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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FIM DA RAINHA / Susan Carroll
O FIM DA RAINHA / Susan Carroll

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Paris, outono de 1587
O nevoeiro evolava-se através das ruas da cidade, transformando a luz do dia em crepúsculo. Até mesmo a meio da tarde, as brumas continuavam tão espessas que duas pessoas que caminhassem lado a lado poderiam perder-se uma da outra.
As lojas tinham encerrado portas mais cedo, enquanto os residentes da cidade se recolhiam em suas casas, fechando as portas e as portadas das janelas. Os nervos de todos estavam à flor da pele numa urbe que se encontrava à beira de uma revolução. Os mais supersticiosos afirmavam que o nevoeiro era presságio de um desastre iminente, o arauto que anunciava a chegada de uma tempestade inclemente.
Outros, bastante mais ousados, diziam a meia-voz que o nevoeiro era sinal de apenas uma coisa, que a bruxa que haviam tolerado no seu seio durante demasiado tempo estava a pôr em prática, uma vez mais, a sua diabólica bruxaria. Aquela feiticeira italiana, aquela filha do Diabo, aquela Rainha das Trevas...

 

 

 


 

 

 


Catarina de Médicis, a Rainha Viúva de França, olhava do alto da sua torre astrológica que fora acrescentada à sua residência particular, o Hotel de la Reine1. O tempo frio e húmido tinha-se entranhado nas articulações e nos músculos doridos, fazendo com que sentisse o peso de cada um dos seus sessenta e oito anos. Levou o lenço aos olhos reumosos e lacrimosos.
1. Em francês no original; hotel, paço ou palácio da rainha, edifício público, palacete. (N. da T.)
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Ao contrário do costume, a sua visão deficiente não podia ser atribuída à sua falta de vista.
O nevoeiro cobria tudo por completo. Nem sequer conseguia ver o seu próprio pátio, quanto mais as ruas além dos portões. Todavia, considerava que o nevoeiro cerrado
era uma bênção, proporcionando-lhe um alívio temporário ao resguardá-la de todos aqueles rostos carrancudos, daqueles olhos plenos de ódio que a seguiam sempre que
deixava o Hotel de la Reine para atravessar a cidade até ao Louvre.
Eram atitudes que não deviam incomodá-la, pensava. Tinha obrigação de já estar acostumada a ser odiada e injuriada. Sem dúvida que sentira na pele a aversão de que
havia sido alvo ao longo de toda a sua vida. Tinha apenas oito anos a primeira vez que uma turba gritara pelo seu sangue, quando era a herdeira órfã de uma família
proeminente de Florença, uma cidade que fervilhava de rebelião.
Catarina fechou os olhos e deixou que os seus pensamentos recuassem até esses tempos, com o ressurgimento daquela cena do seu passado que era parte recordação, parte
pesadelo.
As mãos pequenas de Catarina agarravam-se às pedras ásperas das paredes do palazzo. O coração batia-lhe acelerado de medo enquanto espreitava para o pátio, a multidão
enraivecida como que pintada em tons demoníacos de chamas e sombras à lu% tremeluente dos archotes.
- Entreguem-nos a rapariga! - berravam vozes roufenhas. - Dêem-nos a pequena bruxa! Não queremos mais ninguém da família dos Médicis a mandar em nós. Queremos enforcá-la
no alto das muralhas da cidade!
O passado e o presente fundiram-se na mente de Catarina, a sua imaginação a substituir os florentinos por parisienses. Se a população de Paris alguma vez se rebelasse
contra ela, não tinha a mínima dificuldade em imaginar quem é que chefiaria essa rebelião.
O seu inimigo de há muito tempo, o duque de Guise, o arrogante e bem-parecido guerreiro que tinha uma cicatriz a toda a altura de uma bochecha. François de Guise
era o querido da população de Paris, o seu grande herói católico. Catarina conseguia imaginar com tanta clareza as feições aristocráticas à luz das chamas dos archotes
da turba, com uma corda grossa enrolada nas suas mãos esguias, imaginava o seu sorriso e quase conseguia ouvir a ameaça proferida numa voz aveludada.
"Dentro em pouco, majestade. Dentro em pouco...)-
Catarina levou as mãos à garganta e abriu os olhos. Cada vez se comportava mais como uma velha idiota, pensou. Era tolice estar a magicar no
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passado ou ficar apreensiva acerca de um futuro que talvez nunca viesse a concretizar-se.
De Guise e o seu exército estavam aquartelados longe de Paris. Até mesmo aquele ambicioso duque não se atreveria a invadir Paris, atacando o rei abertamente, por
muito fraco e ineficaz que o seu filho Henrique se tivesse tornado. Não, certamente que o duque de Guise não se atreveria a isso, asseverou Catarina a si própria.
Pelo menos, por enquanto...
Afastou-se da janela da torre. As dobras do seu manto e as saias escuras a arrastarem pelo chão de pedra irregular. Havia muito tempo que rejeitara as sedas e as
jóias cintilantes que tanto a tinham deleitado na sua juventude. Desde a morte do marido há quase trinta anos que só se vestia de preto, o cabelo grisalho e fino
preso numa coifa agarrada à cabeça e que se estendia em bico até à testa, o único ornamento uma gola branca de tufos em volta do pescoço anafado e um crucifixo incrustado
com pedras preciosas.
Hoje nem sequer usava anquinhas, uma vez que a câmara da torre era demasiado pequena para permitir o uso de saias amplas. O aposento parecia suficientemente cheio
apenas com a sua presença e a dos dois outros ocupantes. Talvez porque um desses ocupantes era um espécime tão alarmante, um homem alto e de pele escura, a fisionomia
de expressão feroz estava tatuada com uns estranhos símbolos. Tinha duas tranças grossas de cabelo negro enfeitadas com penas de várias cores.
Uma a uma, ele acendeu as velas colocadas nas pontas de um pentagrama desenhado no chão. O homem deslocava-se silenciosamente. Catarina
nunca tinha ouvido o nativo a falar, o qual se limitava a emitir uns grunhidos. Mas o homem de raça branca que se ajoelhava seminu no centro do círculo formado pelos
círios, por muito estranho que pudesse ser, parecia a Catarina que era o mais selvagem.
A luz das velas refletia-se tremeluzente nas saliências das cordas vocais de Xavier e nos tendões dos ombros, o tronco nu coberto por uma fina camada de pelos. O
cabelo preto comprido caía-lhe para a frente, ocultando parcialmente a cicatriz de um ferimento antigo que tinha à largura da garganta, prova evidente de que não
fora degolado por muito pouco. Tinha umas feições magras e curtidas pelo tempo, com uns sobrolhos negros e espessos que encimavam uns olhos encovados de um azul-acinzentado,
como a tonalidade de um mar gelado de inverno.
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Catarina consultara inúmeros astrólogos e videntes ao longo da sua vida, os sagazes e eruditos irmãos Ruggeri, bem como o venerável e idoso físico, Nostradamus.
Não havia nada de venerável em Xavier. Era um animal viril. Um forte vento soprado de terras longínquas que só seriam vistas por um número muito reduzido de franceses
civilizados. Flexionava os ombros mais como
um homem que se preparasse para uma batalha do que um que estivesse a preparar-se para entrar em transe. Mas então acenou ao seu... Mentor? Guarda? Companheiro?
Apesar de Catarina já ter recebido os dois homens no seu palácio em várias ocasiões anteriores, ainda não havia conseguido determinar exatamente qual a natureza
da relação entre os dois.
O acenar de cabeça de Xavier foi o suficiente para que o nativo se retirasse do círculo de velas, pegando num pequeno tambor de aspeto primitivo. Começou por um
rufar ensurdecido. Xavier estendeu os braços e começou a entoar um cântico rítmico num qualquer dialeto nativo num tom gutural.
Catarina já era demasiado velha e sensata para se deixar intrujar por uma encenação exótica qualquer, por uma mera exibição de pulcritude masculina. Não obstante,
devorava Xavier com os olhos. O bater obsessivo do tambor, o cântico numa voz grave como que lhe ecoava pelo corpo, fazendo com que a pulsação do seu coração se
acelerasse, o sangue fraco a circular-lhe nas veias com lentidão.
Se bem que o dia estivesse frio, sentia calor e estava muito corada. Sentiu uma palpitação como já não lhe acontecia há vários anos. Talvez não desde que havia sido
uma noiva de catorze anos, tendo sido apresentada ao jovem e robusto príncipe que viria a ser o seu consorte.
O rufar do tambor e o cântico de Xavier elevavam-se num crescendo constante e cada vez mais rápido até Catarina começar a sentir que o seu coração lhe explodiria
no peito. Ele atirou a cabeça para trás e soltou um grito selvático, os olhos revirados até se ver apenas a esclerótica nas órbitas oculares.
Abruptamente, tanto o tambor como a voz de Xavier ficaram em silêncio. Os braços dele penderam-lhe paralelos aos flancos e ficou a olhar em frente com fixidez, os
olhos como que vidrados e sem verem, como se tivesse cegado repentinamente.
O único som que se ouvia na torre era uma respiração funda e Catarina ficou surpreendida ao aperceber-se de que era a sua própria respiração.
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Levou a mão ao coração, que parecia querer saltar-lhe do peito, fazendo pressão. Xavier dissera-lhe que, quando se encontrasse na fase mais profunda do seu transe,
ela poderia fazer as suas perguntas. Eram perguntas que a ajudariam a determinar se aquele homem era o feiticeiro que afirmava ser ou se era um dos intrujões mais
espertos que ela tinha encontrado em toda a sua vida.
Catarina tossiu para aclarar a garganta, ao mesmo tempo que se esforçava por clarificar as ideias.
- Dizei-me o que estais a ver, monsieur- ordenou-lhe. - O que é que o próximo ano nos reserva?
- Serão tempos de grande convulsão social - respondeu Xavier num tom monocórdico. - Haverá uma batalha sem igual, uma guerra em que o sangue será derramado abundantemente.
- Tretas! - ripostou Catarina desdenhosa. - A guerra civil entre os católicos e os estupores dos huguenotes grassa há uma eternidade e não mostra indícios de acabar
nos tempos mais próximos. Qualquer idiota poderia ter feito uma previsão tão vaga como essa.
- Se quiserdes respostas mais explícitas, tendes de fazer perguntas mais precisas.
Catarina refletiu por breves momentos antes de lhe dar réplica.
- Conseguis ver alguma coisa relativa ao duque de Guise? Ele marchará sobre Paris? Lutará ele com o meu filho para o destronar?
- O rei Henrique, para já, encontra-se em segurança e assim continuará, desde que não procure causar danos ao duque. Se sua majestade derramar uma única gota que
seja do sangue do duque de Guise, a população de Paris não hesitará em se sublevar.
- Uma resposta inteligente, monsieur, mas, uma vez mais, não se pode dizer que seja uma grande revelação. Há mais de dois anos que venho a advertir o meu filho precisamente
nesse sentido. Dizei-me algo de específico. Dizei-me...
"Quanto tempo mais é que me resta? Morrerei dentro de pouco tempo?" Catarina humedeceu os lábios, mas não foi capaz de se forçar a fazer aquelas perguntas. Quereria
ela saber realmente qual seria a hora da sua própria morte? Era o seu maior temor, enfrentar o vazio da sepultura, ser esquecida, a sua existência e poder reduzidos
a nada, além de cinzas.
Em vez disso, articulou a pergunta que poria à prova inequivocamente as capacidades de Xavier.
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- Há um objeto que procuro há muito tempo. Será possível que venha a encontrá-lo?
Decorreram longos momentos sem que Xavier lhe respondesse, as gotas de suor a acumularem-se-lhe na testa enquanto perscrutava atentamente algo que se encontrava
oculto do seu olhar. Ou fingia estar a fazê-lo.
- Ah! - exclamou Catarina num tom de cinismo. - Portanto, meu astuto impostor, até consegui coartar a vossa capacidade de resposta, ainda que pouco sincera. - Aprontava-se
para pôr fim àquela farsa quando Xavier lhe respondeu.
- Não, jamais conseguireis encontrar o Livro das Sombras. Foi destruído em Londres.
O choque foi tão grande que Catarina ficou hirta. Eram muito poucas as pessoas, além das Filhas da Terra, como ela própria era, que tinham conhecimento da existência
do Livro das Sombras, um compêndio que continha os conhecimentos da Antiguidade e segredos de magia negra há muito perdidos para o mundo atual. Eram ainda menos
as pessoas que sabiam da procura desesperada de Catarina para descobrir o paradeiro desse livro, que se estendera até ao outro lado do canal, a Inglaterra.
- Como? - perguntou num tom autoritário. - Como é que esse livro foi destruído?
- Foi queimado. Houve uma irlandesa de nome Catriona O'Hanlon, uma emissária da Senhora da Ilha Encantada, que lutou com o vosso agente, Ambroise Gautier. A O'Hanlon
triunfou e queimou o livro.
Catarina soltou um pequeno grito. Como é que Xavier poderia ter conhecimento daqueles pormenores, a não ser que o homem fosse realmente um vidente? Catarina nunca
tinha encontrado ninguém, desde o falecido Nostradamus, que possuísse essa faculdade. Mas qualquer júbilo que pudesse sentir por ter contratado os serviços de um
poderoso vidente como aquele esmoreceu em virtude do que Xavier lhe dizia.
Havia mais de um ano que enviara o seu espião, Ambroise Gautier, a Inglaterra com a incumbência de encontrar esse livro. Há medida que as semanas foram dando lugar
aos meses, Catarina quase se sentira possuída de uma impaciência febril, mas tinha tido assuntos mais prementes com que se ocupar, a guerra civil que não dava mostras
de acabar e ameaçava esgotar o tesouro real, ao que se acrescia o poder cada vez maior do ambicioso duque de Guise, a instabilidade emocional cada vez mais patente
do filho, Henrique, e a sua própria saúde enfraquecida.
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Andara angustiada ao perguntar-se se Gautier não teria adquirido o Livro das Sombras, tendo decidido apoderar-se dele para seu próprio uso. Contudo, o livro não
teria servido para nada nas mãos dele. Aquele manuscrito de feitiçaria estava redigido em código, numa linguagem tão antiga que a maior parte das mulheres sábias
não seria capaz de o decifrar.
Catarina tinha continuado a albergar a esperança de que Gautier acabaria por regressar com o livro, que lhe entregaria, ansioso por receber a generosa recompensa
que ela lhe prometera. Mas as palavras de Xavier acabaram com essa esperança de uma vez por todas.
Catarina cruzou os braços diante do peito para pôr cobro aos tremores de emoção que lhe percorriam o corpo; sentia uma desilusão muito amarga que se digladiava com
uma fúria que estava ao rubro, a sua raiva dirigida a Ariane Cheney Deauville.
Na qualidade de Senhora da Ilha Encantada, Ariane era aclamada como sendo a mentora das Filhas da Terra. Em especial, entre aquelas mulheres sábias que acreditavam,
à semelhança de Ariane, que o único objetivo de uma Filha da Terra era vir a ser uma curandeira, uma luz orientadora num mundo ignorante.
Ariane estivera tão determinada a destruir esse livro, enquanto Catarina estava determinada a adquirir todos os conhecimentos de magia negra contidos no Livro das
Sombras. Ao que tudo indicava, Ariane tinha conseguido levar-lhe a melhor.
Maldita fosse a mulher com a sua ingenuidade que era fruto de uma ignorância que a impedia de ver mais longe. Catarina sentia uma profunda revolta ao pensar como
poderia ter utilizado esse Livro. Acreditava-se que descrevia armas tão temíveis que teriam permitido a Catarina esmagar facilmente o duque de Guise, bem como qualquer
outro inimigo que a ameaçasse. Feitiços tão poderosos que teriam feito com que voltasse a ter a juventude e o vigor de antigamente. Alguns até diziam que o Livro
das Sombras continha resposta para o enigma da vida, o segredo da imortalidade. Mas, agora, todos esses segredos extraordinários estavam perdidos para sempre. Haviam
desaparecido, todos sem exceção, tendo levado consigo todas as suas esperanças.
Catarina fechou os olhos, lutando contra a maré negra de desespero que ameaçava submergi-la. Quando voltou a adquirir domínio sobre si própria, voltou a concentrar-se
em Xavier, que se ajoelhava diante de si.
- Havia uma rapariga que se encontrava de posse do Livro das Sombras - continuou Catarina numa voz cava. - Embora ela fosse bastante
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nova, gozava da reputação de ser uma feiticeira tão dotada que conseguiu traduzir esse livro. Chamava-se Megera, se bem que muitos a tratassem por Rosa de Prata,
afirmando que, um dia, ela haveria de me destruir. O que é que lhe aconteceu? Ela continua a ser uma ameaça para mim?
Uma vez mais, Xavier ficou a refletir na sua resposta, um vinco fundo a franzir-lhe as sobrancelhas.
- A rapariga desapareceu de Inglaterra. Mas, sem o Livro das Sombras, ela não constitui ameaça para vossa majestade.
Desaparecida? Sim, e Catarina não tinha a mínima dúvida quanto ao seu paradeiro. Depois de ter destruído o Livro das Sombras, a mulher que dava pelo nome de Catriona
O'Hanlon decerto que teria levado Megera para a ilha Encantada. Apesar do perigo que a Rosa de Prata representava, ela era o ídolo de um culto de bruxas dementes.
Ariane só teria considerado a rapariga como sendo uma garota que precisava da sua proteção.
Se Megera tivesse, efetivamente, procurado refúgio na ilha Encantada, isso explicaria determinados acontecimentos, um em particular. A despeito de todos os seus
conhecimentos de curandeira, a Senhora da Ilha Encantada não tinha conseguido ter filhos durante muitos anos. Mas, no último Natal, dera à luz um filho varão.
Catarina de Médicis sentira-se amargamente invejosa. Ariane tinha tido um filho saudável, enquanto o berço real continuava vazio. A nora enfermiça de Catarina, Louise,
havia tentado tudo e mais alguma coisa para conceber uma criança, purgativos, banhos de ervas e peregrinações a santuários. Tudo sem qualquer resultado. Os parisienses
escarninhos diziam à boca pequena que a culpa era do rei. Se o aperaltado Henrique dedicasse mais tempo à sua mulher e menos aos seus favoritos sempre muito pintados,
era possível que a França já tivesse o herdeiro de que necessitava tão desesperadamente.
O nascimento de um robusto menino faria muito para reforçar o trono periclitante do filho. Henrique granjearia, se não a estima, pelo menos o respeito dos seus súbditos.
Catarina tinha decidido engolir o orgulho e escrever a Ariane, uma missiva em que começava por a congratular num tom melífluo, mas concluía exigindo a Ariane que
lhe dissesse como é que tinha conseguido engravidar. Catarina continuava a sentir-se irritada ao recordar a resposta seca de Ariane.
"Levando em consideração que vossa majestade deu à luz dez filhos, seria leviandade da minha parte pensar em explicar-vos como é que as crianças são concebidas."
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Ariane concluíra, classificando o nascimento do filho como sendo um "milagre abençoado".
Mas seria? Ou seria mais plausível que a virtuosa Ariane se tivesse sentido suficientemente desesperada para decidir consultar uma qualquer fonte sinistra, aquela
feiticeira que era uma criança, aquela Rosa de Prata.
Perdida nas suas próprias cogitações, Catarina foi surpreendida pelo som da voz de Xavier, muito embora ela não lhe tivesse feito mais perguntas.
- Se vossa majestade almeja mais poder, deveis olhar para o Novo Mundo e não para o Velho Mundo. No interior das florestas da Amazónia, existem segredos por descobrir,
magias inimagináveis...
Catarina ignorou-o, não estava absolutamente nada interessada no Novo Mundo. Toda a magia que desejava encontrava-se muito mais perto de casa. Se fosse verdade que
Megera tinha conseguido traduzir o Livro das Sombras, isso quereria dizer que a rapariga tinha inteligência que bastasse para ter memorizado muito do que se havia
inteirado. Ao invés de ser uma ameaça para Catarina, não seria possível que a Rosa de Prata viesse a provar ser um trunfo deveras valioso?
A pulsação de Catarina acelerou-se com um vislumbre de esperança. Mal se apercebeu de que Xavier despertava do seu transe até ele ter tentado levantar-se. Cambaleou
e teria caído, mas o seu gigantesco companheiro amparou-o. Sacudindo a cabeça para aclarar as ideias, Xavier passou pelo círculo de velas para se juntar à rainha
junto da janela.
O frio que entrava pela fenda levou Catarina a aconchegar-se mais no manto, no entanto, Xavier parecia insensível ao ar frio na pele nua. Apoiou uma mão na pedra
e respirou fundo de maneira a expandir o peito.
Ao olhar para o físico dele, Catarina reparou num pormenor de que não se tinha apercebido até então. As costas largas estavam cheias de cicatrizes compridas e esbranquiçadas
que se entrecruzavam. Havia alguém que empregara todos os seus esforços para o vergar à força do chicote. Mas ao examinar a linha dura do maxilar de Xavier, o pequeno
trejeito de arrogância que se esboçava na sua boca, Catarina duvidava de que tivessem conseguido levar isso a cabo. Xavier esfregou os olhos com as pontas dos dedos.
- Perdoai-me, majestade. O transe é muito esgotante. Não sou capaz de o manter durante muito tempo.
- O que é bastante compreensível. Mas considero que esta sessão foi bastante produtiva.
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- De verdade? Nem sempre sou capaz de me recordar de tudo o que teve lugar quando estou em estado hipnótico. Tenho a sensação de que a minha cabeça está tão enevoada
como a cidade. - Fez um gesto com que abarcou o mundo envolto em nevoeiro mais abaixo. - Estas malditas brumas ainda não se dissiparam. Toda a gente anda a dizer
que este nevoeiro tão cerrado é muito anormal.
- Sem dúvida que todos me acusarão de o ter conjurado.
- E foi esse o caso?
Catarina arqueou uma sobrancelha. Eram muitos os que comentavam em tons sussurrados as suas suspeitas de que ela punha em prática as artes negras, mas eram muito
poucos os que se atreviam a dizê-lo na sua cara. A ousadia de Xavier surpreendeu Catarina e fez com que soltasse uma gargalhada roufenha. Deu uma palmada amigável
no braço dele.
- Estais a sobrestimar os meus poderes, capitão Xavier. É com satisfação que constato que não sobrestimei os vossos.
- E eu fico satisfeito por vossa majestade considerar que vos fui útil.
- Espero poder vir a utilizar ainda mais as vossas capacidades - murmurou ela, a sua mão a demorar-se na pele firme e quente.
Xavier sorriu, mas afastou-se da rainha e foi buscar a camisa que tinha despido. Enquanto ele se vestia, Catarina sentia um formigueiro nos dedos, sentindo uma ânsia
quase irresistível de o ajudar a endireitar as dobras de linho sobre aquele vigoroso tronco. Fechou os dedos, deixando que os braços lhe pendessem ao longo do corpo
para reprimir aquele estranho impulso, perguntando a si mesma o que diabo é que lhe tinha passado pela cabeça.
Enquanto Xavier atava os cordões da camisa, apresentou as suas desculpas à rainha.
- Fico contente por terdes achado que vos sou útil, mas é-me impossível tentar pôr em prática outra destas sessões dentro de tão pouco tempo.
- Não é apenas a vossa segunda visão que me interessa, mas também as vossas capacidades como capitão de mar. Quero que façais uma viagem a meu pedido.
O semblante dele iluminou-se.
- É o que mais desejo fazer. Dai-me uma pequena frota de navios. Três ou dois, até mesmo um único navio me satisfaria desde que fosse resistente. Velejaria até aos
cantos mais longínquos da Terra e trar-vos-ia riquezas como nunca...
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- Estou a pensar num destino bastante mais próximo - apressou-se ela a conter aquela explosão de entusiasmo. -Já ouvistes falar da ilha Encantada?
A alegria que se espelhara na fisionomia dele esbateu-se e respondeu-lhe com desconfiança.
- Sim, já ouvi falar dessa ilha. Situa-se ao largo da Bretanha, não é verdade? A ilha das bruxas.
- Só os ignorantes é que consideram isso. É verdade que a ilha é habitada, em grande parte, apenas por mulheres e é governada por uma em particular. Ariane Deauville,
conhecida como a Senhora da Ilha Encantada. É extremamente dotada nas artes de curar.
- Se estais interessada nas artes de curar, poderíeis aprender muito mais com os xamãs do Brasil. Já haveis visto uma prova disso mesmo. O elixir de casca de chacruna1
que vos dei parece ter-vos feito muitíssimo bem.
A infusão proporcionara-lhe um grande alívio para as dores, além de a ter revigorado o suficiente para subir os degraus até ao cimo da torre sem dificuldades de
maior. Contudo, as articulações de Catarina já começavam a latejar de dor, fazendo com que começasse a recear a descida das escadas.
- Infelizmente, os efeitos do vosso elixir são apenas temporários. Procuro alguma coisa que seja mais permanente.
- Como a Fonte da Juventude? Os da tribo dos araucanos afirmam que tal coisa existe na terra a que os espanhóis dão o nome de La Florida. Uma fonte miraculosa que
rejuvenesce qualquer pessoa que se banhe nas suas águas, fazendo com que retorne aos tempos em que estava na flor da idade. Eu podia...
- ... perder anos e anos à procura de tal coisa - atalhou Catarina, interrompendo-o. Anos de que ela não dispunha. - Não tenho a mínima intenção de vos enviar em
busca de um mito.
- Nesse caso, o que é que vossa majestade deseja exatamente?
- A rapariga que se apelida de Megera. A despeito da sua juventude, diz-se que é uma poderosa feiticeira que possui conhecimentos que remontam à Antiguidade, talvez
mesmo do mistério da própria vida.
- E considerais que essa rapariga é menos um mito do que a Fonte da Juventude? - perguntou Xavier com uma expressão escarnecedora.
1. O termo correto é chacrona; árvore pequena (Psychotria viridis) nativa da Amazónia que possui propriedades alucinogénias. (N. da T.)
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- Já tive oportunidade de ver provas do poder dela. Ela sabe como cultivar rosas mortíferas, como fazer um punhal com uma lâmina tão fina como uma agulha e que consegue
injetar veneno diretamente nas veias de uma pessoa.
- Essa rapariga, com base no que dizeis, parece ser mais a portadora da morte do que da vida.
- Não obstante, quero falar com ela, pôr à prova pessoalmente a dimensão dos seus conhecimentos. A fazer fé no que haveis dito durante o vosso transe, estou em crer
que ela, atualmente, reside na ilha Encantada.
- Sendo assim, só precisais de a convidar a vir à vossa corte.
- É pouco provável que ela aceite um convite desses - retorquiu Catarina. - No passado, existiram algumas... situações pouco agradáveis entre nós.
"Por exemplo, quando incumbi um assassino de a matar.-" Catarina baniu aqueles pensamentos da sua mente, esboçando um sorriso suave.
- É por essa razão que desejo que viajeis até à ilha Encantada para que ma trazeis. As mulheres que vivem na ilha são muito desconfiadas em relação a estranhos,
mas é frequente que os navios aportem à ilha para negociarem as suas mercadorias. Pelo que a presença de um capitão de mar como vós não será considerada anormal.
Poderíeis encontrar Megera e persuadi-la a vir a Paris. Se existe um homem capaz de exercer os seus encantos, estou certa de que sereis vós.
- E se a rapariga não se deixar encantar?
- Nesse caso, estou confiante em que tereis inteligência suficiente para encontrardes outra maneira de a trazer até mim.
- E se eu não estiver inclinado a empregar a minha inteligência numa missão dessa natureza? - perguntou Xavier.
- Tendes vindo a entreter-me imensamente com as vossas visitas, com todas as histórias fascinantes das vossas viagens. Também me sinto deveras impressionada com
as vossas capacidades de vidente - replicou Catarina, suspirando. - Mas, ai de mim, existem algumas pessoas em Paris que não vos dedicam tanta estima como eu e refiro-me
a uma muito em especial. Tenho recebido o embaixador de Espanha em várias ocasiões. Ele tem-me regalado com histórias a respeito de um certo corsário francês, conhecido
pela alcunha de Jaguar. Talvez já tenhais ouvido falar dele.
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- Não, não posso dizer que tenha ouvido alguma coisa a esse respeito - respondeu Xavier despreocupadamente, os lábios a desenharem o assomo de um sorriso.
- Aparentemente, este corsário tem uma reputação bastante sinistra por saquear os mercadores portugueses e espanhóis. Ele possuiu uma capacidade de previsão tão
misteriosa que parece saber sempre de antemão aonde é que deve atacar. Os espanhóis estão convencidos de que ele deve empregar a prática de bruxaria. - Catarina
calou-se, começando a examinar Xavier atentamente, à procura de qualquer indício de tensão ou de alarme. Mas ele mostrava-se apenas divertido.
- E o embaixador espanhol suspeita que eu seja esse tal Jaguar? Sua excelência dá-me a impressão de ser um homem bastante entediante e circunspecto. Quem é que poderia
pensar que ele tivesse uma imaginação tão fantasiosa? - retorquiu Xavier com um sorriso rasgado. - Portanto, os espanhóis querem que esse tal Jaguar seja enforcado
por pirataria ou que morra na fogueira acusado de bruxaria?
- De preferência, que morra pelas duas acusações. Razão por que me sentiria extremamente relutante em permitir que fôsseis interrogado por sua excelência, o embaixador,
todavia é possível que não me deixeis outra alternativa que não essa - replicou Catarina, estendendo as mãos num gesto de censura.
O sorriso de Xavier desapareceu-lhe dos lábios.
- Por outras palavras, se eu não for a essa ilha Encantada para raptar a rapariga a vosso mando, estais a ameaçar-me de que me entregareis à Inquisição.
Catarina franziu os sobrolhos. Se Xavier tinha um defeito, era o de não possuir a finura de um cortesão. Por vezes, era capaz de ser de um desassombro chocante.
- Eu não me expressaria com tanta crueza, mas sim. Essa é a proposta que tendes diante de vós.
Houve qualquer coisa sinistra e perigosa que lhe passou pelas feições. Involuntariamente, Catarina deu um passo atrás, recordando-se da vulnerabilidade da sua situação,
sozinha na torre com Xavier e o companheiro deste, enquanto os seus guardas se encontravam na base da torre, pelo que nem sequer a ouviriam se ela gritasse.
O nativo parecia compreender pouco da língua francesa, mas a tensão que se espelhava no semblante de Xavier devia tê-lo alertado, indicando-lhe
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que nem tudo estava a correr pelo melhor. O homem de pele escura endireitou-se em toda a sua estatura, as tatuagens a tornarem-no ainda mais ameaçador. Uma única
palavra de Xavier...
Mas Catarina permaneceu calma. Ainda que tivesse encolerizado Xavier com a sua ameaça, ele não seria louco ao ponto de fazer mal à Rainha Viúva de França. Conhecendo
o homem como ela conhecia, sabia que Xavier poria sempre os seus interesses em primeiro lugar, procedendo em conformidade com isso.
Mas, por outro lado, até que ponto é que ela conhecia Xavier verdadeiramente? Em que medida é que poderia confiar nele? Ele tinha cruzado os braços diante do peito,
mostrando uma fisionomia imperscrutável.
Em tempos, Catarina havia sido competente na antiga arte da leitura de olhos, uma característica das mulheres sábias. Tinha sido capaz de penetrar as máscaras que
os homens afivelavam, lendo os seus pensamentos e inteirando-se do que guardavam na memória, o que fizera com tanta facilidade como se estivesse a ler um livro.
Contudo, perdera essa capacidade à medida que a vista lhe foi faltando. Mas ainda que continuasse a possuir essa faculdade, tal não lhe teria servido de grande coisa
com Xavier. Tinha a impressão de que o homem era tão bom a guardar os seus segredos quanto ela própria a guardar os seus. Decidiu adotar uma atitude mais conciliatória.
- Não tenho o mínimo desejo de que sejais enforcado sob a acusação de um reles pirata, monsieur. Acredito que estejais destinado para grandes feitos. Só tereis de
encontrar Megera. Depois de ma terdes trazido, conceder-vos-ei tantos navios quantos pudésseis desejar.
Xavier não fez qualquer comentário durante bastante tempo, mas depois sorriu e pegou na mão da rainha.
- Sou, como sempre, um obediente servo de vossa majestade - disse por fim, beijando a mão de Catarina, um gesto cheio de cortesia para um homem com tão pouca educação
e grosseiro. Naquele momento, ele fez com que se lembrasse de alguém. Mas de quem?
A recordação atazanou Catarina até acabar por se ter desvanecido, tão frustrantemente elusiva como as brumas.

Segundo Capítulo
Finalmente, o nevoeiro começou a dissipar-se, mas Xavier não considerou que isso fosse uma melhoria. Olhava fixamente para as ruas atulhadas de lixo e para o casario
estreito e encavalitado. Não pela primeira vez ao longo dos últimos meses, ansiou pelo travo do ar marinho a encher-lhe os pulmões, sentindo a falta da vasta ondulação
do mar alto.
O seu camarote a bordo do Miribelle era mais exíguo do que a câmara daquela estalagem, no entanto, nunca se sentira tão confinado como se sentia ali, entre aquelas
paredes cinzentas e sujas que pareciam fechar-se sobre ele. Naquela tarde tinha a sensação de que o ar na alcova era mais pesado, sobrecarregando-o com o peso da
reprovação do seu companheiro.
Pietro inclinava o corpo alto por cima do lavatório de pé, esfregando as tatuagens que pintara no rosto, as quais ilustravam tanto a sua linhagem de guerreiros africanos
como a dos índios do Panamá de que tanto se orgulhava. Tirou a última das penas das tranças e olhou para Xavier com uma expressão de censura. Falou numa voz profunda
e muito bem articulada, expressando-se num francês tão fluente como o espanhol que era a sua língua materna.
- Está a meter-se num jogo bastante perigoso, capitão.
- Estarei? Bem... não parece que eu esteja a ganhar - replicou Xavier com uma expressão tristonha, olhando para a pequena bolsa que recebera da rainha e que atirara
para cima da cama. - Além disso, não me parece que estejas em posição de me dares lições de moral - acrescentou. Tens estado a alinhar comigo a par e passo.
- Apenas para me certificar de que essa mulher demoníaca não lhe rogue uma praga - retorquiu Pietro, secando a cara, a fronte larga franzida
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com rugas de preocupação. - A menos que seja capaz de rogar uma praga a si mesmo. A macumbu1 é uma magia muito forte que se destina a curar e a esclarecer a mente.
Não tem nada a ver com esta espécie de intrujice e imposturice. Os deuses não hão de ver com bons olhos o mau uso que está a dar aos seus poderes.
Xavier deixou-se cair num banco de madeira, estendendo os pés para mais perto do lume que crepitava na lareira.
- Ah, mas ambos sabemos que não possuo poderes, se bem que o meu transe tenha sido quase um desempenho mágico. Pensei que o revirar dos olhos foi um toque particularmente
eficaz.
- Espero que não volte a tentar pô-lo em prática. Não será capaz de continuar a intrujar esta rainha indefinidamente. É possível que ela já esteja velha, mas a sua
mente continua tão lúcida como sempre. Não se esqueça de que ela é uma bruxa.
- O que a minha mãe sempre me disse - murmurou Xavier. Olhava com fixidez para o lume, as chamas a transformarem-se numa névoa de um vermelho-dourado, enquanto a
sua mente conjurava recordações meio formadas da sua meninice. A rainha de visita à casa da família de Xavier em Paris e a mãe a obrigá-lo a esconder-se no... armário?
No baú onde guardava a sua roupa? Num lugar qualquer que era estreito e escuro.
- Não faças barulho nenhum, mon petit, para que a Rainha das Trevas não dê por ti.
- Mas... e tu, mãesinha? - Xavier tinha fechado a mão no punho da espada de madeira que o pai lhe oferecera. - Deixa-me ficar ao pé de ti. Sou capaz de te proteger,
mesmo que ela seja uma bruxa.
- Não, não podes ficar comigo - replicou a mãe, possuída de um grande frenesim. - Ela não deve ver-te, nunca deve saber da tua existência. A maneira como essa mulher
demoníaca se aproveita de mimjá é bastante nefasta. Queres que ela também te transforme num peão às suas ordens?
Aquela ameaça servira para o aquietar. Apesar dos seus cinco anos de idade, aceitara as palavras da mãe muito literalmente. Tinha estremecido e imaginara a feiticeira
a encontrá-lo. Lançando-lhe um feitiço para que os seus braços se derretessem, fundindo-se com os lados do corpo, enquanto
1. A autora deve estar a referir-se à macumba, o culto brasileiro com origem em práticas africanas. (N. da T.)
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as pernas mirravam até desaparecerem por completo, até ele ficar do tamanho de um peão de madeira encurralado para sempre no tabuleiro de xadrez da bruxa.
Desde então que se tinha perguntado muitas vezes se teria sido apenas a sua imaginação fora do seu controlo ou a da sua mãe. Teria a Rainha das Trevas constituído
verdadeiramente qualquer perigo ou teria sido a sua mãe meramente desesperada por fazer com que um rapaz endiabrado se comportasse como devia ser?
O temor que a rainha inspirava à mãe parecera-lhe genuíno, todavia existiam ocasiões em que a mãe mostrara uma tendência para se mostrar um pouco... excitada de
mais.
"Excitada de mais? Não quererás dizer um pouco louca?"
Os dedos de Xavier dirigiram-se, quase involuntariamente, para a cicatriz que tinha na garganta. Foi despertado dos seus pensamentos por alguém que batia à porta
do quarto.
Xavier levantou-se de um salto, apressando-se a pegar na espada. Pietro seguiu-lhe o exemplo; a advertência da rainha acerca do embaixador espanhol continuava bem
presente na memória de ambos.
- Capitão? - chamou uma voz roufenha.
Pietro soltou a respiração que sustivera, enquanto Xavier sentiu que a tensão que se tinha instalado nos seus ombros desaparecia. Voltou a embainhar a espada antes
de destrancar a porta para que o seu primeiro-imediato pudesse entrar.
O homem baixo que aguardava na soleira da porta não podia ter apresentado um aspeto mais mal-ajambrado. Tinha uma barba grisalha e hirsuta, com a pele curtida pelo
ar marinho e pelo sol e os olhos velados, constantemente semicerrados abaixo de uns sobrolhos grossos e grisalhos.
Rijo e com os tendões salientes, os seus movimentos eram pouco afetados pela perna de pau que lhe granjeara a alcunha de Jambe du Bois. O conjunto desirmanado do
seu vestuário era complementado com um colorido papagaio empoleirado no seu ombro.
A ave soltou um grasnar roufenho quando Jambe entrou na alcova num passo pesado. Xavier apressou-se a trancar a porta depois de ele ter entrado. Enquanto Pietro
largava a sua própria espada, franzia o sobrolho e abanava a cabeça.
- Tu não me digas que tens andado por toda a cidade com essa coisa empoleirada no ombro. Estás doido, mon ami? Sabes bem como essas aves
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são apreciadas aqui. Queres acabar com uma valente marretada na cabeça para que te possam roubar a criatura? Jambe resfolegou escarninho.
- Gostaria muito de ver um patife qualquer tentar roubar-me o Mendigo do Mar.
- Eu também gostaria de ver isso. Era a maneira de nos vermos livres dessa maldita coisa tão irritante - ripostou Xavier, praguejando e esgueirando-se quando o papagaio
esvoaçou por cima da sua cabeça, pousando no peitoril da janela.
O Mendigo inclinou a cabeça de lado e olhou para Xavier com a sua malevolência habitual, gritando-lhe numa voz de cana rachada.
- Merde! Merde!
Jambe ficou com uma expressão radiante.
- Ouvi bem este rapaz extraordinário. Tenho andado a ensiná-lo a praguejar em francês. A seguir tenciono ensinar-lhe espanhol.
Como se o pássaro já não fosse suficientemente asqueroso sem ser ensinado por Jambe, que tinha um sotaque horrendo. As vogais sem oclusão traíam as origens inglesas
do velho sempre que abria a boca.
Pietro, que era mais tolerante em relação ao Mendigo do Mar do que Xavier, aliciou o papagaio para que pousasse no seu braço, enquanto Jambe se virava para Xavier
com uma expressão radiante e esperançosa.
- E então, como é que as coisas correram hoje? As informações que lhe dei foram úteis?
A despeito da deceção que sentia depois da sua sessão com a rainha, Xavier não conseguiu reprimir um ligeiro sorriso. Jambe era como uma pega, sempre a acumular
rumores preciosos em todos os portos. Enquanto bebia canecas de cerveja numa taberna em Plymouth, Jambe tinha encontrado um marinheiro que estivera preso em Marshalsea
recentemente. Um dos seus companheiros de cela era um homem que ficara gravemente queimado num incêndio, o qual não tinha parado de arengar febrilmente acerca de
rainhas das trevas e de rosas de prata. E foi com base naquela fonte que se inteirou de uma história extraordinária, a demanda da rainha Catarina para encontrar
um livro de bruxaria e uma rapariga que tinha um nome bastante estranho.
Quando Jambe relatara aquela história a Xavier, este sentira-se inclinado a ignorá-la como sendo disparatada, não obstante registara-a na sua memória. Uma pessoa
nunca sabia quando é que até os delírios de um louco poderiam vir a ser úteis.
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- As informações que obtiveste ajudaram-me a convencer a rainha das minhas faculdades proféticas - disse Xavier. - A história exerceu um poderoso efeito sobre ela,
mas não da maneira como tínhamos esperado. Explodiu-me na cara como um canhão mal carregado.
- O que é que o capitão quer dizer com isso? A história não convenceu a bruxa velha a abrir os cordões à bolsa?
Xavier respondeu com um gesto na direção da cama. Jambe olhou para dentro da bolsa de seda e esfregou as mãos de contentamento. Mas quando deixou que as poucas moedas
caíssem em cima do leito, o sorriso desdentado deu lugar a uma expressão carrancuda.
- Mas o que diabo é isto? Este dinheiro mal chega para reparar o Miribelle e comprar provisões suficientes para atravessarmos o canal.
- Infelizmente, isso é tudo o que a rainha deseja que façamos. - Concisamente, Xavier relatou-lhe o que se tinha passado na torre naquela tarde.
- Portanto, a bruxa velha quer que vá à ilha Encantada à procura dessa rapariga - concluiu Jambe, soltando um assobio num tom baixo e olhando na direção de Pietro.
O homem de raça negra e de elevada estatura afagou a cabeça emplumada do papagaio, ignorando as bicadas que o Mendigo lhe dava no dedo por querer brincadeira. Os
dois marinheiros trocaram um olhar cheio de significado que irritou Xavier, se bem que nenhum dos dois homens tivesse dito uma única palavra.
Aquele era o problema com homens com quem se viajava havia tanto tempo. Acabavam por saber de mais a respeito do passado de uma pessoa. Tanto Jambe como Pietro estavam
bem cientes de que a ilha Encantada era o último lugar aonde Xavier queria ir. Jambe pigarreou, preparando-se para falar.
- E então... tenciona fazer o que a rainha lhe pediu? - perguntou.
- Não, raios me partam se o fizer!
- A bruxa não ficará nada satisfeita se a desafiarmos. Ela ameaçou que nos entregaria aos espanhóis - adiantou Pietro. Apesar da expressão imperturbável do marinheiro,
Xavier viu traços de temor nos olhos dele.
- Isso jamais acontecerá, meu amigo.
- Sei que não - retorquiu Pietro calmamente. - Porque morrerei primeiro antes de permitir que os espanhóis me apanhem vivo outra vez.
Xavier aquiesceu com um inclinar de cabeça. Sentia exatamente o mesmo.
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- Toda esta nobre conversa acerca de morrer seria desnecessária - começou a dizer Jambe numa voz resmungada -, tal como não teríamos de pedir o que quer que fosse
a rainha nenhuma, se não tivéssemos perdido a última carga que transportámos. Um porão cheio de escravos africanos que valiam o seu peso em ouro e que insistiu em
largar em terra, todos sem exceção, libertando-os.
- Pensei que tinha sido bastante claro a respeito desse assunto - ripostou Xavier. - Recuso-me a fazer fortuna com o comércio esclavagista.
- Mas porque não? Todo o mundo se dedica a isso. Os turcos, os ingleses, os portugueses, os espanhóis. Até mesmo os próprios africanos. - Jambe endireitou-se, adquirindo
uma postura de quem tinha toda a razão no que dizia. - A escravatura até está sancionada na Bíblia.
Tivessem as circunstâncias sido outras, era possível que Xavier se tivesse sentido divertido por um velho patife como Jambe citar as sagradas escrituras. Mas mostrou
uma expressão desdenhosa.
- Não saberia dizer nada quanto a isso, uma vez que não sou um homem religioso.
- Se tu próprio já tivesses sido um escravo, Jambe, compreenderias a atitude do Xavier - interveio Pietro com calma.
- Quer Monsieur du Bois compreenda ou não, isso não importa para o caso em questão - disse Xavier, sujeitando o seu primeiro-imediato a um olhar cheio de frieza.
- Enquanto eu for capitão do Miribelle, este navio nunca se dedicará ao tráfico de escravos.
- Está bem. Está bem. - Jambe atirou as mãos ao ar num gesto de derrota. - Portanto, o que diabo é que vamos fazer exatamente, capitão?
Era uma boa pergunta, pensou Xavier, juntando as moedas que Jambe espalhara pela cama. Franziu os sobrolhos, olhando para o punhado de moedas na palma da mão. Não
era grande recompensa pelos seus esforços para encantar aquela bruxa velha, pelas semanas que passara enclausurado naquela cidade tão populosa e barulhenta.
Perguntava-se que louco impulso é que o levara a regressar a Paris. Curiosidade em ver a cidade onde nascera decorridos tantos anos para poder, finalmente, deixar
que os fantasmas da sua juventude repousassem? Ou movido por uma qualquer noção disparatada de que talvez quisesse fazer um esforço para passar a ser respeitável,
conseguir um financiamento legítimo para o género de viagem com que sempre havia sonhado, velejar
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por mares que ainda não haviam sido cartografados, descobrir terras nunca vistas por nenhum europeu. A semelhança do seu antigo capitão, Sir Francis Drake.
Mas Drake tivera a sorte de estar ao serviço de uma rainha com a clarividência necessária para apreciar todas as oportunidades tão promissoras que o Novo Mundo tinha
de reserva. Além disso, também contava com o apoio dos prósperos cidadãos de Londres.
Nos tempos que corriam, não encontraria grande prosperidade em França, um país depauperado por uma guerra civil e pela fome e que era governado por um rei semilouco
e uma feiticeira idosa.
Pietro tinha razão, Xavier cometera uma loucura, correndo graves riscos, ao pôr em prática os seus truques para enganar Catarina de Médicis, além de ter corrido
o risco de ela o reconhecer. As pessoas diziam a Xavier que era extraordinariamente parecido com o seu falecido pai, um facto que detestava. Não tinha o mínimo desejo
de ter parecenças com o nobre chevalier, de maneira nenhuma em particular.
Seria isso realmente que motivara as suas últimas ações?, perguntava-se Xavier. Não poderia pagar ao pai na mesma moeda por toda a infelicidade que lhe causara e
à mãe, por isso talvez tivesse procurado vingar-se disso na Rainha das Trevas.
Mas Xavier não deu crédito àquela probabilidade. A vingança exigia demasiado ódio e Xavier considerava-se um homem frio e lógico. Se bem que fosse forçado a admitir
que lhe agradara sobremaneira ter feito com que a rainha fizesse figura de parva.
Afinal de contas, ele é que fizera figura de parvo, pensou Xavier com amargura. Deixou cair as moedas de novo dentro da bolsa, virou-se e deparou com os dois homens,
que o olhavam na expectativa.
- Está-me a parecer que vamos ter de esquecer os prejuízos e rumar a Calais, de regresso ao Miríbelle. - Ergueu a bolsa. - Se regatearmos um pouco os preços, conseguiremos
comprar provisões suficientes para podermos fazer-nos ao mar.
Pietro mostrou-se aliviado e jambe acenou satisfeito, ainda que carrancudo.
- Já não era sem tempo - disse numa voz rosnada. - Mas... e depois?
- E depois voltamos à nossa atividade habitual - respondeu Xavier, mostrando uma pequena garrafa de conhaque. Levantou-a ao alto num
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gesto floreado, acrescentando: - Meus senhores, aqui vai, um brinde à pirataria! - Desarrolhou a garrafa e bebeu um trago generoso antes de a passar ajambe, que
fez uma careta risonha.
- Ao Miribelle e a um qualquer navio espanhol carregado de ouro que se atravesse na nossa rota - brindou. Depois de ter bebido um gole, Jambe limpou os lábios à
manga, passando a pequena garrafa a Pietro. O panamiano bebeu e acrescentou no seu tom de voz sempre muito tranquilo:
- E aqui vai a um mar de águas mansas e ventos fortes.
Sim, pensou Xavier, bebendo outro trago de conhaque e sentindo o ardor na garganta. Um vento forte que o levasse de regresso ao Brasil, às ilhas das Caraíbas, até
aos confins do mundo.
Rumo a qualquer parte, desde que o levasse para longe de França e da ilha Encantada.

