Vamos fazer um pouco menos de barulho? – Jordan detestou repreendê-la.

Ela disse alguma coisa que pareceu blasfema, e então seguiu para um crucifixo de madeira atrás do altar. A semelhança da imagem de carvalho esculpido com Piers era tão impressionante que Jordan deu um passo para trás.

O que Nadia estava planejando fazer?


42

27 de outubro, 7:31, horário da Europa Central

Montanhas Harmsfeld, Alemanha

Bathory estava postada diante do corpo do Sanguinista morto. Ainda estava pregado pelas flechas de besta no tronco de um velho pinheiro, como um sacrifício druídico.

Ela agarrou uma das flechas pela ponta com penas e a arrancou do braço do morto, libertando-o; o membro pendeu frouxo e quebrado. Examinou sua obra com um suspiro.

A luz do sol enchia a clareira, derretendo a geada das folhas amarelas de tília. Havia poucos vestígios da batalha que fora travada ali: um pouco de terra revirada, mais que alguns projéteis de munição salpicando os troncos das árvores e manchas escuras de sangue empapando o solo. Uma boa chuva, algumas semanas até que a vegetação crescesse, e ninguém faria a menor ideia do que havia acontecido ali.

Exceto por aquele maldito corpo pregado na árvore.

Ela arrancou outra flecha, lamentando não ter atribuído essa tarefa a Tarek, mas não podia, não durante o dia. Mesmo Magor tinha sofrido muito com a luz do sol, seu corpo fumegando, até que ela o obrigara a se retirar para o bunker com os outros.

Ela continuou a arrancar as flechas, lentamente soltando o cadáver.

Uma pena que não fosse Korza pregado ali. Mas ela o tinha visto cair depois de acertar-lhe seis balas de prata. Não duraria muito naquele estado. Havia saboreado a expressão de surpresa no rosto dele ao alvejá-lo. Rhun havia pensado que ela fosse Elisabeta – uma ancestral de Bathory há muito morta, que de alguma forma tivesse voltado para perdoá-lo.

Como se aquilo fosse o suficiente para redimir seus pecados.

Soltou o Sanguinista da última flecha. Se o homem fosse um strigoi, a luz do sol o teria queimado até virar cinzas e a teria poupado do trabalho.

Resignada, ela se apressou em dar cabo daquela última tarefa ao mesmo tempo que um plano começava a tomar forma em sua mente.

O livro continuava perdido – mas ela sabia para onde ir para encontrá-lo.

Mais importante, sabia quem poderia ajudá-la.


43

27 de outubro, 7:35, horário da Europa Central

Harmsfeld, Alemanha

Erin acompanhou Jordan enquanto ele colocava Rhun diante do altar. O padre desacordado jazia no piso de pedra como se estivesse morto.

– Ele ainda está vivo?

– Por um fio. – Ajoelhando-se, Nadia gotejou vinho de seu odre na boca de Rhun.

Ele não o engoliu.

Aquilo não podia ser bom sinal.

– Como podemos ajudar? – perguntou Jordan.

– Fiquem fora do meu caminho. – Nadia colocou a cabeça de Rhun em seu colo. – E fiquem calados.

Nadia examinou os itens que tinha retirado de trás do altar, detendo-se primeiro na garrafa de vinho ainda selada. Ela retirou a rolha com um dedo comprido.

– Preciso consagrar este vinho – explicou.

– Pode fazer isto? – Jordan olhou para a porta, visivelmente preocupado com a possibilidade de alguém entrar na igreja e interromper o que iria acontecer.

– É claro que não – disse Erin, chocada. – Só um padre pode consagrar o vinho.

Nadia fungou sarcasticamente.

– Dra. Granger, a senhora é uma historiadora competente o suficiente para saber que não é bem assim, não é? – Ela limpou o sangue do peito de Rhun com o pano do altar. – Mulheres não rezavam a missa e não consagravam o vinho nos primeiros tempos da igreja?

Erin se sentiu repreendida. De fato sabia. Numa reação automática, havia se apoiado no dogma da igreja, quando a história claramente o contradizia. Ela se perguntou em que medida ainda era a filha de seu pai no coração.

Aquele pensamento foi doloroso.

– Desculpe-me – disse Erin. – Você tem razão.

– O lado humano da igreja tirou das mulheres este poder. Os Sanguinistas não.

– Então você pode consagrar o vinho – disse Jordan.

– Eu não disse isso. Eu disse que mulheres na Igreja Sanguinista podem ser ordenadas sacerdotisas. Mas ainda não recebi as ordens sagradas, de modo que ainda não sou sacerdotisa.

Jordan olhou fixo de volta para a porta. De novo.

– Por que simplesmente não pegamos esta garrafa de vinho e fazemos lá o que for que você está planejando em algum outro lugar, longe de onde alguém possa entrar a qualquer momento? Você não precisa fazer isto numa igreja, não é?

– O vinho tem seus maiores poderes de cura se for consagrado e consumido numa igreja. O terreno consagrado lhe atribui poderes adicionais. – Nadia pôs as mãos sobre o peito de Rhun. – Rhun precisa de todas as vantagens que pudermos lhe dar.

Ela despejou as últimas gotas de seu cantil nos ferimento à bala de Rhun, arrancando dele um gemido.

O coração de Erin saltou de esperança. Talvez ele não estivesse tão mal quanto ela imaginava.

Nadia soltou o frasco de prata da perna de Rhun. Ela pingou mais vinho em sua garganta. Desta vez ele engoliu.

Ele inalou uma única vez.

– Elisabeta?

Nadia fechou os olhos.

– Não, Rhun. Sou Nadia.

Rhun olhou ao redor, seus olhos sem foco.

– Você precisa consagrar este vinho. – Ela cerrou os dedos dele ao redor do gargalo da garrafa. – Senão você vai morrer.

Ele fechou os olhos.

Erin examinou o padre inconsciente. Ela não conseguia imaginar o que o despertaria.

– Tem certeza de que precisa consagrar o vinho? Talvez possa apenas dizer a ele que é consagrado.

Nadia lhe lançou um olhar venenoso.

– Estive me perguntando desde o deserto se o vinho precisa realmente ser consagrado ou se Rhun apenas precisa acreditar que seja. Talvez seja uma questão de fé, em vez de milagre. – Erin não conseguia acreditar que aquelas palavras estivessem saindo de sua boca.

Vira em primeira mão o que acontecia quando cuidados médicos eram deixados por conta de fé e milagres, primeiro com seu braço, e depois com sua irmã caçula. Ela fechou os olhos, como se isso pudesse apagar a lembrança. Mas a recordação, como sempre, ressurgiu.

Sua mãe estava tendo um parto difícil. Erin e as outras mulheres no complexo da seita assistiram ao seu trabalho de parto durante dias. O verão tinha chegado cedo, e o quarto estava quente e abafado. Cheirava a suor e sangue.

Ela segurou a mão da mãe, umedeceu-lhe a testa e rezou. Era tudo o que podia fazer.

Finalmente sua irmã, Emma, veio ao mundo.

Mas Emma estava febril desde o primeiro instante. Fraca demais para chorar ou mamar, ficou deitada envolta em sua manta contra o seio da mãe, os olhos escuros arregalados e vidrados.

Erin havia suplicado ao pai que levasse o bebê a um médico de verdade, mas ele lhe dera um tabefe, deixando-a com o nariz sangrando.

Em vez disso, as mulheres do complexo reuniram-se ao redor da cama de sua mãe para rezar. Seu pai tinha conduzido as orações; sua voz grave, confiante de que Deus o ouviria, e Deus salvaria a criança. Caso contrário, Deus sabia que ela não merecia ser salva.

Erin tinha ficado ao lado de sua mãe, observando os batimentos cardíacos de Emma em sua fontanela, rápidos como os de um passarinho. Ela ansiava por pegar o bebê no colo, montar com ele num cavalo e levá-lo para a cidade. Mas seu pai, parecendo perceber seu desafio, nunca a deixava sozinha com o bebê. Tudo que Erin pôde fazer foi rezar, ter esperança e depois ver os batimentos cardíacos se tornarem mais lentos e pararem.

Emma Granger viveu por dois dias.

A fé não salvou Emma.

Erin tocou o tecido em seu bolso. Ela o tinha cortado da manta de Emma antes que a menina fosse embrulhada nela para ser enterrada. Carregara o retalho consigo todos os dias desde então, para se recordar de sempre respeitar as advertências de seu coração, fazer as perguntas impossíveis e então, sempre, agir.

– Nadia – disse Erin. – Experimente beber o vinho não consagrado. O que você tem a perder?

Nadia levou a garrafa à boca e tomou um grande gole. O líquido vermelho jorrou de sua garganta e respingou no chão.

Jordan fez uma careta.

– Acho que não funciona assim.

Nadia limpou a boca.

– É uma questão de milagre.

Ou talvez se tratasse apenas do fato de que Nadia não acreditava que o vinho fosse o sangue de Cristo.

Mas Erin se manteve em silêncio.

7:44

Rhun ansiava pela morte, desejando que eles nunca o tivessem despertado.

A dor de seus ferimentos não era nada em comparação com o que sentira quando vira Elisabeta de novo na floresta. Mas não tinha sido realmente ela. Ele sabia disso. A mulher na floresta tinha cabelo ruivo, não preto. E Elisabeta partira quatrocentos anos antes.

Quem era a mulher que atirara contra ele? Alguma descendente distante? Tinha alguma importância?

A escuridão voltou a envolvê-lo como uma capa macia. Ele relaxou dentro dela. A prata não o queimava naquela cálida negritude. Ele flutuou ali.

Então o líquido escaldou-lhe os lábios, e ele tentou virar a cabeça.

– Rhun – ordenou uma voz conhecida. – Você tem que voltar para mim.

Não era Elisabeta. Aquela voz soava zangada. E também assustada.

Nadia?

Mas nada assustava Nadia.

Com esforço, ele abriu as pálpebras pesadas e ouviu uns batimentos cardíacos. Os batimentos rápidos de Erin e o ritmo regular do soldado. Sinal de que ambos tinham escapado vivos.

Bom.

Contente, ele tentou adormecer de novo.

Mas dedos frios agarraram-lhe o queixo, puxando-o para os olhos escuros de Nadia.

– Você vai fazer isto por mim, Rhun. Eu dei a você todo o seu vinho – e o meu. Sem vinho, eu também morrerei. Isto é, a menos que quebre o meu juramento.

Ele lutou para manter as pálpebras abertas, mas elas se fecharam de novo. Ele as obrigou a se abrirem.

– Você está me forçando a isto, Rhun.

Nadia largou a cabeça dele e se levantou, num rápido lampejo de escuridão. Ela enganchou um braço ao redor da cintura de Erin e puxou-lhe a cabeça para o lado. O coração de Erin acelerou, até que cada contração muscular se fundiu na seguinte em um rufar contínuo.

Jordan levantou a submetralhadora.

– Se você atirar em mim, soldado, saiba que eu posso matá-la antes que a segunda bala me acerte – sibilou Nadia. – Então, Rhun, você pode fazer isto?

Os olhos cor de âmbar de Erin se cravaram nos dele, suplicando por sua vida e pela dele.

Mais para responder àquele olhar do que à pergunta de Nadia, Rhun encontrou a força. Ele se levantou para agarrar o vinho, trazer a garrafa até seu coração e recitar as palavras necessárias.

Finalmente, Rhun concluiu dizendo:

– Nós Vos oferecemos este sacrifício providencial e sem sangue; e Vos pedimos e suplicamos, ó Santo dos Santos, que desça o Vosso Espírito Santo para que santifiqueis estas oferendas.

Nadia respondeu:

– Amém. Abençoai este Sagrado Cálice.

– E o que está neste cálice, o Sangue Precioso de Vosso Cristo.

O ritual concluído, ele deixou as mãos caírem sobre o colo, toda a força deixando os seus membros, seu único desejo uma vontade de inconsciência.

Mas Nadia se recusava a deixá-lo repousar. Derramou o sangue de Cristo nos ferimentos dele, dentro de sua boca. O corpo dele absorveu aquele fogo e ardeu completamente desta vez. Ele sabia para onde o levaria e tremeu diante da perspectiva.

– Não – suplicou –, mas sua súplica não foi ouvida.

– Virem-se de costas. – A ordem seca de Nadia para os humanos se desvaneceu aos poucos à medida que seus pecados o levaram para a penitência.

Bernard havia percebido a tentação do mal no coração de Rhun e o enviara para o Castelo de Cachtice para que ele cortasse todos os laços com Elisabeta. Rhun disse a si mesmo que seria capaz de fazê-lo, que não sentia nada por ela além do dever de servi-la como um padre.

Mesmo assim, rezou muito à medida que se demorava pela longa estrada que levava à porta dela em meio ao inverno. A neve escondia os campos e os jardins onde outrora eles haviam passeado juntos. Entre os talos longos e secos de lavanda, um corvo bicava um camundongo cinza, a minúscula mancha escarlate de seu sangue vital visível mesmo de tão longe. Ele se demorou, até que o corvo terminasse seu repasto e se fosse.

Ele chegou ao castelo ao cair do crepúsculo, horas depois que havia planejado. Contudo ficou parado muito tempo diante da porta antes de conseguir se obrigar a bater. A neve salpicava os ombros de sua batina. Ele não era mais capaz de sentir frio, mas limpou a neve como qualquer homem faria. Não queria mostrar sua alteridade naquela casa.

A criada, Anna, veio abrir a porta, com as mãos avermelhadas pelo frio.

– Boa-noite, padre Korza.

– Olá, minha filha – respondeu ele. – A viúva Nádasy está em casa?

Ele rezou para que ela estivesse muito longe. Talvez devesse pedir que fosse se encontrar com ele na igreja da aldeia. Sua resolução seria mais forte lá. Sim, a igreja seria melhor.

Anna fez uma mesura.

– Desde a morte do conde Nádasy, ela caminha até tarde ao entardecer, mas voltará antes que escureça. O senhor vai esperar?

Ele seguiu a moça franzina até o salão, onde o fogo crepitava na imensa lareira. Camomila salpicada sobre os juncos do piso davam ao aposento o cheiro conhecido do verão. Ele se lembrava de ter colhido folhas com ela em uma tarde ensolarada antes da morte de Ferenc.

Rhun não aceitou a bebida oferecida por Anna e se postou tão junto do fogo quanto ousou, sugando seu calor para seu corpo anormalmente frio. Rezou e pensou em Ferenc, o Cavaleiro Negro da Hungria, e o homem de quem Elisabeta era viúva. Se Ferenc ainda estivesse vivo, tudo seria diferente. Mas Ferenc estava morto. Rhun afastou os pensamentos de sua última visita, quando dera a ela a notícia da morte de Ferenc.

Elisabeta entrou vestindo uma capa de cor de Borgonha, a neve derretida escurecendo-lhe os ombros. Rhun se empertigou. Sua fé era forte. Ele resistiria àquilo.

Ela sacudiu a água da capa. Gotas escuras salpicaram o chão. Uma criada tomou o agasalho pesado de lã das mãos estendidas e se retirou do aposento andando de costas.

– É bom ver que o senhor está em boa forma, padre Korza. – As saias pretas roçaram contra os juncos do piso enquanto ela ia se juntar a ele diante da lareira. – Espero que tenham lhe oferecido vinho e algo para comer.

Falou em um tom descontraído, mas o coração disparado a traiu.

– Sim, ofereceram.

À luz da lareira, ela parecia mais magra do que ele se lembrava, as feições mais duras, como se o luto tivesse roubado um pouco sua suavidade. Mas mesmo assim ela continuava dolorosamente linda.

O medo inundou o sangue de Rhun.

Ele teve ânsias de fugir, mas tinha prometido a Bernard, e prometido a si mesmo. Era forte o suficiente para fazer aquilo. Tinha que ser.

– Imagino que esteja aqui para coletar doações para a igreja. – O tom amargo de Elisabeta lhe revelou em que medida ele a havia decepcionado quando a deixara sofrendo sozinha pela morte de Ferenc e que ela não o perdoava por tê-la abandonado na hora de sua maior necessidade.

A mente dele gritou para que fugisse, mas seu corpo não quis obedecer.

Ele ficou.

– Padre Korza? – Ela se aproximou, inclinando a cabeça de preocupação. Seus batimentos cardíacos, em vez de aumentarem de raiva, diminuíram, por pura piedade. – O senhor está doente? Será que não deve se sentar?

Ela o conduziu a uma cadeira de madeira de espaldar reto, então se sentou defronte dele, os joelhos dos dois separados por apenas um palmo. O calor do fogo pareceu frio quando comparado com o calor do corpo dela.

– O senhor tem passado bem, padre Korza?

Ele despertou da canção do coração forte de Elisabeta.

– Tenho. E a senhora, como tem passado, viúva Nádasy?

Ela se contraiu ao ouvir a palavra viúva.

– Tenho passado razoavelmente. – Ela se inclinou para a frente. – Besteira. Nós nos conhecemos há tempo demais e muito bem para começarmos a mentir agora. A morte de Ferenc foi ao mesmo tempo uma grande provação e uma libertação para mim.

Uma libertação?

Ele não ousou perguntar. Levantou a cabeça.

– O senhor está abatido, parece que esteve doente. Diga-me a verdade. Como correram os últimos meses?

Ele mergulhou no cinza-prata dos olhos dela, refletindo o laranja da luz do fogo. Como podia se separar dela? Justamente dela, entre todos os seus conhecidos e a quem ele confiara as lembranças de sua vida mortal, mantendo segredo apenas de seu estado de existência anormal?

A sombra de um sorriso surgiu nos lábios dela. A mão limpou água do ombro nu e depois caiu pudicamente sobre a garganta. Ele olhou fixamente para os dedos dela, e o que eles cobriam.

Ela se levantou e tomou a mão dele entre as suas.

– Sempre tão frias.

O calor da mão dela explodiu sob a pele dele. Ele tinha que se afastar, mas em vez disso se levantou e pôs a outra mão sobre a dela, extraindo mais de seu calor para seu corpo gelado. Apenas isso. Um momento simples de contato. Ele não pedia nada mais.

Os batimentos do coração de Elisabeta viajaram das mãos dela através dos braços dele e lá para cima, para onde outrora estivera seu coração. Agora o sangue dele se movia acompanhando o ritmo do dela. As margens de sua visão se tingiram de escarlate.

As pálpebras de Elisabeta se fecharam e ela inclinou o rosto virado para cima em direção ao dele.

Ele tomou-lhe as faces afogueadas nas mãos brancas como mármore. Nunca tinha tocado uma mulher antes, não assim. Acariciou-lhe o rosto, a garganta lisa e branca.

O coração de Elisabeta disparou sob o toque das mãos dele. Seria medo? Ou outra coisa o impelia?

As lágrimas escorreram-lhe pelas faces.

– Rhun – sussurrou ela. – Esperei tanto tempo por você.

Ele traçou a maciez vermelha dos lábios dela com a ponta de um dedo. Ela estremeceu sob o seu toque.

Ele ansiava por colar seus lábios contra os dela, sentir o calor de sua boca. Sentir seu sabor. Mas era proibido. Ele era padre. Casto. Tinha de parar com aquilo imediatamente. Ele recolheu as mãos, mantendo-as a um dedo de distância dela e na direção da cruz de prata sobre a batina.

Ela voltou os olhos para a cruz e deixou escapar um pequeno gemido de desapontamento.

Rhun se imobilizou, lutando contra o calor da pele dela, o cheiro da neve derretida em seu cabelo, o pulsar de seu coração em seus lábios, o cheiro salgado de suas lágrimas. Ele nunca tinha se sentido tão aterrorizado em sua vida mortal nem na imortal.

Ela se inclinou para a frente e o beijou, os lábios delicados como o toque de uma borboleta.

E Rhun se rendeu.

Elisabeta tinha um sabor de pesar, de sangue e paixão. Ele não era mais um padre nem um monstro. Era apenas um homem. Um homem como nunca tinha sido antes.

Ele puxou a cabeça para trás e encarou os olhos semicerrados dela, escuros de paixão. Ela tirou a touca, deixando o cabelo negro cair livre ao redor de seus ombros.

– Sim, Rhun. Sim.

Ele beijou-lhe a parte interna do pulso. O coração dela bateu forte contra os lábios dele. Ele desabotoou a manga e beijou-lhe a dobra do cotovelo. A língua dele saboreou a pele dela.

Ela enterrou as mãos no cabelo dele e o puxou para mais perto. Ele seguiu seu pulso até o pescoço desnudo. Enquanto ela se entregava ao abraço, ele cerrou mais os braços ao redor das costas dela. A boca de Elisabeta encontrou a dele de novo.

Deus e os votos se desvaneceram. Ele precisava sentir a pele dela contra a sua. As mãos dele lutaram com os laços do vestido. Ela o afastou e os abriu ela mesma, a boca nunca se descolando da dele.

O vestido caiu pesado no piso de pedra, e ela pisou fora de seu círculo, mais para perto da lareira. As chamas alaranjadas brilharam através da combinação de linho. Ele a soltou por tempo suficiente para rasgar o traje em dois.

E ela ficou nua em seus braços. A pele macia e cálida. O coração batendo disparado sob suas mãos.

As mãos dela voaram sobre a fileira impossivelmente longa de botões na batina dele. Trinta e três, para simbolizar os 33 anos de vida terrena de Cristo. A batina caiu no chão por cima do vestido dela. A cruz de prata queimou seu peito, mas ele não se importava mais.

Ele tomou Elisabeta nos braços, esmagando-a contra si. Ela gemeu quando a cruz tocou-lhe o seio nu. Ele levantou a mão e quebrou o cordão. A cruz caiu com estrépito no piso de pedra, ao lado da batina. Ele deveria se importar, deveria recolher a santidade da cruz e apertá-la contra o corpo, mantê-la entre eles como um muro.

Em vez disso, escolheu Elisabeta.

Os lábios dela encontraram os dele de novo, e sua boca se abriu sob a dele. Agora nada os separava. Eram dois corpos ansiando apenas pela união.

Ela chamou o nome dele.

Rhun respondeu com o dela.

Ele a deitou no piso aquecido pelo fogo. Ela se arqueou sob ele, a longa garganta aveludada se curvando para sua boca.

Rhun se perdeu no perfume dela, em seu calor, seu coração. Nenhum homem poderia vivenciar o que ele sentia, nenhum Sanguinista poderia resistir. Nunca ele havia se sentido tão feliz, tão forte. Então era por esse êxtase que os homens abandonavam o sacerdócio. Aquela ligação era mais profunda do que seus sentimentos por Deus.

Ele se uniu a ela. Não queria nunca mais se separar dela.

O vermelho o consumiu. E depois a consumiu. Ele pulsou em um mar de vermelho fervilhante.

Quando o vermelho clareou, as almas de ambos estavam destruídas.


44

27 de outubro, 8:02, horário da Europa Central

Harmsfeld, Alemanha

A alguns metros de distância de Erin, Nadia estava ajoelhada ao lado de Rhun, sussurrando em latim, enquanto ele chorava. Fosse lá o que fosse que acontecia quando eles bebiam o vinho consagrado, era mais desagradável que levar seis tiros no peito. Ela sentia por Rhun, prisioneiro naquele estado de eternidade, consignado a um inferno inimaginável pelo pecado de ter sido atacado por um strigoi.

Erin andou de volta para as portas quebradas da igreja e olhou para fora, para a manhã. Jordan foi se juntar a ela, e se encostou ao lado dela. Como ele conseguia se manter tão aquecido? Ela estava morta de frio. Primeiro eles tinham mergulhado no lago de neve derretida, e agora estava numa igreja sem aquecimento.

Depois que Rhun se acalmou, ela ouviu Nadia arquejar enquanto também consumia um bocado do vinho consagrado, mas ela não chorou como Rhun tinha chorado.

Por um longo momento o silêncio encheu a igreja.

– Ele está consciente – finalmente avisou Nadia, tendo recuperado seu estado calmo e controlado. – Se tivermos sorte, estará em condições de viajar antes do cair da noite. Mas estará fraco durante os próximos dias. O sangue de Cristo não nos cura tão rapidamente quanto sangue humano.

– Por que para você o vinho não é tão difícil de beber quanto é para Rhun? – Erin lançou um olhar para o padre, deitado de lado, de costas para eles, coberto pela toalha do altar.

Nadia também olhou para ele.

– Eu não tive que viajar para tão longe.

8:22

Jordan olhou ao redor do pequeno quarto da estalagem que Nadia havia destinado a ele e Erin. O prédio antiquado ficava do outro lado da praça, defronte à igreja do povoado.

Nadia dividia um quarto com Rhun, bem ao lado do deles, mas mesmo assim Jordan examinou o quarto como se estivesse se preparando para um cerco. A porta do hotel era de carvalho sólido. Uma olhada na janela revelou uma grade abaixo do quarto deles no segundo andar. Um ponto de entrada difícil. Ele fez uma avaliação rápida do banheiro. A janela era pequena demais para que qualquer pessoa pudesse entrar. O restante do espaço era típico de acomodações europeias: ladrilhos brancos, um chuveiro utilitário, pia, vaso sanitário e um bidê.

Quando voltou para o quarto principal, Erin não tinha se movido de seu lugar na cama, aninhada na ponta de um edredom grosso. O espaço tinha uma cama de casal, duas mesinhas de cabeceira com abajures e um estranho artefato de metal que ele achava que poderia ser usado para limpar botas.

Erin parecia mais pálida do que ele jamais a tinha visto. Olheiras escuras sombreavam-lhe os olhos; seu rosto estava sujo de terra.

– Você quer entrar primeiro no chuveiro? – perguntou ele.

– Chuveiro – disse ela, levantando-se e se alongando. – A melhor palavra do mundo neste momento.

Jordan a observou sair, fechando a porta. Ele achava que as melhores palavras do mundo naquele momento seriam banho de chuveiro juntos, mas sabia que não deveria dizê-las. Em vez disso, sentou-se do outro lado da cama e abriu o cardápio do serviço de quarto.

Escolheu três seleções de desjejum com café e chá, pois não tinha ideia do que Erin costumava comer ou beber. Pegou o telefone e discou, mas, antes que alguém atendesse, Erin abriu a água do chuveiro. Jordan a imaginou entrando no cubículo ladrilhado, com o cabelo solto e caindo até o meio das costas nuas, a água descendo ao longo das curvas de seu...

– Darf ich Ihnen behilflich sein? – indagou a voz do outro lado da linha.

Jordan deu as costas para a porta do banheiro e pediu o café em alemão.

Enquanto esperava, estendeu os casacos deles para secar sobre o radiador, tentando não pensar em Erin no chuveiro, o rosto virado para a água e o vapor subindo ao seu redor.

Ele precisava encontrar alguma coisa para fazer. Sentou-se na cama e limpou as armas, uma de cada vez, mantendo a outra sempre perto de sua mão. Depois disso, limpou a Sig Sauer de Erin.

Nadia bateu à porta e enfiou uma sacola de papel nas mãos dele sem dizer uma palavra. Enquanto fechava a porta, Jordan abriu a sacola e encontrou artigos básicos de toalete e uma muda de roupas para cada um.

Suéteres grossos; ele então concluiu que não iriam voar de volta para Jerusalém.

O serviço de quarto chegou e Jordan começou a tomar seu café antes que Erin acabasse o banho.

Momentos depois, o fluxo da água foi fechado com um som alto. Ele ficou olhando para a porta, esforçando-se para não imaginar Erin nua enxugando o corpo.

Não conseguiu.

Esperou que ela saísse. Quando finalmente saiu, entrou no quarto envolta numa nuvem de vapor. Vestia um roupão atoalhado branco que devia ter encontrado no banheiro e tinha trocado o curativo da mão. Ela estava com o rosto e o pescoço avermelhados pela água quente. Ele desejou ver até onde aquele rubor se estendia pelo seu corpo.

À medida que ela se aproximou, Jordan ajeitou o guardanapo no colo.

– Tentei deixar um pouco de água quente para você – disse ela.

– Eu... humm... tentei deixar um pouco do café da manhã para você. – Jordan tomou um grande gole do café fumegante.

Erin se aproximou dele e olhou para as sobras de comida.

– Esperemos que eu tenha feito um melhor trabalho que você.

Ele manteve os olhos deliberadamente afastados da frente do roupão e seguiu apressado para o banheiro. Tomou um banho e se barbeou rapidamente. Depois de escovar o cabelo e vestir uma calça cáqui limpa e uma camisa de mangas compridas, Jordan se sentiu pronto para conquistar o mundo.

Ou pelo menos para tirar uma longa soneca.

Erin estava acabando de tomar o café quando Jordan saiu do banheiro. Ele se deitou na cama e suspirou. Uma cama de verdade.

– Eu poderia dormir no chão – disse Erin.

– Nenhum de nós dois vai dormir no chão. Prometo ficar do meu lado, se você prometer ficar do seu.

Erin olhou para o chão como que considerando a opção.

Jordan se pôs de pé e retirou o casaco seco de cima do radiador.

– Antigamente, em horas de extrema necessidade, as donzelas não dormiam com uma espada entre elas e o cavaleiro protetor? – Ele estendeu o casaco no meio da cama e levantou três dedos. – Palavra de escoteiro, não vou cruzar o fosso de couro, a menos que você peça.

Ela olhou para ele com ceticismo.

– Você algum dia foi escoteiro?

Ele se deixou cair do lado da cama mais próximo da porta.

– Escoteiro Águia.

Depois de um breve intervalo, ambos se acomodaram em seus respectivos lados da cama. Jordan achou que ficaria acordado pensando em Erin deitada ali a centímetros de distância, mas adormeceu quase que imediatamente, ainda vestido.

Ele acordou sentando-se na cama, com a mão na arma. Examinou o quarto ensolarado com um único olhar. Nada estava fora do lugar. Porta fechada. Janela fechada. Banheiro vazio. O que o tinha acordado?

Ao seu lado, Erin choramingava.

Ele se virou para saber como estava. Ainda de roupão, estava deitada de lado, de frente para ele, com as mãos unidas debaixo da face. Ela soluçou dormindo. Ele teve vontade de estender a mão por cima do casaco e tocar nela, mas não queria quebrar a promessa. Um movimento errado com Erin e estaria acabado.

– Calma – disse baixinho, como se ela fosse sua sobrinha Abigail, famosa na família por seus pesadelos sobre tarântulas gigantes.

Erin soltou um longo suspiro e pareceu mergulhar ainda mais profundamente no sono.

Erin tinha material de sobra para ter pesadelos: strigoi, morcegos e...

Com um grito, Erin se sentou ereta.

– Estou aqui – disse Jordan. – Estamos em segurança.

Ela olhou para ele, os olhos arregalados.

– Sou eu, Jordan, lembra? – perguntou.

Trêmula, ela respirou fundo, e chegou para trás para se apoiar na cabeceira.

– Eu me lembro.

Tomando cuidado para se manter de seu lado do casaco, Jordan fez o mesmo.

– Sonho ruim?

– Realidade ruim.

– Devo me sentir ofendido? – Talvez aquilo a fizesse relaxar um pouco.

– Não estava me referindo a você. Você é... bem... tudo bem. Mas o resto da situação...

Jordan ficou ofendido por ser considerado tudo bem, mas decidiu que aquele não era um momento para fazer um comentário ácido.

– Pelo menos conseguimos dormir um pouco e fazer uma boa refeição. Desde Massada que não me sinto tão bem.

Ele parou de falar de Massada. O lugar onde seus homens tinham morrido. Todos eles. Ele disse seus nomes em sua cabeça, pretendendo nunca esquecê-los: Sanderson. McKay. Cooper. Tyson. Todos eles, exceto McKay, mais moços que ele. Tyson tinha uma filha de 2 anos que nunca mais veria a mãe. McKay tinha três filhos, uma ex-mulher e um cachorro chamado Chipper. Cooper usava o soldo do Exército para sustentar a mãe idosa e frágil e uma sucessão de namoradas. Sanderson não tinha tido tempo nem de começar um relacionamento. Era apenas um garoto. Jordan apoiou a cabeça contra a cabeceira.

– Foram 24 horas realmente muito longas.

– Só gostaria de saber o que virá agora – respondeu Erin.

– Mais uma viagem de campo com nossos divertidos guias, Rhun e Nadia.

– Nadia não é nada divertida. – Erin puxou as cobertas para cima, além da cintura. – Acho que ela teria me matado naquela igreja.

– Achei que ela estava blefando.

Erin levantou a mão até a garganta.

– Não creio que Nadia blefe.

Jordan também achava que não.

– Tenho a impressão de que, se ela quisesse, poderia apenas nos esmagar como se fôssemos insetos e contratar alguém para limpar a sujeira.

Erin sorriu.

– Isto é para me acalmar?

Ele olhou para ela.

– Pelo menos temos um ao outro. – Isso soou tão sentimentaloide que ele teve vontade de retirar as palavras.

– Mas eu mal conheço você – disse ela.

– O que você quer saber? – Ele enfiou um travesseiro atrás da cabeça. – Eu sou humano. Tenho 35 anos. Sou militar de carreira. Nasci em Iowa. Sou o terceiro de cinco filhos. Minha cor favorita é verde.

Erin sorriu e sacudiu a cabeça.

– Não basta? – Jordan decidiu ir fundo, apenas contar a verdade. – Minha mulher, Karen, também estava no exército. Ela morreu há cerca de um ano. Morreu em combate. – A voz dele se retesou ao redor daquele nó de pesar, mas ele seguiu adiante. – Não tivemos filhos, mas eu queria três. Agora é a sua vez. Filhos? Marido? Irmãos?

– Eis uma brincadeira de que não posso participar.

Ele viu um lampejo rápido de sofrimento nos olhos dela antes de Erin desviar o olhar.

Família era assunto proibido. Entendido. Ele escolheu uma pergunta mais fácil.

– Nem mesmo a sua cor favorita? Isto não é segredo de Estado, certo?

Ela se virou de volta para ele com um ligeiro sorriso, como se apreciasse o esforço.

– Sépia.

– Sépia? – Ele a encarou. – Isto é marrom, certo?

– É um cinza acastanhado. Originalmente era feito da secreção da siba; sépia é a denominação latina da siba.

Os olhos francos cor de âmbar encararam os dele. Ou será que eram sépia?

– Entendi. Isto é um começo. – Ele se mexeu na cama tentando encontrar outra pergunta. – Vamos fazer de conta que hoje é sábado e que você está em casa. O que estaria fazendo?

Ela olhou para o casaco de lobogrifo, quase como se estivesse encabulada.

– Estaria comendo Lucky Charms e assistindo a desenhos animados na TV.

– Esta resposta me pegou de surpresa. – Ele a imaginou sentada, de pijama, com uma tigela de cereais no colo e vendo desenhos na TV. Nada mau para começar um fim de semana.

– Minha colega de quarto na faculdade, Wendy, me introduziu ao hábito. Ela dizia que eu precisava assistir a muitos desenhos para descontar o tempo perdido.

Depois da infância triste de Erin, parecia que Wendy estava certa.

– E agora – disse Erin –, sua vez. O que você estaria fazendo numa manhã modorrenta de sábado?

– Estaria dormindo. – Jordan desejou ter uma resposta mais interessante.

Ela pareceu contrita.

– Lamento ter acordado você.

– Pois eu não lamento. – Ele estendeu a mão e ajeitou uma mecha úmida de cabelo, afastando-a do rosto dela, pronto para recuar se ela desse algum sinal de querer que ele parasse.

Em vez disso, ela fechou os olhos e apoiou a face contra a mão dele.

Ele se inclinou por cima do casaco de pele de lobogrifo e a beijou. Fez isso sem pensar, como se os lábios dele devessem estar ali.

Ela deixou escapar um minúsculo suspiro e pôs os braços ao redor do pescoço dele.

10:04

Rhun despertou envolto no cheiro cítrico de líquido de limpeza. Pôs a palma da mão sobre o peito dolorido, se lembrando.

Apoiando-se em um cotovelo, se ergueu. Estava em um quarto com as cortinas brancas fechadas para impedir a entrada da luz. A alguns passos de distância, uma mulher estava deitada no piso de madeira. Nadia. Ele agora se lembrava. Nadia. Emmanuel. O bunker. Tentou escutar os batimentos cardíacos de Erin e Jordan, e os ouviu do outro lado de uma parede. O som abafado da conversa deles o confortou.

Ele usou a cabeceira da cama para se levantar e ficar de pé.

Nadia despertou, espreguiçando-se como um gato.

– Melhor?

Rhun ficou de pé, meio trôpego.

– Você está ferida?

– Só na perna. – Ela também se levantou, com mais facilidade que ele. – Vai sarar.

Rhun a invejou.

– Os outros se feriram?

– O soldado tem sorte – disse ela. – E a mulher é uma excelente atiradora, mesmo com uma pistola, e teve o bom senso de ficar abaixada.

– Piers? – Rhun olhou ao redor do quarto na penumbra.

– Se foi. – Nadia explicou tudo o que tinha acontecido desde que Rhun fora baleado na floresta.

Rhun então chegou à pergunta mais perturbadora:

– Como os Belial souberam onde estávamos, onde nos apanhar de emboscada?

A partida de sua equipe de Jerusalém tinha sido do conhecimento apenas do cardeal e de seu círculo mais íntimo.

Nadia suspirou, preocupada.

– Creio que a melhor linha de ação é que eu retorne à abadia com a notícia da morte de Emmanuel, e que diga que você e os outros também morreram. Isto dará a você tempo para operar fora do alcance da igreja e de quaisquer espiões, esconder seus próximos passos no caminho da busca pelo Evangelho de Sangue.

Rhun assentiu. Precisavam manter em segredo a busca, ocultá-la sobretudo dos Belial.

– E Piers? O que você dirá a respeito dele?

– Contarei o que encontrei – disse ela. – Uma pena que eu só tenha visto soldados alemães no bunker. E strigoi, é claro.

– Então não vai contar a eles sobre os soldados russos?

– Se a igreja souber que soldados russos de São Petersburgo estiveram no mesmo bunker que o Evangelho de Sangue, eles enviarão mais que uma equipe para a Rússia. Será uma guerra aberta.

Rhun assentiu. Nenhum Sanguinista jamais tinha voltado vivo de São Petersburgo desde que o traidor Vitandus havia assumido o comando por lá. Para retirar qualquer coisa da Rússia, a igreja teria de enviar um exército. E cada baixa enfraqueceria a ordem na batalha que por fim teria de travar contra os Belial.

– Temos que ir sozinhos – disse Rhun. – Não só para impedir uma guerra, como para ter alguma esperança de recuperar o livro.

– E os humanos? Será perigoso levá-los.

– O Vitandus pode odiar a nossa Ordem, mas ele mantém um estranho sentido de honra. Isto pode ser suficiente para mantê-los em segurança.

Do outro lado da parede, Rhun ouviu os corações de Jordan e de Erin baterem mais depressa.

– Posso ver claramente sua afeição por eles, Rhun – disse Nadia. – Você acha que os russos não verão?

– Não posso deixá-los aqui. – Ele tentou bloquear os sons de Erin e Jordan. – Se os Belial têm agentes nas fileiras sanguinistas, a vida deles pode estar correndo mais risco aqui do que se eu os levar para a Rússia.

– Então está resolvido. – Nadia se levantou e pôs o cinto de corrente.

– Vou precisar de documentos para todos nós – acrescentou Rhun.

– Eu os conseguirei para você em segredo.

Rhun refletiu sobre o caminho no qual estava prestes a embarcar. Pela primeira vez em sua longa vida, estava prestes a se separar da igreja, ainda que fosse apenas por pouco tempo. Ele se sentiu pesaroso.

Nadia seguiu em direção à porta.

– E vou lhe trazer alguma coisa que possa trocar por salvo-conduto. Algo de precioso para o governante de São Petersburgo.

Nem mesmo Nadia ousava dizer o nome dele.

Ele outrora havia sido um Sanguinista, mas havia violado as leis da igreja tão violentamente que tinha sido excomungado – e não uma excomunhão comum, mas um banimento que não poderia ser desfeito, e tão severo que depois dele todos os que o conheciam tinham que condená-lo ao ostracismo.

No final, seu nome tinha se tornado sua praga: Vitandus.

10:08

Erin sorriu quando Jordan a levantou por cima do casaco de couro e a trouxe para seu colo. Ela agora estava montada nele, olhando para o seu sorriso travesso.

– O que aconteceu com cada um ficar do seu lado?

– Foi você que veio para o meu lado. – Ele a beijou de leve nos lábios e um calafrio desceu pela coluna de Erin.

Ela não podia discutir com aquilo. Com um pé, ela chutou o casaco de lobogrifo para o chão.

Jordan sorriu para ela.

– Problema resolvido.

Ela passou a mão no queixo dele. Liso depois da barba feita há pouco tempo. Ela o beijou de novo. Ele cheirava a creme de barbear de eucalipto, e estava com gosto de café.

Ela recuou e contemplou os belos olhos azuis.

– Seus olhos são azul-egípcio, como o deus-sol, Rá.

– Vou interpretar isto como um elogio.

Ele deslizou a palma ao redor da base da coluna dela, então a puxou tão apertado contra o peito que ela sentiu o coração dele bater contra seu seio.

Ela relaxou contra ele, sentindo-se segura.

Então ele moveu os lábios, encontrou sua boca e a beijou com força. Uma ânsia fluiu dos lábios dele para os dela. Ela gemeu entre eles e enfiou os dedos no cabelo dele, puxando-o ainda mais para perto.

Erin queria esquecer tudo o que tinha acontecido nas últimas 24 horas, apagar cada lembrança ruim. Em sua cabeça, havia espaço apenas para eles dois. Ele acariciou seu corpo com as mãos.

Com um braço ao redor das costas dela, ele usou o outro para virá-la e deitá-la na cama debaixo dele.

Ela se alongou sob o peso dele, sentindo a forma musculosa de Jordan se acomodar sobre seu corpo. As mãos de Erin acariciaram as costas largas. Ela as enfiou debaixo da camisa, sentiu o calor macio de sua pele. Ele tirou a camiseta em um movimento rápido, revelando o esplendor da tatuagem descendo por um lado, o fractal se abrindo em ramos, marcando o golpe do raio, uma prova da breve experiência dele da morte.

Ela traçou com um dedo uma das linhas bifurcadas, levantando um arrepio na pele dele.

Ele agora estava longe de estar morto: sua respiração ofegava, calor irradiava de seu corpo. Seus olhos brilhavam cravados nos dela.

Sem nunca despregar os olhos dos dela, ele desamarrou o cinto do roupão e o abriu, esticando os dois lados da vestimenta. Só então os olhos dele desceram, devorando-lhe o corpo, deixando calor por onde passavam, sem que ele sequer a tocasse.

– Uau! – disse ela, baixinho.

Ela o puxou para si, suspirando quando a pele nua dele tocou a dela. A boca de Jordan encontrou a dela de novo. Erin se perdeu naquele beijo. Seu coração disparou contra o dele, e a respiração dela se entrecortou e depois também ficou ofegante.

Ele afastou os lábios dos dela, só a distância de um dedo, e ela se ergueu para buscá-los de novo. Jordan beijou-lhe a boca e a garganta. Erin inclinou o pescoço e arqueou as costas contra o travesseiro, sentindo mechas de cabelo molhado caírem sobre o seu rosto, mas não querendo tirar as mãos do corpo dele por nem um segundo para afastá-las. Os lábios dele desceram mais, acompanhando o osso da clavícula, acabando bem no meio.

– Erin? – A pergunta dele roçou suave contra o pescoço dela.

Ela sabia o que ele queria perguntar, e sabia o que queria responder. Mas não falou.

– Espere. – A palavra saiu ofegante. Ela o afastou e fechou o roupão. – Depressa demais.

– Mais devagar – disse ele. – Entendi.

Erin fechou o roupão. Seu coração estava disparado e ela não queria mais nada, senão voar de volta para o calor dos braços dele. Mas não confiava nisso. Não podia.

Um punho bateu na porta.

Uma voz chamou.

Nadia.

– Está na hora de ir.


45

27 de outubro, 10:10, horário da Europa Central

Munique, Alemanha

À medida que o jato levantava voo, Bathory se acomodou na poltrona macia com um suspiro. Na escuridão do compartimento de carga, ela sentiu Magor relaxar.

Durma, meu querido, disse a ele. Estamos em segurança.

Pela primeira vez em anos, ela estava viajando durante o dia, e sem os strigoi. No lugar para onde estavam indo, eles tinham mais a temer que apenas a luz do sol; sua própria existência os punha em risco. Era um destino perigoso, mas ela se sentia mais segura sem eles.

Bathory tinha fretado um avião, um cujo piloto não lhe fizera perguntas quando a equipe de terra embarcara o lobo no compartimento de carga. Ele tinha ficado silencioso em seu caixote coberto, como fora ordenado, mas os homens devem ter sentido seu cheiro, sabido que era um animal enorme. Pelo preço certo, não tinham dito nada. Ela se alongou prazerosamente na ampla poltrona do jato. Tinha o avião inteiro só para si. As únicas outras pessoas a bordo eram o comandante e o copiloto.

Quanto tempo fazia desde que estivera assim sozinha pela última vez? Longe Dele e de Suas ferramentas? Anos.

Ela alisou o assento de couro com satisfação e levantou a cobertura da janela. A luz do sol inundou a cabine, caindo sobre as pernas dela, aquecendo-as. Estendeu a mão para a luz como se pudesse segurá-la. Quando se cansou disso, voltou sua atenção para a paisagem abaixo.

A cidade de Munique cedia lugar a fazendas, florestas e minúsculas residências para uma família se espalhavam, cada vez mais distantes umas das outras à medida que o jato avançava para o leste. Em cada casa, uma família tinha acabado de tomar café. Um pai tinha dado um beijo de despedida a uma mãe, uma criança tinha recolhido a mochila escolar e partido. Aquelas casas agora estavam vazias, mas mais tarde se encheriam de novo.

Como seria viver numa delas?

Seu destino estivera traçado desde o nascimento. Nada de vida simples de marido e filhos e domesticidade. Ela geralmente só sentia desprezo por aqueles vivendo uma existência simples como aquela, mas naquele dia se sentia atraída por seu charme humilde.