Segundo Capítulo
- A rapariga é o livro.
Gemeu Meg durante o sono, o cabelo castanho e sedoso espalhado pela almofada enquanto se virava e revirava num sono inquieto, desesperada por impedir que o rapaz
a atraiçoasse, entregando-a à Rainha das Trevas.
Meg agarrava-se à manga de Alexander Naismith.
- Sander, porque é que estais a fazer-me isto? Pensei que éreis meu amigo. Eu amava-vos.
Sander fitava-a com uma expressão de frieza.
- Eu estava pronto para vos adorar, minha Rosa de Prata. com a vossa magia, podíamos ter enriquecido, seríamos poderosos, mas haveis recusado tudo isso. A devoção
que tinha por vós foi a minha morte.
Sacudindo-a para que o largasse, Sander virou-se para a rainha das Trevas.
- A Megera memorizou o conteúdo do Livro das Sombras. Ela recorda-se de cada palavra, de todas as páginas.
- Não, não sei. Não me lembro de nada! - gritou Meg. - Apesar do que o Sander vos possa dizer, o meu nome não é Megera. Chamo-me Margaret Elizabeth Wolfe.
- Ah, minha querida - retorquiu a rainha, sorrindo - sei que este rapaz está a dizer a verdade sobre um aspeto. És a Megera, a Rosa de Prata.
- E o resto também é verdade - insistiu Sander. - Esse livro está registado dentro dela.
- Não tenho nada dentro de mim. Absolutamente nada.
- Receio ter de dizer que só há uma maneira de se ter a certeza disso, minha menina. - A rainha das Trevas aproximou-se mais dela, as volumosas saias negras
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a ameaçarem engolir Meg. Pegou na tesoura dourada que trazia numa pequena bolsa presa à cintura. - Vamos ter de te abrir para ver.
- NÃO!
Meg sentou-se de repente na cama com a respiração ofegante, a camisa de noite ensopada em suor. A luz do luar filtrava-se através das ramagens da árvore no lado
de fora da janela da sua alcova, projetando sombras na parede que pareciam garras sinistras, como se as mãos de Catarina de Médicis conseguissem chegar à ilha Encantada.
Meg tremia que nem varas verdes, esforçando-se por resistir ao impulso de puxar as cobertas para cobrir a cabeça. Era apenas um sonho, disse a si própria, tentando
tranquilizar-se, somente outro dos seus estúpidos pesadelos. Esperava não ter gritado durante o sono para não acordar toda a gente que dormia na Belle Haven.
Espreitou pela beira da cama para a figura estendida no divã diante da lareira. Viu que Agatha Butterydoor não se mexia. A idosa serva já estava meio surda e o sono
pesado era pontuado por um ressonar baixo.
Meg pôs-se à escuta, tentando ouvir quaisquer sons que viessem de fora do seu quarto. À medida que os segundos iam passando sem ouvir nada, tentou descontrair-se.
Não tinha perturbado o sono de ninguém com os seus gritos. O que também significava que ninguém se apressaria para a reconfortar. Mas já não devia precisar disso,
disse a si própria irritada consigo mesma. Tinha acabado de fazer treze anos, portanto já era uma mulher crescida.
Virou-se de lado dobrada sobre si própria e aninhou-se na almofada, tentando pensar racionalmente para banir o sonho da sua mente. Alexander Naismith tinha morrido.
O jovem ator traiçoeiro já não podia atraiçoá-la a mando de quem quer que fosse. Perecera no mesmo incêndio que destruíra o Livro das Sombras.
O livro tinha desaparecido para sempre, pelo menos era o que toda a gente acreditava. Meg desejava não saber que as coisas não eram bem assim. A memória retentiva,
de que em tempos idos se orgulhara tanto, passara a ser a sua maldição. Massajou as têmporas.
O Livro das Sombras, agora, encontrava-se alojado na cabeça de Meg. Tinha a sensação de ser capaz de sentir aquelas folhas quebradiças tão antigas a fazerem pressão
no interior do seu crânio. Se a Rainha das Trevas alguma vez viesse a descobrir...
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Mas não havia maneira de a mulher vir a inteirar-se disso. A rainha era velha. Estava adoentada. Já não possuía grande poder nem influência sobre quem quer que fosse,
nem sequer sobre o seu próprio filho, o rei.
Ariane Deauville assegurara a Meg que a Rainha das Trevas deixara de ser uma ameaça para si. Queria acreditar no que Ariane lhe dizÍa tão desesperadamente. A Senhora
da Ilha Encantada possuía uma sabedoria inexcedível, mas ela não havia passado pelo que Meg já passara, tal como não vira o que ela tinha visto. Aquelas visões aterradoras
que insistiam que um confronto entre Meg e a Rainha das Trevas era inevitável.
Meg estremeceu e apalpou por baixo da colcha à procura do objeto que tinha escondido ali. Olhou outra vez nervosamente na direção de Aggie, a fim de se certificar
de que a mulher continuava adormecida antes de tirar a pequena bola de cristal que guardara debaixo das cobertas.
Até mesmo na escuridão da noite revestida de sombras que reinava na alcova, o cristal cintilava com as suas sinistras tentações. Tinham sido tantas as vezes em que
Meg resolvera livrar-se da bola de cristal que lhe permitia adivinhar o futuro, impedindo-se de continuar a consultar o seu estranho poder.
Mas se lhe tivesse sido possível acender uma vela sem acordar Aggie, Meg teria sucumbido à bola de cristal, mergulhando profundamente no que o interior continha,
apesar de saber de antemão que as imagens que aí encontraria dariam origem a mais pesadelos.
Meg voltou a guardar a bola de cristal nas dobras dos cobertores. Queria fechar os olhos para voltar a adormecer, mas sentia-se demasiado atemorizada, com medo dos
pesadelos que poderiam voltar a apoderar-se de si.
Depois de se virar e revirar durante alguns minutos, Meg levantou-se da cama e tropeçou, batendo com o dedo grande do pé num banco de madeira. Retraindo-se de dor,
reprimiu um grito.
Era desconcertante constatar como parecia ter passado a ser desajeitada durante o último ano, com o seu corpo a mudar tanto que, às vezes, tinha a sensação de que
não lhe pertencia. Parecia não saber o que fazer com os seus braços e pernas, como se fossem corpos estranhos, enquanto os seios que desabrochavam eram uma fonte
tanto de admiração quanto de embaraço.
Meg coxeou até à janela, que abriu vagarosamente para não fazer barulho, grata pela lufada de ar frio do outono nas faces coradas. Abaixo dela,
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a luz do luar desenhava uma cena de serenidade bucólica, os jardins cobertos de geada, os contornos sólidos do palheiro e dos estábulos, assim como as formas mais
à distância do pomar de macieiras.
Belle Haven era uma casa senhorial acolhedora que se aninhava no interior da ilha. O que é que poderia ser mais seguro do que aquilo? Por pressuposto, Meg estava
em segurança ali.
Suspirou e encostou a cabeça ao caixilho da janela. A lufada inicial de ar frio que lhe parecera tão refrescante entranhava-se agora pelo tecido fino da camisa de
dormir, fazendo com que ficasse com pele de galinha nos braços. Meg começou a fechar a janela quando se apercebeu de relance de movimentos abaixo de si.
Era óbvio que havia mais alguém que estava a ter uma má noite. Uma mulher envolta num manto cinzento que se passeava pelo jardim, a luz do luar a permitir que Meg
vislumbrasse a pele clara e o cabelo de um louro-claro.
Não, não era uma mulher, apenas o fantasma de uma. Lady Jane Danvers era tão calada, sempre a tentar passar despercebida, com uma expressão de tristeza nos olhos
que atormentava Meg. Ficou tensa ao vê-la a desaparecer ao fundo do carreiro do jardim. Subitamente, as sombras da noite deixaram de lhe parecer tão tranquilas e
pacíficas, tal como o roçagar da folhagem das árvores já não lhe dava uma sensação de conforto. Jane não devia andar ali fora sozinha. Mas era preciso não esquecer
que Jane não tinha conhecimento do que Meg vira na sua última visão, porque Meg nunca a advertira.
com um olhar de nervosismo a Aggie, Meg percorreu a alcova em bicos de pés até encontrar as botas, que calçou, após o que procurou o manto às apalpadelas.
Jane Danvers caminhava pelo carreiro do jardim, as folhas e os galhos secos a estalarem debaixo dos seus pés. Quase conseguia ouvir os ecos da voz da sua antiga
ama a ralhar-lhe.
"Cuidado com os sapatos, menina Jane. Não deveis sair do carreiro. Não obstante o quanto se sentia exausta, os lábios de Jane esboçaram um pequeno sorriso de tristeza.
Os conselhos de Sarah sempre haviam primado pela sensatez. Não sair do carreiro... talvez se tivesse dado mais ouvidos aos avisos de Sarah, agora não estivesse na
situação difícil em que se encontrava.
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Exilada. Na penúria. Sozinha.
O frio daquela madrugada de outono entranhava-se por baixo do manto, fazendo com que tremesse. A cama que deixara havia pouco era quente, mas nem isso servia para
a atrair de volta a casa. Não conseguia conciliar o sono, a cabeça repleta de pensamentos indesejáveis, tão cheia como um baú que contivesse roupa de mais. Era uma
pena que as reflexões e recordações perturbadoras não pudessem ser descartadas com tanta facilidade como as peças de roupa que se vestia.
Se tivesse tido uma noite tão inquieta na sua casa em Londres, teria acendido o lume na lareira da sua antecâmara, tentando abstrair-se na leitura de um livro, ou
teria descido para a espaçosa cozinha, permitindo que a idosa cozinheira a paparicasse, preparando-lhe uma caneca de vinho quente com especiarias e adoçado com mel.
Mas acontecia que Belle Haven não era a casa de Jane, por muito que Ariane Deauville lhe rogasse que a considerasse o seu lar. Não querendo ser mais um fardo para
os que viviam em casa de Ariane do que já era, Jane preferia guardar a sua inquietude para si própria.
Continuou a percorrer o carreiro até encontrar o banco de jardim situado atrás do carvalho de grande porte, bem fora da vista de quem estivesse em casa. com a mão,
afastou várias folhas húmidas e sentou-se no banco, arrepiando-se ao sentir a pedra fria e dura debaixo de si.
Aconchegou-se melhor no manto, consolando-se ao pensar que só deveria faltar uma hora até ao romper da aurora, o início de um novo dia, durante o qual estabeleceria
um plano sensato para o seu futuro.
O seu futuro... não que ela esperasse grande coisa daí. Aos trinta e dois anos, a maior parte das mulheres já tinha assentado e constituído família com um marido,
senhora da sua própria casa. Não tinha filhos, já enviuvara duas vezes e a família que ainda lhe restava não estava particularmente interessada em conviver de perto
consigo.
Quando Jane se agitou no banco à procura de uma posição mais confortável, apercebeu-se da carta que guardara na algibeira do manto. Perguntou-se por que razão é
que não atirara aquela missiva para o lume. Já tinha sido suficientemente humilhante ter de escrever à prima Abigail para lhe rogar que lhe permitisse juntar-se
à sua família em Paris, sem ter precisado da desfeita das repetidas recusas de Abigail.
Desta feita, pelo menos, Abigail tinha tido a frontalidade de lhe dar uma explicação.
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"Minha muito querida Jane, por muito que eu lamente as dificuldades por que estás a passar, não posso fazer grande coisa para te ajudar. Não é conveniente receber-te
nas presentes circunstâncias. A nossa casa em Paris está à cunha com outros católicos ingleses emigrantes e, francamente, minha prima, adquiriste uma reputação muito
infeliz.
Não incomoda ninguém que tenhas estado encarcerada na Torre de Londres, acusada de conspirares com vista ao assassínio de Isabel. Na verdade, terias sido aclamada
como uma heroína se tivesses conseguido livrar a Inglaterra dessa rainha herege.
Muitas pessoas, incluindo o meu querido marido, consideram extremamente perturbador o facto de teres sido acusada de feitiçaria. Tiveste muita sorte por não teres
morrido na fogueira, mas o George acha que não pareces estar muito arrependida, porque, a não ser o caso, não terias vivido durante o último ano na ilha Encantada,
uma ilha que é, como toda agente sabe, habitada quase exclusivamente por bruxas."
Jane sentiu uma centelha de cólera, o que era muito raro nela, ao pensar no conteúdo da carta, em especial no último comentário de Abigail, que tanto a mortificava.
Jane nunca teria passado o último ano na ilha Encantada se tivesse outro lugar para onde pudesse ter ido.
Devia voltar a escrever a Abigail, protestando a sua inocência. Jamais teria conspirado para assassinar a rainha e, quanto à acusação de bruxaria, Jane teria sido
a última mulher à face da Terra a envolver-se em práticas de feitiçaria. Não depois de uma obsessão pela alquimia ter sido a causa da morte do seu irmão mais novo.
Quanto ao muito amado George de Abigail, o homem não considerara Jane assim tão inconveniente no passado quando precisou de lhe pedir dinheiro emprestado para saldar
as suas dívidas de jogo.
Mas esse era um pensamento de azedume, pelo que Jane se esforçou por suprimi-lo da sua mente. Não podia assacar toda a culpa à prima por querer manter-se afastada
dela. Até há um ano, a própria Jane teria olhado de esguelha para alguém proveniente da ilha das bruxas.
Não eram bruxas, lembrou a si própria. Filhas da Terra, era o que Ariane e as outras mulheres que residiam na ilha Encantada preferiam que lhes chamassem. Depois
de ter passado a viver com elas, Jane descobrira muita coisa digna de admiração, especialmente a própria Ariane. A Senhora da Ilha Encantada era extraordinariamente
culta e não tinha igual nas artes de curar.
Todavia, Jane olhava com alguma desconfiança para as crenças pagãs de Ariane, o que também se aplicava à sua capacidade de se inteirar dos
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pensamentos dos outros, o que não era minimamente natural. Por muito amável que Ariane fosse com ela, Jane receava que nunca se sentiria bem a viver na ilha Encantada.
A sua existência de católica em Inglaterra não havia sido isenta de perigos e incertezas, mas, do mal o menos, nesse país a sua posição sempre estivera claramente
definida. Como viúva de um proeminente comerciante, senhora de uma mansão com um grande número de servos, irmã dedicada. Mas agora que havia sido despojada de tudo
isso, deixara de ter a certeza de quem era, tal como não sabia onde é que os seus deveres residiam.
- Sou uma estranha numa terra estranha - disse para consigo, recordando-se da passagem que na véspera de ontem a sobrinha de Ariane lhe lera em voz alta da Bíblia
dos huguenotes.
A jovem Seraphine Remy tinha uma bela voz, de uma intensidade apaixonada, mas, na qualidade de católica, Jane tinha noção de que nem sequer devia ter ouvido aquela
leitura.
com um sentimento de culpa, levou a mão ao crucifixo de ouro que trazia ao pescoço, sobressaltando-se um pouco ao ouvir o estalar de galhos secos. Espreitando pelo
lado do tronco do carvalho, viu o clarão de uma lanterna à distância. Havia alguém que acabara de entrar nos jardins vindo da direção da casa. Teriam vindo à procura
dela? Talvez um dos servos de Belle Haven ou, o que seria pior, a própria Senhora da Ilha Encantada.
As faces de Jane ficaram afogueadas enquanto tentava pensar numa explicação que justificasse andar a rondar pelos jardins de Belle Haven àquela hora tardia da noite,
como se fosse um gatuno.
- Vossa senhoria? - chamou alguém em voz baixa quando a luz da lanterna já se encontrava mais próxima. Jane soltou um suspiro de alívio quando reconheceu a voz de
Margaret Wolfe.
Outra exilada na ilha Encantada. Muito embora Jane supusesse que era estranho pensar em Meg naqueles termos. A jovem era francesa de nascimento, além de ter fortes
laços de união com as Filhas da Terra, o que, em princípio, devia ter feito com que ela se ajustasse melhor à vida na ilha do que Jane. Não obstante, tinha a impressão
de que a jovem se sentia tão perdida quanto ela própria.
- Jane! - chamou Meg de novo, desta feita num timbre de voz mais elevado e premente. Erguia a lanterna ao alto enquanto olhava em redor tão agitada que foi por pouco
que não passou por onde Jane se encontrava oculta por baixo da árvore.
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- Meg, estou aqui - indicou Jane, pondo-se de pé.
Meg girou sobre si própria, a luz da lanterna a iluminar-lhe o rosto que parecia de um branco translúcido, emoldurado pelo cabelo despenteado de um tom de canela
escura. Soltou uma respiração trémula que sustivera, mostrando um alívio tão grande que Jane ficou perplexa.
A garota atirou-se na direção desta e enlaçou-lhe o pescoço com um braço. Jane pestanejou de tão estupefacta que ficou. Meg tinha tendência a ser reservada, sendo
muito raro que se entregasse a tais manifestações de emoção. Se bem que surpreendida, retribuiu-lhe o abraço.
- Deus nos valha, menina - disse num murmúrio. - O que é que se passa? - Abraçou-a bem junto a si, sentindo que os ombros magros de Meg tremiam. - O que é que aconteceu,
Margaret?
- N... nada. Vi-vos a desaparecer no jardim e pensei... receei que pudesse acontecer... - Meg interrompeu-se, sentando-se no banco ao lado de Jane e pousando a lanterna.
- A temperatura do ar está muito agreste. Eu... eu fiquei preocupada, pensando que podíeis ficar constipada.
Jane olhou para a garota com uma expressão intrigada. Tinha a sensação de que aquilo não era tudo o que ela pensara dizer, mas deixou que isso passasse em branco
ao constatar como Meg tremia que nem varas verdes.
Muito sensatamente, Jane teve o cuidado de se agasalhar antes de dar início às suas deambulações noturnas, optando pelo seu vestido mais quente. Por seu lado, Meg
limitara-se a pôr um manto pelos ombros, por cima da camisa de dormir, tendo calçado as botas sem meias.
- É muito mais provável que sejas tu a ficar constipada do que eu - disse Jane. Inclinou-se para baixo e pegou na orla do manto, aconchegando-a em volta das pernas
da garota. - O que é que andas a fazer acordada a esta hora?
- Eu também podia fazer a mesma pergunta a vossa senhoria.
- Jane. Trata-me por Jane. A "sua senhoria" acabou-se - recordou-lhe Jane. Um pouco a medo, tocou na face de Meg e sentiu que ela tinha a pele extremamente fria.
- Ficaste assustada com outro dos teus sonhos maus?
Meg apressou-se a negar com um vigoroso abanar de cabeça.
- Nada de tão infantil como isso. Eu... eu muito simplesmente não conseguia adormecer. Sabeis como é quando uma pessoa lê antes de adormecer. A nossa cabeça fica
cheia de palavras, de ideias a mais.
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Jane sentou-se mais chegada a Meg no banco.
- Não existe nada de infantil por se ficar perturbada por causa de pesadelos, Meg. Eu também continuo a sofrer por causa deles.
Meg inclinou a cabeça de lado, olhando-a com uma expressão de desconfiança.
- E com o que é que sonhais?
"Que continuo encarcerada na minha cela na Torre de Londres, a tremer de frio e a ouvir as ratazanas a correrem por cima da palha. Que o Ned arromba aporta, deitando-a
abaixo para me salvar, o meu irmão vestido com um gibão de um carmesim brilhante. Só quando o Ned se aproxima mais de mim é que me apercebo de que é o seu próprio
sangue que tinge o tecido, jorrando-lhe do golpe fundo que tem na garganta."
Mas era impensável que Jane descrevesse tais horrores a uma garota que já tinha sofrido de mais para alguém da sua idade. Jane afivelou um sorriso forçado.
- Ora, às vezes sonho que estou na corte, tendo-me esquecido de me vestir. Faço uma vénia à rainha vestida apenas com a minha camisa de dormir.
- Não, não é com isso que sonhais - retorquiu Meg, olhando-a com uma fixidez que não permitia que Jane desviasse o olhar e que não tinha absolutamente nada de infantil.
Da lanterna aos pés de Meg irradiava um clarão espectral que se refletia nos malares extremamente angulosos da garota e na pele branca. Tinha uns olhos enormes,
negros na sua intensidade, e Jane sentia que ela percorria inexoravelmente os corredores fechados à chave da sua mente.
- Nos vossos sonhos, continuais a estar encarcerada. Sonhais com o assassínio do vosso irmão.
Jane abriu a boca para lhe dar resposta, mas sem articular qualquer som. Naquele momento, compreendeu a razão por que, até mesmo naquela ilha, algumas das mulheres
temiam aquela rapariga, tratando-a por Megera, a temida Rosa de Prata. Jane desviou o olhar, afastando-se um pouco de Meg.
- Jane, eu... eu lamento muito - disse Meg numa voz pouco firme. Os tons fortes, quase de acusação, com que o desmentido foi feito deram lugar a uma vozinha contrita
que mal se ouvia. - Não foi minha intenção ler os vossos olhos. Tento manter-me fora das cabeças das outras pessoas, mas às vezes parece que isso é mais forte do
que eu.
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Meg parecia estar a mirrar, sem que restasse qualquer vestígio da formidável Megera, restando apenas uma garota perturbada. Cobriu o rosto com as mãos.
- Como deveis odiar-me.
- Minha doçura, por que motivo é que haverias de pensar uma coisa dessas?
- Sabeis bem. Pelo que vos aconteceu. Terdes sido presa e encarcerada na Torre. Tudo isso foi por minha culpa...
- Oh, está caladinha, Meg. Já falámos sobre este assunto inúmeras vezes. Quando eu procurei o padre Ballard, não fazia a mais pequena ideia de que ele estivesse
envolvido numa conspiração para assassinar a rainha Isabel, no entanto eu sabia muito bem que estava a infringir a lei ao permitir que um padre entrasse em minha
casa às escondidas para celebrar missa. A minha prisão foi inteiramente por minha culpa.
- Mas não fostes acusada somente de traição. Fostes acusada de bruxaria por causa de mim. A rainha pensou que éreis a Rosa de Prata.
- Isso foi obra de Sir Francis Walsingham, com a teia de mentiras que ele teceu, e de mais ninguém - recordou-lhe Jane, se bem que não conseguisse mencionar o nome
do espião-mor de Isabel sem sentir uma enorme repulsa. Mas a honestidade obrigava-a a admitir o que era indesmentível.
- O que aconteceu também se deveu, em parte, à irresponsabilidade do meu irmão, que decidiu envolver-se na prática de alquimia. Quando Sir Walsingham descobriu a
câmara secreta que o Ned tinha em nossa casa, passou a ter provas suficientes para me condenar a morrer na fogueira, sem apelo nem agravo.
Jane fez uma pausa, pousando a mão em cima da de Meg.
- Precisamente o que teria acontecido se não fosses tu. Não hesitaste em apresentar-te diante da rainha Isabel para lhe dizeres a verdade. É a ti que devo a minha
vida.
- Não, deveis a vossa vida a ela. Foi sua majestade, em toda a sua sabedoria e generosidade, que vos perdoou.
Jane tinha a sua própria opinião a respeito da generosidade da soberana, mas guardou-a para si própria. Meg passara a adotar a atitude de uma adoração heróica pela
rainha de Inglaterra, o que a impedia de ver o mínimo defeito em Isabel.
- Não obstante tudo isso, a minha libertação deveu-se à tua coragem. Foi preciso uma coragem extraordinária da tua parte para confrontares
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a rainha Isabel. As coisas poderiam ter corrido de maneira muito diferente para nós duas se, na altura, o estado de espírito da rainha tivesse estado menos inclinado
a perdoar. Não fazes ideia nenhuma, Margaret, da menina verdadeiramente extraordinária e assombrosa que tu...
- Por favor, não digais isso - atalhou Meg, furtando a mão à de Jane, os olhos a espelharem uma grande angústia. - É o género de coisa que as bruxas da Irmandade
da Rosa de Prata costumavam dizer a respeito de mim. A minha mãe obrigava-as a todas a adorarem-me, como se eu fosse uma espécie de ídolo. Receio ter de reconhecer
que a minha mãe era louca.
Jane tinha ouvido coisas sobre Cassandra Lascelles que faziam com que estremecesse, sentindo-se muito satisfeita por nunca se ter cruzado com aquela mulher. Mas
respondeu a Meg com tato.
- Nunca conheci a tua mãe, pelo que não posso arrogar-me o direito de fazer juízos de valor acerca dela.
- O que não faríeis porque sempre haveis procedido com nobreza, mas podeis acreditar no que vos digo. A minha mãe era uma mulher demoníaca e demente. Vivia obcecada
com uma profecia, segundo a qual daria à luz uma poderosa feiticeira que conquistaria o mundo com a sua magia negra. Eu fui uma enorme desilusão para ela porque
o simples pensamento de vir a ser essa criatura fazia com que tivesse pesadelos.
Que legado tão hediondo que fora deixado àquela pobre criança, pensou Jane ao ver Meg que se envolvia nos seus próprios braços, o rosto tão pálido que as sardas
se destacavam acentuadamente na pele do rosto, dando-lhe uma aparência tão jovem.
"Se a minha filha tivesse sobrevivido, não teria sido muito mais velha do que a Meg é agora,"
Aquele pensamento apanhou Jane de surpresa. Era muito raro que se permitisse refletir sobre o bebé que perdera havia tantos anos. Ela própria ainda era tão nova
e solteira que, na altura, a morte da criança lhe parecera uma bênção, um grande alívio.
Só ultimamente é que tinha recomeçado a lembrar-se da nada-morta, sentindo uma enorme sensação de perda, um desgosto e uma nostalgia insuportáveis, o que agora a
levava a abraçar Meg, apertando-a junto a si. A garota ficou rígida por uns momentos antes de se abandonar nos braços de Jane. Apoiou o queixo no cimo da cabeça
da garota.
- E foi com isso que sonhaste esta noite? - perguntou-lhe Jane numa voz murmurada sem afastar a boca do cabelo dela. - com a tua mãe e essa profecia?
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- Não.
Meg ficou calada durante tanto tempo que Jane receou que ela não quisesse dizer mais nada, mas, por fim, a garota abriu-se com ela.
- Eu... eu sonhei que o Sander estava vivo e que me atraiçoava, dizendo à Rainha das Trevas que eu continuo a ter o Livro das Sombras. Como qualquer outro pesadelo,
tudo não passa de um disparate. Eu seria bastante tola se deixasse que isso me mortificasse. - Meg esforçava-se por mostrar indiferença, mas Jane apercebeu-se do
tremor na voz dela.
- Não tem nada de disparatado, minha querida - disse Jane, passando a mão pelos cabelos de Meg. - É inegável que o Alexander Naismith traiu a confiança que depositaste
nele, e a amizade que lhe dedicavas, de uma maneira extremamente cruel. Mas a verdade é que tanto ele como esse maldito livro ficaram destruídos aquando do incêndio.
- Eu sei que sim.
- Quanto à Rainha das Trevas - continuou Jane -, não tens motivo para continuares a ter medo dela. Estás bem protegida aqui, na ilha Encantada. A Ariane não podia
manter-se mais vigilante. O cunhado dela, o Simon Aristide, costuma ir a Paris com bastante regularidade para obter informações. O estado de saúde da rainha é cada
vez mais débil. Mal é capaz de continuar a exercer poder sobre o próprio filho, o rei...
- Eu sei isso. Na minha cabeça, estou bem ciente de tudo isso. Mas aqui... - interrompeu-se e afastou-se de Jane para poder levar o punho fechado à região do coração.
- Aqui, continuo a ter tanto medo. Pensais que eu sou corajosa, Jane, mas não sou. Sou uma cobarde tão grande que desejo que o meu pai continuasse aqui, embora reconheça
que isso é muito errado da minha parte.
- Não é absolutamente nada errado. É muito natural que anseies pela proteção do teu pai.
- Mas o meu pai nunca se teria ido embora se pensasse que eu corria o mínimo perigo, além disso, não se pode dizer que eu continuo a ser uma criancinha. - Apesar
das palavras intrépidas, Meg ficou com uma expressão anelante no rosto. - Eu sabia desde que viemos para esta terra que a ilha Encantada era um lugar demasiado tranquilo
para conseguir satisfazer por muito tempo o espírito tão aventureiro e destemido de Martin, o Lobo.
?- Mas com certeza que a tua madrasta podia ter ficado...
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- A Catriona O'Hanlon também é uma guerreira - atalhou Meg com um abanar de cabeça. - Além disso, por vezes, o meu pai tende a proceder com impulsividade e imprudência.
Sinto-me mais tranquila ao pensar que a Cat se encontra ao lado dele para evitar que arranje problemas.
Talvez isso fosse verdade, mesmo assim Jane não era capaz de evitar pensar que o bem-estar de Meg devia ter sido o mais importante tanto para Martin Wolfe como para
a sua noiva.
Meg afastou-se mais de Jane. Quer tivesse lido os pensamentos desta, quer se tivesse limitado a adivinhá-los, era coisa que Jane não sabia dizer. Tinha noção de
que, por vezes, o seu semblante podia ser excessivamente transparente.
- Nem o meu pai nem a Cat teriam ido para Nerac se o assunto que os levou lá não fosse da maior importância - adiantou Meg. - O duque de Guise e o seu exército estão
firmemente determinados em arrasar Navarra de uma ponta à outra, matando todos até não restar um único huguenote, incluindo os Remy. Não só a Gabrielle Remy é irmã
de Ariane, como o marido dela é o maior e mais antigo amigo do meu pai. É claro que ele haveria de querer lutar ao lado de Nicholas Remy para o ajudar a defender
a sua pátria.
"Na qualidade de católica, não espero que vos seja possível compreender - acrescentou Meg, mordendo o lábio inferior e olhando para Jane com uma expressão de súplica.
- Mas decerto que não haveríeis de querer que acontecesse algum mal à família Remy, ainda que não perfilhem a vossa fé religiosa.
- Claro que não, minha querida. Não desejo que aconteça mal algum à Gabrielle, bem como ao Nicholas Remy ou a qualquer outra pessoa - afirmou Jane. - Sou contra
todas as guerras e toda esta destruição sem o mínimo sentido, sob o pretexto de religiosidade, dando origem ao derrame de tanto sangue. É... é como infligir um ferimento
à própria terra.
Um lento sorriso começou a espalhar-se por toda a fisionomia de Meg, a expressão endiabrada a transformar as feições taciturnas da garota.
- Quem diria, Jane, estais a parecer cada vez mais, de dia para dia, como uma Filha da Terra.
- A sério? - Aquela noção causou algum constrangimento a Jane, mas riu-se. - Acho que estou a parecer-me mais com uma mulher tola que te tem mantido aqui fora durante
demasiado tempo.
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A chama tinha-se extinguido na lanterna de Meg enquanto as duas conversavam, o que não fazia grande diferença porque o firmamento, entretanto, começara a clarear,
tendo adquirido um matiz de um cinzento de pérola.
Jane levantou-se do banco de pedra, flexionando os ombros rígidos.
- O dia está quase a despontar e as criadas não tardarão a iniciar as suas tarefas, mas talvez ainda possas dormir um pouco. - Estendeu a mão e puxou Meg para que
se pusesse de pé. - Se não dormires umas horas, estarás demasiado sonolenta para conseguires apreender as lições da Ariane sobre a destilação de ervas medicinais,
conhecimentos que serão importantes se tencionas vir a ser a próxima Senhora da Ilha Encantada.
- Isso não é uma certeza absoluta - retorquiu Meg, estugando o passo para se pôr ao lado de Jane enquanto percorriam o carreiro de regresso à casa.
- Mas tanto quanto me é dado saber, é da tradição que a Senhora da Ilha Encantada designe e transmita os seus conhecimentos à sua sucessora. Ora, acontece que a
Ariane não tem filha nenhuma.
- Sim, mas tem uma sobrinha, a Seraphine. Também há que considerar a Carole Moreau, que tem vindo a aprender muito junto da Ariane.
- A Seraphine é demasiado obstinada, enquanto a Carole não é tão inteligente.
- Sim, mas ela é da ilha. Ela cresceu aqui, enquanto eu... - Meg baixou a cabeça. - Conquanto toda a gente da ilha Encantada me tenha acolhido cordialmente, tenho
a sensação de que me avaliam constantemente, tentando ver em mim qualquer indício de que talvez me transforme na Megera, a filha demoníaca da minha mãe.
Jane desejou poder proporcionar alguma espécie de garantia a Meg, mas até mesmo ela sabia que isso era uma realidade.
- Às vezes, quem me dera poder ter continuado escondida em Inglaterra - prosseguiu a garota. - A vida era muito mais simples quando eu podia ser, muito simplesmente,
Margaret Wolfe, sem que ninguém me receasse nem esperasse o que quer que fosse de mim. Eu... eu tenho saudades da minha existência em Inglaterra, se bem que, tenho
a certeza, não tanto como vós.
Meg interrompeu-se, olhando para Jane com uma expressão de quase acanhamento.
- É muito egoísta da minha parte, mas a vossa presença tem-me proporcionado contentamento. Embora compreenda que perderei a vossa
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companhia. Hoje recebestes uma carta de Paris. Eu... suponho que partireis dentro de pouco tempo, não é verdade?
- Não, a minha prima diz que, devido às circunstâncias, não poderá receber-me, de maneira nenhuma.
- Oh!
A expressão de deleite pareceu escapar involuntariamente de Meg. Ficou corada e mostrou-se contrita.
- Isto é... quero dizer que é mau que isso tenha acontecido. Lamento a desilusão que vos causou. Mas tenho de dizer que dou muito apreço à vossa amizade. Na próxima
primavera, a Ariane tenciona convocar o conselho das Filhas da Terra. Será nessa altura que ela anunciará quem lhe sucederá como Senhora da Ilha Encantada. Eu...
eu sei que ficarei extremamente nervosa. Sentir-me-ia tão reconfortada se estivésseis aqui comigo.
Jane ficou a olhar para a garota com um misto de surpresa e emoção. Durante o último ano tinha andado a sentir-se tão abandonada, tão perdida, tão inútil. Ficar
a saber que havia alguém que precisava de si fez com que a rejeição da prima lhe parecesse menos importante.
- Estarei aqui, Meg - disse Jane com um sorriso trémulo. - Estou em crer que posso fazer-te essa promessa com um grande grau de certeza.
Meg ficou com uma expressão radiante, apressando-se a dar um abraço a Meg. Mas quando já desfazia o amplexo, o seu semblante readquiriu a expressão taciturna que
lhe era habitual.
- Podeis prometer-me outra coisa? Que nunca mais, mesmo nunca, voltareis a sair de casa sozinha como fizestes esta noite?
- Não é meu costume fazer isso, mas a verdade é que Belle Haven é um lugar de tanta quietude que até mesmo os trilhos que atravessam a floresta são muito percorridos
e seguros...
- Para outras pessoas, talvez sim, mas não me parece que sejam seguros para vós.
Quando Jane olhou para ela intrigada, Meg mostrou algum mal-estar.
- Tenho andado a consultar a minha bola de cristal outra vez. Jane ficou com um nó na garganta.
- Oh, Meg, não devias ter feito isso. Até mesmo a Ariane não aprova que te entregues a esse tipo de magia tão perturbador. Pensei que tivesses decidido livrar-te
da tua bola de cristal.
- Tenho andado a tencionar fazer isso. Sirvo-me dela com muito pouca frequência porque algumas das minhas visões... - Meg interrompeu-se,
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aquela expressão inquietante a voltar a espelhar-se nos seus olhos. Deu a impressão de dar a si própria um abanão mental. - Mas a última vez que consultei a bola
de cristal, a minha visão foi inteiramente a vosso respeito.
- De mim? - Jane recuou um passo, afastando-se da garota com uma expressão apreensiva.
- A visão não era tão nítida como outras que tenho tido, mas andáveis perdida numa selva e éreis perseguida por um gato negro enorme e feroz.
Jane considerava que o hábito de Meg conjurar imagens através da bola de cristal era tão inquietante como a sua capacidade de forçar o acesso à sua mente. Mas a
garota parecia tão preocupada que Jane tentou sorrir-lhe, aparentando não dar grande importância ao assunto.
- Não existe selva nenhuma na ilha Encantada e o único gato negro que vi até ao momento é o gatinho que costuma andar pelo palheiro, apesar de ser uma coisinha com
bastante mau feitio. Quando tentei pegar-lhe, sibilou e quis arranhar-me. Mas pensei que tínhamos feito as pazes quando lhe ofereci um pires cheio de leite. - Mas
as palavras de Jane não suscitaram nenhum sorriso em Meg.
- As minhas visões nem sempre fazem muito sentido. Só quero que me digais que passareis a ter mais cuidado. Tendes de me prometer.
- De acordo, eu... eu prometo.
Meg pareceu ter ficado aliviada, a tensão que se instalara nos seus ombros a desaparecer enquanto caminhava em direção à casa. Jane seguia-a, continuando a sentir-se
bastante apreensiva. Era-lhe impossível não se ter apercebido de que Meg evitara fazer-lhe qualquer promessa no sentido de se desfazer da bola de cristal que lhe
permitia prever o futuro.
Mas ainda mais perturbador do que isso era pensar que, por muito inexplicáveis que as visões da garota fossem, tinham uma estranha maneira de se concretizarem.
Primavera de 1588
O navio atravessava as brumas cerradas da manhã, surgindo tão repentinamente como se tivesse emergido das profundezas do próprio oceano. As velas erguiam-se quais
fantasmas encapelados que se recortavam contra o firmamento de um cinzento de pérola enquanto o Miríbelle se aproximava rapidamente do navio mercante espanhol.
O alarme não foi dado a bordo do San Felipe quando o Miríbelle foi avistado inicialmente. A santa cruz de Espanha estava hasteada no mastro. Só quando o pavilhão
desapareceu, e o Miribelle passou a navegar sem qualquer bandeira, é que o temor se instalou entre os tripulantes espanhóis.
Um dos marinheiros, de visão mais aguçada do que os outros, conseguiu ver a carranca esculpida na proa do navio, um jaguar que bufava prestes a atacar.
- Corsários! O Jaguar! - gritou o marinheiro. O medo deu lugar ao pânico, com a tripulação do San Felipe a correr para as suas armas e apressando-se a carregar os
canhões.
A bordo do Miribelle, Xavier invetivou o rapaz sardento que no seu anseio por agradar tinha baixado o pavilhão cedo de mais. O Miribelle ainda não se encontrava
à distância de poder disparar as colubrinas com um mínimo de eficácia.
Dominique encolheu-se todo ao ouvir os berros do capitão, mas da voz de Xavier transparecia mais exasperação do que cólera. Apesar da frenética atividade a bordo
do San Felipe, não havia a mínima probabilidade de o navio conseguir escapar. Era possível que o Miribelle fosse mais velho e menos resistente, mas era mais leve
e veloz do que o navio espanhol, que
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navegava com o casco bastante imerso, o que indicava que os porões prometiam estar repletos de uma carga valiosa.
com os punhos fechados nos quadris, Xavier olhava para a distância cada vez mais curta com uma sinistra satisfação. Em volta de si, o Miribelle fervilhava de atividade.
Era possível que a sua tripulação fosse constituída por homens que tinham sido libertados da prisão e outros recrutados em tabernas e nos cais de uma dúzia de portos
diferentes, mas Xavier sabia que podia contar com os seus homens para conjugarem esforços com a precisão da tripulação mais bem treinada de um navio da marinha.
Marinheiros com muita experiência que preparavam os arpéus para a abordagem, carregavam os mosquetes e preparavam os canhões, rostos com barbas grisalhas e corados
em antecipação da refrega que não tardaria. Xavier era o único que não se mexia, à espera... à espera do momento mais certo para abrir fogo. Ficou irritado quando
a sua concentração foi perturbada por alguém que lhe puxava a manga da camisa.
De cenho carregado, baixou o olhar até à face fresca do jovem ao seu lado. Outro dos seus desgarrados, mas um que Xavier teria dispensado com todo o gosto, especialmente
num momento como aquele. O padre Bernard era um desses missionários que se haviam aventurado a ir ao Brasil cheios de grandes ambições de salvarem as almas dos nativos.
Xavier vira-se obrigado a salvar o padre de uma tribo de índios, os quais se haviam mostrado muito pouco entusiasmados com a perspetiva de virem a ser batizados
em conformidade com a fé católica. Contudo, o empenhado padre tinha provado ser uma peste tão grande que havia ocasiões em que Xavier desejava tê-lo deixado nas
mãos dos índios Tupi.
- Capitão, tenho de protestar - disse o padre Bernard. - Pensei que havíeis abdicado destes... destes empreendimentos militares, optando por enveredar por um rumo
de vida diferente, um de exploração de conhecimentos e esclarecimento.
- Também eu, até a rainha francesa me ter esclarecido pela mesquinhez da sua bolsa. Além do mais, não considero que esta ação seja um empreendimento militar, meramente
uma transação comercial.
- Trata-se de um ato de guerra, meu filho, e a França está em paz com a Espanha.
- Talvez sim nas cortes civilizadas da Europa. No entanto, já andais a navegar comigo há tempo suficiente para saberdes que, para lá da latitude que assinala as
fronteiras do Novo Mundo, só existe uma única lei. Não
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existe lei para lá dessa linha fronteiriça. E agora far-me-eis o favor de voltar para baixo. - Mas Xavier acrescentou irritado como se agora é que lhe tivesse ocorrido:
- E não sou vosso filho.
Afastou-se do padre, gritando a ordem de abrir fogo. O Miribelle foi sacudido quando os canhões dispararam a primeira salva. O San Felipe respondeu na mesma moeda
com um grande estrondo. Nenhum dos navios causou qualquer dano no outro, apenas fumo e barulho. Os canhões não eram tão eficazes em mar alto como teriam sido se
Xavier tivesse conseguido encurralar o navio espanhol numa enseada.
com as mãos a taparem os ouvidos, o padre Bernard andava atrás de Xavier.
- Os vossos homens são oponentes ferozes, além de serem em número superior ao dos tripulantes do navio mercante espanhol. Isto será assassínio.
- Não se eles puderem ser persuadidos a mostrarem-se razoáveis.
- E todos os marinheiros da vossa tripulação procederão do mesmo modo? - O padre fez um gesto que denotava ansiedade na direção de Pietro. com o tronco nu, as bochechas
escuras pintadas, o gigantesco panamiano estava armado com uma pistola e um alfange. A expressão de ferocidade no rosto habitualmente afável de Pietro até fez com
que Xavier hesitasse. Aproximou-se dele, pousando uma mão de advertência no braço de Pietro.
- Não te esqueças de que não estamos aqui para ajustar contas. Se aqueles homens se renderem, não tenciono transformar isto num banho de sangue. Portanto, trata
de controlar o teu temperamento, meu amigo. Não queremos horrorizar este bom padre ao comportarmo-nos como...
- Piratas? - atalhou Pietro.
- Eu ia dizer como espanhóis.
Pietro mostrou os dentes num esgar sorridente.
- Eu responderei pelo meu temperamento, capitão. Só tem de se
preocupar com o seu.
Naquele momento, houve qualquer coisa que assobiou pelo ar, uma bala de pistola que lascou a madeira do mastro da mezena. O San Felipe devia ter, pelo menos, um
atirador com boa pontaria ou alguém que conseguiu um tiro com muita sorte, tendo sido por um triz que a bala não acertou no padre Bernard. O idiota pestanejou, lento
a compreender que escapara com vida por uma unha negra.
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- Raios partam isto! Ide já para baixo. Imediatamente! - ordenou Xavier, dando um violento empurrão ao padre.
Os dois navios já estavam suficientemente perto um do outro para que os arpéus permitissem a abordagem. Os gritos, o fumo e o caos da refrega intensificaram-se quando
Xavier desembainhou a espada, conduzindo os seus homens no ataque e começando a abordar o San Felipe.
A tripulação espanhola foi facilmente dominada, para o que contribuiu o terror que a reputação de Xavier inspirava e a ferocidade dos seus homens. Até mesmo o jovem
Dominique deu boa conta de si próprio. O rapaz não se intimidou contra um adversário muito mais corpulento quando o capitão do navio espanhol o acostou por detrás.
Antes que Xavier pudesse gritar-lhe um aviso, o capitão espanhol disparou a arma em cheio nas costas do rapaz. Os olhos de Dominique arregalaram-se, a cor carmesim
como uma rosa a desabrochar na camisa branca enquanto ele caía desamparado no convés.
Soltando um berro de raiva, Xavier trespassou o oponente de Dominique, após o que se virou para o capitão espanhol. As lâminas das espadas dos dois cruzaram-se com
o entrechocar do aço e faíscas. O espanhol era um homem baixo, mas janota, hábil no manejo da espada, mas Xavier conseguiu levar-lhe a melhor, motivado pela fúria
da raiva que se apoderara de si.
Os sons da batalha, o cheiro a sangue e os sotaques espanhóis despoletaram em Xavier recordações ao rubro na sua memória. As ruínas fumegantes da colónia francesa,
os restos carbonizados dos corpos de homens, mulheres e crianças. As correntes que lhe dilaceravam os pulsos. Sentira os braços doridos por estarem presos no mastro
da galera, a que se juntara a sensação sufocante de estar a ser enterrado vivo, as dores excruciantes do chicote a zurzir-lhe a pele.
Ele mal reparou na espada do capitão espanhol a sair-lhe da mão e a deslizar pelo tombadilho. As feições parcialmente ocultas pela barba do homem formavam uma mancha
quando ele caiu de joelhos. Xavier ergueu a espada, preparando-se para desferir a estocada mortal, mas foi impedido por umas mãos fortes e ásperas que lhe imobilizaram
o braço.
- Capitão! O navio é nosso e o homem rendeu-se.
Xavier pestanejou e viu o capitão do navio espanhol acobardado aos seus pés, a mão trémula levantada numa atitude que era um misto de súplica e de tentativa de se
proteger. Xavier ficou muito corado, sentindo-se repugnado
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e envergonhado subitamente com o seu comportamento, mas nos olhos de Pietro só viu compreensão.
Recuperando o fôlego, Xavier dirigiu-se para a amurada do convés a cambalear, deixando-se ficar até readquirir o controlo sobre si próprio.
Olhando em volta de si, constatou a verdade das palavras dele. De facto, estavam de posse do navio. A tripulação espanhola tinha atirado as armas para o tombadilho,
adotando posturas tão abjetas como a do seu capitão.
Quando Xavier recuperou o estado de espírito calmo que era seu apanágio, contou os seus homens. Tinha perdido dois. Um já estava morto e Dominique encontrava-se
às portas da morte.
O padre idiota tinha desobedecido às ordens de Xavier, tendo ido a bordo do navio espanhol. O padre Bernard ajoelhava-se junto de Dominique, tentando ouvir a sua
derradeira confissão e dar-lhe a extrema-unção. Mas o rapaz não tinha nada a confessar, exceto os pecados que fora levado a cometer desde que se fizera ao mar no
navio de Xavier.
Agachando-se, este empurrou o padre para o lado. Dominique apertou a mão de Xavier, o seu rosto lívido e contorcido de dores.
- P... peço desculpa por causa da bandeira, capitão.
- Isso não tem importância nenhuma, meu rapaz. Vencemos. A tua quota-parte da carga fará de ti um homem rico.
- Ouro? Havia... havia ouro?
Xavier não fazia ideia nenhuma da espécie de carga que estaria nos porões do navio, mas acenou que sim.
Dominique tentou sorrir, mas a sua tentativa redundou numa tosse que deu origem a que expelisse sangue. A força com que apertava a mão de Xavier abrandou, mas procurou
os olhos dele com uma expressão de angústia e desespero.
- M... mãe... irmã.
O rapaz mal conseguiu articular as palavras, mas Xavier compreendeu qual a promessa que ele queria que lhe fizesse. Apertou a mão do rapaz.
- Não tens razão nenhuma para te preocupares. Irei pessoalmente a Saint-Malo e certificar-me-ei de que elas ficam bem. Juro-te que nunca lhes faltará nada enquanto
eu...
A voz de Xavier faltou-lhe, duvidando que Dominique tivesse ouvido a sua promessa. A mão do rapaz ficou flácida e os olhos adquiriram uma expressão vazia. Xavier
tentou encontrar a pulsação e percebeu que a vida abandonara o corpo de Dominique.
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Xavier ajoelhou-se junto dele durante alguns momentos. Que idade é que o jovem tinha? Doze anos? Treze anos? Xavier mal conseguia acreditar que ele próprio tinha
sido ainda mais novo do que Dominique na primeira vez em que seguira o seu pai, fazendo-se ao mar.
Como capitão do rapaz, Xavier supunha que devia dizer algumas palavras pela morte dele. Se tivesse sido um homem dado a rezar, tê-lo-ia feito, mas havia muito tempo
que não acreditava em nenhum deus. Tanto tempo que nem sequer conseguia recordar-se da última vez em que tivera fé.
Largando a mão de Dominique, pôs-se de pé e deixou que o padre Bernard fechasse os olhos do rapaz, fazendo o sinal da cruz por cima dele.
Quando Xavier se encaminhou para o capitão espanhol, viu que o homem derrotado, entretanto, se pusera de pé e esforçava-se por recuperar alguma dignidade. Estremeceu
quando Xavier se aproximou, mas conseguiu apresentar-se num tom de voz titubeante.
- Sou o capitão Miguel António Sebastian de Lopez.
- Mas que nome tão comprido para um homem tão pequenino - retorquiu Xavier com uma expressão de escárnio.
- Tenho de apresentar o meu veemente protesto para o vosso ataque ao meu navio sem qualquer provocação da nossa parte, senor. É uma ação ultrajante.
- Sim, de facto, é - ripostou Xavier, fazendo um gesto na direção de Dominique. - Isto faz parte da vossa noção de honra, disparar contra um rapaz pelas costas?
- Quando se lida com piratas, a honra não está em questão.
- Mas que conveniente. Desde sempre que os muitos codicilos constantes do código de honra espanhol me causaram perplexidade.
O homenzinho mostrou irritação.
- Dar-se-á o caso de eu estar a ser criticado por um salteador francês sem um mínimo de honra? Suponho que, além de terdes saqueado o meu navio, tendes a intenção
de chacinar todos os homens da minha tripulação.
- Vós e os vossos homens são meus prisioneiros. Todos serão razoavelmente tratados, com a exceção, talvez, de vós; eu devia enforcar-vos do cais da verga por assassínio.
O capitão Lopez ficou lívido perante aquela ameaça. Depois de a ter ouvido, o padre Bernard soltou um pequeno grito de protesto. Ignorando os dois, Xavier virou-lhes
costas e afastou-se enquanto dava ordens para a transferência dos prisioneiros e da carga para o Miribelle.
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Verificou-se que a carga era bastante modesta, constituída por prata e um carregamento de pau-brasil, não o grande tesouro de ouro com que a sua tripulação contara,
embora a madeira pudesse vir a render uma boa maquia nos mercados da Europa. Xavier passou revista ao camarote do capitão, à procura da espécie de tesouro que mais
lhe interessava.
com tantos vastos territórios desconhecidos que se abriam a quem os quisesse descobrir, era frequente que as cartas geográficas fossem inadequadas. Xavier tinha
uma sede impossível de saciar por conhecimentos marítimos de mares em que nunca navegara, por terras que nunca havia visto. Enquanto reunia os mapas geográficos,
diários de bordo e cartas que encontrou, ouviu o bater no chão da perna de pau de Jambe quando o seu primeiro-imediato se apresentou para o pôr ao corrente da situação.
-? A trasfega da última parte da carga está quase efetuada, capitão.
- Ótimo. Assim que tudo estiver bem seguro a bordo do Miribelle, soltem o San Felipe e deixem-no à deriva.
- Mas isso parece um grande desperdício.
- Sem dúvida que é, mas não temos homens na tripulação suficientes para o navegarem.
Talvez tivesse tido se tivesse sido capaz de convencer a bruxa francesa a financiar adequadamente a sua viagem, ao invés de... Mas Xavier interrompeu aquela linha
de pensamento. Não lhe valia de nada continuar a ferver por causa disso.
Jambe coçou a barba hirsuta e franziu os sobrolhos.
- com sua licença, capitão, mas em vez de deixarmos que este navio se afunde, talvez devêssemos deixar o Miribelle à deriva. O San Felipe é um navio sólido, mais
resistente às intempéries do mar do que o nosso.
Xavier hesitou, sabendo que o velho marinheiro tinha razão. O Miribelle já tinha passado por muito ao longo dos anos, o último de uma pequena frota com que o pai
se fizera ao mar, tendo zarpado de França. O próprio Xavier perguntava-se até que ponto é que o navio conseguiria resistir a outra violenta tempestade. Mas pensar
em afundar o Miribelle fazia com que sentisse um estranho aperto no peito. Abanou a cabeça.
- O San Felipe é como muitos navios espanhóis, é pesado e pouco veloz. Concordo contigo, de facto precisamos de substituir o Miribelle, mas não quero abandonar a
nossa senhora, deixando que se afunde desta maneira.
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- E quanto a todos os espanhóis que fizemos prisioneiros? - perguntou Jambe. - O que é que fazemos com eles se afundarmos o navio deles?
- Tenho a certeza de que hei de pensar em alguma coisa - respondeu Xavier com um pequeno sorriso.
Xavier manteve os espanhóis na expectativa quanto ao que o destino lhes reservava durante os dois dias seguintes, tendo de admitir que sentia uma satisfação perversa
e vergonhosa. Talvez estivesse a assemelhar-se em demasia ao jaguar, alcunha que lhe haviam dado, a atormentar a sua presa. Mas acalmou a consciência ao pensar que
a sua era uma forma branda de crueldade quando comparada com o que o capitão espanhol teria feito a Xavier e aos seus homens se a situação tivesse sido a inversa.
O número limitado de provisões a bordo do seu navio não lhe permitia continuar com aquele tormento por muito mais tempo. Na manhã do terceiro dia, tratou de desembarcar
os prisioneiros em terra numa angra isolada na península de La Florida.
Xavier acompanhou pessoalmente a tripulação desembarcada, indicando ao capitão Lopez qual a direção que devia seguir.
- Ao cabo de um ou dois dias de marcha, haveis de chegar a uma colónia espanhola. Encontrareis água e forragem para vos alimentardes durante a caminhada.
Quando Lopez abriu a boca para falar, Xavier cortou-lhe a palavra.
- Não existe necessidade nenhuma de agradecimentos pela minha generosidade, capitão.
- G... generosidade!
O homenzinho ficou engasgado de tanta indignação. Desde que se apercebera de que a sua vida seria poupada, o capitão espanhol tinha recuperado grande parte da sua
fanfarronice. Olhou para Xavier com uma expressão de fúria.
- Haveis feito um grande inimigo para a vossa pátria.
- Estais enganado, senor - respondeu-lhe Xavier num tom de voz suave. - Não tenho pátria.
- Tretas! Não penseis que me enganais. Sois um francês, um corsário tão arrogante e sem lei como qualquer desses piratas ingleses que também
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têm andado a saquear os navios espanhóis. Pois bem, os ingleses serão os primeiros a pagar pela sua insolência. Eles e a sua rainha herege, Isabel. Filipe, o mui
nobre católico soberano de Espanha, não hesitará em...
Lopez interrompeu-se abruptamente, parecendo tão cómico no seu constrangimento por ter falado de mais que Xavier foi forçado a rir-se.
- Não tendes com que vos preocupar, senor. Não haveis deixado escapar um grande segredo. Até mesmo aqui, nos confins do mundo, já ouvimos os rumores do grandioso
empreendimento de Espanha, a vasta armada que está a ser preparada em Madrid, na qual o vosso rei deposita as suas esperanças de vir a invadir a Inglaterra.
- Não são esperanças, senor. Será uma realidade dentro de pouco tempo. E depois de o rei Filipe ter derrotado os cães ingleses, concentrará a sua atenção em punir
os franceses insolentes como vós sois.
- Ficarei a tremer que nem varas verdes à espera da chegada de sua majestade. Provavelmente, de paralisia. Nessa altura já serei muito velho.
- Não vivereis até uma idade avançada, senor! - ripostou Lopez furibundo.
- Atrevo-me a dizer que tendes razão. Mas a verdade é que esta conversa está a tornar-se entediante e tendes uma longa caminhada pela frente. - Xavier macaqueou
uma vénia, após o que deu meia-volta e se encaminhou para os navios que aguardavam.
Lopez ficou furioso, mas reuniu os seus homens. Quando já marchavam pelo areal, Xavier ainda conseguia ouvir o capitão espanhol a arengar.
- O meu mui católico soberano terá conhecimento desta iniquidade. Juro que sim.
Quando já se dirigia para o escaler, Xavier não foi capaz de resistir a ter a última palavra.
- Tratarei de enviar uma mensagem ao rei Filipe em vosso nome. Muito provavelmente, estarei em melhor posição de o fazer do que vós. Estou a contar ancorar ao largo
de Saint-Malo dentro de seis semanas.
A previsão de Xavier provou ser demasiado otimista. A travessia do Atlântico fez-se sem percalços de maior, mas o Miribelle ainda estava a vinte léguas marítimas
da costa francesa quando o navio se deparou com grandes dificuldades, com o que qualquer marinheiro temia mais do que uma tempestade. Uma grande calmaria em que
nem uma brisa soprava. As velas do Miribelle pendiam flácidas havia vários dias, o navio tão imobilizado como se estivesse ancorado.
Xavier andava irritado e extremamente frustrado, considerando que era de enlouquecer estar tão perto do fim da sua viagem, mas impossibilitado de a concluir. Mas
tinha noção de que a situação podia ser pior. Houve uma ocasião em que tinha ficado parado no mar durante tanto tempo que ele e a sua tripulação haviam ficado reduzidos
a comer couro cozido. Do mal o menos, era possível que as provisões fossem suficientes, o que não impedia os resmungos de mau humor entre os homens quando Xavier
reduziu a ração de rum.
Velhos marinheiros sem nada que fazer eram campo fértil para sarilhos, mas Xavier confiava no seu temível primeiro-imediato para manter a tripulação suficientemente
ocupada para não acabarem por se atirar à garganta uns dos outros.
Esforçando-se por conter a sua própria inquietude, Xavier retirou-se para o seu camarote, um espaço exíguo que mal permitia que andasse de pé. O mobiliário era escasso,
o beliche, uma pequena mesa, a sua mala de porão e a gaiola de madeira que ele pregara à parede para acomodar o papagaio infernal. Atrás das grades, o Mendigo do
Mar fitou-o com os seus olhinhos brilhantes e soltou um grasnar agudo.
- Raios partam os teus olhos! Raios partam os teus olhos!
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- O mesmo para ti - resmungou Xavier. Quando o Mendigo do Mar continuou a guinchar-lhe, Xavier atirou o manto para cima da gaiola do papagaio para silenciar a criatura.
Sentou-se à mesa e atualizou o diário de bordo, após o que começou a examinar as cartas geográficas que tirara do San Felipe.
Mas essas cartas tinham-no deixado extremamente desiludido. Xavier tinha esperado uns mapas cartográficos pormenorizados dos estreitos do Panamá e das terras mais
além, talvez até mesmo algo relacionado com a rota que levaria àquela fabulosa terra sobre a qual Marco Polo escrevera, um lugar a que o explorador se referira somente
como "Praia".
Mas as viagens do San Felipe não se haviam distinguido por nada de especial, uma vez que o navio espanhol não dera origem a nenhum mapa cartográfico que assinalasse
alguma terra onde o próprio Xavier ainda não tivesse estado. Mas as cartas que tirou do camarote do capitão Lopez provaram ser mais interessantes. Uma dessas missivas
estava escrita em código, tendo intrigado Xavier ao ponto de ter tentado descodificá-la, se não por qualquer outra razão, para o manter entretido durante aqueles
dias de imobilização forçada.
Para sua grande satisfação, finalmente conseguiu decifrar a carta. A missiva fora escrita por um dos governadores recentemente designados de La Florida para o duque
de Medina Sidónia.
O governador começava por felicitar o seu velho amigo, Medina Sidónia, por ter sido o almirante nomeado para comandar a armada. Em seguida, explicava-se como a carga
que era transportada pelo San Felipe se destinava a rechear a bolsa de um poderoso nobre francês, François, o duque de Guise.
"... Monsieur le duc é um católico devoto e anseia poder ajudar sua majestade na sua demanda para esmagar os ingleses hereges e a sua rainha. Quem nos dera poder
contar da mesma maneira com o apoio do rei de frança. Mas acontece que Henrique Valois é Hm homem muito errático. Na verdade, são muitos os que dizem que ele é louco.
No passado, ele tem sido excessivamente clemente para com os protestantes no seu próprio país. Receia-se que Henrique talvez tenha a ideia de ajudar Isabel, uma
possibilidade que tem de ser evitada a todo o custo.
A mãe dele, a rainha-viúva, Catarina de Medicis, professa amizade por Espanha, mas todos estamos bem cientes de que a bruxa italiana não é de fiar. Ouvi dizyr que
o seu estado de saúde está a deteriorar-se e que já não possui o poder e a influência de que gozou em tempos. Eu próprio tenho dificuldade em acreditar nisso. Receio
que nunca venhamos a ver-nos livres das intrigas dessa mulher maquiavélica até ela estar na sua sepultura.
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A única esperança de a Espanha vir a estabelecer uma aliança com a França reside no duque de Guise. O duque prometeu que criaria uma manobra de diversão que impeça
o rei francês de enviar ajuda militar a Inglaterra, ainda que ele o quisesse fazer."
Uma manobra de diversão? Xavier franziu o sobrolho. Mas o que diabo é que aquilo significava? O comportamento do duque de Guise chocou-o por ser ultrajante. com
certeza que aquele conluio com o rei de Espanha era traição, aceitar subornos de um país que era o inimigo mais antigo da França.
Todavia, Xavier não via o que pudesse fazer para evitar aquilo, ainda que se sentisse inclinado a tomar qualquer iniciativa. Durante a sua estada em Paris, tivera
oportunidade de vislumbrar as intrigas políticas e conflitos religiosos que envenenavam a corte de Catarina e do seu filho meio louco. Tinha sido com bastante satisfação
que Xavier se fizera ao mar, deixando tudo aquilo para trás.
No entanto, o conteúdo daquela carta deixava adivinhar que a incursão da armada estava para muito breve, talvez até viesse a ter lugar na próxima primavera. Xavier
supunha que poderia dar-se ao trabalho de fazer com que aquela missiva chegasse a mãos inglesas, talvez mesmo às de Sir Francis Drake.
Em tempos idos, navegara com Drake durante um ano. Na verdade, Xavier devia tanto a sua vida como a sua liberdade a Sir Francis e detestava estar em dívida para
com quem quer que fosse. Contudo, a carta era tão vaga que não estava a ver que utilidade é que poderia ter para Drake ou para qualquer outra pessoa.
Enquanto debatia a questão consigo mesmo, ficou extremamente irritado quando o padre Bernard lhe apareceu. O jovem padre espreitou para dentro do camarote, olhando
para Xavier com uma expressão melancólica.
De uma maneira geral, o padre Bernard mantinha-se ocupado a tentar proporcionar ajuda espiritual aos homens e eram muitos os que o acolhiam de bom grado, a única
razão por que Xavier permitia que o homem continuasse a bordo do navio.
No entanto, ele adquirira o hábito muito irritante de andar sempre a rondar Xavier, como se também tivesse esperança de vir a ser o seu padre confessor. Mas Xavier
não tinha nenhuma paciência para um padre confessor e ainda menos para alguém que tentasse desempenhar um papel
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paternal, em particular, um homem que era vários anos mais novo do que ele próprio, quer em idade, quer em experiência de vida. Quando Xavier ignorou o padre Bernard,
este pigarreou.
- Eu... eu espero não estar a perturbar-vos, capitão.
- Mas estais a perturbar - ripostou Xavier sem desviar o olhar dos documentos espalhados pela sua mesa. Mas a sua atitude não desencorajou o homem. O que nunca acontecia.
O padre Bernard arrastou os pés e voltou a tentar.
- Eu só pensei que talvez quisésseis saber que o vento ainda não se levantou.
- A sério!? Deixais-me espantado.
- Considerais que isso acontecerá dentro de pouco tempo?
- Não faço a mais pequena ideia. O dom da previsão não foi um dos dotes que adquiri quando vendi a minha alma ao Diabo. No entanto, possuo conhecimentos suficientes
das artes negras, até sou capaz de tentar conjurar uma modesta brisa para vós.
O padre Bernard soltou uma risada de constrangimento, como se pensasse que Xavier estava a brincar. Ou, pelo menos, esperava que estivesse.
- Prefiro confiar nas minhas orações, capitão. Tenho rogado empenhadamente a Nosso Senhor para que nos envie vento e estou plenamente confiante em que ele o fará
dentro de pouco tempo.
- Muito mais provável é que Ele nos envie um tufão. Diz-me a experiência que o vosso Deus parece possuir um sentido de humor demoníaco.
Se o padre Bernard ficou chocado com a blasfémia de Xavier, não deu qualquer indicação disso.
- Ocorreu-me que a nossa viagem não tardará a findar e nunca tivemos oportunidade de ter uma conversa a sério - continuou o padre.
- Não? Bem... eu sou um homem de poucas palavras, padre. - E a maior parte das que proferia eram impropérios. Xavier conteve a vontade quase irresistível de praguejar
quando o padre Bernard se instalou na beira da tarimba sem ter sido convidado, dando a impressão de estar preparado para uma longa conversa.
- Continuais com a intenção de aportar a Saint-Malo?
- Sim, é esse o meu porto de destino.
- É uma atitude nobre a vossa ao manterdes a promessa que haveis feito ao jovem Dominique...
- Não existe nada de nobre na minha decisão - atalhou Xavier, interrompendo-o. - Eu nunca faço nada que seja inconveniente para mim.
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Acontece apenas que considero Saint-Malo um porto tão bom como qualquer outro para levar a cabo as minhas transações.
O padre Bernard sorriu, lançando a Xavier um daqueles olhares sagazes que sugeria que ele sabia que as coisas não eram bem assim, o que só fez com que Xavier ansiasse
por poder enfiar o padre pela escotilha mais próxima, atirando-o ao mar.
- Estou em crer que um porto inglês talvez servisse os vossos objetivos igualmente bem e seria muito mais seguro. É possível que constatareis que não sois muito
bem-vindo se regressardes a França. Monsieur du Bois pôs-me a par de tudo o que se passava em Paris. A rainha Catarina não parece ser o género de mulher que perdoe
quem ignore as suas ordens.
Xavier fez uma careta, amaldiçoando mentalmente o seu tagarela primeiro-imediato. Jambe era pior do que uma velha coscuvilheira.
- Tenho entrado e saído furtivamente de portos espanhóis ao longo de toda a costa das Américas. Acredito que também seja capaz de aportar a Saint-Malo em segurança
e sem que a rainha se venha a inteirar disso. Acreditai no que vos digo, a rainha não é uma bruxa tão formidável como toda a gente pensa que é, o que leva as pessoas
a temê-la.
- Saint-Malo não dista assim tanto da ilha Encantada se a viagem for feita num velejador - disse o padre Bernard depois de alguns momentos de silêncio.
Xavier virou-se para olhar de frente para o padre com uma expressão de surpresa.
- com certeza que não estais a sugerir que eu leve a cabo a ordem da rainha, raptando essa rapariga a mando dela?
- Não! Não, claro que não - retorquiu o padre Bernard hesitante, sujeitando Xavier a um dos seus olhares intensos, como se estivesse a sondar-lhe a alma. - Só quis
lembrar-vos de que a rainha não era a única pessoa que desejava que navegásseis rumo à ilha Encantada.
Xavier ficou tenso. Os dedos a fecharem-se com tanta força no cálamo que esmagou a pena.
- No seu leito de morte, o vosso pai... - começou o padre a dizer.
- O meu pai estava a delirar devido à febre-amarela que o acometeu, pelo que não sabia o que dizia.
- A mim pareceu-me bastante lúcido quando lhe ministrei a extrema-unção. Ficou tão calmo e em paz. Faleceu com o retrato da vossa mãe sobre o coração. A última palavra
que ele sussurrou foi o nome dela. Evangeline.
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Claramente, o padre estava à espera que Xavier se sentisse comovido com aquilo. Mas havia um pequeno problema, refletiu Xavier com amargura. A sua mãe tinha-se chamado
Marguerite.
- Pensei que já tinha deixado bem claro que não quero discutir nada disto. - Virando as costas ao homem, Xavier voltou a inclinar-se sobre a mesa. - E agora, com
vossa licença, tenho de escrever algumas cartas.
Foi com relutância que o padre Bernard se pôs de pé.
- Só pensei que esta talvez fosse uma boa altura para cumprirdes a última vontade do vosso pai, que expressou antes de morrer, ou seja, que levásseis os seus diários
de bordo, que ele vos deixou, para a ilha Encantada.
Xavier rangeu os dentes.
- O meu pai estava a delirar. Ele nem sequer sabia quem diabo eu era, porque se soubesse jamais me teria confiado essa tarefa.
- Não, tenho a certeza de que ele estava...
- A delirar - repetiu Xavier manifestamente encolerizado. Baixou o olhar e ficou irritado ao ver que, inadvertidamente, tinha feito pequenos orifícios numa das cartas
cartográficas com a ponta do cálamo. Ele, que nunca fora homem de ficar agitado, que nunca mexia um único dedo que fosse sem ter um objetivo bem definido. Largou
o cálamo, mostrando uma expressão de descontentamento. - Se quereis que os diários de bordo sejam levados para a ilha Encantada, tereis de ser vós a entregá-los.
- O vosso pai tinha esperança que fôsseis vós a fazer isso.
- Ele está morto. Agora já não pode ter grandes esperanças acerca do que quer que seja, pois não?
- Isso é verdade. O vosso pai descansa no repouso eterno. Estou mais preocupado convosco, meu filho. Não estou em crer que sereis capaz de ter alguma paz de espírito
enquanto não cumprirdes a última vontade do vosso pai.
- Tenho toda a paz de espírito que desejo. Pelo menos, teria se me deixásseis em paz e sossego. E não sou filho de nenhum homem.
O padre Bernard soltou um fundo suspiro, saindo do camarote com os ombros encurvados e com aquela expressão de uma imensa tristeza que Xavier começara a pensar como
sendo a expressão de cachorrinho magoado do jovem padre.
Xavier expeliu o ar juntamente com um violento impropério. Não lhe era difícil simpatizar profundamente com os índios que tinham atacado
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o padre na selva. Maldito idiota, a intrometer-se onde não era desejado e a meter-se em assuntos que não compreendia.
Xavier havia sido separado à força do pai, depois do ataque dos espanhóis à colónia francesa. E, durante cinco longos anos, Xavier procurara, tendo acabado por encontrar
o pai às portas da morte numa remota missão no Brasil.
Para seu grande infortúnio, tinha-o encontrado com aquele desgraçado padre. Xavier teria preferido que não tivessem existido testemunhas daquelas últimas horas junto
do seu pai, a dolorosa culminação do que fora um relacionamento entre pai e filho que se pontuara pelo azedume com muita frequência.
Mantivera-se à beira do leito de morte do pai, à procura das palavras e orações de que não se recordava, na esperança de não sabia bem o quê. Uma última bênção do
velho, esperando que, finalmente, ele reconhecesse que Xavier era verdadeiramente seu filho?
Em vez disso, o pai tinha tentado descarregar outro fardo nos ombros de Xavier com um último desejo impossível de satisfazer.
O que é que teria passado pela cabeça do pai para pedir a Xavier que levasse o seu legado para a ilha Encantada? Por muito que aquele padre imbecil insistisse que
não, o velho só podia ter estado demente. Tanto quanto a memória de Xavier lhe dizia, desde sempre que o pai se esforçara por manter os seus dois mundos separados,
a sua vida em Paris e o seu lar na ilha Encantada.
Por que motivo é que o pai mudara de ideias, querendo que Xavier fosse à ilha Encantada? A resposta era simples, não quisera, tal como nunca quisera admitir que
Xavier era seu filho.
Xavier concentrou o olhar na superfície da mesa e pegou numa folha de pergaminho em branco. Molhou a ponta do cálamo na tinta e, depois de alguma hesitação, assinou
o seu nome. As palavras destacavam-se com um brilho intenso da brancura da folha, como qualquer segredo culposo que não devia ser revelado. O seu nome completo,
aquele que nunca assumira por não ter direito a ele. O pai deixara isso bem claro sem qualquer margem para dúvida.
Xavier riscou a sua assinatura várias vezes e com tanta força que rasgou o pergaminho, que amachucou até ficar uma bola que atirou para o outro lado do camarote.
Feito isto, recostou-se na cadeira e cruzou os braços diante do peito, como se conseguisse manter do lado de fora de uma parede as emoções
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que ameaçavam abrir uma brecha no casco da sua indiferença, uma maré cheia de amargura, mágoa e remorso.
O olhar de Xavier desviou-se para a sua mala de porão. Ficou com o olhar preso aí durante muito tempo antes de se levantar da cadeira. Atraído quase contra a sua
vontade, ajoelhou-se junto do baú de carvalho já muito maltratado e abriu a parte de cima para trás.
Afastou as cartas cartográficas e peças de roupa até encontrar os diários empilhados no fundo, seis volumes ao todo encadernados a couro. O pai mantivera diários
de bordo das viagens de ambos desde que haviam zarpado de França, os seus escritos intercalados com esboços de plantas da selva, aves exóticas, nativos com as suas
pinturas, animais desconhecidos na Europa.
Xavier passou as pontas dos dedos pela capa do diário mais recente, perguntando a si mesmo porque é que resistira à tentação de o abrir, lendo avidamente o que continha.
O pai já não se encontrava presente para o impedir de o fazer.
Talvez se sentisse restringido por saber que aqueles diários nunca haviam sido escritos para os seus olhos. Contudo, nunca tivera o mínimo pejo em saquear os tesouros
de outros homens. Ou, naquele caso, de uma mulher...
Não. Não podia continuar a enganar-se. O que o impedia de devassar os diários era apenas a sua cobardia. Não o receio de poder encontrar qualquer referência menos
lisonjeira a seu respeito, mas sim o receio de vir a constatar que não encontraria qualquer menção referente a si nos diários do pai.
Como se Xavier nunca tivesse existido...
Talvez o maldito padre tivesse razão no tocante a uma coisa. Aqueles diários que tinha dentro da sua mala de porão eram como um aguilhão espetado na sua carne. Nunca
mais teria paz e sossego até se livrar deles. Tinha sepultado o chevalier com o retrato da sua amada Evangeline nas mãos. Xavier não sabia por que razão é que não
atirara os diários para dentro da campa juntamente com o caixão.
Pegou no diário que estava ao de cima. Uma coisa que era, francamente, tão insignificante, um pouco de couro de vaca esticado em volta de uma coletânea de escritos
antigos e traços feitos a tinta. Sendo assim, porque é que lhe parecia tão diabolicamente pesado?
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Xavier pegou-lhe, colocando-o na palma da sua mão por um momento antes de soltar um suspiro de desagrado, voltando a deixar cair o diário em cima dos outros. A exemplo
do que fazia sempre que lhe pegava.
Em seguida, procurou o outro objeto que mantinha escondido no fundo do baú. Os seus dedos fecharam-se em volta de um pequeno frasco forrado a couro cheio do líquido
cor de âmbar que havia confortado Xavier ao longo de muitas noites escuras intermináveis ou durante tardes de ociosidade.
Tinha aprendido a destilar a poção que um xamã lhe ensinara no Peru, uma mistura bem calculada de determinadas espécies de lianas da selva. Era a poção do Diabo,
como os padres espanhóis lhe chamavam.
Mas os nativos davam outro nome ao líquido, a trepadeira dos espíritos, um portal de acesso a outro mundo, um lugar onde a mente podia expandir-se para abraçar os
mistérios do universo, visões que nem sempre eram nítidas ou de que uma pessoa se recordasse perfeitamente, mas cheias de promessas elusivas. Não o género de chicanice
que Xavier pusera em prática para a Rainha das Trevas, em Paris, mas sim verdadeira magia.
Xavier desarrolhou o frasco. A última vez que bebeu aquela poção tinha sido um pouco descuidado, bebendo de mais. Desta vez, tencionava ser mais comedido. Xavier
humedeceu os lábios e bebeu um trago generoso.
O líquido cobriu-lhe a língua e o palato, o sabor era um estranho misto de amargor e de uma doçura enjoativa. Deslizou-lhe para a garganta como se fosse uma enguia,
fazendo com que sentisse vómitos. Reprimiu o vómito, respirando pausadamente até as náuseas desaparecerem.
Rolhou o frasco forrado a couro, que voltou a guardar na mala de porão, que fechou. Ajoelhou-se e esperou que a infusão começasse a fazer efeito, como o xamã lhe
ensinara que fizesse, com os braços estendidos e as pálpebras cerradas. Começou a entoar um cântico cadenciado, o tom monocórdico da sua própria voz a mesmerizá-lo
enquanto mergulhava num transe profundo.
Os seus sentidos ficaram mais aguçados, o travo do seu suor a entranhar-se-lhe nas narinas, o som do bater do seu coração a soar retumbante nos seus ouvidos, como
tambores a ecoarem pela selva.
O corpo de Xavier oscilava ao ritmo do cântico, enquanto a respiração se fazia mais acelerada. A primeira vaga de dores nas entranhas fez com que se dobrasse sobre
si mesmo. Começou a entoar o cântico mais depressa,
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fechando as mãos em punhos cerrados, a cabeça a andar à roda. Explodiram luzes por detrás das pálpebras, um turbilhão de fogo e cor.
O corpo foi sacudido como se tivesse sido arremessado através de uma qualquer barreira invisível. Um lugar onde a sua respiração se regularizou, as batidas do coração
abrandaram de ritmo e a sua mente libertou-se das barreiras grosseiras que o sujeitavam à Terra.
Ele elevou-se a grande altura, percorrendo o firmamento velozmente enquanto passava por cidades, por cima de rios e florestas, mares e montanhas até ter tocado em
terra firme numa densa e luxuriante floresta tropical. Foi percorrido por violentos tremores enquanto sentia o corpo a mudar, os membros a distenderem-se, transformando-se
em tendões fluidos e músculos vigorosos, apele a dissolver-se numa pelagem escura e lustrosa.
Quando as quatro patas se firmaram solidamente no solo, deixou de se sentir como algo separado da terra, mas sim como um ser uno com ela, um jaguar negro que andava
em busca de presa através da densa vegetação da floresta.
Viu uma serpente que se ergueu no seu caminho, desdobrando os anéis diamantinos com um sibilar ameaçador. Ele afugentou-a com um rosnar selvagem, prosseguindo o
seu caminho à procura da sua verdadeira presa.
Ela aguardava-o onde costumava aguardá-lo sempre, próximo do rio, no ponto em que a água caía em cascata pela vertente de um penhasco, juntando-se às quedas-d'água
que rugiam. Era uma mulher de cabelos louros muito compridos, molhados e emaranhados em volta dos ombros, como os de uma sereia, mas os seus olhos tinham mais a
expressão de uma feiticeira, cintilando com uma luz de um azul empalidecido.
A luz do Sol filtrava-se através do véu translúcido do seu vestido, o seu corpo de formas curvilíneas e voluptuosas, de uma exuberância cheia de promessas, tão fecundo
como a própria terra.
Ele aproximou-se mais furtivamente e, embora tivesse visto os olhos dela a abrirem-se muito e ficasse com a respiração suspensa, ela não fugiu. Nem sequer quando
ele começou a rondar em torno de si, roçando pelas coxas dela. Ela entranhou os dedos na pelagem dele, acariciando-o com movimentos demorados e lânguidos.
Só quando ele emitiu um rugido enrouquecido de desejo é que ela retrocedeu. A fragrância deliciosa da excitação que ela sentia misturava-se com o cheiro forte e
penetrante do seu medo, até mesmo quando se virou para fugir.
Havia uma parte de Xavier que tinha perceção de que aquela não era a primeira vez que encontrava aquela criatura nas suas visões. Continuava sem fazer ideia de quem
ela era nem do que era: bruxa, sereia ou uma mera mulher. Ele só sabia que tinha de a possuir.
Começou a persegui-la imprudentemente, não hesitando até mesmo quando ela mergulhou na cascata. Agachou-se e saltou, elevando-se pelo ar...
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Xavier ficou esparramado no chão do camarote, preparando-se para mergulhar na água. Surgiu sob a forma de um jorro frio que o atingiu em cheio na cara.
Cuspinhou enquanto se debatia para se libertar da mão rude que lhe sacudia o ombro.
- Capitão, acorde.
Xavier forçou os olhos a entreabrirem-se um pouco. A vegetação luxuriante da selva tinha desaparecido, substituída pelas paredes de madeira que limitavam o espaço
exíguo do seu camarote. O portentoso felino preto também tinha desaparecido. Estava reduzido outra vez a um mero mortal, sentindo as pernas e os braços pesados e
desajeitados, além de ter uma excruciante dor de cabeça.
Fechou os olhos, tentando retornar ao mundo da floresta tropical e das quedas-d'água, à sua sedutora vestida com um véu. Todavia, as mãos rudes e insistentes continuavam
a sacudi-lo.
- Capitão! Raios partam isto, homem! Levante-se!
Xavier abriu os olhos e, desta feita, conseguiu concentrar o olhar na sombra alta e escura que se elevava acima de si. Pietro passou-lhe um braço por baixo dos ombros
e levantou-o para que pudesse sentar-se. As paredes pareciam inclinar-se para cima e para baixo, fazendo com que os sentidos dele ficassem desorientados.
- De pé, capitão.
- Dá-me um minuto, que diabo... - resmungou Xavier. - A minha cabeça... - As palavras ficaram presas na garganta de Xavier quando se apercebeu de que não era a sua
cabeça que fazia com que a cabina se inclinasse e andasse à roda. O Miribelle rangia e gemia enquanto as madeiras do costado do navio roçavam umas pelas outras,
os sons da sua senhora profundamente conturbada, apanhada nas convulsões de uma violenta tempestade.
Apoiando-se pesadamente ao braço de Pietro, Xavier levantou-se do chão com dificuldade.
- Maldição! Porque é que não me acordaste mais cedo?
- Gostaria muito que me dissesse como é que isso é possível quando anda às voltas com essa infusão do Diabo! - ripostou Pietro, que olhava para ele com uma expressão
furiosa. Os olhos do panamiano espelhavam um ardor de censura, mas aquilo não era nada comparado com as brasas que Xavier empilharia em cima da sua própria cabeça.
Mas teria tempo para fazer isso mais tarde. Esperava ele...
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Equilibrando-se o melhor que lhe era possível, Xavier saiu do camarote a cambalear. Olhou para as profundezas escuras do porão e ouviu o chapinhar da água negra,
os grunhidos e gritos dos velhos marinheiros que tratavam de bombear a água.
- É grave? - perguntou Xavier a Pietro concisamente.
- É bastante mau. O Jambe está lá em cima ao leme, a esforçar-se por impedir que embatamos nas rochas.
- Rochas? Estamos perto de terra? Em Saint-Malo?
- Não me parece. Os ventos impeliram-nos para fora da nossa rota. "O que talvez venha a provar ser uma coisa boa", pensou Xavier para consigo. O porto de Saint-Malo
era protegido por uma barreira de recifes paralela à terra, pela qual era difícil navegar até mesmo nas melhores condições atmosféricas.
Xavier abanou a cabeça para aclarar as ideias de modo a dissipar os efeitos da poção, uma vez que continuava a sentir-se como se estivesse a nadar através de nevoeiro.
A escada que dava acesso ao convés adernava juntamente com o navio. Xavier amaldiçoou os seus próprios movimentos atabalhoados enquanto se esforçava por subir, não
tendo caído só porque tinha o apoio do braço forte de Pietro.
Emergiu num mundo muito diferente da calmaria sufocante que reinara durante a manhã. O convés balouçava e era sacudido abaixo de um firmamento enegrecido e ameaçador,
enquanto as vagas encapeladas batiam no casco. Os clarões dos relâmpagos iluminavam a linha costeira, pouco acolhedora, que mal se divisava por entre a neblina.
Os rochedos de granito e o penhasco gigantesco que...
O coração de Xavier deixou de bater por uma fração de segundo, a sua memória a transportá-lo a uma das raras histórias que o pai lhe contara.
"Um elevado penhasco guardado por um círculo de menires, Louis. Diz-se que são gigantes transformados em pedra pela Terra-Mãe, incumbidos de protegerem a ilha para
todo o sempre.
"E eu alguma vez virei a ver esses gigantes, senhor?"
A voz aflautada e infantil da criança ansiosa ecoava na cabeça de Xavier. A sua infeliz pergunta fizera com que o rosto do pai ficasse como que empedernido, dando
a impressão de que se tinha apercebido subitamente de com quem é que estava a falar.
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Xavier pestanejou quando uma outra explosão de relâmpagos voltou a iluminar o penhasco. A ilha Encantada. Quer Xavier quisesse ou não, os dois mundos do pai estavam
prestes a colidir.
Foi forçado a reprimir uma ânsia histérica de desatar a rir a bandeiras despregadas. Seria aquilo uma monumental ironia do destino ou a mão do pai que se estendia
do mundo dos mortos? De uma maneira ou de outra, isso agora não interessava. Xavier recusava-se a aceitar a situação.
Chamou a si todas as suas forças e avançou determinado pelo convés açoitado pela tempestade em direção do leme. Sentia a chuva a zurzir-lhe o rosto, fazendo com
que ficasse quase cego. Os trovões retumbavam nos seus ouvidos, como se o Miribelle estivesse a ser atacado por toda a armada espanhola.
A sua senhora em apuros estremecia, adernando violentamente para o lado e fazendo com que ele perdesse o equilíbrio. Deslizou pelo convés escorregadio devido à chuva,
fazendo um esforço desesperado para conseguir agarrar-se à amurada. Sentia que a sua capacidade de raciocínio continuava embotada pela poção, pelo que tinha a impressão
de que os seus dedos tinham engrossado e ficado desajeitados. A sua mão fechou-se em nada, como se quisesse agarrar o ar.
O Miribelle voltou a adernar perigosamente. Xavier rugiu quando o impensável aconteceu. A sua senhora atirou-o pela borda fora. Durante uns momentos, a passagem
do tempo pareceu parar quando ele foi arremessado para o vazio.
Mas, então, Xavier foi abraçado pelos braços gélidos do mar.
A luz do Sol banhava o mar, as ondas douradas a acariciarem a praia, como um amante a emendar o mal feito durante uma querela, a inclemência da tempestade da noite
anterior completamente esquecida. Jane caminhava cuidadosamente ao longo do afloramento de rochedos.
Ali, no extremo mais afastado da ilha Encantada, a vista era agreste, as rochas de arestas irregulares que pareciam dedos a estenderem-se para o mar, a vegetação
tão esparsa que somente as ervas e arbustos de charcos conseguiam medrar naquela linha costeira de rochas graníticas.
Jane sempre preferira a planura de extensos prados ou a dócil vegetação da encosta de uma colina. Nunca tinha esperado sentir aquela respiração agitada, o seu coração
a expandir-se sempre que uma onda se quebrava nos rochedos.
Lançou um olhar nervoso por cima do ombro, certificando-se de que continuava no ângulo de visão das pequenas casas que aspiravam a constituir uma aldeia na parte
mais erma da ilha, umas casas de pedra em bruto aqui e ali que pareciam ter sido entalhadas na vertente dos penhascos.
Entretanto, começavam a ver-se algumas mulheres que se aventuravam a sair de casa para desfrutarem da manhã amena. A jovem Carole Moreau que rodopiava o filho pequeno
num círculo de alegria para o garoto, enquanto Madame Alain e Madame Greves, não muito distantes, partilhavam cestas de pão e mexericos. Madame Partierre andava
de um lado para o outro a recolher industriosamente a madeira que dera à costa, a qual secaria para usar posteriormente no lume.
Era uma idosa rija e engelhada, uma das poucas que residiam naquela costa rochosa. A maior parte tinha-se deslocado até ali, vindas da parte menos erma e agreste
da ilha, onde se situava a cidade portuária de Port
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Corsair. Mas também havia algumas que vieram de mais longe, da Bretanha, do vale do Loire, até mesmo de tão longe como Poitou, todas em antecipação do conselho que
teria lugar no cume dos penhascos dali a uma semana.
Eram uma espécie de mulheres estranhamente independentes que se apelidavam de Filhas da Terra. Jane só podia maravilhar-se perante a sua intrepidez. Nunca tinha
viajado para lado nenhum sem ser acompanhada por um familiar ou por uma criada e com, pelo menos, dois robustos servos.
Mas as mulheres da ilha Encantada desfrutavam de muito mais liberdade do que Jane alguma vez tinha tido, uma liberdade que considerava tanto sedutora quanto um pouco
perigosa.
Ergueu o rosto, expondo-o à brisa que era suficientemente forte para ameaçar o carrapito cuidadosamente preso. Ao contrário do que era seu costume, não tomara a
precaução de usar um manto ou uma coifa.
Enquanto se esforçava por prender um gancho de cabelo que se soltou, Jane sentiu-se invadida por uma espécie de louco impulso como não experimentava desde que era
muito nova. Tirou o resto dos ganchos e sacudiu o cabelo até se soltar livremente numa massa emaranhada.
Afastou as madeixas da face, inspirando o ar salino e levando uma mão aos olhos para os proteger. O mar parecia ondular até ao infinito numa gloriosa vastidão de
azul acariciada pelo sol, não fosse o facto de ela saber que não era bem assim.
Distavam trinta e poucos quilómetros através daquele canal até Inglaterra, e aquele pensamento causou um familiar baque de tristeza em Jane. Quantos anos é que decorreriam
até as suas mágoas se atenuarem e as recordações começarem a esbater-se, até deixar de ser assediada por um único pensamento: "Se eu ainda estivesse em minha casa
num determinado dia, a uma determinada hora, estaria a fazer isto..."
Ao abranger o mar com o olhar, sentiu os olhos humedecidos com uma imagem da sua mansão em Londres, com as suas sólidas paredes de pedra e os seus cuidados canteiros
de flores que se ligavam uns aos outros, estendendo-se até ao ancoradouro na margem do rio, o Tamisa cheio de barcaças e barcos a remos.
À semelhança de todos os seus bens, a mansão em Londres fora confiscada pela coroa inglesa. Jane perguntava-se a qual dos seus favoritos é que Isabel teria concedido
a propriedade; e se o novo proprietário seria bondoso para com os serviçais da casa ou se estes teriam sido forçados a procurar outros empregos.
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Teria essa pessoa cuidado do seu jardim ou tê-lo-ia votado ao abandono? Quem sabe se não teriam arrancado o roseiral que ela cultivara com tanto carinho, a fim de
aumentarem o cais?
Mas, acima de tudo, perguntava-se se alguém se deteria no cemitério da remota igreja de Londres para rezar junto da singela lápide que assinalava a sepultura do
irmão.
Edward Lambert, o último barão de Oxbridge. O facto de mal conseguir recordar a imagem do imprudente jovem, que lhe dera tantas noites de insónia, era algo que perturbava
Jane. Mas lembrava-se bem do irmão mais pequeno, que se agarrara fortemente à sua mão no verão em que tinham ficado órfãos.
- O que é que vamos fazer, Jane? -perguntara-lhe Ned, virando o rostinho inconsolável para ela. - O nosso paizinho caiu do cavalo e agora está todo partido. Já não
temos paizinho. Quem é que vai cuidar de mim?
- Eu cuidarei de ti, Neddie - dissera-lhe ela, a mão a afagar-lhe as madeixas sedosas do cabelo louro, uma versão mais clara do seu próprio cabelo. - Proteger-te-ei
e cuidarei sempre de ti.
Uma promessa que não pudera manter...
- Perdoa-me, Neddie - disse numa oração. Ficou com os olhos marejados de lágrimas. Passou as pontas dos dedos pelas pálpebras para conter as lágrimas. Quando aclarou
a visão, ficou sobressaltada ao ver duas figuras que envergavam mantos e que se encaminhavam para a praia.
Era impossível não reconhecer a mais alta das duas jovens mulheres. Seraphine Remy, a sobrinha mais velha da Senhora da Ilha Encantada, uma beldade de proporções
esculturais, o cabelo solto a cair-lhe por cima dos ombros como uma chuvada de ouro. Constituía um contraste dramático
com a sua companheira mais baixa, Meg, cujo rosto magro era emoldurado pelo cabelo castanho-escuro.
Jane franziu as sobrancelhas. Ariane Deauville dera rigorosas instruções no sentido de que ninguém se afastasse tanto do casario. Olhou para trás, para o conjunto
de pequenas casas, e viu que toda a gente se havia retirado para o interior das respetivas casas exceto elas, sem dúvida para tratarem das suas tarefas diárias.
Não havia ninguém que pudesse aperceber-se de que as duas jovens se afastavam, além de Jane. Mordeu o lábio inferior, percebendo que nenhuma das duas raparigas acolheria
a sua interferência de bom grado, em especial Seraphine.
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A sobrinha da Senhora da Ilha Encantada era obstinada como ninguém. Quanto a Meg, não lhe ficava atrás em teimosia, mas parecia quase mesmerizada por Seraphine Remy,
a mais velha das duas, que, com muita frequência, se sobrepunha à prudência de Meg, persuadindo-a a cometer ações imprudentes que, normalmente, ela não cometeria.
O que, por maioria de razão, fazia com que devesse segui-las, pensou Jane. Hesitando apenas por uns momentos, pegou na orla das saias e começou a ir atrás delas.
Jane nunca havia caminhado com rapidez e o terreno acidentado dificultava-lhe a passada. Felizmente, as duas jovens não andavam num passo apressado e, quando Jane
encurtou a distância que a separava delas, compreendeu a razão para isso.
A julgar pelos gestos veementes de Seraphine e pelo abanar de cabeça repetido de Meg, era óbvio que a mais velha tentava persuadir a mais nova a fazer alguma coisa
contra a vontade desta.
Quando Jane as alcançou, viu que Seraphine tratava de manter algo afastado do alcance de Meg. As duas jovens disputavam a posse do objeto, mas imobilizaram-se de
imediato ao depararem com Jane. Meg conseguiu tirar o que quer que fosse a Seraphine, escondendo o objeto por baixo do manto. As duas raparigas colocaram-se lado
a lado, quais soldados que cerravam fileiras, Meg com uma expressão de culpa e Seraphine a mostrar-se desafiadora.
Jane sorriu, saudando-as como se não tivesse reparado em nada de anormal.
- Bons dias, minhas senhoras.
Meg fez uma pequena vénia rígida e atabalhoada, enquanto a de Seraphine era graciosa e altaneira como a de uma duquesa.
- Lady Jane Danvers. Mas que surpresa tão agradável - disse a jovem com um sorriso rasgado que mostrava uns dentes como pérolas. com dezasseis anos, Seraphine já
dominava a arte de dizer uma coisa enquanto do seu tom de voz se depreendia outra bastante diferente.
- Devo confessar que também me sinto surpreendida por vos ver fora de casa tão cedo. Aonde é que ides? - perguntou-lhes Jane.
- Vamos ali acima - respondeu Seraphine, indicando com um gesto da cabeça uns penhascos distantes; o círculo de monólitos era visível no cimo do mais alto. - A Meg
e eu nunca vimos os gigantes eretos de pedra e estamos a morrer por vê-los.
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- Tenho a certeza de que terão oportunidade de os ver dentro de pouco tempo. O conselho vai reunir daqui a menos de uma semana. Entretanto, não considero que seja
sensato da vossa parte andarem por aqui e por ali sem estarem acompanhadas.
- Ora, ora. Estamos na ilha Encantada e não em Londres ou Paris. Tenho a certeza de que a ideia de ver uma menina sozinha deve ser inconcebível para uma senhora
da vossa... venerável idade. Mas a verdade é que as mulheres gozam de mais liberdade aqui.
- Eu não estava a referir-me ao decoro, mas mais à vossa segurança. - Jane assestou o olhar em Meg com uma expressão severa. - Sabeis que a Ariane pediu que ninguém
se afastasse para longe. Aparentemente, vivem algumas pessoas grosseiras, que se dedicam à pesca, nesta parte da ilha e as mulheres em particular são um tudo-nada
desbragadas e supersticiosas.
Meg fez menção de querer falar, mas Seraphine apressou-se, uma vez mais, a intervir antes de ela poder replicar a Jane.
- A minha mãe disse-me que essas mulheres idiotas foram banidas da ilha Encantada há muitos anos, quando os caçadores de bruxas e os soldados do rei procederam a
um grande ataque. Além disso, sou muito capaz de nos defender a ambas. - Seraphine afastou o manto, revelando uma espada curta.
- Deus nos valha, menina! - exclamou Jane com a respiração arquejante.
- Não tendes por que vos preocupar. Sei como usá-la - acrescentou Seraphine, levando a mão ao punho da espada como se estivesse a acariciá-lo. - O meu pai ensinou-me.
O capitão Nicolas Remy é um valente herói huguenote e é tão temido que lhe deram o nome de Flagelo. Não sei se alguma vez vos falei disso.
- Somente uma dúzia de vezes - resmungou Meg.
- O meu pai considera que todos os huguenotes devem saber defender-se, homens ou mulheres. Uma pessoa nunca sabe quando é que poderá ser atacada por alguns fanáticos
papistas.
- Seraphine! - exclamou Meg com um semblante de reprovação, lançando um olhar cheio de significado na direção de Jane.
A rapariga reagiu com um mero encolher de ombros.
- Não foi minha intenção ofender Lady Jane Danvers.
- E não me sinto ofendida - retorquiu Jane. - Não existe nenhuma guerra civil que seja travada nesta ilha, razão por que os teus pais te enviaram
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e às tuas irmãs para cá, onde não correriam qualquer perigo. Na ilha Encantada prevalece um espírito mais tolerante.
- Espero que sim. Vossa senhoria já leu o tratado de Martinho Lutero que vos enviei?
- Não, não li. Acredito que a fé deve ser uma questão de escolha pessoal. Apesar de ter as minhas próprias crenças religiosas, tenho respeito suficiente pelos outros
para não tentar impingir-lhes a minha fé religiosa.
- Oh, também eu. Se bem que me seja muito difícil conter-me quando sei que tenho razão - retorquiu Seraphine, soltando um suspiro cheio de dramatismo. - Mas adiante;
é óbvio que estais aqui para nos recapturar. Levando em consideração que a Meg é uma menininha tão obediente, seja como for, não vale a pena continuarmos a caminhar,
subindo pelo penhasco até ao círculo de gigantes de pedra.
Trocou um olhar mordaz com Meg, como se houvesse algo subjacente à mordacidade de Seraphine que Jane não compreendia, mas Meg corou.
- vou ter de procurar divertir-me num outro lugar qualquer - disse Seraphine, franzindo o nariz quando olhou para Jane, os seus olhos azuis a chisparem com uma impudente
expressão de desafio.
Antes que Jane pudesse protestar, Seraphine afastou-se, começando a andar agilmente por cima dos rochedos até à borda de água. A maré estava a subir e foi apanhada
de surpresa por uma onda que lhe molhou as botas e a bainha do vestido. Atirou o cabelo louro para trás e riu-se. Baixou-se e meteu a mão na água, molhando o vestido
mais do que já estava.
Jane suspirou, apercebendo-se de que era inútil continuar a argumentar com a rapariga, tentando convencê-la a regressar à segurança das pequenas casas. Seraphine
permaneceria exatamente onde estava, se por mais razão nenhuma, para lhe mostrar que podia fazê-lo. Havia muito pouco que Jane pudesse fazer para além de chamar
reforços na pessoa da tia da jovem.
Entretanto, Meg via Seraphine a percorrer a praia com uma expressão dividida entre a melancolia e a admiração.
- Ela é verdadeiramente magnificente, não é? - murmurou Meg.
- Essa não é precisamente a palavra que eu teria escolhido, muito embora reconheça que ela é, sem sombra de dúvida, uma rapariga bastante invulgar.
- Lamento muito o que a Seraphine disse sobre os católicos fanáticos - acrescentou Meg, olhando para Jane com uma expressão de pesar.
- Tenho a certeza de que ela não teve a intenção de ser ofensiva. Às vezes,
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tem tendência para defender os seus pontos de vista de uma maneira demasiado apaixonada.
- Não te preocupes com isso, Meg - retorquiu Jane com um sorriso. - Quando eu era uma jovem, também pensava que sabia tudo.
- O que é que aconteceu?
"Fui seduzida pelo estribeiro-mor do meu tutor e dei à luz um nado-morto." Jane baixou as pestanas para ocultar o seu pensamento.
- Fiquei mais velha e mais venerável - replicou com secura, arrancando a Meg uma muito rara gargalhada.
Quando já se encaminhavam de volta à aldeia, Meg continuou a defender a amiga.
- A Seraphine tem realmente uma faceta mais generosa e afável, apesar de só muito raramente a mostrar a alguém, à exceção das irmãs pequenas. E a mim.
- Tinha a impressão de que vocês as duas estabeleceram uma forte amizade. - De facto, mais forte do que Jane pensava ser benéfico para Meg. - Razão por que fiquei
tão perplexa quando vos vi a discutir.
- Não, não estávamos a discutir - ripostou Meg quase rapidamente de mais. - Não passou de um mero... apenas um pequeno desacordo. Até mesmo as melhores amigas discutem
de vez em quando.
- De verdade? A mim pareceu-me que a Seraphine te tinha tirado algo que te pertencia e que se recusava a devolver-te. De facto, a mesma coisa que agora manténs escondida
por baixo do teu manto.
Meg assumiu uma atitude rígida. A jovem podia ter dito a Jane que não se metesse no que não lhe dizia respeito, uma vez que esta não tinha nenhuma autoridade sobre
ela. Mas, após uns momentos, Meg estendeu a mão e a pequena bola de cristal cintilou, refletindo a luz do Sol.
Jane já tinha percebido que a bola de cristal com que Meg tentava adivinhar o futuro seria o objeto em disputa. Portanto, não ficou surpreendida, apenas entristecida.
Mas não fez qualquer pergunta, tal como não teceu a mínima crítica. O seu silêncio, finalmente, levou Meg a explicar-se.
- Há muito tempo que não recebemos notícias de Navarra. Tanto a Seraphine como eu estamos muito preocupadas por não sabermos dos nossos pais. Por isso, ela pensou
que eu seria capaz de invocar uma imagem para sabermos se estão bem. Tentei explicar-lhe que não era assim que as coisas funcionavam, que não tenho qualquer controlo
sobre o que vejo. As visões surgem-me de moto próprio.
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"Mas a Seraphine pensou que eu poderia fazer isso se me concentrasse com mais intensidade. E talvez ajudasse se eu fizesse essa tentativa entre as pedras eretas.
Por pressuposto, os menires possuem o seu próprio poder místico. - Meg estremeceu. - Essa ideia atemorizou-me. A última coisa que desejo é que as minhas visões passem
a ser mais fortes, mais potentes. Recusei fazer o que ela queria, mas a Seraphine apoderou-se da bola de cristal e começou a encaminhar-se para o círculo de pedras
sozinha. Eu só fui atrás dela para que ma devolvesse.
"Mas eu estava quase a ceder quando nos apanhastes. A Seraphine consegue ser muito persuasiva. Eu... eu sei que tanto vós como a Ariane queriam que eu me livrasse
da bola de cristal - continuou Meg, olhando para Jane com uma expressão de súplica. - Estais muito desiludida comigo?
- Não, minha querida, só estou muito preocupada contigo. Meg meneou a cabeça acabrunhada.
- Compreendo que as minhas visões são consideradas estranhas, até mesmo aqui, na ilha Encantada. A Carole Moreau também teme por mim. Ela diz que, se eu continuar
a tentar adivinhar o futuro através da bola de cristal, as outras mulheres começarão a acreditar que eu sou tão demoníaca como a minha mãe era.
- É impossível que alguém pudesse pensar uma coisa dessas - retorquiu Jane, passando os nós dos dedos pela bochecha de Meg. A garota nunca fora muito robusta, mas
ficou surpreendida ao ver como estava mais pálida e mais magra, ainda mais do que no outono passado. - Estou mais preocupada por causa do que essas tuas visões te
estão a fazer. É como se estivessem a envolver a tua mente em sombras.
- As sombras já lá estão - disse Meg esfregando as têmporas vigorosamente com as pontas dos dedos, fazendo pressão. - Por muito que eu me esforce, parece que não
consigo expulsá-las do pensamento.
Jane fechou a mão nos dedos de Meg para pôr fim ao gesto brusco antes que ela se magoasse. Ariane estava muito mais habilitada a aconselhar e a orientar Meg. Mas,
por uma razão inexplicável, era com Jane que a garota se abria. A confiança que ela depositava em si comovia-a, mas também a avassalava.
- Voltaste a ter essa visão acerca do felino negro? - perguntou-lhe Jane.
- Gatos negros, tempestades negras, rainhas negras, tudo negro. E nenhuma é nítida. A única coisa de que tenho a certeza é da iminência de
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uma ameaça qualquer, uma coisa sinistra que perturbará até mesmo a paz da ilha...
Meg foi interrompida por um grito agudo, não concluindo o que estava a dizer. Jane desviou-se subitamente, pensando que estavam prestes a ser sobrevoadas por uma
das estridentes gaivotas que costumavam sobrevoar aquela parte da ilha. Mas, então, apercebeu-se de que o grito viera de trás delas.
Seraphine corria atrás delas, quase a tropeçar na bainha encharcada do vestido. A confiança habitual em si própria parecia estar abalada e tinha as bochechas muito
coradas. A jovem apanhou-as, agarrada a um ponto do flanco dorido e sem fôlego.
- Seraphine, o que é que foi? - perguntou Meg.
- Magoaste-te? - perguntou-lhe Jane por seu turno, pousando-lhe uma mão no ombro, mas Seraphine sacudiu-a.
- Não, não sou eu. Ele - respondeu a rapariga com a respiração arfante. - Eu... eu encontrei um homem morto ali atrás, na enseada.
Jane e Meg trocaram um olhar de perplexidade. Jane foi a primeira a recuperar do assombro.
- Mostra-me - disse.
Seraphine reagiu com um menear de cabeça sacudido. Virou-se e correu de volta à praia. Apesar de estar quase sem fôlego, as passadas largas da jovem impeliam-na
para a frente. Jane tinha dificuldade em acompanhar o passo dela, enquanto Meg caminhava ainda mais atrás. Seraphine saltava por cima dos rochedos com uma imprudência
que levou Jane a gritar-lhe uma advertência. Mas a jovem ignorou-a, desaparecendo da sua vista. Jane abrandou o passo para poder caminhar por cima
da saliência rochosa mais cautelosamente. Um entorse no tornozelo inutilizá-la-ia para quem quer que fosse.
Quando chegou ao areal, deparou com Seraphine inclinada sobre uma figura vestida de preto estendida na areia, as roupas negras a contrastarem gritantemente com a
luminescência branca do sol a incidir sobre as rochas. Apressando o passo e colocando-se ao lado de Seraphine, Jane constatou que a figura que jazia no areal era,
de facto, um homem. De onde
é que ele teria vindo, como é que dera à costa naquela enseada tão recôndita, era coisa que Jane não saberia dizer. Um dos braços dele estava estendido, como se
tivesse feito um esforço para se agarrar aos rochedos, para fugir à rebentação violenta do mar. O mesmo mar que agora entrava mais
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adentro pela praia, a maré brava a ameaçar retornar para o arrastar de novo nas garras da corrente.
- Ele ainda respira?
- Não sei. Não me ocorreu verificar isso. Eu... eu...
Jane ajoelhou-se. O homem estava esparramado de barriga para baixo, a cabeça virada para o lado. Ela afastou uma madeixa de cabelo escuro molhado, procurando a pulsação
na base da garganta.
Ele tinha a pele tão gelada. Mas quando fez mais pressão com as pontas dos dedos, sentiu uma leve pulsação.
- Ele ainda está vivo - disse Jane; ergueu o olhar e sentiu alívio quando viu que Meg as tinha apanhado, a jovem mais nova a deter-se logo atrás de Seraphine. -
Ajudem-me a virá-lo - pediu às jovens num tom de voz premente. Seraphine entrou em ação de imediato, mas Meg limitou-se a ficar onde estava, a olhar com fixidez.
Não era um homem muito corpulento, mas o peso morto tornava extremamente difícil deslocá-lo. com a ajuda de Seraphine, Jane conseguiu virá-lo de maneira a que ficasse
deitado de costas. O braço direito pendia flácido num ângulo extremamente anormal, com um osso lascado a furar-lhe o tecido da manga da camisa.
Seraphine ficou arfante, recuou e tapou a boca com a mão, dando a impressão de estar prestes a vomitar.
- O que é... o que é que devemos fazer?
Era muito raro que Jane ouvisse Seraphine Remy sem que tivesse uma resposta pronta na ponta da língua, mas antes de poder responder-lhe, percebeu que a rapariga
não se dirigira a si. Seraphine apelava a Meg.
- O que é que precisamos de fazer, Meg? Foste tu quem mais aprendeu com a Ariane sobre como tratar de ossos fraturados.
Meg não lhe deu resposta. Continuava como que petrificada numa atitude nada característica da sua maneira de ser. Regra geral, quando alguém estava doente ou ferido,
Meg era a primeira a oferecer a sua ajuda, sempre tão competente para alguém de tão tenra idade.
E, perante aquela situação, a ajuda era da maior urgência. A próxima maré alta não tardaria e as ondas já haviam começado a lamber os calcanhares das botas de couro
já com muito uso do desconhecido.
- O braço partido é o menor dos problemas do pobre homem - disse Jane a Seraphine. - Se não conseguirmos levantá-lo para o tirar desta
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enseada, ele vai morrer afogado. Uma de nós vai ter de ir a correr para pedir ajuda. E é melhor que sejas tu. És de longe a que corre mais depressa.
Seraphine acenou que sim, parecendo ter ficado aliviada por poder fazer alguma coisa. Levantou a orla das saias e desatou a correr.
Jane inclinou-se por cima do homem, limpando a areia que se lhe agarrara à cara e afastando o cabelo que lhe caíra para a fronte. Encontrou um alto mesmo acima da
têmpora, concluindo que ele sofrera uma concussão. Quando os seus dedos passaram pelo inchaço, Jane pensou ter ouvido um pequeno gemido que o estranho soltou.
- Senhor? Senhor, conseguis ouvir-me? - Olhou para o homem com uma expressão de esperança. Mas não obteve resposta nenhuma.
- Temos de o deixar sozinho, Jane - disse Meg, falando por fim. - Deixar que o mar o leve outra vez.
Jane olhou para Meg sem ocultar o assombro que as palavras dela lhe causavam. Meg agarrava a bola de cristal entre as mãos e estava muito pálida, os olhos com uma
expressão mesmerizada, o cabelo agitado pela brisa a parecer um halo escuro.
- Ele é perigoso. Só nos trará problemas.
- Meg, como é que podes saber uma coisa dessas?
- Ele é um desconhecido. Isso é o que os desconhecidos fazem.
- Meg respondeu-lhe com uma entoação de voz tão estranha que Jane recuou involuntariamente, afastando-se um pouco do homem sobre o qual se mantivera inclinada.
Seria aquilo outra das enervantes previsões de Meg ou, muito simplesmente, seriam os receios de uma garota que já passara por tantas provações na sua curta vida,
perseguida por caçadores de bruxas, assassinos, e a malevolência de uma poderosa rainha, a falarem? Não admirava que a jovem desconfiasse de quem não conhecia, com
a agravante de aquele homem ter um aspeto bastante alarmante.
Jane não fazia ideia da identidade daquele indivíduo, mas estaria disposta a apostar o pouco que possuía em como não era nenhum pescador da localidade que tivesse
sido atirado borda fora de um pequeno barco a remos durante a tempestade do dia anterior.
Tinha as feições endurecidas de um homem que tivesse tido uma existência dura, sempre com o vento, a chuva e o sol ardente a incidirem sobre os seus ossos. A camisa,
aberta no pescoço, revelava o vinco de uma cicatriz
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esbranquiçada, como se a sua garganta tivesse sido golpeada no decurso de uma qualquer batalha em que a ferocidade imperara. Não era o indicador de um homem pacífico.
Mas ainda que ele viesse a provar ser um filho gerado pelo Diabo, Jane não podia abandoná-lo à sua sorte sem fazer nada para o salvar. Tinha de tentar socorrê-lo.
Era a atitude mais correta. E, apesar da sua aparência dura, havia algo de gentil, de mais sensível, na curvatura da boca dele.
A boca dele.
Jane ficou com a respiração suspensa ao recordar-se de uma magia curativa que observara a Senhora da Ilha Encantada a ministrar numa jovem que quase morrera afogada.
Ariane prendera os lábios da rapariga nos seus, insuflando a sua própria essência na garota, tendo conseguido reanimá-la. Ariane chamara-lhe o Beijo da Vida.
Se o homem pudesse ser levantado e ajudado a pôr-se de pé, seria muito mais fácil salvá-lo. Teria Meg aprendido a pôr em prática essa magia?
Mas um olhar na direção de Meg disse a Jane que dali não lhe chegaria ajuda nenhuma, ainda que fosse capaz de apaziguar os medos da jovem ou despertá-la do seu estranho
transe. Depois de ter proferido o seu aviso, Meg tratara de retroceder, afastando-se ainda mais.
Entretanto rebentou outra onda mais perto e desta vez esparrinhou os tornozelos do desconhecido. Mas o que é que seria feito de Seraphine? Ela já teria chegado sequer
à aldeia?
A Jane não restava outra alternativa que não fosse tentar ela própria dar o Beijo da Vida ao estranho. Olhou para o homem com uma expressão de dúvida por breves
momentos, após o que tentou imitar o que Ariane tinha feito. Inseriu os dedos na boca dele para lhe abrir os lábios, podendo assim procurar qualquer obstrução. Tudo
o que sentiu foi a textura áspera e morna da língua dele, o contacto intrusivo e perturbadoramente íntimo.
Sentiu as bochechas a arderem. Antes de poder pôr em questão a sensatez do que se preparava para fazer, Jane respirou fundo. Inclinou-se mais para ele, e selou a
boca dele com a sua. Mal tinha começado a insuflar-lhe ar quando o homem a sobressaltou, arregalando os olhos de repente. Jane ficou a olhar para profundidades da
cor de um mar encolerizado e tempestuoso.
Jane recuou, sentindo o coração a bater fortemente. Mas não estava minimamente tão abalada como o pobre homem. Ele gemeu e olhou atordoado para ela. Recuperando
a compostura, Jane tentou tranquilizá-lo.
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- Está tudo bem, senhor. Estou aqui para vos ajudar e não tardará a chegar mais ajuda. - Pelo menos, era o que ela esperava.
Não ocorreu a Jane que estava a dirigir-se a ele em inglês, até ele ter pestanejado e resmungado qualquer coisa em francês. Mas, até mesmo nessa língua, as palavras
dele não faziam o mínimo sentido.
- Bruxa ou... sereia?
- Peço desculpa, mas não estou a perceber, monsieur - replicou Jane na língua dele, sem saber ao certo se teria ouvido bem ou se o pobre homem estaria a delirar
de dor.
Mas ele humedeceu os lábios e voltou a repetir a mesma coisa.
- Bruxa ou sereia... sois uma bruxa ou uma... sereia?
- Nem uma coisa nem outra - respondeu Jane numa voz titubeante.
- Sou uma mulher inglesa.
Ele reagiu com um riso sufocado antes de voltar a perder a consciência.
Xavier afundou-se mais fundo nas profundezas do mar. Uma parte da sua mente urgia-o a lutar, a manter a cabeça acima das ondas para que não morresse afogado. Mas
conseguia sentir a dor a roçar por ele, como o focinho de um tubarão esfomeado à espera de poder devorá-lo quando ele subisse à superfície. Consequentemente, era
muito melhor que se deixasse ficar onde estava, levado ao sabor acariciante da corrente até ao fundo escuro do oceano.
Quem lhe dera que ela o deixasse ir. Mas a sua sereia banhava-lhe o rosto e friccionava-lhe os pulsos, enquanto a voz de sereia o chamava.
- Monsieur? Monsieur, por favor, voltai para mim. Tendes de tentar. Xavier obrigou-se a abrir os olhos, mas abrindo-os apenas uma fenda, concentrando-se na pessoa
que se debruçava sobre si, uma mulher de cabelo de um louro beijado pelo sol que lhe caía para o rosto, olhos gentis e uma boca macia. A sereia que o fizera reviver.
Quando sentiu o primeiro ataque de dores, ficou sem saber ao certo se queria beijá-la ou matá-la.
Gemeu e tentou voltar a recolher-se na escuridão, mas ela colocou a mão por baixo da sua cabeça, soerguendo-o e levando-lhe uma caneca aos lábios.
- Por favor, monsieur. Deveis tentar. Bebei isto.
Apesar de sentir a língua engrossada e ressequida, obedeceu ao que ela lhe dizia, bebendo um trago avidamente, mas cuspinhou de imediato e ficou engasgado. Qualquer
que fosse o veneno que ela lhe dava a beber, tinha um sabor mais repulsivo do que a infusão do seu xamã. Mas, ao contrário do elixir mágico que o mergulhava num
transe sedutor, aquela poção reavivou-lhe os sentidos, fazendo com que tivesse uma nítida perceção do latejar da massa volumosa que era o seu corpo.
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Xavier gemeu e praguejou. Cristo, mas o que diabo é que lhe teria acontecido? Tinha a sensação de que fora atacado por um bando de rufiões gigantescos armados com
clavas, tendo saído a perder. Dores... dores que tinham origem, principalmente, no seu braço, uma dor latejante que parecia queimá-lo, estendendo-se até ao ombro
e a toda a largura do peito, dando-lhe a sensação de irradiar para dentro de todos os poros do seu ser.
Mas havia pior. Quando a visão começou a clarear, ficou horrorizado ao aperceber-se de que o seu navio fora invadido por... mulheres. Estava perdido num mar de saias,
algumas, como a sua sereia, juntavam-se à beira da sua cama, enquanto outras se agrupavam na ombreira da porta do seu camarote ou olhavam para ele de boca aberta
pela janela.
As mulheres eram de todos os tamanhos e idades, desde a pequena de cabelos de um louro-claro que olhava fixamente para ele enquanto chuchava no polegar, até à velha
toda encarquilhada e vesga que dava estalidos com as gengivas. Falavam entre si, as vozes a soarem a Xavier tão esganiçadas como um bando de gaivotas que sobrevoassem
a sua cabeça latejante em círculo.
- Olhem. Até que enfim... está a recuperar a consciência.
- Dá-lhe outro trago desse chá reconstituinte, minha querida.
- Quem é ele? De onde é que ele veio?
- Não sei. Parece que foi atirado para o areal pelo mar.
- O mar nunca deixou uma coisa de tanta categoria à minha porta. Apenas peixe morto e algas.
- Muito bem, já chega! - Uma loura alta e de semblante altaneiro abriu caminho à cotovelada por entre o grupo de mulheres, olhando para as companheiras com uma expressão
desdenhosa. - Até se poderia pensar que nunca haveis visto um homem. Vão-se embora e dêem ao desgraçado espaço para poder respirar.
- Mas quem é que morreu e te fez rainha, Seraphine Remy? - perguntou uma mulher desdentada, bufando de irritação.
A sua indignação encontrou eco nas outras; as vozes a falarem todas ao mesmo tempo faziam com que Xavier quisesse tapar os ouvidos com as mãos. Não fosse o facto
de lhe parecer que estava incapaz de mexer o braço direito.
A sua sereia decidiu intervir, erguendo as mãos num gesto com que pedia silêncio.
- Minhas senhoras, a Seraphine tem razão. O pobre do homem precisa que lhe tratem os ferimentos, de silêncio e de repouso. Por favor, rogo-vos
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que vos retireis. Mais tarde, tereis muito tempo para fazerem as vossas perguntas.
O seu tom de voz baixo e consensual conseguiu o que as ordens da rapariga de atitude sobranceira não conseguira. As mulheres começaram a sair, até mesmo a loura
que levou a criança igualmente loura que chuchava no polegar. Xavier foi deixado num abençoado silêncio, sozinho com a sua sereia.
Teria suspirado de alívio quando a sua salvadora se aproximou do seu leito. Mas até isso ameaçava causar-lhe dores infernais. Quando o seu olhar percorreu o interior
do quarto, o alívio desapareceu por completo.
Não se encontrava, como havia suposto, no seu camarote a bordo do Miribelle. Estava deitado numa cama, rodeado por paredes de pedra caiadas de branco que não lhe
eram nada familiares, com muito pouco mobiliário, embora fosse distintamente feminino, uma roda de fiar, uma cesta de costura e a ponta de uma saia de baixo a espreitar
de um baú.
As recordações explodiram-lhe por detrás dos olhos, como clarões dolorosos de relâmpagos. A tempestade a arremessá-lo para fora do convés do Miribelle. O embate
gelado com as águas do mar. Os esforços denodados para conseguir manter a cabeça à tona das vagas encapeladas, esforçando-se por pensar com clareza na escuridão.
Começar a nadar em direção a terra, sentindo-se tão exausto e com os músculos todos doridos. Resistir à vontade quase irreprimível de desistir, de se deixar afundar
abaixo da superfície. A maré a arremessá-lo aos trambolhões contra as rochas. Tentando agarrar-se desesperadamente com as mãos, quase a conseguir firmar-se nos pés,
violentamente atirado por outra vaga. Dores... dores excruciantes. Outra vez de pé, a cambalear, a cair. Mais dores. E depois... o vazio.
Entretanto, a sua sereia voltou para a sua beira, tentando obrigá-lo a beber um pouco mais da sua infusão repugnante. com a mão esquerda, Xavier conseguiu dar-lhe
uma pancada na mão e a caneca caiu-lhe dos dedos.
- Não bebo mais dessa coisa asquerosa. Onde é que estou? - perguntou-lhe numa voz rugida. Pelo menos, a intenção era rugir, mas a voz saiu-lhe mais num timbre de
cana rachada.
- Na ilha Encantada.
- Não! Não é possível.
- Asseguro-vos de que é - confirmou Jane, acenando com a cabeça e com uma expressão tão solene que ele teve de suprimir uma louca vontade
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de rir. Ela era uma sereia extremamente circunspecta, nada parecida com a sedutora do seu transe induzido pela poção do xamã.
- Não há motivo para vos preocupardes - disse Jane, pegando-lhe na mão esquerda, que apertou. - Agora estais em segurança.
Em segurança? Na ilha das bruxas, o último lugar deste lado do Inferno em que ele queria estar. Rangeu os dentes enquanto interiorizava aquela informação.
Quando a sua salvadora fez menção de se afastar, ele prendeu-lhe a mão.
- Aonde é que ides?
- Só vou procurar a Senhora. Já a deviam ter ido buscar. Não consigo perceber o que é que estará a demorá-la.
- Não! - ripostou Xavier exacerbado. - Não quero... - Sentiu-se mortificado ao aperceber-se de que se agarrava a ela como se fosse uma criança, mas, naquele mundo
de pesadelo, ela era a única coisa que parecia verdadeira, além das dores que não lhe davam descanso. - Peço-vos que fiqueis.
- E ficarei - prometeu Jane com um sorriso docemente solene. com a mão livre, acariciou-lhe a face, a única região do corpo que parecia não lhe doer. - Tudo correrá
pelo melhor.
Raios o partissem se ela quase não conseguia fazer com que ele acreditasse naquilo, até Jane ter acrescentado:
- Tenho a certeza de que a Senhora não tardará a chegar.
Mas que senhora era aquela?, quase perguntou ele num tom autoritário. Mas à medida que as suas ideias iam ficando cada vez mais claras, sabia que a sua sereia só
poderia estar a falar de uma única mulher. A Senhora da Ilha Encantada. Pensar nela fez com que ficasse com um aperto no estômago. Tinha de se pôr a andar dali para
fora.
Xavier rangeu os dentes quando sentiu as dores ao tentar erguer-se, apesar de o esforço ter sido muito débil. Mas a sereia impediu-o de levar o seu intento avante
com toda a facilidade, fazendo pressão com a mão no ombro esquerdo de Xavier.
- Não. Por favor, monsieur. Deveis manter-vos sossegado para que não... - A advertência de Jane ficou a meio quando alguém entrou de rompante no quarto numa agitação
de saias cinzentas e avental. Era uma idosa com uma basta cabeleira encanecida e olhos vagamente azuis que tapou a boca quando o viu.
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Xavier olhou para ela através de olhos congestionados. A anciã ficou lavada em lágrimas.
- Oh, meu querido amo! - gritou. - Sois vós realmente?
Amo? Mas o que diabo?", pensou Xavier. A ilha das bruxas, mas que inferno. Tinha dado à costa numa ilha povoada por mulheres loucas.
- Mas sois vós realmente ao cabo de tantos anos? - perguntou a idosa radiante, apesar das lágrimas. - O mar levou-vos para longe e agora é o mar que vos traz de
volta para junto de nós. - com outro forte soluço pranteado, atirou-se para o peito dele, dando-lhe um safanão no braço direito. O efeito teria sido o mesmo se ela
o tivesse esfaqueado. Xavier sufocou um grito ao sentir um novo espasmo de dor que lhe percorreu todo
o corpo.
- Minha senhora, por favor! - interveio a sua sereia, afastando dele a mulher, lavada em lágrimas, à força. - Tenho de vos dizer que estais a perturbar o nosso hóspede.
- Perturbar-me? - ripostou Xavier por entre dentes cerrados, soltando uma catadupa de impropérios que teriam chocado os ouvidos delas se alguma estivesse a prestar-lhe
atenção.
A idosa agarrava-se à sua sereia, meio a chorar, meio a rir.
- Oh, não estais a compreender. Não sabeis quem ele é. Este é um grande dia para a ilha Encantada, Jane.
"Jane?", disse Xavier para consigo, expirando sucessiva e rapidamente, num esforço para readquirir algum controlo sobre as dores que sentia. Aquele era um nome ridiculamente
sereno para uma sereia ou mesmo uma bruxa.
Entretanto, Jane esforçava-se por acalmar a idosa, que estava como louca, impedindo-a de se atirar outra vez a Xavier. Enquanto a acompanhava até à porta, Xavier
apercebeu-se da presença de outra pessoa, outro par de mãos que segurava os braços da idosa, reforçando os esforços de Jane.
- Agnes, minha querida. Mas o que é que se passa?
Xavier não conseguia ver quem tinha falado, mas a voz penetrou a perturbação mental causada pelas dores, serena, calma e autoritária.
A mulher idosa virou costas a Jane para abraçar a recém-chegada.
- Oh, milady. O dia de júbilo por que rezámos já chegou. O chevalier voltou para junto de nós.
Xavier ficou hirto, esquecendo-se mesmo das dores ao perceber por quem é que estavam a tomá-lo. O que, para ele, não devia ter sido surpresa nenhuma. Fechando os
olhos, conseguia ouvir o eco da voz da mãe.
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"És a cara chapada de Louis, o teu pai."
Até mesmo agora, Xavier continuava sem ter a certeza se a mãe sentira orgulho nessas parecenças ou se odiava vê-las nele.
Os gritos de júbilo da idosa desvaneceram-se à distância, dando lugar ao silêncio que se instalou no quarto. Xavier teve consciência de alguém que se aproximava
da beira do leito. Sem saber porquê, teve noção de que não se tratava de Jane.
Manteve os olhos cerrados, como se, assim, pudesse evitar o confronto que mais receara durante grande parte da sua vida; e, todavia, incapaz de deixar de o imaginar.
Mas nunca o imaginara naquelas circunstâncias, deitado de costas, ferido e indefeso na presença dela.
Por muito que tivesse resistido àquele momento, parte de si tinha considerado que era inevitável. Expeliu todo o ar dos pulmões. Sentindo-se estranhamente resignado,
abriu os olhos e olhou para a Senhora da Ilha Encantada.
Era alta e esbelta, possuindo uma graciosidade majestosa, não obstante a simplicidade do vestido castanho que usava. O cabelo castanho coroava-lhe a cabeça num círculo
de tranças apertadas, intercalado por alguns fios grisalhos. A sua fisionomia era mais atraente do que bela. Imaginava que ela, habitualmente, teria uma expressão
serena, mas naquele momento empalideceu ao olhar para ele, os olhos castanhos muito abertos.
Portanto, aquela é que era a muito amada Evangeline do seu pai. O retrato reproduzira-a fielmente. Mas até mesmo quando esse pensamento lhe ocorreu, Xavier franziu
o sobrolho, sabendo de antemão que estava enganado. Há muito que Evangeline teria falecido e sido sepultada como a sua própria mãe. Mas, fosse como fosse, aquela
mulher era nova de mais para poder ser a Evangeline. Aquela só podia ser Ariane, a filha mais velha de Louis.
Pelo menos, aquela era a palavra que Xavier tencionava articular, mas o sussurro que lhe escapou dos lábios também o surpreendeu.
- Irmã.
- M... meu Deus! Quem sois vós?
- Ninguém que desejeis conhecer.
- Evitar a vossa convivência poderá provar ser difícil, monsieur, uma vez que as Parcas vos colocaram na minha ilha.
- As Parcas não tiveram nada a ver com isso. Foi o Miríbelle quando adernou durante a tempestade de ontem à noite.
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- O... o Miribelle? - perguntou Ariane titubeante. - com certeza que não estais a referir-vos... ao navio do meu pai.
- Não, estou a falar do navio do meu pai. - O qual Xavier esperava que tivesse conseguido resistir ao temporal, sem ficar destruído nos rochedos.
Ariane mordeu o lábio inferior. Ele reparou que ela optara por evitar desafiá-lo na questão dos pais. Ao invés disso, fez-lhe uma pergunta.
- E quanto ao chevalier? Sabeis o que...
- Morreu - atalhou Xavier como se a apunhalasse com aquela palavra. Efetivamente, matara a centelha de esperança que se refletira nos olhos dela. Xavier sentiu um
baque de arrependimento por causa da sua crueldade, mas a verdade é que tinha umas dores atrozes que o impediram de ter mitigado o golpe.
Ariane baixou as pálpebras, o sentimento de desgosto e resignação a suavizar as suas feições. Mas a expressão de uma determinação férrea voltou-lhe aos olhos quando
o fitou de novo.
- E afirmais ser...?
- Eu não afirmo nada. Se sois tão competente na leitura da mente dos homens, tal como me disseram que éreis, estou certo de que sereis capaz de deduzir quem eu sou
sem precisardes que eu vos diga. - Apesar da dor latejante por detrás dos olhos, Xavier olhou-a, mostrando um semblante de desafio.
Ariane franziu as sobrancelhas, semicerrando as pálpebras e prendendo o olhar nos olhos dele. Xavier fitou-a com a mesma fixidez, recusando-se a pestanejar, mas
diabos o levassem se não teve a sensação de que ela lhe abria o crânio com tanta destreza como ele abria a sua mala de porão, os seus pensamentos a ameaçarem cair
como tesouros no colo dela.
Rangeu os dentes e bateu com a porta da sua mente, se bem que o esforço que resistir-lhe exigia custou-lhe dores e transpiração que lhe perlou a fronte. Mesmo assim,
recusava-se a render-se a ela. Os olhos de ambos a entrechocarem-se num duelo impiedoso até Jane se apressar a intervir.
- Ariane, por favor.
A sua sereia interviera com tanta serenidade que Xavier nem sequer se tinha apercebido de que ela continuava no quarto. O olhar perplexo dela ia de Xavier a Ariane.
Jane pousou os dedos na manga de Ariane.
- Não sei o que é que se está a passar e tão-pouco sei quem é este homem. Mas com certeza que o mais importante é o facto de ele precisar da vossa ajuda. É imperativo
tratar o braço dele.
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Ariane beliscou a cana do seu nariz, adotando uma postura mais ereta.
- É claro que tendes razão, Jane - retorquiu, obrigando-se a esboçar um sorriso forçado. - Muito bem, monsieur. Vamos lá ver esse braço ferido.
- Não há nada de mal com o raio do meu braço! - negou Xavier a despeito da dor que se alastrava a todo o seu lado direito. Mudou de posição, soerguendo a cabeça
ligeiramente. - Só preciso de...
Abafou um grito de horror quando viu por si próprio toda a extensão da lesão, o sangue seco agarrado em volta da manga rasgada da camisa, deixando ver uma ponta
de osso. Ariane inclinou-se mais para poder examinar a fratura, mas até mesmo o toque extremamente suave da sua mão fez com que ele se sentisse como se a sua carne
estivesse a ser rasgada por um espigão incandescente.
- Não me toque no braço! - disse Xavier com brusquidão, firmando a mão esquerda no colchão e esforçando-se por se sentar. Apesar dos protestos das duas mulheres,
chegou o braço lesionado ao peito, como a querer protegê-lo, se bem que o esforço o tivesse feito ver pontos negros a dançarem-lhe diante dos olhos.
- Oh, monsieur, peço-vos que não façais isso. Só estais a agravar o vosso estado de saúde - disse Jane.
Agravar? Como é que aquilo poderia ser pior, pensou Xavier enquanto a sua visão começava a ficar mais nítida e via o estado deplorável em que o seu braço direito,
em tempos cheio de força, se encontrava. Tinha testemunhado o género de acidentes que poderiam ter lugar com a maior das facilidades a bordo de um navio, velhos
marinheiros feridos durante violentas rixas ou devido a quedas do massame do navio. Compreendia até que ponto é que um homem podia ser frágil, robusto e forte num
momento, para no seguinte ficar despedaçado e sem qualquer possibilidade de vir a sarar.
Ele próprio tinha ajudado a tratar fraturas tão graves como a sua, sabendo qual seria o desfecho inevitável, embora a sua mente se recusasse a aceitá-lo.
- Oh, meu Deus... - Deixou-se cair nas almofadas.
- Não precisais de vos preocupar - disse Jane, tentando tranquilizá-lo. - A Ariane saberá como curar-vos.
- O diabo é que ela me tratará! Tragam-me um médico. Mas será que não existem homens nesta maldita ilha?
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Ariane cruzou os braços diante do peito.
- Nenhum que vos possa ser útil. Muitos deles são como o meu filho, ainda andam de cueiros.
- Por favor, monsieur. -Jane tentou desprender os dedos que ele mantinha no braço fraturado. - A Senhora é muito competente. Ela porá esse braço como deve ser em
três tempos.
Xavier retraiu-se todo para se afastar dela.
- Porá como deve ser? - repetiu Xavier numa voz rosnada. - Pensais que sou algum idiota? Já vi fraturas como esta noutras ocasiões. Sei que o meu braço vai ter de
ser... de ser amputado. - Ali estava. Conseguira proferir aquela palavra tão temida, reconhecendo a situação em voz alta.
As sobrancelhas de Ariane arquearam-se subitamente.
- Pareceis estar com muita pressa de vos separardes do vosso braço, monsieur.
- Porque não me resta outra alternativa.
- Admito que esse talvez seja o último recurso. Mas confesso que tenho tido muito êxito a consertar fraturas mais graves do que a vossa. Só vos peço que me permitais
que tente...
- Não! Guardai a vossa maldita bruxaria para vós própria.
- Já chega! - gritou Jane exaltada. Olhou para Xavier com uma expressão austera. - A Senhora só vos quer ajudar, portanto parai de vos comportar como... como uma
criança recalcitrante.
O rubor subiu às faces de Jane. Portanto, a sua serena sereia possuía algum temperamento irascível. Noutras circunstâncias, talvez Xavier se tivesse sentido divertido
com a situação, achando mesmo que ela era bastante adorável, mas concentrou toda a sua atenção em Ariane, que mostrava uma postura empedernida.
- Está-me a parecer que a Senhora não está assim tão ansiosa por me socorrer.
- Sou filha de Evangeline Cheney - disse Ariane, erguendo o queixo orgulhosamente. - A minha mãe era uma talentosa curandeira que me ensinou tudo o que sabia nessa
esfera, bem como me transmitiu a sua sabedoria, para ajudar os que precisam de ajuda, quem quer que sejam essas pessoas.
- Pois bem, eu sou filho de Marguerite de Maitland, uma cortesã muito dotada que me ensinou a desconfiar de bruxas.
Xavier tentou mostrar uma expressão de escárnio, mas os seus lábios contorceram-se num esgar de dor.
- É claro que não precisais de me perguntar quem era o meu pai, porque já haveis deduzido isso. De facto, a minha mãe batizou-me com o nome dele. Louis Xavier Cheney.
- Xavier atirou o nome como se estivesse a desafiá-la para um duelo, tendo conseguido obter o efeito desejado.
Ariane ficou corada que nem um tomate, tanta a cólera que se apoderou de si.
- Essa... essa mulher teve o atrevimento de vos dar o nome do meu pai. Sois um bastardo. Não tendes direito a esse nome!
- É o que me disseram. Agora que já estais ao corrente de tudo isso, talvez a vossa ânsia de me curardes não seja a mesma, irmã.
Ariane comprimiu os lábios e, durante uns momentos, Xavier pensou que ela iria sair intempestivamente do quarto. Mas, então, ela respirou fundo.
- A vossa mãe, Marguerite, causou muita infelicidade à minha família, privando a minha mãe de felicidade e contentamento durante os seus derradeiros dias de vida.
No entanto, para mim, o vosso nome não tem importância, ainda que tivésseis sido gerado por Satã. Sou uma curandeira e acredito que poderei ajudar-vos.
Entretanto, Jane pegou na mão esquerda dele, mantendo-a entre as suas enquanto acrescentava o seu próprio rogo.
- Monsieur, dais-me a impressão de ser muito senhor de vós próprio, um homem acostumado a dar ordens. Compreendo o quanto vos deve ser difícil entregar-vos aos cuidados
de uma mulher. Mas devo dizer-vos que já vi a Ariane a fazer autênticos milagres. Posso jurar-vos que podeis confiar nela.
O olhar de Xavier ia de Ariane, que tinha uma expressão implacável, a Jane, cujo semblante era muito mais suave. Não sabia até que ponto é que poderia confiar na
Senhora da Ilha Encantada, mas ficou surpreendido ao dar consigo a ceder à calma persuasão de Jane. Talvez porque nunca
tinha visto o rosto de uma mulher tão isento de astúcia. Talvez porque os seus olhos espelhavam uma preocupação que era genuína. Mas talvez isso se devesse, simplesmente,
ao facto de não lhe restar qualquer outra alternativa.
- Oh, que vá tudo para o Inferno! - rosnou a Ariane. - Ide buscar a vossa serra ou faca, ou o que quer que seja com que estais a planear decepar-me o braço, e aproveitai
para cortar também uma parte de vós.
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- Muito bem. Jane, quereis fazer o favor de cortar a camisa dele, enquanto eu vou buscar a minha arma preferida - disse Ariane, mostrando os dentes a Xavier com
um sorriso ameaçador antes de sair do quarto.
Jane tirou uma tesoura da cesta de costura, após o que voltou para a beira dele.
- Lamento que a vossa camisa tenha de ser cortada.
- Não tem importância, minha querida. Desde sempre que tive esta fantasia, a minha preferida, ter uma mulher muito bela a arrancar-me a roupa do corpo.
A brincadeira dele pôs nas faces de Jane um rubor que lhe ficava muito bem, uma reação de que ele poderia ter desfrutado se não se sentisse tão entontecido de dores
e apreensão pelo que estaria para vir. Rangeu os dentes e descontraiu o braço ferido para ela poder começar a cortar-lhe a camisa.
Durante vários momentos, o silêncio reinou no quarto, sendo quebrado apenas pelo barulho da tesoura a cortar o tecido e pela respiração acelerada de Xavier.
- vou tentar não vos magoar - disse Jane. - Mas receio que a vossa camisa esteja colada ao ferimento onde... onde...
- Onde o osso está a tentar sair do meu braço? - completou ele por entre dentes cerrados. - Não vos preocupeis com isso. Não sentirei grandes dores nessa região
do corpo depois de a Ariane ter acabado o que me vai fazer. E devo dizer que a minha querida irmã vai fazê-lo com todo o gosto.
Jane parou o que estava a fazer, fitando-o com uma expressão de censura.
- Não estou a par em toda a sua inteireza do que se passa entre vós e a Senhora da Ilha Encantada, mas sei que a Ariane não é o género de pessoa que procure vingar-se
ou fazer com que pagueis pelos pecados da vossa mãe. Ela possui poderes de cura que são extraordinários. Ela salvar-vos-á o braço, Monsieur Cheney.
- Não me trateis por esse nome. Sou conhecido como capitão Xavier, mas apenas Xavier também servirá. Nunca uso o nome do meu pai. Ei...
- Xavier praguejou e foi por pouco que não caiu da cama quando Jane tirou o último pedaço de tecido do braço fraturado.
Deixou-se cair para trás com a respiração arfante.
- Só mencionei esse assunto para... para...
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- Para irritar a Ariane? Não é muito sensato da vossa parte acicatar a mulher que está prestes a tratar o vosso braço fraturado.
- É verdade, mas como talvez tenhais deduzido, minha senhora, a sensatez não é um dos meus atributos mais brilhantes.
Jane sorriu ao ouvir aquilo e Xavier talvez se tivesse sentido tentado a retribuir-lhe o sorriso, não fosse a exaustão e as dores excruciantes, a par das sombrias
perspetivas quanto ao que o destino lhe reservaria.
Jane dirigiu-se para o lavatório de pé, deitando um pouco de água de um jarro num pano. Voltou para junto dele e começou a lavar-lhe o rosto.
- Posso garantir-vos que tudo correrá bem - murmurou ela. - Embora eu saiba que não acreditais nisso.
- Não, não acredito, mas agradeço-vos por terdes mentido. O que fazeis com tanta doçura. - Xavier sentiu-se grato quando ela não acrescentou mais nada. Outra mulher
qualquer ter-se-ia sentido tentada a continuar a dizer-lhe coisas à toa, quer para o repreender, quer para o animar a fim de o distrair.
Jane limitava-se a lavar-lhe a fronte tranquilamente, o pano tão refrescante e balsâmico como o toque da sua mão. Ficou surpreendido ao constatar que estava encharcado
em suor. Do mal o menos, talvez adviesse uma coisa boa depois de Ariane Deauville o ter mutilado num esforço para lhe salvar o braço. Era quase inevitável que ficasse
com uma infeção que acabaria consigo. O que seria uma bênção. Estava tão cansado. Tinha a sensação de ter andado a lutar havia tanto tempo, durante a maior parte
da sua vida.
Xavier fechou os olhos e ocorreu-lhe à mente uma recordação estranha que guardava do pai, ambos no convés do Miribelle, num dos raros momentos de quietude entre
os dois.
O chevalier tinha-o olhado com uma expressão que o confundira.
"Sabes que não és como eu, mon petit Loms. És muito mais duro, um lutador. Nunca te renderás, nem te furtarás a nada. És um sobrevivente nato."
Era o mais semelhante a qualquer coisa parecida com orgulho, ou elogio, que o pai mostrara por ele.
Mas quando Ariane regressou ao quarto trazendo um baú que apesar de pequeno não augurava nada de bom, Xavier não se sentiu tão duro como isso. Era seguida por uma
rapariga de aspeto robusto e cabelo de um tom arenoso e que tinha o nariz cheio de sardas.
- Esta é a Carole Moreau - apresentou Ariane. - É ela quem me vai ajudar.
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- Uma rapariguinha tão novinha como ela? O diabo é que vai ajudar! - ripostou Xavier, voltando a chegar o braço fraturado ao peito desnudado.
- Sou mais velha do que aparento ser, monsieur - disse-lhe Carole, sorrindo-lhe timidamente. - Fui uma das mulheres que ajudaram a colocar-vos na padiola em que
vos trouxemos da praia.
- O que é que gostaríeis que eu fizesse? Que derreta a minha prata para vos forjar uma medalha?
O sorriso da jovem desapareceu-lhe dos lábios, apressando-se a recuar até onde Ariane abria o seu pequeno baú. Jane suspirou e olhou para Xavier, abanando a cabeça
num gesto de reprovação. Ele calou-se, demasiado fatigado para poder continuar a protestar. Tinha noção de que estava a portar-se como um cão ferido, a ladrar e
a rosnar a quem se aproximasse de si, mas, aparentemente, era uma atitude mais forte do que ele.
Ariane abeirou-se dele com um frasquinho.
- Esta infusão aliviará as dores que sentis, ajudando-vos a adormecer...
- Não! Só quero uma garrafa de uísque.
- Não tenho uísque nenhum.
- Que raio de curandeira sois?
- Esta bebida é melhor. Pode...
- Já disse que não; raios partam isto!
- Nesse caso, vou precisar de chamar mais mulheres para me ajudarem a imobilizar-vos.
- Não é preciso que ninguém me imobilize. Deixai-vos de tanto resmungar comigo e fazei o que tendes de fazer.
Ariane resmungou qualquer coisa entre dentes. Xavier ficou de cenho carregado. Teria ouvido mal ou teria a mui digna Senhora da Ilha Encantada mastigado um impropério
que faria com que alguns dos homens da sua tripulação corassem?
Tarde de mais, Xavier recordou-se do comentário de Jane a respeito da sua falta de sensatez.
- O que quero dizer é que não preciso dessa maldita infusão. Mas agradeço-vos na mesma - disse Xavier, rangendo os maxilares numa tentativa de emendar a mão.
Ariane lançou-lhe um olhar sombrio, após o que soltou uma gargalhada relutante.
- Ah, os heroísmos dos homens. Muito bem, monsieur. Comecemos.
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- Capitão Xavier - interveio Jane, falando com suavidade. - Ele adotou o nome de Xavier.
- Xavier - repetiu Ariane, como se estivesse a experimentar o som da palavra. Olhou para ele com uma expressão expectante e ele apercebeu-se de que continuava a
proteger o braço lesionado com a mão esquerda.
Por muito que Ariane lhe oferecesse garantias, Xavier tinha a certeza de que ela não seria capaz de lhe salvar o braço; e, se ficasse infetado, também duvidava de
que ela o deixasse morrer. Sem saber explicar como, tinha a impressão de que aquela mulher, que partilhava metade do seu sangue, conseguia ser tão obstinada como
ele próprio. Pensou que o braço teria de sair, a bem ou a mal.
Era o seu braço bom, o mais forte, aquele com que empunhava a espada. Porque é que não podia ter sido o esquerdo? Podia ter passado bem sem o esquerdo. Ocorreram-lhe
imagens ao pensamento de si próprio a trepar pelo massame, a atirar um arpéu, a estabilizar a roda do leme durante uma violenta tempestade. Tarefas que exigiam a
força dos dois braços.
Mas o que é que isso agora interessava?, porque o mais certo era já não ter navio nenhum. Muito provavelmente, o Miribelle tinha ficado destruído, a sua senhora
afundada no fundo do canal, juntamente com a sua tripulação, Jambe du Bois, Pietro, o padre Bernard. Tudo o que ele possuía, tudo o que lhe era mais querido, perdido.
E estava para ali com sofismas por causa de um mero braço?
Xavier ficou horrorizado ao sentir o ardor de lágrimas nos olhos. Pestanejou furiosamente e, a pouco e pouco, começou a abrir os dedos, entregando o braço nas mãos
de Ariane.
Enquanto ela lho afastava suavemente do peito, Xavier gritou sem ter conseguido conter-se. Quando ela lhe ofereceu uma correia de couro para morder, ele não recusou.
Tinha feito a mesma coisa com o seu primeiro-imediato, no dia em que a perna de Jambe ficou esmagada por um canhão que se havia soltado e deslizado pelo convés.
Anima-te, homem. Consegues sobreviver a isto, és um velho patife rijo. Vais ser um lutador ainda mais fero, só com uma perna do que a maior parte dos homens com
duas."
Jambe mordera a tira de couro que lhe tinha colocado entre os dentes, olhando para Xavier com uma ferocidade indescritível, como se quisesse assassiná-lo. Um olhar
que Xavier agora compreendia perfeitamente. Era muito fácil tentar animar e afirmar que tudo correria bem quando não se tratava da nossa perna ou braço.
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Entretanto, Carole Moreau passou a Ariane um pano saturado de uma substância qualquer que lhe ardeu quando ela limpou o ferimento. Por muito cuidadosa que ela tentasse
ser, o mais pequeno movimento causava-lhe dores excruciantes que faziam com que o corpo fosse percorrido por novas vagas de agonia. Quando Ariane começou a manipular
o osso para o colocar no devido lugar, Xavier mordeu a correia com tanta força que teve a impressão de que o maxilar ficaria partido. As lágrimas, nada dignas de
um homem, começaram a correr-lhe dos olhos e não havia absolutamente nada que ele pudesse fazer para as conter.
Quase esmagou a mão de Jane na sua, tentando perder-se naqueles olhos tão serenos, esforçando-se por não gritar a plenos pulmões.
Jane flexionou os dedos, retraindo-se quando o sangue voltou a circular-lhe na mão que tinha ficado entorpecida por Xavier a ter apertado com tanta força que quase
a esmagara. Mas ela mal dera por isso, com toda a sua atenção concentrada nas feições distorcidas pelas dores enquanto Ariane reajustava o osso fraturado.
Misericordiosamente, ela já tinha acabado e Jane havia conseguido persuadi-lo a beber a infusão soporífera. Talvez ele tivesse ficado exausto de mais para oferecer
resistência ou, finalmente, convencera-se de que elas não lhe iam amputar o braço. As pestanas de Xavier pousaram-lhe nos malares, o rosto empalidecido por baixo
do sombreado da barba de um dia.
Jane massajava a mão magoada enquanto observava Xavier atentamente, maravilhando-se perante tudo por que ele tinha passado. Fora arremessado borda fora do seu navio
no meio de uma violenta tempestade, obrigado a lutar contra as vagas, para se ver atirado para uma praia hostil, quase a morrer de afogamento, com o braço partido
e o corpo todo moído.
Desde que se exilara de Inglaterra, Jane tinha-se sentido tão pouco segura no mundo, com a sensação de que andava à deriva sem objetivo de vida. Existiam dias em
que mal conseguia obrigar-se a levantar-se da cama, momentos em que se entregava ao funesto pensamento de como seria muito melhor se alguma doença lhe fizesse a
vontade, levando-a deste mundo para
o outro.
Não era capaz de evitar sentir-se fascinada por um homem tão obstinado, forte e determinado a sobreviver. Até mesmo agora, Xavier dormia com o braço bom por cima
da cabeça, o punho cerrado como se continuasse a lutar.
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Ariane movimentava-se com destreza, imobilizando o braço fraturado entre duas talas de madeira e ensinando Carole a fixá-las com correias de couro. Todas as senhoras
deviam ter alguns conhecimentos de como tratar algumas doenças e lesões de menor gravidade em sua casa, mas os conhecimentos de Ariane eram muito superiores aos
que haviam ensinado a Jane, os que se consideravam convenientes e adequados a uma senhora.
Mesmo assim, deu consigo a escutar avidamente as instruções que Ariane ia dando a Carole sobre a aplicação de uma compressa na carne aberta quando o osso a trespassou.
- Neste género de ferimento, é preferível recorrer a uma cataplasma em vez de pontos, sendo muito mais reduzidas as hipóteses de o ferimento infetar. É necessário
que a ligadura fique bem justa, mas não demasiado apertada, para que o sangue possa circular livremente.
Carole acenava que sim, tentando pôr em prática as instruções que Ariane lhe dava. No entanto, continuava a lançar olhares temerosos a Xavier, como se receasse que
ele despertasse, começando a rugir-lhe. A rapariga era tão atabalhoada que Jane estava a morrer por poder ocupar o lugar dela. Ficou aliviada quando Ariane fez isso
mesmo.
- P... peço desculpa - disse Carole, o seu rosto tão pálido como o de Xavier. - Estou tão enervada por... por termos sido obrigadas a magoá-lo tanto, Ariane.
- Às vezes, isso é necessário para efetuar o tratamento.
- Eu sei que sim. Mas para mim é muito difícil ver uma pessoa sofrer tanto. Jamais serei tão competente a curar como vós sois.
- Sim, vais ser capaz. - Ariane desviou o olhar da ligadura para lhe sorrir, um sorriso que se destinava a instilar-lhe confiança em si própria.
- O distanciamento é uma faculdade que pode ser adquirida, à semelhança de qualquer outra coisa. Mas, seja como for, já não precisas de te preocupar com o capitão
Xavier. Ele não sentirá nada durante bastante tempo.
Ariane olhou para o homem adormecido, o que Jane e Carole fizeram igualmente. Finalmente, o punho cerrado de Xavier começou a descontrair-se, os dedos a abrirem-se
com lentidão, a respiração a fazer-se mais profunda e regularmente. Tinha um aspeto tão pacífico enquanto as três mulheres se mantinham à beira dele, cansadas e
com os vestidos a mostrarem algumas manchas de transpiração. Ariane suspirou, virando-se para Carole.
- É melhor voltares para junto desse teu filho turbulento. A Jane e eu podemos acabar o que falta fazer.
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- Bem, se tendes a certeza... - Carole passou a mão pela fronte suada, mostrando uma relutância que era forçada. Mas quando se apressou a sair da pequena casa, Jane
pensou que ela parecia extremamente aliviada.
Enquanto Ariane guardava os seus frasquinhos e as ligaduras no pequeno baú que continha os seus meios de tratamento, Jane deixou-se ficar à beira da cama do ferido.
Sentia uma vontade quase irreprimível de lhe alisar o cabelo emaranhado que lhe caíra para a testa. Ocultou a mão nas dobras das saias para conter aquela ânsia inexplicável.
- Achais que ele conseguirá restabelecer-se? - perguntou a Ariane.
- Desde que o ferimento não infete. A cataplasma que lhe apliquei, em princípio, prevenirá essa possibilidade, mas nunca se sabe. No entanto, desde que ele não fique
com febre dentro das próximas quarenta e oito horas, estou em crer que ele se restabelecerá sem grandes percalços. Ele é jovem e forte. Agora é tudo uma questão
de conseguirmos mantê-lo sossegado para que o osso possa sarar.
- Depois de tudo aquilo por que ele passou, decerto que não pensais que ele seja imprudente ao ponto de se levantar para andar por aí, pois não?
- Haveis passado mais tempo na companhia deste homem do que eu. O que é que vos parece?
Jane examinou a linha firme do maxilar inferior de Xavier, truculenta até mesmo com ele em repouso.
- Penso que é melhor que o amarremos ao leito.
- A poção vai mantê-lo a dormir durante bastante tempo - retorquiu Ariane com uma gargalhada seca -, mas é preciso que haja alguém que se mantenha junto dele, para
verificar se fica febril.
- Posso fazer isso. Far-me-á bem sentir que posso ser útil, o que não tem acontecido.
Jane ficou constrangida ao aperceber-se do olhar fixo de Ariane. O timbre de voz desta adquiriu uma entoação afetuosa.
- Sois muito útil, Jane - disse Ariane. - Eu não teria conseguido levar a cabo o que fiz hoje se não fôsseis vós. Quer o capitão Xavier tenha noção disso ou não,
ele passou a ter uma grande dívida de gratidão para convosco.
- Eu!? Mas o que é que eu fiz que tenha sido assim tão importante?
- Conseguistes acalmá-lo, serená-lo. Não me parece que ele tivesse permitido que eu lhe tocasse no braço se não o tivésseis persuadido. Fostes
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capaz de conquistar a confiança dele. Não me tem passado despercebido de que tendes esse dom.
- Muito plausivelmente porque sou tão apagada e humilde.
- Não, porque possuís uma força serena que irradia da expressão do vosso olhar. Sois como a calma no centro de um temporal.
Embora Jane tivesse ficado ruborizada ao ouvir o elogio, sacudiu a cabeça numa atitude depreciativa para consigo própria.
- Isso aplica-se a vós, especialmente quando exerceis a vossa magia curativa.
- É possível que sim de uma maneira geral, mas nestas circunstâncias a minha calma reserva foi posta à prova de uma maneira como só me acontece muito raramente.
É com embaraço que admito que senti uma vontade quase irreprimível de sair dali, abandonando este homem nas mãos do Diabo suficientemente malévolo para o ter atirado
para a minha ilha.
Ariane ficou a olhar para o homem deitado na cama, como se ele fosse um fantasma surgido do passado, um que ela teria tido a maior satisfação em exorcizar.
Jane fora testemunha silenciosa da troca de palavras entre Ariane e Xavier, que ela percebera apenas parcialmente por não estar ao corrente do que se passara no
passado. Detestava intrometer-se na vida pessoal dos outros. Mas Ariane mostrava-se tão perturbada que Jane não foi capaz de se conter.
- Acreditais que Xavier seja realmente vosso irmão? - perguntou.
- Meio-irmão! - corrigiu Ariane com rispidez. - Não sei. Não quero acreditar nisso, mas ele é a cara chapada do meu pai. As parecenças são bastante enervantes. Vejo
muito pouco dessa bruxa, a Maitland, nele.
- Os lábios de Ariane estreitaram-se. - Tenho a certeza de que haveis ouvido que chegue para vos perguntardes...
- Oh, não, peço desculpa. Eu não devia ter-vos perguntado nada. Só o fiz porque me parecestes tão angustiada, mas não tive a mínima intenção de me intrometer nos
segredos da vossa família.
- Infelizmente, não se trata de um grande segredo. Toda a gente que vive nesta ilha está bem ciente de como o meu pai atraiçoou a minha mãe. Estou certa de que a
chegada deste homem vai fazer com que os antigos mexericos recomecem de novo. É preferível que tomeis conhecimento da verdade através de mim. - Apesar de ter dito
isto, Ariane remeteu-se ao
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silêncio, mostrando relutância em começar. Aproximou-se da janela, cujas portadas estavam completamente abertas para fora.
Jane sempre tinha pensado que qualquer doença ou qualquer lesão devia ser tratada numa alcova onde todas as janelas deviam estar fechadas para impedir a entrada
de ares nocivos. Era a prática estabelecida entre os físicos londrinos.
Pelo contrário, a Senhora da Ilha Encantada acreditava firmemente nos benefícios do ar fresco. Levando em consideração as curas milagrosas efetuadas por ela, e que
Jane tivera oportunidade de testemunhar, era forçada a acreditar que Ariane tinha razão e que todos aqueles eruditos médicos ingleses estavam enganados.
Como se quisesse curar os seus próprios problemas de espírito, Ariane levantou a cabeça para sentir a brisa marítima no rosto, agitando-lhe o cabelo.
- Suponho que a maior parte das pessoas por todo esse mundo fora considera que a infidelidade não é coisa de grande monta - começou a dizer por fim. - São inúmeros
os nobres que têm amantes e filhos ilegítimos. com muita frequência, as coisas são assim mesmo, uma prerrogativa dos homens. Ao fim e ao cabo, o casamento não é
considerado mais do que uma questão de conveniência, uma maneira de acrescer propriedades ou de dar continuidade a linhagens nobres.
"Mas para as de entre nós que se consideram Filhas da Terra, por pressuposto, o matrimónio é algo mais, um rito sagrado, uma profunda união que se estabelece, nunca
com vista a benefícios financeiros, posição social e até mesmo segurança monetária. Um homem e uma mulher devem contrair matrimónio somente por se amarem verdadeiramente.
O olhar de Ariane baixou até à aliança que usava no dedo, um aro muito simples de metal, muito antigo e com uma gravação de símbolos estranhos. O seu semblante suavizou-se
e era por demais evidente que estava a pensar no marido.
Qualquer pessoa que visse Ariane e Justice Deauville juntos não poderia duvidar do quão profundo era o amor que os unia, paixão temperada por uma amizade inquebrantável
mais forte e duradoura.
Jane massajou o dedo da mão esquerda onde a sua própria aliança de casamento estivera em tempos, um dispendioso aro em ouro, incrustado com rubis e diamantes. Era
muito raro que a usasse, tendo-a guardado de uma vez por todas depois de o seu segundo marido ter falecido. Um abastado
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negociante de vinhos, Sir William Danvers tinha sido um homem bondoso, mas era trinta e cinco anos mais velho do que ela. Jane aprendera a estimá-lo, mas era impossível
negar que a principal razão que a levara a esse matrimónio tinha sido de ordem financeira, porque a fortuna da família estava a desaparecer a olhos vistos.
O seu primeiro marido, Richard Arkwright, não havia sido tão afável e de trato fácil como Sir William. Dickon era um rapaz enfermiço e impertinente, mas tal como
o seu tutor a informara numa voz cáustica, uma jovem mulher que tinha sido desflorada não podia dar-se ao luxo de ser esquisita. Um rapaz tão jovem e inexperiente
como Dickon poderia ser facilmente enganado, sendo pouco provável que aquando da noite de núpcias se apercebesse de que a sua noiva não estava como devia ser.
Dois casamentos, um para ocultar os seus pecados e outro por riqueza e segurança. A maior parte das pessoas não a censuraria por qualquer dos motivos que deram origem
aos dois matrimónios. Mas enquanto Jane observava a expressão radiante no semblante de Ariane, sentiu um baque de vergonha e inveja.
Mas o brilho que se refletia nos olhos dela enfraqueceu quando entrelaçou as mãos e retomou a sua narrativa.
- A minha mãe adorava o meu pai tanto quanto ele próprio a amava. Pelo menos, era o que todos acreditávamos. A história de amor dos dois era coisa de lendas; Evangeline,
a belíssima e erudita Senhora da Ilha Encantada, e o Chevalier Louis Xavier Cheney, um dos mais destemidos e valentes cavaleiros de França. O casamento dos dois
foi um acontecimento esplendoroso e muito aclamado. Um conte defée que se tornou realidade.
- Mas, à semelhança de qualquer outro conto de fadas, tem de haver um vilão, um ogre ou uma fada má, ou ainda uma bruxa malévola. E a da minha mãe não se encontrava
muito longe. Na sua juventude, a minha mãe era amiga de Catarina de Médicis.
- A Rainha Viúva de França!? - perguntou Jane boquiaberta.
- A mulher a que Meg se refere como sendo a Rainha das Trevas?
- Esse é um dos termos mais educados com que classificamos a mulher, mas sim - confirmou Ariane com um sorriso tenso. - É possível que vos sintais surpreendida e
talvez perplexa perante a falta de discernimento da minha mãe.
Jane tentou disfarçar, mas o choque devia ser demasiado evidente.
- Não vos censuro por terdes ficado perplexa - continuou Ariane. - Mas, acreditai ou não, Catarina e a minha mãe tinham muito em comum.
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Nenhuma das duas se sentia bem na corte francesa, a minha mãe, muito simplesmente, por detestar toda a falsidade que pontuava a vida na corte. Quanto a Catarina,
por ser desprezada pelo povo francês, escarnecida pela sua linhagem italiana, além de não merecer a confiança de ninguém.
"A minha mãe e Catarina partilhavam um forte interesse por todos os conhecimentos e ciências da Antiguidade. Portanto, era muito natural que se sentissem atraídas
uma pela outra. No entanto, a minha mãe era uma verdadeira Filha da Terra, estudando os procedimentos antigos a fim de promover a paz e os meios de cura, enquanto
Catarina tinha algo de sinistro dentro de si, uma sede insaciável por poder, a par de uma grande crueldade. A zanga entre as duas era inevitável, do mesmo modo que
a amizade entre as duas havia sido.
"Qualquer afeto ou admiração que Catarina tivesse tido pela minha mãe deu lugar ao ódio e à inveja, tendo acabado por considerar que a minha mãe era sua inimiga.
Quando decidiu atacá-la, é claro que, sendo Catarina a mulher que é, concentrou-se de imediato no ponto mais vulnerável da minha mãe. O muito amor que dedicava ao
meu pai. - Ariane virou a cabeça para poder olhar para Jane. - Alguma vez estivestes na corte francesa?
Não, isso tinha sido mais do agrado de Ned, esteve Jane prestes a dizer. O irmão, ambicioso e amante de todos os prazeres, fizera viagens frequentes a Paris, sempre
que conseguia encontrar uma justificação válida para obter um visto.
Mas os pensamentos relacionados com Ned ameaçavam desencadear uma catadupa de recordações infelizes a Jane, pelo que se limitou a abanar a cabeça antes de responder.
- Sou como a vossa mãe era; o esplendor da vida na corte nunca me seduziu.
- O que só demonstra bom senso da vossa parte. Consequentemente, o mais certo é não terdes conhecimento do Escadron Volant da rainha Catarina.
- O Esquadrão Volante dela? - retorquiu Jane, franzindo as sobrancelhas e fazendo a tradução.
- Precisamente, aves maravilhosas de rapina, um grupo de mulheres jovens muito sedutoras. Catarina utiliza-as para que espiem, seduzam e enfraqueçam os seus inimigos.
Incumbiu a mais hábil dessas criaturas, Marguerite de Maitland, de exercer as suas artimanhas com o objetivo de seduzir o meu pai.
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Jane lançou um olhar incerto na direção do homem deitado no leito.
- Estais a referir-vos à mãe de Xavier?
- É o que ele afirma. Marguerite tinha uma beleza deslumbrante, irresistível, segundo o que toda a gente diz. Mesmo assim, o meu pai nunca devia ter sucumbido aos
encantos dela, não se tivesse amado a minha mãe verdadeiramente.
"Apesar de ele ter magoado tanto a minha mãe, é possível que ela não se tivesse sentido tão devastada se o caso tivesse sido fortuito. Mas o romance entre os dois
prolongou-se indefinidamente, com o meu pai a ausentar-se, indo para Paris com bastante frequência. Ele quase levou a nossa família à falência para comprar uma casa
para essa mulher, a Maitland, e mantendo-a com todo o luxo, enchendo-a de dinheiro e jóias.
"Não que a minha mãe se importasse com isso, mas foram as ausências frequentes do meu pai, o facto de ele ter atraiçoado o amor que os unia, que quase a levaram
à morte. O esquema que Catarina arquitetou para se vingar talvez não tenha conseguido quebrar o espírito da minha mãe, mas sem dúvida alguma que quebrou o seu coração.
Ela destroçou a harmonia e felicidade de toda a nossa família.
A voz de Ariane tremia de cólera. Respirou fundo antes de continuar num tom de maior tristeza.
- Eu nunca fui capaz de compreender o sucedido, Jane. Se tivésseis conhecido a minha mãe, teríeis constatado que era uma mulher extraordinária. Todos os que a conheciam
a adoravam.
"Apesar de Marguerite poder contar com todos os perfumes de sedução e cosméticos que Catarina preparava para as suas sereias, nunca consegui perceber que feitiço
é que a bruxa da Maitland terá lançado ao meu pai para o ter mantido tão preso a si, atraindo-o ao ponto de o levar a afastar-se de nós.
"Mas, ao que tudo indica, finalmente o grande mistério está explicado. - Ariane engoliu com dificuldade, o olhar cheio de azedume concentrado em Xavier. - Ali está
a magia de Marguerite. O filho que a minha mãe nunca foi capaz de dar ao meu pai. A única coisa que me deixa estupefacta é o meu pai ter conseguido mantê-lo em segredo
durante todos estes anos. Tenho a certeza de que a Catarina nunca teve conhecimento da existência de Xavier, porque, se tivesse sabido, ele teria sido mais uma estaca
com que trespassaria o coração da minha mãe.
Ariane olhou fixamente para Xavier, as feições de costume calmas haviam dado lugar a uns traços empedernidos de cólera, uma expressão alarmante
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nada característica da Senhora da Ilha Encantada. Jane reprimiu um estranho desejo ardente de se colocar em frente do homem adormecido, numa atitude protetora.
Em vez disso, pousou uma mão no braço de Ariane.
- Não me é difícil compreender o vosso ressentimento, mas não podeis culpar o vosso irmão pelo que o vosso pai ou essa mulher, a Maitland, fizeram.
- Meio-irmão - insistiu Ariane. - Atrevo-me a dizer que ele será culpado pelos seus próprios pecados. Tenho muito orgulho na minha capacidade de ler olhos, mas este
Xavier é infernalmente bom a proteger os seus pensamentos, até mesmo enquanto estava meio louco de dor. com certeza que esse não é o comportamento de um homem inocente.
Sou da opinião de que ele é um indivíduo bastante empedernido e perigoso.
- A Meg disse quase a mesma coisa.
- O quê!? - Ariane exclamou em voz tão alta que Xavier se mexeu apesar do sono induzido pela poção. Baixando o tom de voz, perguntou autoritária: - O que é que quereis
dizer com isso? O que é que a Meg disse?
Jane já estava arrependida de ter mencionado o assunto, mas com o intenso olhar de Ariane assestado em si, não teve outra opção que não fosse explicar-se.
- A Meg reagiu de uma maneira extremamente estranha quando viu o capitão Xavier. Ela nem sequer queria que eu o socorresse; disse-me que devia deixar que o mar voltasse
a levá-lo.
- De facto, é um comportamento bastante estranho em Meg. Habitualmente, ela é bastante terna, a menos que... - Ariane interrompeu-se, franzindo os sobrolhos numa
expressão carregada. - Ela tem andado outra vez a pôr-se a adivinhar o futuro nessa bola de cristal, não tem?
Jane detestava contar o que quer que fosse contra Meg. Ariane continuava a sopesar a decisão sobre quem viria a ser a próxima Senhora da Ilha Encantada e Jane não
tinha a mínima intenção de prejudicar as probabilidades de Meg. Por outro lado, também não conseguia forçar-se a mentir.
- Estou em crer que a Meg talvez continue a ter essa bola de cristal. Mas Ariane não se deixava enganar pelos rodeios de Jane. Soltou um suspiro de exasperação.
- Quem me dera que a rapariga deixasse essa maldita bola de cristal de uma vez por todas, muito embora eu compreenda a tentação bem de
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mais. Eu própria já senti a atração do mundo das sombras. Mas dessa obsessão não advirá nada de bom.
- Não podeis ordenar a Meg que vos entregue esse objeto ou que o destrua?
- Podia, mas, em última análise, isso não seria nada benéfico para Meg. A escolha entre a luz e a escuridão não pode ser forçada em ninguém. Posso oferecer-lhe os
meus conselhos e orientação, mas qualquer jovem mulher tem de aprender, mais cedo ou mais tarde, a começar a pensar por si própria, a tomar as suas próprias decisões.
- Oh - foi tudo o que ocorreu a Jane à guisa de réplica. Durante a maior parte da sua vida, habituara-se a que lhe dissessem o que pensar, aquilo em que acreditar,
o que devia fazer. Não sabia ao certo se estava desconcertada com os pontos de vista revolucionários de Ariane Deauville ou intrigada com eles.
- A Meg adiantou alguma razão específica para se ter furtado a socorrer este homem? - perguntou Ariane.
- Nada que tenha lógica. Limitou-se a dizer que Xavier é perigoso e que só nos traria problemas.
- É muito possível que a Meg tenha razão - disse Ariane, contraindo os lábios numa linha apertada. - Por onde é que o homem tem andado durante todos estes anos e
porque é que agora decidiu, subitamente, dar à costa na minha ilha?
Jane não acreditava que Xavier tivesse decidido o que quer que fosse, que ele não tinha ficado mais satisfeito por ter ido parar à ilha Encantada do que Ariane por
o ter ali. Mas em virtude de a Senhora da Ilha Encantada não parecer estar num estado de espírito particularmente consensual naquele momento, Jane guardou aquelas
reflexões para si própria.
- Tendes de vos manter de olho nele, Jane - disse Ariane autoritariamente enquanto pegava no seu pequeno baú de remédios. - Se vos parecer que haja qualquer anomalia
no estado de saúde do homem, mandai alguém que me chame imediatamente.
Jane acenou que sim, sentindo algum mal-estar, apercebendo-se de que Ariane estava a referir-se a muito mais além de sinais de febre. Depois de ela ter saído do
quarto, Jane colocou-se aos pés do leito, ficando a olhar para o homem ao seu cuidado durante muito tempo.
Desde sempre que fora tão cautelosa em relação a desconhecidos ou a aceitar o convívio de pessoas que não conhecesse que o irmão costumava brincar com ela a respeito
disso.
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"A Jane até exige que os coelhos lhe apresentem referendas de caráter antes de lhes permitir que entrem no jardim", costumava dizer Ned, rindo-se.
Jane sorriu com tristeza ao lembrar-se do irmão. Talvez ele tivesse razão e ela se tivesse habituado a ser desmesuradamente cautelosa. No entanto, aprendera quando
ainda era muito nova como era fácil que a confiança de uma mulher fosse atraiçoada, em especial por um homem.
Sem dúvida que devia sentir algum temor por estar de vigília a um estranho que só inspirara desconfiança tanto a Meg como à Senhora da Ilha Encantada. Jane teria
grande dificuldade em explicar a razão por que não sentia nervosismo por ter sido deixada sozinha com Xavier, tão-pouco seria capaz de dizer o porquê daquele estranho
interesse de quase posse que tinha pelo homem.
Talvez porque havia sido ela quem se mantivera vigilante, protegendo-o da maré alta que não teria tardado. Era dela a mão que sentia toda pisada por ele a ter apertado
com tanta força, a única que, aparentemente, tinha reparado no medo por detrás dos impropérios e do sarcasmo.
Xavier mexia-se e tremia durante o sono; Jane apressou-se a puxar a coberta mais para cima do peito nu. Muito possivelmente seria uma idiota, pensou. Mas ao vê-lo
ali, deitado, tão pálido e indefeso, não lhe pareceu que fosse perigoso.
Louis Xavier Cheney só aparentava estar muito perdido.
Ariane sentava-se em cima de uma rocha que ainda estava morna do sol da tarde. com os joelhos fletidos até ao queixo, olhava para o filho que brincava numa duna
não muito longe de si. As perninhas gorduchas a correrem tropegamente, a cabeça, com o cabelo encaracolado, toda inclinada para a frente enquanto fugia das primas,
as duas garotinhas de Gabrielle.
Lúcia e Ninon apanharam Léon, cada uma a pegar-lhe numa mão. O garoto levantou os pés do chão para poder balouçar entre as duas, soltando guinchos de deleite. Seraphine
encontrava-se por perto, sorrindo enquanto se mantinha de olho nas crianças.
Por vezes, a filha mais velha de Gabrielle podia ser arrogante e intratável, contudo, Seraphine possuía uma faceta mais terna, protegendo ciosamente aqueles que
amava.
Constituíam um quadro encantador. As filhas de Gabby esbeltas e de cabelos de um louro-claro e o filho de Ariane uma criança robusta. Até mesmo enquanto sorria,
os olhos de Ariane ficaram rasos de lágrimas ao
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pensar no quanto Gabrielle teria sofrido por ter de mandar as filhas para longe de Navarra, devastada pela guerra.
"Trata de as manter em segurança, Ari", escrevera-lhe Gabrielle, palavras de onde não transparecia qualquer dúvida nem autoritarismo da parte de Gabrielle, somente
uma compreensão e confiança que vinham do fundo da alma entre as duas irmãs.
"Podes ficar descansada", escrevera-lhe Ariane em resposta, embora soubesse que essa garantia era desnecessária e talvez até um pouco precipitada.
Já tinha passado por bastantes incertezas na vida para saber como o desastre poderia acontecer de um momento para o outro, a despeito de todas as melhores intenções
e vigilância de uma pessoa. Mas, de momento, as sobrinhas e o filho estavam de boa saúde, felizes e em segurança.
Em circunstâncias normais, Ariane teria desfrutado daqueles momentos de bem-estar, mas a chegada de Xavier ensombrara o seu estado de espírito. Envolveu os joelhos
nos braços, chegando-os mais ao peito, enquanto desejava que fossem os braços fortes e tranquilizadores do marido a enlaçarem-na.
Em tempos, Justice Deauville tinha tido direito ao título nobiliárquico de conde de Renard, todavia o seu casamento com Ariane custara-lhe ser espoliado do seu título
pelo vingativo filho de Catarina de Médicis, quando o rei Henrique de França atacou a ilha Encantada. Ficar sem as propriedades foi o preço que Justice teve de pagar
por se atrever a amar uma mulher suspeita de bruxaria.
Ariane ficara mais angustiada pela perda dele do que o próprio Justice. Por ser um homem muito terra a terra, os seus gostos e necessidades eram simples, um campo
para semear, alguns livros para ler, um cavalo bom e robusto e Ariane para poder encostá-la ao seu coração todas as noites antes de adormecer.
Somente depois do nascimento do filho é que as ambições de Justice despertaram, uma ânsia muito natural de pai que desejava poder deixar a Léon uma herança segura.
Tinha começado a viajar para o continente à procura de oportunidades, investindo em viagens marítimas e em caravanas de mercadores. Naquele momento, ia a caminho
de uma grande feira em Tours, pelo que Ariane sentia muitíssimo a sua falta.
Girou a aliança de metal no dedo, o anel antigo cujos poderes místicos ela nunca compreendera inteiramente. No entanto, sabia que só precisava
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de levar a aliança à região do coração, fazendo pressão, para ficar ligada a Justice qualquer que fosse a distância que os separasse.
Um murmúrio, um pensamento, e não seria necessário mais nada. "Justice, preciso de ti." E, onde quer que ele pudesse estar, o que quer que estivesse a fazer, o marido
regressaria a casa, para junto de si, o mais depressa que lhe fosse possível.
Mas alarmá-lo e exauri-lo por que razão? Meramente porque um desconhecido dera à costa na ilha, reabrindo feridas na alma que Ariane havia pensado estarem saradas
há muito tempo? Pela sua mente ecoaram palavras que a mãe lhe dissera tanto tempo atrás.
"Tudo o que eu desejava era que reinasse a paz na minha ilha e nas minhas meninas. Eu sabia que isso não era suficientemente empolgante para o vosso pai. E devia
ter passado mais tempo em Paris com ele para o manter a salvo de tentações. O louis nunca teve uma força de vontade tão forte como a minha, algo de que sempre me
apercebi e aceitei. Isso não fez nada para diminuir o meu amor por ele, razão por que sempre fui capaz de lhe perdoar. Tu também precisas de perdoar o teu pai, minha
filha."
Ariane acreditara sinceramente que assim havia feito, até o choque de saber que tinha um meio-irmão ter trazido à superfície essas mágoas antigas.
Suspirou e apoiou o queixo nos joelhos. Como se ela já não tivesse que lhe chegasse com que se ocupar, tendo de decidir quem a sucederia como Senhora da Ilha Encantada.
"Ora, ainda és muito nova para estares a preocupar-te com esse assunto", tinha-lhe dito Justice antes de iniciar a sua viagem. Mas a verdade é que o seu corajoso
e vigoroso marido sempre se furtara a fazer face à perspetiva da morte dela.
Não se podia dizer que a própria Ariane estivesse ansiosa por acolher essa inevitabilidade da vida, mas tinha de ser prática. Sabia, até bem de mais, como uma doença
ou um trágico acidente podiam atingir a pessoa mais robusta com toda a rapidez. Agora, quando se encontrava no pico da sua força e poderes mentais, era o momento
perfeito para escolher a sua sucessora. Havia tanta coisa que tinha de lhe ensinar e tantos conhecimentos que Ariane precisava de lhe transmitir, além de dar tempo
às outras Filhas da Terra para se acostumarem e aceitarem a sua escolha. Já reduzira as candidatas a três, cujos nomes constituíam uma litania constante na sua mente.
Meg, Seraphine ou Carole. Meg, Seraphine ou Carole.
O conselho reuniria dentro de menos de uma semana e Ariane continuava sem fazer ideia de qual seria a sua escolha. Muitas pessoas considerariam
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que o assunto era trivial. O título de Senhora da Ilha Encantada não era oficial, não tendo sido sancionado por nenhum reino ou lei.
Não, era sancionado apenas por uma tradição muito mais antiga e enraizada do que qualquer governo atual. O último rito de uma comunidade da Antiguidade que se tinha
vindo a atenuar de algum tempo a esta parte.
Eram muitas as vezes em que Ariane sentia não estar à altura de preservar a muito antiga posição de Senhora da Ilha Encantada. Fora bem-sucedida em restabelecer
as assembleias do conselho no cume dos penhascos a dada altura, para, logo de seguida, ver a ilha devastada pelos caçadores de bruxas; a própria Ariane fora forçada
a exilar-se.
Tinha tentado iludir-se a si mesma, obrigando-se a acreditar que a ilha tinha sarado. Mas ao olhar para as mulheres que passeavam e trocavam mexericos à luz do Sol
que começava a pôr-se, era impossível que não constatasse como eram poucas as que se haviam reunido, quando em comparação com as presentes naquele dia de há muito
tempo em que fora designada como sucessora da sua mãe. Eram tantas as mulheres sábias de entre essas que já tinham desaparecido; a mãe e até mesmo a sua grande amiga,
Marie Claire.
Um puxão na manga do vestido despertou Ariane daqueles melancólicos pensamentos.
- Milady. A vossa irmã já chegou.
Ariane pôs-se imediatamente de pé. Não havia a mínima possibilidade de Gabrielle fazer a longa viagem de Navarra até à ilha numa altura tão trágica para o reino
de Navarra. Mas era com grande alegria que esperava a chegada de Miribelle da sua quinta nos arredores de Paris. A satisfação de ver a irmã mais nova foi atenuada
pela perspetiva pouco agradável do que teria de dizer a Miri.
Gabrielle, uma mulher mais mundana, sempre tivera uma opinião mais prosaica da infidelidade do pai. Mas Miri havia sido a mais chegada ao pai, podendo-se dizer que
quase idolatrara o homem. Motivo por que Ariane temia pô-la ao corrente da existência de Xavier.
Protegendo os olhos do sol, Ariane ficou a ver Miri a desmontar. As saudações das outras mulheres eram respeitosas, mas contidas de uma maneira que fazia com que
se sentisse magoada.
Miri tinha cometido o pecado mais grave que uma Filha da Terra poderia cometer; casara com um caçador de bruxas. Simon Aristide renunciara à sua atividade, tendo
feito o seu melhor para emendar os erros do passado,
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mas seria sempre lembrado como o homem que chefiara ataques à ilha Encantada. Miri deixara de ser considerada a adorada filha mais nova de Evangeline. Agora era
Madame Aristide.
Se a falta de cordialidade entristeceu Miri, esta não deu o mínimo sinal disso. Ariane nem sequer tinha a certeza de que a irmã tivesse reparado nisso. Um pouco
visionária, desde sempre que Miri vivera num mundo muito seu, sentindo-se mais à vontade na companhia das criaturas de quatro patas do que na das que tinham duas
pernas.
A frieza que as mulheres lhe haviam mostrado talvez se tivesse perdido na calorosa saudação com que Miri foi acolhida por dois cães de lobo, cujo dono teve muita
dificuldade em chamá-los para junto de si.
Ao ver Ariane, Miri ficou com uma expressão radiante, encaminhando-se na direção da irmã, que se apressou a ir ao seu encontro, apertando-a nos braços.
- Miri, há tanto tempo que não te via. Bem-vinda a casa, minha querida.
- Parece que foi há uma eternidade que estive na ilha Encantada, e a última vez que vim a esta parte da ilha foi ainda há mais tempo. - Miri assestou um olhar nostálgico
nos penhascos à distância. - Recordas-te de como esta costumava ser a parte do ano que eu preferia, quando fazíamos todos a caminhada até aos penhascos de Argot
para prestarmos homenagem às senhoras gigantes?
- Não existe razão nenhuma que nos impeça de reviver esse antigo costume, procedendo como fazíamos nos velhos tempos.
- Não, não podíamos - retorquiu Miri sorrindo, ao mesmo tempo que abanava a cabeça. - Quer desejemos, quer não, a verdade é que as coisas mudaram. A vida é assim
mesmo. O meu lar já não é na ilha Encantada.
- Miri...
- Está tudo bem, Ariane. Não me arrependo por ter enveredado pelo caminho que escolhi. Vivo bastante contente na minha pequena quinta no continente. Amo o meu marido
e ele adora-me. Fui abençoada com uma filha maravilhosa e já tenho outra criança a caminho.
- Miri! Oh, minha querida irmã, não devias ter feito uma viagem tão longa.
- Sinto-me bem. A gravidez ainda está no seu início. Nenhum físico nem parteira seriam capazes de dizer que estou de esperanças, nem sequer
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uma curandeira tão competente como tu. Mas sei que o tenho no ventre - disse Miri acariciando o abdómen. - Pressinto a presença dele a desabrochar para a vida abaixo
do meu coração.
- Ele!?
- Não foste capaz de sentir que estavas grávida de um menino muito antes de o Léon ter nascido? Falando do meu sobrinho, é ele que está ali?
Ariane acenou que sim toda inchada de orgulho.
- E aquelas devem ser as filhas mais novas da Gabby. Como elas estão crescidas!
Ariane passou o braço pela cintura da irmã enquanto se encaminhavam para junto das crianças.
- Estou tão ansiosa por voltar a ver toda a gente - disse Miri.
- Mas primeiro tens de me contar tudo a respeito dele.
- O Léon. Bem, ele...
- Não, estou a referir-me ao desconhecido que estás a ter tanta dificuldade em encontrar maneira de o mencionar.
Ariane imobilizou-se, perscrutando o semblante da irmã.
- Sempre pensei que tinhas mais apetência na leitura dos olhos de animais do que dos humanos.
- O que continua a ser o caso. Mas conheço-te bem de mais, a minha muito protetora irmã mais velha. Além disso, tenho sido bombardeada com todo o género de mexericos
desde que cheguei à ilha. As especulações até já se espalharam a Port Corsair.
Ariane fez uma careta sorridente. É claro que sim. Devia ter previsto isso mesmo.
- Ele é realmente parecido com o pai? - perguntou Miri.
- Pelo menos, com respeito às parecenças físicas.
- E como é que ele se chama?
- Ao que tudo indica, essa Maitland teve a presunção de o batizar com o nome de Louis Xavier Cheney, mas ele prefere que o tratem por capitão Xavier. Não posso dizer-te
muito mais do que isso. Ele sabe bem como guardar os seus pensamentos, mas só lhe faltou atirar-me com as suas origens à cara. É o filho bastardo da Marguerite Maitland.
- E filho do nosso pai - disse Miri com uma expressão de estupefação no rosto. - Isso quer dizer que temos um irmão, Ariane.
Esta franziu o sobrolho. Aquela não era, de maneira nenhuma, a reação que esperara da parte da irmã.
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- Compreendes o que isso significa, Miri. Quer dizer que o caso amoroso do pai se prolongou por mais tempo do que alguma de nós sonhou ser possível, talvez mesmo
a mãezinha. Se eu tivesse de calcular a idade do Xavier, eu diria que não é muito mais novo do que tu.
- Mas a duração da ligação amorosa do pai é assim tão importante? - perguntou Miri com um encolher de ombros. - Tudo isso já pertence ao passado, Ariane. Além disso,
a mãezinha perdoou o pai antes de falecer. Pensei que lhe tinhas seguido o exemplo.
- Perdoar é uma coisa, mas esquecer não é assim tão fácil. O que será ainda mais difícil com a presença deste Xavier, uma recordação viva.
- Mas não poderá ele vir a provar ser uma bênção? Como se parte do nosso pai tivesse regressado para junto de nós.
- É possível que ele seja parecido com o pai, mas é aí que as semelhanças acabam. O nosso pai era um homem encantador, cortês, um gentil-homem da cabeça aos pés.
O Xavier é grosseiro e tem uma língua desbragada. Ele pragueja como... como um marinheiro.
- Talvez porque ele é precisamente isso - retorquiu Miri, sorrindo à irmã. - Se ele acompanhou o pai na viagem ao Brasil, pensa nas histórias que ele nos poderá
contar, o que nos pode dizer acerca dos últimos dias de vida do pai. Ele é nosso irmão, Ariane. Não te parece que devemos dar-lhe uma oportunidade?
- Meio-irmão - insistiu Ariane, se bem que a sua voz não transmitisse a mesma convicção de antes. A atitude de generosidade de Miri fazia com que se sentisse um
tudo-nada envergonhada. - Não estou certa de que o Xavier queira quaisquer oportunidades. Ele não me pareceu ter mais prazer em conhecer-me do que eu tive quando
o vi.
- Bem... se tivesses torcido o meu braço partido e me enfiasses poções repugnantes pela garganta abaixo, eu também não me teria sentido muito deleitada em conhecer-te
- replicou a irmã tão razoavelmente que Ariane foi forçada a rir-se a despeito de si própria. Deu outro abraço a Miri.
- Oh, Miri. É tão bom ter-te aqui.
Miri olhou-a com uma expressão radiante, mas logo de seguida ficou com uma cara séria.
- Espero que não mudes de opinião, apesar de eu te trazer notícias que não serão do teu agrado. Como bem sabes, o Aristide continua a ter
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contactos em Paris. Tem-se esforçado por se manter de olho em Catarina, tal como lhe pediste que fizesse.
- Mas o que é que essa pérfida mulher anda a maquinar agora?
- Nada terrivelmente sinistro. Pelo menos, espero que não. Correram rumores durante o último outono, segundo os quais Catarina andava a consultar um vidente.
- Tretas - disse Ariane, dando de ombros numa atitude escarnecedora. - Ela sempre se interessou pela astrologia. A mãezinha nunca deu muito crédito a essas coisas.
- É possível que este homem tenha sido mais do que um simples astrólogo. Dizem os rumores que ele também era uma espécie de necromante e que tinha Catarina completamente
enfeitiçada.
As sobrancelhas de Ariane arquearam-se numa expressão de surpresa ao pensar numa implacável Rainha das Trevas suscetível de se render aos encantos de quem quer que
fosse e muito menos aos de um homem.
- Ela deve estar a ficar senil com a idade.
- Talvez sim, mas este misterioso mago não é visto há muitos meses. O homem sumiu-se, muito simplesmente.
- O que é frequente acontecer às pessoas que se aproximam de mais da Rainha das Trevas.
- O Simon receia que a Catarina tenha enviado esse homem para se incumbir de uma missão qualquer.
Ariane ficou tensa, compreendendo o que estava implícito nas palavras da irmã.
- Pensas que a Catarina continua a procurar a Meg e o Livro das Sombras?
- Não te sei dizer. - Miri franziu a testa, mostrando-se tão preocupada como Ariane se sentia. - A Irmandade da Rosa de Prata ameaçou, de facto, o trono de Catarina.
Ao contrário da nossa mãe, a Rainha das Trevas não perdoa nem esquece. Parece-te que seja possível que ela tenha deixado de pensar na Meg?
- Não, mas espero que os seus outros problemas com o duque de Guise a mantenham preocupada. Tenho assegurado repetidamente a Meg que se encontra em segurança na
ilha Encantada. Detesto ter de atemorizar a garota.
- Não há qualquer necessidade de fazer isso até o Simon conseguir descobrir mais alguma coisa a respeito deste mago que está desaparecido.
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Ariane concordou com um menear de cabeça. O Sol já tinha descido mais no horizonte, projetando os seus fulgores dourados sobre as ondas do mar. Aquele dia de verão
que começara tão promissor parecia estar a acabar da mesma maneira. Mas aos olhos de Ariane, se estivesse a anunciar a aproximação de outra tempestade, o resultado
teria sido o mesmo.
A cavalgada abria caminho por entre as ruas, um contingente da guarda real que seguia à frente da caleche puxada por dois cavalos. As cortinas de um tecido grosso
não deixavam que a rainha-viúva fosse vista por olhos carrancudos enquanto seguia do Hotel de la Reine para o Louvre. O ar estava pesado com os resmungos de descontentamento
e ressentimento enquanto os parisienses eram forçados a abrir caminho.
No interior da caleche, em que o ar era sufocante, o coro ensurdecido de vozes encolerizadas, para Catarina, soava tão à distância como o zumbido de abelhas. Apesar
de todos os seus esforços, a cabeça balouçava e o queixo descaía-lhe até ao peito, as pálpebras a cerrarem-se. De súbito, deixava de ser uma velha gorda, sentindo
dores nas articulações devido aos solavancos da caleche. Voltava a ser gloriosamente jovem.
Catarina percorria os terrenos de caça, os cascos do fogoso cavalo castrado a levantarem torrões de terra e ervas. Inclinava-se para a frente na sela, com as rédeas
firmemente presas nas mãos, sentindo a gloriosa arremetida do vento através do cabelo, o coração inchado de orgulho, consciente de que era a melhor cavaleira em
toda a frança. com certeza que os olhos de todos os cortesãos estariam presos em si.
Mas acontecia que não era esse o caso. Todos os olhares estavam presos no seu real marido, o rei Henrique, que galopava brandamente ao lado de Diane de Poitiers,
a duquesa de Valentinois. Henrique inclinava-se para a beldade de cabelos escuros, partilhando um gracejo íntimo com a sua muito amada amante, que atirou a cabeça
para trás, soltando uma gargalhada.
"Não, Henrique", gritou Catarina, puxando as rédeas, "afasta-te dela. Olha para mim!"
Mas a sua súplica não foi ouvida. O efeito teria sido o mesmo se ela fosse invisível. Toda a corte paparicava Diane, como se ela fosse a verdadeira rainha de frança.
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Mas, subitamente, o sorriso desapareceu dos lábios da arrogante mulher. Agarrando-se à garganta, Diane caiu do cavalo e ficou esparramada na terra, que era onde
pertencia. Catarina observava com satisfação enquanto a duquesa se contorcia com espasmos, o veneno de Catarina a correr-lhe pelas veias.
Já não faltava muito tempo. Nada nem ninguém poderia salvar a sobranceira duquesa. Catarina acelerou o galope, ansiosa por observar os derradeiros momentos de vida
dela. Mas quando se aproximou mais, viu alguém debruçado sobre o corpo prostrado de Diane.
Evangeline. A querida amiga de Catarina, que recorria à sua magia curativa para reanimar a odiada rival de Catarina.
"Não!"
Mas a sua voz não soava mais fortemente do que antes. Uma cerrada bruma abateu-se sobre a cena, o seu marido, Diane e os cortesãos a desaparecerem diante dos seus
olhos.
Catarina deu consigo apeada, sozinha no meio do campo, a tremer de raiva e sofrimento.
"Também o fiz por ti. Do que estás ciente, Catarina." A voz serena de Evangeline a ecoar vinda de algures atrás de Catarina.
Voltou-se para trás, olhando para a outrora sua amiga com uma expressão de fúria.
"Atraiçoaste-me."
"Não, salvei-te. Já estavas a ficar com a reputação de bruxa, uma italiana hábil na manipulação de venenos. Se a Diane tivesse morrido, serias a primeira pessoa
de quem suspeitariam e temo que nem sequer a tua posição como rainha te teria salvado da ira do rei. Para já não dier nada do mal que farias à tua alma. As Filhas
da Terra vieram ao mundo para..."
"Para curar e não para matar. Oh, sim, já ouvi isso tudo da tua boca", atalhou Catarina desdenhosa. "Sempre te preocupaste tanto para seres a nobre Senhora da Ilha
Encantada; esqueceste o que é sentir o sofrimento de uma mera mulher devastada pela infidelidade do marido. Mas eu ensinei-te o que isso era, não é verdade, minha
querida Evangeline?"
"Sim, ensinaste", corroborou Evangeline com tristeza. "Mas eu já te perdoei."
"Quero que o teu perdão se dane! Nunca o quis." Catarina afastou-se dela, resmungando: "Mas que importância é que isso agora tem? O Henrique e a sua rameira há muito
que morreram. Tal como tu também morreste."
"Tal como tu própria morrerás dentro em pouco."
Catarina estremeceu e abanou a cabeça vigorosamente, num gesto com que negava o que ela dizia.
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"Não deves ter tanto medo da morte, Catarina. É um processo natural..."
"Não me venhas com mais dos teus disparates místicos acerca dos ciclos da vida e o retorno dos meus ossos à nossa Terra-Mãe, com o meu espírito em paz. Não quero
a tua maldita paz."
"Sim, queres, Catarina." A mão de Evangeline pousou-lhe suavemente no ombro. "E ainda tens tempo de vires a descobrir isso. Vira costas à escuridão e passa a ser
a rainha que sempre quiseste ser."
"E és capaz de me dizer como é que, por pressuposto, faço isso? Já sou demasiado velha e estou demasiado alquebrada. E tarde de mais para isso." Apesar do angustiante
protesto, estendeu a mão para a de Evangeline, que agarrou, mas fechou-a no ar.
A caleche parou abruptamente, sacudindo Catarina, que despertou. Pestanejou enquanto organizava as ideias e apercebeu-se de que estava de boca aberta. Limpou a saliva
que lhe tinha escorrido para o queixo, sentindo aversão por si própria por ter adormecido a meio do dia, como uma velha patética.
Mas a realidade é que, ultimamente, não andava a dormir bem, os seus sonhos assombrados por fantasmas do passado; por vezes, sonhava com o falecido marido e a amante
dele, noutras ocasiões, com os filhos mortos, enquanto em outras ocasiões sonhava com todos os rostos ensanguentados e acusatórios dos huguenotes que tinham morrido
massacrados havia tanto tempo na véspera do dia de São Bartolomeu.
Mas a maior parte das vezes era Evangeline que se insinuava nos seus sonhos, como um anjo que estivesse sempre a censurá-la, pressionando-a em direção à paz, ao
repouso eterno que ela tanto temia. Talvez fosse isso, mais do que qualquer outra coisa, que perturbara a sonolência de Catarina, o medo de que se fechassem os olhos,
aquela fosse a ocasião em que nunca mais voltaria a acordar.
Endireitou a gola de arminho, recompondo-se quando os lacaios se aproximaram para a ajudarem a descer da caleche. Sentiu dores lancinantes que lhe percorreram o
corpo quando desceu da caleche, as barbas de baleia do espartilho a rangerem em protesto, ou talvez fossem os seus joelhos.
Ultimamente, as dores nas articulações eram quase insuportáveis e já não tinha uma única gota que fosse do elixir mágico de Xavier para lhe aliviar as dores. Depois
de em janeiro ter usado o que lhe restava da poção, sentiu uma grande depressão que se apoderou do seu espírito. O último inverno tinha sido uma sucessão de dias
cinzentos e deprimentes sem o bem-parecido patife por perto para a encantar com as cores vibrantes das suas
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histórias. Deixara de ver o corpo bem musculado que oscilava ao ritmo da batida do tambor, enquanto Xavier mergulhava cada vez mais profundamente no seu místico
transe.
Havia vários meses que ele se ausentara da corte de Catarina, tempo mais do que suficiente para se desincumbir da missão de que ela o encarregara, segundo os seus
cálculos. Receava que tivesse sido ela quem fora posta em transe, mesmerizada ao ponto de acreditar que, finalmente, tinha encontrado um necromante autêntico. O
mais provável era ele tê-la atraiçoado como tantas outras pessoas em que tinha confiado.
Ou talvez Xavier tivesse tentado raptar Megera e a atual Senhora da Ilha Encantada provasse ser de mais até mesmo para um corsário tão destemido como Xavier. Ariane
não era a santa que a mãe havia sido. Se ela tinha colocado Megera sob a sua proteção, Catarina imaginava que ela se bateria implacavelmente em defesa da rapariga.
Ariane até tivera a temeridade de ameaçar Catarina numa ocasião nos aposentos da rainha no Louvre.
O Louvre... as paredes brancas do palácio erguiam-se diante de Catarina, os vidros das janelas a refletirem a luz intensa do Sol, enchendo-a de recordações.
Quando era nova, adorara dançar tanto quanto gostava de montar. Oh, as festas, as peças de teatro, os bailes de máscaras que ela própria ajudava a organizar. Mas,
enquanto atravessava o pátio, aquelas recordações foram-se esfumando para darem lugar a outras menos agradáveis.
O seu olhar fixou-se no empedrado do pavimento. Tinham decorrido quase dezasseis anos, o pátio fora esfregado inúmeras vezes, apesar disso, Catarina imaginava que
conseguia ver as manchas do sangue derramado naquela noite quente de agosto.
A véspera do dia de São Bartolomeu, a noite em que Catarina pusera em prática uma magia negra que levara o filho louco, Carlos, a ordenar o massacre dos huguenotes
reunidos em Paris, homens, mulheres e crianças sem exceção. Não era uma mulher cruel, assegurou Catarina a si própria, apenas uma mulher pragmática.
Os huguenotes haviam passado a ser uma grande ameaça ao seu poder, ameaçando mesmo a estabilidade da França, pelo que tinha sido necessário resolver o problema que
eles constituíam de uma vez por todas. Mas a violência escalara ao ponto de ultrapassar o que fora sua intenção, as turbas desenfreadas de Paris completamente fora
de controlo durante quase três
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dias, o sangue a derramar-se e os cadáveres a empilharem-se até mesmo no pátio do Louvre.
E tudo isso para quê?, refletiu Catarina sombriamente. O massacre não produzira qualquer resultado, a não ser ter dado origem a mártires. A nova religião continuou
a propagar-se como a peste, a guerra civil sem fim à vista, esgotando o tesouro real e aumentando o poder e a popularidade do oportunista duque de Guise, que se
batia pela fé católica.
Catarina desequilibrou-se ligeiramente e, de súbito, sentiu-se farta de tudo aquilo. O seu olhar tomou a direção da vegetação verdejante dos jardins e do suave gorgolejar
da água nas fontes, desejando melancolicamente poder perder-se pelos carreiros serpenteantes.
Tinha sido ela própria a desenhar aqueles jardins, juntamente com a nova ala do palácio, incorporando muito da deslumbrante arquitetura da sua pátria, a Itália.
Fizera o mesmo para Chenonceau, bem como para muitas outras residências reais.
Trouxera tanta beleza para França, mas receava não ser recordada por nada disso. Só seria recordada pelas manchas de sangue nas pedras do pátio do seu palácio.
"Vira costas à escuridão, Catarina", murmurou-lhe a voz de Evangeline, ecoando na sua mente. "Passa a ser a rainha que sempre quiseste ser."
Impossível. Não enquanto se sentisse tão enfraquecida e tão em baixo, mas se fosse capaz de recuperar parte da força e poder da sua juventude... A sua única esperança
era conseguir pôr as mãos em Megera, arrancando, à força se fosse caso disso, dessa desprezível rapariga os segredos do Livro das Sombras.
- Xavier, não me faltes. - Catarina murmurou, enquanto seguia a sua escolta até ao Louvre, a prece silenciosa que a sustivera ao longo de todos aqueles meses.
O salão principal estava apinhado, como acontecia com muita frequência nos últimos tempos, cheio de peticionários descontentes e cortesãos desencantados. Como de
costume, o trono do rei permanecia por ocupar. A multidão teria assediado Catarina com as suas petições e queixas se não fossem os guardas que mantinham as pessoas
afastadas.
Couraçando-se mentalmente para cada passo excruciante que teria de dar, Catarina encaminhou-se para a imponente escadaria que lhe daria acesso ao segundo piso do
palácio, a respiração acelerada e curta. Sentia-se tão sobrecarregada pela desilusão como pelas volumosas saias de seda preta.
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O filho continuava a negligenciar os assuntos de Estado do seu reino, fazendo mais inimigos do que os que se podia dar ao luxo de ter. Catarina tinha urgido Henrique
até ficar rouca, suplicando ao rei que permitisse que os seus súbditos tivessem mais acesso à sua pessoa.
Henrique até havia rejeitado o costume régio de cear em público, recolhendo-se cada vez mais nos seus aposentos particulares enquanto o seu reino se ia escoando
das suas mãos para as do duque de Guise.
Henrique sempre fora mais obstinado do que os seus outros filhos, mas tinha havido uma altura em que Catarina conseguia chamá-lo à razão. Mas agora a sua voz caía
em orelhas moucas, tal como acontecia quando gritava nos seus sonhos e ninguém a ouvia. Até mesmo durante as raras ocasiões em que ambos trabalhavam juntos na correspondência,
ela e Henrique sentavam-se em mesas separadas na câmara do conselho, mal dirigindo uma palavra um ao outro ao longo de todo o dia.
Quando Catarina já se aproximava dos aposentos particulares do filho, perguntava-se receosa que versão de Henrique é que encontraria naquele dia. Aquela em que ele
gostava de pintar o rosto e de se vestir de mulher, usando um vestido de seda violeta orlado com fitas vermelhas. Ou aquela em que envergava o hábito monástico e
entoava o Miserere, flagelando-se até atingir um estado de êxtase.
Quando Catarina foi admitida na antecâmara real, não deparou com nenhuma dessas versões. O rei trajava de veludo negro, o gibão bordado a prata com crânios humanos.
Crânios de seda de tamanho ínfimo adornavam os sapatos com que ele andava freneticamente de um lado para o outro como um leão enjaulado.
Quando viu o vermelho febril nas faces de Henrique, os gestos agitados das mãos, Catarina sentiu que o coração lhe caía aos pés. Pensou que quase preferia o Henrique
todo perfumado e cheio de carmim nas faces com o seu vestido de seda violeta.
- A rainha-viúva, majestade.
Enquanto Catarina era anunciada, estremeceu quando obrigou os joelhos a uma rígida vénia. O rei deteve-se abruptamente, a luz do Sol que entrava pelas janelas altas
e gradeadas a projetar-se no rosto dele, revelando todas as rugas profundamente vincadas.
Como o filho tinha envelhecido e emagrecido para um homem que tinha trinta e sete anos, pensou Catarina consternada, o único filho que lhe restava, tudo o que se
encontrava entre ela e o oblívio.
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Uma mulher que dera à luz quatro filhos nunca devia sentir aquele sacão de medo. Mas o seu mais velho, Francisco, havia sido um jovem enfermiço, enquanto o que se
seguia na linha de sucessão, Carlos, fora insano e enfermiço. Nenhum deles usou a coroa durante muito tempo. O filho mais novo, Hércules, vivera durante o tempo
suficiente para mostrar que era uma peste, sempre com inveja dos irmãos mais velhos, sempre a planear esquemas e a conspirar com vista a uma rebelião.
Tinha sido em Henrique que Catarina depositara as suas esperanças para assegurar a continuidade da sua dinastia e o exercício do poder em França. Era, de longe,
o preferido de todos os seus filhos, Henrique era o mais parecido consigo, com a pele morena da sua ascendência italiana e astúcia implacável. No entanto, os anos
de dissipação tinham exercido o seu preço.
Ocultando a conturbação por detrás de um sorriso, Catarina estendeu as mãos ao filho.
- Meu filho.
- Madame - replicou Henrique friamente, ignorando os braços estendidos da mãe.
Catarina, sentindo-se constrangida, voltou a deixar cair as mãos ao longo do corpo.
- Espero encontrar vossa majestade de boa saúde.
- Suficientemente bem para alguém cujo coração quase foi trespassado pela espada de um assassino.
- Henrique! - Catarina ficou sem respiração, tanto o alarme que sentiu. - Fostes atacado? Ficastes ferido? - Correu para ele, passando as mãos com ansiedade pela
frente do gibão do filho.
com impaciência, Henrique imobilizou-lhe os dedos inquietos.
- Não eu, mas sim o meu amado amigo, D'Epernon.
- Ele morreu?
- Não, ele conseguiu defender-se. A lâmina só o cortou no braço.
- Oh, graças ao bon Dieu - murmurou Catarina, mas foi forçada a baixar o olhar para ocultar a sua desilusão. D'Epernon era um dos muito aperaltados amigos de Henrique,
aqueles favoritos afeminados do rei cuja presença na corte só servia para manchar ainda mais a reputação do filho e cuja ganância esgotava constantemente o tesouro
real. A morte de D'Epernon, na opinião de Catarina, não teria sido uma grande perda. Verdade fosse dita, teria considerado que era uma bênção
Todavia, conseguiu chamar a si um tom de voz comiserativo.
119
- Pobre D'Epernon. É uma situação extremamente deplorável. Paris transformou-se numa cidade tão perigosa, cheia de carteiristas e gatunos aonde quer que se vá.
- Mas o que aconteceu não foi obra de nenhum gatuno comum, mas sim o ataque de um assassino experimentado.
O homem não podia ter tido assim tanta experiência, porque, se tivesse, teria sido bem-sucedido, sentiu-se Catarina tentada a apontar com secura, mas via pelas feições
congestionadas do filho que Henrique estava num dos seus estados de espírito perigosos.
O rei andava de um lado para o outro na antecâmara, com os punhos fortemente cerrados.
- Não tenho dúvida nenhuma quanto a quem é que mandou esse assassino. A mão insidiosa do duque de Guise está por detrás deste ataque contra o meu querido amigo.
- Tendes alguma prova do que dizeis? - perguntou Catarina. Henrique estacou abruptamente, fitando-a com uma expressão furiosa.
- Não, o vilão que atacou o mon cher ami conseguiu escapar, mas dar-lhe-ei caça até ser encontrado e será torturado até confessar quem é que o contratou. Não que
eu precise de uma confissão. Quem mais, além do duque de Guise, é que poderia estar por detrás de uma coisa destas? O canalha está determinado a destruir todos os
que me são queridos, com o intuito de quebrar o meu espírito e destruir a minha sanidade mental. Quer destruir o meu reino gradualmente, a minha honra, a minha reputação.
O timbre de voz de Henrique elevava-se mais a cada palavra que articulava. com brusquidão, pegou numa folha de pergaminho que tinha em cima da mesa, estendendo-a
diante dos olhos de Catarina.
- Olhai bem para este panfleto soez que tem andado a circular pelas ruas de Paris.
Catarina recuou, a sua visão a turvar-se enquanto semicerrava os olhos para conseguir ler o panfleto, mas sem as lentes especiais que eram fabricadas para ela por
um vidreiro italiano era-lhe impossível conseguir ler as palavras escritas na folha.
Henrique tirou-lho das mãos bruscamente, começando a ler numa voz trémula de raiva. "Um relato verdadeiro sobre as incursões militares do nosso temido senhor, o
rei Henrique III de França."
Abriu o panfleto e como que escarrou na única palavra escrita na página seguinte.
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"Rei."
- Nada! - vociferou Henrique. - Eles acusam-me de não ter conseguido nada, as minhas vitórias em Moncontour e Poitiers há muito esquecidas, enquanto toda a glória
e louvores vão para o duque de Guise.
- Henrique, repito o que já vos disse tantas vezes. Ignorai esses panfletos ridículos. Eu poderia forrar todas as paredes de uma biblioteca com os disparates que
têm escrito a meu respeito. Isto não tem importância nenhuma, é apenas obra de um mentecapto...
- É obra desse maldito duque de Guise - atalhou o rei, rasgando o panfleto ao meio, atirando os bocados para o chão e pisando-os com o sapato. - Ele não perde oportunidade
nenhuma de incitar as pessoas de Paris a fazerem troça de mim. Já ouvistes o que agora me chamam? O Rei da Ilha das Hermafroditas.
"Sendo assim, andarias bem se queimasses os teus vestidos e saias de baixo", pensou Catarina. Em tempos, ter-se-ia atrevido a verbalizar aquele pensamento, mas via
uma violência crescente no filho que a aconselhava a ter prudência. Os olhos dele brilhavam de uma maneira que lhe causava mal-estar, fazendo com que se recordasse
do seu segundo filho.
Tinham sido muitas as vezes em que Catarina tinha tido de preparar infusões que acalmassem Carlos, apaziguando assim as suas crises de loucura. Mas havia muito tempo
que ela não ia à sua câmara secreta. A falta de vista e as mãos trémulas, a par de uma memória que a atraiçoava, faziam com que fosse perigoso tentar preparar quaisquer
poções.
Mas isso não teria feito diferença nenhuma. Henrique não teria tomado nada que Catarina tivesse preparado. O filho suspeitava e desconfiava cada vez mais de toda
a gente, em particular da própria mãe.
A Catarina só restava tentar chamá-lo à razão, mas quando pousou a mão no braço do filho, ele sacudiu-a.
- Não sei quanto mais é que poderei suportar deste tormento! - gritou. - A dor transforma-se em raiva quando uma pessoa é magoada constantemente. Para bem do duque
de Guise, ele não deve abusar da minha paciência. Eu concederia todas as riquezas e títulos do meu reino a quem me livrasse desse vilão.
- Calai-vos, meu filho - retorquiu Catarina, olhando nervosamente para os guardas e serviçais à distância de poderem ouvir o que era dito. Ansiava por tapar a boca
de Henrique com a sua mão, mas sabia que ele jamais consentiria tal afronta à sua dignidade. Em vez disso, conseguiu pegar-lhe numa mão, que fechou nas suas.
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- Não deveis dizer coisas tão imprudentes, não vá alguém levar-vos a sério. Já vos haveis esquecido de como Henrique II de Inglaterra desencadeou o assassínio do
arcebispo Thomas Becket com um comentário mais descuidado? Tudo o que conseguiu com isso foi fazer do seu inimigo um mártir.
- Pelo menos, esse Henrique livrou-se de um súbdito extremamente poderoso.
- E foi por pouco que o papa não o excomungou.
- E o que é que isso me importa? - replicou Henrique mal-humorado. - Eu abdicaria da minha alma para me ver livre do duque de Guise.
- Aquilo de que abdicaríeis era do vosso reino. Se tocardes num único cabelo da cabeça do duque de Guise, toda a população de Paris se sublevará.
- Pois que se revoltem - ripostou Henrique, tirando a mão das da mãe. - Eu nunca me teria visto a braços com este problema com o duque de Guise se tivésseis lidado
com ele como devíeis ter feito.
Catarina contraiu os lábios para conter uma resposta torta ao pensar no inchaço nas articulações, nas dores de cabeça excruciantes e na exaustão que sentira enquanto
se arrastara para inúmeras negociações com o duque e a sua Liga Católica, enquanto o filho mal-humorado não se levantava da cama.
- Fiz o meu melhor para negociar com o duque de Guise - ripostou Catarina rigidamente.
- Negociar. A mãe de que me recordo teria feito mais do que negociar. - Do mal o menos, Henrique ainda tinha o bom senso suficiente para baixar o tom de voz e para
se inclinar mais para a mãe enquanto sussurrava: - Ela teria preparado uma infusão qualquer na sua câmara secreta para se ver livre de Monsieur de Guise de uma vez
por todas. A velhice acobardou-vos, minha mãe.
- Não, a idade deu-me sensatez. Destruir o duque será a vossa ruína, Henrique. Tendes de ser paciente.
- Por amor de Deus! Estou farto de vos ouvir a dizer-me isso. Enquanto eu espero, o duque de Guise marchará sobre Paris um destes dias, tratando de que me assassinem
quando estiver na cama. Eu devia tê-lo declarado como um criminoso, ordenando que a Guarda Suíça avançasse para Paris a fim de...
- Henrique - gemeu Catarina. - Estais a tentar desencadear uma revolução? Tudo o que a presença da Guarda Suíça conseguirá é encolerizar os parisienses e provocar
o duque de Guise a agir precipitadamente.
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- Pois então, ele que seja provocado.
- O homem tem vindo a adquirir cada vez mais poder. Conta com aliados muito mais perigosos do que a população de Paris.
- Estou bem ciente disso, madame. O vilão tem andado de conluio com o rei de Espanha, estabelecendo alianças nas minhas costas como se ele fosse o legítimo representante
da França e não eu. Proclamando-se a si próprio como defensor da fé verdadeira. Eu é que devia fazer isso. - Henrique bateu no peito, lágrimas de cólera a começarem
a marejar-lhe os olhos.
- Sou um católico tão bom e pio como ele e, contudo, sou forçado a assinar tratados de defesa com a rainha herege de Inglaterra.
- Isso é, meramente, o exercício de uma política pragmática, meu filho. A Isabel é uma boa aliada, necessária para que se possa preservar o equilíbrio de poder.
Henrique abanou a cabeça e encurvou os ombros.
- Só que estou tão farto de tudo isto, mamã. Por vezes, receio que estejamos perdidos, façamos o que fizermos.
- Não digas isso, mon ange. - Catarina estendeu as mãos, emoldurando o rosto dele nas suas mãos. - Enquanto continuares a ser o rei de França, a esperança não morre.
Mas não podemos perder a fé, especialmente um no outro.
Henrique esquivou-se às mãos da mãe.
- Porquê? Quando não fazeis nada, além de me causardes problemas.
- Eu!? Mas não fiz absolutamente nada.
- Diretamente, talvez não. Mas esse vosso pirata tem andado a arranjar problemas.
Catarina ficou a olhar para ele de boca aberta, enquanto nos olhos de Henrique se espelhava uma expressão dissimulada.
- Eu continuo a ter os meus espiões por aí, mamã. Pensastes que eu não tinha conhecimento do jaguar domado que foi visita frequente no Hotel de la Reine? O vosso
precioso Alexander?
- Xavier - corrigiu Catarina numa voz titubeante. - O que... o que é que ele fez?
- Segundo diz o embaixador espanhol, ele tem andado a atacar e a saquear, uma vez mais, os navios mercantes de Espanha. Ele saqueou um navio mercante ao largo da
costa da Florida.
- Quando?
- Durante o último inverno ou no princípio da primavera.
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Catarina viu-se forçada a desviar a cara para ocultar a profunda perturbação que sentia. Portanto, Xavier nunca tinha chegado a viajar para a ilha Encantada como
lhe prometera que faria. Tinha aceitado o seu dinheiro e voltara para o mar das Caraíbas, sem dúvida rindo-se a bom rir com a tripulação do seu navio da velha idiota
que intrujara, levando-a a dar-lhe dinheiro.
Catarina devia ter estado à espera daquilo, mas a notícia deixou-a extremamente abalada. Levou a mão ao peito como se tivesse recebido um rude golpe. Respirou fundo
para se recuperar da consternação, que, a pouco e pouco, começou a dar lugar a uma raiva fria.
Porque ela não era nenhuma velha tola. Enquanto vivesse e respirasse, continuava a ser Catarina de Médicis, a Rainha das Trevas, cujo mero nome era suficiente para
fazer com que homens adultos tremessem.
Olhou de frente para o filho, constatando que Henrique se divertia maliciosamente com o seu desconcerto.
- É um pouco tarde na vossa vida, mamã, para procurardes divertimento com um patife bem-parecido. Lamento muito privar-vos do vosso favorito, mas tenho de vos dizer
que vou pôr a cabeça desse Xavier a prémio.
- Fazei isso mesmo - retorquiu Catarina carrancuda. - Mandai prender o vilão e trazei-o de volta a Paris. Eu própria lidarei com ele.
O sol da manhã filtrava-se através da janela da pequena casa, cálido e suave no rosto de Jane, que andava pelo quarto em bicos de pés. Mexeu o caldo que fervia no
lume da lareira com cuidado para não salpicar o vestido. Naquela manhã vestira-se com mais esmero do que era habitual, usando o seu melhor vestido preto, que já
tinha algum uso, mas que continuava bastante apresentável, tendo-lhe posto uma gola e punhos novos.
Enquanto prendia o cabelo num carrapito apertado, Jane quase deu consigo a trautear uma melodia. O rosto que viu refletido no espelho acima do lavatório estava um
pouco pálido devido à falta de sono. Na noite anterior dormira apenas algumas horas.
Não obstante, havia muito tempo que os seus olhos não brilhavam com aquela radiância, vendo-se um ligeiro rosado nas suas faces que se mantivera ausente até ao momento.
Talvez isso se devesse aos ares do mar.
Ou, o que era muito mais provável, por ter acordado com um objetivo naquela manhã, algo importante com que preencher o seu dia, cuidar do homem que estava deitado
na cama.
Xavier mal se tinha mexido desde que Ariane lhe tinha tratado o braço no dia anterior, mas esta assegurara-lhe que isso não era motivo para preocupação, apenas o
resultado da exaustão e do forte soporífero que lhe dera a beber. O sono reparador far-lhe-ia bem, desde que não ficasse com febre.
Sem fazer barulho, Jane aproximou-se do leito para lhe apalpar a fronte, talvez, pela centésima vez, sentindo-se aliviada ao constatar que ele tinha a pele fresca
ao toque. Puxou a coberta mais para cima, tapando-lhe o peito nu, após o que se afastou para a janela.
Ajoelhou-se e pegou no seu rosário, dando início às suas orações matinais. Era frequente que as suas orações se revestissem de uma grande tristeza
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ao recordar todos os que havia perdido, a sua querida ama Sarah, os pais, o irmão Ned. Mas hoje o seu coração entoava um hino de gratidão, agradecendo a Deus ter
poupado a vida de um homem que mal conhecia. Pensou que era estranho ter começado a sentir uma certa afinidade com aquele desconhecido. Talvez por ter sentido na
pele o que era, por assim dizer, ser um náufrago que tinha dado à costa da mística e tantas vezes desconcertante ilha Encantada.
- Hum... - Jane ouviu um gemido que vinha da cama atrás de si. Virou-se e viu que, por fim, o seu paciente começava a despertar. com uma expressão aterrorizada no
rosto, Xavier agarrava-se à coberta.
Jane apressou-se a pôr-se de pé, apercebendo-se da causa da agitação dele. Dirigiu-se imediatamente para a beira da cama, pousando uma mão no ombro dele.
- Não, rogo-vos que vos tranquilizeis, monsieur. Está tudo bem. O vosso braço continua onde devia estar. Olhai.
Jane afastou a coberta até à cintura de Xavier para que ele pudesse ver o braço direito imobilizado entre talas de madeira, a ligadura branca a enfaixar a região
ferida.
Xavier acalmou-se, começando a respirar fundo.
- Eu própria mudei a ligadura e não vi quaisquer indícios de infeção. A Ariane diz que estais a recuperar muito bem e que o vosso braço deve sarar sem problemas
de maior, desde que permaneçais sossegado, dando tempo ao tempo... - Jane calou-se, sem sequer ter a certeza de que Xavier estivesse a prestar atenção ao que lhe
dizia.
O olhar dele percorria todo o interior do quarto, como se estivesse a tentar organizar as ideias. Voltou a pousar a cabeça na almofada, colocando o braço esquerdo
por cima dos olhos. Ficou tão sossegado que Jane pensou que ele talvez tivesse voltado a adormecer.
Mas quando começou a puxar a coberta para lhe tapar o peito recatadamente, ele mexeu o braço e ficou a olhar para ela. Jane não tardou a descobrir que tratar de
um desconhecido que estava adormecido era uma coisa, mas quando ele estava acordado e a sujeitava a um olhar tão fixo, o caso mudava muito de figura. Sentindo as
mãos a tremer, optou por as colocar atrás das costas.
- Bons dias - tartamudeou.
- Será? - perguntou ele numa voz roufenha.
Jane apressou-se a ir buscar-lhe alguma coisa para beber. Quando ele olhou com muita desconfiança para a caneca que tinha nas mãos, disse-lhe:
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- É apenas vinho, mais nada, garanto-vos.
Erguendo a cabeça dele, ela encorajou-o a beber alguns goles. Inicialmente, Xavier começou a beber cautelosamente, mas depois bebeu avidamente.
- Há quanto tempo é que estou a dormir? - perguntou num tom de voz mais claro e autoritário.
- Desde ontem à tarde.
- Danação!
- Como é que estais a sentir-vos?
Xavier mexeu os ombros e retraiu-se de dor.
- Como se tivesse sido atirado borda fora e o mar me tivesse arremessado contra os rochedos.
- Ótimo - disse Jane, mas apressou-se a acrescentar: - Não por terdes sido atirado borda fora, mas por vos lembrardes do que vos aconteceu. A Ariane receou que a
pancada na cabeça vos tivesse desorientado. Lembrai-vos de quem sou?
- Jane... a senhora inglesa.
- Exatamente - confirmou Jane, sentindo-se absurdamente satisfeita por ele se recordar do seu nome. - E sabeis onde é que estais?
- Bem, Jane, eu diria que estou deitado na vossa cama.
- Não na minha. Estamos na casa de Madame Partierre e estais deitado no leito dela.
- É uma pena. - O vinho tinha revigorado o homem o suficiente para lhe ter aparecido o assomo de um sorriso malicioso nos lábios.
Jane afastou-se da cama para pousar a caneca vazia em cima da mesa, esforçando-se por recuperar a compostura. Mas antes de conseguir recompor-se, ele voltou a desconcertá-la
ao soerguer-se sobre o cotovelo esquerdo num esforço para se sentar.
- Oh, parai com isso. O que é que estais a fazer?
Xavier rangeu os dentes ao sentir as dores que aquele esforço lhe devia ter custado.
- Por muito agradecido que eu esteja pela hospitalidade de Madame Partierre, receio ter de dizer que... - Xavier interrompeu-se abruptamente e ficou hirto quando
olhou por baixo da coberta. Ergueu a cabeça e olhou para Jane com um semblante acusatório. - Danação, mulher! Onde é que estão as minhas calças?
- Não fui eu que vos despi - disse Jane irritada consigo mesma ao sentir que o rubor lhe subia às faces. - Foi a Ariane...
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- A minha irmã despiu-me?
- Não, mas pediu a Madame Partierre e a Madame Bevans que tratassem disso. Eu descalcei-vos as botas enquanto...
- Enquanto metade das mulheres da ilha me despiam até ficar todo nu - atalhou Xavier, interrompendo-a e mostrando-se cada vez mais indignado.
- É muito difícil despir um homem que está inconsciente, monsieur. A Ariane só quis que ficásseis mais confortável.
- O diabo é que ela quis. O mais certo é ela ter pensado que poderia manter-me cativo desta maneira. Obviamente, a minha meia-irmã não me conhece muito bem.
- Tão bem como vós a conheceis. Ela só deseja que estejais sossegado para que o braço que ela tanto se esforçou por tratar tenha oportunidade de sarar.
- Não vos esqueçais de lhe agradecer por isso quando voltardes a vê-la - disse Xavier, esforçando-se por se sentar a direito. - Entretanto, peço-vos a gentileza
de irdes buscar as minhas botas e as minhas calças. Assim como um gibão ou uma camisa se conseguirdes encontrar uma coisa ou a outra. Como uma boa menina.
- Não.
- Não? - Xavier imobilizou-se, fitando-a com um sobrolho arqueado.
- Não ireis a lado nenhum.
- Por muito que me desagrade discutir convosco, minha senhora, não tenciono fazer o que dizeis. Se não fordes buscar as minhas roupas, eu próprio irei procurá-las