Bathory sacudiu a cabeça. Mesmo se fosse livre, não se acomodaria em outra prisão como esposa e mãe. Em vez disso, ela e Magor caçariam. Poderiam ir tão longe quanto quisessem, vivendo sozinhos, sem nunca ter que se preocupar com que Ele a punisse, com que Tarek finalmente tivesse a vingança com que tanto sonhara, sem ter de lutar todos os dias para ser respeitada, pelo direito de viver para ver mais um nascer do sol.

Só de pensar nisso ela ficava cansada.

Magor se agitou atrás e abaixo dela, sentindo suas preocupações.

Descanse, disse ela a ele, e ele tornou a se acomodar.

Com os dedos, ela alisou a marca negra em seu pescoço, a prova que a punha à margem dos outros. Seria preciso um milagre para apagá-la, para escapar Dele.

E se o livro pudesse revelar-lhe exatamente esse milagre?


PARTE IV


Maldito serás tu na cidade, e maldito serás no campo.
Maldito o teu cesto e a tua amassadeira.
Maldito o fruto do teu ventre, e o fruto da tua terra...
Maldito serás ao entrares, e maldito serás ao saíres.

– Deuteronômio 26: 16-19


46

27 de outubro, 16:45, horário de Moscou

São Petersburgo, Rússia

Erin tinha caminhado penosamente enquanto passava pela alfândega russa semiadormecida, mas despertara totalmente quando ela e os dois homens chegaram à calçada gelada na frente do aeroporto de São Petersburgo. Rhun os empurrou para dentro de um táxi com o aquecimento quebrado e um motorista que obviamente não temia a morte. Ela ficou apavorada demais para sentir frio enquanto o motorista dirigia como um louco em alta velocidade em meio à tempestade de neve que se intensificava, o tempo todo falando em russo.

Por fim o táxi estacionou diante do que parecia ser um parque na cidade, um espaço que provavelmente era verdejante no verão, com árvores altas enfileiradas em ambos os lados. Naquele dia as árvores tinham os galhos nus, e a grama congelada logo estaria enterrada sob uma camada espessa de neve.

Ela não conseguia acreditar em como tinha vindo parar longe do calor ardente do deserto de Massada. Na manhã do dia anterior sua maior preocupação com relação ao tempo tinha sido se queimar com o sol; agora, era a hipotermia. Enquanto saltava do táxi, o vento de São Petersburgo penetrou cortante em seu casaco de pele de lobogrifo e sugou o calor do tutano de seus ossos. Em vez de areia, flocos de neve saibrosos arranhavam-lhe as faces.

Acima, o sol tinha se transformado em um disco perolado lutando para lançar um brilho branco em meio a massas de nuvens, oferecendo pouca luz e ainda menos calor.

Jordan andou bem perto ao lado dela enquanto eles atravessavam um arco de pedra e entravam no parque. Ela suspeitava que ele queria pegar a mão dela, mas enterrou os punhos cerrados bem fundo nos bolsos e seguiu andando. Ele pareceu magoado, e não podia culpá-lo, mas não sabia o que fazer com ele. Tinham quase feito amor na Alemanha, e ela estava aterrorizada com o que teria acontecido se o fato houvesse se consumado. Ela já gostava mais do que devia de Jordan.

Com cada passo, seus tênis escorregavam nas pedras do calçamento cobertas de gelo. De ambos os lados, a terra tinha sido elevada em montes da altura dos joelhos. Erin os observou se perguntando para que serviriam.

Jordan virou a lapela para cima, o nariz e as faces já vermelhos. Ela se lembrou de sentir o queixo dele sob seus lábios, o calor dos lábios dele contra a sua pele, e rapidamente desviou o olhar.

Alguns passos mais à frente, Rhun não tinha se dado ao trabalho de vestir o casaco e caminhava com sua batina negra esvoaçando, as mãos brancas ao lado do corpo, parecendo tão confortável quanto estivera no calor de quarenta graus no cume de Massada. Em uma das mãos, ele carregava o longo cilindro de couro que Nadia tinha deixado para eles na Alemanha. Erin não tinha ideia do que continha e suspeitava de que Rhun também não tivesse. Antes de entregá-lo a ele, Nadia havia selado o cilindro com o brasão: duas chaves cruzadas entrelaçadas nos anéis de um cordão sob a tríplice coroa do papa.

– Muito bem, Rhun. – Jordan se posicionou do lado direito do padre. – Por que estamos aqui? Por que viemos para este parque gelado?

Erin se moveu para o outro lado de Rhun para ouvir a resposta. Ele tinha dito a eles apenas que se dirigiam a São Petersburgo, que as tropas russas poderiam ter trazido o livro de volta para a cidade depois de guerra. Erin já tinha imaginado isso, lembrando-se do soldado russo morto no bunker, e recordando de Nadia lendo as ordens de serviço em cirílico. O soldado tinha sido despachado daquela cidade.

Erin também sabia que o homem tinha mulher e filha, uma filha que ainda poderia estar viva, morando em São Petersburgo, sem saber que alguns desconhecidos sabiam mais a respeito da morte de seu pai do que ela.

Erin estava satisfeita por ter dado a Nadia as cartas do bunker para serem entregues ao irmão Leopold. Talvez os esforços deles trouxessem alguma paz à mulher.

– Rhun? – pressionou-o Erin, querendo saber mais, merecendo saber mais.

O padre se deteve e olhou por cima dos montes cobertos de neve para uma moita de árvores esqueléticas. O vento sacudia folhas teimosas e esfiapadas.

– Nós tivemos que vir aqui para pedir permissão para procurar o livro em solo russo.

– Por quê? – perguntou Jordan. – Pensei que os Sanguinistas não pedissem permissão.

– São Petersburgo não fica em nosso domínio – respondeu ele, sem esclarecer nada.

– Então, de quem é? – perguntou Jordan. – Depois da queda do Muro de Berlim, a Igreja Católica teve a presença renovada aqui.

Erin enfiou as mãos mais fundo nos bolsos frios e olhou fixamente para o fim do caminho, onde viu uma grande estátua de bronze de uma mulher de saia larga levantando no ar um objeto. Erin apertou os olhos, mas não conseguiu distinguir o que era. Ela examinou todo o espaço ao redor. Tinha pensado que aquilo fosse um parque público, mas uma atmosfera de tristeza permeava o ar. Ela não conseguia imaginar crianças brincando ali.

– O Vitandus governa esta terra – respondeu Rhun a Jordan. O padre tocou no cilindro que trazia pendurado no ombro como que para se certificar de que não o havia perdido. – E ele não gosta da igreja. Quando ele chegar, não digam nada a respeito da nossa missão ou a respeito de vocês.

– O que é um Vitandus? – perguntou Jordan.

Erin sabia a resposta.

– É um título dado como punição. Não existe pior condenação da igreja. É pior que a excomunhão. Mais como um banimento e ostracismo permanente.

– Que ótimo. Não posso esperar para conhecer o sujeito. Deve ser realmente um sedutor.

– Ele é – acrescentou Rhun. – Então, tome cuidado.

Jordan fez um movimento involuntário em direção ao coldre, mas eles tinham sido obrigados a deixar as armas na Alemanha. Tinham voado para ali em linhas aéreas comerciais, usando documentos falsos preparados por Nadia. Mas não houvera nenhum meio de contrabandear as armas.

– O que este Vitandus faz? – perguntou Erin, batendo os pés frios contra a pedra como se isso fosse aquecê-los. – Quem é ele?

Rhun manteve o olhar nas árvores nuas, atento, desconfiado, com uma expressão assustada nos olhos. Ele respondeu em tom prático – embora a resposta a deixasse atordoada.

– Você conhece bem o homem pelo nome de Grigori Yefimovich Rasputin.

16:52

Seguindo lentamente pelo caminho, Rhun foi tocando as contas de seu rosário e ofereceu uma prece rogando que Grigori não ordenasse a morte imediata deles, como havia assassinado todos os Sanguinistas que tinham sido enviados à Rússia desde 1945. Talvez o tubo que Nadia lhe havia entregado oferecesse alguma esperança. Ela o havia instruído para que ele o entregasse a Grigori sem abri-lo.

Mas o que era?

Será que continha um presente ou uma arma?

Erin interrompeu suas preocupações:

– Rasputin? – A descrença soava clara em sua voz e brilhava em seus olhos estreitados. – O Monge Louco da Rússia? Confidente dos Romanov?

– Este mesmo – respondeu ele.

Aqueles detalhes eram o que a maioria dos historiadores observava a respeito de Grigori Yefimovich Rasputin. Ele tinha sido um monge místico que se dizia possuir poderes de cura, cujo destino estivera ligado ao tzar Nicolau II e à sua família. No princípio da década de 1900, ele usara esses poderes para conquistar as graças do tzar e de sua família, aparentemente sendo o único homem capaz de ajudar o filho deles, que padecia da dolorosa doença da hemofilia. Por esses cuidados, eles haviam feito vista grossa para suas excentricidades sexuais e maquinações políticas, até que finalmente um agente secreto britânico e um grupo de nobres o assassinaram.

Ou pelo menos era o que se pensava.

Rhun, é claro, sabia de muito mais.

Ele respirou fundo o ar frio. Sentiu o cheiro forte de neve fresca, o do tapete subjacente de folhas queimadas pela geada e o ligeiro odor velho de morte.

Aqui estava a Rússia.

Havia cem anos que ele não sentia seu aroma.

Enquanto isso, Jordan examinava em detalhe o parque, sempre vigilante enquanto andava ao lado de Rhun.

Rhun acompanhou seu olhar. Os olhos do soldado se demoraram nos troncos de árvore escuros, no muro baixo de pedras, no plinto sustentando a estátua, todos os lugares onde o inimigo poderia se esconder. Ele apreciou o cuidado e a desconfiança de Jordan, duas características valiosas quando se estava em solo russo. Mas o adversário deles ainda não tinha chegado. Por talvez mais alguns momentos eles ainda estavam em segurança.

Pararam diante da estátua escura e tristonha de uma mulher de olhos perdidos na distância, oferecendo uma coroa de flores aos cidadãos mortos de São Petersburgo: o símbolo de uma pátria mãe enlutada.

Jordan soprou as mãos para aquecê-las, em um gesto que remetia à sua humanidade e ao fogo que ardia dentro dele. Ele encarou Rhun.

– Pensei que Rasputin tivesse morrido durante a Primeira Guerra Mundial.

Erin respondeu:

– Ele foi assassinado. Envenenado com cianeto, baleado quatro vezes, espancado com um taco, enrolado num tapete e atirado no rio Neva, onde supostamente se afogou.

– E este sujeito sobreviveu a tudo isso? – perguntou Jordan com sarcasmo. – Para mim parece um strigoi.

Erin sacudiu a cabeça.

– Há muitas fotografias dele à luz do dia.

Rhun tentou se concentrar para além da conversa interminável deles. Ouviu uma criatura se mexer entre as árvores a alguns metros de distância. Mas era apenas um rato silvestre procurando grãos antes que o inverno cobrisse tudo de neve. Ele esperava que o animal encontrasse alguma coisa.

– Então, o que ele é? – perguntou Jordan.

Rhun suspirou, sabendo que somente respostas os silenciariam.

– Grigori um dia foi um Sanguinista. Ele, Piers e eu servimos como uma tríade por muitos anos, antes que ele fosse excomungado.

Jordan franziu o cenho.

– Então a sua Ordem excomungou este sujeito, depois o puniu com o banimento eterno?

– Uma ordem de Vitandus – recordou Erin.

O soldado assentiu.

– Não é de admirar que este sujeito não goste da igreja. Talvez vocês precisem cuidar das relações públicas.

Rhun deu as costas para eles.

– Este não é o único motivo para o ódio que ele tem da igreja.

Ele tocou em sua cruz peitoral. Grigori tinha muitos motivos – centenas de milhares de motivos – para odiar a igreja, motivos que Rhun compreendia bem demais.

– Então, por que Rasputin foi excomungado? – perguntou Erin.

Ele ainda podia ouvir a dúvida na voz dela quando dizia o nome de Grigori. Ela não acreditaria na verdade enquanto não a tocasse. Nesse caso, ela poderia vir a lamentar por precisar de tais confirmações.

Jordan pressionou Rhun com mais perguntas:

– E o que acontece com um Sanguinista excomungado? Ele ainda pode realizar os ritos sagrados?

– Dizem que um padre tem uma marca indelével na alma – disse Erin. – Eu poderia então presumir que ele ainda pode consagrar o vinho?

Rhun esfregou os olhos – com vidas tão curtas, a impaciência deles era compreensível. Ele desejava silêncio, mas não o teria.

– Grigori pode consagrar o vinho – respondeu Rhun em tom fatigado. Mas, ao contrário do vinho abençoado por um padre da verdadeira igreja, ele não tem o mesmo poder de sustento que o sangue de Cristo. Por causa disso, ele estará para sempre prisioneiro em um estado entre strigoi maldito e Sanguinista abençoado.

Erin afastou o cabelo do rosto.

– O que isto significa para a alma dele?

– No momento – disse Jordan – estou mais preocupado com o que significa para o corpo dele. Tipo: ele pode sair durante o dia?

– Pode e sairá.

E brevemente.

– Então por que precisamos da permissão dele para estar aqui? – perguntou Jordan.

– Nós precisamos porque ele não permitiu que um Sanguinista deixasse solo russo vivo em muitas décadas. Ele sabe que estamos aqui. E mandará que sejamos levados à sua presença quando chegar a hora.

Jordan se virou para ele, com o coração acelerando de raiva.

– E você não poderia ter-nos contado isso antes? Que tipo de perigo estamos correndo?

Rhun encarou a fúria dele.

– Creio que temos uma boa chance de deixar a Rússia vivos. Ao contrário dos outros que vieram aqui, o Vitandus e eu temos um relacionamento diferente pelo que vivemos juntos no passado.

A mão de Jordan se moveu para o lado onde sua arma geralmente estava pendurada.

– Então os homens no carrinho preto que está nos seguindo desde o aeroporto... eles pertencem a um gângster russo strigoi com uma ordem de atirar à primeira vista em todos os Sanguinistas?

Erin virou violentamente a cabeça em direção à rua distante.

– Estamos sendo seguidos?

Jordan apenas deu um olhar furioso.

– Eu havia tido a esperança de que eles fossem o pessoal de Rhun.

– Não tenho nenhum pessoal aqui – disse Rhun. – A igreja não sabe que estamos aqui. Depois do ataque em Massada e depois dos acontecimentos na Alemanha, desconfio que os Belial tenham um traidor entre os Sanguinistas. Então mandei Nadia nos declarar mortos.

Um músculo se contraiu no maxilar do soldado.

– Ah, isto está ficando cada vez melhor.

Uma nova voz os interrompeu, em tom repreensivo, mas ao mesmo tempo divertido:

– Tanta veemência não fica bem por aqui.

Todos eles se viraram enquanto um homem usando as vestimentas longas e escuras de um padre ortodoxo russo saía de trás da estátua de bronze e se aproximava deles com pernas robustas. A bainha do traje negro roçava no calçamento. Ele usava uma cruz peitoral, um crucifixo de três traves da mesma igreja.

Ele sorriu à medida que se aproximou deles. O cabelo outrora comprido tinha sido cortado dois centímetros acima dos ombros e estava penteado para trás, revelando um rosto largo e astutos olhos azuis. A barba castanha estava bem aparada, como não fora ao longo dos anos que Rhun tinha passado com ele.

Erin conteve uma exclamação de surpresa.

Grigori, Rhun se deu conta, ainda devia se parecer o suficiente com as suas fotos de cem anos antes para acabar com as dúvidas dela. Ele rezou para que Jordan se lembrasse de sua advertência de não dizer nada a Rasputin.

Rhun o cumprimentou com uma ligeira inclinação de cabeça.

– Grigori.

– Meu caro Rhun. – Grigori inclinou a cabeça com feições quadradas na direção de Erin e Jordan. – Você tem novos companheiros.

Rhun não os apresentou.

– Tenho.

– Como de hábito, você escolheu um local sábio para o nosso encontro. – Grigori gesticulou em direção aos montes de ambos os lados do caminho com a mão forte. – Eu poderia matá-lo em outro lugar, menos aqui. Não entre os ossos de meio milhão de meus compatriotas.

Jordan girou a cabeça ao redor, como se procurando os ossos.

– Será que ele não contou a vocês onde estão? – Grigori estalou a língua. – Sempre um mau anfitrião, o padre Korza. Vocês estão no cemitério Piskariovskoye. É um monumento em homenagem às vidas daqueles que morreram durante o cerco de Leningrado. Estes montes que vocês veem são covas coletivas. São precisamente 186 delas.

Erin olhou horrorizada para a extensão de montes gramados.

– Eles contêm os ossos de meio milhão de russos. Quatrocentos e vinte mil civis. Eles morreram durante os anos em que os nazistas fizeram cerco a nossa cidade. Quando lutamos e rezamos implorando por ajuda. Mas a ajuda não veio, não é, Rhun?

Rhun não disse nada. Se dissesse alguma coisa, insuflaria a chama do temperamento explosivo de Grigori.

– Quatro anos de massacre incessante. E, apesar disso, será que algum destes túmulos pesa na consciência de seu cardeal?

– Eu sinto muito – disse Erin. – Por suas perdas.

– Até a criança pode pedir desculpas, Rhun. Está vendo? – Grigori apontou para trás em direção a um carro parado perto da entrada do cemitério. – Vamos tirar seus pobres companheiros do frio? Pelo que vejo, estão sofrendo com ele.

Rhun lançou um olhar rápido para Erin e Jordan. Eles de fato pareciam estar com muito frio. Ele costumava lidar tão pouco com humanos que se esquecia das fragilidades deles.

– Você garantirá a nossa segurança?

– Não mais do que você garantirá a minha. – O vento açoitou o cabelo escuro de Grigori contra sua face pálida. – Deve saber que a hora da morte de vocês agora é minha escolha.

17:12

Jordan passou um braço ao redor dos ombros de Erin. Ela não se apoiou nele, mas também não se afastou. Ele encarou Rhun e Rasputin, percebendo entre eles a tensão de velhas hostilidades, mesclada com uma dose de respeito, talvez até uma estranha amizade.

Manteve o tom brincalhão.

– Que tal conversarmos sobre nossa morte iminente em algum lugar quente?

As sobrancelhas de Rasputin se ergueram alto ao ouvir as palavras dele, então ele atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Sua risada soou gostosa, alegre e completamente fora de lugar num cemitério coberto de neve, especialmente depois que o homem os ameaçou de morte. Jordan podia ver por que o chamavam de Monge Louco.

– Gostei deste aqui. – Rasputin bateu com a mão larga nas costas de Jordan, quase derrubando-o no chão. Ele sorriu para Erin. – Mas não tanto quanto desta beleza aqui.

Jordan não gostou desse comentário.

Rhun se meteu entre eles.

– Talvez meu companheiro esteja certo. Poderíamos encontrar um local mais agradável para a nossa conversa.

Rasputin deu de ombros e os conduziu de volta pelo caminho até o carro. Uma vez lá, ele indicou que Jordan e Erin deviam ocupar o banco da frente. Ele e Rhun embarcaram no de trás.

Jordan abriu a porta do carro e recebeu uma onda de calor. Tinha cheiro de vodca e cigarros. Ele embarcou antes de Erin, para se sentar entre ela e o motorista de Rasputin.

O motorista estendeu a mão. Parecia ter cerca de 14 anos, a mão branca como a neve estava mais fria que a de Jordan.

– Meu nome é Sergei.

– Você tem idade para dirigir? – A pergunta escapou antes que Jordan pudesse contê-la.

– Sou mais velho que você. – O garoto falava com um ligeiro sotaque russo. – Talvez mais velho que sua mãe.

Jordan subitamente sentiu falta de sua submetralhadora, de sua faca e dos dias em que todos os seus inimigos eram humanos.


47

27 de outubro, 17:15, horário de Moscou

São Petersburgo, Rússia

À medida que o grande sedã se afastava do cemitério, Erin manteve as mãos estendidas sobre a saída do aquecedor do carro. Jordan tinha um braço sobre o encosto do banco atrás dela. Ele era a única pessoa no carro em que ela confiava – e na verdade mal o conhecia.

Mas pelo menos Jordan era humano.

E naquele momento isso significava muita coisa.

Rhun e Rasputin conversavam em voz baixa no banco de trás. Por mais educados que parecessem, ela sabia que estavam discutindo, apesar de não compreender uma palavra de russo.

O carro roncava em velocidade pelas ruas no fim da tarde, as fachadas coloridas russas surgindo como casas de contos de fadas em meio a plumas de neve rodopiante. Eles tinham, na melhor das hipóteses, mais uma hora de luz do dia. Se os Belial os tivessem seguido até a Rússia, será que atacariam de novo depois do anoitecer? Estaria Rasputin em guerra com eles como parecia estar com os Sanguinistas?

Quaisquer respostas teriam que esperar até que ela pudesse falar com Rhun longe de Rasputin.

Depois de mais dez minutos, o carro reduziu a marcha e estacionou diante de uma magnífica igreja em estilo russo. Erin chegou o rosto mais para perto da janela para ver.

Domos em forma de cebola com cruzes douradas no topo se elevavam para o céu, cada cúpula mais fantástica que a anterior – duas douradas, uma com aros de cor, outras azuis e incrustadas com padrões em dourado, branco e verde. A fachada ostentava colunas, quadrados erguidos, arcos e um enorme mosaico de Jesus banhado em uma luz dourada. Toda aquela opulência requintada lhe tirou o fôlego.

– Maravilhoso, não é? – disse o motorista com reverência.

– Deslumbrante.

– Esta que vocês veem aqui é a Igreja do Salvador do Sangue Derramado – disse Rasputin, se inclinando mais adiante para o banco de trás. – Foi construída no local do assassinato do tzar Alexandre II em 1881. Mas ele não seria o último Romanov a tombar vítima da ira do povo. Dentro daquela igreja vocês verão pedras de calçamento outrora manchadas com o sangue de Alexandre.

Apesar da rica história da igreja, ela perdeu parte de seu esplendor aos olhos de Erin à medida que ouviu as palavras de Rasputin. Ela já tinha visto um número suficiente de pedras manchadas de sangue para lhe bastar pelo resto da vida. Mesmo assim, empurrou e abriu a porta do carro e saiu para o vento frio, ainda mais frígido do que no cemitério. Erin fitou os montes de neve empurrados ao longo da parede da igreja pelo vento duro que soprava vindo do rio próximo.

Jordan se posicionou perto o suficiente dela para bloquear o vento. Ele levantou o olhar para a construção rebuscada.

– Parece que alguém tinha um bocado de massa de pão de gengibre e tempo de sobra.

Rhun o repreendeu em voz baixa:

– Ele é orgulhoso. Não o insulte.

A resposta de Rasputin se fez ouvir do outro lado do carro, apesar do vento:

– Eles não poderiam me ofender mais do que você e aqueles a quem você ama já ofenderam, Rhun. Mas é aconselhável que não me irritem pessoalmente. Por ora, estou me sentindo generoso o suficiente para conceder-lhes imunidade pelo fato de não serem Sanguinistas.

– Acho que deve ser bom ser humano – resmungou Jordan com um sorriso irônico enviesado.

Para provar isso, ele estendeu a mão e passou os dedos quentes pelos dedos frios de Erin.

Juntos, eles seguiram os dois padres vestidos de preto em direção aos arcos gêmeos da entrada da igreja.

17:27

Depois de passarem pelo vestíbulo, Rhun avançou para a nave. Ele sabia o que esperar, mas mesmo assim o que viu o impressionou profundamente – como Grigori sabia que impressionaria.

Seu olhar foi imediatamente atraído para os mosaicos cobrindo todas as superfícies dentro do espaço. Intensos azuis, dourados e carmesins encheram-lhe a visão. Quadros retratando cenas bíblicas ilustravam todas as paredes e o teto: Jesus com os apóstolos, os olhos castanhos estilizados de santos, as asas brilhantes de anjos. Milhões de minúsculos azulejos compondo e recompondo cenas bíblicas. Ele fechou os olhos, mas as cenas brilharam, queimando-lhe os olhos com o mesmo esplendor quando os abriu.

Seu estômago também se agitou com a profusão de cheiros ali: seres humanos na nave, incenso, vinho, morte velha vazando do piso e das fendas, e em algum lugar, sangue humano fresco.

Rhun se virou de volta para a entrada, seus olhos se detendo em um vasto mosaico acima da porta. Centenas de pequenos ladrilhos retratavam o maior momento da história sanguinista. Ele sabia que Grigori pessoalmente havia encomendado aquela obra, mostrando a ressurreição de Lázaro e sua saída da tumba, Lázaro, o primeiro homem da Ordem Sanguinista a saudar Nosso Senhor, fazendo seu pacto de servir a Cristo, e beber somente de seu sangue.

Exceto por Rhun, Lázaro tinha sido o único membro da Ordem a se converter antes de jamais ter provado sangue humano, sem nunca ter tirado uma vida.

A que ponto eu caí...

Rhun baixou os olhos. A majestade da história de Lázaro o ajudou a encontrar seu centro em meio ao ruído e clamor da igreja vibrante.

– Maravilhoso, não é? – Grigori sorriu para o lar monstruoso que criara para si.

– Os mosaicos são magníficos – concordou Erin, passando por ele, a cabeça virada para cima, examinando tudo.

– Sim, eles são.

Grigori bateu palmas e figuras indistintas apareceram saindo de portas e alcovas, rapidamente se pondo em atividade.

Rhun voltou sua atenção para o aposento, reparando que as pessoas que Grigori havia convocado não tinham batimentos cardíacos; eram provavelmente como o motorista deles: muito jovens de aparência, mas muito velhas de idade. Aqueles eram strigoi, que tinham feito um pacto com Grigori na qualidade de papa deles, criando uma versão da Ordem Sanguinista em solo russo.

Por ordens de Grigori, os turistas na igreja foram conduzidos até as portas, que depois de sua saída foram fechadas e trancadas. Minutos depois, apenas dois corações humanos ainda batiam dentro da igreja.

Além de Rhun e seus companheiros, na igreja só havia seguidores de Grigori, cinquenta no total: homens, mulheres e crianças que ele havia convertido em sua própria triste congregação, aprisionando-os para sempre entre a salvação e a danação. Eles não eram tão ferais quanto a maioria dos strigoi, mas tampouco se esforçavam para alcançar a santidade como os Sanguinistas.

Um novo tom de escuridão havia sido trazido ao mundo por Grigori.

Bancos de madeira foram carregados dentro da nave e enfileirados de frente para o altar. Apagaram as luzes elétricas e acenderam longas velas de cera. O cheiro estival de mel lutava contra os odores maculados da congregação.

Erin e Jordan se mantiveram próximos de Rhun perto do fundo da igreja. Jordan se virava inquieto de um lado para outro, como se esperasse um ataque a qualquer momento. Erin concentrava o foco de sua atenção de um mosaico para outro. Mesmo ali, cada um demonstrava o papel deles como Guerreiro do Homem e Mulher de Saber.

Rhun se manteve entre eles e a congregação de Grigori, cumprindo seu próprio papel.

Cavaleiro de Cristo.

Mas sua cabeça girava com uma profunda sensação de erro e falsidade ali, à medida que imagens sagradas olhavam do alto para o rebanho profanado de Grigori.

Acompanhado por jovens acólitos, Grigori subiu os degraus de mármore negro do altar com uma postura majestosa. Colunas vermelho-sangue ornamentadas, iluminadas por grandes velas, o ladeavam. Atrás de seu ombro, o que restava da luz do dia – um fraco brilho laranja – penetrava por janelas altas iluminando um mosaico de Cristo alimentando os apóstolos com a hóstia e o vinho, enquanto anjos sorriam no alto.

Nesse espaço, Grigori oficiou sua missa profana.

O coro cantou antigas orações russas, vozes límpidas se elevando para os tetos distantes em ritmos e tons que seres humanos nunca poderiam alcançar, e nunca ouviriam.

Por fim, mãos conduziram Rhun e os outros até um banco. Ele seguiu, ainda com dificuldade em se ajustar à profunda impropriedade daquele espetáculo.

Então sentiu no pulso nu um toque cálido.

– Rhun? – sussurrou uma voz.

Ele se virou e encontrou os olhos interrogativos de Erin. A naturalidade e a humanidade deles ajudaram a centrá-lo.

– Você está bem? – Ela inclinou a cabeça enquanto eles se sentavam no banco.

Ele pôs a mão sobre a dela, fechou os olhos e se concentrou nos batimentos rápidos e seguros de seu coração, permitindo que apagassem a música profana. Os batimentos cardíacos de um verdadeiro ser humano eram suficientes para manter a distância tudo aquilo.

O canto cessou.

Por um momento o silêncio dominou a igreja.

Então Grigori disse a todos para se aproximarem para receber a eucaristia, erguendo um cálice de ouro. Os discípulos avançaram para receber o vinho, suas botas batendo de leve no piso escuro de mármore. Rhun permaneceu sentado com Jordan e Erin.

Quando o líquido consagrado tocava nos lábios deles, a fumaça se elevava de suas bocas como se tivessem acabado de engolir fogo. Com corpos impuros para aceitar o amor de Cristo, mesmo a versão apagada desse que Grigori podia oferecer, eles gemiam em agonia.

O coração de Erin se contraiu, batendo mais rápido, em solidariedade ao sofrimento deles, especialmente daqueles que pareciam não ser mais que crianças.

Rhun observou uma garota, que em vida não teria tido mais que 10 ou 11 anos, se afastar, os lábios queimados, cada respiração um arquejar fumegante de agonia e êxtase. Ela voltou para o seu lugar no banco e se ajoelhou de cabeça baixa, em súplica.

Ali estava o maior mal de Grigori, sua disposição para converter os jovens. Esse ato roubava-lhes a alma e os impedia de receber o amor de Cristo por toda a eternidade.

A voz de Grigori interrompeu as ruminações de Rhun:

– E agora, Rhun. Você também deve aceitar a minha comunhão.

Ele permaneceu sentado, se recusando a aceitar aquela profanação em seu corpo.

– Não aceitarei.

Grigori estalou os dedos, e os amigos de Rhun subitamente foram cercados por um grupo de discípulos de Rasputin, enchendo suas narinas com os odores de vinho e carne queimada.

– Este é o meu preço, Rhun. – As palavras de Grigori ecoaram pela igreja. – Aceite a minha hospitalidade. Beba o vinho sagrado. Só então eu o ouvirei.

– Se eu recusar?

– Minhas crianças não passarão fome.

Os discípulos se aproximaram.

O coração de Erin disparou. Jordan cerrou os punhos.

Grigori sorriu paternalmente.

– Mas seus companheiros vão lutar, não vão? Não será uma morte fácil. O homem é um soldado, não é? Devo ousar dizer que ele é um guerreiro?

Rhun se contraiu.

– E a mulher – prosseguiu Grigori. – Uma verdadeira beldade, mas com as mãos calejadas pelo trabalho em campo, e também, desconfio, de segurar uma caneta. Creio que ela é uma pessoa de grande saber.

Rhun lançou um olhar furioso por cima da congregação para Grigori no altar.

– Sim, meu amigo. – Grigori deu sua gargalhada louca habitual. – Sei que você está aqui à procura do Evangelho. Somente a profecia o traria à minha porta. E talvez até eu possa ajudá-lo – mas não de graça.

Grigori segurou o cálice nas mãos em concha e o levantou.

– Venha, Rhun, beba. Beba para salvar as almas de seus companheiros.

Sem escolha, Rhun se levantou. Com as pernas rígidas, andou entre os bancos, subiu os degraus de pedra e abriu a boca.

Preparou-se para lutar contra a dor.

Grigori avançou, ergueu o cálice e derramou o vinho do alto.

Vinho vermelho-sangue bateu e encheu a boca de Rhun, sua garganta.

Para sua surpresa, aquele sacramento profano não o queimou. Em vez disso, um agradável calor percorreu-lhe o corpo. Força e cura cresceram com ímpeto em seu íntimo, acelerando até seu coração imóvel e fazendo-o bater – algo que não tinha feito em muitos séculos. Com aquele movimento do músculo em seu peito, ele soube o que estava misturado com aquele vinho, mas mesmo assim não desviou o rosto do cálice.

Aquilo o encheu, saciando a fome infinita dentro dele. Ele sentiu os ferimentos que tinham se aberto no bunker se fecharem. Melhor que tudo, porém, foi o profundo contentamento que o envolveu.

Rhun gemeu de prazer.

Grigori recuou, levando o cálice consigo.

Rhun lutou para formar as palavras à medida que o mundo ao seu redor vacilava.

– Você não...

– Eu não sou santo como você – explicou Grigori, erguendo-se acima dele enquanto Rhun tombava no piso de mármore. – Não desde a minha excomunhão de sua amada igreja. De modo que, sim, qualquer vinho que eu dê a meus seguidores tem que ser fortificado. Com sangue humano.

Os olhos de Rhun se reviraram, levando embora o mundo e deixando apenas sua eterna penitência.

Da garganta de Elisabeta, Rhun engoliu sangue. Em todos os seus longos anos de jovem Sanguinista, nunca havia sentido seu gosto forte de ferro na língua, exceto por aquela primeira noite, quando se tornara maldito, alimentando-se do sangue maculado do strigoi.

Pânico diante da blasfêmia lhe deu forças para nadar contra aquela maré vermelha de sangue, clarear sua visão. O bater de seu próprio coração, acelerado pelo avanço do sangue dela em seu corpo, se reduziu... se reduziu... e parou.

Elisabeta estava deitada debaixo dele, seu corpo macio dourado sob a luz do fogo. O cabelo escuro se espalhava sobre os ombros brancos cremosos, sobre o chão de pedra.

O silêncio agora enchia o quarto. Mas aquilo não era possível.

Ele sempre ouvira o bater de seu coração.

Ele sussurrou o nome dela, mas desta vez ela não respondeu.

A cabeça dela caiu para o lado, expondo a ferida ensanguentada em sua garganta. A mão de Rhun subiu para sua boca. Pela primeira vez em muitos anos, ele tocou em presas.

Ele tinha feito isso. Tinha tirado a vida dela. Em sua luxúria cega, tinha se perdido, acreditando ser forte o suficiente – especial o suficiente, como Bernard sempre afirmara – para quebrar o édito imposto sobre os membros de sua Ordem, para manter a castidade de modo a não libertar a besta que todos eles traziam dentro de si.

No final, ele havia demonstrado ser tão fraco quanto qualquer um.

Olhou fixamente para o corpo imóvel de Elisabeta.

Seu orgulho a tinha matado tanto quanto seus dentes.

Ele trouxe seu corpo já esfriando para o colo. A pele dela estava mais pálida do que fora em vida, os cílios longos negros como fuligem sobre as faces brancas. Os lábios outrora vermelhos tinham adquirido uma coloração rosa-clara, como a da mão de um bebê.

Rhun a embalou e chorou por ela. Ele havia violado todos os mandamentos. Tinha libertado a criatura enterrada em seu íntimo e ela havia devorado sua amada. Pensou em seu sorriso vibrante, na expressão travessa em seus olhos, em seu talento como fitoterapeuta. Nas vidas às quais ela teria salvo e que agora murchavam tanto quanto a dela.

E no futuro triste de seus filhos sem mãe.

Ele tinha feito isso.

Sob o sibilar do fogo, soou um batimento suave, logo seguido de outro.

Ela vivia! Mas não por muito tempo.

Talvez por tempo suficiente para salvá-la. Ele a tinha decepcionado tantas vezes e de tantas maneiras, mas devia tentar.

O ato era proibido. Pervertia seus juramentos mais básicos. Ele já tinha violado seus votos sacerdotais, a um custo terrível. O custo seria ainda maior se ele violasse os votos de Sanguinista.

A penalidade para ele seria a morte.

O custo para ela seria sua alma.

A primeira lei: Sanguinistas não podem criar strigoi. Mas ela não seria strigoi. Ela se juntaria a ele. Serviria à igreja como ele, ao lado dele. Como Sanguinistas, eles dividiriam a eternidade. Ele não cairia de novo.

Mais fraco, o coração dela pulsou.

Ele tinha pouco tempo. Quase nenhum. Cortou o pulso com a faca de prata. O sibilar e a queimação foram mais fortes agora que não estava mais santificado. Seu sangue, agora misturado com o dela, jorrou. Ele levou o pulso aos lábios dela. Gotas caíram nos lábios exangues. Delicadamente, ele abriu aqueles lábios com os seus.

Por favor, meu amor, implorou ele.

Beba.

Junte-se a mim.

Rhun despertou para a fome no mármore frio, as pontas de seus caninos afiadas em sua língua.

O vinho maldito de Grigori estivera misturado com sangue humano. Rhun lutou contra a traição. Mas seu corpo, mesmo agora, exigia mais, insistia no alívio.

Suas orelhas captaram os batimentos cardíacos gêmeos no fundo da igreja.

Ele se levantou trôpego, tremendo de desejo, virando-se inexoravelmente em direção ao pulsar de vida, como uma flor se virando para o sol.

– Não negue a sua natureza, meu amigo – sussurrou Grigori sedutoramente atrás dele. – Estas medidas de controle sempre acabam por se romper. Libere a besta dentro de você. Você tem que pecar imensamente para poder se arrepender de modo tão profundo quanto Deus exige. Só então estará mais próximo do Todo-Poderoso. Não lute para resistir.

– Eu resistirei – disse Rhun roucamente.

Os ouvidos dele zumbiram, sua visão se turvou e a mão sobre a cruz tremeu.

– Nem sempre você resistiu – recordou-o Grigori. – O que você viu quando bebeu o meu vinho? Talvez a profanação da sua Elisabeta?

Rhun se virou e partiu para cima dele, mas as tropas de Grigori caíram sobre ele, preparadas para aquele ataque. Dois garotos seguraram cada um dos seus braços, dois agarraram cada perna, outros dois puxaram-lhe os ombros.

Ainda assim ele lutou, arrastando-os pelo piso de mármore.

A passos de distância, Grigori gargalhou.

– Rhun! – gritou Erin para ele. – Não!

Ele sentiu o medo na voz dela, em seu coração – por todos eles.

Grigori também ouviu. Nada lhe escapava.

– Olhe, Rhun, como ela sabe temer você. Talvez isto possa salvá-la, uma vez que não salvou a sua Lady Elisabeta Bathory.

Rhun ouviu uma exclamação atrás dele, de reconhecimento, vinda de Erin.

A vergonha finalmente o fez parar e cair de joelhos.

Grigori sorriu acima dele.

– Quer dizer então que até mesmo a sua amiga conhece este nome. A mulher a quem a história amaldiçoaria como a Condessa Sanguinária da Hungria. Um monstro nascido de seu amor.


48

27 de outubro, 17:57, horário de Moscou

São Petersburgo, Rússia

Mãos frias agarraram Erin e a prenderam ao banco no fundo da igreja. Corpos frígidos a pressionavam de todos os lados. Ela se obrigou a ficar imóvel, a não ceder ao medo, e mais que tudo, a não provocar um ataque. Jordan estava encostado nela, seu corpo tão tenso quanto o dela.

O momento seguinte decidiria tudo.

Rhun desviou a atenção de Grigori. Seus olhos encontraram os dela. Nele ela viu a fome brutal, os olhos quase incandescentes de fome. Na dor de seu esgar, as pontas de seus caninos perfuraram seus próprios lábios. Ele claramente travava uma dura batalha contra seu desejo de sangue.

Pela reação de Rhun, ela deduziu que Rasputin tivesse profanado o vinho com sangue humano.

Resista, disse ela em pensamento para ele, mantendo os olhos cravados nos dele, recusando-se a desviar o olhar, a ver o animal dentro dele e sua vergonha.

Por fim os ombros de Rhun se curvaram e ele caiu de joelhos. Levantou as mãos cruzadas diante do nariz. Acima de seus dedos ele ainda estava de olhos cravados nela. Sua boca se moveu numa prece silenciosa em latim. Ela leu aqueles lábios ensanguentados, e reconheceu aquela oração como o ato de contrição dos dias que tinha passado de joelhos na terra, de castigo.

Erin se desvencilhou dos que a seguravam e se pôs de joelhos.

Junto com Rhun, ela recitou a oração de pedido de perdão.

O tempo inteiro ela encarou os olhos de Rhun.

Ao final, a cabeça dele finalmente se inclinou – quando ele a ergueu de novo, as presas haviam desaparecido.

Ele sussurrou para a igreja:

– Você falhou, Grigori.

– E você triunfou, meu amigo, a vontade de Deus será feita.

Rasputin não parecia decepcionado. No máximo, parecia reverente.

Resmungando, os congregados se afastaram do banco, e saíram de trás de Erin e Jordan.

Sergei bateu de leve no ombro de Jordan antes de ir.

– Talvez mais tarde.

Depois que Jordan ficou sozinho com Erin, se virou para encará-la enquanto ela se levantava e se sentava no banco. Ele sussurrou morno contra a face dela:

– Você está bem?

Sem confiar em si mesma para falar, ela apenas assentiu.

Se ela havia compreendido bem o que Rasputin havia insinuado, parecia que Rhun tinha profanado Elizabeta Bathory. Erin conhecia aquele nome, era o nome que ecoava nas lendas sangrentas das florestas da Hungria e da Romênia.

Elizabeta Bathory, também conhecida como a Condessa Sanguinária, era citada com frequência como a mais prolífica e cruel assassina em série de todos os tempos. Ao longo da década de 1600, a rica e poderosa condessa húngara havia torturado e matado incontáveis mocinhas. As estimativas do número de suas vítimas alcançavam centenas. Dizia-se que ela se banhava no sangue das vítimas, buscando a eterna juventude.

Tais histórias estavam ligadas ao vampirismo.

Será que Rhun havia criado aquele monstro? Teria ele o sangue de todas aquelas mocinhas em suas mãos? Seria aquilo o que o perseguia toda vez que ele bebia o sangue transubstanciado?

Um suspiro trágico atraiu a atenção de Erin para o altar, de volta para o presente.

– Você mencionou um presente no carro quando vínhamos para cá – disse Rasputin, apontando para o tubo de couro sobre o ombro de Rhun. – Deixeme vê-lo e saberemos o que lhe comprará.

Rhun tirou o tubo das costas.

Rasputin gesticulou para Erin e Jordan se aproximarem, excitado como um colegial.

– Venham, vamos todos ver.

Enquanto Erin saía do banco com Jordan, os acólitos de Rasputin tiraram tudo de cima do altar de mármore. Depois que acabaram, foram dispensados com um gesto para dar lugar a Rhun, Erin e Jordan.

Ela subiu ao altar. O ar ali mais carregado do cheiro de incenso e das velas acesas.

Depois que estavam todos reunidos ao redor do altar, Rasputin pôs os punhos nos quadris e olhou avidamente para o longo tubo de couro marrom.

– Mostre-me – ordenou.

Rhun passou a unha afiada no selo papal, quebrando-o, e levantou a tampa. Olhou dentro, suas sobrancelhas se franzindo, então sacudiu o conteúdo em cima da superfície de mármore. Uma peça de tela antiga enrolada deslizou para fora e caiu sobre o altar, desenrolando-se ligeiramente.

Rasputin se inclinou para mais perto e, com cuidado e delicadeza, respeitando a antiguidade da tela, a abriu para que todos vissem.

Erin deixou escapar uma exclamação de surpresa ao ver a pintura revelada sob a luz das velas. Ela reconheceu a obra imediatamente, pintada pela mão primorosa do mestre holandês Rembrandt van Rijn.

Era uma tela original.

Retratava Cristo fazendo seu milagre mais poderoso.

A ressurreição de Lázaro.

18:04

Grigori caiu de joelhos em súplica diante do altar, diante da pintura a óleo, e, um por um, os membros de sua congregação o imitaram.

Rhun permaneceu de pé, olhando fixamente para a imagem de Lázaro em sua tumba de pedra.

Era um retrato incrível daquele momento, um segredo conhecido por Rembrandt e registrado em sua tela. A obra era uma das três que se sabia existirem.

Em belas e evocativas pinceladas, Rembrandt revelava Lázaro, vestido em sua mortalha, se levantando do sarcófago de granito. De um lado os membros da família olhavam com horror. Esses espectadores da cena tinham as mãos levantadas, como que para se protegerem do homem a quem outrora tinham amado. Para eles, aquele não era um momento alegre, de ressurreição, pois sabiam o que tinha matado Lázaro.

– O primeiro Sanguinista – o sussurro de Erin ecoou na igreja agora silenciosa.

Sim, todos aqueles junto da tumba tinham presenciado o nascimento da Ordem dos Sanguinistas. Lázaro tinha sido atacado e transformado em strigoi, mas sua família o havia encontrado e o tinha prendido numa tumba vedada antes que ele pudesse se alimentar de uma vítima humana. Lá eles o haviam condenado a uma morte lenta pela inanição. Mas Cristo havia chegado e o libertara. Naquele dia Cristo havia oferecido a Lázaro uma escolha que até então nunca tinha sido oferecida a nenhum strigoi. Lázaro não podia mudar a sua natureza, mas podia usar o amor e o sangue de Cristo para lutar contra ela. Podia escolher servir a Cristo, e talvez, algum dia, ver a ressurreição de sua alma.

Este pacto de obrigação, de serviço como Cavaleiro de Cristo, estava representado na pintura pelas armas – a espada embainhada e um alforje com flechas – penduradas acima da cripta de Lázaro, prontas para serem usadas a serviço da nova igreja.

Daquele momento em diante, Lázaro havia aceitado seu fardo e formado o ramo sanguinista da igreja. Recém-saído de sua cripta, ele nunca havia provado sangue humano. Sempre encontrara sustento no sangue de Cristo. Somente outro Sanguinista, desde a alvorada dos tempos, tinha iniciado sua segunda existência pronto para seguir os passos de Lázaro; somente um havia se convertido antes de matar a primeira presa.

Puro. Imaculado.

Há muito tempo, Rhun tinha sido aquele Sanguinista. Ele havia se considerado digno da profecia. Acreditara em sua própria bondade. Encontrara consolo em seu orgulho. Até o dia em que provara o sangue de Elisabeta. Naquele dia ele criou um monstro.

Naquele momento, ele caiu. Somente um, o Único entre todos, sempre se mantivera imaculado.

Lázaro.