ou sairei desta casa nuzinho em pelo. Portanto, é melhor que comeceis a preparar-vos para desviar os vossos olhos de donzela.
- Já casei e enviuvei duas vezes, pelo que os meus olhos já não são os de uma donzela. Não tendes nada a esconder por baixo dessa coberta que eu já não tenha visto.
- Ótimo, porque, depois de ter contado até dez, tenciono levantar-me da cama, Jane.
Jane cruzou os braços diante do peito, posicionando-se em frente da ombreira da porta.
- Um... dois...
Jane pestanejou e arquejou, apanhada de surpresa quando Xavier atirou o cobertor para trás, passando as pernas pela beira do leito. Sem dúvida
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que ele teria sido a espécie de rapaz que também faria batota nas brincadeiras de rapaz.
Apesar da fanfarronice dela, por já ter casado duas vezes, ambos os maridos tinham sido homens recatados, pelo que ela nunca estivera exposta a uma exibição tão
despudorada de carne masculina. Teve de fazer um esforço enorme para não desviar o olhar.
Em vez disso, olhou fixamente para Xavier na esperança de o embaraçar de modo a que ele arrepiasse caminho. Mas era por demais evidente que o homem não tinha um
pingo de vergonha, talvez por não ter nada de que se envergonhar.
Tinha as coxas e as barrigas das pernas tão bem definidas e musculadas como o estômago plano e o peito largo. O membro masculino entre as pernas estava numa posição
de repouso, mas Jane imaginava-o capaz de se expandir até ficar com um comprimento impressionante.
com muita dificuldade, Xavier pôs-se de pé, mas cambaleou perigosamente de imediato. Teria caído de cara no chão se Jane não tivesse corrido para ele, impedindo-o
de cair. Desequilibrou-se sob o peso dele, mas conseguiu aguentar-se, empurrando-o para cima da cama.
Quando ele caiu no leito, arrastou Jane consigo. Ela tombou em cima dele com impacto suficiente para fazer com que Xavier gritasse de dor e soltasse uma obscenidade.
- Vede bem o que me haveis obrigado a fazer - disse Jane enquanto se esforçava por se desenvencilhar dele. - O mais certo é ter-vos magoado o braço.
- Não é o meu braço que corre perigo - ripostou Xavier, rangendo os dentes.
Para seu grande horror e embaraço, Jane apercebeu-se de que tinha enfiado o joelho entre as coxas dele, durante os esforços frenéticos que fazia para se desembaraçar
dele. Onde quer que pusesse as mãos para se firmar, deparava com a calidez de carne masculina.
Quando, por fim, conseguiu sair de cima dele, Jane estava a arfar e tinha as faces extremamente ruborizadas. Xavier empalidecera devido ao esforço, tendo ficado
com a respiração curta e acelerada, que lhe soerguia e baixava o peito. Quem os visse poderia ter pensado que tinham acabado de dar uma cambalhota entre lençóis,
um pensamento que não ajudou Jane em nada a sentir-se menos enervada.
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Afastou do rosto uma madeixa que se tinha desprendido do carrapito, após o que se inclinou para poder examinar o braço de Xavier. Para seu alívio, viu que as talas
não se haviam soltado.
- Tendes muita sorte por não terdes partido o braço outra vez - ralhou Jane. - Espero que a partir de agora tenhais o bom senso de não vos levantardes da cama. Se
não o fizerdes, juro-vos que vou buscar uma corda para vos amarrar ao leito.
Estreitando os lábios, voltou a tapá-lo com a coberta. Xavier não fez qualquer movimento para lhe resistir. Mas quando ajeitou a cabeça na almofada, olhou para ela
com uma expressão sinistra.
- Tendes o hábito de manter homens nus como vossos prisioneiros?
- Não, tenho o hábito de tentar ajudar.
- Até mesmo os homens que são estúpidos e ingratos?
- Especialmente esses. E frequente que sejam os que necessitam de mais ajuda.
Ficaram a olhar um para o outro com fixidez durante uns momentos. A boca de Xavier esboçou o assomo de um sorriso.
- Peço desculpa, Jane, mas estou desesperado por poder sair daqui. - O sorriso desapareceu-lhe dos lábios enquanto prosseguia. - Preciso de saber o que aconteceu
ao meu navio, à minha tripulação. Se o Miribelle ficou destruído quando embateu nas rochas... - Xavier interrompeu-se, engolindo em seco. - Há muitos anos que ando
no mar com estes homens. Se lhes aconteceu alguma coisa, o culpado sou eu.
- Não me parece que alguém possa responsabilizar-vos por uma tempestade.
- Não, mas se eu não me tivesse entregado a... Se tivesse estado de posse de todas as minhas faculdades mentais, talvez pudesse ter... Eu era o capitão deles e faltei-lhes
quando mais precisavam de mim - concluiu Xavier taciturno.
- Não vejo razão nenhuma para esse desespero, pelo menos para já. Não tivemos notícia de nenhum naufrágio. Se o vosso navio se tivesse afundado, com certeza que
já teriam sido encontrados destroços que tivessem dado à costa.
Nos olhos de Xavier apareceu uma centelha de esperança.
- Isso é verdade - concordou.
- Se o Miribelle saiu incólume da tempestade, o que é que, mais provavelmente, a vossa tripulação faria?
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- Sem dúvida que teriam concluído que eu morri afogado. Portanto, possivelmente, continuariam a navegar rumo a Saint-Malo.
- Os navios aportam e zarpam de Port Corsair constantemente, no outro lado da ilha. Tenho a certeza de que Ariane podia pedir a alguém que recolhesse informações
no continente.
- Não, já devo obrigações mais do que suficientes a essa mulher. Eu próprio tratarei de me informar. - Xavier fez outro esforço para se soerguer, mas voltou a deixar
cair a cabeça nas almofadas com uma expressão de desalento.
- Posso garantir-vos que a Ariane não se importaria. Se quiserdes, eu posso pedir-lhe que trate desse assunto por vós.
- Uma vez mais, parece que não me resta outra alternativa - retorquiu ele, soltando um suspiro de desânimo e acrescentando carrancudo: - Obrigado. Ficar-vos-ia muito
agradecido.
- Mas, entretanto, o melhor que tendes a fazer é repousar para recuperardes as forças. Preparei-vos um caldo muito nutritivo. - Jane estava à espera que ele protestasse,
como a maior parte dos homens teria feito, exigindo um alimento mais substancial. Sem dúvida que era o que o irmão faria, exigindo petulantemente uma perna de borrego
e uma caneca de cerveja.
Mas Xavier limitou-se a aquiescer, mostrando-se deprimido. Não se mexeu até ela se ter sentado na beira da cama, preparando-se para lhe dar de comer.
- Não, dê-me isso. Ainda não estou reduzido à condição de uma criança de colo.
Jane ficou a olhar para ele com uma expressão de dúvida, mas calou as suas objeções, deixando que fosse Xavier a descobrir, por si próprio, a dificuldade que teria
em pegar na tigela cheia de sopa quente apenas com uma mão.
Ele conseguiu sentar-se e tentou equilibrar a tigela em cima do estômago, enquanto pegava na colher desajeitadamente com a mão esquerda. Quando tudo o que conseguiu
foi fazer com que o caldo lhe escorresse pelo queixo, salpicando-lhe o peito, entregou a tigela a Jane com uma expressão mal-humorada.
Sobre o quarto abateu-se um silêncio de constrangimento enquanto ela lhe dava o caldo à boca. As pálpebras de Xavier semicerraram-se enquanto lhe observava a fisionomia
atentamente, após o que o seu olhar percorreu o corpo dela.
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Haviam decorrido muitos anos desde que um homem a tinha olhado de maneira tão ousada. Jane esforçou-se por manter toda a sua atenção concentrada na tarefa de lhe
dar de comer.
- Gosto mais de vos ver com o cabelo solto - disse ele por fim.
- Ainda bem que não me penteio de maneira a agradar-vos. Já sou velha de mais para andar por aí com os cabelos ao vento.
- Não podeis ter assim tanta idade.
- Tenho quase trinta e dois anos.
- E sois desconcertantemente sincera. Não posso dizer que tenha conhecido alguma mulher que tenha dito a verdade acerca da sua idade.
- A partir de determinada altura na vida de uma pessoa, a contagem dos anos passa a ser algo sem a mínima importância - retorquiu Jane, dando-lhe a última colherada
de caldo.
- Estou de acordo. Eu admito sem a mínima relutância que tenho vinte e sete anos. Mas isso não é motivo para vos preocupardes. Tenho uma acentuada tendência que
me leva a pender para mulheres mais maduras, em particular se forem viúvas.
Xavier sorriu-lhe e Jane franziu as sobrancelhas. Estaria o homem a tentar romanceá-la? Nunca havia tido muito jeito para dar réplicas espirituosas àquele género
de situação que não era nada do seu agrado. Decidiu que a melhor reação seria ignorá-lo.
O cabelo preto caía-lhe despenteado para o rosto de feições magras curtidas pelo mar, a que uma barba de vários dias emprestava uma expressão rude. As sobrancelhas
espessas encimavam uns olhos de um cinzento-azulado que, imaginava Jane, nunca dariam tréguas, quer quando se defrontasse com um inimigo, quer quando olhasse para
uma mulher de uma maneira desconcertante. A única parte suave da fisionomia dele era a boca, o lábio inferior carnudo que tanto dava a entender vulnerabilidade como
continha a promessa de prazeres mais secretos.
Jane limpou-lhe a boca com um guardanapo de linho muito cautelosamente, como se receasse que ele mordesse, o toque da sua mão tão a medo que era impossível que ele
não comentasse isso.
- Portanto, deduzo que considerais que sou bastante selvagem e perigoso, é isso?
- Não - respondeu Jane circunspecta. - Sois apenas um homem que precisa desesperadamente de pentear o cabelo e fazer a barba. Posso fazer-vos isso mais tarde, se
quiserdes.
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- Não, obrigado. Não confio em ninguém que empunhe uma navalha tão perto da minha garganta.
O olhar de Jane desviou-se para a cicatriz esbranquiçada que ele tinha no pescoço.
- Mas tenho alguma experiência a barbear homens.
- com os vossos maridos? Foram dois, acredito no que haveis dito. E então, o que é que aconteceu? Cortastes-lhes a garganta acidentalmente ou, muito simplesmente,
haveis feito com que ficassem esgotados?
- Nem uma coisa, nem a outra - replicou Jane, levantando-se da beira da cama para pousar a tigela na prateleira da lareira. Era inquestionável que não devia quaisquer
explicações a Xavier, não obstante deu consigo a fazê-lo. - O Dickon nunca gozou de boa saúde. Morreu de tuberculose. Só estávamos casados havia um ano. Quanto ao
meu segundo marido, Sir William, faleceu de uma pleurisia.
- Lamento - disse Xavier num tom ligeiramente mais suave. - Haveis cuidado deles com tanta generosidade como fazeis comigo?
- Não no caso do Dickon. Eu não go...
- Gostáveis dele?
Jane refreou a língua. Habitualmente, procedia com mais circunspeção.
- Eu não conhecia o Dickon muito bem. Só estivemos casados durante um ano e eu ainda era muito nova, tinha apenas quinze anos.
- E quanto a Sir William?
- Ele desposou-me quando eu tinha dezoito anos, quando já era bastante mais adulta. Estivemos casados durante dez anos.
- E tínheis-lhe amor?
- Ele era muito mais velho do que eu. Em grande parte, o que sentia por ele era estima... e estais a fazer perguntas impertinentes a mais.
- Peço perdão, minha senhora. - Espero não vos ter ofendido ao ponto de me recusardes outra caneca de vinho. Esse vosso caldo substancial estava um tudo-nada salgado
de mais.
Jane pegou no jarro do vinho para voltar a encher-lhe a caneca. Depois de ter repreendido Xavier pela sua curiosidade, ficou mortificada ao constatar que não conseguia
reprimir a sua própria curiosidade.
- E com respeito a vós? Sois casado?
- Nunca - respondeu Xavier, fingindo um estremecimento. - Mas confesso que tenho a amante mais encantadora e exigente que existe. É impossível que possais imaginar
até que ponto é que ela é vigorosa.
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- Tenho a certeza de que não estou interessada em inteirar-me disso... - começou Jane a dizer afetadamente quando Xavier a interrompeu.
- O mar, Jane. Eu estava a referir-me ao mar. - Os olhos dele brilharam trocistas e com um sorriso tão irresistível que os lábios de Jane esboçaram um sorriso relutante.
Voltou a sentar-se na beira da cama. Desta vez, ele nem sequer tentou tirar-lhe a caneca da mão, parecendo satisfeito ao permitir-lhe que lhe levasse o vinho à boca.
Bebeu metade do vinho da caneca antes de recomeçar a falar.
- Portanto, haveis casado duas vezes, uma vez com um rapaz e depois com um homem que já estava na sua segunda infância.
Quando Jane suspirou perante a persistência dele, Xavier continuou.
- Peço perdão, minha senhora. Mas a minha curiosidade é compreensível, em particular depois de vos ter ouvido a comparar o meu físico com o dos vossos maridos, constatando
que eu não era tão dotado.
- Eu nunca disse nada disso.
- Dissestes que eu não tinha nada debaixo do lençol que vos impressionasse.
- Eu disse que não veria nada que me surpreendesse. Xavier fitou-a por entre as pestanas semicerradas.
- Uma vez que me considerais tão pouco impressionante, não percebo por que razão é que me haveis beijado.
Jane ficou tão abismada que foi por pouco que não entornou o resto do vinho da caneca.
- Não fiz nada disso.
- Fizestes, sim. Admito que a memória que guardo disso é um pouco ténue. Até pensei que se tratasse apenas de um delicioso sonho, mas agora recordo-me com toda a
clareza. Quando me encontrastes na praia, haveis premido os vossos lábios contra os meus.
Jane corou. Albergara a esperança de que ele tivesse estado confuso de mais para se lembrar disso.
- Eu... eu limitei-me a tentar dar-vos o Beijo da Vida.
- Foi precisamente isso que eu disse. Beijastes-me.
- O que não fiz com qualquer intuito amoroso. Limitei-me a tentar reanimar-vos ao partilhar a minha respiração convosco. É uma magia de cura que vi a Ariane pôr
em prática na ilha Encantada.
- É possível que a Ariane faça isso. Mas a verdade é que me haveis beijado.
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- Não fiz nada disso. Eu...
O protesto dela foi interrompido por Xavier, que lhe agarrou a gola do vestido, puxando-a para a frente. A caneca de vinho voou-lhe da mão quando ele a puxou para
junto de si. A boca dele esmagou-se na dela num beijo que foi rápido, intenso e ardente.
- Aí tendes - disse Xavier, soltando-a. - Foi isto que fizestes. De onde eu venho, a isso chama-se um beijo.
com as faces a arder, Jane apressou-se a levantar-se desajeitadamente da cama.
- Pois de onde eu venho, isso é chamado de uma afronta e, se alguma vez tentardes fazer isso de novo comigo, eu... eu tratarei de...
- De me partir o outro braço? - concluiu Xavier prestavelmente.
- Sim! -Jane baixou-se para apanhar os cacos da caneca partida, tratando de limpar o vinho derramado. Só lhe apetecia sair daquela casa e quanto mais depressa melhor,
pôr toda a distância possível entre ela e aquele homem tão desconcertante. No entanto, continuou a prestar-lhe os cuidados necessários num silêncio de cortar à faca.
O facto de Xavier não se mostrar minimamente arrependido, só servia para acrescer ainda mais o quanto se sentia exasperada.
- Não passou de um simples beijo, Jane - disse ele. - Tinha a impressão de que as senhoras inglesas eram liberais com os seus abraços. Numa ocasião em que jantei
com um negociante em Portsmouth, a mulher dele beijou todos os convidados.
Jane comprimiu os lábios, sem querer reconhecer a verdade nas palavras dele. Na qualidade de anfitriã quando o irmão recebia, era frequente que fizesse a mesma coisa,
dando beijos de saudação aos amigos de Ned. Mas esse costume, ditado pela cortesia, não tinha nada a ver com o beijo cheio de ardor que Xavier lhe roubara. Nenhum
dos outros beijos inocentes suscitara em si sensações que ela acreditara estarem dormentes havia muito tempo, a faceta caprichosa da sua natureza que quase fizera
com que a sua reputação ficasse manchada durante a sua juventude. Tinha rezado durante horas a fio e feito penitência durante igual número de horas, acreditando
que tinha conseguido dominar as paixões da sua juventude.
Não admirava, pois, que tivesse ficado muito consternada quando só foi preciso um beijo dado por aquele homem para provar que estava enganada. Aconselhando Xavier
a repousar um pouco, Jane retirou-se para o canto mais afastado do quarto. Instalou-se num banco e pegou na sua costura, na esperança de que ele voltasse a adormecer.
Mas Xavier continuava recostado nas almofadas, o braço bom passando por baixo da cabeça enquanto a observava no outro extremo da alcova.
- Portanto, isto significa que não me é permitido fazer-vos mais perguntas?
Jane puxou a agulha através do tecido com tanta brusquidão que esteve quase a partir a linha.
- Atrevo-me a dizer que continuareis a fazê-lo, com ou sem a minha autorização.
- Como é que uma senhora inglesa tão formal como vós veio parar a esta ilha de bruxas?
Se bem que a própria Jane tivesse feito aquela mesma pergunta a si mesma inúmeras vezes, ficou irritada com a pergunta de Xavier.
- Elas não são bruxas. Chamam-se de Filhas da Terra e são muito generosas e afáveis. Particularmente, a vossa irmã. A ilha dela tem sido um refúgio para inúmeras
pessoas em dificuldades.
- Como vós, Jane? Precisastes de um refúgio? Aposto que sim. Nos tempos que correm, a Inglaterra não é o país mais acolhedor para os católicos.
Jane levantou o olhar da costura, fitando-o com uma expressão de surpresa.
- Como é que sabíeis que eu sou católica?
- Já não se vêem muitos seguidores da nova religião que usem isso respondeu Xavier, fazendo um gesto na direção do objeto que se encontrava no chão perto da janela.
Para seu horror, Jane viu que tinha deixado cair o rosário quando estivera a rezar. Levantou-se de um salto e apressou-se a atravessar o quarto para o apanhar. Fechando
o rosário na mão numa atitude protetora, guardou-o no fundo da algibeira do vestido. Ali, na ilha Encantada, já não era necessário esconder aquela relíquia da sua
fé, mas era difícil perder o hábito de toda uma vida.
- Portanto, deduzo que haveis perdido tudo e fostes forçada a exilar-vos de Inglaterra por causa da vossa fé religiosa, foi isso? - perguntou Xavier.
Mexendo no rosário que tinha na algibeira, pareceu-lhe que ainda ouvia o eco da voz do secretário da rainha, Sir Francis Walsingham, quando a informou da sua sentença.
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"Jane Danvers, toda a vossa fortuna, propriedades e posição social são confiscadas pela coroa. Ser-vos-á concedida uma semana para regularizardes os vossos assuntos
e para abandonardes estas terras para nunca mais regressardes, sob pena de morte."
Na altura, Jane só sentira alívio por ter sido libertada da Torre de Londres e por a sua vida ter sido poupada. Havia sido preciso um ano inteiro e uma interminável
sucessão de dias no exílio para poder ter plena consciência da dureza da sua sentença, de tudo o que havia perdido. Engoliu em seco e respondeu, por fim, à pergunta
de Xavier.
- Sim, tendes razão no que dizeis. Eu... eu nunca mais poderei voltar para a minha casa.
- Eu não diria nunca, minha senhora. Não se os rumores tiverem algum fundo de verdade.
- Que rumores?
- Da invasão espanhola.
- Há muito tempo que o rei Filipe faz essa ameaça - retorquiu Jane, franzindo as sobrancelhas inquieta.
- De acordo com o que fiquei a saber durante as minhas viagens, o assunto já deixou de ser uma mera ameaça.
Apesar de estar determinada a manter-se distanciada de Xavier, Jane aproximou-se mais do leito.
- O que é que ouvistes dizer?
- Os espanhóis reuniram uma grande armada, a maior flotilha de navios de guerra jamais vista, composta, talvez, por trezentos galeões, bem como inúmeros barcos de
fundo chato que se destinam ao transporte de cavalos, armas e legiões de soldados bem treinados, com destino à costa inglesa.
- Q... quando?
- Pode ser a qualquer altura - respondeu Xavier com um encolher de ombros de indiferença. - Diz-se que os nobres de elevada estirpe de Espanha já começaram a lançar
as sortes para verem como é que as propriedades inglesas serão distribuídas entre eles. E é claro que alguns desses navios transportarão os monges da Inquisição,
acompanhados de todos os seus instrumentos de tortura, que se destinam a... digamos... persuadir os vossos concidadãos tresmalhados a regressarem à verdadeira fé
religiosa.
"A rainha que vos sentenciou ao exílio terá de fugir para não ser levada a julgamento e condenada a morrer na fogueira por heresia. Portanto, como
estais a ver, por esta altura no próximo ano é muito possível que já estejais de regresso à vossa pátria, a celebrar e a lançar fogo de artifício.
- Ohhh... -Jane afastou-se da cama, a sua mente horrorizada com as imagens que Xavier pintara com as suas palavras descuidadas. - Por muito que eu anseie voltar
à minha pátria, como é possível que haveis pensado que eu rejubilaria... Que pudesse querer... -Jane levou a mão à boca, sentindo-se como se estivesse prestes a
vomitar, uma sensação muito semelhante a uma de pânico que a privasse de todo o ar que tinha nos pulmões.
Jane deu meia-volta e fugiu do quarto, mal se apercebendo de que Xavier a chamava pelo seu nome. Saiu porta fora da casa, ignorando os olhares de espanto das mulheres
que se encontravam por perto, na esperança de conseguirem ver o náufrago.
Jane passou por elas a correr em direção ao areal, sentindo o coração a bater como se quisesse saltar-lhe do peito. Aos tropeções, subiu ao rochedo mais alto que
conseguiu alcançar, como se, de uma maneira qualquer, pudesse encurtar a distância que a separava do canal, conseguindo ver com os seus próprios olhos que a sua
pátria, a Inglaterra, continuava em segurança.
"Uma armada... a maior flotilha de navios de guerra jamais vista... para transportar cavalos, armas... soldados até à costa inglesa."
As palavras de Xavier ecoavam-lhe retumbantes no pensamento, como a marcha implacável das pesadas botas dos soldados espanhóis que invadissem pequenas aldeias e
lugarejos, abafando os gritos das mulheres e crianças aterrorizadas. Não conseguia impedir-se de imaginar os caminhos, em que a quietude reinava habitualmente, banhados
de sangue, o fumo do fogo de canhões a enegrecer o ar e as pequenas casas com telhados de colmo que eram pasto das chamas.
Ou dar-se-ia o caso de o fumo ter origem em algo mais sinistro, o crepitar dos feixes de madeira amontoados aos pés de uma mulher desafiadora que tinha um cabelo
ruivo flamejante. Isabel...
Jane estremeceu e fechou os olhos, esforçando-se por banir do pensamento aquelas imagens tão perturbadoras. Tinha havido uma altura em que se sentira tão irada com
Isabel Tudor. A rainha não era uma fanática religiosa. Quando subiu ao trono, tinha prometido moderação, mas havia acabado por ceder às pressões do seu conselho
privado, promulgando leis mais duras contra os seus súbditos da Igreja Católica Romana.
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Contudo, o azedume que Jane sentira pela mulher que assinara a ordem que a sentenciara ao exílio era atenuado por outras recordações, a imagem de uma Isabel mais
jovem que procedera com tanta generosidade para com as duas crianças órfãs, apesar de o pai delas ter cometido uma traição inqualificável contra a coroa inglesa.
Jane recordava-se de como a soberana apertara com força a mão do irmão, duas crianças atemorizadas que se agarravam uma à outra enquanto eram levadas à régia presença
da rainha.
com doze anos, Jane já tinha tido consciência de que não podia continuar a dar-se ao luxo de ser uma criança. Muito embora tremesse, ergueu a cabeça, preparando-se
para confrontar a mulher que os seus familiares rotulavam de herege, uma pessoa demoníaca e uma bruxa.
Dizia-se que Isabel Tudor era uma mulher vaidosa, sempre trajada com dispendiosos vestidos volumosos que mantinham os seus súbditos à distância. Mas nessa manhã
ela vestira-se com bastante simplicidade para uma rainha. Jane não viu ajezabel muito pintada que o seu pai costumava descrever, vendo apenas uma mulher alta e esbelta
que tinha um cabelo ruivo encaracolado e uns olhos de expressão penetrante encimados por umas sobrancelhas finas e arqueadas.
Jane fora ensinada a fazer a vénia de maneira correta. Mas, em lugar de a fazer, tinha colocado Ned atrás de si para proteger o irmão. Determinada a inteirar-se
do pior, falou de um fôlego.
- Tencionais aprisionar-nos na Torre de Londres e cortar-nos a cabeça?
Vários dos cortesãos presentes haviam ficado com a respiração suspensa de tão surpreendidos com a frontalidade da pergunta dela. Os lábios da rainha mostraram um
pequeno trejeito, mas replicou circunspecta.
- Não, menina Jane. Já fui obrigada a derramar o sangue de demasiados dos meus súbditos.
A voz da soberana era muito mais afável do que Jane poderia ter imaginado. Ned atreveu-se a olhar para sua majestade por detrás das saias da irmã.
- Nesse caso, o que é que tencionais fazer connosco? - perguntou Jane.
- Tenciono pôr-te, bem como o teu irmão, sob a tutela do conde e da condessa de Shrewsbury. Eles passarão a ser os vossos tutores até o teu irmão atingir a idade
de herdar as suas propriedades.
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- As suas... as suas propriedades? Isso quer dizer que as nossas terras não vão ser confiscadas?
- Não, Jane. Não acredito que crianças inocentes devam pagar pelos pecados dos pais. Tudo o que peço é que tanto tu como o teu irmão passem a ser súbditos sinceros
e leais. Parece-te que possas fazer isso?
Jane ficou a olhar para a rainha que lhe tinham ensinado desde criança que era o diabo em pessoa, determinada a destruir a verdadeira fé religiosa. Mas só via uma
mulher cuja generosidade fazia com que sentisse uma forte vontade de se atirar para as suas saias, desatando a chorar.
- Eu... eu prometo tentar - replicou titubeante.
- Esplêndido, porque, de vós dois, tu és a mais velha. O teu irmão seguirá o teu exemplo e por isso tens de o orientar, mas estou em crer que estarás à altura da
tarefa. - A rainha pegou no queixo de Jane, inclinando-o para cima. - Consigo ver em ti uma personalidade muito forte, minha menina.
Jane corou, não cabendo em si de contente pelo elogio da rainha, mas também se sentia confusa.
- O meu pai sempre me disse que uma personalidade forte não é apropriada a uma senhora. Dizia que as mulheres devem ser gentis e cordatas.
- Somente por fora. Como aço embainhado em veludo, é como uma mulher deve ser para poder sobreviver. - O sorriso da soberana tornou-se mais sombrio, a par de uma
expressão de cansaço, quando acrescentou: - E, por Deus, eu sei o que estou a dizer quando falo de sobrevivência.
Aquelas recordações esbateram-se como se sob a superfície cintilante das águas do mar. Quando Jane voltou ao presente, levou os dedos ao queixo, como se ainda conseguisse
sentir o toque suave da mão de Isabel.
Jane desejava que a rainha se recordasse de tudo o que tinha aprendido sobre como sobreviver, porque Isabel iria precisar de toda a sua força e de toda a sua coragem
nos próximos tempos. Juntou as mãos, mas hesitou, perguntando-se se seria errado apelar a Deus para que poupasse a vida de uma rainha herege.
Mas optou por se deixar cair de joelhos, intercedendo pela rainha, apelando a uma figura mais gentil e feminina. Pediu à Virgem Santíssima que fosse misericordiosa
para com a sua rainha e a ilha que era a sua pátria e que corria tanto perigo, rezando como nunca tinha rezado antes.
Xavier virou a cabeça na sua almofada para poder ver as sombras do fim de tarde que se projetavam através do soalho. Acreditava que tinha visto o que era o Inferno
durante os meses que passara acorrentado num galeão espanhol. Todavia, talvez tivesse preferido ter voltado a estar agrilhoado aos remos do que a humilhação do seu
atual cativeiro. O braço bom era-lhe inútil e tinha o corpo tão enfraquecido que dependia de um bando de mulheres faladoras para satisfazer as suas necessidades
mais simples. Nem sequer podia mijar sem ajuda.
No entanto, estabeleceu um limite quando Madame Partierre entrou no quarto com um jarro de água. Só faltou à velha dar um estalido com os lábios quando o informou
de que tencionava lavá-lo.
- O diabo é que o fareis! - ripostou Xavier. - Onde é que está a Jane? Quero a Jane.
- Nesse caso, não devíeis tê-la perturbado, não vos parece?
- Onde é que ela foi? Aconteceu-lhe alguma coisa?
A velha jarreta enfurecida recusou-se a responder-lhe. Mas, do mal o menos, desistiu dos seus esforços de o lavar. Levando consigo os dejetos de Xavier, deixou-o
sozinho a ferver e a praguejar, amaldiçoando a sua total impotência.
Madame Bevans, que cuidara dele logo que chegou à ilha, tinha-lhe dado uma camisa de dormir, que pertencera ao falecido marido, mas estava-lhe tão larga que o cobriria
completamente se decidisse levantar-se para ir à procura de Jane. Mas continuava incapaz de dar mais do que alguns passos sem cair.
Tamborilava com as pontas dos dedos no colchão ao lembrar-se de como Jane lhe parecera perturbada quando saiu intempestivamente do
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quarto. Perguntou-se se teria feito com que ela chorasse. Por se ter acostumado tanto aos ataques de histerismo da mãe, havia ficado imune às lágrimas das mulheres.
Mas, sem saber dizer porquê, imaginava que Jane choraria mais silenciosamente e nunca onde pudesse ser vista por alguém. Aquele pensamento incomodou-o mais do que
queria admitir.
Xavier soltou um fundo suspiro tormentoso. O pai sempre lamentara a sua falta de finura no trato com as mulheres. Recordava-se de uma ocasião em particular em que
tinham atracado no porto de uma colónia de huguenotes franceses na costa da Florida. Xavier apostara com um dos membros da tripulação que seria capaz de beijar,
pelo menos, vinte raparigas durante os primeiros dez minutos depois de chegarem a terra.
Saíra do navio cheio de entusiasmo, assediando todas as mulheres com que se cruzava e fazendo com que uma rapariga desatasse a gritar pela mãe, enquanto outra robusta
moçoila lhe deu uns bons tabefes. No entanto, a cólera desta não havia sido nada quando comparada com a do pai, que agarrou Xavier pelo cachaço, arrastando-o de
volta ao navio.
Mon Dieu, Louis! Mas o que diabo é que te deu para te comportares desta maneira? Este não é o comportamento de um gentil-homem, assediar meninas, fazendo delas objeto
de uma aposta grosseira. As mulheres devem ser sempre tratadas com uma delicada cortesia. Não gostam de ser importunadas e atormentadas por rufias como tu."
"Não gostam?", perguntara Xavier, observando duas das raparigas que tinha "assediado" mais abaixo, no cais, a acenarem-lhe e rindo-se tolamente. "Nesse caso, porque
é que continuam a voltar para mais?"
O pai ficara de cenho carregado ao ouvir aquela pergunta para a qual não tinha resposta. O castigo que impôs a Xavier foi esfregar o convés.
À medida que a tarde ia chegando ao fim, Xavier compreendeu que Jane não voltaria, arrependendo-se da maneira como a tratara. Não do beijo. Tinha gostado de ter
feito com que ela tivesse ficado com as faces afogueadas, além de se ter sentido intrigado ao sentir uma leve recetividade da parte dela naqueles lábios suaves e
deliciosos sempre tão sérios. Contudo, lamentava ter-lhe causado tanta perturbação com a notícia que lhe dera sobre a armada espanhola.
Uma vez que Xavier era insensível às questões de religião, além de não sentir nenhum sentimento de lealdade para com pátria alguma, nunca lhe ocorrera que Jane ficaria
conturbada ao saber que a Inglaterra seria atacada. Muitas pessoas ficariam jubilantes pela queda da rainha que as banira do seu país.
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Apercebia-se de uma generosidade de espírito em Jane que Xavier nunca teria pensado ser possível. Era algo que não compreendia, mas desejava que Jane voltasse para,
pelo menos, poder pedir-lhe desculpa e tentar penitenciar-se perante ela.
À medida que o tempo se arrastava, sentia as pálpebras cada vez mais pesadas e estava prestes a voltar a adormecer quando ouviu uns passos leves na divisão contígua.
- Jane? - chamou ansioso, mas quando virou a cabeça ficou dececionado e irritado ao ver duas figuras pequenas que se haviam detido na ombreira da porta.
Eram duas pequenitas que tinham um cabelo muito louro e uns olhos azuis enormes, e de expressão angélica, que o fitavam com toda a atenção, a mais pequena e mais
nova das duas a chuchar no polegar enquanto se agarrava a uma boneca de trapos.
Xavier soergueu-se apoiado num cotovelo.
- Isto não é nenhum jardim zoológico e eu não sou nenhum urso para ficarem embasbacadas a olhar para mim. Ponham-se a andar.
A voz vociferante, que mais parecia um rugido, teria sido suficiente para que os homens da sua tripulação já não soubessem onde se meter, mas aquelas duas fedelhas
não pareciam minimamente intimidadas.
- Se não és um urso, porque é que ruges? - perguntou a mais velha numa atitude de desafio, aventurando-se a aproximar-se mais dele.
- Eu não disse que não era um urso, apenas que não gostava que me olhassem com fixidez. De facto, sou uma besta e costumo devorar meninas pequeninas ao pequeno-almoço.
A mais nova encolheu-se toda, chegando-se mais à irmã. A mais velha franziu o nariz arrebitado e fungou desdenhosa.
- Nunca nos comerias porque és o nosso tio.
- O diabo... é que sou. Quem é que vos encheu a cabeça com tais disparates?
- A minha irmã mais velha, a Seraphine. Eu chamo-me Lúcia Remy - disse a garota, espetando um polegar no peito, e depois apontou para a mais pequena. - E esta minha
irmã chama-se Ninon.
Xavier franziu os sobrolhos. Portanto, quem quer que as fedelhas fossem, não eram filhas de Ariane. Supunha que já lhe devia ter ocorrido que as suas meias-irmãs
já deviam ser casadas e que até já teriam filhos. Mas a verdade é que já se sentia constrangido de sobra face ao seu papel de irmão. A perspetiva de também ser tio
era absolutamente alarmante.
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- Não sei o que é que essa Seraphine vos disse - continuou Xavier. - Mas ela está enganada.
- A Seraphine nunca se engana - informou-o Lúcia com altivez.
- Na verdade, ela até disse que eras um meio-tio - acrescentou ela, inclinando a cabeça de lado enquanto o examinava com um acentuado franzir das sobrancelhas. -
Portanto, que metade de ti é que falta?
- As minhas capacidades mentais, não sei do paradeiro delas.
A resposta surpreendeu Lúcia, que soltou uma pequena risada, um riso tão contagiante que Xavier não pôde impedir-se de sorrir. Concentrou a sua atenção na mais novinha,
cujos olhos azuis estavam muito abertos acima da barreira da mão fechada enquanto chuchava no polegar.
- E quanto a vós, menina Ninon? Não tendes nada a dizer da vossa lavra? Dar-se-á o caso de não saberdes falar?
- É claro que a Ninon sabe falar. Quando tem alguma coisa a dizer.
- Mas que garota tão sensata. Petite Ninon, decerto que tendes noção de que esse polegar, eventualmente, acabará por cair se continuares a chuchá-lo com tanto vigor.
Ninon tirou o polegar da boca durante o tempo suficiente para o olhar com uma expressão sobranceira.
- Imbecil.
Lúcia ficou radiante e orgulhosa com a irmã.
- Essa é a nova palavra da Ninon. Aprendeu-a com Madame Partierre.
- É uma palavra muito útil e sabeis pronunciá-la maravilhosamente, mademoiselle.
A boca em forma de botão de Ninon abriu-se num sorriso rasgado que encantou Xavier, a despeito de si próprio. Já quase tinha começado a pensar que ser tio talvez
não fosse assim tão alarmante, quando foram interrompidos por alguém que chamava as garotas.
- Lúcia! Ninon!
Xavier viu uma jovem mais velha que, entretanto, se aproximara da ombreira da porta. Seria a já mencionada irmã Seraphine?, interrogou-se Xavier. Mas a aparência
mais carregada da rapariga de cabelos escuros constituía um contraste gritante com aquelas duas garotas tão louras. As palavras seguintes dissiparam qualquer noção
de que ele tivesse laços de família com as duas.
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- Não deviam estar aqui - disse às garotas. - A vossa irmã tem andado numa grande aflição à vossa procura por todo o lado. A Seraphine vai ficar muito zangada quando
souber que fugiram.
- Não fugimos para lado nenhum - retorquiu Lúcia. - Só viemos conhecer o nosso meio-tio.
A rapariga mais velha ignorou Xavier, sem que o seu olhar se desviasse por uma fração de segundo que fosse na direção dele. Apoiando as mãos firmemente nas ancas,
fez cara de zanga quando olhou para as duas garotas.
- Não deviam ter vindo aqui sem autorização. E agora toca a andar.
- Mas Megerah... - lamuriou-se Ninon.
- Calada! - Lúcia espetou um dedo nas costelas da irmã mais pequena. - Ela não gosta que a tratem por esse nome.
Enquanto a de cabelos escuros levava a toque de caixa as suas duas sobrinhas, que não paravam de protestar, em direção à porta, Xavier franzia os sobrolhos.
Megera? A mal-afamada jovem feiticeira que levara a rainha Catarina a contratá-lo para que a encontrasse e capturasse? A lendária Rosa de Prata. Aquela migalha de
gente magra e insignificante? com certeza que não.
Ignorando as dores e a rigidez do corpo, Xavier esforçou-se por se soerguer para poder vê-la melhor enquanto ela apressava as duas pequenitas, encaminhando-as para
a porta. Estava à espera que ela desaparecesse juntamente com as garotas.
Portanto, ficou surpreendido quando ela voltou sozinha, aproximando-se vagarosamente da cama. O corpo a desabrochar indicava que seria uma adolescente, mas parecia
pequena para a idade, dando a impressão de que o pescoço era esguio de mais para poder suportar uma massa tão grande de cabelo castanho-escuro. O sol daquele fim
de tarde pintava sombras num rosto pálido cujas feições não se destacam por nada em especial, à exceção dos olhos. Xavier nunca tinha visto uns olhos de expressão
tão envelhecida e triste numa fisionomia tão jovem.
- Megera? - murmurou ele hesitante.
- Chamo-me Meg. Mas vós podeis tratar-me por menina Margaret Wolfe.
O tom de voz dela era tão hostil como o seu olhar. Xavier até poderia ter achado graça àquilo, se não houvesse qualquer coisa na rapariga que lhe causava algum mal-estar.
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- Muito bem, menina Margaret Wolfe. E o que é que eu fiz para vos desagradar?
- Nada. Nem sequer vos conheço.
- Sendo assim, por que razão é que pareceis que muito vos agradaria espetar uma estaca no meu coração?
Meg obrigou-se a esboçar um sorriso forçado.
- Estais redondamente enganado, monsieur. Não vos desejo mal nenhum. De facto, trago-vos uma oferta. - com estas palavras, mostrou um pequeno frasco cheio de um
líquido translúcido. Xavier olhou-a com uma expressão de desconfiança.
- Mas o que diabo é isso?
- Um elixir curativo que preparei. Tenho andado a aprender com a Senhora da Ilha Encantada, que já me ensinou muita coisa.
Porque é que Xavier tinha aquela sensação tão inquietante que lhe dizia que o que quer que ela tivesse no frasquinho, não era nada que Ariane lhe tivesse ensinado
a preparar? Ficou de cenho carregado ao recordar-se do que a rainha Catarina lhe dissera a respeito de Megera.
"Já tive oportunidade de ver provas do poder dela. Ela sabe plantar rosas mortíferas, como far uma faca com uma lâmina tão fina como uma agulha que pode injetar
veneno diretamente nas veias de um homem."
Quando Meg lhe estendeu o pequeno frasco, Xavier não fez qualquer movimento para lhe pegar.
- Não, muito obrigado, minha querida. Estou em crer que já tenho a minha conta de poções com as que tomei durante os últimos dias.
- Preferis continuar deitado nessa cama sem poderdes fazer nada?
- Parece-me que tenho poucas alternativas, a menos que me afirmeis que esse vosso frasquinho contém uma poção mágica.
- Não é mágica. Não sarará o osso partido mais depressa, mas esta poção possui propriedades revigorantes. Permitir-vos-á recuperar as forças.
Desarrolhou o frasquinho, estendendo-o a Xavier, insistindo num tom autoritário.
- Tomai. Bebei esta infusão.
- Não me parece.
- Não é nenhum veneno, se for esse o vosso receio - acrescentou ela como se lhe tivesse lido os pensamentos. - Provar-vos-ei que não.
- Dito isto, inclinou o frasco e bebeu um gole. Limpou a boca com as costas da mão, voltando a estender-lhe o frasquinho com uma expressão que o desafiava.
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Xavier pegou no frasco e cheirou o líquido. A substância era inodora. Enquanto o tinha na mão, considerando se devia beber aquilo ou não, não lhe era difícil imaginar
o que Pietro lhe teria dito, a mesma coisa que o homem alto de raça negra comentara no primeiro dia em que Xavier se aventurara a provar a poção que o xamã lhe havia
preparado.
"A tua irresponsável curiosidade será a tua morte um dia destes, meu amigo.-"
Xavier hesitou por mais uns momentos, após o que bebeu um pequeno gole do elixir de Meg. Só lhe soube a água, mais nada. Franziu os sobrolhos, perguntando-se se
aquela estranha rapariga estaria a troçar de si, pregando-lhe uma partida para se rir à sua custa.
Mas, no momento seguinte, sentiu uma explosão de calor que começou a percorrer-lhe as veias, uma sensação como nunca experimentara, até mesmo depois de ter bebido
uísques extremamente fortes.
Os seus sentidos ficaram toldados por uns momentos, após o que se desanuviaram até começar a sentir-se mais como o homem que havia sido antes de ter dado à costa
naquela maldita ilha.
Fez menção de querer beber outro gole avidamente, quando Meg o impediu. Tirou-lhe o frasquinho da mão, voltando a rolhá-lo.
- Só deveis tomar um gole de tantas em tantas horas, caso contrário, a poção poderá produzir um efeito demasiado forte. Até poderá fazer com que o vosso coração
expluda.
- Muito obrigado pelo aviso. Talvez devêsseis ter mencionado isso antes de eu beber essa poção.
- Eu estava atenta à porção que bebíeis. Não teria permitido que morrêsseis.
- Sinto-me comovido com o vosso cuidado, mademoiselle - retorquiu Xavier, recostando-se nas almofadas. - Mas, tal como haveis dito, não me conheceis. Portanto, porquê
tanto interesse no meu bem-estar?
- Porque quero que vos restabeleceis o suficiente para poderdes abandonar a ilha Encantada, e quanto mais cedo melhor. Bem vedes, sei bem o que é que vos trouxe
aqui, monsieur, tal como sei o que pretendeis.
Xavier ficou muito surpreendido, mas recompôs-se rapidamente, ocultando o alarme que sentia por detrás de um sorriso brando.
- Como é que poderíeis saber uma coisa dessas, mademoiselle Quando nem sequer eu próprio tenho bem a certeza do que diabo é que estou a fazer aqui.
Ela olhou-o com fixidez. Se Xavier tinha pensado que o olhar da Senhora da Ilha Encantada era intenso, constatava que não era nada comparado
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com o daquela rapariga. Os olhos de Meg eram penetrantes como a lâmina de uma espada, sondando e explorando os pensamentos no mais fundo da sua mente, tentando fazer
com que todos os seus pensamentos fugitivos saíssem do esconderijo.
Embora repelisse aquela tentativa de devassa mental, Xavier passou os dedos pela fronte, como se estivesse à espera de encontrar sangue a escorrer de um orifício
aberto na sua testa.
- Talvez eu não possa dizer com precisão quais são as vossas intenções, monsieur - murmurou Meg, baixando as pestanas -, mas previa a vossa chegada.
- O quê? Nos vossos sonhos? - perguntou Xavier desdenhoso.
- Não, na minha bola de cristal, que me permite adivinhar o futuro. Tive a visão de um enorme e feroz gato preto que anda furtivamente pela selva.
Um gato preto como o jaguar em que Xavier se transformava sempre que mergulhava num dos seus transes? Uma vez mais, teve de fazer um esforço para ocultar o muito
que se sentia desconcertado com o sentido de perceção daquela jovem. Conseguiu encolher os ombros.
- Mas o que é que um gato preto tem a ver comigo?
- Não sei - respondeu Meg, fitando-o com uma expressão de fúria. - Só tenho a certeza de que existe uma ligação qualquer e... e é melhor que deixeis Lady Jane Danvers
em paz e sossego. Se lhe fizerdes algum mal...
- Parai aí, mademoiselle - atalhou Xavier desabrido, erguendo uma mão para a calar. - O que é que a Jane tem a ver com o que quer que seja e porque é que receais
que eu possa fazer-lhe mal?
- Porque sois um predador, tal e qual como esse jaguar. Acredito que pudésseis ser descuidado e cruel e a Jane é, para mim, uma amiga muitíssimo especial. Por isso,
se lhe fizerdes mal, juro-vos que eu... vos rogarei uma praga de maneira a que as vossas partes masculinas fiquem mirradas. E acreditai que posso fazer isso realmente
- acrescentou veementemente.
- Por Deus, acredito no que dizeis - murmurou Xavier, resistindo ao impulso de levar a mão às suas partes privadas para as proteger.
- Ótimo. Só quero que nos compreendamos um ao outro com toda a clareza. - Meg pousou o pequeno frasco em cima da mesa de cabeceira e saiu do quarto bruscamente.
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Xavier soltou a respiração com lentidão. Quaisquer dúvidas que lhe pudessem restar sobre Meg Wolfe ser ou não Megera dissiparam-se de imediato.
Talvez Catarina de Médicis não fosse inteiramente louca na sua obsessão em encontrar aquela rapariga. Megera era, para dizer o mínimo, invulgar e mais do que um
pouco desconcertante. Não admirava, pois, que Catarina estivesse disposta a pagar uma fortuna para se apoderar daquela jovem feiticeira.
Ou, ainda que não fosse uma grande fortuna, pelo menos era uma bela maquia, o suficiente para equilibrar as finanças de um marinheiro na miséria que nem sequer sabia
ao certo se continuava a ter um navio que pudesse chamar de seu.
Xavier fez uma careta de desagrado consigo próprio, envergonhado pela direção que os seus pensamentos haviam enveredado. Colocou o pequeno frasco debaixo da almofada,
esforçando-se por banir aquela tentadora possibilidade da sua mente.
Xavier fechou os olhos e o seu último pensamento, antes de adormecer, foi que, quanto mais depressa conseguisse sair daquela maldita ilha, melhor seria para si.
De facto, para toda a gente.
O firmamento noturno era iluminado pelo fogo, as chamas a propagarem-se pela pequeníssima colónia francesa. Xavier conseguia sentir o calor abrasador a empolar-lhe
apele, o suor a escorrer-lhe para os olhos. Cambaleava a caminho do cais onde os colonos procuravam atabalhoadamente a segurança do Miribelle, a única maneira de
poderem escapar aos saqueadores espanhóis que se aproximavam.
A noite era pontuada por confusão e fumo cerrado. O coração de Xavier batia mais depressa, reverberando com os gritos de terror dos que passavam por si, empurrando-o.
O seu pai era a única pessoa a mostrar calma, enquanto tratava de encaminhar os colonos em estado de frenesim para as chalupas compridas; o chevalier era uma referência
heróica no meio de toda aquela loucura.
Agarrado à perna que havia sido ferida de raspão por uma bala de pistola, Xavier avançava a coxear. Quando viu o pai a carregar a última chalupa, chamou.
- Monsieur, aguardai!
Mas a sua voz enrouquecida e dorida por causa do fumo, saiu-lhe da boca como um crocitar roufenho. Xavier olhava atónito quando o último barco se afastou do cais,
os remos a impelirem-no para a segurança do Miribelle. O chevalier mem sequer lançou um último olhar para trás.
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A respiração de Xavier saiu-lhe da boca sob a forma de um soluço de pranto quando se viu rodeado pelos soldados espanhóis. Foi forçado com brutalidade a ajoelhar-se,
após o que lhe amarraram as mãos atrás das costas.
"Meu pai!"
O corpo de Xavier foi sacudido por um sacão que fez com que quase caísse da cama ao esforçar-se freneticamente para conseguir sair daquele pesadelo. Abriu muito
os olhos, constatando que aquela casa que lhe servia de prisão estava mergulhada na escuridão da noite; pela janela, Xavier via a Lua pálida que tinha ocupado o
lugar do Sol.
Deixou-se cair para trás, passando a mão pela face toda suada para dissipar os últimos vestígios do pesadelo. Havia vários anos que não era perturbado por aquele
sonho em especial e, agora, com a diferença de que nunca tinha sido tão vívido. Perguntou-se se isso seria um efeito secundário da infusão de bruxa da jovem Megera.
Perguntou-se ainda mais constrangido se teria gritado. Tinha a sensação de que talvez tivesse sido o seu próprio grito que o despertou do sonho, o que o deixou extremamente
esmorecido. As suas suspeitas foram confirmadas quando ouviu o barulho de alguém na divisão contígua.
- Merde! - resmungou entre dentes. Virou a cabeça na direção da porta. Portanto, qual das suas carcereiras estava prestes a aparecer-lhe e conseguiria furtar-se
ao interesse e curiosidade delas que tanto o constrangia fingindo que estava a dormir?
Viu uma figura na ombreira da porta, iluminada pela chama da vela que trazia. Ela própria parecia uma figura saída de um sonho, a sereia das suas visões, o cabelo
louro e sedoso caído em volta dos ombros. Mas tratava-se de uma sereia muito prática e modesta que usava um xaile de lã escura a que dera um nó por cima da camisa
de dormir branca.
- Jane! - exclamou mortificado, sentando-se, ao aperceber-se do tom anelante que transparecia da sua voz.
Ela aproximou-se da beira da cama num passo apressado, erguendo a vela para poder ver-lhe o rosto.
- O que é que se passa? Ouvi-vos a gritar. Estais com dores? Xavier protegeu os olhos da luz da chama da vela.
- Não, estou bem. - "Agora.
Franzindo a testa como se não acreditasse no que ele lhe dizia, Jane colocou a vela em cima da mesa de cabeceira e pousou a mão na fronte dele. Xavier sentiu os
dedos dela tão frescos e balsâmicos, sem conseguir conter um suspiro de contentamento. Jane ficou com uma expressão intrigada.
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- Não me parece que estejais a ficar com febre, mas apesar disso estais encharcado em suor.
- Provavelmente, porque está um pouco de calor aqui - mentiu ele.
- Madame Bevans insistiu em fechar a janela.
Jane tratou de a abrir, após o que voltou a aproximar-se do leito para pegar na vela.
- Já está aberta. Precisais de mais alguma coisa?
- Não, apenas...
- Se precisardes de mim, estou a dormir num colchão na cozinha. Só tendes de me chamar.
Jane teria saído do quarto tão depressa como chegara se ele não tivesse conseguido agarrá-la por um braço para a impedir. Apesar de ter ficado rígida quando ele
lhe tocou, não aparentava estar irritada com ele, só determinada a manter distância dele. O clarão da chama da vela revelava um
rosto que parecia pálido e tenso, com umas olheiras escuras de que ele receava ser culpado devido às suas palavras imprudentes.
- Jane, eu... eu lamento o que sucedeu há algumas horas - disse Xavier num tom hesitante. Já se vira obrigado a pedir desculpa àquela mulher tantas vezes que, refletiu,
já tinha obrigação de fazer melhor do que aquilo.
- Isso não tem grande importância, monsieur. Tal como vos disse antes, não sou nenhuma donzela tola para continuar a afligir-me por causa de um beijo que me foi
roubado.
- Oh, não vos estou a pedir desculpa por isso. Gosto de beijar mulheres bonitas, do que desfruto muito desde que larguei os cueiros.
Tinha esperança de levá-la a sorrir, mas quando concluiu que não teria êxito, continuou.
- O que lamento é ter-vos preocupado com a minha conversa sobre a armada espanhola. Nunca esperei causar-vos tanta perturbação.
- Por eu ser católica? -Jane ergueu o queixo orgulhosamente.
- Também sou inglesa e não sois capaz de imaginar como a minha nacionalidade me tem dificultado a vida, dividida entre a lealdade à minha pátria e a minha fé religiosa.
- Não, lamento dizer que me é impossível imaginar isso.
Quando fui forçada a exilar-me, pensei que, pelo menos, poderia ir à missa sem recear ser presa, que conseguiria encontrar alguma paz e sossego. Mas agora dizeis-me
que a Inglaterra corre perigo devido à Espanha e à Inquisição... - A voz faltou a Jane, as pestanas a secarem o véu lacrimoso
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nos olhos. - Nem sequer posso rezar, pedindo a Deus que esta guerra seja evitada e que mantenha a minha pátria em paz, sem sentir que estou a cometer um pecado pelo
qual devo penitenciar-me.
Xavier contorceu-se. Sentia que era o último homem à face da Terra capaz de aconselhar alguém a respeito de assuntos religiosos, mas não conseguia suportar ver Jane
tão atormentada.
- Valha o que valha a minha opinião, vinda de alguém que tem um pouco de pagão, não me parece que Deus teria qualquer objeção em ouvir qualquer prece pela paz e
segurança. Além disso, tenho a certeza de que nunca haveis feito nada em toda a vossa vida de que tenhais de vos penitenciar.
Jane pestanejou com força para conter as lágrimas.
- As vossas palavras devem-se ao facto de não me conhecerdes muito bem, monsieur.
- Pelo menos, sei o suficiente a respeito desta invasão espanhola para poder dizer-vos que não me parece que a Inglaterra corra grande perigo.
- Não corre grande perigo!? De uma armada com a dimensão daquela que me descrevestes, para já não mencionar que a Espanha é a nação mais poderosa do mundo? -Jane
abanou a cabeça. - Por muito alarmada que eu me tenha sentido por causa do que me dissestes, dou muito valor à vossa franqueza, muito mais do que se tentásseis tranquilizar-me
com mentiras piedosas.
- Pensais que eu mentiria, milady? - perguntou-lhe Xavier com uma careta risonha. - Bem, sim, é muito provável que mentisse. O que faço constantemente, mas não nestas
circunstâncias. Existem outros fatores que eu vos teria explicado se não tivésseis saído daqui tão apressadamente antes de eu ter tempo para os explicar. Vinde sentar-vos
ao meu lado e eu dir-vos-ei - acrescentou Xavier, batendo no espaço vazio na cama ao seu lado. Ao ver que ela hesitava, acrescentou: - Prometo-vos que me portarei
como um gentil-homem.
"Pelo menos, até conseguir fazê-lo", sentiu-se tentado a acrescentar quando Jane pousou a vela e se sentou na beira da cama. Mas guardou o comentário para si próprio,
apercebendo-se de que seria preciso muito pouco para que Jane se apressasse a deixar o quarto. Nem sequer tentou pegar-lhe na mão quando retomou a palavra.
- O meu pai tentou ensinar-me muitas coisas e tenho de admitir que não apreendi grande coisa. Contudo, há uma lição que eu acatei. O chevalier
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sempre disse que não eram as armas mais potentes ou até mesmo a superioridade numérica por si só que determinam o desfecho de uma batalha, mas sim a coragem e as
capacidades de chefia dos comandantes.
"O rei Filipe entregou o comando da sua armada ao duque de Medina Sidónia. Segundo o que me chegou aos ouvidos, o duque chegou ao ponto de se ajoelhar, suplicando-lhe
que não o nomeasse como almirante da armada.
- Isso quer dizer que esse duque espanhol não é um homem valente e corajoso?
- Pelo contrário, ele é bastante valente. O duque é um comandante muito competente, mas em terra. Os seus conhecimentos de batalhas navais são muito reduzidos. De
facto, até ouvi dizer que sua senhoria nem sequer é capaz de subir a bordo de um navio sem ficar terrivelmente agoniado.
- A sério? - Jane inclinou a cabeça de lado, sendo manifesto que queria acreditar no que ele lhe dizia, embora estivesse duvidosa.
- Juro-vos por minha honra que foi isso mesmo que ouvi. E é este homem que terá pela frente formidáveis capitães como John Hawkins e Francis Drake? O duque não terá
a mínima possibilidade de vencer. Eu andei no mar com o capitão Drake durante quase um ano e posso dizer que nunca encontrei um marinheiro mais competente nem um
combatente mais aguerrido.
- Haveis andado embarcado com Sir Francis Drake? - perguntou Jane num sussurro respeitoso.
- Sim e agora tendes esse ar de admiração reverente no rosto com que as senhoras ficam sempre que Sir Francis é mencionado. O que é deveras irritante.
- Qual é o aspeto dele?
- É mais baixo do que eu e não é tão bem-parecido, nem de longe, nem de perto. - Este comentário arrancou, finalmente, um sorriso a Jane.
- Como é que andastes embarcado com Sir Francis? Pensei que éreis capitão do vosso próprio navio?
- Ainda não há cinco anos, quando conheci o capitão Drake, eu... - Xavier hesitou. Aquela não era uma parte do seu passado de que lhe agradasse falar, tal como não
gostava de a recordar, mas com Jane à espera da sua resposta tão expectante, não lhe restava outra alternativa que não fosse prosseguir.
"Eu era um convidado forçado da marinha espanhola, acorrentado a um banco corrido e a remar numa galé que o capitão Drake atacou. Quando
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os espanhóis se renderam, ele libertou todos os prisioneiros e até contratou alguns de nós para a sua tripulação. Devo-lhe a minha liberdade e a minha vida.
- E vós detestais estar em dívida para com quem quer que seja.
- Começais a conhecer-me bem, minha senhora - retorquiu Xavier com uma gargalhada seca. - E sim, detesto isso.
Ela ficou em silêncio por uns momentos antes de lhe fazer uma pergunta.
- As cicatrizes que tendes nas costas devem-se ao tempo em que estivestes preso?
- Ah, com que então tendes andado a estudar o meu físico.
- Era impossível não reparar que - disse Jane corada -, a dada altura, deveis ter sido... ter sido...
- Chicoteado como se fosse um cão - concluiu Xavier com um encolher de ombros, tentando não dar importância ao assunto. - Sempre me considerei como um companheiro
de viagem divertido, contudo, os espanhóis não pareceram ter grande apreço pelos meus ditos espirituosos.
- Haveis estado preso durante muito tempo?
Três anos, oito meses e vinte e dois dias. Uma provação a que só conseguira sobreviver devido à dose diária de cólera que consumira. Ódio pelos seus carrascos espanhóis,
além de um grande azedume dirigido ao pai.
Jane já o olhava com mais comiseração do que ele considerava confortável. Não que não fosse capaz de tirar partido da situação, servindo-se da atitude mais simpática
dela para consigo como uma desculpa para lhe pegar na mão.
- Mal me lembro desses tempos - adiantou Xavier, mentindo.
- O meu cativeiro foi como uma névoa até ter sido resgatado pelo capitão Drake.
- Ainda me recordo de como Sir Francis foi homenageado quando regressou da sua viagem à volta do mundo. Não que eu tenha estado presente em qualquer dos banquetes,
do mesmo modo que não fiz qualquer tentativa para lhe ser apresentada - retrucou Jane com uma expressão de alguma nostalgia. - Fui advertida de que ele era um acérrimo
defensor da nova religião, pelo que não acataria de bom grado as congratulações de uma papista.
- Isso é um disparate. O capitão Drake teria ficado encantado convosco. Ele era de uma extrema galanteria no trato com as senhoras, muito
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embora eu não negue que ele talvez tivesse feito um esforço para salvar a vossa alma. Sem dúvida que me bombardeou com alguma persistência com as suas crenças religiosas.
O homem obrigava todos os membros da sua tripulação a rezarem de manhã e à noite. Se bem que Drake não fosse avesso, sem dúvida alguma, a apressar a leitura de um
salmo quando avistava um navio espanhol promissor na sua linha de visão. Sir Francis é, no mais fundo do seu âmago, um corsário.
- É isso que também sois?
- Não, não tenho a presunção de afirmar isso. Não sirvo nenhum país, nem defendo causa nenhuma, a não ser a minha. Sou um pirata, Jane, muito simplesmente.
Além de também ser um mentiroso. A despeito de todas as afirmações que fazia a Jane, Xavier não teria apostado um tostão furado nas hipóteses de vitória da Inglaterra
contra o poderio da Espanha. Os ingleses teriam mais probabilidades se a França fosse em auxílio da Inglaterra. Xavier franziu o cenho ao recordar-se da parte da
carta que encontrara no navio espanhol e que decifrara.
"As esperanças da Espanha... residem no duque de Guise. O duque prometeu que criaria uma manobra de diversão que impeça o rei francês de enviar ajuda militar a Inglaterra,
ainda que ele o quisesse fazer."
Uma manobra de diversão... Xavier continuava sem fazer a mais pequena ideia sobre o que isso quereria dizer. Mas o que quer que o duque de Guise e os espanhóis andassem
a maquinar, Xavier duvidava de que fosse preciso muita coisa para abstrair o errático rei de França. Os ingleses, Deus os ajudasse, teriam de conseguir aguentar-se
sozinhos contra o poder do Império Espanhol.
Mas Xavier guardou esses inquietantes pensamentos para si próprio. Entretanto, a ansiedade tinha abandonado o semblante de Jane, dando lugar à sua serenidade habitual.
A tensão que se instalara nos ombros a relaxar e o xaile a deslizar-lhe pelo tronco.
Inocentemente, não tinha consciência de como a camisa de dormir se lhe agarrava ao peito, revelando as linhas arredondadas dos seios. Cheios e firmes, exatamente
como Xavier gostava deles. A pequena poção de Megera devia ter feito muito para restaurar a sua potência, o que constatava por sentir que estava a endurecer.
Começou a descrever círculos lânguidos e demorados no pulso de Jane, ficando surpreendido ao sentir que ela reagia com um frémito, a pulsação mais acelerada.
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O olhar de Xavier prendeu-se no dela e viu que Jane ficava ruborizada, entreabrindo os lábios involuntariamente. Entre os dois pareceu surgir um sentido de perceção
extremamente acentuado.
Era possível que ele não possuísse os dotes de leitura da mente da sua meia-irmã feiticeira, mas Xavier tinha um sexto sentido que lhe permitia adivinhar quando
uma mulher estava preparada para ser seduzida. Por baixo daquele exterior circunspecto, aquela viúva solitária ansiava por ser abraçada pelos braços de um homem.
Não seria preciso muita coisa, uma ou duas carícias, uns quantos beijos ardentes, para desencadear o fogo que Jane se esforçava tão denodadamente por suprimir.
Tudo o que precisava de fazer era apertar-lhe o pulso, puxá-la para junto de si e enlaçá-la nos seus braços. Mas, ao invés disso, Xavier surpreendeu-se a si mesmo.
Depositou um beijo ao de leve nas pontas dos dedos dela, desejando-lhe boas noites.
A vela tinha uma chama pouco intensa, iluminando fracamente o local onde Meg estava sentada num banco perto da lareira, deixando o resto da pequena casa às escuras.
O que só podia ser uma vantagem no que dizia respeito a Meg. A casa que partilhava com as outras meninas há muito que fora abandonada pelos seus primeiros proprietários.
Qualquer arrumação, qualquer esforço para tornar a habitação mais confortável, devia-se inteiramente a Carole, que era muito mais boa dona de casa do que Seraphine
ou Meg.
A pequena casa era composta por uma sala espaçosa debaixo de um sótão que servia de quarto de dormir a que se tinha acesso por um escadote. Havia muito tempo que
Carole se deitara, pelo que, sem dúvida nenhuma, já dormiria profundamente no seu colchão, o seu filho pequeno, Jean Baptiste, aninhado ao seu lado.
Lúcia e Ninon já tinham parado de sussurrar e também já dormiam. Decerto que as pobrezinhas teriam adormecido agarradas uma à outra, assustadas com as histórias
que Seraphine lhes contara antes de adormecer.
- As irmãs Fontaine eram bruxas verdadeiras - contara-lhes Seraphine numa voz cacarejada, enquanto arrepanhava as feições numa expressão aterradora, ao mesmo tempo
que dobrava os dedos para que parecessem garras. Lúcia e Ninon tinham ficado suspensas de cada palavra, de olhos arregalados e com a respiração presa na garganta
enquanto Seraphine continuava. - Quando os caçadores de bruxas invadiram a ilha Encantada, as
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irmãs Fontaine tiveram de fugir para salvar a vida. Elas sabiam que, se fossem encontradas, seriam queimadas vivas. Para não sofrerem esse trágico destino, deram
as mãos e saltaram do cimo dos penhascos. Pumba! Os corpos delas partiram-se nos rochedos, o sangue e o cérebro espalhados por toda a parte.
- Seraphine! - Meg tentara protestar quando Lúcia e Ninon guincharam de medo, encolhendo-se todas e afastando-se da irmã. Mas Seraphine tinha-a ignorado, imprimindo
à voz uma entoação ainda mais sinistra.
- Até hoje, os fantasmas das irmãs Fontaine assombram esta costa e atacam meninas pequenas que se portam mal, quando não obedecem à irmã mais velha e se não forem
para a cama quando as mandam. Felizmente, uma pessoa está sempre em segurança lá em cima, no sótão, porque, desde a horrível morte delas, os espectros das Fontaine
têm medo das alturas.
Lúcia e Ninon quase se atropelaram uma à outra na pressa de subirem o escadote, deixando Seraphine e Meg sozinhas e em paz e sossego.
Ambas tinham adquirido o hábito de ficarem a conversar à noite até mais tarde do que deviam. Meg sentava-se no banco enquanto Seraphine lhe penteava o cabelo, uma
tarefa que ela dava a impressão de gostar de fazer, se bem que Meg não compreendesse bem porquê.
Não via beleza nenhuma no basto cabelo escuro quando comparado com o cabelo louro encaracolado e de textura sedosa dela. No entanto, Meg submetia-se pacientemente
ao que Seraphine lhe fazia ao cabelo, sem se queixar quando ela se deparou com um nó particularmente difícil de desfazer.
- Já não ouço barulho nenhum vindo lá de cima - comentou Seraphine. - Parece que as traquinas adormeceram finalmente.
- E com certeza que vão ter pesadelos. Não devias ter-lhes contado essas histórias horrorosas, Seraphine. Fizeste com que ficassem aterrorizadas.
- Não as minhas irmãzinhas - retorquiu Seraphine, rindo-se à socapa. - Seria preciso mais do que uma história insignificante de espectros para as atemorizar. Eu
até diria que as fedelhas seriam capazes de te contar uma ou duas histórias que fariam com que ficasses com os cabelos em pé.
Meg duvidava disso. Tinha visto a mãe a cometer horrores verdadeiros que lhe chegassem para que uma qualquer historieta conseguisse meter-lhe medo.
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- Além disso, se eu assustei a Lúcia e a Ninon, elas estavam a pedi-las. Pregaram-me um grande susto quando desapareceram sem dizerem água vai, nem água vem - acrescentou
Seraphine, dando um último arrepelão no nó de cabelo e depois, para grande alívio de Meg, o pente começou a deslizar suavemente por entre o seu cabelo. - Não que
eu censure as minhas irmãs por quererem dar uma espreitadela ao capitão Xavier. Ele é um patife muito bem-parecido.
- Seraphine! - exclamou Meg, virando-se para trás para olhar para a amiga com uma expressão extremamente chocada. - Devias ter vergonha. O homem é teu tio.
- Meio-tio - corrigiu Seraphine com um encolher de ombros.
- O facto de ele ser meu parente não faz com que eu fique cega para os seus atributos masculinos. - Obrigou Meg a voltar a cabeça outra vez para poder continuar
a penteá-la. Quando Seraphine atacou outro nó, Meg retraiu-se e depois resmungou:
- Ficarei muito satisfeita quando ele levar os seus atributos masculinos para outro lugar qualquer. Lamento, Seraphine. Apesar de ele ser teu tio, não sou capaz
de simpatizar com ele.
- Ora, ora! Só estás irritada com ele por não teres conseguido entrar na cabeça dele para vasculhares os seus pensamentos como costumas fazer tão facilmente com
as outras pessoas. - Seraphine inclinou-se para baixo, segredando-lhe ao ouvido para a atazanar. - Ou quem sabe se não estarás com ciúmes.
- com ciúmes!? Do quê, diz-me por gentileza.
- Da maneira como o capitão Xavier dedica toda a sua atenção à tua recatada Lady Jane Danvers.
- Não digas disparates! - ripostou Meg exacerbada, mas ficou agitada, receando que talvez houvesse alguma verdade no que Seraphine lhe dizia na brincadeira. Sentia-se
um tudo-nada ressentida com Jane por ela passar tanto tempo à beira da cama de Xavier, especialmente por o dia da escolha estar ao virar da esquina. A própria Meg
precisava muito da presença calmante de Jane.
Mas não disse isso a Seraphine.
- Só estou preocupada com o bem-estar da Jane. Existe qualquer coisa no capitão Xavier em que não confio.
- Não acredito que confies em homem nenhum, além do teu pai.
- Se tivesses a minha experiência, sentirias a mesma coisa.
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- A tua experiência! - exclamou Seraphine rindo-se. - Ouçam bem o que a criança diz. Só tem treze anos e já é uma autoridade nas perfídias dos homens.
- Não afirmo que seja uma autoridade no assunto - retorquiu Meg numa vozinha um tanto intimidada. - Mas sei o que é ser traída e ficar com o coração destroçado.
Receava que o seu comentário desse origem a mais palavras trocistas de Seraphine. Mas a jovem mais velha pôs o pente de lado e agachou-se diante de Meg. O brilho
trocista tinha-lhe desaparecido dos olhos para ser substituído por uma das suas muito raras expressões de afeto.
- Não me digas que continuas com saudades do Sander Naismith, esse rapaz de que me falaste? Fico contente por ele ter morrido queimado nesse incêndio em Londres.
Caso contrário, teria sido obrigada a matá-lo por ti - disse Seraphine, fazendo uma festa na bochecha de Meg. - Minha querida, ele não é merecedor de mais um único
que seja dos teus pensamentos.
- Tenho consciência disso, Seraphine - retorquiu Meg, tentando esboçar um sorriso. Os lábios tremiam-lhe quando engoliu em seco. - Mas eu acreditava que ele era
meu amigo. Amava-o e confiava tanto nele. Quando eu estava junto dele, o Sander fazia com que eu me sentisse tão extraordinária, como se um dia crescesse e pudesse
ser realmente deslumbrante.
- O que realmente aconteceu.
Quando Meg abanou a cabeça, Seraphine levantou-se de repente e foi buscar o seu único contributo para o ambiente familiar da casa, um pequeno espelho emoldurado
a dourado.
Seraphine colocou-o nas mãos de Meg.
- Aí tens. Olha bem para essa rapariga. Desafio-te a dizeres-me que não é encantadora.
Meg pensava que podia ter contraditado Seraphine em relação a esse assunto com a maior das facilidades. Mas, para fazer a vontade à amiga, começou a examinar a sua
imagem refletida no espelho. A sua abundante cabeleira caía-lhe em volta dos ombros, sedoso e luzidio à luz da chama da vela, mas Meg considerava que isso se devia
a Seraphine. De tanto lho ter escovado com tamanha determinação.
O pai de Meg dissera-lhe uma vez que o cabelo dela era da cor de canela, mas, de súbito, apercebeu-se de que o seu cabelo tinha ficado cada vez mais escuro ao longo
do último ano, o rosto mais esguio e a compleição
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mais pálida. Estava cada vez mais parecida com... com a mãe. Meg estremeceu e devolveu o espelho a Seraphine.
- Eu ser maravilhosa ou não, não tem a mínima importância. Receio que os homens sempre haverão de querer apenas uma coisa de mim.
- A mesma coisa que os homens querem de todas as mulheres - retorquiu Seraphine com um sorriso de orelha a orelha. - Um beijo furtado ou... - Arqueou as sobrancelhas
com uma expressão maliciosa. - Outras coisas mais picantes que te explicarei quando fores mais velha.
- Não precisas de te mostrar tão superior, Seraphine Remy - disse Meg com uma cara zangada -, só porque tens dezasseis anos. Tenho a certeza de que sei tanto a respeito
do que os homens desejam como tu.
- Fez uma pausa antes de acrescentar com tristeza: - Pelo menos, o que eles desejarão de ti. Quanto a mim, só estarão interessados nos segredos que guardo a sete
chaves na minha cabeça.
- Não, estás enganada, Meggie - contradisse Seraphine, inclinando-se mais para a amiga para poder dar-lhe um abraço. - Um dia hás de conhecer alguém que não se importe
rigorosamente nada por teres sido conhecida por Rosa de Prata ou por teres possuído o Livro das Sombras. Ele encontrará toda a magia que deseja na tua cara encantadora
e ficará perdidamente apaixonado por ti.
- Tenho a certeza de que esse será o teu futuro - redarguiu Meg, retribuindo o abraço de Seraphine. - E isso porque tu és verdadeiramente deslumbrante.
- Sim, sei isso - retorquiu Seraphine muito satisfeita consigo própria, fazendo com que Meg risse, ainda que tivesse pouca vontade de rir. - Se bem que não seja
muito aconselhável que continues a dizer-me isso - acrescentou Seraphine, afastando-se de Meg. - Já sou uma criatura vaidosa que chegue.
Deixando-se cair no banco defronte de Meg, começou a examinar a sua própria fisionomia refletida no espelho, soltando um suspiro de contentamento.
- Estou em crer que o facto de ser muito bela é uma coisa boa porque não sou, nem de longe, nem de perto, tão inteligente como tu, Meg. A minha magia reside toda
no meu rosto. No entanto, se quiseres uma beldade realmente deslumbrante, devias ver a minha mãe. Sabias que em tempos ela cativou de tal maneira o rei de Navarra
que ele...
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Seraphine interrompeu-se, ficando com as feições ensombradas como acontecia sempre que pensava ou mencionava a sua terra natal. Virou o espelho com a face espelhada
no colo.
- Merde!- murmurou. - Quem me dera ter nascido rapaz.
- E porque é que haverias de querer isso?
Seraphine levantou-se repentinamente do banco e deu alguns passos agitados.
- Porque se fosse um rapaz estaria em minha casa, que é onde pertenço, a combater ao lado do meu pai, em vez de ter sido despachada para esta ilha. Não há nada que
possa fazer além de me preocupar e esperar por notícias que nunca chegam. - Seraphine deixou-se cair outra vez diante de Meg. Agarrou-lhe as mãos e fez-lhe a mesma
súplica de antes. - Não achas que poderias tentar... - Quando Meg se retraiu, interrompeu-se de imediato. - Peço desculpa, Meggie. Jurei que não voltaria a importunar-te
para que consultes a bola de cristal. Sou tão má como esse malvado rapaz, o Naismith, querendo explorar a tua magia.
- Nada disso - retorquiu Meg, fazendo festas na cabeça baixa de Seraphine. - Se eu fosse capaz de controlar as minhas visões durante o tempo suficiente para conjurar
uma imagem dos nossos pais não hesitaria em fazê-lo.
- Sei que sim - disse Seraphine com um sorriso de esguelha. - Mas isto é tão difícil, esta espera sem saber o que se passa. Se acontecesse alguma coisa à minha mãe
e ao meu pai. Se os matassem... - Os lábios de Seraphine estreitaram-se e apertou as mãos de Meg com tanta força que a magoou. - Estou em crer que sentiria tanto
azedume, ficaria tão cheia de ódio, que haveria de querer destruir o duque de Guise e toda a sua maldita Liga Católica.
Meg compreendia perfeitamente os sentimentos da amiga. Se acontecesse alguma coisa de mal ao seu próprio pai ou à sua madrasta, sentiria exatamente a mesma coisa.
Mas enquanto Seraphine amaldiçoaria e desejaria destruir o duque de Guise e o seu exército, Meg possuía os conhecimentos de magia negra para o fazer efetivamente.
E era isso, mais do que qualquer outra coisa, que a atemorizava.
A quietude da manhã foi interrompida pelos gritos agudos que chegaram aos ouvidos de Xavier através da janela da pequena casa. Era o seu primeiro dia fora da cama
e estava completamente vestido, mas sentia-se tão pouco firme nas pernas como um marinheiro que tivesse chegado a terra depois de muitos meses passados no mar.
Alarmado ao ouvir os gritos de aflição, dirigiu-se para a porta a cambalear, apressando-se a ir acudir quem gritava. Se bem que diabos o levassem se sabia como é
que poderia ajudar alguém sem armas e com o braço com que as manejava ao peito.
Saiu, sentindo todo o impacto da luz do Sol, que o obrigou a pestanejar enquanto olhava em volta. Ficou boquiaberto de espanto quando olhou para a fonte de tanto
alarido.
Deparou com uma rixa no terreiro em frente do casario; as duas lutadoras eram um par de idosas. Uma delas era Madame Partierre, enquanto a outra era, obviamente,
uma inglesa, a fazer fé em algumas das imprecações que vociferava.
O susto que Xavier tinha sentido deu lugar a uma expressão divertida enquanto observava as duas senhoras de idade a atirarem-se uma à outra como duas gatas assanhadas,
a sibilar, a arranhar e a puxar cabelos. Havia outras mulheres por perto, algumas a soltarem gritos de consternação, enquanto outras gritavam palavras de incitamento.
Xavier não ficou surpreendido ao ver Jane no grupo das que tentavam promover a paz. Ela e Meg agarraram a senhora inglesa de cabelo encanecido, puxando-a para a
afastarem da outra. Ariane e a jovem Carole Moreau obrigavam Madame Partierre a recuar. Continuando a tremer de fúria, as duas idosas continuavam a trocar insultos.
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- Não permito que fales da minha menina Meg nesses termos, bruxa velha! - gritava a inglesa.
- Eu só digo o que é verdade, Agatha Butterydoor - ripostou Madame Partierre numa confusão de francês e inglês. - A tua Meg... ela é filha de uma bruxa. Não é convenable
que ela seja a próxima Senhora da Ilha Encantada.
- E pensas que a tua amiga, a senhora Carole Moreau, é melhor? Uma rapariga que teve um filho sem ser casada! Essa... essa salope!
Era evidente que Agatha Butterydoor falava mal francês, mas o suficiente para saber as palavras mais certeiras para provocar em Madame Partierre um novo ataque de
raiva. Esta ainda tentou voltar a atirar-se a Butterydoor outra vez, mas foi puxada para trás por Ariane.
- Maldição! Já chega!
Xavier jamais teria imaginado a serena Senhora da Ilha Encantada capaz de gritar daquela maneira e com uma expressão tão enfurecida. As outras mulheres também pareceram
ter ficado estupefactas e até mesmo as duas idosas em litígio ficaram tão assombradas que se remeteram ao silêncio.
Ariane olhou para uma e depois para a outra com uma expressão de cólera.
- Madame Partierre, senhora Butterydoor, estou surpreendida com ambas. É este o exemplo que quereis dar às duas meninas? - O olhar severo de Ariane percorreu as
mulheres que se haviam juntado. - E o resto de vós a incitá-las. Que vergonha! Não é desta maneira que costumamos resolver as nossas diferenças na ilha Encantada.
Todas vós estais a comportar-vos como... como homens incivilizados e irrazoáveis.
Xavier ficou sem saber se devia sentir-se mais divertido ou mais ofendido, mas aquela última repreensão teve o efeito de fazer com que muitas das mulheres presentes
baixassem a cabeça envergonhadas.
- Temos muito trabalho a fazer para estarmos com estas questiúnculas que não levam a lado nenhum. Portanto, ide tratar das vossas tarefas, todas vós.
As mulheres começaram a dispersar, as duas em litígio afastaram-se a coxear, cada uma para seu lado.
Por ser tão cedo, Jane ainda nem sequer prendera o cabelo, que lhe caía solto em volta dos ombros; as faces luminosas e os olhos brilhantes eram tão suaves como
o despontar do dia acima do oceano. Mas a sua
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boca fez um trejeito de reprovação ao ver que Xavier se sentia tentado a dar-lhe um beijo, sem se importar com quem pudesse vê-los. Conseguiu reprimir esse impulso.
- Capitão Xavier, o que é que estais a fazer de pé?
- Mais cedo ou mais tarde, eu tinha de me levantar da cama - replicou ele atrevidamente. - Em especial quando estais tão determinada a manter-me deitado. - A provocação
fez com que Jane corasse. Olhou ansiosa em volta de si, como se receasse que alguém o tivesse ouvido.
- O que quis dizer foi que, depois de tudo aquilo por que haveis passado, devíeis ficar em repouso durante mais tempo. - O olhar dela percorreu-o desde as botas
até à camisa lavada que ele vestia. - Nem sequer sou capaz de imaginar como é que conseguistes vestir-vos.
- Convenci a senhora Bevans a ajudar-me, uma vez que, esta manhã, ninguém conseguiu pôr-vos a vista em cima. Mas presumi que teria a vossa aprovação, dado que as
minhas roupas reapareceram, misteriosamente, durante esta noite.
- Fui eu quem vos levou a roupa - adiantou Margaret Wolfe numa vozinha um pouco a medo e metendo-se entre os dois.
- Meg! - exclamou Jane, fitando-a com uma expressão de censura.
- É evidente que ele está suficientemente bem para se levantar e para se pôr a caminho, Jane. O homem não pode ficar a preguiçar aqui para sempre.
- Como sempre, sinto-me comovido pela vossa consideração, mademoiselle.
Meg fitou-o com uma expressão enfurecida, mas antes de lhe poder dar resposta, Ariane dirigiu-se a eles apressadamente.
- Meg, a tua senhora Butterydoor ainda está que não se pode aturar. Preciso que vás acalmá-la e que lhe ponhas um pouco de unguento nos arranhões. E, por amor de
Deus, trata de a manter afastada de Madame Partierre.
Meg mostrou relutância em deixar Jane na companhia de Xavier, mas não tinha outra opção que não fosse obedecer. Quando Meg se afastou, Ariane respirou fundo, continuando
a mostrar-se atormentada.
- Problemas no paraíso, minha irmã? - perguntou-lhe Xavier.
- Nada de que eu não possa tratar. - Ariane olhou para ele com um ar carrancudo. - Estou surpreendida por vos ver a pé e a andar por aí tão cedo, monsieur.
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- Tudo devido aos excelentes cuidados que Lady Jane Danvers me prestou - retorquiu Xavier, que tinha decidido que seria melhor não dizer nada a respeito do secreto
frasquinho que Meg lhe dera, - E é claro que estou em dívida para convosco por isto - acrescentou Xavier, contorcendo-se para poder mexer os dedos do braço que trazia
ao peito. - Infelizmente, vejo-me forçado a pedir-vos outro favor, o empréstimo de um cavalo.
- Um cavalo?
- Sim, sabeis do que estou a falar. Uma dessas criaturas altas que têm quatro pernas, crinas e uma cauda.
Enquanto Ariane o fitava com cara de poucos amigos, Jane interveio com ansiedade.
- Mas para que é que precisais de um cavalo?
- Disseram-me que são pelo menos trinta e dois quilómetros para atravessar a ilha daqui até Port Corsair e não me parece que eu esteja em condições de fazer esse
percurso a pé.
- De facto, não estais em condições de fazer isso - ripostou Ariane. - A Jane já me tinha dito o que queríeis saber e ontem mandei um dos meus serviçais para se
inteirar disso. O irmão da Bette é um pescador que conhece muitos dos capitães dos navios mercantes que negoceiam entre a Bretanha e a ilha Encantada. Haverá alguém
em que ele possa confiar que trate de se inteirar em Saint-Malo sobre o que sucedeu ao vosso navio. Não há notícia de qualquer naufrágio ao largo da costa da ilha,
portanto, o mais provável é que o seu navio não tenha sido afetado pela tempestade.
- O que são boas notícias, mas perdoar-me-eis se preferir ser eu próprio a inteirar-me disso.
- Infelizmente, não dispomos de muitos cavalos na ilha Encantada. Temos somente alguns potros robustos, bestas que podem ser tão teimosas e intratáveis como vós.
- Nesse caso, devemos dar-nos às mil maravilhas.
- O mais certo seria cairdes da sela, voltando a fraturar o braço. Além disso, não posso dispensar ninguém que vos possa mostrar o caminho.
Xavier tentou sorrir para ocultar a irritação crescente.
- A ilha não é assim tão grande. Estou certo de que, eventualmente, acabaria por encontrar Port Corsair.
- Não, o mais sensato é que continueis aqui durante mais algum tempo. Dentro de alguns dias, iremos todas para esse lado da ilha.
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- Não sou capaz de imaginar porque é que não vão agora. Mas onde é que diabo reside a atração, para vós todas, por este bocado de costa situado no fim do mundo?
- Nada que pudésseis compreender - replicou Ariane, pondo fim àquela troca de palavras com um gesto perentório. - E agora, com vossa licença, tenho assuntos mais
importantes que requerem a minha atenção.
- Ariane começou a afastar-se antes que ele pudesse dizer outra palavra. A ferver por dentro, Xavier fez menção de ir atrás dela, mas foi impedido por Jane, que
lhe pousou uma mão no braço.
- Por favor, peço-vos que não importuneis a Ariane mais do que já fizestes, capitão. Compreendo que ela vos falou com bastante rispidez, mas, neste momento, tem
tanto com que se preocupar. Além disso, seria mais prudente da vossa parte continuardes a restabelecer-vos antes de deixardes a ilha. Porque é que não vindes comigo?
Estou certa de que conseguirei encontrar alguma coisa de comer que quebre o vosso jejum. Algo mais substancial do que caldo.
Jane sorriu-lhe daquela sua maneira muito serena. Xavier sentia a calidez do toque da mão dela até mesmo através do tecido da manga da camisa, perguntando-se se
Jane teria alguma noção da tentação que era para ele.
Se não fosse a preocupação que o atormentava por causa do seu navio e da tripulação, talvez se sentisse disposto a deixar-se ficar onde estava. Havia já bastante
tempo que não tinha uma mulher e sem dúvida nenhuma que Jane era uma perspetiva atraente com a sua figura de formas muito femininas e os indícios de paixão de que
se apercebia por baixo da fachada circunspecta. Mas se Jane se rendesse a ele, com certeza que passaria o resto da vida de joelhos a penitenciar-se por esse pecado.
E era preciso não esquecer Megera, a fedelha que constituía uma espécie de tentação muito diferente. Sentia-se intrigado com ela, perguntando-se qual seria a dimensão
dos conhecimentos que ela possuía acerca de magia negra. A rapariga poderia ser a chave para a sua fortuna se a entregasse à Rainha das Trevas.
Xavier não levara uma existência isenta de censura, mas, até ao momento, evitara fazer algo de tão repreensível que não fosse capaz de se ver ao espelho. A Senhora
da Ilha Encantada não podia ser tão competente na leitura de pensamentos como se dizia, porque, se fosse, a sua irmã já se teria apercebido de que ele estaria a
fazer um grande favor a todas ao oferecer-se para partir.
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Mas com Ariane a recusar tão obstinadamente o que ele lhe tinha pedido, não havia nada que pudesse fazer para adquirir uma montada. Pelo menos, não em plena luz
do dia, quando tantas daquelas mulheres andavam de um lado para o outro. Só lhe restava retribuir o sorriso de Jane, permitindo-lhe que o levasse consigo.
A mesa estava posta por baixo do pinheiro perto da casa em que Ariane residia com a sua família. O período de bom tempo levara as mulheres a fazerem a maior parte
das suas refeições ao ar livre, em vez de comerem nas cozinhas exíguas e atravancadas das casas pequenas.
Já todas haviam tomado o pequeno-almoço muito mais cedo. Jane sentou-se no banco em frente de Xavier. Enquanto o via a comer com gosto uma generosa porção de queijo
e pão, esforçava-se por deslindar o seu emaranhado de sentimentos.
Tudo lhe parecera muito mais simples na noite de ontem, quando ambos tinham conversado até noite dentro, envoltos na intimidade da escuridão, com ela sentada na
beira da cama ao lado dele e quando o homem estava quase completamente nu debaixo das cobertas.
A despeito disso, sentia mais timidez e pouco à vontade com ele naquela manhã em que estava completamente vestido e em plena luz do dia. Sentia algum ressentimento
para com Madame Bevans por o ter ajudado a barbear-se e a vestir-se.
Ao fim e ao cabo, era a Jane que cabia cuidar dele. Só se ausentara da casa em que ele estava durante o tempo suficiente para poder tratar da sua toilette. Xavier
podia muito bem ter esperado...
Jane impediu a progressão daquele pensamento, repreendendo-se por estar a ser ridícula. Afinal de contas, que importância tinha ter sido ajudado por uma pessoa ou
por outra? Estava a reagir como se tivesse ciúmes, o que era bastante absurdo.
Entretanto, Xavier serviu-se de outro naco de pão, os olhos a semicerrarem-se quando olhou para uma carroça que passava por eles, com a carga que transportava coberta
por uma lona. C) potro ruano preso aos tirantes seguia na direção dos penhascos.
- Que assunto tão misterioso é esse que mantém a Ariane tão agitada? Se esta ilha não estivesse tão claramente fora do alcance da lei do rei, eu quase imaginaria
que as senhoras andariam a fazer um pouco de contrabando.
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- Nada de tão empolgante - retrucou Jane com um sorriso e um abanar de cabeça. - Aquela carroça só levava lenha para a fogueira que faremos no cume dos penhascos.
Xavier bebeu outro gole de vinho.
- O que é que vocês, mulheres, estão a planear fazer? - perguntou numa voz arrastada. - Assar-me em vida? Eu diria que a jovem Megera teria toda a satisfação em
ser a primeira a chegar lume à fogueira.
- Por favor, não a trateis por esse nome. Ela não gosta. Nenhuma de nós gosta. - Jane fez uma pausa. Tinha reparado na maneira cheia de tensão como Meg confrontara
Xavier horas antes, compreendendo bastante bem a razão para essa atitude, mas estava a ter dificuldade em explicar-lhe isso mesmo de uma maneira que fizesse sentido.
- A Meg é uma jovem verdadeiramente maravilhosa, afetuosa e generosa, mas tem umas estranhas noções na sua cabeça. - Jane traçava linhas invisíveis na toalha de
mesa com a unha do polegar. - Por uma razão qualquer, ela receia que sejais um grande predador felino e que eu corro o risco de vir a ser devorada.
- Na verdade, tenho a impressão de que ela é extremamente sensata para a sua idade. Talvez devêsseis dar mais atenção ao que ela vos diz.
Se bem que Xavier lhe sorrisse por cima do bordo da caneca de vinho, os olhos espelhavam uma perigosa expressão ardente que fez com que ela se sentisse percorrida
por um arrepio. Pareceu-lhe mais seguro retomar o assunto da lenha.
- A fogueira será acesa na noite da reunião no cimo dos penhascos - adiantou Jane.
- Ah! A assembleia de bruxas à meia-noite.
- Não! É uma reunião que não tem nada a ver com bruxaria - explicou Jane veementemente, embora a perspetiva da reunião lhe causasse um certo mal-estar. - Tanto quanto
me é dado saber, as Filhas da Terra reúnem-se no cume dos penhascos de Argot uma vez por ano para... para se reunirem em conselho. Este será particularmente importante
porque a Ariane tenciona anunciar quem será a sua sucessora.
"A confusão desta manhã deveu-se a isso mesmo. A dissensão entre as mulheres é enorme acerca de quem é que deve ser designada. Não tenho a certeza de que a própria
Ariane já tenha tomado essa decisão.
- O que deve fazer com que a reunião seja bastante empolgante. Que intrigante... - murmurou Xavier com aquele brilho provocador nos olhos que Jane já começava a
reconhecer.
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- Não é permitido que os cavalheiros estejam presentes - adiantou ela com um franzir de sobrancelhas, mas, então, deu o dito por não dito. - Isto é... não sei bem
ao certo se é proibido, mas estou em crer que é contra as tradições delas...
- Não tendes de vos preocupar, minha querida - interrompeu-a Xavier com uma gargalhada. - Não tenho a menor intenção de me intrometer nos trabalhos das Filhas da
Terra. De facto, tenciono estar... - calou-se, baixando as pestanas - a dormir profundamente nessa altura.
Jane ficou com a impressão de que não era isso o que ele tencionava fazer, mas as suas suspeitas foram abafadas quando ele continuou.
- Portanto, deduzo que é vossa intenção assistir a esse conselho e dar o vosso voto?
- Ninguém pode votar, o que não impede Ariane de acolher conselhos de bom grado. Mas, em última análise, a decisão é inteiramente dela. E não - acrescentou em voz
baixa. - Não tenciono estar presente.
- E porque não?
- Porque não sou uma delas. Eu não pertenço aqui.
- Imagino que poderíeis pertencer se quisésseis. Talvez devêsseis levar isso em consideração. Parece-me que é um belo lugar para se viver, caso se seja uma mulher.
Teríeis mais liberdade do que encontraríeis noutro sítio qualquer, um pequeníssimo reino governado por saias de baixo e... Ora bem, quem diabo é aquela?
Jane ficou atónita perante a abrupta mudança de tom de Xavier. Tinha estado a beber o seu vinho indolentemente, mas endireitou-se de imediato, franzindo o sobrolho
ao olhar para alguma coisa fora do ângulo de visão de Jane, que se voltou para trás, vendo Ariane, que se aproximava deles com uma mulher de constituição petite
que tinha o cabelo de um louro de luar entrançado.
- Estou em crer que a Ariane quer apresentar-vos Madame Aristide. Ela é...
- A minha irmã mais nova, e a preferida do meu pai, a Miribelle. O meu navio foi batizado com o nome dela. Eu já devia ter rebatizado o diabo do barco. - O tom cáustico
de Xavier não augurava nada de bom. Parecia estar tão tenso como um homem que esperasse ser alvo de uma emboscada.
Jane não saberia dizer porquê, mas levantou-se do banco de um salto, sentando-se ao lado dele no banco corrido, numa atitude protetora. Ariane
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não se mostrava mais agradada perante a perspetiva de apresentar Xavier à irmã. Deteve-se com uma expressão circunspecta, as feições acentuadamente tensas. Miribelle
era a única a sorrir.
- Capitão Xavier, permiti-me que vos apresente... - começou Ariane a dizer.
- A tua irmã Miri - atalhou esta, apressando-se a contornar a mesa para abraçar Xavier, que ficou rígido, mostrando-se perplexo. Por breves momentos, Jane receou
que ele empurrasse Miri. Mas ele deu-lhe umas palmadinhas nas costas num gesto desajeitado.
- Tem cuidado com o meu braço - resmungou.
Miri recuou, passando a mão suavemente pelo braço que ele trazia ao peito.
- P... peço desculpa. Espero não te ter magoado - disse ela com os olhos a brilharem radiantes. - Mas pareces-te tanto com o paizinho. Espero que não te importes
por eu dizer isso.
- Não me serviria de nada importar-me - replicou Xavier. - A menos que saibas de algum feitiço mágico que altere as minhas feições, porque isso é verdade.
- Não é preciso nenhuma magia, Xavier. - Miri virou-se para Ariane. - O nosso irmão é um homem muito bem-parecido, não te parece?
Ariane emitiu um som evasivo que não conseguiu esfriar o entusiasmo da irmã mais nova. Miri tinha uma expressão radiante quando se sentou ao lado de Ariane no banco
oposto a Xavier.
Seguiu-se um pesado silêncio, com Xavier a mostrar desconfiança, Ariane taciturna e Miri na expectativa.
- Talvez eu devesse... - começou Jane a dizer, pondo-se de pé.
- Não, ficai, Jane - impediu-a Xavier, agarrando-a pelo pulso e forçando-a a sentar-se de novo. - Não há razão nenhuma para que esta terna reunião de família seja
um acontecimento privado. Tenho estado a contar com esta inquisição desde que dei à costa. Portanto, dizei-me, minhas queridas irmãs, qual dos instrumentos de tortura
é que haveis trazido?
Ariane ficou toda encrespada.
- A Miri e eu não somos nenhuma inquisição, tal como não tencionamos proceder como tal. Mas é muito natural que tenhamos algumas perguntas que gostaríamos de ver
respondidas.
- Eu só quero poder conhecer-te melhor - disse Miri. - E tenho a certeza de que há muita coisa que gostarias de saber a respeito de nós duas.
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- Já me inteirei de algumas coisas através de Madame Bevans. A Ariane é a Senhora da Ilha Encantada, uma famosa feiticeira. A Miri é Madame Aristide, a mulher do
caçador de bruxas. - Se a intenção de Xavier tivesse sido magoar a irmã mais nova no seu ponto mais vulnerável, não podia ter sido mais bem-sucedido. Miri estremeceu
e Ariane pousou a mão em cima da dela numa atitude protetora.
- A Madame Bevans é uma tola que gosta muito de mexericos, pelo que o que diz nem sempre corresponde à verdade. Sou tanto uma feiticeira como ela, enquanto o Simon
Aristide há muito que abandonou a sua atividade. É um bom marido para a Miri, além de ser um homem honrado e de caráter.
Miri olhou para a irmã com um sorriso de gratidão, sendo por demais evidente que o elogio que ela tecera a Simon Aristide tinha muita importância para si.
- E quanto a vós, monsieur? - perguntou Ariane, olhando bem de frente para Xavier. - Estais numa posição mais vantajosa, porque, enquanto vós tínheis conhecimento
da nossa existência, nós não fazíamos a mínima ideia da vossa existência até há três dias.
- E o que é que quereis saber?
- Para começar, por onde é que tendes andado durante todos estes anos?
- No mar.
- com o nosso pai? - perguntou Miri.
- Não, ele morreu.
As duas irmãs estremeceram perante a insensibilidade que transparecia do tom de voz dele.
- Estamos bem cientes disso. Não é preciso atirar-nos essa realidade à cara a cada oportunidade... - começou Ariane a dizer, mas Miri interveio.
- Temos esperança de que nos possas dizer alguma coisa sobre os últimos dias de vida do paizinho. Quando e como é que ele faleceu?
Xavier comprimiu os lábios. Jane pensou que compreendia a razão da tensão dele. Xavier já lhe tinha desfiado muitas das histórias das suas aventuras em alto-mar,
tal como lhe descrevera as suas incursões pelas selvas do Brasil, além de lhe ter falado a respeito do capitão Drake e acerca dos membros da sua própria tripulação,
até mesmo sobre alguns dos nativos com que se cruzara.
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Mas havia uma figura significativamente ausente dessas histórias, o seu pai. Era muito raro que Xavier mencionasse o Chevalier Louis Cheney e, fosse por que razão
fosse, dava a impressão de detestar falar sobre o homem. Não obstante, era muito natural que Ariane e Miri ansiassem por qualquer informação, por muito insignificante,
a respeito do pai que as tinha deixado havia tantos anos.
Xavier levou o seu tempo a responder, estendendo a mão para voltar a encher a sua caneca de vinho, o que tentou fazer bastante desajeitadamente com o braço esquerdo.
Jane apressou-se a ajudá-lo, grata por poder fazer alguma coisa. Não se sentia nada bem naquela situação, como alguém apanhada entre dois exércitos de fações diferentes,
sem saber muito bem em qual dos lados é que se devia pôr. Xavier bebeu um demorado gole de vinho antes de, finalmente, responder à pergunta de Miri.
- O chevalier morreu há cerca de dois anos numa missão de religiosos portugueses no Brasil. Sucumbiu depois de uma prolongada crise de febre-amarela.
- Sofreu muito? - perguntou Ariane.
- Eu não saberia dizer - respondeu Xavier, encolhendo os ombros. - Há muito tempo que tinha perdido o rasto do homem, mais exatamente havia quase cinco anos.
Ariane respirou fundo, mostrando-se indignada. Xavier falava com tanta falta de sensibilidade como se estivesse a falar de um par de botas que não sabia onde deixara.
Mas Jane tinha a certeza de que a separação do pai só podia ter acontecido durante os anos em que Xavier tinha estado preso numa galé espanhola, ao que se acrescera
o ano em que fizera parte da tripulação do navio do capitão Drake.
Mas porque é que o homem não podia pôr de parte alguma da sua sobranceria e orgulho, confiando nelas como confiara em Jane?
- Talvez devêsseis dizer às vossas irmãs a razão por que haveis ficado separado do vosso pai - sugeriu Jane.
- O que faria com todo o prazer... se pensasse que era um assunto que lhes dissesse respeito - ripostou Xavier, voltando a concentrar-se na sua caneca de vinho e,
uma vez mais, remetendo-se ao silêncio.
Ariane ainda abriu a boca para lhe dar réplica, mas conseguiu conter-se, estreitando os lábios. Dependia de Miri dar continuidade à conversa.
- O... o nosso pai alguma vez falava de nós? - perguntou numa vozinha a medo.
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- Incessantemente.
- Ele deixou alguma mensagem quando estava no seu leito de morte? Chegou a dizer alguma coisa?
- Nada que fizesse algum sentido. Quando cheguei junto dele, já estava a delirar.
A resposta concisa de Xavier arrefeceu a esperança que se tinha refletido nos olhos de Miri. Seguiu-se outro pesado silêncio até Ariane ter pegado na conversa.
- Portanto, haveis navegado até aqui a bordo do Miribelle, foi isso?
- Não naveguei até aqui, mas sim. - Xavier bebeu outro generoso trago de vinho. - Encontrava-me a bordo do Miribelle quando fomos apanhados pela tempestade.
- O nosso pai zarpou da Bretanha com três carracas. O que é que sucedeu às outras duas?
- A Boa Esperança ficou destruída quando foi atacada por piratas turcos, não muito depois de nos termos feito ao mar, zarpando do porto de Saint-Malo. Tanto quanto
sei, a Leão-Marinho naufragou durante um temporal ao largo da costa do Brasil. Não tenho a certeza. Eu não estava com o chevalier quando isso sucedeu.
- Isso quer dizer que, dos três navios do meu pai, só resta o Miribelle? - perguntou Ariane.
Xavier pousou a caneca com brusquidão.
- Não, se o Miribelle conseguiu chegar ao porto de Saint-Malo, isso significa que só resta o meu navio. Fui eu quem arriscou a vida para reconquistar esse navio
quando foi capturado pelos espanhóis. Por isso, o Miribelle agora é meu.
- Tenho a certeza de que a Ariane não quis pôr em dúvida quem tem direito ao navio - apressou-se Miri a intervir.
- Ótimo, porque, se não estiver no fundo do mar, esse miserável barco, que mete água por todos os lados, é tudo o que me resta - disse Xavier, olhando para as irmãs
com uma expressão acusadora. - Tanto quanto me é dado saber, quando a minha mãe se retirou para um convento, cedeu a vós, minhas senhoras, a casa que tinha em Paris.
- Propriedade que foi oferecida a essa mulher pelo nosso pai. comprada com dinheiro que foi tirado dos cofres da nossa família e que bastante falta nos fazia - ripostou
Ariane encolerizada, mas Miri pousou uma mão no braço da irmã.
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- O que agora não importa absolutamente nada, já que a casa acabou por ser confiscada pela coroa francesa, pelo que agora não pertence a nenhum de nós - recordou
Miri à irmã. - Além disso, tu nunca quiseste ter nada a ver com essa propriedade em Paris, Ariane.
Voltou-se para Xavier para lhe explicar o que se tinha passado.
- A casa serviu de residência à nossa outra irmã, a Gabrielle, durante algum tempo. Mas depois de ela ter desposado o Remy, também deixou de ter qualquer interesse
em dispor de uma casa em Paris. - A expressão de Miri refletiu melancolia. - Aquilo que mais desejávamos era que o nosso pai regressasse para junto de nós são e
salvo. Ele prometeu-me antes de partir que voltaria dentro de pouco tempo e que me traria um macaco ou uma ave qualquer exótica do Novo Mundo. E também prometeu
escrever todas as suas aventuras, sem exceção, para depois mas contar.
Xavier rodopiou as borras do vinho que haviam ficado no fundo da caneca, admitindo carrancudamente:
- De facto, ele deixou um papagaio e uma série de diários de bordo para ti.
- Oh!
- Lamentavelmente, fui obrigado a comer a ave e tive de usar os diários para atear o lume.
Miri empalideceu, mas recompôs-se de imediato.
- Bem, se tinhas frio e fome, isso é muito compreensível. Só espero que não te tenhas esquecido de agradecer ao papagaio por a sua vida ter sido sacrificada por
ti.
Xavier ficou a olhar para ela com fixidez, como se pensasse que Miri tinha enlouquecido. Mas depois soltou uma gargalhada relutante.
- Agradecer ao Mendigo do Mar? O diabo do pássaro só me teria invetivado e ele sabe praguejar em várias línguas fluentemente.
- Sabe? - perguntou Miri admirada, inclinando a cabeça de lado. Xavier olhou para ela demoradamente antes de os seus lábios esboçarem um sorriso.
- Sim. Eu só estava a brincar. Se o Miribelle não naufragou, os teus diários e esse papagaio infernal estão a salvo.
Miri riu-se e Jane poderia ter ficado menos tensa e sorrido igualmente se não se tivesse apercebido da expressão endurecida no rosto de Ariane.
- Perdoai-me se não partilho do vosso sentido de humor, capitão disse ela. - Mas dissestes que o nosso pai morreu há mais de dois anos?
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O sorriso de Xavier desapareceu e voltou a erguer as suas defesas.
- Sim e o que é que isso tem de mais?
- Surpreende-me saber que tivestes tempo mais do que suficiente para rumardes até à ilha Encantada para nos informar de que ele tinha falecido.
- Talvez eu tivesse assuntos mais importantes com que ocupar o meu tempo! - ripostou Xavier, respondendo a Ariane com palavras igualmente ríspidas.
Ignorando a provocação, Ariane pagou-lhe na mesma moeda.
- E talvez nunca tivésseis tido a intenção de entregar esses diários à Miri.
- Não, não tinha. Se era assim tão importante para o chevalier que esses diários lhe fossem entregues, ele devia tê-los confiado a outra pessoa quando estava no
seu leito de morte.
- Haveis ignorado a última vontade do paizinho? - perguntou-lhe Ariane arfante, levantando-se de repente. - Amaldiçoado sejais!
- Ariane, por favor. Estou certa de que o nosso irmão teve uma boa razão para isso.
Mas, desta feita, Ariane ignorou as tentativas conciliatórias de Miri. Espalmou as mãos na mesa e inclinou-se na direção de Xavier com o rosto muito corado, falando-lhe
num tom de voz tremente de cólera.
- Sabeis o quanto foi difícil para mim e para as minhas irmãs? O nosso pai ter desaparecido, a tortura que foi não sabermos o que lhe tinha acontecido? Esses diários
teriam tido uma importância incalculável para nós, mas não vos destes ao menor incómodo para que chegassem às nossas mãos. O nosso pai levou-vos com ele. Tivestes
o nosso pai durante todos esses anos...
- Eu tive-o? - atalhou Xavier, rangendo os dentes e levantando-se também repentinamente. Jane estendeu a mão para ele, fazendo também um esforço para restaurar a
paz, mas Xavier sacudiu-a.
- Quereis saber qual foi a única razão por que o chevalier me levou na sua grandiosa viagem ao Brasil? - perguntou desdenhoso.
- É óbvio. Porque éreis o seu precioso filho, enquanto nós não passávamos de meras...
- O precioso filho que ele nunca reconheceu legitimamente. Quando a minha mãe se apercebeu de que ele se preparava para se fazer ao mar, pelo que o mais provável
era nunca mais voltarmos a vê-lo, houve qualquer coisa dentro da minha mãe que se partiu por fim.
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"Ela pegou numa faca que encostou à minha garganta e disse ao chevalier que ou ele me reconhecia, finalmente, como seu filho ou ela matar-me-ia, matando-se em seguida.
"Talvez o chevalier não tenha acreditado nela porque hesitou. - Xavier soltou uma risada amarga. - Pelo menos, foi essa a razão em que eu sempre quis acreditar por
ele ter hesitado durante uma fração de segundo a mais antes de lhe responder.
Xavier interrompeu-se, levando a mão à cicatriz que tinha na garganta, a qual Jane deduzira dever-se a um cruel adversário ou vilão assassino. Mas, Deus lhe valesse,
a sua própria mãe... Jane tapou a boca com a mão enquanto ele acabava de descrever o que lhe tinha acontecido com rapidez e uma intensa emoção.
- Felizmente, a mão da minha mãe não tinha a firmeza suficiente para me golpear demasiado fundo. Quando o meu pai conseguiu estancar a hemorragia, deve ter chegado
à conclusão de que seria melhor levar-me consigo para não ficar com a minha morte a roer-lhe a consciência.
"Mas até nessas circunstâncias nunca me senti à vontade para o tratar por outra coisa que não fosse monsieur, como sempre tinha feito até então. E essa, madame,
é a medida do quanto tive o nosso pai.
Ariane encostou-se para trás na cadeira, mostrando-se abatida. A sua expressão fisionómica e a de Miri refletiam o mesmo horror que Jane sentia.
- Xavier, eu... eu... - Ariane ficou sem palavras, sem saber o que dizer perante aquela revelação. Mas isso não interessava, porque Xavier já as tinha deixado.
Xavier firmou uma perna diante de si, equilibrando-se na beira das rochas tão próximo da extremidade quanto lhe era possível sem cair nas vagas que se desfaziam
violentamente no areal vários metros abaixo de si. Embora deixar que o mar o engolisse lhe parecesse uma ideia excelente naquele momento.
Não conseguia acreditar na figura ridícula que tinha acabado de fazer. O que diabo é que se apoderara dele para ter verbalizado uma recordação que lhe causava tanta
mágoa, só lhe tendo faltado começar a fungar como um rapazinho que largara os cueiros havia pouco. E, ainda por cima, diante daquelas mulheres, as suas irmãs. Era
tão humilhante.
Quando ouviu alguém que chamava pelo seu nome, rangeu os dentes, sem se sentir com a mínima disposição para enfrentar quer Ariane quer Miri. Olhou para trás e não
se sentiu mais satisfeito por deparar com Jane, que se dirigia para si.
Gostaria de lhe ter berrado, dizendo-lhe que voltasse para trás, mas também podia ter tentado ignorá-la. No entanto, nem podia fazer uma coisa nem a outra. Ela continuava
a avançar persistentemente, pegando na orla do vestido para não tropeçar. Mas a brisa agreste enrolava-lhe as saias de baixo nas pernas, pelo que corria o risco
de perder o equilíbrio.
Se Xavier não interviesse, o mais certo era a tola da mulher dar uma queda, caindo na água espumosa e fria. Encurtou a distância entre os dois, dando vários passos
largos.
Jane começou a escorregar, mas ele conseguiu apanhá-la, passando-lhe um braço pela cintura e erguendo-a até ela ficar em segurança. Serviu-se do braço esquerdo,
mas sentia todos os músculos do corpo a esticarem até à
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outra extremidade. O braço que tinha fraturado havia tão pouco tempo latejou dolorosamente.
Mudou a posição do ombro para poder ajustar o pano em que trazia o braço ao peito, sem parar de invetivar Jane.
- Danação, mulher! Mas em que diabo é que estáveis a pensar para... Interrompeu-se quando ela conseguiu recuperar o equilíbrio e olhou para ele. Tinha os olhos rasos
de lágrimas.
- Oh, não! - Se ele não tivesse receado tanto que ela caísse, tê-la-ia soltado, apressando-se a deixá-la. - Não vos atrevais a isso! - disse-lhe numa voz exacerbada.
- Só porque eu fui suficientemente estúpido para falar de um acontecimento que teve lugar há tanto tempo, o que nunca teria feito se a Ariane não me tivesse provocado...
com os diabos, Jane! com certeza que não ireis chorar por causa de uma coisa que me aconteceu há tantos anos.
- N... não - retorquiu ela a fungar, mas as lágrimas começaram a cair-lhe dos olhos.
- Que inferno! - Mas havia muito pouco que pudesse fazer, não com as lágrimas a correrem pelas faces dela. Só lhe restava chegá-la mais a si.
Jane encostou o rosto ao peito de Xavier, enlaçando-o pela cintura. Ele continuou a segurá-la, sentindo-se inacreditavelmente pouco à vontade. Nas outras ocasiões
em que cometera a tolice de trazer o passado aos seus pensamentos, procurara alívio das recordações amargas, arranjando um pretexto qualquer para uma briga numa
taberna aonde fosse, ou no fundo de uma caneca de vinho, ou, ainda, ao alhear-se de tudo o que o rodeava num transe induzido pela poção.
Jamais teria procurado conforto numa mulher. Mas ter Jane nos seus braços dava-lhe uma sensação agradável, sentindo a suavidade do corpo dela e o calor das suas
lágrimas através do tecido da camisa, como se fosse um bálsamo estranhamente calmante. Sentiu-se relaxar, a despeito de si próprio.
- Estranho, não é? - murmurou Xavier, pousando o queixo na parte de cima da cabeça de Jane e com a boca encostada às madeixas do cabelo de uma textura sedosa. -