O verdadeiro pai.

Mesmo Grigori reconhecia aquele papel. Ele traçou a forma sagrada de Lázaro na pintura, seu dedo se detendo enquanto cruzava a linha fina de vermelho pingando da boca de Lázaro.

Como podia qualquer pessoa olhar para aquela pintura e não reconhecer a verdade revelada por Rembrandt? Os espectadores assustados, o sangue nos lábios, as armas na parede. Rembrandt tinha conhecido os segredos dos Sanguinistas, um dos poucos a jamais ter permissão de ter tal conhecimento fora do círculo mais fechado da igreja. Para honrar aquela confiança, ele havia produzido aquela obra-prima de luz e sombra, para esconder em plena vista um segredo como um memorial e um testamento em homenagem à Ordem.

Grigori se levantou, ergueu a cabeça, tirando os olhos da pintura e fitando um mosaico em sua própria igreja, que se expandia logo acima da entrada. O mosaico retratava Lázaro envolto na mortalha, de pé, vivo, na porta de sua tumba, o capuz sobre a cabeça para proteger-lhe o rosto da luz solar. Cristo estava diante do homem ressuscitado, a mão estendida na direção de seu novo discípulo enquanto seus seguidores olhavam maravilhados, do mesmo modo que os seguidores de Grigori olhavam para ele.

Lágrimas brilharam nos olhos de Grigori enquanto ele encarava Rhun.

– Ajudarei você a procurar seu livro, meu amigo, e, a menos que a vontade de Deus seja outra, nenhum mal lhe será feito enquanto estiver dentro das fronteiras da minha terra.


49

27 de outubro, 18:08, horário de Moscou

São Petersburgo, Rússia

Jordan ficou parado a alguns passos do altar, observando os outros.

Não confiava em nenhum deles. Nem em Rasputin com sua gargalhada louca e seus jogos, nem nos congregantes de aparência delicada que finalmente haviam se retirado para as sombras, nem mesmo em Rhun. Visualizou aquela sede de sangue ardendo em seus olhos, a maneira como ele encarava Erin, de olhos cravados nela como um leão num bezerro gordo.

Pior que tudo, Jordan não poderia ter feito nada se ela tivesse sido atacada. Os servos de Grigori o tinham imobilizado, segurando-lhe as pernas e os braços, sua força inútil contra eles.

Vozes desviaram sua atenção do altar. As crianças de Rasputin falavam em voz baixa e carregavam uma mesa de madeira e quatro cadeiras escuras para a nave. Embora as cadeiras devessem ser pesadas, os garotos as carregavam como se fossem de pau de balsa.

Diferentemente de Rasputin, os acólitos usavam roupas comuns, e não trajes sacerdotais. Jeans ou calças pretas e suéteres. Se não soubesse o que eles eram, Jordan teria presumido que fossem crianças russas de aparência delicada com seus pais.

Mas ele sabia.

– Venham. – Rasputin caminhou do altar para a mesa, conduzindo os outros e trazendo Jordan a reboque. O Monge Louco se sentou rapidamente, ajeitando as vestes como uma velha exigente.

– Juntem-se a mim.

Erin encontrou uma cadeira e Jordan ocupou outra ao lado dela, deixando a última para Rhun.

Sergei colocou um gigantesco samovar de prata no meio da mesa. Outro de seus lacaios trouxe dez copos encaixados em porta-copos de prata.

– Chá? – perguntou Rasputin.

– Não, obrigado – balbuciou Jordan.

Depois de ter visto o que havia acontecido com Rhun, Jordan não tinha nenhuma intenção de comer ou beber nada que Rasputin tivesse tocado. Por ele, não respiraria sequer o mesmo ar.

Erin também declinou, mas pela maneira como havia puxado as mangas do suéter sobre as mãos, provavelmente estava com frio suficiente para querer uma bebida quente.

– Seus companheiros não confiam em mim, Rhun. – Rasputin arreganhou os dentes brancos quadrados. As presas estavam retraídas, mas Jordan não o considerou menos perigoso por isso.

Nenhum deles respondeu. Aparentemente o tema da confiabilidade de Rasputin nunca ocuparia muita conversa.

Rasputin se virou para Rhun.

– Então vamos deixar de lado as amenidades. O que faz você pensar que o Evangelho possa estar aqui, na minha cidade?

– Acreditamos que tenha sido trazido de volta por soldados russos no fim da Segunda Guerra Mundial. – Rhun manteve as mãos espalmadas sobre a mesa, como se estivesse pronto para apoiar-se nelas e se levantar para lutar – ou possivelmente para fugir.

– Há tanto tempo assim?

Rhun inclinou a cabeça.

– Para onde poderiam ter levado o livro?

– Se soubessem o que tinham em mãos, o teriam levado para Stálin. – Rasputin apoiou os cotovelos sobre a mesa. – Mas não o fizeram.

– Tem certeza?

– É claro. Se eles o tivessem levado para algum lugar significativo, eu saberia. Eu sei de tudo.

Rhun esfregou o dedo indicador no lugar onde a karambit se apoiava quando ele lutava.

– Você mudou muito pouco nos últimos cem anos, Grigori.

– Presumo que esteja se referindo ao meu pecado do orgulho, que sempre fez você se preocupar tanto com a minha alma. – Rasputin sacudiu a cabeça. – Contudo é o seu pecado que precisa de cuidados.

Rhun inclinou a cabeça.

– Tenho consciência dos meus pecados.

– Mesmo assim, todo dia você se submete à tolice da penitência.

– E nós não devemos nos arrepender dos nossos pecados? – Os dedos de Rhun encontraram a cruz peitoral.

Rasputin se inclinou para a frente.

– Talvez. Mas será que somos eternamente definidos pelos nossos pecados? Como é possível que um momento ou dois de fraqueza sejam um crime tão grande quando pesados na balança contra séculos de serviço?

Rhun comprimiu os lábios.

– Não estou aqui para debater pecado e arrependimento com você.

– Uma pena. – Rasputin olhou para Erin. – Nós tivemos muitas conversas esclarecedoras a respeito disso ao longo dos anos, o seu amigo Rhun e eu.

– Estamos aqui para encontrar o Evangelho – recordou-o Erin. – Não para esclarecimentos.

– Eu não esqueci. – Rasputin sorriu para ela. – Diga-me: de onde foi tirado e como?

Rhun hesitou, então contou a verdade.

– Encontramos indicações de que o livro pode ter estado em um bunker no Sul da Alemanha, perto da abadia de Ettal.

– Indicações? – Rasputin cravou os olhos intensos em Jordan, como se ele tivesse mais probabilidade de responder que Rhun.

Jordan se tensionou. Seu instinto era esconder tudo de Rasputin.

– Sou apenas o guarda-costas.

– A Rússia é um país grande. – Rasputin olhou para Erin. – Se vocês não me ajudarem, não poderei ajudar vocês.

Erin olhou para Rhun e puxou a manga do suéter.

– Piers nos disse – respondeu Rhun. – Antes de morrer.

O rosto de Rasputin se inclinou.

– Então afinal ele passou para o lado dos nazistas?

Quando Rhun não respondeu, Rasputin continuou:

– Ele veio me procurar logo no princípio da guerra. Eu não estava tão bem quanto estou agora. – Ele fez uma pausa e olhou ao redor na igreja, sorrindo para os seguidores silenciosos enfileirados contra as paredes esplendorosas. – Mas mesmo naquela época eu tinha meus recursos.

A surpresa transpareceu no rosto de Rhun.

– Por que ele procuraria você?

– No passado fomos muito próximos, Rhun. Piers como primeiro, você como segundo e eu como terceiro. Você honestamente não se lembra? – A mágoa estava visível em seu rosto, com um ligeiro traço de raiva. – Para onde mais ele poderia ir? O cardeal havia ameaçado excomungá-lo se ele continuasse a busca pelo livro. Então, depois de me visitar, Piers foi procurar os nazistas, em busca da ajuda que eu não pude oferecer. Ele se recusava a abandonar a caçada. Obsessões são difíceis de abandonar, como você pode atestar com Lady Elisabeta.

Rhun virou a cabeça.

– O cardeal Bernard nunca teria feito isso com Piers.

Mas Jordan percebeu a falta de convicção nas palavras de Rhun. Mesmo com a pequena experiência que Jordan tivera com o cardeal, ele sabia que importância o homem atribuía à profecia dos três. Para o cardeal, o padre Piers não tinha um papel a desempenhar.

Como ele estava enganado...

Grigori prosseguiu:

– Rhun, você não conhece o seu precioso cardeal tão bem quanto imagina. Lembre-se, ele me excomungou. Por ter cometido um pecado não maior do que o seu. E eu não tirei a vida daquele a quem tentei salvar.

– Do que ele está falando? – perguntou Jordan, sentindo-se como se tivesse entrado no cinema no meio do filme.

Erin se pôs mais ereta, adivinhando a verdade.

– Está se referindo ao filho pequeno do tzar Nicolau, não está? O menino chamado Alexei.

Rasputin a agraciou com um sorriso triste.

– A pobre criança sofreu. No final estava perto da morte. O que eu devia fazer?

Jordan então se recordou da história. O filho do tzar outrora tinha sido o jovem pupilo sob a responsabilidade de Rasputin. Como muitos dos netos da rainha Vitória, havia sofrido do que se conhecia como o “mal de reis”, a hemofilia. De acordo com a história, só Rasputin podia dar-lhe alívio durante seus episódios dolorosos de hemorragia.

– Você deveria tê-lo deixado morrer naturalmente – disse Rhun –, na graça de Deus. Mas não conseguiu. E depois, você não se arrependeu do seu pecado.

Jordan imaginou Rasputin transformando o menino em um monstro, em vez de deixá-lo morrer.

– Foi por isso que você não pôde ser perdoado.

– O que faz você pensar que eu queria o perdão do cardeal? Que eu precisasse dele?

– Acho que aqui nos desviamos do assunto – interrompeu Jordan. As velhas discussões de Rhun e Rasputin não contribuíam em nada para a causa deles. – Vai nos ajudar a encontrar o livro?

– Primeiro diga-me: como Piers morreu? – Rasputin segurou a mão de Erin. Ela parecia querer tirá-la dele, mas não o fez. Deveria ter tirado. – Por favor.

Ela contou a ele sobre a cruz no bunker, do momento no barco em que Piers morreu.

Rasputin enxugou os olhos com um grande lenço de cambraia.

– Como você pode explicar isto, Rhun?

– A graça de Deus. – As palavras de Rhun foram simples e fervorosas.

– Explicar o quê? – perguntou Erin, olhando de um para o outro.

– Impuro como Piers estava, por ter violado seu voto, por ter criado e se alimentado de criaturas blasphemare, ele deveria ter se consumido em chamas até virar cinzas sob a luz do sol. – Rasputin dobrou o lenço e o guardou nas pregas de seu hábito. – Isto é o que acontece com strigoi que não bebem o sangue de Cristo. Rhun não explicou nada a vocês?

Ele não havia explicado muita coisa. Apenas que a luz solar os matava, não que eles se consumiam em chamas. Jordan se lembrava de como Nadia havia cuidadosamente levantado o casaco do rosto de Piers, e do temor dela enquanto o segurava no colo contra o seu corpo de modo que ele pudesse ver o sol uma última vez. A morte dele tinha parecido serena, não violenta, mais uma partida suave, um ir embora. Será que Deus de alguma forma havia perdoado os pecados dele no final ou haveria ainda o suficiente da bênção de Cristo nas veias de Piers para impedi-lo de arder em chamas? Ele suspeitava de que eles nunca fossem saber a verdadeira resposta, e no momento tinham uma preocupação mais importante.

– O livro – disse Jordan. – Vamos voltar ao livro.

Rasputin se endireitou e visivelmente se concentrou no assunto em questão.

– O bunker alemão ficava bem ao sul. Vocês sabem quando as tropas russas poderiam tê-lo alcançado? Se eu tivesse uma linha de tempo...

Jordan tentou se lembrar da história, esperando que Erin o interrompesse com a resposta.

– A última unidade alemã importante no sul se rendeu em 24 de abril, mas os russos provavelmente ainda estiveram circulando por lá até a rendição formal da Alemanha, em 8 de maio.

Ele contou as datas em sua cabeça.

– Em meados de maio, entretanto, os russos estavam formalizando a divisão da Alemanha e toda a Cortina de Ferro. Eu diria que provavelmente as equipes de destruição e saque dos russos estiveram no auge por volta de 20 de maio, embora provavelmente tenha havido russos esvaziando bunkers antes e depois.

Rasputin o encarou com respeito.

– Você de fato conhece bem a história.

Jordan deu de ombros, mas continuou falando, ansioso para encontrar o livro e tirar os três da Rússia vivos:

– Estudei muito a era da Segunda Guerra Mundial, ouvi muita coisa de meu avô, que combateu na guerra. De qualquer maneira, aquele bunker ficava muito longe ao sul e isolado. Calculando o tempo de viagem naquela época, mais um intervalo para sair antes que as tropas americanas começassem suas patrulhas, eu diria que o período mais provável para os russos terem atacado aquele bunker seria entre 28 de maio e 2 de junho. Com uma boa margem de erro, é claro.

Erin lançou-lhe um olhar surpreso, como se não esperasse que ele soubesse nada de útil. Aquilo já estava ficando cansativo.

– Excelente, sargento. – Rasputin se recostou na cadeira. – Essa informação é valiosa. Embora ainda seja necessário tempo para encontrar o livro.

Como Rasputin sabia que Jordan era um sargento? Aquilo era preocupante.

– Por que é valiosa? – perguntou Erin. – Por que as datas importam?

– Primeiro, diga-me o que está escondendo em seu casaco, minha cara doutora.

Jordan então se deu conta de que Rasputin também sabia que Erin tinha um doutorado e que trazia nos bolsos os pedaços de concreto que tinham cercado o livro. O que ele não sabia?

– Sinto o cheiro – disse Rasputin.

Erin olhou para Rhun. Ele assentiu e ela tirou um pedaço do invólucro do livro.

– Acreditamos que isto provavelmente cobria o livro.

Rasputin estendeu a mão, e Erin lentamente deixou cair o fragmento cinza na palma. O polegar dele seguiu as linhas finas de fuligem que mostravam onde a pedra tinha sido explodida.

Jordan se empertigou de repente. Ele deveria ter pensado nisso antes.

– Se me conseguir um sensor de explosivos, posso usar este fragmento como controle e descobrir qualquer outra coisa com a mesma assinatura química. Se isto o estava envolvendo, o Evangelho teria os mesmos compostos químicos em sua capa. Isto é, presumindo que não tenha sido destruído na explosão.

Rhun tocou em sua cruz de novo, parecendo chocado. Aparentemente o padre não havia considerado a possibilidade de que o livro pudesse ter sido destruído, que eles pudessem estar arriscando a vida para procurar algo que havia sido explodido em fragmentos e cinzas.

Rasputin balançou a cabeça para Sergei, que se adiantou.

– Vá com meu assistente pessoal. Ele o ajudará a conseguir o que precisa.

Jordan permaneceu sentado.

– Nós só nos deslocamos em grupo.

18:17

Rasputin franziu o cenho e depois deu uma gargalhada. Erin não imaginava que pudesse odiar aquela risada mais do que odiara na primeira vez que a ouviu, mas odiava.

– Muito bem – disse Rasputin. – Escreva os detalhes para Sergei.

Sergei puxou um bloco espiral e um toco de lápis do bolso de trás da calça.

Erin pegou o pedaço de concreto de cima da mesa e o enfiou de volta no bolso, preocupada com a possibilidade de que Rasputin pudesse roubá-lo. Ele era claramente um oportunista e não deveria ser subestimado. Ele já sabia demais: que ela era doutora, que ela, Rhun e Jordan procuravam o livro, e que possivelmente eram o trio da profecia. E pelo brilho cobiçoso em seus olhos quando Jordan listou as datas prováveis em que o bunker fora invadido, ela também suspeitava de que ele já tivesse uma boa ideia da localização do livro.

Claramente, Rasputin estava se divertindo fazendo-os dançar como macacos treinados, mas seria aquilo mais que um prazer malicioso?

O anfitrião se levantou e gesticulou em direção a um tabernáculo nos fundos da igreja.

– Vamos ver as pedras de calçamento sobre as quais o tzar caiu? O nome desta igreja originou-se dali.

Ela empurrou a cadeira. Jordan e Rhun também se levantaram. Eles caminharam atrás do vulto de ombros inclinados de Rasputin como um trio sanguinista, Rhun na frente, Jordan flanqueando à direita e Erin à esquerda.

Rasputin parou na frente do tabernáculo. Quatro colunas negras lustrosas sustentavam um dossel de mármore entalhado em estilo folclórico russo, com flores de pedra negras e floreios. Atrás de uma pequena grade havia uma seção simples de pedras de calçamento cinzentas. A natureza utilitária das pedras se chocava com a grandiosidade requintada da igreja, recordando a Erin o motivo pelo qual a igreja fora construída – para rememorar o assassinato do tzar. Ela comparou os tetos altaneiros e os ricos ladrilhos dourados com os montes simples de terra no cemitério Piskariovskoye.

Algumas mortes eram marcadas de melhor forma que outras.

Um punhado de seguidores de Rasputin se aproximou e se deteve num semicírculo atrás deles, como se preso ao líder por cordões invisíveis.

– Eu vinha muito aqui durante o cerco de Leningrado – disse Rasputin, descansando as mãos na beirada de madeira do tabernáculo. As mangas dele se repuxaram para cima, revelando espessos pelos negros em seus pulsos e antebraços.

– A igreja foi desconsagrada. Seu caráter sagrado, roubado por Roma. Mas o prédio estava de bom tamanho para os mortos. Usaram esta nave como necrotério no inverno. Empilharam corpos contra as paredes.

Erin estremeceu, imaginando cadáveres congelados empilhados como carcaças num abatedouro, esperando por um enterro na primavera.

– À medida que o cerco se prolongou e a fome piorou, os corpos foram trazidos para cá em carroças de madeira puxadas por homens. Os cavalos já tinham sido comidos àquela altura. Os mortos vinham como tinham nascido: nus. Cada farrapo de pano tinha que ser aproveitado para aquecer os vivos. – A voz de Rasputin baixou para um sussurro rouco. – Eu morava na cripta. Ninguém pensava em contar os mortos. Havia mortos demais. Quando a noite chegava, eu os contava. Sabem quantas crianças morreram durante o cerco? Não apenas de frio, embora fosse terrível e matasse um bom número. Não apenas de fome, embora ela levasse muitas à morte. Nem mesmo por obra dos nazistas e da morte que eles faziam chover do céu e da terra por toda parte. Não, nem mesmo eles.

A garganta de Erin se apertou.

– Strigoi?

– Vinham como uma praga de gafanhotos, devorando os fracos e famintos que se abrigavam aqui. Fugi para Roma e implorei por ajuda. – Rasputin se virou para Rhun, que baixou os olhos. – A igreja se manteve neutra na guerra, mas nunca os Sanguinistas tinham abandonado sua guerra contra os strigoi. Até então.

Erin abraçou o peito. Os strigoi teriam encontrado presas fáceis na cidade cercada.

– Então voltei sozinho de Roma. Lutei para passar entre as tropas até voltar para dentro do abatedouro que a cidade que eu havia amado se transformara. E quando encontrava crianças moribundas, eu as salvava, as trazia para a minha Ordem. Com meu próprio sangue, construí um exército para proteger o meu povo da maldição.

Rasputin gesticulou para os acólitos próximos com um braço coberto de negro.

– Vocês têm aqui diante de si apenas algumas das crianças perdidas de Leningrado. Anjos que não morreram na imundície.

As crianças se moveram de um pé para o outro, os olhos claros fixos nele, com adoração.

– A senhora sabe quantas pessoas morreram aqui, doutora?

Erin sacudiu a cabeça.

– Dois milhões. Dois milhões de almas numa cidade que outrora abrigava três milhões e meio de habitantes.

Erin nunca antes havia se confrontado com alguém que tivesse visto o sofrimento, contado os mortos russos.

– Eu sinto muito.

– Eu não pude me manter indiferente, passivo. – Rasputin cerrou as mãos poderosas em punhos. Por isto, eu fui banido. Um destino pior que a excomunhão. Por salvar as crianças. Diga-me, doutora, o que a senhora teria feito no meu lugar?

– Você não as salvou – disse Rhun. – Você as transformou em monstros. Teria sido melhor deixá-las ir para junto de Deus.

Rasputin o ignorou, os olhos fundos azuis cravados nos de Erin.

– A senhora pode olhar nos olhos de uma criança moribunda e ouvir um batimento cardíaco enfraquecer e não fazer nada? Por que Deus me deu estes poderes, senão para usá-los para salvar os inocentes?

Erin se recordou de ter observado os batimentos cardíacos de sua irmã se tornarem mais lentos e pararem. Ela implorara tanto ao pai para deixá-las ir a um hospital! Rezara tanto, implorando a Deus para salvá-la! Mas o pai dela e Deus haviam escolhido deixar um bebê inocente morrer. Seu próprio fracasso em salvar a irmã a perseguira durante a vida inteira.

Ela enfiou a mão no bolso e tocou o retalho da manta. E se ela tivesse tido a coragem de Rasputin? E se tivesse usado sua raiva para desafiar o pai, renunciar à interpretação dele da vontade de Deus? A irmã talvez também pudesse ainda estar viva. Será que ela podia culpar Rasputin por ter feito algo que ela própria desejara fazer?

– Você as corrompeu. – Rhun tocou a manga de Erin, como se percebesse seu sofrimento. Os olhos de Rasputin baixaram para seguir a mão dele. – Você não salvou aquelas crianças. Você as impediu de encontrar a paz eterna ao lado de Deus.

– Tem certeza disso, meu amigo? – perguntou Rasputin. Ele deu as costas para o tabernáculo e encarou Rhun. – Você encontrou alguma paz em seu serviço para a igreja? Quando se apresentar diante de Deus, quem terá a alma mais limpa? Aquele que salvou as crianças ou aquele que transformou em um monstro a mulher que amava?

Os olhos de Rasputin caíram sobre Erin naquele momento.

Ela estremeceu diante da advertência naqueles olhos.


50

27 de outubro, 18:22, horário de Moscou

São Petersburgo, Rússia

Antes que Rhun pudesse reagir ao desdém de Grigori, eles foram interrompidos. Todos os olhos – exceto os de Erin e de Jordan – se viraram em direção à entrada da igreja. Mais uma vez os sentidos de Rhun foram assaltados pelo reflexo bruxuleante de luzes de velas nos milhões de azulejos, mármores e superfícies ornadas em dourado.

Além de tudo aquilo, ele ouviu um batimento cardíaco se aproximar da porta externa. O ritmo lhe parecia conhecido – por quê? –, mas entre a vida latejante de Erin e de Jordan e a sobrecarga sensorial, ele não conseguiu discernir o que o fez arreganhar os dentes.

Então soou uma batida.

Agora Erin e Jordan também se viraram, ouvindo o bater forte e imperioso na madeira.

Grigori levantou a mão.

– Ah, parece que tenho mais visitantes a receber. Se me dão licença.

Os congregantes cercaram Rhun e seus companheiros, empurrando-os para a abside.

Rhun continuou a olhar fixamente para a porta, lançando seus sentidos em direção ao misterioso visitante, mas àquela altura o cheiro de sangue e carne queimada subindo dos acólitos de Grigori também o tinha engolfado. Frustrado, ele respirou fundo e ofereceu uma prece pedindo paciência na adversidade.

Grigori se afastou com um aceno insolente, desapareceu no vestíbulo e saiu pela porta para a noite fria.

– Estou começando a ficar cansado de ser arrebanhado para lá e para cá – disse Jordan enquanto era empurrado mais para junto de Erin.

– Como se fôssemos vacas – concordou Rhun.

– Vaca não – disse o soldado. – Como um touro. Deixe-me conservar a minha dignidade. O pouco que me resta.

Enquanto esperavam, Erin cruzou os braços. Ela parecia a mais calma dos três. Será que confiava que Grigori fosse cumprir a palavra dada, que ninguém lhes faria mal? Com certeza não era tola a esse ponto. Rhun tentou se abstrair dos batimentos cardíacos de Erin e escutar, se esforçando em direção à porta, mas Grigori e seu visitante tardio haviam se afastado para longe demais.

– Você acha que ele sabe onde o livro está? – perguntou ela, deixando claro como pouco confiava realmente em Grigori.

– Eu não sei. Mas se estiver na Rússia, nunca o encontraremos sem a cooperação dele.

– E depois disso? – perguntou Jordan. – O que acontecerá? O que ele vai fazer – com você, conosco? Imagino que também não vá ser divertido.

Rhun relaxou minimamente, aliviado pelo fato de Jordan não se ter deixado enganar por Grigori.

– De fato.

A voz de Erin permaneceu resoluta.

– Eu acho que Rasputin vai cumprir a palavra. Mas isto poderá ser tão preocupante quanto se ele não a cumprisse. Ele me parece uma pessoa que joga muitos níveis de um jogo de xadrez enquanto sempre apresenta um rosto sorridente.

Rhun assentiu:

– Grigori é um homem de palavra, mas é preciso ouvir com muita atenção cada palavra que sai de seus lábios. Ele não fala por acaso. E a lealdade dele é... complicada.

Jordan lançou um olhar para a congregação silenciosa, que montava guarda enquanto eles esperavam.

– As coisas seriam mais fáceis se a igreja cumprisse a palavra dela. Ela deveria ter ajudado durante o cerco, ainda mais quando os strigoi vinham para cá se alimentar. Talvez nós não tivéssemos Rasputin como nosso inimigo.

Rhun passou os dedos nas contas gastas de seu rosário.

– Defendi o caso dele pessoalmente junto ao cardeal Bernard, disse-lhe que Cristo não tinha nos salvado para mostrarmos neutralidade em face do mal, que ele nos tinha feito para lutar sempre contra o mal e sob todas as suas formas.

Rhun não contou a eles que havia considerado a possibilidade de seguir Grigori de volta para São Petersburgo durante a guerra. Ele acreditava que a sua incapacidade de convencer Bernard a ajudar a cidade cercada tinha sido um de seus grandes fracassos como Sanguinista, possivelmente rivalizando com o que ele infligira a Elisabeta.

Um dos congregantes deu um passo adiante. Era Sergei, os olhos duros como vidro.

– Então admite que ele estava certo?

– Até mesmo um relógio errado está certo duas vezes por dia. – Jordan cruzou os braços. – E certo nem sempre significa bom.

Ali o argumento emperrou.

Erin passou a hora seguinte examinando os mosaicos semelhantes a joias, parando para tocá-los onde podia, como se os compreendesse através do toque. Rhun não conseguia suportar olhá-los. Era uma afronta a Deus ter obras de arte religiosa tão belas num templo tão profano.

Como um bom soldado, Jordan voltou para a mesa, se sentou e repousou a cabeça no tampo, aproveitando para dormir quando não podia fazer mais nada. Rhun admirou o sentido prático dele, mas não conseguia se acomodar em tamanha calma. Expandiu os sentidos para fora da igreja, escutando os ritmos de uma cidade se movendo na noite, o ronco de carros diminuindo, o som abafado de passos, as vozes passando e se afastando, e sob aquilo tudo o sussurro suave da neve caindo.

Então Rhun ouviu passos e um frenético batimento cardíaco se aproximando da entrada da igreja. Cabeças se viraram, mas os acólitos de Grigori pareciam já ter reconhecido o visitante, pois não se deram ao trabalho de empurrar Rhun e os outros para o esconderijo.

Sergei desapareceu no vestíbulo e voltou com um homenzinho de cabelo oleoso com um nariz pontudo. O desconhecido trazia consigo o cheiro da neve.

– Não foi fácil conseguir o que você pediu. – O homem entregou a Sergei um estojo de plástico mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos.

Sergei deu-lhe um rolo de notas, que ele contou com um dedo manchado de nicotina. O homem embolsou o rolo, deu um cumprimento rápido de cabeça para Sergei e voltou a sair para a noite.

Sergei se virou para Jordan.

– Agora é a nossa vez de oferecer presentes, da?

18:38

Jordan aceitou o estojo, abriu o pequeno fecho e levantou a tampa. Assoviou satisfeito com o que viu. O Natal tinha chegado cedo.

– O que é? – Erin tocou no seu cotovelo. O cheiro fresco do xampu do hotel alemão pairou no ar e ele se lembrou daquele primeiro beijo. – Jordan?

Ele levou mais um segundo para se recompor.

– Foi o que pedi antes. – Ele inclinou a caixa para revelar um aparelho eletrônico embalado em espuma plástica, junto com baterias, tiras para transporte, manuais e ferramentas para colher amostras. – É um detector de explosivos portátil.

– Parece um grande controle remoto. – Ela tocou na caixa azul com um dedo. – Faltando alguns botões.

– Ele tem botões suficientes – disse Jordan. – Se funcionar corretamente, pode detectar os níveis de materiais explosivos em partes por quadrilhões. Qualquer coisa, de C-4 a dinamite a nitratos de amônia e de ureia. Na verdade, pode procurar qualquer coisa que se possa coletar como amostra.

– Como funciona? – Erin parecia querer tirá-lo da mão dele para ver.

– Ele usa polímeros fluorescentes amplificadores. – Jordan tirou o detector da espuma, sentindo uma pontada de dor no polegar mordido pelo morcego. – O detector dispara um raio de luz ultravioleta e vê o que acontece na faixa fluorescente depois que as partículas são excitadas.

– É perigoso? – perguntou Rhun, olhando para o aparelho com desconfiança.

– Não. – Jordan inseriu a bateria e ligou o aparelho enquanto eles conversavam. – Pode me dar aquele pedaço de concreto da cobertura do livro?

Erin o tirou do bolso e pôs na mão dele, os dedos frios roçando na mão dele. Ele não sabia se ela havia feito aquilo de propósito, mas gostaria que continuasse o dia inteiro.

Rhun pigarreou.

– Isto basta para o que você precisa?

– Deve ajudar.

Jordan examinou as marcas de queimadura ao longo de um lado do fragmento de concreto. Depois de estar satisfeito porque ofereceria uma amostra decente para teste, colocou tudo sobre a mesa e começou a trabalhar.

– Devo conseguir calibrar o aparelho para identificar qualquer explosivo que tenha sido usado para quebrar a cobertura de cimento. Vou transformar este pequeno aparelho em nosso cão farejador eletrônico.

Ele tinha apenas acabado de fazer a calibragem quando Rasputin voltou, sorrindo radiante. Jordan se crispou ao olhar para ele. Qualquer coisa que deixava Rasputin feliz não podia ser boa para eles.

18:46

Erin se virou para Rasputin enquanto Rhun se mantinha próximo.

Jordan se ocupou em fazer alguns ajustes finais no detector de explosivos.

– Boa-noite! – Rasputin veio em direção a eles em passadas largas. Parecia energizado e entusiasmado demais, até para ele. – O equipamento que conseguimos é satisfatório?

– É – admitiu Jordan a contragosto. – E está pronto para entrar em ação.

– Como eu. – Rasputin esfregou as mãos e sorriu. Parecia ávido e feliz, como uma criança a ponto de entrar numa sorveteria.

– Conseguiu uma pista do livro? – perguntou Erin.

– É possível. Sei para onde pode ter sido levado, se tiver sido trazido para São Petersburgo nas datas especificadas pelo sargento.

Rasputin chegou mais perto, tocou a base da coluna de Erin e a guiou para o centro da igreja. Ela estendeu a mão para trás e tentou afastar a mão dele. Ele a deixou lá por um segundo, sólida como se fosse de pedra. Então, com um minúsculo sorriso, a deixou afastar seu braço para outro lado. A mensagem era clara: ele era mais forte, e faria com ela o que bem entendesse.

Ao ver aquilo, Jordan recolheu o detector, se levantou e foi se postar ao lado dela, mantendo-se bem próximo, com ciúme ou preocupado. Ela descobriu que aquele pensamento não a incomodava tanto quanto havia incomodado em Jerusalém. Um calor corporal irradiou no pequeno espaço entre eles.

Os olhos de Jordan escureceram à medida que aquele calor também o aqueceu.

Rasputin os fez parar no centro da igreja. Ele se ajoelhou num mosaico de pedras e puxou uma única lajota do centro de uma flor. Sergei lhe entregou uma barra de metal com um gancho na ponta, semelhante a um pé de cabra. Rasputin a encaixou no buraco e levantou uma seção circular do piso com uma das mãos, revelando um túnel escuro seguindo para baixo.

Com um floreio cavalheiresco, ele gesticulou para uma escada de metal presa em um dos lados.

Erin se inclinou sobre o buraco e não conseguiu ver o fundo, mas o cheiro era desagradável.

Ela conteve um suspiro.

Eles iriam para subsolo.

De novo.

Rhun deu a volta em Jordan e montou primeiro na escada, descendo rapidamente.

Jordan enfiou o detector no bolso e esperou que Erin fosse a segunda. Ele claramente pretendia ficar entre ela e Rasputin.

Depois de enfiar a mão no bolso para se certificar de que sua lanterna ainda estava ali, ela seguiu Rhun. O metal esfriou suas mãos enquanto ela segurava os degraus e começava a descida de escada mais longa da sua vida.

Jordan a seguiu, descendo ruidosamente, segurando-se com uma única mão. Será que estava se mostrando ou protegendo a mão mordida? A ferida era profunda, mas ele não reclamou.

Acima dele, Rasputin e seus congregantes desceram depois.

Ela voltou sua atenção para a longa jornada de descida, contando os degraus. Tinha chegado a mais de sessenta quando seu polegar se estendeu para baixo e tocou no chão gelado.

Rhun a ajudou a sair da escada. Ela não recusou. Àquela altura, ela estava com os dedos dormentes de frio. Afastou-se para sair do caminho de Jordan, enfiando as mãos nos bolsos.

Jordan lhe deu um sorriso rápido quando saltou para longe da escada.

– Quando tudo isso acabar, vamos passar uma semana numa praia ensolarada. Acima da terra. E as margaritas são por minha conta.

Ela sorriu de volta e lutou contra a vontade de apertar o nariz contra o fedor que pairava ali. Era cheiro de dejetos humanos.

Vozes em russo vindas do alto atraíram a atenção deles de volta para Rasputin, seu vulto em silhueta em um círculo de luz enquanto descia. Atrás do ombro do monge, dez de seus congregantes o seguiam. Então alguém recolocou a tampa de metal no buraco e os mergulhou na escuridão.

Meio segundo depois, a lanterna de Jordan acendeu ofuscante e Erin fez o mesmo com a dela.

Os fachos das lanternas mostraram que eles estavam dentro de um tubo de concreto cinza encardido, com um teto tão baixo que a cabeça de Jordan quase o tocava. Limo verde e marrom cobria o piso e subia pelas paredes.

Erin lutou contra uma ânsia de vômito. O cheiro de dejetos enchia-lhe a boca e subia pela garganta. Ela disse a si mesma que podia suportá-lo. Devia ser muito pior durante o verão.

Rasputin deu um sorriso sinistro.

– Não é tão agradável quanto uma tumba antiga, certo?

Erin sacudiu a cabeça.

– Receio que esta coelheira continue a servir como uma tumba – disse ele. – A cada inverno, as crianças sem teto de São Petersburgo fogem para os esgotos. Dezenas de milhares delas. Nós lhes trazemos comida quente e mantemos os esgotos livres de strigoi, mas não é suficiente. Inocentes ainda morrem aqui no escuro, e mesmo assim a sua preciosa igreja não se importa, Rhun.

Rhun comprimiu os lábios, mas não disse nada.

Rasputin levantou a barra da batina, feito uma dama com um vestido de baile, e os conduziu adiante. Cinco de seus acólitos seguiram em seus calcanhares e outros cinco ficaram na retaguarda, atrás de Rhun, Erin e Jordan.

Erin se concentrou em olhar onde pisava e em não escorregar. Ela estremeceu ao pensar em qualquer parte de seu corpo tocar no chão. Era confortador ter Rhun de um lado e Jordan do outro, embora os três não pudessem levar a melhor contra os dez que os acompanhavam – onze, se ela contasse Rasputin.

Rhun tropeçou e se segurou na parede.

Jordan virou a lanterna na direção dele.

– Você está bem?

Os acólitos os empurraram para a frente, mantendo-os em movimento.

Rhun farejou o ar, como se para confirmar alguma coisa. Ele gritou para Rasputin:

– Isto é cheiro de um ursus? Aqui embaixo?

– Não apenas um ursus qualquer – a resposta de Rasputin ecoou pelo túnel. – A Ursa em pessoa. Uma vez que estamos aqui, acho que devemos lhe fazer uma visita, em homenagem aos velhos tempos.

O monge virou abruptamente em um túnel lateral, obrigando-os a seguir.

Erin viu Rhun esfregando a perna direita. Viu preocupação e medo em seu rosto.

Jordan também deve ter visto, pois de novo ele segurou a mão dela.

Depois de caminharem por mais alguns minutos, ela também sentiu o cheiro. Crescera nas florestas da Califórnia, e reconheceu o odor almiscarado.

Urso.

Jordan apertou a mão dela.

Adiante, Rasputin parou no cruzamento de dois túneis.

Como no bunker, um X marcava o lugar.

Os túneis se uniam numa câmara de cerca de quatro metros quadrados. Grades de metal bloqueavam cada um dos quatro caminhos que davam para a interseção, formando uma jaula maciça. O metal tinha sido trabalhado para formar árvores fantásticas com galhos e folhas interligados, como uma floresta. O padrão continuava sobre as paredes de concreto com mosaicos de vidro de árvore e pássaros. Os tons de joias brilhantes e traçados artísticos fizeram Erin recordar os mosaicos da igreja lá em cima.

A despeito da beleza, ela lutou para engolir a bile. Um fedor ainda pior se mantinha subjacente ao cheiro de urso – o fedor de carne em decomposição e sangue velho.

Jordan girou o foco de sua lanterna para dentro da jaula e revelou um monte de pelos enroscados em cima de um ninho de ossos acinzentados e galhos de abeto.

Rasputin estendeu as palmas de ambas as mãos contra a grade bloqueando-os.

– Minha querida ursa! Acorde!

O negrume se moveu adquirindo vida – quebrando galhos e ossos debaixo de si – enquanto rolava lugubremente para o estômago.

Um focinho cheio de cicatrizes se levantou e farejou o ar. Então a criatura se apoiou nas quatro patas meio bambas e depois se levantou.

Erin deu uma exclamação de surpresa ao ver seu tamanho. Os ombros roçavam no teto arqueado no interior da jaula. Ela calculou que a criatura tivesse cerca de dois metros de quatro, provavelmente quatro metros e meio quando ereta, se conseguisse se pôr de pé.

A ursa se sacudiu uma vez e despertou plenamente, virando o poço negro de seus olhos para eles, revelando um brilho carmim profundo ardendo em suas profundezas infinitas. O brilho revelava sua corrupção e fez todos os pelos do corpo de Erin se arrepiarem.

Então, com um salto rápido como um raio, ela os atacou.

Rhun se pôs na frente de Erin, com os braços erguidos, pronto para protegê-la. Ela apreciou o gesto, mas seria fútil se a ursa conseguisse ultrapassar a grade.

– Querida ursa – cantarolou Rasputin enquanto a ursa derrapava e se detinha diante dele. – Mais uma refeição antes de seu sono de inverno?

O coração de Erin disparou. Será que ele pretendia que eles fossem a refeição? Um olhar rápido para Jordan e Rhun lhe disse que eles estavam pensando a mesma coisa. Até os acólitos tinham ficado para trás, mantendo uma distância saudável.

Chegando à grade, a ursa esfregou a enorme cabeça contra o ferro, revelando pelos cinzentos misturados com os negros. Era velha.

Rasputin estendeu a mão entre as barras e acariciou-lhe as orelhas. A ursa bufou calorosamente, então virou a cabeça para Rhun, cravando nele aqueles olhos vermelhos sobrenaturais – e rosnou.

– Ah, está vendo, ela se lembra de você! – Rasputin acariciou a ursa debaixo do queixo. – Depois de todos estes anos. Imagine!

Rhun passou a mão de novo pela perna.

– Eu também me lembro dela.

Com base na expressão dele, não era uma lembrança agradável.

– Sua perna parece ter ficado boa – disse Rasputin. – E você não deveria ter sido tão descuidado.

– Por que ela está aqui, Grigori? – A raiva endureceu a voz de Rhun.

– Não havia nenhum lugar seguro para ela passar o inverno na floresta – disse ele. – Os homens poderiam encontrar sua toca. Na idade dela, é lenta para acordar. Ela merece um lugar tranquilo para passar os meses do frio.

Rasputin enrolou a manga comprida negra, tirou um punhal curto das vestes e cortou o próprio pulso. Uma longa língua rosada se enrolou ao redor do braço do monge a cada lambida.

O tempo todo Rasputin murmurou em russo para a ursa.

Erin cobriu a boca, enojada, e Jordan engoliu em seco.

Enquanto a ursa esfregava o focinho e lambia o braço de Rasputin, sua pata enorme chutou um objeto redondo por um espaço entre a grade ornamentada. A esfera rolou e parou diante dos tênis de Erin. Ela virou o foco da lanterna para ele. Um crânio humano.

A julgar pelas minúsculas tiras de carne ainda presas a ele, era recente.

Erin recuou horrorizada.

Rhun falou, sua voz carregada de autoridade:

– Basta, Grigori.

Rasputin recolheu o braço branco que a ursa lambia e puxou a manga para baixo. Ele se virou e olhou para os outros.

– Está com tanta pressa assim, Rhun?

– Nós estamos aqui para encontrar o Evangelho e ir embora. – Os olhos escuros de Rhun não se descravavam da ursa. – Como você prometeu.

– É, prometi. – Rasputin tirou um lenço da manga e limpou as mãos. – Sigam-me.

Ele seguiu de volta para o túnel, passando pelos outros, cheirando a sangue e urso.

Eles retomaram a jornada. Erin não precisou de incentivo para botar distância entre ela e a ursa.

– Rhun? – perguntou ela, se mantendo ao lado dele. – O que houve entre você e a ursa?

Ele suspirou com impaciência.

– A ursa outrora era conhecida como a Ursa de São Corbiniano. Você conhece a história?

Erin assentiu. Durante a juventude tinha sido obrigada a memorizar o nome de todos os santos e suas histórias.

– A caminho de Roma, São Corbiniano encontrou um urso, que comeu sua mula. Depois disso, por meio da vontade de Deus, São Corbiniano obrigou o urso a aceitar a sela e a carregá-lo para casa. Mas com certeza aquele monstro aqui não pode ser aquele urso: aquela história remonta ao século VIII.

– O animal é um blasphemare, e eles podem viver muito tempo. Corbiniano encontrou o monstro na estrada e conseguiu fazer com que ele o servisse, é um acontecimento muito raro, uma criatura blasphemare se submeter à vontade de um Sanguinista.

Erin pensou em Piers e os morcegos, mas se manteve em silêncio.

Jordan lançou um olhar para trás por cima do ombro.

– Aquela ursa definitivamente é grande o bastante para servir de montaria.

– Como você a encontrou? – insistiu ela.

– Há oitenta anos correram notícias de um urso enorme que estava devorando camponeses na Rússia. Piers Grigori e eu fomos enviados para acabar com ele.

– Parece que não conseguiram – disse Jordan.

Rasputin ficou para trás e se juntou à conversa, pondo a mão sobre o ombro de Rhun.

– Não foi por falta de tentativa. Rhun a rastreou até sua toca de inverno. Piers não havia gostado da missão e se recusou a ajudar. Mas ele se mostrou muito útil depois que ela quase arrancou a perna de Rhun.

Rhun tocou a perna de novo.

– Levou quase uma década para sarar.

– A ursa estava apenas assustada – disse Rasputin. – Ela tem uma alma gentil.

– Ela não me pareceu gentil – acrescentou Jordan.

– Depois que Piers e eu retiramos Rhun do abraço brincalhão da ursa, ela fugiu para a floresta. – Rasputin sacudiu a cabeça. – Nós nunca mais a encontramos. Por fim acabamos por ser chamados de volta para Roma.

– Mas você a encontrou agora – disse Rhun. – Como?

– Ela me chamou – disse Rasputin. – Depois que deixei os Sanguinistas e abracei minha verdadeira natureza, blasphemare começaram a me procurar.

– Abominações buscando seus iguais. – A voz de Rhun soou amarga.

– Somos o que somos, Rhun. Aceitar o destino, em vez de lutar contra ele, nos dá mais poder do que você pode imaginar.

– Eu não busco poder. Busco graça.

Rasputin deu uma risadinha.

– E em todos estes séculos de esforço, já a encontrou? Talvez a graça que você busca esteja dentro do seu coração, não entre as paredes de uma igreja.

Rhun cerrou os maxilares.

Ninguém falou por vários minutos. Eles avançaram rapidamente. Os únicos sons eram dos sapatos esmagando o gelo imundo.

Passaram por vários túneis, seguindo em ambas as direções, e também escadas subindo e descendo para outros níveis. Erin geralmente tinha um bom sentido de direção em áreas subterrâneas, mas nunca conseguiria voltar a encontrar a igreja. Jordan parecia estar contando, de modo que ela esperava que ele tivesse uma noção melhor de onde eles estavam.

Finalmente Rasputin parou e subiu por uma escada de metal. Erin virou a lanterna para cima, mas não conseguiu ver o fim da escada.

– Vamos subir – disse Jordan. – Será que é pedir demais que isto nos leve a um Starbucks?

Logo em seguida todos eles subiram pelos degraus de metal.

A escada acabava em um aposento de concreto limpo. Erin ficou satisfeita por deixar aquele fedor para trás. Respirou fundo o ar mais fresco, limpando os pulmões. O único detalhe no pequeno espaço era uma caixa de metal numa parede ligada a cabos que se estendiam para o teto.

Rasputin ignorou aquilo e seguiu para uma porta cinzenta. Usou uma chave antiquada para abri-la e os conduziu a outro aposento. Mais uma porta bloqueava o caminho dali, desta vez com um painel eletrônico moderno na parede. Ele passou os dedos sobre o teclado, pressionando dígitos tão rapidamente que Erin não conseguiu acompanhar.

A porta grossa de aço, como a de um cofre de banco, se abriu lentamente.

Rasputin atravessou o umbral rapidamente e acenou para que todos o seguissem por um corredor obscuro com paredes ocre. Outros corredores se abriam em muitas direções. Parecia que estavam entrando em um labirinto gigante.

A partir dali, o passo de Rasputin se apressou. Logo, até Jordan desistiu de contar enquanto eles se embrenhavam mais profundamente no labirinto.

Depois de mais dez minutos percorrendo corredores, subindo escadarias curtas e atravessando aposentos empoeirados, Rasputin se deteve diante de uma porta de madeira sem nada demais, com uma maçaneta de vidro preto. Não parecia em nada diferente das centenas de outras pelas quais eles haviam passado.

Rasputin retirou um grande chaveiro das pregas de sua veste. Ele examinou algo em torno de cinquenta chaves antes de finalmente escolher uma.

Enquanto inseria a chave, Rhun se posicionou entre Erin e Rasputin. Jordan ficou do outro lado. Os congregantes da igreja russa se mantinham num semicírculo atrás deles.

Rasputin girou a chave com um rangido, empurrou e abriu a porta.

– Venham!

Eles o seguiram e entraram em um aposento escuro que cheirava a ferrugem e mofo. A garganta de Erin ardeu, fazendo-a tossir. Ela se perguntou quanto tempo fazia desde que aquele aposento tinha sido arejado. A cientista nela queria pedir uma máscara contra poeira.

A alguns passos de distância, Rasputin puxou um cordão preso a uma lâmpada pendurada no teto. Uma luz fraca bruxuleante iluminou pilhas de guardados amontoados contra as paredes. Parecia a sala de um colecionador.

– Chegamos! – Rasputin se virou para seus seguidores. Esperem do lado de fora. Acho que já somos muitos para este espaço.

– Onde estamos? – perguntou Jordan enquanto a lâmpada zumbia acima.

– Estamos abaixo do Hermitage – respondeu Rasputin. – Um dos maiores e mais antigos museus de arte do mundo.

Jordan olhou ao redor do aposento atravancado.

– Não parece grande coisa.

– Estas são áreas de depósito do museu – disse Rasputin com um olhar furioso. – Lá em cima, o museu de verdade é belíssimo.

Erin sentiu um toque de irritação profissional. Como a maioria dos acadêmicos, tinha ouvido falar do triste estado da coleção há muito escondida e decadente do Hermitage, mas nunca imaginou que estivesse negligenciada a esse ponto. Enquanto avançava, camundongos irromperam de uma pilha de mantas mofadas.

Ela recuou horrorizada.

– É assim que o museu guarda suas coleções?

Rasputin apenas deu de ombros, como quem diz: O que é a história para alguém que viveu séculos?

Ela limpou as mãos no jeans e olhou ao redor, abismada. Um quadro emoldurado encostado contra a parede atrás das mantas parecia ser uma xilogravura original de Dürer, dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. A obra de valor inestimável tinha sido guardada de qualquer maneira junto com ferramentas quebradas e velhas tapeçarias apodrecidas. Acima, uma flor negra de mofo manchava o teto, marcando uma velha infiltração.

– Este não pode ser o lugar certo – disse ela.

Rasputin deu uma risadinha e cutucou Rhun com bom humor.

– Ela é adorável, não é? Esta sua Mulher de Saber.

Rhun se virou para Jordan.

– Você deveria usar o detector aqui.

Enquanto Jordan se dedicava a ligar o detector de explosivos eletrônico, Erin se recusou a abandonar o assunto.

– Por que nada disso foi catalogado?

Rasputin puxou o que parecia ser um pano de pratos sujo de uma escultura, como alguém examinando as ofertas de um brechó.

– Cuidado! – Erin tocou no topo da cabeça da escultura, passou um dedo ao longo de uma perna estendida. – Isto é um Rodin. Uma dançarina. É de valor inestimável!

– É bem provável – concordou Rasputin. O monge passou para uma pilha de livros encadernados em couro, folheando-os. Pedaços de papel esvoaçaram de suas mãos e caíram no chão.

Erin fechou os olhos. Não podia olhar para aquilo, e detestava pensar nos danos que já teriam sido causados aos artefatos no museu e ao registro histórico.

Rhun remexeu num caixote.

– Por que acha que este seja o lugar certo, Grigori?

– A data. – Rasputin pôs um dedo sobre um cartão amarelado afixado na parede com um prego enferrujado. – Esta é uma das salas onde as tropas russas, voltando no fim de maio, armazenaram os tesouros que tinham pilhado da Europa.

– Quantas salas são? – Jordan finalmente tinha conseguido inicializar o detector e deu uma varredura com ele de um lado para outro.

– Várias – respondeu Rasputin.

– E estão todas desorganizadas como esta? – A cabeça de Erin latejava no ritmo do piscar da lâmpada.

– Muitas estão piores.

Suspirando derrotada, ela se juntou a Rhun na busca.

Eles levaram uma hora para vasculhar o primeiro conjunto de salas. Os criados de Rasputin não ajudaram. Ficaram parados do lado de fora no corredor e fumaram. Fumar também não estava ajudando nada os artefatos, mas Erin supunha que aquilo fosse apenas mais um grão de areia na ampulheta marcando a degradação inevitável daqueles tesouros.

Rasputin se manteve irritantemente bem-humorado.

– Prontinho. Mas ainda faltam outros! – anunciou, e os conduziu por um corredor úmido.

A sala seguinte, como a primeira, estava entulhada até o teto com uma mistura de objetos inúteis e preciosidades, mas pelo menos havia um tema – um tema marcial ou militar. Erin olhou para a panóplia de velhas bandeiras russas, montes de elmos e baionetas empilhados como lenha e o que parecia um propulsor gigante se estendendo pela sala.

O espaço era cavernoso. Eles poderiam passar uma vida inteira revistando apenas aquela sala e não encontrar algo pequeno como um livro.

Então o aparelho de Jordan bipou.


51

27 de outubro, 19:18, horário de Moscou

Museu Hermitage, Rússia

Jordan gritou de alegria:

Agora podemos trabalhar de verdade – e logo ter esperanças de sair daqui!

– O livro está aqui? – Erin correu para o lado dele, olhando por cima de seu ombro. A respiração dela aqueceu-lhe a nuca.

Ele teve que se afastar.

– Talvez. Não sei. Mas pelo menos é uma leitura positiva. Alguma coisa com uma assinatura química equivalente a Nobel 808 está por perto. Foi o que detectei na lasca de pedra no seu bolso.

Ele virou o detector de um lado para outro, quase esbarrando nela. O detector o conduziu a uma tapeçaria esfarrapada. Ele a levantou e ela se desintegrou sob os seus dedos, desmanchando-se com um suspiro.

Desta vez Erin não o repreendeu. Ela se manteve perto ao lado dele.

Jordan avançou para além da tapeçaria, seguindo cada bipe do detector mais para o fundo da sala. Ele o levou para o propulsor gigante que descansava sobre um caixote de madeira no centro do aposento.

– Acho que é de um MiG-3 – disse ele, passando a mão no metal liso. – Apenas alguns milhares deles foram fabricados, mas lutaram bem no front oriental.

– É isto que está fazendo o detector bipar? – perguntou ela.

– Nãaao... – Ele se ajoelhou lentamente, direcionando a ponta do aparelho para a frente. – O que está acionando o detector está debaixo do propulsor. Provavelmente dentro do caixote.

– Vamos retirar o propulsor – disse Rhun, balançando a cabeça para Rasputin.

Jordan olhou por cima do ombro para os outros homens. Normalmente seria preciso seis ou sete homens para levantar aquela monstruosidade de aço. Mas, pensando bem, nada era normal naquele par.

Os dois homens se posicionaram um de cada lado do gigantesco propulsor, cada um pondo o ombro debaixo das hélices de aço. Um sinal silencioso e ambos se levantaram, erguendo a maciça peça de avião com um ranger de metal. Pela tensão no rosto deles, o peso era grande até para a força extraordinária que tinham.

Jordan se enfiou debaixo das hélices, confiando que eles não deixassem a peça cair sobre a sua cabeça. Ele chegou perto do caixote e examinou o interior cheio de palha. Seu coração disparou, subindo-lhe até a garganta.

Ah, meu Deus...

– Alguma coisa? – perguntou Erin.

Um de cada lado dele, Rhun e Rasputin lutavam para sustentar a massa de aço. Acima, o propulsor começou a tremer à medida que ambos começavam a se exaurir.

– Parem! – berrou Jordan. – Ninguém se mova!

19:22

Ouvindo o pânico na voz do soldado, bem como em suas palavras, Rhun se imobilizou totalmente, do mesmo modo que Grigori. Um ligeiro temor o trespassou como um pássaro de asas cortantes, fazendo sua determinação vacilar: teria o propulsor esmagado o livro?

– O que é? – perguntou Erin. – Quer que eu ajude você?

– Não! – O cheiro salgado do medo se elevava dele. – Fiquem onde estão. E estou dizendo todo mundo. Senão todos nós vamos morrer.

O soldado engatinhou de volta para trás, afastando-se da parede, o coração disparando.

Rhun esperou, o propulsor se tornando mais pesado em suas mãos.

Grigori lhe endereçou um sorriso malicioso.

– Aqui estamos nós, trabalhando lado a lado, a um passo da morte, meu droog. Exatamente como nos velhos tempos.

Jordan se levantou lentamente.

– Vocês não podem pôr o propulsor de volta onde estava. Há um artefato prestes a explodir dentro daquele caixote. O detector fez o que foi projetado para fazer. Infelizmente, encontrou uma bomba, não um livro.

– Tem certeza de que é uma bomba? – perguntou Erin.

– É um míssil antitanque soviético. E, sim, tenho certeza.

Como sempre, Erin continuou a discutir:

– Talvez esteja debaixo do míssil.

– Se estiver, eu não vou tirá-lo de lá. – Jordan apontou para o corredor. – Desculpem, rapazes, mas creio que vocês terão que levar isto para o outro lado da sala. Se um peso de meio quilo pressionar aquele míssil, estaremos todos mortos.

– Você ouviu isso, Rhun? Temos que ser cautelosos. – Grigori deu uma risada despreocupada.

Aquele som levou Rhun para décadas atrás. Grigori tinha sido o membro mais imprudente do trio, despreocupado com a perspectiva da morte – para si mesmo e para os outros. Sua alegre bravura salvara a vida de Rhun várias vezes, mas também a pusera em perigo outras tantas.

– Vocês dois não devem sair daqui antes que tentemos movê-lo? – perguntou Rhun.

– Não ajudaria – disse Jordan. Se o míssil explodir, vai derrubar o prédio e metade de um quarteirão da cidade ao redor.

O coração de Erin acelerou.

– Então eu sugiro que todo mundo faça as pazes com Deus. – Os lábios de Grigori se curvaram no meio sorriso familiar. – Quando eu contar três, Rhun?

Juntos, eles levantaram o propulsor mais alto e avançaram bem devagar em direção ao fundo da sala. Jordan e Erin se agacharam sob as hélices e ajudaram a desobstruir o caminho para as pernas pesadas dos outros.

Quando afinal ele tinha se afastado o suficiente, Jordan acenou para que eles baixassem o propulsor sobre um monte de caixotes perto do fundo da sala.

– E se também houver bombas nestes caixotes? – perguntou Rhun, a voz tensa pelo peso das hélices do motor.

Jordan praguejou, e o rosto de Erin empalideceu.

– A vida é sempre um risco. – Grigori começou a baixar o seu lado. – Não vejo nenhum sentido em morrer segurando isto.

Sem escolha, e de qualquer maneira duvidando que pudesse carregar aquele peso por sequer mais trinta centímetros, Rhun seguiu o exemplo de Grigori. Juntos, eles baixaram o propulsor sobre a pilha de caixotes.

Todos eles esperaram, como que prevendo o pior.

Mas os caixotes ficaram firmes.

Satisfeito, Grigori chamou um de seus acólitos, dizendo-lhe para procurar o curador do museu na manhã seguinte e explicar o que eles tinham encontrado. Rhun ficou grato por Grigori ter assumido a responsabilidade de se certificar que o míssil fosse removido.

Durante a longa e tensa hora seguinte, eles continuaram a vasculhar aquela sala e outras, tendo vários alarmes falsos, inclusive um silenciador de motor de caminhão enferrujado que o detector de Jordan assinalou e que há muitos anos devia ter sido explodido por uma bomba.

Em algum ponto, o cabelo de Erin tinha se soltado do prendedor e agora a sujeira empoeirada riscava-lhe as faces. Rhun percebeu que o caos ao redor deles a incomodava. Ela estava mais aflita com o fato de que tantos objetos preciosos estivessem escondidos do que com o fato de que eles não tivessem feito nenhum progresso para encontrar o livro.

Grigori participava da busca com sua habitual paciência obstinada, um contraponto para sua ousadia imprudente. O Monge Louco era mais cuidadoso e astucioso do que a maioria imaginava.

O detector de Jordan bipou de novo.

Erin foi para o lado dele.

– Mais uma peça de automóvel?

– Esperemos que não seja outro míssil. – Jordan se aproximou do canto do aposento.

Rhun o seguiu.

O aparelho os conduziu a uma cesta de vime arruinada que continha roupas de cama e mesa que um dia deveriam ter sido brancas. Uma poeira espessa havia se acumulado na tampa e mofo negro carcomia os lados.

Rhun retirou a peça de cima. Uma toalha de mesa. Ele a colocou sobre uma escrivaninha estilo Luís XIV e estendeu a mão para a seguinte.

– As leituras estão ficando mais fortes – disse Jordan. – Tenha cuidado.

Rhun retirou outra toalha de mesa, uma pilha de guardanapos e uma bandeira nazista vermelha.

Grigori se tensionou quando a bandeira foi aberta e revelou a suástica negra. Quantos de seus compatriotas tinham morrido sob o panejar daquela bandeira? Rhun embolou a bandeira e a jogou para o lado.

Erin levantou uma fronha cheia de objetos de formas estranhas. Ela a colocou no chão e revistou tudo, peça por peça. Tirou um livro, mas era apenas um velho livro de códigos alemão.

Rhun fechou os olhos. Seria o destino do Evangelho permanecer escondido? Talvez fosse melhor assim. Talvez o melhor resultado fosse que eles nunca encontrassem o livro. Ele abriu os olhos. Não. Eles tinham de encontrá-lo, no mínimo para impedir que caísse nas mãos dos Belial.

Erin tirou latas de sardinha enegrecidas da fronha – então ela se retesou.

– Jordan! Rhun! Olhem! – Ela retirou da fronha um fragmento de concreto cinza idêntico aos que tinham envolvido o livro.

Jordan passou o sensor sobre a superfície. Ele trinou.

Empolgada, ela retirou mais fragmentos, até que a fronha ficou vazia. Sacudiu a cabeça. Nada de livro.

Rhun apertou sua cruz, numa tentativa de conter a maré de desespero que acompanhava a dor da queimadura da prata.

Será que tinham vindo tão longe para ser desapontados de novo?

Jordan remexeu no que restava dentro da cesta com seu aparelho.

O sensor começou a bipar de novo, com a regularidade de um batimento cardíaco.

20:31

Erin retirou o último lençol puído da cesta. Levantou-o como uma mortalha, prendendo a respiração. Por um lado temia o que poderia descobrir; por outro, sentia uma enorme empolgação. Mas o que encontrou a decepcionou e a confundiu.

O que é isto?

Descansando no fundo da cesta, havia um bloco não identificável de metal cinza opaco com cerca de trinta centímetros de largura e um pouco mais de comprimento. Ela o levantou com cuidado. Era pesado como chumbo.

Jordan passou o detector de explosivos sobre o bloco, um tanto decepcionado.

– Isto é definitivamente o que acionou os meus sensores. Estão vendo as marcas de queimadura? Deve ter sido fruto do mesmo tipo de explosão.

Rhun lhes deu as costas; frustrado, inclinou-se sobre a sua cruz.

Erin se recusou a sucumbir à derrota. No mínimo a estranheza do artefato a intrigava. Seria possível que aquilo fosse o que eles estavam procurando – não um livro escrito por Cristo, mas uma relíquia simbólica, uma escultura antiga?

Ela recordou as palavras do padre Piers, primeiro faladas em alemão e depois traduzidas por Jordan.

Es ist noch kein Buch.

Não é um livro.

Seria isso o que Piers queria dizer? Ou seria aquele artefato apenas um pedaço de chumbo contaminado pelos fragmentos ao ser atirado dentro da fronha com eles?

Alguma coisa com relação aos fragmentos a incomodava, alguma coisa que ela não tivera realmente uma chance de investigar. Mas agora que ela dispunha de mais peças do quebra-cabeça...

Ela se virou e entregou o bloco de chumbo a Jordan.

– Segure isto. Quero tentar uma coisa.

Então ela reuniu os pedaços do concreto quebrado em um dos lençóis antigos e os levou para o corredor, onde tinha mais espaço. Com os fragmentos ainda em seu bolso, ela poderia ter peças suficientes para remontar a caixa de revestimento. Talvez pudesse ler as letras em aramaico impressas de um dos lados dos fragmentos. No momento parecia uma ideia melhor que vasculhar mais pilhas de lixo apodrecendo.

Ela gesticulou para que os garotos de Rasputin se afastassem, então abriu o lençol no chão. Os acólitos de Grigori se reuniram ao redor, observando-a. Ela ignorou a presença deles e levantou os fragmentos. Enquanto dedicava-se a arrumar as peças em sua forma original, concentrando-se plenamente em sua tarefa, os sons de Jordan e os padres ocupados da busca foram sumindo.

O mundo dela se tornou um quebra-cabeça.

Algum tempo depois, ela sentiu um toque no ombro e sobressaltou-se.

– Não encontramos mais nada lá dentro – disse Jordan. – Estamos prontos para passar para o próximo depósito.

– Preciso de mais um minuto.

Jordan se agachou ao lado dela.

– O que você tem aí?

A luz das lâmpadas acima iluminava os fragmentos. Ela os tinha organizado em um quadrado de cerca de trinta por trinta centímetros. Encaixados uns nos outros, eles revelavam um baixo-relevo de um desenho e impressões de letras aramaicas.

O lado esquerdo do baixo-relevo retratava o que parecia um esqueleto encimado pelo símbolo Alfa. O direito mostrava o perfil de um homem bem nutrido com o símbolo Ômega coroando sua cabeça. As duas figuras estavam cruzadas uma na outra num abraço eterno, enquanto uma corda trançada fazia uma laçada ao redor do pescoço do homem e da vértebra inferior do esqueleto, atando-os um no outro.

– O que isto significa? – perguntou Jordan.

Erin exalou com frustração.

– Não tenho nenhuma ideia.

Jordan traçou o desenho com o dedo, sua voz se animando.

– Eu já vi este esqueleto.

– O quê? Onde? – Ela repassou os lugares onde eles tinham estado juntos: a tumba em Massada, o bunker e a igreja russa.

– Por aqui! Ele saltou feito uma mola. Correu de volta para a sala de onde acabara de sair, quase se chocando com Rasputin em sua pressa.

Erin correu atrás dele, arrastando Rasputin e Rhun consigo.

– Um par tão volátil – comentou Rasputin atrás dela. – De sangue tão quente.

Ela esperava que aquele sangue fosse ficar onde estava.

Jordan atravessou a sala até a cesta e pegou o estranho bloco de chumbo. Manchas negras da explosão cobriam sua superfície. Ele esfregou a área queimada com a manga de couro.

– Olhe!

Erin se inclinou sobre o ombro dele, só agora vendo um desenho sob as marcas da explosão.

Ele cuspiu nos dedos e os usou para limpar a fuligem de um círculo.

Um crânio sorriu para eles da superfície de chumbo, sua coluna descendo em um ângulo.

Batia exatamente com o desenho nos fragmentos. Erin imaginou uma massa de cal e cinzas sendo derramada sobre aquela escultura de chumbo e secando como barro, endurecendo para criar uma impressão do desenho no topo da caixa de chumbo.

Jordan olhou para ela, pondo a palma da mão na superfície de chumbo.

– É outra caixa? Primeiro concreto, agora chumbo. Será possível que o Evangelho esteja dentro disto?

20:47

Rhun ouviu as palavras de Jordan, querendo não acreditar. Parecia impossível. Ele estendeu a mão, hesitante, para o bloco, se dando conta de que estava agindo como Erin – precisando tocar na coisa para torná-la real.

Será que aquilo realmente continha o Evangelho de Cristo?

Depois de tantos séculos de busca, ele pensara que nunca o encontraria. Presumira que seu pecado com Elisabeta o tivesse tornado indigno de encontrá-lo.

Jordan passou o pesado bloco de chumbo para as mãos estendidas de Erin. Ela limpou mais fuligem com uma toalha de mesa suja.

– Não vejo emendas. – Ela o balançou com a mão. – E parece sólido. Parece mais uma escultura do que uma caixa.

Rhun ansiou por tomá-lo dela e ver por si mesmo, mas se manteve imóvel.

– Aposto que os alemães acreditaram que houvesse alguma coisa aqui dentro. – Jordan bateu com o dedo nas marcas da explosão. – Parece que eles tentaram explodi-lo mais de uma vez. É por isso que as leituras do sensor foram tão altas.

Grigori esbarrou em Rhun, querendo examinar o objeto ele próprio. Se o livro ainda estava dentro daquele bloco de chumbo, Grigori não deveria tocar nele. Rhun se posicionou entre Grigori e Erin.

– Não precisa se preocupar, Rhun – disse Grigori. – Não tenho nenhuma ilusão de fazer parte da profecia.

Só naquele momento Rhun se lembrou da profecia. Ele nunca tinha realmente acreditado em suas palavras, especialmente depois de Elisabeta. Contudo agora...

– Vocês três juntos, toquem nele – disse Grigori. – Vamos ver se ele se revela a vocês.

– Será que poderia ser assim tão simples? – Jordan pôs a palma da mão sobre o bloco.

Erin pôs a dela ao lado da dele.

Rhun hesitou, detestando a ideia de tentar tal ato diante de Grigori.

Como que lendo seus pensamentos, Grigori fez um sinal com a mão. Seus seguidores entraram na sala rodeando-os. A ameaça dele se tornou concreta.

Rhun colocou a mão ao lado das de Jordan e Erin.

20:50

Erin ficou parada, com medo de se mexer.

A mão fria de Rhun gelava um lado de sua mão, o calor da de Jordan banhava o outro. Erin não conseguia acreditar que ela, que devotara a vida à ciência, estivesse parada ali com a mão sobre um bloco de chumbo esperando por milagres. O que tinha acontecido com ela ao longo do último dia e meio? Se Jordan e Rhun não estivessem ali ao seu lado, ela teria tirado a mão do bloco e enfiado no bolso.

Mas estavam ali, de modo que ficou como estava, tentando convencer a si mesma de que estava apenas fazendo a vontade deles, apesar de saber que não adiantava.

Enquanto esperava, o frio intenso penetrou em sua mão. Parecia morto, como um cadáver. O pensamento irracional não saía de sua mente. O livro estava morto, e não voltaria à vida em solo russo.

Ela se lembrou das palavras do cardeal: O livro só pode ser aberto em Roma.

– Puxa, que decepção! – disse Jordan, retirando a mão, o primeiro a quebrar o círculo e admitir derrota.

Rhun fez o mesmo, e Erin levantou e apertou o bloco contra o peito. Será que alguma coisa miraculosa teria acontecido se ela tivesse fé?

Ela sacudiu a cabeça.

Basta com isso.

– Imaginei que não fosse ser fácil assim – disse Jordan.

– De fato. – Rasputin deu um olhar expressivo para seu assistente pessoal, Sergei, e o jovem acólito recuou e saiu pela porta.

Erin não gostou da ideia de imaginar para onde ele estaria indo.

– Vamos juntar os pedaços de pedra – disse Rhun. – E tratar de seguir o nosso caminho.

– E para onde levará o seu caminho? – Rasputin bloqueou a saída.

– Você pretende quebrar sua palavra, Grigori? Roubar o livro e nos matar?

Os pés de Rasputin ficaram plantados onde estavam.

– Se Deus escolheu vocês, não há nada que eu possa fazer para impedi-los.

– Ótimo! – Jordan se aproximou dele. – Obrigado por sua ajuda e...

Cinco acólitos se aproximaram rapidamente e o cercaram.

– Não seja idiota – advertiu Rhun a Rasputin, seu tom calmo como se eles estivessem debatendo planos de viagem. – Você deve saber que não tem os recursos aqui para abrir o Evangelho.

– Eu me dou conta disso, meu caro Rhun. – Rasputin sorriu. Um calafrio percorreu o corpo de Erin e não tinha nada a ver com o clima russo. – Há forças maiores em jogo do que você ou eu.

Sergei voltou à sala.

Um animal imenso vinha atrás dele, um morto de volta à vida.

O lobogrifo rosnou, abaixou as orelhas ameaçadoramente e eriçou os pelos ao longo das costas.

Ali estava o gêmeo do que eles haviam matado no deserto.

De trás do lobo, uma mulher se adiantou, passando os dedos possessivamente ao longo do flanco do animal. Ela atirou para o lado o longo cabelo ruivo e revelou um rosto pálido e conhecido – a mulher da floresta na Alemanha.

A que havia atirado em Rhun.


52

27 de outubro, 21:01, horário de Moscou

Museu Hermitage, Rússia

Enquanto Rhun a encarava fixamente, um ardor de fogo trespassou-lhe o peito, acendendo-se com a lembrança das balas de prata explodindo em seu corpo. A mulher parecia muito com Elisabeta – os olhos cinza-prateados, as maçãs do rosto altas, a pele perfeita, a mesma inclinação do queixo, até o sorriso travesso.

Mas não podia ser. Rhun fechou os olhos, ouviu o coração dela. Cada batimento lhe dizia que aquela mulher não era a sua Elisabeta, não podia ser ela.

A raiva substituiu o remorso. Ela usara a semelhança com sua amada para enganá-lo, para tentar matá-lo. Suas tropas tinham matado Emmanuel e quase tinham matado todos eles.

Jordan falou, mas Rhun só ouviu o final da frase:

– ... o visitante que o fez sair da igreja hoje à tarde?

– Sou sempre um anfitrião bem-educado – respondeu Rasputin.

Rhun abriu os olhos e examinou a impostora. A semelhança era quase sobrenatural, mas falsa. Como tudo no reino de Rasputin, o belo rosto escondia a maldade interior.

Os seguidores de Rasputin pareciam temê-la. Agruparam-se contra as paredes, deixando um círculo ao redor dela, como se não ousassem tocá-la.

– Vejo que está recuperado, padre Korza. – A ruiva sorriu friamente.

Seus olhos gelados passaram por Erin e se detiveram em Jordan. Rhun ouviu o coração dele acelerar sob o olhar dela.

O lobogrifo aos seus pés rosnou, os olhos vermelhos cravados em Rhun com profundo ódio. Parecia tanto com o do deserto de Massada que devia ser da mesma ninhada. Se fosse, será que sabia que ele havia matado seu irmão?

Massada.

A mulher e o lobo também deviam ter estado lá, Rhun se deu conta. Nas mãos pálidas, ela trazia mais que o sangue de Piers.

Como que lendo os seus pensamentos, ela assentiu:

– Esta súbita melhora. Será que foi o sangue de seus companheiros que o fortaleceu?

– Só bebo o sangue de Cristo.

– Nem sempre – retrucou. – Há muito tempo você profanou uma de minhas ancestrais.

– Ouvi a história de nossa convidada – disse Rasputin sacudindo um dedo para Rhun. – Ela tem bons motivos para ter raiva de você. Desde o seu erro trágico com Elisabeta, uma mulher em cada geração da família Bathory é amaldiçoada com uma vida de sofrimento e servidão. Cada uma tem que ostentar uma marca para prová-lo.

A desconhecida descobriu a garganta, revelando a tatuagem de uma mão negra.

Apesar disso, Rhun buscava indícios de alguma trapaça ali. Será que aquela mulher realmente vinha da linhagem Bathory? Era ela uma descendente da primeira mulher que ele havia acreditado ser a Mulher de Saber?

Interpretando os portentos daquela ocasião, o cardeal Bernard havia pensado que Elisabeta fosse a Mulher de Saber da profecia. No final, fora demonstrado que estava enganado, mas será que alguém havia acreditado que Bernard estivesse no caminho certo? Teriam eles assumido o comando de toda a linhagem da família Bathory como precaução? Ou será que havia outro propósito?

A ruiva voltou sua atenção para Rasputin, mas sem tirar os olhos de Rhun.

– Deixe-me levar os dois: ele e o livro. Dobrarei sua recompensa.

Os olhos de Rhun se estreitaram. A quem aquela mulher desconhecida servia? Quem lhe dera aquela marca negra na garganta? E por quê?

Rhun só conseguiu pensar em uma pessoa poderosa o suficiente para receber favores de Rasputin. O misterioso chefe dos Belial. A última pessoa que deveria receber o livro.

Ele examinou a marca no pescoço da mulher. Estaria olhando para uma sombra da própria mão do homem, o verdadeiro mestre dos fantoches Belial? Um calafrio o sacudiu. Ele rezou para que o cardeal Bernard estivesse certo, e que os Belial não pudessem abrir o livro. Os nazistas não tinham conseguido. Nem os russos. Talvez o livro fosse seu próprio protetor.

Mas ele detestava deixar aquilo entregue à sorte.

Rhun calculou as probabilidades. Dez strigoi, Rasputin e o lobo. Ele não poderia vencer aqui, e se tentasse, Erin e Jordan provavelmente seriam mortos. Mas uma oportunidade poderia se apresentar mais tarde. Se ele deixasse Bathory levá-lo agora, poderia ficar perto do livro, tentar escapar com ele. Sabendo que não tinha outra escolha, inclinou a cabeça em concordância.

Rasputin examinou o rosto dele por vários segundos antes de falar, seus olhos azuis calculadores.

– Não, minha querida. Ele está muito disposto a ir. Prometi o livro a você como um gesto de boa vontade para com aqueles a quem você serve. Mas Rhun é meu. Contudo, você pode levar um dos humanos, se em troca seu senhor me conceder a vida que eu escolher mais tarde.

– Esta não foi a promessa que você nos fez, Grigori. – Rhun manteve a voz calma, mas, apesar disso, os acólitos de Rasputin o seguraram com mais firmeza. – Mas se alguém tem que ser levado, por que não eu?

– Sim – disse Bathory. – Por que não ele?

Rasputin gesticulou para o restante de seus seguidores, e eles relutantemente se aproximaram dela.

– Isso quem decide sou eu. Não me faça perder a paciência.

– Você nos deu a sua palavra, Grigori – disse Rhun. – Que ninguém nos faria mal.

Bathory o ignorou.

– Aceite minhas desculpas, padre Rasputin. – Ela examinou primeiro Erin, depois Jordan. Aceitarei a sua gentil oferta, mas me deixou com uma escolha difícil. Quem devo escolher?

– Leve-me. – Jordan piscou o olho para ela. – Sou muito mais divertido.

– Tenho certeza de que é. – Os lábios de Bathory se curvaram num sorriso malvado. Os olhos prateados dele encontraram os de Rhun. Um brilho malicioso os iluminou. – Mas creio que vou levar a mulher.

Rhun mergulhou na direção de Bathory, mas um bando de strigoi o manteve preso ao chão antes que pudesse dar um único passo, imobilizando-o apenas com seu peso. Os outros imobilizaram Jordan.

– Ora, Rhun. – Rasputin o chutou de leve com a ponta da bota preta. – Sempre cumpro a minha palavra. De fato, cada palavra.

Rhun lutou para se soltar. Ao lado dele, Jordan também tentou. Mas era inútil. Os olhos de Erin tinham-se arregalado. Os strigoi a seguravam pelos dois braços. Ela também não podia fugir. Rhun se amaldiçoou por ter sido tolo de confiar em Grigori. Isso também era sua culpa.

Rasputin pôs as mãos nos quadris.

– Bathory, minha querida, dei a minha palavra de que a mulher não sofreria nenhum mal enquanto estivesse na Rússia. E você cumprirá esta promessa. Mas esta proteção cessa no momento em que ela atravessar as nossas fronteiras. Uma vez fora de solo russo, pode fazer com ela o que quiser.

21:04

Erin lutou contra as mãos que a prendiam, mas não conseguiu se mover um centímetro. Mais seguidores de Rasputin entraram na sala, enchendo-a com o cheiro de morte.

Rhun se debateu contra os strigoi que o prendiam, atacando com unhas e dentes. Sangue espirrou na parede próxima. Mais gente se empilhou em cima dele.

Jordan também lutou contra seus agressores, mas subitamente seu corpo ficou frouxo. Erin prendeu a respiração. Será que estava morto? Ou tinha perdido os sentidos?

Ela lutou para se aproximar dele, mas era impossível.

Arrancaram-lhe o bloco de chumbo e algemaram-lhe as mãos na frente do corpo.

Uma coleira fria foi posta em seu pescoço, e os lacaios de Grigori deram um passo para trás. Quando ela se arremessou na direção do corpo caído de Jordan, pontas afiadas penetraram em sua garganta. O sangue escorreu pelo seu pescoço.

Arquejando para respirar, ela se deteve. Seu pescoço latejava. A coleira tinha garras de metal, como uma coleira de cachorro, embora as pontas devessem ter sido afiadas para tornar seu uso mais doloroso. Alguém passou um dedo sob a coleira, retirando as garras de sua carne. Ela cerrou o maxilar para segurar o grito.

Um gemido se elevou dos strigoi que estavam reunidos ao seu redor. Todos os olhos cravados em seu pescoço. O que a segurava lambeu os lábios.

– Basta! – gritou Rasputin.

Ele avançou até ficar ao lado de Erin. Segurava uma guia de couro. Ele prendeu uma ponta na parte de trás da coleira de Erin e entregou a outra a Bathory.

– Obrigada. – Bathory a enrolou ao redor do punho. Com a outra mão puxou até ficar tesa.

Erin sufocou, o aperto da coleira impedindo-a de tossir. Ela não conseguia respirar. Suas mãos algemadas subiram à garganta, os dedos tentando afrouxá-la. Mãos frias puxaram seus braços para baixo. Ela ia morrer.

– Para que nos compreendamos bem. – Bathory chegou o rosto bem perto do de Erin. – Você poderá chegar muito perto de uma morte dolorosa na Rússia sem que eu descumpra a promessa que fiz a Rasputin.

Com os joelhos bambos, Erin olhou para aqueles olhos frios cor de prata. Será que seriam a última coisa que veria?

– Espero que também compreenda isto, padre Korza. – Bathory lançou um olhar para a pilha de corpos que cobriam Rhun.

A visão de Erin escureceu.

21:06

Jordan lutava para respirar, enterrado sob um bando de acólitos de Grigori; o peso das criaturas contra seu peito era tanto que ele, Jordan, estava sufocando lentamente. Sentia as pernas e os braços sendo dilacerados pelos dentes afiados.

Por favor, meu Deus, não permita que eu morra assim...

Sua oração foi atendida pela fonte mais improvável.

De longe, ele ouviu Rasputin gritar:

– Basta!

Ao ouvir aquela ordem, a pressão diminuiu; corpos rolaram, saindo de cima dele. Sangue quente escorreu das mordidas em seus braços e pernas. Sua cabeça girou; sua visão se turvou, mas afinal clareou.

Mãos impossivelmente fortes o puseram de pé. Os lacaios de Grigori também levantaram Rhun com um tranco. Um acólito ainda estava estendido no chão, sangrando profusamente.

Parecia que Rhun tinha combatido melhor que Jordan.

– Pa-para onde aquela mulher levou Erin? – Jordan balançou dominado por uma tonteira. Quanto sangue havia perdido?

– Para longe daqui. – Rasputin deu seu sorriso louco. – Se Bathory não a matar no caminho, tenho uma ideia de onde acabarão.

Rhun cuspiu sangue e limpou o queixo com as costas da mão.

– Por que você permitiu que os Belial a levassem – ela e o Evangelho? Eles são ímpios. Você deve saber quais serão as consequências se abrirem o livro.

– As consequências seriam piores para mim se os Sanguinistas tivessem o livro? – O rosto de Rasputin relaxou numa expressão de sofrimento. – Sua amada igreja tem posse de incontáveis volumes sagrados, cheios dos preciosos Arquivos Secretos, e nunca usaram nenhum deles para me ajudar ou aos meus.

– Mas o mundo sofrerá, Grigori. O mundo inteiro que Deus criou.

– O mundo sofre agora. – Rasputin passou a mão pelo cabelo longo. – E o seu Deus não faz nada. A sua igreja não faz nada. Seus humanos não fazem nada.

Rhun deu um passo na direção de Rasputin, mas os acólitos do russo o cercaram de novo, obrigando-o a parar.

– Já que não importa mesmo – disse Jordan –, deixe-nos ir.

– Qual é o seu plano para nós, Grigori?

– O que sempre planejei. – Rasputin se virou para sair da sala atravancada. Estalou os dedos e seu rebanho empurrou Jordan e Rhun junto atrás dele. – Pretendo deixar seu Deus salvar você, Rhun. Não foi esta a sua eterna prece, meu amigo? A salvação pela mão Dele?

21:12

Arquejando, com a garganta em fogo, Erin seguiu pelo corredor escuro nos calcanhares de Bathory, arrastada como um cachorro. A mulher soltou a corrente estranguladora o suficiente para permitir que ela respirasse – mas apenas isso.

As palavras de Rasputin ressoavam em seus ouvidos: Uma vez fora de solo russo, pode fazer com ela o que quiser.

Se não conseguisse fugir antes que deixassem a Rússia, Bathory a mataria.

E Jordan? Será que já estaria morto?

Ela se recusava a acreditar nisso.

Rhun claramente estava vivo, lutando desesperadamente contra forças muito superiores, quando a levaram embora. Mas Jordan, enterrado e todo mordido, não se mexera.

Ele não pode estar morto... não pode.

Erin levantou o queixo num esforço para reduzir a pressão das garras em sua garganta. Mesmo aquele pequeno movimento apertou-lhe o pescoço em um terrível nó de agonia, fazendo sua visão se estreitar. Ela suspeitava que as garras fossem de prata, a coleira provavelmente feita para prender Sanguinistas. Tentou não imaginar como seria muito pior se a prata agisse como um veneno em seu sangue, como fazia com os Sanguinistas.

Bathory avançou pelos corredores sem hesitação, confiando em seu lobo grotesco para conduzi-la. Ele seguia na frente, de vez em quando baixando o focinho até o solo e farejando como um cachorro comum. Erin achou a naturalidade daquele gesto perturbadora, como se aquela criatura não tivesse direito de se comportar como um animal normal.

– Por que você odeia Rhun Korza? – a voz de Erin soou rouca e estranha, ecoando no corredor.

A coleira se sacudiu e sua garganta se cerrou de medo, mas Bathory não a puxou.

– Aquela criatura arruinou a minha família.

Erin deu um passo rápido para acompanhá-la.

– Então é verdade? Você é descendente da Elisabeth Bathory? Mas como exatamente Rhun a arruinou?

– Ele a matou e transformou em strigoi. Como strigoi, ela abusou dos camponeses para satisfazer suas necessidades, algo que teria passado despercebido naquela época, mas então ela passou a usar garotas da nobreza, e o rei húngaro a despojou de sua fortuna, de seu título de nobreza, e enviou a igreja para caçá-la. Desde então...

Ela se calou e tocou a tatuagem na garganta.

Erin deu mais alguns passos.

– Desde então...?

Os dedos de Bathory caíram de seu pescoço.

– Ficamos sem um tostão, fomos perseguidos. Então um desconhecido apareceu oferecendo um caminho para a sobrevivência, para recuperar a riqueza perdida, e também para a vingança. – Ela ergueu a mão; em um dos dedos usava um grande anel de rubi. – Ele até recuperou alguns tesouros, parte da herança de nossa família, conseguiu resgatá-los antes que fossem perdidos para sempre. Mas esta nobre generosidade veio acompanhada por um preço alto: uma mulher em cada geração teria que estar submetida à servidão a um senhor, viver de acordo com a vontade dele. Sou a única mulher da minha geração. Logo, sobrou para mim, independentemente do meu desejo.

Essas últimas palavras foram ditas com uma amargura dolorosa.

Horrorizada, Erin ficou em silêncio durante vários instantes. Chegaram a uma porta fechada e Bathory a destrancou, revelando uma velha escada em caracol. Ela tirou uma lanterna do bolso e a acendeu virando-a para cima. Os degraus subiam vários andares. Seria uma longa subida.

– Venha.

Bathory puxou Erin para a escada atrás dela enquanto o lobogrifo subia aos saltos na frente. A cada degrau, a coleira espetava a garganta de Erin. Sangue fresco pingava de seu pescoço. Ela tentou bloquear a dor em sua mente, lutando para pensar em alguma maneira de fugir.

O lobogrifo chegou ao andar seguinte. O patamar acima tinha uma porta. Aquela poderia ser a única chance que ela teria.

Quando chegavam ao patamar seguinte, ela respirou fundo, então se agachou rapidamente, golpeando com a perna e acertando Bathory nos joelhos.

Enquanto a mulher caía em direção aos degraus íngremes, Erin arrancou a guia da coleira da mão dela. Bathory rolou e caiu escada abaixo. Erin se torceu para o lado. As garras ainda espetavam dolorosamente o seu pescoço, mas ela não se importava. Se conseguisse chegar àquela porta, atravessá-la e de alguma forma trancá-la, poderia se livrar de seus captores no labirinto do Hermitage. Mais acima na escada, o lobo ganiu, como que sentindo a dor de sua dona.

Olhos vermelhos faiscantes se viraram para olhar Erin.

Ela caiu contra a porta e tentou abri-la com as mãos algemadas. Lutou para girar a maçaneta – e se desesperou.

Trancada.

21:16

Obrigado a avançar pelo corredor por um bando de acólitos de Grigori, Jordan sentiu o fedor da ursa gigantesca. Enquanto andava, visualizou o crânio humano que havia rolado da jaula e lançou um olhar enviesado para Rhun.

O padre balançou a cabeça. Também sabia da verdade.

Rasputin planejava entregá-los à ursa.

Jordan estivera esperando um momento oportuno, mas os bandidos o rodeavam como um muro, a menos de um passo de distância, por todos os lados. Ele conhecia a força deles, e sua própria fraqueza. Tinha perdido sangue demais para lutar bem. Que diabo, mal conseguia andar.

Será que era assim que iria morrer, virando comida de ursa? Ele se recordou de sua súplica desesperada de não encontrar seu fim nas presas dos lacaios de Grigori. Aquela prece tinha sido atendida e, estranhamente, ele ainda estava agradecido. Preferia os maxilares de uma ursa às presas de um strigoi.

Ele visualizou o rosto de Erin, recordou seus lábios, suas mãos ardentes sobre a pele dele. Ele tinha que conseguir fugir. Tinha que encontrá-la. A cada segundo que se passava, Bathory a levava para mais longe dos domínios de Rasputin e para mais perto da morte. Tinha visto a expressão nos olhos de Bathory. Ela pretendia matar Erin assim que tivesse uma chance, sem desobedecer Rasputin.

Tudo para ferir Rhun.

O túnel acabava um pouco mais adiante e o fedor da ursa já estava insuportável. Jordan avistou a grade ornamentada retratando uma floresta. Ele e Rhun foram empurrados para a frente até se espremerem contra o belíssimo ferro trabalhado.

Dentro da jaula, a ursa dormia. Talvez estivesse cansada demais para comê-los.

Rasputin bateu as palmas das mãos contra a grade, como que tocando o sino do jantar.

A criatura se pôs de pé pesadamente.

Estava na hora da comida.

21:18

Movida por pura fúria, Bathory se enroscou enquanto rolava de cabeça pela escada, empurrada pela maldita arqueóloga. Sentiu cada degrau pontudo nas costas, até que finalmente bateu num patamar e se esparramou.

Acima dela, soaram duas pancadas. Ela ouviu um rosnado baixo e sabia que era dirigido à maldita arqueóloga; sentiu uma onda de satisfação emanando de Magor, o prazer de um predador ao encurralar a presa.

– Calma! – gritou Bathory, saboreando a alegria do lobo. Aquilo ajudou a amenizar a dor enquanto se punha de pé. Ficaria com alguns hematomas feios, mas nada sério. Tinha vivido tanto tempo com dor que mal reparava.

Ela subiu com determinação para o patamar acima. Magor tinha imobilizado a mulher contra a porta maltratada, com uma pata sobre cada ombro, os dentes arreganhados no pescoço dela. Ela sentiu a vontade do animal de rasgar aquela garganta.

A arqueóloga o olhava de olhos arregalados e parecia a ponto de desmaiar.

De fato, Bathory ficou surpresa que não tivesse desmaiado.

– Ainda não, meu querido. – Ela pegou a ponta da coleira de couro e puxou, apertando-lhe o pescoço. – Quando pudermos, prometo que você vai brincar com ela o tempo que quiser.

Temerosa e de pernas trêmulas, a arqueóloga subiu atrás dela o lance seguinte da escada, de ombros curvados.

– Tanto desespero e desesperança – atiçou Bathory. – Isto não era o que você esperava quando partiu para sua missão ousada de Jerusalém, não é? Pensou que sua vida pudesse ter valor por causa da profecia?

Chegaram a uma porta lateral e Bathory a destrancou antes de puxar a mulher para fora até a rua vazia. O vento levantou a pele de zibelina do casaco de Bathory.

– De que profecia você está falando? – perguntou a arqueóloga fingindo ignorância... de modo não convincente.

Mentir exigia prática, o que claramente faltava à sua prisioneira.

Movendo-se subitamente, Bathory agarrou-lhe o ombro e a empurrou contra a lateral de um SUV prateado estacionado no meio-fio.

Magor rosnou.

– Nem tente mentir para mim. Não sou tola. Não acredito na profecia. Não pense que a sua vida tem valor para mim por causa de um poema de mil anos.

A mulher lutou para se manter de pé nas pedras de calçamento cobertas de gelo. Puxando a coleira para cima, Bathory a obrigou a ficar nas pontas dos pés. Se a mulher escorregasse, a coleira poderia matá-la.