Tanto o meu pai como a minha mãe já morreram. O que é que existe nos progenitores de uma pessoa para eles continuarem a exercer tanto poder, sendo capazes de nos
reduzir outra vez à condição de criança, até mesmo depois de terem sido sepultados?
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- Não sei dizer - replicou Jane, afastando-se um pouco dele e limpando os olhos. Xavier mostrou-se relutante em a largar, continuando a agarrá-la ligeiramente pela
cintura.
- Vamos lá a saber... até que ponto é que fiz uma figura ridícula há pouco? - perguntou a Jane ansioso.
- De maneira nenhuma. Só lamento que a vossa revelação tenha tido origem em tanta dor e cólera, mas foi bom terdes sido capaz de falar sinceramente com as vossas
irmãs. Ambas ficaram extremamente comovidas, em particular a Ariane.
- Portanto, agora a Senhora da Ilha Encantada tem piedade de mim. Maravilhoso - resmungou Xavier. - Não há nada como uma pitada de sal a mais para esfregar nas feridas
de uma pessoa.
- Não se trata de piedade, mas sim de empatia. Estou em crer que ambos foram magoados pelo vosso pai, se bem que de maneiras diferentes.
- Jane olhou para ele com uma expressão séria. - É possível que seja um meio para que passe a existir uma maior compreensão entre vós e as vossas irmãs.
- E o que é que vos leva a pensar que eu quero um estreitamento de relações?
- Mas devíeis querer. É possível que o vosso pai vos tenha renegado, mas com um pouco de encorajamento da vossa parte, tenho a certeza de que a Miri e a Ariane considerar-vos-iam
como seu irmão em toda a aceção da palavra.
- Não me tenho saído nada mal sozinho durante todos estes anos. - Certificando-se de que Jane estava bem firme nos pés, Xavier deixou de a suportar com o seu braço.
Voltou a concentrar o olhar no mar, observando as vagas que se formavam, para rebentarem pouco depois, no seu ritmo inexorável que era tão familiar a Xavier como
o ritmo cardíaco do seu próprio coração. Já estava farto daquela conversa, considerando que expusera os seus sentimentos quanto chegasse para uma só manhã. Esperava
que Jane fosse boa entendedora, tratando de o deixar sozinho, todavia ela persistiu, adotando aquela sua maneira tão suave.
- Talvez não tenhais perceção do que haveis perdido por não terdes família - continuou Jane, fazendo uma pausa antes de acrescentar em voz baixa, num tom tão baixo
que ele mal conseguiu ouvi-la acima do bramir do mar: - Tudo o que me resta no mundo é uma prima que vive em Paris
179
que considera que os laços de família que nos unem pouco mais são do que uma inconveniência.
Xavier franziu os sobrolhos, sentindo-se um tudo-nada envergonhado ao aperceber-se de que, apesar das muitas conversas que ambos tinham tido ao longo dos últimos
dias, em grande parte só haviam falado a respeito dele. Para além de ter brincado com ela por causa dos seus falecidos maridos, nunca lhe passara pela cabeça fazer-lhe
perguntas sobre os restantes membros da sua família. Tinha presumido que ela teria alguém, algures. Uma dedução bastante estúpida da sua parte, porque, se ela tivesse
alguém, com certeza que não estaria a viver ali sozinha, na ilha Encantada.
- O que é que aconteceu aos vossos pais? - perguntou a Jane, virando-se para ela.
- Há muito que ambos faleceram. Mal me lembro da minha mãe e fiquei sem o meu pai quando tinha apenas doze anos. - Jane envolveu-se nos seus próprios braços, quer
para se reconfortar, quer por sentir frio, era coisa que ele não sabia dizer. Xavier mudou de posição, numa tentativa de fazer barreira entre ela e o vento que soprava
da direção do canal.
- E éreis filha única?
- Não, tinha um irmão, o Edward, que era muito mais novo do que eu. Ele... ele foi assassinado pouco antes de eu ter sido forçada a sair de Inglaterra.
- O que é que lhe aconteceu?
- É uma história muito comprida - respondeu Jane com um sorriso cheio de tristeza.
- Uma vez que a Ariane se recusa a emprestar-me um cavalo, não me parece que vá a lado nenhum nos tempos mais próximos. - Afastou para trás os fios de cabelo dela
que o vento lhe soprara para o rosto.
- Contai-me - encorajou-a. Jane suspirou.
- Bem, suponho que tudo tenha começado quando o meu irmão e eu começámos a conviver com a Margaret Wolfe e o pai dela em Londres, aonde ambos se haviam refugiado
para fugirem à Rainha das Trevas.
Jane interrompeu-se, franzindo as sobrancelhas.
- Não sei até que ponto é que estais ao corrente do trágico, e bastante incrível, passado da Meg. É possível que já tenhais ouvido alguns mexericos acerca dela da
boca de Madame Bevans e de algumas das outras mulheres. Receio ter de dizer que a maior parte do que elas dizem foi distorcido
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e exagerado. A verdade, tanto quanto me é dado saber, é o que vos vou dizer.
Jane começou a explicar-lhe como Meg, desde o seu nascimento, tinha sido aclamada como sendo a Rosa de Prata, a menina que um dia viria a ser uma poderosa feiticeira,
subjugando todos os homens à sua vontade. Essas profecias haviam ido anunciadas pela mãe de Meg, que era uma bruxa, Cassandra Lascelles. Eram os sonhos de uma louca
e não teriam passado disso se a irmandade das bruxas não se tivesse apoderado do Livro das Sombras por um mero acaso. Um livro de instruções que se dizia conter
práticas de magia negra tão poderosa que era cobiçado por muitas pessoas, incluindo Catarina de Médicis.
Xavier já tinha conhecimento de grande parte daqueles pormenores, tendo-se inteirado de muita coisa através da rainha Catarina, além das histórias que Jambe ouvira
em Portsmouth.
Xavier foi forçado a imprimir às suas feições uma expressão de muito interesse para não se descair. O que não devia ter-lhe sido difícil. Sempre havia sido um mestre
a enganar os outros, mas, para sua surpresa, cada vez tinha mais dificuldade em não ser franco com Jane. Talvez por a mulher ser infernalmente sincera.
No entanto, não foi obrigado a fingir surpresa quando ela lhe explicou como a sua vida ficara enredada na de Meg.
- Estou em crer que o destino do meu irmão ficou traçado quando me prenderam e me encarceraram na Torre de Londres, acusada da prática de bruxaria.
Ser levada para a infame Torre de Londres ou ser acusada de bruxaria não eram assuntos que devessem ser encarados de ânimo leve, mas Xavier não foi capaz de conter
uma gargalhada de incredulidade.
- Uma bruxa? Vós, Jane!?
- A mim também pareceu que era uma loucura - retorquiu ela, conseguindo esboçar um pequeno sorriso -, mas, vá-se lá saber como, o espião-mor da rainha Isabel, Sir
Francis Walsingham, meteu na cabeça que eu poderia ser a notória Rosa de Prata.
"A única maneira que ocorreu ao meu irmão de me salvar foi ir à procura de Meg, com a intenção de a obrigar a apresentar-se para confessar que era quem Sir Francis
procurava. Mas Ned teve a infelicidade de se cruzar com Ambroise Gautier, o assassino que a Rainha das Trevas incumbiu de encontrar o Livro das Sombras. Ned foi...
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Os olhos de Jane ficaram rasos de água e Xavier receou que ela começasse a chorar outra vez. Mas ela pestanejou para conter as lágrimas.
- O Ned foi assassinado por Gautier. O vilão atacou-o pelas costas com um punhal e... e o meu irmão não teve a mínima hipótese de lhe fazer frente. A Meg presenciou
tudo. Ela disse que Ned parecia mais surpreendido do que outra coisa. A sua... a sua morte foi muito rápida. Mas acho que a pobre Meg ainda tem pesadelos em que
revê tudo o que aconteceu.
- A pobre Meg?- ecoou Xavier. - Uma pessoa fica com a impressão de que os problemas seguem essa rapariga. A amizade que tendes por ela surpreende-me por vos ter
custado muito caro.
- A morte do meu irmão não foi por culpa da Meg. Ela nunca quis ser essa... essa Rosa de Prata, tal como nunca quis ter nada a ver com esse Livro das Sombras. Tão-pouco
Ned estava inteiramente isento de culpa em todo esse assunto. Ele também tentava deitar mão a esse livro. Ned interessava-se pelo oculto, um interesse que raiava
a obsessão.
Jane sentiu um arrepio.
- Era uma coisa que me atemorizava. Esforcei-me tanto por o dissuadir desse empreendimento tão arriscado, mas não me serviu de nada. Talvez devesse ter tentado mais
afincadamente. Eu era a mais velha de nós dois e quando o nosso pai faleceu jurei que o protegeria sempre.
- É impossível proteger alguém dos seus próprios demónios, Jane. - Xavier passou os dedos pelo contorno superior do malar dela, como se com essa carícia pudesse
afastar as sombras que lhe atormentavam os olhos. - Aprendi essa lição com a minha mãe quando ainda era muito novinho. Não havia nada que eu pudesse fazer para aliviar
as suas crises de histerismo, tal como não pude salvá-la da sombria melancolia que a atormentava.
- Não é de admirar que não pudésseis. Éreis apenas um rapazinho.
- Apesar disso, continuo a sentir um terrível sentimento de culpa por ter ido para o mar com o meu pai, abandonando-a. E ainda mais quando soube o que ela fez depois
de termos partido. Ofereceu a sua casa, os vestidos, as jóias, todas as coisas bonitas de que ela tanto gostava, para depois se enclausurar num convento.
"Só espero que não tenha sido meramente outra das suas atitudes loucas. Que tenha conseguido encontrar alguma paz de espírito antes de morrer. Talvez isso seja tudo
o que qualquer de nós possa desejar.
- Isso foi uma coisa que eu própria levei em consideração - disse Jane, mordendo o lábio inferior. - Vestir o hábito...
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- Não! - Xavier agarrou-lhe o braço com uma expressão ardente.
- Não fareis nada disso. - Ficou tão surpreendido com a sua própria veemência quanto ela. Soltou-lhe o braço, resmungando: - Não que isso seja assunto que me diga
respeito.
- Não, não é - concordou Jane, esfregando o braço. - Mas não tendes por que vos preocupar. Foram muitas as vezes em que o meu irmão me acusou de ser uma santa, mas
não sou. Longe disso. Devo confessar que não sou suficientemente boa nem santa para abraçar a quietude da vida monástica.
"Talvez porque parte de mim acredita que deve haver mais na vida do que apenas tentar encontrar paz de espírito, que continua a existir a esperança de também conseguirmos
encontrar muita alegria e felicidade. Mas não caso se opte por procurar a solidão entre os muros de um convento ou mesmo no convés de um navio.
Jane fitou-o com um sorriso de amargura.
- Por isso, capitão Xavier, antes de tomardes a decisão de viver o resto dos vossos dias sozinho, talvez devêsseis ponderar mais aprofundadamente a dádiva que as
vossas irmãs estão dispostas a oferecer-vos. É extremamente valiosa.
Só às primeiras horas da noite é que Xavier achou um momento oportuno para se dirigir furtivamente para o barracão que servia de estábulo a Ariane e onde ela tinha
os seus potros. Muitas mulheres estavam ocupadas a porem a ceia na mesa ou a lerem histórias às crianças para as adormecerem. Até mesmo Jane fora levada por Meg,
que tinha insistido em que precisava da ajuda dela, imediatamente, para passajar um rasgão que fizera numa das suas saias de baixo.
Era evidente que se tratava de outra das artimanhas de Meg para conseguir afastar Jane da presença dele, mas Xavier não se importara com isso. Tinha-lhe dado a oportunidade
que ele precisava para poder explorar as suas probabilidades de fuga.
À medida que a sua visão se ia ajustando à penumbra que reinava no barracão, examinava os dois potros presos nas respetivas estrebarias. O ruano era o que ele viu
a puxar a carroça em que a lenha era transportada até ao cimo dos penhascos, pelo que ainda não teria descansado o suficiente. A julgar pela maneira como achatou
as orelhas para trás quando viu Xavier, também devia ser uma besta com um temperamento irascível.
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O de pelagem cinzenta com manchas pretas, por outro lado, relinchou, quase como se estivesse a convidar Xavier a aproximar-se mais. O barracão era pequeno, pelo
que não teve dificuldade em ver onde os arreios e as selas eram guardados. Iria ter dificuldade em selar o potro, o que também se verificaria quando o levasse para
fora da aldeia sem que ninguém o visse.
Mas Xavier acreditava que haveria de arranjar maneira. Contudo, não era pensar nesses dois desafios que fazia com que hesitasse, mas sim ao recordar as palavras
de Jane.
"Devíeis ponderar mais aprofundadamente a dádiva que as vossas irmãs estão dispostas a oferecer-vos. é extremamente valiosa."
E talvez fosse para uma espécie de homem diferente. Ao longo dos anos, Xavier andara no mar com toda uma diversidade de homens das suas tripulações, desde os grumetes
de faces imberbes até aos velhos lobos do mar que andavam em navios havia tanto tempo, que tinham água salgada nas veias em lugar de sangue.
Mas por muito que esses homens amassem o mar, o contentamento que sentiam quando estavam prestes a ancorar no seu porto de origem era indescritível. Apressavam-se
a desembarcar para uma jubilosa reunião com as mulheres, filhos, irmãos, irmãs, primos e primas, enquanto Xavier permanecia a bordo do navio ou saía para se embebedar
solitariamente no quarto de uma estalagem qualquer.
Sempre dissera a si próprio que preferia que a sua vida fosse assim, sem ter nada que o prendesse, sem âncoras que o fixassem. Mas talvez essa maneira de pensar
se devesse mais aos anos que desperdiçara a esforçar-se por conquistar a aprovação do pai e para que ele o reconhecesse como seu filho. Era muito melhor não ansiar
pelo amor de quem quer que fosse do que ficar desiludido.
Xavier deu mais um passo para se aproximar do potro cinzento com malhas pretas, mas foi detido pela voz de alguém que o aconselhava.
- Eu não optaria por esse.
Xavier virou-se rapidamente para trás, deparando com Ariane, que enxugava as mãos no avental e cuja silhueta se recortava na ombreira do portão.
- É possível que o Relinchos pareça um animal encantador, mas tenho de vos dizer que não é de fiar. Não hesitará em morder-vos o traseiro assim que lhe virardes
as costas.
- Estais a falar acerca do potro ou de mim? - perguntou Xavier com secura.
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- Do potro, espero eu.
Depois do episódio entre Xavier e Ariane horas antes, ele tinha esperado que, quando voltassem a encontrar-se, a ocasião seria de bastante mal-estar entre os dois,
sem ser preciso o acréscimo do embaraço de ela o ter apanhado prestes a pôr-se a andar num dos seus potros. Tinha contado com que ela se mostrasse tão pouco à vontade
quanto ele próprio, no entanto viu o assomo de um sorriso nos lábios de Ariane quando entrou no barracão.
- Se tencionais roubar um potro, não vos parece que devíeis ter procedido um pouco mais furtivamente? Podíeis ter esperado até mais tarde, quando estivéssemos todos
a dormir. Estou em crer que teremos uma noite de lua cheia e sem nuvens.
Xavier ainda pensou em negar a acusação dela, mas o que é que lhe poderia dizer? Que sentira um impulso repentino e inexplicável de inspecionar o gado equino dela?
Xavier optou por se rir.
- vou refletir sobre o vosso conselho. Mas devo reconhecer que sou mais competente a cometer roubos em pleno mar alto do que em terra firme.
- Sois um corsário? Porque será que não me sinto surpreendida? Mas está-me a parecer que estou surpreendida. Não é uma atividade que eu teria esperado que o nosso
honrado pai vos ensinasse como meio de vida. O rosto de Ariane ensombrou-se quando acrescentou com amargura:
- E claro que tenho de começar a aprender a aceitar muitos factos a respeito do nosso pai, que ocorreram ao longo dos anos, que me têm deixado perplexa e muito desgostosa.
Xavier perscrutou-lhe o semblante, perguntando-se que espécie de noções risonhas é que Ariane e as irmãs haviam acalentado a respeito do chevalier. Muito provavelmente
bastante semelhantes às suas quando era um garoto com a cara encostada ao vidro da janela, à espera dia após dia, na esperança de uma visita do homem que não considerava
ser menos do que um deus. O seu pai forte e alto, o mais valente e mais nobre de todos os cavaleiros de França.
Xavier perguntou-se, exatamente, quando é que a desilusão se instalara em si. No momento em que a mãe lhe encostara a lâmina à garganta e o pai não tinha reagido
atempadamente?
Ou isso teria acontecido bastante mais tarde, no dia em que os raptores espanhóis lhe tinham agrilhoado os pulsos, altura em que se apercebeu de
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que aquele nobre pai resgatara outros tão heroicamente, mas sem sequer ter reparado que o filho não se encontrava presente.
Xavier sempre pensara que se sentiria perversamente satisfeito por as filhas muito queridas do pai partilharem alguma da mágoa e desilusão que ele próprio sentia.
Mas ao ver a expressão tão amargurada de Ariane, sentiu-se forçado a tranquilizá-la.
- O nosso pai nunca foi um corsário. O chevalier teria considerado que essas ações à revelia da lei constituíam uma conduta que não era própria, mas sim indigna,
de um gentil-homem. Eu optei pela pirataria única e exclusivamente de moto próprio.
Sem ter consciência do que fazia, Xavier estendeu a mão para acariciar o focinho do potro malhado. Foi por um triz que conseguiu afastar a mão para impedir que os
dedos fossem mordidos.
- Aqui tendes - disse Ariane, tirando uma maçã do cesto que estava a um canto. - Dai-lhe isto. À semelhança da maior parte dos homens, o Relinchos fica mais bem-disposto
depois de lhe terem dado de comer.
Quando o potro lhe tirou a maçã da mão estendida com avidez, Ariane aproximou-se mais de Xavier. Ao contrário da atitude com que lhe fizera perguntas horas antes,
agora mostrava-se mais conciliadora.
- E então... o paizinho ensinou-vos a montar?
- Ensinou, mas penso que, em grande parte, para que não fosse obrigado a considerar-me um caso perdido.
- E a nadar? Também vos ensinou isso?
Xavier acenou afirmativamente.
- Ele também me ensinou a nadar. Ele até ensinou a Gabby a manejar uma espada, o que fez com que algumas mulheres da ilha Encantada ficassem chocadas. Era considerado
deveras estranho que um nobre ensinasse uma coisa dessas à filha. Todos supuseram que ele só fez isso por acreditarem que ele não tinha um filho varão.
- E não tinha, segundo ele.
- Oh, Xavier. - Ariane aproximou-se ainda mais dele e, por um momento medonho, ele pensou que a intenção dela era abraçá-lo e chorar. Era uma coisa suportar isso
em Jane, mas não tinha a certeza de ser capaz de lidar com esse género de explosão de emoção da parte da sua empertigada irmã. Ela respirou fundo. - Peço desculpa
pela maneira como me comportei. Desde que chegastes...
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- Não, não quero ouvir nada disso - apressou-se ele a atalhar. - Já tive emoções de sobra por um dia. Ao fim e ao cabo, a capacidade de encaixe de um homem tem limites.
- Mas Ariane prosseguiu, persistente.
- Por favor, ouvi o que tenho a dizer. Acontece que foi extremamente difícil perder o paizinho dessa maneira. Suponho que, em certa medida, fiquei com a impressão
de que o tínheis roubado de nós.
- O que não poderia ter feito, ainda que tivesse tentado. Ele nunca pensou noutra coisa que não fosse em vós, nas vossas irmãs e na vossa mãe. O nome dela foi a
última coisa que ele disse antes de morrer.
- Quando o paizinho se foi embora, levou o retrato da minha mãe. Era o único retrato que tínhamos dela. - Ariane olhou para ele com uma expressão esperançada. -
Suponho que não sabeis o que é feito dessa miniatura?
- Sepultei-o com esse retrato.
- Oh... - Ariane baixou as pálpebras para ocultar o quanto se sentia dececionada.
- Lamento - resmungou Xavier. A sua voz adquiriu um tom mais roufenho enquanto procurava explicar o que continuava a considerar tolices sentimentais da sua parte.
- Tenho a certeza de que deve ser por demais evidente que o chevalier e eu não tínhamos uma relação das mais amistosas. Todavia, a morte dele afetou-me mais profundamente
do que eu teria esperado ser possível. Detestei ser forçado a enterrá-lo numa campa num lugar remoto no Brasil.
"Quando ele faleceu com o retrato da vossa mãe nas mãos, não fui capaz de lho tirar. Pensei... bem, pelo menos, não o deixarei aqui sozinho.
- Xavier sentiu-se corar. - Tenho consciência de que foi um gesto estúpido.
- Não, não foi. Fico satisfeita por saber que deixastes o retrato com ele e tenho a certeza de que a minha mãe teria desejado isso - retorquiu Ariane com um sorriso
trémulo nos lábios, que desapareceu quase de imediato. - Mas se ele me amava e às minhas irmãs tanto como dizeis, porque é que nunca mais veio a casa? Porque é que
nunca mais voltou à ilha Encantada?
- Não faço a mais pequena ideia.
Quando viu que a resposta concisa lhe causou mágoa, Xavier acrescentou:
- Ariane, não sei realmente. Qualquer empolgamento que o chevalier possa ter sentido na exploração do Brasil não tardou a desaparecer, e ele
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era demasiado honesto para fazer fortuna da maneira implacável a que é necessário recorrer nessas paragens.
"Envolveu-se em tentar ajudar um grupo de huguenotes franceses a estabelecerem uma colónia na costa da Florida. Mas depois de os espanhóis terem atacado e arrasado
essa colónia, eu teria pensado que o chevalier trataria de rumar de regresso a casa. - Xavier suspirou. - Se ele tivesse feito isso, talvez ainda estivesse vivo.
O mundo para lá da linha equatorial era demasiado duro, demasiado implacável e demasiado selvagem para um homem tão civilizado. O seu lugar não era nessas terras.
- Mas é o vosso?
- O mar é o único lar que tive desde sempre.
- Mas com certeza que até um corsário precisa de um porto seguro onde possa descansar os ossos cansados de vez em quando. Eu... eu desejaria que considerásseis sempre
que a ilha Encantada é o vosso porto seguro.
Ariane estendeu-lhe a mão. Xavier só conseguiu olhar fixamente para aqueles dedos compridos e afuselados. Tinha a certeza de que Ariane nunca lhe teria feito aquela
generosa oferta se estivesse ao corrente de toda a sua vida, do tempo que passara em Paris no outono passado aos pés de Catarina de Médicis. A Rainha das Trevas,
a maior inimiga das senhoras da ilha Encantada.
E, contudo, tinha a sensação de que esses dias há muito que pertenciam ao passado. Verdade fosse dita, não tinha a mínima intenção de voltar a Paris, pois não? No
entanto, houve uma recordação indesejada que lhe ocorreu ao pensamento, a sua mãe a chorar quando foi chamada à corte.
"Não vás, mãezinha", suplicara-lhe ele, escondendo a cara na saia do vestido de seda de Marguerite. "Dz% que não à rainha má."
"Oh, Louis", retorquira a mãe lavada em lágrimas. "Ninguém diz não à rainha Catarina. Depois de se ter aceitado o dinheiro dela, uma pessoa passa a pertencer-lhe
para sempre."
Talvez isso tivesse sido verdade no que diz respeito à sua infortunada mãe, mas não se aplicava a ele. Estava livre da Rainha das Trevas... desde que optasse por
isso.
E Jane tinha razão. O que Ariane lhe oferecia era extremamente valioso. Não se tinha apercebido até ao momento do quanto ansiara por isso mesmo.
Estendeu a mão para Ariane. Fechou a mão dela nas suas, aceitando a oferta de amizade da irmã, esperando que nunca viesse a dar-lhe motivos para se arrepender.
A tropa a cavalo percorria a rua estreita ruidosamente, dirigindo-se para a porta da cidade por onde se saía para os arredores de Paris. Catarina observava da janela
da sua alcova no Hotel de la Reine, ficando a olhar para os homens a cavalo até desaparecerem do seu raio de visão.
- Henrique, meu grande idiota - disse entre dentes, amaldiçoando o filho. Era óbvio que nenhum dos seus conselhos de cautela havia causado a mínima impressão no
rei.
Continuando a ferver de raiva devido ao ataque sofrido pelo seu amado amigo Epernon, Henrique tornara-se desconfiado e receoso ao ponto da obsessão. Contra todos
os conselhos de Catarina, estava a circundar Paris com homens armados, ameaçando o duque de Guise se ele pusesse pé em Paris, afirmando que ele seria preso e acusado
de traição.
As afirmações do monarca, a par do cordão de tropas, estavam a fazer com que os cidadãos de Paris ficassem tão enervados como o seu filho. Catarina ouvira rumores
de que algumas pessoas haviam enviado petições ao duque, implorando-lhe que fosse à cidade para as salvar do rei, que consideravam que era um tirano louco.
Um pedido que Catarina rezava para que fosse ignorado pelo duque de Guise. Não sabia o que Henrique lhe faria se alguma vez o tivesse à sua mercê. Mas sentia-se
ainda mais atemorizada ao pensar no que a população de Paris talvez lhe fizesse e ao filho se acontecesse algum mal ao duque de Guise.
Catarina soltou um pesado suspiro que se devia à frustração e ao amargo desapontamento que o comportamento de Henrique lhe suscitava. Sempre havia acreditado que
o filho tinha mais sangue dos Médicis nas veias do que os seus outros filhos. O suficiente para saber que o curso de ação
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mais sensato para com um inimigo como o duque de Guise era sorrir-lhe e dar-lhe a mão, esperando pelo momento mais oportuno para atacar. Não provocar um confronto
de que era impossível sair vencedor.
Catarina mal conseguira sobreviver a uma revolução durante a sua infância. E agora sentia-se velha de mais para poder enfrentar outra. Tinha sido com extrema dificuldade
que conseguira levantar-se da cama naquela manhã, sentindo dores tão excruciantes nas articulações que qualquer mulher com menos fortitude do que ela teria chorado,
os dedos tão inchados e deformados pelo reumatismo que mal era capaz de os endireitar.
Se ao menos tivesse uma única gota do elixir de Xavier... Mas bastava pensar no homem para que se sentisse ainda pior, sentindo um latejar palpitante de cólera na
fronte. Se alguma vez viesse a pôr as mãos naquele patife, ordenaria que fosse arrastado pelas ruas e esquartejado.
Para apaziguar o embaixador espanhol, Henrique enviara tropas com a missão de prenderem Xavier se ele se atrevesse a voltar a viver em França. Entretanto, haviam
chegado notícias de que o navio de Xavier, o Miribelle, tinha sido visto ao largo da costa da Bretanha.
O Miribelle. Catarina ficou de sobrolho carregado. Durante todas as conversas entre os dois, Catarina não achava que Xavier tivesse mencionado o nome da sua carraca.
Estranho que tivesse o nome da filha mais nova de Evangeline.
Havia qualquer coisa que estava a espicaçar-lhe o cérebro, uma recordação bastante vaga, como cacos de louça partida que ela devia ser capaz de juntar. Chamou a
imagem do rosto de Xavier ao pensamento. A recordação fluía como água, congelando-se até ficar suficientemente sólida para se poder pegar-lhe...
- Majestade?
A voz suave que se ouviu atrás do ombro de Catarina sobressaltou-a. A recordação dissolveu-se como se tivesse sido açoitada por um vento forte que lhe atravessasse
a mente, reduzindo-a a nada.
Frustrada, virou-se para a jovem dama de honor.
- O que é que se passa contigo, rapariga? Como é que te atreves a vir à minha presença dessa maneira tão sorrateira?
- P... peço perdão, majestade - disse Mademoiselle de Bec, encolhendo-se toda e retrocedendo. - Mas pensei que gostaríeis de saber que a mulher idosa que ordenastes
que vos trouxessem já chegou.
- Mulher!? Mas que mulher idosa?
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- M... Madame Pechard.
- Oh, sim. - Catarina massajou a região da fronte que sentia a latejar. Que Deus lhe valesse; já teria chegado ao ponto de não se lembrar de nada? Tentou recuperar
alguma semelhança com a sua habitual compostura. - Diz a Madame Pechard que aguarde na antecâmara até eu ter tempo para acabar de me preparar. - Até mesmo enquanto
Catarina dava esta ordem, os seus lábios esboçaram um trejeito autodepreciativo. Em tempos, não teria dado grande importância a uma criatura tão inferior como Madame
Pechard, pensando que devia apresentar uma postura intimidante quando a recebesse.
A expressão nos olhos de Catarina de Médicis, por si só, teria sido o suficiente para que a mulher ficasse a tremer. Mas agora indicou a Lady Touchet que lhe fosse
buscar a coifa, que lhe dava um aspeto mais severo, era chegada à cabeça e a frente acabava num triângulo que se estendia até à testa larga.
Enquanto Lady Touchet lhe ajustava a coifa na cabeça, Catarina via-se ao espelho. A falta de vista não era suficiente para a poupar à imagem da sua fisionomia, onde
os efeitos da passagem dos anos eram bastante evidentes: a acentuada papada, as rugas fundas nos cantos dos olhos e o pronunciado vinco nas comissuras dos lábios.
Os olhos, em tempos escuros e penetrantes tão característicos dos Médicis, agora pareciam toldados por uma névoa que era permanente.
Era tão estranho, pensou. Havia ocasiões em que se sentia tão velha como se já tivesse vivido durante um século, enquanto noutros dias tinha a sensação de que aquelas
feições tão envelhecidas não podiam ser as suas, que algures, aprisionado no interior daquela carcaça deteriorada, havia o corpo de uma mulher jovem cheia de vitalidade
que se esforçava por afirmar o seu poder.
Quando Mademoiselle de Bec tentou pôr-lhe na mão uma bengala com castão de prata, Catarina afastou-a para o lado. Recusava-se a ceder a tal admissão de enfraquecimento,
se bem que só ela sabia o esforço que lhe custava manter os ombros direitos e uma postura ereta apesar das dores que a atormentavam.
Pelos céus e pelo inferno, ela continuava a ser aquela que chamavam de Rainha das Trevas. Se não fosse capaz de apresentar um aspeto formidável que chegasse para
intimidar uma Filha da Terra ranhosa como Hermoine Pechard, então o melhor seria Catarina já estar na sua sepultura.
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Optou por receber Madame Pechard no salão principal. Nenhuma das câmaras do Hotel de la Reine poderia rivalizar com a magnificência dos palácios reais do Louvre,
Blois ou Chenonceau. Mas Catarina começara a preferir cada vez mais o Hotel de la Reine, o seu refúgio onde podia ser mais a mulher e menos a rainha.
As paredes do salão estavam cheias dos seus livros preferidos e retratos dos seus antepassados Médicis, uma herança que seria insensato exibir perante os seus cortesãos
franceses, que sempre haviam desdenhado e desconfiado da sua linhagem italiana.
O Hotel de la Reine tinha sido construído próximo do Fille Repenties, um convento que se destinava a acolher raparigas indigentes para as salvar da vida nas ruas.
A ironia de que aquilo se revestia não passava despercebida a Catarina. Durante aquela revolta em Florença, que tivera lugar havia tantos anos, tinha sido forçada
a procurar refúgio num convento. Tinha a sensação de que a sua vida estava prestes a completar um círculo.
Catarina ordenou que trouxessem Hermoine Pechard à sua presença. Mas quando a mulher foi acompanhada até à câmara, a rainha ficou com uma expressão carrancuda, receando
que alguém tivesse cometido um erro. Madame Pechard sempre fora uma criatura magricela e pouco atraente, mas, pelo menos, era uma década mais nova do que ela.
A mulher com uns fios de cabelo esparso e despenteado, caídos para a face de feições encovadas e amarelentas, parecia demasiado velha para ser Hermoine Pechard.
Mas quando a criatura começou a falar, Catarina reconheceu a voz irritante e lamurienta.
- M... majestade. - Hermoine deixou-se cair diante da rainha, prestando obediência respeitosa a Catarina, que lhe estendia a mão. Catarina retraiu-se ao toque dela.
As mãos de Hermoine tinham uma pele avermelhada, seca e áspera, com algumas das unhas lascadas e as peles repuxadas.
Catarina recuou repugnada, mas conseguiu falar num tom de voz agradável.
- Levantai-vos, minha querida Madame Pechard. Que prazer ver-vos de novo depois de tantos...
A mulher apressou-se a interrompê-la, mostrando uma expressão de desespero.
- Por favor, majestade. Porque é que me haveis chamado, não vos serei de nenhuma utilidade. Não possuo informação nenhuma que vos possa ser minimamente útil. Portanto,
por muito que me ameaceis ou me tortureis...
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- Hermoine! Minha querida. Deixastes que a vossa imaginação vos levasse a melhor. Não ando à procura de informações e podeis ter a certeza de que não tenciono fazer-vos
mal nenhum.
- Não? - retorquiu a mulher numa voz tremente. - Nesse caso, o que é que vossa majestade pretende de mim?
- Mas será possível que uma mulher, ainda que seja uma rainha, não possa mostrar-se interessada e curiosa em saber como é que uma velha amiga tem passado?
- Amiga? - repetiu Hermoine fungando. - Em tempos, vossa majestade ameaçou-me de que mandaria que eu fosse metida dentro de uma saca que depois de cosida seria atirada
ao Sena.
As sobrancelhas de Catarina arquearam-se. Seria possível que houvesse uma centelha de garra naquele verme miserável? Sempre pensara que afogá-la teria sido um ato
de generosidade e via muito pouco na aparência desprezível de Hermoine que a fizesse mudar de ideias. Até mesmo enquanto esta proferia a sua acusação, tremia de
tal maneira que os ossos frágeis pareciam estar prestes a partirem-se.
Catarina obrigou-se a esboçar um sorriso tranquilizador.
- Decerto que não pensais que vos chamei aqui para rememorar o passado, muito embora, em tempos idos, tenhais andado a espiar-me a mando da Senhora da Ilha Encantada.
Quando Hermoine abriu a boca para protestar, Catarina cortou-lhe a palavra.
- Isso não passou de um infeliz mal-entendido, do que tenho a certeza. Mas se haveis feito isso, há muito que vos perdoei, por conseguinte não tendes por que tremer
dessa maneira. Sentai-vos e permiti que vos ofereça algo de beber.
Hermoine parecia uma prisioneira que era levada para o patíbulo, mas os seus olhos brilharam ao ver uma grande diversidade de frutas cristalizadas, queijos e vinho
que Catarina ordenara que servissem numa pequena mesa.
A exemplo de muitas das Filhas da Terra, houve tempos em que Hermoine Pechard se teria mostrado reticente em aceitar o que quer que fosse de comer e beber oferecido
pela Rainha das Trevas. Mas a julgar pelo vestuário já muito coçado e remendado de Madame Pechard, Catarina suspeitava de que havia muito tempo que ela não desfrutava
daqueles acepipes.
193
Após apenas uma breve hesitação, Hermoine juntou-se a Catarina já sentada à mesa e atirou-se às guloseimas. Faltavam-lhe metade dos dentes, forçando-a a trincar
como uma ratazana cheia de avidez.
Disfarçando a aversão que sentia pela mulher, Catarina enchia e voltava a encher-lhe a caneca de vinho. Não foi preciso muito tempo para que Hermoine desse largas
à língua. Ela sempre estivera pronta para desfiar uma litania das suas maleitas e queixas. O único desafio de Catarina era conseguir ouvir até lhe surgir a oportunidade
de desviar a conversa na direção por que desejava que enveredasse.
- ... e a minha vida tem sido tão dura que vossa majestade nem sequer será capaz de imaginar - dizia Hermoine, engolindo um bombom, que ajudou a escorregar pela
garganta com um generoso gole de vinho. - Houve uma altura em que fiquei reduzida à mendicidade. Somente um grande golpe de sorte é que me permitiu arranjar trabalho
em casa de um abastado negociante.
Hermoine pousou a caneca de vinho e soltou um soluço.
- Tive a sorte de conseguir o lugar de criada que trata da lavagem da louça! Eu que em tempos fui dona da minha própria casa, a mulher respeitada de um médico da
universidade...
- Sim, sim - atalhou Catarina num tom de consolo, contendo a sua impaciência, mas sem ter a mínima vontade de ouvir Hermoine a expressar o mesmo lamento de sempre,
como o facto de ter sido presa por ordem da rainha fizera com que passasse a ser do domínio público que era uma Filha da Terra, o que lhe custara tudo. O escândalo
a que essa situação dera origem tinha feito com que o marido de Hermoine a repudiasse, deixando-a num estado de indigência.
- Uma criada que trata da lavagem da louça - voltou a lamuriar-se.
- Eu costumava ter umas mãos tão brancas, tão bonitas, e agora vede como estão.
Catarina retraiu-se. Tentava não ver.
- É absolutamente lamentável, mas posso oferecer-vos uma poção especial que costumo preparar para as minhas cortesãs da corte.
Hermoine estremeceu, encolhendo-se toda.
- Não! Nada de mais poções para mim. Vejo-me numa situação absolutamente deplorável, mas é tudo o que me impede de passar fome. Se a minha patroa viesse a descobrir
que eu costumava ser uma... uma...
- Uma bruxa? - adiantou Catarina em voz baixa.
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- Não! Nunca isso. - O tom de voz de Hermoine baixou até não
passar de um sussurro, mas que continuava a ter um tom ridiculamente elevado na câmara, onde o silêncio reinava. - É verdade que fui uma Filha da Terra, mas já não
sou. Eu... eu pus fim a tudo isso.
- Mas isso será possível para qualquer uma de nós, minha querida Hermoine? Quando se é uma Filha da Terra, nunca se deixa de ser uma Filha da Terra.
- Não, não eu. - Hermoine bebeu mais vinho e abanou a cabeça vigorosamente. - Garanto-vos de que isso ficou tudo para trás. Tal como já disse a essa estúpida mulher,
a Lavalle, quando teve a impertinência de me procurar para me perguntar se queria assistir à assembleia do conselho...
Hermoine ficou com a respiração arquejante, levando a mão à boca. "Um pouco tarde de mais, grande idiota", pensou Catarina enquanto interiorizava a única coisa interessante
que tinha saído da boca de Hermoine desde que a mulher tinha posto pés no salão.
Por conseguinte, Louise Lavalle estava de regresso a Paris. Era uma pena que Catarina não tivesse tido conhecimento disso quando tentou encontrar alguma Filha da
Terra que pudesse fornecer-lhe informações recentes acerca da ilha Encantada.
Louise era inteligente e, muito provavelmente, Ariane depositaria bastante confiança nela. Tal como Hermoine tinha espiado Catarina de Médicis em tempos idos, a
rainha, por seu lado, tinha coagido a mulher a espiar Ariane. Hermoine traía todos e ninguém confiava nela.
Contudo, Louise teria agido com mais astúcia, pelo que teria sido mais difícil levá-la a dar informações, até mesmo se Catarina tivesse sido capaz de encurralar
aquela matreira antiga cortesã. Era possível que Hermoine não fosse uma fonte de informações tão importante, mas era, sem dúvida nenhuma, mais fácil de influenciar.
Catarina voltou a encher, uma vez mais, a caneca de vinho de Hermoine, comentando num tom casual:
- Portanto, a Ariane retomou as reuniões do conselho no cume dos penhascos de Argot.
- É o que a Louise diz - retorquiu Hermoine, olhando taciturnamente para dentro da caneca de vinho.
- E não tendes a intenção de viajar com Mademoiselle Louise Lavalle para assistir à reunião do conselho?
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- Como se eu fosse a algum lado com essa rameira. Perderia a minha posição num piscar de olhos se desaparecesse durante uma quinzena. Não podia ir, ainda que quisesse...
o que não quero.
Catarina examinou Hermoine atentamente. Era possível que a sua visão não fosse o que costumava ser, mas continuava a ter um sentido auditivo muito apurado. Estaria
a detetar uma nota de nostalgia no tom de voz de Hermoine? Suspeitava de que, apesar de ela ter repudiado tão veementemente o facto de ser uma Filha da Terra, a
mulher continuava a sentir a falta da sua ligação a esse mundo.
As palavras que Hermoine proferiu a seguir confirmaram a impressão de Catarina. A mulher encurvou os ombros e falou num timbre de voz de tristeza quando acrescentou:
- Não que eu fosse acolhida de braços abertos na ilha Encantada, não por ocasião de uma reunião do conselho tão especial, um acontecimento que tem lugar uma vez
na vida. - Olhou para Catarina com uma expressão de ressentimento. - Não depois de ter sido forçada a dar-vos informações sobre o que se passava lá.
- Não me recordo de vos ter forçado a fazer o que quer que fosse, minha querida.
- Haveis-me prometido de que, se espiasse a Ariane, me ajudaríeis a recuperar a minha casa e que obrigaríeis o meu marido a voltar para mim.
- Até mesmo eu não sou capaz de fazer milagres, Hermoine. Mas tudo isso pertence ao passado. - com um gesto da mão, Catarina menosprezou os escombros patéticos que
restavam da vida de Hermoine. - Mas adiante. Dizei-me o que é que há de tão especial nessa reunião do conselho em particular?
- É... especial? Eu disse isso? - Hermoine empurrou a caneca de vinho, arredando-a da sua frente e mostrando-se tão desconfiada e suspeitosa como se tivesse estado
a beber uma poção da verdade.
- Sim, Hermoine, dissestes - confirmou Catarina, que foi forçada a reprimir uma irritação crescente. Em tempos passados, teria podido imobilizar aquela mulher que
tanto se lamuriava com o seu olhar, ter-lhe-ia sido possível descarnar até ao osso todos os seus pensamentos como um corvo arrancava a carne de uma lebre morta.
Mas agora só lhe restava recorrer à sua perspicácia. - Haveis classificado o acontecimento como um daqueles que só acontece uma vez na vida. O que é que quisestes
dizer com isso... - Catarina interrompeu-se abruptamente ao perceber o que se passava.
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A escolha. A Senhora da Ilha Encantada estava a preparar-se para designar a sua sucessora. Durante alguns momentos, Catarina sentiu-se invadida por uma muito amarga
inveja de Ariane. Era tão simples, tão satisfatório, ser-se capaz de escolher o nosso próprio herdeiro, em vez de se ser obrigado a seguir as tradições arcaicas
da lei sálica a que o trono francês estava obrigado. Se tivesse sido possível a Catarina designar o próximo rei ou, melhor ainda, a próxima rainha, com certeza que
isso teria ajudado a cercear as ambições de homens como François de Guise. A sua dinastia e o seu poder não assentariam na esterilidade do ventre da sua nora.
Catarina soltou um suspiro fundo e demorado.
- Portanto, quem é que a Ariane vai escolher?
Hermoine ficou surpreendida, mas, de imediato, tentou recompor-se.
- Eu... eu não percebo o que quereis dizer - retorquiu titubeante.
- Sim, percebeis - disse Catarina, pousando uma mão no braço da mulher para a impedir de meter nervosamente outro bombom na boca.
- A Senhora da Ilha Encantada anda a preparar-se para anunciar quem é que lhe sucederá. Quem é essa pessoa?
- Eu... eu não sei. E a Louise também não sabe. Como de costume, a mulher só estava cheia de mexericos maldosos e de rumores mais perniciosos. A Senhora da Ilha
Encantada possui tanta sabedoria. Ela jamais faria uma escolha tão perigosa... - Hermoine calou-se de repente, mostrando-se extremamente desolada.
Catarina já não tinha capacidade para ler olhos, mas era óbvio que Hermoine não sabia isso. A mulher estava possuída de uma grande agitação, tentando desesperadamente
evitar o olhar da rainha.
Uma escolha perigosa? com certeza que Hermoine não estaria a referir-se a...
com o coração a bater fortemente, Catarina pegou no queixo da mulher. Forçou-a a fitá-la, chamando a si o seu olhar mais intenso.
- A Senhora da Ilha Encantada tenciona escolher a Megera - arriscou-se a dizer. - A Ariane tem estado a ocultar a Rosa de Prata na ilha durante todos estes meses
e agora tem a intenção de designar a rapariga como a próxima Senhora da Ilha Encantada.
- N... não!
Mas Catarina conseguia aperceber-se da mentira na negativa de Hermoine, que estava atemorizada. Soltando a mulher, Catarina balouçou a sua cadeira para trás. Estava
estupefacta. Não por Megera se encontrar realmente
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na ilha Encantada. Já deduzira isso havia vários meses, embora fosse bom ver as suas suspeitas confirmadas. Mas o facto de Ariane estar a considerar nomear a rapariga
como sua sucessora - isso era uma coisa que Catarina nunca teria imaginado.
Entretanto, Hermoine entregou-se a um discurso incoerente. A Senhora da Ilha Encantada não podia, não o faria, escolher essa rapariga. Louise dissera que existiam
outras possibilidades; uma sobrinha ou outras das jovens mulheres que viviam na ilha.
Mas Catarina mal ouvia uma única palavra do que ela lhe dizia. Tinha muito poucas dúvidas acerca de quem é que Ariane escolheria. com certeza que sabia quem é que
ela própria teria escolhido. Portanto, agora, Ariane beneficiaria de todos os extraordinários conhecimentos que a rapariga possuía, de todo esse poder, enquanto
Catarina via o seu reino a ser arruinado às mãos do seu inepto filho, enquanto ela se encontrava cada vez mais com os pés para a cova, acabando por ser inexoravelmente
votada ao esquecimento.
A fúria e o rancor aumentavam dentro de Catarina, dando-lhe a impressão de estarem a sufocá-la. Se Xavier não tivesse faltado à sua palavra, cumprindo as ordens
que ela lhe dera, toda aquela situação poderia ter sido evitada. Até era muito possível que a Rosa de Prata já se encontrasse ao alcance de Catarina naquele preciso
momento.
Mas não lhe serviria de nada continuar a ferver por causa da traição de Xavier. O vilão faltara-lhe. Uma vez que não podia depender de Xavier, Catarina teria, muito
simplesmente, de encontrar outra maneira de conseguir os seus objetivos. E antes que fosse tarde de mais.
O Sol punha-se com uma lentidão agonizante no dia da escolha. Ou, pelo menos, era o que parecia a Meg, que tinha os nervos em franja, possuída de uma enorme tensão.
Enquanto o orbe dourado descia vagarosamente no horizonte, os penhascos de Argot já estavam envoltos no manto do crepúsculo, os monólitos a formarem um círculo de
gigantes umbrosos à espera de a julgarem.
Trajada com o seu melhor vestido, a indomável massa de cabelo castanho contida numa apertada trança, Meg juntou-se ao cortejo, à luz das chamas de archotes, que
subia pelo trilho de terreno acidentado.
Em seu redor, a atmosfera era de empolgamento, as mulheres reunidas em pequenos grupos conversavam e riam. Carole estava rodeada por muitas das residentes mais idosas
da ilha, enquanto Seraphine presidia à sua corte no meio de um bando de raparigas que a admiravam.
Meg era a única que caminhava em silêncio, deixada à mercê dos seus pensamentos. Podia ter tido a companhia da sua velha e fiel criada, Agatha Butterydoor. Mas Aggie
deixara-se ficar para trás, tendo dificuldade em subir pela encosta íngreme. Era ajudada pelo seu cajado e pelo apoio que Ladyjane Danvers lhe dava.
Meg sentia-se satisfeita por Jane ter cedido perante as suas súplicas, tendo acabado por concordar em assistir à reunião do conselho. Mas o alívio de Meg era mais
por Jane do que por si própria; faria tudo e mais alguma coisa para a manter afastada de Xavier. com a pequena aldeia virtualmente deserta, somente as crianças e
Miribelle Aristide tinham ficado para trás, esta para olhar pelos mais pequenos, Xavier teria tido Jane só para si.
Meg tinha reparado que a amiga ficava toda ruborizada sempre que o homem se aproximava de si, para não mencionar a expressão radiante
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que se lhe espelhava nos olhos. Meg perguntava-se por que razão é que ela parecia ser a única a reparar na luz predatória que via nos olhos dele?
O homem pernicioso até tinha conseguido enganar Ariane. Era como se toda a gente estivesse sujeita a um enfeitiçamento qualquer, sendo Meg a única pessoa imune aos
encantos do homem. Mas, naquela noite, Meg não tinha espaço na sua cabeça para se afligir por causa de Xavier, o capitão fora arredado da sua mente por ansiedades
mais imediatas.
A escolha.
Sentindo um pouco de falta de ar, Meg olhou para o cimo do penhasco e, calculando que deviam estar a meio do percurso, ocorreu-lhe que isso simbolizava a maneira
como a sua vida poderia vir a desenrolar-se, no sentido ascendente até às alturas ou no sentido descendente até às profundezas que ela receava conhecer. Por vezes,
pensava que todo o seu destino dependia da decisão que a Senhora da Ilha Encantada tomaria naquela noite. Mas, com mais frequência, desesperava, receando que a escolha
de Ariane não tivesse a mínima importância. Que o seu destino tinha sido traçado pela sua mãe desde o primeiro momento em que fora concebida. Megera, a Rosa de Prata.
As suas visões eram cada vez mais sinistras. O seu sono era perturbado por sonhos fragmentados, enquanto as horas em que estava acordada eram assombradas por imagens
estilhaçadas que via na sua bola de cristal.
O grande número de soldados ameaçadores que estavam à espera do sinal para marcharem sobre a ilha Encantada. Meg tropeçava em frente, o coração a bater-lhe descontroladamente
enquanto era aguilhoada pelo caminho pela figura envolta em sombras atrás de si.
"Não é necessário que invadam a ilha Encantada. Esta é a rapariga que a Rainha das Trevas procura. Esta é a Megera."
Meg massajou as têmporas, esforçando-se por expulsar aquela imagem. A cena que tinha visto na bola de cristal era pouco nítida. Não conseguira ver o rosto de quem
se encontrava atrás de si, a pessoa que a atraiçoara, dizendo aos soldados da rainha quem ela era. Até mesmo a voz não era nítida. Pensara que era bastante aguda,
quase feminina, bastante semelhante à de Alexander Naismith. Mas isso não fazia o mínimo sentido, a menos que Sander tivesse, de uma maneira qualquer, conseguido
sobreviver ao incêndio. A menos que ele continuasse vivo.
Meg estremeceu ao pensar nessa possibilidade. Quase deu um pulo de susto quando sentiu o braço de alguém que a enlaçava pela cintura. Tropeçou e teria caído se não
fosse a mão de Seraphine que lhe serviu de apoio.
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- com a breca! Tem cuidado. Este não é o melhor lugar para se estar com devaneios. Seria um princípio muito pouco auspicioso se a próxima Senhora da Ilha Encantada
desse início ao seu reinado a ter de se tratar de
um tornozelo fraturado.
Meg respondeu à brincadeira da amiga com um sorriso forçado.
- Oh, por favor, Seraphine, não me arrelies. Não esta noite. Já me sinto demasiado enervada.
O sorriso endiabrado de Seraphine suavizou-se e deu lugar a uma expressão afetuosa.
- Pobre menina. Estás a levar tudo isto demasiadamente a sério.
- Deve ser levado com seriedade - interveio uma voz indignada. Meg olhou para cima e deparou com Carole, que se tinha deixado ficar para trás, largando o grupo de
amigas para se juntar às duas.
- A escolha da próxima Senhora da Ilha Encantada é uma ocasião momentosa.
Seraphine inclinou-se mais para Meg, falando-lhe num sussurrar dramático em voz alta.
- Tem cuidado, minha querida. É a nossa rival. Sem dúvida que ela está a planear empurrar-nos pela beira do penhasco para se livrar das rivais.
Até mesmo apesar da penumbra do crepúsculo, Meg viu como Carole corava e ficava com cara de poucos amigos. Ignorando Seraphine, dirigiu os seus comentários diretamente
a Meg.
- No que me diz respeito, não existe qualquer rivalidade. Estou certa de que não desejo verdadeiramente ser a escolhida. Tu é que devias ser a escolhida.
- Penso da mesma maneira - murmurou Meg. - Seria muito melhor que a próxima Senhora da Ilha Encantada fosse uma de vós.
- Oh, por favor! - disse Seraphine revirando os olhos. - Mas que meninas tão boazinhas que somos todas, demasiado modestas e recatadas para se servirem da última
costeleta que resta na travessa. Se fôssemos homens, estaríamos prontas para lutar umas contra as outras até à morte por essa honra.
- Mas não somos homens, graças a Deus. - Carole colocou-se no outro lado de Meg, ajustando a sua passada à dela, e olhou para Seraphine com uma expressão escarnecedora.
- Embora eu me atreva a dizer que um duelo com espadas te conviria na perfeição.
- De facto, assim é. Eu podia vencer-te com os olhos vendados e uma mão atada atrás das costas.
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- Não me parece que isso venha a propósito! - ripostou Carole com rispidez. - Uma vez que a Senhora da Ilha Encantada, por pressuposto, deve promover paz e harmonia.
- Não, viria muito a propósito. De facto, muitíssimo. Meg interveio antes de Carole poder responder a Seraphine.
- Por favor, parem com isso. Já me sinto enervada de sobra sem que vocês as duas se envolvam noutra das vossas discussões.
- Nós não discutimos. Questionamo-nos - disse Seraphine. - São precisas duas pessoas com o mesmo nível de inteligência para que se possa ter uma discussão.
Carole ficou com a respiração suspensa, mas, ao contrário do que era seu costume, não foi no engodo de Seraphine.
- Lamento, Meg. Nunca seria minha intenção perturbar-te. Eu só queria que soubesses que o que quer que a Ariane decida, ficarei satisfeita.
Quando Seraphine emitiu um som de escárnio, Carole insistiu.
- É a verdade. Houve uma altura em que pouco faltou para eu ser ostracizada pelas pessoas desta ilha. Uma rapariga ignorante e sem educação académica que deu à luz
um filho sem ser casada. Mas eu já aprendi tanta coisa com a Ariane e agora tenho tantas amigas generosas, além de ter um filho pequeno que é maravilhoso. Não desejo
mais nada.
- Tanta treta pegada. Se não queres realmente vir a ser a Senhora da Ilha Encantada, porque é que não vais falar com a Ariane para lhe dizeres isso mesmo? - perguntou-lhe
Seraphine, autoritária.
- Porque receio que exista a mais ínfima possibilidade de ela perder o juízo, optando por te escolher.
O caminho estreitava-se um pouco mais adiante, impedindo que as três continuassem a caminhar lado a lado. Seraphine deu o braço a Meg com toda a prontidão, forçando
Carole a ficar para trás.
O que Meg não lamentou, desde que pusesse fim à querela entre as duas, mas receava que os sentimentos de Carole tivessem sido magoados. Não valia a pena entrar em
confrontos com Seraphine, que considerava Carole tão afetada e irritante como Jane. E a partir do momento em que Seraphine antipatizava com alguém, não havia maneira
de fazer com que ela mudasse de ideias.
A Meg só restava olhar por cima do ombro para Carole com um sorriso apologético enquanto Seraphine a apressava, deixando Carole ainda mais para trás. Era muito difícil
que não sentisse algum remorso.
202
Conhecia Carole há mais tempo do que conhecia Seraphine. A amizade entre as duas remontava à altura em que Carole fora aliciada para se tornar membro da Irmandade
da Rosa de Prata. Meg e Carole tinham passado a ser muito unidas, não obstante a diferença de idades, ambas alarmadas e repugnadas com as atividades e os planos
da irmandade de bruxas.
Por conseguinte, por que razão é que Meg permitira que essa ligação entre as duas se perdesse? Talvez porque Carole constituía, ainda que inadvertidamente, uma dolorosa
recordação daqueles dias tão sombrios ou talvez mesmo por uma razão mais embaraçosa. Das duas jovens, Seraphine era, de longe, a mais inteligente e com uma personalidade
mais interessante, qual diamante resplandecente em comparação com o brilho baço de uma pérola.
Já estava tão escuro que Meg e Seraphine tiveram de apressar o passo para apanharem uma mulher que iluminava o caminho com um archote.
Meg quase teve de correr para conseguir acompanhar a passada larga de Seraphine. Assim que recuperou o fôlego, levantou a cabeça e olhou para a sua amiga, perguntando-lhe:
- E quanto a ti. Queres ser a próxima Senhora da Ilha Encantada?
- Não sei.
- Acusaste a Carole de não ser sincera. Mas a tua resposta parece-me igualmente evasiva.
- Não é evasiva. Apenas indecisa. Não tenho a certeza de querer passar o resto da minha vida confinada a esta ilha.
- É a sina de todas as mulheres, acabar confinada a um lugar qualquer.
- Essas parecem palavras que a tua Lady Jane Danvers diria. Como tu estás bem ciente, Margaret Elizabeth Wolfe, nós não somos simples mulheres. Somos Filhas da Terra
e somos livres de andar por onde quisermos. Pelo menos, devíamos poder fazer isso.
A boca de Seraphine suavizou-se com uma muito rara expressão de nostalgia.
- Meu Deus, como tenho saudades da minha casa, Meg. A ilha Encantada é um lugar bastante bonito, mas eu estou habituada a viver sob as grandiosas sombras dos Pirenéus.
E se cobicei o título de Senhora da Ilha Encantada, devo confessar que seria por uma razão muito pouco nobre.
- E que razão é essa?
203
- Eu gosto de dar ordens, de dizer às pessoas o que têm de fazer. Acredito que seria agradável ser rainha de qualquer coisa, até mesmo de uma ilha.
Embora Meg se tivesse rido da assombrosa franqueza da amiga, abanou a cabeça.
- Não penso assim. Receio que a responsabilidade seria enorme, aterradora.
Seraphine fitou-a com um olhar de entendida.
- Mesmo assim, continuas a querer ser a próxima Senhora da Ilha Encantada.
Meg mordeu o lábio antes de confessar o que não se atrevia a confessar a ninguém, até mesmo a si própria.
- Desejo-o tão ardentemente que me sinto assustada, apesar de ter de admitir que as minhas razões não são mais nobres do que as tuas.
Quando Seraphine a olhou intrigada, Meg acrescentou em voz baixa:
- Se eu fosse a próxima Senhora da Ilha Encantada, talvez as pessoas se esquecessem, finalmente, de que em tempos fui a Rosa de Prata.
As chamas da fogueira elevavam-se a grande altura, mantendo a escuridão à distância no cume do penhasco. As pedras cretas, dispostas em círculo, agigantavam-se,
quais sentinelas da Antiguidade que protegessem o pequeno grupo de mulheres de qualquer intrusão na sua reunião do conselho.
Algumas sentavam-se em troncos caídos, enquanto as mais novas se sentavam no solo com as pernas dobradas por baixo das saias. Haviam-se instalado em volta da Senhora
da Ilha Encantada, que se sentara numa pedra plana que constituía uma espécie de trono. Bastante desconfortável, pensava Ariane, mudando a posição das ancas. Perguntava-se
o que aquelas mulheres, que a fitavam tão respeitosamente, pensariam se soubessem que a sua venerada Senhora estava ansiosa por encerrar aquela reunião para poder
voltar para a sua confortável casa de Belle Haven.
Talvez fosse a responsabilidade de ter de nomear a sua sucessora que fazia com que se sentisse tão envelhecida naquela noite. Tinha dificuldade em recordar a jovem
mulher cheia de vigor que havia sido quando tinha vinte anos, tão destemida que se atrevera a desafiar a Rainha das Trevas.
"Estou a avisar-vos, Catarina. É minha intenção restabelecer o conselho das filhas da Terra, as guardiãs que estão contra o mau uso dos procedimentos de antanho,
o que
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haveis feito. Até mesmo vós não podeis lutar contra todas nós, um exército silencioso de mulheres sábias.-"
Acreditava que conseguira alarmar a poderosa Catarina de Médicis, contudo, atualmente, era uma ameaça inconsequente; o "exército" de Ariane havia sido tristemente
dispersado. O método de comunicação por meio de mensagens codificadas que tinham usado, através de pombos domesticados que se revezavam, há muito que fora suspenso.
Eram tantas as mulheres da geração anterior que tinham falecido, a sua mãe, Marie Claire, a velha Madame Jehan, levando consigo a sua sabedoria.
Ariane teria dado tanto para poder contar com os conselhos delas acerca daquela decisão, a mais importante e difícil de tomar de toda a sua vida. Enquanto o seu
olhar abarcava todas as presentes, demorando-se nos rostos de Carole e de Meg antes de se concentrar no de Seraphine, rezava para que tivesse feito a escolha mais
certa.
As conversas na clareira, agora, não passavam de um coro de sussurros. Fizera-se uma tentativa de tratar o assunto como era costume. Qualquer mulher que tivesse
alguma coisa a dizer, agravos a que dar voz, notícias a transmitir ou dar conta de quaisquer novos remédios, devia apresentar-se e pegar no bordão do poder para
silenciar todas as presentes.
Mas essa partilha provara ser desconexa, pelo que o bordão de vidoeiro estava encostado à pedra em que Ariane se sentava, sem que ninguém o reclamasse. Na mente
de todas aquelas mulheres havia um único assunto, a escolha, e Ariane considerava que tinha chegado a altura de o abordar.
Pôs-se de pé, pegando no bordão do poder. Um silêncio expectante abateu-se sobre todas aquelas mulheres. Por breves momentos, Ariane ficou sem fala, mal sabendo
por onde começar.
Mas a sabedoria de tanta simplicidade da mãe encheu-lhe a mente. "O princípio é sempre um bom ponto por onde começar, minha querida.-"
- Em tempos idos - começou a dizer -, houve um grupo de mulheres conhecidas como as Filhas da Terra.
Ariane viu muitas fisionomias sorridentes, como crianças ansiosas por ouvir, uma vez mais, uma história antiga e tão familiar.
Fechando os dedos no bordão, caminhou diante do pequeno grupo de mulheres antes de prosseguir.
- Estas mulheres eram veneradas pela sua sabedoria, competentes em todas as artes de curar e na prática de magia branca. De acordo com as nossas lendas, elas viviam
em tempos de paz, quando homens e mulheres
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eram considerados como iguais, partilhando a governação dos vários reinos.
"Mas, com a passagem do tempo, o centro do poder alterou-se e os homens começaram a dominar com os seus procedimentos bélicos. A pouco e pouco, começaram a ser negados
às mulheres os seus direitos de governação e de educação académica.
Seraphine soltou um som sibilante, o que deu origem a uma série de risadas à socapa da parte das mulheres mais novas e que mereceu expressões de censura da parte
das mais velhas.
Ariane limitou-se a sorrir, prosseguindo.
- Foram muitas as Filhas da Terra que aceitaram estas mudanças. Mas houve algumas que ficaram encolerizadas e que se vingaram, aprendendo as artes mais negras.
Para grande perturbação de Ariane, viu alguns olhares cheios de significado assestados em Meg. Jane passou um braço pelos ombros da jovem, mas Meg enrubesceu e baixou
a cabeça.
- Mas algumas mulheres persistiram, esforçando-se por não permitir que os nossos procedimentos mais antigos morressem, não obstante a ameaça de virem a ser acusadas
de bruxaria. Foram transmitindo às filhas os segredos da magia branca ao longo de gerações. Muitas dessas mulheres acabaram por se instalar na ilha Encantada.
Ariane suspirou.
- Mas, ai de mim, durante a minha vida tenho vindo a ver o número dessas poucas mas muito corajosas mulheres cada vez mais reduzido. As desconfianças e suspeitas
dos que ignoram as nossas maneiras e os ataques dos caçadores de bruxas ajudaram a dizimar as nossas fileiras.
"Contudo, tenho de dizer que a razão principal desse estado de coisas pode dever-se a algo mais insidioso e difícil de combater. Muitas Filhas da Terra, assoberbadas
pelas suas tarefas diárias, a par do tumulto em que o mundo está mergulhado nos nossos tempos, chegam à conclusão de que é mais fácil e seguro darem-se por vencidas,
restringindo-se aos papéis que se espera que as mulheres desempenhem.
"Não invejo a próxima Senhora da Ilha Encantada. Receio que ela venha a enfrentar desafios muito maiores do que aqueles com que me deparei, a fim de poder preservar
os nossos procedimentos e conhecimentos, que nos chegaram da Antiguidade.
- Mas tenho a certeza de que ela estará bem preparada por vós disse Josephine Alain.
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- Isso mesmo. Já haveis ensinado tanto à jovem Carole - adiantou Madame Bevans, afagando afetuosamente a mão da rapariga. A natureza mais abrangente da sua sugestão
não passou despercebida às outras mulheres.
Agatha Butterydoor inclinou-se para a frente a fim de olhar furibunda para Madame Bevans.
- A Senhora também tem andado a ensinar outras meninas, para o caso de ainda não terdes reparado nisso. A minha menina Meg, para começar, já tinha muitos conhecimentos
de magia.
- Sim, mas de que espécie de magia? - resmungou alguém enquanto Madame Bevans lhe respondia.
- Tradicionalmente, a escolha tem recaído sempre em alguém de entre as mulheres oriundas desta ilha.
- Isso não é verdade. A mãe da Ariane, Evangeline, era meio inglesa, não era? - perguntou Jane, mas mostrou-se envergonhada de imediato com a sua própria temeridade.
Ariane sorriu-lhe e fez-lhe um acenar de cabeça de encorajamento, mas uma das jovens que se agrupavam junto de Seraphine interveio.
- Mas Lady Evangeline tinha ligações à ilha. Ela era uma das sobrinhas da Senhora da Ilha Encantada que a precedeu.
As outras jovens aplaudiram, rindo-se e dando pequenas cotoveladas de cumplicidade a Seraphine, como se tivessem ganho pontos importantes. Mas Louise Lavalle não
perdeu tempo a desiludi-las. De todas as mulheres presentes, a antiga cortesã, agora envelhecida, era a mais neutra.
Conhecendo Louise, Ariane desconfiava que ela, muito simplesmente, gostava de deitar água fria para arrefecer o entusiasmo do grupo de jovens beldades.
- Essa afirmação também não corresponde à verdade - disse Louise numa voz arrastada. - Muito embora agradasse a Lady Eugénie afirmar que Evangeline e as filhas desta
eram da sua família, pedindo-lhes que a tratassem por tia, não existia qualquer ligação de sangue.
- Bem, qualquer que seja a escolhida - interveio Madame Bevans -, não deve ter qualquer ligação às práticas de magia negra.
- Quereis dizer alguém como a Carole Moreau? - ripostou Agatha. - Estou em crer que, em tempos, ela também foi membro da Irmandade da Rosa de Prata.
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- Foi levada à força, foi enganada e coagida, minha velha jarreta! gritou-lhe Madame Bevans, soerguendo-se. - E não nos esqueçamos de quem é realmente a Rosa de
Prata.
- Era! Mas já não é - atalhou Aggie, pondo-se de pé repentinamente e brandindo o cajado. - Se pensais que a minha pobre bonequinha teve mais escolha do que a vossa
preciosa...
- Paz! - gritou Ariane com toda a força dos seus pulmões, batendo com o seu bastão do poder no chão. - Madame Bevans, senhora Butterydoor, sentai-vos e tratai de
vos conduzirdes como mulheres civilizadas ou abandonai este conselho.
Madame Bevans sentou-se de imediato. Aggie seguiu-lhe o exemplo, mas mais vagarosamente e a resmungar entre dentes.
- Pensei que me tinha feito entender com toda a clareza no outro dia. As Filhas da Terra não conseguirão sobreviver se existir discórdia entre nós. A Senhora da
Ilha Encantada tem de ser uma curandeira muito dotada, conhecedora dos procedimentos da Antiguidade e deve acalentar um grande respeito pela nossa Terra-Mãe. Mas
ainda mais importante do que esses atributos, tem de ser uma defensora da paz, repudiando qualquer tipo de violência.
Apercebendo-se de que o seu tom de voz se elevara excessivamente e que agarrava o bordão com demasiada força, Ariane obrigou-se a descontrair-se.
- Por muito que eu aprecie as opiniões de todas vós, a escolha da minha sucessora só a mim pertence. Tenho convivido com tantas candidatas merecedoras que tenho
tido bastante dificuldade em tomar uma decisão. Mas a jovem mulher que considero mais adequada para me suceder como Senhora da Ilha Encantada é... - Ariane fortificou-se,
respirando fundo. - Margaret Wolfe.
Fez-se um silêncio de estupefação que se abateu sobre todas as presentes. Olhando para Ariane, Meg ficou como que petrificada até mesmo quando ela a chamou com um
gesto, sorrindo-lhe. Jane inclinou-se mais para ela, sem dúvida para murmurar palavras de encorajamento ao ouvido da jovem. Deu-lhe uma pequena cotovelada para que
se levantasse e incentivando-a para que avançasse.
Meg encaminhou-se para Ariane num passo cambaleante, contorcendo as mãos nas dobras da saia.
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- Margaret Wolfe, aceitais esta incumbência de que tenciono encarregar-vos? - perguntou-lhe Ariane solenemente.
Entretanto, o silêncio deu lugar a um coro de sussurros de indignação. Um pouco a medo, Meg olhou para aquele mar de rostos hostis.
- Bem, eu... eu... - Meg ficou sem palavras.
- Sim, aceita! - gritou Seraphine. Levantou-se de um salto e posicionou-se de frente para as mulheres presentes, as mãos bem firmes nas ancas.
- O que é que se passa com todas vós? A maior parte de vós não cresceu aqui, na ilha Encantada? Até mesmo eu estou a par de todas as histórias que a minha mãe, a
Gabrielle, me contou. Como esta ilha era considerada um refúgio, para as mulheres em particular, um paraíso que as protegia das ameaças do passado. Todos os erros
devem ser esquecidos, este é um lugar onde se começa tudo de novo. Ireis negar a Margaret Wolfe a mesma oportunidade que tantas de vós tiveram?
Tirando o bordão do poder das mãos de Ariane, Seraphine brandiu-o como se fosse uma clava.
- Acredito que a Meg será uma Senhora da Ilha Encantada perfeita. Qualquer pessoa que se atreva a dizer o contrário, terá de responder perante mim.
- E perante mim - adiantou Carole, pondo-se de pé e juntando-se a Seraphine.
A sobrinha de Ariane mostrou-se surpreendida, mas acabou por esboçar um sorriso rasgado. Afastou-se um pouco para o lado, dando-lhe espaço para se sentar, as duas
jovens de pé, ombro a ombro, olhando para a multidão com uma expressão tão aguerrida que Ariane se sentiu dividida entre o riso e as lágrimas.
O seu coração encheu-se de orgulho tanto pela sobrinha como por Carole. Meg mostrava-se tão avassalada que Ariane receou que a jovem desatasse a chorar a qualquer
momento. com suavidade, Ariane pegou-lhe na mão, puxando-a para a frente.
- Vir a ser a Senhora da Ilha Encantada é uma perspetiva intimidante, mas como podes ver, minha querida, podes contar com amigas corajosas e leais que te apoiarão.
Mas a decisão cabe-te inteiramente.
- Mas que decisão? - gritou Seraphine. - É claro que a Meg quer...
- Seraphine, a Meg tem de responder por si. E, por favor, devolve-me o meu bordão.
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com uma expressão de algum embaraço, Seraphine devolveu o bordão à tia. Todas as presentes na clareira sustinham a respiração à espera da resposta de Meg.
com as lágrimas a correrem-lhe livremente pelas faces, Meg olhou para Ariane com um sorriso trémulo.
- Oh, sim, milady. Aceito a vossa nomeação e eu... eu prometo tentar servir-vos de alma e coração até ao dia da minha morte.
Ariane puxou a jovem para si, abraçando-a. Ocorreu-lhe que não havia nenhuma cerimónia que se revestisse de solenidade para aquela ocasião, nenhuma coroa que mudasse
de mãos, nem mantos de arminho, nem tão-pouco juramentos solenes. Mas talvez as coisas devessem ser como estavam. A posição de Senhora da Ilha Encantada sempre tivera
por base um simples conceito de confiança.
Além disso, os gritos de júbilo de Seraphine teriam tirado toda a dignidade a qualquer cerimónia mais pretensiosa. Ariane passou o bordão do poder para as mãos de
Meg. Virando a jovem de frente para o grupo de mulheres, pousou as mãos nos ombros dela.
- Minhas amigas, apresento-vos Margaret Wolfe, a vossa futura Senhora da Ilha Encantada.
A clareira estava deserta, à exceção de Jane, que ficara para trás depois de se ter oferecido para se certificar de que as chamas da fogueira ficariam bem extintas.
Olhava fixamente para as chamas que começavam a amortecer enquanto as vozes e os risos deixavam de se ouvir pelo caminho abaixo.
Apesar de toda a sua relutância em assistir à reunião do conselho, agora sentia-se satisfeita por ter estado presente. A escolha correra muito melhor a Meg do que
Jane podia ter esperado. A hostilidade de que Meg era alvo parecia ter desaparecido como por magia no interior daquele solene círculo de monólitos.
Se bem que muitas das mulheres tivessem congratulado Meg, embora com relutância, Jane tinha muito poucas dúvidas de que ela as conquistaria a seu tempo. Em especial,
com a ajuda da suave persuasão de Carole e da muito enérgica e convincente personalidade de Seraphine.
Apesar de esta última não a ter acolhido de bom grado, Jane teria sido capaz de a abraçar quando ela saiu a terreiro em defesa de Meg tão aguerridamente. Jane continuava
sem ter a certeza de que a impulsiva jovem fosse a melhor influência para Meg, mas era impossível negar que Seraphine possuía um coração leal.
Meg já tinha deixado a clareira, mostrando-se muito mais feliz do que Jane a vira em muito tempo. Sentira-se deleitada por ela, mas até mesmo a sua satisfação começara
a dissipar-se quando o silêncio se abateu sobre a clareira, quebrado apenas pelo ocasional crepitar da madeira que ainda ardia na fogueira.
Jane reavivou as brasas com um pau, sentindo que a melancolia que combatera durante todo o fim de tarde e princípio de noite se apoderava
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furtivamente de si. Mantivera a promessa que tinha feito a Meg, tendo-se mantido ao lado dela até à conclusão da escolha. A partir de agora, não faria grande falta
a Meg, e quanto ao capitão Louis Xavier... O homem estava quase recuperado, continuando enervado por não saber do seu navio nem da sua tripulação. Apesar da recente
harmonia entre Xavier e as irmãs, Jane não tinha muitas dúvidas de que, assim que retornassem a Port Corsair amanhã, não decorreria muito tempo até Xavier voltar
a fazer-se ao mar.
Espevitou as brasas com mais energia, recusando-se a analisar os sentimentos de desânimo que se apoderavam de si ao pensar na partida dele. Precisava de se concentrar
nas suas próprias perspetivas de vida, por muito sombrias que fossem. Depois de todos aqueles meses, via-se perante o mesmo abismo com que se confrontara anteriormente,
o enorme vazio que era o seu futuro.
Ouviu o estalar de um galho atrás de si, o barulho a causar-lhe um pequeno sobressalto. Parte de si esperara aquilo com alguma esperança. Deu meia-volta e deparou
com Xavier, que saía das sombras como se fosse um dos dólmenes atrás do qual se escondera. Sorriu-lhe com algum acanhamento.
- Peço desculpa, minha querida. Não foi minha intenção sobressaltar-vos.
- E, de facto, não haveis sobressaltado.
- O quê!? Não ficastes nem um pouco surpreendida por me verdes aqui?
- Conhecendo-vos, eu duvidava de que fôsseis capaz de resistir à tentação de espiar o que se passava aqui.
- E aqui estava eu a pensar que era tão esperto e sorrateiro. Apesar de todas as vossas negativas, receio ter de concluir que sois uma bruxa, Jane. Pareceis ter
um sexto sentido em relação ao que me diz respeito.
Jane abanou a cabeça, mordendo o lábio inferior para reprimir o riso. Perguntou-se o que é que Xavier diria caso se apercebesse de que ela não havia sido a única
a dar pela presença dele escondido nas sombras. Tinha observado muitas das outras mulheres a darem cotoveladas umas às outras e a rirem-se à socapa. Jane desconfiava
de que até mesmo Ariane se apercebera da presença de Xavier, embora não tivesse levantado quaisquer objeções.
Mas Jane guardou aqueles pensamentos para si própria. Não havia necessidade de privar o seu feroz corsário de todas as suas ilusões no tocante
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ao seu comportamento furtivo. Não fosse o facto de ele não ser o seu corsário. Jane ficou surpreendida por precisar sequer de lembrar esse facto a si própria. Replicou-lhe,
por fim:
- Não possuo nenhum sexto sentido, apesar de ter tido a perceção de que estáveis ali. Mas pensei que, depois da reunião do conselho ter acabado, trataríeis de vos
afastar discretamente antes que a vossa presença fosse descoberta.
- Estais satisfeita por eu não ter feito isso?
Jane recusou-se a responder àquilo. Receava estar a sentir-se demasiado satisfeita por ele ter ficado. Não ajudava nada ele parecer tão à vontade naquele ambiente
tão ermo.
Jane sentia-se muito pequena, uma figura insignificante sob as sombras dos dólmenes. Xavier, por outro lado, parecia estar no seu ambiente, um aventureiro destemido
vindo de um mundo longínquo, conjurado pelos espíritos daquelas misteriosas estátuas de pedra. Até mesmo o braço ao peito não prejudicava essa imagem. Ao invés,
como que a realçava, o guerreiro ferido e esgotado pelo combate.
O clarão da fogueira que se extinguia mostrava a estatura elevada de Xavier, as botas já com muito uso, os calções de couro que atavam abaixo dos joelhos, o voltear
da capa negra curta. Durante os últimos dias, tinha recuperado grande parte da cor nas faces, que já não estavam empalidecidas, embora sombreadas pela barba de um
dia e pelo cabelo preto comprido.
Quando ele se aproximou mais, Jane recordou-se outra vez da estranha advertência de Meg a respeito de jaguares predadores e perigosos. Um aviso cujo efeito parecia
limitar-se apenas ao rubor nas faces e ao bater do coração mais acelerado, que não tinham nada a ver com temor.
Jane voltou a concentrar-se na fogueira, mas as brasas de um vermelho-dourado não passavam de uma mancha esbatida; a única coisa nítida era a silhueta alta que a
sua visão periférica lhe permitia ver quando ele avançou para se colocar ao seu lado.
Tentando imprimir um tom casual à voz, Jane disse:
- Espero que terdes podido observar a reunião do conselho tenha valido o risco que correstes quando subistes até aqui na escuridão. Podíeis muito bem ter caído,
partindo o pescoço desta feita.
- O divertimento está no risco, Jane. Um dia destes, vou ter de vos ensinar tudo a respeito disso. Mas devo confessar que me senti um tudo-nada
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dececionado. Eu sabia de antemão que não existiriam sacrifícios, nem a queima de oferendas. Mas eu tinha tido a esperança de que talvez houvesse alguma espécie de
cerimónia que envolvesse uma cabra e danças de gente toda nua.
Jane lançou-lhe um olhar de reprovação. Um erro. Apesar do tom de brincadeira que pontuava a voz arrastada, havia um brilho perigosamente irresistível nos olhos
dele. Ou seria o reflexo da luz das chamas da fogueira? Jane apressou-se a desviar o olhar, voltando a concentrá-lo no lume.
- No entanto, fiquei empolgado mais para o fim - continuou com uma risada à socapa. - Houve um momento em que pensei que a minha sobrinha ia começar a atirar Filhas
da Terra pelo penhasco abaixo.
- Se há coisa de que não se pode acusar Seraphine é de não ser uma pessoa excitante - comentou Jane com secura.
- E pensei que igualmente graciosa. Não me pareceu que tenha ficado ressentida por ter perdido o título para a jovem Meg. Portanto, agora suponho que devamos gritar:
"Salve, Mademoiselle Wolfe, a futura Senhora da Ilha Encantada."
Jane franziu as sobrancelhas, mas, do mal o menos, Xavier não se tinha referido a Meg por Megera como era frequente que fizesse. Todavia, Jane apercebeu-se de alguma
rispidez no tom de voz dele, virando-se para o confrontar.
- Porque é que antipatizais tanto com a garota? Eu teria pensado que talvez sentísseis alguma empatia por ela, uma vez que... uma vez que... Jane interrompeu-se.
- Uma vez que ela e eu somos ambos filhos de mães semiloucas?
- Peço desculpa. Eu... eu não quis dizer...
- Não, é absolutamente verdade - atalhou Xavier, encolhendo os ombros. - A Meg e eu temos muita coisa em comum. E é aí que o problema reside. Compreendo bem de mais
como ela tem de lutar contra a faceta mais sombria da sua natureza e também sei com que frequência é que ela perderá.
Xavier passou os nós dos dedos pela bochecha de Jane.
- E isso, minha querida, receio ter de dizer, jamais sereis capaz de compreender. Sois demasiado boa para isso.
- Oh, sim, realmente. Santa Jane! - ripostou ela agreste, recuando. O seu grau de irritação surpreendeu-a tanto como surpreendeu Xavier, que arqueou um sobrolho
com uma expressão atónita, mas ela não se importou
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com isso. Tinha passado uma parte tão grande da sua vida a ouvir as pessoas dizerem como era boa que, subitamente, ficou farta de ouvir isso.
- Jane, eu só quis dizer que, quando tínheis a idade da Meg, estou certo de que passáveis o vosso tempo a aprender a tocar virginal obedientemente, ou a aperfeiçoar
os vossos bordados, em vez de vos dedicardes à aprendizagem de feitiçaria.
- Sim, foi precisamente isso que fiz. A minha tutora, a condessa de Shrewsbury, era uma bordadeira muito competente, pelo que passei horas a fio a bordar e a coser
enquanto o meu irmão era levado para aprender a montar, a caçar e esgrima. Então, ocorreu-me que, embora ele fosse bastante mais novo do que eu, Ned desfrutava da
liberdade que eu, na qualidade de mulher, jamais teria. A liberdade de poder viajar, de explorar o mundo, de... de fazer o que quer que ele quisesse; quanto a mim,
a única mudança que poderia esperar era o casamento. Uma casa diferente, um salão diferente onde me sentar a coser e a bordar.
Jane comprimiu os lábios apertadamente. Tinha acreditado que as amargas frustrações da sua adolescência há muito que haviam ficado esquecidas ou, no mínimo, profundamente
suprimidas. Mas era como destruir o que continha uma nascente havia muitos anos. O fluxo da água era impossível de deter.
- Detestei tudo isso. Tanto que, por vezes, atirava o que estava a coser para o chão e saía de casa a correr para... para...
- Para dar um passeio nos jardins? - perguntou-lhe Xavier com um sorriso um tanto estranho nos lábios.
- Não! - Jane olhou-o com uma expressão de fúria. - Eu desatava a correr para as colinas.
O seu olhar fixou-se na pedra plana em que Ariane se sentara. Corroborando as suas palavras com ações, levantou as saias e correu para aí, saltando para cima da
pedra.
- E depois, quando chegava ao cume mais alto, tirava a coifa da cabeça e sacudia o cabelo, soltando-o. -Jane levou a mão à cabeça, tirando a rede que prendia o cabelo
e deixando que lhe caísse em volta dos ombros. - E depois gritava a plenos pulmões o meu desafio ao mundo.
Xavier seguiu-a e olhou para ela.
- E o que é que gritáveis?
- Coisas ridículas como, por exemplo, "Maldita seja se me submeter a uma existência tão dócil".
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- A praguejar? Vós, Jane? Mas que audácia da vossa parte. - Mas do tom de voz de Xavier não transparecia nenhuma da sua ironia habitual. O seu sorriso era estranhamente
terno.
- Não era assim tão audaz - retorquiu Jane com amargura. - Eu só fazia isso aonde sabia que ninguém me ouviria.
- Duvido que a maior parte das jovens senhoras se atrevesse sequer a albergar pensamentos tão rebeldes. Mas o que eu gostaria de saber era o que aconteceu a essa
menina de natureza tão desafiadora que gritava do cume da colina.
De facto, o que é que lhe acontecera?, pensou Jane com tristeza, recordando-se da pequena sepultura sem qualquer lápide que a identificasse que deixara em Sussex.
- Suponho que essa rapariga descobriu como era fácil cair dessas alturas tão imprudentes.
Subitamente, Jane sentiu que estava a agir com tolice, empoleirada acima de Xavier em cima da pedra; pegou na orla das saias, levantando-as um pouco para poder saltar
para o chão. Mas ele avançou para a apanhar. Enlaçou-a pela cintura. Apesar de só poder servir-se de um braço, não teve dificuldade em erguê-la, pousando-a no solo,
como se ela não pesasse mais do que um daqueles galhos que Jane atirara para a fogueira. Apesar de já a ter posto no chão, Xavier não a largou.
- E se houvesse alguém presente para vos apanhar se caísseis?
Jane olhou para ele, apercebendo-se de que, até mesmo afastado da fogueira, os olhos dele tinham o mesmo brilho perigoso, talvez mesmo até mais quando a noite amena
se refletia neles. Xavier inclinou-se mais e Jane percebeu que ele tencionava beijá-la. com a pouca sensatez que lhe restava, inclinou-se para trás, afastando a
cara.
- Eu... eu não penso que seria boa ideia estar a contar que fosse apanhada - disse Jane. - É possível que, desta feita, caísse com tanta força que não teria qualquer
possibilidade de me recuperar.
Xavier imobilizou-se, os seus lábios a escassos centímetros dos dela.
- Mulher sensata - murmurou. Soltou-a e deu meia-volta para se afastar, deixando Jane a envolver-se nos seus próprios braços e a sentir-se como que abandonada.
Pela segunda vez naquela noite, sentiu que algo dentro de si se partia. Estava tão farta de ser sensata como de ser virtuosa.
Mas Xavier ainda não tinha dado muitos passos quando ela correu atrás dele, puxando-lhe pela capa curta para que se virasse. Teve tempo de
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soltar uma exclamação de perplexidade antes de ela lhe enlaçar o pescoço com os braços.
Jane puxou-lhe a cabeça, chegando a boca dele à sua num beijo que foi bruto e desajeitado. Ele ficou rígido, mas apenas por breves momentos antes de se recompor
da surpresa, puxando-a para junto de si com o braço bom.
Os lábios dele aproximaram-se dos dela mais confiantemente do que os esforços atabalhoados dela, ensinando-a e incentivando-a a entreabrir os lábios. Depois do choque
inicial que a língua dele a invadir a sua boca lhe causara, Jane não tardou a aprender, beijando-o com a mesma intensidade, língua contra língua.
Jane entranhou os dedos no cabelo dele, bebendo avidamente o ardor e a paixão de Xavier, como se fosse uma poção inebriante que lhe havia sido negada durante tanto
tempo.
Foi Xavier quem interrompeu o beijo por estar sem fôlego.
- Mulher, tanta fogosidade! Eu... eu...
- Sim? - disse Jane tremente, preparando-se para a humilhação de ser afastada dele. Mas os lábios dele esboçaram um sorriso de pirata de orelha a orelha.
- Tenho desejado que me beijásseis dessa maneira desde o dia em que haveis feito a vossa primeira tentativa na praia.
- Eu não tentei absolutamente nada. Já vos disse... - começou Jane a dizer indignada, para ser silenciada pela boca dele, que voltava a apoderar-se da sua.
Ela não era a única a beijar como se não conseguisse saciar-se. A ânsia e o ardor com que Xavier a beijava excitavam-na, multiplicando por dez o seu próprio desejo.
Independentemente da maneira como posicionasse o corpo, tinha a sensação de não conseguir ficar tão chegada a ele como queria. Quando a capa dele se enrolou e meteu
de permeio, ela puxou o fecho. Nenhum deles reparou quando caiu no chão.
Jane fremia quando Xavier começou a acariciar-lhe a forma curvilínea do seio, o toque tão frustrante quanto era torturante. O xaile que pusera naquela noite fora
deixado onde se tinha sentado com Meg. Escolhera a sua indumentária por ser confortável, sem se ter incomodado a usar espartilho. Mas até mesmo a camisa interior
e o corpete de uma lã bastante leve constituíam demasiadas camadas de roupa entre ela e os dedos exploratórios de Xavier.
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Quando ele se atrapalhou com as fitas do vestido, soltou um grunhido de frustração, começando a tirar o braço fraturado do pano em que o trazia ao peito. Jane impediu-o
e, descaradamente, ela própria desatou as fitas que prendiam o corpete ao corpo, o suficiente para Xavier conseguir meter a mão.
Suspiraram ambos quando os dedos dele, quentes e ásperos, lhe circundaram o seio, apertando-lhe o mamilo ligeiramente até o sentir endurecido na palma da mão. O
toque da mão dele fazia com que ela sentisse todo o corpo percorrido por um grande ardor.
As pernas tremiam-lhe e quando deu por si estava deitada de costas no chão em cima da capa de Xavier. Jane ficou a olhar, um pouco atordoada, para o vasto firmamento
noturno acima de si. Nunca as estrelas lhe haviam parecido tão cintilantes, nem a Lua tão cheia, repleta de segredos e promessas ocultas.
O porquê de as coisas serem assim, era algo que Jane não podia analisar. Tinha a sensação de ter fechado a porta à parte racional da sua mente, que silenciara quaisquer
sussurros da sua consciência, rendendo-se inteiramente às suas sensações.
Sentia a brisa fresca que soprava por cima do seio desnudado, a humidade ardente da boca de Xavier quando ele se ajoelhou por cima dela, cobrindo-lhe a pele de beijos,
o peso doce do corpo dele entre as suas coxas.
Entre beijos, ele amaldiçoou o braço ao peito, que lhe atrapalhava os movimentos, ameaçando retirar a tala. com os olhos semicerrados de prazer, Jane abanou a cabeça
num gesto de reprovação.
- Estás a sair-te muito bem só com uma mão.
- Dizes isso porque não sabes o que sou capaz de fazer com as duas - replicou Xavier maliciosamente.
Puxando a orla do vestido, ele meteu a mão por dentro das saias. Percorreu-lhe a perna com as pontas dos dedos, detendo-se na pele por detrás do joelho, sem avançar,
até Jane se contorcer frustrada.
Decidiu retaliar, concentrando-se nos botões das calças dele. Inebriada com a sua própria audácia, enfiou a mão pela braguilha, fechando a mão no órgão sexual de
Xavier, que sentiu quente e duro.
Xavier apertou-lhe a perna, os seus olhos muito abertos quando soltou um som que expressava a sua perplexidade.
- Jesus, mulher, enlouqueceste por completo. - Fez um gesto pouco convincente como se quisesse impedi-la de prosseguir, mas acabou por
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gemer enquanto ela o acariciava. - E... e eu estou tão louco como tu disse rangendo os dentes.
Jane ajudou-o a baixar as calças. Mas quando ele subiu mais as saias, que estavam a atrapalhar, ficou bem claro que o braço partido não constituía problema nenhum.
- Isto podia correr muito melhor se te pusesses em cima de mim murmurou Xavier num tom de queixa.
- Mas eu nunca... - começou Jane a dizer, mas interrompeu-se quando se apercebeu da tolice do seu protesto. Deu uma gargalhada trémula. Havia muitas coisas que nunca
tinha feito antes, incluindo render-se à sua paixão por um homem, fazer amor com ele sem ser na cama, ao contrário do que todas as pessoas civilizadas faziam, mas
sim sob as estrelas, com o vento a assobiar por entre os titãs de pedra e ouvindo o mar a bater violentamente na base dos penhascos.
Xavier começou a beijá-la outra vez, retraindo estoicamente o seu próprio prazer, tentando abrandar o ritmo a que acasalavam para dar lugar a alguma coisa um pouco
mais terna, mas Jane não queria nada daquilo.
Receando que se pausasse para refletir, ainda que apenas por um momento, se poria em fuga, retirando-se para o canto em que tinha estado a viver durante todos aqueles
anos. Posicionou-se em cima de Xavier, baixando-se lentamente, o membro duro dele a expandir e enchendo-a enquanto as saias se alargavam em volta dos dois.
Xavier firmou-se na anca dela enquanto se posicionava de modo a guiá-la até ela adotar o ritmo por si própria. com a cabeça atirada para trás, Jane cavalgava-o com
todo o vigor, imprimindo ao corpo movimentos cada vez mais rápidos. Todos os desejos, todas as iras, todas as mágoas que Jane tinha reprimido dentro de si libertaram-se
no seu grito entrecortado quando atingiu o clímax.
com a respiração arfante e entontecida, deixou-se cair ao lado de Xavier e, para seu grande horror, desatou a chorar. Xavier continuava deitado de costas com os
olhos fechados, a respiração a soerguer-lhe o peito enquanto recuperava o fôlego.
Jane virou-se de lado, tentando abafar o pranto, mas era impossível que Xavier não se apercebesse do seu choro. Ele apoiou-se sobre o cotovelo, espreitando por cima
do ombro dela e tentando ver-lhe o rosto.
-Jane?
Ela não conseguia responder-lhe porque as lágrimas lhe embargavam a voz.
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- Oh, que inferno! - exclamou com um suspiro. - Eu receava que isto viesse a acontecer. Só que nunca imaginei que o arrependimento surgisse tão cedo.
- N... não! Não se trata de a... arrependimento. É só que n... não me sentia assim há t... tanto tempo. Talvez mesmo n... nunca. Não p... pensei que pudesse...
Jane duvidava que ele fosse capaz de compreender. Nenhum homem poderia. Mas, para sua surpresa, ele forçou-a a olhá-lo de frente, chegando-a mais a si. Aninhou-a
junto do seu peito, as lágrimas de Jane a molharem-lhe a camisa, mas ele não pareceu incomodado com isso. Embalou-a, falando-lhe numa voz sussurrada.
- Eu sei. Eu sei, minha querida. - Por muito estranho que fosse naquele corsário rude, ela acreditava que ele compreendia.
Ser abraçada com tanta ternura e confortada por alguém era uma sensação tão nova para ela como a paixão tinha sido. Saboreara cada um dos termos de ternura que ele
lhe sussurrara numa voz enrouquecida, os beijos com que roçara o cimo da cabeça dela.
Enquanto Jane recuperava algum controlo sobre si própria, ficou assombrada ao aperceber-se de que nem sequer dera conta de Xavier ter atingido o clímax. Quando na
cama com o seu falecido marido, a satisfação de William havia sido da maior importância, enquanto a sua não contava. Por pressuposto, as mulheres deviam suportar
essa situação.
Recuou a cabeça ligeiramente para poder perscrutar o rosto de Xavier com ansiedade, sem saber muito bem como é que havia de formular uma pergunta tão embaraçosa.
- Hum... conseguiste... conseguiste...
- Oh, sim.
- A... ainda bem. Fico muito satisfeita - disse ela, provocando uma gargalhada a Xavier.
- Eu também - retorquiu ele, sorrindo-lhe, e Jane corou.
Ele devia pensar que era uma idiota. Não fazia ideia nenhuma do género de mulheres com que ele costumava ir para a cama, mas duvidava muito que alguma delas se tivesse
comportado de maneira tão desajeitada. Atirando-se a ele como uma cadela com cio, para depois se desfazer em lágrimas.
- Deves pensar que eu sou doida - disse Jane fungando.
- Ambos somos. - com a ponta do polegar, limpou-lhe as lágrimas das bochechas. - Eu atribuo à Lua a culpa pela nossa loucura.
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- Ou àquelas pedras - retorquiu Jane, esforçando-se por lhe retribuir o sorriso. - A Miri disse-me que, segundo a lenda, são Filhas da Terra petrificadas há muito
tempo para conseguirem salvar-se dos caçadores de bruxas, bem como para serem guardas perpétuas da ilha. Diz a lenda que estão imbuídas de uma magia especial.
- Oh, acredito que sim. Já ouvi outras lendas relacionadas com monólitos como estes. Duvido que sejamos o primeiro casal a sucumbir à paixão sob as sombras deles.
Dizem os rumores que possuem o poder de fazer com que os homens sejam potentes e as mulheres férteis.
Férteis?
A palavra atingiu Jane com todo o impacto de um balde de água fria que lhe tivessem atirado à cara. Sentou-se, agarrando-se ao ventre.
- Oh, meu Deus, oh, meu Deus! Mas o que é que eu fiz? Como é que pude ser tão descuidada? Não outra vez.
Levantou-se do chão atabalhoadamente, como se ao pôr-se de pé pudesse forçar o sémen de Xavier a sair-lhe do útero. Lançou um olhar de nervosismo às omnipresentes
pedras, como se naquele preciso momento estivessem a tecer a sua magia fatal sobre ela.
Atormentada pelo receio do que poderiam ser as consequências das suas ações irresponsáveis, Jane acondicionava os seios desnudados por dentro do corpete do vestido.
- Temos... temos de voltar para a aldeia. Vão dar pela nossa falta tartamudeou Jane.
Xavier levantou-se do chão mais vagarosamente. Conseguiu puxar as calças para cima, mas ela teve de o ajudar a abotoar os botões, o que tornou a situação ainda mais
constrangedora.
Xavier franziu os sobrolhos, examinando-a por entre pálpebras semicerradas. Se o homem não tinha pensado antes que ela perdera todas as suas faculdades mentais,
agora devia estar convencido sem sombra de dúvida.
- O que é que se passa, Jane? O que é que quiseste dizer com "Não outra vez"?
Ela sentia-se extremamente relutante em lhe responder, mas supunha que lhe devia uma explicação. Envergonhada, Jane baixou a cabeça.
- Quando... quando eu tinha quinze anos, fiquei perdidamente apaixonada pelo estribeiro-mor do meu tutor. Rendi-me às minhas paixões e acabei por conceber uma criança
sem ser casada.
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"A minha menina nasceu morta, o que na altura considerei ser uma bênção. Mas nunca mais concebi. Temo que por causa do julgamento de Deus contra mim, por causa do
pecado que cometi.
Xavier resfolegou, chocando-a ao praguejar.
- Mas qual Deus, mulher! Ainda que eu tivesse a certeza de que acreditava no Todo-Poderoso, pensaria que Ele teria assuntos mais importantes com que se ocupar, não
perderia tempo a amaldiçoar uma pobre rapariga por um deslize que não aconteceu por sua culpa, de maneira nenhuma. A ira de Deus devia abater-se sobre esse estribeiro-mor
por te ter seduzido. Tinhas apenas quinze anos.
- Tinha idade suficiente para saber qual era a diferença entre o que está certo e errado - retorquiu Jane.
Xavier pegou-lhe no queixo, obrigando-a a erguer a cabeça e a olhar para si.
- Por conseguinte, o que fizemos aqui esta noite... pareceu-te errado, é isso?
- Não - murmurou Jane. Era precisamente isso que fazia com que se sentisse tão confusa. - Mas...
- Não há "mas" nenhum - interrompeu-a Xavier, voltando a puxá-la para junto de si. - É possível que tenhamos sido um pouco irresponsáveis. Tenho de confessar que
estou acostumado a copular com mulheres de uma espécie que tem mais experiência, as quais sabem como proteger-se de consequências indesejáveis.
- Estás a referir-te a prostitutas.
- Prefiro tratá-las por senhoras empreendedoras, as quais sabem como fazer com que um homem não chore o dinheiro que elas lhe custam.
Quando Jane o olhou com uma expressão de censura, ele deu-lhe uma pancadinha no queixo e sorriu-lhe com algum pesar.
- Nunca afirmei que era um santo, Jane, e nem sequer que era um homem bom. Mas conquanto possa ser um patife sem consciência, não tens nada a recear quanto a isso.
Há uma coisa que eu jamais faria.
- E o que é isso?
- Nunca abandonaria uma criança que fosse minha nem a sua mãe. Xavier falava com toda a sinceridade e veemência, fazendo com que Jane ficasse desconcertada ao aperceber-se
disso. Expressava-se numa voz enrouquecida e com uma expressão que corroborava o que dizia. Ela compreendia muito bem a razão da atitude dele. Por baixo da fachada
dura do
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homem adulto, continuava a perdurar a sombra de um rapazinho renegado pelo seu próprio pai.
E, contudo, quantos homens que se consideravam nobres não teriam achado falta nenhuma no comportamento do Chevalier Louis Cheney? Qualquer mulher suficientemente
imprudente para se entregar a um homem fora do leito matrimonial teria forçosamente de sofrer as consequências, pelo que o homem poderia deixá-la sem quaisquer remorsos.
O mundo era assim mesmo.
Mas, evidentemente, não era a maneira de agir de Xavier. Beijou-a outra vez na fronte e nas pálpebras antes de se concentrar nos lábios dela. Jane suspirou, ansiando
por lhe dizer o quanto as garantias dele significavam para si, o quanto o respeitava por isso, o quanto...
ela amava-o.
Mas isso era uma coisa que Jane mal se atrevia a admitir perante si própria, quanto mais dizê-lo a Xavier, assim, conteve a língua. Encostou a cara ao peito dele,
temendo já ter cometido loucuras mais do que suficientes para uma única noite.
Port Corsair dormitava banhado pelo sol do meio da manhã, as águas do canal tão calmas como a atividade no cais. Ou falta de atividade. Àquela hora, os barcos de
pesca já tinham saído para o mar. Só se via uma pequena carraca ancorada enquanto estava a ser carregada e preparada para uma viagem mercantil rumo ao continente
que teria início na próxima maré.
Xavier caminhava por entre os barris, as grades e os rolos de corda, como havia feito todos os dias desde que tinham voltado para aquela parte da ilha. Respirou
fundo, enchendo os pulmões com o ar salino enquanto flexionava os dedos da mão do braço que trazia ao peito.
Sentia a mão entorpecida e ansiava por se ver livre da maldita tala. O navio ancorado enchia-o de um anseio que lhe era ainda mais familiar, voltar a estar no mar,
sentir o encher das ondas debaixo de si.
Mas esse anseio já não era tão simples e descomplicado como fora em tempos. Tinha feito a única coisa que jurara nunca vir a fazer, forjar uma ligação que o manteria
amarrado a terra.
Jane.
Tivera tempo de lazer suficiente durante a última quinzena para lamentar a noite tresloucada entre as pedras gigantescas. O tempo de lazer, mas não a inclinação
para isso. Só precisava de pensar nos olhos suaves de Jane e nos lábios generosos para o seu corpo reagir, possuído pela ânsia de repetir a loucura dessa noite.
Todavia, devia ter tido mais bom senso. Jane não era nada como as rameiras com quem costumava ir para a cama sempre que atracava num porto. Mulheres com muita experiência
que sabiam bem como se certificarem de que não existiriam consequências das suas ligações amorosas.
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Mas desta vez era possível que existissem consequências. Jane sentia-se mortificada de mais para falar com ele sobre aspetos estritamente femininos, mas quando ele
a pressionou, ela admitiu que as suas regras estavam atrasadas uma semana.
Se fosse outra mulher, isso talvez não fosse motivo para preocupações. Mas, segundo Jane dizia, sempre fora tão regular como a subida e descida das marés. O que
seria de esperar, pensou Xavier com algum azedume, que uma mulher tão cumpridora e correta como Jane seria pontual em tudo. À exceção da única vez em que isso não
acontecera, ocasião em que o seu ventre se tinha enchido com a gravidez.
Pois bem, ele não lhe fizera uma promessa vã quando lhe jurara que não a abandonaria. Nunca depois da maneira como o seu próprio pai o tinha renegado e abandonado.
Esse era um sofrimento que ele nunca imporia intencionalmente à carne da sua carne e sangue do seu sangue.
Se Jane trazia uma criança sua no ventre, pois que assim fosse. Sentir-se-ia obrigado a desposá-la, ainda que estivesse convencido de que seria um marido que deixaria
muito a desejar.
Marido... pai. Aquelas meras palavras eram suficientes para ficar com suores frios. Ter-se-ia sentido menos atemorizado se tivesse de se apresentar perante todos
os severos monges da Inquisição espanhola. Mas havia tempo suficiente para lidar com todas as suas dúvidas a respeito de um acontecimento que talvez nunca viesse
a concretizar-se.
Protegendo os olhos da reverberação do sol que se refletia na água, Xavier optou por se concentrar no porto. Examinou o portaló e a doca, na esperança de ver regressar
o mensageiro que Ariane tinha enviado ao continente para indagar o que teria acontecido ao Miribelle.
Xavier ficou como que paralisado quando os seus olhos pousaram numa figura muito mais bem-vinda do que qualquer mensageiro - um homem alto e de postura muito digna,
a pele cor de ébano e um físico portentoso que atraía as atenções, até mesmo dos estivadores acostumados a encontrar marinheiros de muitas partes do mundo.
O homem encaminhava-se para a estalagem do cais, acompanhado por um velho marinheiro com muito mau aspeto que tinha uma perna de pau.
Xavier sentiu-se invadido por um enorme alívio, a que se associava uma forte emoção que lhe enrouqueceu a voz quando gritou:
- Pietro. Jambe!
Os dois homens detiveram-se por baixo da tabuleta oscilante da estalagem e viraram-se para trás. O rosto de Pietro iluminou-se, os dentes a brilharem,
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destacando-se da pele escura. Jambe ficou corado que nem um tomate e tão empolgado que teria perdido o equilíbrio se não fosse o braço firme de Pietro.
Xavier avançou para eles e os três encontraram-se a meio do caminho. Pietro agarrou-o num abraço capaz de lhe partir as costelas, levantando-o parcialmente do chão.
Quanto a Jambe, este contentou-se com uma vigorosa palmada nas costas de Xavier que vibrou pelo braço fraturado, mas sentia-se demasiado extasiado para se importar
com isso.
Retaliou com alguns socos na brincadeira até se aperceber de que estavam a atrair a atenção de várias pessoas. Os três afastaram-se uns dos outros, adotando semblantes
mais circunspectos. Jambe ainda tentou olhar para Xavier com uma expressão ameaçadora, mas não foi capaz de conter um sorriso rasgado.
- Raios te partam, rapaz, pregastes-nos um susto e tanto - disse o homem mais velho, pestanejando para afastar uma humidade suspeita dos seus olhos. - Já tínhamos
pensado que tinhas morrido quando aquele rapaz apareceu vindo da ilha Encantada e começou a fazer perguntas sobre o Miribelle.
- Eu também já quase tinha desistido de voltar a ver-vos - retorquiu Xavier sorrindo. - Mas eu devia saber que vocês os dois são ossos demasiado duros de roer para
se afogarem. Em especial tu, velho. Mas o que é que aconteceu ao resto da tripulação? E à minha senhora?
Pietro e Jambe mostraram uma atitude mais circunspecta, trocando um olhar que não augurava nada de bom.
- É melhor irmos para dentro, capitão - sugeriu Jambe, indicando a direção da estalagem com um gesto da cabeça. - Acho que vai precisar de uma bebida bastante forte.
A Estalagem Estranho de Passagem situava-se na entrada do porto, o único bastião masculino numa ilha habitada, em grande parte, só por mulheres. Naquele fim de tarde
de verão, a taberna estava cheia de pescadores, marinheiros e vendedores ambulantes que vinham do continente, o coro de vozes masculinas intercalado por explosões
de gargalhadas roufenhas.
Por muito que ele tivesse começado a valorizar a amizade das senhoras da ilha Encantada, era frequente que frequentasse a Estranho de Passagem ao fim do dia, procurando
mais do que saber notícias do seu navio perdido.
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Era com uma sensação de alívio que voltava a estar entre os seus iguais, companheiros que não exigiam grandes conversas dele, para além de um grunhido ocasional,
e os quais não insistiam com ele constantemente para que partilhasse os seus sentimentos.
Não que a sua calada Jane lhe fizesse grandes exigências. Não, eram aqueles seus olhos de expressão anelante que faziam todas as perguntas.
Àquela hora da manhã, a taberna estava vazia, à exceção de Xavier, Jambe e Pietro, sentados a uma das mesas. Philippe, o atual proprietário da estalagem, tinha servido
uma garrafa de vinho da Madeira para o paladar mais refinado de Pietro, enquanto a Jambe servira uma grande caneca com tampa de cerveja que comprara recentemente
a um capitão de Portsmouth.
A melhor cerveja inglesa, gabava-se Philippe. Mijo aguado, na opinião azeda de Jambe, mas nem por isso deixou de a beber. Xavier, esparramado na sua cadeira, tinha
um grande copo de uísque à sua frente.
Tinha relatado aos companheiros uma versão abreviada e extremamente expurgada das suas próprias aventuras desde a noite da tempestade. Jambe e Pietro acenavam com
a cabeça, oferecendo poucos comentários.
Xavier tamborilava com os dedos no tampo da mesa num gesto de impaciência.
- Muito bem. Agora já estão a par do que me aconteceu, portanto, parem de tentar ganhar tempo. Digam-me o que é que sucedeu ao meu navio.
Jambe suspirou e bebeu alguma da sua cerveja.
- Bem, só pelo raio de um milagre é que não naufragámos no temporal. Mas o vento mudou de direção, arrastando-nos para fora da costa da ilha Encantada e rumo ao
continente. Encalhámos na costa da Bretanha.
- Sabe bem como esses baixios podem ser perigosos, em especial perto de Saint-Malo - acrescentou Pietro.
- Estávamos à espera que o navio se desfizesse ou que ficasse de quilha para o ar, mas, Deus o abençoe, vá-se lá saber como, o Miribelle continuou a flutuar. Considerámos
que tivemos uma sorte dos diabos até ao nascer do dia, altura em que a nossa sorte chegou ao fim.
Jambe bebeu mais um gole de cerveja e ficou com uma cara de muito azedume.
- Fomos atacados por flibusteiros, capitão. Um bando de pescadores bretões que achou que a nossa carga estava à sua disposição.
- Alguns dos homens ainda tentaram dar-lhes luta - adiantou Pietro. - Mas estávamos todos exaustos e eles eram mais do que nós. Os abutres esvaziaram os porões.
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Jambe pousou a caneca de cerveja com brusquidão, tremendo de cólera.
- Um dos vilões até tentou roubar o Mendigo do Mar, mas o papagaio conseguiu escapar-lhe e voou para mim assim que teve oportunidade, é um pássaro muito espertalhão.
- Mas conseguimos salvar as suas roupas, as cartas marítimas e os livros - continuou Pietro. - O padre Bernard ficou com os seus pertences, assim como o Mendigo
do Mar. Está tudo em segurança num mosteiro nos arredores de Saint-Malo.
Xavier não achava graça nenhuma a nada daquilo, mas fez um esforço para sorrir.
- Levando em linha de conta o vocabulário desse papagaio, isso deve ser interessante.
- O mais certo é esse maldito padre andar a tentar ensinar o padre-nosso ao meu pobre Mendigo - ripostou Jambe com uma fungadela.
- Muitos dos homens da tripulação acreditam que foram os padres-nossos do Bernard que nos salvaram - acrescentou Pietro.
- Isso e o facto de o diabo do seu capitão ter sido arremessado borda fora do navio.
- Jambe! - Pietro olhou-o com uma expressão de censura.
- Mas é verdade - reiterou Jambe, olhando para Xavier com um sorriso apologético. - Em parte, foi por sua culpa, capitão. Sempre se divertiu a deixar que eles pensassem
que era uma espécie de feiticeiro. Sabe bem como os marinheiros podem ser supersticiosos. - O velho marinheiro esvaziou a caneca e fez sinal para que lhe trouxessem
mais cerveja. - Mas adiante; os cães desleais dispersaram, cada um foi para seu lado à procura dos capitães de outros navios que os contratassem. Eu e o Pietro somos
os únicos que restam da tripulação do Miribelle.
- E o próprio Miribelle
- Deduzo que o que restava do navio já se terá partido nos rochedos e os destroços arrastados para a costa pelo mar.
Os dedos de Xavier apertaram-se no copo. Em comparação com a vida dos homens a que dava muito valor, o Miribelle não era nada. Era errado sentir desgosto por causa
de um barco, mas era precisamente isso que se passava; era-lhe doloroso pensar na sua senhora reduzida a uma dessas ruínas encalhadas, para as quais as pessoas olhavam
de boca aberta enquanto passeavam, a sofrer os efeitos da erosão do vento e das vagas até só restarem destroços, talvez um mastro a sair da areia.
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O Miribelle servira-o muito bem ao longo dos anos. A sua senhora tinha merecido um fim muito mais galante. Xavier teria preferido que o navio se tivesse afundado
até ao fundo do mar ou ter sido ele próprio a pegar-lhe fogo.
Bebeu o uísque de um só trago, a bebida forte a fazer muito pouco para lhe aliviar a enorme sensação de vazio que senda dentro de si. Sobre a mesa abateu-se um silêncio
pesado. Pietro bebia pequenos goles do seu vinho da Madeira, enquanto Jambe levava a mão a uma pequena bolsa de couro presa à cintura.
- Também consegui salvar isto, capitão. Pensei que nesta altura talvez já estivesse a fazer-lhe falta.
Pietro respirou fundo e soltou um furioso sibilar de reprovação e Xavier não tardou a ver por que razão. Jambe empurrou um objeto através do tampo da mesa na direção
de Xavier, o pequeno frasco forrado a couro que continha a poção que o seu xamã lhe dera.
Quando Xavier olhou para o seu primeiro-imediato com uma expressão inquisitiva, o idoso coçou a barba grisalha.
- Eu só pensei que talvez quisesse conjurar uma dessas suas visões. É possível que nos ajude a decidir o que fazer agora.
- O capitão não precisa dessa poção demoníaca para traçar a sua rota - interveio Pietro de cenho carregado e com um formigueiro na mão, como se estivesse ansioso
por se apoderar do frasco forrado a couro, mas os dedos de Xavier anteciparam-se, fechando-se em volta do frasco, para onde ficou a olhar com os sobrolhos franzidos.
Xavier tinha decidido não voltar a tocar naquele elixir dos espíritos, culpando-o por ter ficado com a sua capacidade de raciocínio toldada na noite do temporal.
Se tivesse tido as ideias claras, talvez os acontecimentos se tivessem desenrolado de maneira diferente. E daí talvez não.
Sentiu a mesma tentação que sentia sempre que estava amargurado ou assoberbado, perder-se nos esplendores do seu mundo de sonho. Tinham sido muito poucas as ocasiões
em que tivera mais motivos para querer escapar às preocupações. Descontando o tempo em que havia sido prisioneiro dos espanhóis, a sua existência nunca estivera
tão em baixo. Levantou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os de Pietro, que refletiam preocupação.
- Não precisa dessa coisa, capitão - repetiu.
Xavier guardou a pequena garrafa forrada a couro por dentro do gibão. - Não se pode dizer que eu seja um grande capitão, sem navio e sem tripulação.
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Jambe ficou exacerbado.
- O que é que nós parecemos? As suas tias solteironas?
- Como sempre, vamos atrás de si, capitão - disse Pietro.
- Vão atrás de mim para onde? - ripostou Xavier com azedume. - As minhas perspetivas aparentam ser um tudo-nada inauspiciosas de momento.
- São muito melhores do que quando pensávamos que tinha morrido - retorquiu Jambe.
- Fico satisfeito por o mensageiro da minha irmã vos ter encontrado e dou muito apreço ao facto de me terem procurado, mas...
- A sua irmã? - ecoou Jambe. Ele e Pietro trocaram um olhar cheio de significado.
- Sim, a minha irmã Ariane, a Senhora da Ilha Encantada. - Olhou para os seus homens com cara de poucos amigos, desafiando-os a fazerem qualquer comentário menos
agradável.
A expressão de censura de Pietro desvaneceu-se. com o elixir esquecido momentaneamente, o panamiano sorriu-lhe.
- Portanto, decidiu, por fim, admitir que tinha uma família. Acho que é uma boa coisa, uma relação pacífica com a sua irmã.
- Estar nas boas graças de uma bruxa é sempre uma boa coisa - resmungou Jambe.
- Não lhe chames isso! - ripostou Xavier irritado.
- Desculpe, mas com certeza que já tem um esquema em mente, capitão. com irmã ou sem irmã, por que outra razão é que se deixou ficar aqui, nesta miserável ilha,
durante tanto tempo? -Jambe inclinou-se para a frente, sussurrando. - E isso tem alguma coisa a ver com aquela outra bruxa?
- A Jane também não é nenhuma bruxa, raios te partam!
- Jane!? Mas quem é que falou em alguma rapariga chamada Jane? perguntou Jambe, mostrando-se desconcertado.
- Ninguém - respondeu Xavier com uma careta risonha, esperando não parecer demasiado constrangido. Ocultou o seu embaraço ao servir-se de mais uísque.
- Eu estava a referir-me àquela outra rapariga, a que a rainha queria que encontrasse. Aquela... aquela Maria.
- Megera - corrigiu Pietro.
- Sim, essa mesma. Conseguiu encontrá-la?
- E, se encontrei, o que é que isso tem? - ripostou Xavier.
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- Nesse caso, parece-me que temos a solução para as nossas dificuldades. Só temos de levar essa rapariga à rainha...
- Recuso-me terminantemente a participar no rapto de uma menina inocente - adiantou Pietro.
Jambe olhou para ele com uma expressão carrancuda.
- A acreditar no que a rainha disse, esta rapariga não tem nada de inocente.
Não, Meg não era uma menina inocente. Xavier sentira um certo mal-estar desde que Ariane a tinha designado como sua sucessora, certo de que a irmã estava a arranjar
para si própria e para a sua pequena ilha e reino todo um mundo de problemas. Especialmente, se aquela nomeação chegasse aos ouvidos da rainha Catarina.
Ariane exigira que todas as mulheres presentes na reunião do conselho jurassem segredo até à morte de Catarina. Levando em consideração o débil estado de saúde da
rainha e a sua idade, decerto que isso não tardaria muito. No entanto, Xavier tinha muito pouca fé na capacidade das mulheres em manterem segredo.
À medida que Catarina se aproximava do fim da sua vida, o mais provável era a mulher ficar cada vez mais desesperada. Talvez chegasse ao ponto de dispensar a subtileza
que costumava ter, enviando tropas montadas com ordens para arrasarem a ilha.
Tanto Xavier como Megera representavam um perigo para a ilha Encantada. Não seria preferível para o bem de todos se partissem, se ele próprio levasse Meg à rainha?
Fá-lo-ia mais delicadamente e talvez até conseguisse convencer Catarina de Médicis de que a jovem não poderia ter qualquer utilidade para ela. A rainha libertaria
Meg, que, finalmente, ficaria livre de mais ameaças da parte da Rainha das Trevas.
Xavier deu largas a um suspiro autodepreciativo. Ou talvez estivesse apenas a inventar desculpas nobres para disfarçar a razão mais condenável subjacente àquela
tentação - a recompensa.
Recordou-se da promessa que fizera ao jovem Dominique quando o rapaz já estava às portas da morte depois do ataque ao navio espanhol. Xavier jurara ao jovem que
se certificaria de que a mãe e a irmã dele ficariam numa situação confortável com a quota-parte que lhe pertencia da venda da carga. Mas essa era uma promessa que
ele tinha deixado de estar em condições de poder cumprir.
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E o que dizer sobre Jane e o possível filho de ambos por nascer? De momento, tudo o que lhe podia oferecer era um nome manchado pela infâmia.
Ainda que tivesse o direito de se chamar Louis Xavier Cheney, ao invés de Jaguar, em que é que isso alteraria a situação? Um nome respeitável, por si só, não punha
um teto em cima da cabeça de uma mulher nem comida na mesa.
Mas entregar Meg à Rainha das Trevas com certeza que seria o caminho mais direto para que a sorte voltasse a bafejá-lo. Não fosse o facto de que Jane nunca lhe perdoaria.
O mais certo seria amaldiçoá-lo por isso, mas não seria necessário que ela o fizesse. Ele próprio já se amaldiçoava sempre que se via ao espelho. Expulsando aquela
ignominiosa tentação do seu pensamento, Xavier sacudiu a cabeça.
- Não, até mesmo se a rapariga vier a provar ser a feiticeira mais perigosa deste lado do Inferno, não me aproveitarei dela para rechear a minha bolsa.
- Mas, capitão...
- Não! - repetiu Xavier com mais veemência.
Jambe encostou-se para trás na cadeira com uma atitude de desânimo e mostrando-se frustrado.
- Muito bem. Nesse caso, qual é o nosso próximo curso de ação, capitão?
- Não sei. Preciso de tempo para pensar. - Xavier fez pressão nas pálpebras com as pontas dos dedos num gesto de lassidão. - Os meus pertences têm de vir de Saint-Malo.
Em particular, os diários de bordo do meu pai e o papagaio. Foi o legado que ele deixou à minha irmã e já não é sem tempo que eu lho entrego.
- O quê!? O Mendigo do Mar? Entregar o meu inteligente rapaz a... a uma rapariga qualquer? - Jambe ficou lívido. - Capitão, com certeza que não está a falar a sério.
- Jambe, sempre soubeste que...
- Não! - O lábio inferior do velho marinheiro até tremia. - Recuso-me a abdicar dele. Antes... antes perder a outra perna do que ficar sem ele.
Xavier suspirou. Ainda tentou fazer com que Jambe visse a razão, quando Pietro interveio com uma expressão intrigada.
- Mas, capitão, porque é que não vem agora mesmo connosco? Tenho a certeza de que nenhum de nós teria a mínima dificuldade em ser contratado
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para outro navio até decidirmos o que fazer a seguir. Conseguiu estabelecer uma relação pacífica com as suas irmãs. Que outra coisa é que poderia prendê-lo aqui?
De facto, o quê? Xavier agitou-se na sua cadeira. Ele e Jane não tinham tido muitas oportunidades para estarem sozinhos desde a noite de paixão no cume dos penhascos.
Ela parecia um pouco tímida quando na presença dele, sendo muito frequente que não o olhasse de frente. Mas quando isso acontecia, ele via uma nova suavidade nos
olhos dela, uma expressão que tanto o acalentava como fazia com que ficasse em pânico. O coração de uma mulher era uma coisa demasiado frágil para ser confiada às
suas mãos grosseiras.
com certeza que ela ficaria melhor se ele saísse da sua vida de imediato. Mas não podia deixá-la numa situação tão melindrosa, nunca até ter a certeza de que não
tinha semeado a sua semente no ventre dela. Xavier pôs-se de pé abruptamente, evitando olhar de frente para Pietro ejambe.
- Regressem a Saint-Malo para irem buscar as minhas coisas que ficaram com o padre Bernard. Depois quero que procurem a família do jovem Dominique para se inteirarem
de como é que eles estão a passar. Digam-lhes que, apesar do que aconteceu à carga do Miribelle, tenciono cumprir a promessa que fiz ao rapaz. Feito isso, alojem-se
na estalagem situada fora da cidade, a Cheval Noir. Esperem lá até terem notícias minhas. Não tardarei a juntar-me a vós, mas primeiro preciso de tratar de uns assuntos
aqui que tenho de resolver.
Xavier levantou-se da mesa e saiu da taberna antes que qualquer dos dois homens pudesse fazer-lhe mais perguntas.
A ilha Encantada não era uma ilha na verdadeira aceção da palavra, estava ligada ao continente por uma língua de terra. A passagem do tempo e a erosão das marés
estavam a corroer a passagem rochosa. Somente os cavaleiros mais intrépidos é que agora se atreviam a percorrê-la e nenhum era destemido ao ponto de o fazer durante
um temporal. O mais provável seria tanto o cavaleiro como o cavalo acabarem no mar.
Abrigado por baixo de uma árvore de um maciço, Xavier olhava nessa direção com uma expressão de anelo ou assim parecia a Jane. Mas quando ela se aproximou mais,
apercebeu-se de que não era a língua de terra que atraía a atenção dele, mas sim as velas de uma pequena carraca cada vez mais distantes, enquanto o vento a levava
através do canal em direção à Bretanha.
O semblante de Xavier espelhava uma nostalgia tão intensa que os passos de Jane vacilaram. As notícias na ilha Encantada espalhavam-se com celeridade e ela já tinha
ouvido muitas especulações relativas aos dois homens com quem Xavier havia estado a beber na Estalagem Estranho de Passagem.
com certeza que seriam membros da sua tripulação que teriam vindo à ilha para lhe darem novas de que o Miribelle não naufragara durante a tempestade. O seu navio
estava à espera dele. Os homens haviam chegado naquela carraca que navegava através do canal. Obviamente, Xavier desejava poder ir com eles.
Jane tinha a certeza de que existia apenas uma coisa que conseguiria prendê-lo à ilha, o obstinado sentido do dever de Xavier para com ela. Por muito que o respeitasse
e lhe estivesse grata por isso, essa atitude da parte dele não lhe proporcionava satisfação nenhuma.
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Engravidar era uma maneira bastante patética de prender um homem. Jane desejava poder sorrir-lhe e convencê-lo de que estava tudo bem consigo, que as regras tinham
chegado finalmente. Mas mentia tão mal que ele não tardaria a constatar isso mesmo.
Enquanto a carraca deixava de se ver à distância, a fisionomia de Xavier espelhava cada vez mais desânimo. Jane deduziu que aquela não seria a melhor altura para
falar com ele. Mas antes que pudesse afastar-se, ele olhou em volta e viu-a. O semblante de Xavier iluminou-se.
- Jane. - Sorriu-lhe e estendeu-lhe a mão de uma maneira que ela duvidava que existisse alguma mulher capaz de lhe resistir.
Aproximou-se dele timidamente. Assim que ela chegou ao alcance dele, Xavier agarrou-a. Não se encontravam muito longe de algumas das casas no largo da aldeia, pelo
que poderiam ser vistos.
Xavier puxou-a mais para a sombra das árvores antes de se inclinar para ela a fim de a beijar. Foi um beijo bastante casto em comparação com os que haviam trocado
naquela noite no cimo dos penhascos, mesmo assim Jane sentiu um fluxo ardente de rubor que lhe subia às faces.
- Eu... eu peço desculpa - começou Jane a dizer ansiosamente.
- Não é minha intenção intrometer-me, mas ouvi dizer que te encontraste hoje com alguns cavalheiros vindos do continente.
Xavier sorriu-lhe com uma expressão de amargura.
- Não me parece que esse seja um termo que eu teria utilizado para descrever ojambe e o Pietro. Mas sim, finalmente fui contactado por membros da minha tripulação.
- Isso quer dizer que o teu navio não naufragou.
- Nada disso - retorquiu Xavier, largando-lhe a mão e afastando-se alguns passos. Ficou a olhar para o canal com uma expressão de vazio nos olhos. - O Miribelle
está perdido. Encalhou nos recifes perto de Saint-Malo.
- Oh, Xavier.
- Do mal o menos, a minha tripulação não soçobrou - redarguiu Xavier com um encolher de ombros. - Além disso, há que reconhecer que o Miribelle não era um navio
por aí além. A madeira do costado estava a apodrecer e metia água como uma peneira. Mal se poderia dizer que continuasse a estar em condições de navegar, por conseguinte,
não se trata de uma grande perda.
Aquela simulação de indiferença não enganava Jane. Sabia muito bem como aquele navio era importante para ele. O que transparecera da voz
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dele e o que ela também vira no brilho de felicidade nos olhos dele quando desfiava histórias das suas viagens. Xavier como que acariciava o nome Miríbelle com a
língua quando o proferia, o que fazia com que Jane, por vezes, se sentisse absurdamente ciumenta.
Conhecia Xavier bastante bem para perceber que ele não acolheria de bom grado qualquer manifestação de comiseração. Contentou-se com apertar-lhe a mão.
- Eu... eu lamento muito - limitou-se a murmurar.
- Obrigado, minha querida - retorquiu ele numa voz roufenha de emoção. Quando Xavier levou a mão dela aos lábios, Jane achou que ele tinha uma expressão de gratidão
no rosto por ela se ter contido.
- E o que é que tencionas fazer agora? - aventurou-se Jane a perguntar momentos depois.
- Isso depende muito de ti - respondeu Xavier, perscrutando a fisionomia dela atentamente com uma pergunta muda; Jane sabia qual era a pergunta que ele não formulava.
Tentou sorrir e preparou-se para mentir, mas acabou por abanar a cabeça, mostrando uma expressão de tristeza.
O semblante de Xavier espelhou desânimo, mas esforçou-se por disfarçar a desilusão que sentia.
- Bem, ainda é muito cedo para se saber ao certo.
- Sim - concordou ela. Jane também se sentia dividida. A parte de si que raciocinava com sensatez argumentava que evitaria muitos problemas se lhe viessem as regras
atrasadas. No entanto, outra parte de si, aquela que enterrara um nado-morto e que nunca mais acalentara outra criança no seu ventre, ansiava por dar à luz um filho
de Xavier, acontecesse o que acontecesse. Confundida com o emaranhado dos seus próprios sentimentos, tentou mudar de assunto. - Não és o único que hoje recebeu más
notícias que nos chegaram naquela carraca.
- Oh!?
- Recebi uma carta da minha prima que vive em Paris.
- A mesma que te repudiou quando foste forçada a exilar-te? O que diabo é que ela quer?
Jane estremeceu. Os sentimentos de Xavier, embora mais frontais, eram um eco constrangedor do que ela própria sentira quando recebeu a missiva. Envergonhada pela
sua atitude tão pouco caridosa, esforçava-se por encontrar desculpas para a prima.
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- A Abby tinha-me bastante afeto quando éramos raparigas. Estou certa de que a sua atitude nos últimos tempos se deve ao marido.
- Terias abandonado a tua única prima se o teu marido to ordenasse?
- Espero bem que não, mas a verdade é que as mulheres são obrigadas a obedecer ao que os maridos lhes dizem.
- Talvez eu tenha causa para vos lembrar daquele único dia, milady. Jane respondeu à brincadeira dele com um franzir de sobrancelhas austero.
- Seja como for, a Abby encontra-se numa situação confrangedora. O marido, o George, sempre foi um irresponsável, um viciado no jogo incorrigível. Ficou tão endividado
em Paris que foi obrigado a fugir da cidade. Abandonou a pobre mulher. A Abby escreveu-me para me dizer que ficou bastante doente devido ao stresse. Quer que vá
para junto dela.
- Eu diria que os marinheiros abandonados numa ilha deserta desejam barris de rum. O que não significa que os venham a receber. - Quando Jane não lhe deu resposta,
Xavier perscrutou-lhe a fisionomia atentamente. - Não me digas que estás a pensar em ir para Paris.
Jane agitou-se com mostras de mal-estar, evitando o olhar dele. Xavier agarrou-lhe o queixo, obrigando-a a olhá-lo bem de frente.
- Estás a pensar fazer isso mesmo! Danação, Jane!
- Ela é a única família que possuo. Seria minha obrigação...
- A tua obrigação que se dane! Não tens obrigação nenhuma para com Abigail Benton. A mulher repudiou-te.
Jane olhava para ele com ansiedade, tentando forçá-lo a compreender.
- Eu nunca pontuei o meu comportamento pelo que os outros fazem. Devo prestar contas à minha própria consciência. Se eu não estiver grávida, devo ir ter com Abby.
Seria... seria a atitude mais correta.
Quando Xavier a fitou de cenho carregado, manifestamente exasperado, Jane olhou-o com um sorriso de tristeza.
- Tenho de fazer alguma coisa. Não posso permanecer para sempre na ilha Encantada.
- E porque não?
- Eu... eu não sei dizer. Talvez por ser demasiado bravia e estranha, muito diferente de tudo aquilo a que estou acostumada.
Xavier suspirou e passou os dedos suavemente pela curvatura da bochecha dela.
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- Ah, Jane, pareces-me uma pequena carriça presa numa gaiola. A portinhola foi deixada aberta, mas, mesmo assim, recusas-te a sair, demasiado atemorizada para voares
rumo à liberdade.
- Muitas vezes, a liberdade vem à custa de um preço demasiado elevado.
- Estás a referir-te ao período difícil que estás a atravessar. Sei que tens ido à igreja frequentemente. Sem dúvida que para te confessares e penitenciares-te pela
noite que passaste nos meus braços. - Xavier tentava imprimir um tom de brincadeira às suas palavras, mas Jane pensou que ele parecia estar um pouco sentido perante
aquela atitude dela.
A Igreja de Santa Ana pouco mais era do que uma capela, o que restava do convento com o mesmo nome que em tempos existira na ilha Encantada. Jane ajoelhara-se nessa
igreja todas as manhãs, a rezar, mas até mesmo ela não sabia ao certo o que queria para a sua vida. Viver em segurança, ter uma vida respeitável outra vez ou ser
abençoada com o nascimento de uma criança, quaisquer que fossem as consequências. Seria possível que Deus pudesse encontrar maneira de responder a umas orações tão
ambíguas?
- De facto, tenho ido à Igreja de Santa Ana - confirmou Jane. - Depois de a minha fé religiosa me ter sido negada durante tanto tempo, para mim a missa é a dádiva
mais preciosa, a única bênção que adveio do meu exílio. Mas não me tenho confessado. Parece-me que não se possa pedir perdão e fazer penitência quando... - Jane
interrompeu-se, sentindo as faces a arder. - Quando tudo o que se deseja é repetir o mesmo pecado.
Era algo perigoso de admitir perante Xavier. Talvez, ao contrário do que era seu costume, devesse ter tentado mais afincadamente não ser tão sincera. Os olhos dele
velaram-se, tão ardente era o desejo que sentia por ela. Chegou-a mais a si e, desta vez, o beijo que lhe deu não foi tão casto.
A boca do homem, por si só, já era um pecado, a língua tão ardente e exigente, levando-a a reagir com a mesma loucura que se apoderara de si naquela noite no cimo
dos penhascos. Mas, desta vez, Jane lutou contra isso, se bem que tivesse de recorrer a toda a sua força de vontade para se libertar do abraço dele.
- E... e quanto a ti? - perguntou ela, esforçando-se por imprimir à sua voz um tom normal, como se o homem não tivesse acabado de a beijar com um ardor indescritível.
- Se não houver criança nenhuma, estou certa de que hás de querer voltar para o mar.
Xavier pestanejou e franziu o sobrolho, como se tivessem acabado de o fazer ver a realidade das coisas.
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- Ainda que estejas de esperanças, serei forçado, mais cedo ou mais tarde, a tentar arranjar trabalho a bordo de um navio. De um modo qualquer, vou ter de arranjar
um meio de subsistência e a única maneira que conheço de ganhar dinheiro é a atividade de corsário. Não que eu pareça ser muito competente nesse campo.
- Não... não eras bem-sucedido na tua vida de pirata? Xavier riu-se.
- Não me saía nada mal, mas qualquer riqueza que consegui obter sempre se escoou por entre os meus dedos. Mas devo dizer que a obtenção de ouro nunca foi o meu principal
objetivo.
- Então, o que é que foi? Quereres vingar-te pelo que os espanhóis te fizeram?
- Talvez, em parte - respondeu Xavier, que parecia ter ficado um pouco acanhado, com um ligeiro rubor a colorir-lhe as faces. Intrigada, Jane urgiu-o a que prosseguisse.
- É possível que isto pareça um disparate - disse ele, mostrando-se embaraçado -, mas, para mim, prende-se mais com a aventura. Quando o meu pai me levou numa viagem
até ao Novo Mundo, ele contentou-se em restringir a nossa viagem apenas às terras em que os europeus já tinham estado.
"Mas eu sempre ansiei por ver o que se encontrava para lá da enseada seguinte da linha costeira, navegar por mares que não haviam sido cartografados. Eu queria ser
um explorador como o teu Sir Francis Drake, tendo por objetivo o horizonte mais longínquo.
Xavier era capaz de ser tão cínico, mas naquele momento os seus olhos brilhavam enquanto falava, o seu semblante quase como o de um garoto, suavizado por aqueles
sonhos, fazendo com que Jane se sentisse melancólica. Havia tanto tempo que não se permitia acalentar sonhos, fossem de que natureza fossem.
Se era uma carriça presa numa gaiola, Xavier era mais como uma águia acorrentada à praia e Jane receava ter-se tornado a corrente que o prendia.
- Xavier, ainda que eu esteja de esperanças, não há nada que te prenda aqui - disse Jane. - Tu próprio fizeste-me ver como as mulheres são mais livres de convenções
na ilha Encantada. A Carole Moreau teve um filho sem ser casada, apesar disso ela continua a ser estimada aqui. E, ao que tudo indica, está muito bem.
A expressão sonhadora de Xavier desvaneceu-se, as suas feições a endurecerem em linhas inflexíveis.
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- Talvez a Carole esteja bem, mas e quanto ao seu filho? Nesta altura, ele ainda é muito pequeno. Mas não tardará a crescer e a perceber as coisas de modo a perguntar
pelo pai. Quando se aperceber de que não tem pai nenhum, sentirá a dor e a vergonha que isso lhe causará, o que posso garantir-te. - A voz de Xavier ficou embargada
com uma forte emoção.
- Tenho noção de que sou uma perspetiva muito pouco atraente como marido e pai, mas, pelo menos, poderei poupar o nosso filho à dor de ser um bastardo sem o nome
do pai.
- M... marido? - titubeou Jane. - Tencionas desposar-me?
- Sim, pensei que já tinhas compreendido isso - respondeu Xavier de cenho carregado. - Devia ter-te pedido em casamento antes? Ter-me ajoelhado sobre um joelho e
implorado a honra de me concederes a tua mão? Não pensei que requeresses qualquer gesto formal ou romântico. Afinal de contas, já foste casada duas vezes.
Sim, mas nunca com um homem que amasse, um que fosse da sua própria escolha. Durante breves momentos, o seu coração elevou-se numa vaga de alegria, apenas para cair
das nuvens ao lembrar-se que nada daquilo se devia a uma opção de Xavier.
Jane começou a abanar a cabeça, mas foi detida por Xavier, que lhe pegou no queixo.
- Não, Jane. Não olhes para mim a abanar a cabeça. Recuso-me a permitir que me contradigas. Não tens motivos para preocupações. Não me manterei por perto durante
longos períodos para te importunar, embora...
- Xavier cerrou os lábios e franziu a testa. - Talvez eu passe a ser um pescador ou tente encontrar trabalho num desses navios mercantes que negoceiam entre a Inglaterra
e os Países Baixos. Dessa maneira, não me ausentaria durante vários anos a fio.
"Poderia voltar à ilha Encantada para visitar a minha irmã e satisfazer as necessidades da minha mulher. - Xavier olhou para Jane com uma expressão maliciosa que
fez com que ela voltasse a corar. - Além disso, podia ensinar umas quantas coisas ao nosso rapaz, como velejar, como nadar e como manejar uma espada.
- O nosso rapaz? - disse Jane. - E se for uma menina?
Xavier mostrou-se desanimado por breves momentos, mas depois esboçou um sorriso rasgado.
- Se ela provar ser minimamente como as minhas aguerridas sobrinhas, ver-me-ia obrigado a ensiná-la a lutar da mesma maneira.
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Jane riu-se a despeito de si própria; o futuro que Xavier pintava era extremamente tentador, se ela conseguisse acreditar que era o que ele também queria. Mas temia
que ele nunca deixasse de lamentar a perda dos seus longínquos horizontes, pelo que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por albergar ressentimentos contra ela e contra
a criança. Mas quando tentou fazer-lhe ver a razão, Xavier calou-a com um beijo.
- Poupai-me a mais da vossa lógica, milady. Nesta altura já devias saber que eu sou inteiramente implacável e sem quaisquer princípios quando se trata de levar a
minha avante. Levar-te-ei até à igreja, ainda que seja à força da espada se for preciso. Não te livrarás de mim com tanta facilidade.
E era aí que estava o problema. Jane não queria livrar-se dele. Quando Xavier a puxou mais para junto de si, ela não resistiu, encostando a cabeça ao ombro dele
com um suspiro fundo. Parecia-lhe absolutamente inútil estar a falar de um acontecimento que nunca viria a concretizar-se, de uma criança que, provavelmente, nem
sequer existiria. Em vez de se preocupar com o futuro como era tão frequente que ela fizesse, Jane devia, simplesmente, desfrutar do momento, da presença de Xavier
junto de si. Muito possivelmente não seria por muito tempo.
Xavier rolou os lábios pela fronte dela. Um homem poderia fazer muito pior do que passar o resto dos seus dias com uma boa mulher como Jane Danvers. Até mesmo a
perspetiva da criança já não lhe parecia tão alarmante.
Ele ansiava por voltar a pisar o convés de um navio, mas o chamamento do mar alto não era tão simples como havia sido em tempos. Sentiria a falta de Jane com uma
dor mais forte do que se tivesse ficado sem a mão direita.
Seria aquilo... seria aquilo o que se sentia quando se estava apaixonado por uma mulher?
A pergunta, por si só, devia ter sido suficiente para que ele se afastasse dela cautelosamente. Mas só a libertou dos seus braços quando pensou que tinha visto alguém
que se aproximava. Tinha feito tudo ao seu alcance para poupar Jane a especulações constrangedoras da parte das outras mulheres da ilha Encantada. A que havia visto
a aproximar-se era a última que ele quereria que o apanhasse a beijar Jane.
Meg. Estava à espera que ela se aproximasse dele, possuída de uma grande indignação, para tirar Jane dos seus braços. Mas Meg pareceu nem
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sequer ter reparado neles. A jovem estava firmemente decidida a levar a cabo o que tinha em mente.
com um olhar de nervosismo por cima do ombro, ela enveredou por outro caminho, desaparecendo entre o arvoredo. Era por demais evidente que se aprontava para fazer
algo que não devia. O próprio Xavier já se encontrara vezes mais do que suficientes naquela situação para poder reconhecer todos os sinais.
A angra estava isolada de Port Corsair pela floresta de abetos, um lugar onde Meg podia encontrar a solidão por que ansiava. Tinha a sensação de não ter tido um
momento de quietude para poder pensar desde o dia em que se sentira tão empolgada por ter sido designada como a próxima Senhora da Ilha Encantada.
Descalçou as meias e os sapatos, sentando-se numa pedra plana próxima da beira da água do mar. Balouçou os pés, deixando que as ondas os molhassem.
A água estava fria até mesmo naquela estação do ano. Meg sentiu um arrepio, mas acolheu a frialdade da água de bom grado e com um suspiro de cansaço. Tinha descoberto
que a exultação podia ser tão exaustiva como o desespero. Talvez porque a felicidade que sentia fosse moderada pelo medo constante de que poderia ser privada de
tudo aquilo de um momento para o outro.
As mulheres da ilha Encantada tinham-se tornado mais recetivas a ela, embora Meg soubesse que isso se devia mais à influência de Carole, e ao poder de persuasão
de Seraphine, do que aos seus próprios méritos.
Ariane assegurara-lhe que acabaria por conquistá-las a todas a seu tempo. Meg só esperava que isso fosse verdade, mas tempo era uma coisa que ela não tinha a certeza
de que teria.
Tirou a bola de cristal da sua sacola, a qual cintilava fulgurante à luz do Sol. Havia várias semanas que Meg não a consultava. Ariane tinha alterado o seu destino
naquela noite no cimo dos penhascos, pelo menos era o que Meg queria acreditar desesperadamente. Mas precisava de ter a certeza absoluta, por isso decidira consultar
a sua bola de cristal pela última vez.
Meg respirou fundo, perscrutando a bola de cristal que lhe permitia adivinhar o futuro, esforçando-se ao máximo por se concentrar. Fixou o olhar até começar a ver
pontinhos de luz luminescente diante dos olhos antes de coalescerem numa imagem. Couraçou-se, receando que, uma vez
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mais, talvez se visse a si própria a ser entregue aos soldados da Rainha das Trevas, a figura envolta em sombras de quem a traíra a espreitar atrás de si.
Mas a cena que se desenrolou diante dos seus olhos era ainda pior do que isso. Viu uma velha enferma deitada numa cama com um dossel de onde pendiam panos sumptuosos.
Meg esforçou-se mais afincadamente, concentrando a sua visão até o rosto da mulher adquirir forma. Era a Rainha das Trevas que estava às portas da morte...
"Meg queria encolher-se toda para deixar de ver o rosto malévolo que a olhava com uma expressão de fúria das suas almofadas. Mas a mão mirrada de Catarina agarrou
Meg pelo pulso. A voz da rainha era enrouquecida e fraca quando a acusou: "Tu! Tu é que me fizeste isto."
"Não!", gritou Meg. "Vós é que sois responsável pelo que vos aconteceu. Nunca vos desejei mal nenhum. Porque é que não pudestes deixar-me em paz e sossego?"
A expressão de dureza nos olhos da rainha deu lugar a uma de puro desespero. "Ajuda-me, tenho tanto medo da escuridão, de ser sepultada sozinha, de ser esquecida.
Sei que possuis o poder, menina. Desfaz tudo isto, por favor."
"Não posso", murmurou Meg, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. ÉE tarde de mais... para nós duas."
- Viste alguma coisa de interessante nessa bola de cristal? - A voz arrastada falava-lhe perto do ouvido, interrompendo a concentração de Meg e fazendo com que sentisse
o coração a bater fortemente contra as costelas.
Meg virou-se repentinamente para trás e deparou com Xavier inclinado sobre si. As ondas chegaram até onde ela estava. Esteve quase a tropeçar na areia escorregadia
e teria caído se Xavier não a tivesse agarrado pelo braço.
Endireitando-se, Meg soltou-se da mão dele e afastou-se. com a respiração arfante, olhou-o com uma expressão de fúria.
- Como... como é que vos atreveis? O que é que pensais que estais a fazer, a espiar-me?
Xavier pareceu imperturbável perante a explosão de indignação e de cólera dela. Arqueou uma sobrancelha.
- A pergunta certa devia ser, o que é que tu estás a fazer?
Meg ainda tentou esconder a bola de cristal, mas apercebeu-se de que era tarde de mais para isso.
- O que... o que eu faço é assunto que não vos diz respeito. - A maneira altaneira como Meg disse aquilo caiu por terra quando não conseguiu evitar um tremor. -
Tencionais contar à Ariane?
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- Tal como disseste, é assunto que não me diz respeito. Graças a Deus que não sou o teu tutor.
Xavier sentou-se no areal, firmando-se com a mão do braço bom, os seus movimentos um tanto desajeitados por continuar com o braço direito ao peito.
Meg só queria afastar-se dali o mais depressa possível, para longe dele. Mas considerou que ele lhe levara a melhor ao apanhá-la com a bola de cristal. Deixou-se
ficar numa atitude de puro desafio para lhe provar que não se envergonhava do que tinha estado a fazer, nem tão-pouco se sentia intimidada por ele.
Voltando a sentar-se, retomou o seu lugar em cima da rocha. Enquanto girava a bola de cristal entre as mãos, observava-o com uma expressão de ressentimento pelo
canto do olho. Xavier tinha pegado numa concha partida, começando a examiná-la como se fossem dois bons amigos que haviam ido dar um passeio, passando uma tarde
de lazer juntos.
- Porque é que continuais na ilha? - perguntou Meg num tom autoritário.
- Bem, este parece-me ser um lugar aprazível, pacífico...
- Não estou a referir-me à angra, mas sim à ilha Encantada. Eu dei-vos aquela poção para vos ajudar a recuperar as forças.
- De facto, assim foi e agradeço-te muito por isso.
- Não quis os vossos agradecimentos. Só queria que partísseis da ilha.
- Ai de mim, parece-me que não consegui conquistar a tua estima retorquiu Xavier, soltando um suspiro trocista. - Por acaso viste mais indicações de perigo a meu
respeito na tua pequena bola de cristal? O enorme jaguar a rondar a pobre Lady Jane Danvers.
- Não, a bola de cristal não me adverte sobre acontecimentos que já tiveram lugar.
Talvez fosse impossível ler os olhos de Xavier, mas não era o caso com os de Jane. Meg via claramente a transformação que ocorrera na sua amiga mais velha, o brilho
esperançoso nos olhos de Jane, todos os anseios que por ser tão calada nunca expressaria.
- Já haveis fincado as vossas garras bem fundo no coração da Jane disse Meg rancorosa.
Xavier franziu os sobrolhos. Recuou o braço todo para trás, atirando a concha para a água até bastante longe.
- Quer acredites quer não, eu gosto muito da Jane. Jamais lhe faria mal.
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- De propósito, talvez não. - Meg estava disposta a dar-lhe o benefício da dúvida quanto àquilo. - Mas a verdade é que sois uma dessas pessoas perigosas que atraem
os problemas como uma estrela polar. Exatamente como... - Meg interrompeu-se, cerrando os lábios.
- Como tu? - perguntou-lhe Xavier.
Meg detestava admitir que talvez tivesse alguma coisa em comum com ele. Todavia, pensou em toda a gente na sua vida que se havia visto a braços com situações desastrosas,
a sua muito amada velha ama, a senhora Waters, muitas das jovens mulheres que se haviam juntado à Irmandade da Rosa de Prata, o infortunado irmão de Lady Jane Danvers.
Também tinha sido por um triz que Meg não havia sido responsável pela morte de Jane, para já não dizer nada do facto de ter posto o pai e a madrasta em perigo.
Não, corrigiu-se Meg em pensamento. Megera, a Rosa de Prata, era quem constituía um perigo para os seus amigos. Mas essa não era ela.
Xavier estendeu a mão com o intento de lhe tirar a bola de cristal das mãos, mas Meg fechou-as com mais força em volta da bola de cristal que lhe permitia adivinhar
o futuro. Colocou-a fora do alcance dele e fitou-o com uma expressão furiosa.
- Eu só queria vê-la melhor - disse ele. - Levando em consideração que essa bola de cristal parece que só te traz angústias, pergunto-me porque é que te fascina
tanto?
- Por nada que seríeis capaz de compreender.
- É possível que ficasses surpreendida - retorquiu Xavier com um estranho sorriso. Tirou uma pequena garrafa de dentro do gibão. - Sabes o que é isto?
Meg olhou-o com uma expressão de escárnio.
- Parece-me que é apenas uma pequena garrafa forrada a couro, semelhante àquela em que a minha madrasta guarda o seu uísque irlandês. Houve uma ocasião em que ela
me deixou provar. Foi o mesmo que engolir fogo e tinha um sabor horrível. Fez com que eu ficasse engasgada.
- O que a minha garrafa contém far-te-ia muito mais do que isso. Os nativos do Brasil chamam-lhe o elixir dos espíritos. Um xamã índio ensinou-me a prepará-lo de
infusão com uma determinada liana da selva.
- Quereis dizer como uma poção? - perguntou Meg, tentando mostrar-se desinteressada, mas, a despeito de si própria, sentia-se intrigada.
- E o que é que faz?
245
- Induz um poderoso transe, um que levaria a tua mente a lugares onde nunca imaginastes que pudesses ir. Uma pessoa sente-se como se fosse capaz de ver e de saber
tudo.
- Tal como quando eu entrevejo vislumbres do futuro na minha bola de cristal?
- Não exatamente, mas é verdade que conjura uma espécie de visões. Liberta-nos dos laços que nos unem ao mundo real, faz com que a nossa mente se eleve às alturas.
É claro que, quando caio violentamente de volta à Terra, habitualmente fico com náuseas durante vários dias.
- Sendo assim, porquê mexer numa coisa tão perigosa?
Xavier ergueu a pequena garrafa, olhando-a com um sorriso de alguma tristeza.
- Porque, minha querida, à semelhança da tua bola de cristal, o poder que possui é muito sedutor.
Meg queria negar qualquer comparação entre a pureza da sua bola de cristal e a asquerosa poção da selva dele. Mas a verdade é que as palavras dele tocaram num nervo
que lhe causou um certo mal-estar. As visões que ela conjurava na bola de cristal eram, com muita frequência, alarmantes. Mas saber que possuía o poder de conjurar
essas visões era demasiado aliciante.
- A vossa poção dá a impressão de ser mais perigosa do que o que eu faço com a minha bola de cristal - disse Meg. - Pelo menos, eu não mergulho em nenhuma espécie
de transe.
- Talvez não. Mas enquanto estás tão interessada em tentar saber o que o futuro nos reserva, esqueces-te de viver o dia de hoje. Os teus vislumbres do futuro podem
ser os mais perigosos porque te negam o livre-arbítrio, porque te impedem de acreditar que podes traçar o teu próprio rumo de vida. Se eu estivesse no teu lugar,
não voltaria a tocar nessa coisa.
- Não tendes o direito de me dar lições de moral - ripostou Meg, fazendo um gesto desdenhoso na direção da pequena garrafa dele.
- Tens razão, não me assiste esse direito - disse Xavier, desarrolhando a sua garrafa. Meg olhava para ele com um misto de ansiedade e fascínio, perguntando-se se
ele tencionaria pôr em prática a sua magia para ela ver, ali e agora. Mas, para sua grande perplexidade, ele virou a pequena garrafa com o gargalo para baixo, vertendo
o líquido na areia.
"O facto de eu ter usado esta forma de magia negra muito possivelmente ter-me-á custado o meu navio. Essa tua bola de cristal poderá acabar por te custar, igualmente,
um elevado preço.
246
Meg surpreendeu-se ao confiar a Xavier o que nunca dissera a ninguém.
- É mais forte do que eu, Xavier. Tenho medo. Vejo-a constantemente.
- Presumo que estejas a referir-te à Rainha das Trevas - redarguiu Xavier, estreitando os lábios.
- Haverá alguém que me vai atraiçoar, entregando-me nas mãos dela. Acabarei encurralada no palácio dela e... - Meg mordeu o lábio. Já lhe tinha dito mais do que
tencionara dizer-lhe, mas não acrescentou: "Tenho receio de vir afazer uma coisa terrível!
Xavier desviou o olhar que mantivera nela, mostrando uma expressão que lhe ensombrava o rosto. Meg teria dado tudo e mais alguma coisa para conseguir ler os olhos
do homem. Quando Xavier voltou a olhar para ela, o seu semblante era mais suave do que ela teria imaginado que ele fosse capaz de mostrar. Xavier tocou-lhe na mão.
- Não, Meg. Ninguém te vai atraiçoar, não obstante o que essa bola de cristal te possa dizer. Estarás a salvo da Rainha das Trevas. Posso prometer-te isso.
Era uma promessa precipitada. E, contudo, ele falava com tanta simplicidade, tão veementemente, que Meg deu consigo a acreditar no que Xavier lhe dizia.
Olhou para a sua bola de cristal durante longos momentos, tomando-lhe o peso nas mãos. Chamando a si toda a sua coragem, Meg estilhaçou-a contra as rochas.
Simon Aristide tinha voltado à ilha Encantada. Muito embora já tivesse decorrido mais de uma década desde que o caçador de bruxas atacara a ilha, as mulheres apressaram-se
a reunir os filhos, que levaram para dentro de casa.
Algumas atreveram-se a ficar aos portões dos jardins, a olharem fixamente num silêncio sepulcral para o homem que passava a cavalo. A passagem dos anos pusera-lhe
alguns fios grisalhos no cabelo escuro. Agora vestia-se com mais simplicidade, com uns calções que apertavam abaixo dos joelhos e uma túnica de camponês, em vez
do traje escuro de guerreiro que tinha usado antigamente. No entanto, era impossível não reparar na pala negra que lhe tapava um olho e as cicatrizes que desfiguravam
a face do lado direito de Aristide.
Simon acenava com a cabeça, chegando as pontas dos dedos à aba mole do chapéu, na direção de algumas senhoras por que ia passando. Todavia, os seus esforços para
sorrir eram recebidos com semblantes carregados e houve uma senhora idosa que chegou ao ponto de lhe cuspir.
Mas Simon não lhe guardou ressentimento, depois dos tumultos que causara na ilha durante a sua juventude, nos anos em que procedia com arrogância e azedume. Tinha
abdicado da sua atividade de caçador de bruxas, mas as senhoras da ilha Encantada nunca se esqueceriam do que ele tinha feito, nem tão-pouco lhe perdoariam as suas
ações.
Fazendo pressão com os joelhos nos flancos de Bile, Simon deu pressa ao cavalo para que avançasse em direção a Belle Haven, onde sabia com certeza absoluta que seria
bem acolhido, pelo menos, por uma mulher. A Filha da Terra que tinha a coragem de o chamar de seu marido.
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O passo de Elle abrandara desde que haviam chegado à ilha Encantada. A amada égua de Simon estava a ficar velha e já não possuía a mesma estâmina durante viagens
mais longas. Desde sempre que Ele se mostrara assustadiça quando percorria a estreita língua de terra que unia a ilha ao continente.
Mas as orelhas da égua espevitaram-se quando já estavam perto do pátio de Belle Haven, uma casa senhorial de pedra, com uma única torre retangular, cujas paredes
estavam cobertas de hera. Apesar de se sentir exausto, Simon adquiriu uma postura mais a direito na sela. O seu coração estava mais leve, especialmente quando levava
Elle para o pátio do estábulo e viu uma mulher que mais parecia uma fada, com um cabelo de um louro de luar.
Miri estava inclinada para baixo com um mastim, que ainda era um cachorrinho, nos braços, tentando aquietar a criatura, que se contorcia, de maneira a poder ensinar
ao sobrinho pequeno como fazer-lhe festas com suavidade. Uma vez que Léon andava a pular em volta das saias dela, tão excitado como o cachorrinho, a lição dava a
impressão de ser um grande desafio.
Quando ela ergueu a cabeça e viu Simon, ficou com uma expressão radiante. Entregando o cachorrinho e Léon aos cuidados de Seraphine, Miri desatou a correr pelo pátio
do estábulo antes mesmo de ele ter tido tempo para desmontar.
Conhecendo bem a sua Miri e sabendo do muito amor que ela dedicava a todas as criaturas de quatro patas, Simon não teria ficado surpreendido se ela começasse por
prestar atenção à égua. Se bem que ela tivesse acariciado o topete do animal, mal esperou que Simon assentasse os pés no chão antes de se atirar para os braços dele.
Como ele tinha tido saudades dela, Simon deu um forte abraço à mulher, após o que começou a rir, levantando-a do solo e fazendo-a rodopiar em círculo até se lembrar
do precioso fardo que ela trazia dentro de si.
com todo o cuidado, pousou-a no chão. Contentou-se com um demorado beijo terno apesar dos apupos e aplausos na brincadeira da sua endiabrada sobrinha, as palmas
a serem imitadas pelo pequeno Léon.
Miri olhou para a sobrinha e para o sobrinho com cara de zanga. Enxotou-os com um gesto da mão antes de voltar a dedicar toda a sua atenção a Simon com um suspiro
de deleite.
- Isto é uma grande surpresa, meu amor. Fizeste uma viagem tão grande para recuperares a tua mulher errante?
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Ele puxou-lhe uma das tranças na brincadeira; o tom abrupto na sua voz ocultava a maneira como o seu coração se enchia de alegria ao vê-la.
- Há quase um mês que te ausentaste de casa, minha senhora.
- Não! A sério? Já passou tanto tempo?
- É óbvio que sentia a tua falta muito mais do que tu a minha. Miri franziu o nariz, mostrando-se adoravelmente culpada.
- Tenho tido saudades tuas, Simon, mas tem sido maravilhoso...
- Quando ela se interrompeu, ele concluiu a frase por ela.
- Estares de novo no teu lar? - Simon estava bem ciente de tudo aquilo de que Miri abdicara ao casar com ele. Das três irmãs Cheney, tinha sido ela a que mais amara
viver na ilha Encantada.
Miri pousou a palma da mão na bochecha dele.
- Não, Simon, o meu lar é onde tu estás. Devias saber isso. Mas tem sido maravilhoso estar de novo com a Ariane e passar tempo com as filhas da Gabby e com o pequeno
Léon - adiantou Miri, olhando para ele com uma expressão radiante. - E não conseguirias adivinhar o que vou dizer-te a seguir. Tenho um irmão, o capitão Louis Xavier
Cheney. Tenho a certeza de que estás a perguntar-te como é que isso aconteceu. Tens de vir para dentro para o conheceres. A Seraphine cuidará da Elle. Tenho a certeza
de que está a morrer por fazer isso. E enquanto te refrescas e te lavas da poeira do caminho, eu explico-te tudo.
Pegando pela mão do marido, Miri puxou-o na direção de casa. Mas o contentamento de Simon ao vê-la fizera com que se esquecesse da razão que o levara a fazer a viagem
até Belle Haven, as notícias inauspiciosas de que era portador. O deleite evidente que Miri sentia por saber que tinha um irmão faria com que lhe fosse ainda mais
difícil dar conta dessas notícias.
Ao ver como ele se mantinha calado, Miri apercebeu-se da relutância do marido. Virou-se para poder olhá-lo de frente.
- O que é que se passa, Simon? - perguntou-lhe ela.
- Lembras-te de que tenho andado a proceder a indagações, tentando inteirar-me do que se passa em Paris. Fiquei a saber algo recentemente, uma coisa má.
- Acerca da Rainha das Trevas? - perguntou Miri com algum receio.
- Não se trata apenas da rainha Catarina - respondeu Simon suspirando. - Também diz respeito a esse teu novo irmão...
250
Xavier sentava-se à mesa da cozinha a trabalhar no seu desenho, o pau de carvão na mão direita, que o manejava desajeitadamente. A exemplo de muitos capitães de
mar, ele aprendera a desenhar com bastante mestria para poder registar muitas das espécies da fauna e da flora exóticas que tinha encontrado ao longo das suas viagens.
Mas era irremediavelmente inepto a desenhar com a mão esquerda, enquanto com a direita era extremamente desajeitado devido à tala. O facto de estar rodeado de um
público crítico também não ajudava nada, as suas duas pequenas sobrinhas, Lúcia e Ninon, que o ladeavam.
Xavier olhou de relance para o outro lado da cozinha. Jane estava apreensiva enquanto ensinava uma das criadas mais novas a tirar nódoas dos tecidos de linho fino.
Xavier pousou o pau de carvão e começou a desatar as fitas que mantinham a tala no seu lugar.
Mas Lúcia começou a cantarolar.
- Milady Jane, vede o que o tio Xavier está a fazer.
- Queixinhas - censurou Xavier numa voz rosnada.
Jane aproximou-se dele com um franzir de sobrancelhas de muita reprovação. Para grande gáudio das suas sobrinhas pequenas, ela bateu-lhe na cabeça com uma colher
de pau, repreendendo-o.
- Mas quantas vezes é preciso dizer-te? Deixa as ligaduras onde estão.
- Mas esta maldita coisa faz-me comichão. com certeza que nesta altura o ferimento já deve estar quase sarado. Já passou quase um mês.
- A Ariane diz que deves esperar, pelo menos, mais uma ou duas semanas.
- Nessa altura, o braço estará completamente mirrado pela falta de uso - resmungou Xavier, mas sentiu-se imediatamente envergonhado consigo próprio. Se não fosse
Ariane, não teria braço nenhum de que se queixar.
- Muito bem - disse Xavier. - vou tentar comportar-me como deve ser.
- Isso, caro senhor, receio que esteja fora do teu poder de controlo. Talvez a Meg possa preparar uma poção qualquer que faça com que passes a ser mais paciente.
Meg desviou o olhar do livro sobre ervas curativas que estava a ler perto da lareira, sorrindo.
- Isso, lamento ter de dizer, está inteiramente fora do meu poder.
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Xavier afivelou uma expressão feroz dirigida a todas. Suspirou, fazendo o seu melhor para conseguir manejar o pau de carvão com os dedos que se esticavam na extremidade
da tala.
Jane deixou-se ficar junto da mesa para poder observar e, quando as sobrinhas se juntaram a ele ainda mais, os olhos de Xavier cruzaram-se com os de Jane por cima
das duas cabecinhas louras.
Ela esboçou aquele seu sorriso particularmente suave que reservava exclusivamente para ele e Xavier sentiu que o seu coração reagia. Perguntou-se se ela estaria
a pensar a mesma coisa que ele. Que aquilo era o que a vida deles em conjunto podia ser se viessem a casar, os filhos de ambos em volta deles.
A noção não o alarmava como havia acontecido até há pouco. De dia para dia, ia-se acostumando cada vez mais a essa ideia. Talvez pela primeira vez na sua vida, Xavier
compreendia a razão por que alguns dos homens da sua tripulação estavam sempre tão ansiosos por atracarem ao porto onde a sua casa se situava, depois de uma longa
viagem. Era por causa do conforto e satisfação que sentiam quando regressavam ao seu lar e ao seio da família, o sentido de pertença a um determinado lugar naquele
vasto mundo que ele próprio nunca sentira. Até agora.
Entretanto, Lúcia puxava-lhe pela manga impacientemente, lembrando-o da tarefa que tinha em mãos. Enquanto desenhava com o pau de carvão no pergaminho, as asas da
criatura começaram a tomar forma. Olhou para os seus esforços com um olhar crítico. Não era um dragão tão bom como ele poderia ter desenhado se pudesse usar a mão
direita sem qualquer impedimento, apesar disso era um esforço bastante credível.
Ninon tirou o polegar da boca com um estalido e uns olhos muito abertos. Fez um gesto na direção da gravura com o dedo cheio de cuspo.
- E vistes essa besta na selva onde vive?
- Certamente que vi. Foi por pouco que não me estorricou com o fogo que deitava pela boca, comendo-me ao pequeno-almoço.
- Isso parece outra das suas histórias, tio. Não acredito que alguma vez tenha visto um dragão - disse Lúcia, atirando o cabelo louro comprido para trás.
- Eu acredito - atalhou Ninon, olhando para a irmã mais velha do que ela com um ar de censura. - Nunca acreditas em nada.
- Isso é porque a Lúcia é uma cética perene - disse Xavier.
- O que é um animal "perene? - perguntou Lúcia autoritária.
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- É alguém que nem sequer acredita que tem um nariz, a menos que se veja ao espelho, - Xavier pôs uma mancha de carvão que tinha esbatido no nariz empertigado da
sobrinha.
Lúcia esfregou o nariz, olhando zangada para Xavier antes de apelar a Jane.
- O que é que achais, milady? Tratava-se de um dragão a sério?
- Não sei. Talvez devêssemos perguntar à Meg. Parece-me que ela costumava ter um livro sobre dragões.
- Que fui obrigada a deixar para trás quando partimos de Londres. - Meg fechou o livro que estava a ler sobre ervas medicinais e aproximou-se de Xavier para examinar
o desenho.
- É parecido com os dragões etíopes que estavam no meu livro disse a jovem.
- Mas os dragões existem de verdade? - insistiu Lúcia.
- Estou em crer que sim. De facto, estou convencida de que ela existe.
Xavier olhou para Meg, compreendendo o segundo sentido nas suas palavras.
- Tenho a certeza de que não precisas de te preocupar com este dragão em particular. Ela já é velha e tiraram-lhe os dentes.
Meg sorriu perante a compreensão muda entre os dois. Xavier pensou que talvez tivesse andado mal ao garantir-lhe que estaria a salvo de Catarina de Médicis. Tudo
o que Xavier podia prometer realmente a Meg era que ela não tinha nada a recear da parte dele. Se fosse necessário, protegeria Meg e não apenas por causa de Jane,
mas também para o bem da própria rapariga.
Não poderia dizer que haviam passado a ser grandes amigos, mas, entre os dois, estabelecera-se uma aliança experimental desde aquela tarde na margem da angra. Talvez
por os dois terem renunciado aos seus próprios demónios, quando ele derramou o elixir do xamã e ela destruiu a bola de cristal. Ou talvez se tratasse de alguma coisa
mais elementar, uma compreensão que ambos partilhavam relativa à luta para conseguirem superar as correntes e as cicatrizes do passado.
- Está-me a parecer que o seu dragão está a precisar de uma cauda maior - disse Meg, inclinando-se mais para o desenho.
Xavier entregou-lhe o pau de carvão. Ninon contorceu-se de modo a poder sentar-se no colo dele, enquanto Meg acrescentava ao desenho dele os últimos traços de acabamento
com mão segura.
253
Estavam todos tão embrenhados que, inicialmente, ninguém reparou no homem, à exceção de Xavier, que entrara silenciosamente na cozinha. Mas, então, Lúcia gritou:
- Tio Simon!
Apesar da habitual intrepidez da garotinha, não se atirou ao homem como costumava fazer com Xavier, o qual compreendeu porquê.
Havia algo de intimidante no rosto desfigurado do homem, o que a pala que lhe cobria o olho direito acentuava. O sorriso fugidio com que olhou para a garotinha era
mais uma careta.
Portanto, aquele devia ser Simon Aristide, o outrora caçador de bruxas que tinha desposado a sua irmã mais nova. Quaisquer dúvidas que Xavier pudesse ter albergado
dissiparam-se quando Miri chegou e deu o braço ao marido. Era seguida por Ariane.
Havia qualquer coisa de anómalo. Os olhos de Miri estavam avermelhados e Ariane estava pálida. Quando Seraphine entrou na cozinha atrás deles, olhou para Xavier
com uma expressão de fúria, como se ele tivesse dado um pontapé ao seu mastim que ainda era um cachorrinho. Quanto a Aristide, os olhos do homem espelhavam uma dureza
de pedra.
Xavier tirou Ninon do seu colo para poder pôr-se de pé. Tinha a forte impressão de que aquilo viria a provar não ser a continuação de uma afetuosa reunião de família.
Quando ninguém se adiantou para proceder às apresentações, Xavier avançou para Aristide, estendendo-lhe a mão esquerda.
- Presumo que sois o meu cunhado. Eu sou...
- Sei quem sois - atalhou Aristide, ignorando a mão que Xavier lhe estendia.
Aquelas poucas palavras concisas estavam imbuídas de um significado que não augurava nada de bom. Xavier ficou rígido, afastando a mão, que deixou cair junto da
perna.
- Seraphine, leva as tuas irmãs lá para fora - disse Ariane. - Leva-as para verem o cachorrinho e brincar com o Léon nos estábulos.
As duas garotinhas apressaram-se a protestar e a lamuriar-se, mas Seraphine puxou-as para fora como se estivesse a salvar as irmãs do diabo em pessoa. Seguiu-se
um pesado silêncio.
A testa de Meg franziu-se numa expressão confusa, mas olhava para todos com uma calma sombria. Talvez porque a jovem já passara por tantos reveses, apesar da sua
curta vida, estava sempre preparada para o que desse e viesse.
254
Jane mostrava-se muito mais ansiosa. Aproximou-se mais de Xavier.
- Ariane, o que é... o que é que se passa? - perguntou.
Foi Aristide quem falou. Ignorando a pergunta de Jane, dirigiu a palavra a Xavier.
- Sois Louis Xavier, o corsário que é conhecido por Jaguar?
- Uma alcunha disparatada, mas sim, têm-me tratado por esse nome. - Xavier sentiu os dedos de Jane que se fechavam no seu braço, o toque da mão dela afetuoso e tranquilizador.
- E sim, sou um pirata. Nunca fiz segredo desse facto.
- Mas existem outras coisas que haveis mantido em segredo.
- Como, por exemplo?
- O vosso relacionamento com a Rainha das Trevas.
Meg soltou um pequeno arquejo e deixou de se mostrar tão calma à menção da rainha. Jane fitou Aristide com uma expressão carregada.
- Mas de que é que estais a falar, monsieur? Depois da maneira cruel como essa bruxa se aproveitou da sua mãe, o Xavier não haveria de querer ter nada a ver com
Catarina de Médicis.
A atenção de Aristide concentrou-se em Jane, o semblante de expressão severa a suavizar-se.
- Lamento muito magoar-vos, madame. Mas desde o outono passado que tenho andado a aprofundar os rumores de que a rainha contratou os serviços de um necromante. Não
consegui confirmar a identidade desse homem até muito recentemente. - Voltou a prender o olhar em Xavier.
- Negais que sois esse homem, monsieur?
Xavier arqueou as sobrancelhas numa atitude sobranceira.
- Parece-vos que sou um feiticeiro?
- Isso não responde à minha pergunta. Sois o homem que afirmou ser um feiticeiro e que esteve ao serviço da Rainha das Trevas?
- É claro que não é! - gritou Jane.
Xavier sentiu-se comovido ao ver como ela se apressara a sair em sua defesa, mas contorcia-se todo por dentro. Sentiu uma onda de rubor a subir-lhe até ao pescoço,
as entranhas a revirarem-se com um sentimento de culpa. Há muito tempo que devia ter confessado a Jane o seu envolvimento com a Rainha das Trevas, mas maldito fosse
se o fizesse naquelas circunstâncias, diante dos olhos acusadores de um antigo caçador de bruxas, ainda que o homem fosse o marido de Miri.
255
- Estou à espera da vossa resposta, monsieur. - Até mesmo o tom de voz de Aristide, frio e autoritário, fez com que Xavier ficasse com os pelos eriçados.
- Podeis esperar até que o Inferno congele no que me diz respeito. Quem é que vos nomeou como meu juiz? Disseram-me que tínheis abandonado a vossa antiga atividade,
mas uma vez um caçador de bruxas, para sempre um caçador de bruxas, certo?
Xavier arrependeu-se das suas palavras quando viu que Miri estremecia. Corado, Aristide deu um passo em frente, acercando-se dele, mas Ariane apressou-se a intervir,
posicionando-se entre os dois homens.
- Xavier, por favor - disse. - Ninguém está a fazer juízos de valor a respeito de ti.
- Não é isso que me parece - ripostou ele. Ariane olhou-o com uma expressão de pesar.
- Lamento o que está a acontecer. Tenho estado a dizer ao Simon que deve haver uma explicação simples para tudo isto. Se... se alguma vez estiveste ao serviço da
Rainha das Trevas...
- Mas não esteve! - gritou Jane. - Ariane, como é que podeis pensar sequer uma coisa dessas? - Fitou Xavier com olhos suplicantes. - Xavier, sei como reages quando
as pessoas te bombardeiam com perguntas e falsas acusações. Mas, por favor, peço-te que ponhas o teu orgulho de lado e digas ao Simon que está enganado.
Xavier olhou para o rosto que espelhava uma grande ansiedade, vendo aqueles olhos dela tão sinceros. Nunca tinha conhecido ninguém que depositasse tanta fé em si.
Desiludi-la era como morrer um pouco.
- Lamento muito, Jane - disse Xavier. - Mas é verdade. Jane pestanejou, mostrando-se estupefacta. Tentou recompor-se.
- N... não - titubeou. - Tu... tu não fizeste uma coisa dessas. É impossível que tenhas estado ao serviço dessa mulher.
Ignorando o resfolegar de ironia de Simon Aristide, Xavier prosseguiu.
- No outono passado frequentei a corte de Catarina de Médicis. Andava a tentar angariar fundos para a minha próxima viagem. Ludibriei-a, fingindo que entrava em
transe e que era um vidente. Quando eu disse à rainha como o "Livro das Sombras foi destruído em Londres, ela, finalmente, começou a acreditar nas minhas capacidades.
Recompensou-me com uma pequena bolsa de dinheiro.
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Xavier observava Jane, tentando interpretar a reação dela. Parecia ter ficado profundamente perturbada com a sua confissão. Os dedos dela apertaram-se mais no braço
dele.
- Jane, nunca tive a intenção de... - começou a dizer, mas foi interrompido por Aristide.
- Ouvi dizer que os cofres da coroa estão quase vazios. Consequentemente, não estou a ver a rainha Catarina a dispensar um único tostão para financiar uma viagem
marítima.
- Aonde é que quereis chegar com isso? - perguntou Xavier, olhando para Simon com uma expressão ameaçadora.
- Que, de há muito tempo a esta parte, a rainha só tem tido duas obsessões, encontrar o Livro das Sombras e aniquilar a Meg. Portanto, se ela vos deu dinheiro, a
que é que se destinava realmente?
O olhar de Xavier era de desafio quando se prendeu no de Aristide por breves momentos. Mas depois soltou um suspiro de amargura. Já que tinha feito aquela confissão,
o melhor era revelar o pior de tudo.
- A rainha pagou-me para lhe adquirir a Rosa de Prata.
- Ad... adquirir-me? - disse Meg sufocada.
Os dedos de Jane largaram o braço dele, o rosto sem pinga de sangue.
- Mas... mas nunca concordaste com uma coisa dessas, pois não? Xavier teria dado a sua alma para poder dizer que não.
- Sim, concordei. A rainha Catarina acredita que a Meg memorizou o suficiente do Livro das Sombras para poder ser-lhe útil. Já não quer aniquilar a Meg.
- Por conseguinte, isso faz com que o vosso plano de raptar a Meg seja muito mais desculpável - disse Aristide com ironia.
- Não tenho nenhum plano para isso - ripostou Xavier, rangendo os dentes. - Aceitei o dinheiro da rainha, mas nunca foi minha intenção levar a cabo as ordens dela.
- Estais à espera que acreditemos que o facto de terdes vindo parar à ilha Encantada foi uma mera coincidência? - perguntou Aristide.
- É-me completamente indiferente que acrediteis ou não - ripostou Xavier com brusquidão. Havia apenas uma pessoa cuja opinião era importante para si. Entretanto,
Jane tinha-se afastado mais dele. Xavier estendeu a mão para a puxar outra vez para junto de si.
- Eu jamais faria mal à Meg. Jane, tu acreditas em mim, não acreditas?
- Quero acreditar, mas eu... eu... -Jane ignorou a mão dele, ocultando as mãos nas dobras da saia.
Quem lhe dera que tivessem estado sozinhos, quem lhe dera que pudesse enlaçá-la nos seus braços, Xavier tinha a certeza de que conseguiria convencê-la, mas Meg pôs-se
entre os dois intempestivamente.
- Vós... vós mentistes-me quando estivemos naquele dia na enseada. Dissestes-me que eu estaria a salvo da Catarina de Médicis, quando durante todo esse tempo estáveis
a maquinar para... para...
- Meg, juro-te que não estava a maquinar absolutamente nada.
- Nesse caso, onde é que obtivestes as informações a meu respeito, sobre o que sucedeu ao Livro das Sombras?
Xavier passou a mão pela face enquanto explicava o que o seu primeiro-imediato lhe dissera, a estranha história de que Jambe se inteirara de uma maneira tão inesperada,
falando-lhe também das divagações de um prisioneiro louco, gravemente queimado, na prisão de Southwark.
- Só pode ser o Sander - disse Meg, o lábio inferior a tremer. - Ele conseguiu sobreviver ao incêndio, tal como eu tinha receado.
- Não, Meg - disse Xavier, tentando tranquilizá-la. - Quem quer que esse prisioneiro fosse, ele morreu na prisão. O Sander Naismith não poderá trair-te outra vez.
- Ele já o fez, tal como vós também haveis feito. - As lágrimas corriam livremente pelas faces de Meg. - Eu vi todos os maus presságios na minha bola de cristal,
o jaguar ameaçador, a sombra que passou por cima
da ilha Encantada. Desde o primeiro dia que pressenti que éreis perigoso, mas fui tão estúpida. Até permiti que me persuadísseis a partir a minha bola de cristal
que me permitia adivinhar o futuro, de modo a que eu... eu não pudesse continuar a ver o que andáveis a maquinar...
- Não foi nada disso, Meg. Quem me dera que me ouvisses.
- Não! Eu sabia bem o que éreis, mas, mesmo assim, eu... eu confiei em vós. - com um soluço de pranto, Meg saiu da cozinha a correr. Xavier ficou a vê-la a afastar-se,
sentindo-se frustrado e impotente. Virou-se para Jane.
- Jane, sei que toda esta situação faz com que eu pareça uma pessoa sem caráter, mas nunca tive a intenção de lhe fazer mal.
- Talvez não, mas fizeste - retorquiu Jane em voz baixa. Xavier apercebeu-se de que ela se referia a muito mais além de Meg. A expressão radiante que iluminara a
fisionomia de Jane durante os últimos dias tinha esmorecido, fazendo com que Xavier tivesse a sensação de que havia algo precioso que se lhe escapava. - Eu... é
melhor ir ver se a Meg está bem.
258
- Jane!
Quando ela saiu da cozinha num passo apressado, Xavier tentou segui-la, mas Aristide bloqueou-lhe o caminho.
?- Deixai-a em paz e sossego, monsieur. Já haveis causado danos mais do que suficientes aqui.
- Saí do meu caminho!
- Sois vós que tendes de ir! - ripostou Aristide, abanando a cabeça. - A rainha pôs a vossa cabeça a prémio. Será apenas uma questão de tempo até que alguns soldados
ou os caçadores de prémios invadam esta ilha num esforço para terem direito a receber esse prémio.
Xavier praguejou. Seria possível que aquela situação desastrada se agravasse ainda mais?
Aristide olhou para ele com um semblante de frieza.
- Tenho de insistir para que abandoneis esta ilha de imediato.
- A única pessoa a quem assiste o direito de me urgir a partir é a Ariane. Tanto quanto o mundo sabe, e para todos os efeitos, eu estou morto.
- É impossível que essa situação se mantenha por muito mais tempo, Xavier - disse Ariane. - Não depois de o meu mensageiro ter procedido a indagações no continente
e de dois membros da tua tripulação terem vindo à ilha à tua procura. Os rumores espalham-se, até mesmo quando têm origem na ilha Encantada. Temo ter de te pedir
que...
- Ariane, não! - gritou Miri. - Independentemente do que ele possa ter feito, o Xavier não deixa de ser nosso irmão. E tenho a certeza de que ele está arrependido.
- Miri, meu amor - começou Aristide a dizer delicadamente, mas a mulher cortou-lhe a palavra, batendo-lhe o pé, as lágrimas a correrem-lhe abundantemente pelas faces.
- Não! Se o Xavier deixar a ilha, ele correrá o perigo de vir a ser capturado. Nós... nós podemos escondê-lo. Ariane, por favor! Não podes pedir-lhe que parta.
Xavier podia ver a agonia da indecisão nos olhos de Ariane. Não havia nada que ele pudesse fazer para consertar a confiança que fora quebrada, tal como lhe era impossível
mitigar a mágoa que tinha causado, mas, pelo menos, podia poupar aquela luta de consciência a Ariane.
- A Ariane não precisa de me pedir - disse Xavier a Miri. - O teu marido tem razão. Se eu permanecer aqui, constituirei um perigo para todos.
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Lançou um olhar de tristeza na direção em que Jane tinha desaparecido.
- Tenho de partir. É por demais evidente que deixei de ser bem-vindo nesta ilha.
Jane deixou-se cair desalentada no banco do jardim, os olhos secos e o coração pesado como se estivesse repleto com as lágrimas que não conseguia verter. Era estranho
que não conseguisse chorar. Todas as outras estavam lavadas em lágrimas, Meg, Lúcia, Ninon e até mesmo Seraphine à sua própria maneira aguerrida.
Talvez Jane tivesse ficado de olhos secos por a sua experiência de vida ser maior do que a de qualquer delas. Naquela altura, já sabia bem com que facilidade é que
o mundo de uma pessoa podia ser destruído de um momento para o outro. Tinha sido por essa razão que se contentara em viver discretamente durante tantos anos, sem
nunca arriscar o seu coração.
Quando Jane seguiu Meg até ao andar de cima da casa, constatou que a jovem se barricara no interior da alcova. Jane conseguia ouvir o choro convulsivo da garota
através da porta, mas ela recusou-se a ceder às suas súplicas para que a deixasse entrar. Ficou com a mão dorida de tanto bater à porta. Finalmente, acabou por desistir.
Meg havia ficado devastada por Xavier ter admitido que se relacionara com a Rainha das Trevas. Mas Jane continuava a não ser capaz de se forçar a acreditar nisso,
apesar de ter noção de que o homem estava muito longe de ser perfeito e que podia ser impiedoso.
Mas com certeza que nunca teria entregado uma menina inocente nas mãos de uma mulher tão demoníaca como Catarina de Medíeis. No entanto, Jane não podia evitar lembrar-se
de que Xavier nunca considerara que Meg fosse uma jovem inocente. Tratara-a por Megera, insistindo em que ela possuía uma faceta sinistra. Nunca tinha aprovado a
escolha de Ariane, que designara Meg como a Senhora da Ilha Encantada que lhe sucederia. Se ele acreditasse que Meg era uma bruxa, talvez não achasse nada de censurável
em tentar receber a recompensa que a Rainha das Trevas oferecia pela rapariga. Não havia nada que Xavier desejasse mais do que conseguir ter outro navio, a sua oportunidade
de procurar novos horizontes longínquos.
E, contudo, aquele era o mesmo homem que se dispusera a abandonar todos os seus sonhos para poder manter-se ao lado de Jane se ela estivesse
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grávida. Seria possível que ele tivesse fingido toda a ternura que mostrara por ela? A simpatia com que tratara Meg nos últimos tempos?
Mas se Xavier não tinha nada a esconder, por que motivo é que fizera tanto segredo do seu relacionamento com Catarina de Médicis? Jane levou a mão à têmpora que
sentia a latejar. À primeira vista, a lógica determinava a culpabilidade de Xavier, todavia o seu coração dizia-lhe algo substancialmente diferente.
- Jane?
Sentiu um aperto no coração quando ouviu Xavier a chamar pelo seu nome. Levantou-se de repente, reprimindo a ânsia de se atirar para os braços dele. Xavier estacou,
olhando para ela de sobrolho carregado.
- Jane, onde diabo é que tens estado? Tenho andado à tua procura por todo o lado.
- O que não devias ter feito. - Jane esforçou-se por suprimir o tremor na voz. - A Ariane deu-me conta de que tens a cabeça a prémio. Não deves perder mais tempo.
Tens de te distanciar daqui o mais depressa possível.
- Pensaste que eu me poria a andar sem sequer me despedir de ti?
- Eu... eu não sei. Nem sequer sei o que pensar - respondeu Jane, que ficou tensa quando ele começou a aproximar-se. Xavier pousou as mãos nos ombros dela.
- Lamento muito, Jane. Eu devia ter-te informado sobre o meu relacionamento com a rainha Catarina mais cedo.
- Então... porque é que não o fizeste?
- Talvez por recear que todas vós passassem a olhar para mim como toda a gente olha para mim agora. Como se eu me tivesse transformado num monstro a que tivessem
nascido garras e chifres.
- O que estás a dizer não é justo, Xavier. Como é que poderias esperar que não ficássemos alarmadas e perturbadas, em especial a Meg? Sabes bem como todas as mulheres
da ilha se sentem aterrorizadas por causa da Rainha das Trevas. Ela é a maior inimiga das tuas irmãs, mas, apesar disso, achaste por bem não lhes dizer uma única
palavra de aviso, advertindo-as de que ela continuava a tecer as suas maquinações.
- Ela pode tecer tudo o que bem lhe aprouver. Atualmente, os poderes da rainha são muito reduzidos. Ela é uma mulher velha, perversa e enfermiça. E se ela decidiu
fazer outra tentativa de deitar a mão à Meg, suponho que eu me tenha comportado com a arrogância de acreditar que, desde que me mantivesse por perto, poderia proteger
a rapariga.
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- E... e tê-lo-ias feito? - perguntou Meg, humedecendo os lábios. Detestava fazer a próxima pergunta, mas aparentemente isso era mais forte do que a sua força de
vontade. - Por conseguinte, nunca tiveste, realmente, a intenção de raptar a Meg?
- Se ainda precisas de me fazer essa pergunta, não me parece que a minha resposta tenha alguma importância. - Xavier contraiu os músculos do maxilar. - Não. Admito
que houve uma altura, quando o destino me atirou para esta ilha, em que me senti tentado. Mas isso aconteceu antes de passar a conhecer bem a Meg e as minhas irmãs.
Antes de tu teres entrado na minha vida.
Jane inclinou a cabeça para trás, examinando atentamente a expressão fisionómica de Xavier.
- Acredito em ti - disse com tristeza. - Mas isso não altera nada. Tens de partir.
Xavier largou-a e passou a mão pelo cabelo, num gesto de frustração.
- Como de costume, consegui estragar tudo. Não me atrevo a continuar na ilha Encantada, mas também não posso levar-te comigo.
- Não precisas de te preocupar por causa de mim. Não tens qualquer obrigação de...
- Maldição, mulher! Não me venhas com esses disparates outra vez.
- Mas é a realidade, Xavier. Se eu estiver de esperanças, en... encontrarei uma maneira qualquer de viver com essa situação.
- Ou, por outras palavras, já não queres ter nada a ver comigo. Um fugitivo, um patife e um mentiroso não é uma perspetiva muito atraente para marido. Será melhor
que a tua criança seja um bastardo.
- Eu nunca disse uma coisa dessas - afirmou Jane agitando as mãos num gesto de impotência enquanto se esforçava por se explicar. - Durante uma grande parte da minha
vida, tenho sofrido por causa das ações de homens irresponsáveis. Em primeiro lugar, foi o meu pai, que arriscou tudo ao juntar-se à rebelião contra a rainha Isabel
de Inglaterra. E depois foi o meu irmão Ned, que com o seu louco envolvimento na prática de alquimia deu origem a que eu fosse acusada de bruxaria.
"Em tempos, perguntaste-me por que razão é que casei com um homem com idade suficiente para ser meu avô. Pelo menos, William Danvers fez com que me sentisse em segurança
durante um período da minha vida. E isso foi o que eu sempre desejei.
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- E chegaste à conclusão de que comigo jamais terás segurança - ripostou Xavier com um trejeito de amargura nos lábios. - Pois bem, tens de te congratular por teres
conseguido escapar por uma unha negra.
- O que se aplica a nós dois, porque tenho a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, começarias a ficar inquieto e a estar farto de mim. Guardar-me-ias ressentimento
e a qualquer criança que pudéssemos ter por termos impedido que concretizasses os teus sonhos. Nós... desde o princípio que não seríamos feitos um para o outro.
- Tenho de reconhecer que tens razão. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Portanto, o que é que tencionas fazer? - acabou Jane por perguntar. - Para onde é que irás?
- Espero que diretamente para o diabo que me carregue. O que é o meu habitual caminho de vida.
Quando Jane o fitou com uma expressão de consternação, Xavier soltou uma gargalhada forçada.
- Não receies por mim, minha querida. Sempre fui muito competente a olhar por mim próprio. Mas, e quanto a ti, o que é que tencionas fazer?
- Eu... eu penso que devo ir para Paris para poder cuidar da minha prima.
- Mas que diabo, Jane - ripostou Xavier, que a olhou com um semblante de censura. - Compreendo que a tua convivência comigo te deixou um pouco abalada e magoada.
Mas estás disposta a abdicar da liberdade de que desfrutas na ilha Encantada para passares a ser uma escrava dessa ingrata mulher que te ignorou durante todos estes
meses?
- A Abigail é a minha única família e está a precisar da minha ajuda - replicou Jane, mostrando uma atitude circunspecta.
"Atualmente, é a única pessoa a precisar de mim", acrescentou Jane para consigo própria, mas ainda tinha orgulho que chegasse para não verbalizar um pensamento tão
triste.
- Tenho de ir para cuidar dela. É a atitude mais correta a ter.
- Deve ser maravilhoso que uma pessoa se sinta sempre tão segura do seu caminho de vida. Para o resto de nós, simples mortais, as coisas nunca são assim tão claras.
Jane estremeceu ao ouvir aquelas palavras tão cáusticas. Subitamente, sentiu-se significativamente cansada.
- Não existe nada aqui que te pudesse prender - murmurou Jane.
- Por favor, não te demores a partir. Não poderia suportar que te acontecesse alguma coisa de mal.
- Obrigado por isso. - A voz de Xavier suavizou-se quando acrescentou: - E tu também tens de ter cuidado contigo, Jane. O meu principal desejo é que tenhas sempre
boa saúde e que sejas feliz.
Por um momento, ela pensou que ele a tomaria nos seus braços e que lhe desse um beijo de despedida. Mas Xavier limitou-se a baixar a cabeça com uma formalidade muito
pouco característica nele antes de se afastar.
Enquanto o observava até ele desaparecer de vista, Jane ficou com os olhos turvos. Ele desejava-lhe que fosse feliz. Como é que Xavier imaginava que isso fosse possível
quando qualquer hipótese de felicidade para ela desaparecia com ele?
Jane deixou-se cair no banco do jardim outra vez e, por fim, as lágrimas marejaram-lhe os olhos.
A estalagem tresandava a mofo, a suor e a bebidas alcoólicas, a luz fraca das velas a ocultar, misericordiosamente, as camadas de sujidade que se haviam acumulado
ao longo dos anos. Situada numa pequena aldeia na costa bretã, a Cheval Noir não era o género de estabelecimento que atraísse clientes respeitáveis. Mas para qualquer
pessoa que estivesse a precisar de uma bebida barata e de um tugúrio para onde pudesse escapar durante algum tempo, aquela estalagem era o ideal.
Xavier sentou-se a uma das mesas de canto enquanto esperava que Jambe e Pietro se lhe juntassem. Tinham saído à procura de um barco que os levasse a todos para longe
de França, enquanto Xavier se empenhava a tentar embebedar-se.
Olhava para a garrafa meio vazia com uma expressão taciturna, incapaz de chamar a si a vontade de voltar a encher o copo. Era um uísque de má qualidade, em especial
com o sabor azedado por períodos alternados de comiseração e aversão por si próprio.
Ainda ontem tinha sido um irmão, um tio e muito perto de vir a ser um marido e pai. Mas agora não era nada, sozinho uma vez mais, além de ter passado a ser um fugitivo
com a cabeça a prémio. Mas reconhecia que ele próprio era o único culpado por esse estado de coisas.
Pietro tentara avisá-lo. Era impossível enganar uma mulher vingativa como Catarina de Médicis e esperar que não se sofresse represálias.
Em tempos idos, ter-se-ia rido se lhe dissessem que alguém lhe tinha posto a cabeça a prémio. Afinal de contas, Xavier era um corsário que nunca vivera segundo os
ditames da lei. Teria desdenhado a rainha e ter-se-ia feito ao mar e rumado para bem longe da civilização, sem sequer olhar para trás.
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Mas, pela primeira vez, tinha ancorado num lugar que se assemelhava a um lar, rodeado pelo conforto e pelo amor de uma família. E, para seu grande espanto, concluía
que gostara disso.
Devia tê-las posto ao corrente do seu relacionamento com Catarina de Médicis. Mas à medida que os dias iam passando e ele se embrenhara cada vez mais na existência
da ilha, tornara-se-lhe mais difícil fazer essa confissão. O facto de não ter procedido dessa maneira fez com que parecesse culpado do que o haviam acusado. Mas
que diabo, porque é que todos tinham pensado o pior de si com tanta prontidão? Muito embora não soubesse que outra coisa é que poderia ter esperado. O pai sempre
fora rápido a assumir isso mesmo.
Mas nunca nada o havia ferido tão profundamente como ver Jane a afastar-se dele. E, no entanto, como é que poderia censurá-la por isso? Só lhe causara problemas.
Esperava ardentemente que ela não tivesse engravidado. Mas, ainda que fosse esse o caso, continuaria a estar melhor sem ele. Sem dúvida que ela parecia ter chegado
a essa conclusão.
Decerto que Jane não tardaria a esquecê-lo depois de ter chegado a Paris para cuidar da prima, cumprindo o seu dever e voltando a levar a existência respeitável
por que ela parecia ansiar.
Quanto a si próprio... Xavier tentou adotar uma atitude de indiferença, mas optou por beber outro gole de uísque num esforço para banir do seu pensamento aqueles
últimos momentos passados com Jane no jardim.
"Não existe nada aqui que te prende", dissera-lhe ela.
Sendo assim, por que motivo é que sentia um vazio tão grande dentro de si, como se tivesse extraído o seu coração para o deixar na ilha Encantada. Antes de ter conhecido
Jane, nunca tinha pensado sequer que possuía um coração, para além de saber que era um órgão interno que batia a ritmos regulares, mantendo-o vivo.
Mas, agora, tudo o que sentia dentro do peito era aquele peso de perda e culpa. Jane tentara mostrar tanta serenidade, tanto estoicismo, quando se despediu dele,
mas os olhos dela disseram-lhe algo diferente e os olhos de Jane nunca mentiam. Xavier tinha consciência de que a magoara profundamente, tal como Meg tinha previsto
que ele faria.
E Meg - o que é que a falsidade dele lhe tinha feito? A jovem não confiava com facilidade. O que Xavier compreendia bem porque também era assim. Prometera à rapariga
que estaria a salvo da Rainha das Trevas. Mas, por acaso, não teria ele sido sempre bom a tecer mentiras e a fazer
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promessas precipitadas que lhe era impossível manter? Bebeu outro trago de uísque, concentrando-se no interior do copo. Como sempre que se sentia assim tão em baixo,
a voz de censura do pai ecoava-lhe no pensamento num tom mais alto.
"Fiz o meu melhor para te ensinar a comportares-te como um gentil-homem. Mas essa tua língua desbragada, um dia, será a tua desgraça. Tens um talento diabólico para
a imposturice, em especial para com as mulheres, e não faço a mais pequena ideia de quem é que terás herdado isso."
"Não sabeis?", tinha perguntado Xavier numa voz arrastada. "Eu teria de dizer que isso está arreigado na minha natureza, mon père."
O chevalier batera-lhe com as costas da mão com tanta força que tinha caído do banco em que se sentava. Alheado do que fazia, Xavier esfregou a face ao recordar-se
daquele episódio. Que se lembrasse, foi a única vez em que o pai lhe bateu. O chevalier deixara-lhe a face com uma bela nódoa negra, mas Xavier desfrutara da sensação
bastante dúbia de ter penetrado a fachada farisaica do pai.
O chevalier havia-se dividido em dois, jurando dedicação a duas mulheres. Quando deixou de lhe ser possível encarar todos os desgostos que causara, limitara-se,
muito simplesmente, a fugir, atravessando os mares.
Era provável que as razões de Xavier fossem diferentes, mas estava prestes a fazer a mesma coisa, ou seja, pôr-se em fuga. Arreganhou um lábio num trejeito em que
escarnecia de si próprio quando ergueu o copo num brinde trocista.
- Aqui vai à sua, papá - resmungou. - Apesar de todas as suas afirmações, está-me a parecer que, afinal de contas, sou seu filho.
Xavier fez menção de beber outro gole de uísque, mas acabou por empurrar o copo para o lado. Arrependeu-se de ter deitado fora a infusão do xamã. Se tinha havido
uma ocasião em que sentira necessidade de se perder no seu mundo de sonho, era aquela. Era a sua única esperança de voltar a ver Jane, a elusiva sereia das suas
visões.
Só lhe restava aquela poção curativa que Meg lhe dera. Tirou o pequeno frasco da algibeira, que olhou com uma expressão taciturna.
Desiludida e dececionada com ele, Jane iria para casa da prima em Paris e a sua pequena carriça fecharia a portinhola da sua gaiola. Meg voltaria a viver com o medo
que a rainha velha lhe inspirava, mais desconfiada do que nunca e ainda mais tentada a virar-se para o lado mais negro da magia à procura de respostas.
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Maldita situação! Não podia fazer-se ao mar assim, sem mais nem menos, abandonando-as à sua sorte. Precisava de parar de sentir pena de si próprio e tentar encontrar
uma maneira de desfazer o mal que havia causado. Mas o que diabo é que ele poderia fazer?
Pegou no pequeno frasco que Meg lhe dera, erguendo-o até à luz da chama da vela. Talvez fosse a maneira como a chama se refletia no vidro que desencadeou algo no
seu cérebro. Na sua mente começou a formar-se uma ideia. A noção era tão chocante, tão completamente louca, ao ponto de ele próprio se sentir intimidado.
Olhava fixamente para o frasquinho como se mesmerizado, mal desviando o olhar quando Jambe e Pietro regressaram. Deixando-se cair na cadeira oposta a Xavier, Jambe
disse-lhe:
- Já está tudo combinado. Encontrámos um pequeno navio mercante que vai zarpar para Portsmouth assim que o dia despontar. O capitão disse que podíamos trabalhar
para pagar as passagens.
- Isso parece-me ótimo. Tu e o Pietro sigam viagem - murmurou Xavier. - Quanto a mim, tenho outros planos.
- Outros planos!? - ecoou Jambe. - Meu rapaz, é provável que os homens da rainha comecem a passar toda a costa a pente fino dentro de pouco tempo. Que plano melhor
é que poderias ter do que sair de França?
- Se a rainha pôs a minha cabeça a prémio e tem homens à minha procura, só existe um lugar para onde tenho de ir.
- E onde é que isso seria?
- Voltar para Paris, ir ao Hotel de la Reine.
Jambe e Pietro ficaram a olhar para ele de boca aberta.
- Não pareces estar bêbado. Mas é evidente que já bebeste um copo a mais - disse Jambe, tirando a garrafa de uísque do alcance dele.
- Mas enlouqueceu, capitão? - exclamou Pietro. - Por que razão é que haveria de cometer uma loucura dessas?
Xavier atirou a cabeça para trás e começou a rir às gargalhadas. Se os seus homens estavam preocupados com a sua sanidade mental, teve a certeza de que devia ter
confirmado os piores medos dos homens quando esboçou um sorriso de orelha a orelha.
- Porque é a coisa mais acertada que devo fazer.
Jane dobrou uma das suas camisas de baixo, colocando-a cuidadosamente na sua mala de porão. Nos tempos em que havia sido Ladyjane Danvers,
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esposa de um abastado comerciante de Londres, preparar-se para uma viagem tinha sido uma provação esgotante por ter de levar inúmeras peças de vestuário, bem como
objetos da casa, além de ter de organizar um grande número de servos.
Mas viajar era muito mais simples quando se possuía mais recordações do que pertences a guardar numa mala de porão. Depois da camisa de baixo, seguiu-se uma saia
interior, um xaile e lenços de assoar.
Um dos quadrados de linho deslizou e caiu da pilha no chão, espalhando várias pétalas secas pelo soalho do quarto. Jane imobilizou-se, ficando a olhar para o que
restava de uma rosa branca enquanto era assaltada por uma recordação.
Na semana passada... teria sido apenas na semana passada, tinha a sensação de que acontecera toda uma vida atrás, havia estado sentada no jardim, tentando ver o
que estava a coser muito virtuosamente. Entretanto, Xavier envidava esforços para a distrair, tirando-lhe a rede do cabelo e prendendo-lhe a flor atrás da orelha
na brincadeira.
Sem saber como, a costura tinha acabado no roseiral e ela dera consigo empoleirada num joelho de Xavier, com os braços em volta do pescoço dele e...
Jane baixou-se para apanhar as pétalas secas, fazendo o seu melhor para banir aquela recordação da sua mente. Ficou com os restos murchos na palma da mão. As pétalas
de rosa ainda tinham a sua intensa fragrância e, durante um momento de fraqueza, sentiu-se tentada a voltar a guardá-las cuidadosamente no mesmo lenço.
Dirigiu-se para a janela num passo resoluto, deitando-as fora e sacudindo as mãos. Mas enquanto as pétalas secas eram levadas pela brisa estival, sentiu-se possuída
por uma vaga insuportável de tristeza.
Mas as coisas seriam mais fáceis quando estivesse em Paris, disse a si própria. Deixaria de tropeçar a cada passo em recordações que guardava de Xavier. Já não ouviria
o timbre enrouquecido da voz do homem que costumava enfeitiçá-la com as histórias das suas viagens, descrevendo-lhe todas as aventuras que ela jamais viveria. Não
voltaria a desviar o olhar do livro que estivesse a ler quando alguém entrava na sala, antecipando ver o sorriso brincalhão de Xavier, sentindo o coração a bater
mais depressa perante a perspetiva do toque cálido das mãos dele, nem tão-pouco sentiria os lábios dele nos seus.
Jane cerrou os olhos por breves momentos, desejando poder, de uma maneira qualquer, ser transportada para Paris por artes mágicas. A dolorosa
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partida da ilha Encantada já completada. Passara o fim da tarde do dia anterior em visitas para se despedir das amigas que tinha na ilha.
Foi com muita tristeza que disse adeus a Madame Bevans, à velha Butterydoor, a Carole Moreau e às garotinhas da família Remy. Até mesmo os olhos de Seraphine tinham
ficado estranhamente humedecidos quando abraçou Jane fortemente. O rosto de Ariane deixara transparecer a consternação que sentiu quando Jane a informou da sua intenção
de se mudar para Paris. Mas Ariane não fizera qualquer tentativa para a dissuadir. Por muito que a Senhora da Ilha Encantada lamentasse essa decisão, parecia compreender
o motivo por que Jane se sentia obrigada a partir. Mas esta não se sentia tão segura disso com respeito a Meg. A jovem mal lhe dirigira duas palavras desde que lhe
tinha dito que não tardaria a deixar a ilha.
Quando Jane se afastou da janela para acabar de emalar as suas coisas, estacou de repente ao deparar com Meg, que se encontrava na ombreira da porta da sua alcova.
- Meg, tu... sobressaltaste-me.
- Bati à porta, mas não me ouvistes.
- Peço desculpa, mas estava demasiado embrenhada nos meus pensamentos.
- O Simon mandou-me perguntar se a mala de porão já está pronta para ser levada para baixo e carregada na carroça.
- Está quase pronta - replicou Jane, apressando-se a pegar num dos vestidos e a dobrá-lo. Meg encostou-se à ombreira a observá-la. - Monsieur Aristide tem sido tão
prestável, tratando de todos os preparativos para a viagem. Ele e a Miri vão regressar à quinta onde vivem nos arredores de Paris. vou acompanhá-lo até lá e pernoitarei
em casa deles, mas, no dia seguinte, Monsieur Aristide acompanhar-me-á durante o resto do caminho até casa da minha prima. -Jane continuou a tagarelar, tentando
mostrar-se animada e alegre, não obstante o silêncio e o semblante empedernido de Meg.
Pelo canto do olho, Jane observava a rapariga, desejando fazer alguma ideia do que ia no pensamento dela. Tinha havido algo que endurecera nos olhos de Meg desde
as revelações acerca de Xavier. Era como se a jovem tivesse erigido um muro invisível em volta de si tão alto que era impossível de transpor.
Jane fez uma pausa, chegando o vestido dobrado ao peito.
- Eu não partirei para sempre, Meg - disse com suavidade. - Regressarei à ilha Encantada assim que me for possível.
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- Não, não regressareis. A verdade é que nunca gostastes muito de viver aqui. Pelo menos, até ele ter chegado.
Era a primeira vez que Meg aludia a Xavier desde que ele tinha deixado a ilha. Jane guardou o vestido na mala de porão. Ansiava por estender os braços à rapariga
para a abraçar, mas a expressão no rosto dela advertiu-a de que nem sequer deveria tentar.
- Meg, sei que a confissão de Xavier, acerca de a Rainha das Trevas ter contratado os seus serviços, te deixou abalada e magoada. Mas acredito nele quando disse
que nunca tinha tido a intenção de te fazer mal.
A única reação de Meg foi um arquear de sobrancelhas que expressava incredulidade.
- Pensa só no que te vou dizer. Se o Xavier quisesse raptar-te, oportunidades foram coisa que nunca lhe faltaram. '
- Talvez ele estivesse apenas a ganhar tempo enquanto esquadrinhava a ilha. Talvez, até mesmo agora, ele já tenha ido a correr para a sua ama, como um cãozinho de
colo, para a informar do que se está a passar, após o que voltará à ilha acompanhado de uma companhia de soldados.
- O Xavier não faria uma coisa dessas.
- E como é que podeis ter tanta certeza disso? - perguntou a rapariga num tom autoritário e com uma expressão escarnecedora. - Não possuís a capacidade de ler olhos.
- De facto, não tenho. - No entanto, sentia que tinha estado mais perto de compreender Xavier como nunca ninguém o compreendera. Era possível que o homem tivesse
muitos defeitos, que fosse irresponsável como ninguém, mas era inegável que possuía o seu próprio código de honra. Mas Jane não podia esperar que conseguisse convencer
Meg disso.
- Pensa no assunto logicamente - optou Jane por dizer. - O Xavier não pode voltar para junto da rainha. Ela também o quer apanhar. Ele partiu da ilha Encantada para
evitar que os soldados que o procuram viessem cá, o que nos poria a todas em perigo.
- Oh, por amor de... - Meg interrompeu-se, mordendo o lábio. Do mal o menos, Jane conseguira provocar uma reação da parte da jovem. Passando por esta num passo brusco,
Meg deu uma volta agitada pela alcova. - O Xavier nunca pensou em ninguém além de si próprio. Quando as suas mentiras foram reveladas, não tardou a pôr-se a andar
daqui para fora para salvar a pele - disse Meg, aproximando-se de Jane e levantando
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as mãos ao ar num gesto de exasperação. - Como é possível que continueis a defendê-lo? Depois da maneira como ele vos seduziu e abandonou? Jane ficou com as bochechas
a arder.
- Ele... ele não...
- Não me digais isso. Consegui ler tudo nos vossos olhos, Jane. Ele dilacerou-vos o coração.
- Se o Xavier me magoou, foi mais por minha culpa do que por culpa dele. Nunca me fez promessas falsas. Nunca me disse que me amava.
- Sendo assim, isso é, pelo menos, uma coisa acerca da qual o homem não mentiu. Tanta nobreza da parte dele - retorquiu Meg sarcástica. - Sei que não quereis ouvir
isto, Jane. Mas haverá alguém que me entregará aos soldados da rainha. Vi na minha bola de cristal como tudo isso acontecerá.
Se não for o Xavier, quem mais é que poderá ser?
- Confias em demasia nessas tuas visões, Meg.
- Confiarei? Talvez porque a minha bola de cristal era a única coisa em que podia confiar - retorquiu, dirigindo-se para a janela e cruzando os braços diante do
peito, voltando a remeter-se ao silêncio com uma expressão taciturna. Jane sentia tristeza por ela. A jovem sempre lhe parecera demasiado adulta para a sua idade
e agora parecia ter envelhecido com uma celeridade assustadora durante os últimos dias.
Jane sentia-se como se estivesse a abandoná-la ao ir para Paris. Contudo, a verdade é que nunca lidara muito bem com as visões de Meg. Ainda que continuasse a viver
na ilha Encantada, sabia de antemão que ela continuaria a fechar-se no seu mundo. Agora, só havia uma pessoa que podia ajudar Meg. Abeirou-se da rapariga e tocou-lhe
no ombro um pouco a medo.
- Se há pessoa em quem possas confiar é na Ariane, Meg. Ela cuidará de ti, certificando-se de que continuas em segurança.
- Não preciso que ninguém cuide de mim - ripostou Meg com um sorriso forçado. - Não é preciso que vos preocupeis comigo, Jane. Sei como olhar por mim própria.
Naquele momento, a garota assemelhava-se tanto a Xavier que Jane ficou dividida entre rir ou chorar. Abraçou Meg, mas esta manteve-se rígida e sem reação, o que
a obrigou a desistir da sua tentativa.
com uma expressão de tristeza, retomou a tarefa de emalar os seus pertences, enquanto Meg recomeçava a olhar fixamente pela janela para
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não ver o que se passava atrás de si, determinada a não sentir pesar por Jane se preparar para abandonar a ilha. Sentia-se tão encolerizada com a cegueira de Jane
por amar Xavier e continuar a defendê-lo contra tudo e contra todos.
No entanto, Meg sentia-se ainda mais encolerizada consigo própria por ter confiado em Xavier, ao ponto de lhe ter dado a oportunidade de a magoar e desiludir. Supunha
que devia sentir-se grata para com o homem por ter feito com que ela despertasse do mundo de sonho em que tinha estado a viver, imaginando que poderia enterrar o
seu passado, livrando-se do seu sinistro legado como Rosa de Prata.
Ele demonstrara-lhe, sem margem para qualquer dúvida, que a Rainha das Trevas não se tinha esquecido de si, que, fosse-se lá saber como, a bruxa velha tinha conseguido
descobrir o segredo de Meg, que o Livro das Sombras continuava gravado nos recônditos da sua memória.
Uma vez que a rainha não podia ter esse livro, não descansaria enquanto não tivesse conseguido apoderar-se de Meg. Muito embora Xavier tivesse fracassado, Catarina
de Médicis trataria de, muito simplesmente, enviar alguém ainda mais impiedoso. A rainha era implacável, pelo que lhe seria indiferente quem mais é que pudesse magoar
e destruir com vista a atingir os seus fins. Meg e todos os que amava continuariam a correr perigo.
Só havia uma maneira de pôr cobro àquela situação. A bola de cristal mostrara isso mesmo a Meg um sem-número de vezes. Só não quisera aceitar essa realidade. Existia
apenas uma solução, somente uma maneira de Meg vir a ficar em paz e sossego face à ameaça que a Rainha das Trevas representava.
E isso só aconteceria quando uma das duas estivesse morta.
O sol incidia forte sobre as ruas de Paris. Ainda nem sequer era meio-dia e Xavier já suava profusamente por baixo das roupas que lhe serviam de disfarce, a barba
que deixara crescer para ocultar as suas feições, o chapéu mole de aba larga e o manto que lhe dava pelos pés.
Enquanto se aproximava do Hotel de la Reine, ansiava por poder tirar o chapéu da cabeça durante o tempo suficiente para limpar a testa, mas não se atrevia a isso.
Pelo menos, de momento.
Era um milagre ter conseguido chegar até ali. A viagem até Paris levara-lhe muito mais tempo do que esperara, tendo sido forçado a mudar constantemente de caminho
para evitar as patrulhas, qualquer oficial de olhos pequenos e cobiçosos ou um miserável patife que talvez estivesse ansioso por reclamar a recompensa pela sua captura.
Além disso, sentira-se intimidado pelo grande número de tropas que circundavam a cidade, mantendo-se atentamente de guarda às portas da cidade. Todavia, uma conversa
que ouvira por acaso entre duas das sentinelas levara Xavier a uma descoberta embaraçosa.
Todas aquelas tropas haviam sido destacadas para fazer face às forças do duque de Guise, não fosse dar-se o caso de o duque e o seu exército decidirem desafiar o
rei, tentando entrar em Paris.
A boca de Xavier contorceu-se num trejeito de ironia. Aquilo era um pequeno golpe contra o seu sentido pessoal de importância, aperceber-se de que o Jaguar tinha
muito pouco significado quando comparado com uma possível invasão. Até poderia ter dado uma boa gargalhada perante a sua vaidade, mas quanto mais se apercebia da
atual situação em Paris, menos graça achava àquele estado de coisas.
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Se tinha pensado que o ambiente em Paris era de crispação no outono passado, agora deparava com uma tensão tão insuportável como o calor abrasador. Para onde quer
que olhasse, só via semblantes rancorosos que não sorriam. As pessoas andavam com os nervos à flor da pele, falando com vozes agrestes e olhares desconfiados. As
querelas davam a impressão de terem origem em ninharias, a violência prestes a eclodir se um homem respirasse para o lado errado.
Xavier só esperava que Jane tivesse refletido melhor sobre os seus planos de se mudar para Paris. Tencionava proceder a indagações para se inteirar do endereço da
prima dela. Sentir-se-ia extremamente aliviado se viesse a inteirar-se de que ela continuava na ilha Encantada, mas conhecendo o infernal sentido do dever da mulher,
Xavier duvidava disso. Se Jane já se encontrasse na cidade, o mais provável era que não se mostrasse muito satisfeita ao vê-lo. Mas, pelo menos, Xavier poderia certificar-se
de que ela estava bem.
Isto é, se primeiro não se visse a balouçar de uma corda da forca.
Xavier abrandou a passada quando já se encontrava próximo do palácio da Rainha das Trevas. Se tivesse um mínimo de bom senso, mudaria de ideias, apressando-se a
bater em retirada. Eram demasiadas as probabilidades de aquele seu esquema louco poder dar para o torto.
Jambe e Pietro estiveram prestes a ensurdecê-lo durante a viagem até Paris, com os seus incansáveis esforços no sentido de tentarem dissuadi-lo. Todavia, não tinham
tido mais sorte do que ele próprio quando tentara convencê-los a voltarem para trás. Quando já haviam transposto as portas da cidade, todos estavam tão fartos do
calor, cansados e mal-humorados como os habitantes de Paris.
Xavier puxara tanto pelos dois durante o último troço da viagem que a Jambe e a Pietro só faltara ficarem prostrados quando chegaram ao quarto na estalagem.
O sono de exaustão dos dois dera a Xavier a possibilidade de que precisara para sair sem que eles dessem por isso. Podiam praguejar contra ele mais tarde se quisessem.
Só esperava que ainda se encontrasse por perto para eles o amaldiçoarem, contudo estava firmemente determinado a pôr o seu plano em prática.
O risco absolutamente insano que estava prestes a correr tinha de ser apenas seu. Enquanto olhava para o Hotel de la Reine, ficou com a respiração embargada. Avistou
uma silhueta que lhe era familiar numa das janelas,
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a rainha trajada de negro como era seu hábito e do qual não abdicava. Dava a impressão de estar a olhar diretamente para ele, os seus pensamentos a estenderem-se
como as pernas delicadas de uma aranha, a sondarem o seu disfarce.
Esgueirou-se para fora do ângulo de visão dela e depois repreendeu-se por estar a ser tão idiota. Xavier nunca se rendera à lenda da Rainha das Trevas nem aos seus
extraordinários poderes de perceção. Mas não queria correr riscos desnecessários. A única coisa que tinha a seu favor era o elemento surpresa. Se fosse capturado
pela guarda da rainha antes de ter conseguido acesso à sua presença, estaria tudo acabado para ele.
Xavier aguardou até a soberana desaparecer da janela antes de retomar a sua posição anterior. Tinha conseguido, finalmente, livrar-se daquela maldita tala. O osso
já havia sarado, mas o braço ainda estava muito longe de readquirir a força que possuíra antes de o ter fraturado.
Não que isso tivesse uma importância por aí além. Se Catarina de Médicis desse ordens aos seus guardas para que o prendessem, era muito pouco plausível que fosse
capaz de lhes dar luta e escapar. Tudo dependia da sua astúcia, do seu - o que é que o seu pai lhe tinha chamado? "O seu diabólico talento para a imposturice.
Desde que conhecia Jane, Xavier tinha a sensação de que perdera parte do seu gosto pela chicanice, as suas faculdades haviam ficado um pouco enferrujadas. A sua
honesta sereia exercera uma influência demasiado sadia sobre ele.
Teria de ir até ao mais profundo da faceta mais sinistra da sua alma para trazer à superfície a sua antiga apetência para a mentira, para encantar e enganar como
nunca fizera antes.
O seu sucesso, não, a sua própria vida dependia disso, e até, talvez mesmo, a de Meg.
A rainha apoiava-se pesadamente à sua bengala enquanto se encaminhava para o seu salão. Quando oscilou sobre os pés, algumas das suas damas de honor arfaram audivelmente,
mas tinham o discernimento necessário para se manterem à distância. com uma expressão de fúria, Catarina de Médicis desafiava quem quer que fosse que se atrevesse
a ir em seu auxílio. Recuperou o equilíbrio, ocultando o quanto ficara desconcertada perante a sua própria debilidade física.
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Tendo sofrido de uma inflamação dos pulmões pouco depois da sua conversa com a Pechard, havia várias semanas que não conseguia afastar-se tanto do seu leito.
Tinham corrido rumores de que a rainha estava às portas da morte. Ouvira dizer que os cidadãos de Paris já tinham começado a preparar-se para fazerem fogueiras a
que chegariam fogo assim que a sua morte fosse confirmada. Sentia uma satisfação perversa por os privar das suas celebrações.
Ansiava por poder assomar à janela numa atitude desafiadora para mostrar a todos que a Rainha das Trevas ainda não falecera. Mas numa cidade em que a atmosfera era
tão tensa, Catarina correria tanto perigo de vir a ser atingida pelo tiro da pistola de um assassino como de falecer devido ao enfraquecimento do seu próprio corpo
envelhecido.
A última vez em que olhara de relance pela janela, pensou ter avistado uma figura bastante sinistra que caminhava furtivamente pela rua. Envolto num manto que lhe
dava pelos pés e com as feições parcialmente ocultas pela aba larga do chapéu, o homem dera a impressão de estar a olhar diretamente para a sua janela.
Tranquilizou-se ao dizer a si própria que tinha sido uma partida que os olhos reumosos lhe haviam pregado. Depois de ter visto uma carroça que passava na altura,
o sujeito pareceu ter-se sumido no ar.
"Isto é o que acontece quando se envelhece", refletiu a rainha com azedume, começava-se a viver com medo de sombras.
Catarina conseguiu chegar até ao cadeirão colocado próximo da lareira e pouco faltou para se ter deixado cair exaurida. As suas damas de honor mantinham-se por perto,
sussurrando entre si. Os mais novos tinham a tendência muito irritante de fazer isso quando na presença dos mais idosos, dos enfermos e dos moribundos. Como se uma
idade avançada, subitamente, tivesse feito com que se ensurdecesse, cegasse e ficasse inane. Catarina decidira nunca vir a tolerar uma atitude dessas. Bateu com
a bengala no soalho e disse:
- A despeito do que todas vós possam desejar, ainda não estou às portas da morte. Se tiverem alguma coisa a dizer, digam-no em voz alta ou tenham tento na língua.
As damas de honor ficaram em silêncio, trocando olhares de constrangimento. Mademoiselle de Bec aproximou-se da soberana, fazendo-lhe uma vénia trémula.
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- Nós só estávamos a decidir se devíamos incomodar vossa majestade. Há alguém que pede o favor de ser trazido à vossa presença, se for do agrado de vossa majestade.
- Não é do agrado de sua majestade conceder esse favor. Pareço estar em condições de receber quem quer que seja? A menos que seja o meu afetuoso filho que, com toda
a ternura, tenha vindo para se informar do estado de saúde de sua mãe. - Quando Mademoiselle de Bec se esquivou a olhá-la de frente, Catarina bufou de indignação.
- Não é ele? Foi o que pensei.
- Não, não é o rei - confirmou a jovem, recuando nervosamente.
- É o capitão Xavier.
- O quê!? - Catarina ficou atordoada por uns momentos, antes de dizer furiosa: - Das duas uma, sois uma mentirosa ou uma idiota. Ainda ontem recebi notícias de que
o Xavier teria morrido. Foi atirado borda fora durante uma violenta tempestade antes de o seu navio ter naufragado.
- Não, é realmente o capitão, majestade, ou então é o fantasma dele.
- E um fantasma cheio de vigor e muito bem-parecido - atreveu-se a adiantar uma das outras damas de honor, rindo-se à socapa. Um olhar sombrio da rainha tirou o
sorriso dos lábios da jovem.
Xavier bem vivo e de regresso a Paris? Pois bem, se havia algum homem capaz de enganar a morte, só poderia ser aquele patife tão arrogante. No entanto, enganá-la
a ela era uma questão inteiramente diferente, para não mencionar o facto de ele se ter atrevido a aparecer no seu próprio palácio!
Catarina de Médicis sentiu-se possuída por um espasmo de fúria tão intenso que a sua pulsação começou a latejar perigosamente na têmpora. Acelerou o ritmo respiratório
para se acalmar.
O seu primeiro impulso foi chamar a sua guarda pessoal, exigindo saber como fora possível que Xavier conseguisse passar por eles sem ser visto. Após o que ordenaria
que ele fosse enforcado na árvore mais próxima do palácio, onde poderia ter a satisfação de observá-lo nos estertores da morte.
Mas a sua curiosidade venceu. Gostaria de ouvir as desculpas a que o homem recorreria antes de ela mandar que lhe cortassem a língua mentirosa.
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- Mandem-no entrar - ordenou enquanto se punha de pé com grande dificuldade. Como é que ele se atrevia a vir à sua presença sem ter cumprido as ordens que ela lhe
dera e pelas quais lhe pagara? A menos que... ele as tivesse cumprido.
Por breves momentos, Catarina albergou a louca esperança de que Xavier tivesse concretizado a sua missão; que se apresentaria perante si acompanhado de Megera.
Mas essa centelha de esperança morreu quando Xavier chegou sozinho ao salão, sem sequer estar acompanhado do seu gigantesco e ameaçador nativo. A ira de Catarina
aumentou ainda mais quando constatou que ele não se dera a mais incómodos com a sua aparência física do que nas vezes em que falara com ela anteriormente. Tinha
as botas enlameadas, o manto de viagem bastante sujo, uma barba que não estava aparada e o cabelo escuro todo despenteado.
Apesar do seu desmazelo, Xavier aproximou-se da rainha com um aprumo que teria sido invejado por muitos duques cheios de jóias e trajados de seda. O patife fez-lhe
uma vénia rasgada e galante, mostrando-se absolutamente certo de que seria bem acolhido.
Catarina de Médicis sentia-se dividida entre a fúria e a admiração pelo descaramento do homem, um conflito de emoções que não podia ser nada bom para o seu coração.
Levou uma mão ao peito, fazendo pressão para abrandar o batimento cardíaco.
Xavier ajoelhou-se sobre um joelho diante dela.
- Majestade, finalmente consegui retornar à vossa presença.
- Nesse caso, sois o homem mais corajoso que conheci em toda a minha vida ou sois um rematado idiota. A menos que ainda não tenhais conhecimento de que a vossa cabeça
está a prémio. É isso?
- Tenho conhecimento disso. Foi por essa razão que decidi render-me e reclamar esse prémio.
A despeito de si própria, Catarina viu-se forçada a suprimir o riso, o que só serviu para fazer com que se sentisse ainda mais furiosa. Ter-lhe-ia agradado muito
dar-lhe com a bengala na cabeça, se isso não tivesse feito com que ela própria caísse no chão. Mesmo assim, foi por pouco que não caiu quando se inclinou para a
frente a fim de lhe dar uns bons tabefes.
- Vilão! - O epíteto saiu-lhe da boca mais como um grito de dor. Os dedos cheios de reumático protestaram de dor. Receava que o tabefe a tivesse magoado mais a ela
do que a ele.
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Xavier nem sequer se retraiu. Fitou-a com uma expressão que não podia ser mais inocente, espelhando uma surpresa feita de censura.
- Majestade, o que é que eu fiz para merecer tal abuso às vossas mãos?
- O que é que fizestes? - ripostou a rainha quase apoplética. Flexionou a mão que latejava, sentindo tantas dores e cólera ao ponto de o seu discurso ser incoerente.
- Aceitado dinheiro... enganou... atraiçoou.
- Nunca! Fiz tudo o que vossa majestade requeria de mim.
- Mentiroso. - A rainha rangeu os dentes enquanto se esforçava por se acalmar, lembrando-se de muitas histórias que ouvira sobre o mau feitio de Isabel Tudor, de
como a rainha inglesa cuspia e batia nos súbditos que deixavam de estar nas suas boas graças.
Catarina sempre deplorara a falta de uma conduta régia da parte dessa mulher quando comparada com a sua própria dignidade gélida. A cólera de Catarina desde sempre
que tendera a ser mais gelada do que ardente. E era assim que procederia com Xavier, congelá-lo-ia, enviando-o direitinho para o Inferno.
Readquirindo o domínio sobre si própria, disse num tom de voz encrespado:
- Haveis partido há quase um ano e sei em que é que tendes ocupado o tempo durante a vossa ausência. O meu filho recebeu uma queixa oficial da corte espanhola referente
às vossas atividades de pirataria.
- Acreditais nos espanhóis, majestade? São incapazes de distinguir um francês de outro.