Bathory olhou para um lado e o outro da rua vazia. Não havia testemunhas. Mas mesmo assim Rasputin saberia. Ela não estaria em segurança e livre dele enquanto não estivesse fora de território russo.

Bathory afrouxou a coleira, abriu a porta do SUV e empurrou a arqueóloga para o banco de trás. Magor saltou logo depois dela, enfiando o focinho perto da garganta da prisioneira. Uma língua espumando e cheia de saliva lambeu o sangue pingando da coleira.

A arqueóloga conteve um grito. Ela era corajosa, pensou Bathory, mas também tinha seus limites.

– Calma, Magor. Se o cardeal acredita que ela tem um destino especial, é possível que ainda tenha alguma utilidade para nós como peão no jogo por vir.

A mulher virou o rosto desviando-o do lobo, sua voz tensa e dura.

– Não creio que o cardeal tenha tanto interesse por mim.

– Então você não conhece o cardeal muito bem. – Bathory sorriu. – De qualquer maneira, a profecia nunca especificou em que condição você deve estar quando o livro for aberto.

Bathory viu a compreensão e o temor nos olhos da arqueóloga.

Inteligente.

Talvez ela de fato fosse a Mulher de Saber.

– Provavelmente precisaremos de você viva – admitiu Bathory cruelmente. – Mas... ilesa?

Ela sacudiu a cabeça e sorriu.

Não.


53

27 de outubro, 21:20, horário de Moscou

Subterrâneos de São Petersburgo, Rússia

Parado no túnel, fora da porta da jaula, Rhun observou a ursa, e a ursa observou Rhun. Seus olhos vermelhos faiscavam com maldade antiga, seu ódio dele em nada diminuído ao longo do último século. Saliva pingava de seu focinho, e sua língua impossivelmente longa deslizou sobre os lábios negros como borracha.

Ele desconfiava de que se lembrasse do gosto dele. A perna dele latejou e ameaçou se dobrar. Sua perna também se lembrava.

Grigori cerrou os dedos ao redor do galho de um carvalho de ferro batido esculpido na porta.

– Se Deus amar você, Rhun, Ele vai ajudá-lo a escapar da ursa. Lembra-se da lição de Daniel na cova dos leões? Talvez sua crença feche a boca da ursa.

Rhun não achava que fosse ser assim tão simples.

Examinou as lajotas que cobriam a câmara onde os túneis se encontravam. Não achou uma fenda sequer. Não havia nenhuma outra saída. Ele voltou sua atenção para as portas de ferro.

Quando destrancadas, elas se dividiam no meio em duas metades, abrindo-se como portas francesas. Duas barras grossas de ferro, uma de cada lado do portal, tinham sido encaixadas no concreto e prendiam cada lado da porta ao chão e ao teto. Um espaço de menos de três centímetros rodeava o portal, e os desenhos rebuscados entretecidos nas barras não deixavam aberturas maiores que alguns centímetros.

Depois que Rhun entrasse ali, não haveria para onde fugir.

Jordan colocou a mão quente sobre seu ombro. Rhun encontrou seus olhos azuis interrogativos. O soldado lançou um olhar de soslaio para Grigori e os strigoi. Ficou claro que ele estava perguntando se deveriam tentar partir para o ataque ali, morrer lutando antes que Rhun pudesse ser atirado dentro da jaula com a ursa.

O afeto inundou seu peito. Jordan era um verdadeiro Guerreiro do Homem até o fim.

– Obrigado – sussurrou Rhun. – Mas não.

Jordan deu um passo para trás, os olhos assustados – mas menos por sua própria segurança do que pela de Rhun.

Incapaz de encarar aquela humanidade crua por mais tempo, Rhun se virou para o portão.

– Estou pronto, Grigori.

Rhun foi empurrado com força para dentro da jaula.

A cabeça da ursa balançou em sua direção.

– Sim, meu amor! – gritou Grigori. – Divirta-se com ele pelo tempo que quiser!

Mantendo-se recuado e abaixado, Rhun andou em volta dela. O espaço era grande, cerca de quinze metros por quinze. Ele deveria usar aquele espaço com sabedoria. Acima, os ombros da criatura roçavam o teto. Rhun não poderia saltar em cima dela.

Um galho se partiu sob a sola de seu sapato, liberando o cheiro penetrante de abeto, o único aroma natural na caverna. Ele o saboreou.

Então a ursa atacou.

A pata gigantesca cortou o ar com uma velocidade sobrenatural.

Ele havia esperado aquilo. Muito tempo atrás, ela sempre iniciou o ataque com a pata esquerda. Ele mergulhou sob as garras e rolou. O movimento o levou para o centro da jaula.

Adiante, um brilho atraiu o seu olhar. Ele correu e o pegou do chão. Um frasco de vinho santificado. Outro Sanguinista tinha sido sacrificado ali. Enquanto procurava, ele descobriu mais indícios: uma cruz peitoral, um rosário de prata, um retalho de uma batina preta.

– Que Deus tenha piedade de sua alma, Grigori! – gritou Rhun.

– Deus abandonou a minha alma há muito tempo. – Grigori sacudiu a grade. – Como Ele abandonou a sua.

A ursa girou para encarar Rhun.

Ele varreu a jaula rapidamente com o olhar. Caso tivessem amarrado o Sanguinista assassinado, talvez as armas dele, ou dela, ainda estivessem ali. Se ele pudesse...

A ursa atacou de novo.

Ele defendeu seu terreno.

O chão tremeu sob as patas do animal. Ele ouviu enquanto o coração dela mais uma vez foi dominado pela paixão, batendo forte.

Quando seu hálito de carniça tocou-lhe a face, ele caiu deitado de costas, deixando que o impulso dela a carregasse por cima de seu corpo. O mar de pelo negro passou a centímetros de sua face. Ele levantou a cruz e a deixou se arrastar sobre o estômago dela, incendiando-lhe o pelo.

Ela gritou.

Ele não havia infligido nenhum dano grave, mas lembrou à ursa que ele não era um mosquito para ser esmagado.

Jordan gritou de alegria do lado de fora.

Rhun rolou sobre o piso, as mãos buscando os objetos que tinha avistado antes do ataque. Dois bastões de madeira jaziam no chão, ambos com as pontas de prata. Ele conhecia aquelas armas singulares. Seu irmão de batina – Jiang – havia morrido ali. Rhun o vira treinar com aqueles bastões durante horas, nas profundezas abaixo da necrópole de Roma, onde os Sanguinistas moravam.

Ainda atordoada pela queimadura, a ursa balançou a cabeça de um lado para outro.

Rhun se agachou perfeitamente imóvel e mediu os lados de sua prisão com os olhos.

Com um esboço de plano em sua mente, ele dardejou para o portão de ferro mais afastado de Grigori.

A ursa percebeu seu movimento e avançou para ele.

Saltando e se torcendo no último momento, ele bateu com um dos bastões no focinho dela e rolou para o lado.

O peso enorme da ursa se chocou direto contra o portão, derrubando uma das barras de suporte e arrancando-a do chão. Aquele canto da jaula se dobrou, criando uma abertura pequena demais para que Rhun pudesse passar por ela, mas aquela fuga não era o que ele pretendia.

Ele fez a ursa girar pela jaula, conduzindo-a para onde Grigori e Jordan assistiam à competição sanguinária.

Ela veio atrás dele. Ele executou a mesma manobra, mas desta vez ela derrapou e se deteve a menos de dois centímetros do portão. A pata voou no ar e o acertou nas costas quando saltava se afastando. Um golpe de relance, mas cortou sua proteção de couro e a carne de suas costas.

Um grito lhe escapou, metade raiva, metade desafio.

A ursa se agachou nas patas traseiras e levou a pata ensanguentada à boca. Com os olhos minúsculos observando-o, ela lambeu cada gota de seu sangue das garras, bufando de prazer.

Ele esperou do outro lado da jaula, ao lado do portão danificado. O cheiro de ferro de seu próprio sangue encheu suas narinas. Ele enfiou um bastão debaixo das costas ensanguentadas, atravessado no cinto, prendendo a parte de cima no colarinho sacerdotal. Assim, ficou com uma das mãos livre, enquanto segurava um bastão com a outra.

Ele quebrou o bastão sobre o joelho e pôs ambos os pedaços no chão.

Então caiu sobre aquele mesmo joelho, baixando a cabeça, e balbuciou uma prece, acalmando sua mente. Um beijo na cruz peitoral queimou seus lábios. Sua dor o atraiu para um único ponto, centrando-o.

Tocou a testa com o dedo indicador.

– In nomine Patris...

Tocou no peito.

– Et Filii...

Ele tocou primeiro o ombro esquerdo, depois o direito.

– Et Spiritus Sancti.

A ursa veio.

Ele sussurrou:

– Pelo sinal da cruz, livrai-me de meus inimigos, ó Senhor.

A ursa voava como um trovão em sua direção, quase em cima dele.

No último momento, ele saltou para cima, achatando o corpo contra o teto como só um Sanguinista conseguiria, deslizando entre as costas da ursa e o teto. Encontrou uma passagem estreita, com apenas alguns centímetros.

Abaixo dele, a ursa se chocou contra o portão, causando um tremendo estrondo. A segunda barra fixando-o no chão se soltou, e o portão agora estava curvado mais de trinta centímetros. Se Rhun estivesse disposto a abandonar Jordan, ele poderia ter escapado.

No entanto, ele se torceu no ar e caiu em cima do animal atordoado. Antes que a ursa tivesse tempo para sacudir a cabeça, estonteada, golpeou com uma metade do bastão partido em direção a uma de suas patas.

Acertou em cheio.

Seu peso e o impulso enterraram a ponta de prata do bastão através da pata e fundo no buraco que tinha sido perfurado no concreto para acomodar a barra do portão de ferro.

Ela urrou de dor, do ferimento e da preciosa prata.

Antes que o animal tivesse uma chance de se mover, Rhun saltou nas costas dela e rolou para o outro lado, passando o segundo pedaço do bastão quebrado para a mão direita.

Ele o enterrou na outra pata e no outro buraco no chão, aprisionando ambas as patas.

A ursa caiu para a frente, o focinho derrubando o portão quebrado para dentro do túnel. Com as patas dianteiras abertas para ambos os lados, ela formou o sinal de uma cruz com o corpo.

Rhun a havia crucificado.

Ela urrou.

Ele saltou em cima dela e puxou o bastão ainda inteiro de suas costas. Beijou a ponta de prata e o enterrou no olho dela, bem fundo no crânio. Ela se contorceu e arfou, morrendo. Ele viu sua morte nas vastas câmaras de seu velhíssimo coração.

Dominus vobiscum.

Ele baixou a cabeça e fez o sinal da cruz sobre o corpo gigantesco do animal. Quando ia terminando sua prece, o brilho vermelho apagou no olho que restava, deixando-o negro.

Depois de séculos, ela finalmente estava livre de sua servidão profana.

Rhun se virou para sua nêmese, o rosto desafiador, triunfante em sua glória.

21:33

Os braços de Jordan foram soltos. Ele olhou ao redor, surpreso. Varreu com a mão a manga do casaco como se espanando os lugares onde os congregantes de Rasputin o tinham tocado. Será que aquele monge russo cumpriria a sua palavra e o libertaria? Se não a cumprisse, ele pretendia morrer lutando lado a lado com Rhun.

Rasputin recuou, afastando-se do portão da jaula, com os olhos azuis arregalados.

– Deus realmente ama você, Rhun. Você de fato é o escolhido Dele.

Rhun se ajoelhou e recolheu um rosário, uma cruz de prata e um frasco. Jordan apostaria que tinha pertencido a outro Sanguinista, alguém que tinha sido morto pela ursa.

Rasputin destrancou a jaula.

O ódio de Rhun por Rasputin ardia tão palpavelmente que o monge deu um passo para trás. Seus lacaios recuaram como que soprados por um vento feroz.

– Para onde Bathory levou Erin? – perguntou Rhun, rosnando cada palavra.

A voz de Rasputin soou estridente:

– Para Roma.

Rhun cravou o olhar furioso nele, buscando a verdade em seu rosto.

– E então? Encerramos aqui esses desafios a Deus, Grigori?

Rasputin inclinou a cabeça.

– Por que me censura desta maneira, Rhun? O seu querido Bernard tentou forçar a profecia. No passado ele mandou você para o lado de Elisabeta, a suposta Mulher de Saber, segundo ele, e seu marido, o poderoso Guerreiro. E veja no que esta interferência deu. – Ele ergueu as mãos suplicando por perdão. – Eu apenas quis testar a profecia aqui hoje. Se você fosse realmente um dos mencionados na profecia, Deus o salvaria da ursa.

– E aqui estou – disse Rhun. – Mas seu teste não acabou, não é? Foi por isso que você mandou Erin embora. Você desfez o trio, para testar se nós três nos encontraríamos de novo e cumpriríamos nossos deveres, e continua a desafiar a Deus, como outrora desafiou a igreja.

Rasputin sacudiu a cabeça.

– De forma alguma. Desafio apenas você, meu amigo. Aquele a quem a igreja ama tanto quanto me odeia.

Girando nos calcanhares, Rasputin ordenou com um gesto que seus lacaios se afastassem, abrindo um caminho para a liberdade.

Jordan esperou que Rhun o alcançasse. Juntos, eles caminharam em meio ao rebanho sinistro de Rasputin. Com cada passo, as feridas de mordidas de Jordan latejavam. O cabelo em sua nuca arrepiou-se. Ele se tensionou, esperando um ataque pelas costas, uma derradeira traição de Rasputin.

Mas nada aconteceu.

– Encontre sua mulher, Rhun! – gritou Rasputin para eles. – Prove que a igreja colocou sua fé nas mãos sujas de sangue certas.

Rhun avançou pelo túnel em direção à Igreja do Salvador do Sangue Derramado, sem parecer perceber que seu próprio sangue respingava no piso gelado atrás dele.


PARTE V


E cantavam um novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir os seus selos: porque foste morto, e com o teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação.

– Apocalipse 5:9


54

28 de outubro, 14:55, horário da Europa Central

Roma, Itália

Erin se contorceu, perseguida por pesadelos. Golpeou a escuridão ao seu redor, mas não passava. Só então todo o desespero de sua situação retornou numa onda e a encheu de um pavor gelado que em nada acalmou o pânico de seu despertar. Ela abriu bem os olhos – não que aquilo adiantasse de alguma coisa. O lugar onde estava presa era tão escuro que não fazia diferença se os olhos estavam abertos ou fechados.

Apertou as palmas das mãos contra as faces, surpresa por ter adormecido. Mas a exaustão e a privação sensorial ali finalmente a tinham dominado.

Quanto tempo estive dormindo?

Lembrou-se do voo de São Petersburgo em um jato privado na noite anterior. Eles a tinham mantido encapuzada o tempo inteiro, mas ouvira o suficiente da conversa ao seu redor para saber que o destino era Roma. A viagem levara cerca de quatro horas. Depois que tinham pousado, mais uma hora de viagem de carro os levara à cidade pouco antes do amanhecer. Erin ouvia o som de buzinas e os gritos e pragas em italiano, e sentiu o cheiro do Tibre enquanto cruzavam uma das principais pontes da cidade.

Se ela não estivesse enganada, estavam seguindo na direção da Cidade do Vaticano.

O que planejava Bathory?

O que ela quer comigo?

O SUV que os tinha levado ao aeroporto particular finalmente havia parado e Erin foi arrastada, ainda encapuzada, para um amanhecer frio. Conseguia enxergar o suficiente pela ponta inferior do capuz para saber que o sol ainda não havia nascido.

Então tinham seguido de volta para subterrâneos, usando escadas, túneis e escadas portáteis – estas últimas especialmente difíceis de olhos vendados. Ela conhecia a cidade o suficiente para saber que uma grande porção do mundo antigo ainda existia sob a superfície, numa série de catacumbas, adegas, tumbas e igrejas secretas interconectadas.

Mas onde havia acabado por chegar?

No fim da jornada, tinha sido enfiada naquele porão escuro, com a maldita coleira ainda no pescoço. Sentou-se apoiada contra a parede por dez minutos, abraçando os joelhos. Como não ouviu ninguém, tirou o capuz e descobriu que a coleira estava destrancada. Erin a retirou e a jogou longe, satisfeita. Pouco depois disso, devia ter adormecido.

Naquele momento levantou os dedos e tocou no colar de sangue seco ao redor do pescoço.

Sempre tivera um bom relógio interno e agora apostaria que devia ser por volta do meio da tarde no mundo acima.

Estendeu os outros sentidos e ouviu o pingar lento de água, o eco dando-lhe alguma indicação de que o espaço além de sua cela era cavernoso. O ar tinha um cheiro velho e estagnado, com um toque de mofo. Ela estendeu a mão e deslizou a palma pelo piso. Pedra. As pontas de seus dedos encontraram marcas de cinzel.

Uma tumba?

Erin enfiou as mãos nos bolsos do casaco, procurando. É claro que eles tinham lhe tirado a lanterna, mas descobriu o retalho da manta no bolso da calça. Pelo menos tinham lhe permitido ficar com aquilo.

Levantando-se de gatinhas, ela varreu a mão da esquerda para a direita em arcos cada vez maiores, levantando uma densa nuvem de poeira que fez seus olhos lacrimejarem e provocou vários espirros. Quando esfregou a poeira entre os dedos, pareceu ser uma mistura de serragem e pó de pedra.

Continuando em uma varredura mais ampla, seus dedos esbarraram contra um objeto arredondado. Ela o pegou e o trouxe para o colo. Osso. Seus dedos completaram a imagem que seus olhos não podiam ver. Um crânio. Ela engoliu em seco, mas mesmo assim examinou suas superfícies cegamente: um nariz alongado, uma caixa craniana pequena, dentes incisivos longos e curvos.

Não era humano. Nem mesmo strigoi.

Um grande felino. Provavelmente um leão.

Ela se recostou, sentada, refletindo sobre as implicações de sua descoberta. Devia estar em algum tipo de circo romano, uma arena onde gladiadores e escravos lutavam uns contra os outros e contra animais selvagens. Mas o animal ao qual aquele crânio pertencia tinha sido enterrado com os restos do espetáculo em que ele havia perdido a vida.

Ela comparou essa informação com o conhecimento que tinha do caminho que acabara de seguir pela cidade.

Em direção à Cidade do Vaticano.

Só tinha conhecimento da existência de um circo cavernoso naquela região. O próprio Vaticano havia sido construído sobre metade do lugar empapado de sangue.

O circo de Nero.

Quase dois mil anos antes, Nero havia concluído a construção do circo iniciada por Calígula. Ele havia construído enormes arquibancadas para acomodar a plateia para assistir a seus jogos brutais. De início, ele havia sacrificado leões e ursos para a plateia ululante. Mas o sacrifício de animais não havia sido o suficiente para os romanos antigos, de modo que ele passara para gladiadores.

E depois para cristãos.

O sangue de mártires cristãos logo empapara o solo da arena. Eles não eram apenas dilacerados por animais e gladiadores. Muitos eram crucificados. O próprio São Pedro tinha sido pregado de cabeça para baixo numa cruz, perto do obelisco no centro da arena.

O circo também era famoso por sua vasta rede de túneis subterrâneos, usados para transportar prisioneiros, animais e gladiadores de um lado para outro. Os construtores tinham até instalado elevadores primitivos para levar os animais selvagens ou guerreiros diretamente para as areias acima.

Erin olhou fixamente para cima, visualizando como a Basílica de São Pedro se situava parcialmente em cima daquele lugar maldito. Durante seus estudos de pós-graduação em Roma, tinha lido um texto escrito há um século – Pagan and Christian Rome, de Rodolfo Lanciani. Ele continha um mapa de como as duas estruturas sobrepostas – o circo em forma de ferradura de cavalo abaixo e a basílica em forma de cruz acima – se posicionavam.

No escuro, o gráfico brilhou no olho de sua mente.

 

 

Se conseguisse sair da cela, subir e chegar ao exterior, ela provavelmente estaria muito perto da Basílica de São Pedro.

Com ajuda muito próxima.

Com renovada determinação, ela explorou as extremidades do aposento. Tinha cerca de dois metros e meio por três, com um portão moderno de aço na frente. Não havia fraquezas que ela pudesse detectar.

Precisava de ajuda. Dois rostos surgiram num lampejo diante dela: um tão pálido quanto os olhos eram escuros, mas sempre iluminados por um propósito nobre; o outro sorridente, com faces coradas e olhos risonhos da cor do céu.

O que poderia ter acontecido com Rhun e Jordan durante aquele tempo?

Ela se acovardou, relutante de pensar naquilo.

Não no escuro.

Depois do que pareceu uma eternidade, Erin percebeu uma luz se aproximando e colou o rosto nas grades. Quatro vultos e o que parecia um cachorro enorme vinham andando em sua direção por um túnel de pedra, um deles trazendo uma lanterna.

O cachorro andava ao lado de uma mulher.

Bathory e seu lobogrifo.

Atrás deles, dois homens mais altos que pareciam irmãos arrastavam um terceiro homem, com os braços atirados sobre seus ombros. Ao vê-lo, a garganta dela se cerrou. Seria Jordan? Ou Rhun?

Ao chegar à cela, sem dizer uma palavra, Bathory destrancou a porta e a abriu.

Erin se retesou. Quis correr para fora, mas não conseguiria dar dois passos naquele túnel.

O lobogrifo entrou na cela.

Bathory e os dois homens seguiram o lobo. Uma lufada de ar frio entrou com eles. Os dois irmãos eram strigoi.

Deixaram o homem cair aos pés dela. Ele gemeu e se virou. Uma massa de hematomas cobria-lhe o rosto e estava com os olhos muito inchados, quase fechados; sangue seco ensopava as mangas da camisa e a perna da calça.

– Professora Granger? – disse uma voz alquebrada conhecida, com um ligeiro sotaque texano.

Ela caiu de joelhos ao lado dele, segurando-lhe a mão.

– Nate? Você está bem? Por que está aqui?

Ela sabia a resposta para ambas as perguntas e se desesperou ao se dar conta de que ambas eram o resultado de sua falta de visão. Jamais considerou a possibilidade de que os Belial fossem atacar seus alunos inocentes. O que eles sabiam? Então tudo se encaixou. Ela enviara as fotografias da tumba, do medalhão nazista. Não era de admirar que Bathory tivesse podido seguir a equipe deles até a Alemanha.

O que eu fiz?

Ela não sabia a resposta para aquela pergunta, nem para a seguinte.

– Amy? – sussurrou ela.

Nate olhou fixamente para ela, as lágrimas enchendo-lhe os olhos.

– Eu não estava lá para protegê-la.

Erin balançou para trás como se tivesse levado um golpe no rosto. Ouviu um soluço escapar de Nate.

– Não é sua culpa, Nate.

Fora responsabilidade dela. Os alunos estavam sob seus cuidados.

A voz de Nate soou rouca:

– Eu não sei por que estou aqui.

Uma onda de afeto pelo garoto do Texas dominou Erin. Ela apertou a mão dele.

– Que tocante – zombou Bathory.

– Por que você o trouxe? – Erin se virou e olhou furiosa para ela, ganhando um rosnado ameaçador do lobogrifo. – Você conseguiu as fotos, imagino. Ele não sabe de mais nada. Não tem nada a ver com tudo isso.

– Não exatamente – disse Bathory. – Ele tem algo a ver com você.

A culpa dominou Erin.

– O que você quer?

– Informações da Mulher de Saber, é claro. – Bathory exibiu os dentes brancos perfeitos num sorriso desagradável.

– Não acredito naquela maldita profecia – disse Erin, falando sério. Até o momento o trio tinha errado mais coisas do que acertado. Não parecia que eles tinham uma profecia divina a favor deles.

– Ah, mas outros acreditam. – Bathory acariciou a cabeça do lobogrifo. – Ajude-nos.

– Não. – Ela preferiria morrer a ajudar os Belial a abrir o livro.

Bathory estalou os dedos e o lobogrifo saltou e imobilizou Nate no chão com as patas dianteiras, arrancando sua mão da de Erin. O lobo inclinou o focinho para a garganta de Nate.

A mensagem era clara, mas mesmo assim Bathory a pôs em palavras.

– Não preciso do seu caubói.

Bathory virou a lanterna para Nate. Erin tentou não olhar para ele. Em vez disso, olhou fixamente para as paredes de pedra, a grade de aço com portão recém-instalada e para o teto preto da cela que parecia se estender para cima para sempre.

Mas seu olhar voltou para Nate. Ele fechou os olhos, tremendo, mas parecendo tão corajoso que Erin teve vontade de abraçá-lo. Claramente aterrorizado, ainda assim ele não pediu ajuda. Apenas esperou.

– Do que você precisa? – perguntou Erin a Bathory.

– De suas ideias sobre como abrir o invólucro de chumbo que contém o livro. – Bathory pôs ambas as mãos nos quadris. – Para começar.

– Eu não sei.

O lobo baixou a cabeça para a garganta exposta de Nate e rosnou.

– Mas talvez nós possamos conversar sobre o assunto, você e eu. – Erin falou tão depressa quanto pôde. – Mas primeiro tire aquele lobo dali.

Como que obedecendo a uma ordem silenciosa de sua dona, o lobo levantou a cabeça.

Nate estremeceu de alívio.

Erin precisava dar alguma coisa à mulher.

– A caixa de chumbo tinha um desenho. Um esqueleto e um homem atados um no outro por laçadas de corda.

– Sim, nós sabemos. Bem como os símbolos Alfa e Ômega.

Bathory se virou para o mais alto dos dois irmãos, de pele perfurada e tatuada, os olhos famintos cravados nela. Ele puxou uma mochila, tirou o pesado artefato e o estendeu para Erin.

– O que mais você vê? – perguntou Bathory.

Erin pegou o objeto de metal frio, cuidando para não tocar no homem tatuado. Ela desejou ter alguma coisa significativa para acrescentar. O que ela sabia a respeito do livro? Ela alisou as duas figuras entalhadas na frente: o esqueleto humano e o homem nu, cruzados e presos em um abraço, atados por uma corda trançada.


– O livro é sobre milagres – disse Erin. – Milagres de Cristo. Como Ele empregou a Sua divindade.

O lobo alternou o peso de uma pata para outra.

– Nós sabemos disso – retrucou Bathory. – Como o abrimos?

Erin a ignorou e tentou raciocinar.

– Milagres. Como transformar água em vinho. Trazer os mortos de volta à vida...

Ela parou, surpreendida.

Bathory compreendeu no mesmo instante.

– Todos os milagres mais importantes são sobre transformações.

– Exatamente! – Erin ficou surpresa com a rapidez com que Bathory fez a ligação. – Como a transubstanciação, transformar o vinho no sangue de Jesus.

– Então, talvez o bloco de chumbo seja de fato o livro. – Bathory atravessou o espaço que as separava e se agachou ao lado de Erin, como se fossem duas colegas trocando ideias. Ela também tocou o chumbo. – Os alquimistas estavam sempre tentando transformar chumbo em ouro.

Erin assentiu, compreendendo a hipótese da mulher.

– Talvez esta busca tenha suas origens nesta lenda. Algum velho relato sobre o Evangelho talvez tenha viajado através das eras. Transformar chumbo em ouro.

Os olhos prateados de Bathory se cravaram nos dela.

– Talvez o Evangelho precise ser transformado de alguma forma. De chumbo opaco e sem valor na glória áurea do livro?

Erin subitamente se lembrou das palavras de Piers no bunker:

O livro ainda não é um livro. Ainda não.

Teria o velho padre decifrado o enigma durante as décadas que passara pregado na cruz, sem mais nada para fazer enquanto sofria?

Erin assentiu:

– Acho que você está certa.

– É uma ideia interessante. Mas quais são os ingredientes alquímicos necessários para promover esta transformação? – Bathory bateu na figura do esqueleto entalhado na capa de chumbo.

– Suspeito que a resposta possa estar em nosso amigo ossudo aqui.

– Mas o que o símbolo Alfa acima da cabeça dele significa? Deve ser uma pista. – Erin olhou fixamente para o esqueleto sob o símbolo Alfa, então olhou para o homem nu e o símbolo acima de sua cabeça. – E qual é o significado do símbolo Ômega?

– Alfa, esqueleto; Ômega, homem. – Bathory deslizou o dedo para dentro de duas pequenas cavidades no topo do bloco.

Erin não havia observado aquilo antes. Pareciam minúsculos receptáculos, destinados a conter alguma coisa, talvez alguma coisa como os ingredientes alquímicos que Bathory havia mencionado. Ela tentou examiná-los melhor.

Antes que pudesse, Bathory se pôs de pé, o conhecimento se revelando num lampejo em seu rosto. Ela arrancou o bloco das mãos de Erin.

– O que foi? – perguntou Erin. – O que você viu?

Bathory estalou os dedos, o lobo abandonou Nate.

O rapaz se sentou trêmulo, esfregando a garganta.

Os estranhos olhos prateados sorriram para Erin.

– Obrigada por sua ajuda.

Com essas palavras, ela e os irmãos strigoi saíram da cela. A tranca estalou, se fechando, e a luz foi se afastando no túnel. Erin se inclinou para a frente para vê-la, até desaparecer. Bathory havia descoberto alguma coisa, alguma coisa importante.

Nate respirou fundo.

– Ela vai voltar.

Erin concordou, acrescentando:

– Mas nós não estaremos aqui.

15:35

Rhun puxou o capuz escuro mais baixo sobre os olhos, se escondendo tanto dos turistas quanto da luz do sol da tarde que inundava a Praça de São Pedro.

Ali, ele esperou com Jordan.

Do outro lado da praça travertina, elevava-se a Basílica de São Pedro, seu domo o ponto mais alto em toda a Roma. De ambos os lados, a dupla colunata de Bernini se abria em dois amplos arcos emoldurando a praça em forma de buraco de fechadura no meio. De acordo com Bernini, a colunata representava os braços de São Pedro estendidos para abraçar os fiéis no abrigo da igreja. Acima desses braços estavam posicionados 140 santos de pedra observando o espetáculo abaixo.

Rhun esperava que eles não o vissem. Ele havia escolhido aquele lugar para um encontro, em terreno aberto, sob o sol, para se esconder em plena vista, de modo que, se Bathory tivesse chegado a Roma, seus strigois não pudessem ouvir quaisquer das palavras que dissesse. Era possível que estivesse sendo demasiado paranoico, mas, depois dos acontecimentos na Rússia, não ousava correr riscos.

Jordan enrolou as mangas da camisa. A borda de uma mordida de strigoi aparecia logo acima de seu cotovelo. Apesar da surra e das mordidas, era evidente sua preocupação com Erin. Um excelente Guerreiro do Homem, pensou Rhun, e tentou se sentir grato por ela ter um defensor como aquele.

Os humanos circulavam ao seu redor. Uma mulher carregava uma criança gorda apoiada no quadril; ao lado dela um rapaz olhava-lhe os seios, o bater disparado de seu coração revelando sua reação. Um grupo de meninas de uniforme escolar azul-marinho tagarelava sob o olhar atento de uma professora de meia-idade de óculos com armação vermelha.

Uma mulher de jeans, com uma camisa preta justa, um chapéu de palha de abas largas e óculos escuros, circulava ao redor da praça repleta. Ela tirou algumas fotografias, então enfiou a minúscula câmera na mochila que trazia pendurada pela alça no ombro. Parecia turista, mas não era.

Nadia.

Finalmente.

Rhun esperou, sem ousar atravessar a praça até que ela sinalizasse que era seguro. Ele detestava andar se escondendo na Cidade do Vaticano. Roma fora seu lar durante séculos. Tinha sido o único lugar no mundo onde ele sempre andara livremente – até agora. Antes que aquela busca começasse, havia considerado a possibilidade de se retirar do mundo, e se abrigar no mundo meditativo que existia nas profundezas abaixo da basílica. Será que algum dia poderia voltar a buscar aquela paz?

Ele caminhou pela colunata curva em direção à antiga fonte em três níveis. Como muitas coisas em Roma, era mais velha que ele. Uma garotinha brincava de esconde-esconde entre as colunas dóricas, procurada pela mãe enérgica. Elas provavelmente pretendiam brincar mais um pouco antes de ir para casa jantar.

Os olhos aguçados de Rhun perceberam o vermelho do pórfiro engastado em meio ao mar de pedras de calçamento cinzentas. A pedra vermelha tinha sido posta ali para marcar o local onde o papa João Paulo II fora baleado trinta anos antes. A pedra vermelho-sangue o lembrava das pedras de calçamento no relicário da igreja do Salvador do Sangue Derramado, um pensamento que parecia trazer o espectro de Rasputin para aquele lugar sagrado.

Rhun parou ao lado do alto obelisco de pedra. Aquele mesmo pilar havia testemunhado a crucificação de incontáveis cristãos no circo de Nero, inclusive o próprio Pedro. Mas desde o fim da década de 1500, havia protegido o centro do mundo cristão. Ele calculou o horário pela longa sombra que ele lançava sobre a praça. Eles tinham menos de duas horas antes do pôr do sol. Se os Belial tivessem strigoi aquartelados em Roma, teriam de agir antes disso.

Nadia se deteve ao lado dele.

– Onde está a mulher? – Ela inclinou as costas como se estivesse examinando a cruz que encimava o obelisco.

– Erin – disse Jordan. – O nome dela é Erin.

– Ela foi levada junto com o livro. – Rhun a pôs a par dos acontecimentos na Rússia, ao final entregando a ela o rosário e o frasco de Jiang. Ela poderia levá-los ao santuário abaixo da necrópole da Basílica de São Pedro, onde a Ordem dos Sanguíneos residia.

As mãos de Nadia se detiveram sobre o frasco antes de enfiá-lo na mochila. Ela trabalhara muitas vezes com Jiang.

– O cardeal voltou para Roma, vindo de Jerusalém. Esteve com os Enclausurados desde que recebeu a notícia de sua morte. Orando.

A culpa irrompeu nas entranhas de Rhun. Detestava o fato de ter mentido para Bernard. Sabia que depois que Nadia o informasse de sua morte Bernard mergulharia no luto. Mas não houvera outra maneira de esconder as ações deles do espião dos Belial que existia entre eles. Mesmo assim, isso não tornaria mais fácil enfrentar Bernard. Rhun lançou um olhar para o imponente Palácio Apostólico se erguendo acima da colunata. Algumas janelas tinham ficado abertas para que entrassem luz e ar.

– Você pode nos levar a Bernard? Não temos mais tempo para segredos agora que os Belial estão com o livro.

– E Erin – acrescentou Jordan. – Eles também estão com Erin.


55

28 de outubro, 15:40, horário da Europa Central

Circo de Nero, Roma

– O que você quer dizer com vamos sair daqui? – perguntou Nate.

Erin foi tropeçando até onde ele estava em meio à escuridão oleosa e segurou a mão dele para tranquilizá-lo.

– Nós vamos subir e sair.

– O quê? Como?

Ela explicou.

Anteriormente, quando Bathory girou a lanterna pela cela, Erin avistou um possível caminho de saída. Certamente nunca conseguiriam vencer as paredes de pedra e as barras de aço da nova grade pareciam fortes, e o piso tinha sido escavado de rocha sólida. Eles não poderiam sair por nenhuma daquelas vias.

Com exceção do teto!

Sob a luz da lanterna de Bathory, ela havia reparado que a cela não tinha telhado. Era apenas um poço de paredes retas que se estendiam para cima.

Erin sabia o que aquilo significava. Em tempos antigos, os escravos romanos usavam longas traves para empurrar animais enjaulados para baixo pelo túnel de pedra por onde Bathory havia saído antes. Eram animais destinados à arena, mas primeiro suas jaulas tinham de ser colocadas exatamente na cela que ela e Nate agora ocupavam.

Naquela época, uma plataforma de madeira teria coberto o piso de pedra da cela. Ao longo dos séculos, a plataforma havia se desintegrado, deixando as farpas que Erin apalpou ao acordar na cela. Originalmente, tábuas tinham sido pregadas umas nas outras na forma do aposento. Correntes teriam sido afixadas em ambos os lados da plataforma e se estendido para cima, encaixando-se em roldanas no topo. Aquelas correntes teriam se encaixado em fendas, em ambos os lados do retângulo negro acima dela.

Os escravos transportavam os animais sobre a plataforma. Mais tarde, ao receberem o sinal do alto, outros escravos usavam um sistema complexo de elevador de cordas e roldanas para levantar a plataforma e a jaula das profundezas debaixo da terra até a arena no nível do solo.

Para Erin e Nate, o ideal seria que aquele poço levasse a algum lugar mais seguro que a prisão onde estavam agora.

– Venha até aqui – disse para Nate, tomando-lhe a mão. – Podemos subir pelo portão de aço para alcançar o poço acima.

Ela o ajudou a se levantar e subir pelas traves horizontais. Apesar disso, ele tremia. Espancado e mal alimentado, estava visivelmente fraco.

– Agora vamos passar à parte interessante. – Erin o segurou contra as barras com um braço. – Eu vi uma pequena fenda vertical se estendendo para cima numa parede do poço. Com alguma sorte, poderemos subir por aquela fenda até a superfície. Vou subir na frente. Você vem atrás de mim.

– Sim, senhora. – A voz de Nate soou sarcástica e ela ficou contente ao ouvir isso.

Com os dedos, ela explorou a parede do poço acima e encontrou a fenda. Era larga o suficiente para se encaixar nela: as pernas de um lado, as costas de outro. A técnica de escalada era chamada chaminé.

Ela usou a grade da cela para impulsionar as pernas e se ergueu, entrando na fenda. Antes que pudesse cair, enfiou uma perna contra a parede lateral. Suas costas se apoiaram com força contra o outro lado. Conseguiu entrar.

Moveu um pé e depois o outro.

– Tudo bem, Nate. Agora é a sua vez.

Cega na escuridão, ela o ouviu se içar das barras em sua direção – então cair de volta no piso de pedra com uma pancada surda.

Ela desceu correndo.

– Você está ferido?

– Estou bem. – Pela voz, ele não parecia bem.

– Desta vez, você vai na frente.

Erin encontrou a mão dele e o levou de volta para as barras. Nate escalou mais uma vez e caiu de novo.

– Me deixe aqui – disse ele. – Não vou conseguir.

– Está me dizendo que um garoto esperto do Texas como você não tem coragem de escalar melhor que uma velha magricela como eu?

– Não é uma questão de coragem – respondeu em tom de derrota.

Ela detestava ter de instigá-lo de novo, mas era preciso.

– É claro que é. Pare de choramingar e enfie este rabo naquela fenda. Não vou chegar lá em cima e dizer à sua irmã caçula que você foi morto porque era preguiçoso demais para sair de dentro de um buraco.

Nate tornou a se levantar.

– Eu até que gostava da senhora.

– Trate de subir.

Desta vez ela apoiou os pés dele quando ele se impulsionou para cima. Depois de apoiado com as costas e as pernas, fenda na ele não precisava usar os braços feridos, apenas as costas e as pernas.

Terra e fragmentos de pedra choveram em cima dela enquanto Nate subia vagarosamente. Ela o seguiu, estendendo uma perna, levantando-a alguns centímetros, depois se obrigando a tirar o outro pé da parede. Repetindo o processo inúmeras vezes. Subindo bem devagarzinho. Ela já tinha feito escalada em chaminé antes, mas sempre com uma corda de segurança e uma lanterna.

– Como está indo, Nate?

– Há muitos dias que não me divirto tanto. – Ele subiu mais alguns centímetros.

Ela deu um sorriso enviesado. Provavelmente era verdade.

Mais alguns preciosos metros acima, ele escorregou.

Ela agarrou a panturrilha dele e a empurrou contra a parede. Ele pressionou e conseguiu se segurar.

O coração dela disparou. Ela e Nate quase caíram de volta dentro da cela. Com alguma sorte, teriam morrido com o impacto. Senão, teriam tido a sorte de ser estraçalhados pelo lobogrifo.

Mas pelo menos teriam morrido tentando.

Uma luz fraca e cinzenta iluminou o poço.

Alguém se aproximava.

16:05

Em uma sala privada no Palácio Apostólico, Jordan rangeu os dentes. Nu da cintura para cima, estava deitado de bruços, com o rosto enterrado num tapete grosso de lã cobrindo um piso de madeira bem encerado.

Nadia estava fazendo o papel de enfermeira, limpando as mordidas no braço e nas costas dele – e não muito delicadamente.

– Tatuagem estranha – disse ela, observando o desenho do padrão de Lichtenberg do raio.

– Eu sei – respondeu ele, contorcendo-se de dor. – Você tem que morrer para ter uma.

Nadia tinha discretamente tirado ele e Rhun da Praça de São Pedro por uma porta secreta do Palácio Apostólico, onde aparentemente o papa vivia. Ela os havia trazido para aquele aposento simples, de paredes caiadas. Na sala havia uma mesa antiga e longa de madeira, seis cadeiras e um crucifixo macabro na parede. Depois de seu encontro com Piers, ele mal conseguia suportar olhar para crucifixos.

Em vez disso, manteve os olhos no tapete. Cheirava a ovelha molhada.

Nadia torceu uma toalhinha de mão numa bacia de cobre, a água com uma coloração rosa-clara do sangue de Jordan.

– Onde está Bernard? – Rhun andava de um lado para outro na sala, parando apenas para olhar pela janela o pátio abaixo.

– Já mandei um recado. – Nadia cutucou Jordan de novo.

Ai-ai! Agora ela estava apenas sendo malvada.

Ela tirou um frasco de vidro da mochila.

– Isto pode arder.

– Isto não é o que você deve dizer – reclamou Jordan. – Você deve mentir.

– Mentir é pecado.

– Como dizer ao cardeal que nós morremos.

Nadia torceu a tampa do frasco que cheirava como piche misturado a estrume de cavalo.

– O que tem dentro dessa coisa? – perguntou Jordan, mudando de assunto.

Ela tirou uma porção da pasta com os dedos indicador e médio.

– É melhor você não saber.

Ele abriu a boca para insistir – então pensou melhor e a fechou. Se alguma coisa deixava Nadia sem vontade de falar, ele não queria saber.

Ela passou o bálsamo numa mordida em suas costas, deixando para trás um lastro de fogo.

Ele arquejou, imediatamente começando a suar.

– Parece napalm.

– Eu sei. – Ela trabalhou depressa, vedando cada ferida.

Ele examinou a mordida em seu braço. Sangrara desde que ele deixara a Rússia, mas a pasta fedorenta conteve o sangramento. Ele respirou fundo várias vezes, na esperança de que o ardor diminuísse.

– Qual é o plano para encontrar Erin?

Rhun continuava a andar, sem que seus passos fizessem o mínimo som sobre o velho tapete.

– Depois que o cardeal chegar, organizaremos um grupo para procurar por ela e pelo livro. Os Sanguinistas têm uma ampla rede de informantes, especialmente em Roma. Nós os encontraremos.

Até onde Jordan podia dizer, a rede de informantes dos Sanguinistas tinha sido inútil até o momento, mas dizer isso não ajudaria. Ele se manteve em silêncio enquanto, sem nenhuma delicadeza, Nadia punha uma bandagem em seus ferimentos. Ela não tinha nenhum futuro como enfermeira.

Nadia jogou para ele uma camiseta cinza limpa, e ele se sentou para vesti-la. Agora parecia um sujeito normal com um par de Band-Aids, em vez de o sobrevivente do ataque dos strigoi.

Progresso.

Alguém bateu à porta. Antes que qualquer um deles pudesse alcançá-la, a porta se abriu com um estrondo.

O cardeal estava no umbral. De batina escarlate e tudo.

Estava flanqueado por homens vestindo pantalonas azuis enfiadas nas botas pretas de cano alto, camisas azuis com colarinhos brancos, luvas brancas e boinas pretas. Eles pareciam ter saído de outro século.

Mas as Sig Sauers em suas mãos eram muito modernas.

16:12

Erin se paralisou à medida que a luz solar se intensificou abaixo. Não queria que ninguém ouvisse – mas então se deu conta de como aquilo era ridículo.

Na cela havia uma única saída. Ela e Nate estavam entalados ali, a cerca de três metros de altura. Os strigoi podiam ouvir os batimentos cardíacos deles, de modo que se esconder era inútil. A única chance era fugir.

Acima dela, Nate subiu mais depressa. A respiração ofegante dele revelava o quanto aquele esforço estava lhe custando. E uma vez que nem ele nem Erin sabiam o comprimento do poço, ela não tinha nenhuma ideia de se fazia alguma diferença.

O lobogrifo latiu para o alto.

O som ecoou na pedra como se um bando de cães danados estivesse atrás deles.

Nate escorregou.

Erin se apoiou com força contra ambos os lados da fenda.

Não adiantou.

O impacto do corpo dele a desalojou. Ela e Nate rolaram para baixo. Ela saiu raspando a cabeça e os braços nas laterais enquanto tentava freá-los.

Então caiu através do espaço vazio, com Nate bem em cima.

Erin não bateu as costas contra a pedra, mas em alguém, que foi atirado ao chão.

Ela tentou empurrar Nate e rolar, mas ele era pesado demais.

Uma mulher praguejou no que pareceu uma língua eslava e com cotovelos pontudos empurrou Erin para o lado. Erin saiu de cima de Bathory com uma boa dose de satisfação.

Um strigoi corpulento levantou Erin com a mão direita e Nate com a esquerda. Ele devia ter mais de dois metros de altura, era careca e tinha olhos negros. Tinha a pele escura para um strigoi, e vestia uma calça cargo suja e uma camiseta branca manchada. A camiseta justa realçava os contornos musculosos de seu torso. Definitivamente não tinha nenhuma arma na parte superior do corpo. Ela olhou mais embaixo. Um punhal numa bainha de couro estava preso ao cinto.

Ele arremessou Nate contra a parede, então estendeu a mão para Bathory.

E se deteve.

Então recolheu a mão rapidamente.

Sangue pingava de um ferimento no braço de Bathory. Uma bandagem branca suja havia escorregado para o cotovelo dela. Erin devia tê-la tirado do lugar quando se chocou contra a mulher. Pontos tinham se aberto de um corte no tríceps. O sangue escorria pelo seu braço. Bathory olhou para baixo e praguejou, então puxou a bandagem para cima. O curativo escorregou de novo.