- Sem saber explicar porquê, duvido muito que alguém que atravesse o vosso caminho tenha tendência a esquecer-se de vós, monsieur.
Quando o homem mostrou uma expressão presunçosa, Catarina acrescentou com frieza:
- O que acabei de dizer não é um cumprimento, capitão.
O sorriso de Xavier alargou-se, apesar de deixar adivinhar um ligeiro acanhamento.
- Tenho de admitir que me desviei um tudo-nada da rota traçada.
- Um desvio tão grande que vos levou até à costa de La Florida? Está-me a parecer que se trata de um desvio e tanto, monsieur.
- Aventurei-me a ir até lá para vosso bem, majestade. Esperava conseguir descobrir a Fonte da Juventude de que vos tinha falado.
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- Poupai-me a mais dos vossos contos de fadas.
- Não era assim uma quimera tão grande como aquela em que queríeis que eu me empenhasse. Durante a minha viagem de regresso, fui à ilha Encantada como me ordenastes
e encontrei a Megera.
- Nesse caso, onde é que ela está? - perguntou Catarina com impaciência.
- Considerei que seria uma perda de tempo apresentar-me diante de vossa majestade com uma criatura tão insignificante.
- Considerastes? Mas quem é que vos pediu que fôsseis o juiz disso? Tudo o que requeri que fizésseis foi que...
- Mas na qualidade de vosso emissário, tive oportunidade de observar a rapariga bastante de perto - atalhou Xavier, atrevendo-se a interromper a tirada da soberana.
- Ela não passa de uma criaturinha enfezada e insignificante. O seu nome verdadeiro é Margaret Wolfe e todas as informações que chegaram ao vosso conhecimento a
respeito dela são enganadoras. É possível que a mãe dela tenha sido uma grande feiticeira, mas a reputação da rapariga é inteiramente fundada nas loucas esperanças
que Cassandra Lascelles albergava quanto ao futuro da filha. Margaret Wolfe mal tem inteligência suficiente para preparar a poção mais simples.
- Apesar disso, ouvi dizer que a Senhora da Ilha Encantada tenciona designar a Megera como sua sucessora.
- Outra informação falsa. Ela não escolheu Mademoiselle Margaret Wolfe.
Quando a rainha o olhou com uma expressão carrancuda e de incredulidade, Xavier persistiu.
- Eu estive lá. Consegui espiar a reunião do conselho que teve lugar no cume dos penhascos. A Senhora da Ilha Encantada escolheu a sua própria sobrinha, Seraphine
Remy.
- Remy!?
- É a filha mais velha de Gabrielle Cheney e de Nicolas Remy. Catarina contraiu os lábios, sem querer acreditar numa única palavra do que ele lhe dizia. E, contudo...
- Lembro-me muito bem da Gabrielle - murmurou ela. - De todas
as irmãs Cheney, pensei que era a que parecia mais promissora, até ela ter cometido a tolice de se apaixonar. Tinha uma beleza deslumbrante e uma mente bastante
subtil. Era inteligente, intrépida e conhecedora do mundo.
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- A filha tem atributos muito semelhantes. Ao lado de Seraphine Remy, a Margaret Wolfe aparenta ser ainda mais insignificante. Como uma camponesa na sombra de uma
princesa.
- Hum! - Catarina de Médicis bateu com a bengala no soalho, incapaz de acreditar que estivesse sequer a dar ouvidos àquelas patranhas. Contudo, sentia-se perturbada
pelas recordações da única ocasião em que vislumbrara Megera muito de fugida. A infame Rosa de Prata parecera-lhe, efetivamente, uma criança enfezada e assustada.
A mãe, Cassandra Lascelles, com a sua massa de cabelos escuros e olhos vazios e espectrais, tinha sido quem parecera perigosa.
Enquanto ela refletia naquilo, Xavier pôs-se de pé, retraindo-se um pouco quando se endireitou da postura rígida em que se encontrava durante o tempo que esteve
ajoelhado aos pés da rainha.
- Não vos dei autorização para que vos levantásseis.
- Mas tenho de me endireitar para poder presentear-vos com a oferta que vos trouxe de meio caminho em volta do mundo.
- E o que é que isso será?
- Vossa majestade não me fez perguntas acerca do sucesso da minha outra aventura.
Catarina fungou numa atitude de escárnio.
- Estais a referir-vos à procura da vossa mítica fonte?
- Deixou de ser um mito porque consegui encontrá-la. - Xavier meteu a mão por baixo do manto, apresentando-lhe um pequeno frasco que continha um líquido translúcido.
- Por acaso estais a pensar em fazer de mim parva pela segunda vez, monsieur! - perguntou-lhe Catarina furiosa.
- Não mais do que fiz no outono passado. Como é que eu me atreveria a isso? Este líquido é, realmente, uma amostra das águas da Fonte da Juventude.
- Se a vossa intenção não é enganar-me, então receio ter de vos dizer que estais a enganar-vos a vós próprio.
- Nada disso, majestade. Fiquei gravemente ferido no confronto com o navio espanhol e pouco faltou para que ficasse com o braço direito esmagado. Eu teria morrido
ou perdido o meu melhor braço se não fosse este elixir mágico.
Catarina arqueou as sobrancelhas numa expressão de ceticismo, mas tirou o frasquinho das mãos dele. Desarrolhou-o e cheirou o conteúdo.
- Não me parece que seja outra coisa além de mera água.
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- Sim, mera água, a essência da própria vida. Bebei um pequeno gole e vereis.
- Tretas!
A rainha teria atirado o frasco ao chão se ele não lhe tivesse agarrado a mão para a impedir de fazer isso.
- Majestade, imploro-vos. Houve uma ocasião em que me confiastes a vossa vida e saúde. Tendes de admitir que a outra minha poção vos fez muito bem. Esta é dez vezes
mais potente.
Catarina olhou de cenho carregado para os dedos dele fechados no seu pulso; o homem tinha tido a temeridade de lhe tocar por sua própria iniciativa. Ela, Catarina,
filha dos poderosos Médicis, Rainha Viúva de França. E, contudo, sentia a mão dele forte e cálida na pele frágil do seu pulso. Sentiu um tremor disparatado na sua
pulsação.
- Soltai-me o pulso.
O que Xavier fez com relutância. A rainha ficou a olhar para o pequeno frasco que continuava na sua mão. Não havia sido necessário que Xavier lhe recordasse a infusão
fortificante que partilhara com ela. Tinha pensado com saudade mais de uma vez nessa poção quando sentia as articulações a latejar e dores nos ossos durante o último
inverno, que fora tão longo e lúgubre.
Enfraquecida pela doença que a acometera recentemente, de súbito a rainha sentiu-se exaurida e extremamente desanimada. Se o que o homem lhe tinha dito sobre Megera
correspondia à verdade, então ela já esgotara todas as suas opções. Que mais é que teria a perder? Levou o frasquinho aos lábios e aventurou-se a beber um pequeno
gole.
Rolando as gotas do líquido na língua, engoliu e em seguida fitou Xavier com uma expressão de censura.
- Isto é apenas água, grande patife. Juro-vos que esta chicanice vos custará a cabeça... - Catarina interrompeu-se arquejante. Um mero gole do líquido provocara
um ardor que lhe percorreu as veias. Por uns momentos, pensou que o homem tinha sido suficientemente irresponsável para a envenenar diante de todas as suas damas
de honor.
Mas o ardor que sentia assemelhava-se mais a uma labareda purgante que queimava todas as suas fraquezas, todas as suas dores. Havia várias semanas que não se sentia
tão forte, talvez até mesmo em muitos meses. Maravilhada, olhava para o frasquinho que tinha nas mãos trémulas e teria bebido todo o seu conteúdo de um só trago
se Xavier não a tivesse impedido.
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- Não, há que ter cuidado, majestade. Ninguém possui uma constituição capaz de suportar a ingestão excessiva desta água curativa. É necessário bebê-la com bastante
moderação.
Catarina olhou para o pequeno frasco desejosamente, mas foi persuadida a voltar a rolhá-lo.
- Este frasquinho é tudo o que resta do que consegui tirar da fonte antes de os espanhóis me terem expulsado. Mas se eu tivesse uma pequena flotilha de navios e
homens em número suficiente, conseguiria trazer-vos barris deste elixir.
Catarina não lhe deu réplica. Continuando com o pequeno frasco nas mãos, pôs-se a olhar para Xavier pensativamente. Sem dúvida alguma que se tratava de um potente
elixir. Mas acreditaria ela realmente na história que Xavier lhe contara sobre a maneira como o adquirira?
A poção fizera muito para lhe aclarar as ideias e melhorar a visão. Talvez um pouco mais fosse o suficiente para que readquirisse a capacidade mais importante que
possuía como Filha da Terra. O dom que lhe permitira ler os olhos de um homem, pôr a sua alma a nu de modo a que lhe revelassem todos os segredos que ele guardasse,
tudo isso através do simples poder do seu olhar.
Voltando a instalar-se no seu cadeirão, Catarina sorriu e fez um gesto com que indicou a Xavier que se aproximasse.
- Vinde. Falai-me mais acerca disso - disse-lhe numa voz ronronante.
A luz do Sol incidia sobre o leito de Jane, fazendo com que acordasse, quer quisesse, quer não. Os seus olhos entreabriram-se e ficou desorientada. Tinha sonhado
que regressara à ilha Encantada, um sonho tão vívido que quase chorara quando despertou, constatando que se encontrava em Paris. Até mesmo ao cabo de uma semana
passada na casa arrendada da prima, as paredes emolduradas a dourado da sua alcova continuavam a causar-lhe estranheza depois da simplicidade do quarto que fora
o seu na Belle Haven.
Sentou-se, sentindo a camisa de dormir colada ao corpo, encharcada em suor. O dia prometia voltar a estar muito quente. Esfregou os olhos para expulsar a sonolência,
desagradada com a luz impiedosa do Sol que entrava a jorros pela janela.
Acordara-a de um sonho agradável, e estes não eram muitos, ao contrário dos pesadelos que a haviam atormentado desde que deixara a ilha Encantada. Sonhou que tinha
afastado o cobertor para trás, mostrando orgulhosamente o rosto do filho recém-nascido. As senhoras, todas sem exceção, haviam-se juntado em volta da sua cama, Ariane,
Seraphine e Meg a paparicar o bebé. Xavier mantivera-se junto de Jane e do filho numa atitude protetora, sorrindo-lhes com ternura.
Se não quiseres que o rapaz venha a ser um pirata, é melhor que o chamemos...-"
Mas foi nessa altura que acordou. E agora nunca saberia o que Xavier estivera prestes a sugerir. Jane pestanejou para afastar as lágrimas ao sentir um sentimento
de perda insuportável que se apoderara de si.
Pensou que teria preferido um dos pesadelos habituais em vez de um sonho tão arrebatador. Só lhe servia para lhe lembrar cruelmente que Xavier já não fazia parte
da sua vida... tal como não havia bebé nenhum.
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As regras tinham chegado, finalmente, durante a viagem que a levou a Paris. Sabia que devia ter sentido alegria, mas não obstante as adversidades que teria tido
pela frente por ser uma mãe solteira, percebeu que desejara essa criança quase desesperadamente. Agora tinha a sensação de que o último elo de ligação a Xavier se
rompera. O tempo que ambos haviam passado juntos era como um sonho.
Entretanto, alguém bateu à porta da alcova, levando-a de volta à sombria realidade da sua atual existência. A pequena criada, Violette, meteu a cabeça pela porta
entreaberta, chamando-a.
- Madame Danvers? Estais acordada? A vossa prima perguntou por vós. "Já?", pensou Jane, contendo um resmungo.
Violette mostrava uma expressão apologética.
- Peço desculpa por vos incomodar, milady, mas Madame Benton diz que está com uma dor de cabeça tão excruciante que parece que vai morrer...
- Estou a compreender - interrompeu-a Jane, falando-lhe numa voz de cansaço. - Diz-lhe que não me demoro.
Violette fez uma pequena cortesia antes de desaparecer, deixando Jane a levantar-se da cama a contragosto. Lavou-se e vestiu-se tão rapidamente quanto lhe foi possível.
Desceu para a cozinha num passo apressado para tomar o pequeno-almoço e preparar uma compressa fria para colocar na fronte de Abigail.
Decorrida apenas uma semana em casa da prima, Jane já se sentia exaurida. Não sabia dizer o que era mais exaustivo, satisfazer as exigências constantes da prima
ou tentar lidar com os credores que assediavam a casa.
Os homens rapaces já a haviam espoliado das suas jóias, das pratas, das tapeçarias e de grande parte do mobiliário. Jane e Abigail consideravam que era uma sorte
que ainda tivessem camas em que se deitarem, embora os panos de tecidos ricos que haviam pendido dos dosséis há muito que tinham sido levados.
A maior parte dos servos também se tinha posto a andar, tendo restado apenas um dos lacaios, Gérard, e a criada Violette, que também era quem cozinhava.
Os passos de Jane ecoavam solitariamente no chão de mármore enquanto se encaminhava para a alcova da prima. Abigail soltou um gemido queixoso assim que Jane entrou
no quarto.
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- Oh, Jane, onde é que tens estado? Há uma eternidade que te chamei; tenho a impressão de que a minha cabeça está prestes a explodir queixou-se Abigail, sentando-se
no leito, a sua fisionomia toda arrepanhada e amuada como a de uma criança birrenta, o cabelo castanho-escuro num contraste acentuado com o branco da cambraia fina
da sua camisa de' dormir.
Chamando a si toda a sua paciência, Jane abeirou-se da cama em bicos de pés.
- Não tarda nada começarás a sentir-te melhor, mas tens de te manter deitada e sossegada. -Jane ajudou Abigail a deitar a cabeça nas almofadas, após o que lhe aplicou
o pano humedecido, que mergulhara em água de alfazema, sobre as pálpebras.
- Oh, nunca mais voltarei a sentir-me bem - disse a prima num gemido. - Tens de chamar o doutor Marchand. Preciso que ele me sangre outra vez.
Jane estremeceu. Após ter passado algum tempo entre as esclarecidas mulheres da ilha Encantada, tinha começado a considerar que a prática do sangramento era bárbara,
seguindo o exemplo de Ariane.
- Essa é a última coisa de que estás a precisar. Além disso, o doutor Marchand recusa-se a vir a tua casa enquanto a dívida de que é credor não for saldada. Na minha
opinião, farias muito melhor se me permitisses abrir um pouco as janelas, apenas uma fresta, para que pudesse entrar algum ar fresco.
- Ar fresco? - Abigail mudou a posição da compressa que tinha na testa para poder olhar para Jane com uma expressão de censura. - Estás a tentar matar-me? Não sei
onde é que foste buscar essas noções tão estranhas.
- Junto da Senhora da Ilha Encantada. Ela sabe muito mais sobre como curar do que o teu doutor Marchand.
- Mas... mas dar-se-á o caso de tu própria teres passado a ser uma bruxa, Jane?
- Não. Se eu fosse, minha querida prima, talvez me sentisse tentada a transformar-te numa criatura de trato mais agradável, como um gatinho.
Quando Abigail ficou com a respiração arfante, retraindo-se como que para se afastar dela, Jane deu-lhe uma palmadinha na mão.
- Só estou a brincar contigo, Abby.
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- Não costumavas estar com brincadeiras tão chocantes - ripostou Abigail, afastando a mão. - Houve alguém nessa ilha que exerceu uma má influência em ti.
Sim, alguém tinha feito isso, refletiu Jane. Na sua mente surgiu uma imagem, a do sorriso endiabrado de Xavier e dos olhos que eram capazes de ser tão provocadores
num minuto para no seguinte se mostrarem tão ternos.
Aquela visão era tão intensa que sentiu uma dor agridoce no coração. Reprimiu aquela recordação enquanto aconchegava a coberta mais para junto da prima.
Abigail olhou para ela com uma expressão amuada, fazendo beicinho.
- E o que é que queres dizer com isso de eu não ser uma pessoa agradável? É impossível que eu não me sinta irritada. Estou tão horrivelmente doente, Jane.
- Sim, minha querida, mas poderias sentir-te melhor se comesses alguma coisa e se te levantasses da cama. Se pudesses esforçar-te um pouco...
- Esforçar-me, eu? Nunca sugeririas uma coisa dessas se soubesses tudo o que sofro por ser casada com um canalha tão grande como o George Benton. Mas eu não poderia
esperar que tu compreendesses. Tiveste a sorte de teres sido casada com dois homens respeitáveis, homens de valor.
- Apesar disso, aqui estou eu, tão indigente como tu.
- Mas isso aconteceu por tua única culpa, por te teres envolvido em conspirações de traição e bruxaria - ripostou Abigail, mas no momento seguinte retraiu-se e pegou
na mão de Jane.
- Peço desculpa, Jane. Não tive intenção de dizer isso. Estou a ser desagradável. Mas esta situação é de mais para mim, ter sido abandonada pelo George e ver todos
esses homens horríveis a levarem todas as minhas coisas bonitas, as minhas tapeçarias, as minhas jóias e até mesmo os meus melhores vestidos. Sinto-me tão infeliz
que só quero morrer. - As lágrimas começaram a correr livremente pelas faces de Abigail.
- Não digas isso, minha querida. - Tirando o seu próprio lenço de assoar da algibeira, Jane secou as lágrimas dos olhos da prima.
- Sinto-me tão grata para contigo por te ter aqui comigo - disse Abigail fungando. - Não és capaz de imaginar o quanto senti a tua falta.
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Não, Jane não conseguia imaginar, uma vez que Abby mal lhe escrevera uma única palavra durante todo o tempo do seu exílio. Mas Jane deu-lhe uma palmadinha na mão
e agradeceu-lhe aquelas palavras.
- Lembras-te da noite anterior ao dia do teu primeiro casamento? perguntou Abigail. - De como eu saí sorrateiramente da cama e fui ao teu quarto? O quanto nos divertimos,
ficando acordadas até ao amanhecer, a conversar e a rir.
Não era exatamente assim que Jane se recordava dessa noite. Nessa altura, continuava a sentir-se extremamente desgostosa por causa do bebé que perdera havia tão
pouco tempo, atemorizada perante o que o futuro lhe reservaria como mulher de um rapaz tão taciturno como Richard Arkwright.
Mas Abigail constituíra uma distração que acolhera de bom grado. A prima tinha sido uma garota tão alegre e de trato tão fácil que era com uma profunda tristeza
que via tão poucos traços dessa menina travessa e buliçosa na mulher que estava deitada naquele leito tão apática.
- Estranho, não achas? - disse Abigail. - Como as nossas vidas se desenrolaram de maneira tão diferente daquela que esperávamos. É uma coisa boa que não tenhamos
conhecimento das provações e das desilusões que o destino ainda nos reserva porque, a não ser isso, nunca teríamos coragem para lhes fazer face.
Jane concordou com um acenar de cabeça, mas ficou estupefacta quando Abigail acrescentou:
- A minha vida teria sido muito mais feliz se me tivessem permitido desposar o teu irmão.
- O Ned!?
Abigail sorriu e suspirou.
- Compreendo que era um pouco mais velha do que ele, mas nada de muito significativo. Ele era tão bem-parecido e encantador. Tenho a certeza de que teria sido feliz
como sua mulher. Eu gostava imenso dele.
Jane amara o irmão, mas não ao ponto de se esquecer dos seus defeitos como Abigail, aparentemente, tinha feito. com o seu gosto pelo jogo, associado ao seu irresponsável
envolvimento na prática de alquimia, Ned teria sido um marido muito pior para Abigail do que George.
Mas Jane não fez qualquer comentário a esse respeito, pegando na mão da prima e permitindo-lhe que se sentisse pesarosa pela perda do amor que lhe fora negado. Talvez
porque lhe fosse mais fácil do que pensar na sua própria perda.
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Quando Abigail acabou por adormecer, Jane quase lamentou isso. Por muito cansativas que as rabugices e exigências por atenção da prima fossem, pelo menos mantinham
os pensamentos infelizes da própria Jane à distância.
Mas com o silêncio a abater-se sobre o quarto, todos esses pensamentos lhe invadiram a mente. Dirigiu-se para uma das altas janelas da alcova, em cujo interior o
ar era tão opressivo que ansiava por poder abrir uma janela, mas sabia que isso perturbaria Abigail.
Jane encostou a cabeça ao vidro e pôs-se a olhar para o jardim abaixo da janela, mas sem que estivesse a vê-lo realmente. Ao invés, cerrou os olhos e começou a imaginar
um navio, com o vento a enfunar-lhe as velas enquanto navegava pelo oceano, com um homem de cabelo escuro a percorrer o convés. Onde é que Xavier estaria naquele
momento? Há muito que teria deixado aquelas costas para trás, do que ela tinha a certeza. Os dias que haviam decorrido desde que ele partira da ilha Encantada eram
tempo mais do que suficiente para ele já se encontrar algures na vastidão longínqua do Atlântico, cada vez mais longe dela.
Não fosse o facto de isso não ser verdade.
Começou a ouvir uma saraivada de pequenos seixos que choviam contra a janela, abrindo os olhos sobressaltada. Deparou com uma figura envolta num manto que se encontrava
no jardim e olhava para cima. Xavier.
Jane ficou de boca aberta e começou a pestanejar, certa de que os desejos do seu coração deviam ter assumido o controlo da sua cabeça. Só podia estar a imaginar
o que julgava estar a ver.
Mas Xavier fez-lhe uma vénia rasgada daquela maneira despreocupada e que era tão característica nele. Xavier fez um gesto com que lhe indicou que descesse.
Jane respirou fundo. Por muito angustiada que se tivesse sentido devido à maneira como ela e Xavier se haviam separado, pelo menos sentira algum consolo ao pensar
que ele estaria em segurança, longe do alcance de Catarina de Médicis. Mas teria o homem enlouquecido irremediavelmente para se ter arriscado a vir a Paris?
Olhando com uma expressão de nervosismo para a prima, Jane certificou-se de que ela continuava a dormir. Apressou-se a sair da alcova e a descer as escadas, após
o que atravessou as cozinhas. A única criada que restava dos servos da casa, Violette, dormitava com a bochecha encostada ao tampo da mesa. Sem dúvida que a pobre
rapariga andaria tão exausta devido ao mau humor e exigências de Abigail como a própria Jane.
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Jane passou por ela sem fazer barulho, saindo pela porta da cozinha. O jardim era bastante pequeno e estava circundado por um gradeamento de ferro forjado, além
de uma fileira de árvores e sebes que impediam que o vasto relvado fosse visto da rua. A quietude parecia reinar na sombra de uma árvore frondosa banhada pelo sol
do fim da manhã. Não se via absolutamente ninguém.
- Xavier - chamou num sussurro, encaminhando-se num passo pouco firme em direção ao banco de pedra no centro do jardim.
Entretanto, ele pareceu ter caído do céu. Jane ficou tão surpreendida que foi por pouco que não gritou, mas Xavier apressou-se a tapar-lhe a boca com a mão.
O simples toque dele, sentir a palma cheia de calos nos seus lábios, foi quase o suficiente para que ela se fosse abaixo. A mão direita dele, reparou Jane. Já não
trazia o braço ao peito, que já devia ter sarado.
Como é que poderia ter imaginado que ele era fruto da sua imaginação? Não havia nada do herói de sonho naquele homem que cheirava a suor, tinha as roupas sujas por
ter viajado nelas, o maxilar coberto por uma barba hirsuta. Era a imagem chapada do pirata de má reputação que ele próprio afirmava ser. Tão sólido, tão caloroso,
tão genuíno, que ela teve de fazer um esforço para resistir à ânsia de lhe enlaçar o pescoço nos seus braços, chorando de alegria.
Tirando a mão dele da sua boca, Jane afastou-se dele. Sentindo-se demasiado emocionada para conseguir falar, só estava capaz de o olhar com uma expressão de reprovação.
- Desculpa - resmungou Xavier. - Eu só estava a tentar evitar que gritasses.
- Mas o que é que estás a fazer aqui? - interrompeu Jane, que, finalmente, readquiria o dom da fala. - Perdeste o juízo por completo?
- Bem... sim, mas estou certo de que desde sempre que soubeste isso. Pelo menos, é uma coisa que nunca te escondi.
- O quê... como... - A mente dela estava num turbilhão. Mal sabia o que dizer. Parecia-lhe tão impossível que ele estivesse ali, que estivessem a ter aquela conversa.
- Como... como é que soubeste onde poderias encontrar-me? - conseguiu Jane perguntar por fim.
- Tenho de admitir que me levou um ou dois dias. Mas, eventualmente, só tive de seguir a fila de comerciantes mal-humorados que percorrem
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o trajeto até à porta da casa da tua prima. - Xavier olhou para ela com os sobrolhos franzidos. - Que diabo, mulher! Porque é que não me deste ouvidos, deixando-te
ficar na ilha Encantada? E, contudo... - O tom de voz dele suavizou-se. - Raios partam os meus olhos egoístas, mas estou tão contente por voltar a ver-te. - Xavier
tentou pegar na mão dela, mas Jane apressou-se a pôr as duas atrás das costas, fora do alcance das dele.
- Pois eu não me sinto contente por te ver. Esperava que já tivesses partido há muito tempo, que nesta altura já estaríeis a meio caminho da volta ao mundo.
- Passaste a odiar-me realmente a esse ponto?
- Odiar-te? - retorquiu Jane sufocada. - Se pudesses fazer alguma ideia das noites de insónia que tive, os pesadelos atormentadores, a pensar no que poderia vir
a acontecer-te se fosses apanhado. Em Londres, eles... eles amarram os piratas a postes nas margens do Tamisa, deixando-os à mercê das marés e... e dos caranguejos.
- Não havia necessidade de vos preocupardes com isso. Os caranguejos não haveriam de me querer. Sou rijo de mais.
- Diabos te levem! Isto não é brincadeira nenhuma. - Jane sentia o ardor das lágrimas nos olhos, começando a bater-lhe com os punhos fechados no peito, todas as
preocupações, as mágoas, os anseios frustrados que se haviam acumulado durante a última quinzena a transbordarem. Afastou-se dele pouco firme nas pernas. - Mas o
que é que me fizeste? Eu nunca praguejava nem batia em ninguém.
- É uma sensação boa, não é?
- Sim, é - admitiu Jane, mas recusou-se a ser seduzida pelo sorriso dele. Deixou-se cair no banco do jardim. - Porquê que estás aqui? - voltou a perguntar Jane,
autoritária.
- Precisava de te ver, para ter a certeza de que estavas bem, tendo em vista a maneira como fui obrigado a deixar-te na ilha Encantada, sem saber... - O olhar dele
percorreu-a de cima a baixo com uma expressão especulativa.
- Não estou à espera de nenhum filho, Xavier, se é isso que continuas a recear. As minhas regras chegaram pouco depois de ter deixado a ilha.
- Oh...
Jane ficou surpreendida ao ver algo que se assemelhava a um sentimento de desilusão, uma expressão fugidia que se desvaneceu tão rapidamente que pensou que devia
ter sido fruto da sua imaginação.
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- Bem... isso deixa-me extremamente aliviado - disse Xavier. - Foi o melhor que podia ter acontecido.
- Foi o melhor - ecoou Jane absortamente.
- Ainda que não estejas de esperanças, continuo a pensar que foi imprudente fazeres a viagem até Paris.
- Imprudente? Eu? - Pouco faltou para que Jane sufocasse de indignação. - Não sou eu quem anda a deambular por Paris, correndo o risco de ser preso a qualquer momento.
- Nem eu. - A fisionomia de Xavier mostrou que estava na defensiva quando acrescentou: - Fui falar com a rainha Catarina e fiz as pazes com ela.
- Fizeste o quê!? - perguntou Jane horrorizada.
Xavier ficou de cenho carregado ao interpretar erroneamente a expressão de horror no rosto dela.
- Não fiques a olhar para mim com essa cara. Não fiz isso para atraiçoar a Meg.
- Eu... eu nunca pensei...
- Ah, não? - Xavier arqueou uma sobrancelha. - Muito longe de atraiçoar a garota, estou em crer que consegui convencer a rainha de que Meg teria muito pouca utilidade
para os seus esquemas.
- Mas... mas como?
- Ao empregar a minha própria magia muito pessoal. Ao contrário de ti, minha querida, eu sou um mentiroso de grande mestria. - Os lábios de Xavier esboçaram um trejeito
de alguma presunção enquanto relatava a sua recente audiência com a rainha.
Outra mulher qualquer talvez tivesse aplaudido a sua audácia ou admirado a sua astúcia. Mas Jane só conseguiu ficar a olhar para ele com uma agitação crescente,
especialmente quando ele prosseguiu.
- Ela quer que eu vá falar com ela outra vez para outra das sessões em que fico em estado de transe. - Xavier interrompeu-se com um encolher de ombros. - Cheguei
à conclusão de que tudo o que tenho de fazer é prever um longo e glorioso futuro para ela caso se esqueça da Rosa de Prata, concentrando toda a sua fé nas riquezas
de La Florida...
- Não deves fazer isso! - gritou Jane, pondo-se de pé de repente e agarrando-o por um braço. - Xavier, por favor, suplico-te. Não deves voltar a aproximar-te dela.
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Xavier revirou os olhos.
- Tenho consciência de que todas vós, refiro-me às mulheres da ilha Encantada, têm pavor da Rainha das Trevas, e até a minha sensata irmã, a Ariane. Mas o que quer
que Catarina de Médicis tenha sido em tempos, atualmente não passa de uma idosa doente. Até é possível que eu me sentisse envergonhado por me aproveitar dela se
não fosse uma bruxa tão malévola.
- Mas é precisamente isso! Ela é uma bruxa e... e é perigosa. Não deves continuar a arriscar a tua vida, nem sequer para conseguires concretizar os teus sonhos de
rumares até horizontes longínquos.
- Os meus horizontes longínquos - murmurou ele com uma expressão que lhe toldava os olhos. - Sim, por que outra razão é que eu haveria de arriscar a pele? Levando
em linha de conta a maneira como Catarina fez gato-sapato das vidas do meu pai e da minha mãe, toda a infelicidade que causou, está-me a parecer que ela me deve
um navio, não te parece?
Jane abanou a cabeça, implorando-lhe que agisse com sensatez, mas ele nem sequer parecia estar a prestar atenção ao que ela lhe dizia. Xavier pegou-lhe no queixo,
perscrutando-lhe a fisionomia.
- Pareces demasiado pálida e cansada. Essa tua prima está a sugar-te a vida.
- Estou bem - retorquiu Jane, afastando a mão dele.
- Não, não estás. Não te dás bem nesta cidade. Disseste-me que a única coisa que desejavas era encontrares um lugar seguro, mas acredita em mim quando te digo que
Paris não é esse lugar.
- Para ti, talvez não - ripostou Jane.
- Jane, tens de regressar à ilha Encantada. Quem me dera que desses ouvidos ao que tenho a dizer-te...
- Não, porque é que eu haveria de te dar ouvidos quando ignoras todas as minhas advertências? - retorquiu Jane, levantando o queixo numa atitude de desafio. - A
minha prima precisa de mim. Não tenho a mínima intenção de deixar Paris.
- Tão-pouco eu. - Xavier olhava-a com um misto de pesar e frustração. - O que nos coloca num grande impasse, minha querida. - Xavier levou a mão dela ao de leve
aos seus lábios, despedindo-se dela com uma expressão mal-humorada. Jane voltou para dentro de casa, sentindo a cabeça num autêntico turbilhão.
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Nenhum dos dois reparou na figura envolta em sombras que observava o que se passava do lado de fora do portão.
com o dispendioso traje de montar oculto por um manto bastante simples, Catarina de Médicis espreitava para dentro do jardim. Naquela manhã arriscara beber outro
gole do miraculoso elixir de Xavier. Se bem que o seu coração tivesse começado a bater descompassadamente, sentira-se mais forte e muito melhor. Ao ponto de desfrutar
de um passatempo de que se vira forçada a abdicar havia vários anos.
Era frequente que se divertisse a andar a cavalo incógnita, o que lhe permitia avaliar o estado de espírito da população, recolhendo informações de que nunca se
teria inteirado dentro das paredes do seu palácio.
Quando o palafreneiro foi buscar o seu cavalo, tinha tido dificuldade em montar, uma vez que já não era a jovem princesa cheia de agilidade que até conseguira impressionar
a apática corte francesa com as suas aptidões para a equitação.
Haviam sido necessários dois moços de estrebaria para erguerem a pesada rainha, colocando-a na sela que lhe permitia montar de lado e fazendo com que as suas articulações
gemessem em protesto quando teve de dobrar a perna na incómoda posição que as senhoras eram obrigadas a adotar quando saíam a cavalo.
Contudo, a rainha esquecera-se de tudo isso com a alegria que sentia por voltar a sentar-se numa sela. Teria adorado poder montar a égua e seguir num galope brando,
mas as muito movimentadas ruas de Paris não permitiam isso. Além do mais, para sua própria segurança, devia esforçar-se por não atrair as atenções.
Assim, contentara-se com uma marcha lenta do cavalo entre os dois moços de estrebaria que a acompanhavam. As feições, impossíveis de confundir com as de outra pessoa,
estavam parcialmente ocultas por um véu escuro.
Tinha passado pela estalagem onde sabia que Xavier se alojara. Não decidira antecipadamente que iria espiar o homem, mas quando o viu sair da estalagem, a oportunidade
foi boa de mais para a deixar escapar.
Quando viu que ele saltava por cima do gradeamento daquele jardim, a curiosidade, associada a suspeitas, havia sido irresistível. Os guardas mostraram-se surpreendidos
quando a rainha lhes ordenou que estacassem. Quando insistiu em desmontar, os homens olharam em redor com um manifesto
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mal-estar e ela sabia que teriam tentado dissuadi-la caso se tivessem atrevido a isso.
Ordenando-lhes que a aguardassem num beco nas proximidades, aproximou-se do jardim vedado a toda a volta, espreitando cautelosamente por entre as barras do gradeamento.
Agora, quase se arrependia da sua decisão. Quando saiu do Hotel de la Reine para um passeio a cavalo, sentira-se jubilante, quase como se tivesse voltado a ser jovem.
Mas ao observar os dois apaixonados através da tecedura do véu, os dedos enluvados tinham-se fechado com força nas barras de ferro do gradeamento. Apaixonados. Não
obstante a tensão bem patente entre ambos, Catarina não tinha a mínima dúvida de que os dois eram isso mesmo. Aquela pessoa de nome Jane não conseguia disfarçar
os olhares anelantes, tal como Xavier não era capaz de suprimir uma certa ternura que transparecia do seu tom de voz. Mas, verdade fosse dita, Catarina não conseguia
imaginar que atração é que Xavier via naquela inglesa pálida e de aspeto tão circunspecto.
Contra a sua vontade, os anos começaram a passar pela sua memória numa desfilada cruel, recordando-se daqueles dias que pertenciam a um passado tão longínquo, enquanto
se mantinha estendida no soalho da sua alcova. com o olhar preso no orifício que abrira na madeira para poder espreitar para os aposentos abaixo de si, aonde via
o marido a fazer amor com a amante, a elegante Diane de Poitiers.
"Mon Dieu, Henrique", ansiara por gritar extremamente angustiada. Diane de Poitiers tinha tido quase idade suficiente para ser mãe dele. Como é que era possível
que Henrique preferisse aquela mulher à sua legítima mulher que o adorava? Observá-los juntos provara ser um intenso tormento para Catarina, mas, apesar disso, nunca
tinha tido força suficiente para não continuar a espiá-los.
Descera a um nível censurável devido a esse seu comportamento, tal como estava a fazer agora ao espiar Xavier. E, desta feita, não era um rei que espiava, o marido
que amara tão cegamente, mas sim um intrujão, um canalha que era um corsário.
Respirou fundo por entre dentes semicerrados, perguntando-se por que razão é que a traição de Xavier a deixava tão amargurada. Nunca confiara em nenhum homem incondicionalmente.
Todavia, sentiu-se consternada
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ao aperceber-se de que queria poder confiar. Ao menos uma vez na vida, teria sido um grande consolo ter um aliado em quem pudesse ter confiado.
A rainha não era capaz de decidir o que era pior, ouvi-lo referir-se a si como uma velha doente ou aquela outra traição que a magoava mais profundamente do que ela
poderia ter imaginado ser possível.
Xavier tinha falado de Ariane como sendo sua irmã. Portanto, era irmão da maior inimiga de Catarina, a Senhora da Ilha Encantada. Como é que isso era possível? Evangeline
e o seu muito amado Chevalier nunca tinham tido um filho varão.
Enquanto observava Xavier a levar a mão da sua senhora aos lábios de uma maneira extremamente cortês, a recordação que lhe fugia havia tanto tempo cristalizou-se
no seu pensamento.
Por baixo da aparência rude de Xavier, vislumbrou, por fim, o que havia tanto tempo andava a atazaná-la: a estranha semelhança do corsário com o chevalier Louis
Cheney.
E se Xavier era o filho ilegítimo do chevalier, a mãe só podia ter sido Marguerite de Maitland. Uma das mulheres da própria Catarina, um membro do Esquadrão Volante,
bem familiarizada com a regra inflexível da rainha. Não era permitido que nenhuma das cortesãs tivesse filhos que seriam um estorvo, uma vez que elas deixariam de
ser úteis à rainha. Mas não obstante tantas restrições, Marguerite tinha feito isso mesmo, tendo conseguido ocultar a existência de Xavier e levado o seu segredo
para a campa.
Não só Catarina dera azo a que aquele filho bastardo tivesse feito pouco de si, como também havia sido enganada pela mãe meio louca dele. E tudo isso tivera lugar
num período da sua vida em que se sentira muito orgulhosa por se encontrar no pico dos seus poderes.
As mãos de Catarina tremeram, mas conseguiu controlar a raiva que se apoderara de si. Pelo menos, Xavier fizera-lhe uma coisa boa. Aquele elixir, qualquer que fosse
a sua origem, permitira-lhe ter mais domínio sobre as suas emoções.
A cólera percorreu-a na sua forma muito familiar, um rio de gelo que lhe percorria as veias. Haveria de exercer a sua vingança, mas não seria nada tão grosseiro
como um punhal que trespassasse o coração de Xavier, nem tão-pouco o nó corrediço de uma corda em volta do seu pescoço. Aguardaria a melhor oportunidade para encontrar
a maneira de o humilhar, tal como ele a humilhara, e esmagá-lo-ia tão impiedosamente que ele consideraria que a morte seria uma bênção.
As nuvens negras e ameaçadoras atravessavam o firmamento, anunciando uma chuva torrencial a qualquer momento. Todavia, Jane considerava que era uma melhoria em relação
ao calor abrasador do dia anterior em que o sol não dera tréguas a ninguém.
O céu plúmbeo ajustava-se melhor ao seu estado de espírito, bem como ao da sua companheira, ambas sentadas à mesa da cozinha. Tinha conseguido convencer Abigail
a vestir-se e a juntar-se a si no piso térreo da casa, embora Jane já se tivesse arrependido de ter feito isso.
Enquanto tomavam o pequeno-almoço juntas, Abigail não parou de lamentar a perda da sua louça de porcelana fina, sendo forçada a comer de uma tábua de madeira para
cortar o pão.
- E o pão está duro - resmungou. - Não há manteiga e anseio tanto por poder comer um cacho de uvas frescas.
- Não havia uvas no mercado, madame - adiantou Violette do canto da lareira a que se sentara a passajar meias. - A vindima foi outra vez muito fraca este ano.
- Talvez tivesses encontrado algumas uvas se tivesses procurado como deve ser.
- Tenho a certeza de que a Violette fez o melhor que lhe foi possível. Podes sobreviver muito bem sem uvas - disse Jane num tom de voz mais agreste do que fora sua
intenção.
Abigail mordiscou a sua fatia de pão, olhando de cenho franzido para Jane.
- Reparei que tens andado muito mal-humorada nos últimos dias. Não faço ideia do motivo para esse teu comportamento. Sou eu quem sofre
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tão excruciantemente que mal consigo dormir mais de três ou quatro horas todas as noites.
O que eram mais quatro horas do que Jane conseguia dormir, pensou. Mas reprimiu a resposta torta. Quando Abby estava rabugenta, não se interessava minimamente se
os outros se sentiam infelizes, importando-se apenas com a sua própria infelicidade. Se Jane se queixasse de insónias, talvez se visse forçada a explicar a razão
para isso, o que não desejava fazer.
Jane acreditava ter conseguido encontrar uma certa medida de calma, de resignação, quando Xavier reapareceu de repente e de novo na sua vida havia dois dias, voltando
a deixá-la extremamente perturbada.
Continuava sem saber ao certo por que razão é que ele a tinha procurado. Jane supunha que o seu único código de honra lhe exigira que se certificasse de que ela
não estava grávida do seu filho.
Jane ficara aliviada ao saber que ele já não era um foragido, contudo, bastou vê-lo para que todos os seus anseios retornassem, toda a tristeza que a ausência dele
lhe causara e que tentara reprimir.
Em virtude de ela não poder impedi-lo do curso de ação que ele traçara em relação à Rainha das Trevas, Jane preferia não saber o que Xavier andava a aprontar. Deixara
de se sentir perturbada com sonhos anelantes e pesadelos ameaçadores. O que se devia ao facto de mal conseguir pregar olho de tantas voltas que dava na cama, preocupada
por causa de Xavier.
O que era muito mais do que o homem merecia, pensava enquanto fervilhava por dentro e batia na almofada, desejando ter sido capaz de meter à força algum juízo na
cabeça dele. Xavier conseguira fazer com que a sua cabeça deixasse de estar a prémio, portanto, por que motivo é que ele tinha de arriscar a vida continuando a enganar
a rainha com a sua falsa magia?
Para ele, seria realmente assim tão importante conseguir obter outro navio? Aparentemente, sim, muito mais do que ela alguma vez havia sido para ele, refletiu Jane
com amargura. Se não fosse isso, talvez ele se apercebesse do quanto se sentia receosa, prestando mais atenção às suas advertências.
- Jane!
A voz da prima interrompeu aquelas dolorosas congeminações. Endireitou-se na sua cadeira, voltando a concentrar-se em Abigail.
- Por acaso ouviste uma única palavra do que eu tenho estado a dizer? - perguntou Abigail autoritária.
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- Ouvi, disseste que não gostas de... - Jane interrompeu-se, esquadrinhando a sua mente para se lembrar de alguma coisa sobre a qual Abigail ainda não se queixara.
- Do tempo?
- Realmente, acontece que não gosto nada de tanta chuva. Só faz com que Paris fique completamente alagada.
- Este é o primeiro dia em que o Sol não brilha desde que cheguei tentou Jane fazer notar, mas Abigail já continuava, passando a outro assunto.
- O que eu disse foi como comecei a detestar viver em Paris. Mas recebi uma carta dos Margate. Pelo menos, alguns dos meus antigos amigos não me esqueceram. Convidaram-me
para uma estada na casa que têm em Calais. Tenho a certeza de que conseguiria que eles também te convidassem.
- Tanta generosidade da tua parte - murmurou Jane, mas a secura com que falou passou despercebida a Abigail.
- Seria perfeito se pudéssemos encontrar maneira de chegar lá. Calais seria um lugar muito conveniente para embarcar rumo a Inglaterra, caso a invasão seja bem-sucedida.
- Desculpa, mas não estou a perceber - ripostou Jane imobilizando-se.
- A invasão da armada. Por acaso não ouvias notícias nenhumas relativas ao que se passa no mundo quando estavas nessa ilha de bruxas? Se os rumores corresponderem
à verdade e os espanhóis conseguirem derrubar a rainha Isabel...
Abigail vacilou perante o olhar gélido de Jane. Ao que tudo indicava, até mesmo a sua prima não era obtusa ao ponto de não reparar na tensão que se apoderara de
Jane.
- Ficarias contente, não é verdade, Jane? Queres regressar à tua terra.
- Não tenho o mínimo desejo de ver... - começou Jane a dizer com rispidez, mas interrompeu-se. Ao aperceber-se de que Abigail a olhava com fixidez, tratou de se
corrigir. - O que quero dizer é que não vejo qualquer necessidade em fazer planos em relação a um acontecimento que talvez nunca venha a concretizar-se.
- Mas...
Jane levantou-se da mesa abruptamente. Se Abigail continuasse a rejubilar perante a possibilidade de a Inglaterra vir a ser invadida pelos espanhóis, Jane sabia
que se sentiria encolerizada e o resultado seria discutir com a prima. Mas discutir com Abby sobre questões de política ou de religião era o mesmo que estar a gritar
ao gatinho da cozinha.
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- Acho que vou sair para ir ao mercado. Precisamos de mais pão e talvez até consiga encontrar as tuas uvas.
- Meu Deus, Jane. Esquecestes-te de que és uma senhora de sangue nobre? Ir de banca em banca a regatear o preço dos alimentos como uma criada... essa é uma tarefa
que pertence à Violette.
- A Violette já anda a fazer o trabalho de dez servas e o teu lacaio não serve de grande coisa.
- Esfregar soalhos e lavar a roupa está abaixo das funções de um lacaio. As tarefas do Gérard são... fazer recados e ir buscar coisas.
- E para ficar com muito boa aparência na sua libré - disse Jane. - O homem é um grande calão, Abby. Estou desconfiada de que só o contrataste, em grande parte,
por ele ter umas barrigas da perna bem musculadas e pernas bem torneadas.
As bochechas de Abigail ficaram vermelhas.
- É possível que isso tenha sido um aspeto a levar em linha de conta. Os lacaios devem representar condignamente a casa em que trabalham.
Jane sorriu com ironia antes de ir buscar o cesto das compras.
- Não tarda a chover. Vais ficar encharcada e apanhas uma pneumonia que será a tua morte - disse-lhe Abigail.
- Não tenho uma constituição tão delicada como a tua, Abby. Tenciono apressar-me e voltar antes que o temporal se abata sobre nós.
- Mas... e se eu precisar de ti enquanto estiveres ausente? A minha cabeça...
- Vais ficar bem e eu não me demoro nada. - Jane pegou no cesto e apressou-se a sair da cozinha antes que Abigail pudesse levantar mais objeções.
Só abrandou as passadas quando chegou ao portão, sentindo algum receio por poder vir a ser assediada por mais credores dos Benton. Mas talvez os comerciantes já
tivessem acabado por desistir. Jane tinha sido deixada em paz e sossego durante as duas últimas manhãs.
Ao ver o firmamento ameaçador acima de si, estugou o passo. Enquanto percorria as ruas que a levariam até ao mercado, não foi capaz de evitar pensar no quanto o
seu pobre irmão tinha adorado Paris.
Ned quase falara com lirismo da exuberância, das diversões e do ambiente de alegria da cidade. Olhando em seu redor, Jane via muito poucos sinais dessa Paris de
que o irmão falara. Na sua opinião, a cidade era tão tristonha e sombria como as nuvens que se acumulavam acima de si.
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A interminável guerra civil, um número excessivo de estações do ano em que as colheitas haviam sido más, a par de epidemias que haviam dizimado grande parte do gado,
tinham tido o seu custo. O número de mendigos que deambulavam pelas ruas parecia muito maior do que o de donas de casa e de criadas que faziam as suas compras no
mercado.
Os produtos alimentares que eram comercializados pelos vendedores de hortaliças, padeiros, negociantes de vinhos e talhantes eram escassos e caríssimos. Jane deteve-se
junto da galinheira, perguntando-se se teria dinheiro que chegasse para comprar uma das galinhas escanzeladas que estavam à venda.
A mulher atrás da banca era uma criatura de feições duras. Quando lhe disse o preço, Jane retraiu-se toda. A mulher observava sem sequer o esboço de um sorriso enquanto
ela tirava as poucas moedas que tinha na magra bolsa.
Tinha aprendido muitas coisas valiosas sobre como gerir uma casa grande quando se casou com Sir William Danvers, mas regatear o preço dos produtos à venda no mercado
não se incluía no que aprendera.
- Isso... isso parece-me terrivelmente caro - disse ela.
- Não posso dar os meus galináceos de graça, madame - ripostou a mulher, bufando. - Quer a galinha ou não quer?
- Não, eu... eu peço desculpa, eu...?
- Sim, ela quer a galinha - interrompeu uma voz.
Jane virou-se para trás de repente, surpreendida ao deparar com Xavier atrás de si. Não admirava que ele tivesse sido capaz de convencer a rainha de que era um necromante.
O homem possuía a inquietante capacidade de aparecer em todo o lado como se caído do céu.
Demasiado aturdida para dizer o que quer que fosse, Jane ficou a olhar boquiaberta quando Xavier passou por si. No espaço de escassos momentos, não só ele conseguira
persuadir a vendedeira a vender a galinha por metade do preço que tinha pedido, como também foi capaz de pôr a mulher a sorrir.
Só quando Xavier tentou pagar a galinha do seu próprio bolso é que Jane despertou daquela espécie de marasmo.
- Não - adiantou-se. - Não posso permitir... isto é, não quero a galinha.
com as bochechas muito coradas de embaraço, virou-se e afastou-se num passo apressado. Não tinha ido muito longe quando Xavier a apanhou. Pegando no cesto das compras,
colocou a galinha no interior.
302
- Pára com isso! - gritou Jane. - O que é que pensas que estás a fazer?
- A impedir que morras de fome?
- Eu... eu não estou a morrer de fome. A minha prima e eu estamos a passar bastante bem.
- Tão bem que os alfaiates, os sapateiros e as chapeleiras não vos largam a porta, prontos para se apoderarem da última côdea de pão que esteja na mesa.
- Na realidade, as coisas não são bem assim. Ainda esta manhã... - Jane interrompeu-se repentinamente, olhando para Xavier com uma expressão de desconfiança.
- Como é que sabes quais são os credores que nos têm assediado?
- Foi apenas uma dedução lógica.
Mas Jane não se deixou enganar pelo ar dele de quem dizia: "Eu não tive nada a ver com isso." Olhou para Xavier com um misto de consternação e mortificação.
- Foste tu. Tens andado a pagar-lhes. Foi por isso que eles deixaram de nos atormentar. - Jane ficou ainda mais surpreendida ao aperceber-se de outra coisa. Ele
ter-lhe aparecido no mercado não se devia a uma mera coincidência.
- Tens andado a vigiar a casa, a seguir-me.
Xavier mostrou-se indignado, fazendo menção de protestar veementemente, mas acabou por desistir com um encolher de ombros.
- Tem de haver alguém que olhe por ti enquanto persistires em permanecer nesta maldita cidade.
- Mas não tens obrigações nenhumas para comigo - ripostou Jane, olhando em volta e baixando o tom de voz antes de acrescentar: - Não estou grávida do teu filho.
Não me deves absolutamente nada.
- E também preferias não estar minimamente em dívida para comigo - retorquiu Xavier com um suspiro de desalento. - E não estás em dívida para comigo. Como sempre,
tenho os meus próprios motivos egoístas. Gostaria de voltar a estar nas boas graças da minha irmã. Se escrevesses à Ariane, contando-lhe o quanto tenho sido generoso,
talvez ela deixe de me desprezar.
- Não acredito que ela te despreze, nem tão-pouco a Miri. Mas também não penso que a Ariane aprovaria a maneira como conseguiste o teu dinheiro... -Jane mordeu o
lábio, incapaz de dar voz a uma suspeita que tanto a confrangia.
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Mas Xavier pareceu ter compreendido bem de mais a relutância dela.
- Não é dinheiro nenhum que a Rainha das Trevas me tenha dado, se é isso que tanto temes. Ocasionalmente, sou capaz de ganhar dinheiro de maneiras honestas.
- Lamento muito... - disse Jane titubeante.
- Ganhei este dinheiro ao...
- Não tens nada que me explicar, Xavier.
- Sim, tenho. - As faces de Xavier mostravam um pequeno rubor enquanto prosseguia. - Sou bastante competente a cartografar mapas das minhas viagens e tenho conseguido
vender alguns a homens que também anseiam por poderem navegar até horizontes longínquos. Parece mesmo que até numa cidade como Paris, onde o desespero impera, ainda
existem alguns sonhadores tolos como eu.
- Se os teus mapas forem tão bons como os teus desenhos, tenho a certeza de que são maravilhosos.
- Sim, ocasionalmente, quando não tenho muito a certeza da rota, até invento uma ou duas ilhas. Podia dar o teu nome a uma delas, Jane.
- Oh, nem pensar! - protestou ela horrorizada. - Não deves fazer isso.
Os lábios contraídos de Xavier alargaram-se no sorriso rasgado que Jane conhecia tão bem.
- Só estava a brincar contigo, minha querida. Eu cartografo os meus mapas com tanta precisão quanta me é possível. Não haveríamos de querer enviar um pobre tolo
para que navegasse até ao fim do mundo, pois não?
- Não - concordou Jane, retribuindo-lhe o sorriso relutantemente. A ternura bem-humorada que via nos olhos dele e o sorriso cálido nos lábios faziam com que as emoções
de Jane ficassem num turbilhão. Xavier seria o primeiro a negá-lo, mas a realidade é que o homem era capaz de ser de uma generosidade inexcedível. Jane tinha a certeza
de que o facto de ele continuar a interessar-se pelo seu bem-estar não passava disso mesmo. Não podia permitir que ele voltasse a encantá-la, porque o resultado
seria ficar com o coração destroçado outra vez.
Quando várias gotas grossas de água lhe caíram na face, Jane ergueu o olhar dizendo:
- Está a começar a chover. Tenho de voltar para casa da minha prima.
- Não conseguirás chegar antes de começar a chover torrencialmente - retorquiu Xavier, pegando-lhe na mão.
304
- Mas para onde é que vamos? - perguntou Jane, tropeçando com a pressa de conseguir acompanhar as passadas dele maiores do que as suas.
- Para a estalagem em que me alojei.
- O... o quê? -Jane deixou-se ficar para trás, o coração a bater-lhe acelerado com um misto de perturbação e antecipação.
- Apenas para tomarmos um copo de vinho na taberna - replicou ele, olhando-a com uma expressão maliciosa. - Que outra coisa é que pensaste que eu tinha em mente?
A chuva batia contra os vidros das janelas da Estalagem Royale François, mas a atmosfera no interior da taberna era seca e acolhedora. A taberna estava apinhada
de parisienses que procuravam refúgio da chuva torrencial. As conversas eram tão acaloradas como a maior parte do verão havia sido, censurando-se o rei pelas suas
loucas extravagâncias que tinham deixado o reino à beira da penúria.
As pessoas temiam que não tardasse a desencadear-se outro massacre, mas, desta vez, o alvo não seriam os huguenotes, mas sim os súbditos rebeldes, de fé católica,
do rei. E onde é que o duque de Guise se encontrava? Nunca antes tinham os parisienses necessitado tanto da presença do seu grande herói, o defensor da fé verdadeira.
As queixas e as especulações fervilhavam por toda a taberna, mas eram expressadas em vozes baixas e concisas, como se os espiões de sua majestade rondassem por todo
o lado.
As únicas pessoas que pareciam alheadas de toda aquela tensão que pairava no ar formavam um estranho quarteto que se sentava a uma mesa perto da janela da fachada
da taberna. A senhora aparentava ser demasiado circunspecta e respeitável para ser vista em público na companhia de indivíduos de aspeto tão duvidoso.
Jane mantinha-se sentada na beira do assento da cadeira, sentindo-se ligeiramente desconcertada. Desde que fora banida de Inglaterra, mudando completamente de vida,
tinha-se visto em toda a espécie de situações que nunca poderia ter previsto. Passara a ser a confidente de uma jovem que fora considerada uma notória bruxa, estivera
presente numa reunião do conselho das Filhas da Terra, fizera amor com um homem à meia-noite no interior de um círculo de misteriosas pedras cretas e gigantescas.
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Mas nunca, nem nos seus sonhos mais extravagantes, teria Jane imaginado fazer algo como aquilo, a muito respeitável Lady Jane Danvers sentada à mesa de uma taberna,
a beber na companhia de piratas.
Tinha havido algo de desafiante na maneira como Xavier a apresentara aos dois membros da sua antiga tripulação. O olhar inflexível dele pareceu ter advertido os
dois homens para que se comportassem o melhor que lhes fosse possível, um aviso que pecara por desnecessário.
Jane nunca tinha conhecido dois homens mais corteses, até mesmo entre toda a nobreza de Londres. Em especial, em relação ao que se chamava Pietro. Jane ouvira falar
dos selvagens que habitavam o Novo Mundo, mas nunca tinha estado perto de um deles até ao momento.
Não obstante a sua estatura gigantesca, Pietro não tinha nada de selvagem. Possuía uma voz aveludada e uns olhos que espelhavam sabedoria, delicadeza e sensatez.
Quanto ajambe du Bois, a sua aparência, caracteristicamente de pirata, ficou muito atenuada quando ele tirou o barrete, revelando uma cabeça calva.
- Tenho muito prazer em vos conhecer, milady - dissera-lhe o homem baixinho na língua materna de Jane. - Depois de ter visto o vosso rosto encantador, não me é difícil
ver a razão por que o nosso capitão não tinha pressa nenhuma em deixar a ilha Encantada. - Jambe levou a mão dela
aos lábios com um entusiasmo desmesurado até Xavier ter decidido intervir.
- Já chega, meu velho patife - disse Xavier, libertando a mão de Jane. Os seus dedos demoraram-se nos dela durante uns momentos antes de lhe largar a mão.
- Não vos haveis molhado muito, pois não, milady? - perguntou-lhe Jambe solícito. - Podemos mudar para uma mesa mais perto da lareira.
Jane abanou a cabeça, assegurando-lhe que estava bem.
- Foi uma sorte que a estalagem onde se alojaram se situasse tão próxima do distrito onde resido.
- Oh, não, a sorte não teve nada a ver com o assunto. Quando o capitão soube onde é que estáveis a viver, insistiu connosco para que nos mudássemos da... au! -Jambe
calou-se, aparentemente depois de Xavier lhe ter dado uma violenta cotovelada nas costelas. O olhar ameaçador deste
fez com que o velho marinheiro se calasse.
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Jane ficou a pensar no que Jambe dissera inadvertidamente. Portanto, aquilo queria dizer que Xavier mudara de estalagem. Para ficar mais perto dela? Tentou não atribuir
um grande significado àquilo.
Contorceu as mãos nas dobras da saia, sentindo-se um tudo-nada embaraçada. Não fazia ideia nenhuma de como é que se mantinha uma conversa com piratas. Concentrou
a sua atenção em Jambe.
- Portanto, sois um inglês, senhor... - Vacilou sem saber como tratar um homem que tinha uma alcunha tão estranha. - Senhor Perna?
O idoso fez uma careta.
- Na verdade, o meu nome é Arthur Inchcombe, milady, nascido em Londres.
- Inchcombe? - O nome verdadeiro de Jambe du Bois avivou-lhe a memória. Em virtude da atividade do falecido marido, que negociava em vinhos, Jane ficara familiarizada
com muitas das guildas mais importantes de artesãos de Londres.
- Por acaso não pertence à família de vidraceiros que tem a sua oficina em Cheapside?
Jambe ficou radiante, enchendo o peito cheio de orgulho.
- Na verdade, pertenço, milady, se bem que nunca tenha tido talento para essa arte. No entanto, o meu bisavô era um artesão de primeira água, tendo ajudado a fazer
os vitrais de muitas das igrejas da cidade. O meu pai nunca se cansava de me dizer que o velhote tinha ficado com o coração destroçado quando os reformadores estilhaçaram
uma grande parte do seu maravilhoso trabalho, alegando que se tratava de idolatria.
- Portanto, a sua família é católica? - perguntou Jane em voz baixa.
- Éramos, até o velho rei Henrique ter banido a prática do catolicismo. Passámos a pertencer à religião do velho rei, mas depois fomos obrigados a converter-nos
quase logo a seguir ao protestantismo sob o reinado do filho. Mas depois veio a rainha Maria I de Inglaterra, a rainha sangrenta,
e voltámos a ser papistas. E agora, no reinado da rainha Isabel, voltámos a adotar a religião do velho Henrique, tendo todo o cuidado em manter-nos afastados dos
puritanos porque a boa rainha Isabel não gosta mais deles do que dos papistas.
- Tem tento na língua, Jambe - avisou Xavier. - Lady Jane Danvers é católica, apesar de ter pago um preço muito elevado por se manter fiel à sua religião.
Quando Jambe a olhou com uma expressão inquiridora, Jane explicou-lhe o sucedido.
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- Tenho vivido exilada de Inglaterra, em parte por ter tentado meter um padre em minha casa para que celebrasse missa.
Aquilo era uma parte da sua história de vida que nunca confiara a Xavier, que se virou na cadeira para poder fitá-la com um ar de reprovação.
- Mas, em nome de Deus, em que é que estavas a pensar, Jane? Teres arriscado tudo, a tua casa, a tua vida, por uma coisa tão insignificante.
- Suponho que tenha sido em Deus que eu pensava - replicou ela com um sorriso de tristeza. - Os ritos da nossa fé não eram insignificantes para mim nem para os demais
membros da minha casa.
"É claro que eu não fazia a mínima ideia de que o padre em questão estava envolvido numa conspiração para assassinar a rainha. Isso é uma coisa que eu jamais aprovaria.
Mas apesar de essa minha atitude me ter custado quase tudo, incluindo a minha vida, não me arrependo de ter desafiado a lei inglesa para poder proporcionar o consolo
da nossa religião à minha gente. Porque...
- Eu sei - atalhou Xavier, dando largas a um suspiro há muito contido. - Porque era a atitude mais correta da tua parte.
Jane esboçou um sorriso de pesar. Para sua surpresa, foi Pietro quem pareceu ser o mais compreensivo. Acenou com a cabeça num gesto de aprovação muda, enquanto Jambe
coçava a cabeça.
- Peço perdão, Lady Jane. Talvez esses assuntos da fé sejam mais percetivos para quem vem de uma família como a vossa e tenha recebido a mesma educação. Mas são
bastante confusos para as pessoas mais comuns como eu. Por vezes, tem-se a impressão de que é mais seguro ser-se pagão como aqui o meu amigo Pietro.
- A menos que a Inquisição espanhola vos deite a mão - adiantou Xavier numa voz arrastada.
- Malditos demónios! - exclamou Jambe, mas logo a seguir tapou a boca com a mão. - Peço desculpa, milady.
- Tendes de perdoar o meu amigo - disse Pietro. - Enquanto estivemos em Saint-Malo, tivemos notícias dos espanhóis que deixaram o Jambe extremamente encolerizado.
- E que notícias foram essas?
Xavier inclinou-se para a frente e olhou fixamente para Jambe com uma expressão de advertência.
- Não me parece que sua senhoria precise de ouvir rumores que te chegaram aos ouvidos por mero acaso.
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- Preciso, sim! - gritou Jane. - Por favor.
O olhar de Jambe desviou-se dela para se concentrar em Xavier com uma expressão de incerteza. O capitão estava de cenho carregado, mas optou por encolher os ombros
e recostar-se todo para trás na sua cadeira. Interpretando aquela atitude como aquiescência, Jambe prosseguiu:
- Considera-se com uma certeza quase absoluta que a armada se fará ao mar este mês. Se a França não fizer nada no sentido de intervir, esses cães espanhóis poderão
invadir a nossa região costeira.
Jane sentiu-se a empalidecer, enclavinhando os dedos na extremidade do tampo da mesa. Os olhos de Jambe brilharam ferozmente quando acrescentou:
- Se isso acontecer, capitão, regressarei à minha pátria.
- Não estou a ver muito bem qual será a utilidade de um velho com uma perna de pau contra todas essas espadas e mosquetes espanhóis, mas estou disposto a lutar até
à minha última gota de sangue antes de ver Filipe de Espanha sentado no trono em Whitehall, depois de ter destronado a nossa velha rainha Isabel.
Pietro pousou a mão enorme no ombro do homenzinho.
- Estou contigo, meu amigo. Terei todo o gosto em lutar contra os espanhóis em qualquer altura e aonde quer que seja. - Virou-se para Xavier. - O melhor curso de
ação para todos nós, capitão, seria procurar Sir Francis Drake. Ele disse-nos que, se alguma vez precisássemos de trabalho, teria todo o prazer em contratar-nos
de novo.
- Isso mesmo - retorquiu Jambe ansiosamente. - E sabemos bem como Sir Francis é. Até mesmo no meio de uma batalha sangrenta, Drake consegue apresar sempre alguns
navios. Podíamos acabar por ficar com as nossas bolsas bem recheadas de ouro.
- Só consegues pensar nisso? - perguntou-lhe Pietro. - A minha gente, os panamianos, costumava atacar as caravanas de mulas dos espanhóis constantemente, apoderando-se
do ouro deles. Costumávamos enterrar esse ouro nas montanhas para nunca mais ser encontrado, apenas para enraivecer os espanhóis.
- Não fales disso, meu rapaz - disse Jambe num gemido. - Sinto-me doente só de pensar num desperdício tão grande. Todo esse belo ouro.
- O ouro não tem a mínima importância, ao contrário do ferro, que é um metal útil. com o ferro podemos fabricar boas armas e tachos e panelas para se cozinhar.
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- Tretas. Quando se tem ouro suficiente, podemos comprar todas as armas, tachos e panelas que quisermos.
Os dois embrenharam-se numa discussão amigável que poderia ter divertido Jane noutras circunstâncias. Mas a conversa sobre a armada deixara-a numa grande ansiedade.
Olhou para Xavier, como se quisesse que ele a tranquilizasse, mas não encontrou nada no semblante sombrio dele. Xavier bebia o seu vinho a pouco e pouco com o cenho
franzido.
- Não tenho a menor intenção de te perturbar, minha querida, mas tenho de dizer que a única esperança de vitória dos ingleses reside nos franceses. com base no que
ouvi dizer, o rei Henrique de França e os seus favoritos já têm uma grande admiração por Drake e pelas suas façanhas. Um desses peralvilhos todos pintados até usa
um medalhão com um retrato em miniatura de Sir Francis. E muito possível que isso possa inspirar o rei a ir em auxílio da rainha Isabel. Não estou a falar de uma
coisa impossível.
- Sim, mas é muito pouco provável - interveio Jambe desdenhoso.
- Especialmente porque o verdadeiro poder neste país parece residir no duque de Guise e na sua Liga Católica.
- O que o Jambe diz é verdade, capitão - concordou Pietro. - Essa carta que decifrou não dizia que o duque de Guise estabeleceu uma espécie de pacto com o diabo
com os espanhóis?
- Carta? - perguntou Jane, olhando para Xavier com uma expressão inquiridora. Ele explicou-lhe a missiva que intercetara quando capturou o navio espanhol na primavera
anterior.
- Estava escrita em código, mas do texto depreendia-se que o rei espanhol tinha pago ao duque de Guise para que este impedisse os franceses de se aliarem aos ingleses,
para o que o duque trataria de arquitetar uma manobra de diversão.
- Mas que espécie de manobra de diversão? - perguntou Jane ansiosamente.
- Não faço ideia nenhuma. Nem sequer tenho a certeza de ter traduzido a missiva corretamente - respondeu Xavier com um encolher de ombros. - Seja como for, o duque
não chegou a receber essa carta, consequentemente, ele não fez nada nesse sentido.
- Sim, mas com certeza que, nesta altura, já os espanhóis terão encontrado outra maneira de entrarem em contacto com ele - disse Pietro.
- É provável que sim - concordou Xavier, bebendo outro gole de vinho. - Tal como já vos tinha dito aos dois, não tenho qualquer objeção
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em ser contratado para trabalhar no navio de Drake. No entanto, tenho de concluir o assunto que tenho pendente com a rainha Catarina esta tarde. Jane respirou fundo.
Se aquela conversa sobre a armada a atemorizava, a intenção de Xavier, pedir outra audiência à rainha, fazia com que sentisse um enorme aperto no estômago.
- Capitão, sei que a sua intenção é proteger essa garota, convencendo a rainha a deixá-la em paz e sossego, mas já não conseguiu fazer isso? perguntou Pietro num
tom que exigia resposta.
- Não, preciso de ter a certeza absoluta.
- Sim, mas esse seu jogo sempre foi demasiado perigoso.
- Ah, mas desta vez tenciono ganhar.
Xavier atalhou quaisquer argumentos adicionais, levantando-se da mesa.
- Parece que a chuva já parou. A minha senhora Jane Danvers tem de voltar para junto da prima e eu tenho um rendez-vous com a rainha.
Atirou algumas moedas na direção de Jambe para que este pagasse a conta, após o que estendeu a mão a Jane para a acompanhar até à saída da estalagem.
Jane pôs-se de pé lentamente, pegando no cesto das compras. Xavier deixara-lhe a impressão de que o seu intuito ao tentar encantar a rainha tinha por objetivo a
obtenção de outro navio. Mas, claramente, e uma vez mais, interpretara erroneamente as intenções dele, que, movido pelo seu orgulho, permitira que ela se tivesse
enganado a seu respeito.
Quando já saíam da estalagem, Jane apertou-lhe o braço.
- Xavier, por favor, posso dar-te uma palavra a sós?
- Isso não me parece que augure alguma coisa de bom. O que é que eu fiz agora? - perguntou ele na brincadeira. Levou-a para um canto sossegado do pátio, fora do
caminho de uma caravana de comerciantes a cavalo. Sorrindo-lhe, Xavier tropeçou num tronco caído que se tinha desprendido de uma pilha de madeira mal acondicionada,
constituindo um perigo.
Contendo uma imprecação, agarrou-se a um barril para não cair, desalojando a tampa do barril inadvertidamente. Quando Xavier já a repunha no seu lugar, ouviu uma
voz irada que o interpelou.
- Você aí! O que é que pensa que está a fazer?
Xavier olhou em volta, arqueando as sobrancelhas numa expressão altaneira de surpresa.
- Nada que lhe diga respeito.
O homem que lhe tinha gritado aproximou-se deles. Era um dos moços de estrebaria da estalagem, que tinha um semblante bastante desagradável
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e uma compleição da cor de carne crua. Abeirou-se deles com uma atitude tão ameaçadora que Xavier se colocou à frente de Jane.
- Saiam daqui imediatamente! - disse o homem num tom truculento. - Não toleraremos a presença de espiões nesta estalagem.
- A espiar? O quê? - perguntou-lhe Xavier, mostrando-se despreocupado.
O moço de estrebaria ficou corado que nem um tomate, o peito a soerguer-se de indignação.
- O estabelecimento de um honesto cidadão católico, é o que vocês, os huguenotes, fazem, não é verdade?
- Por acaso pareço-lhe o género de homem que recita os salmos? Esta é a minha única religião. - Xavier afastou o manto para o lado e levou a mão ao punho da espada.
Aquele gesto causou mais apreensão a Jane do que o homem que fizera frente a Xavier lhe causava. Sem ceder um único centímetro que fosse, o moço de estrebaria cerrou
os punhos.
- Talvez não seja um protestante, mas eu apostaria que a senhora que o acompanha é. Ela é inglesa, eu bem ouvi o sotaque dela.
- Não é da sua conta fazer qualquer comentário à minha senhora.
O coração de Jane começou a bater mais forte de tão alarmada que ficou, receando que aquele incidente pudesse ficar fora de controlo devido exclusivamente ao orgulho
e à beligerância masculinos.
Saindo de detrás de Xavier, dirigiu a palavra ao encolerizado moço de estrebaria no seu timbre de voz mais razoável e conciliador.
- Garanto-vos, senhor, que não tendes nada a recear de mim. Sim, sou inglesa, mas sou uma católica no exílio que não tem o menor interesse em espiar seja quem for.
O que quer que tenhamos feito para vos inquietar ou ofender, não foi feito deliberadamente.
Olhando para Jane, a expressão no rosto do moço de estrebaria suavizou-se, as feições endurecidas mostraram um ligeiro acanhamento.
- Peço perdão por me ter enganado - resmungou o homem. - Vivemos dias de tensão em Paris, minha senhora. Não é uma boa altura para metermos o bedelho no que não
nos pertence.
- Não temos o mínimo interesse no raio dos seus barris! - ripostou Xavier com rispidez.
Jane puxou-o pelo braço, conseguindo levá-lo dali para fora. Mas só sossegou quando viu o moço de estrebaria desaparecer no interior dos estábulos.
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Mas agora era Xavier quem se mostrava de cenho carregado, manifestamente desconfiado.
- Mas o que diabo é que deu origem ao que se passou ali?
- Eu diria que o homem escondia alguma coisa de natureza ilegal naquele barril - alvitrou Jane. - Talvez para fugir aos fiscais de impostos do rei.
- O barril só continha pedras, Jane - adiantou Xavier, franzindo os sobrolhos. - É estranho, agora que penso nisso. Também reparei numa data de tralha empilhada
próximo da outra estalagem em que nos alojámos, tábuas soltas, barris, grades de madeira e montes de entulho, como se as pessoas estivessem a preparar-se.
- A prepararem-se para o quê?
- Não sei - respondeu Xavier, abanando a cabeça. - Tudo faria mais sentido se estivessem a reunir armas. Não devia existir nada de ameaçador em alguns barris e tábuas
velhas, mas, no entanto, isso causa-me um grande mal-estar.
Pegou na mão de Jane, apertando-a com força.
- Quero que saias desta cidade. Volta para a ilha Encantada e leva a infeliz da tua prima contigo.
- A Abigail nunca consentiria em ir para a ilha Encantada. .;
- Nesse caso, dá-lhe uma paulada na cabeça. É perigoso de mais para ti se continuares aqui.
- Como é que podes falar-me de situações perigosas quando insistes em voltar a falar com essa bruxa?
- Se a rainha Catarina for uma bruxa, então esta cidade é um caldeirão em ebulição. Paris pareceu-me uma cidade bastante perigosa quando estive cá no último outono
e isso aconteceu antes de o rei ter banido o duque de Guise, impedindo-o de entrar em Paris. Mas acontece que o duque é, praticamente, o santo padroeiro da população
da cidade. Caso ele desafie a ordem do rei, podemos ver-nos no meio de uma revolução.
- Os duques e as revoluções não me interessam absolutamente nada disse Jane. Passou a mão pela face dele. - A única coisa que me interessa és tu. Suplico-te, Xavier.
Não voltes a falar com a rainha. Peço desculpa se duvidei de ti. Todas as tuas fanfarronadas acerca de conseguires obter outro navio não passaram de disparates.
Estás a agir desta maneira por causa da Meg, não é verdade?
Xavier tinha os lábios cerrados, como se procurasse uma maneira de poder negar o que ela dizia. Finalmente, soltou um suspiro.
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- A garota confiou em mim e eu desiludi-a, assim como às minhas irmãs. E também te desiludi. Talvez eu gostasse de poder provar a todas vós que não sou um patife
assim tão incorrigível.
- Não tens nada a provar a quem quer que seja.
- Mas talvez eu precise de provar alguma coisa a mim próprio. Durante a maior parte da minha vida, sempre fui motivado por puro egoísmo. Desde sempre que tive uma
certa propensão para a chicanice e para enganar. Mas, desta feita, posso pôr as minhas apetências ao serviço de uma boa causa, convencendo a rainha a deixar a Meg
em paz e sossego de uma vez por todas. Tudo o que preciso de fazer para conseguir isso resume-se a apenas mais um transe.
Xavier pegou nos dedos de Jane, depositando-lhe um beijo na palma da mão, adulando-a com os olhos.
- Sempre fui um biltre. Ao menos uma vez na vida, permite-me que desempenhe o papel de herói, Jane. Juro que não farei um hábito disso.
Xavier desatou os cordões da bolsa que trazia presa ao cinto.
- Se houver alguma coisa que corra mal, quero que aceites este dinheiro e que o uses para saíres de Paris. ,
Jane recuou, abanando a cabeça veementemente.
- N... não, seria o mesmo que aceitar que não voltarás.
- Nesse caso, aceita esta bolsa apenas para a manteres em segurança para mim - acrescentou Xavier, insistente. - Juro que voltarei para que ma entregues dentro de
algumas horas. - Deu-lhe um beijo ao de leve na bochecha. - Se bem que não faria mal nenhum se rezasses uma oração por mim. Há muitos anos que não converso com o
Todo-Poderoso. Mas tenho a certeza de que Ele ouviria se a prece viesse de ti.
Jane aquiesceu com o menear da cabeça, sentindo a garganta demasiado embargada pelas lágrimas para poder falar. Como havia sido tola ao pensar que poderia impedir-se
de se apaixonar por aquele homem. Fora incapaz de deixar de o amar, algo que nunca aconteceria. Devia ter tido coragem para lhe dizer isso mesmo.
Mas Xavier já se afastava dela, confiando-a ajambe e a Pietro, dando-lhes instruções para que a acompanhassem até casa da prima.
Jane teria preferido que os dois homens acompanhassem Xavier, mas era evidente que ele já tinha resolvido ir sozinho. Pôs-se em bicos de pés para o ver uma última
vez. Quase como se... Jane mal conseguia admitir o receio... quase como se nunca mais voltasse a vê-lo.
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Quando deixou de o ver, não conseguiu conter o arrepio de apreensão que lhe percorreu o corpo. Jambe deu-lhe uma palmadinha no ombro.
- Não vos inquieteis, milady. Não vai acontecer mal nenhum ao capitão. Acho que o homem tem um pouco de mago. Nunca o vi numa situação difícil de que não tenha conseguido
sair incólume.
- De facto - retorquiu Jane, tentando sorrir -, eu não devia permitir que ele me preocupasse e atormentasse tanto. Ele... ele é um homem muito mau.
- Ou, pelo menos, esforça-se por ser - acrescentou Pietro em voz baixa.
Xavier estava ajoelhado no centro do pentagrama desenhado no soalho do salão. Teria preferido fingir o seu transe na torre astrológica, sozinho com Catarina de Médicis,
a exemplo do que fizera anteriormente.
O seu desempenho não lhe parecia tão eficaz no salão iluminado pela luz do Sol. Mas a rainha alegara que não se sentia com forças para subir as escadas até à torre.
Tinha-se deixado cair no seu cadeirão; a mulher mal parecia ter força para poder manter a cabeça direita.
A idade já bastante avançada dava a impressão de pesar nela acentuadamente. Quem a visse, pensaria que a sua vida não duraria por muito mais tempo.
Xavier sabia que aquela seria a última audiência que ela lhe concederia. Tudo o que precisava de conseguir era que ela se esquecesse da existência de Meg para todo
o sempre.
Xavier fechou os olhos e estendeu os braços. Sem Pietro a rufar o tambor, Xavier era forçado a concentrar-se no seu próprio ritmo cardíaco. Para fingir o seu estado
de transe, chamou à memória as sensações que guardava do que havia sido ficar num estado de transe genuíno. O que sentira quando o seu elixir mágico se apoderara
da sua mente. Visualizou as explosões de cor por detrás dos olhos, a sensação de estar a pairar nas alturas, o corpo a transformar-se.
Entoava um cântico em voz baixa, sentindo o poder a invadir-lhe o corpo. Transformou-se no jaguar de movimentos felinos e atitude matreira. Atirou a cabeça para
trás e soltou um uivo em surdina. Ficou com um olhar fixo e vítreo, como se tivesse deixado de ver o salão, estando a entrar num qualquer reino oculto.
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Mas, verdade fosse dita, tinha plena consciência da presença da rainha Catarina. A cabeça dela oscilava para a frente, pouco faltando para que o queixo lhe tocasse
no peito. Durante um breve momento de indignação, Xavier pensou que ela teria adormecido durante o que, de certeza, era o melhor desempenho de toda a sua vida.
- Já podeis fazer as vossas perguntas - disse ele numa voz salmodiada.
Quando a rainha não disse nada, teve de repetir o que dissera num timbre de voz um pouco mais elevado. A cabeça de Catarina endireitou-se de repente. Passou a mão
pelo rosto, como se quisesse obrigar-se a manter-se mais alerta.
- Dizei-me o que é que o futuro me reserva - disse a rainha. - O que é que o próximo ano me trará?
- Vejo riqueza e prosperidade, uma nova vontade de viver enquanto os vossos navios navegam pelo oceano para colherem para vós todas as riquezas e mistérios do Novo
Mundo.
- E quem é que vedes a chefiar essa expedição?
Durante breves momentos, Xavier sentiu a antiga tentação, usar a sua influência sobre Catarina de Médicis para favorecer os seus próprios interesses. Mas já se encontrara
muito perto de vender a alma àquela mulher.
- Essa parte da visão não me surge com clareza - respondeu Xavier.
- Realmente? - murmurou a rainha. - E o que é que o futuro tem de reserva para a minha jovem inimiga, a Megera?
Xavier franziu os sobrolhos como se estivesse profundamente concentrado. Cerrou os olhos.
- Ela... ela vai perecer de pneumonia. Qualquer memória da sua existência começará a desaparecer e a sua lenda será esquecida.
Xavier ficou um pouco surpreendido consigo próprio. Mas de onde é que aquela previsão tinha surgido? Na sua mente, não era Meg que ele via a desaparecer na sepultura,
mas sim Catarina de Médicis.
O silêncio imperou depois desta profecia, enquanto Xavier aguardava a pergunta seguinte da rainha, que acabou por perguntar:
- Qual é o vosso maior receio?
A pergunta surpreendeu tanto Xavier que abriu os olhos. Mas ficou ainda mais surpreendido quando deparou com a rainha debruçada sobre si. Longe de ter uma aparência
enfraquecida, os seus olhos fitavam-no com uma expressão coruscante.
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- Qual é o vosso maior receio? - repetiu ela
Xavier sentiu o olhar penetrante nos seus pensamentos, qual ferro ao rubro. Antes de poder impedi-lo, as imagens antigas desfilaram pela sua mente, ser abandonado
pelo pai, ter sido feito prisioneiro pelos espanhóis, os dias intermináveis que passara acorrentado aos remos da galé.
Baniu essas recordações, endurecendo a sua expressão e esforçando-se por não se atraiçoar.
- Não estou a perceber essa pergunta - replicou Xavier. Catarina inclinou a cabeça de lado, fitando-o com um sorriso.
- Mas que estranho. Era isso o que a vossa mãe costumava dizer sempre quando tentava furtar-se às minhas perguntas. Mas foi uma tática que também nunca resultou
comigo.
- A minha mãe?
- Marguerite de Maitland.
Xavier ficou a olhar fixamente para ela, tendo a sensação de que o ar que tinha nos pulmões congelava perante a expressão arrepiante dela. Como é que era possível
que ela soubesse ou tivesse adivinhado? Mas isso não parecia ter importância. Xavier percebeu claramente que o jogo tinha chegado ao fim.
Deixara de ser o jaguar ou o poderoso necromante, não passando de um homem que se ridicularizava a si próprio ao ajoelhar-se parcialmente despido perante uma rainha
sobranceira. Sem dúvida que essa havia sido a intenção da rainha Catarina.
Mas Xavier recusava-se a dar-lhe a satisfação de ver como se sentia angustiado ou atemorizado. Pondo-se de pé, pegou na camisa que despira, voltando a vesti-la.
- Não vos dei autorização para acabardes o vosso desempenho, monsieur.
- Está-me a parecer que não vale a pena prosseguir. É por demais evidente que o vosso desempenho foi muito melhor do que o meu.
- O quê? Não protestais a vossa inocência? - perguntou-lhe a rainha, trocista. - Não procurais negar quem sois?
- Nunca desperdiço o meu fôlego a negar o que é inútil negar. - Xavier vestiu o gibão com uma despreocupação que mascarava a tensão que sentia. O seu olhar percorreu
o salão, procurando uma oportunidade de poder escapar. A dada altura durante o seu transe, tinham surgido dois robustos guardas no salão sem que ele se tivesse apercebido,
os quais bloqueavam
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a ombreira da porta. Xavier suspeitava de que estariam mais homens no lado de fora da porta.
Não tinha arma nenhuma. Havia sido forçado a entregar a sua espada antes de ser admitido à presença da rainha. Olhou especulativamente para a janela, mas Catarina
pareceu ter adivinhado os seus pensamentos.
- Seria uma queda enorme até ao solo, capitão. Não obstante serdes apelidado de Jaguar, duvido que fôsseis capaz de cair de pé.
- Espero que, pelo menos, os vossos esforços no sentido de fazerdes de mim parvo vos tenha dado prazer - disse Xavier, estreitando os lábios num pequeno sorriso.
- De facto, senti muita satisfação - admitiu ela.
Catarina mostrava-se irritada. Talvez tivesse pensado que naquela altura já ele se teria rojado aos seus pés, suplicando-lhe que tivesse misericórdia. com um gesto,
indicou aos guardas que o prendessem. Xavier tentou resistir, mas as suas tentativas eram fúteis. Os guardas amarraram-lhe as mãos diante do corpo, mas nem assim
deixou de olhar para a rainha com uma expressão de desafio.
- É uma pena - disse ela num tom ronronante. - Sois um espécime masculino magnificente, implacável e astuto. Quem é que haveria de pensar que a tolinha da Marguerite
e o nobre mas fraco Chevalier Louis Cheney seriam capazes de gerar um filho como vós?
A rainha passou os dedos à largura da garganta dele por cima da curvatura da cicatriz.
- A vossa mãe morreu no convento contíguo a este palácio. Sabíeis isso? Estou em crer que ela continuou a ter saudades do seu chevalier até soltar o último suspiro.
Ficou com o coração dilacerado por ele nunca mais ter voltado para junto de si. Mas se ele tivesse regressado, teria sido para junto da sua esposa. Regra geral,
é o que todos os homens acabam por fazer.
- A sério? Ouvi dizer que o vosso marido passou as suas últimas horas de vida a chamar pela amante.
O rosto de Catarina cobriu-se de um intenso rubor, esbofeteando-o com todas as suas forças. Embora a cabeça de Xavier tivesse descaído para o lado e sentisse a face
a arder, continuou a fitá-la com um sorriso provocador.
A rainha afastou-se dele com brusquidão, respirando fundo até readquirir o domínio das suas emoções.
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- Já chega desta conversa. Só tenho uma última pergunta que quero fazer-vos. - Mostrou-lhe o pequeno frasco quase vazio. - Onde é que realmente arranjastes isto?
- Não sei, mas partilhar o conteúdo convosco foi, obviamente, um grande erro.
- É óbvio que foi. Nunca me deparei com a receita de um elixir tão potente como este, não em nenhum livro de feitiçaria que eu tenha possuído. Onde é que o encontrastes?
- Fui buscá-lo ao rio Sena. Muito provavelmente, conterá vestígios do sangue desses huguenotes que haveis chacinado há tanto tempo.
A rainha soltou um som sibilado de fúria. Xavier couraçou-se para outra agressão, mas os olhos dela perscrutaram os seus, optando por atacar a mente de Xavier. Mas,
desta feita, ele estava preparado para ela. Bloqueou os seus pensamentos, gorando todos os esforços de Catarina de Médicis, que ergueu o frasquinho.
- Sei qual é a origem desta infusão. Só pode ter vindo do Livro das Sombras e quem preparou este elixir foi a Megera, a rapariga que afirmastes que não passava de
uma palerma, uma imbecil.
- Se tendes tanta certeza disso, porque é que estais a perguntar-me?
- Porque quero ouvir-vos a admiti-lo.
Xavier comprimiu os lábios. Tinha traído Meg uma vez. Recusava-se a fazê-lo de novo.
Catarina fitou-o demoradamente e depois riu-se.
- Muito bem. Continuai com essa charada de mostrar nobreza da vossa parte, se é isso que desejais, capitão. Mas devo dizer-vos que é um desempenho muito pouco convincente.
Eu própria terei oportunidade de interrogar Megera dentro de pouco tempo. Sei que ela se encontra na ilha Encantada.
- Não obstante ser uma ilha tão pequena, é um lugar bastante difícil de esquadrinhar - retorquiu Xavier numa voz arrastada. - A Ariane certificar-se-á de que nunca
conseguireis encontrar a Meg.
- Há muito tempo que manter uma relação de paz com a Senhora da Ilha Encantada deixou de me interessar. A Ariane não poderá proteger ninguém se estiver morta. vou
enviar um exército com ordens para chacinar todas as Filhas da Terra que vivam nessa maldita ilha, se isso for necessário para me apoderar da Rosa de Prata.
- Oh, e tendes essas forças militares ao vosso dispor? Pensei que precisaríeis de todos os soldados apenas para manter o duque de Guise longe
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do vosso palácio - ripostou Xavier, provocador. Mas a verdade é que lhe era cada vez mais difícil manter a calma, para conseguir ocultar o muito que a ameaça de
Catarina o alarmava.
- Verdade seja dita, sempre deplorei o uso da força bruta. - Os lábios dela curvaram-se num sorriso matreiro. - Não sois o único a ter conhecimento de Megera e de
quais são os lugares onde ela prefere estar na ilha Encantada. Talvez eu devesse interrogar essa vossa empertigada amiga inglesa. Como é que ela se chama? Ah, sim.
Jane.
A mera menção do nome de Jane foi o suficiente para acabar com a fachada de frieza de Xavier.
- Lady Jane Danvers não tem nada a ver com este assunto. Torturai-me, enforcai-me, arrastai-me pelas ruas e esquartejai-me se isso vos divertir, mas deixai a Jane
em paz e sossego.
O sorriso de Catarina rasgou-se.
- Não tenho a mínima intenção de vos matar, Xavier, porque agora já estou a par de qual é o vosso maior receio. vou manter-vos agrilhoado na minha masmorra mais
escura e insalubre durante o resto da vossa vida. Depois de eu ter usado a vossa Lady Jane, talvez possa entregá-la a vós. A vossa prisão será o caixão dela e podeis
acabar os vossos dias a ver as ratazanas a roerem os ossos dela.
Xavier rosnou quando deu uma forte guinada com uma força que tinha origem no medo e na raiva. Mas era-lhe impossível libertar-se das mãos dos seus captores.
Catarina observou os esforços dele por uns momentos, mas depois fez um gesto com uma expressão de indiferença e tédio, indicando que o levassem.
- Levem-no daqui para fora. Para já, levem-no para a Bastilha para arrefecer as ideias.
Xavier invetivou-a sem qualquer contenção enquanto os guardas o arrastavam para fora do salão. Continuou a tentar debater-se até o mais corpulento lhe dar um violento
murro no estômago. Arfou de dor e ficou sem fôlego. Xavier deixou de resistir, esforçando-se por recuperar a respiração.
"Pensa", disse para consigo. Continuar a debater-se cegamente não lhe traria qualquer proveito, além de ficar com o corpo todo pisado. Já se tinha visto em circunstâncias
piores do que aquela. Precisava de se acalmar e avaliar a situação.
Mas isso era-lhe impossível devido ao estado de pânico em que se encontrava e com um único pensamento na cabeça. Jane. Aquela bruxa tinha
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a intenção de a perseguir e, naquele momento, era muito provável que ela estivesse de joelhos algures, a rezar ansiosamente para que ele voltasse são e salvo para
junto de si.
Xavier esperava que houvesse alguém lá no alto que ouvisse as preces dela, porque seria preciso um milagre para que saíssem daquela situação. Flanqueado por quatro
guardas, foi levado para o pátio dos estábulos, onde um dos cavalos estava a ser atrelado aos tirantes de uma carroça.
Xavier tentou fincar os calcanhares, sabendo de antemão que, assim que fosse encarcerado na Bastilha, não teria qualquer possibilidade de fuga.
Os guardas limitaram-se a socar-lhe a cabeça e a empurrá-lo para a frente. Escorregou e caiu violentamente de joelhos.
Sentia os ouvidos a zumbirem por causa dos socos, que eram acompanhados das imprecações dos guardas. Apercebeu-se vagamente de outros sons, de vozes elevadas que
vinham da direção da rua.
Xavier levantou a cabeça e viu um pequeno tumulto que estava a ter lugar, pessoas a correrem enquanto gritavam um nome repetidamente.
- De Guise! De Guise!
Conseguiu aperceber-se da aproximação de homens a cavalo, com um ligeiramente à frente dos demais, um homem alto e de pele morena.
Um dos guardas inclinou-se para baixo com o intuito de obrigar Xavier a pôr-se de pé, mas o homem ficou petrificado, olhando com fixidez e consternação. Os outros
guardas mostravam-se igualmente consternados perante a aproximação do cavaleiro e foi então que Xavier viu a sua oportunidade.
Recuou, batendo com a cabeça violentamente no rosto do guarda mais próximo. Ouviu o gratificante barulho de ossos a serem partidos quando fraturou o nariz do homem.
Sentia a sua própria cabeça a latejar, mas Xavier ignorou as dores. Embateu com o ombro num outro homem, que perdeu o equilíbrio.
Xavier desatou a fugir, mas tinha os movimentos tolhidos por ter as mãos amarradas, contudo, os guardas também se encontravam numa situação desvantajosa. A Rainha
das Trevas queria-o vivo, consequentemente, não podiam disparar quaisquer armas.
Xavier correu em frente, furando por entre as pessoas que, entretanto, começaram a juntar-se na rua, cada vez em maior número. Não se deteve para poder pensar e
nem sequer se arriscou a olhar para trás enquanto continuava a correr em frente.
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Só depois de ter percorrido várias ruas e entrado num beco é que se atreveu a parar para recuperar o fôlego. Encostou-se a uma parede de tijolos, com a respiração
arfante, enquanto se punha à escuta, tentando ouvir sons de passos que se aproximassem, mas não ouviu nada.
Ou tinha conseguido fugir aos guardas por entre a multidão ou eles haviam sido incumbidos de uma missão mais premente, proteger o Hotel de la Reine das forças militares
do duque de Guise que se aproximavam.
Xavier mal conseguia acreditar na sua sorte. Ou seria um verdadeiro milagre? O que quer que fosse, ele não era merecedor depois de todas as suas atitudes irresponsáveis,
a arrogância que o levara a acreditar que conseguiria ludibriar a Rainha das Trevas. Receava ter agravado ainda mais a situação de Meg e das mulheres da ilha Encantada.
Mas teria tempo mais do que suficiente para amaldiçoar a sua própria estupidez mais tarde. Naquele momento, precisava de tirar o diabo daquela corda das mãos e de
ir ter com Jane.
Catarina de Médicis sentava-se à sua escrivaninha com o cálamo na mão, fazendo uma pausa para saborear o seu triunfo sobre Xavier. Finalmente, tinha conseguido quebrar
o patife arrogante. Agora tinha de emitir um mandado de prisão para a detenção de Lady Jane Danvers e, ainda mais importante, arquitetar os seus planos para a captura
de Megera.
Vários anos antes, o filho enviara um pequeno exército de caçadores de bruxas com a missão de invadirem a ilha Encantada. Haviam causado bastantes estragos, incendiando
casas e destruindo bens, contudo, a maior parte das Filhas da Terra, em especial, Ariane e as irmãs, tinha conseguido fugir.
Acontecia que aquelas mulheres conheciam a ilha bem de mais, estando familiarizadas com os muitos lugares onde podiam esconder-se, particularmente na parte mais
erma e rochosa da ilha. Catarina poderia contar com Xavier e aquela mulher, a Danvers, como reféns. Mas seriam eles o suficiente para a colocar numa posição vantajosa
para os trocar pela Rosa de Prata? Ou a ameaça de outra invasão seria suficiente para levar alguém da ilha a atraiçoar a rapariga?
A rainha necessitaria de forças militares bastante substanciais para que a ameaça parecesse genuína e, como Xavier acentuara tão impertinentemente, ela não dispunha
dessas forças naquele momento.
Enquanto Catarina refletia sobre essas dificuldades, foi interrompida por um dos guardas que entrou de rompante no salão. O homem tinha o nariz muito inchado, além
de ter o rosto e a túnica manchados de sangue.
A rainha preparava-se para repreender o homem por se apresentar perante ela naquele estado quando, por baixo dos hematomas e do inchaço, reconheceu o capitão Arnaud,
o homem que incumbira de escoltar Xavier até à Bastilha.
Ficou tensa com uma suspeita extremamente desagradável, pondo-se de pé.
- O que é que isto significa, capitão? Não me diga que deixou escapar esse vilão - disse Catarina num tom de voz que não augurava nada de bom.
- P... peço desculpa, majestade. Foi impossível evitar que ele fugisse. De Guise... - A voz de Arnaud era tão pastosa que Catarina quase não conseguia perceber o
que o homem dizia. Era impossível que ele tivesse dito que...
- De Guise? O que é que o duque de Guise tem a ver com alguma coisa do que se está a passar?
- Ele... ele está aqui.
- O quê!? - retorquiu Catarina com a respiração arfante. - Idiota insolente! Estás... estás a mentir.
- Não, majestade. Mas ide à janela para poderdes ver com os vossos próprios olhos.
com o coração a bater apavorado, atravessou o salão num passo cambaleante. Da janela, via a multidão a juntar-se na rua, forçando o acesso ao pátio do seu próprio
palácio, a despeito dos esforços dos seus guardas, que tentavam impedir as pessoas de avançarem.
- De Guise! De Guise! Vive o duque de Guise! - era o grito que se ouvia.
A multidão apartou-se para dar passagem a uma figura alta e de expressão arrogante que inclinava a cabeça à esquerda e à direita, apertando as mãos que se estendiam
para ele. Havia mulheres que choravam e se atiravam aos pés do homem, beijando a bainha do seu manto, como se ele fosse o próprio Senhor que tivesse descido à Terra.
Xavier e a sua fuga ficaram reduzidos a uma insignificância. Catarina levou a mão à garganta num gesto de angústia ao ver que o seu maior pesadelo se havia concretizado.
De Guise. Ali, em Paris. Seria possível que o sentido de oportunidade daquele miserável fosse mais aziago?
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Aquele pensamento esteve prestes a provocar-lhe uma crise de riso histérico. Mas haveria alguma altura mais apropriada para a chegada do seu mais temido inimigo?
A rainha respirou fundo, forçando os pulmões a encherem-se de ar. Aquele não era o melhor momento para se entregar ao medo ou ao pânico. Só existia uma maneira de
ela conseguir sobreviver àquela situação, da mesma maneira como sempre fizera, graças ao seu sangue-frio e argúcia.
Quando o duque de Guise entrou no seu salão, Catarina conseguiu saudá-lo com um mínimo de dignidade. O duque avançou para ela num passo determinado. Bem-parecido
e vigoroso, a cicatriz na face de François de Guise reforçava ainda mais a sua reputação como o general mais proeminente, o herói de inúmeras batalhas. O deus da
guerra Ares e o belo Apoio combinados. Ele era tudo o que o seu filho devia ter sido e não era, refletiu Catarina com amargura.
Aquele pensamento só fez com que odiasse o duque ainda mais, mas ocultou a aversão que lhe tinha sob uma fachada glacial.
- Majestade. - O duque de Guise fez-lhe uma vénia rasgada, ajoelhando-se sobre um joelho diante da rainha. Do mal o menos, o homem continuava a fingir o respeito
que lhe era devido.
Catarina conseguiu estender a mão sem tremer quando lhe indicou que se levantasse. Quando o duque lhe beijou as pontas dos dedos numa atitude de mera formalidade,
a rainha dirigiu-lhe a palavra com aspereza.
- Que traição é esta, monsieur?
As sobrancelhas do duque arquearam-se numa expressão magoada de surpresa.
- Não se trata de uma traição, majestade. Por que motivo é que haveis utilizado essa palavra?
- Porque sabeis que o meu filho, o rei, vos proibiu de entrar em Paris com o vosso exército.
- O que não fiz. Vim sem grande alarido apenas com uma mão-cheia de homens do meu séquito pessoal.
Portanto, tinha sido assim que o duque conseguira transpor as portas de Paris sem desencadear um confronto com as tropas do rei.
Catarina de Médicis contraiu os lábios, não se deixando enganar pelos protestos de inocência do duque. Sim, tinha chegado apenas com uma mão-cheia dos seus homens,
só porque o arrogante homem estava bem ciente de que não precisava de mais. O seu exército encontrava-se entre:
a população, os seus tresloucados seguidores que podiam ficar fora de controlo de um momento para o outro. A turba extasiada que gritava o nome do duque abaixo das
janelas do seu palácio era muito mais perigosa do que quaisquer tropas com treino militar.
- Qual foi o motivo que vos trouxe aqui tão inesperadamente? perguntou Catarina de Médicis num timbre de voz autoritário. - É impossível que tenhais tido qualquer
outro motivo que não seja destronar o vosso legítimo soberano.
- Não, majestade, juro-vos que isso não é verdade. - Num gesto dramático, o duque levou a mão ao coração, espalmando-a. - Existe alguém que tem andado a encher a
cabeça do rei com mentiras a meu respeito. Eu sou o súbdito mais leal de sua majestade, o rei. Só vim a Paris movido pelo maior desespero de poder defender-me e
para voltar a estar nas boas graças do meu soberano.
A rainha fitou-o com um olhar penetrante com o intuito de aprofundar os olhos dele. A poção ajudara a restabelecer uma grande parte das suas antigas capacidades.
Tinha conseguido penetrar as defesas de Xavier, mas somente por o ter apanhado de surpresa.
Pelo contrário, o duque estava muito na defensiva, demasiado bem preparado para a perscrutação a que ela desejava sujeitá-lo. Não conseguiu mais do que um fugidio
vislumbre dos pensamentos dele, mas foi o suficiente para a tranquilizar.
Ele não viera a Paris com quaisquer intenções de destronar o filho. Pelo menos, por enquanto. Mas, sendo assim, o que diabo é que o homem pretendia? Decerto que
teria uma razão mais importante para além da que apresentara. Quem lhe dera fazer alguma ideia sobre o que seria. Nunca tinha gostado de andar às apalpadelas na
escuridão.
Entretanto, o duque recuou, fazendo-lhe outra vénia rasgada.
- O único motivo que me trouxe aqui foi assegurar a vossa majestade que só tenho boas intenções. E agora tenciono pôr-me a caminho do palácio para me colocar ao
serviço do meu rei.
O coração da rainha começou a bater mais depressa, tal o alarme que sentia. Era possível que, de momento, o duque de Guise não tivesse intenções malévolas para com
o rei, todavia, Catarina não podia responder pelo filho, Henrique, do mesmo modo que não podia responder pelo temperamento inconstante dele.
Se o duque de Guise era estúpido ou arrogante ao ponto de entrar no Louvre acompanhado apenas de uma mão-cheia dos seus homens, Catarina
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receava o possível desfecho dessa atitude. Apesar de aterrorizada perante a perspetiva de enfrentar a multidão nas ruas da cidade, só lhe restava uma alternativa.
- Muito bem - disse a rainha. - Uma vez que tencionais falar com o rei, insisto em acompanhar-vos.
Jane tinha prometido que permaneceria em casa a salvo de qualquer perigo até Xavier voltar. Mas ao cabo de uma hora a andar de um lado para o outro muito preocupada,
não conseguiu suportar aquela situação por mais tempo.
Decidiu recorrer ao consolo que a acalentara durante os piores períodos da sua vida. Dirigiu-se para a igreja mais próxima e entrou para rezar. O ar estava fresco
na nave penumbrosa onde reinava a quietude, um contraste com o calor e o barulho que imperavam nas ruas. A atmosfera estava impregnada de um aroma reconfortante
a incenso que dava a impressão de se ter entranhado nas próprias paredes, concedendo bênçãos a inúmeras décadas de pecadores que procuravam redenção.
Jane acendeu uma vela e ajoelhou-se diante do altar lateral onde se via uma imagem da Virgem Maria.
- Mãe Sagrada, rogo-vos que intercedais por Louis Xavier. Tenho a certeza de que sabeis que ele bem no fundo é um bom homem. É... é possível que ele nem sempre trilhe
os caminhos mais honestos, mas as suas intenções são puras e, por favor, protegei-o da rainha e mandai-o são e salvo para junto de mim. Se atenderdes a esta minha
prece, eu prometo - Mas Jane não teve oportunidade de completar a sua promessa. Ouviu o som retumbante de botas que se dirigiam a si, percorrendo a nave. Olhou em
volta e inicialmente ficou cheia de júbilo ao ver Xavier, que se encaminhava num passo apressado para junto de si, mas, logo de seguida, ficou perturbada ao ver
o aspeto dele.
Tinha o cabelo ensopado em suor e estava num grande desalinho e com a testa ferida - e aquilo era sangue seco que tinha na camisa? Jane persignou-se rapidamente
antes de se pôr de pé.
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Xavier aproximou-se dela a cambalear.
- Jane, ainda bem que te encontro. OJambe disse-me que pensava que tinhas vindo para aqui. Eu devia ter adivinhado isso. Mas esta não é a melhor altura para estares
a rezar. Vamos. - Xavier pegou-lhe na mão, apressando-a em direção à saída da igreja.
- Mas o que é que se passa? Aconteceu alguma coisa de mal? - Franziu a testa numa expressão de censura ao ver o objeto que ele tinha em volta do pulso. - Isso é
uma corda?
- Sim, é. Consegui libertar-me, mas não consegui livrar-me do raio da corda. Os homens da guarda da rainha sabem como dar um nó quase impossível de desamarrar.
- A guarda da rainha!? - gritou Jane, mas lembrando-se de que ainda se encontrava na igreja, baixou o tom de voz até não passar de um sussurro. - Prenderam-te?
- Correu tudo mal - respondeu Xavier com uma expressão sombria -, tal como tu receavas. Podes dar-me uns bons tabefes e chamar-me de idiota mais tarde. Mas, neste
momento, a rainha talvez seja a menor das nossas preocupações.
Jane não era capaz de imaginar o que ele quereria dizer com aquilo até Xavier ter empurrado a porta da igreja, abrindo-a e puxando-a para fora no momento em que
o sino da igreja começou a badalar. Jane pestanejou quando saiu para a intensa luz do Sol. Depois da frescura e quietude do interior da igreja, a agitação que tinha
lugar nas ruas como que lhe agrediu os sentidos numa enorme vaga de calor e barulho. O clamor dos sinos, o ressoar de pés que corriam, os gritos alvoroçados.
Jane olhou em redor, perplexa perante o súbito fluxo de pessoas que saíam das lojas e de suas casas, como um jorro de água de uma cisterna rebentada. Jane nunca
tinha visto tanta gente junta. Tinham de ser várias centenas de parisienses que se juntavam na rua, os rostos iluminados com uma expressão de êxtase quase frenético.
- Pensando melhor - resmungou Xavier -, esta talvez seja uma boa altura para rezar.
- O que é? O que é que se está a passar? - perguntou Jane.
- É o duque de Guise. Ele veio a Paris e receio que a situação dê muito para o torto.
Xavier tentou levá-la a percorrer a rua, mas ainda não se tinham afastado muito da igreja quando foram apanhados na debandada. Jane esforçou-se
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por suprimir uma sensação de pânico quando se viram rodeados pela multidão. Empurrada de todas as direções, quase foi separada de Xavier, que a enlaçou pela cintura,
conduzindo-a para um lugar relativamente seguro no vão da porta de uma barbearia. Pouco faltou para que ela ensurdecesse com o barulho.
- De Guise! De Guise! - gritava a turba.
À distância, Jane apercebeu-se da aproximação de um homem alto de cabelo preto que montava um cavalo branco. Tirou a boina enfeitada com uma pena num cumprimento
dirigido à multidão que gritava pelo seu nome. Também vislumbrou uma liteira que transportava uma mulher de expressão carrancuda toda vestida de negro. Jane pôs-se
em bicos de pés de maneira a fazer-se ouvida acima do troar da multidão e falando ao ouvi-
do de Xavier.
- Aquela é a rainha? Xavier acenou que sim.
A liteira seguia aos solavancos ao lado do cavalo do duque, quase como se a rainha fosse prisioneira dele. Apesar de as pessoas escarnecerem e insultarem Catarina,
gritando-lhe de todas as direções, esta olhava em frente com uma expressão empedernida de indiferença.
- com os diabos! - exclamou Xavier. - Independentemente do que se possa dizer a respeito da velha bruxa, há que reconhecer que coragem é coisa que não lhe falta.
- Ela foi feita prisioneira do duque de Guise? - perguntou Jane.
- A dimensão desta multidão é alarmante, mas toda a gente parece jubilante.
- De momento, sim. Mas aposto que o rei não vai saudar o duque com satisfação. Se sua majestade recorrer à Guarda Suíça, a situação descambará com muita rapidez.
Quando o duque e o seu séquito passaram pelos dois, Xavier virou-se para Jane.
- O Pietro e o Jambe devem estar à nossa espera na estalagem. Temos de sair de Paris antes que alguém decida fechar as portas da cidade.
- Xavier, não posso partir. Não sem a Abigail.
?-Jane, o mais certo era a mulher abandonar-te à tua sorte sem sequer pensar duas vezes - ripostou Xavier praguejando.
- Não, ela não faria isso. Mas ainda que isso fosse verdade, não faz a mínima diferença para mim o que ela faria ou não. Não sou capaz de me comportar dessa maneira.
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- Está bem, como queiras - resmungou Xavier. - Vamos buscá-la. Mas temos de nos apressar.
Jane respirou fundo quando deixaram a segurança do vão da porta da barbearia. com toda a gente determinada a seguir atrás do duque, era como se estivessem a nadar
contra a corrente. Mas Xavier começou a abrir caminho por entre a multidão com Jane agarrada a si, avançando centímetro a centímetro.
- Viva o duque de Guise!
Os gritos como que agrediam Catarina de Médicis, que se firmava contra os solavancos da liteira. O percurso através da cidade estava a ser impedido a espaços pelos
muitos seguidores do duque. A frágil barreira de madeira da liteira e a boa vontade dos nobres que seguiam a cavalo ao seu lado eram tudo o que separava a rainha
da turba.
Os parisienses desprezavam-na tanto quanto amavam o duque de Guise. Ver-se no meio deles era como estar perigosamente perto das fauces de uma besta esfaimada que,
de momento, estava presa por uma trela. O duque de Guise só precisava de soltar a trela para Catarina de Médicis ser devorada.
O ódio reprimido da multidão era palpável, ameaçando privá-la de ar. A rainha abafou um arquejo enquanto se esforçava por manter uma expressão impávida e fria, de
maneira a que ninguém se apercebesse do muito terror que se apoderara de si.
Os seus pensamentos ameaçavam um retorno ao passado quando tremera diante de outra turba ameaçadora.
"Dêem-nos a rapariga. Vamos enforcá-la nas muralhas da cidade."
Catarina rangeu os dentes, fazendo um esforço para se manter no presente e expulsar os ecos da pior recordação que guardava da sua meninice. Não podia dar-se ao
luxo de permitir que a reduzissem ao estado de uma garotinha a tremer que nem varas verdes.
A sua vida, bem como a do filho, dependia inteiramente da sua capacidade de se manter calma. Sabia de antemão que nunca poderia confiar que Henrique procedesse com
discernimento durante aquela crise.
A rainha respirou fundo, obrigando-se a descontrair até mesmo enquanto os seus ouvidos eram assaltados pelo rugir da multidão, os gritos constantes a troarem na
sua cabeça ao ponto de pensar que o crânio não tardaria a abrir-se ao meio.
- De Guise! Deus abençoe o duque de Guise.
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Este mantinha uma mão firme nas rédeas do seu cavalo, enquanto respondia aos gritos com acenos da cabeça e sem parar de sorrir. Sem dúvida que o homem se considerava
um grande herói conquistador absolutamente invencível.
Em pensamento, Catarina de Médicis amaldiçoou o orgulho insofrível e a ambição desmedida do homem. Ele acreditava que só precisava de entrar no palácio para atemorizar
o rei.
Mas Catarina conhecia o seu filho bem de mais. Era possível que Henrique fosse fraco e indeciso, sendo muito frequente que carecesse de coragem, mas o duque não
fazia a mais pequena ideia daquilo de que Henrique era capaz se tivesse um dos seus acessos de raiva desenfreada, o que Catarina tinha de impedir a todo o custo
até conseguir encontrar uma maneira de dominar aquela situação.
Em circunstâncias normais, o trajeto até ao Louvre seria curto. Mas quando chegaram ao pátio do palácio, Catarina tinha a sensação de ter sido empurrada e agredida
durante dias a fio.
Quando a ajudaram a sair da liteira, já se sentia exausta pela tensão a que estivera obrigada para dominar o terror que se apoderara de si. Teria acolhido de bom
grado uma breve pausa, mas não lhe foi concedida.
O duque de Guise, movido pela sua impaciência, avançou à frente dela até à escadaria que dava acesso aos aposentos particulares do rei, ignorando os pedidos da rainha
para que esperasse por si. Não tinha outra alternativa que não fosse estugar o passo, seguindo atrás dele. Mas até mesmo nos seus melhores dias, nunca poderia ter
acompanhado a passada larga do duque.
Catarina deteve-se a meio das escadas com falta de ar e sentindo as pernas enfraquecidas, as quais ameaçavam faltar-lhe. Levou a mão à algibeira, de onde tirou o
frasco que continha o elixir. Restavam apenas algumas gotas, que eram preciosas. Bebeu um pequeno gole, esperando o familiar fluxo cálido que lhe restauraria as
forças. Sentiu o coração a bater a um ritmo tão acelerado que lhe era quase doloroso.