O lobogrifo esfregou o focinho na perna de Bathory e ganiu.

– Para trás! – Bathory empurrou o lobo para longe com brutalidade, quase freneticamente. – Magor, fique longe.

O animal recuou um passo e se sentou.

Os olhos de Erin se estreitaram. Interessante.

Bathory se pôs de pé sozinha. Uma gota de sangue caiu de seu braço no chão. A cor parecia estranha, mas Erin não podia se inclinar para olhar mais de perto, pois o strigoi segurava firme o seu braço.

– Você tem iniciativa. – Bathory limpou a poeira da calça.

– O primeiro dever de qualquer prisioneiro é fugir – respondeu Erin.

De olhos arregalados, o strigoi olhava fixamente para o braço ferido de Bathory.

Erin sempre viu um strigoi reagir a sangue com entusiasmo, e não com medo. Claramente, ferir Bathory era algo desaconselhável.

– Vou cuidar do meu ferimento. – Bathory pegou sua lanterna. – E volto.

E então, o que aconteceria?

Bathory se virou para o strigoi que estava segurando Erin.

– Mihir, fique e cuide deles. Não permita nem que pensem em fugir.

Mihir inclinou a cabeça.

Bathory assoviou para o lobogrifo e seguiu pelo túnel. Outro strigoi esperava do lado de fora. Ele fechou a porta e puxou as barras, provavelmente para se certificar de que estava trancada antes de seguir Bathory.

Erin estava presa na cela de novo, mas desta vez acompanhada de um strigoi furioso. Ele a atirou para o lado, e ela se retorceu para não cair em cima de Nate.

Mihir virou a lanterna para o poço acima e ao longo da fenda de onde Erin e Nate tinham caído.

Erin se inclinou sobre Nate.

– Você está bem?

As pálpebras dele se entreabriram.

– Esta é de longe a pior escavação que já fiz.

Ela sorriu.

– Quando sairmos disto, prometo que vou escrever uma carta de recomendação fantástica.

Mihir se aproximou deles, passando ao largo da única gota de sangue de Bathory no chão. Ele se inclinou acima deles.

– Chega de conversa.

Os olhos dele se demoraram no sangue fresco que escorria do pescoço de Erin. Ela também tinha aberto as feridas na queda. Viu a fome crescer nos olhos dele.

Erin cerrou as mandíbulas. Não ficaria com medo. Seu coração ignorou as palavras de conforto e acelerou. Com medo ou não, ela usaria a sede de sangue dele para ganhar alguma vantagem.

Em vez de recuar e se encolher como queria, deu um passo na direção de Mihir, inclinando o pescoço para o lado, sabendo que ele podia sentir o cheiro do sangue, ouvir as fortes batidas de seu coração por trás dele. Rhun mal tinha conseguido se conter ao ver um sangramento. Com certeza Mihir seria mais fraco que o padre.

Ele não tirou os olhos do pescoço de Erin, acelerando a respiração. Ela manteve a mão esquerda baixa. Teria apenas uma chance – se desse sorte.

Mihir lambeu os lábios, mas se conteve.

Ele precisava de um convite melhor. Preparando-se, ela arrastou os dedos pela garganta ferida. Sem nunca tirar os olhos dos dele, ela esfregou as pontas dos dedos sujas de sangue nos lábios dele.

Rápido como um raio, Mihir estendeu uma das mãos para a garganta dela. Nate gritou uma advertência, atraindo a atenção do monstro por uma fração de segundo.

Esse tempo bastou para ela.

Erin caiu sobre um joelho, arrancou o punhal do strigoi da bainha e o enterrou no esterno dele.

Ele cambaleou para a frente. Sangue se espalhou sobre sua camisa.

Nate passou por ela. Arrancou o punhal do corpo de Mihir e, com um movimento rápido, cortou de lado a lado a garganta do strigoi. Mihir foi ao chão, jorrando sangue escuro sobre a pedra. Uma pequena nuvem de fumaça se elevou no ar quando o sangue dele tocou na gota de sangue de Bathory.

Nate ficou parado acima dele com a arma, tremendo dos pés à cabeça.

Os olhos de Mihir ficaram vidrados e sem vida. O sangue empoçou ao redor dele.

– Nate?

Ele se virou para ela, o punhal erguido.

– Nate – disse ela, baixinho. – Sou eu.

Ele baixou o punhal.

– Desculpe. O que ele fez comigo... com os dentes...

– Eu sei – disse ela. Ela não sabia por vias de fato, mas Nate precisava ouvir aquelas palavras. – Vamos tratar de subir de novo antes que aquela bruxa volte.

Desta vez ela foi na frente, dirigindo o foco da luz da lanterna de Mihir sobre as paredes. Nate enfiou o punhal ensanguentado na cintura e a seguiu com muito mais força que antes, aparentemente nutrido pela adrenalina da luta.

Erin virou a luz para cima. O poço não levava para a arena como ela esperava. Acabava no que parecia uma chapa de metal, prendendo-os ali dentro. Eles não podiam escalar e sair.

Ela se apoiou com força contra a parede, firmando-se antes de escorregar em cima de Nate.

Então foi examinando as paredes do poço e seus olhos deram com um poço secundário que se abria para o lado. Provavelmente abrigava um segundo andar de jaulas de animais. Mas poderia dar em algum lugar.

E mesmo aquela tênue esperança era melhor que ficar ali.

– Nate! – Ela apontou o foco da lanterna para a abertura secundária. – Olhe!

Ele sorriu.

– Vamos andando!

Com iluminação adequada e determinação renovada, eles escalaram em chaminé a fenda vertical e alcançaram o corredor secundário. Era mais como uma pequena antessala do que um túnel.

Ela girou a luz ao redor da cela. Barras outrora haviam vedado a saída, mas agora restavam apenas pilhas de ferrugem e cotos de barras.

Erin passou por cima deles e entrou no corredor seguinte.

Ela franziu os olhos e cobriu a lanterna com a mão para escurecer o caminho.

Bem longe, ao fundo, uma fina linha amarelo-clara brilhava.

Havia uma saída.


56

28 de outubro, 16:30, horário da Europa Central

Cidade do Vaticano, Itália

O cardeal Bernard avançou pelos corredores do Palácio Apostólico como uma nuvem de tempestade.

Rhun o seguiu, conduzido por um grupo de guardas suíços empunhando suas armas. Nadia caminhava à sua esquerda, aparentemente despreocupada; Jordan seguia à direita, parecendo mais zangado do que preocupado. Rhun se sentiu grato por tê-los ao seu lado.

As costas retas do cardeal Bernard revelavam sua ira. A batina escarlate panejava logo atrás. Com certeza ele estava furioso por Nadia ter-lhe mentido sobre a morte de Rhun.

Rhun olhou para trás para a fileira de guardas suíços. Na ponta da fila marchava o padre Ambrose, que nem se dava ao trabalho de disfarçar o sorriso malévolo de satisfação.

Com a ajuda de Nadia, Rhun poderia facilmente ter dominado todos eles, mas não desejava fugir. Queria fazer com que Bernard compreendesse o que havia acontecido e obter sua ajuda para o resgate de Erin e do livro. Ele rezou para que ainda houvesse tempo.

Bernard destrancou a porta de uma sala de recepção e os fez entrar.

O cardeal atravessou o aposento e se sentou pesadamente a uma mesa redonda de mogno. Então, com um gesto, indicou que Rhun se sentasse à sua direita, em seu lugar habitual. Talvez, afinal, não estivesse assim tão furioso, pensou Rhun ao puxar uma delicada cadeira antiga, estofada de tecido cor de âmbar para se sentar.

– Rhun – o tom severo de Bernard dissipou aquela momentânea esperança. – Você mentiu para mim. Para mim.

– Eu menti para o senhor – corrigiu Nadia. – A culpa é toda minha.

Bernard fez um gesto de descarte acenando com a mão.

– Ele permitiu que acontecesse.

– Eu permiti. – Rhun baixou a cabeça. – Assumo toda a responsabilidade.

Nadia cruzou as mãos.

– Muito bem. Já que não tenho nenhuma responsabilidade, posso me retirar?

– Ninguém sai enquanto esta situação não estiver explicada de maneira que me satisfaça.

– Quer uma confissão? – perguntou Rhun. – Nada disso importa agora. Os Belial estão com o livro.

Bernard se recostou na cadeira.

– Compreendo.

– Os Belial estão em Roma. – Rhun pôs as palmas das mãos sobre a mesa como se fosse se levantar. – Precisamos procurá-los.

– Parado! – ordenou Bernard, como se Rhun fosse um cachorro. – Primeiro diga-me como isto aconteceu.

Rhun se irritou. Apertou as contas do rosário, tentando se acalmar antes de relatar os acontecimentos na Rússia. Relatou os fatos rapidamente, mas Bernard o fez ir mais devagar, interrompendo com uma pergunta atrás da outra, detendo-se em busca de imperfeições na história. Sua mente de teólogo buscava inconsistências, tentava descobrir mentiras.

Enquanto isso, os minutos se passavam.

Não conseguindo mais se manter sentado enquanto contava a história, Rhun começou a andar de um lado para outro, parando à janela, através da qual olhava para a praça que escurecia lá embaixo. Na praça, as pessoas, vestindo casacos, recolhiam seus pertences. O pôr do sol se aproximava; seria dali a meia hora, mais ou menos; então os strigoi estariam livres. Cada segundo diminuía as chances de que Rhun e Jordan pudessem encontrar Erin viva ou recuperar o livro. Mesmo assim, o cardeal o pressionou.

– Se o senhor pretende nos interrogar o dia inteiro – interrompeu Jordan –, que tal enviar uma equipe para procurar Erin e o livro, apenas para o caso de não termos vindo de tão longe até aqui para lhe contar uma lorota?

– Não fale com o cardeal desta maneira! – Ambrose olhou para ele furioso.

– Não? – Jordan se levantou da mesa, claramente disposto a fazer picadinho de Ambrose. Nadia se mexeu em sua cadeira. Se Rhun desse a ordem, tanto ela quanto Jordan estariam prontos para brigar.

Rhun levantou a mão.

– Acalmem-se. Nós...

Ouviu-se uma leve batida na porta.

Rhun prestou atenção. Eram cinco homens e uma mulher. Ele sorriu quando reconheceu um dos batimentos cardíacos. Precisou resistir à vontade de cair de joelhos e agradecer ao Senhor. Isso viria mais tarde.

Nadia também ouviu e trocou um olhar com ele.

Jordan olhou de um para o outro, contorcendo o belo rosto sem entender nada.

Ambrose ostentou sua expressão mais arrogante e abriu a porta.

E Erin entrou.

A coleira de Bathory deixara-lhe feridas e trilhas de sangue seco no pescoço. Estava com o rosto e as mãos sujos de terra, e parecia exausta. O rapaz que a seguia parecia estar ainda em pior estado.

Mas estava viva.

16:40

Jordan arrebatou Erin, envolvendo-a no melhor abraço que ela recebera em muito tempo. Ela fechou os olhos e apoiou a cabeça no ombro dele. Desejou poder descansar ali por muito, muito tempo.

– Como conseguiu chegar aqui? – perguntou Rhun. – E quem é o seu companheiro?

Erin se desvencilhou de um Jordan ainda sorridente.

– Este é Nate Highsmith. Fazia parte da minha equipe em Cesareia. Bathory o capturou e o trouxe para Roma.

Nate apertou a mão de todos os outros, lançando um olhar desconfiado e ciumento para Jordan depois daquele abraço indiscutivelmente caloroso.

Jordan não pareceu perceber, continuando a se desmanchar em sorrisos. Ele continuava olhando para Erin, que por sua vez não conseguia deixar de retribuir com um sorriso. Quando Bathory a levou embora e deixou Jordan e Rhun nas garras de Rasputin, ela havia temido que nunca mais fosse vê-los.

Jordan rapidamente a pôs a par do que acontecera nas últimas horas.

Ela, por sua vez, explicou como fugiu, seguindo pelos túneis, acompanhada de Nate, para fora do circo de Nero e para dentro da Cidade do Vaticano. Chegando ali, ela exigira ser levada ao cardeal Bernard, diante do que a guarda suíça os havia posto sob custódia.

– As ruínas do circo! – exclamou Rhun. – É claro. Aquele maldito labirinto de túneis ofereceria um abrigo perfeito para os Belial.

– Por quê? – perguntou Jordan.

– São subterrâneos, e protegidos da luz, de modo que os strigoi de Bathory podem circular por lá livremente durante o dia – disse Rhun. – Só que, mais importante, o circo é o lugar mais sacrílego de Roma, com suas areias para sempre profanadas pelo sangue de cristãos que foram martirizados lá. Este caráter profano fortaleceria as forças dela e enfraqueceria as nossas.

O cardeal Bernard gesticulou para um dos guardas e para Ambrose.

– Enviem tropas para o circo. Sanguinistas e humanas. Elas têm que invadir, tomar os túneis e recuperar o livro. E informe Sua Santidade.

O soldado e o padre assentiram e se foram.

O cardeal repassou os acontecimentos com Erin e Nate mais uma vez, conferindo os detalhes. Ele levou muito tempo, mas finalmente pareceu acreditar que contavam a verdade.

– Descrevam o livro para mim mais uma vez. – O cardeal fechou os olhos e uniu as pontas dos dedos.

– Será melhor se eu desenhar para o senhor – disse Erin, que estendeu a mão pedindo papel e uma caneta.

Assentindo, o cardeal lhe passou papel timbrado do papa e uma caneta. Trabalhando rapidamente, ela começou a desenhar uma representação tosca das imagens na capa do livro.

– É um bloco de chumbo mais ou menos do tamanho de uma Bíblia de Guttenberg – disse Erin, e rapidamente descreveu as estranhas imagens entalhadas nele: o esqueleto e o homem, encostados um no outro e atados por uma corda trançada, bem como as endentações semelhantes a um tinteiro e os símbolos gregos.

– Alfa e Ômega – sussurrou o cardeal quando ela acabou. – Isto representa Jesus, é claro.

– Não tenho tanta certeza. – Erin não gostava da ideia de discordar dele, mas algo lhe dizia que o cardeal estava errado.

– É claro que sim! Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último. Do Livro do Apocalipse. – Os olhos castanhos do cardeal pareciam furiosos.

– Mas Alfa e Ômega também são a primeira e a última letras do alfabeto grego. – Alguma coisa se moveu ao redor das sombras da mente dela. – A primeira e a última.

Enquanto ela acabava o desenho, alguma coisa a incomodou com relação a ele – então, de uma hora para outra, ocorreu-lhe a resposta. Uma certeza fria a dominou. Ela vira uma imagem semelhante à retratada no livro no Palácio Apostólico. Aquele símbolo icônico era encontrado por toda parte – até na parte superior do papel em sua mão.

Ela olhou fixamente para os outros, arregalando os olhos.

– Acho que...

Nesse momento, um guarda suíço escancarou a porta atrás dela, fazendo-a se sobressaltar. Ele entrou correndo, com as faces enrubescidas, expressando puro pânico.

– Eminência, alguém invadiu a tumba papal na necrópole!

Erin se virou, encarando os olhos do guarda.

– E fizeram alguma coisa com os ossos de São Pedro, não foi?

Ele deu um passo para trás, com surpresa.

– A-alguém os roubou.

O cardeal soltou uma exclamação de surpresa, enquanto Nadia e Rhun se levantaram em um salto.

– É claro que sim! – Erin praticamente gritou, com o coração disparado. – É claro!

Todos os olhos se voltaram para ela.

– Eu sei como abrir o livro! – exclamou ela.

Erin se lembrou da expressão no rosto de Bathory na ocasião em que conversaram sobre a transformação do livro, e sobre como os ingredientes alquímicos eram necessários para catalizar a transformação de chumbo comum na palavra de ouro de Cristo.

Bathory já tinha descoberto o significado do Alfa e do Ômega.

Todas as cabeças se viraram para Erin.

– Continue – disse Jordan.

– O livro tem indicações sobre como abri-lo na capa. – Sua voz embargou. – E Bathory descobriu isso.

– É melhor você explicar depressa – disse Jordan.

Erin se inclinou para o papel e circulou o selo papal no topo.


Retratava duas chaves – as chaves de ouro e de prata de São Pedro – cruzadas no meio e unidas por laçadas de corda escarlate. O selo papal e a imagem no livro eram assombrosamente semelhantes – mas em vez de chaves representando os papas, o livro tinha duas figuras cruzadas de maneira semelhante.

Erin explicou:

– São Pedro escondeu o livro há dois milênios. Ele deve ter visto o desenho no Evangelho, um desenho que viria a se tornar cada vez mais conhecido à medida que os séculos passassem – saindo do segredo e passando para o conhecimento público em algum momento durante o século XII, quando as chaves cruzadas começaram a aparecer em símbolos heráldicos dos papas. Mas a fonte daquele desenho deve ter vindo das imagens entalhadas no Evangelho de Sangue e trazidas por São Pedro.

Ela bateu no selo papal.

– As chaves representam o papado. Do mesmo modo que as figuras. O esqueleto e o homem. – Ela afastou o cabelo do rosto. – Alfa indica o primeiro. Sob ele encontra-se o desenho do esqueleto.

– Sim? – Rhun se inclinou mais para perto, os olhos escuros cravados nela como se pudesse ler a resposta no rosto dela.

– Aquele símbolo representa os ossos do primeiro papa.

– São Pedro! – disse o cardeal. – Foi por isso que eles roubaram os ossos dele.

– Para serem usados como o primeiro ingrediente para abrir o livro. Acredito que parte dos ossos moídos de São Pedro seja para encher aquela primeira concavidade na capa.

Jordan se moveu.

– Deve ter sido isso que Piers tentou nos dizer na Alemanha. Ele não parou de repetir “livro” e “ossos”.

– Exatamente. – Ela bateu na outra metade do desenho. – Esta ilustração de um homem vivo representa o atual papa. O papa Ômega. O último papa.

– Então precisam dos ossos do atual papa também? – perguntou Jordan parecendo incomodado.

Ela sacudiu a cabeça.

– Então do que precisam? – perguntou Rhun.

– O que um homem tem que um esqueleto não tem? – Ela começou a enumerar: – Vida. Carne. Sangue.

– Sangue? – interrompeu Jordan. – Piers também mencionou isso, mas em alemão. Blut.

– O segundo ingrediente... – As mãos de Erin ficaram geladas quando a plena compreensão se revelou. Ela olhou para os outros. – Eles precisam do sangue do atual papa.

16:48

Rhun e Nadia correram atrás de Bernard, flanqueando-o, formando a própria tríade. Não mais preocupados em revelar sua herança sobrenatural, eles se moviam a toda velocidade, como sombras voando pelos corredores do Palácio Apostólico. Os humanos ficaram para trás. Mas aquele assunto não era da conta deles.

Rhun saiu em disparada pelo longo corredor que levava ao quarto de Sua Santidade. Paredes revestidas de ricos painéis de madeira passaram voando. Crucifixos e pinturas religiosas sombrias pendiam ao longo do corredor. Havia ali uma fortuna em arte, mas não seria suficiente para salvar a vida de um velho. Só eles podiam fazê-lo.

Concedei, ó Deus, a Vossa proteção, e na proteção, força.

A porta do quarto do papa estava aberta, deixando passar a luz para o corredor escuro.

Sombras tremulavam no interior.

Bernard correu para dentro do quarto sem fazer uma pausa ou bater, seguido imediatamente por Nadia. Uma onda de sangue atacou seus sentidos. Eles haviam chegado tarde demais.

Sua Santidade estava deitado de lado no assoalho. Sangue escorria de seu pescoço cortado para a batina branca. No chão, ao lado do corpo, havia uma navalha, provavelmente a dele. Próximos dos cabelos grisalhos estavam os sapatos papais vermelhos, bem alinhados ao lado da cama. O cabelo em geral cuidadosamente penteado estava desalinhado e o rosto enrugado, pálido de choque, os olhos azuis calorosos fechados.

Ambrose estava ajoelhado ao lado dele, com as palmas cobertas de sangue. Tentava, sem sucesso, estancar a ferida.

Bernard se juntou a Ambrose no chão. Nadia avançou para o banheiro contíguo e Rhun examinou o quarto em busca de ameaças. As cortinas grossas de veludo estavam fechadas, a cama de latão simples desfeita e vazia, a cadeira empurrada para dentro da escrivaninha antiga, a estante bem arrumada atrás dela.

Rhun compreendeu.

Apanharam-no deitado, enquanto descansava, e quase sem luta.

Rhun fechou os olhos e lançou seus outros sentidos para fora. Os únicos batimentos cardíacos no quarto eram de Ambrose e de Sua Santidade. Os únicos odores eram conhecidos: Ambrose, Sua Santidade, os outros Sanguinistas, papel, poeira e um traço de incenso. E cobrindo aquilo tudo, o cheiro do sangue derramado do velho.

Ele voltou sua atenção para Sua Santidade. O rosto dele tinha perdido até a pouca cor que ainda possuía quando eles chegaram. A respiração dele saía arquejante pela boca parcialmente aberta.

– Eu vim avisar a ele, e ele... ele... – Ambrose gaguejou. – Ele precisa de um médico. Chamem um médico!

Bernard pressionou firmemente a palma da mão na ferida do papa. Nadia assentiu uma vez para informar o cardeal de que o banheiro estava seguro, então saiu correndo do aposento, rápida como o vento.

Ambrose limpou as mãos na batina preta. Seu coração bateu descompassado, de medo ou choque. Ele parecia tão pálido e perdido que Rhun teve pena.

Rhun baixou a mão para o ombro de Bernard.

– Precisamos levá-lo para o centro cirúrgico. Talvez lá o médico dele possa ajudá-lo.

Os olhos chocados de Bernard encontraram os dele.

– Bernard! – chamou ele em voz alta.

Os olhos do cardeal se desanuviaram.

– É claro.

Bernard manteve uma das mãos firmemente pressionada contra a garganta de Sua Santidade e enfiou a outra sob os ombros dele. Rhun pôs os braços sob o papa também. O peso reduzido seria fácil de carregar. O coração do velho fraquejou, revelando mais fraqueza em cada batimento. Sem ajuda, ele não viveria muito mais tempo.

Rhun e Bernard levantaram o homem ferido e o carregaram para o centro cirúrgico de emergência. Nadia levaria o médico até ali.

Desta vez o progresso deles pelo corredor foi lento. Rhun teve tempo de ver as pinturas antigas, emolduradas em madeira maciça. Esta era a parede dos santos; cada pintura contava uma história de sofrimento e martírio.

Os guardas suíços vieram depressa pelo corredor, chegando com Erin, Jordan e Nate.

– Sua Santidade foi gravemente ferido. – Bernard falou no italiano formal de sua infância longínqua. Há muitos anos que Rhun não ouvia aquele sotaque. Bernard ainda devia estar em choque.

Os guardas se abriram como água para deixá-los passar.

Atendendo às expectativas de Rhun, Nadia aguardava no centro cirúrgico, acompanhada de um homem desgrenhado de jaleco branco. Pela aparência dele ela o tinha arrancado da cama e o feito correr.

Ele empalideceu ao ver quem eles carregavam.

Passaram por ele e entraram no moderno centro cirúrgico. As superfícies de aço inoxidável reluziam e equipamentos modernos esperavam sob capas de plástico. Na parede havia um relógio redondo simples e uma pesada cruz de ferro.

Rhun e Bernard puseram Sua Santidade delicadamente sobre a cama branca limpa. Bernard ainda mantinha a ferida coberta.

– Isto foi feito com uma navalha – explicou.

Um segundo médico entrou correndo.

– Todo mundo tem que sair – disse o primeiro médico. – Só a equipe médica fica.

Enquanto os médicos começavam a cuidar de Sua Santidade, Rhun rezou para que eles encontrassem uma maneira de salvá-lo. Não havia mais nada que os Sanguinistas pudessem fazer.

Ele saiu para o corredor. Gotas do sangue do papa brilhavam no assoalho de madeira.

– Para onde foi Nadia?

– Ela conduziu uma divisão dos guardas de volta pelo corredor – respondeu Jordan. – Para procurar pelo sujeito que fez isso.

Se o agressor pudesse ser encontrado, Nadia o encontraria. Rhun se apoiou contra o revestimento de madeira da parede. Bernard estendeu um braço ao redor de seus ombros, e ele se apoiou contra ele. Havia séculos que não ocorria um assassinato bem-sucedido de um papa.

– O que isto significa para Bathory, Erin? – perguntou Jordan.

Os olhos dela disseram a Rhun tudo o que ele precisava saber.

– Significa que Bathory tem ambos os ingredientes necessários para abrir o livro.


57

28 de outubro, 17:05, horário da Europa Central

Cidade do Vaticano, Itália

Parada do lado de fora do centro cirúrgico, Erin desejou ter melhores notícias. Os Belial estavam com o livro e dispunham dos meios para abri-lo. Será que aquilo seria suficiente para transfigurá-lo? Será que o mal já teria vencido?

Nate se deixou cair e se sentou no chão ao lado dela. Sangue fresco empapava a perna de sua calça. Ela nunca o tinha visto tão pálido. Ele apoiou a cabeça contra a parede.

Jordan puxou uma garrafa de água do bolso do casaco e a colocou nas mãos do rapaz.

Nate bebeu a garrafa inteira em um longo gole. Quanto tempo fazia que ele não bebia água? Jamais ocorrera a Erin perguntar se ele estava com sede, e ela basicamente o fizera correr desde o momento em que fora trazido para dentro de sua cela.

Bernard fez contato visual com um guarda suíço. Ele apontou para Nate.

– Este homem precisa ser levado para receber cuidados médicos. A mulher também.

– Leve Nate agora – disse Erin. – Irei dentro de um minuto.

Bernard hesitou, então balançou a cabeça concordando. O guarda ajudou Nate a se levantar.

– Eu estou bem. – Nate se empertigou todo, mas suas costas começaram a escorregar para baixo no lambri de carvalho escuro.

– É claro que está – respondeu ela. – Eu também. Mas vamos fazer o que eles querem. Irei logo depois de você.

Nate ergueu a sobrancelha com incredulidade, mas não protestou quando dois guardas o conduziram pelo corredor. O rapaz era forte, ele ficaria bem. Ela tentou não pensar em Heinrich sendo levado embora. Ela voltaria a ver Nate muito em breve.

Jordan puxou seu estojo de primeiros socorros.

– Tem certeza de que não quer ir com o garoto?

– O ferimento no pescoço parece pior do que realmente está – respondeu ela.

– Parece muito mal. – Jordan puxou uma compressa de algodão com álcool, o cheiro bem conhecido de Erin.

Ela cerrou os dentes quando ele estendeu a mão em sua direção, mas o toque das mãos dele foi leve como uma pluma.

– Então, e agora? – Ele cravou os olhos azuis nos dela.

O coração de Erin acelerou.

– Agora?

– O que Bathory vai fazer agora? Onde ela vai abrir o livro? – Pelo tom da pergunta, Jordan pareceu achar que ela sabia a resposta.

Ela tentou falar e ignorar a proximidade física e a delicadeza com que ele lhe tocava a garganta.

– O livro dá muita importância a como e por quem ele será aberto e onde.

– Você faz com que o livro pareça uma pessoa. – Jordan afastou o cabelo para trás e limpou o lado, passando o algodão do queixo à clavícula.

Ela estremeceu e moveu os pés para esconder o movimento.

– Eu me pergunto se o livro não tem algum tipo de percepção, alguma parte de seu criador presa a ele.

– Concordo. – Bernard endireitou o zucchetto escarlate que usava sobre o cabelo branco. – Esta sempre foi a minha interpretação da profecia. E o livro tem que ser aberto em Roma. Mas onde em Roma?

– Se terreno consagrado é importante para os Sanguinistas – disse Erin, percebendo que tinha encontrado algo –, também importa para o livro. Qual é o lugar mais sagrado de Roma? A tumba de São Pedro. – Ela se afastou de Jordan. Precisava pensar, o que significava que tinha de se afastar do calor dele, de seu cheiro almiscarado. – Mas se os Belial quisessem abrir o livro lá, eles teriam primeiro tirado o sangue do papa, depois os ossos, de modo que pudessem abri-lo onde os ossos estão.

– Faz sentido – disse Jordan. – Por que invadir a tumba duas vezes, uma para roubar os ossos e outra para abrir o livro?

Um sino tocou. Rhun e Bernard trocaram um olhar.

– O que isto significa? – Jordan tirou um rolo de gaze do estojo.

– A Guarda Suíça está dando o alarme – respondeu Bernard. – Estão evacuando os turistas da cidade do Vaticano.

– Então Bathory não dispõe de muito tempo. – Se ao menos ela tivesse uma ideia melhor de onde aquela bruxa poderia estar. Então um raio de esperança surgiu. – Esperem! A basílica! Foi construída sobre a tumba de São Pedro. A parte mais importante da igreja mais sagrada de Roma.

Antes que ela sequer tivesse concluído a frase, Rhun e Bernard desapareceram, feito dois fantasmas. Voaram pelo corredor com uma velocidade espantosa. Ninguém imaginaria nem por um segundo que eram humanos.

Jordan sacudiu a cabeça.

– Acho que desistiram do negócio da identidade secreta. – Ele levantou uma sobrancelha e estendeu a mão. – Disposta para mais uma corrida?

Ela assentiu e deixou que ele a puxasse para perto.

Ele começou a correr depois de recolher sua submetralhadora Heckler & Koch, que Nadia tinha sido gentil de trazer de volta da Alemanha, junto com a pistola Colt. Erin seguiu Jordan pelos corredores espaçosos do Palácio Apostólico e em direção à praça. Ninguém tentou detê-los.

Desceram correndo um lance de escadas, dois degraus de cada vez, para o vasto vestíbulo que levava à porta de bronze e para a Praça de São Pedro.

À frente, dois guardas suíços de túnicas formais listradas de azul, vermelho e amarelo e calças justas abriram as portas para Rhun e o cardeal.

Jordan acelerou, tentando alcançá-los.

– Estamos com aqueles dois! – gritou Jordan.

– Deixem-nos passar! – gritou o cardeal por cima do ombro, já na praça.

Os guardas se afastaram enquanto o casal passava correndo.

Atrás deles as portas se fecharam com um estrondo ressonante. Ninguém poderia entrar com facilidade.

Erin se apressou descendo a escada, já sem fôlego. Pilares de mármore emergiram de ambos os lados, elevando-se a mais de sete metros no ar. Com todas aquelas dimensões, ela se sentiu feito uma criança que tinha entrado na casa de um gigante.

Eles correram pela praça aberta, onde Jordan se deteve derrapando.

A praça estava coalhada de gente. As pessoas saíam da basílica e das colunatas, se abriam em ondas ao redor do obelisco e das fontes, todas seguindo para a saída e para as ruas. O sol que se punha banhava-lhes os rostos de um tom laranja quente.

Tropas da Guarda Suíça as impelia como se estivessem arrebanhando gado.

Longe, mais adiante, o progresso de Bernard e Rhun tinha se tornado mais lento enquanto tentavam abrir caminho à força em meio à corrente de pessoas.

– Agarre o meu cinto! – gritou Jordan por cima do ombro.

Erin enganchou os dedos ao redor da tira grossa de couro.

Jordan abriu caminho na praça como um zagueiro em campo. Em vez de entrar direto no meio da multidão, como os Sanguinistas fizeram, seguiu pela borda, com um braço levantado. A multidão ondulou para o lado ao redor dele.

Erin andou depressa, tentando acompanhar seu passo. O ombro esquerdo de Jordan esbarrou em um turista que fugia. Era o lado machucado, mas ele pareceu nem perceber.

Chegando à basílica, ele cortou para a esquerda em direção à porta. Logo adiante, Rhun e o cardeal passaram correndo pela entrada em um lampejo de escarlate e preto.

Erin olhou para o alto. Acima do gigantesco domo da basílica, o céu incandescia em tons de laranja e âmbar.

O sol tinha se posto.

Distraída pelo que aquilo significava, já era tarde demais quando ela viu o monge. Ele se chocou contra ela, arrancando-lhe a mão do cinto de Jordan. O monge balbuciou o que pareceu um pedido de desculpas em polonês, estendendo as mãos para tocar no ombro dela.

– Está tudo bem – disse ela.

Ao atravessar a porta, Jordan não pareceu ter percebido que ela havia ficado para trás. Os dois guardas suíços cuidando das portas estavam distraídos demais pelos turistas saindo, mas recuperaram a compostura o suficiente para detê-la quando ela tentou segui-lo.

Já no interior, Jordan se virou.

– Vá em frente! – gritou ela. Ele poderia ajudar mais na luta contra Bathory do que ela.

Ele assentiu e se afastou rapidamente no interior da basílica.

– O prédio está sendo evacuado, senhora. – As palavras gentis do guarda contrastavam com os dedos duros apertando-lhe o braço. – Sinto muito, mas preciso que a senhora...

Um clarão de ouro lampejou do interior da basílica, explodindo com o brilho ofuscante de uma supernova. Junto com ele vieram um aroma doce e um toque de música logo além da capacidade de audição, fazendo o ouvido se esforçar em sua direção.

O guarda largou o braço dela e se virou para olhar para dentro.

Está acontecendo...

Dada a necessidade de testemunhar aquilo, Erin rapidamente se desviou do guarda e entrou. Uma vez lá dentro, correu pelo pórtico, empurrando um turista que estava paralisado, pasmo como o guarda.

Ela passou correndo pelas portas internas e entrou na nave principal. Uma floresta de pilares colossais de pedra se erguia adiante, sustentando o teto ricamente ornado da basílica. Ela olhou através deles para o outro lado do amplo assoalho até o altar papal, distante no centro da igreja. Uma luz dourada fluía debaixo do gigantesco baldaquino negro e dourado que protegia o altar. A estrutura de bronze parecia tremer dentro daquela incandescência, como uma miragem tremeluzente acima das areias do deserto quente. Ou talvez a força por trás daquele brilho fosse grande demais para conter qualquer estrutura feita pelo homem.

Sem pensar, Erin correu em direção àquela luz, desviando-se dos turistas retardatários seguindo na direção oposta. Mas a maior parte da basílica já tinha se esvaziado, deixando o caminho livre.

Era como correr por um campo de futebol, exceto que ela estava em um ambiente fechado. Erin sabia que a Basílica de São Pedro tinha o maior interior de igreja no mundo. Visitara o local muitas vezes no passado, mas nunca tinha corrido por lá. Ao correr naquele momento, ela não tirou os olhos do brilho incandescente que fluía debaixo do baldaquino.

À medida que se aproximou, ficou impressionada com as dimensões do baldaquino. Plintos de mármore altos como um homem sustentavam negras colunas salomônicas que se elevavam 18 metros no ar. Sustentavam seu imenso dossel de bronze, franjado com belíssimas bordas e encimado por estátuas e uma cruz.

Sob o dossel, bem no centro da basílica, estava Bathory.

Seu cabelo vermelho chamejava sob a luz dourada que explodia do objeto em suas mãos. O brilho iluminava cada capela e canto da igreja. Todas as estátuas e afrescos pulsavam com uma luz intensa e mística, como se buscassem se fundir com a incandescência fluindo do baldaquino.

Nas mãos de Bathory, o livro tinha se transformado de chumbo em ouro.

Transfiguração, pensou Erin.

Eu estava certa.

Ela correu passando pelas últimas estátuas enfileiradas na nave. Adiante, Jordan reduziu a velocidade para permitir que ela o alcançasse. Ele segurou sua mão e juntos correram pela nave em direção à luz.

Mais adiante, Rhun e Bernard estavam parados, imobilizados na beira do baldaquino.

Detidos por uma santidade que assustava até a eles.


58

28 de outubro, 17:11, horário da Europa Central

Cidade do Vaticano, Itália

O sangue de Bathory cantava de alegria enquanto a luz dourada banhava-lhe o corpo.

Ela inalou calor e amor. A dor que havia fluído em suas veias desde que se tornara mulher começou a ceder. Sentiu a marca negra em sua garganta se apagar aos poucos, lavada pela incandescência. Como qualquer treva poderia resistir àquela luz?

O bloco de chumbo aqueceu as palmas de suas mãos. Ele pulsava com seu próprio batimento cardíaco, como qualquer coisa viva. A cada segundo que se passava, pesava cada vez menos, até parecer flutuar acima de seus dedos.

Na mão de Bathory, o bloco foi substituído por uma luz dourada pura.

A incandescência a mesmerizava. Iluminava-lhe os olhos, mas não os queimava. Ela poderia contemplá-la para sempre, residir em sua luz para sempre, explorar seu mistério infinitamente. Longe, no alto, o sol dourado refletia na pintura em relevo no fundo do baldaquino de uma pomba branca. A pomba voou, livre, em meio à luz.

Bathory compartilhava da mesma liberdade.

Mas não por muito tempo.

A arqueóloga e o soldado corriam em sua direção. Os cavaleiros se aproximavam em círculo, chegando cada vez mais perto. Tropas da Guarda Suíça vinham correndo pela nave. Ela estava sem saída. Eles a matariam, derramariam seu sangue no livro, roubariam dela aquela luz.

Como que percebendo seu medo, a incandescência foi se apagando, diminuindo, até que apenas um livro restasse nas palmas de suas mãos.

Ela olhou para ele, paralisada.

O tomo era encadernado em pele de ovelha comum, sua superfície sem nenhum adorno. Com as pontas dos dedos, ela acariciou o couro enquanto o perfume de areias antigas se elevava às suas narinas.

Como era possível que tamanha luz brilhasse saída de algo tão simples e comum?

Ela sabia a resposta.

Imaginou o rosto de Cristo – um rosto comum de homem, escondendo a fonte da divindade.

Lágrimas escorreram por seu rosto enquanto uma dor tremenda retornava ao seu sangue.

Ela não precisou tocar a garganta para saber que a marca negra retornara.

Sacudiu a cabeça para desanuviar os pensamentos. Parecia ter acabado de despertar de um sono profundo. Mas não podia se dar ao luxo de uma distração.

Bathory olhou para a basílica, sabendo o que tinha de fazer. Precisava de um meio de sair e pretendia criar sua própria saída.

Movendo-se rapidamente, saltou do altar para a abside atrás dela e recuou em direção ao gigantesco trono de mármore negro alto na parede. Era o trono de São Pedro, cercado por papas, anjos e raios de luz dourada que, comparados à luz que ela acabara de ver, pareciam muito comuns.

Depois de se afastar o suficiente do altar, ela enfiou a mão no bolso, encontrou o transmissor ali escondido e pressionou o botão do detonador.

A explosão foi um eco distante, como o estrondo de um trovão além do horizonte. O piso estremeceu sob seus pés. Ela havia colocado as cargas explosivas bem fundo na necrópole abaixo, exatamente sob o altar onde estivera.

Observou com satisfação enquanto o piso de mármore se despedaçava à sua frente, rachando como gelo quebrado sob o pesado baldaquino. O gigantesco dossel de bronze estremeceu – então, enquanto ela o olhava, a estrutura inteira desmoronou sob seu próprio peso, atravessando o chão, caindo direto pelo buraco.

Sua base bateu no piso da necrópole abaixo com um estrondo ressonante das portas do céu se fechando.

Assim seja.

Ela abanou a mão, afastando poeira de pedras e fumaça de seus olhos e observou enquanto o baldaquino parava com um tremor, a maior parte praticamente afundada através do piso. Apenas o dossel ainda permanecia visível na nave, inclinado e torto.

Os explosivos tinham funcionado perfeitamente.

Do lado mais distante do buraco, um guarda suíço caiu gritando dentro da cratera que se abriu sob seus pés.

À esquerda, os Sanguinistas pularam para trás como leões assustados, saltando para o transepto daquele lado. A arqueóloga e o soldado se abrigaram à direita. Mais guardas suíços vieram correndo pelo centro da nave em direção ao local da destruição.

Mas o exército strigoi esperando abaixo na necrópole não se demorou. Com o pôr do sol, subiram aos montes pelas colunas retorcidas do baldaquino caído, formando uma horda de demônios na escuridão estígia. Vieram em bandos pelo dossel de metal e fervilharam, saindo para a basílica como formigas fugindo de um formigueiro. Mesmo enfraquecidos pela santidade do santuário, dariam cabo dos guardas suíços num instante e a Bathory tempo para fugir.

Ela saltou da borda quebrada do piso para um dos anjos sobre o dossel do baldaquino. Em uma das mão segurava o livro; com a outra, ela agarrou uma asa dourada.

Atiraram em sua direção.

Ela deu um impulso, usando o anjo para se proteger do atirador. Rapidamente enfiou o livro na frente da blusa para liberar a mão – então se estendeu sobre o estômago e baixou as pernas sobre a beira do dossel, buscando, com os pés, pontos de apoio no capitel ornamentado de uma coluna. Com toda a sua ornamentação rebuscada, o baldaquino criava uma adorável escada de 35 metros descendo para os túneis da necrópole, a cidade dos mortos situada sob a basílica.

Encontrando seu ponto de apoio, Bathory desceu por uma coluna retorcida do baldaquino, encontrando pontos de apoio adicionais para as mãos nas guirlandas de metal presas na superfície.

Lá embaixo, ao longe, Magor uivou para ela.

Ela sorriu, sentindo o peso do livro contra os seios.

Juntos, eles fugiriam de Roma – e talvez até Dele.


59

28 de outubro, 17:15, horário da Europa Central

Cidade do Vaticano, Itália

Jordan rolou de cima de Erin. Será que a teria machucado? Ele a tinha derrubado no piso de mármore com alguma força durante a explosão.

– Erin?

Ela apontou para trás dele.

Uma nuvem de fumaça obscurecia a maior parte da basílica atrás dele, mas Jordan tirou a Heckler & Koch do casaco enquanto se virava. Disparou uma vez, acertando um strigoi no ombro enquanto ele saía do pálio de fumaça. Sangue escuro espirrou na pedra branca. O strigoi recuou, mais lentamente do que Jordan esperava, como se estivesse andando na água. Apontou a arma para ele, mas não lhe agradava disparar dentro da basílica.

Será que todos os civis teriam saído?

Não conseguia ver muito longe em meio à poeira e fumaça, mas conseguiu ver o buraco aberto com a escultura negra enfiada torta por sua garganta. Não pôde deixar de admirar a exímia habilidade de demolição do inimigo.

Com a mão esquerda, ajudou Erin a se levantar e entregou a ela a pistola Colt 1911.

Ela a aceitou, os olhos cravados no strigoi ferido.

– Parecem atordoados.

– Deve ser porque o terreno consagrado os enfraquece. – Ele manteve a arma erguida e pronta para disparar. Mas atordoados ou não, estão bloqueando nosso caminho para as saídas.

– O que fazemos?

Ele a puxou consigo.

– Vamos nos meter em um canto onde ninguém possa nos atacar pelas costas.

Erin resistiu, apontando para a cratera fumegante no chão.

– Temos que seguir Bathory. Ela não pode fugir com o Evangelho.

Ele suspirou, sabendo que Erin iria atrás da mulher de qualquer maneira mesmo se ele recusasse.

– Você é quem manda.

Ela sorriu do tom dele.

Usando a poeira da explosão como cobertura, ambos deram a volta na abside, aproximando-se lentamente do buraco. Erin se manteve um passo mais atrás, com a pistola erguida, movendo-se junto com ele.

A maioria das tropas strigoi estava concentrando a atenção nos guardas suíços correndo para dentro da basílica com as armas disparando. A falta de cautela deles sugeria que todos os civis tinham sido retirados.

Bom saber, pensou Jordan.

Ele e Erin chegaram à parte de trás da cratera sem atrair atenção. O baldaquino se inclinava como um bêbado diante deles, o dossel pendendo para um lado. Do piso da basílica, a estrutura de bronze parecera ter trinta metros de altura. Agora, apenas seis metros se projetavam para fora, o que significava uma descida de 24 metros escuridão adentro – com strigoi esperando por eles no fundo.

A poeira à direita rodopiou, revelando dois vultos de capa preta.

Rhun e o cardeal.

– Levem esta mulher para fora da Basílica de São Pedro – ordenou Bernard.

– Tente para ver a dificuldade – respondeu Jordan.

Demonstrando a impossibilidade de ordenar “aquela mulher” a fazer qualquer coisa, Erin saltou da borda de mármore despedaçada para o dossel de bronze. Desequilibrou-se para trás, então agarrou um dos anjos menores, que erguia uma coroa.

Jordan e Rhun saltaram ao mesmo tempo, aterrissando cada um de um lado dela, ambos tentando firmá-la. O cardeal aterrissou um instante depois, ao lado da esfera que era encimada por uma cruz. Aquilo pareceu correto.

– Se vocês nos seguirem – advertiu Rhun –, fiquem atrás de mim.

Sem esperar por resposta, o padre desceu por um dos lados do dossel.

Jordan agarrou o ombro de Erin antes que ela se movesse, fazendo-a olhar para ele.

– Assim que ultrapassar a borda, vá para a parte interna das colunas. Caso haja tiroteio, use todo esse volume de bronze como proteção o máximo possível.

Ela se inclinou para a frente e o beijou rapidamente nos lábios – então soltou a mão do anjo, deslizou pela superfície inclinada de bronze e desapareceu abaixo da borda.

Com o coração na garganta, Jordan ficou imóvel por um momento, chocado, depois saiu rapidamente atrás dela. Não importava a que custo, queria garantir a segurança dela.

Chegando à borda, ele se deitou de bruços, baixou as pernas e descobriu uma abundância de pontos de apoio para os pés e as mãos. Logo estava deixando a luz acima para o negrume abaixo. Depois que aquilo acabasse, ele jurou que iria subir no prédio mais alto que pudesse encontrar, sentar-se na cobertura e passar um dia inteiro olhando para o sol e apreciando uma brisa fresca no rosto. Mas no momento continuou escalando para baixo, de novo, seguindo o cabelo louro de Erin. Ela seguiu o conselho dele e se manteve na parte interna da coluna.

Ele encaixou os dedos nas espirais rasas que decoravam a coluna, movendo-se rapidamente, esperando descer o máximo que pudesse antes que perdesse o apoio e caísse.

Uma sombra escura, tingida de vermelho, passou correndo por ele.

O cardeal.

– Cuidado! – berrou Bernard. – O inimigo está por todos os lados!