Mas obrigou-se a avançar. Chegou à antecâmara do rei num passo cambaleante, detendo-se uma vez mais para recuperar o fôlego e avaliar a situação. O que viu encheu-a
de apreensão.
Henrique tinha recuado até ao extremo mais afastado do aposento, como um animal acossado, não obstante estar rodeado da sua guarda pessoal, um grupo de homens bastante
irritadiços. Pouco mais eram do que
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mercenários. Por um mero punhado de moedas que lhes atirassem, nenhum deles teria o mínimo pejo em assassinar o duque de Guise.
Porque é que o homem tinha de ser tão idiota, pensou Catarina, dividida entre o medo e o desdém. A cabeça do duque estava cheia de noções aristocráticas de honra,
convencido de que era inatingível em virtude do seu sangue azul. O idiota dava a impressão de não ter a mínima noção do perigo que corria.
Quando Catarina chegou, o duque apresentava o seu caso com as respetivas alegações. Atemorizada, analisou o semblante do rei. Henrique estava muito vermelho e com
uma expressão dura e impassível. Mas Catarina conhecia bem de mais aquela impavidez do filho, era a calma que pressagiava a tempestade.
- Não vim aqui para ameaçar vossa majestade. Sou e sempre fui um vosso súbdito leal - declarou o duque. - O meu único desejo é que haja paz e desmentir as falsidades
com que todos os meus inimigos têm enchido os ouvidos de vossa majestade.
- Os vossos desejos são-me indiferentes, monsieur, apenas me interessa a vossa atitude de desafio. Haveis decidido vir a Paris, estando bem ciente de que vos proibi
expressamente de entrar na cidade. Como é que vos atreveis a fazer tábua rasa das minhas ordens?
Henrique desviou o olhar que mantivera no duque de Guise. Catarina apercebeu-se do olhar que o filho trocou com o comandante da sua guarda pessoal. O homem levou
a mão ao punho da espada.
Catarina avançou cheia de desespero.
- Majestade, suplico-vos que não causeis agravos ao duque. Monsieur de Guise só se atreveu a vir a Paris porque... porque eu o convidei a vir à cidade.
As palavras que a rainha proferiu pareciam ressoar pela câmara com a sonoridade de um tiro de pistola. Até mesmo o duque de Guise a fitou com uma expressão perplexa.
Fizeram-se alguns momentos de silêncio, como se os presentes tivessem sido fulminados, até o rei se aproximar dela com olhos que coruscavam de fúria.
Catarina recuava à medida que o monarca avançava em direção a ela. Durante uma fração de segundo, chegou ao ponto de ter medo do filho.
- Convidastes o duque de Guise? - perguntou o rei enraivecido.
- Portanto, também me haveis atraiçoado.
- Henrique! Sabeis bem que não é nada disso. Desde sempre que me esforcei por zelar pelos vossos interesses.
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- Os vossos próprios interesses, é o que quereis dizer.
- Mas não serão um único, os vossos e os meus interesses? - ripostou Catarina em VOz alta para ser ouvida pelo duque de Guise, humedecendo os lábios. - Tenho-me
sentido extremamente pesarosa devido à discórdia entre vós e o bom duque. É impossível que haja prosperidade para a França enquanto esta querela subsistir. Tendes
de me permitir que vos apresente uma proposta para que a paz seja estabelecida.
A rainha arriscou-se a abeirar-se mais do rei, de modo a poder sussurrar-lhe ao ouvido.
- Por amor de Deus, Henrique! Tenho consciência de que o comportamento do duque é uma afronta inqualificável à vossa autoridade. Mas tendes de refletir antes de
fazerdes alguma coisa que ambos viremos a lamentar. Por acaso ainda não vistes o que se está a passar fora dos portões do vosso palácio?
Sem saber como, conseguiu levar Henrique até à janela sem nunca deixar de olhar para o duque de Guise com uma expressão apaziguadora. A expressão na fisionomia do
duque era tão insolente e confiante que Catarina teria gostado de passar o homem a fio de espada pessoalmente.
Mas forçou-se a concentrar a sua atenção em Henrique. Quando este olhou pela janela, empalideceu acentuadamente ao ver as pessoas, cada vez em maior número, que
se juntavam fora dos portões do Louvre.
Catarina falou-lhe num tom de voz baixo e lapidar.
- Sei que quereis mandar prender o duque de Guise...
- Prendê-lo? Eu quero matá-lo!
- Pensai, Henrique! Se o duque não sair daqui são e salvo, o que é que estais a imaginar que nos acontecerá?
Os lábios do filho estreitaram-se numa linha sinistra.
- Isso não me interessa. Já estamos condenados. Se eu ceder uma vez mais perante este homem, deixarei de ser o rei de França.
- Deixareis de estar vivo se não o fizerdes. Aquela turba que estais a ver ao portão é apenas uma fração da multidão que está a encher as ruas em apoio do duque.
São às centenas, não, muito provavelmente milhares.
- Nesse caso, darei ordens à minha Guarda Suíça para que destaque tropas para o centro da cidade para os chacinarem a todos.
Catarina fechou os olhos por breves momentos, rezando por paciência.
- Se fizerdes isso, sem dúvida alguma que desencadeareis um confronto. O resultado será uma guerra sem tréguas e as ruas manchadas de
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sangue. Teremos um massacre que rivalizará com o da véspera do dia de São Bartolomeu.
- Paris transformou-se num tugúrio de traidores. Está a precisar de outra limpeza, a começar pelo duque de Guise - ripostou o rei, olhando para a mãe com uma expressão
desdenhosa. - Não costumáveis ser tão escrupulosa, mamã. Fostes vós e as vossas maquinações que incentivaram o massacre, com o objetivo de nos livrarmos dos nossos
inimigos huguenotes.
- E é ver o resultado que deu. A violência descontrolou-se completamente. A turba desenfreada fez o que bem lhe apeteceu durante dias a fio. É isso que pretendeis,
meu filho, ser saudado como um segundo Nero? perguntou Catarina, descaindo os ombros numa atitude de desalento. - Se é, muito bem. Aniquilai o duque de Guise. Tratai
de destruir Paris e, já agora, aniquilai-nos a todos nós.
O rei mordeu o lábio e pelos seus olhos passou uma centelha de incerteza.
- E o que é que queríeis que eu fizesse, minha mãe?
- Sede paciente durante mais algum tempo, negociai com o duque. - Quando Henrique respirou fundo, emitindo um sibilar de fúria, Catarina de Médicis pegou na mão
do filho. - A pouco e pouco, tenho vindo a recuperar as forças e a estabelecer planos no sentido de recuperarmos o nosso poder.
- E que planos são esses?
- Revelar-vos-ei quando estiverem prestes a dar frutos. Por agora, tendes de confiar em mim.
Henrique fitou-a de cenho carregado. Quer tivesse sido a populaça que via às portas do palácio ou alguma coisa que a rainha lhe tivesse dito, esta pensou ver a luz
da razão a retornar aos olhos do rei.
Libertando-se das mãos da mãe, Henrique voltou para junto do duque de Guise para o saudar à sua maneira taciturna habitual. Catarina soltou um suspiro trémulo de
alívio. Sem ter percebido bem como, tinha conseguido, uma vez mais, evitar uma situação catastrófica.
Mas durante quanto tempo?
Só conseguiu respirar tranquilamente depois de o breve encontro de Henrique com o duque de Guise ter acabado. Nada havia ficado resolvido, tal como ela esperara
que acontecesse. Mas, pelo menos, o duque sairia do palácio com vida. Catarina acompanhou-o, couraçando-se outra vez para enfrentar a hostilidade da multidão.
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Henrique manteve-se mal-humorado e em silêncio até ter a certeza de que a mãe já tinha deixado o palácio. Só então é que chamou o comandante da sua guarda, dando-lhe
as suas ordens.
- Enviai instruções a todos os comandantes. Quero que as minhas tropas sejam destacadas para o interior da cidade imediatamente. Quero que a ordem reine nas minhas
ruas. E assim que esta ralé tenha sido recambiada para as suas casas, passarei a estar em condições de lidar com Monsieur de Guise.
A igreja situava-se a pouca distância da casa da prima de Jane, mas quando chegaram ao pátio da residência de Abigail, sentia-se exausta e abalada.
Apressou o passo em direção à casa, seguindo à frente de Xavier. A primeira coisa com que se deparou foi com Violette, que estava agachada ao fundo das escadas,
mostrando-se aterrorizada.
Ao ver Jane, a rapariga levantou-se de um salto. Foi por pouco que não a derrubou quando se atirou para ela, fechando os braços em volta da sua cintura.
- Oh, Madame Danvers. É o fim do mundo! Toda a gente disse que isto iria acontecer. O rei está de conluio com os huguenotes para tirar Paris do domínio dos católicos.
Eles hão de vir para nos assassinarem a todos!
- Não digas disparates - retorquiu Jane, fazendo festas nas costas da criada para a acalmar.
- Não são nada disparates - disse Violette com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. - Eu ainda me lembro do som horrível de todos aqueles sinos quando era pequena.
Foi o mesmo sinal que antecedeu o massacre do dia de São Bartolomeu.
- Os sinos só estão a repicar para dar as boas-vindas ao duque de Guise, que regressou a Paris.
Mas aquela explicação não serviu de grande consolo a Violette.
- O... o duque recebeu ordens para se manter afastado de Paris. O rei vai ficar muito encolerizado. Ele chamará as suas tropas e o duque chamará as dele. Haverá
guerra nas ruas, matança e pilhagem.
A rapariga tremia que nem varas verdes.
- Provavelmente, seremos violadas e... cortar-nos-ão a língua e os seios à machadada.
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Jane ficou a olhar para Violette. Quem é que poderia imaginar que a acanhada rapariga possuísse uma imaginação tão sinistramente vívida?
- Vê se te acalmas, Violette. Não vai acontecer nada disso. O capitão Xavier garantirá a nossa segurança.
A rapariga espreitou pelo flanco do corpo de Jane para Xavier, mas até mesmo esta era forçada a admitir que ele, com aquele aspeto tão desalinhado, parecia mais
um saqueador do que um salvador.
Violette estremeceu e Jane quase foi obrigada a afastá-la de si à força.
- Onde é que está a tua senhora? Está lá em cima?
Aquela pergunta resultou numa nova crise de choro convulsivo da rapariga.
- Madame B... Benton partiu. Ela foi-se embora ao primeiro sinal de problemas.
- O que é que queres dizer com "ela foi-se embora"? - perguntou Jane, franzindo as sobrancelhas numa expressão de incredulidade. - Ela saiu sozinha com todo este
tumulto nas ruas?
- Não - respondeu Violette com um abanar de cabeça -, o Gérard foi com ela. Ele... ele foi procurar um cavalo e já se puseram a caminho de Calais.
- E a Abby nem sequer se deu ao trabalho de me deixar uma mensagem? - perguntou-lhe Jane.
- Ela disse-me para vos dizer que não podia esperar, mas que devíeis seguir para lá da melhor maneira que vos for possível.
- O melhor que me for... Raios partam isto! - praguejou Jane, deixando Violette de boca aberta de tão estupefacta que ficou. Jane sabia que a prima era uma mulher
volúvel e sem a mínima consideração por ninguém, mas aquela atitude ultrapassava todos os limites, até mesmo para Abigail.
- Vamos lá ver se eu consigo compreender o que se passou corretamente - interveio Xavier, avançando. - Esse Gérard é o marido da tua prima e voltou para junto dela?
- Não - respondeu Jane, sentindo a cara a arder de mortificação. Fora ela quem convencera Xavier a ir a casa de Abigail para que ela os acompanhasse. - Ele é o lacaio
- explicou, mal conseguindo olhar para ele de frente, receando que estivesse furioso.
Mas, para sua perplexidade, Xavier começou a rir a bandeiras despregadas.
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- A tua prima fugiu com o lacaio? Mas isso é uma delícia. Espero que, do mal o menos, ele seja bem-parecido.
- E é, monsieur - confirmou Violette com uma fungadela, o que fez com que Xavier desatasse a rir outra vez.
Surpreendendo-se a si própria, Jane deu consigo a juntar o riso ao dele. Talvez fosse a tensão das últimas horas que havia encontrado um escape, mas a verdade é
que ambos desataram a rir até ficarem à beira das lágrimas.
Xavier foi o primeiro a parar de rir abruptamente. Até mesmo o seu sorriso desapareceu de imediato enquanto se punha à escuta com toda a sua concentração.
- O que é que... - começou Jane a perguntar, pondo cobro ao seu próprio riso.
Mas Xavier silenciou-a com um gesto. Susteve a respiração, pondo-se também à escuta. Jane nunca estivera perto de um campo de batalha em toda a sua vida, mas até
ela reconheceu isso pelo que era - o som de fogo de artilharia à distância.
Ordenando-lhe que se deixasse ficar onde estava, Xavier saiu de casa num passo estugado. Mas Jane ignorou a ordem que ele lhe dera e correu atrás dele.
Não tiveram de ir longe para se inteirarem da origem do barulho. Viram um contingente das tropas do rei ao fundo da rua que estava a ser atacado por parisienses
em fúria armados com pedras e paus, com tudo a que podiam deitar a mão.
Não obstante as suas armas, as tropas eram substancialmente em menor número e não tinham por onde bater em retirada. O fundo da rua havia sido barricado com tonéis,
tábuas e pedras empilhadas.
Ouviu-se uma saraivada de tiros de pistola e empunharam-se espadas. Um dos soldados indefesos perante a fúria da multidão tentou trepar por cima da barricada, mas
foi puxado para baixo de imediato. A populaça rodeou o jovem, que estava aterrorizado, batendo-lhe com paus.
Jane gritou horrorizada, mas não havia nada que pudesse fazer. Xavier apressou-a para que voltassem para dentro de casa.
Jane acendeu as velas na sua alcova quando a noite caiu, trazendo um pouco de paz e sossego a um dia repleto de medo e tensão.
Jambe e Pietro tinham conseguido furar por entre a multidão, juntando-se a eles na casa de Abigail. As notícias que lhes levaram eram pouco animadoras.
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Haviam sido erguidas barricadas em vários pontos da cidade, suficientemente eficazes para travar o avanço das tropas do rei. A Guarda Suíça fora forçada a retroceder,
deixando os parisienses no controlo da cidade.
Olhando pela janela, Jane via as altas labaredas dos fogos à distância, ouvindo o som ocasional do disparo de uma arma de fogo, mas dava a impressão de vir de bastante
longe. Parecia que as hostilidades tinham cessado de momento, mas era impossível prever o que a manhã traria consigo.
Xavier e os seus homens haviam barricado as portas e entaipado as janelas da casa, revezando-se em turnos de guarda. Quanto a Violette, passara a maior parte do
dia escondida na despensa. Jane deduziu que a rapariga teria adormecido aí.
Sabia que ela própria devia tentar dormir algumas horas. Sentia-se exausta, mas nem sequer estava capaz de fechar os olhos. Ouviu um leve bater à porta antes de
Xavier ter entrado, trazendo um tabuleiro com queijo, pão e vinho.
Jane agradeceu-lhe, mas abanou a cabeça.
- Estou sem apetite nenhum.
- Tens de tentar comer alguma coisa, Jane. Mal comeste durante todo o dia. Pelo menos, bebe um pouco de vinho.
Para lhe fazer a vontade, Jane bebeu um pequeno gole de vinho. Passou a mão pelo cabelo até às pontas, apercebendo-se de que se tinha desprendido parcialmente do
carrapito.
- Devo estar um pavor.
- Aos meus olhos, pareces sempre maravilhosa - murmurou Xavier. Jane conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
- Sim, mas ambos sabemos como és um talentoso mentiroso.
- Mas não a respeito de tudo - retorquiu ele, com uma risada abafada, enquanto lhe prendia uma madeixa do cabelo atrás da orelha. O olhar de Jane prendeu-se no dele.
- Peço-te, por favor, que me digas a verdade, Xavier. O que é que pensas que acontecerá amanhã?
- Não faço a mais pequena ideia - admitiu ele. - O duque e o rei parecem estar num impasse, mas, mais cedo ou mais tarde, terão de chegar a um consenso. Só nos resta
esperar para ver. Tenho a certeza de que conseguiremos sair incólumes desta situação.
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- Se isso acontecer, não será graças a mim - retrucou Jane, afastando-se dele enquanto esfregava os braços. - É por minha culpa que estamos encurralados aqui. Fui
eu quem insistiu em que viéssemos buscar a Abigail. Não tenhas o mínimo pejo em dizer-me: "Eu bem te disse."
- Teria mais razão de ser se fosses tu a atirar-me com essas palavras à cara. O Pietro e o Jambe, bem como tu própria, avisaram-me de que não devia tentar enganar
Catarina de Médicis. Mas eu estava tão confiante em mim próprio que não dei ouvidos a ninguém. Subestimei a mulher e enganei-me redondamente.
Xavier soltou um suspiro.
- Se o duque de Guise não tivesse chegado quando chegou, nesta altura ambos seríamos prisioneiros da Rainha das Trevas e ela também estaria a preparar um ataque
com vista a invadir a ilha Encantada.
A luz da chama da vela refletia-se-lhe nos olhos escuros, espelhando o quanto se censurava a si próprio.
- Procedi de uma maneira inacreditavelmente estúpida, irresponsável e temerária.
- Mas inacreditavelmente corajosa. Não correste esse risco para ganho pessoal. Estavas a tentar fazer o que era melhor para a Meg e para todos na ilha Encantada.
- Sim, mas... - Xavier ficou em silêncio por uns momentos. - Não me parece que o tenha feito pela Meg ou sequer pelas minhas irmãs.
"Adotei essa atitude para te impressionar, Jane - acrescentou Xavier num tom de voz tão intenso como a expressão nos seus olhos. - Quando te inteiraste da verdade
naquele dia na ilha Encantada, não fui capaz de suportar a desilusão que vi nos teus olhos. Já me tinha habituado de mais à suavidade que se refletia nos teus olhos
sempre que olhavas para mim disse Xavier com um nó na garganta. - Muito embora eu saiba que não mereço a tua aprovação, anseio tanto por a merecer como preciso do
ar que respiro.
Jane olhou intrigada para ele.
- Mas porquê? Por que razão é que a minha opinião seria tão importante para ti?
- Porque te amo, minha tolinha.
Jane pestanejou. Jamais tinha esperado ouvi-lo confessar uma coisa daquelas. No entanto, aquilo era tão característico da maneira de ser de Xavier, atirar-lhe aquelas
palavras de modo tão direto e no meio de uma revolução.
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Jane fez menção de começar a rir, mas, em vez disso, as suas emoções foram mais fortes, expressando-se nas lágrimas que lhe corriam livremente dos olhos. Xavier
limpou-lhe as lágrimas das faces com os nós dos dedos.
- Acalma-te, minha querida, estou em crer que eu próprio choraria se soubesse que seria sobrecarregado com o coração de um patife tão grande. Mas não te importes
com isso. Estás muito a tempo de me dizeres que vá para o diabo.
Mas, em vez disso, Jane atirou-se para os braços de Xavier, encostando o rosto ao peito dele. Ele abraçou-a apertadamente, depositando-lhe um beijo no cimo da cabeça.
- Oh, Jane - murmurou com os lábios no cabelo dela. - Tentei manter-me afastado de ti, sabendo que o meu afastamento seria o melhor para ti. Tudo o que sempre almejaste
foi ter uma vida respeitável e em segurança.
- Não - retorquiu ela. - Tenho consciência de querer muito mais do que isso. Eu... eu quero ter a sensação de estar a transbordar de vida quando acordar todas as
manhãs. Quero dias cheios de prodígios, empolgamento e surpresas. Quero-te.
- Sinto-me feliz por ouvir isso porque sou egoísta de mais para voltar a deixar-te.
Jane fungou, tentando esboçar um sorriso por entre as lágrimas. Desencostou a cabeça do peito dele para poder fitá-lo.
- Nesse caso, espero que continues a ser sempre assim tão egoísta.
- Podes contar com isso, milady. Sou um vilão impossível de regenerar. - Xavier corroborou as suas palavras, beijando-a de uma maneira implacável como nenhum gentil-homem
respeitável faria, a língua a investir pelos lábios dela adentro com um tal ardor que ela ficou sem fôlego.
Só agora, quando voltava a estar nos braços dele, é que teve consciência do sofrimento que sentira durante as últimas semanas, como se sentira magoada e a sangrar
por dentro como se lhe faltasse uma parte de si.
Nos braços de Xavier, voltava a sentir-se em toda a sua inteireza, como se, depois de ter andado perdida, estivesse de volta aonde pertencia. A ameaça que a Rainha
das Trevas representava, a possibilidade de uma revolução em Paris, tudo isso ficou esquecido momentaneamente.
Beijando-se e acariciando-se, ambos caíram na cama possuídos de um enorme frenesim de paixão, despindo roupas impacientemente e fazendo amor como se fosse tanto
a primeira como a última vez.
Catarina de Médicis mantinha-se afastada das janelas, receando ser atingida pelo disparo de uma pistola inadvertidamente. O conflito entre a população de Paris e
o rei recomeçara aos primeiros alvores da manhã. A rainha perguntava-se se restaria alguma coisa da cidade depois de muitos mais dias de tumulto como aquele, no
entanto sentia-se demasiado cansada até mesmo para amaldiçoar o filho.
Desde sempre que Henrique havia sido fraco e vacilante. Quando o homem decidia agir, por que motivo é que isso acontecia sempre da maneira mais errada?
Ela advertira o filho para que não destacasse a Guarda Suíça para Paris, embora, durante alguns momentos, tivesse parecido que Henrique talvez fosse capaz de assumir
o controlo da situação.
Contudo, os cidadãos de Paris tinham estado estranhamente bem preparados para as ações militares do rei, tendo encurralado as tropas reais com as suas toscas barricadas.
Mas agora só havia um homem que pudesse pôr cobro a toda aquela loucura. Contudo, o duque de Guise estava sentado à mesa de conferência, a limpar as unhas calmamente,
à espera que a rainha se pronunciasse quanto à lista de exigências que ele lhe apresentara.
É claro que eram ridículas. Catarina olhou de relance para o papel que tinha nas mãos. O duque de Guise seria nomeado comandante supremo das forças armadas de França.
O primo do rei, o parente do sexo masculino mais chegado a ele, o rei de Navarra, um huguenote, seria excluído da linha de sucessão ao trono.
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Pior ainda, Henrique teria de excluir todos os seus favoritos do exercício de qualquer função de Estado, enquanto a guarda pessoal do rei devia ser dissolvida.
Catarina estava preparada, sem qualquer hesitação, para apor o seu selo real no acordo. O seu lema sempre fora prometer tudo e mais alguma coisa que pudesse conceder-lhe
mais um dia que lhe permitisse arquitetar um plano para poder retaliar. Mas sabia que Henrique nunca procederia com tanta sensatez. Preferiria morrer, arrastando-a
consigo para a morte.
Catarina passou uma vista de olhos pelo documento, tentando ganhar tempo, quando um mensageiro entrou intempestivamente no salão.
Devia ser um dos homens do duque, uma vez que inclinou a cabeça num sinal de respeito quando se abeirou dele, quase ignorando a presença da rainha.
- Meu senhor, o rei... - O homem estava sem fôlego, sem conseguir completar a sua frase.
O coração de Catarina parou por momentos, receando o pior, pensando que o filho, possuído de tanta raiva e amargura perante a situação, tivesse feito alguma coisa
desesperada, como deixar-se cair em cima da espada.
O que o mensageiro finalmente acabou por dizer era quase tão mau como essa possibilidade.
- O... o rei foi-se embora. Ele fugiu, pôs-se em fuga de Paris. Catarina ficou absolutamente em estado de choque, a lista que continha as exigências do duque a cair-lhe
das mãos. Sempre havia pensado que o filho era errático e fraco, mas nem sequer ela tinha considerado que fosse possível que Henrique fosse cobarde ao ponto de abandonar
o seu trono, a sua cidade e os seus amigos. Pior do que isso, que ele tivesse abandonado a própria mãe, deixando-a à mercê do pior inimigo dos dois.
Quando o duque de Guise se levantou da mesa, Catarina preparou-se para a sua fúria. Sem dúvida que ele pensaria que Catarina estava por detrás da fuga do filho,
que as suas negociações com ele não haviam passado de uma farsa para permitir que o rei fugisse.
- Está-me a parecer que o melhor é eu pôr-me a caminho para fazer o que estiver ao meu alcance para aplacar a populaça - foi tudo o que o duque se limitou a dizer.
- Receio que os parisienses vejam isto como mais um indício de que o rei os atraiçoou, pelo que não aceitarão a sua deserção de bom grado.
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Quando o duque se despediu com uma breve vénia, a rainha ficou a vê-lo a afastar-se, dividida entre a perplexidade e a desconfiança. O duque e os seus apoiantes
tinham Paris bem barricada e inteiramente sob o seu controlo.
Como é que Henrique teria conseguido escapar, a menos que... a menos que o duque de Guise lhe tivesse permitido que se pusesse em fuga? O duque nunca tivera a mínima
intenção de permitir que aquela rebelião ficasse fora do seu controlo, que fosse tão longe como destronar o rei.
A ser esse o caso, qual era o objetivo por detrás de toda aquela loucura? Catarina não fazia a mais pequena ideia, mas não se dispôs a fazer um grande esforço para
tentar perceber.
Tudo o que sabia era que a cobardia do filho, ao que parecia, proporcionara-lhe aquilo de que estava a precisar desesperadamente. Agora, Catarina de Médicis tinha
as tropas do rei às suas ordens. Disporia de um número de homens mais do que suficiente para avançar contra a ilha Encantada para poder resolver o seu outro problema.
Xavier. Desta feita, o Jaguar não conseguiria escapar-lhe.
Xavier mexeu-se, acordando quando Pietro bateu à porta da alcova; suavemente, para não a despertar, afastou Jane dos seus braços. Ela estava tão exausta que detestava
ter de a acordar antes de ser absolutamente necessário. Apressou-se a vestir-se antes de ir ter com Pietro, que o aguardava no corredor.
O gigantesco nativo também parecia estar cansado. Xavier afivelou o cinto da espada, preparando-se para render Pietro, que acabara o seu turno de guarda. Desceram
as escadas para que as suas vozes não acordassem Jane.
- Apercebeste-te de algum sinal de problemas na noite passada? Deste por alguém que tentasse aproximar-se da casa? - perguntou-lhe Xavier.
- Não, capitão, tê-lo-ia despertado. Tudo ficou em silêncio depois da meia-noite. Ouvimos alguns disparos de armas de fogo às primeiras horas desta manhã e depois...
- E depois...? - repetiu Xavier perante a hesitação de Pietro.
- E depois nada. O Jambe arriscou-se a sair à rua para ver o que se passava. - Os sobrolhos dele enrugaram-se numa expressão de perplexidade
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e mal-estar. - A situação alterou-se de uma maneira como eu nunca teria imaginado ser possível. É melhor que veja com os seus próprios olhos, capitão.
Xavier juntou-se aos seus dois homens e os três atravessaram o jardim. À medida que se aproximavam do local onde a refrega tivera lugar no dia anterior, Xavier preparou-se
para o pior, sem saber qual teria sido o desfecho da violência e matança.
Mas aquilo com que se deparou fez com que Xavier respirasse lentamente, sem ocultar o assombro que sentia. Era quase como se o tumulto do dia anterior nunca tivesse
tido lugar. As últimas barricadas estavam a ser removidas, enquanto as pedras eram carregadas em carroças.
Alguns dos comerciantes até estavam a abrir as portas dos seus estabelecimentos, enquanto os parisienses retomavam as suas rotinas diárias, tratando dos seus assuntos.
- Mas o que diabo...? - murmurou Xavier intrigado, mas então apercebeu-se de que, apesar do seu cuidado, tinha acordado Jane. Entretanto, ela tinha-se vestido e
saído de casa atrás dele. Quando ela se aproximou, Xavier passou um braço pelos ombros dela, chegando-a mais a si.
Jane olhou em volta. Mostrando-se tão perplexa como Xavier e os seus homens.
- O... o tumulto acabou? - perguntou ela.
- Macacos me mordam se sei! - Xavier olhou para um cavaleiro que passava por eles. A libré do homem indicava que era um dos homens do duque. - Você aí! - chamou
Xavier. - O que é que se passou? O conflito foi resolvido?
O homem a cavalo puxou as rédeas durante o tempo suficiente para sorrir a Xavier.
- Mas que conflito? No que me diz respeito, nunca houve nada que se assemelhasse a uma batalha. O cobarde do rei meteu o rabo entre as pernas e fugiu da cidade.i
- Fugiu? Isso quer dizer que o duque de Guise o destronou? O homem do duque mostrou um semblante de indignação.
- Não, o meu nobre amo não é pessoa para atraiçoar a coroa. Ele tem andado a percorrer a cidade durante toda a manhã para acalmar as pessoas, urgindo-as a voltarem
para casa. O que aconteceu não passou de um infeliz mal-entendido. - com estas palavras, o homem retomou o seu caminho,
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deixando Xavier a olhar para ele boquiaberto. Um mal-entendido? Jane mostrava-se confusa, Pietro pensativo e Jambe irado.
- Portanto, isto quer dizer que não vai haver nenhuma revolução? - O velho marinheiro parecia ter ficado dececionado. Tirou o barrete da cabeça com brusquidão, atirando-o
para o pavimento. - Mas por que diabo é que fizeram com que uma pessoa ficasse preocupada e alarmada, atemorizando toda a gente para nada?
- Não foi para nada. A chegada tão inesperada do duque proporcionou ao Xavier a oportunidade de escapar aos guardas que o prenderam lembrou Jane a Jambe com um sorriso.
- Sim... - começou Xavier a dizer quando a realidade o atingiu com a violência de uma clava. - A chegada tão inesperada do duque - resmungou e soltou uma catadupa
de imprecações. Quando os outros ficaram a olhar para ele, Xavier explicou-lhes com impaciência. - Não estão a perceber? Todas essas barricadas que foram erguidas
tão apressadamente e colocadas de maneira tão estratégica. Esta alegada sublevação foi astutamente planeada. Esta foi a manobra de diversão que o duque de Guise
prometeu ao rei de Espanha. com Henrique em fuga, coagido a fugir de Paris, é absolutamente impossível que ele pudesse enviar qualquer ajuda à Inglaterra.
- Por conseguinte, pensas que a armada... - começou Jane a dizer muito pálida.
- Sim, já zarparam rumo a Inglaterra. Lamento muito, meu amor. Jambe baixou-se para apanhar o barrete do chão com dedos que tremiam.
- Tenho de partir, capitão. Tenho de voltar para a minha pátria. Xavier aquiesceu com um menear de cabeça.
- Sim, vai, Jambe, e leva o Pietro contigo.
- E quanto a si, capitão?
- Tenho de cuidar da minha senhora. Vamos ter de voltar para a ilha Encantada para avisarmos a Ariane. Uma das infortunadas consequências que advêm do fim deste
tumulto é o facto de a Rainha das Trevas, agora, dispor de toda a liberdade para levar a cabo os seus planos.
Não havia tempo para despedidas prolongadas nem adeus sentimentais. Jane abraçou os dois homens de Xavier, que se contentou com calorosos apertos de mão e desejos
de boa viagem articulados numa voz roufenha.
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De volta a casa, disse a Jane que juntasse alguns dos seus pertences e tratasse de ver o que podia fazer por Violette. Parecia que a rapariga tinha uma amiga que
poderia ajudá-la a arranjar trabalho numa outra casa, mas Jane insistiu em dar à criada uma carta de referências.
Xavier percorria o vestíbulo enquanto aguardava, com a cabeça cheia de recordações de todos os abraços de paixão e ternura que ele e Jane haviam trocado na noite
anterior. Uma vez mais, tinham feito amor, ambos possuídos pelo ardor e loucura do momento. Mas, desta feita, Xavier jurou que não lhe daria motivos para que se
arrependesse.
Levando em consideração que as suas maquinações com Catarina de Médicis só tinham servido para agravar a situação, Xavier sentia-se inseguro a respeito do acolhimento
que teria quando regressasse à ilha Encantada. Mas se fosse possível persuadir Ariane a perdoar-lhe, talvez ele e Jane pudessem casar na ilha...
Os pensamentos dele foram interrompidos quando a porta da casa foi violentamente arrombada. Perdido nas suas cogitações, levou algum tempo a reagir, permitindo a
entrada de rompante de vários homens armados que eram chefiados por uma figura familiar, o guarda cujo nariz tinha sido fraturado por Xavier.
O homem olhou-o com uma expressão vingativa.
- Pois bem, Monsieur le Jaguar, a rainha receava que tivésseis sido suficientemente astucioso para terdes deixado Paris, mas, pelo que estou a ver, não tivestes
essa esperteza.
Xavier praguejou e começou a desembainhar a espada. Estava a meio de a desembainhar por completo quando os homens caíram sobre si. Resistiu ao ataque, dando um violento
murro no maxilar de um deles. Pelo canto do olho, viu Jane, que surgiu nas escadas.
- Foge, Jane! - gritou-lhe. Mas, para seu horror, ela optou por correr escadas abaixo, brandindo um atiçador do lume com o intuito de o ajudar. Naquele momento,
Xavier foi agredido na têmpora com a coronha de um mosquete.
A pancada foi tão violenta que as pernas lhe faltaram, caiu de joelhos e começou a ver uma espécie de teias de aranha negras diante dos olhos. Sentiu o sangue quente
a escorrer-lhe pela bochecha quando caiu desamparado no chão.
- Jane - disse numa voz enrouquecida.
A última coisa que Xavier viu antes de perder a consciência foi o atiçador que era tirado da mão dela.
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Todos andavam muito atarefados no Hotel de la Reine, com os servos numa roda-viva a tratarem dos preparativos para a partida da rainha. O rei refugiara-se no Castelo
de Blois, de onde os Estados Gerais tinham sido convocados, numa tentativa para se conseguir estabelecer um pacto de tréguas entre sua majestade e o duque de Guise.
Catarina de Médicis não depositava grandes esperanças nisso. As ações do filho, ditadas pela sua cobardia, haviam-no deixado sem qualquer capacidade de decisão.
O rei seria obrigado a ceder perante todas as exigências do duque, caso quisesse continuar a ser o soberano da França.
O seu único motivo de satisfação era o relatório que recebera do capitão Arnaud. O homem conseguira redimir-se ao capturar Xavier e a inglesa.
A rainha-viúva dera ordens para que ambos fossem levados para o Castelo de Blois. Não tinha tempo para confrontar nem interrogar os seus prisioneiros, tal como não
dispunha de tempo para poder estabelecer planos cuidadosos; resumindo e concluindo, não tinha tempo para nada, além de mandar tropas para a ilha Encantada.
Olhou para o seu precioso frasquinho, que agora estava vazio. Já havia começado a sentir que as forças que o poderoso elixir de Megera lhe proporcionara estavam
a enfraquecer.
O seu tempo de vida esgotava-se com esse enfraquecimento. Aquele era o seu derradeiro lance. Tinha de capturar a Rosa de Prata ou morrer.
O silêncio reinava na Belle Haven àquela hora tão tardia da noite. Meg tinha a melancólica sensação de que era a única pessoa acordada em todo o mundo. Nunca se
havia sentido tão sozinha como naquele momento.
A sua dedicada serva, Agatha Butterydoor, ressonava suavemente no colchão ao lado do leito dela. Mantendo-se de olho na idosa, Meg baixou-se para pegar na trouxa
que continha os seus modestos pertences, os quais havia colocado debaixo da cama havia algumas horas sem que ninguém a tivesse visto.
Deteve-se para um último olhar a Aggie, pensando que estava prestes a causar um enorme desgosto à idosa por desaparecer daquela maneira. Mas nem sequer se podia
arriscar a depositar um beijo de despedida na face enrugada de Aggie.
Saiu da alcova em bicos de pés, sentindo um aperto de dor no peito. Tinha sido tão feliz ali, na Belle Haven. Na verdade, a ilha Encantada provara ser um paraíso,
algo muito raro na curta vida de Meg. Quando saísse dali naquela noite, nunca mais voltaria a ver aquela casa.
Os inúmeros rumores tinham chegado à ilha Encantada como um bando de corvos de asa negra. Através de viandantes que chegavam à ilha, comerciantes e marinheiros,
todos eram portadores de advertências sobre o movimento de tropas que tinham sido avistadas a avançar através do território da Bretanha.
Essas notícias haviam causado o temor e o pânico na ilha Encantada, reações sempre latentes desde que a traição de Xavier fora revelada. As mulheres da ilha, especialmente
as que ainda tinham na memória os ataques
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dos caçadores de bruxas uma década antes, tremiam aterrorizadas perante a perspetiva de outro ataque.
Ariane, igual a si própria, era a imagem da calma. Meg era uma das poucas pessoas que tinham noção do quanto a Senhora da Ilha Encantada andava apreensiva. Ariane
passara muitas horas pela noite dentro a conversar com o marido desde que ele regressara à ilha.
Justice Deauville, sem despertar as atenções, tentava reforçar as defesas da ilha, além de recrutar homens que patrulhassem a ilha. Contudo, fizesse ele o que fizesse,
Meg sabia que nunca seria suficiente.
Aonde quer que Meg fosse, só via medo e ressentimento nos olhos que a fitavam. Mas não podia censurar as pessoas. Fora designada para ser a próxima Senhora da Ilha
Encantada. A sua sagrada missão devia ser proteger as mulheres daquela ilha e não ser o instrumento da sua destruição.
Existia apenas uma maneira de ela poder evitar isso, cometer uma ação terrível que provaria que não era a pessoa indicada para vir a ser a Senhora da Ilha Encantada
para sempre. Mas Meg não podia pensar demasiado no que tinha pela frente porque, se o fizesse, perderia toda a sua coragem.
Enquanto atravessava a casa mergulhada em silêncio, não foi capaz de resistir a espreitar para dentro de um dos quartos. A luz do luar projetava-se sobre o leito
onde Seraphine dormia aninhada ao lado das duas irmãs mais novas. O braço da jovem mais velha estava estendido por cima delas num gesto protetor, até mesmo enquanto
dormia.
Meg sentiu a garganta embargada, forçada a engolir em seco. Um dos aspetos mais difíceis do que se propunha fazer era não poder despedir-se de Seraphine. Todavia,
a sua amiga nunca seria capaz de compreender o que ela se preparava para fazer, razão por que teria tentado impedi-la.
- Perdoa-me, Seraphine - sussurrou.
Olhou atentamente para as três cabeças louras aninhadas nas respetivas almofadas, todas com uma aparência tão inocente e embrenhadas nos seus sonhos. Teria ela alguma
vez tido aquela aparência de inocência?, perguntou-se Meg com tristeza.
Se fosse esse o caso, teria sido há tanto tempo que nem sequer era capaz de se lembrar. Tinha a sensação de que, desde que nascera, a mãe inclinara-se sobre o seu
berço como uma fada má que destinasse Meg para uma existência de trevas.
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Fechou a porta do quarto e prosseguiu sem fazer barulho, saindo de casa furtivamente. Estava lua cheia e a luz do luar iluminava-lhe o caminho enquanto percorria
a estrada que a afastava de Belle Haven.
De vez em quando, era obrigada a sair da estrada, agachando-se entre a vegetação rasteira para não ser vista pelas patrulhas de Justice Deauville.
Apesar disso, conseguiu chegar a Port Corsair sem ser vista. A Lua, entretanto, subira mais alto no firmamento quando passou pelas coníferas, estugando o passo pelo
trilho que a levaria à enseada que tinha sido o seu refúgio secreto.
Meg pensou ter visto qualquer coisa a brilhar entre as rochas, talvez fosse um estilhaço de vidro, tudo o que restaria da sua bola de cristal que tinha estilhaçado.
Continuava a guardar ressentimentos contra Xavier por a ter levado a destruí-la, contudo, a verdade é que já não precisava da bola de cristal que lhe permitira adivinhar
o futuro. As suas profecias estavam gravadas na sua memória.
Meg deteve-se para procurar na sua trouxa o outro objeto que era proibido e que mantivera escondido durante tantos meses. Tirou-o para fora cuidadosamente, olhando-o
à luz do luar. A lâmina de bruxa parecia um espigão com uma ponta tão fina como a de uma agulha. O cabo era oco e podia ser comprimido para expelir um veneno letal
através da lâmina extremamente fina. O cabo tinha a gravação de uma flor prateada.
Era outro legado do Livro das Sombras, um a que a mãe de Meg recorrera com resultados temíveis. A jovem estremeceu ao sentir aquela arma na sua mão. Guardou-a cautelosamente
na algibeira secreta que cosera por dentro do seu manto.
Em seguida, preparou-se para esperar. Não teve de esperar durante muito tempo até começar a ouvir o chapinhar de remos na água. Avistou o pequeno barco a remos que
se aproximava, oscilando ao sabor das ondas enquanto se aproximava da enseada. A bordo havia apenas um rapaz, o jovem pescador que Meg tinha andado a subornar para
que a levasse para fora da ilha.
O rapaz parecia nervoso enquanto saía do barco para o areal a fim de a ajudar a subir para a embarcação. Sem dúvida que ele temia incorrer no desagrado da Senhora
da Ilha Encantada, caso Ariane viesse a descobrir que ele tinha ajudado Meg a fugir.
Todavia, a ganância era maior do que o medo, pensou Meg com cinismo. Caso se oferecesse dinheiro suficiente, era possível motivar qualquer
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homem a fazer tudo e mais alguma coisa. Só era preciso olhar para Xavier para constatar isso mesmo.
Ou quem sabe se, à semelhança de toda a gente na ilha, aquele rapaz só desejava que Meg partisse. Não disse palavra enquanto a instalava no pequeno barco. A travessia
através do estreito canal entre a ilha Encantada e o continente foi feita em silêncio. O que não incomodou Meg minimamente. Aconchegou-se melhor no manto e cobriu
a cabeça com o capuz.
Uma das perguntas que a mãe lhe fazia constantemente não lhe saía da cabeça.
"Qual é o maior erro que, uma mulher pode cometer, Megera?", costumava Cassandra Lascelles perguntar à filha num tom autoritário.
"Confiar num homem", respondia Meg solenemente, sabendo de antemão que essa era a resposta que a mãe esperava de si. Qualquer outra daria origem a uma severa repreensão
e a um vigoroso puxão de orelhas.
Nessa altura, Meg não tinha acreditado nisso, ao contrário do que acontecia agora, desde que havia sido traída. Primeiro por Sander Naismith e agora por Xavier.
Via inequivocamente que nunca fora capaz de confiar nem depender de homem nenhum, à exceção do seu pai. Mas Martin, o Lobo, encontrava-se longe, a bater-se pela
causa de outrem quando Meg mais precisava dele.
Mas isso não interessava, afirmou Meg a si própria veementemente, pestanejando para conter as lágrimas. O pai não podia valer-lhe. Ninguém podia. O seu destino fora-lhe
revelado pela bola de cristal havia muito tempo e já não valia a pena tentar resistir-lhe.
Quando chegaram à margem oposta, Meg procurou dentro da sua trouxa, de onde tirou uma mão-cheia de moedas. O rapaz resmungou qualquer coisa parecida com mera. Voltou
a subir para o barco e começou a remar como se, quanto mais depressa se afastasse dela, melhor seria para si.
Meg estremeceu, sentindo-se um pouco perdida, como se abandonada num terreno que não lhe era familiar. Mas, então, endireitou os ombros e encaminhou-se para a única
luz que via à distância, ao fundo do areal.
Quando já se aproximava da pequena aldeia piscatória, deu consigo a ter cada vez mais dificuldade em respirar ao constatar que tudo o que a rodeava lhe era familiar.
Os telhados de telhas de lousa escura das pequenas casas, a vereda estreita, a luz que saía de uma humilde taberna situada no largo da aldeia. Tinha visto tudo aquilo
numa das suas visões.
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Ouviu relinchos e o ocasional bater de ferraduras dos cavalos presos no pátio. Meg aproximou-se da janela para poder espreitar para o interior da estalagem. As mesas
da taberna estavam cheias com um contingente de soldados da rainha, tal como ela esperara ver.
Afastou-se da janela a tremer, sentindo que a sua determinação estava a vacilar. Era sempre neste ponto da sua visão que quem a atraiçoara, cujo rosto não conseguia
discernir, se acercava de si furtivamente pelas costas, sondando-lhe o pensamento. Olhou receosamente em volta de si, mas não viu ninguém. Tudo o que viu foi o seu
próprio reflexo empalidecido no vidro da janela.
Meg chamou a si toda a sua coragem e dirigiu-se para a porta da estalagem num passo arrastado. Ninguém deu pela sua presença entre todos aqueles homens que falavam
em voz alta e soltavam gargalhadas estrondosas.
Ouviu-se uma voz queixosa que se elevou acima das demais. Pertencia a um jovem gorducho que tinha umas suíças enormes que lhe cobriam as bochechas parcialmente.
- Na minha opinião, devíamos esperar pelo resto das tropas antes de atacarmos a ilha.
- O que é que se passa, Alphonse, estás com medo de um bando de mulheres? - perguntou-lhe um dos seus companheiros de copos trocista.
- Não de mulheres, mas sim de bruxas.
- Percebo, estás com medo que uma Circe qualquer te transforme mais ainda no porco que já és.
O jovem ficou corado que nem um tomate e apelou a um homem mais velho de cabelo grisalho todo refastelado na sua cadeira.
- Escutai o que vos digo, capitão. Não vos parece que somos muito poucos para podermos passar toda a ilha a pente fino? Como é que poderíamos encontrar a rapariga?
- Torturando a primeira mulher a que conseguirmos deitar a mão respondeu o capitão com um encolher de ombros. - Duvido que seja preciso grande esforço. As mulheres
estão sempre prontas para darem à língua.
O comentário dele deu origem a uma série de gracejos grosseiros e a mais gargalhadas.
Meg sentiu um nó na garganta, mas aquela temível ameaça foi o suficiente para a levar a agir.
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- Não é necessário torturar ninguém - disse num tom de voz alto e trémulo.
Todas as conversas cessaram abruptamente e todos os olhares se concentraram em si com expressões de curiosidade.
O coração de Meg batia fortemente e as mãos tremiam-lhe quando afastou o capuz para trás.
- Sou a rapariga que vos mandaram procurar. Sou a Rosa de Prata.
O Castelo de Blois situava-se num promontório sobranceiro à pequena localidade com o mesmo nome e acima de um troço do rio Loire. O castelo real era uma salgalhada
de estilos arquitetónicos de vários séculos, as torres de traça medieval a darem lugar ao estilo mais elegante da nova ala do castelo.
A galeria principal acolhera um conjunto de grandes damas de França nos seus vestidos mais deslumbrantes, acompanhadas de gentis-homens quase tão resplandecentes
como elas. Toda a gente tinha observado atentamente quando o rei de França recebeu o seu inimigo, o duque de Guise. Embora estivesse pálido e de expressão mal-humorada,
Henrique tentara afivelar a fachada de que continuava a ser o rei enquanto perdoava o duque de Guise pelo seu envolvimento no que passara a ser conhecido como o
Dia das Barricadas. Contudo, todos os presentes sabiam que o duque não pedira perdão nenhum.
Para todos os efeitos, atualmente ele era o senhor de França.
Enquanto Meg era escoltada pelo palácio por uma sentinela de elevada estatura, a galeria onde o rei passara pela sua derradeira humilhação estava deserta e com o
trono desocupado.
Meg olhava para aí com olhos que espelhavam indiferença. A viagem esgotante que, finalmente, a conduzira até ali tivera lugar de forma tão confusa como tudo o que
a rodeava lhe parecia.
Levando em consideração que dali a poucos instantes estaria perante a figura dos seus pesadelos, sentia-se atónita consigo própria por estar tão calma. Acontecera-lhe
algo de estranho depois de ter conseguido reunir a coragem necessária para se render aos soldados da rainha. Sentia-se como que entorpecida por um curioso sentimento
de resignação.
Perguntava-se se seria aquilo que os prisioneiros sentiam durante os seus derradeiros momentos de vida quando subiam os degraus do patíbulo onde seriam executados.
Já não havia nada a temer quando qualquer tentativa
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de resistência seria absolutamente fútil, quando não restava a mínima alternativa ao condenado.
Depois de ter atravessado uma sucessão de salões, Meg foi levada para uma antecâmara. Pestanejou devido à intensa luminosidade do sol que entrava pelas janelas,
refletindo-se nos ladrilhos multicolores da lareira, que cintilavam.
Tendo por fundo toda aquela diversidade de cores, a rainha era como uma sombra no seu vestido negro. Estava estendida num canapé, o rosto quase tão cinzento como
o cabelo grisalho todo penteado para trás. A rainha tinha uma aparência enfermiça, levando um lenço à boca e com os ombros a serem sacudidos por um violento ataque
de tosse.
A sentinela entregou Meg a uma das damas de honor da rainha. A jovem mulher inclinou-se para segredar ao ouvido de Meg, dizendo-lhe que se endireitasse e que não
se mexesse nem dissesse nada até a rainha ter acabado de falar com o rei.
O homem que se encontrava junto do canapé de Catarina de Médicis era o rei?, perguntou-se Meg estupefacta. Não obstante estar sumptuosamente trajado, não tinha uma
postura muito régia com os ombros descaídos para a frente, feições magras e olhos encovados.
O rei inclinava-se sobre a mão da rainha Catarina, mas apesar de ter perguntado pela sua saúde, a sua expressão fisionómica era de uma completa indiferença. Parecia
alheado, como se os seus pensamentos estivessem num outro lugar qualquer.
- E então, minha mãe, como é que tendes passado?
- Parece-me que muito melhor - respondeu a rainha, abafando outro ataque de tosse.
A boca do rei contorceu-se num trejeito petulante.
- Quem me dera poder dizer o mesmo, mas continuo a ter de suportar o duque de Guise a pavonear-se pelo castelo como se fosse o amo e senhor de tudo. Já apus o selo
no tratado que lhe confere tudo o que ele quis. Que mais é que o homem pretende de mim?
- Os tratados não valem mais do que a tinta e o papel em que estão escritos. Tendes de ter paciência, Henrique. A nossa melhor oportunidade há de surgir.
- É isso que me dizeis constantemente e já estou farto de ouvir sempre a mesma coisa. Tenho sido mais do que paciente, seguindo os vossos conselhos para aguardar
pacientemente. - A fisionomia saturnina ficou com uma expressão encolerizada, mas obrigou-se a um sorriso forçado. - Sei que
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tendes razão, minha mãe. Teria sido mal-avisado da minha parte ter eliminado o duque em Paris. Como é vosso costume dizer, um homem sensato trata de manter os seus
inimigos debaixo de olho enquanto aguarda a melhor oportunidade para atacar.
Era evidente que a resposta dele agradou à mãe. O rei inclinou-se para lhe depositar um beijo na face, após o que deu meia-volta para sair. Meg seguiu o exemplo
das damas de honor da rainha, baixando-se numa profunda vénia.
Quando o rei se aproximou mais, Meg arriscou-se a olhar-lhe para o rosto. Os olhos dele tinham a expressão turva de alguém que não se encontrava de posse de todas
as suas faculdades mentais. Por vezes era difícil ler os olhos de gente louca, mas os do rei espelhavam uma serenidade que era fruto da matreirice, o que ela viu
quando os perscrutou. Era possível que Henrique tivesse sido capaz de enganar a mãe, mas, para Meg, as intenções assassinas do rei estavam bem patentes. Estremeceu
quando ele passou por si.
Entretanto, um homem idoso, que envergava o traje dos físicos, inclinou-se para a rainha e tomou-lhe o pulso, franzindo o sobrolho. A jovem dama de honor que acolhera
Meg na antecâmara aproximou-se da rainha num passo silencioso, murmurando-lhe qualquer coisa ao ouvido.
Os olhos de Catarina viraram-se para onde Meg se mantinha no lado de dentro da porta. Pareceu que Catarina adquiria uma nova energia. Sentou-se mais a direito, fazendo
com que Meg se sentisse como um ratinho que tivesse atraído a atenção de um gato enorme e esfaimado.
- Podeis retirar-vos, doutor Caberini - ordenou a rainha sem desviar o olhar que mantinha em Meg.
- Mas, majestade - protestou o físico. - Estais bastante doente e num estado febril, o que me leva a recear que a pneumonia se tenha apoderado dos vossos pulmões.
- Deixai-me! - ripostou a rainha com rispidez. - Já não preciso dos vossos serviços.
Quando o físico lhe fez uma vénia antes de se retirar, a rainha ergueu a mão, fazendo um gesto na direção de Meg com que lhe indicou que devia aproximar-se.
Meg sentiu que parte da calma que sentira até ao momento a abandonava. Ficou como que paralisada até a jovem dama de honor se aproximar, dizendo-lhe que se acercasse
da rainha, sussurrando ao ouvido de Meg apressadamente mais algumas instruções.
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Esta nunca possuíra a graciosidade de Seraphine. Baixou-se numa vénia rígida. A dama de honor instruíra-a para que continuasse curvada até lhe dizerem que se erguesse
e que se mantivesse de olhos baixos. Mas Meg não foi capaz de se impedir de olhar para cima. Receava ter os olhos da Rainha das Trevas presos em si com toda a força
mesmerizante de um basilisco.
Todavia, os olhos da rainha pareciam um pouco toldados. Estreitavam-se como se tivessem de se esforçar para que ela pudesse vê-la melhor.
- Aproximai-vos mais, Margaret Wolfe. - A ironia que transparecia do tom de voz da rainha ao articular o seu nome não passou despercebida a Meg.
Aproximou-se lentamente, entrelaçando as mãos nervosamente diante de si. A rainha tossiu para o lenço que levara à boca, ficando com os olhos lacrimosos. Pestanejou
várias vezes, após o que inclinou a cabeça de lado, examinando Meg atentamente.
- Tenho de admitir que hoje os meus olhos estão um pouco cansados, mademoiselle, mas estou em crer que mudastes muito desde que vos vi há três anos. Já não sois
a rapariguinha tão assustada de então.
- E vós não sois tão aterradora como éreis antes - saiu da boca de Meg antes que conseguisse conter-se. Preparou-se para a cólera da rainha, mas esta limitou-se
a sorrir.
- Ah, sim? Isso é o que veremos mais tarde. Admiro a impudência até um certo ponto, mas não em alguém tão nova como vós. Portanto, aconselho-vos a que tenhais mais
prudência, minha cara.
Meg ergueu o queixo numa atitude de desafio.
- Porquê? Seja como for, o mais provável é terdes a intenção de me condenar à morte.
A rainha deu um estalo com a língua.
- É por isso que estais com um semblante tão sombrio, menina? Re ceais que vos tenha trazido de tão longe para vos executar? Posso afirmar-vos que não tenciono fazer-vos
mal nenhum.
- Não seria a primeira vez. Haveis mandado um assassino a Londres com ordens para que me matasse.
- Foi um erro da minha parte, pelo qual vos apresento as minhas mais sinceras desculpas. Isso aconteceu antes de eu me ter apercebido de que sois uma jovem extraordinária.
Por isso, agora tenho a maior estima por vós.
- Não estou a ver por que motivo é que haveis mudado de ideias, majestade.
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- Porque... - a rainha interrompeu-se, baixando o tom de voz.
- Tanto quanto me é dado saber, sois a única pessoa que foi capaz de traduzir o livro das Sombras.
- O livro desapareceu - retorquiu Meg num tom insistente.
- Terá desaparecido? - ripostou Catarina sorrindo. - Não me parece. Estou em crer que haveis aprendido muita coisa do que continha.
- Isso deveu-se à minha mãe - retorquiu Meg com um aperto na garganta. - Foi ela quem insistiu comigo para aprender a ler esse livro.
- E fostes uma estudante muito aplicada, capaz de fazer essas perigosas lâminas de bruxa, além de saberdes como preparar venenos e essas mortíferas rosas de prata.
Sois uma menina brilhante, Megera.
- Es... esse não é o meu nome e já não faço nada dessas coisas. Esqueci-me de tudo o que li nesse livro - afirmou Meg, embora se tivesse apercebido ao ver a maneira
como Catarina lhe sorria que todos os seus desmentidos eram fúteis.
Entretanto, Catarina tirou da algibeira um pequeno frasco.
- Nesse caso, onde é que haveis aprendido a preparar a infusão deste potente elixir que destes ao vosso amigo Xavier?
- Esse homem não é meu amigo - ripostou Meg corada.
- A sério? Posso garantir-vos que ele se comportou como se fosse vosso amigo. Ao ponto de ter arriscado a vida num esforço para me convencer de que não éreis ninguém
importante, que a poção que esteve neste frasco era água que ele obteve numa qualquer fonte mágica - disse Catarina com um sorriso sardónico. - Sou forçada a confessar
que o homem consegue ser muito verboso e convincente, mas não suficientemente convincente.
Meg ouvia a rainha com os olhos arregalados. Portanto, Xavier voltara a Paris para falar com a rainha e não com o fito de a atraiçoar como receara, mas sim para
conseguir fazer com que ela deixasse de se interessar por si.
- Ele fez realmente isso por mim? - perguntou Meg. - Não acredito nisso.
- Podeis perguntar-lhe pessoalmente, se quiserdes. Fui forçada a castigá-lo pela sua perfídia.
- E o que... que é que lhe fizestes? - perguntou Meg, esforçando-se por ocultar o quanto se sentia perturbada.
- Ainda nada de muito terrível. Limitei-me a encarcerá-lo na masmorra. O capitão Xavier não gosta muito de estar preso, o que se deve a uma
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infeliz experiência a bordo de uma galé espanhola. É muito possível que venha a enlouquecer - adiantou a rainha com um encolher de ombros. - Mas uma vez que ele
não é vosso amigo, não existe razão nenhuma para vos perturbardes com o destino dele. Nem tão-pouco com o que possa vir a acontecer à inglesa.
- Mas que inglesa? - perguntou Meg, sentindo um grande aperto de temor no estômago.
- Oh, esqueci-me de dizer que, quando o Xavier tentou fugir, Lady Jane Danvers cometeu a tolice de ir em socorro dele. Fui obrigada a ordenar que a prendessem.
- A Jane!? - gritou Meg. - O que é que lhe haveis feito, grande bruxa maléfica? Fizestes-lhe mal?
- Não há necessidade nenhuma de recorrer a insultos soezes, menina. Lady Jane Danvers está muito bem e recomenda-se. Podeis ver com os vossos próprios olhos. - A
rainha interrompeu-se e apontou para trás de Meg, que girou sobre si própria, deparando com Jane, que havia sido escoltada por dois guardas até à antecâmara.
Jane parecia mais pálida e magra do que Meg se recordava, mas, tirando isso, dava a impressão de estar bem. Meg estivera tão determinada a apresentar uma fachada
de muita coragem perante a Rainha das Trevas, fria e com domínio sobre as suas emoções. Mas ter visto Jane abalou toda a sua determinação. Apressou-se a atravessar
a antecâmara a cambalear para os braços estendidos de Jane, que a abraçou com toda a sua força, ocultando a cara no cabelo da jovem.
- Oh, Meggie - foi tudo o que conseguiu dizer.
Meg desejou poder continuar fechada na segurança dos braços de Jane para sempre. As suas lágrimas molharam a parte da frente do vestido dela.
- Mas que comovente - disse a rainha numa voz irónica.
Jane levantou a cabeça para poder olhar para a rainha com uma expressão furiosa.
- Porque é que precisastes de trazer a Meg para aqui? Porque é que não podeis deixá-la em paz e sossego? Ela é apenas uma garota.
- Ora, a Megera pode ser muitas coisas, mas uma mera garota não é uma delas. Não é verdade, minha querida?
- Sim - respondeu Meg, adotando uma postura rígida e afastando-se de Jane. com um gesto de fúria, limpou os olhos antes de se virar de frente para a rainha.
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- Tenho a certeza de que já percebestes em que pé é que as coisas estão - disse a rainha. - O bem-estar continuado de Lady Jane Danvers está inteiramente nas vossas
mãos.
- Não é justo que a sujeiteis a ter esse peso na consciência - começou Jane a dizer, mas foi Meg quem a interrompeu.
- Está tudo bem, Jane - disse concisa. Qualquer relutância, quaisquer dúvidas que ainda lhe restassem quanto a levar a cabo o objetivo que a levara ali dissiparam-se
por completo. Sentiu que o seu coração endurecia. - O que é que quereis de mim? - perguntou Meg com brusquidão.
A rainha ergueu o pequeno frasco vazio.
- Para começar, mais da poção que este frasco continha. Depois disso, veremos...
A escuridão na cela de Xavier era impiedosa quando a noite caiu. O muito peso daquele vazio feito de negrume, que como que o tragava, parecia fazer pressão contra
os seus olhos. Tinha o corpo todo pisado e dorido, os pulsos e os tornozelos estavam em carne viva por causa dos esforços inúteis que ele fazia para tentar libertar-se
das grilhetas que lhe prendiam as mãos e os pés.
A cela a que estava confinado era pequena e húmida, tendo pouco mais além de um catre e um balde para os dejetos, nada que pudesse servir-lhe de arma. A única janela
era mais uma abertura estreita bastante acima da sua cabeça do que outra coisa.
Xavier pouco se lembrava da viagem que o levara até àquele lugar. Tinha recordações que eram um verdadeiro pesadelo, de um estado intermitente de consciência e inconsciência,
enquanto era sacudido numa carroça por caminhos de piso acidentado.
A dada altura, tinha havido alguém que lhe tratara o ferimento. Xavier acreditava ter sido o físico particular da Rainha das Trevas. Era evidente que a bruxa estava
firmemente determinada a mantê-lo vivo, quanto mais não fosse pelo prazer de o atormentar até o levar à beira da loucura.
Xavier receava já se encontrar a meio caminho desse ponto. Os seus dias e noites misturavam-se confusamente. Não tinha a mínima noção da passagem do tempo, tal como
não sabia há quanto tempo é que era prisioneiro da rainha. Mas pior do que isso era não saber o que teria acontecido a Jane.
Tinha praguejado, proferido ameaças e acabado por suplicar aos seus carcereiros que lhe dessem informações. Mas eles haviam-se limitado a levar-lhe a comida e despejado
os seus dejetos num silêncio empedernido,
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sendo óbvio que estavam sob ordens estritas para não lhe dizerem uma única palavra que fosse.
Sentia-se atormentado sempre que se lembrava das ameaças que Catarina fizera contra Jane. O terror que aquelas imagens lhe suscitavam era tão intenso que era forçado
a afastá-las do seu pensamento, sob pena de vir a perder a sua sanidade mental.
A única coisa que o impedia de mergulhar no abismo da loucura era a sua capacidade de abrandar o ritmo respiratório, o que lhe permitia induzir a si próprio um estado
de transe. Em pensamento, adquiria a forma de um jaguar e regressava ao seu paraíso tropical, próximo do riacho de águas frescas com a sua sereia a banhar-lhe a
fronte.
As carícias dela eram tão suaves, pareciam-lhe tão genuínas, que Xavier abriu os olhos. Depois de ter estado mergulhado numa escuridão cerrada, até mesmo o clarão
suave da luz da vela lhe magoava os olhos, que se foram ajustando gradualmente, concentrando-se no rosto de Jane.
Quando se apercebeu de que ela não era uma ilusão nem um sonho induzido por um estado febril, o seu coração apertou-se dolorosamente.
- Raios partam isto! Não! - exclamou numa voz roufenha, abanando a cabeça fracamente de um lado para o outro, incapaz de impedir as lágrimas que lhe caíam dos olhos
copiosamente.
- Está tudo bem, Xavier. Estou aqui - disse Jane, tentando limpar-lhe as lágrimas.
- Não! - gemeu ele. - Não te quero aqui. Rezei para que conseguisses fugir. Porque é que não... correste? Porque é que t... tentaste...
- Cala-te, meu amor - atalhou Jane, tentando serená-lo. Continuou a banhar-lhe o rosto e obrigou-o a beber um pequeno gole de vinho.
Era de uma colheita forte, um vinho encorpado e adocicado. Xavier não estava preparado para a onda de calor que lhe percorreu o corpo, dando-lhe a impressão de ter
irradiado para todas as veias, para todos os nervos. Até começou a sentir as ideias um pouco mais claras.
A vela assente num suporte de ferro estava no chão ao lado de Jane. A chama do pavio projetava um clarão suave nas feições dele, mas a luz não era suficiente para
ele a ver tão bem como desejava. O olhar de Xavier percorria-a com desespero.
Bebeu outro gole de vinho, que lhe aclarou a garganta. Já conseguia articular as palavras com mais clareza.
- Não estás magoada? Essa bruxa não te fez mal?
362
- Não - replicou Jane, sorrindo com tristeza. - Sou vigiada muito de perto, mas, tirando isso, sou bem tratada. Não acredito que a rainha considere que eu tenha
alguma importância, para além de ser um peão para ela persuadir Meg a fazer o que pretende.
- A Meg? - perguntou Xavier, sentindo a respiração embargada no peito. - A rainha também conseguiu apoderar-se da Meg? - perguntou Xavier gemendo. A situação afigurava-se-lhe
como irremediável. - Conta-me tudo o que aconteceu - pediu a Jane.
Jane relatou-lhe tudo o que sabia a respeito da captura de Meg e sobre a chegada dela ao castelo.
- A rainha quer tão desesperadamente que a Meg coopere consigo que lhe fez uma série de concessões. Foi Meg quem a convenceu a permitir-me que te visitasse. Também
permitiu que ela desfrutasse de uma certa liberdade, além de lhe ter cedido um aposento onde ela pode destilar as suas poções. Quer o elixir da Meg a todo o custo.
- Mas a Meg não deve prepará-lo para ela. Só servirá para que a rainha fique mais forte.
- A Meg está bem ciente disso, razão por que tem andado a empatar, mas não sei quanto mais tempo é que Catarina estará disposta a dar-lhe. A Meg conseguiu fazer
elixir a mais. Deitou algumas gotas neste vinho.
O que explicava o vinho ser tão forte. Xavier conseguiu esboçar um sorriso descorado.
- Levando em linha de conta os sentimentos que a rapariga nutre por mim, é de admirar que não tenha deitado outra coisa qualquer na caneca.
- A Meg está a par da verdade a teu respeito, Xavier.
- O quê? Estás a referir-te a como o meu fiasco só fez com que a Rainha das Trevas ficasse ainda mais determinada a capturá-la?
Jane afastou-lhe o cabelo que lhe caíra para a testa.
- Não se trata disso. Ela sabe como arriscaste a vida num esforço para a protegeres.
- O que não serviu absolutamente para nada. - Os elos das grilhetas nos pulsos entrechocaram-se, mas, do mal o menos, permitiam-lhe a liberdade de movimentos necessária
para poder pegar na mão de Jane.
- Jane, não sei quanto tempo mais é que nos permitirão juntos, portanto, tens de prestar atenção ao que te vou dizer.
"A Meg é extraordinária, deveras inteligente. Desconfio que a preparação desse elixir é apenas uma parte do que ela aprendeu no Livro das Sombras.
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Ela pode usar os seus conhecimentos para encontrar uma maneira que vos ajude às duas a fugir. Sei que pode parecer uma loucura, confiares o teu destino nas mãos
de uma garota...
- A Meg já não é uma garota - interrompeu-o Jane com uma expressão sombria. - Ela transformou-se em alguém que mal reconheço, o que me inspira temor. É como se ela
estivesse a tornar-se realmente na Megera.
- É muito possível que Megera seja a pessoa certa para derrotar a Rainha das Trevas. Diz-lhe que conjure o feitiço de magia negra que for preciso. Se depararem com
alguma oportunidade de poderem escapar, não hesitem em aproveitá-la.
- Recuso-me a deixar-te - retorquiu Jane calmamente.
- Diabos te levem, mulher! - ripostou Xavier, tão agitado que se esforçou por se pôr de pé. - Não existe qualquer esperança para mim, não és capaz de ver isso? A
Catarina acredita que leu nos meus olhos o meu maior medo, ou seja, estar preso e agrilhoado numa masmorra cheia de humidade. Mas ela compreende tão pouco acerca
do amor, na verdade não sabe nada e é incapaz de compreender.
Xavier fitou-a com um misto de amor e desespero.
- O meu maior receio é que te aconteça qualquer coisa de mal, Jane.
- E qual é que pensas que é o meu maior medo? É de vir a perder-te. Xavier voltou a praguejar e atirou a cabeça para trás, perscrutando a sua mente à procura de
alguma coisa que pudesse dizer-lhe que a convencesse. Mas Jane emoldurou-lhe o rosto com as suas mãos.
- Diabos te levem, Louis Xavier Cheney - disse num tom aguerrido. - Ouve bem o que te digo. Eu... jamais... te... abandonarei.
Xavier fitou-a como se quisesse chegar-lhe ao fundo dos olhos, vendo uma expressão tão apaixonada que o encheu de uma alegria incomensurável, a par de um enorme
desespero e frustração perante a sua própria impotência, sentindo os olhos marejados de lágrimas outra vez.
Jane enlaçou-o nos seus braços, abraçando-o fortemente e com as lágrimas a correrem-lhe igualmente pelas faces.
- Conseguimos sobreviver a uma quase revolução - murmurou-lhe Jane ao ouvido. - De uma maneira ou de outra, haveremos de conseguir resolver este assunto, tu, eu
e a Meg. Tenho a certeza disso.
Jane deu graças por ter o rosto escondido no pescoço de Xavier, o que o impedia de ver os seus olhos. Se ela e ele conseguissem encontrar maneira de sair daquela
situação, tal não se deveria a nenhuma ação de Meg.
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Era indesmentível que uma espécie de negrume se havia apoderado da rapariga. Meg mostrava muito pouco interesse em fugir do castelo.
O aposento que Catarina pusera à disposição de Meg para que ela destilasse as suas poções situava-se na ala mais antiga do castelo, longe de todas as atividades
diárias.
A rainha tratara de o abastecer com toda a espécie de ervas, pilões e almofarizes, frascos e caldeirões. Estranhamente, aquela câmara era bastante semelhante àquela
em que Ariane costumava trabalhar.
Contudo, Meg tinha a certeza de que a poção que fervia no caldeirão não se assemelhava em nada com o que quer que tivesse sido preparado pela Senhora da Ilha Encantada.
Enquanto Meg continuava a trabalhar, tinha consciência da presença do guarda postado no lado de fora da porta.
Também sabia que os servos de Catarina de Médicis tinham recebido ordens para que se mantivessem atentos e a informassem de tudo o que ela fazia, de todos os ingredientes
que usasse. No entanto, eles eram desleixados no cumprimento dos seus deveres por uma razão que deixou Meg perplexa quando percebeu o que era.
Todos tinham mais medo dela do que da rainha. A sua reputação como Rosa de Prata tinha-se disseminado amplamente, sendo algo de que se falava em sussurro. Ao contrário
do que era costume, Meg pouco fez para desmentir o que se dizia a seu respeito. O medo que os servos tinham de si só a beneficiava naquelas circunstâncias. Muito
embora se sentisse perturbada quando até mesmo o robusto guarda se retraía todo quando passava por ela, a verdade é que isso também lhe permitia provar o sabor capitoso
do poder.
Quando acrescentou cuidadosamente outro ingrediente ao que já tinha no caldeirão e o líquido ficou em ponto de ebulição, viu que o guarda se afastava um pouco mais
da ombreira da porta.
Meg sorriu até ver o seu próprio reflexo no espelho pendurado na parede. Desde quando é que o contorno da sua boca adquirira uma configuração de tanta dureza, quase
de crueldade? Levantou a mão para tocar no cabelo. Parecia muito mais escuro à fraca luz daquela câmara, iluminado apenas pelas chamas de velas. O seu rosto dava
a impressão de ter emagrecido, com os malares mais salientes e a pele tão empalidecida. Começava a parecer-se com a mãe de uma maneira alarmante.
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Mas a sua aparência física deixara de ter qualquer importância, disse Meg a si própria. A paciência da rainha começava a esgotar-se. A visão que vislumbrara na sua
bola de cristal tinha de se concretizar dentro de muito pouco tempo. Meg abeirou-se do guarda para lhe dizer num tom autoritário que fosse buscar mais água ao poço.
O homem devia ter procurado um servo que se encarregasse dessa tarefa, mas Meg insistiu com ele, dizendo-lhe que precisava da água urgentemente.
- Podes esperar até que alguém seja chamado. Mas o elixir da rainha ficará estragado, pelo que terei de começar tudo de novo. Se quiseres ter de explicar a sua majestade
como é que isso aconteceu...
Era evidente que o guarda não queria ter de fazer isso. Apressou-se a ir buscar a água. Meg sabia que não dispunha de muito tempo. Baixou-se e começou a apalpar
por baixo da bancada em que trabalhava, onde tinha escondido a lâmina de bruxa.
Desenroscou o cabo e, com todo o cuidado, encheu o espaço oco com algum do líquido que tirou do caldeirão. Cassandra Lascelles tinha preferido utilizar um veneno
de efeito demorado, o que fazia com que a vítima ficasse num estado de agonia durante vários dias.
Mas aquele veneno era muito mais misericordioso do que o da mãe havia sido. A morte seria rápida e certa. Por breves momentos, Meg sentiu alguma hesitação. Seria
ela capaz de levar, realmente, aquilo a cabo?
"Claro que és capaz, Megera", sussurrou-lhe a voz da mãe em pensamento. "O teu destino é este. Nasceste para isto."
Meg tratou de embrulhar a lâmina de bruxa cuidadosamente, voltando a guardá-la no seu esconderijo. Teria de se certificar de que o resto do veneno seria despejado
e o caldeirão esfregado escrupulosamente. Meg não tinha o mínimo desejo de, inadvertidamente, causar mal a pessoas inocentes.
Baixou o olhar e apercebeu-se de que tinha as palmas das mãos todas suadas. Limpou-as ao avental. Ainda tinha muito a fazer antes do nascer do dia seguinte.
Amanhã... era o dia que havia determinado para ir ao encontro do seu destino; precisava de começar a preparar-se.
Meg saiu da parte mais antiga do castelo uma hora depois, com o seu guarda a segui-la num passo pesado. com os pensamentos muito longe dali, chocou com um homem
alto de cabelo preto.
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Meg recuou, titubeando um pedido de desculpa.
- Lamento muito... - começou a dizer, mas calou-se quando se apercebeu de que estava a olhar para as bonitas feições do duque de Guise. Quando se curvou numa vénia
cheia de nervosismo, o poderoso nobre limitou-se a mostrar uma expressão divertida.
- A culpa foi toda minha, mademoiselle.
Meg esforçou-se por encontrar uma réplica adequada, mas o que é que uma pessoa poderia dizer quando confrontada com um homem morto? Tinha lido a intenção assassina
do rei nos seus olhos, sem margem para qualquer dúvida, no primeiro dia em que tinha chegado ao palácio.
Apercebeu-se de que tinha ficado com o olhar preso no duque durante tempo de mais. Mostrando algum mal-estar devido ao olhar fixo dela, sua senhoria continuou a
caminhar.
Meg sentiu-se tentada a correr atrás dele, para tentar avisar o homem, contudo, sabia que ele jamais daria ouvidos ao que uma rapariguinha insignificante lhe dissesse.
Talvez conseguisse pensar numa outra maneira de pôr o duque de sobreaviso. No entanto, já tinha preocupações de sobra. Havia mais uma coisa que precisava de fazer
antes de amanhã. Tinha de ir falar com Xavier.
Xavier sentava-se no seu catre, encostando as costas à parede da sua cela. Os pequenos goles da poção de Meg ajudaram-no a recuperar parte das suas forças, mas quase
concluía que seria preferível continuar num estado semidelirante.
Não tinha nada que pudesse fazer, além de observar os progressos de uma aranha que tecia a sua teia num dos cantos da cela, enquanto ele próprio como que se mantinha
no lume brando da sua impotência, preocupando-se com o que poderia acontecer a Jane e a Meg.
Tinha conseguido arrancar um bocado de argamassa da parede. A próxima vez que o seu guarda silencioso entrasse na cela, Xavier tencionava atirar-lhe com aquilo à
cabeça, caso o homem continuasse a recusar-se a dar-lhe qualquer informação.
A pedra era demasiado pequena para lhe causar algum ferimento, mas, pelo menos, serviria de escape a alguma da frustração que Xavier sentia, apesar de correr o risco
de o guarda retaliar, dando-lhe uma valente sova.
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Ficou tenso, fechando os dedos no bocado de pedra de argamassa quando ouviu o ranger da chave na fechadura da porta. Mas em vez de ver a figura taciturna do seu
guarda, foi Meg quem entrou na cela.
A pedra caiu-lhe da mão sem que tivesse dado por isso, enquanto fixava o olhar nela. Meg fitava-o com a mesma intensidade e circunspeção enquanto a porta da cela
se fechava atrás de si.
Começaram a examinar-se um ao outro durante alguns momentos. Meg foi a primeira a quebrar o silêncio, falando com a sua habitual sem-cerimónia.
- Estais com pior aspeto do que no dia em que haveis dado à costa no areal da ilha.
- Obrigado pelo elogio - retorquiu Xavier rindo-se. - E a Meg parece... - Mas Xavier não sabia dizer exatamente qual era o aspeto de Meg. Agora compreendia a razão
por que Jane estava tão preocupada por causa da jovem. À pouca luz no interior da cela, Meg parecia quase espectral, como se corresse o perigo de vir a sumir-se
diante dos olhos dele. - Sentes-te bem? - perguntou-lhe.
- É uma pergunta estranha vinda de vós - retorquiu Meg, esboçando um sorriso tenso.
Xavier corou.
- Meg, não sei o que dizer para te convencer, mas a verdade é que me preocupo com o que te possa acontecer. Nunca foi minha intenção atraiçoar-te.
- Sei que não. Só quis dizer que era estranho estardes a preocupar-vos comigo. Devíeis estar mais apreensivo com o que possa vir a acontecer-vos.
- Infelizmente, há demasiados anos que essa tem sido a minha principal preocupação.
Meg aventurou-se a aproximar-se um pouco mais dele, entrelaçando os dedos.
- Mas não foi essa a impressão com que fiquei do vosso comportamento em Paris. Estou ao corrente do vosso plano para me protegerdes da Rainha das Trevas.
- Bastante estúpido, não é verdade?
- Sim - concordou Meg com um sorriso que se aproximava mais da sua maneira habitual de sorrir, anelante e apenas com um ténue traço de malícia. - Mas agradeço-vos
por terdes tentado.
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- Talvez tivesse resultado se a poção que preparaste não fosse tão infernalmente boa. Permitiu que ela recuperasse as forças. - Xavier abanou a cabeça com uma expressão
de pesar. - Eu não fazia a mínima ideia de que a mulher fosse tão poderosa. Aqueles olhos dela, a força deles é o suficiente para que ela ponha todos os nossos pensamentos
a nu.
- A Rainha das Trevas é uma mulher perigosa. E continuará a ser até ao dia... da sua morte. - Havia qualquer coisa na maneira como Meg pronunciou aquelas três últimas
palavras, a expressão vítrea nos seus olhos, que deixou Xavier perturbado.
Entretanto, Meg pareceu que dava um forte safanão a si própria.
- O guarda não me permitirá muito mais tempo, por isso tendes de me ouvir com atenção.
Meg olhou por cima do ombro, como se receasse que alguém a ouvisse. Aproximou-se ainda mais de Xavier, agachando-se junto dele e baixando o tom de voz.
- Tenho estado a dar voltas à cabeça para encontrar uma maneira de o Xavier e a Jane poderem escapar. vou dar outra poção à Jane que já preparei. Quando ela deixar
cair o frasco no corredor, partir-se-á e do líquido emanará uma espécie de névoa que fará com que o guarda fique temporariamente inconsciente. Em seguida, a Jane
poderá apoderar-se da chave, mas ela e o Xavier têm de ter muito cuidado para manterem a boca e o nariz bem protegidos para não respirarem essa névoa.
"Amanhã haverá uma grande confusão. com um pouco de sorte, isso proporcionar-vos-á a oportunidade de escaparem furtivamente do castelo. Em termos de plano, não é
grande coisa, mas foi o melhor em que consegui pensar.
- E porque é que haverá uma grande confusão amanhã? - perguntou-lhe Xavier, franzindo os sobrolhos. - Mais ainda, por que razão é que esse plano só inclui a Jane
e eu próprio? E quanto a ti?
Meg baixou a cabeça sem lhe responder. Mas pouco depois disse numa vozinha a medo:
- Porque não me parece que possa ir aonde quer que seja depois de...
- Depois do quê? O que é que pensas que vai acontecer? O que é que estás a planear fazer?
Xavier forçou-a a olhar para si de frente. Perscrutou-lhe a expressão fisionómica atentamente e viu um misto de desespero e determinação. Ficou com a respiração
suspensa ao aperceber-se subitamente do que Meg tinha em mente, por ser a mesma espécie de tentação sinistra que ele próprio sentiria.
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- Meg, não podes fazer isso. O lábio inferior dela tremeu.
- Tenho de fazer isso. A Rainha das Trevas será sempre uma ameaça para as pessoas que me são queridas. Ela não hesitará em fazer mal a quem quer que seja para conseguir
obter os segredos que tenho na cabeça.
"Fazes alguma ideia daquilo que eu talvez lhe dissesse caso ela vos ameaçasse ou à Jane com um machado? Ou ameaçasse outra pessoa que eu ame? O que é que eu não
lhe diria para a impedir, que conhecimentos de magia negra é que eu não partilharia, os quais nunca deveriam ser partilhados?
O tormento que se refletia nos olhos jovens de Meg era suficiente para dilacerar o coração de Xavier.
- Ela já é velha, Meg. Não poderá viver muitos mais anos.
- Viverá durante o tempo suficiente para poder fazer-vos mal e à Jane se eu não lhe der o que ela quer. Há muito tempo que eu sabia que este seria o desfecho desta
situação. Vi-me vezes sem conta a aniquilar a Rainha das Trevas na minha bola de cristal.
- Esquece essa maldita bola de cristal, Meg! Tens outra opção.
- Não, não tenho.
- Mas se fores apanhada...
- E é o que acontecerá. Não farei a mínima tentativa para ocultar o meu crime. Há que responder pelas más ações que cometemos. E isso é uma coisa que nem a minha
mãe nem tão-pouco a rainha conseguiram compreender.
- Serás julgada, condenada e executada.
- Sei que sim - reconheceu Meg, olhando-o com uma expressão de tristeza. - Mas só assim é que o Livro das Sombras morrerá comigo.
- Meg, essa não é a solução... - começou Xavier a dizer com desespero quando ouviu o guarda que voltava à cela. Mas ao ver a expressão que se espelhava nos olhos
dela, percebeu que Meg já lhe havia escapado.
Ela beijou-o muito ao de leve na bochecha.
- Adeus, Xavier.
Ainda era tão cedo que o Sol não despontara. A chuva gélida açoitava os vidros das janelas da câmara do conselho onde o duque de Guise se reunira com alguns dos
outros membros do conselho para uma reunião com o rei às primeiras horas da manhã.
O duque estremeceu, cobrindo os ombros com um manto leve e abeirando-se mais da lareira. Mas a frialdade do dia não o incomodava porque as suas próprias perspetivas
brilhavam resplandecentes.
Tinha-lhe chegado a notícia de que a armada fora vencida. Consequentemente, já não teria de depender da Espanha como aliada, o que também lhe convinha. Nunca lhe
agradara por aí além ficar em dívida para com Filipe. Ao fim e ao cabo, ele era o chefe da casa mais nobre em toda a França e agora era, para todos os efeitos, o
rei, ainda que sem a coroa.
- Vossa senhoria?
O duque de Guise olhou em volta. Um dos novos secretários do monarca - não se dera ao trabalho de memorizar o nome do homem - fez-lhe uma vénia. Não era um indivíduo
particularmente simpático. De facto, parecia excessivamente pálido e nervoso por ter de falar com o duque.
- O rei gostaria... gostaria de falar convosco nos seus aposentos particulares antes da reunião do conselho.
O duque arqueou as sobrancelhas numa expressão altaneira de surpresa. Mas supunha que podia dar-se ao luxo de ser magnânimo. Toda a gente sabia quem é que mandava
agora.
Pedindo licença aos demais membros do conselho para se ausentar, seguiu o jovem secretário, deixando a sua escolta pessoal para trás. Não era permitido que alguém
fosse aos aposentos particulares do rei acompanhado de membros da sua escolta.
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O duque de Guise fora advertido várias vezes para que não falasse com o rei em particular. Alguém chegara ao ponto de lhe passar uma mensagem no guardanapo durante
a ceia da noite anterior, avisando-o de que a sua vida corria perigo. Não saberia explicar por que razão é que naquele momento se recordou daquela estranha jovem
com quem se cruzara no corredor, a qual o fitara com tanta intensidade. Os seus passos vacilaram por breves momentos, contudo, nunca havia sido um cobarde como o
rei de França era. Baniu aquela advertência do seu pensamento, à semelhança do que fizera com todos os outros avisos.
Além disso, o rei não se atreveria a fazer-lhe mal naquele momento.
O duque de Guise continuou a seguir atrás do secretário por um estreito corredor que dava acesso à câmara privada do monarca. O corredor estava ladeado de guardas
que levavam a ponta dos dedos às boinas de veludo negro à passagem do duque, numa atitude respeitosa.
O secretário já havia desaparecido. Ouviu o bater de uma porta que se fechava no corredor. Apercebeu-se de que os guardas abandonavam os seus postos, posicionando-se
em forma atrás dele.
O duque estendeu a mão, apartando o reposteiro do aposento contíguo. Deparou com mais oito guardas que o aguardavam com as adagas desembainhadas.
Hesitou incrédulo perante a armadilha que via a fechar-se em torno de si. Levou a mão à espada, mas o manto tolhia-lhe os movimentos. O duque foi atacado por um
dos homens, mas virou-se para trás e deu um murro na cara do homem. Conseguiu derrubar mais dois antes de sentir uma lâmina que lhe perfurou a região lateral do
corpo.
Gritou, mas conseguiu derrubar outro dos seus agressores, que caiu por terra. Mas os outros atacaram-no em grupo, desferindo as adagas com que o golpearam repetidamente.
Cambaleou devido tanto ao choque que a agressão lhe causou como às dores. Obrigou-se a percorrer o corredor, apesar de ter sido por pouco que não escorregou no seu
próprio sangue. Conseguiu chegar até à alcova do rei e depois até aos pés do leito antes de ser trespassado pelas costas pela última vez num golpe derradeiro.
Caiu de joelhos, apercebendo-se de que estava prestes a morrer. Sentiu os lábios dormentes quando tentou formular as palavras que compunham uma oração.
- Meu Deus. Misericórdia.
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O duque de Guise estremeceu e ficou inanimado. Só então é que Henrique de França saiu furtivamente do seu esconderijo. Mal se atrevia a respirar enquanto avançava.
Meio aturdido perante o que tinha feito, o rei ficou a olhar para o seu inimigo caído no chão, murmurando:
- Nunca me tinha apercebido de que ele era tão alto.
A luminosidade da manhã entrava pelas janelas quando Meg era escoltada até à câmara da rainha, que continuava deitada no seu leito com um roupão por cima dos ombros.
Estava com pior aspeto do que no dia anterior, a tosse mais intensa.
Os médicos mantinham-se à beira da cama com semblantes circunspectos, enquanto as damas de honor da rainha se mantinham em silêncio, mostrando expressões sombrias.
Todos os presentes pareceram surpreendidos quando Meg chegou, mas Catarina de Médicis já devia ter dado as suas ordens porque ninguém impediu a jovem de se aproximar
do leito.
Meg levou a mão à algibeira oculta por dentro do vestido onde escondera a lâmina de bruxa. Sentia o coração a bater com tanta força que receava que até mesmo a Rainha
das Trevas fosse capaz de ouvir.
Catarina dispensou os seus físicos e fez um gesto com que indicou a Meg que se acercasse mais.
- Já acabaste de preparar a poção? - perguntou à jovem numa voz roufenha, embora autoritária. - Trouxeste-me o que te pedi?
Meg acenou que sim.
- De que é que estás à espera? Entrega-me a poção. Meg entregou-lhe um frasquinho. Os dedos de Catarina tremiam enquanto tirava a rolha. Dentro de um momento, ela
beberia um gole e perceberia que o pequeno frasco só continha água. Meg tinha receado enchê-lo com alguma substância letal, não fosse a rainha forçar alguém a provar
o líquido antes de o beber.
Meg sentia um formigueiro na mão quando a levou à algibeira oculta. Se tencionava agir, era imperativo que se enchesse de coragem para fazer o que tinha em mente
sem mais delongas. Começou a tirar a lâmina de bruxa de dentro da algibeira. Mas, naquele preciso momento, o rei entrou de rompante na alcova, apanhando todos os
presentes de surpresa. Tinha
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as bochechas muito coradas e uma aparência febril, a que se associava um brilho de desvario nos olhos. Correu para o leito e agarrou-se a um dos postes.
- Mamã, consegui fazê-lo! - anunciou exultante.
Catarina de Médicis ficou petrificada com o frasquinho na mão.
- Fizestes o quê?
- O duque de Guise está morto - informou o rei com um sorriso.
- Dei ordens para que o matassem.
- Henrique! - exclamou a rainha, soltando um som arfante e estrangulado.
Mas o rei silenciou-a com um gesto imperativo da mão.
- Não, madame. Não quero voltar a falar desse homem. Deixei de ser um prisioneiro ou um escravo. Finalmente, sou o rei de França. - Inclinou a cabeça à guisa de
despedida e deixou a alcova com a mesma celeridade com que chegara. Não chegou a ouvir a réplica impregnada de azedume da mãe.
- Não, fedelho idiota. Acabaste de perder tudo - disse a rainha. O frasquinho escapou-lhe dos dedos, estilhaçando-se no soalho. Catarina ficou arquejante, levando
a mão à garganta.
Meg ficou esquecida enquanto as damas de honor se apressavam a abeirar-se da rainha e os médicos foram chamados. Viu-se forçada a recuar até à antecâmara. Sentiu-se
invadida por uma enorme fraqueza e começou a tremer. Deixou-se cair no assento da janela a pensar no que estivera prestes a fazer. Não fosse aquele momento de hesitação
da sua parte e o rei não tivesse aparecido naquela precisa altura, ela teria posto em prática a visão que havia vislumbrado na sua bola de cristal que previa o futuro.
Xavier tinha tido razão. A crença que depositava na bola de cristal privara-a da sua força de vontade, da sua capacidade de fazer as suas próprias escolhas livremente.
Recuperando a compostura, Meg preparava-se para abandonar a antecâmara despercebidamente, sem saber muito bem para onde é que iria, nem tão-pouco o que faria a seguir.
Ficou surpreendida e perturbada quando a chamaram para que voltasse à presença da rainha. Uma vez mais, Catarina, com um gesto da mão, indicou-lhe que se aproximasse.
Nenhuma das pessoas que se encontravam na alcova podia ouvir as palavras proferidas em voz baixa que ela disse a Meg.
- Tu... foste tu quem me fez isto - disse Catarina de Médicis.
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- Não, não fiz - replicou Meg, mas a sua réplica não foi articulada com tanto frenesim como na sua visão. Na verdade, estava bastante calma.
- O que está a acontecer deve-se inteiramente às vossas ações - acrescentou Meg.
Catarina fixou o olhar nela. Os seus olhos mostravam uma nova lucidez que se devia àquela estranha capacidade e discernimento que muitas pessoas adquiriam momentos
antes de falecerem.
- Tu sabias - murmurou a rainha. - Não sei como, mas viste o que o Henrique tinha em mente fazer, apesar disso não fizeste nada para o impedir de fazer com que esta
tragédia se abatesse sobre nós.
- Tentei - retorquiu Meg com tristeza. - Não por vós, mas por ele.
- Estou a ser esmagada pelas ruínas da nossa casa - disse Catarina, sentindo a garganta embargada quando perguntou: - Estou a morrer?
O olhar de Meg penetrou nos olhos da rainha bem fundo.
- Sim, estais.
O semblante da rainha ficou extremamente agitado.
- Deus me valha, tenho tanto medo da escuridão, do vazio, de vir a ser esquecida. Não podes fazer nada para me valeres?
Meg abanou a cabeça; qualquer ódio ou medo que tivesse sentido por aquela mulher, desapareceu inteiramente. Tudo o que restava era um sentimento de piedade.
- Não - respondeu. - Isso já não se encontra ao meu alcance. Os lábios da rainha estreitaram-se num estranho sorriso.
- Fosse de que maneira fosse, tu nunca me terias valido. Os meus soldados não tiveram de te capturar, pois não? Foste tu que te rendeste a eles. Vieste aqui com
o intuito de me matares.
Meg não lhe deu resposta, mas o seu silêncio bastava como confirmação.
A rainha soltou uma risada enfraquecida que deu lugar a outro horrível espasmo de tosse.
- Tu és realmente extraordinária, minha menina. Só tens treze anos e já és capaz de arquitetar o assassínio de uma rainha. Lamento muito não poder continuar neste
mundo para ver o que será feito de ti. Quem é que poderia ter imaginado uma coisa destas? Tu não és a sucessora da Ariane. És a minha sucessora.
A Rainha das Trevas estava morta, mas a notícia não causou grande
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agitação num castelo em que toda a gente se encontrava em estado de pânico. Os soldados, guardas e servos andavam numa roda-viva num esforço para fortificarem o
Castelo de Blois, receando represálias por parte dos seguidores do duque de Guise e da Liga Católica contra o rei.
Meg movimentava-se no meio de todo aquele caos sem que ninguém lhe prestasse atenção. A sua grande inimiga deixara de pertencer ao mundo dos vivos. Devia ter tido
uma sensação de maior paz e sossego ou, no mínimo, um sentimento de algum alívio. Contudo, as últimas palavras de Catarina de Médicis continuavam a ecoar-lhe no
pensamento.
"Tu não és a sucessora da Ariane. És a minha sucessora."
Sacudiu a cabeça para banir aquela voz, tentando esquecer as palavras da rainha. Quando chegou ao pátio do castelo, viu Jane e Xavier.
O seu plano estava a resultar. Ambos estavam a escapar sem que ninguém reparasse neles no meio de toda aquela confusão. Quando Meg estugou o passo para se aproximar
deles, viu a expressão de alívio no rosto de Jane, assim como a interrogação na fisionomia de Xavier que espelhava a perturbação que sentia.
- Eu... eu não fiz nada - adiantou Meg. - Não fui eu - acrescentou e desatou a chorar convulsivamente.
Sentiu os braços de Jane que a enlaçavam, enquanto Xavier lhe afagava a cabeça.
- Está tudo acabado, minha querida - disse ele. - E agora temos de tratar de sair daqui para fora e voltar para a ilha Encantada. Está na hora de regressarmos a
casa.
O rei olhava pela janela, fixando o olhar na superfície da água do rio Loire que refletia a luz do Sol abaixo de si. Estava consciente da confusão que reinava por
todo o seu castelo, de todos os preparativos motivados pelo pânico, mas sentia-se à margem de tudo o que se estava a passar em volta de si.
Ouviu alguém que gritava no lado de fora da sua antecâmara, suplicando que o rei lhe concedesse uma audiência. Henrique presumia que seria outro mensageiro que lhe
traria mais más notícias de Paris. A notícia espalhara-se rapidamente, os cidadãos em tumulto, possuídos de um desgosto incomensuravelmente angustiante pela morte
do seu muito amado duque. Os símbolos da autoridade do rei haviam sido arrancados de todos os edifícios e atirados para o rio Sena, enquanto as estátuas dele tinham
sido destruídas.
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Até ouvira dizer que os aposentos reais no Louvre tinham sido saqueados e por toda a cidade as pessoas clamavam pelo sangue do rei.
Não era capaz de imaginar que notícias piores do que aquilo é que lhe poderiam dar. Mas, em vez de um mensageiro, foi um secretário que entrou para receber instruções
relativas às exéquias fúnebres da mãe do monarca.
- De acordo com a vontade da rainha, ela desejava ser sepultada no túmulo da família Valois em Saint-Denis.
O rei soltou uma risada desconsolada.
- Se eu levasse o corpo da rainha para onde quer que seja nas proximidades de Paris, a multidão revoltada não hesitaria em desfazer o corpo dela.
Franziu o sobrolho, mostrando-se pensativo.
- Não, é melhor que a minha mãe seja sepultada a coberto da escuridão. Deve ser enterrada no cemitério da igreja de Saint-Sauveur numa campa anónima.
- Numa campa anónima, majestade? A rainha-viúva? Henrique virou-se para poder olhá-lo com uma expressão de fúria.
- Ouviste-me bem. Trata disso.
Mostrando-se ligeiramente atordoado, o secretário retirou-se. O rei voltou-se outra vez para a janela. O duque de Guise estava morto, bem como a sua poderosa mãe.
Ambos haviam projetado longas sombras sobre o seu reino.
- A partir de agora devemos ser um monarca em toda a aceção da palavra - murmurou Henrique. - Temos sido um escravo durante demasiado tempo.
Quando a luz do dia começou a desaparecer, Ariane colocou uma única vela em cima da pedra que servia de altar. Ali, entre aquelas pedras eretas já tão antigas, pareceu-lhe
ser o lugar mais adequado para prestar uma homenagem em particular a uma inimiga que falecera.
Eram muitas as mulheres da ilha que queriam celebrar a morte da Rainha das Trevas, entre estas a própria sobrinha de Ariane. Seraphine mostrara-se ansiosa por queimar
uma efígie de Catarina de Médicis. Mas Ariane apressara-se a pôr fim firmemente a todos os planos nos mesmos moldes.
Era errado sentir uma satisfação tão perversa devido à morte de alguém, até mesmo a de Catarina de Médicis. Não teria a própria Rainha das Trevas dado um trágico
exemplo do que poderia vir a acontecer a uma Filha da Terra quando ela se entregava a pensamentos de azedume, ódio e vingança?
Ariane tinha mais razões do que a maior parte das pessoas para se rejubilar com a morte de Catarina de Médicis, depois de todo o mal e discórdia que a rainha causara
na sua própria vida. Mas só sentia tristeza e pesar.
Ninguém poderia acusar Catarina de falta de coragem ou de inteligência. Poderia ter oferecido tanto ao mundo se tivesse optado por se manter fiel aos valores de
uma verdadeira Filha da Terra. Quando Ariane acendeu o círio, carpiu por todos os talentos desperdiçados e mal-empregados de uma mulher tão extraordinária. Cerrando
as pálpebras, Ariane começou
a murmurar:
- Para onde quer que a tua alma tenha voado, Catarina, que te seja permitido repousar, finalmente, em paz.
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Manteve-se num silêncio respeitoso durante mais alguns momentos até ouvir passos atrás de si. Virou-se e deparou com Meg, que se mantinha dentro do círculo de pedras
gigantescas.
O regresso da jovem à ilha Encantada fora saudado com muitas manifestações de alívio e afeto. Uma vez que Catarina deixara de ser uma ameaça, as mulheres da ilha
haviam acolhido Meg no seu seio com satisfação.
Mas, desta feita, foi Meg quem mostrou relutância. Muito embora não se pudesse dizer que rejeitava todas as ofertas de amizade, era verdade que evitava toda a gente,
até mesmo Seraphine.
Ariane pressentia que a jovem tinha algo que lhe pesava muito no coração. Todavia, não a pressionara para que se abrisse consigo, sabendo que, quando ela estivesse
pronta para isso, Meg acabaria por confiar em si.
Sorrindo-lhe afetuosamente, fez um gesto, indicando-lhe que se aproximasse de si junto do altar. Meg acercou-se num passo lento, parecendo muito pequena nas sombras
projetadas pelos imponentes monólitos, as suas feições atormentadas por um misto de resignação e desespero.
Como é que era possível que alguém pudesse ter uma aparência tão jovem e tão envelhecida a um tempo? Ariane ansiava por poder tomar a garota nos seus braços. Mas
depois de tudo o que tinha acontecido durante o último mês, a verdade é que Meg deixara de ser uma criança. Ariane concedia-lhe a dignidade da distância que ela
parecia querer.
Meg deteve-se em frente de Ariane, unindo as palmas das mãos como uma penitente face ao seu confessor.
- Peço desculpa por vos perturbar num momento como este...
- Não estás a perturbar - assegurou-lhe Ariane.
Meg obrigou-se a esboçar um pequeno sorriso, mas o esforço para o manter pareceu ser de mais para a garota. O sorriso deu lugar a uma expressão de desânimo.
- Tenho estado à espera de poder falar convosco a sós desde que regressei à ilha. Pareceu-me que o momento mais apropriado nunca se me apresentava, nem conseguiria
ter a coragem necessária. Mas talvez este seja o melhor momento, bem como o melhor lugar.
O olhar de Meg abarcou tudo o que a rodeava.
- Ao fim e ao cabo, foi aqui que me haveis designado como vossa sucessora e onde aceitei o bordão que essa posição me conferia. - O olhar de Meg pousou na vela que
Ariane tinha pousado no altar de pedra. Meg respirou fundo. - Não sou capaz de aceitar essa responsabilidade, Ariane. Nunca poderei vir a ser a Senhora da Ilha Encantada.
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Em certa medida, Ariane estivera à espera daquilo. Não reagiu com o choque ou a indignação que Meg claramente havia antecipado.
Como se receasse que Ariane não tivesse compreendido bem o que lhe dissera, Meg apressou-se a acrescentar:
- Não tenho as capacidades necessárias para chefiar as Filhas da Terra. Fiz uma coisa tão horrível... - Os lábios de Meg começaram a tremer e não conseguiu prosseguir.
- Uma coisa que aconteceu quando foste capturada e levada para o Castelo de Blois? - perguntou Ariane suavemente.
- Eu nunca fui capturada, Ariane. Fui lá deliberadamente com o intuito de... de matar a Rainha das Trevas.
- E mataste? - perguntou-lhe Ariane, apesar de ler o suficiente nos olhos conturbados de Meg para saber qual seria a resposta.
- Não. A rainha morreu de uma inflamação nos pulmões ou talvez tenha sido o choque e o desespero que a mataram quando soube o que o filho tinha feito ao duque de
Guise.
Meg interrompeu-se e engoliu com dificuldade.
- Mas eu podia tê-la matado com a maior das facilidades. Era o que queria fazer. Na verdade, estive à beira do leito da rainha pronta para usar a minha lâmina de
bruxa. Eu tinha visto essa cena um sem-número de vezes na minha bola de cristal. Tinha chegado o momento de eu agir. Se não tivesse hesitado...
- Mas é isso precisamente, Meg - atalhou Ariane. - Tu hesitaste. Quando o momento de entrares em ação chegou, não obstante o que a tua bola de cristal te tenha mostrado,
decidiste fazer o que era mais correto.
- Mas temo que eu seja exatamente como a Rainha das Trevas ou como a minha mãe, à procura de desculpas para o mal que faço. Faça eu o que fizer, o Livro das Sombras
estará para sempre na minha memória, tentando-me para que ponha em prática a magia negra sempre que me sinta ameaçada ou em dificuldades - admitiu Meg com os olhos
marejados de lágrimas. - Sois uma pessoa boa, Ariane. É impossível que possais compreender - acrescentou Meg, olhando para ela.
- Posso compreender, sim, minha querida. Muito melhor do que consigas imaginar. Sabes que, em tempos, tive o Livro das Sombras nas mãos?
- N... não.
- Oh, mas eu não era tão competente para traduzir o texto como tu foste. Ainda assim, consegui traduzir o suficiente para produzir um pouco
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de magia letal. A minha irmã Gabrielle estava refém de um caçador de bruxas. Tentei provocar uma manobra de diversão com uma pequena explosão. Mas, em vez disso,
o que fiz foi incendiar uma estalagem que ficou reduzida a escombros e ferir muitas pessoas inocentes que acorreram para ver o fogo.
Meg ficou a olhar para ela de olhos arregalados.
- Fizestes isso?
- Portanto, estás a ver que não és a única a sentir-se atraída pela magia negra. Não é por nunca se ter sido tentada que se adquire fortitude de espírito. Sempre
que se tropeça, todos os erros que se comete e o que se aprende com eles é que nos proporcionam a sabedoria de que precisamos para exercer o cargo de Senhora da
Ilha Encantada.
Ariane sorriu pesarosa.
- Eu própria continuo a esforçar-me e a aprender. É um processo que dura toda uma vida. - Pousou as mãos nos ombros magros da garota.
- Por favor, não desistas de ti própria, Meg. Garanto-te que eu não desisti de ti. Mas posso escolher outra sucessora. É isso que queres realmente?
Meg levantou a cabeça e olhou para Ariane, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
- Não - respondeu e atirou-se para os braços de Ariane. Naquele momento, uma ligeira brisa soprou pela clareira. Enquanto abraçava a garota, Ariane olhou para o
círio que acendera pela alma da Rainha das Trevas e viu que a chama tremeluzia e se extinguia.
Jane encontrava-se na extremidade da costa rochosa, a olhar para o outro lado do canal, em direção a Inglaterra, mas não com o temor e o desespero que se haviam
apoderado de si no passado.
Xavier enlaçou-a, passando-lhe um braço pela cintura numa atitude protetora, mantendo-a firmemente apoiada a si nos rochedos.
- Portanto, Jane, a tua Inglaterra está sã e salva. Conseguiram derrotar a armada espanhola sem precisarem da ajuda dos franceses.
- Talvez porque a Inglaterra teve a ajuda do aliado mais poderoso de todos - murmurou Jane.
As águas do canal estavam tão mansas naquele dia que era difícil imaginar a violência da tempestade que causara a destruição da armada espanhola.
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- Atrevo-me a dizer que se encontrarão destroços do naufrágio dos navios na costa irlandesa ao longo de muitos anos - comentou Xavier.
- Ouvi dizer que muitos dos marinheiros espanhóis que conseguiram chegar a terra, para o que tiveram de fazer um esforço tremendo, foram massacrados por clãs de
irlandeses selvagens. - Xavier fez uma pausa antes de acrescentar momentos depois: - Pobres diabos.
Jane olhou para ele surpreendida.
- Pensei que odiavas os espanhóis.
- Imagino que fossem apenas simples marinheiros como o Jambe, o Pietro e eu próprio. Sem grandes preocupações a respeito de reis, religião ou política. Os pobres
desgraçados navegavam pelo amor que tinham ao mar. Andavam apenas à procura de um pouco de aventura e na esperança de fazerem fortuna ao longo do caminho.
- Sem dúvida que foi o que sucedeu ao Jambe. Ganhou a sua parte da pilhagem por trabalhar no navio do Drake.
- É verdade - confirmou Xavier com uma careta risonha. - Para já não mencionar o facto de ter recuperado o diabo daquele papagaio de que tanto gosta. A Miri devolveu-me
o Mendigo do Mar. Aparentemente, o papagaio disse-lhe que não queria parecer ingrato, mas que prefere a companhia de Jambe à dela.
- O papagaio consegue falar assim tão bem? - perguntou Jane estupefacta.
- Ao que tudo indica, consegue... com a Miri - replicou Xavier rindo-se, mas ficou com uma expressão mais séria quando acrescentou: - A minha irmã também tinha uma
coisa para me dar. Ela... ela tem andado a ler os diários de bordo que o nosso pai mantinha para ela. Descobriu a razão por que o chevalier nunca mais voltou a França.
- Oh!? - exclamou Jane ansiosamente. Não era capaz de dizer pela expressão fisionómica de Xavier se seria uma razão boa ou má.
- Parece que o chevalier ficou bastante perturbado depois do ataque dos espanhóis à colónia francesa. Se os diários de bordo viessem a chegar às mãos da Miri, ele
queria que ela soubesse o muito que a amava e às irmãs, mas que nunca mais poderia regressar a casa até encontrar o seu... o seu filho.
- Oh, Xavier!
- Sim, bem... foi o que aconteceu. Só fui mencionado uma vez, apenas aquelas duas palavras. Meu filho. - A boca de Xavier contorceu-se
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numa expressão de alguma amargura. - Mas, de uma maneira inexplicável, é o suficiente.
Jane não era capaz de imaginar todo o significado que aquela revelação tivera para Xavier. Tinha ficado com os olhos lacrimosos, mas sentia-se claramente constrangido,
reagindo de uma maneira tão brusca perante a emoção que se apoderara de si que Jane não se opôs a que ele mudasse de assunto, voltando a concentrar-se em Jambe.
- O velho pirata está nas suas sete quintas. Não só recuperou o seu papagaio, como tem o seu ouro, além de poder gabar-se durante o resto da sua vida de que foi
um dos homens que, juntamente com Drake, fizeram frente à poderosa armada espanhola.
Jane pensou ter detetado uma nota de nostalgia no tom de voz de Xavier.
- Sentes pesar por não teres deixado Paris para te juntares ao Drake no seu navio, em vez de teres ficado para defenderes a Meg da ameaça que a Rainha das Trevas
constituía?
Xavier abanou a cabeça.
- Só lamento ter sido idiota ao ponto de ter permitido que essa bruxa me encurralasse. Eu devia ter-te protegido mais eficazmente.
- Sou mais forte do que pensas, Xavier.
- Nunca subestimei a tua força e a tua coragem, Jane. És como a maior parte destas mulheres da ilha Encantada, pelo que há ocasiões em que duvido que precises de
mim ou de qualquer outro homem - disse Xavier na brincadeira, mas era impossível interpretar erroneamente a ânsia que se espelhava nos olhos dele. - Ouvi dizer que
recebeste outra carta.
- Sim - confirmou Jane.
- Suponho que dessa tua miserável prima.
- Não, por muito estranho que possa parecer, esta foi-me endereçada por uma velha amiga de que quase me tinha esquecido. Durante o ataque da armada, Filipe estava
à espera que os católicos ingleses se virassem contra a sua soberana. Mas foram muito poucos os que o fizeram. Essa atitude levou Isabel a mostrar generosidade para
com os seus súbditos católicos, até mesmo para com os que vivem no exílio. Sua majestade ofereceu-me o seu perdão.
- Estou a ver - disse Xavier, tirando a mão da cintura dela. - E é claro que tencionas aceitar o perdão dela e voltar para Inglaterra.
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- Em tempos, isso era o que eu mais desejava. Fiquei devastada quando fui acusada de traição e de bruxaria. Não sou uma coisa nem a outra. Mas a passagem do tempo
ensinou-me três coisas. Em primeiro lugar, afinal de contas, sou uma Filha da Terra. Em segundo lugar, deixei de pertencer à Inglaterra.
- E a terceira coisa, Jane?
Ela envolveu-lhe o pescoço com os seus braços.
- Que a minha pátria é aonde tu estiveres.
Jane ficou comovida ao ver como Xavier se emocionou ao ouvir as suas palavras e o quanto, a despeito de todas as suas fanfarronadas, aquele homem precisava que ela
reiterasse o amor que lhe dedicava.
- Sabes que não tenho grande coisa que possa oferecer-te. Mas é possível que o marido da Ariane esteja disposto a investir num pequeno navio. Parece-me que consegui
despertar a curiosidade dele com as minhas histórias sobre o Novo Mundo.
Xavier puxou-a mais para junto de si, falando num tom de brincadeira para ocultar as suas emoções mais profundas.
- Portanto, Jane, estarias disposta a fazeres-te ao mar comigo e passares a ser uma pirata?
Jane sorriu e olhou para ele.
- Tenho de confessar que, de todas as perspetivas que levei em consideração para o meu futuro, essa nunca me ocorreu.
- E porque não? Já vives na ilha Encantada há tempo suficiente para teres ficado a saber que as mulheres são capazes de tudo e mais alguma coisa. Nunca ouviste falar
da Grace O'Malley, a rainha pirata dos irlandeses?
- Sim, já ouvi, mas ela foi criada para a vida no mar desde os seus primeiros anos de vida. Eu tenho tendência para enjoar quando as ondas ficam mais alterosas,
além disso, devo dizer-te que, sempre que pilhasses a carga de um navio, eu suplicar-te-ia que a devolvesses ao seu legítimo proprietário.
- A minha maravilhosa consciência - retorquiu Xavier, os olhos a brilharem-lhe de ternura e com uma expressão divertida quando a beijou.
Jane recuou um pouco, fitando-o com uma expressão muito séria.
- O que quer que o futuro nos reserve, Xavier, não quero ser quem te nega os teus sonhos, a pessoa que te impedirá de rumares a todas essas
terras prodigiosas, que te impeça de navegar por mares nunca antes navegados.
- És uma mulher tonta que ainda não compreendeu, pois não? - retorquiu Xavier numa voz enrouquecida, beijando-a outra vez.
- Já encontrei os meus horizontes longínquos nos teus olhos.

 

 

                                                   Susan Carroll         

 

 

 

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