Maravilha.

Momentos depois, as botas de Jordan bateram no chão de pedra. Ele acendeu a lanterna afixada a sua submetralhadora. Por todos os lados, formas escuras convergiam para ele, fervilhando da escuridão.

À direita, ele avistou Bathory – seguida por seu imenso lobogrifo. O par deu a volta numa curva e desapareceu em um túnel negro.

– Por aqui! – Jordan gritou e apontou.

Rhun e o cardeal entraram em formação, com Bernard na dianteira. Jordan se posicionou do lado esquerdo, empurrando Erin entre ele e Rhun. Não era grande coisa, mas era o lugar mais seguro para ela. Ela ergueu a pistola e disparou duas vezes para a escuridão.

Jordan se virou e abriu fogo com a submetralhadora.

Sangue escuro respingou nas paredes ásperas de pedra.

Adiante, o cardeal lutava em combate corpo a corpo com três strigoi, demonstrando sua agilidade.

Mas naquele passo eles nunca chegariam ao túnel.

Então uma voz falou em seu ouvido, aparentemente saída do ar:

– Eu trouxe reforços.

Ele se virou e descobriu o irmão Leopold de óculos e cara de querubim junto ao seu ombro. Atrás de seu corpo pequenino, um grupo de monges sanguinistas – vinte no total – caiu como chuva do baldaquino e aterrissou em um círculo ao redor do grupo de Jordan, já lutando antes que seus pés tocassem o chão.

Leopold se juntou a Jordan, empurrando os óculos para trás no nariz, parecendo mais um irmãozinho caçula que um guerreiro imortal de Cristo.

Como que mirando em um alvo mais fraco, um strigoi atacou saindo da escuridão atrás do pesquisador baixinho; o brilho da espada foi o único aviso.

Jordan reagiu com pura memória muscular. Levantou a submetralhadora e acertou a lâmina, desviando-a do pescoço de Leopold. A ponta ainda riscou uma linha sangrenta nos ombros do jovem Sanguinista.

Os olhos do pesquisador se arregalaram.

Furioso, o strigoi se virou para Jordan. Era um homem enorme, de pele escura com tatuagens claras, com brincos no nariz e nas orelhas. Jordan se lembrava de ter visto o sujeito na Alemanha, ao lado de Bathory. Imaginava que ele fosse uma espécie de tenente dos Belial – o que significava que ele deveria ter ajudado a orquestrar o ataque aos homens de Jordan em Massada.

– Fique atrás, Leopold – advertiu Jordan, pronto para acertar as contas com aquele canalha, que apenas continuava sorrindo.

O jovem monge arregalou os olhos ao direcioná-los fixamente para Jordan – ou melhor, para atrás de Jordan.

No reflexo dos óculos de Leopold, Jordan avistou um movimento.

Ele girou, revelando sua faca Bowie americana entre os dedos.

Uma versão magra, esquelética do tenente enorme o atacou, as mandíbulas impossivelmente amplas viradas para sua garganta.

Jordan continuou seu giro e enterrou a lâmina banhada em prata entre aqueles maxilares, enfiando-a até o cabo.

Mastigue isso.

A criatura gritou, saltando no ar como um boneco de caixa de surpresas, arrancando a faca dos dedos de Jordan. Enquanto ele voava alto, fumaça e sangue fervilhante eclodiram de sua boca e da parte de trás do crânio.

O corpo caiu e bateu na pedra, já morto.

Um grito de fúria explodiu atrás dele:

– Rafik!

Olhos ferais, carregados de dor, cravaram-se em Jordan.

– Dói, não é? – rosnou Jordan. – Perder alguém que você ama.

O strigoi se arremessou em cima de Jordan, voando no ar, sua capa se abrindo larga, como um icarops do tamanho de um homem.

Jordan se abaixou sobre um joelho, inclinou a submetralhadora para cima e disparou uma carga automática, estraçalhando o peito do monstro com prata pura.

– Isto é pelos meus homens.

O tenente dos strigoi quicou na pedra, seu corpo fumegante. Mas ainda estava vivo, em agonia, arrastando-se em direção a Rafik.

Leopold recolheu a espada abandonada do monstro, a mesma arma que quase o matara. Ele avançou para o strigoi rastejante.

A criatura tinha quase alcançado sua meta, estendendo um braço ensanguentado, os dedos se movendo para alcançar o outro chamado Rafik, para tocá-lo uma última vez.

Impiedosamente, Leopold baixou a espada num lampejo rápido.

A cabeça do strigoi voou arrancada do corpo, e o braço estendido caiu frouxo no chão.

Os dedos caíram, sem nunca alcançar o outro, os dois permanecendo para sempre separados.

Leopold se virou e olhou ao redor para a caverna e, muito confuso, franziu o cenho.

– Para onde foram todos os outros?

Jordan girou, procurando o ponto onde Erin estivera meio minuto antes.

Ela havia sumido.

E Rhun com ela.


60

28 de outubro, 17:34, horário da Europa Central

Necrópole abaixo da Basílica de São Pedro, Itália

Erin se torceu para o lado enquanto a espada de um strigoi golpeava em sua direção.

Então surgiu Rhun. Ele deu-lhe um puxão, quase fazendo-a cair, e a arrastou atrás de si. Com um rápido passo adiante, ele golpeou com sua espada cortando a garganta de um strigoi, derrubando-o como uma árvore.

Ela olhou ao redor, dando-se conta de que estavam momentaneamente sozinhos no túnel por onde Bathory fugira. Ela olhou para trás. Na necrópole principal, Sanguinistas desciam escorregando pelas colunas para se juntar à batalha subterrânea.

– Volte para junto de Jordan quando for seguro – disse Rhun, em tom feroz, que não permitia discussão enquanto indicava a luta com um meneio de cabeça. – Hei de passar a frente de Bathory.

Com um rodopio da batina, ele desapareceu pelo túnel escuro.

Sem escolha, Erin encarou o campo de batalha, ouviu os gritos, sentiu o cheiro de sangue. Em meio à carnificina, ela procurou até encontrar Jordan. Ele estava de costas para um dos plintos de metal, disparando para outro túnel de onde jorrava um fluxo de strigoi.

Era um caos, uma cena infernal de pintura de Bosch trazida à vida.

Ela nunca conseguiria passar por aquele funil. Se os strigoi não a acertassem, fogo amigo acertaria. Ela se virou de volta para o túnel que Rhun tomara. Parecia a escolha mais segura.

Erin manteve a luz de sua lanterna baixa e virada para a esquerda, passando a mão direita ao longo da parede do túnel, procurando um túnel lateral. Se chegasse a uma encruzilhada e não soubesse para que direção Rhun tinha ido, teria de voltar. Tiros ecoaram à frente, vindos de um lugar onde uma luz cinzenta fluía ao redor de uma curva no túnel.

Ela correu adiante – então um rosnado gutural fluiu em sua direção, tornando seus passos mais lentos e cautelosos.

Ela ergueu a Colt de Jordan, carregado com munição de prata. Avançou mais cautelosamente até chegar à curva. Passo a passo, foi dando a volta.

O craque do disparo de uma pistola a fez saltar.

Pouco mais adiante no túnel, ela viu Rhun saltar com uma velocidade sobre-humana, passando sobre a forma enorme de um lobogrifo, a arma fumegando. Aterrissando além do animal, ele avançou pelo túnel, afastando-se do lobo, pronto para continuar a perseguir Bathory, que não estava em nenhum lugar que se pudesse ver – mas então parou de repente, derrapando, virando-se enquanto o fazia com a elegância de um bailarino.

Por cima da massa do lobo, os olhos dele a encontraram. Sem dúvida ele ouvira seus batimentos cardíacos ou observara a mudança nas sombras quando ela chegou com a lanterna.

Ele não foi o único.

O lobogrifo se virou, encarando-a, os dentes arreganhados, os músculos tensos, pronto para saltar.

– Erin, corra!

As orelhas do animal se moveram na direção de Rhun, mas ele não desviou o olhar de Erin.

Rhun voltou correndo, a pistola em punho, disparando contra os quartos traseiros do monstro.

Aquilo chamou sua atenção.

Com um uivo ensurdecedor, ele se virou e, com um impulso das patas traseiras, saltou em cima de Rhun. Erin perdeu Rhun de vista, bloqueado pelo corpo do lobo.

Mais tiros foram disparados.

Ela apontou a Colt, mas não disparou, temerosa de acertar Rhun com as balas de prata.

Então o lobo sacudiu o pescoço grosso – com Rhun preso entre as mandíbulas. O monstro enorme o sacudiu como se ele fosse um boneco de trapos. Sangue salpicou as paredes do túnel. Rhun perdeu a pistola e lutou para pegar uma faca.

Sabendo que precisava ajudar, Erin disparou contra o lobo, acertando-lhe o ombro. O bicho se contraiu, mas não deu nenhum outro sinal de ter sido atingido. Ela disparou várias vezes, na esperança de que a carga cumulativa de prata pudesse afetá-lo. Tufos de pelos voaram, mas o animal continuou a ignorá-la e bateu com Rhun no chão, com as mandíbulas ao redor de seu pescoço.

Rhun não se moveu.

Erin começou a correr para a frente – quando ouviu um assovio estridente vindo de mais abaixo no túnel.

Bathory.

O lobo largou Rhun, sacudiu o sangue do focinho, saltou e cruzou o corredor escuro.

Guardando a pistola inútil, Erin avançou correndo e caiu de joelhos ao alcançá-lo. Sua calça jeans se ensopou de sangue, mas era dela.

Ela virou a lanterna para Rhun, que sangrava dos dois lados da garganta. Ao tentar falar, ele borbulhou mais sangue pelos lábios.

Ela apertou ambas as mãos contra o ferimento. Sangue frio cobriu-lhe as palmas e escorreu por entre os dedos.

Ele tossiu para limpar a garganta e ordenou:

– Volte.

– Quando você parar de sangrar.

Os ferimentos eram tão profundos que ela nem conseguia imaginar como o sangramento cessaria. Mas lembrou-se de como ele havia controlado a hemorragia na residência do cardeal em Jerusalém.

Ele fechou os olhos, e o sangramento no pescoço se reduziu, até se transformar em um fino rastro.

– Bom, Rhun, bom. – Ela apalpou em busca do frasco que ele trazia preso à coxa.

– Não basta...

O frasco escorregou em suas mãos sujas de sangue e caiu no chão. Ela o pegou, limpou a mão na calça e torceu a tampa. Foram necessárias três tentativas para abri-lo. Será que deveria derramar sobre os ferimentos? Fazer com que ele bebesse? Ela se lembrou de que Nadia havia posto vinho em seus ferimentos.

Seguindo o exemplo, Erin molhou as feridas.

Rhun gemeu e pareceu desmaiar.

Ela sacudiu o ombro dele para mantê-lo consciente.

– Diga-me o que fazer, Rhun!

Ele abriu os olhos lentamente, mas seu olhar passou por ela, fixando-se no teto; por fim, revirou os olhos.

Na Rússia, Rasputin tinha misturado sangue humano com o vinho. Aquela mistura parecera curar Rhun melhor do que o vinho consagrado puro.

Erin sabia do que ele precisava.

Não era vinho.

Não agora.

Rhun precisava de sangue humano.

Ela engoliu em seco. Passou a mão pelas feridas perfurantes deixadas pela coleira que Bathory a obrigara a usar.

Olhou para o túnel adiante. Nenhum sinal de Bathory, tampouco do lobo. Erin sabia que nunca conseguiria alcançar a mulher. A maior esperança de recuperar o Evangelho ainda era Rhun. Se Bathory fugisse de Roma com o livro, o mundo mudaria para sempre.

Mas estaria ela pronta para aquilo? Estaria pronta a arriscar tudo, apostando todas as fichas em sua crença de que seu sangue fosse curar Rhun? Todo o seu raciocínio científico mostrava-se refratário àquela ideia.

Depois de fugir do complexo onde moravam seus pais, recusara-se a sucumbir à superstição, não encontrando nenhum valor apenas na fé. Ela sabia muito bem o que aconteceu quando os pais abdicaram da lógica. Entregaram o destino daquele bebê, sua irmã, Emma, às mãos de um Deus indiferente – e Emma acabou morrendo por causa daquelas crenças cegas.

Mas ao longo dos últimos dias, Erin tinha visto coisas extraordinárias. Não podia descartá-las; não podia explicá-las com lógica e ciência. Mas será que estava pronta a confiar sua vida a um milagre?

Ela olhou para Rhun.

Que escolha tinha?

Ainda que conseguisse, depois de muita luta, reunir-se a Bernard e avisar os outros Sanguinistas, quando retornasse com eles até aquele ponto, Bathory já teria partido há muito tempo.

Bathory não podia fugir com o livro. Os riscos para o mundo eram grandes demais para que Erin não tentasse qualquer coisa – até o poder da fé.

Ela se debruçou sobre Rhun, oferecendo o pescoço para sua boca fria.

Ele não se moveu.

Levou as mãos à garganta e, com as unhas, arrancou as cascas dos ferimentos. O sangue começou a correr. Mais uma vez ela encostou a garganta sangrando nos lábios dele.

Ele rosnou e virou a cabeça, recusando-se a beber.

– Mas você precisa.

A voz dele veio num sussurro doloroso:

– Depois que eu começar, não sei se conseguirei...

Ela concluiu a frase: depois que começasse, ele não sabia se conseguiria parar.

A dúvida e a probabilidade eram elementos de grande importância ali.

Se eu não tentar, os Belial já terão vencido.

Ela inclinou a cabeça, baixou a garganta até a boca de Rhun.

O sangue pingou nos lábios dele.

Ele gemeu bem no fundo da garganta, mas desta vez não virou a cabeça.

O coração de Erin disparou. Ela ainda tinha o suficiente de um animal para querer fugir – mas no fim não era um animal. Permaneceu firme, pensando em Daniel entrando na cova dos leões.

Eu consigo fazer isso.

Desviando o olhar, obrigou-se a encarar Rhun. Seus olhos brilharam, tomando vida, como se aquelas poucas gotas de sangue o tivessem revigorado.

Ele passou a língua sobre os lábios e engoliu. Então a segurou pelos ombros e delicadamente a puxou para baixo.

Ela se tensionou, sabendo que ainda poderia detê-lo no estado de fraqueza em que se encontrava. O corpo dela continuava clamando pela fuga. Ela, no entanto, não fugiu; respirou fundo e cedeu à fé.

Rhun se moveu, deitando-a no chão de pedra a seu lado enquanto se levantava apoiado em um cotovelo, uma pergunta brilhando em seus olhos escuros.

Ela tremeu até os ossos.

– Erin. – Ele se demorou no fim de seu nome. – Não. Nem mesmo a este preço.

Ela argumentou:

– Não consigo alcançar Bathory e o lobogrifo. Só você pode salvar o Evangelho.

Erin leu a derrota nos olhos dele, soube que não poderia discutir com a lógica de seu argumento.

– Mas...

– Eu sei das consequências – disse ela, repetindo as mesmas palavras que tinha dito antes de descer para a fissura em Massada. Aquelas eram as consequências. – Você tem que fazer isso.

Os lábios dele baixaram em direção a ela, seu rosto suavizado pela ternura. Ela ficou maravilhada com a expressão dele.

Mesmo assim, ele parou.

– Não... você não...

– Está de acordo com seus votos. – Ela cerrou as mãos em punhos. Pensou em todas as vidas que seriam destruídas se um deles se recusasse a fazer aquele ato de dever.

– O livro é mais importante que as regras.

– Eu compreendo... se você fosse outra pessoa, talvez. Mas. – Ele apertou a mão sobre o ombro dela. – Não posso me alimentar de você.

Ela o encarou, vendo o que estava escondido atrás daquele colarinho, atrás das presas escondidas – um homem.

Ele afastou as mechas de cabelo do rosto dela, os dedos frios, mas muito delicados, a mão em concha segurando-lhe a face.

Ela não tinha palavras para convencê-lo a violar seus votos de padre.

Não tinha ações que pudessem despertar sua fome de sangue como Sanguinista.

Restava-lhe apenas uma opção.

Tratá-lo como homem.

E agir como mulher.

Ela levantou a cabeça da pedra, os olhos fixos nos de Rhun. Viu o lampejar súbito de medo em suas profundezas. Ele estava tão apavorado quanto ela, talvez até mais. Ela correu os dedos pelo cabelo espesso dele, puxou-lhe a boca para a sua. Rhun fechou os olhos, e ela o beijou. Ao tocar-lhe os lábios frios, Erin sentiu o gosto de sangue.

À medida que ela o puxava para si, sentiu o que restava da resistência dele ceder – a dureza nos lábios amolecer e permitir que ela chegasse mais perto. Ambos abriram a boca, tão naturalmente quanto uma flor se abrindo ao amanhecer.

Ele se moveu mais para cima de Erin, acomodando o peso sobre ela.

Era para ele estar com frio, mas o calor de Erin era suficiente para aquecer ambos.

A língua dela encontrou a dele, encorajando-o. Ele gemeu, com os lábios colados aos dela – ou talvez o gemido tenha sido de Erin. Ao penetrar-lhe a boca, ela sentiu o empurrão lento da ponta afiada, como um portão fechando-se contra ela, mas se manteve firme. Ela esticou a língua, e foi perfurada tão docemente por uma ponta afiada como a de um espinho.

O sangue de Erin esguichou, de forma que ambos ficaram com a boca inundada.

Mas, em vez de sentir o gosto de ferro e medo, os sentidos dela explodiram com a essência de sua vida, uma doçura e um calor ardente que varreram para longe todo o medo.

Ela quase conseguiu saborear a própria divindade – e quis mais.

Ela o puxou mais para si.

Ele se agarrou nela, com a promessa de ferro frio e êxtase.

A intensidade da sensação a deixou atordoada. O corpo dela não conseguia contê-la, arqueando-se sob ele, com o prazer da vida circulando entre os dois, rápida e com o ritmo do coração de Erin.

Ele afastou os lábios, mantendo-os próximos, mas sem tocá-la. Mesmo essa ligeira distância a deixou sentindo um vazio doloroso. Ele gemeu como se o sentisse. A respiração dele sussurrou sobre os lábios dela.

Ele a encarou, seus olhos maiores e mais escuros do que ela jamais os tinha visto, oferecendo vislumbres do que existia além do túmulo.

Em vez de sentir medo, ela incandesceu contra aquela escuridão com o ardor de sua própria luz, com o calor de seu corpo.

Arqueou o pescoço, ofereceu-lhe a garganta, desafiando-o a beber daquela fonte ardente – desejando-o com cada fibra de seu ser.

Ele aceitou.

Um espetar de presas, testando – então mergulhando fundo.

O calor fluiu para fora do corpo dela, aquecendo aqueles lábios frios em sua garganta.

Ela se contorceu debaixo dele, abrindo-se ao prazer. Uma escuridão se fechou ao redor das bordas de sua visão. A cada pulsação, ele a engolia levando-a para dentro de seu corpo.

O êxtase enchia aqueles espaços vazios entre os batimentos cardíacos dela. De maneira despedaçantemente rápida num primeiro momento à medida que o corpo dela se entregava à sensação pura. Então o tempo se tornou mais lento, e o prazer se expandiu e cresceu intensificando-se. Ela esperou que seu coração parasse de modo que pudesse residir naquela sensação para sempre. Mais nada importava.

Apenas êxtase.

Então, lentamente, uma luz suave a cercou, a envolveu – junto com um amor diferente de qualquer outro que ela conhecia. Ali estava o amor que ela desejara de sua mãe, de seu pai, de uma irmã caçula que nunca tivera a chance de crescer.

Em algum lugar muito longe, Erin soube que estava morrendo – e se sentiu muito grata por isso.

Respirou naquela luz, como se estivesse respirando pela primeira vez.

Então ela os viu.

Sua mãe estava no túnel de luz, acompanhada de uma garotinha. Emma. Ela estava com a manta de bebê pendurada no braço, com a ponta de frente para Erin. Seu pai estava entre as duas, com sua velha camisa de flanela vermelha e seu jeans, como se tivesse acabado de voltar do estábulo. Ele levantou o braço e gesticulou para que ela fosse se juntar a eles. Pela primeira vez em muitos anos, ela não sentiu nenhuma raiva ao vê-lo, só amor.

Ela estendeu os braços na direção deles. O pai sorriu, e ela sorriu de volta. Ela o perdoou – e perdoou a si mesma.

Ele se arestara pela fé e Erin, pela lógica.

Naquele momento, ambos haviam superado tudo.

Então aquela luz inocente diminuiu.

E uma escuridão fria entrou rapidamente. Ela abriu os olhos. Rhun tinha se afastado dela. Saiu rolando e se apoiou contra a parede, tremendo. Passou a mão na boca, limpando o sangue.

O sangue dela.

As pálpebras de Erin se fecharam, sentindo uma pontada de rejeição.

– Erin? – As pontas dos dedos gelados tocaram em sua face.

Ela tremeu de frio e de solidão, consumida pela dor de tudo que havia perdido.

– Erin. – Rhun a levantou e a pôs no colo, embalando-a, as mãos acariciando-lhe o cabelo, descendo por suas costas.

Ela se forçou a abrir os olhos, a olhar nos olhos dele, a dizer o impossível:

– Vá.

Ele a abraçou tão apertado que doeu.

– Vá – insistiu ela.

– Você vai ficar bem?

Ele ouviu os batimentos cardíacos de Erin. Sabia que ela não ficaria bem.

– Não desperdice o meu sangue, Rhun. Não permita que isto tenha sido em vão.

– Sinto muito – disse ele. – Não consegui...

– Você está perdoado – disse ela. – Agora vá.

Ele tirou a cruz peitoral e a colocou sobre o peito dela. Erin sentiu o peso da cruz sobre o coração. Estava quente.

– Que Deus a proteja – sussurrou ele. – Como eu não pude protegê-la.

Ele a baixou para o chão imundo de pedra, a cobriu com a batina e então a deixou.


61

28 de outubro, 17:44, horário da Europa Central

Necrópole abaixo da Basílica de São Pedro, Itália

Retomando a caçada, Rhun correu.

O sangue de Erin pulsava quente e forte em suas veias, a vida dela cantava dentro dele. Nunca tinha sentido tamanha descarga de forças em seus membros. Ele poderia correr para sempre. Poderia derrotar qualquer inimigo.

Os sapatos dele deslizavam sobre o piso de pedra, parecendo não precisar nem tocá-lo. Depressa e ainda mais depressa. O ar acariciava-lhe o rosto, gavinhas de ar roçavam através de seu cabelo.

Mesmo em seu êxtase, Rhun lastimava por Erin. Ela dera tudo pelo Evangelho. E por ele. Seu saber, sua compaixão – jaziam moribundos às suas costas. Deveria ter sido a escuridão dele morrendo naquele chão, não a luz dela.

Ele não desperdiçaria o sacrifício dela.

O luto viria depois.

O odor almiscarado do lobogrifo cobria a trilha diante dele. Naquele cheiro, ele lia cada pegada das patas, cheirava cada gota de sangue, apesar do fato de que à medida que a criatura se autocurava, as gotas se tornavam menores.

Ele nunca lhe escaparia.

Ele os encontraria. Recuperaria o livro. Honraria o sacrifício de Erin.

Ela não seria esquecida, não por um único dos infinitos dias que ele tinha pela frente.

17:55

Jordan correu pelo túnel, procurando Erin.

Leopold se manteve próximo, logo atrás.

Os dois tinham aberto caminho lutando em meio à primeira onda de strigoi de modo a poder vir para aquele túnel. Jordan esperava que Erin e Rhun tivessem alcançado Bathory e recuperado o livro.

Depois de todo aquele derramamento de sangue e horror, ele queria apenas voltar para casa.

E quando pensava em casa – pensava no rosto de Erin.

– Lá! – gritou Leopold, apontando para mais adiante, avistando com seus olhos mais aguçados um corpo caído junto à parede lateral do túnel.

Não permita que seja Erin! Não permita que seja Erin.

Jordan correu, desta vez ultrapassando o Sanguinista. Manteve a lanterna apontada, varrendo com seu foco a pessoa imóvel.

Ah, não...

Com o coração disparado latejando nos ouvidos, ele caiu junto dela, estendendo a mão imediatamente para sua garganta, para tomar-lhe o pulso. A pele estava fria, mas havia uma pulsação fraca no pescoço.

– Ela está viva – disse a Leopold.

– Mas por um fio.

O jovem monge se ajoelhou e abriu o casaco de lobogrifo de Erin. Sangue manchava-lhe a camisa branca, descendo até a cintura. Leopold tirou um frasco de bálsamo de seu hábito. Enquanto abria o recipiente, Jordan reparou que tinha o mesmo fedor que o unguento que Nadia havia usado em suas feridas de mordida.

Mas será que seria suficiente?

Leopold entoou uma prece em latim enquanto espalhava o remédio sobre a ferida de Erin.

Jordan observou, prendendo a respiração, tremendo dos pés à cabeça.

Segundos depois, o sangramento diminuiu, depois parou.

Mesmo assim, Erin continuou inconsciente no chão, branca como um fantasma contra a pedra escura.

Leopold examinou-lhe os braços e pernas, provavelmente à procura de mais mordidas.

– Foi só no pescoço.

Jordan tirou o casaco e o abriu sobre o corpo dela para aquecê-la. Ele esfregou suas mãos frias.

– Erin?

As pálpebras dela estremeceram, como se estivesse sonhando – então lentamente se abriram.

– Jordan?

– Estou aqui. – Ele acariciou-lhe a face gelada. – Você vai ficar bem.

Os lábios dela se curvaram ligeiramente.

– Mentiroso.

– Eu nunca minto – retrucou. – Sou escoteiro Águia, lembra?

Mas ele estava mentindo. Ela não iria ficar bem.

Leopold estendeu a mão para Jordan e tocou uma mordida em seu braço de onde o sangue escorria; a mordida era de um dos lacaios de Rasputin e o ferimento tinha se aberto de novo durante a luta na basílica.

– Qual é o seu tipo de sangue?

– O negativo. Sou doador universal. – O coração de Jordan deu um salto e ele se virou para o monge. – Você pode fazer uma transfusão direta de mim para ela?

Leopold tirou do bolso seu estojo de primeiros socorros, balbuciando instruções. Ele moveu as mãos com uma rapidez impossível, desmontando uma seringa, encaixando-a em um tubo e pondo um segundo tubo na outra ponta.

Enquanto o jovem monge trabalhava, Jordan afastou as mechas de cabelo do rosto de Erin. Suas mãos se demoraram em sua testa, em suas faces.

– Aguente firme.

Não sabia dizer se ela o ouvira ou não. O que a havia atacado? E onde estava Rhun? Ele olhou para mais além no túnel, esperando ver o corpo do padre. Mas o túnel estava vazio. Será que Rhun tinha sido levado?

Leopold abriu um envelope de compressas de algodão com álcool e passou uma no braço de Erin, então usou outra para o de Jordan.

– Preciso que você fique calado, Jordan. – O tom de Leopold era prático. – Preciso ouvir os batimentos cardíacos de vocês dois para ver quanto sangue deve passar de um para o outro. Não quero matar você no processo.

– Apenas salve-a. – Jordan se apoiou contra a parede de pedra, observando o rosto pálido de Erin.

Leopold enfiou uma agulha no braço dela, então outra no de Jordan. Ele mal a sentiu.

O tempo passou, interminável, no escuro.

De um lado, Leopold prendeu uma bandagem no pescoço de Erin.

– Tivemos sorte. É apenas um ferimento simples. Strigoi geralmente não são tão cuidadosos quando se alimentam.

Jordan estremeceu ao imaginar um daqueles monstros no pescoço de Erin.

Eu deveria tê-la protegido melhor.

Depois de vários minutos, Leopold tirou a agulha do braço de Jordan e pressionou uma bola de algodão sobre o buraco.

– Isto é tudo que você pode dar.

– Posso dar o que ela precisar. – Ele se empertigou. – Faça isto direito.

A luz refletiu nos óculos redondos de Leopold enquanto ele sacudia a cabeça.

– Não vai poder me obrigar, sargento.

Antes que Jordan pudesse pensar em um argumento melhor, Erin abriu os olhos; estava sonolenta, mas ainda assim parecia mais forte do que estivera alguns minutos antes.

– Oi.

Jordan se encostou ao lado dela na parede e sorriu.

– Bem-vinda de volta.

– O pulso dela está forte – disse Leopold. – Com um pouquinho de descanso, ela deve ficar bem.

Jordan fez uma pergunta, já sabendo a resposta.

– Quem fez isto?

Erin fechou os olhos, recusando-se a falar.

Jordan levantou a mão, revelando o que havia encontrado enquanto Leopold rasgava o casaco dela. Ele mostrou a ela a cruz peitoral.

– Rhun?

Leopold se encolheu, horrorizado.

– Erin? – Jordan tentou controlar a raiva de modo que ela não ouvisse. – Rhun fez isso com você?

– Foi preciso. – As mãos dela tocaram na bandagem em seu pescoço. – Jordan, eu implorei a ele que fizesse.

Ele mal ouviu as palavras dela enquanto a fúria o engolfava.

O canalha havia sugado quase todo o sangue de Erin e a deixara sozinha para morrer.

Ela lutou para se sentar, para explicar.

Jordan a tomou nos braços e a apertou contra o peito. Ele a abraçou. Ela ainda estava muito fria, mas tinha recuperado um pouco da cor.

– Tivemos que fazer isso, Jordan, para curá-lo, de modo que pudesse impedir Bathory de fugir com o Evangelho. Rhun quase morreu.

Jordan a puxou mais para junto de si, enquanto ela encostava a cabeça em seu ombro.

Leopold reajustou o casaco sobre ambos, então lhes deu as costas. Agachado ao lado deles, balançou a cabeça de um lado do túnel para outro.

Jordan apoiou o queixo no alto da cabeça de Erin. Cheirava a sangue. Debaixo do casaco, ela se enroscou para se aninhar melhor contra o peito dele. Ele respirou fundo e exalou.

Leopold se levantou – um pouco depressa demais.

– O que há de errado? – perguntou Jordan.

Leopold o encarou.

– Mais strigoi estão vindo. Ainda não acabou.

18:24

Erin se contraiu de dor quando Leopold a puxou de pé. Com o outro braço, ele levantou Jordan como se este não pesasse mais que uma boneca. Jordan cambaleou um passo e se equilibrou. Estava mais fraco do que admitia. A transfusão o deixara abalado.

Jordan puxou o braço de Erin sobre o ombro e enganchou seu outro braço ao redor de sua cintura. Ela queria argumentar que era capaz de andar sozinha, mas desconfiava que não fosse conseguir mais que alguns passos. Aquela não era hora para falso orgulho.

– Sigam adiante! – Leopold os empurrou para a frente, os olhos fixos no túnel atrás.

Ela se esforçou para se manter de pé. Ela e Jordan deram o melhor de si para correr, mas mesmo para padrões humanos estavam lentos.

Leopold guardava-lhes a retaguarda, de espada em punho.

Os ecos de rosnados se tornaram mais altos atrás deles.

– Há uma curva ali adiante – disse Jordan. – Podemos enfrentá-los lá.

Leopold os empurrou para a frente – e acenou para que prosseguissem.

– Eu fico. Vocês continuam.

– Não. – Jordan se deteve.

– Vocês são o trio da profecia – disse Leopold com simplicidade. – Meu dever é servir vocês. Encontrem Rhun. Recuperem o livro. Este é o dever de vocês.

Jordan cerrou os maxilares, mas não disse nada.

– Vão com Deus. – Leopold se deteve na curva do túnel, a espada de prata rebrilhando enquanto ele se virava para enfrentar o inimigo.

Sem alternativa, Erin fugiu com Jordan, perseguida pela culpa de deixar Leopold. Mas quantos outros já haviam dado a vida para que eles prosseguissem? Eles tinham de respeitar aquela dívida de sangue ao não desistir.

Gritos selvagens se elevaram atrás dela, acompanhados pelo clangor de aço.

Ali o jovem pesquisador enfrentava sozinho os bárbaros strigoi – mas por quanto tempo conseguiria mantê-los a distância?

Erin se concentrou em mover cada perna pesada, recusando-se a desistir. A lanterna de Jordan subia e descia enquanto eles andavam, iluminando a pedra lisa do chão, os blocos enormes no fundo do túnel, o arco de pedra áspera que se curvava acima deles.

Ela perdeu a noção do tempo e da distância. Seu mundo se reduziu ao próximo passo.

Ao longe, adiante, uma luz surgiu, brilhando fraca.

Jordan a puxou para a frente, arrastando-a na direção da luz.

A luz se tornou mais clara.

A fonte apareceu quando eles dobraram uma curva. Vinha de uma lanterna afixada ao cano de uma pistola. Em silhueta contra a luz estava o corpo esguio de Bathory, os cabelos ruivos soltos ao redor de seus ombros, de costas para eles.

Apontava a pistola para Rhun.

Alguns metros mais adiante, Rhun lutava com o lobogrifo – imobilizado sob seu peso.

O animal rosnava no rosto dele, cuspindo baba, pronto para estraçalhar-lhe a garganta. Só que desta vez Rhun tinha forças para contê-lo, a luta estava equilibrada. Mas o padre precisava de toda a sua força renovada para fazê-lo.

Fascinada pela luta, Bathory não percebeu a súbita chegada de Jordan e Erin. Foi andando para o par em combate com a pistola em punho, pretendendo pôr fim ao impasse entre o padre e o lobo com uma descarga de prata.

Tremendo de fraqueza, Erin cutucou Jordan com uma ordem silenciosa.

Ajude-o!

O rosto de Jordan permaneceu duro. Ele ficou parado rígido, e não moveu a mão para pegar a arma.

Já basta.

Erin se enfiou atrás dele e arrancou-lhe a pistola Colt. Anteriormente, ela havia disparado quase um pente inteiro contra o lobogrifo. As balas mal o tinham feito se mover. Ela não podia matá-lo com uma pistola.

Mas tinha de fazer alguma coisa.

Ainda de costas para ele, Bathory se aproximou do lobo, apontando a pistola para o rosto de Rhun.

– Agora você vai libertar nós dois.

Erin reparou na bandagem no braço de Bathory. Ela brilhava esbranquiçada na penumbra.

Aquela visão a fez se recordar da cena no circo de Nero. Lembrou-se do ferimento de Bathory se reabrir, e de como ela havia afastado o lobo de si em pânico, e como Mihir havia se mantido distante do sangue que gotejava. Erin nunca tinha visto um strigoi reagir daquela maneira a sangue. Mihir tivera medo até de pisar numa única gota. Então ela se lembrou do sangue de Mihir fumegando quando tocara naquela gota carmim-prateada no chão da cela.

Erin se afastou de Jordan, pondo Bathory entre ela e o lobo, calculando os ângulos. Manteve a pistola firme diante de si, segurando-a com as duas mãos; ajustou a mira e respirou fundo.

Ao exalar, seu dedo esquerdo apertou o gatilho.

O tiro explodiu alto.

Bathory deu um solavanco para a frente, e o lobogrifo ganiu em agonia.

Jordan se virou com surpresa, mas Erin estava de olhos cravados em Bathory e fez mira para um segundo tiro.

O lobogrifo saltou afastando seu corpo do de Rhun e correu em um círculo, enfiando o focinho no ombro. A bala atravessara o corpo de Bathory antes de acertar o lobo, levando consigo o sangue dela. A pelagem do lobo ondulou, fumaça subindo do ferimento a bala.

O sangue de Bathory era tóxico para os strigoi – e os blasphemare criados por eles.

Bathory girou para encarar Jordan e Erin. Sangue escorria de sua camisa, na parte de baixo, acima do quadril direito. Ela cravou os olhos nos inimigos. Levantou os lábios com desdém. Ergueu a arma na direção deles.

Mantendo-se firme, Erin apertou o gatilho mais três vezes.

A série de tiros acertou Bathory no peito – e dali penetrou no flanco do lobogrifo.

Bathory caiu para trás, esbarrando na parede, a mancha vermelha se abrindo em seu peito. Ela deslizou para o chão, os olhos prateados arregalados de surpresa. Sua arma caiu no chão, ao lado de seu braço frouxo.

O lobogrifo tombou com um grande tremor. Sangue fumegava de seu corpo e borbulhava de sua boca. Agora, sem conseguir se levantar, ele se arrastou sobre a barriga, ganindo, deixando para trás um rastro escuro de sangue.

O lobo alcançou Bathory e deixou a cabeça cair sobre o colo dela. Ela ergueu os braços e abraçou a cabeça dele.

Mais adiante, Rhun lutou para se levantar e recolheu a arma de Bathory.

Pondo-se de pé, ele se virou para Erin. Quando a viu, estampou um sorriso cansado, aliviado por vê-la – e talvez algo mais. De qualquer maneira, era o primeiro sorriso genuíno e honesto que ela já o vira dar.

Ele pareceu jovem, vulnerável e muito humano.

Ela cambaleou em direção a ele, mas Jordan a puxou para trás.

– Basta, já está perto o suficiente.

A arma dele estava apontada para Rhun.

O sorriso desapareceu do rosto de Rhun.

E o mundo ficou mais triste por causa disso.


62

28 de outubro, 18:54, horário da Europa Central

Necrópole abaixo da Basílica de São Pedro, Itália

Magor...

Bathory embalou a cabeça enorme do lobo em seu colo. Sentiu a agonia do animal, ouviu seu gemido, envenenado pelo sangue dela. Mais carmim-prateado fluiu de seu peito, empoçando em seu colo, onde ele estava deitado, fervendo-lhe a pele, queimando-o em agonia.

Por favor, vá embora... não morra assim...

Tentou afastá-lo, mas ele se chegou mais para junto daquela dor para poder estar com ela.

Fraca demais para lutar com ele, ela se inclinou sobre ele, enquanto ele virava um olho para ela. Bathory cantou uma última cantiga de ninar. Não tinha letra. Ela não tinha mais fôlego para formar as palavras. A cantiga veio de algum lugar mais profundo que a linguagem, onde sóis de verão ainda brilhavam sobre um garotinho caçando borboletas com uma rede branca em meio à relva alta. A cantiga era riso e amor e o calor simples de um corpo abraçando outro.

O mundo perdeu a luz, reduzindo-se àquele olho sofredor, fitando-a amorosamente. Ela viu aquele brilho carmim dentro dele ir se apagando, tornando-se apenas um dourado suave à medida que a maldição dentro dele morria e Magor se tornava, mais uma vez, apenas lobo... deixando tudo o mais para trás.

A dor também foi se apagando em seu corpo enorme e amoroso enquanto ela caía sobre ele.

A dor fugiu de seu sangue também, deixando apenas paz.

À medida que a escuridão consumia ambos, ela enviou uma última mensagem para seu amigo:

Vamos encontrar Hunor...


63

28 de outubro, 18:57, horário da Europa Central

Necrópole abaixo da Basílica de São Pedro, Itália

Rhun se ajoelhou diante do fantasma de Elisabeta.

Segurou o Evangelho no colo e rezou por sua alma. Incrivelmente, o rosto inanimado de Elisabeta parecia suave e jovem; o fogo do ódio apagou, deixando apenas a pureza e a inocência que tinham sido em parte corrompidas pelo ato dele séculos antes.

Ele olhou fixamente para a palidez de seu pescoço longo.

Uma tatuagem negra outrora maculara sua beleza, a forma estranguladora de uma mão desconhecida. As palavras de Rasputin no Hermitage voltaram-lhe à mente; palavras sobre uma mulher de cada geração da família Bathory que estivera condenada a uma vida de sofrimento e servidão.

Desde a época em que ele profanou Elisabeta.

Mas quem podia fazer uma coisa daquelas? Os Belial? Que interesse tinham eles sobre as descendentes de Elisabeta? Com certeza não poderia ser apenas para torturá-lo. O que ele não estava vendo? Por que perseguir as descendentes de Elisabeta Bathory?

Para quê?

Agora, com aquela mulher morta, ele se deu conta de que provavelmente jamais teria a resposta para essas perguntas, que talvez aquela corrente finalmente tivesse sido partida.

Enquanto se levantava, depois de terminar suas preces, olhou para o livro humilde que havia tirado dela.

Por intermédio de uma criatura cuja vida era maldita, ele havia trazido aquele grande bem para o mundo. Talvez o Evangelho contivesse o segredo para restaurar sua própria alma. Ele temia até mesmo desejar aquilo, ser humano de novo, com um coração batendo e carne cálida para acompanhá-lo.

Erin estava a vários passos à sua direita, esperando, Jordan ao seu lado, com a submetralhadora em punho e pronta para disparar. Depois do que o Sanguinista tinha feito com ela, não podia culpá-lo.

– Não vai abri-lo? – perguntou Erin.

Rhun abriu o livro e o virou para que Erin e Jordan pudessem ver as páginas.

– Já o abri – respondeu ele.

A primeira página continha apenas um único parágrafo, escrito em grego. As páginas restantes continuavam vazias, possivelmente esperando por outros milagres antes que o texto viesse à luz. Mas o que havia ali era bastante assustador.

Os dois se aproximaram, atraídos pela curiosidade que ardia tão intensamente naqueles de vida mais breve.

– Que diabo? – resmungou Jordan. – Tudo isso por um parágrafo? É melhor que seja bom.

Erin olhou fixamente para a página como se pudesse fazer mais palavras aparecerem por meio apenas de sua força de vontade. Ela traduziu o que viu: “Uma grande Guerra nos Céus se aproxima. Para que as forças do bem prevaleçam, uma Arma deve ser forjada com este Evangelho escrito com meu próprio sangue. O trio da profecia deve levar o livro ao Primeiro Anjo para que ele dê a sua bênção. Só assim poderão garantir a salvação para o mundo.”

– Você é padre. – Jordan recuou um passo. – Já que o livro precisa de uma bênção, ande logo e abençoe-o.

– Não sou o Primeiro Anjo. – Rhun passou a mão pela capa lisa de couro, ansiando saber o que mais seria revelado, percebendo que ele conhecia apenas o princípio de uma verdade maior. – O livro deve ser abençoado pelo primeiro, alguém puro de coração e atos. Só então saberemos mais.

– Isto deixa você completamente fora, não é? – perguntou Jordan.

– Jordan!

– Ele está correto. – Detestando se separar do livro, Rhun o entregou a Erin. – Eu não sou puro. Ainda hoje minhas ações demonstraram isso.

– Se não tivéssemos feito o que fizemos, teríamos perdido o livro.

Rhun observou um rubor tingir as faces de Erin e ouviu seu coração bater mais depressa. O que ela teria sentido quando ele se alimentou de seu sangue, a ponto de envergonhar-se só de pensar? Ele se recordou daquela noite, muito tempo atrás, quando se transformou.

– Eu não aprovo o preço que Erin pagou. – Jordan olhou para ele furioso.

– A escolha não era sua. – Erin abraçou o livro e lhe deu as costas. – Era nossa.

Ela caminhou de volta por onde tinham vindo, apoiando uma das mãos na parede para se firmar. Rhun queria pegá-la no colo e carregá-la, mas tocar nela estava fora de questão, pois não confiava em si mesmo.

19:04

Jordan lutou contra a vontade de atirar em Rhun.

Como se soubesse, Rhun estendeu as mãos.

– Ela precisa de nós dois.

O canalha estava certo; ele e Erin precisavam da proteção de Rhun para saírem daquele abatedouro subterrâneo. Jordan não podia protegê-la ali. Rhun podia.

Ele baixou a arma.

– Mas não para sempre.

Rhun assentiu:

– Quando ela estiver segura, siga sua consciência.

Jordan saiu atrás de Erin. Ela tropeçou, deslizando a mão pela parede. Ele puxou o braço dela por cima do ombro e enfiou o seu ao redor de sua cintura.

Ela se retesou, demonstrando raiva.

Por que ela está zangada comigo? Eu não a abandonei à beira da morte.

Ele rangeu os dentes e começou a andar. Ela se apoiou nele, provavelmente porque não tinha escolha.

Rhun passou por eles rapidamente e se colocou numa posição alguns metros à frente. Parecia revigorado, pronto para enfrentar sozinho um bando de strigoi. Se Erin estivesse certa e ele tivesse estado à beira da morte, o sangue dela definitivamente tinha dado a ele uma boa dose de energia.

Jordan estava com a cabeça latejando, os ferimentos doendo, e os braços e pernas exaustos. Naquele festival de transfusões, foi ele quem se deu mal.

Rhun acelerou, e Jordan o perdeu de vista.

Jordan apertou o braço ao redor de Erin e tentou, na medida do possível, seguir Rhun, amaldiçoando-o pela velocidade.

O motivo da pressa de Rhun se tornou claro assim que dobraram uma curva. Rhun estava ajoelhado ao lado de um vulto caído vestido de preto.

O irmão Leopold.

Rhun estendeu o braço e o pôs sentado. Leopold estava com uma aparência terrível, mas ainda vivo.

– O livro? – perguntou Leopold em voz rouca.

– Está seguro – garantiu Rhun.

Depois de ouvir essas palavras, o monge caiu desacordado. Rhun o tomou nos braços e saiu carregando-o e correndo pelo túnel em direção à necrópole.

Ao final do túnel, ele avistou corpos espalhados pelo chão ao redor do baldaquino afundado. Sangue de strigoi e de Sanguinistas corria empoçado no chão, tornando-o traiçoeiro e escorregadio enquanto eles atravessavam a cena da matança. Vários Sanguinistas davam buscas e patrulhavam, mas aparentemente a guerra havia acabado.

Tantos mortos pelo livro que Erin tinha na mão.

Como poderia ele valer tanto?

Jordan respirou fundo e estremeceu. Erin apertou os braços ao redor dele, puxando-o mais para junto dela. O livro em sua mão fazia pressão nas costas de Jordan. Ao abaixar a cabeça para repousar no ombro dela, Jordan roçou a face na bandagem em sua garganta.

Ele nunca perdoaria Rhun por aquilo.


64

29 de outubro, 5:44, horário da Europa Central

O santuário embaixo da Basílica de São Pedro, Itália

Passada boa parte da noite, Erin caminhava entre Jordan e Rhun enquanto eles desciam para os subterrâneos de Roma, muito mais abaixo do que a necrópole onde a batalha tinha sido travada e vencida. Os strigoi restantes foram mortos ou repelidos. Um dos inimigos chegou até a se converter à Ordem, dando início a seu longo caminho para vestir a batina dos Sanguinistas.

Erin continuou a descer a escadaria, carregando o livro. Uma luz suave começara a brilhar de novo de sua capa de couro, iluminando os degraus lisos de pedra. Essa luz se tornou mais intensa à medida que eles desciam mais fundo, como se estivesse sendo atraída em direção a uma fonte de energia. Mas para onde estavam indo? Rhun ainda não havia revelado o destino.

Enquanto prosseguiam descendo cada vez mais fundo, ela se sentiu bem mais forte do que nos últimos dias. Junto com Jordan, Erin passou algumas horas recebendo cuidados, até se recuperar. Foi então que souberam que o papa sobrevivera à cirurgia e que o prognóstico era dos melhores. O ancião era mais forte do que parecia.

Nate também estava passando bem.

Erin comeu, dormiu, tomou um banho e, finalmente, vestiu roupas que não estavam saturadas de sangue. Ao seu lado, Jordan parecia revitalizado. Seria o que restava da graça da luz dourada do livro o que os infundia? A cada passo, a força parecia brotar dentro dela. Calor e luz se espalhavam não só pelo corredor, mas através de seu corpo e, talvez, de sua alma.

Ainda assim ela se lembrou de Bathory, morta, debruçada sobre o lobo. Embora sua morte tivesse sido necessária, Erin não podia deixar de sentir uma pontada de culpa por ter-lhe tirado a vida, devido à percepção de que Bathory era menos uma vilã que um peão. Mas tentou afastar esses pensamentos e se concentrou na tarefa que tinha pela frente.

A luz dourada banhava as paredes de calcário, paredes que tinham sido cortadas na terra com martelos e cinzéis antigos, formando uma ponta arqueada acima, como uma catedral gótica que se estendesse por quilômetros. Aquilo deveria ter levado vidas inteiras para ser construído.

Abaixo, o piso era liso como gelo, gasto no centro pela passagem de muitos pés. Ali havia uma espécie de nova antiguidade, que não era nem a de uma tumba abandonada nem a de uma velha rua que agora dava passagem a carros quando outrora suportara apenas cascos e pés. Naquela catedral subterrânea, os ritmos lentos do ar pareciam imutáveis, mas vivos.

O túnel acabava em uma vasta câmara. O teto arqueado se elevava 15 metros acima deles, recordando Erin da Basílica de São Pedro.

Mas aquele aposento não tinha nada da opulência da igreja acima. Era totalmente desprovido de adornos. Sua beleza vinha da simplicidade de suas linhas, da suavidade das curvas que atraíam os olhos sempre para o alto. Nenhum objeto feito pelo homem buscava distrair nem glorificar.

Archotes acesos ficavam enfiados em argolas de ferro batido presas na pedra. Muito acima, linhas de fuligem riscavam o teto.

Alcovas arredondadas se enfileiravam nas paredes. Cada espaço continha um plinto redondo simples. Na maioria das bases havia estátuas de homens e mulheres, a maioria tão emaciada quanto Piers estivera, mas estes pareciam estar em paz e beatitude, não em angústia.

Erin parou para observar uma. A luz dourada do livro banhou uma bela mulher, com o cabelo solto e longo até a cintura, os olhos fechados, as maçãs do rosto altas, e com um sorriso enigmático e as mãos cruzadas em prece abaixo do queixo. Uma cruz de prata ao redor de seu pescoço refletiu a luz do livro.

Erin nunca tinha visto nada mais bonito. A expressão entalhada naquela face trouxe-lhe a lembrança da mãe, abraçando-a em sua cama, cantando uma cantiga de ninar para embalar-lhe o sono à noite, muito depois de seu pai ter ido dormir.

O livro pulsou contra ela, arrancando-lhe a sensação de perda, recordando-a de que nada nunca estava realmente perdido.

Ao olhar fixamente para a mulher, Erin descobriu que não se tratava de uma estátua; era uma Sanguinista em meditação profunda. Rhun mencionara aquelas pessoas de passagem.

Os Enclausurados.

Ela sorriu e seguiu adiante, penetrando mais profundamente na catedral.

– Deveríamos ficar perto da saída – disse Jordan, sua desconfiança cautelosa evidenciando-se claramente na penumbra.

Ela olhou para ele. Jordan não tinha falado com Rhun desde que encontraram Leopold.

– Quero saber sobre o Primeiro Anjo. – Ela se virou para Rhun. – É por isso que estamos aqui, não é?

Rhun inclinou a cabeça em concordância.

– Viemos ver o mais velho de todos. O único que pode abençoar o livro. O Ressuscitado.

O coração de Erin disparou. Mesmo Jordan parecia abalado.

O Ressuscitado?

Ela vira milagres suficientes ao longo dos últimos dias para não descartar as palavras de Rhun. Erin visualizou o crucifixo que costumava ficar pendurado acima de sua cama no complexo.

Estaria ela prestes a conhecer a pessoa pendurada naquela cruz?

Aquele que se levantou dos mortos três dias depois de ser crucificado?

5:52

Rhun passou os dedos pelas contas do rosário, fazendo suas orações para acalmar a mente. Temia o Ressuscitado, aquele que tornara possível a existência da Ordem, e que ensinara a todos os iguais a Rhun que mesmo os malditos podiam buscar o perdão. Sem ele, Rhun teria se tornado nada mais que um animal corrompido.

Ele avançou para o santuário.

Jordan se sobressaltou quando um vulto em uma das alcovas se moveu, virando o rosto para eles.

– As estátuas estão vivas. Como Piers.

– Não. – Rhun sacudiu a cabeça. – Não como Piers. Não estão presas e sofrendo. Desejaram vir para este santuário.

Os olhos de Erin examinaram a cena.

– Por quê?

– Depois de muitos longos anos de serviço, muitos escolheram se retirar aqui, para passar sua existência eterna em contemplação.

Ele sabia que alguns estavam ali há um milênio, sustentados por nada além de minúsculos goles do vinho sacramental.

Jordan ergueu as sobrancelhas.

Rhun sorriu.

– Eu também quis abandonar o mundo por este lugar.

– Por que não o abandonou? – Jordan não parecia satisfeito por Rhun não ter seguido aquela escolha.

– O cardeal Bernard me convocou para o serviço.

Rhun estava grato por ter atendido aquele chamado. Ele havia descoberto o livro, sim, mas também havia encontrado Erin e Jordan, e uma nova vida. Talvez, com a ajuda do livro, ele pudesse se livrar de sua maldição, voltar a andar sob a luz do sol sem dor, comer refeições simples e viver a vida de um padre mortal.

Erin se moveu, cálida ao lado dele.

Ou talvez ele pudesse viver a vida de um homem mortal, fora dos muros da igreja.

O livro brilhou mais intensamente nas mãos dela.

Rhun se ajoelhou e baixou a cabeça em súplica.

O livro conhecia seus mais profundos desejos.

Então o som de passadas se aproximou vindo da escuridão adiante, saído das trevas do tempo.

O Ressuscitado havia chegado.

5:53

Erin caiu de joelhos ao lado de Rhun, e Jordan fez o mesmo. O livro tremeu nos braços dela. Ela não estava pronta.

– Levantem-se – ordenou uma voz.

Juntos, todos se levantaram de cabeça ainda baixa.

– Tu me trouxeste o livro, Rhun?

– Sim, Eleazar.

Erin conteve uma exclamação de surpresa: Eleazar? Lembrou-se de que era o nome daquele que inicialmente escondera o livro em Massada. Aqui estava não Jesus Cristo, o Ressuscitado, mas um milagre diferente em vida.

Outra pessoa que havia ressuscitado muito tempo atrás.

Jordan inclinou a cabeça na direção dela, lançando-lhe um olhar questionador. Ele não sabia diante de quem eles estavam.

Ela sabia. Não estavam diante de Cristo.

Eleazar era a forma antiga de um nome que agora se traduzia como Lázaro.

Ali estava o líder espiritual do ramo sanguinista da Igreja Católica, exatamente como o papa era o líder espiritual do ramo humano da igreja.

Mantendo a cabeça baixa, ela lhe ofereceu o livro e ele o aceitou.

– Todos vós podeis olhá-lo.

Ela ergueu a cabeça, ainda temerosa de olhar para ele. Mas olhou. O homem diante dela era alto, mais alto que Jordan. Um longo cabelo branco fluía para trás de um rosto sem rugas. Os olhos fundos nas órbitas eram castanho-escuros, como azeitonas, e seu rosto severo sorria para ela.

Ele virou o livro para que todos pudessem vê-lo, então abriu a capa.

Luz dourada fluiu da página, mas as letras carmim, escritas em grego antigo pela mão de Cristo, podiam ser lidas com facilidade. Erin já as tinha memorizado.

Uma grande Guerra nos Céus se aproxima. Para que as forças do bem prevaleçam, uma Arma deve ser forjada com este Evangelho escrito com meu próprio sangue. O trio da profecia deve levar o livro ao Primeiro Anjo para que ele dê a sua bênção. Só assim eles poderão garantir a salvação para o mundo.

Lázaro pareceu absorver as palavras com um único olhar.

– Como podeis ver, o livro está seguro. Vós fizestes bem. Esta batalha está vencida, e sem esta vitória toda a esperança teria sido perdida.

– Isto parece promissor – disse Jordan.

– Mas a guerra ainda se aproxima. Para vencê-la, vós deveis procurar o Primeiro Anjo.

Erin o encarou com incredulidade.

– Não é o senhor? – perguntou Jordan.

– Não – respondeu Lázaro. – Não sou eu.

Erin olhou ao redor da vasta caverna.

– Então quem é o Primeiro Anjo?

Horário desconhecido

Local não revelado

Tommy apertou os cadarços das botas. Alyosha tinha prometido que hoje ele poderia sair para o ar livre. Ele só havia passado alguns dias confinado ali, naquele lugar, mas pareceu uma eternidade. Ele queria ver o céu, sentir o vento e fugir.

Uma faca com punho de madrepérola caiu do bolso de Alyosha enquanto ele jogava videogames alguns dias antes. Tommy a tinha coberto com um travesseiro e depois a escondera sob o colchão. Agora estava em seu bolso. Ele não sabia se seria capaz de ferir alguém. Nunca tinha se metido numa briga na escola.

Seus pais lhe ensinaram que a violência não resolvia nada, mas ele achava que poderia resolver seu atual problema. Pedir educadamente com certeza não tinha ajudado nada.

A porta se abriu. Alyosha estava lá, segurando um casaco de pele branco como a neve. O estranho garoto trajava apenas calça e uma camisa fina, sem se dar ao trabalho nem de vestir um casaco. Provavelmente era por isso que estava sempre tão frio.

Tommy vestiu o estranho casaco.

– De que é feito?

– Arminho. Agasalha bem.

Tommy alisou a frente com a mão. Era a coisa mais macia que já havia tocado. Quantas pequenas criaturas tinham sido mortas e esfoladas para fazê-lo?

Alyosha seguiu na dianteira por um longo corredor, subindo um lance de escadas e saindo por uma grossa porta de aço pintada de preto. Flocos de tinta descascada caíram na neve quando Alyosha bateu a porta.

Tommy girou em um círculo lento. Estavam em uma cidade grande, em um estacionamento deserto. Neve suja havia sido pisada por muitos pés. O céu estava carregado e cinza-escuro, como se uma tempestade ou a noite estivesse a caminho.

Ao ver sua chance de fugir, Tommy não perdeu tempo, mas Alyosha imediatamente colocou-se na frente dele. Tommy virou para a direita na esperança de dar a volta nele e correr pelo lado do prédio, mas Alyosha saltou na sua frente de novo. Tommy se desviou e foi para a esquerda.

Mas Alyosha o deteve novamente.

Tommy puxou a faca.

– Saia do meu caminho!

Alyosha atirou a cabeça para trás e gargalhou para as nuvens cinza indiferentes.

Tommy tentou fugir, mas escorregou no gelo, e conseguiu se equilibrar antes de cair na neve suja. Alyosha estava brincando com ele. Nunca conseguiria fugir. Estava preso ali para sempre, eternamente ligado àquele garoto cruel.

Os olhos cinzentos de Alyosha brilharam com malícia. Para Tommy, ele parecia um picanço. Os picanços, apesar de serem passarinhos muito bonitinhos, empalam suas presas em espinhos e esperam que elas sangrem até a morte. O chão ao redor de seus ninhos são repletos de esqueletos de passarinhos menores e de camundongos.

– Você não vai me deixar ir embora, não é? – perguntou Tommy.

– Ele não pode deixá-lo ir – respondeu uma voz bem forte, vinda de trás deles.

Tommy se virou tão depressa que caiu. Sujou o casaco com lama cinza. Alyosha o puxou por um braço e o pôs de pé dolorosamente.

Um padre vestindo uma batina preta vinha andando pela neve na direção deles. De início, Tommy pensou que fosse o padre de Massada, pois trajava o mesmo tipo de uniforme, mas este era mais alto e mais largo, e não tinha olhos castanhos, mas azuis.

– Faz muito tempo que espero por você, Tommy – disse o padre.

– O senhor é o tal que Alyosha diz que é igual a mim?

– Alyosha? – O homem franziu a testa, então sorriu como se fosse uma piada entre conhecidos. – Ah, isto é um... como vocês, americanos, chamam? Uma gíria. O nome completo dele é Alexei Nikolaievich Romanov, príncipe da Rússia, herdeiro do verdadeiro trono do Império Russo.

Tommy franziu o cenho, achando que o homem estivesse fazendo uma piada.

– O senhor não respondeu a minha pergunta.

O padre sorriu. Tommy sentiu um frio na espinha.

– Que falta de educação de minha parte. Não, eu não sou igual a você. Sou igual a Alyosha.

– Quem é o senhor?

– Sou Grigori Yefimovich Rasputin. E seremos grandes amigos.

Acima da cabeça do homem, um bando de pombos cinzentos fez uma revoada – e no meio deles, um pássaro branco como a neve dançou no alto, encontrando um raio de luz naquele dia cinzento. O olhar de Tommy o acompanhou, enquanto ele se lembrava do pássaro ferido em Massada, a pomba com a asa quebrada. Lembrou-se que pegou o pássaro ferido – pouco antes de sua vida desmoronar.

Teria aquele ato de gentileza e misericórdia sido a sua perdição?

Ele apertou os olhos enquanto o pássaro branco voava baixo em círculos, passando logo acima deles. O pássaro encarou Tommy – primeiro com um olho, depois com o outro.

Tommy estremeceu e desviou o olhar do céu.

Os olhos do pássaro brilharam verdes, como lascas de malaquita.

Igual ao pombo em Massada.

Como era possível? Como tudo aquilo era possível?

A qualquer momento eu vou acordar em um quarto de hospital com tubos e drogas entrando em mim.

– Quero voltar para junto de meus velhos amigos – disse ele, sem se importar de parecer uma criança petulante.

– Você vai fazer muitos novos amigos durante sua longa vida – disse o sr. Rasputin. – Este é o seu destino.

Tommy olhou de volta para os pássaros. Desejou imensamente estar lá em cima, voando livre com eles. Porque esse não podia ser o destino dele?

Ter asas.


65

29 de outubro, 5:54, horário da Europa Central

O santuário embaixo da Basílica de São Pedro, Itália

Rhun tocou em sua cruz. Eles tinham vencido a batalha. Estremeceu ao imaginar que não perderam tudo por um triz. Mas tinham triunfado.

Eleazar fez uma pausa. Virou o livro de volta para si mesmo e passou o dedo sob as linhas, lendo-o de novo, como se não tivesse compreendido corretamente da primeira vez. Mas as palavras continuaram as mesmas.

– Então vencemos a primeira batalha – disse Jordan.

– Mas e essa “Guerra nos Céus”... E o “Primeiro Anjo”? – perguntou Erin.

– Encontramos o livro – disse Jordan com firme convicção. – Podemos encontrar um anjo. Aposto que o anjo é maior que o livro. Qual é a grande dificuldade, certo?

Erin riu e se encostou nele.

– Certo.

O soldado estava correto. Eles já haviam conseguido fazer o impossível uma vez. Rhun olhou para Eleazar.

– Por onde devemos começar?

Eleazar franziu a testa.

– Pela profecia. Voltem à profecia.

Rhun esperou.

Eleazar a recitou:

– O dia virá em que o Alpha e o Ômega derramarão sua sabedoria em um Evangelho de Precioso Sangue que os filhos de Adão e as filhas de Eva poderão usar em seu dia de necessidade.

“Até tal dia, este abençoado livro ficará escondido em um poço da mais profunda escuridão por uma Garota de Inocência Corrompida, um Cavaleiro de Cristo e um Guerreiro do Homem.

Do mesmo modo, um outro trio trará o livro de volta à luz. Somente uma Mulher de Saber, um Cavaleiro de Cristo e um Guerreiro do Homem poderão abrir o Evangelho de Cristo e revelar a glória Dele para o mundo.”

– Já fizemos isso – disse Jordan. – O que precisamos fazer agora para encontrar o anjo?

Eleazar fechou o livro.

– É possível que isto nunca venha a acontecer.

– Por que não? – perguntou Jordan, franzindo o cenho. – Nós encontramos o livro, não encontramos?

Eleazar suspirou e a esperança abandonou Rhun com aquela exalação de ar.

– Existe uma possibilidade de que o trio já tenha sido separado – advertiu Eleazar.

O que o Ressuscitado estava dizendo?, perguntou Rhun a si mesmo. Como podia o trio ter sido separado? Estavam todos ali. Ele pôs uma das mãos na manga de Jordan, a outra na de Erin.

Erin fechou os olhos. Ela empalideceu.

– O que foi, Erin? – perguntou Jordan.

Ela pigarreou.

– E se eu não fizer parte do trio? E se eu não for a Mulher de Saber?

– Como assim? É claro que você é. Você decifrou o mistério do Evangelho. Sem você, nós nunca o teríamos encontrado. Você estava lá quando ele se transformou em livro. – O soldado falou pacientemente, sem nenhuma preocupação na voz.

Mas Rhun sentiu um medo de arrepiar.

– Lembre-se das palavras da profecia – disse ela. Diz que o trio abre o Evangelho e revela a glória Dele ao mundo.

– E daí? – perguntou Jordan.

Erin sacudiu a cabeça tristemente.

– Eu não estava lá quando o livro se abriu. Não passei pela soleira da porta antes que a luz dourada irrompesse do livro. Você sim. Rhun sim. Mas eu não. Eu ainda estava do lado de fora com o guarda.

– E acha que isto é relevante? – protestou Jordan. – Acha que um passo além da soleira importa?

– Se eu não for a Mulher de Saber, Bathory era. – Erin respirou fundo. – E eu a matei.

Rhun tentou encontrar um erro na lógica de Erin, mas, como de hábito, não encontrou nenhum. Todo mundo havia presumido que Erin fosse a Mulher de Saber: ela estivera em Massada, na Alemanha, na Rússia e em Roma. Mas Bathory também tinha estado naqueles lugares. Ela estivera um passo adiante deles. Seguira as pistas que levavam ao livro, e havia determinado como e onde deveria ele ser aberto. E estava segurando o livro quando ele se transformou.

Rhun fechou os olhos, percebendo a verdade.

Será que o cardeal Bernard estava certo o tempo todo a respeito de Elizabeta Bathory? Seria por isso que os Belial tinham começado a recolher uma mulher de cada geração da família Bathory, prendendo-a para satisfazer o maldito propósito que tinham, para preservar a Mulher de Saber entre eles?

Se isso fosse verdade, como poderiam eles ter esperanças de encontrar o Primeiro Anjo?

De acordo com o cardeal Bernard, a mulher morta na necrópole tinha sido a última representante de sua linhagem.

Mas Rhun sabia que aquilo não era inteiramente verdade.

– Vocês são loucos – disse Jordan, interrompendo os pensamentos dele. – Erin fez todo o trabalho pesado nesta história. E Bathory está morta. Se o livro é tão esperto, por que imporia uma tarefa tão impossível?

– O Guerreiro fala com sabedoria – disse Eleazar. – Talvez o que diz seja a verdade. A profecia com frequência é uma faca de dois gumes que abate todos os que tentam interpretá-la.

Erin não pareceu convencida.

Rhun sabia que tudo estava perdido.

– Eu tenho mais uma questão para debater com o padre Korza – disse Eleazar para os outros. – Se nos permitirem um momento a sós.

– É claro – respondeu Erin, e se afastou com Jordan.

Quando os dois não estavam mais à vista, Eleazar falou de novo:

– Tu tens que desistir desta mulher, Rhun. Eu vi teu coração, mas isto não é possível.

Rhun ouviu a verdade naquelas palavras; o peso delas caiu sobre seus ossos.

– Desistirei.

Eleazar encarou Rhun dura e longamente, como que lhe arrancando a carne e os ossos. O sentimento não foi inteiramente imaginário, uma vez que suas palavras seguintes o provaram.

– Existe outra representante da linhagem da Mulher de Saber?

Rhun submeteu-se àqueles olhos penetrantes. Ele sabia a resposta. Devia admitir todos os seus pecados, todos os seus segredos sobrenaturais, ou o mundo inteiro estaria perdido.

Ele encarou Eleazar com lágrimas nos olhos.

– O senhor pede demais.

– Mas tem que ser feito, meu filho. – A voz de Eleazar estava carregada de piedade. – Não podemos nos esconder de nosso passado para sempre.

Rhun sabia de quanto Eleazar também havia aberto mão pelo mundo – e sabia que também estava na hora de Eleazar enfrentar aquele passado.

Rhun enfiou a mão no bolso da batina e tirou a boneca que havia retirado da tumba empoeirada em Massada. Era uma coisa esfarrapada, de couro costurado, há muito endurecido, com um olho faltando. Ele colocou aquele pedacinho de passado doloroso na mão espalmada de Eleazar.

Eleazar tinha vivido por tanto tempo que era mais como uma estátua do que qualquer dos Enclausurados, resoluto, impassível, mais mármore que carne.

Mas naquele momento aqueles dedos de pedra tremeram, mal capazes de segurar o brinquedo minúsculo e frágil. Em vez disso, Eleazar o levou ao peito e o embalou como se fosse uma criança viva, uma de cuja perda ele lamentasse profundamente.

– Ela sofreu? – perguntou.

Rhun pensou no corpo pequenino pendurado na parede em Massada, preso por flechas de prata que deveriam tê-la queimado até que expirasse.

– Ela morreu a serviço de Cristo. Sua alma está em paz.

Rhun se virou e deixou o Ressuscitado com seu pesar.

Enquanto Rhun se virava e se afastava, viu de relance o mármore se quebrar.

Eleazar baixou a cabeça.

Uma lágrima pingou pesarosamente sobre o rosto manchado da boneca.


66

29 de outubro, 6:15, horário da Europa Central

O santuário embaixo da Basílica de São Pedro, Itália

Rhun correu pela escuridão com uma rapidez sobrenatural, com um martelo cerrado na mão. Havia muitos séculos desde que seus pés haviam caminhado por aqueles túneis escuros como piche, mas o caminho se abriu diante dele como se o seu corpo sempre tivesse sabido que voltaria ali.

Ele desceu mais fundo do que no templo dos Enclausurados, mais fundo do que a maioria ousava se aventurar. Ali ele havia escondido seu maior segredo. Tinha mentido a Bernard; violara seus votos e fizera a penitência por isso, mas nunca o suficiente.

E agora seu pecado era a única coisa que poderia salvá-los.

Ele se deteve diante de uma parede simples, sobre a qual passou a mão e não sentiu a presença de nenhuma emenda. Ele havia coberto bem, quatrocentos anos antes.

Rhun levantou o martelo uma vez acima da cabeça e bateu na parede. A pedra tremeu sob a pancada. Apenas um fiapo de rachadura, mas cedeu.

Ele bateu repetidas vezes. Os tijolos se desmancharam, até que uma pequena abertura apareceu. Quase não dava espaço para que ele passasse. Mas era tudo de que precisava.

Ele subiu pela pedra áspera, sem se importar que o arranhasse. Precisava chegar ao quarto escuro mais adiante.

Uma vez lá, acendeu a vela que levara consigo. O perfume de mel e cera de abelha se espalhou pela câmara, afastando os odores de pedra, decomposição e mofo.

Uma pálida chama amarela refletiu a superfície de um caixão de mármore preto.

Ele retirou a tampa e a baixou no piso de pedra da cela.

O cheiro de vinho sacramental se liberou. A superfície negra bebeu a luz.

Antes de retirar o conteúdo, Rhun enfiou a mão em concha e bebeu o vinho. Ele precisaria de cada gota de força sagrada para a tarefa que tinha diante de si. Mas antes da força, como sempre, veio a penitência.

Rhun caminhou até Roma. Semanas de caminhada dia e noite pelos passos de montanha escuros dilaceraram seus sapatos e depois seus pés. Quando não conseguia mais andar, buscou refúgio em remotas igrejas na montanha, bebendo uma golada de vinho antes de se obrigar a sair de novo para o caminho inóspito.

Bernard o encontrou em Roma e o levou para as profundezas debaixo da Basílica de São Pedro, onde somente os mais velhos dentre eles ousavam ir. Lá Rhun cumpriu sua penitência. Jejuou. Rezou. Mortificou-se. Nenhuma de suas ações tornou mais leve o peso de seu pecado.

Uma década depois, Bernard o enviou para o mundo dos homens de novo, desta vez em uma nova missão para o Castelo de Cachtice, uma derradeira penitência para livrar o mundo do que o seu pecado havia criado.

Homens armados ao redor dele mantinham as espadas em punho. O medo era visível em seus rostos, batendo em seus corações disparados. Tinham razão por temer.

Os condes e o palatino lideraram o ataque lançando olhares nervosos para seus homens, como se temessem que esses não pudessem salvá-los. E não podiam. Mas Rhun podia. Ele rezou para não ter de fazê-lo. Rezou para que as histórias fossem falsas. Para que seu amor corrompido não tivesse causado aquilo.

Mas ele também tinha ouvido outras histórias... de experiências macabras na calada da noite, sugerindo que havia algum propósito secreto para as atrocidades dela, algum rastro de sua inteligência, de suas artes de cura, voltados para um propósito perverso. Aquilo era o que mais o assustava – que alguma parte de sua verdadeira natureza ainda existisse dentro daquele monstro, agora degradada para fins malignos.

À medida que alcançaram a entrada do castelo, os homens se agitaram, a respiração acelerada formando nuvens no ar frio.

O palatino bateu numa porta robusta de carvalho construída para resistir a ataques de aríetes. Por um momento Rhun rezou para que ninguém atendesse, e que eles fossem obrigados a montar cerco ao castelo, mas Anna abriu a porta. Estava irreconhecível, exceto pelo sinal de nascença que ainda maculava-lhe o rosto. Magra como um esqueleto e coberta de cicatrizes, vestia apenas uma combinação manchada, mesmo no frio intenso.

O palatino empurrou e escancarou a porta. A escuridão escondia o interior, mas Rhun sentiu o cheiro do que iriam encontrar ali. No fundo sob tudo aquilo, também percebeu o cheiro de camomila apodrecida.

O conde Zríni lutou para acender uma tocha; o cheiro de piche queimado era uma nota penetrante no buquê de morte.

O palatino pegou a tocha e entrou no castelo. A luz caiu sobre uma mocinha deitada no chão de pedra gelado. Hematomas maculavam-lhe a pele branca. Sangue congelado cobria-lhe os pulsos, o pescoço e a parte interna das coxas.

O palatino fez o sinal da cruz.

Atrás deles, um soldado vomitou na neve. Rhun tirou a batina e cobriu o corpo. Mas a igreja não tinha batinas suficientes para esconder sua vergonha. Ele havia matado aquela garota tão certamente quanto se tivesse pessoalmente aberto-lhe a garganta.

Alguns passos mais adiante, duas garotas se acotovelavam debaixo de uma mesa imunda. A loura estava à beira da morte. Seus batimentos cardíacos se apagavam. Ele se ajoelhou diante dela e deu-lhe a extrema-unção.

– Obrigada, padre. – A voz da garota de cabelo escuro soava rouca por causa da garganta ferida.

Ele baixou os olhos, envergonhado. As mortes ocorridas ali lhe pesavam na consciência, como as de todos que Elisabeta tinha matado. O amor de um Sanguinista só tinha trazido morte e sofrimento.

Um soldado pegou no colo a garota ainda viva e a levou para a lareira vazia. Ele lhe deu seu casaco e acendeu o fogo, seus olhos concentrados na tarefa. Rhun fechou os olhos da amiga da garota pela última vez. Ambas eram tão jovens, mal saídas da infância.

Um grito ressoou pelo castelo. O palatino inclinou a cabeça, como que para localizar o som. Rhun sabia de onde viera. Dos aposentos reservados de Elisabeta.

Ele se levantou e liderou os homens.

Um dos soldados seguiu-lhe bem atrás. O palatino parecia ter perdido o gosto pela liderança e ficou para trás, perto da retaguarda. Elisabeta outrora o chamara de primo. O palatino havia escolhido os outros nobres por causa de seus laços com ela. Cada um era casado com uma de suas filhas. Ela seria capturada na presença da nobreza, como exigia sua posição.

Rhun empurrou e abriu a porta do quarto de Elisabeta. Lá dentro uma criança soluçava em um canto escuro. Outra garota estava dentro de uma jaula com espetos, suspensa no ar. Elisabeta estava nua debaixo dela. Dois criados balançavam a jaula de um lado para outro, chocando o corpo macio da garota contra os espetos de ponta afiada. Carmesim pingava na pele branca de Elisabeta.

Horrorizado, Rhun lutou contra as lágrimas. Ele causara tudo aquilo.

Os soldados correram para aprisionar os criados e fazer com que a jaula parasse de balançar.

Naquele momento o palatino se adiantou de novo.

– Lady Nádasy, a senhora está presa em nome do rei.

– O senhor pagará caríssimo por esta intrusão. – Elisabeta não fez nenhuma tentativa de cobrir sua nudez. O cabelo escuro balançara sobre suas costas brancas quando ela se virou para encarar os homens.

Ao reconhecê-los, ela fechou o rosto.

– Ora. – Um sorriso endureceu seus lábios. – Os senhores vieram para morrer.

Rhun se posicionou entre ela e os homens. Ela podia matar todos, menos ele. Ele tirou uma faca da manga.

– Por favor – disse. – Não me obrigue a fazer isso.

Ela cambaleou para trás.

– O que mais você gostaria de tirar de mim, Rhun?

Ele se contraiu, então estendeu a faca de modo que ela pudesse vê-la.

Os belos olhos prateados se demoraram na lâmina.

– Isto é tudo o que você tem para me espetar, padre?

Ele se aproximou. O cheiro de sangue quente subindo de sua pele o inebriou. Ele lutou contra seus desejos.

– Cuidado, querido – sussurrou ela. – Já vi esta expressão em seu rosto antes.

Ele murmurou uma prece, então envolveu seus punhos com uma laçada de corda de seda e os amarrou. – Há prata sagrada dentro dela – disse-lhe. – Se você tentar se soltar, vai queimá-la até os ossos.

– Cubram-na – ordenou o palatino.

O palatino atirou um cobertor sujo sobre os ombros manchados de sangue.

Ela entrelaçou os dedos como que em prece. Os olhos dela encontraram os dele. Neles ele viu dor, arrependimento e ainda, apesar de tudo, amor.

Ele esperou para voltar do passado, para habitar aquela cela úmida.

Depois que retornou plenamente, ele mergulhou os braços no banho escaldante de vinho sagrado. No fundo, suas mãos frias encontraram o que procurava e ele a puxou para fora, de volta para o mundo depois de séculos de sono.

O vinho havia manchado sua fina capa verde de cor de Borgonha, mas o rosto de alabastro brilhava tão branco como quando ele a havia mergulhado ali, em vez de matá-la como Bernard ordenara. Ele acariciou o cabelo longo escuro, afastando-o de seu rosto, acariciou a testa alta, as maçãs do rosto arredondadas. Continuava tão bonita quanto no momento em que ele a conhecera, há quatrocentos anos. Antes que destruísse a sua alma e a tornasse uma strigoi, ela fora uma boa mulher. Era curandeira e quase o curou.

Quase.

Rhun sussurrou uma prece.

Os olhos cinzentos cor de tempestade de Elisabeta se abriram e o encontraram.

Os lábios se moveram, sem palavras, só ar.

Mesmo assim, Rhun compreendeu o que ela tentara dizer, ainda perdida em seu sonho, sua raiva ainda em algum lugar no passado, deixando apenas estas duas palavras formadas por lábios perfeitos:

Meu amor...

6:30

Erin tropeçou pelo longo túnel escuro. Sem a luz dourada do livro para guiá-los, Jordan havia acendido a lanterna. Comparada com o livro, sua luz pálida azulada parecia fraca. Ele manteve um braço ao redor dos ombros dela durante todo o longo caminho de subida.

Afinal, chegaram ao baldaquino caído, a base descansando no piso do túnel, o dossel se estendendo para cima, para dentro da basílica. Os corpos haviam sido retirados, e os Sanguinistas tinham espalhado areia sobre o sangue.

Erin tentou pisar ao redor das pilhas, mas a areia estava por toda parte. O chão parecia áspero sob os seus sapatos, trazendo-lhe a lembrança do deserto ao redor de Massada, do sítio de sua escavação em Cesareia. Como teriam ficado as coisas se ela tivesse permanecido na trincheira com Heinrich, e o tivesse tirado da frente do cavalo, e nunca tivesse embarcado no helicóptero? Ele ainda estaria vivo, mas os Belial teriam o livro. Não haveria esperança. Eles tinham aberto a caixa de Pandora, e o mal havia escapado, mas ainda restava esperança. Não apenas esperança, mas um caminho adiante para manter o mundo seguro.

– Parem! – Um Sanguinista bloqueou o caminho. Era magro, com dois dedos finos erguidos. – O que estão fazendo aqui?

– Sou o sargento Jordan Stone – disse Jordan. – E a dra. Erin Granger.

– Duas partes do trio. – O homem falou em tom respeitoso: – Aceitem minhas desculpas.

O Sanguinista fez um gesto para uma escada de mão encostada contra o baldaquino.

– Primeiro as damas – disse Jordan.

Erin subiu, e ao chegar ao topo precisou de ajuda para sair desajeitadamente da escada de volta para o piso de mármore da basílica. A escala imensa do prédio a impressionou novamente. Tudo ali era muitas vezes maior e mais imponente que a vida. Do baldaquino que agora descansava nos túmulos abaixo aos tetos altíssimos de Michelangelo que formavam um falso céu acima. Ela girou lentamente, olhando as paredes brancas, as douraduras opulentas, as estátuas graciosas e as obras de arte sofisticadas. Homens haviam realizado coisas maravilhosas naquele lugar.

A resolução surgiu em seu peito ao ver tudo aquilo.

Eles encontrariam o Primeiro Anjo e garantiriam a proteção de todas aquelas maravilhas.

Jordan subiu para o lado dela e segurou-lhe a mão. Ali, também, pilhas de areia no piso encerado absorviam o sangue, marcando os pontos onde strigoi, Sanguinistas e homens haviam morrido.

Ela manteve os olhos nos desenhos sofisticados engastados no piso de mármore e se concentrou em pôr um pé diante do outro, evitando a areia. A energia que ela havia recebido do livro há muito tempo se fora.

As pernas de Jordan os conduziram em direção à porta da frente.

Ele parou antes de alcançarem o pórtico e se desviou para a esquerda.

Ela ergueu os olhos do chão para ver o que havia capturado a atenção dele. A Pietà de Michelangelo. A escultura de mármore retratava Maria na rocha do Gólgota, tendo no colo seu filho recém-crucificado. Cristo jazia estendido sobre seu colo, a cabeça atirada para trás, o braço frouxo. A cabeça de Maria estava inclinada para baixo, seu rosto marcado pela tristeza. Ela pranteava a perda de seu precioso filho. A morte que desencadeara aqueles acontecimentos há tantos e tantos anos.

Jordan olhava fixamente para a escultura.

Erin pigarreou.

– Jordan?

– Estou apenas pensando nas famílias que terei que visitar quando tudo isto tiver acabado: Sanderson, Tyson, Cooper e McKay. As mães que ficarão exatamente como esta.

Ela passou os braços ao redor da cintura dele.

Por fim, ele tomou-lhe a mão de novo e eles saíram da basílica para o ar fresco da manhã italiana.

Ele a conduziu à escadaria que subia até o topo do domo.

– É uma longa subida. – Os olhos dele perguntaram se ela queria fazê-lo.

– Irei na frente – respondeu ela, e começou a subir os 320 degraus. O céu havia clareado para um cinza pálido. Logo o sol surgiria no horizonte.

Ela chegou ofegante ao topo. Jordan seguiu para o lado leste da cúpula e se sentou. Deu uma batidinha no chão ao seu lado, e ela se sentou.

O céu clareou, ficando quase branco.

– Você sabe que provavelmente está errada, certo? – perguntou.

Ela tentou dar um sorriso para ele. Apreciava o esforço.

– E se não estiver?

– Quero você na minha equipe de qualquer jeito: fazendo ou não parte de alguma profecia. Andamos aos trancos e barrancos como um bando de idiotas quando você não está por perto.

– As pessoas sacrificaram a vida para salvar a Mulher de Saber – disse ela. – Mas o que salvaram fui eu.

– Você não é tão má. – Ele beijou-lhe o alto da cabeça. – Era guerra, Erin. Eles eram soldados. Erros acontecem em combate. Pessoas morrem. É a vida que segue – tanto pra você quanto para elas. O segredo é continuar lutando.

Ela se retesou nos braços dele.

– Mas a profecia...

– Olhe. – Ele começou a contar. – Um: quem encontrou o medalhão na mão da garotinha? Você. Dois: quem descobriu onde ficava o bunker? Você. Três: quem descobriu o negócio do sangue e dos ossos para abrir o livro? Você. Tamanha habilidade está praticamente me deixando complexado, como você é boa nisso.

Ela sorriu. Ele bem que poderia estar certo. Até o final, tinha sido Bathory quem seguira a trilha deles, não o contrário.

Ela tirou o retalho da manta de bebê do bolso e o estendeu na palma da mão. Pela primeira vez, a raiva não surgiu ao vê-lo. A raiva desaparecera quando, às portas da morte, ela havia perdoado seu pai lá embaixo no túnel.

– O que é isto? – perguntou Jordan.

– Há muito tempo fiz uma promessa a uma pessoa. – Ela alisou o retalho com a ponta do dedo. – Prometi que nunca ficaria parada sem fazer nada quando meu coração me dissesse que alguma coisa estava errada.

– O que o seu coração diz agora?

– Que você está certo.

Ele sorriu.

– Gostei de ouvir isso.

Erin deixou o pequeno retalho flutuar ao vento, segurando-o apenas entre o polegar e o indicador. Então o soltou. O retalho de tecido flutuou no ar em meio ao burburinho e à efervescência de Roma.

Ela se virou para Jordan.

– Trata-se de mais que espiritualidade e milagres. Trata-se de lógica também, e de ter um coração questionador. Nós encontraremos este Primeiro Anjo.

Jordan a puxou para si.

– É claro que encontraremos. Encontramos o livro, não foi?

– Encontramos. – Ela apoiou a cabeça no ombro dele, ouviu os batimentos regulares de seu coração. – E como o encontramos, temos esperança.

– Parece bom para mim. – A voz de Jordan soou rouca.

O sol despontou no horizonte. Raios dourados aqueceram o rosto de Erin.

Ela inclinou a cabeça para cima em direção à dele. Ele passou as costas da mão na face dela, segurou-lhe a nuca.

Então ela se esticou para beijá-lo. Os lábios dele eram mornos e macios, diferentes dos de Rhun, naturais. Ela enfiou as mãos sob a camisa dele, deslizando-as sobre o calor da pele dele. Ele gemeu e a puxou para mais perto, as mãos dele agora nas costas dela.

Finalmente, ela se afastou. Ambos estavam ofegantes.

– Rápido demais? – perguntou Jordan.

– Não. – Erin estendeu os braços para ele. – Muito devagar.


E ENTÃO

Final do outono

Roma, Itália

O irmão Leopold atirou as notas no banco da frente para o taxista, o suficiente para pagar a corrida e uma pequena gorjeta. Como padre humilde, ele não tinha espaço em sua vida para extravagâncias.

O homem tocou a boina em agradecimento enquanto Leopold fechava a porta e entrava numa ruela vizinha. Ele examinou a rua ensolarada. Ninguém o tinha seguido da Cidade do Vaticano. Ele havia mudado as instruções para o motorista várias vezes, insistindo em curvas abruptas, percursos por ruas sem saída e repetidos retornos. Mesmo depois de tudo isso, tinha feito com que o motorista o deixasse a vários quarteirões de distância de seu verdadeiro destino.

Ele havia esperado tanto tempo e trabalhado tão duro que não erraria no último momento. Se errasse, então Ele, aquele a quem servia, o destruiria. Leopold não era tolo de pensar que fosse insubstituível.

Caminhou pela rua estreita e se aproximou do arranha-céu de vidro e aço com uma âncora prateada pintada nos painéis de vidro superiores. Era o logotipo da Argentum Corporation. A âncora escondia uma cruz em seu desenho, a Crux Dissimulata, o símbolo usado por cristãos antigos para mostrar sua crença em Cristo, sem temer represálias. Nos dias de hoje também escondia alianças.

O prédio abrigava o chefe dos Belial, Aquele que havia forjado um pacto entre strigoi e humanos e unido ambos para satisfazer Seus fins. Ele não era nem homem nem animal – era muito mais, uma pessoa amaldiçoada, condenada pelas próprias palavras de Cristo a viver para sempre.

Tudo por causa de uma única traição.

Leopold tremeu ao pensar naquilo, por saber que havia traído a igreja muitas vezes, usando trajes pios sobre seu coração traidor para fazer a vontade Dele.

Mas como poderia não fazer?

Ele estendeu a mão para o logotipo na entrada e tocou na cruz enterrada no centro do símbolo da Argentum, tirando forças do conhecimento de que a causa Dele era verdadeira e correta. Ele era um dos poucos que seguiam o caminho correto.

Com determinação renovada, entrou no prédio e deu seu nome no balcão da recepção. O segurança de olhar duro o examinou numa lista e na base de dados on-line antes de acenar para que seguisse para o elevador VIP. O elevador só pararia em um andar, e só se ele tivesse uma chave.

Depois que as portas do elevador se fecharam, ele levantou a cruz peitoral acima da cabeça e a retirou, então puxou a parte mais longa da cruz para revelar uma chave oculta. Enfiou a chave na fechadura do elevador. Uma luz verde sinalizou que havia funcionado. Ele deixou escapar um suspiro de alívio. Nunca a tinha usado antes.

As portas do elevador se abriram para uma recepcionista num elegante terninho preto, sentada atrás de uma escrivaninha imponente. Leopold sussurrou uma oração rápida, pedindo proteção, e avançou.

– Sim? – Brincos de ametista brilharam quando ela levantou a cabeça. Tinha olhos castanhos bem separados e lábios carnudos. Um rosto saído de um quadro do Renascimento.

– Sou o Irmão Leopold. – Ele se inclinou nervosamente para a escrivaninha com tampo de vidro. – Fui chamado a comparecer.

Ela apertou um botão com uma unha longa e púrpura, então falou ao telefone. Recebeu uma resposta monossilábica:

Sim.

Ele não sabia se devia se sentir aliviado ou aterrorizado.

Ela se levantou e o conduziu por um corredor bem encerado até uma porta de aço escovado, os quadris balançando enquanto andava.

Ela abriu a porta e deu um passo para trás.

Ele devia entrar sozinho. O som de água correndo encheu seus ouvidos.

Leopold entrou em um vasto aposento no qual a luz clara do sol romano brilhava através de janelas do chão ao teto.

Uma grande fonte retangular dominava o centro do aposento. Lírios de água de cor púrpura brilhavam contra a ardósia cinzenta. Água escorria sobre uma pedra redonda verde-esmeralda. O som provavelmente tinha a intenção de ser tranquilizador, mas o correr de água irritou Leopold.

Leopold examinou o homem que o havia convocado. Estava de costas para a fonte, virado para a janela, provavelmente contemplando o rio Tibre lá embaixo, ao longe. Seu cabelo cinza era bem curto, revelando o pescoço bronzeado acima do colarinho de uma camisa cara, músculos fortes visíveis através do linho fino. Mesmo agora, as costas Dele não se curvavam sob o peso de uma vida de milênios.

Ele se virou ao ouvir Leopold se aproximar e levantou a mão, libertando uma pequena mariposa iridescente. O inseto voou da palma da mão Dele e pousou numa larga escrivaninha com tampo de vidro, revelando que era um autômato em miniatura feito de cobre, peças de relógio e fios finíssimos de arame.

Leopold desviou o olhar da mariposa e encontrou os olhos arrebatadores avaliando-o.

Intimidado, ele caiu de joelhos sob o peso daquele olhar.

– Está feito – disse, tocando a cruz, mas não encontrando forças nela. – Nós vencemos. A grande maldição vai começar.

Passos se aproximaram dele.

Leopold se encolheu, mas não ousou se mover.

Dedos fortes como pedra tocaram-lhe o ombro, mas de maneira calorosa, gentil e terna.

– Você se saiu muito bem, meu filho. O livro está aberto, e as trombetas da guerra soarão. Após milênios de espera, meu destino completou o círculo. Eu tirei o Nazareno deste mundo, e agora é meu dever trazê-Lo de volta ao trono que é Dele por direito. Mesmo que isto signifique trazer um fim para este mundo.

Leopold deixou escapar um suspiro trêmulo, seu coração se alegrando. Um dedo levantou-lhe o queixo. Ele encarou o rosto acima, delineado contra a luz clara do sol de um novo dia, um rosto para o qual Cristo havia olhado com igual amor e devoção.

Antes de amaldiçoá-lo pela eternidade.

Transformando seu próprio nome em uma palavra que significava traição.

Os lábios de Leopold silenciosamente formaram aquele nome, em adulação e promessa.

Judas.

 

 

                                                   James Rollins E Rebecca Cantrell         

 

 

 

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